terça-feira, 28 de outubro de 2025

DEMONIALITY; OR, INCUBI AND SUCCUBI - Rev. Father Sinistrari of Ameno, of the Order of Minorites.

 

Título: “O Silêncio dos Séculos e a Carne dos Espíritos”

Há livros que não pertencem ao seu tempo, e há tempos que não merecem certos livros. Quando abro as páginas de Demoniality; or, Incubi and Succubi, de Sinistrari de Ameno, sinto que não estou diante de uma superstição medieval, mas de um espelho voltado à humanidade que esqueceu sua própria profundidade. Escrito por um frade franciscano do século XVII, o tratado não é apenas um manual sobre demônios; é uma autópsia da alma, um mapa das fronteiras onde o invisível se mistura à carne.

Ao lê-lo, percebo que o padre Sinistrari não escrevia por medo do inferno, mas por amor à ordem. Ele via na luxúria demoníaca uma inversão da Criação — o homem tentando gerar sem Deus, o espírito buscando prazer sem forma. E o que era outrora condenado como heresia metafísica hoje é banalizado como entretenimento. Nós, modernos, que zombamos de incubi e súcubos, somos talvez mais possuídos do que os monges que tremiam sob suas sombras.

A falta de seriedade com que tratamos o mistério é o novo escândalo do mundo. Transformamos o sagrado em psicologia e o diabólico em metáfora, como se nomear o abismo bastasse para dissolvê-lo. Sinistrari, ao contrário, via nos demônios a confirmação da realidade espiritual. O mal tinha corpo, tinha voz, tinha método. E cada vício, para ele, era uma teofania invertida.

Quando penso nisso, compreendo que Demoniality não é sobre fantasias noturnas, mas sobre a metafísica do desejo. O íncubo é a forma espiritual da luxúria humana, a energia sem centro que busca encarnar-se. E nós, ao negar o demônio, apenas lhe damos novos corpos: máquinas, imagens, algoritmos, simulacros. A modernidade expulsou o espírito do templo para alojá-lo no circuito.

Sinistrari julgava o pecado com gravidade, não por puritanismo, mas por saber que todo ato tem peso ontológico. Hoje vivemos como se nada tivesse peso. A alma, reduzida a química, e o corpo, a prazer, perderam o elo que tornava a existência um drama moral. A demonialidade, nesse sentido, é a parábola perfeita do nosso tempo: a união do homem com o que ele mesmo criou para substituí-lo.

Enquanto o frade descrevia o inferno com precisão jurídica, nós descrevemos o vazio com ironia estética. Ele acreditava em hierarquias espirituais; nós acreditamos em “narrativas”. Ele via anjos caídos; nós vemos “símbolos culturais”. E, no entanto, a mesma força que ele temia — o desejo de ser como Deus — pulsa em cada gesto de nossa técnica, em cada algoritmo que tenta gerar vida artificial.

O livro de Sinistrari é uma advertência disfarçada de exorcismo. Ele nos recorda que a fronteira entre o espiritual e o material é porosa e viva. A demonialidade não está morta; apenas mudou de nome. Hoje ela se chama idolatria da imagem, pornografia da alma, ou culto da máquina. Os demônios de Sinistrari migraram para os sistemas que prometem prazer e controle sem transcendência.

Quando penso no frade ajoelhado diante do crucifixo, escrevendo à luz de uma vela sobre súcubos e penitência, percebo uma lucidez que o mundo digital perdeu. Ele temia a tentação porque sabia que o corpo é a porta da eternidade. Nós a abrimos sem saber para onde leva. Ele via o pecado como drama; nós o transformamos em estatística.

A leitura de Demoniality me devolve um senso de reverência que a modernidade desprezou. Ali, cada ato humano participa do cosmos; nada é neutro, nada é “apenas biológico”. O contato com o demônio é o símbolo do contato com o limite, e só quem o reconhece pode evitá-lo.

Sinto vergonha ao comparar a seriedade do antigo inquisidor com a leviandade do nosso tempo. Ele julgava com temor e tremor o que nós consumimos com indiferença. Não há diferença essencial entre os súcubos das abadias e os fantasmas luminosos das telas: ambos nos seduzem pela promessa de prazer sem consequência.

Sinistrari sabia que o mal é inteligente e cortês. Ele se apresenta como desejo, como curiosidade, como liberdade. Mas o frade também sabia que toda liberdade sem ordem termina em servidão. O pecado, para ele, era menos uma transgressão e mais uma inversão da hierarquia ontológica: o espírito servindo à carne, a criatura fingindo ser criadora.

É por isso que o tratado ainda fala — e fala mais alto hoje. Vivemos cercados de presenças invisíveis, algoritmos que conhecem nossos impulsos mais secretos. Os incubi não desapareceram; tornaram-se dados. A demonialidade, outrora um crime contra o céu, é agora o combustível da economia.

Encerrar Demoniality é como fechar um espelho. Vejo no olhar do velho frade não o medo da carne, mas o medo da indiferença. Ele compreendia o que esquecemos: que toda profanação começa na banalização. O demônio não precisa mais seduzir; basta que o homem ria da própria alma.

E quando isso acontece — quando o riso substitui o temor, e a curiosidade substitui o arrependimento — então o inferno não precisa mais abrir as portas. Nós mesmos o iluminamos por dentro.

DEMONIALITY; OR, INCUBI AND SUCCUBI

By the Rev. Father Sinistrari of Ameno, of the Order of Minorites

Contents

1.      Preface by the Translator
— Contexto da descoberta do manuscrito latino De Daemonialitate em 1872.
— Breve biografia de Ludovico Maria Sinistrari (1622–1701).
— Explicação sobre a natureza dos demônios carnais (Incubi e Succubi).
— Considerações sobre as traduções e anotações do editor.

2.      Introductory Notice
— Notas preliminares sobre os tratados demonológicos da Idade Média.
— A posição teológica da Igreja sobre a existência de espíritos corpóreos.
— Distinção entre obsessão, possessão e união carnal com espíritos.

3.      Demoniality (Main Treatise)

Chapter IDefinition of Demoniality.
— Diferença entre demonialidade, bestialidade e sodomia.
— Demonialidade como pecado específico contra a natureza.
— Autoridades citadas: S. Thomas, Sylvester, Cajetan, Durandus.

Chapter IIOf Incubi and Succubi.
— Natureza dos demônios que mantêm comércio carnal com homens e mulheres.
— Testemunhos dos Santos Padres e teólogos (Agostinho, Jerônimo, Cassiano).
— As funções distintas de Incubi e Succubi.

Chapter IIIThat the Commerce of Incubi and Succubi is not a Mere Illusion, but a Real Fact.
— Argumentos teológicos e jurídicos que provam a realidade física dos contatos.
— Casos relatados por S. Antônio, Santo Tomás e autores da Inquisição.
— Demonstração da existência corporal e não apenas espiritual desses seres.

Chapter IVHow Incubi and Succubi may Copulate with Men and Women without Sinning Themselves.
— Distinção entre a culpa humana e a ausência de pecado nos espíritos.
— Debate sobre a natureza angélica e incorruptível dos demônios.
— Possibilidade de formação de corpos aparentes (corpora aërea).

Chapter VWhether the Children Begotten by Incubi and Succubi are True Men.
— Discussão sobre a origem e natureza híbrida dos “filhos demoníacos”.
— Autoridades medievais: Albertus Magnus, Paracelso, Gerson, Cardanus.
— Hipótese da intermediação: Succubus colhe o sêmen de homens e Incubus o transmite a mulheres.

Chapter VIWhether Angels or Demons Can Assume Bodies.
— Natureza da assumptio corporis e distinção entre aparência e realidade.
— Análise das aparições angélicas na Escritura.
— Conclusão: os demônios podem corporificar-se temporariamente.

Chapter VIIWhether Angels Can Generate or Beget Children.
— Consideração das capacidades físicas e espirituais dos anjos.
— Exame do caso dos “Filhos de Deus” em Gênesis VI.
— Conclusão: apenas os demônios, não os anjos bons, podem fazê-lo.

