ALBERTI MAGNI — SUPER LIBROS METAPHYSICORUM ARISTOTELIS
Liber Primus – De principiis scientiae et sapientiae
(Livro Primeiro — Sobre os princípios da ciência e da sabedoria)
LIBER PRIMUS — DE PRINCIPIIS SCIENTIAE ET SAPIENTIAE
(LIVRO PRIMEIRO — SOBRE OS PRINCÍPIOS DA CIÊNCIA E DA SABEDORIA)
Índice das Questões
- Utrum metaphysica sit scientia una et distincta a caeteris.
Se a metafísica é uma ciência única e distinta das demais. - Utrum metaphysica sit scientia divina.
Se a metafísica é ciência divina. - Utrum subiectum metaphysicae sit ens inquantum ens.
Se o sujeito da metafísica é o ente enquanto ente. - Utrum ens et unum convertantur.
Se o ser e o uno são convertíveis. - Utrum metaphysica consideret causas et principia rerum communia.
Se a metafísica considera as causas e os princípios comuns das coisas. - Utrum sapientia sit cognitio causarum primarum.
Se a sabedoria é o conhecimento das causas primeiras. - Utrum metaphysica sit eadem cum theologica.
Se a metafísica é a mesma coisa que a teologia. - Utrum metaphysica ordinet alias scientias.
Se a metafísica ordena as demais ciências. - Utrum metaphysica demonstret Deum esse.
Se a metafísica demonstra que Deus existe. - Utrum metaphysica consideret Deum ut causam exemplarem.
Se a metafísica considera Deus como causa exemplar. - Utrum metaphysica habeat cognitionem de Deo per analogiam entis.
Se a metafísica conhece Deus por meio da analogia do ser. - Utrum Deus sit primum principium quodammodo ignotum.
Se Deus é, de algum modo, o primeiro princípio desconhecido. - Utrum sapientia sit desiderabilis propter se.
Se a sabedoria é desejável por si mesma. - Utrum studium
metaphysicae pertineat ad perfectionem hominis.
Se o estudo da metafísica pertence à perfeição do homem.
Quaestio I — Utrum metaphysica sit scientia una et distincta a caeteris
(Se a metafísica é uma ciência única e distinta das demais)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não é uma única ciência, mas muitas. Pois, sendo o seu objeto o ente enquanto ente (ens inquantum ens), e como o ente se divide em múltiplos gêneros — substância, quantidade, qualidade, relação, e assim por diante —, o estudo do ente deveria também dividir-se segundo esses gêneros. Portanto, não há uma ciência única que trate de todos igualmente.
2. Ademais, a unidade de uma ciência depende da unidade do método e do sujeito. Ora, a metafísica considera realidades diversas: as substâncias incorruptíveis e as corruptíveis, o necessário e o contingente, o ato e a potência. Como todas essas coisas diferem por natureza e por modo de conhecimento, parece impossível que haja uma única ciência que abrace a todas.
3. Além disso, a metafísica considera Deus e as causas supremas, mas também as causas segundas e as substâncias criadas. Ora, as coisas divinas e as humanas são de ordem tão distinta que não podem ser tratadas numa mesma ciência. Portanto, a metafísica não é uma ciência única, mas várias reunidas sob um nome comum.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica,
afirma expressamente que existe uma ciência que considera o ente enquanto ente
e o que lhe pertence por si. E acrescenta que esta ciência é diferente de todas
as demais, porque as outras tratam do ente sob algum aspecto particular: a
física, sob o aspecto do movimento; a matemática, sob o aspecto da quantidade;
e a moral, sob o aspecto da vontade. Portanto, há uma ciência superior,
distinta e una, que considera o ente em sua universalidade.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica é uma ciência única, e distinta de todas as
outras, pela universalidade do objeto e pela nobreza do seu princípio.
Com efeito, toda ciência possui um sujeito próprio, determinado segundo um aspecto formal. Assim, a física considera o ente móvel, a matemática o ente segundo a quantidade, e a moral o ente segundo a ação voluntária. Mas a metafísica considera o ente enquanto ente, isto é, o que é comum a tudo o que existe, sem restrição de gênero ou de espécie.
O ente enquanto ente (ens inquantum ens) é aquilo que é mais universal e, ao mesmo tempo, mais profundo. Não é gênero de coisa alguma, mas princípio de todos os gêneros. E, por isso, é objeto de uma ciência única, que o considera enquanto comum a tudo o que existe, e que indaga as causas e os princípios universais do ser.
A unidade da metafísica deriva da unidade do seu objeto formal. Pois, ainda que o ente se diga de muitos modos — como necessário, contingente, substancial, acidental, atual, potencial —, tudo isso se diz em relação a um único princípio e sob uma única noção de ser. Assim, a metafísica é ciência analógica: contempla o ser sob seus diversos modos de participação, como o mais e o menos, o anterior e o posterior, o perfeito e o imperfeito.
E porque considera o ser enquanto ser, ela estende-se também às causas e aos princípios que pertencem ao ser por si mesmo — o ato e a potência, a forma e a matéria, a substância e o acidente, o uno e o múltiplo, o bem e a causa final. Por isso Aristóteles chamou-a “ciência das causas primeiras e dos princípios mais altos”.
Portanto, a metafísica é uma ciência una, porque versa sobre um objeto uno em razão formal: o ser enquanto ser. E é distinta das demais porque nenhuma outra ciência trata do ser sob essa razão de universalidade, mas todas se subordinam a ela, como as partes ao todo e como os ramos ao tronco.
Assim, enquanto as ciências inferiores dependem de princípios próprios e particulares, esta ciência se apoia em princípios universais, dos quais todas as demais extraem o seu fundamento. E porque investiga as causas supremas e o princípio de todo ser, é também chamada “sabedoria” (sapientia), pois a sabedoria é o conhecimento das causas últimas.
Respostas às objeções.
1. À primeira objeção, deve-se dizer que, embora o ente se divida em muitos gêneros, todos eles participam de algo comum — o ser —, e é isso que a metafísica considera. Por conseguinte, não há multiplicidade de ciências, mas unidade sob diversidade de modos.
2. À segunda, responde-se que a diversidade dos modos de ser não destrói a unidade da ciência, porque todos esses modos são conhecidos em razão do ser, que é o objeto formal. E, ainda que os métodos particulares possam variar conforme o gênero de ente considerado, todos se ordenam ao mesmo princípio e à mesma causa universal.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora a metafísica trate de Deus e também das criaturas, ela o faz sob um mesmo aspecto: o do ser enquanto ser, no qual tudo participa, tanto o primeiro ser quanto o ser criado. Assim, o objeto é um, e por isso a ciência é uma.
Conclusão.
Portanto, a metafísica é uma ciência única e distinta das demais. Sua unidade
procede da unidade do objeto — o ser enquanto ser —, e sua excelência, da
dignidade das causas que considera. Por isso é chamada “filosofia primeira” e
“sabedoria”, pois investiga as causas universais e supremas, das quais todas as
outras ciências dependem e às quais se ordenam.
