segunda-feira, 21 de abril de 2025

A Normalização do Absurdo.

A Normalização do Absurdo

Dentre todas as espécies do reino animal, a humana é a única capaz de abstrair — de retirar do ente seu aspecto imediato e, sobre ele, formular um juízo, afirmando ou negando algo. Um dom que nenhum outro animal possui. Essa vantagem em relação às demais espécies permitiu ao Homem fazer escolhas, delimitar territórios e agir com base em estratégias.

Esse processo, antes de ser algo qualquer, é a principal ferramenta da espécie humana — o instrumento que tornou possível aquilo que muitos chamam de evolução.

Na introdução de sua obra Metafísica, Aristóteles nos lembra que, dentre todos os sentidos, o da visão é o mais importante. É por meio dos olhos que alimentamos nosso mundo interno, fornecendo-lhe as ferramentas para comparar aquilo que está fora com aquilo que se encontra dentro de nós — o que se convencionou chamar de mundus mentis.

Esse fato tão corriqueiro — ver e constatar o que se vê — é acompanhado por outra capacidade singular da espécie: a de formular e reproduzir aquilo que o mundus mentis elaborou. Ou seja, ao ver algo, penso sobre esse algo; e, após pensar, falo a partir do que pensei — gerando, assim, aquilo que chamamos de discurso.

Olavo de Carvalho, filósofo brasileiro, desenvolveu — com base na filosofia aristotélica — a ideia dos graus de discurso, teoria segundo a qual os discursos possuem diferentes níveis de significação. De acordo com ele, todo discurso carrega em si uma validade que depende exclusivamente de sua estrutura: quanto mais nobre for a significação que expressa, maior será o grau de certeza que ele oferece.

Portanto, temos nessa teoria quatro níveis de discurso, que vão do mais simbólico ao mais factual. Ou seja, percorremos uma escala que parte daquilo que não podemos reproduzir senão por meio da imaginação, até aquilo que valida nosso entorno ao comparar o que vemos com o que pensamos.

Ditas essas coisas, elaboradas nesta breve introdução, passamos agora a abordar como, nos dias atuais, a sociedade vem perdendo essa capacidade fundamental que nos distingue de todas as outras espécies. O homem moderno — fruto de um encontro entre o limiar do medo e da desesperança — caminha em direção à negação das faculdades mais óbvias da espécie.

Passemos ao exemplo:
Nas correntes do pensamento moderno, há uma busca crescente pela negação do que vemos e sentimos — uma espécie de desconexão do real. Nessa dinâmica, o homem moderno vê e pensa, mas não reproduz com base nos dados que a realidade lhe oferece. Em vez disso, age segundo um manual de regras e condutas imposto pelo consenso que o cerca. Essa inversão é bem ilustrada pelas palavras de Groucho Marx: “Vão acreditar em mim ou no que seus próprios olhos estão vendo?”

Uma espécie de manual de regras, donde a negação do óbvio alcançou limites em que o próprio limite já não existe mais.
Recentemente, parlamentares brasileiros foram à boca do trombone pelo fato de que, em seus passaportes, a classificação de sexo obedeceu à sua predisposição biológica.

Algo que, para eles, é inadmissível. Ora, quem já se viu? Ninguém mais pode se dar ao luxo de pensar que um homem é, de fato, um homem — ou que uma mulher seja, de fato, uma mulher.

Para eles, é preciso aceitar que a distorção entre o que se vê e o que se pensa deve ser acolhida sem qualquer constatação — mesmo que, aos nossos olhos, tal exigência pareça absurda.

O que acontece, ainda que pareça absurdo, é uma tentativa deliberada de instaurar uma distopia — de colocar nosso julgamento na berlinda da aceitação, simplesmente porque o termo assim o exige. Se tenho uma vontade, esta deve ser aceita por todos, mesmo que alguns dentre esse todo também possuam suas próprias vontades.

Mas, afinal, como saber qual vontade deve prevalecer sobre as outras?

Para isso, façamos valer o método proposto pelo estimado professor: a teoria dos quatro discursos. Como já mencionei, os níveis de discurso obedecem a uma hierarquia que vai do mais simbólico ao mais verdadeiro — do poético ao lógico-analítico. No meio do caminho, temos o discurso retórico, que lida com o possível, e o dialético, que trabalha com o verossímil.

Essa estrutura, enraizada na própria intuição humana, faz com que o exemplo distópico citado acima assuma a seguinte forma: velado por intenções escusas, ele carrega em sua formulação um grau de possibilidade — um homem que, sendo homem, pode ser visto como mulher.

Porém, tal possibilidade não pode ser caracterizada como verídica. E por quê? Simples: entre o possível e o real existe aquilo que a lógica delineou com clareza — o fato. E, como nos recorda o Estagirita, o olho, a visão, ainda é o nosso mais confiável sentido.

Dentro dessa aceitação direta — da qual não podemos fugir — é o fato a bússola que nos orienta, dando-nos a capacidade de formular e julgar corretamente as nuances que percebemos pelos sentidos em harmonia com aquilo que formulamos com a mente: um juízo correto.

Tal juízo tem como ponto de partida o insight, o intuir — aquilo que, em comum acordo, se inicia com a presença do objeto, captado pelo respectivo sentido, processado e acomodado no mundus mentis do indivíduo e, em última instância, corroborado pelo fato.

Mário Ferreira dos Santos, outro filósofo brasileiro, classificava o fato como “aquilo que aconteceu e não pode desacontecer” — algo que, após vir à luz, não pode mais retornar à escuridão. No caso citado acima, não há constatação subjetiva que possa contrapor o fato de que, após nascer com características biológicas específicas, determinado sujeito possa alegar posteriormente uma mudança essencial, mesmo que, para ele, isso represente o mais alto grau de desejo — sua vontade imperada.

Portanto, não há vontade que modele o fato — no máximo, ela pode servir para guiá-lo, assim como um homem conduz determinado objeto, um automóvel, por exemplo. Fora isso, o fato tem proeminência. Ou, como bem colocou Santo Tomás de Aquino: contra factum non valet argumentum — contra fatos, não há argumentos.

Nenhum comentário: