quarta-feira, 30 de abril de 2025

Nota: 30 de abril de 2025 - Notas sobre o Anticristo.

O relato ficcional do tema, desenvolvido por autores como Robert Hugh Benson e Vladimir Soloviev, encontra respaldo considerável no vasto cabedal de informações disponíveis sobre o assunto. Quando estudado com afinco, o tema revela nuances profundas que, se ignoradas, impedem qualquer compreensão séria e fundamentada.

Importante destacar que esse tema não é exclusivo de uma única tradição religiosa. Relatos sobre uma figura antagônica à fé estão presentes nas principais religiões do mundo. No cristianismo, ele é representado como a Besta, o Anticristo — aquele que, no fim dos tempos, surgirá para enganar, um usurpador que iludirá o mundo inteiro, mas que será derrotado por Cristo em sua segunda vinda.

No Islã, essa figura é conhecida como Al-Masih ad-Dajjal, o falso messias, descrito como cego de um olho e destinado a se declarar Deus antes do juízo final — sendo vencido por Isa (Jesus).

No hinduísmo, sua contraparte aparece como Kali, o rei demoníaco, cuja presença marca o Kaliyuga, a era da degeneração espiritual. Ele será destruído por Kalki, o avatar final de Vishnu.

No zoroastrismo, a figura equivalente é Ahriman, o espírito do mal que trava uma batalha cósmica contra a ordem divina. No gnosticismo, surgem os Arcontes, entidades que aprisionam a alma e deturpam a verdade. Nas mitologias nórdicas, vemos essa mesma ideia manifestar-se na figura de Loki, o trapaceiro que provoca o caos e antecipa o Ragnarök.

Em todas essas tradições, trata-se de um sujeito dotado de autoridade — ainda que falsa — que usurpa, corrompe, degenera e se opõe a tudo que é bom; em suma, finge ser Deus e tem como intuito a destruição da ordem.

Dito isso, pensemos um pouco sobre o tema e comparemos com nossa condição real. É fato que existe uma ordem — uma estrutura que se finca na exposição daquilo que é sagrado: sua imagem, sua tradição. Essa ordem sustenta e movimenta nossa verdadeira condição — a de sermos seres humanos, dotados de consciência. Por meio dela, nossos instintos são elevados a uma dimensão sagrada, e a consciência, em comunhão com essa ordem, é o que nos torna santos.

Sem essa ordem e sua regência — por nós aceita — seríamos como animais, cuja única finalidade na vida se resumiria a prazeres e alimentos.

Além disso, essa ordem também nos torna únicos — indivíduos que, possuindo personalidade, manifestam por meio dela suas potencialidades. Logo, o fim dessa ordem representa o fim da unidade humana, reduzindo o homem a uma parte inerme de um todo desconhecido.

O homem foi feito para a Verdade — ele é assim, e assim será. Sem uma Verdade concreta, ele sucumbirá a qualquer outra que lhe pareça atraente. Em suma, o ser humano precisa estar imerso em algo maior do que si mesmo.

No que tange à ordem, como já dito, ela é representada pelas coisas que sempre foram — a tradição. São elas, as coisas estabelecidas, que estando como sempre estiveram, permitem ver, abstrair, comparar e decidir.

Um exemplo é a racionalização do tempo: a tradição nos ensina que aquilo que passou é fato consumado — e contra fatos, não há argumentos. Outro exemplo é o que a tradição nos diz acerca da fé: ela é confiança em algo ou alguém que, não podendo ser separado da fonte, tem sua força na certeza que depositamos nessa origem.

Assim, a tradição nos guia, nos orienta — e, em tempos de dissolução, é ela quem preserva o que ainda resta de humano em nós.

Em contrapartida, qualquer tentativa de domínio sobre o gênero humano, por parte de uma entidade antagônica, deverá necessariamente passar pelo crivo da destruição dessa ordem. Será preciso dissolvê-la para, então, propor uma nova — fundada em bases opostas àquelas que sustentaram a humanidade até aqui.

Nesse cenário de domínio, o antagonista terá, como descreve um dos autores — o de O Senhor do Mundo —, de conduzir os povos dos quatro cantos da Terra à completa descrença na ordem tradicional. Benson apresenta um personagem nascido nos Estados Unidos, que é alçado à condição de presidente das Américas, Europa, Ásia e Oceania, justamente por sua capacidade de libertar o homem das "amarras" do sagrado.

Para isso, ele faz uso da política como instrumento de manipulação, chegando ao ponto de proibir o culto a qualquer religião, perseguir os crentes e destruir os símbolos do sagrado. Por fim, conduz o mundo a uma guerra santa contra a única autoridade espiritual ainda viva — exilada, mas resistente — localizada nos confins do Oriente Médio, pois Roma já teria sido destruída.

Soloviev não difere muito. Em sua obra, também descreve uma guerra final, liderada pela representação de Cristo na Terra: a Igreja. Nos trechos finais, o Santo Padre — figura da fé e da tradição — trava uma luta magnânima contra o Anticristo, simbolizando o embate último entre a Verdade eterna e a mentira globalizada.

Nos dois autores citados, assim como na exposição das diversas crenças, vemos que é por meio da política e da descrença na tradição que o jugo do Anticristo se iniciará. Ele será um homem de fé sem nenhuma fé, de amor sem nenhuma caridade, e de compromisso sem nenhum bem. Representará, em sua plenitude, a última forma de nossa dúvida — uma dúvida total, sem nenhuma certeza, sem nenhuma luz.

Durante muitos anos da minha vida, estive afastado da Santa Igreja. Joguei com ideias que, à época, acreditei serem minhas — mas que, em essência, não eram. Submeti-me ao ceticismo próprio destes tempos e flertei com ideias agnósticas e heresias das quais brotavam as mais variadas bizarrices.

Hoje, percebo que essa confusão interior só foi possível porque a ordem havia sido momentaneamente silenciada dentro de mim. Foi ao reencontrá-la — pela graça, não pelo mérito — que comecei, enfim, a compreender o sentido de tudo isso: o mundo sem Deus não é o mundo, mas sua caricatura. E o Anticristo, no fundo, não é outra coisa senão a sombra amplificada de nosso abandono da verdade.

Abandono esse que, por um tempo, me fez acreditar que seria da própria Santa Igreja que brotaria o Antagônico — o reformulador da Tradição, o príncipe da ante-ordem. Mas hoje, não vejo mais assim. Quando esse ser vier, ele nascerá da oposição àquilo que se deve amar — e àquilo que o homem moderno, enganado e mentiroso, passou a odiar. Ele virá sustentado por vozes que proclamam amor ao que, em última instância, deveria ser rejeitado.

terça-feira, 29 de abril de 2025

O Mundo pelos meus Olhos.

Aceitemos: por mais que queiramos, não é possível apagar o fato. Em outras palavras, não há verdade que suprima o que aconteceu, pois o que acontece é fato — e fato é verdade manifesta.

Contudo, existem, nos dias de hoje, pessoas que acreditam poder apagá-lo. Para isso, valem-se de algo: a mentira como força probante; uma espécie de coesão comumente chamada de "narrativa". Unem-se e, agrupados pela parte de cima da pirâmide social, escravizam todo aquele que pensa diferente ou argumenta de forma contrária. Esse é logo tomado como “mentiroso”. O eixo foi invertido.

Mas por que fazem isso? Por que agem assim? Podemos imaginar — se nossa faculdade não nos trair. No homem existe uma guerra intensa, um combate, uma luta que anseia moldá-lo. Faz parte de sua constituição. Porém, muitos não aceitam. E essa recusa, essa tentativa de controlar, faz com que, diante da força que é a vida e suas mazelas, ele acabe por fazer a escolha mais simples: a fuga. Mas — e se não puder fugir? Ele reinventa. Não da forma mais sensata, corrigindo os erros de ontem e apostando nos acertos do amanhã. Não. Sua ideia é transfigurar a verdade, dando a ela um novo tom — e pasmem: a tentativa se volta para o passado. Entretanto, não se pode mudar o que aconteceu.

São inúmeras as narrativas que ele reinventa nessa tentativa. Faz o erro parecer acerto, o medo virar coragem, a mentira se tornar meia verdade e o defeito virar virtude. Chega-se ao ponto de teorizar novas manifestações do real, tão somente para não dar o braço a torcer e admitir que errou. Não se engane: a busca por algum reconhecimento é o alicerce de muitos castelos.

Só que nada disso funciona. O homem foi feito para a verdade, e é nela que se encontra qualquer possibilidade de vitória — mesmo que, aos olhos dos mais desavisados, ela pareça mera derrota. No testemunho dos santos, a verdade é tratada como algo sólido, concreto — um plano cuja inserção não depende tão somente da vontade, mas, antes, de uma luta. Esse estado é uma conquista.

Na esteira do saber humano, tudo isso ganha roupagem direta quando o homem, munido dessa tentativa, precisa da verdade para atestar algo que lhe importe grandemente. Daí ele, munido de um singelo lampejo de lucidez, busca entrar em sintonia com aquilo que desprezou. São inúmeros os exemplos: homens que, no desespero de suas ações, reconhecem que a única saída é abraçar a verdade e aceitar.

A meu ver, quando se chega a isso, conquistou-se algo: o reconhecimento de si mesmo. Não se vendeu o que de mais precioso se tinha — a alma. Ele viu, pensou, meditou e, na contemplação de suas próprias mazelas — aquilo que chamamos de sofrimento —, ele venceu.

Vencer é isso: olhar para o ontem, enxergar o hoje e apostar no amanhã. Pois só a esperança lançada sobre o erro consumado dá respaldo a um perdão sincero.

"Onde Jaz o Medo"

Amigos, o que dizer sobre o medo — essa força única que encerra em si os próprios movimentos, extraindo do homem sua força vital? Podemos considerá-lo um elemento em si, ou seria, em nós, a ausência de algo?

O medo é um movimento que se dá pela ausência de um mover-se. Na física, chamamos isso de inércia — repouso — lembrando que a inércia é, em si, um movimento, na medida em que o ato carrega em si as potencialidades já infusas.

Mas o que é, afinal, o medo? Etimologicamente, ele se revela sob diversas máscaras e raízes antigas:

— No grego, encontramos phóbos (φόβος), que expressa o terror que paralisa, o susto que subverte a razão.
— No latim, temos metus, o medo que perturba e vigia, e também timor, o temor reverente — mais próximo do respeito ao sagrado.
— No sânscrito, bhaya (भय), vindo da raiz bhī, designa um medo existencial, vinculado à ignorância e ao apego, presente nos Vedas e textos budistas.
— No aramaico, ressoa dechlā (ܕܚܠܐ), medo misturado ao assombro, temor diante do divino, como quem roça os limites do inominável.
— No árabe, khawf (خوف) traduz tanto o medo do castigo quanto o temor reverente que prepara a alma para o taqwá — consciência vigilante diante do sagrado.

Mas o que vemos, ao abordar a raiz do termo, é uma espécie de ausência — algo que nos impede de seguir numa direção, de impetrarmos um movimento, de caminhar em direção a algo. O medo, sob o viés da psicanálise, age como uma força primordial: não algo que nos invade de fora, mas que existe em nós como parte constituinte, como um princípio. Contudo, longe de ser um princípio construtor, ele é, antes de tudo, um arché destrutivo — pois joga com a alma humana, ofertando-lhe ilusões em formas grotescas, distorcidas, muitas vezes mais paralisantes do que o próprio real.

O homem teme — e, sem coragem, é escravizado. O medo se apresenta, então, como um conselheiro — um mau conselheiro — sussurrando que o que se pode, não se deve; que o que se deseja, não se alcança; que o que se sonha, não se merece. E o homem trava. Sua reação diante disso é a estagnação.

Se os de ontem tivessem dado ouvidos à voz inebriante da sereia — ao seu belo e traiçoeiro canto — teriam acreditado que não conseguiriam atravessar o mar revolto. E, nesse caso, teríamos pago um alto preço: o preço da rendição antes mesmo da tentativa, o preço do não vivido.

Assim, o medo não é apenas um vazio. Ele é uma presença paradoxal: ausência de ação, mas não de potência; sombra que revela, silêncio que clama. Talvez não o que falta, mas o que espera — latente — para se mover.

Portanto, frente a essa força paralisante, a única alternativa é o surgimento de uma força contrária — não qualquer força, mas aquela extraída da mais sublime das histórias: a que brota da Cruz vazia. Deus se fez homem para revelar que, diante do medo, a única resposta verdadeira é a aniquilação da própria vida; a entrega plena por algo maior, algo que possa declarar, com autoridade: “Aqui jaz o medo — ele nunca vencerá.”

“Pontífices do Invisível: Quando o Amor Dá Forma à Coisa”

O mundo que nos cerca se manifesta por meio de uma operação que envolve duas entidades bastante distintas, que podemos entender como sujeito e objeto; o sujeito é o receptor e o objeto, o emissor. É claro que, por mais que nos tomemos como únicos, não podemos ter a ousadia de afirmar que somos, em todos os casos, o sujeito da operação, pois alguém, nesse contexto, poderia nos dizer: "para mim, você é um objeto".

Por outro lado, essa relação esconde aspectos que, tomados com seriedade, explicam muito do que envolve nossa deficiência quanto aos questionamentos acerca da vida. A vida, para se dar, precisa passar pelo crivo dessa relação — uma reação natural da parte do Ser, que, para ser, precisa se manifestar na resultante dessa operação sujeito-objeto.

Todavia, nessa relação existe muito mais do que apenas sujeito e objeto. É consenso — perceptível em todas as línguas do mundo, do sânscrito às línguas latinas e árabes, estendendo-se aos dialetos africanos — que o amor possui um ponto em comum entre todas elas. Esse ponto não decorre de um consenso construído, até porque essas línguas, separadas pelo espaço-tempo, não tiveram a possibilidade de dialogar entre si. Ainda assim, o elo que as une é a participação, a união, a interação.

Essa atração — essa força que une — torna o amor uma espécie de elo de ligação, de argamassa, de sustentação na correlação sujeito-objeto. E é aqui que encontramos eco na literatura: Machado de Assis, em seu conto O Espelho, propõe a existência de duas almas em cada pessoa — uma que vem de fora, do olhar social, e outra que brota de dentro, do ser profundo. É na primeira que se revela a dependência da imagem, da validação, da alteridade. Assim como no conto, onde o espelho só devolve um reflexo após a imposição de um símbolo de status, também nós, enquanto sujeitos, só nos vemos inteiros quando percebidos e reconhecidos pelo outro — o que nos torna, ao mesmo tempo, objeto do olhar alheio.

Na ilustração feita através do conto, vemos que o amor — esse ponto de ligação — é dado não apenas pelo mundo ao se apresentar diante de nós, mas também pela medida de importância que atribuímos àquilo que amamos, o quanto acreditamos nessa “coisa” como parte integrante de nós mesmos. O vínculo não nasce apenas do externo que nos toca, mas da adesão íntima, da aceitação interior, da fusão entre o que está fora e o que, ao se reconhecer naquilo, passa a habitar dentro.

Portanto, antes de ser apenas um termo qualquer, ou algo utilizado para justificar ações de equilíbrio entre os indivíduos, o amor é uma força — algo sólido e indestrutível — que, em sua constituição, permite moldar aquilo com o qual interagimos, com o qual construímos. Nele, somos a ponte — o pontífice, o mediador — entre o material e o espiritual, entre o corpo e o espírito, entre a ideia e sua realização e, mais do que tudo, entre o ontem e o amanhã: um ontem de erros e um amanhã de esperanças.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Refutação da Acusação de Usurpação Divina pelo Papa à Luz da Tradição

Há nas redes sociais um vídeo em que um sujeito, que se intitula "pastor", afirma que o Papa usurpa a pessoa da Santíssima Trindade, sendo, segundo ele, uma espécie de "homem perigoso à fé". Os argumentos apresentados são de uma baixeza retórica que beira o absurdo. Não é meu intuito entrar em temas nos quais não sou versado, porém, o vídeo é recorrente e a retórica de baixo nível merece ao menos uma resposta fundamentada.

Vamos analisar.

Alguns acusam o Papa de usurpar o papel de Deus Pai, de Cristo e do Espírito Santo ao adotar títulos como "Papa", "Sumo Pontífice" e "Pedra". Contudo, essa interpretação é errônea quando examinada à luz da Sagrada Tradição da Igreja.

1. Sobre o título "Papa" (Pai)
A palavra "Papa" deriva do grego pappas, expressão de afeto e respeito, significando pai espiritual. Desde os primeiros séculos, os bispos foram reconhecidos como pais do rebanho de Cristo. São Paulo atesta essa realidade:

> "Ainda que tivésseis dez mil mestres em Cristo, não tendes muitos pais; pois eu vos gerei em Cristo Jesus por meio do Evangelho." (1 Cor 4,15).

São Cipriano de Cartago, no século III, reafirma essa visão:

> "O bispo está na Igreja, e a Igreja no bispo; e se alguém não está com o bispo, não está na Igreja." (Carta 66,8).

Santo Inácio de Antioquia também exorta os fiéis:

> "Reverenciai o bispo como a Deus." (Carta aos Esmirnenses, 8,1).

Portanto, chamar o Papa de "pai" é reconhecer sua missão espiritual de guiar, cuidar e gerar os fiéis em Cristo, não uma usurpação da paternidade divina.

2. Sobre o título "Sumo Pontífice" (mediador)
O Papa é chamado "Sumo Pontífice" como sinal da unidade da Igreja, não como um novo mediador entre Deus e os homens. A Escritura afirma que há um só Mediador, Jesus Cristo (1Tm 2,5), e a Tradição esclarece que o ministério sacerdotal participa desta mediação de maneira derivada e subordinada. Santo Agostinho ensina:

> "Cristo é o único Mediador entre Deus e os homens, e no entanto, os sacerdotes também são mediadores sob o único Mediador." (Sobre a Trindade, livro 4, capítulo 15).

São Leão Magno explica a missão singular de Pedro e seus sucessores:

> "Pedro foi colocado à frente de todos os apóstolos, e em Pedro reside a constante forma da Igreja." (Sermão 3,3).

Assim, o Papa é "Sumo Pontífice" enquanto instrumento visível da unidade e da comunhão dos fiéis, jamais concorrendo com a mediação única e perfeita de Cristo.

3. Sobre o título "Pedra" (Pedro e seus sucessores)
Cristo é a Pedra Angular da Igreja, conforme atestam 1 Pedro 2,6 e Efésios 2,20. No entanto, o próprio Cristo conferiu a Pedro uma participação especial nesta missão:

> "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja." (Mt 16,18).

Santo Agostinho comenta:

> "Tu és Pedro, e sobre esta pedra que confessaste, sobre esta pedra que reconheceste, edificarei a minha Igreja." (Retratações, I, 21).

E São Jerônimo declara:

> "Sobre Pedro, o mesmo Senhor edifica a sua Igreja, e a ele confia a chave do Reino." (Comentário sobre Mateus 16,18).

Portanto, o Papa, como sucessor de Pedro, é chamado "pedra" enquanto exerce, em nome de Cristo, a missão de confirmar os irmãos na fé e sustentar a unidade da Igreja. Essa função é de participação e serviço, não de competição ou substituição da obra do Espírito Santo.

Conclusão.

À luz da Tradição apostólica, vê-se que as acusações contra o Papa são infundadas e baseadas numa compreensão superficial e desonesta da fé católica. O Papa, chamado "Pai" no sentido espiritual, "Sumo Pontífice" como sinal de unidade sob Cristo, e "Pedra" por derivação da missão conferida a Pedro, é, em toda sua função, ministro da unidade e da fidelidade ao único Deus em três Pessoas.
E por fim, como a luta é pelas almas, o Espírito dos Tempos — numa de suas formas, o diabo — usa de qualquer artifício para ludibriar o homem, inclusive a burrice. A Sagrada Escritura já advertia:

> "Surgirão falsos mestres entre vós, os quais introduzirão heresias perniciosas, chegando até a negar o Senhor que os resgatou, atraindo sobre si mesmos rápida destruição." (2 Pedro 2,1).

Espírito - Esse Vazio tão Distante do Nada.

Existe uma ideia que anseia perpetuar-se: a de que o Homem é fruto do meio, uma mistura de teoria — mundo mentis — e prática — mundo concreto —, uma práxis. Essa ideia vem ao encontro de uma necessidade que o homem sempre teve: justificar a deficiência do real frente à sua capacidade de reformular esse real. O homem só pode aquilo que ele pode, e nada mais. Essa deficiência — a de dominar apenas certos aspectos da realidade — frustra o homem. Os gregos, no ápice de seu desenvolvimento, não conseguiram alcançar esse domínio, e o mesmo se deu com outras civilizações. A nossa, moldada justamente no reconhecimento de que tal domínio não é possível, realizou uma manobra nos últimos séculos e agora acredita que essa deficiência, que não passa de uma delimitação natural da condição real do homem, é não apenas superável, mas também a prova enfática de que a práxis é a resposta à pergunta: o que é o homem?

O materialismo dialético — essa ideia de que a resposta à pergunta feita se encontra no choque de constatações concretas — assume papel importante nessa tentativa de dar ao homem a coroa de suprassumo do real: o homem seria uma construção do meio; sua constituição, a evolução biológica; enquanto sua psique, que não existiria de fato, seria apenas a modelagem de situações que, ao longo da história, o moldaram em prol do ápice da conquista. Contudo, basta uma pequena observação para ver que tal ideia não se sustenta. Imaginemos, por um minuto, que isso seja verdade. Primeiro: por que somente uma espécie, entre milhares, evoluiu para uma forma que convergisse toda a perfeição da natureza? Segundo: por que somente uma espécie fundiu as possibilidades materiais com uma faculdade tão singular — que não é material — e que lhe permite, além de abstrair, julgar e afirmar?
Basta isso; basta perguntarmos: por que somente eu penso e reflito, se de fato eu sou apenas eu mesmo?

Descartes, Hegel, Kant — alguns dos fundadores modernos dessa ideia, depois aperfeiçoada pela Escola de Frankfurt e colocada em prática pelas mazelas do marxismo político —, remoeram suas entranhas na tentativa vã de afastar do imaterial a resposta à pergunta. Não tendo escapatória, remodelaram a ideia, conferindo-lhe um cerne que passa despercebido por aqueles que tentam enterrar o sagrado. Nesse cerne, deixaram, nas entrelinhas, a afirmativa de que isso não poderia se dar por acaso.

René Descartes, ao afirmar cogito, ergo sum (“Penso, logo existo”), reconheceu que a certeza da existência não provém da matéria, mas do ato de pensar, do espírito que pensa. Na Meditação Segunda, escreveu:

> “Mas imediatamente notei que, enquanto eu queria pensar que tudo era falso, era necessário que eu, que pensava assim, fosse alguma coisa. [...] Portanto, esta proposição: eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou concebo em meu espírito.”



Immanuel Kant, ao postular a lei moral dentro do homem, atestou a presença de uma dimensão que transcende o sensível. Na Crítica da Razão Prática, assinalou:

> “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e respeito sempre novos e crescentes, quanto mais vezes e mais perseverantemente a reflexão se ocupa delas: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.”



Georg Wilhelm Friedrich Hegel, por sua vez, deixou claro que a história, a realidade e a verdade são, em última instância, o desdobramento do Espírito em busca de si mesmo. Na Fenomenologia do Espírito, declarou:

> “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é apenas a essência que se realiza através do seu desenvolvimento. [...] O Espírito é essa realidade viva.”



Assim, mesmo entre aqueles que buscaram fundamentar o homem em bases materiais, a verdade se impõe: é na força do Espírito que se encerra a resposta.

Por fim, vemos que, no encerrar de qualquer dúvida a respeito da origem e constituição do homem, encontra-se essa bifurcação: matéria e espírito. Pensar na primeira sem levar em conta o segundo é assunto vencido. Vemos também que a tentativa de driblar o segundo reduz o homem a uma ideia sem sentido, pois só pode haver sentido se ele se valer daquilo que lhe confere algum sentido: a vida — na sua forma única e concreta — que é a manifestação do Espírito.

domingo, 27 de abril de 2025

Continuação...

Em outro momento, falei acerca do Espírito dos Tempos, um intelecto que, agindo sobre o homem, faz com que ele se curve diante da força de ideias que, travestidas de beleza, não são mais do que a pura e velha lama dos desvios do rio da vida. E como lama, ela reside no fundo ou, quando o rio seca, ela se torna o estágio final do fim da vida desse rio. A lama, sempre vinda do fundo, precipita o fim.

Saindo da abstração da coisa e indo para casos diretos, temos essa onda agnóstica corrompendo a alma de milhares de pessoas, no Brasil e no mundo afora. O agnosticismo é a ideia de que o conhecimento humano sobre a existência de Deus ou das realidades metafísicas é, em última instância, impossível. A palavra 'agnosticismo' vem do grego agnostos, que significa 'desconhecido' ou 'inconhecível', e foi popularizada por Thomas Huxley no século XIX. Na visão tomista, o agnosticismo nega a capacidade da razão humana de alcançar o conhecimento pleno de Deus, reconhecendo que existem limites no entendimento humano, mas sem rejeitar de maneira absoluta a possibilidade de um saber superior.

Sempre presente no seio da Igreja por milênios, essa corrente corrompe-se ao se fazer valer de indivíduos cuja única fonte de alimento é o espírito dos tempos. O espírito dos tempos, esse intelecto coletivo que molda as ideias dominantes de uma época, age de forma insidiosa, travestido de beleza e racionalidade, conduzindo os homens a um conformismo em relação a ideologias que, ao contrário de oferecerem liberdade, aprisionam as mentes. Esse espírito tem se manifestado de formas cada vez mais visíveis, na aceitação cega de relativismos e no enfraquecimento das certezas existenciais e espirituais.

E hoje, como se reconhece esse espírito dos tempos? Ele se apresenta nas mais variadas formas, muitas vezes disfarçado de progresso, ciência e até mesmo moralidade, mas suas consequências sempre revelam o seu caráter corrosivo. Para identificá-lo, é preciso observar os sinais que ele deixa: a erosão das certezas que sustentam a tradição e a fé, o enfraquecimento da busca pela verdade absoluta e o crescente apelo ao ceticismo e à dúvida como valores centrais.

Sua forma mais corriqueira é a ânsia desenfreada por glória, que no fim não passa de pura vanglória, um reconhecimento rápido por atos fulgazes, sem substância real, nem tampouco possuidor de alguma presença que valha a pena ser notada. Mas, como tudo tem seus 15 minutos de fama, crianças, jovens e adultos se lançam a serem guias de orientação divina — pastores, pseudo-profetas, professores, charlatães — brotam como ervas daninhas na tentativa de não deixar nada nascer. Esse é o espírito do Tempo. Como agem? Veja só. Um espírito é uma entidade única, sem forma, sem peso, unicamente imaterial, não há nele nenhum traço de matéria perceptível. E é com isso que ele se faz perigoso, quando maligno.

Ele infesta sua consciência, uma guerra será travada se você tiver uma. Caso não tenha, o domínio é rápido. Já captado, você passa a servir a esse espírito através de ideias às quais sucumbiu — passa a gostar de algo, mudar por esse algo, enfim... está somente servindo a um novo mestre: o espírito do tempo. O que também não falei é que o remédio se dá através de outro espírito, o Santo. Este também tem seus frutos, assim como o primeiro, porém a diferença é que são santos. E para quem já perdeu a ideia de santificação, escute: ela é o santo dos santos na cruz, sem glória, sem amigos, sem futuro, sem reinado, sem vida. Demais, o resto da história todo mundo já conhece.

Nota: Constatação de uma Noite de Domingo.


Existe uma força que rege a natureza humana, e ela provém do bem — pode-se até dizer que é a única força que realmente move essa natureza. O bem é sempre concebido por quem o deseja como algo bom; por mais nocivo que um ato possa parecer aos olhos da conduta moral, esse ímpeto do indivíduo carrega em si a crença de que aquilo é, de fato, bom. E o bom, nesse prospecto, é transmutado pelo interior do indivíduo como um bem.

"Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o Senhor pesa os corações." (Provérbios 21:2)

Esse versículo nos diz muito. A natureza desse aspecto já era estudada; já se sabia que tudo o que fazemos realizamos por esse movimento, o da vontade na direção da satisfação. Dentro da ciência psicanalítica, essa compreensão ganha ainda mais corpo: a psicanálise identifica no desejo inconsciente o motor oculto das ações humanas, revelando que toda busca — ainda que mascarada por justificativas morais ou sociais — é, em última instância, uma tentativa de realização de prazer.

Em suma, se nos voltarmos em qualquer direção, veremos nosso ego nos orientando; e se nossos olhos se dirigirem aos céus, ouviremos ele nos dizer que de nada vale tudo isso.

Foi a respeito dessa limitação que Jesus falou a Nicodemos, quando lhe disse: "O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te maravilhes de eu te dizer: necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito." (João 3:6-8)

sábado, 26 de abril de 2025

O Religare e a Batalha Contra o Espírito do Tempo.

Por milênios, o Homem tenta uma conexão com o divino, uma tentativa única, oriunda de uma espécie que tem em sua constituição a necessidade de vislumbrar — e também buscar — nessa pergunta alguma resposta que conforte seus dias e lhe dê mais do que um alívio momentâneo; não serve aquilo que seja passageiro.
E disso ele tem consciência. Nessa esfera — a do religioso, termo cuja raiz etimológica provém do latim religare ("religar"), indicando o esforço de unir novamente o humano ao divino — o Homem tenta seguir uma linha contínua, algo que lhe permita manter e, mantendo, reproduzir a ideia central que fundamenta toda a busca: a felicidade, na forma de um bem orientado pela verdade e envolto na sublime beleza daquilo que o transcende.
Em todo esse esforço, ele acredita haver uma recompensa, e para tal condensa tudo nesse religare, nessa tentativa de encontrar aquilo que está para além de seu mundo — um outro, separado mais pela cortina da ilusão do que por pensamentos desordenados.
Para isso, nos primórdios, ele institui a premissa primeira — o amor à verdade — que pode ser traduzido nas linhas dos primeiros mandamentos judaico-cristãos: amar a Deus sobre todas as coisas. Com essa premissa, inicia sua jornada, lembrando que a verdade é a manifestação daquilo que é, e como é.
Depois dessa jornada iniciada, a própria verdade, não podendo deixar de lado essa tentativa tão nobre por parte daquele que a busca, resolve intervir, cumprir uma promessa que, em outros tempos, fora feita e que, em determinado momento, parecia ter sido esquecida. Então, Ela reencarna.

Assim, como o próprio Gênesis 3:15 declara: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente; este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar."
A promessa estava desde o princípio, anunciada à humanidade, e, mais tarde, Isaías 7:14 veio reforçar: "Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel."
E, no esplendor da profecia, Isaías 9:6 revelou a grandiosidade desse ato divino: "Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz."

Promessa essa que, após sua manifestação direta na forma humana, fundou a estrada por onde hoje caminhamos: a civilização ocidental. Vinte séculos depois, essa estrada está pavimentada.
Só que essa pavimentação precisa de reparos. Assim como em diversas ideias existe seu antagônico, seu oposto existencial, nesse religare não é diferente. Nele, essa pavimentação pode ser entendida como algo ortodoxo — termo que provém do grego orthós ("reto, correto") e dóxa ("opinião, doutrina"), ou seja, a "doutrina correta". E, por outro lado, quando o reparo é feito de forma incorreta, surge aquilo que chamamos de heresia — palavra oriunda do grego haíresis ("escolha", "opção"), indicando uma escolha que se afasta da verdade reta.
Dito isso, vejamos como andam os reparos dessa pavimentação.

Como já advertia o apóstolo Pedro em sua segunda carta:

> "Assim como no meio do povo surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão dissimuladamente heresias destruidoras, chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição."
(2 Pedro 2:1)

Esses falsos reparos, disfarçados de zelo mas corroídos de erro, não apenas deturpam a estrada, mas afastam muitos da própria direção do Caminho.
E, como bem advertia o apóstolo Paulo:

> "Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos."
(2 Timóteo 4:3)

Assim, aquilo que deveria ser um simples reparo na via da ortodoxia torna-se, muitas vezes, uma completa subversão da rota, lançando muitos em estradas de trevas, ainda que pavimentadas com as aparências de luz.

Hoje, as palavras ditas em outros tempos nunca tiveram tanta relevância quanto agora. O homem, nessa tentativa desesperada de religar algo a algo mais sublime, lança-se em esperanças vãs — das mais bizarras às mais perigosas.
Com isso, acaba por se tornar presa fácil, um animal doente que, ao caminhar com dificuldade, fica à mercê, inerme, de um predador cujas garras e dentes se apresentam afiados, apenas à espera do momento certo para o bote fatal.

O Espírito do Tempo.

Ele, mais do que um predador, é um vento invisível que, soprando sobre as consciências, molda e entorpece. O Espírito do Tempo — sutil, sorrateiro e disfarçado de progresso — se infiltra nos pensamentos e costumes, deformando a estrada antiga até que ela se torne irreconhecível.

Para traduzir seus males em palavras mais densas, evoquemos um poema de G.K. Chesterton, que trata dos males que o Espírito do Tempo carrega:
---
Poema — Os Males do Espírito do Tempo (inspirado em The Ballad of the White Horse)

> "Outros ventos se levantarão,
ventos contrários ao eterno,
soprando torres que já foram fortes,
e enterrando heróis em silêncio.

A Fé, uma vez cantada nas praças,
será sussurrada com temor,
e as luzes das velhas cidades
apagar-se-ão, uma a uma.

Mas mesmo quando as trombetas falharem,
e as espadas jazirem quebradas,
um eco sobreviverá no coração dos que sonham,
pois o que foi verdadeiro jamais morrerá."
---
E como nos alertam as palavras de Chesterton, é ele, o Espírito dos Tempos, esse predador, que espreita, que espera, e que, como um leão faminto, se lança sobre a manada desavisada, aguardando a hora certa para o bote.
São três os aspectos desse inimigo: o diabo, a carne e o mundo.

O Espírito do Tempo age no tempo, nas suas facetas, e dele extrai sua força. Lutar contra ele só se torna possível se o indivíduo compreender onde pode repousar, no tempo.
O indivíduo deve segurar o tempo, fazer dele sua estrada, deitar nele de forma sensata. Deve movimentar-se nele de maneira ortodoxa, sem buscar reparos heréticos.

Reparos esses que se dão de forma contundente nos discursos daqueles que não têm apreço pela tradição. Seu argumento é simples: "o novo é sempre bom". Mas não é. Valendo-se dessa deficiência da alma, o Espírito do Tempo joga com as paixões, com sentimentos e percepções, iludindo a alma ao lhe oferecer prazeres que não pode dar: "transforme estas pedras em pães"; "lance-se daqui, e nenhum mal lhe ocorrerá"; "ajoelhe-se, e tudo isso te darei."
Templos erguidos com gula, soberba e vanglória — é isso que o Espírito do Tempo tem a oferecer.

Alguns escapam, muitos não.
Uma forma de detectar esse espírito se encontra na percepção direta daquilo que ele oferece como felicidade: "ela não pode ser esperança, tem que ser ação", diz ele.
Nunca há, nesse Espírito do Tempo, uma verdade em sua totalidade; ela sempre vem revestida de recortes, momentos fugazes de uma felicidade embriagante.

Portanto, homens que oferecem nada em troca de tudo: "Veja! A partir de hoje não haverá mais sofrimento na sua vida, somente fartura, abundância, fama e riqueza"; ou que lhe dizem que o sofrer é penar por não se ter: "Quer ser? Tenha, não divida" — são astutos em preparar o bote fatal.
"Homens tolos! Apenas os reis são lembrados pela história."

Complemento.

[Interior de uma igreja silenciosa. Dois homens sentam-se próximos a um vitral iluminado.]

João:
— Às vezes penso que estamos perdendo algo que não volta. Não é só fé... é como se o próprio fio que nos ligava ao alto estivesse se desfazendo.

Mateus:
— Não é impressão, João. O Espírito do Tempo sopra forte. Ele tenta nos convencer de que romper o fio é liberdade... mas é apenas queda.

João:
— Queda que chamam de progresso.
(Pausa.)
— Como resistir, se até dentro da própria fé já vemos rachaduras? Heresias travestidas de bondade...

Mateus:
— Segurando-se na estrada antiga. O novo, quando não nasce da verdade, é apenas uma ilusão brilhante. Precisamos de ortodoxia, não de reparos heréticos.

João:
— E isso exige coragem...
(Olha para o altar.)
— Coragem de permanecer quando o mundo inteiro já se dobrou.

Mateus:
— Sim. Fé, verdade e beleza. Ou seremos apenas mais uma geração perdida no vento.

[Os sinos tocam suavemente. Silêncio reverente.]


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Um copo de vodka e uma história qualquer.

“O que ele chamava de felicidade”

João achava que era feliz. Tinha um emprego, um teto, contas pagas, e a repetição diária que chamava de vida. Foi o que lhe ensinaram, e ele aceitou. Até que a vida — que não respeita certezas frágeis — lhe tirou o chão.

Demissão. Luto. Vazio.

Foi na dor que João acordou. Começou a buscar — nos livros, nas conversas, no silêncio da praça. Descobriu que a felicidade verdadeira era um movimento, uma busca, uma aceitação humilde do mistério.

E durante um tempo, acreditou ter encontrado seu lugar no mundo: vendendo bolos, livros usados, palavras sinceras.

Mas a vida, que nunca para, trouxe novas perdas. Sofrimento velho, rosto novo.

João mergulhou novamente na dor, mas dessa vez não fugiu. Observou. Deixou doer. Deixou passar. Entendeu, numa clareza dura, que não há alternativa: tudo retorna à origem. E a vida é, simplesmente, o que se faz, quando se faz.

Essa verdade poderia ter encerrado a história.

Mas não.

Porque, como ele próprio percebeu, um copo de vodka nunca é só um copo de vodka.

A essência, por si, não basta.
A compreensão, por si, não basta.
Era preciso recomeçar — mas agora com tudo o que era seu: o passado, a dor, as derrotas, as vitórias, a sabedoria.

João então decidiu: não viveria apenas para existir, nem para suportar.

Ele viveria para vencer.

Não no sentido comum, de fama ou riqueza — mas no sentido profundo: vencer a si mesmo, vencer o tempo morto, vencer o esquecimento.

Pegou seus cadernos antigos, suas ideias, seus projetos inacabados. Reuniu tudo o que a vida tinha quebrado, e começou a construir.

Reabriu um pequeno café-livraria — não por dinheiro, mas para criar encontros, histórias, possibilidades. Escreveu um livro. Cantou músicas antigas com desconhecidos. Amou de novo. Errou de novo. Tentou de novo.

E nesse novo modo de ser — o modo dos que sabem que o tempo é curto, que o amor é urgente, que a vida é rara — João alcançou o máximo da felicidade.

Não porque tudo estivesse perfeito.

Mas porque tudo, enfim, era verdadeiro.

À Beira do Rio

(O entardecer banha o céu de laranja e púrpura. As águas do rio deslizam mansas. João senta numa pedra, olhando o movimento da corrente. De repente, escuta — ou sente — uma voz. Sua própria consciência.)

Consciência:
— Então... achou que tinha chegado ao fim?

João:
— Achei. Por um tempo, achei que tinha entendido tudo. Que a dor era a última lição.

Consciência:
— E não era?

João:
— Não. A dor é só uma porta. Depois dela, o corredor continua.

Consciência:
— E o que encontrou nesse corredor?

João:
— Silêncio. Depois, memória. Depois, vontade.
(pausa)
O que eu sou... não cabe só no que eu sofri.

Consciência:
— Você carrega suas dores como medalhas, João. Mas a vida não quer soldados. Quer poetas.

João:
(sorri, amargo)
— E o que eu faço com tudo o que perdi?

Consciência:
— Faz caminho. Cada perda é uma pedra. Constrói com elas uma estrada.

(João pega uma pequena pedra no chão e joga no rio. Ondas leves se espalham.)

João:
— Então não há descanso.

Consciência:
— Não para quem acordou. Descansar é para quem ainda dorme.

João:
(olhando para o horizonte)
— Eu queria voltar a ser como antes, às vezes.

Consciência:
— Não queria. Você quer esquecer que queria ser mais. Mas agora sabe. E saber é um fogo que nunca apaga.

(As últimas luzes do dia tocam a água como dedos de ouro.)

João:
— Então... o que me resta?

Consciência:
— Fazer. Cada gesto é uma semente. Cada palavra, uma construção. A vida é aquilo que você faz — e quando faz.

João:
(baixando a cabeça, com um sorriso triste)
— Entendi.

Consciência:
— Então levanta. Tem um mundo esperando pelo que só você pode fazer.

(João se levanta devagar. O rio segue seu curso. E João, agora parte dele, também segue.)

"O Princípio que Não se Vê: Ensaios sobre o Movimento do Intelecto"

Existem dois termos: contínuo (do latim continuus, que significa “ininterrupto, sem cessar”) e descontínuo (formado pelo prefixo des- — que indica negação ou separação — + continuus). Ambos servem para descrever o movimento de um ente. O primeiro confere ao ente uma ordem — um encadeamento formal e inteligível de seus atos —, enquanto o segundo rompe essa ordem, expondo a potência subjacente ainda não atualizada.

Quando pensamos nesses termos e em sua relação com o nosso eu, emerge de imediato o objeto do espírito: o mundus mentis. É nesse mundo interior que o ente é apreendido como ente — isto é, enquanto algo que é. A continuidade e a descontinuidade não são aqui meras categorias físicas, mas expressões da tensão entre ato e potência no próprio exercício da inteligência humana.

Trata-se de uma relação operada por algo que garante, ora essa continuidade, ora essa descontinuidade — gosto de dizer que isso é uma espécie de “cola” — e que permite à ordem alcançar sua perfeição possível. Essa “cola” é, em linguagem tomista, a ação do intelecto agente: aquilo que abstrai a forma inteligível da realidade e a imprime no intelecto possível.

A relação do mundus mentis com o entorno se dá por certas operações do espírito. A primeira delas é a percepção sensível, que, embora ligada ao corpo, serve de base para o conhecimento. Ela é imediata e receptiva: percebo, e então entendo. A segunda é a memória-imaginação, que conserva as imagens sensíveis (phantasmata) e, por meio delas, fornece matéria ao intelecto. É a partir dessas imagens que o espírito, pelo trabalho da abstração, extrai as formas inteligíveis.

Por fim, há o juízo, que é propriamente o ato pelo qual o intelecto afirma ou nega algo do ente. Aqui se dá a aplicação da forma inteligida à realidade, fundando a verdade como conformidade entre o intelecto e a coisa (adaequatio rei et intellectus).

Todavia, o que quero destacar em todo esse processo é a presença de um elemento oculto, que garante a continuidade da operação cognitiva e que sustenta a inteligibilidade do ser. Uma espécie de “objeto invisível” que não é sensível nem discursivo, mas que pode ser apreendido. Para isso, só uma palavra se mostra adequada: intuir.

O termo intuir vem do latim intueri, que significa “olhar para dentro”, “contemplar interiormente”. Na via tomista, isso se aproxima da apreensão imediata do primeiro princípio do ser — o ens — e daquilo que é percebido pelo intelecto em sua simplicidade originária. Intuir é captar de maneira direta o principium, sem o processo discursivo da razão; é um movimento fundado na presença atual do objeto inteligido.

Intuir é um verbo — e, como todo verbo, é ação; e toda ação é um movimento, ou seja, uma passagem do ser em potência ao ser em ato. Assim, intuir está sujeito ao contínuo e ao descontínuo, conforme as disposições do sujeito cognoscente e a clareza do objeto.
Esse movimento é regido por uma regra implícita no próprio dinamismo do ser: aquilo que está em potência tende naturalmente ao ato. E essa tendência, embora não criada por nós, pode ser administrada — conduzida — segundo a liberdade racional.

É aqui que entra o verbo manusear, do latim manus (mão) + usus (uso), ou seja, “usar com as mãos”. Na perspectiva tomista, significa dispor das potências da alma racional para ordenar os meios ao fim. Assim, como um cocheiro conduz os cavalos, o espírito humano, iluminado pelo intelecto agente, pode ordenar o múltiplo sensível à unidade inteligível — ainda que essa força mesma não seja obra sua, mas participação do próprio Ser que é Ato Puro.

Portanto, quando pensamos na continuidade da razão em direção a um fim último, estamos coadunando esse “algo misterioso” — esse princípio oculto que garante a unidade das operações — às próprias faculdades do intelecto. Tal princípio não é uma criação nossa, mas uma participação na luz do actus essendi, que ilumina o entendimento e orienta a alma ao seu fim.
Perder esse elo significaria uma catástrofe interior, pois é ele quem sustenta a coerência do espírito. E tal perda não é apenas possível, mas frequentemente verificada, sobretudo quando se nega a própria natureza — entendida aqui como ordenação ao ser —, cujo fundamento é precisamente esse ato vital. O espírito, nesse horizonte, é o alimento e o guia da alma humana, sua fonte de sentido e de direção. Negá-lo é desintegrar o eixo que sustenta a unidade entre potência e ato, verdade e bem, intelecto e realidade.

Nota: 25 de Abril de 2025

Existe algo — uma espécie de cola — que liga todos os pensamentos, dando a eles um sentido que faça sentido. Uma espécie de decodificador daquilo que pensamos, que, como num processo de arranjo, une todos os nossos pensamentos, conferindo-lhes estrutura, unidade, de tal forma que possamos guardá-los e, depois, reutilizá-los.

O que seria isso? Uma espécie de "salvador da pátria"? Não importa. O que vale, por agora, é saber que o temos. Depois, pensemos no que ele é e para que veio. Constatemos primeiro.

E digo isso — "constatemos primeiro" — porque temos a velha mania de querer saber antes de conhecer. Queremos conhecer primeiro, saber de onde vem, para onde vai, qual sua constituição... Que coisa insólita! Aceitemos que sabemos; depois nos preocupamos em conhecer.

Em suma, que nos contentemos em ver a árvore crescer — sua beleza já vale pelo que ela é.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Dúvida; esse vírus constante.

Não é segredo algum que vivemos numa das épocas de maior disfunção cognitiva dos últimos vinte e seis séculos — uma era em que a informação nunca esteve tão acessível, com dados na ponta dos dedos; um misto de "tudo podemos ter, mas nada de fato temos". Os especialistas de plantão oferecem respostas que vão das mais singelas às mais complexas: fobia à vida, medo do desconhecido, síndrome da era tecnológica. Esses mesmos, movidos por tal abordagem, afirmam que injúrias da alma, como a ansiedade e a depressão, são resultados diretos desse fenômeno — com nomes já bem estabelecidos no vocabulário clínico, como a nomofobia (ansiedade gerada pela ausência do smartphone) e o FOBO (medo constante de estar perdendo uma escolha melhor, típico da lógica das redes sociais).
É claro que, para qualquer mente um pouco mais atenta, existe uma correlação evidente entre essas moléstias e as deficiências desta era distópica.

Essa correlação, dada nos exemplos acima, é de fato algo que a literatura médica reconhece com relativa clareza. Mas o que raramente se diz — talvez por ignorância, talvez por conveniência — é que tudo isso não nasce, originalmente, do simples contato com esse novo mundo. Como se bastasse apenas se debruçar sobre uma tela para que o "vírus" fosse incubado. Não. A raiz é mais funda, mais antiga e menos visível: nasce do vazio anterior à tela, do silêncio interior que a tecnologia apenas ilumina com luz artificial.

Esse vazio existencial, essa deficiência na abordagem do eu diante do mundo, essa distopia em torno das perguntas “como devo agir?” e “o que devo fazer?”, possuem mais relevância na tomada de decisão — especialmente quando o assunto é a própria pergunta — do que qualquer conselho que um psicólogo ou psicanalista possa oferecer em resposta à indagação: "que doença é essa?"

O homem, como elemento do universo, tem sua representatividade inserida naquilo que chamamos de Ser. O homem é — e, na medida em que é, possui um ser. E ser é a possibilidade, ilimitada ou não, das suas próprias possibilidades. Um ser é a manifestação de algo no mundo, algo que se move em função da funcionalidade. Um ser é a presença de um objeto para a apreensão de um sujeito.

Logo, existe mais seriedade na dúvida do que nas respostas prontas dos consultórios e centros acadêmicos. Para que haja clareza, no entanto, a pergunta precisa ser sólida — deve trazer em si a verdadeira essência, na forma de uma espera, naturalmente, pela resposta adequada.
A pergunta, já sabemos: quem sou eu e o que devo fazer? — como devo agir?
Porém, a resposta se esvai como fumaça entre os dedos. E isso porque, tal como a fumaça, as respostas de hoje são evanescentes e ilusórias — sustentam-se como verdades apenas por alguns instantes.

Portanto, tendo em vista que a pergunta é válida e sincera, a resposta só poderia ter alguma relevância se sua ideia abarcar o fim último do sofrimento: a alma. É nela que todas as nossas paixões e demais afetos são processados; é dela que o homem arranca as forças para se movimentar, interpretar e enfrentar as mazelas daquilo que ele chama de mundo. E é através dela que ele poderá alcançar a ponte que liga o sofrimento ao verdadeiro prazer — que, em seu fim último, é a própria vida.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A Lógica da Obediência invisível.

A Lógica da Obediência Invisível
Como a manipulação das fontes redefine a verdade no espírito humano

O filósofo espanhol Afonso Lopes Quintás escreveu uma obra que, ao meu ver, deveria ser referência de cabeceira para qualquer pessoa sensata: Teoria e Manipulação. Nela, o autor destrincha as etapas pelas quais a manipulação é realizada, bem como os métodos e técnicas que permitem a determinados sujeitos — os manipuladores — cooptar aqueles que são manipulados.

A manipulação, na obra, obedece a uma dinâmica que atua em escalas, tornando a própria autodefesa ineficaz diante do método. A psique humana opera em níveis, em graus de importância que o intelecto atribui às coisas que a cercam. É justamente explorando essa estrutura que o manipulador progride em sua ação: primeiro, reduz o outro a um simples meio; depois, estabelece uma relação assimétrica, conduzindo o vínculo sem que o outro perceba. A comunicação, antes aberta, torna-se uma via de mão única, moldando percepções. Com o tempo, o próprio horizonte de sentido do manipulado se altera, e a lógica do manipulador é incorporada como se fosse natural. Quando se chega a esse ponto, resistir já não parece uma opção — pois a submissão passou a vestir a máscara da convicção.

Ou seja, o manipulado passa a ser a própria manifestação da manipulação. Quando se chega a esse nível, no sujeito, sua vontade — e tudo aquilo que a ela está ligado — sofre um revés, uma espécie de abandono imediato. A crença deixa de ser própria e torna-se a crença do outro: uma forma de “ser no outro outro”, uma alienação consciente, sem possibilidade de retorno.

Dito isso, podemos encontrar no meio social diversos exemplos da teoria da manipulação de Lopes Quintás:

Política: Um exemplo clássico ocorre quando líderes carismáticos reduzem o eleitor a mero instrumento de poder, explorando medos coletivos e construindo inimigos imaginários. A comunicação se torna unilateral, repleta de slogans e frases de efeito, que visam substituir o pensamento crítico por reações emocionais. Com o tempo, o cidadão interioriza esse discurso e passa a reproduzi-lo como se fosse seu, tornando-se defensor de uma narrativa que não construiu.