Quaestio II — Utrum metaphysica sit scientia divina
(Se a metafísica é ciência divina)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não é ciência divina. Pois o divino excede o alcance da razão natural, e o conhecimento daquilo que é propriamente divino pertence à teologia, que é fundada na revelação. Ora, a metafísica procede apenas pela luz natural da razão. Logo, não deve ser chamada ciência divina.
2. Além disso, o nome de ciência divina se aplica àquela que tem por objeto a natureza de Deus em si mesmo, como é o caso da teologia sagrada. A metafísica, porém, não considera a essência divina em si, mas apenas o ser comum e suas causas universais. Portanto, ela é ciência do ser, e não do divino.
3. Ademais, a física e a metafísica são distintas apenas pelo grau de abstração: a física considera o ente em movimento, e a metafísica o ente separado da matéria. Mas o nome “divina” convém somente àquilo que pertence à substância incorpórea e eterna, que está acima de toda a ordem criada. Logo, a metafísica não é propriamente ciência divina, mas natural.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro VI da Metafísica,
chama essa ciência de “divina”, porque trata do primeiro princípio e da causa
suprema de todas as coisas, e porque o fim de toda sabedoria é o conhecimento
de Deus.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica é chamada ciência divina sob um duplo aspecto:
primeiro, quanto ao seu objeto supremo; segundo, quanto à sua excelência entre
as ciências.
Com efeito, toda ciência recebe sua denominação do que é mais nobre em seu objeto. Ora, entre os entes, nada é mais nobre que o divino; e, porque esta ciência se ocupa principalmente daquilo que é causa e princípio de todo o ser, ela merece o nome de “divina”.
Ainda que a metafísica considere universalmente o ser enquanto ser, ela o faz de modo tal que chega necessariamente ao conhecimento do primeiro ser, do qual todos os outros derivam por participação. Pois, ao buscar as causas supremas do ente, a razão ascende até o primeiro princípio, que é Deus. Assim, mesmo que o seu ponto de partida seja o ser em geral, o seu termo é o divino, que é o ser por essência.
Além disso, essa ciência é chamada “divina” por sua nobreza e excelência sobre todas as demais. A física trata do ente mutável; a matemática, do ente quantificável; mas a metafísica trata do ente imutável, eterno, e, por isso, do que é mais próximo da natureza divina. Assim, ela é superior às demais como a causa é superior ao efeito e como o fim é mais digno que o meio.
Também se chama divina porque torna o homem semelhante a Deus pela contemplação. Pois a perfeição da criatura racional consiste em conhecer o seu princípio, e quanto mais elevado é o objeto conhecido, mais perfeita é a ciência. E, como nenhuma ciência se eleva acima desta, nenhuma outra é tão próxima da beatitude.
Portanto, a metafísica é ciência divina, não por ter Deus como objeto próprio em sua essência — o que pertence à teologia sagrada —, mas por tratar de Deus como princípio e causa do ser, e por conduzir a razão natural até o conhecimento do primeiro e sumo ente, que é o fim de toda sabedoria.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a teologia sagrada conhece o divino pela luz da revelação, e a metafísica, pela luz natural da razão. Ambas, portanto, tratam do mesmo objeto sob modos diferentes: a primeira por fé, a segunda por demonstração. Assim, a metafísica é divina quanto ao modo racional e natural de conhecer o divino.
2. À segunda, responde-se que, embora a metafísica não considere a essência divina em si mesma, considera, contudo, o divino enquanto causa universal e princípio do ser. Ora, conhecer algo como causa é conhecer o que há de mais próprio e elevado nele, e por isso esta ciência é dita divina por analogia ao seu objeto mais alto.
3. À terceira, deve-se dizer que, ainda que a metafísica se distinga da física apenas pela abstração, ela ultrapassa a ordem natural, porque contempla o ser separado da matéria, e por conseguinte alcança as substâncias imateriais, que são divinas. Assim, ela se eleva da natureza sensível à natureza intelectual e incorruptível, e por isso merece o nome de ciência divina.
Conclusão.
Portanto, a metafísica é ciência divina, tanto porque tem por objeto o ser em
sua universalidade, o qual culmina em Deus, causa e princípio de todas as
coisas, quanto porque supera em dignidade todas as demais ciências, elevando a
mente humana à contemplação do primeiro ser.
Quaestio III — Utrum subiectum metaphysicae sit ens inquantum ens
(Se o sujeito da metafísica é o ente enquanto ente)
Objeções.
1. Parece que o sujeito da metafísica não é o ente enquanto ente, pois o ser é o mais universal de todos os conceitos e não possui natureza determinada que possa ser sujeito de uma ciência. Aquilo que é comum a todas as coisas, sendo indiferente a cada gênero, não pode ser objeto próprio de um conhecimento específico.
2. Além disso, toda ciência tem por sujeito algo que existe em ato e que pode ser determinado por propriedades próprias. Mas o ente enquanto ente não existe em ato, pois tudo o que existe é algum ente determinado — substância, quantidade, qualidade, e assim por diante. Portanto, o ente enquanto ente não pode ser o sujeito da metafísica.
3. Ademais, as ciências se distinguem pelos sujeitos que tratam: a física, pelo móvel; a matemática, pelo quantificável. Ora, o ente enquanto ente é o sujeito comum de todas as ciências, pois todas versam sobre alguma espécie de ente. Logo, não pode ser o sujeito próprio da metafísica, pois o comum não se determina a uma ciência particular.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica,
diz expressamente: “Há uma ciência que considera o ente enquanto ente e o que
lhe pertence por si.” Portanto, o ente enquanto ente é o sujeito próprio dessa
ciência.
Respondeo.
Deve-se dizer que o sujeito da metafísica é o ente enquanto ente (ens inquantum ens), e que é
sob esse aspecto que ela considera todas as suas propriedades, causas e
princípios universais.
Com efeito, cada ciência tem por sujeito algo determinado sob uma razão formal particular. Assim, a física considera o ente móvel, a matemática o ente abstraído da matéria sensível, e a moral o ente voluntário. Mas nenhuma delas considera o ser em sua universalidade, senão sob um aspecto restrito.
A metafísica, ao contrário, não se restringe a um gênero ou espécie de ente, mas investiga o ser enquanto tal, sem limitação. E o “ente enquanto ente” não é gênero de nada, porque está acima de toda divisão; é o que se diz de todas as coisas, antes de qualquer determinação particular. Por isso, o ente enquanto ente é o mais universal e, ao mesmo tempo, o mais profundo dos objetos da inteligência.
Ora, o ente, tomado universalmente, não é algo meramente lógico ou imaginário, mas tem fundamento real em tudo o que existe. Pois em tudo há uma certa participação do ser, seja no ato, seja na potência, no necessário ou no contingente. E, como todas essas participações se ordenam a um princípio comum, o ser enquanto ser é objeto verdadeiro e real, e por isso é sujeito de uma ciência que o considera em sua razão própria.
Assim, a metafísica tem por sujeito o ente enquanto ente, e, por consequência, estuda todas as propriedades que pertencem ao ser por si mesmo — como o uno, o verdadeiro, o bem, a causa e o princípio. Tais propriedades não pertencem ao ser por acidente, mas por essência, e por isso cabem propriamente a esta ciência.
Além disso, como o ente é o primeiro objeto do intelecto, segue-se que a ciência que o considera é também a primeira e a mais universal. Pois o intelecto, ao conhecer qualquer coisa, conhece-a como ente; e assim, o estudo do ente enquanto ente é o estudo do próprio ato de inteligir em sua universalidade.
Por isso, a metafísica é ciência das causas supremas, porque somente nela o ser é considerado em toda a sua extensão e profundidade. As outras ciências pressupõem o ser, mas não o explicam; esta o investiga como o mais evidente em si mesmo, mas o mais oculto em sua natureza.
Conclui-se, portanto, que o ente enquanto ente é o sujeito próprio da metafísica, e que todas as demais ciências dele dependem, porque nenhuma pode compreender sua matéria sem antes entender o ser em seu sentido universal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ser, embora seja o mais comum dos conceitos, possui, contudo, razão formal determinada — a de ser enquanto ser. E é sob essa razão que a metafísica o considera, não em sua indiferença lógica, mas em sua realidade universal.
2. À segunda, responde-se que, embora o ente enquanto ente não exista em ato como uma substância particular, ele está presente em todos os entes como o fundamento comum do existir. Assim, não é um conceito vazio, mas o que há de mais real em tudo, e por isso pode ser sujeito de uma ciência universal.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora todas as ciências particulares considerem o ente em algum aspecto, nenhuma o considera em sua totalidade e em sua universalidade. Logo, o ente enquanto ente, tomado em toda a sua amplitude, pertence unicamente à metafísica, e é seu sujeito próprio.
Conclusão.
O sujeito da metafísica é o ente enquanto ente. É sob essa razão que a ciência
primeira investiga as causas e os princípios de tudo o que existe, e é por isso
que ela é chamada “filosofia universal”. Todas as outras ciências dependem dela
como das suas raízes, porque somente ela contempla o ser em sua plenitude e em
seu fundamento.
Quaestio IV — Utrum ens et unum convertantur
(Se o ser e o uno são convertíveis)
Objeções.
1. Parece que o ser (ens) e o uno (unum) não são convertíveis. Pois, como ensina Aristóteles no livro V da Metafísica, o ser se divide em dez categorias, enquanto o uno é contado entre os transcendentais que acompanham o ser. Logo, se o ser é anterior e o uno é seu consequente, eles não podem ser convertíveis, pois aquilo que segue é de ordem diversa do que precede.
2. Além disso, o ser significa a atualidade e a existência, enquanto o uno significa a indivisão e a negação da multiplicidade. Ora, o que é positivo e o que é negativo não podem ser o mesmo em razão. Logo, o ser e o uno não são convertíveis, mas apenas correlatos.
3. Ademais, há coisas que são seres em algum modo, mas não são unas, como a multidão, que é composta de muitos entes e, portanto, múltipla e não una. Assim, o ser e o uno não se aplicam igualmente a todas as coisas, e, por conseguinte, não são convertíveis.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro X da Metafísica,
afirma que “o ser e o uno se convertem”, e Santo Agostinho diz no livro das Confissões que “tudo o que
é, é uno, e tudo o que é uno, é”.
Respondeo.
Deve-se dizer que o ser e o uno são convertíveis, não quanto à significação,
mas quanto à realidade (secundum
rem).
Pois o ser significa aquilo que é em ato, e o uno significa a indivisão do ser em si mesmo e sua distinção em relação aos outros. Assim, a noção de ser é afirmativa, e a de uno é negativa quanto ao modo de expressão, mas ambas designam o mesmo princípio real.
Com efeito, tudo o que existe é uno, porque o ato de existir é inseparável da unidade. O que é dividido em si não pode subsistir, pois toda divisão implica uma privação de ser. Portanto, a unidade é o selo do ser, e a multiplicidade, a sua limitação ou deficiência.
Assim, o ser e o uno são convertíveis porque nada pode ser sem ser uno; e tudo o que é uno, é, pois a unidade é a propriedade pela qual o ser é indiviso em si mesmo e distinto dos demais.
A distinção entre ambos é apenas segundo a razão: o ser designa o que algo é (quid est), enquanto o uno designa o modo como é — indiviso. Por isso, o ser é fundamento do uno, e o uno é consequente do ser. Não se trata, porém, de distinção real, mas de distinção de razão, pois ambos são idênticos na realidade.
Além disso, o uno acompanha o ser em toda parte: na substância, porque esta é indivisa em si mesma; na quantidade, porque cada medida é uma; na qualidade, porque cada forma é uma e determinada; e assim nos demais gêneros. Assim, o uno é dito “transcendental”, porque ultrapassa todos os gêneros e se aplica a tudo o que existe.
Por conseguinte, o ser e o uno são convertíveis, porque têm o mesmo sujeito e a mesma extensão, diferindo apenas no modo como a razão os concebe: o ser expressa a atualidade da essência; o uno, a indivisão dessa atualidade.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ser é anterior ao uno segundo a ordem da noção, não da realidade. Pois o ser é concebido primeiro pelo intelecto, e o uno é concebido como uma propriedade consequente ao ser. Contudo, na realidade, o ser e o uno são idênticos, porque não há ser que não seja uno.
2. À segunda, responde-se que o ser e o uno não se opõem, pois a negação de divisão não destrói, mas aperfeiçoa o ser. A indivisão é a perfeição do ato, não sua privação. Assim, o uno é a expressão negativa da integridade do ser.
3. À terceira, deve-se dizer que a multidão não é propriamente ser, mas conjunto de seres. Enquanto cada parte da multidão é uno e ser, o todo é múltiplo apenas por relação das partes entre si. Assim, a multiplicidade não nega o ser, mas supõe muitos entes unos.
Conclusão.
Portanto, o ser e o uno são convertíveis, porque toda coisa é uma na medida em
que é, e é na medida em que é una. O ser designa o ato da existência; o uno, a
indivisão desse ato. São, portanto, distintos apenas quanto ao modo de
concepção, mas idênticos quanto à realidade.
Quaestio V — Utrum metaphysica consideret causas et principia rerum communia
(Se a metafísica considera as causas e os princípios comuns das coisas)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não considera as causas e os princípios comuns das coisas, pois toda ciência tem por objeto causas determinadas e próprias. Ora, as causas comuns não se aplicam a nenhum gênero específico, mas abrangem tudo indiscriminadamente. Logo, o conhecimento delas não pertence a uma ciência particular, mas à razão em geral.
2. Além disso, as causas e os princípios comuns, como o ato e a potência, o ser e o uno, estão presentes em todas as coisas e são estudados em cada ciência conforme o gênero de ente que ela trata. Assim, a física considera o ato e a potência no ente móvel, a matemática no ente quantificável. Portanto, não parece necessário que exista uma ciência separada para tratá-los em geral.
3. Ademais, o conhecimento das causas pertence à sabedoria (sapientia), como diz Aristóteles. Ora, a sabedoria é distinta da metafísica, porque esta é ciência especulativa e a sabedoria é hábito prático de ordenar as ciências. Logo, a metafísica não considera propriamente as causas e os princípios comuns.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles afirma, no livro I da Metafísica,
que “a sabedoria é o conhecimento das causas primeiras e dos princípios
supremos”, e chama essa ciência de “metafísica”. Portanto, a metafísica considera
as causas e os princípios comuns das coisas.
Respondeo.
Deve-se dizer que é próprio da metafísica considerar as causas e os princípios
comuns das coisas, porque ela trata do ser enquanto ser (ens inquantum ens), e tudo o
que pertence ao ser universal pertence também a esta ciência.
Ora, as causas e os princípios são comuns a todos os entes, pois nada existe sem causa e sem princípio. Assim, como o ser é comum a tudo, também suas causas e princípios o são; e como a metafísica considera o ser em sua universalidade, deve também considerar as causas universais do ser.
As outras ciências tratam das causas segundo a diversidade dos gêneros: a física investiga as causas do movimento, a matemática as causas da quantidade, a moral as causas dos atos voluntários. Mas a metafísica, sendo ciência primeira e universal, investiga as causas primeiras e universais de todas as coisas — aquelas que estão acima de todo gênero e são comuns a todos os modos do ser.
Por isso, a metafísica considera o ato e a potência, o uno e o múltiplo, a forma e a matéria, a causa final e a causa eficiente, não segundo a particularidade das naturezas criadas, mas segundo o modo pelo qual todas as coisas participam delas. Ela busca o princípio da unidade em toda multiplicidade, o princípio da causa em toda ordem do ser.
E como toda causa particular depende de uma causa mais universal, e esta, por sua vez, de uma causa primeira e absolutamente simples, segue-se que a metafísica se ordena à consideração da causa suprema — Deus —, que é o primeiro princípio de toda causalidade.
Assim, é próprio desta ciência não apenas conhecer as causas comuns, mas também mostrar sua hierarquia e ordem: como a matéria e a forma estão submetidas à causa eficiente, e esta, à causa final, que é o bem. Portanto, a metafísica é chamada “filosofia primeira” porque trata da ordem das causas universais e do fundamento de todo ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que as causas e os princípios comuns pertencem propriamente à metafísica, porque, embora sejam universais e se estendam a todos os gêneros, é preciso uma ciência que os considere enquanto universais. A razão em geral não o faz senão confusamente; a metafísica o faz distintamente, segundo sua natureza e ordem.
2. À segunda, responde-se que as ciências particulares consideram as causas segundo seus gêneros, enquanto esta ciência as considera em sua universalidade e analogia. Assim, embora a noção de causa se encontre nas demais ciências, a razão universal de causalidade pertence unicamente à metafísica.
3. À terceira, deve-se dizer que a sabedoria e a metafísica não são distintas em substância, mas em denominação. Pois a sabedoria, segundo Aristóteles, é a própria metafísica, enquanto esta considera as causas supremas e ordena todas as outras ciências segundo elas. Logo, a sabedoria e a metafísica coincidem na realidade, diferindo apenas no modo de nomear.
Conclusão.
Portanto, é próprio da metafísica considerar as causas e os princípios comuns
das coisas, porque ela trata do ser universal e, por conseguinte, de tudo o que
pertence ao ser em sua razão mais elevada. As causas e princípios universais —
ato, potência, forma, matéria, bem e fim — são os temas próprios dessa ciência,
pela qual o intelecto humano ascende até o conhecimento do primeiro princípio
de todas as coisas.
Quaestio VI — Utrum sapientia sit cognitio causarum primarum
(Se a sabedoria é o conhecimento das causas primeiras)
Objeções.
1. Parece que a sabedoria não é o conhecimento das causas primeiras. Pois, segundo Aristóteles no livro VI da Ética, o sábio é aquele que sabe ordenar e dirigir. Ora, o conhecimento das causas primeiras é especulativo e não ordena nada na prática. Logo, a sabedoria, que pertence à razão prática, não consiste em conhecer as causas primeiras.
2. Além disso, a sabedoria é enumerada entre os dons do Espírito Santo, conforme o profeta Isaías: “Requiescet super eum spiritus sapientiae et intellectus.” Ora, os dons do Espírito não se adquirem pela razão natural nem pela investigação das causas. Portanto, a sabedoria não é o conhecimento das causas primeiras.
3. Ademais, toda ciência versa sobre algo determinado e próprio, mas as causas primeiras estão acima de todos os gêneros de conhecimento e não pertencem a uma matéria específica. Logo, não podem ser objeto de uma ciência particular chamada sabedoria.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro I da Metafísica,
afirma: “O que mais propriamente chamamos sábio é aquele que conhece as causas
primeiras e os princípios mais altos.”
Respondeo.
Deve-se dizer que a sabedoria é, propriamente, o conhecimento das causas
primeiras e dos princípios universais de todas as coisas.
Pois o sábio, segundo o Filósofo, é aquele que conhece a ordem das causas e é capaz de julgar todas as coisas a partir dos seus princípios. Ora, os princípios de todas as coisas são as causas primeiras, das quais todas as outras causas dependem e às quais todas se subordinam. Portanto, o conhecimento das causas primeiras é a perfeição do saber e o termo da filosofia.
A sabedoria distingue-se das demais ciências não pela forma do raciocínio, mas pela eminência do objeto. Porque, enquanto as ciências particulares conhecem causas segundas e efeitos determinados, a sabedoria conhece o fundamento de todas as causas e o princípio de toda causalidade.
Além disso, o nome de sabedoria (sapientia) vem de “sabor” (sapere), pois, assim como o paladar julga todos os sabores, o sábio julga todas as ciências. E esse juízo só é possível àquele que conhece as causas supremas, pois quem conhece o primeiro princípio conhece, por ele, a razão de todas as coisas.
Assim, a sabedoria é conhecimento das causas primeiras em duplo sentido:
· Primeiro, porque investiga as causas que são primeiras na ordem do ser — isto é, Deus, que é o primeiro motor e o princípio de toda substância.
· Segundo, porque é primeira na ordem do conhecer, pois o conhecimento das causas primeiras ilumina e ordena todos os outros saberes.
Por isso, Aristóteles diz que o sábio é aquele que conhece todas as coisas quanto ao possível, sem conhecer cada uma em particular, porque conhece as suas causas universais.
