Quando pensamos nesses termos e em sua relação com o nosso eu, emerge de imediato o objeto do espírito: o mundus mentis. É nesse mundo interior que o ente é apreendido como ente — isto é, enquanto algo que é. A continuidade e a descontinuidade não são aqui meras categorias físicas, mas expressões da tensão entre ato e potência no próprio exercício da inteligência humana.
Trata-se de uma relação operada por algo que garante, ora essa continuidade, ora essa descontinuidade — gosto de dizer que isso é uma espécie de “cola” — e que permite à ordem alcançar sua perfeição possível. Essa “cola” é, em linguagem tomista, a ação do intelecto agente: aquilo que abstrai a forma inteligível da realidade e a imprime no intelecto possível.
A relação do mundus mentis com o entorno se dá por certas operações do espírito. A primeira delas é a percepção sensível, que, embora ligada ao corpo, serve de base para o conhecimento. Ela é imediata e receptiva: percebo, e então entendo. A segunda é a memória-imaginação, que conserva as imagens sensíveis (phantasmata) e, por meio delas, fornece matéria ao intelecto. É a partir dessas imagens que o espírito, pelo trabalho da abstração, extrai as formas inteligíveis.
Por fim, há o juízo, que é propriamente o ato pelo qual o intelecto afirma ou nega algo do ente. Aqui se dá a aplicação da forma inteligida à realidade, fundando a verdade como conformidade entre o intelecto e a coisa (adaequatio rei et intellectus).
Todavia, o que quero destacar em todo esse processo é a presença de um elemento oculto, que garante a continuidade da operação cognitiva e que sustenta a inteligibilidade do ser. Uma espécie de “objeto invisível” que não é sensível nem discursivo, mas que pode ser apreendido. Para isso, só uma palavra se mostra adequada: intuir.
O termo intuir vem do latim intueri, que significa “olhar para dentro”, “contemplar interiormente”. Na via tomista, isso se aproxima da apreensão imediata do primeiro princípio do ser — o ens — e daquilo que é percebido pelo intelecto em sua simplicidade originária. Intuir é captar de maneira direta o principium, sem o processo discursivo da razão; é um movimento fundado na presença atual do objeto inteligido.
Intuir é um verbo — e, como todo verbo, é ação; e toda ação é um movimento, ou seja, uma passagem do ser em potência ao ser em ato. Assim, intuir está sujeito ao contínuo e ao descontínuo, conforme as disposições do sujeito cognoscente e a clareza do objeto.
Esse movimento é regido por uma regra implícita no próprio dinamismo do ser: aquilo que está em potência tende naturalmente ao ato. E essa tendência, embora não criada por nós, pode ser administrada — conduzida — segundo a liberdade racional.
É aqui que entra o verbo manusear, do latim manus (mão) + usus (uso), ou seja, “usar com as mãos”. Na perspectiva tomista, significa dispor das potências da alma racional para ordenar os meios ao fim. Assim, como um cocheiro conduz os cavalos, o espírito humano, iluminado pelo intelecto agente, pode ordenar o múltiplo sensível à unidade inteligível — ainda que essa força mesma não seja obra sua, mas participação do próprio Ser que é Ato Puro.
Portanto, quando pensamos na continuidade da razão em direção a um fim último, estamos coadunando esse “algo misterioso” — esse princípio oculto que garante a unidade das operações — às próprias faculdades do intelecto. Tal princípio não é uma criação nossa, mas uma participação na luz do actus essendi, que ilumina o entendimento e orienta a alma ao seu fim.
Perder esse elo significaria uma catástrofe interior, pois é ele quem sustenta a coerência do espírito. E tal perda não é apenas possível, mas frequentemente verificada, sobretudo quando se nega a própria natureza — entendida aqui como ordenação ao ser —, cujo fundamento é precisamente esse ato vital. O espírito, nesse horizonte, é o alimento e o guia da alma humana, sua fonte de sentido e de direção. Negá-lo é desintegrar o eixo que sustenta a unidade entre potência e ato, verdade e bem, intelecto e realidade.
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