Jornalismo: A manipulação se manifesta quando veículos de comunicação selecionam, distorcem ou omitem informações com a intenção de moldar a percepção do público. Ao invés de informar, passam a formar — mas não no sentido nobre do termo, e sim conduzindo o leitor a adotar determinada visão de mundo sem perceber o viés presente. O leitor, então, perde o referencial próprio e passa a interpretar a realidade segundo os filtros do veículo.

Religião: Em certos contextos, líderes religiosos se valem da autoridade simbólica para instaurar relações assimétricas com seus fiéis, manipulando afetos, medos e desejos de transcendência. A fé, que deveria ser experiência interior e livre, é substituída por um conjunto de crenças impostas, muitas vezes legitimadas por promessas ou ameaças veladas. O fiel, nesse estágio, já não crê por convicção, mas por submissão — e toma como sua uma crença que, na origem, foi implantada.

Podemos, aqui, estender os exemplos, pois são muitos. No entanto, o meu intuito é demonstrar que, entre as diversas esferas nas quais a manipulação se manifesta, é nas redes sociais que ela assume sua forma mais sutil.

Nelas, as abordagens dos chamados “posts” atuam de modo a tornar o indivíduo o próprio agente por meio do qual a manipulação se concretiza — sem que seja necessária a atuação direta de um manipulador. Um simples vídeo, que para muitos possui um teor cômico, às vezes dramático, outras vezes trágico, carrega em seu cerne uma mensagem que passa despercebida pelo receptor: você precisa saber disso.

Essa mensagem só encontraria barreiras de defesa se aquele que a recebe possuísse um senso de percepção crítica direta — um efeito natural da psique quando esta não se encontra amortecida. Por exemplo, ao assistir a um vídeo com forte apelo emocional, uma mente crítica imediatamente percebe não apenas o conteúdo explícito, mas também a intenção subjacente: a indução de uma resposta, a fabricação de consenso, ou a normalização de determinados valores.

Ademais, atuar contra a própria natureza do conhecer não é tarefa fácil. A consciência foi construída para buscar a verdade, e essa verdade se encontra no meio, fragmentada. Nossa consciência sabe disso, percebe isso, muitas vezes não aceita, mas se torna refém da situação. Dito isso, não se pode fugir daquilo que te cerca por todos os lados sem saber, primeiro, que faça o que fizer...

O homem nasceu para saber, e esse saber só pode vir na forma de informação.

Portanto, é na necessidade desenfreada de buscar informação que se esconde o perigo — e também a única forma de se proteger frente às armas lançadas.

A informação é, ao mesmo tempo, espada e escudo.

Informações são dados que nossa mente busca para se orientar diante do mundo, permitindo-nos uma melhor convergência com o meio que nos cerca. Ela — a informação — nos alcança por um meio que chamamos de testemunho: seja pela escrita, por algo gravado ou pela fala, dita por alguém. A informação é esse apresentar-se — uma espécie de coisa que parte da necessidade do sujeito e retorna como reflexo do objeto.

Logo, é na fonte — na confiabilidade dessa fonte — que se encontra a chave que pode nos permitir manipular, em vez de sermos manipulados. Aqui, ao falar em "manipular", refiro-me à manipulação dos dados: à extração da informação e, consequentemente, à verificação de sua veracidade por parte do nosso espírito.

Em última instância, tudo aquilo que chega até você deve encontrar, em seu interior, a predisposição para a aceitação — e essa, por sua vez, deve repousar sobre a confiabilidade da fonte. Deve ser a fonte, e não a informação em si, o critério que lhe permita afirmar se algo é verdadeiro ou falso.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Da Consciência ao Ser: Múltiplas Leituras da Verdade.


Da Consciência ao Ser: Múltiplas Leituras da Verdade

É notório que há uma tentativa constante de desvirtuar o que chamamos de verdade. No entanto, é necessário desenvolver minimamente o conceito de verdade, para que o texto não careça de sentido.

1. A Verdade como Construção Social

Comecemos pela abordagem sociológica.
Do ponto de vista sociológico, a verdade não é entendida como um reflexo objetivo e imutável da realidade, mas como uma construção social, moldada por contextos históricos, culturais e relações de poder. O que uma sociedade aceita como verdade está intimamente ligado às instituições que detêm autoridade — como a ciência, a religião, a mídia e o Estado —, e reflete os valores e interesses dominantes em determinado momento histórico. Assim, a verdade, sob essa ótica, é contingente, negociada e sujeita a disputas simbólicas.

2. A Verdade como Consistência Formal

Nessa esteira, passemos à abordagem matemática.
Na matemática, a verdade assume um caráter formal e absoluto, sendo definida dentro de sistemas axiomáticos. Uma proposição é considerada verdadeira se pode ser logicamente deduzida a partir de axiomas e regras de inferência previamente estabelecidos. Trata-se, portanto, de uma verdade interna ao sistema, imune às variações culturais ou subjetivas — uma verdade que se sustenta pela coerência lógica e pela consistência formal. Diferente da perspectiva sociológica, aqui a verdade não é negociável: ou uma afirmação é provada dentro do sistema, ou não é considerada verdadeira.

3. A Verdade como Experiência Psíquica

Dito isso, vejamos como a psicologia — tentativa moderna da filosofia de sondar a alma com rigor empírico — compreende a verdade.
Do ponto de vista psicológico, a verdade está frequentemente relacionada à percepção individual e à coerência interna da experiência subjetiva. Verdade, nesse campo, pode significar aquilo que um sujeito acredita sinceramente com base em suas vivências, memórias e estruturas cognitivas. Assim, não se trata de um absoluto, mas de algo profundamente enraizado na consciência e nos mecanismos mentais. A verdade psicológica é aquela que ‘faz sentido’ para o indivíduo, mesmo que, do ponto de vista lógico ou factual, esteja equivocada. Isso abre espaço para distorções cognitivas, autoengano e crenças consolidadas por reforço emocional, o que torna o conceito de verdade aqui fluido, pessoal e, muitas vezes, inconsciente.

4. A Verdade como Essência Oculta

Por fim, antes de continuarmos, vejamos como a metafísica — aqui me abstenho da filosofia propriamente dita — enxerga a verdade.
Na perspectiva metafísica, a verdade é concebida como algo absoluto, anterior e superior às manifestações empíricas e aos jogos humanos de linguagem. Trata-se de uma essência, uma estrutura oculta da realidade que permanece imutável mesmo quando os fenômenos mudam. A verdade, nesse sentido, é aquilo que é, independentemente de ser percebido, compreendido ou aceito. Ela não depende do sujeito nem do contexto; é, por excelência, uma dimensão do ser. Muitas tradições metafísicas sustentam que a verdade é revelada, intuída ou contemplada em estados de consciência ampliada, e não construída por processos discursivos. Assim, a verdade metafísica opera como fundamento último, como aquilo que sustenta e transcende todas as aparências.

5. Verdade: Fragmento de uma Realidade

Ao vermos essas quatro abordagens, deparamo-nos com uma constatação: a de que a verdade não é um conceito que extraímos de um termo, nem algo dissecado hermeneuticamente — nada disso. A Verdade é uma realidade. E é justamente isso que explica a distinção tão marcante entre as abordagens acima.

O que acontece é o seguinte: cada uma dessas explicações provém de uma ciência, e bem sabemos que toda ciência trabalha com recortes — cada uma estuda apenas uma fração da realidade. Logo, sua impressão sobre a verdade refletirá apenas a importância que esse objeto possui dentro de seu campo de atuação. Seria como um sujeito que usa uma faca para cortar, luvas para vestir e uma cadeira para sentar: cada ferramenta tem seu uso, e seu valor é determinado por esse uso. Assim também é a ciência — ela se vale do objeto apenas na medida em que ele serve ao seu propósito.

Em suma, a verdade é algo de que o homem apenas consegue ter impressões — um estado. É o que ele alcança, o quão alto pode ir. Para ele, a verdade se apresenta como uma realidade em escala: da mais nobre elevação espiritual aos abismos infernais da consciência. Não se trata de algo que o homem possua, mas de algo em cuja direção ele se projeta, experimentando fragmentos, reflexos, ecos. A verdade, para o homem, nunca é plena — é sempre vestígio, intensidade, clarão ou treva. É claro, podemos continuar, e abordar mais dezenas de ciências, pois cada uma delas, com suas ferramentas próprias, tenta decifrar esse enigma a partir de ângulos distintos — sempre parciais, sempre provisórios. Como por exemplo: a física, a química, a biologia, a história, o direito, a teologia, a antropologia, a linguística, a semiótica e a cibernética.

Cada qual tem seu recorte da verdade. Ademais, isso não deixa de parecer óbvio — ao menos, uma vez sabido.
Portanto, se a verdade, enquanto recorte, não é válida por si só, o homem se vê lançado numa incógnita:
se o meu máximo se dá pelo rigor científico — pois o ápice do meu saber é a técnica aliada à razão — como posso, então, conhecer a verdade, se ela só me chega em fragmentos?
São, em essência, as mesmas palavras de Pilatos diante de Jesus: Quid est veritas?
E a resposta de Cristo: o silêncio.

O silêncio nas ciências não existe, pois ele é a conformação da matéria à mente — uma espécie de katallagē, uma reconciliação entre o objeto e o sujeito, onde o mistério é dissolvido no método. A ciência não suporta o silêncio porque nele não há operação, não há hipótese, não há sistema. A ausência de discurso não é admissível como forma legítima de saber.

E ainda assim, essa é a única forma de alcançar alguma verdade — não no nosso silêncio, mas no silêncio de Cristo.
Ao calar-se, Cristo responde a Pilatos o que é a verdade: presença. A manifestação do fato por meio de uma pessoa.
Na abordagem anterior, não podemos esquecer que tudo o que dissemos sobre a verdade foi dito, em última instância, não pela “Ciência” — essa entidade abstrata —, mas por pessoas, indivíduos opinando sobre aquilo que acreditam ser alguma verdade.
Logo, o que Cristo estava dizendo é: a verdade só existe na pessoa, enquanto esta, com afinco e sinceridade, segue em direção à Sabedoria — pois Ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Portanto, Ele é a Sabedoria.
A maioria das pessoas encontra dificuldade em conceber que a realidade possa se encerrar em uma pessoa — e, de fato, trata-se de uma dúvida válida, uma questão de complexidade imensa, de um encontro profundo e transformador.
Contudo, quando esse encontro acontece, ele se revela leve como uma pluma e denso como uma estrela — um paradoxo de graça e profundidade que nenhuma estrutura conceitual é capaz de conter.
Em outro lugar — não me lembro bem — tratei acerca da realidade: sua essência na relação entre sujeito e objeto, seu entorno e exterior, e seu mundo mental. Não me cabe aqui retomar esse tema.
Meu intuito é demonstrar que, na ação material dos fatos, a validade do argumento se dá pela própria manifestação do ser perante o mundo — isso, no fim, é o que importa.
Essa relação não existe sem a estrutura do racional em paralelo com a vida (as coisas), ambas ancoradas por um intuir — esse impulso originário que ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai.