Além disso, a sabedoria é ciência e virtude ao mesmo tempo: ciência, porque demonstra a ordem das causas; virtude, porque ordena a mente humana ao sumo bem, que é o princípio e o fim de todas as coisas. E por isso ela é colocada no ápice das ciências especulativas, sendo chamada “teologia” ou “filosofia primeira”, enquanto conduz o entendimento à contemplação do divino.
Portanto, a sabedoria é propriamente o conhecimento das causas primeiras, e esse conhecimento é a perfeição da razão e o termo do movimento intelectual do homem.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles distingue dois modos de sabedoria: um prático, que pertence à razão operativa e ordena os atos humanos, e outro especulativo, que pertence à razão contemplativa e considera as causas supremas. Quando dizemos que a sabedoria é o conhecimento das causas primeiras, falamos da sabedoria especulativa, que é superior à prática.
2. À segunda, responde-se que o dom da sabedoria, concedido pelo Espírito Santo, não é diverso na essência da sabedoria natural, mas na origem e na forma de participação. A sabedoria natural alcança o divino pela razão; a sabedoria infusa o recebe por graça. Ambas, contudo, se ordenam ao mesmo fim: o conhecimento de Deus como princípio e causa de todas as coisas.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora as causas primeiras transcendam todos os gêneros particulares, podem, contudo, ser objeto de uma ciência universal, que as considera enquanto princípios do ser. Essa ciência é a metafísica, e nela consiste a sabedoria propriamente dita.
Conclusão.
A sabedoria é o conhecimento das causas primeiras, porque o sábio é aquele que
conhece a razão última das coisas e pode julgar todas as ciências pela luz dos
princípios universais. Assim, a sabedoria é a ciência suprema, porque conduz a
razão à contemplação do primeiro princípio, e é também a mais perfeita, porque
ordena todos os saberes ao seu fim último: o conhecimento de Deus.
Quaestio VII — Utrum metaphysica sit eadem cum theologica
(Se a metafísica é a mesma coisa que a teologia)
Objeções.
1. Parece que a metafísica é a mesma coisa que a teologia. Pois ambas tratam do divino e das causas supremas, e têm o mesmo fim, que é o conhecimento de Deus. Ora, as ciências que têm o mesmo objeto e o mesmo fim não se distinguem essencialmente. Logo, a metafísica e a teologia são uma só e mesma ciência.
2. Além disso, Aristóteles chama a metafísica de “teologia” no livro VI da Metafísica, dizendo que, se existe alguma substância imutável e separada, é tarefa da filosofia primeira investigá-la, e tal ciência deve ser chamada teológica. Ora, a teologia é precisamente o conhecimento de Deus e das coisas divinas. Logo, metafísica e teologia são idênticas.
3. Ademais, as coisas divinas são o objeto mais nobre do intelecto, e toda ciência se define pelo que há de mais elevado em seu objeto. Ora, a metafísica é chamada “divina” por tratar de Deus como causa primeira. Portanto, ela não é apenas semelhante à teologia, mas a própria teologia.
Em contrário (Sed
contra).
A teologia sagrada procede pela luz da fé e da revelação; a metafísica, pela
luz natural da razão. Ora, as ciências se distinguem segundo o modo de
conhecer. Logo, a metafísica e a teologia não são a mesma ciência.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica e a teologia não são a mesma ciência quanto ao
modo de conhecer, mas coincidem quanto ao objeto último.
Com efeito, a teologia sagrada, que procede da fé e da revelação divina, considera Deus e as coisas divinas enquanto são conhecidas pela autoridade da palavra divina. A metafísica, ao contrário, considera o mesmo Deus enquanto causa primeira de todos os entes, segundo a luz da razão natural.
Assim, a diferença entre ambas não está no objeto, mas na maneira de conhecê-lo. Pois o mesmo Deus é conhecido de modo diverso: pela fé, na teologia; pela razão, na metafísica. A teologia é, portanto, superior em certeza, porque se apoia na revelação infalível; a metafísica, superior em naturalidade, porque é alcançada pelo intelecto humano segundo sua própria força.
Contudo, há entre ambas uma certa ordem e dependência. A metafísica prepara o caminho para a teologia, mostrando pela razão natural que existe um primeiro princípio, causa de todo ser, e que este princípio é uno, simples, eterno e imutável. A teologia, por sua vez, eleva esse conhecimento e o completa, revelando aquilo que excede a capacidade da razão — como a Trindade, a Encarnação e os mistérios da graça.
Assim, a metafísica é chamada “teologia natural”, porque conduz o homem ao conhecimento de Deus segundo as forças da natureza; e a teologia sagrada é chamada “teologia sobrenatural”, porque procede da luz da fé e depende da revelação divina.
Portanto, ainda que ambas tenham por objeto o mesmo Deus e as mesmas realidades supremas, distinguem-se quanto à origem do conhecimento e ao modo de proceder. A metafísica raciocina e demonstra; a teologia crê e contempla.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora ambas tratem do mesmo objeto e do mesmo fim, distinguem-se pela via de acesso a esse objeto. A metafísica alcança o divino por inferência racional; a teologia, por revelação e fé. Assim como há um só objeto — o divino —, mas dois modos de conhecê-lo, há duas ciências distintas, embora ordenadas entre si.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles chamou a metafísica de “teologia” não por identidade com a teologia sagrada, mas por analogia de objeto, porque a metafísica trata de Deus como causa e princípio de todos os entes. Assim, o nome “teologia” é usado em dois sentidos: no primeiro, natural e filosófico; no segundo, sobrenatural e revelado.
3. À terceira, deve-se dizer que o fato de a metafísica tratar das coisas divinas não a torna idêntica à teologia, pois o mesmo objeto pode ser considerado sob razões diferentes. Assim, o médico e o físico estudam o corpo humano, mas de modos diversos: um quanto à saúde, outro quanto à natureza. Do mesmo modo, a teologia e a metafísica têm o mesmo objeto material — Deus —, mas o consideram sob razões formais diversas.
Conclusão.
A metafísica e a teologia coincidem quanto ao objeto último — o divino —, mas
diferem quanto ao modo de conhecer: a primeira pela luz natural da razão, a
segunda pela luz sobrenatural da revelação. Por isso, a metafísica é chamada
“teologia natural”, enquanto a teologia propriamente dita é ciência sagrada.
Ambas convergem no mesmo fim — o conhecimento de Deus —, mas por caminhos
diversos: uma demonstra, a outra revela.
Quaestio VIII — Utrum metaphysica ordinet alias scientias
(Se a metafísica ordena as demais ciências)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não ordena as demais ciências. Pois a ordem entre as ciências deve seguir a ordem de suas matérias e métodos. Ora, cada ciência tem seu próprio sujeito e seu método particular, e não depende da metafísica em seu exercício. Logo, a metafísica não as ordena, mas todas são independentes em suas esferas.
2. Além disso, a ordenação pertence à razão prática, e não à especulativa. Ora, a metafísica é ciência puramente especulativa, e não prática. Portanto, não pode ordenar as demais ciências, já que ordenar implica dirigir e dispor para um fim.