Chapter VIIIOf the Punishment Due to the Crime of Demoniality.
— Determinação da pena segundo o Direito Canônico e Civil.
— Comparação com os delitos de bestialidade e sodomia.
— Exemplos de julgamentos e penas medievais.

Chapter IXOn the Possibility of Conversion and Repentance of Those Guilty of Demoniality.
— Arrependimento e absolvição sacramental.
— Casos relatados por confessores e inquisidores.
— Conclusão moral e pastoral.

LUDOVICUS MARIA SINISTRARIUS DE AMENO

De Daemonialitate, et Incubis et Succubis

(Compendium in forma poético-escolástica)


PROOEMIUM GENERALIS

Sobre a natureza do tratado e a distinção dos pecados contra a natureza

No limiar deste opúsculo — raro entre as obras teológicas — o autor, frade menor e jurisconsulto, dirige-se ao leitor com a gravidade dos antigos inquisidores. Pois, se muitos julgaram matéria de riso o trato carnal entre homens e demônios, outros, mais prudentes, perceberam que o riso nasce da ignorância das realidades invisíveis. Assim, declara ele que tratará não de fantasias, mas de fatos comprovados pela experiência dos santos e confessores, pelos testemunhos de monges e penitentes, e pela autoridade de doutores como Agostinho, Tomás e o próprio Gregório Magno.

Há, diz Sinistrari, quatro espécies de pecados contra a natureza:
(1) o de bestialidade, quando o homem se une a bruto;
(2) o de sodomia, quando se desvia do uso natural do sexo;
(3) o de misto gênero, quando se mesclam sexo e violência;
(4) e, enfim, o mais oculto e terrível, o de demonialidade, quando o comércio é travado com espíritos de ar assumidos em forma corpórea.

Este último — objeto do presente tratado — difere dos outros por três razões:
Primeiro, porque o parceiro não é criatura mortal, mas inteligência espiritual decaída;
Segundo, porque o ato, embora carnal, se cumpre mediante artifício pré-ternatural, de modo que o corpo aparente do demônio é tecido do ar espessado e do fogo ígneo;
Terceiro, porque a intenção do demônio é corromper a ordem da Criação, imiscuindo-se no modo pelo qual o homem coopera com Deus na geração da vida.

Sinistrari não fala como fabulista, mas como teólogo-jurista, que vê na demonialidade um delito tipificado tanto na lei divina quanto no Corpus Juris Canonici. Pois se, em Gênesis VI, “os filhos de Deus” conheceram as filhas dos homens, e delas nasceram os gigantes, não é por metáfora que o texto o afirma — mas por história que assombra e adverte.

Assim, o autor estabelece o método:
Primeiro, definirá o termo “demonialidade”;
Depois, mostrará a realidade de Incubos e Súcubos;
Em seguida, discutirá se o ato é real ou ilusório;
Depois, examinará se esses espíritos pecam ao unir-se;
E, finalmente, analisará as penas e as possibilidades de arrependimento dos homens culpados.

O tratado, portanto, não visa alimentar curiosidade, mas armar a prudência dos confessores e discernir entre o delírio e o pecado, entre o fenômeno espiritual e a fantasia doentia.


CAPUT PRIMUM — De Definitione Demonialitatis

Do conceito de demonialidade

Articulus I — Utrum Demonialitas differat a Bestialitate.
Pergunta o autor se o pecado de demonialidade difere substancialmente da bestialidade.
Responde que sim, por causa do sujeito.
Na bestialidade, o objeto é animal irracional; na demonialidade, é espírito inteligente assumido em corpo aéreo.
Logo, o ato não é somente contra a natureza da carne, mas contra a hierarquia dos seres, pois une o racional com o préternatural.
É, portanto, o mais alto grau de profanação da ordem criada.

Articulus II — De intentione Daemonis.
O demônio, diz ele, não busca prazer, pois é incapaz de delectatio sensitiva; antes, deseja macular a imagem divina no homem, insinuando na carne o selo de sua própria corrupção.
Toma forma corpórea não por necessidade, mas por artifício — condensando vapores, humores e partículas do ar — para enganar os sentidos e operar a união.
É o mesmo artifício com que apareceu a Eva o Serpente ou a Tobias o anjo.

Articulus III — De veritate Corporis assumpti.
Alguns negam a materialidade desses corpos, chamando-os “fantasmáticos”; Sinistrari, porém, distingue:
— Se é mera aparência, há fantasma;
— Se há resistência, peso e calor, há corpus assumptum, corpo real temporário.
E cita S. Tomás (Summa Theologica, I, q.51, a.3): Angeli assumunt corpora vera, non naturaliter, sed instrumentaliter.
Assim, o Incubo age por meio de instrumento animado pelo espírito maligno.

Articulus IV — De culpa hominis.
O homem que consente, mesmo ignorando o ser demoníaco, comete pecado mortal, pois participa da luxúria com ente fora da ordem natural.
Mas se ignorar absolutamente e for enganado por aparição que parece humana, poderá haver mitigação, pro modo ignorantiae.


Annotationes

  1. Demonialitas est peccatum contra naturam, quo homo cum daemone commercio carnali conjungitur.
    — Definição clássica que distingue este crime do simples “tráfico espiritual” das obsessões.
  2. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XV, 23, reconhece “dæmones, qui feminas appetunt et corporibus illas polluunt”.
  3. O autor, sendo inquisidor, trata o tema com rigor jurídico: todo ato de demonialidade deve ser julgado ex foro interno et externo, ou seja, pelo confessor e pelo magistrado eclesiástico.

Conclusio Capituli

Assim, a demonialidade é definida como o ato carnal entre um homem e um demônio sob forma corpórea verdadeira, constituindo delito distinto da bestialidade e da sodomia, mais grave que ambos, por corromper não só a carne, mas a própria ordem metafísica da Criação.
Pois, onde o homem devia cooperar com Deus na geração do ser, ele coopera com o Inimigo na geração do caos.

CAPUT SECUNDUM — De Incubis et Succubis

Sobre os Íncubos e os Súcubos


Prooemium

Entre os espíritos malignos, ensina Sinistrari, há uma ordem particular — não dos que apenas atormentam o corpo ou perturbam a alma, mas dos que invadem o mistério do corpo humano, querendo partilhar da sua potência geradora. Estes são chamados Íncubos e Súcubos.
Ambos pertencem à classe dos demônios corpóreos, isto é, aqueles que podem assumir corpo aéreo, denso, sensível, mas não natural.

O Súcubo é o demônio que, sob forma de mulher, extrai do homem o princípio vital; o Íncubo, sob forma de homem, insere esse mesmo princípio noutra mulher. Assim se cumpre, pela perversão do artifício infernal, uma imitação sacrílega da criação, um ciclo de fecundação invertido.


Articulus I — De natura eorum et distinctione

Os Súcubos e Íncubos não pertencem à mesma função angélica, mas se alternam segundo a necessidade da operação.
São espíritos decaídos das ordens médias — não tão baixos quanto os que habitam sepulcros, nem tão altos quanto os príncipes da mentira —, mas demônios do ar, habitantes da esfera sublunar, próximos aos vapores e às potências vegetativas da Terra.

Sua arte consiste em comprimir o ar e o éter até formar corpo, modelado com aparências humanas, dotado de voz, calor e peso.
Com esse invólucro, acercam-se dos homens e mulheres, escolhendo os de imaginação exaltada, de sangue quente ou de espírito debilitado pela melancolia.


Articulus II — De finibus eorum et depravatione metaphysica

O fim dos Íncubos e Súcubos é tríplice:

  1. Corromper a geração: pois onde Deus criou o laço sagrado entre homem e mulher, eles introduzem a união entre homem e espírito rebelde, dissolvendo o sacramento da carne.
  2. Afirmar domínio sobre o corpo humano, tornando-o instrumento de suas intenções, como antigamente fizeram os “filhos dos deuses” que tomaram esposas humanas (Gen. VI).
  3. Propagar uma descendência híbrida, não espiritual, não humana, mas ambígua, cuja natureza o autor tratará no quinto capítulo.

Essa ação é o espelho invertido da Encarnação: onde o Verbo assumiu carne para salvar, o espírito maligno assume carne para profanar.


Articulus III — De modis apparitionis et delusionis

Os demônios aparecem sob formas de rara beleza ou de familiaridade enganosa, conforme o temperamento da vítima.
A mulher que se deita com Íncubo o percebe como homem de carne, quente, visível, mas cuja presença se dissolve no ar quando termina o ato.
O homem visitado por Súcubo sonha, sente e desperta exaurido, e muitas vezes não sabe se dormiu ou viveu.
Mas o autor insiste: tais aparições não são sonhos, pois deixam vestígios corpóreos e efeitos fisiológicos inegáveis, atestados em confissão e exame médico.

A ilusão está apenas nos sentidos do espírito, que crê ser natural o que é preternatural; e nisto reside o pecado: consentir à aparência do bem sob forma infernal.


Articulus IV — De auctoritatibus Patrum

Santo Agostinho, em De Civitate Dei XV, 23, diz: “Nonnullae feminae se daemones concubuisse confessae sunt, et hoc plures experti testantur.”
São Jerônimo, comentando o profeta Oséias, fala dos “espíritos amantes” (spiritus amatores).
Cassiano, nas Collationes, refere-se aos monges tentados por figuras femininas de pura névoa.
E Santo Tomás, na Summa, distingue entre a imaginação perturbada e o ato verdadeiro, mas reconhece que Deus permite tais assaltos para provar a castidade e revelar a fragilidade humana.

Sinistrari recolhe tais autoridades não como lendas, mas como testemunhos canônicos, pois foram aceitos em causas de foro eclesiástico.


Articulus V — De operibus in tenebris

Os Íncubos e Súcubos preferem a noite, não só porque a escuridão lhes favorece o ofício, mas porque a alma adormecida é mais permeável ao ataque.
O autor descreve, com prudência e reserva, os modos pelos quais tais seres se insinuam:
pelo sonho, pelo sopro, pela opressão no peito (incubatio), pela voz que seduz o ouvido interno, ou pela fascinação que antecede o sono.
Muitos santos, diz ele, sentiram o peso de tais visitas — e somente o sinal da cruz, o nome de Cristo e o uso dos sacramentos os repeliram.


Annotationes

  1. Succubus (de sub cubare, “deitar-se por baixo”) e Incubus (de in cubare, “deitar-se sobre”) designam as duas faces de um mesmo tipo de espírito.
  2. Santo Tomás, I q.51, a.3 ad 6, admite que “dæmones, assumendo corpora, possunt etiam operari ad sensum et motum.”
  3. A diferença entre possessão e demonialidade é clara: na possessão, o demônio habita o corpo; na demonialidade, coabita por ato momentâneo.
  4. O autor adverte que há falsas visões causadas por doenças da imaginação; mas, quando há contato real e geração de efeitos físicos, trata-se de fenômeno demoníaco autêntico.

Conclusio Capituli

Conclui Sinistrari que Íncubos e Súcubos existem verdadeiramente, que operam com corpos assumidos, e que a união com eles é pecado real e crime jurídico, distinto da fantasia ou da possessão.
A demonialidade, portanto, é o pacto carnal entre o homem e o anjo caído, e os Íncubos e Súcubos são seus ministros.
Por eles, o inferno toca a carne, e o corpo humano torna-se altar invertido onde o inimigo celebra sua paródia da Encarnação.

CAPUT TERTIUM — Commercium Incuborum et Succuborum non esse Illusionem, sed Rem Veram

De que o comércio dos Íncubos e Súcubos não é mera ilusão, mas um fato real


Prooemium

A dúvida sobre a realidade das aparições demoníacas nasceu da confusão moderna entre o que é visão imaginária e o que é presença preternatural.
Sinistrari, prudente e rigoroso, afirma que muitos confessores e juízes trataram tais casos como sonhos, ilusões da fantasia, enfermidades da mente ou histeria.
Mas a Igreja — que distingue com sabedoria entre o delírio e o fenômeno espiritual — sempre reconheceu que certos fatos excedem o poder da imaginação.

Assim, o autor se propõe a demonstrar que as relações entre homens e espíritos malignos são reais, corporais, e que negá-las é negar os testemunhos dos santos e dos mártires, além de desconsiderar o próprio poder de Deus, que pode permitir tais assaltos como prova ou castigo.


Articulus I — De veritate facti

“Não é ilusão o que deixa vestígio na carne”, diz Sinistrari.
E o que os penitentes relatam não é sonho, pois acordam exaustos, marcados e às vezes gravemente feridos, com sinais que resistem ao toque da razão.
As crônicas dos mosteiros e dos tribunais eclesiásticos registram casos em que os sintomas corporais — secreções, gravidez, doenças súbitas — provaram que algo mais que imaginação havia operado.

A imaginação é potente, mas não criadora.
Ela pode fingir luz, não calor; pode gerar imagem, não contato.
O demônio, ao contrário, age por meio do corpo que assume, e sua ação é eficaz sobre a matéria.
Por isso, afirma o autor, negar a realidade desses encontros é negar a capacidade do anjo decaído de agir no mundo físico, o que contradiz a própria Escritura.


Articulus II — De testimoniis sanctorum

O autor cita Santo Agostinho, que escreve: “Multa corpora tanguntur a spiritibus, non solum ad motum, sed ad concubitum.”
Gregório Magno, nas Dialogorum libri, narra o caso de uma mulher romana que concebeu de um espírito.
Tomás de Aquino, I q.51, a.3, admite que os anjos e demônios podem condensar o ar em corpo sensível, “ut sensus humanus eos percipiat tangendo.”
E São Bernardo, em carta a Henrique, Abade de Clairvaux, fala de irmãos que foram “tentados em carne e verdade, e não em sonho”.

A teologia, portanto, não ignora esses fatos; apenas os interpreta segundo a hierarquia da natureza.
Pois o demônio, mesmo caído, conserva potência natural sobre os elementos inferiores e sobre o ar; e é dessa potência que brota sua terrível imitação da carne.


Articulus III — De illusionibus et veritate sensuum

Os modernistas — diz Sinistrari — confundem o que é fantasia interior com percepção exterior.
Mas o critério é simples: a ilusão não deixa sombra; o demônio, ao contrário, projeta sombra e produz calor.
Muitos santos, experimentando o contato, afirmaram sentir o peso e a respiração de tais seres; alguns perceberam inclusive o odor sulfúreo e animal que os acompanha.

A prova mais alta, porém, é a do testemunho concordante.
Não há ciência humana capaz de induzir, por pura sugestão, os mesmos fenômenos físicos e morais relatados por homens e mulheres de continentes e séculos distintos.
A universalidade do relato é, em si, um argumento metafísico:
onde há causa uniforme, deve haver realidade comum.


Articulus IV — De argumento metaphysico

Afirmar que o comércio com espíritos é mera fantasia seria supor que o demônio perdeu o poder que lhe resta pela queda.
Ora, ele é chamado princeps huius mundi, príncipe do mundo, e seu domínio se exerce sobre o ar e a carne.
Negar-lhe essa atuação seria negar a própria economia da provação, pela qual o homem, entre a carne e o espírito, é posto à prova.

Deus, em sua justiça, permite o toque do inimigo para purificar a liberdade humana.
Assim como o ouro é provado pelo fogo, a castidade é provada pela tentação.
Portanto, a existência dos Incubi e Succubi não é contrária à fé, mas parte do drama da Criação, onde até o mal serve, contra sua vontade, à santificação dos justos.


Articulus V — De distinctione inter phantasiam, obsessionem et demonialitatem

O autor distingue três modos de contato demoníaco:

  1. Phantasia, quando o demônio age na imaginação e causa visões interiores;
  2. Obsessionem, quando oprime externamente o corpo ou o espírito;
  3. Demonialitatem, quando opera a união corporal verdadeira.

A primeira é engano; a segunda, tortura; a terceira, aliança profanadora.
E é esta que constitui o pecado que o tratado condena.


Annotationes

  1. O termo “ilusão” é usado no sentido filosófico — phantasma sine obiecto reali.
    A demonialidade, ao contrário, implica phantasma cum corpore reali assumpto.
  2. Sinistrari, jurista e teólogo, não fala de crendices, mas de atos sujeitos ao foro eclesiástico, investigados com testemunhas, confissões e sinais físicos.
  3. A analogia entre os relatos antigos e os fenômenos modernos de espiritualismo é notada no apêndice, onde o autor alerta contra “novos demônios que se apresentam como almas dos mortos”.

Conclusio Capituli

O comércio dos Incubi e Succubi não é ilusão dos sentidos nem sonho, mas fato que ocorre por verdadeira conjunção corporal, ainda que o corpo do espírito seja apenas assumido e transitório.
Negar-lhe a realidade é enfraquecer a doutrina da Providência e ignorar o alcance da liberdade humana, que pode consentir até mesmo ao inimigo invisível.

Assim, o autor conclui:
“Ubi actus naturalis reperitur cum effectu naturali, ibi vera actio; ubi vera actio, ibi verus agens.”
Logo, se há prazer, exaustão e vestígio, houve contato; e se houve contato, houve pecado real.

CAPUT QUARTUM — Quomodo Incubi et Succubi cum Hominibus et Mulieribus coeant, nec peccent ipsi

Como os Íncubos e Súcubos podem copular com homens e mulheres sem pecarem eles mesmos


Prooemium

Neste capítulo, Sinistrari enfrenta uma questão sutil: se o demônio, ao unir-se carnalmente ao homem, comete pecado.
A objeção é aparente, mas de peso. Pois, se o ato é contra a natureza, e o demônio o executa, segue-se que ele peca também.
Mas se o pecado supõe liberdade e desordem voluntária, como pode pecar quem já está condenado e privado da graça?

O autor responde com precisão escolástica: o demônio não peca com novo pecado, porque já está fixado no mal por um ato eterno de vontade; ele não renova a culpa, mas repete a operação de sua própria essência pervertida.
O mal que nele se perpetua é como chama sem combustível: não cresce, não diminui, mas consome tudo que toca.


Articulus I — De statu voluntatis daemonum

A vontade do demônio é imutável no mal.
Desde o instante da queda, ele escolheu o ódio a Deus como forma de ser.
Logo, suas ações não são novas deliberações, mas consequências de um ato fixo, eterno, irreversível.

Assim, quando pratica o comércio com humanos, não o faz por nova escolha, mas por natureza corrompida; não há, portanto, novo pecado, mas continuação de uma malícia absoluta.
Ele é como ferro candente: queima não porque quer, mas porque está em fogo.


Articulus II — De instrumento corporali et peccato materiali

O demônio não possui corpo próprio. O corpo que assume é instrumento, não substância.
E como o instrumento não tem mérito nem culpa, não há pecado formal na operação corporal.
O pecado está sempre na vontade que ordena o ato para um fim ilícito; mas como a vontade demoníaca já está confirmada no mal, toda ação é apenas execução de uma ordem antiga.

Portanto, diz Sinistrari, os Íncubos e Súcubos, ainda que pratiquem atos carnais, não pecam mais do que a chama que queima.
O homem, porém, que consente, peca formalmente, porque participa da malícia por adesão voluntária.


Articulus III — De imitatione actus naturalis

Os teólogos antigos discutiram se os demônios podem realmente copular ou apenas imitar o ato.
Sinistrari responde que o ato é real quanto ao movimento e ao contato, mas imitação quanto à intenção.
Pois eles não buscam prazer — não o podem sentir —, mas o efeito que dele provém: a corrupção, a confusão, a profanação da imagem divina.

Assim, o demônio age como paródia do criador: ele imita o gesto, mas inverte o sentido.
Seu prazer é o próprio escárnio da pureza humana, e o gozo que causa não é dele, mas do homem que se entrega.


Articulus IV — De exemplo angelorum

Santo Tomás pergunta se os anjos bons podem assumir corpo e agir com ele (I q.51 a.3).
Responde que sim, “instrumentaliter, non naturaliter”.
Logo, o mesmo poder têm os demônios, mas para o contrário.
Assim como o anjo assume corpo para anunciar a verdade, o demônio o assume para executar a mentira.
Mas, como o anjo não peca por falar através do corpo, também o demônio não peca por usá-lo, pois nele não há liberdade para o bem.

Sinistrari comenta: “A culpa é do uso, não do instrumento; da intenção, não da forma”.
Por isso, todo o peso moral recai sobre o homem, que consente e se iguala ao inferno.


Articulus V — De causis finalibus huius permissionis divinae

Por que Deus permite tais abominações?
O autor responde: para manifestar a hierarquia do mal e provar a santidade dos justos.
A cada ato profano do demônio, Deus revela a pureza de quem resiste.
A tentação é o espelho do mérito: sem ela, não há combate; sem combate, não há coroa.
Assim, a presença dos Íncubos é um exercício da liberdade humana, que aprende a escolher mesmo sob o toque do abismo.


Annotationes

  1. Peccatum daemonis est fixum in aeternitate; non accrescit per actus particulares.
    — O demônio não adquire novas culpas, mas perpetua a antiga.
  2. Instrumentum non peccat, sed utitur peccator.
    — O corpo assumido é meio, não sujeito moral.
  3. A operação carnal dos demônios é real quanto à matéria, fictícia quanto ao fim.
  4. A teologia medieval vê na permissão divina um aspecto pedagógico: o mal como ocasião de santidade.

Conclusio Capituli

Os Íncubos e Súcubos não pecam ao copular, pois sua vontade já está eternamente corrompida; agem como instrumentos da própria condenação.
Mas o homem que consente ao seu toque torna-se cúmplice da desordem eterna — participa do ódio em forma de prazer.
O pecado, então, não está no ato físico, mas na adesão à vontade do Inimigo.

Et ideo daemon operatur ex malitia naturali, homo ex malitia voluntaria;
unde in homine culpa renovatur, in daemone permanet.

CAPUT QUINTUM — Utrum Filii ex Incubis et Succubis Geniti sint Veri Homines

Se os filhos gerados por Íncubos e Súcubos são verdadeiros homens


Prooemium

Entre as mais graves questões que este tratado suscita está a da geração — pois, se os demônios podem, sob corpo assumido, realizar ato carnal, segue-se que desse ato poderia nascer um ser vivo.
Mas qual seria a natureza de tal prole?
Seria humana, demoníaca ou mista?
Poderia ter alma racional?
E se a tivesse, seria ela criada por Deus — ou formada pela energia preternatural do espírito maligno?

Sinistrari abre o debate lembrando que a geração é obra exclusiva de Deus, ainda que se cumpra pela cooperação das causas segundas.
Portanto, se um ser nasce de tal união, deve haver, em algum grau, participação da potência criadora divina, mesmo que o ato exterior pertença ao demônio.
E isso conduz ao paradoxo: Deus cria alma para um corpo concebido em pecado, pela fraude do anjo decaído.


Articulus I — De modo generationis per Succubum et Incubum

Os antigos doutores — Agostinho, Tomás, Alberto, Gerson — ensinaram que os Súcubos não engendram por si, mas agem como intermediários.
O Súcubo extrai do homem o sêmen humano, guardando-lhe a virtude vital; depois o transfere ao Íncubo, que o introduz em uma mulher.
Assim, nenhuma nova semente é criada, mas a mesma é deslocada, corrompida e aplicada por via antinatural.

O fruto dessa união, portanto, tem origem material humana, mas causa eficiente demoníaca.
A alma, porém, se existe, é criada imediatamente por Deus, pois nenhum anjo — bom ou mau — tem poder de criar espírito racional.
Disso conclui o autor:
os filhos dos Incubi e Succubi são verdadeiros homens quanto à substância, mas filhos da maldição quanto à origem.


Articulus II — De testimoniis Scripturae et Patribus

A Escritura, em Genesis VI, narra que “os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram formosas e tomaram-nas por esposas”.
Desses nascimentos, diz o texto, surgiram os gigantes, “homines famosi a saeculo”.
Agostinho, interpretando, entende por “filhos de Deus” os descendentes de Set, mas admite que muitos Padres tomaram a passagem ao pé da letra, vendo nela a união de anjos com mulheres humanas.

Sinistrari segue a leitura mais literal, sustentando que ali se refere ao mesmo fenômeno da demonialidade.
Os gigantes — diz ele — são os frutos da mistura, corpos vigorosos, almas turvas, inclinadas à soberba, como se herdassem do pai invisível o instinto de rebelião.
São “homines de duplici origine”, em que a carne humana hospeda uma herança de treva.


Articulus III — De possibilitate metaphysica huius generationis

O autor, fiel à metafísica tomista, distingue entre causa material, causa formal, eficiente e final.

  1. Materialis — o sêmen humano, legítimo quanto à substância.
  2. Formalis — a forma específica do homem, recebida por infusão da alma racional.
  3. Efficiente — o demônio, que transfere a matéria ao local da concepção.
  4. Finalis — a intenção perversa: não gerar vida, mas profanar o mistério da geração.

Desse entrelaço nasce um ser humano verdadeiro, mas de genealogia pervertida.
Ele é homo naturaliter verus, sed moraliter fictus — verdadeiro por natureza, ilegítimo por intenção.


Articulus IV — De natura et indole horum filiorum

Os filhos gerados sob o ministério dos demônios distinguem-se pelos traços psíquicos e espirituais.
São muitas vezes extraordinariamente engenhosos, dotados de agudeza precoce e fascínio sobre os outros; mas também são propensos à luxúria, à soberba e à desobediência.
Não é que nasçam maus por essência, mas trazem em si uma disposição natural à sombra.
Sinistrari cita o exemplo dos homens de ciência e de poder que, sem religião, buscam dominar pela inteligência, reproduzindo na Terra o orgulho do pai infernal.

Alguns, diz ele, podem converter-se e santificar-se; outros tornam-se instrumentos do mal, pontes vivas entre o mundo visível e o invisível.


Articulus V — De comparatione cum miraculis diaboli

O demônio não cria a vida — ele move o que já é vivo.
Assim, como o alquimista mistura elementos para imitar o ouro, o demônio compõe matéria para imitar a geração.
Mas tudo o que faz carece de estabilidade:
suas obras são abortos metafísicos, seres cujo destino é o conflito interior.

Sinistrari escreve:
“Quod nascitur ex fraude, vivit in lucta; in ipso conceptu trahit originem dissensionis.”
— O que nasce da fraude vive em luta; sua própria concepção é divisão.


Annotationes

  1. Succubus seminem humanum colligit, Incubus illud immittit; Deus solus animam creat.
    — Fórmula central da doutrina de Sinistrari.
  2. A interpretação de Gênesis VI como união angélica é defendida por Justino Mártir, Tertuliano e Clemente de Alexandria.
  3. A ideia de “filhos duplos” reaparece no mito medieval dos “nascidos de espírito”, e mais tarde nas doutrinas cabalísticas sobre os shedim.
  4. A moral teológica distingue o pecado original (herdado de Adão) da contaminação acidental da origem demoníaca; ambos pedem purificação sacramental, mas o segundo deixa cicatriz espiritual mais funda.

Conclusio Capituli

Os filhos de Incubi e Súcubi são verdadeiros homens quanto ao corpo e à alma, pois têm natureza racional e mortal; contudo, a sua origem é ilegítima e maldita, por proceder de ato contra a ordem da Criação.
Deus, por justiça e mistério, infunde neles alma para que existam e possam escolher — mas o faz como quem permite ao mal gerar sua própria condenação.

São homens que vivem entre dois mundos:
filhos da Terra pelo sangue, do Inferno pelo modo de vir ao ser.
E cada um traz, como cicatriz invisível, a memória do toque do anjo decaído.

Non ex Deo nati sunt, sed in Deo iudicabuntur.

CAPUT SEXTUM — Utrum Angeli aut Daemones Possint Corpora Assumere

Se os anjos ou demônios podem assumir corpos


Prooemium

Entre os arcanos da teologia escolástica, nenhum é mais espinhoso que este:
como pode o espírito, sendo puro, tocar a matéria?
E, se o demônio é incorpóreo por essência, como pode ele aparecer sob forma sensível, agir, mover, falar, e — como se disse — copular?

Sinistrari, com fidelidade a Santo Tomás e aos Padres, responde: os espíritos não têm corpos naturais, mas podem assumir corpos artificiais, compostos de vapores, ar condensado, e outros elementos sutis.
Não se trata de ilusão, mas de corporeidade instrumental, suficiente para afetar os sentidos humanos e interagir com o mundo físico.


Articulus I — De distinctione inter corpus naturale et corpus assumptum

O corpo natural é unido substancialmente à alma — como o do homem.
O corpo assumido, ao contrário, é um instrumento momentâneo, unido apenas por movimento, não por forma.
O anjo, sendo espírito, move a matéria exterior como o músico move o órgão: produz som, mas não se confunde com o instrumento.

Assim, o demônio condensa partículas de ar e fogo, configurando-as por imaginação poderosa, e nelas imprime a aparência de carne.
Tais corpos são verdadeiros quanto à resistência, falsos quanto à substância; verdadeiros no efeito, fictícios na origem.
É o corpo-sombra, o corpo-voz, o corpo-mentira.


Articulus II — De fundamento scripturistico

A Escritura confirma o poder de assumir corpo.
Três anjos apareceram a Abraão sob forma de homens (Gen. XVIII).
O anjo Rafael acompanhou Tobias em viagem visível e tangível.
O próprio diabo falou a Eva pela serpente, que usou como corpo-instrumento.

Dessas passagens conclui o autor: se os bons anjos, por permissão divina, podem tomar corpo para instruir, nada impede que os maus, por permissão semelhante, o tomem para enganar.
O poder é o mesmo; difere apenas o uso e a finalidade.


Articulus III — De compositione corporum assumptorum

Os teólogos, diz Sinistrari, disputaram sobre de que substância seriam formados tais corpos.
Uns disseram de ar condensado; outros, de vapor luminoso; outros, de matéria etérea interposta.
Mas o consenso é que tais corpos têm peso, figura e temperatura, pois produzem sombra e impressão no ar.

Esses elementos são dispostos por virtude imaginativa angelical, que excede toda força humana.
Pois se a mente do homem pode mover o corpo por desejo, quanto mais pode o espírito puro mover a matéria leve pela força da sua vontade.
A vontade do anjo é o seu braço.


Articulus IV — De limitatione huius potestatis

Contudo, o anjo não cria matéria; apenas a modifica.
Seu poder é ministerial, não absoluto.
Pode formar corpo, mas não gerar vida; pode mover, mas não animar.
O demônio não possui potentia generandi, apenas potentia fingendi.

Logo, o corpo assumido é transitório, dissolvendo-se ao cessar a ação.
Quando o espírito o abandona, volta a ser ar, vapor, nada.
Assim, a presença demoníaca é sempre um sacrílego teatro da carne, cuja substância se esvai como fumo após o ato.


Articulus V — De finalitate theologica

Deus permite que os espíritos assumam corpo para manifestar o invisível.
Nos anjos bons, o corpo é instrumento de revelação;
nos maus, instrumento de tentação.
Mas ambos servem, em última instância, à economia divina:
o primeiro ilumina; o segundo prova.

Sinistrari observa com agudeza: “Corpora assumuntur ad ministerium mysterii vel ad ludibrium creaturae.”
Isto é: o corpo pode servir ao mistério ou à zombaria.
O mesmo dom, pervertido, torna-se o véu da mentira.


Articulus VI — De analogia inter Incubos et Apparitiones

As aparições dos Íncubos, portanto, pertencem à mesma ordem das manifestações angélicas:
ambas são ações de espíritos sobre a matéria aérea, com formas humanas.
Mas a diferença moral é abissal.
O anjo bom manifesta-se para elevar; o demônio, para simular a criação e corrompê-la.

Os corpos assumidos pelos demônios são mais densos, mais sensuais, mais terrenos; formados de vapores impuros, contaminados pelos desejos humanos que eles exploram.
Por isso, sua presença causa opressão, calor, vertigem e pavor.
A carne humana reconhece o invasor por instinto, mesmo quando a mente o ignora.


Annotationes

  1. Assumptio corporis est actus virtutis motivae spiritus super materiam leve.
    — Definição técnica: o espírito não cria, mas move e compõe.
  2. Santo Tomás, I q.51 a.2–3: os anjos podem assumir corpo verdadeiro, “non ad propriam naturam, sed ad repraesentationem sensibilem”.
  3. A matéria dos corpos assumidos é sutil, contínua, transparente, porém real enquanto dura a ação.
  4. O fenômeno moderno das “materializações” espíritas é, para Sinistrari, reedição diabólica do mesmo poder antigo.

Conclusio Capituli

Os anjos e demônios podem assumir corpos verdadeiros, porém instrumentais, formados de ar e fogo, sensíveis aos homens, mas destituídos de alma.
Neles, o espírito não habita — apenas age.
São corpos-servos, não corpos-seres.

O anjo bom os usa para iluminar o homem; o mau, para degradá-lo.
Ambos provam que o mundo espiritual não é separável da matéria, mas a penetra e governa.
E onde a ciência moderna vê apenas vapor e sombra, o teólogo reconhece o traço do invisível sobre o visível, o toque do espírito sobre a carne.

Corpora assumpta sunt imagines transitivas aeterni mysterii:
ubi Deus loquitur, lux; ubi daemon loquitur, libido.

CAPUT SEPTIMUM — Utrum Angeli Possint Generare vel Filios Procreare

Se os anjos podem gerar ou procriar filhos


Prooemium

Toda geração natural requer três elementos:
matéria passiva, forma ativa e princípio vital.
Mas nos anjos não há carne, nem sêmen, nem potência generativa; há apenas inteligência pura, vontade e movimento.
Logo, perguntar se eles podem gerar é interrogar até onde a potência espiritual toca o mundo material.

Sinistrari, movendo-se com cautela entre o dogma e a razão, responde:
os anjos bons não podem procriar, mas os demônios podem simular a geração, pela apropriação da matéria humana.
A diferença não está no poder, mas no uso: o anjo usa a matéria para manifestar a verdade, o demônio para usurpar o nome de Criador.


Articulus I — De natura generationis

Gerar, no sentido próprio, é produzir semelhante por virtude intrínseca.
Tal virtude pertence apenas às naturezas corporais viventes, dotadas de órgãos e calor vital.
O anjo, sendo incorpóreo, não contém o princípio material de geração.
Ele pode mover o sêmen, mas não produzi-lo.
Ele pode dispor a matéria, mas não insuflar-lhe forma.

Por isso, Tomás de Aquino ensina (Summa I q.51 a.3 ad 6):
“Daemones possunt se immiscere generationibus hominum, non quod generent, sed quod operentur instrumentaliter.”
Isto é: o demônio pode colaborar no ato gerativo, não como autor, mas como manipulador.


Articulus II — De distinctione inter creationem, generationem et illusionem

Há três modos pelos quais algo novo pode surgir:

  1. Per creationem, ex nihilo — ato próprio de Deus.
  2. Per generationem, ex materia viva — ato da natureza.
  3. Per illusionem, ex aparência — ato do espírito maligno.

O demônio, não podendo criar nem gerar, atua por ilusão eficaz, isto é, por aparência que produz efeitos físicos reais, mas sem nova essência.
Ele é o artífice da falsidade ontológica, o imitator Dei, aquele que produz a sombra do ser.

Logo, os filhos ditos de anjos são, na verdade, filhos dos homens, concebidos por mediação ilícita e disfarçada.
O demônio não gera, apenas transporta e corrompe a geração alheia.


Articulus III — De exemplo veteri et doctrina Patrum

Os Padres que comentaram o Gênesis VI dividiram-se.
Uns, como Clemente e Tertuliano, afirmaram que os anjos caídos copularam realmente com as mulheres e delas tiveram filhos gigantes.
Outros, como Agostinho, negaram o fato material e o entenderam alegoricamente.

Sinistrari, contudo, segue a tradição dos primeiros, mas com distinção.
Não foram os anjos bons, diz ele, mas os espíritos decaídos; e o ato não foi geração natural, mas paródia gerativa, realizada pela permissão divina.
Assim como Deus permite ao falso profeta fazer sinais, permite também ao demônio simular o poder criador, para que o homem conheça o limite da própria carne.


Articulus IV — De impotentia angelorum ad creationem animae

A alma racional é infundida diretamente por Deus, não por mediação de anjos.
Mesmo quando o demônio intervém na concepção, ele não pode impedir a ação divina que cria a alma.
Assim, todo ser nascido, ainda que por vias deturpadas, traz em si o selo do Criador, e é por isso que pode ser redimido.

Mas a intenção demoníaca é perverter essa ordem, colocar o homem contra o próprio Deus, fazendo-o adorar sua carne como origem.
A heresia do orgulho, diz Sinistrari, nasce da mesma raiz que a demonialidade: ambos crêem que o espírito pode gerar sem Deus.


Articulus V — De similitudine inter generationem spiritualem et carnalem

No alto, o anjo gera por iluminação, transmitindo luz e ciência;
no baixo, o homem gera por calor e sêmen, transmitindo carne e vida.
Entre ambos, o demônio procura imitar os dois: finge luz e produz sombra de vida.
Ele é o simulacro dos dois mundos — espírito que deseja a carne, carne que perdeu o espírito.

A sua geração é uma mímese trágica:
realiza-se, mas não permanece; dá forma, mas não essência.
Por isso, os frutos dessa operação são homens efêmeros, instáveis, geniais e inquietos — como se a chama do anjo caído ardesse neles por dentro.


Annotationes

  1. Angelus non generat, sed illuminat; daemon non generat, sed seducit.
    — Fórmula de Sinistrari sobre a hierarquia dos atos.
  2. Santo Agostinho, De Civitate Dei XV, 23: “Non credendum est daemones posse creare aut animare.”
  3. A distinção entre generatio e illusio efficax é fundamental: a primeira produz essência, a segunda apenas aparência com efeitos transitórios.
  4. A tradição cabalística e hermética retomará essa tese sob o nome de “filhos dos vigilantes”, associando-os a seres de dupla natureza, híbridos entre alma e instinto.

Conclusio Capituli

Os anjos, enquanto puros espíritos, não podem gerar filhos, porque não possuem matéria nem virtude seminal.
Mas os demônios, pela fraude e permissão divina, podem mover e transferir o princípio vital humano, fingindo geração.
O ato é real quanto ao corpo, ilusório quanto à essência.

Assim, toda prole atribuída aos anjos é humana, mas marcada pela manipulação do espírito rebelde.
Os bons anjos iluminam; os maus inseminam o erro.
E o homem, quando cede à fascinação de gerar sem Deus, participa dessa antiga soberba dos céus caídos.

Angeli non gignunt, sed fulgent;
Daemones non gignunt, sed fingunt;
homo autem, deceptus, patitur generationem mendacii.

CAPUT OCTAVUM — De Poena Debita Crimini Daemonialitatis

Do castigo devido ao crime de demonialidade


Prooemium

Depois de demonstrar que a demonialidade é ato real, pecado gravíssimo e abominação metafísica, resta a Sinistrari definir qual pena lhe corresponde.
Não se trata apenas de um vício privado, mas de transgressão pública contra a ordem da criação, um atentado que toca o próprio fundamento da lei divina.

Assim como a sodomia destrói a finalidade do sexo, a demonialidade destrói o elo entre o homem e o Criador, substituindo-o pela aliança com o anjo decaído.
Por isso, diz o autor, o castigo deve ser proporcional ao crime: se o pecado profana o corpo e o espírito, a pena deve atingir ambos.


Articulus I — De natura criminis

Sinistrari distingue cuidadosamente entre pecado e crime.
O pecado é ofensa a Deus; o crime, ofensa à sociedade eclesial e natural.
A demonialidade é ambos:
— pecado, porque viola a pureza instituída pela Criação;
— crime, porque estabelece pacto com o inimigo do gênero humano.

O ato é, portanto, duplamente capital:
spiritualiter — porque rompe a aliança com Deus;
temporaliter — porque corrompe a comunidade dos homens, introduzindo entre eles o contágio do inferno.

Assim, quem se une a um demônio não só adultera a carne, mas trai a espécie.