Por último, se alguém duvida que, no seu turno, se acomode no leito de alguma ciência e sobre ela trace os dias de sua vida, será trágico. Como Cristo advertiu aos que duvidam:
"Se não virdes sinais e prodígios, não crereis." (João 4:48)

Entre a Tradição e o Abismo.

Entre a Tradição e o Abismo

Muitos, por inocência, má-fé ou ignorância, distorcem termos bíblicos de grande peso espiritual. Um exemplo comum, amplamente difundido nas redes sociais, é a frase:
“Em volta da tua casa, estarão sete anjos. Mal algum te ocorrerá.”

Essa expressão, embora aparentemente piedosa, perde sua força e verdade por ignorar o sentido profundo das Escrituras. Os termos utilizados — “casa”, “anjos”, “mal algum” — foram esvaziados de seu significado original. Não corroboram a verdade da interpretação, pois estão desprovidos da linguagem sagrada que os fundamenta. Reduzem-se a imagens sentimentais, quando na verdade são expressões densas da realidade espiritual.

Na transição da Idade Média para a Modernidade, houve uma mudança radical no eixo do pensamento: da fé para a razão, de Deus para o homem. O Iluminismo e, mais tarde, a dialética materialista deslocaram o centro da interpretação — da alma para o objeto, da revelação para a lógica, da interioridade para o mundo exterior. O homem, então, passou a transpor as coisas da realidade para a linguagem, e da linguagem para a realidade, de maneira puramente mecânica. Com isso, perdeu-se a capacidade de interpretar o próprio mundo interior — justamente aquilo que mais importa.

Essa mudança não é apenas um desdobramento histórico. Trata-se, em essência, de um projeto de afastamento do homem em relação a Deus. Sem uma forma correta de se expressar e de entender o que o cerca, o homem se torna refém. Um dos maiores males que afligem o homem moderno começa justamente aí: na deficiência de representar corretamente aquilo que vê e sente. E se ele não consegue dar nome ao que sente, como poderá adorar aquilo que sequer consegue interpretar?

A única alternativa é o retorno à tradição. É preciso mergulhar no depósito da fé, onde os termos conservam suas verdadeiras nuances, e recuperar sua transcrição autêntica. Caso contrário, muito em breve estará comendo pedras, acreditando serem pães.

Ampliando ainda mais a visão, podemos afirmar que a modernidade não é fruto de uma abordagem verdadeira do real, mas de um recorte — uma operação de corte e isolamento que a ciência, por vezes, agrava. Assim, ao pensar nos elementos que nos rodeiam, já não conseguimos organizá-los na verdade. A corrente materialista e histórica imposta fez com que o homem passasse a enxergar tudo sob o prisma da matéria. Mas isso não é verdade.

O homem, antes de ser um aglomerado de moléculas, é um ente pessoal, uma pessoa. Ele traz dentro de si medo, anseio, virtude, defeitos — elementos invisíveis que não podem ser medidos nem comparados. São valores ocultos, perceptíveis apenas pela interioridade. A vida, portanto, não é algo mensurável. Ela é sagrada, única. A alma, invólucro da perfeição, não pode ser reduzida a processos químicos. Isso é um erro grave — e recorrente.

Tomemos o exemplo da casa, tão recorrente na linguagem bíblica. Para o homem moderno, uma casa se resume a quatro paredes de concreto. Sua disposição no ambiente dá a ele a sensação de refúgio, descanso e proteção. Mas todo aquele que pensa com profundidade sabe: não há lugar mais seguro do que a fortaleza dos nossos pensamentos fundados em Deus.
Como diz o Salmo 18:2:
"O Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador; o meu Deus é a minha rocha, em quem me refugio, o meu escudo e a força da minha salvação, o meu alto refúgio."

Quanto aos anjos, seres celestiais tão presentes nas Escrituras, o pensamento moderno os reduziu a figuras decorativas, antropomórficas — apenas imagens humanas com asas. A mente contemporânea, fragilizada, só consegue conceber o invisível à imagem do visível.
Mas a tradição escolástica, sólida e precisa, ensina que os anjos são “entes espirituais puros” — sem corpo, sem matéria, mas dotados de inteligência e vontade superiores. Não são mitos, nem alegorias poéticas. São ministros do Altíssimo, participantes da ordem eterna.

Os antigos já percebiam essas realidades. Na mitologia grega, egípcia, nórdica e em tantas outras, os deuses representavam aspectos da natureza — forças que regiam a criação. Havia uma hierarquia: Deus, homem, natureza.
A modernidade inverteu essa ordem. Fez do homem o centro, e da natureza, um mero objeto de uso. Os deuses foram rebaixados a símbolos vazios. O transcendental foi domesticado. O invisível, descartado.

E assim, aos poucos, perdemos a linguagem do sagrado.


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E o Senhor disse:
A casa do justo é sua alma, onde Eu habito.
Sobre ela colocarei Minha mão, e Meus anjos estarão ao redor dela.
O mal passará por fora, mas não tocará o que é Meu.
Firme será o que confia em Mim, mesmo quando os ventos soprarem fortes.
Pois quem guarda Minha palavra, mesmo em queda, será levantado.
E sua alma florescerá, como jardim regado pelo Meu Espírito.


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Por fim, falemos acerca do mal.

Existe uma literatura vasta e densa sobre o tema, especialmente no seio da tradição cristã. Santo Tomás de Aquino, em suas Questões Disputadas sobre o Mal, oferece uma das análises mais profundas e sistemáticas a esse respeito. Para ele, o mal não é algo que possua existência própria ou substância, mas sim uma privação — a ausência de um bem que deveria estar presente. Ele distingue, com precisão, três formas principais pelas quais o mal se manifesta:

1. O mal como ausência (privatio boni) — o tipo mais fundamental de mal, que não é uma entidade, mas a falta de perfeição em algo que, por sua natureza, deveria possuir tal perfeição.


2. O mal moral (pecado) — reside na vontade livre que se desvia do fim último, que é Deus. Aqui o mal está no ato voluntário, contrário à razão e à lei eterna.


3. O mal angélico ou demoníaco — refere-se ao desvio das criaturas espirituais, os anjos caídos, que por um ato irrevogável de vontade se afastaram de Deus. Eles são seres reais, pessoais, e se opõem à ordem divina por escolha própria.



Dessa maneira, o mal não é um princípio rival de Deus, como sugerem algumas cosmologias dualistas, mas uma deformação da bondade criada. Ele depende do bem, parasita-se do bem, e só pode existir onde há uma ordem a ser corrompida.

O homem moderno, ao recusar a metafísica e reduzir tudo à matéria, perdeu a capacidade de compreender essa complexidade. Para ele, o mal é apenas um acidente social, psicológico, ou biológico — e não uma realidade espiritual, um drama da liberdade.

Sem essa compreensão, ele se torna ainda mais vulnerável, pois não reconhece o inimigo que o cerca. Pior: não reconhece o inimigo dentro de si.

Por isso, urge retornar à luz da tradição, onde os termos têm peso, os conceitos têm raiz, e o mal é nomeado com exatidão — para que possa ser combatido com as armas certas: a oração, a virtude, o arrependimento e a graça.

Portanto, agir na busca da santificação reside antes no confronto com o real do que na tentativa de descrevê-lo por meio de meros jogos de linguagem.

Ser Pessoa: Entre a Matéria e a Consciência. Um ensaio sobre a unidade entre o mundo interior e exterior na constituição do humano.

Ser Pessoa: Entre a Matéria e a Consciência
Um ensaio sobre a unidade entre o mundo interior e exterior na constituição do humano

Desde o romper da aurora dos tempos, estamos imersos num mundo — suas nuances, seus efeitos, sua disposição sobre nós acabam por nos tornar parte desse todo. Somos fruto desse mundo na medida em que interagimos com ele.
A ideia de estarmos em um mundo é o que nos põe de pé, o que nos dá sustentação — é ela que nos orienta.

Sua relação conosco vai além de um mero ambiente onde podemos andar, correr, sentar e até deitar. Ela é o ponto fundamental de equilíbrio, aquilo que nos sustenta. O homem é o meio, na medida em que o meio é o homem.

Contudo, não é só o lado de fora que conta — há também aquele mundo interno: nossas aspirações, nossos anseios, nossas dúvidas e nossas certezas. Em suma, somos uma cisão entre o que vemos do lado de fora e a forma como essa “parte de fora” se apresenta para nós.

A tentativa de explicar essa união foi o ponto de partida de muitas consciências em busca de justificar o porquê das coisas serem assim. Foram eles, os gregos, os primeiros a criar um método — ou, ao menos, a tentar criá-lo — que oferecesse uma resposta condizente à dúvida.
A esses, a história batizou de pré-socráticos: homens como Tales de Mileto, Anaxágoras, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Pitágoras — pensadores que trouxeram ao seu mundo uma justificativa para essa união entre as coisas de fora e as de dentro.

Coisas essas que, na abordagem concreta dos fatos, são o que nos tornam pessoas.
Pessoa é o conjunto real de sensibilidades que um ser humano pode experimentar — desde sentimentos e sensações até pensamentos, ora vagos, ora travestidos de forma e intenção.
São essas manifestações a representação imediata da condição humana — aquilo que a torna, enfim, uma pessoa.

Uma pessoa possui duas abordagens: uma interna e outra externa.
A abordagem interna é o que denominamos mundus mentis — aquilo que está dentro de você e só você conhece.
Aquela lembrança que insiste em permanecer, aquele algo indefinido, aquele pensamento recorrente — isso é o seu mundus mentis.