3. Ademais, toda ciência é perfeita em seu gênero, e não necessita de outra superior que lhe determine o modo de proceder. Assim, a geometria não depende da física, nem a aritmética da ética. Portanto, não parece que a metafísica tenha autoridade para ordenar as ciências, pois cada uma se basta a si mesma dentro de seu domínio.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica,
diz que “a ciência primeira é aquela que considera as causas primeiras e os
princípios de todas as coisas”, e, por isso, é “reguladora das outras
ciências”.
Respondeo.
Deve-se dizer que é próprio da metafísica ordenar as demais ciências, não
segundo o modo prático de direção, mas segundo o modo especulativo de
superioridade e causalidade.
Com efeito, a ordem entre as ciências segue a ordem das causas: aquela que considera as causas universais e supremas é necessariamente anterior e reguladora das que tratam das causas inferiores e particulares. Ora, a metafísica considera as causas e os princípios mais universais — o ser, o uno, o bem, o fim e o primeiro motor —, enquanto as ciências particulares consideram causas limitadas a determinados gêneros de seres.
Assim, a metafísica é a ciência mais alta e universal, e por isso deve ordenar todas as outras, como o fim ordena os meios e o princípio regula os efeitos. Ela não impõe aos demais saberes regras práticas, mas lhes fornece o fundamento e a hierarquia, mostrando qual o lugar de cada um na totalidade do conhecimento.
Além disso, como todas as ciências partem de certos princípios que assumem como dados, é próprio da metafísica investigar as razões desses princípios, demonstrando de onde vêm e em que se fundam. Por isso, Aristóteles diz que “o sábio é aquele que conhece as causas primeiras e os fins últimos”, e que “a sabedoria deve ordenar as ciências segundo a dignidade dos seus objetos”.
Deste modo, a metafísica ordena as ciências tanto em relação ao seu princípio quanto ao seu fim:
· Quanto ao princípio, porque ela mostra de que modo as ciências particulares dependem de causas universais;
· Quanto ao fim, porque ela determina o propósito último de todas as investigações humanas, que é a contemplação do ser e do primeiro princípio.
Assim, enquanto as ciências inferiores se ocupam dos entes particulares e mutáveis, esta se ocupa do ente universal e imutável, e as subordina segundo o grau de perfeição do seu objeto. Por isso, a metafísica é chamada “arquitetônica”, isto é, ciência ordenadora e reguladora, assim como a arte da navegação ordena os ofícios dos que constroem o navio.
Logo, a metafísica ordena as demais ciências por modo de sabedoria, porque conhece a causa de cada uma e o fim ao qual todas se dirigem.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora cada ciência tenha seu sujeito e método próprios, todas dependem, quanto aos seus princípios universais, da metafísica. Pois nenhuma pode explicar o ser, a causa e o fim últimos, que são os fundamentos de todo conhecimento. Assim, a metafísica as ordena não em seu exercício, mas em sua razão e finalidade.
2. À segunda, responde-se que ordenar pode ser dito de dois modos: por modo prático, quando se dispõe algo ao agir; e por modo especulativo, quando se dispõe algo ao conhecer. Nesse segundo sentido, a metafísica ordena as demais ciências, pois determina a hierarquia do saber e o grau de universalidade de cada ciência.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora cada ciência seja perfeita em seu gênero, nenhuma é autossuficiente quanto aos princípios universais que lhe dão validade. A geometria, por exemplo, supõe o ser da quantidade, mas não demonstra o que é o ser nem o que é a causa do ser. A metafísica, portanto, não suplanta, mas fundamenta e ordena.
Conclusão.
A metafísica ordena as demais ciências, não como a arte prática que dirige a
execução, mas como a ciência universal que conhece as causas primeiras e
estabelece a hierarquia dos saberes. Todas as ciências derivam dela seus
princípios e se orientam segundo ela para o fim último, que é o conhecimento do
ser e de Deus como princípio de toda verdade.
Quaestio IX — Utrum metaphysica demonstret Deum esse
(Se a metafísica demonstra que Deus existe)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não demonstra que Deus existe. Pois a existência de Deus é conhecida pela fé e pela revelação divina, conforme o que está escrito: “Aquele que se aproxima de Deus deve crer que Ele existe.” (Hebr. 11,6). Ora, a fé e a revelação estão acima da razão natural. Logo, a metafísica, que procede pela razão natural, não pode demonstrar que Deus existe.
2. Além disso, toda demonstração parte de princípios anteriores e mais conhecidos que a conclusão. Ora, nada é anterior ou mais conhecido que Deus, pois Ele é o primeiro e o mais alto de todos os seres. Logo, não se pode demonstrar que Deus existe, já que não há princípio mais evidente do que Ele.
3. Ademais, o Filósofo ensina no livro II da Física que toda ciência demonstra causas a partir de seus efeitos próprios. Ora, Deus é causa universal e primeira, e não tem efeito próprio que lhe corresponda de modo proporcional. Portanto, não há via científica pela qual se possa demonstrar a existência de Deus.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica,
demonstra que há um primeiro motor imóvel, que é causa do movimento e do ser em
todas as coisas. Portanto, a metafísica pode demonstrar que Deus existe.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica pode demonstrar que Deus existe, mas não pode
demonstrar o que Ele é em sua essência.
Com efeito, a existência de Deus é demonstrável pela razão natural a partir dos efeitos sensíveis, que procedem necessariamente de uma causa primeira. Pois, como toda realidade que se move é movida por outra, e como não é possível uma regressão infinita de causas motoras, deve existir um primeiro motor imóvel, que é Deus.
Assim, a metafísica, por tratar do ser enquanto ser e das causas universais, tem a capacidade de provar a existência de uma causa suprema que funda o ser de tudo o que existe. E, embora Deus seja o mais oculto em si mesmo, é o mais evidente em suas obras, de modo que, pelas coisas criadas, a razão pode ascender ao seu Criador.
Essa demonstração, porém, não é a priori — isto é, a partir da essência de Deus, pois esta é desconhecida —, mas a posteriori, a partir dos efeitos que dele procedem. Assim, pela via da causalidade, da contingência e do movimento, o intelecto humano reconhece que deve haver um ser primeiro, necessário e perfeito, do qual todas as outras coisas recebem o ser e a ordem.
Portanto, a metafísica demonstra que Deus existe, não enquanto explica a natureza divina, mas enquanto mostra que há um princípio supremo e uma causa universal. E essa demonstração é possível porque o intelecto, ao considerar o ser enquanto ser, encontra nele um fundamento que não pode ser explicado senão por um ser absoluto e subsistente.
Além disso, a metafísica demonstra a existência de Deus por várias vias:
· Pela via do movimento, mostrando que tudo o que se move é movido por outro e que há um primeiro motor imóvel.
· Pela via da causalidade, mostrando que toda causa eficiente depende de uma causa anterior e que é necessário chegar a uma causa primeira.