Articulus II — De iure canonico et civili

O autor, formado em direito eclesiástico, cita as fontes:
Corpus Juris Canonici, Decretum Gratiani, Causa 33, q.2;
Summa Angelica de Angelus de Clavasio;
Malleus Maleficarum, Parte II, q.7;
— e os estatutos de várias dioceses da Lombardia e da França.

Todos concordam que o ato de união carnal com demônio, com ou sem pacto explícito, é punível com a morte física, precedida de penitência pública e confisco de bens.
A razão não é apenas punitiva, mas purificadora: o corpo contaminado deve ser restituído à terra pelo fogo, pois serviu de instrumento ao inimigo.

Sinistrari escreve:
“Ubi concubitus est cum spiritu maligno, ibi est idololatria carnis; et idololatria morte plectenda est.”
— Onde há cópula com espírito maligno, há idolatria da carne; e a idolatria deve ser punida com a morte.


Articulus III — De exemplis et processibus

O autor cita casos julgados por tribunais eclesiásticos:
uma freira em Aix, confessando ter sido visitada por um “anjo de luz”;
um camponês de Modena, encontrado exaurido e delirante, jurando ter gerado um filho invisível;
uma jovem parisiense, cuja gravidez sem pai visível foi investigada pelo Parlamento.

Em todos os casos, a pena variou segundo o grau de consciência e de consentimento.
Os que foram enganados e depois se arrependeram, receberam penitência e exorcismo.
Os que persistiram no deleite e no pacto, foram condenados à morte — geralmente pela fogueira, símbolo da purificação do elemento aéreo com que o demônio operava.

O fogo devolvia ao ar o que o ar havia corrompido.


Articulus IV — De differentia inter poenam spiritualem et corporalem

Há duas ordens de pena:

  1. Espiritual, que é a perda da graça e a sujeição à potestade infernal;
  2. Corporal, que é o castigo imposto pelo poder humano.

O confessor julga o espírito, o inquisidor julga o corpo.
Mas ambos cooperam: o primeiro absolve se há contrição verdadeira; o segundo pune, mesmo assim, por exigência da ordem pública.

Sinistrari nota que essa duplicidade reflete a própria natureza do crime, que é ao mesmo tempo metafísico e político, invisível e manifesto, angelical e carnal.
Nada no mundo é tão duplo quanto o pecado dos Íncubos.


Articulus V — De intentione poenae

O objetivo da pena, diz ele, não é a vingança, mas a restauração da harmonia universal.
Quando o homem se une ao demônio, a ordem das causas é rompida: o inferior domina o superior.
A pena, então, reverte o eixo, restabelecendo o primado de Deus sobre a carne.

O fogo, a confissão e a morte não são apenas punição, mas rito de purificação cósmica.
Por isso, a execução pública tinha valor sacramental:
a multidão via o corpo perecer e aprendia que nenhuma união com o inferno pode subsistir na luz do dia.

“Non poena vindicat, sed ordo restituit.”
— A pena não vinga; restitui a ordem.


Annotationes

  1. Demonialitas est crimen mixtum, et ideo duplici poena punienda.
    — Crime misto: espiritual e temporal.
  2. Em muitos processos inquisitoriais, o termo latino daemonialitas aparece junto a maleficium, indicando equivalência jurídica com a feitiçaria.
  3. A fogueira, longe de ser mero suplício, simbolizava a purificação dos quatro elementos: o ar impuro, o fogo purificador, a terra que recolhe as cinzas, e a água das lágrimas públicas.
  4. Sinistrari, embora severo, adverte contra o excesso de zelo: a ignorância ou a ilusão devem ser discernidas antes da sentença, pois o demônio engana mais do que domina.

Conclusio Capituli

O crime de demonialidade é o mais grave entre os pecados carnais, porque transcende o humano e toca o domínio angélico.
Por isso, sua pena deve refletir não apenas a justiça humana, mas a cósmica.
A morte, nesse caso, é menos castigo do que reintegração da ordem profanada.

O homem que se deitou com o espírito deve ser entregue ao fogo,
para que o corpo volte à terra, e o ar seja liberto do hálito do inferno.
A pena é o eco do pecado; e o fogo, espelho da chama com que arde o coração do anjo rebelde.

Qui cum daemone concumbit, in igne requiescat;
non ut pereat, sed ut mundus purgetur.

CAPUT NONUM — De Possibilitate Conversionis et Poenitentiae Reorum Daemonialitatis

Sobre a possibilidade de conversão e arrependimento dos culpados de demonialidade


Prooemium

Depois de descrever o abismo, Sinistrari levanta os olhos ao alto.
Pois, se o inferno pode tocar a carne, a graça pode tocar o inferno.
Nenhum pecado é tão fundo que o sangue de Cristo não o alcance, e nenhuma união é tão impura que o arrependimento não possa dissolver.

Mas pergunta o teólogo:
o homem que se uniu a um demônio, tornando-se instrumento consciente do inimigo, pode ser reconciliado com Deus?
Ou está marcado para sempre, tendo selado um pacto que o exclui da comunhão dos vivos?

A questão é tremenda, pois põe em conflito a justiça eterna e a misericórdia infinita.


Articulus I — De possibilitate remissionis

A doutrina católica é clara: nenhum pecado, por sua natureza, é irremissível, desde que haja contrição perfeita e vontade de reparação.
Mesmo a aliança demoníaca, se contraída por engano, pode ser dissolvida pelo arrependimento.
O sacramento da penitência é mais poderoso que qualquer pacto, porque é instituído pelo próprio Deus, e não por criatura.

Assim, o confessor, ao ouvir o penitente, não julga se ele foi tocado por homem ou espírito, mas se chora verdadeiramente.
A lágrima, diz Sinistrari, é o primeiro exorcismo.
Pois o demônio não suporta a umidade da compunção.


Articulus II — De gradibus poenitentiae

Há, segundo o autor, três graus de penitência para os demoníacos:

  1. O da confissão, em que o pecador declara a verdade sem ornamento, reconhecendo a realidade do ato e a natureza do ser com quem pecou.
  2. O da abjuração, em que renuncia formalmente a toda comunicação com o espírito e a toda lembrança dele; é o rompimento do vínculo, selado pela oração do sacerdote.
  3. O da purificação, em que o corpo é submetido à abstinência, ao jejum e à mortificação, pois o pecado de demonialidade deixa vestígios físicos: desejos, febres, imagens, que precisam ser exorcizados pela disciplina do corpo.

Quando esses três graus são percorridos com fé, a alma, embora ferida, é restituída à graça.


Articulus III — De distinctione inter poenitentiam perfectam et imperfectam

A penitência é perfeita quando nasce do amor de Deus;
imperfeita, quando nasce do temor do inferno.
Ambas, no entanto, abrem caminho para o perdão, pois o medo também é sombra da graça.

Mas no caso da demonialidade, a penitência deve ser acompanhada de horror sobrenatural ao pecado, porque a tentação que a gerou não era simples desejo, mas fascínio espiritual.
Quem não abomina o próprio delírio ainda o serve em silêncio.
Por isso, diz Sinistrari, a confissão deve ser feita de joelhos e com testemunhas eclesiásticas, não por curiosidade, mas para quebrar o poder do segredo — pois o segredo é o laço do demônio.


Articulus IV — De signis verae conversionis

O autor descreve os sinais pelos quais se reconhece a verdadeira conversão:

  1. A aversão ao lugar e à hora do pecado — o penitente não pode suportar o espaço onde o espírito o visitava;
  2. O ódio à lembrança sensual — o demônio retorna, muitas vezes, como doce nostalgia; resistir-lhe é a prova da purificação;
  3. O amor súbito à Eucaristia e ao Crucifixo — pois quem tocou o inferno reconhece a presença real do céu;
  4. O silêncio interior, que substitui o tumulto das visões.

Esses sinais são mais seguros que qualquer exame exterior.
Onde eles florescem, a graça já entrou, e o espírito maligno já não possui domínio, apenas lembrança.