A abordagem externa é o mundo das coisas — aquilo que nos cerca, nos toca, nos afeta.
É o domínio do visível, do audível, do palpável. É onde os objetos se impõem e os eventos se sucedem.
Enquanto o mundus mentis guarda o segredo da interioridade, o mundo das coisas nos desafia com sua presença constante, sua alteridade, sua inevitável realidade.

A junção dessas duas dimensões — o mundo interno e o mundo externo — constitui a síntese: uma pessoa.

Ademais, uma pessoa não pode ser reduzida à sua representação corporal, à sua materialidade, pois tal abordagem, além de excessivamente simplista, é uma interpretação subjetivista.
Esse idealismo da pessoa faz com que sua totalidade seja reduzida a um mero aspecto formal — uma abstração que ignora a complexidade do ser.

Portanto, a idealização, se couber no ente, deve abranger não apenas seus aspectos externos, mas também sua interioridade em toda a completude de suas possibilidades.
Isso só pode ocorrer se o termo escolhido, em sua definição, for capaz de abarcar a magnitude de todas essas possibilidades.

A Normalização do Absurdo.

A Normalização do Absurdo

Dentre todas as espécies do reino animal, a humana é a única capaz de abstrair — de retirar do ente seu aspecto imediato e, sobre ele, formular um juízo, afirmando ou negando algo. Um dom que nenhum outro animal possui. Essa vantagem em relação às demais espécies permitiu ao Homem fazer escolhas, delimitar territórios e agir com base em estratégias.

Esse processo, antes de ser algo qualquer, é a principal ferramenta da espécie humana — o instrumento que tornou possível aquilo que muitos chamam de evolução.

Na introdução de sua obra Metafísica, Aristóteles nos lembra que, dentre todos os sentidos, o da visão é o mais importante. É por meio dos olhos que alimentamos nosso mundo interno, fornecendo-lhe as ferramentas para comparar aquilo que está fora com aquilo que se encontra dentro de nós — o que se convencionou chamar de mundus mentis.

Esse fato tão corriqueiro — ver e constatar o que se vê — é acompanhado por outra capacidade singular da espécie: a de formular e reproduzir aquilo que o mundus mentis elaborou. Ou seja, ao ver algo, penso sobre esse algo; e, após pensar, falo a partir do que pensei — gerando, assim, aquilo que chamamos de discurso.

Olavo de Carvalho, filósofo brasileiro, desenvolveu — com base na filosofia aristotélica — a ideia dos graus de discurso, teoria segundo a qual os discursos possuem diferentes níveis de significação. De acordo com ele, todo discurso carrega em si uma validade que depende exclusivamente de sua estrutura: quanto mais nobre for a significação que expressa, maior será o grau de certeza que ele oferece.

Portanto, temos nessa teoria quatro níveis de discurso, que vão do mais simbólico ao mais factual. Ou seja, percorremos uma escala que parte daquilo que não podemos reproduzir senão por meio da imaginação, até aquilo que valida nosso entorno ao comparar o que vemos com o que pensamos.

Ditas essas coisas, elaboradas nesta breve introdução, passamos agora a abordar como, nos dias atuais, a sociedade vem perdendo essa capacidade fundamental que nos distingue de todas as outras espécies. O homem moderno — fruto de um encontro entre o limiar do medo e da desesperança — caminha em direção à negação das faculdades mais óbvias da espécie.

Passemos ao exemplo:
Nas correntes do pensamento moderno, há uma busca crescente pela negação do que vemos e sentimos — uma espécie de desconexão do real. Nessa dinâmica, o homem moderno vê e pensa, mas não reproduz com base nos dados que a realidade lhe oferece. Em vez disso, age segundo um manual de regras e condutas imposto pelo consenso que o cerca. Essa inversão é bem ilustrada pelas palavras de Groucho Marx: “Vão acreditar em mim ou no que seus próprios olhos estão vendo?”

Uma espécie de manual de regras, donde a negação do óbvio alcançou limites em que o próprio limite já não existe mais.
Recentemente, parlamentares brasileiros foram à boca do trombone pelo fato de que, em seus passaportes, a classificação de sexo obedeceu à sua predisposição biológica.

Algo que, para eles, é inadmissível. Ora, quem já se viu? Ninguém mais pode se dar ao luxo de pensar que um homem é, de fato, um homem — ou que uma mulher seja, de fato, uma mulher.

Para eles, é preciso aceitar que a distorção entre o que se vê e o que se pensa deve ser acolhida sem qualquer constatação — mesmo que, aos nossos olhos, tal exigência pareça absurda.

O que acontece, ainda que pareça absurdo, é uma tentativa deliberada de instaurar uma distopia — de colocar nosso julgamento na berlinda da aceitação, simplesmente porque o termo assim o exige. Se tenho uma vontade, esta deve ser aceita por todos, mesmo que alguns dentre esse todo também possuam suas próprias vontades.

Mas, afinal, como saber qual vontade deve prevalecer sobre as outras?

Para isso, façamos valer o método proposto pelo estimado professor: a teoria dos quatro discursos. Como já mencionei, os níveis de discurso obedecem a uma hierarquia que vai do mais simbólico ao mais verdadeiro — do poético ao lógico-analítico. No meio do caminho, temos o discurso retórico, que lida com o possível, e o dialético, que trabalha com o verossímil.

Essa estrutura, enraizada na própria intuição humana, faz com que o exemplo distópico citado acima assuma a seguinte forma: velado por intenções escusas, ele carrega em sua formulação um grau de possibilidade — um homem que, sendo homem, pode ser visto como mulher.

Porém, tal possibilidade não pode ser caracterizada como verídica. E por quê? Simples: entre o possível e o real existe aquilo que a lógica delineou com clareza — o fato. E, como nos recorda o Estagirita, o olho, a visão, ainda é o nosso mais confiável sentido.

Dentro dessa aceitação direta — da qual não podemos fugir — é o fato a bússola que nos orienta, dando-nos a capacidade de formular e julgar corretamente as nuances que percebemos pelos sentidos em harmonia com aquilo que formulamos com a mente: um juízo correto.

Tal juízo tem como ponto de partida o insight, o intuir — aquilo que, em comum acordo, se inicia com a presença do objeto, captado pelo respectivo sentido, processado e acomodado no mundus mentis do indivíduo e, em última instância, corroborado pelo fato.

Mário Ferreira dos Santos, outro filósofo brasileiro, classificava o fato como “aquilo que aconteceu e não pode desacontecer” — algo que, após vir à luz, não pode mais retornar à escuridão. No caso citado acima, não há constatação subjetiva que possa contrapor o fato de que, após nascer com características biológicas específicas, determinado sujeito possa alegar posteriormente uma mudança essencial, mesmo que, para ele, isso represente o mais alto grau de desejo — sua vontade imperada.

Portanto, não há vontade que modele o fato — no máximo, ela pode servir para guiá-lo, assim como um homem conduz determinado objeto, um automóvel, por exemplo. Fora isso, o fato tem proeminência. Ou, como bem colocou Santo Tomás de Aquino: contra factum non valet argumentum — contra fatos, não há argumentos.

A Promessa e o Espírito.

A Promessa e o Espírito

A história humana é repleta de singularidades — pontos de convergência que, em determinados momentos, alteram a curva do rio e se movem ao sabor do vento. Isso que chamamos de vida, em suma, não passa de um efeito: a manifestação do que Hegel chamou de Geist der Zeit, o espírito do tempo, e que eu chamo de providência divina.

Uma das nuances mais belas desse desenrolar é a história da Igreja. Antes de ser oriunda da crucificação e ressurreição de um Homem que se fez Deus, ela é a história de uma promessa — um compromisso firmado, em totalidade, por um amor sem limites de Deus para com suas criaturas.

Seja nos relatos antigos dos sumérios, babilônios, fenícios, egípcios, ou na esperança filosófica grega — de que um dia a verdade, a sabedoria, encarnaria na forma humana —, ali já pulsava o anseio por um encontro definitivo entre o divino e o temporal.

Contudo, foi na linhagem hebraica que tal promessa ganhou solidez. Os hebreus, enquanto linhagem humana, foram os únicos a manter coesão com o fio inicial da História. Preservaram os registros dos primeiros tempos por meio do Talmud — a tradição oral —, da Torá — a tradição escrita —, e da Cabala — a tradição oculta. Sua disciplina cumpria, em termos materiais, aquela promessa feita no limiar da aurora.

Muitos, desavisados, por não compreenderem o desenrolar dos fatos que ultrapassam o instante, não percebem que a totalidade só se revela na completude do movimento em função de sua forma. É como uma semente plantada: sabemos que se tornará árvore e dará frutos. Mas, se não soubéssemos, seria impossível conceber que um grão de mostarda pudesse gerar algo tão grandioso.

Assim é a história da Igreja.

Nos momentos finais que antecederam a crucificação, alguns homens que seguiam o Galileu certamente estavam confusos: tudo se foi, perdemos. Seu Mestre fora capturado, traído com um beijo por um dos seus, humilhado publicamente. O que poderia se esperar a partir dali?

Em termos de desenrolar humano, tudo... e nada.
Sabemos que a vida é uma caixinha de surpresas — muito do que tomamos como certo se revela duvidoso, e o que parecia impossível, por vezes, se cumpre. Assim é a vida.
Todavia, o que se poderia fazer? Onze homens, mais alguns simpatizantes... contra o mundo?

E é aí que aquela singularidade — aquele ponto de convergência — adentra o palco.
Antes de ser o Geist hegeliano, a práxis marxista ou o nada sartreano, ele é a graça dos céus, o maná dos primeiros pais. Como num toque de mágica, a cortina se fecha... e se abre novamente.

Onze homens, com a ajuda de um carrasco convertido, fundaram a maior instituição da história. Vinte séculos se seguiram — com rupturas, reformas, correções.

Porém, nunca um fim.

E hoje, mais um ponto de singularidade: a frase do dia é Sede vacante.
Nos próximos dias, nas próximas semanas, seremos testemunhas de mais um ponto de inflexão, de mais um ponto de convergência. Dentro de algumas semanas — talvez meses — bilhões de católicos ao redor do mundo conhecerão seu novo vigário. Roma terá um novo bispo.

E a história, mais uma vez, sentirá o toque invisível da providência.

Alguns podem duvidar; outros, mais além, podem temer.
Seitas militaristas dirão que é o fim, que um tal negativo do Cristo surgirá. Outras dirão que ele sempre existiu.

Quanto a mim, sei o suficiente.

"Os meus tempos estão nas tuas mãos;
livra-me dos meus inimigos e dos que me perseguem."
— Salmo 31:15