· Pela via da necessidade, mostrando que, entre os entes contingentes, deve haver um ser necessário que seja causa da necessidade dos demais.
· Pela via da perfeição, mostrando que há graus de ser e de bem e que deve haver um ser sumamente perfeito, causa de toda perfeição.
Essas vias não alcançam a essência divina, mas provam que existe uma realidade primeira e suprema, à qual todas as outras se ordenam. Assim, a metafísica não substitui a fé, mas confirma racionalmente o princípio que a fé recebe de modo sobrenatural.
Logo, embora Deus seja o primeiro princípio e a razão última de todas as coisas, a metafísica, enquanto ciência do ser, pode demonstrar que Ele existe como causa necessária e primeira de todo o ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a fé e a razão não se opõem, mas se ordenam. A fé crê pela autoridade de Deus que revela; a razão demonstra pela necessidade do ser que há um primeiro princípio. Assim, o que a fé crê, a metafísica pode mostrar racionalmente, embora de modo menos perfeito.
2. À segunda, responde-se que, embora Deus seja o mais conhecido em si mesmo, não é o mais conhecido para nós. Pois o nosso conhecimento começa pelos sentidos e ascende ao inteligível. Assim, a existência de Deus, embora evidente em si, é demonstrável para nós por meio de seus efeitos.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora Deus não tenha efeito próprio que o esgote, as criaturas são efeitos universais dele, nos quais a razão reconhece vestígios de sua causa. Por isso, a partir da ordem e da dependência dos entes, podemos demonstrar que há um ser primeiro, que é causa e razão do ser em todos.
Conclusão.
A metafísica demonstra que Deus existe, não pela essência divina, que excede a
razão humana, mas pelos efeitos do ser criado, nos quais se manifesta a
dependência de tudo em relação a um primeiro princípio. Assim, pela luz natural
da razão, o intelecto chega a reconhecer o Deus que é causa universal, ato puro
e fundamento de toda realidade.
Quaestio X — Utrum metaphysica consideret Deum ut causam exemplarem
(Se a metafísica considera Deus como causa exemplar)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não considera Deus como causa exemplar. Pois a causa exemplar pertence à ordem das causas formais, que estão no mesmo gênero das coisas de que são causa. Ora, Deus é de natureza infinitamente superior às criaturas e não pertence a nenhum gênero. Logo, não pode ser causa exemplar delas.
2. Além disso, a semelhança do exemplar deve poder ser imitada pelo efeito. Ora, entre Deus e as criaturas há distância infinita; e nenhuma semelhança finita pode representar o infinito. Portanto, Deus não pode ser exemplar das criaturas, e a metafísica não pode considerá-lo como tal.
3. Ademais, o conhecimento do exemplar é anterior à produção do exemplarizado, como a arte é anterior à obra. Ora, Deus não conhece as coisas por espécies exemplares distintas, mas em si mesmo. Logo, não há em Deus exemplaridade distinta das criaturas, e por isso a metafísica não deve tratá-lo como causa exemplar.
Em contrário (Sed
contra).
O Filósofo, no livro XII da Metafísica,
ensina que Deus é pensamento de pensamento, e que todas as coisas existem
enquanto participam de sua bondade e de sua forma. Portanto, Deus é causa
exemplar de todas as coisas, e a metafísica deve considerá-lo sob esse aspecto.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica considera Deus como causa exemplar de todas as
coisas, embora de modo diverso da arte humana que produz segundo modelos
externos.
Com efeito, em toda produção há três modos de causalidade: eficiente, final e exemplar. A causa exemplar é aquela segundo cuja forma a causa eficiente opera e o efeito é constituído. Ora, Deus é a causa eficiente de todas as coisas, porque é o primeiro princípio do ser; é também causa final, porque todas as coisas tendem a Ele como ao seu bem supremo; e, por conseguinte, é também causa exemplar, porque tudo é produzido segundo a semelhança da sua perfeição.
Essa exemplaridade não se dá por semelhança de gênero, mas por participação de perfeição. Pois, como o ser divino é a plenitude de todo ser, em Deus estão virtualmente e eminenter todas as formas que aparecem nas criaturas. Assim, Ele é o modelo segundo o qual as coisas são constituídas, não por cópia, mas por participação.
Deus não contempla espécies distintas das coisas, mas conhece a si mesmo como causa de todas. E, conhecendo-se como causa, conhece as coisas como efeitos que participam de sua perfeição. Assim, o exemplar das coisas não é algo diverso de Deus, mas o próprio Deus enquanto inteligível a si mesmo.
Por isso, a metafísica, enquanto ciência do ser e das causas universais, deve considerar Deus não só como causa eficiente e final, mas também como causa exemplar, porque Ele é a razão de todas as formas e o modelo de toda ordem.
E essa consideração é necessária para compreender a estrutura da criação. Pois, sem a noção de exemplaridade, não se pode explicar como há semelhança e ordem nas coisas criadas, nem como o múltiplo procede do uno sem perda de unidade. Assim, o conceito de causa exemplar é o elo entre o princípio absoluto e os efeitos múltiplos.
Logo, Deus é a causa exemplar de todas as coisas, porque nelas há uma semelhança de ordem, bondade e verdade que procede da sua perfeição. E a metafísica deve contemplá-lo sob essa tríplice razão: como causa eficiente que dá o ser, como causa exemplar que confere a forma, e como causa final que atrai tudo a si.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a exemplaridade divina não é formal no mesmo gênero das criaturas, mas eminente e transcendente. Pois, em Deus, a forma e o ser são o mesmo; e, portanto, Ele é exemplar não por similitude de espécie, mas por excelência de ser.
2. À segunda, responde-se que a semelhança entre Deus e as criaturas não é de igualdade, mas de analogia e participação. A criatura imita a perfeição divina conforme a medida de sua natureza. Assim, o infinito é representado de modo finito, não na proporção da essência, mas na semelhança da relação causal.
3. À terceira, deve-se dizer que Deus não tem espécies exemplares distintas, mas conhece todas as coisas no conhecimento de si mesmo. E esse conhecimento é suficiente para fundar a exemplaridade das criaturas, pois Deus, conhecendo-se como causa de tudo, conhece em si mesmo a razão exemplar de todas as formas.
Conclusão.
A metafísica considera Deus como causa exemplar, porque Ele é o modelo e a
razão de ser de todas as formas existentes. Tudo o que há de ordem, perfeição e
beleza nas criaturas é participação da exemplaridade divina. Assim, a
metafísica eleva o intelecto a contemplar no primeiro princípio não apenas a
causa eficiente e final de todas as coisas, mas também a sua razão exemplar, na
qual o múltiplo encontra unidade e o criado reflete o Criador.
Quaestio XI — Utrum metaphysica habeat cognitionem de Deo per analogiam entis
(Se a metafísica conhece Deus por meio da analogia do ser)
Objeções.