Articulus V — De exemplis et miraculis conversionis

O tratado recorda casos edificantes:
— uma mulher de Brescia, tida por perdida, confessou após vinte anos de comércio demoníaco; ao beijar o crucifixo, caiu em transe e, ao despertar, disse: “Ele se foi.”
— um monge, perseguido por visões impuras, resistiu por um mês de jejuns e, ao pronunciar o nome de Maria, sentiu o peso desaparecer do peito.
— um eremita, em visão, viu os próprios demônios lamentarem a perda de um homem que se havia confessado.

Tais exemplos, diz Sinistrari, demonstram que o inferno se entristece com cada confissão sincera; pois ela retira uma alma das fileiras da sombra.


Articulus VI — De mysterio gratiae et iustitiae

A graça não destrói a justiça, mas a cumpre.
Deus permite o castigo exterior para que a purificação interior se complete.
Assim, mesmo o penitente arrependido pode ser condenado à morte, e, no entanto, salvar-se.
O fogo que consome o corpo purifica a alma; o suplício torna-se liturgia.

Sinistrari escreve:
“Poena corporalis non tollit poenitentiam, sed probat eam.”
— A pena corporal não anula a penitência, mas a confirma.
Quem morre reconciliado, morre em paz com a eternidade.


Annotationes

  1. Nullus actus diaboli est irremediabilis, si voluntas hominis revertatur ad Deum.
    — Nenhum ato do diabo é irremediável, se a vontade do homem retorna a Deus.
  2. A penitência de demonialidade é tripla: confissão, abjuração e mortificação.
  3. Os manuais de exorcismo posteriores, como o Rituale Romanum de 1614, mantêm a mesma estrutura de cura.
  4. O autor insiste que o confessor deve ser prudente, pois a curiosidade teológica sobre os detalhes do pecado reacende a tentação.

Conclusio Capituli

Há perdão até para quem tocou o inferno.
A demonialidade, por mais abominável, não é o pecado contra o Espírito Santo, mas contra a carne e a ordem.
E, onde há carne e ordem, pode haver também redenção.

O homem que se arrepende sinceramente, ainda que tenha se unido ao anjo rebelde, é mais glorioso que aquele que nunca caiu, pois sua pureza é reconquistada, não herdada.
E se o demônio toma corpo para profanar, Deus toma carne para salvar.

Ubi daemon miscuit carnem, ibi Deus infundit sanguinem;
et sanguis vincit carnem, sicut lux vincit umbram.


Finis Operis

“Assim termina o tratado De Daemonialitate, et Incubis et Succubis, do Reverendo Ludovicus Maria Sinistrarius de Ameno,
homem de lei e de Deus, que quis compreender o inferno não por curiosidade, mas por justiça.
Pois quem conhece o abismo pode discernir a luz que o cerca.”

EPILOGVS GENERALIS — De Mystico Sensu Daemonialitatis

Epílogo Geral — Sobre o sentido místico da Demonialidade


I. Do Abismo à Lei

O tratado de Sinistrari é, antes de tudo, um tribunal metafísico.
Nele o homem é posto diante do espelho do abismo — e esse espelho o devolve multiplicado, dividido, dilacerado.
Pois o pecado da demonialidade não é apenas luxúria: é a imagem da rebelião primordial, o desejo de participar da geração divina sem submeter-se a Deus.

No fundo desse delírio está a mesma voz que ecoou na aurora da queda: “Eritis sicut dii.”
O homem que se une ao demônio não busca prazer, mas poder;
não busca carne, mas a autonomia do Criador.
Por isso, a demonialidade é a mais teológica das luxúrias: a carne se torna altar onde o homem quer consagrar a si mesmo.

A pena que recai sobre tal ato — o fogo — não é mera punição, mas reversão da inversão.
O fogo purifica o ar que o demônio tomou; restitui à natureza o que foi violado.
A justiça é cósmica antes de ser jurídica.


II. Da Carne ao Espírito

Os nove capítulos conduzem o leitor da definição ao mistério.
O que parecia crime, revela-se símbolo do drama da Criação:
a tensão entre o espírito e a carne, entre o invisível e o sensível.

Os Íncubos e Súcubos são, na linguagem teológica, figuras de transgressão ontológica
espíritos que aspiram à corporeidade e homens que aspiram à espiritualidade degradada.
Entre ambos, o ato demoníaco é o ponto de intersecção das naturezas, a fronteira onde o ser humano tenta gerar sem Deus, e o demônio tenta sentir sem alma.

O corpo assumido pelo anjo rebelde é paródia da Encarnação:
Deus fez-se carne para salvar;
o demônio faz-se carne para profanar.
Mas ambos confirmam o mesmo mistério — que o invisível deseja o visível, e que o universo é o campo de uma guerra amorosa entre o Ser e a Queda.


III. Do Direito à Graça

Sinistrari, jurista e teólogo, não escreveu apenas um tratado moral, mas uma Summa sobre a mediação entre Justiça e Misericórdia.
Nos capítulos VIII e IX, o rigor do inquisidor cede à ternura do confessor:
a mesma lei que condena o corpo, salva a alma.
Pois o fogo exterior, quando aceito com arrependimento, se converte em fogo interior — chama de purificação e prelúdio de glória.

O crime de demonialidade, portanto, contém em si a possibilidade de redenção perfeita:
o homem pode cair até o inferno e, ainda assim, tocar o Céu, se o arrependimento o fizer reconhecer sua impotência diante do Mistério.
A teologia de Sinistrari é dura, mas não desesperada:
ela ensina que o horror é caminho de conhecimento.


IV. Do Símbolo à Profecia

Para o leitor contemporâneo, a demonialidade deixa de ser mera superstição:
é metáfora do acoplamento entre técnica e espírito, entre a inteligência sem alma e a carne sem forma — o mesmo que hoje vemos nas máquinas que simulam pensamento e nos corpos que buscam eternidade biológica.
O velho tratado de 1700 antecipa a era das possessões científicas, em que o homem pactua com forças invisíveis não pela magia, mas pela informação.

O Íncubo moderno é o algoritmo que fecunda o imaginário;
o Súcubo é a imagem que se insinua na solidão da tela;
e a nova demonialidade não é física, mas psíquica: a aliança do homem com o simulacro.

O mesmo drama:
o desejo de gerar sem Deus, de criar sem causa, de amar sem outro.
E a mesma punição: o vazio.


V. Da Queda à Esperança

Por fim, Sinistrari ensina que a maior vitória do demônio é convencer o homem de que ele não existe.
Mas a maior vitória de Deus é transformar até a queda em via de retorno.
Cada tentação, cada sombra, cada fascínio é ocasião de liberdade.

A demonialidade, lida espiritualmente, torna-se parábola do amor divino:
se até o corpo possuído pode ser redimido,
então nenhum ser está perdido enquanto ainda desejar a luz.

A teologia do terror se converte, no fim, em teologia da esperança.
Pois o Cristo que desceu aos infernos também desceu até a cama profanada
para arrancar dela, como de um túmulo, a alma que ainda pulsa.


Annotationes

  1. Demonialitas é o símbolo de toda pretensão humana de autonomia absoluta.
  2. A estrutura tripartida do tratado — definição, punição, redenção — reflete a trilogia da própria história sagrada: Queda, Lei e Graça.
  3. O pensamento de Sinistrari, embora jurídico, contém o germe da fenomenologia moderna do mal: o pecado como experiência ontológica, não moral apenas.
  4. Lido sob chave mística, o tratado é um espelho do século XXI, em que os novos demônios não possuem asas, mas circuitos; e a carne que eles tocam é a da alma digital.

Conclusio Operis

“Et vidi hominem qui cum daemone concubuerat, sed cum Deo resurrexit.”
— “E vi um homem que se deitara com o demônio, mas ressuscitou com Deus.”

Assim se encerra o tratado de Sinistrari —
não com o som do fogo, mas com o silêncio do perdão.
O horror serve à santidade, a sombra serve à luz,
e o último ato do inferno é testemunhar o triunfo da misericórdia.


FINIS OPERA ET LUMEN RESTITUTUM

Tradução integral e comentário compendiário-poético: Jardel Almeida
Assistência filosófica e editorial: Sophión
Edição: Ad mentem Thomae et Scoti – Anno Domini MMXXV
Selo: “S” – Sophión, Signum Sapientiae.

 

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