Entre o Joio e a Esperança: O Apocalipse sob o Cerco das Heresias
Como falsas interpretações escatológicas ameaçam a fé, distorcem a Tradição e alimentam o medo sob o disfarce da profecia.
O ser humano, em sua deficiência originária, tende mais a destruir do que a construir — poucos são os que se dedicam a aprimorar aquilo que foi conservado. Ademais, esse impulso destrutivo, quando não se manifesta pela força, revela-se na tentativa de deturpar e desordenar o cabedal sobre o qual certas crenças estão alicerçadas. Na história da civilização ocidental, não foi diferente: assim ocorreu com a filosofia grega, como quando sofistas passaram a usar a razão apenas como instrumento de persuasão, esvaziando sua busca pela verdade; com a jurisprudência romana, ao ser reinterpretada arbitrariamente em nome de interesses políticos, como nas codificações imperiais tardias; e não é diferente com a fé católica, constantemente submetida a revisões ideológicas que pouco guardam de sua doutrina original.
Mas não é meu intuito, por ora, expor as correntes nocivas que, por vezes, atuam dentro da própria Santa Igreja. Aqui, refiro-me antes à tentativa de certas seitas e dos idiotas de plantão que, munidos de papel, tinta e má vontade, empenham-se em destruir a verdade contida na significação de alguns livros sagrados — como é o caso do Apocalipse.
O Apocalipse foi escrito por João durante seu exílio na ilha de Patmos. O livro contém uma imensa quantidade de símbolos e, para ser lido com algum rigor, requer do leitor não apenas conhecimento escatológico, mas também uma apreciação das verdades simbólicas ali reveladas. A tradição da Igreja, transmitida pelos seus Doutores, nos oferece uma leitura sólida desses sinais: a Mulher vestida de Sol representa Maria Santíssima e, também, a própria Igreja glorificada; os 144 mil selados expressam a plenitude dos eleitos, e não um número restrito; os cavaleiros manifestam o desdobramento do juízo divino sobre a história humana; e a Nova Jerusalém é figura da Igreja triunfante, onde o Cordeiro reina sem sombra. Esses significados, colhidos na reverência e na fidelidade, contrastam com as deturpações modernas, que reduzem tais símbolos a caricaturas vulgares, interpretações sensacionalistas ou delírios de fim dos tempos — distantes da verdadeira escatologia cristã, que é, antes de tudo, esperança em justiça.
Ora, alguém munido de verdadeiro interesse pode se perguntar: de onde surgiu essa ideia destrutiva, segundo a qual do livro emanaria um prenúncio profético de um fim inevitável? A resposta remonta aos milenaristas, que no século II, com figuras como Papias de Hierápolis, interpretaram literalmente o Apocalipse 20, acreditando em um reinado terreno de Cristo por mil anos antes do juízo final. Eles defendiam uma era de paz e justiça material, com a ressurreição dos justos e a governança de Cristo em Jerusalém. A Igreja, porém, através de Santo Agostinho, rejeitou essa visão, interpretando o "milênio" de forma espiritual, como o período da Igreja entre as duas vindas de Cristo, e condenou o milenarismo como heresia.
De forma semelhante a uma moléstia que se espalha pelo organismo quando contaminado — e que, mesmo após a cura, deixa uma memória residual — a Igreja nunca conseguiu erradicar completamente essas ideias de seu seio. De tempos em tempos, elas renascem, embora frequentemente disfarçadas, por vezes valendo-se de filosofias modernas como pano de fundo, tal como o vinho novo colocado em odres velhos — e, como nos alerta o Senhor, os odres se rompem e o vinho se perde.
Foi o que se deu no ano 1000 da nossa era, quando, munidos de uma narrativa “profética do fim”, milhares foram fisgados pela ideia de que o término do mundo era tão certo quanto o ar que respiravam ou o sol que pairava e brilhava sobre suas cabeças. A atmosfera de expectativa apocalíptica tomou conta da cristandade medieval, alimentada por interpretações errôneas do Apocalipse e pelo simbolismo numérico do milênio. Um dos grupos que mais contribuiu para esse clima foi a seita dos milenaristas tardios, também chamados de neo-quiliastas, que retomaram as ideias condenadas da antiga heresia e as travestiram de piedade popular. Pregavam que, com o fim do milênio após o nascimento de Cristo, viria o juízo final — e muitos, temendo o castigo divino, venderam propriedades, abandonaram seus lares e se lançaram em penitências desesperadas. A Igreja, mais uma vez, teve de reafirmar que “quanto ao dia e à hora, ninguém sabe” (Mt 24,36), mas o estrago na alma de muitos já estava feito.
Como citei, não se pode apagar por definitivo uma moléstia do organismo — alguma coisa sempre fica. Quinhentos anos depois, a ideia voltou. Durante a Peste Negra, que desolou a Europa no século XIV, matando um terço da população, o medo e o desespero abriram espaço para o ressurgimento das seitas que haviam permanecido nas sombras. A calamidade foi lida por muitos como o sinal definitivo do juízo final. Os flagelantes, por exemplo, formaram grupos que percorriam cidades em procissões públicas de penitência extrema, chicoteando a si mesmos em praças, clamando pela misericórdia de Deus e pregando que o Apocalipse estava às portas. Esses movimentos, muitas vezes contrários à autoridade da Igreja, disseminaram doutrinas erradas e aumentaram o caos espiritual — mais estrago foi feito.
Para aqueles mais desatentos, o engodo é certeiro, e, com isso, acabam sendo fisgados.
Mas há, no espírito, uma inclinação. Tal predisposição nos leva a crer que somos sempre os melhores — e todos aqueles que vieram antes de nós são tratados como inferiores. É o trauma de Saturno, que, devorando o próprio filho, perpetua em si mesmo a hegemonia do ego, temeroso de ser superado. Assim é a modernidade — crendo-se emancipada do passado, repete-o nos mesmos erros, agora vestidos de razão inflada.
Portanto, o que se deu no ontem se repete no hoje. Em nosso tempo, vemos os mesmos sintomas: seitas e indivíduos que, munidos de uma deficiência quanto às Escrituras e à Tradição, elaboram ideias que vão das mais absurdas às mais bizarras. Desse modo, destroem a capacidade de muitos de alcançar qualquer entendimento verdadeiro das Sagradas Escrituras. São os que destroem — seu intuito é destruir, amedrontar, pois sabem que é pelo medo que se abre caminho para a tirania.
São esses a erva daninha da fé — ou, como nos diz a Escritura, o joio. Em suma, a deturpação escatológica não se limita ao campo hermenêutico; ela infiltra-se na vida prática, muitas vezes conduzindo o sujeito ao desânimo, ao fazê-lo crer que nada mais há a fazer neste mundo, pois o fim seria inevitável e próximo demais. Ou então o leva a lutar por recompensas terrenas disfarçadas de promessas eternas — o que, no fundo, é uma perversão da esperança cristã, reduzindo o espiritual ao material. A doutrina católica, no entanto, ensina que o Reino de Deus já está presente, embora ainda não em sua plenitude, e que a vida presente tem valor enquanto caminho de santificação, vivida na fé, na esperança e na caridade. Por isso, qualquer análise de uma realidade oriunda da Tradição só possui legitimidade se for feita à luz da própria Tradição, guiada pelo Magistério da Igreja e enraizada na Revelação.
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