1. Parece que a metafísica não conhece Deus por meio da analogia do ser. Pois o ser divino é infinitamente distinto do ser criado, e não há proporção entre o finito e o infinito. Ora, a analogia exige uma certa proporção entre os extremos. Logo, não há analogia entre o ser de Deus e o ser das criaturas, e, portanto, a metafísica não pode conhecer Deus por analogia do ser.
2. Além disso, o conhecimento analógico é intermediário entre o unívoco e o equívoco. Ora, o nome de “ser” aplicado a Deus e às criaturas não é nem unívoco, porque não se diz de ambos no mesmo sentido, nem analógico, porque o ser de Deus não é participado, mas absoluto. Logo, o conhecimento de Deus não é analógico, mas totalmente transcendente.
3. Ademais, conhecer por analogia é conhecer pela semelhança dos efeitos em relação à causa. Ora, Deus é causa das coisas não por necessidade natural, mas por liberdade de vontade. Portanto, a semelhança entre o ser divino e o ser criado não é necessária, mas acidental. Logo, a metafísica não pode ter conhecimento de Deus por analogia do ser.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica,
afirma que “o ser se diz de muitas maneiras, mas sempre em relação a um
primeiro”. Ora, esse primeiro é o ser divino, do qual todos os outros seres
participam. Portanto, a metafísica conhece Deus por analogia do ser.
Respondeo.
Deve-se dizer que a metafísica conhece Deus por meio da analogia do ser (per analogiam entis), e não
por univocidade nem por pura equivocidade.
Com efeito, o conhecimento humano parte do sensível e ascende ao inteligível. Ora, Deus é o ser absoluto e primeiro, e não pode ser conhecido diretamente pela experiência sensível. Contudo, como tudo o que existe participa de algum modo do ser divino, é possível à razão humana elevar-se a Ele através dessa participação, reconhecendo a semelhança proporcional que há entre o ser das criaturas e o ser do Criador.
A analogia é o meio entre o unívoco e o equívoco: é uma semelhança proporcional, na qual o mesmo nome se aplica a realidades diversas, não no mesmo sentido, mas segundo uma relação de ordem a um mesmo princípio. Assim, “saudável” se diz do animal e do remédio, não do mesmo modo, mas por relação à saúde; do mesmo modo, “ser” se diz de Deus e das criaturas, não de modo unívoco, mas porque o ser criado tem relação de participação ao ser divino.
Portanto, quando dizemos que Deus é ser, e que as criaturas são seres, não afirmamos um ser comum num mesmo gênero, mas uma semelhança fundada na causalidade. O ser divino é o ser por essência (esse per se subsistens); o ser criado é ser por participação (esse per aliud). Entre ambos há relação de dependência, não de igualdade.
A metafísica, sendo ciência do ser enquanto ser, deve considerar o ser em todas as suas ordens, e, por conseguinte, reconhecer no ser participado o vestígio do ser absoluto. É nesse sentido que ela conhece Deus: não diretamente, mas por via de analogia, ou seja, pela relação do participado ao participante.
Assim, o conhecimento que a metafísica tem de Deus é verdadeiro, embora imperfeito: verdadeiro, porque fundado na participação real do ser criado no ser divino; imperfeito, porque não alcança a essência de Deus, mas apenas o modo pelo qual as criaturas refletem sua perfeição.
A analogia do ser é, portanto, o caminho próprio da razão natural para conhecer o divino. Sem ela, o intelecto humano não poderia falar de Deus senão por pura negação ou por ambiguidade. Com ela, pode afirmar de Deus o que há de mais universal — ser, bem, unidade, verdade —, mas sempre com a devida proporção e eminência.
Logo, a metafísica conhece Deus por analogia do ser, porque toda realidade criada é uma expressão participada do ser divino, e, pela contemplação dessa participação, o intelecto humano se eleva ao conhecimento de seu princípio.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que entre o finito e o infinito não há proporção de igualdade, mas há proporção de dependência. A analogia do ser não exige semelhança de natureza, mas de relação causal. Assim, o ser criado, embora infinitamente inferior, é ordenado ao ser divino como ao seu princípio e fim.
2. À segunda, responde-se que o nome “ser” não se aplica a Deus e às criaturas univocamente, porque o modo de ser é diverso, nem equívocamente, porque há uma relação real de causalidade. Portanto, é aplicado analogicamente, pois o ser se predica de ambos segundo uma ordem à mesma realidade — o ser absoluto.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora a criação dependa da livre vontade de Deus, a relação de participação que se estabelece entre o ser divino e o ser criado é necessária uma vez que a criação existe. Pois, sendo o Criador causa verdadeira do ser das criaturas, nelas permanece uma semelhança necessária e ordenada a Ele, segundo a analogia do ser.
Conclusão.
A metafísica conhece Deus por meio da analogia do ser, porque o ser divino é o
princípio e a medida de todo ser criado. Assim, o intelecto humano, ao
contemplar o ser das criaturas, reconhece nelas uma participação do ser
absoluto, e, pela via da analogia, eleva-se à contemplação de Deus como causa
exemplar, eficiente e final de tudo o que existe.
Quaestio XII — Utrum Deus sit primum principium quodammodo ignotum
(Se Deus é, de algum modo, o primeiro princípio desconhecido)
Objeções.
1. Parece que Deus não é, de modo algum, desconhecido. Pois toda ignorância é privação de conhecimento devido. Ora, o homem, pela luz natural da razão e pela revelação divina, é ordenado ao conhecimento de Deus. Logo, Deus não pode ser dito “de algum modo” desconhecido, mas, ao contrário, o mais cognoscível de todos.
2. Além disso, aquilo que é causa universal é mais conhecido do que seus efeitos, porque o conhecimento do universal é mais simples e mais evidente. Ora, Deus é causa universal de todas as coisas. Logo, é mais conhecido do que suas criaturas, e não deve ser chamado desconhecido.
3. Ademais, o Filósofo ensina que “o primeiro é o mais evidente”, e a fé afirma que Deus é luz e em si não há trevas. Logo, sendo Ele a própria evidência e a própria verdade, não pode ser dito, de nenhum modo, ignorado ou desconhecido.
Em contrário (Sed
contra).
Diz o Apóstolo: “Deus habita em luz inacessível, a quem homem algum viu nem
pode ver.” (1 Tim.
6,16). Portanto, Deus é, de certo modo, o primeiro princípio desconhecido.
Respondeo.
Deve-se dizer que Deus é o primeiro princípio e, de algum modo, desconhecido —
não porque em si mesmo seja obscuro, mas porque a fraqueza de nosso intelecto não
pode atingi-lo plenamente.
Com efeito, o conhecimento humano procede do sensível ao inteligível, e daquilo que é composto e múltiplo àquilo que é simples e uno. Ora, Deus é a simplicidade absoluta e a pureza do ser. Por isso, embora seja o mais cognoscível em si mesmo, é o mais desconhecido para nós, pois excede infinitamente a capacidade de nossa razão.
Assim, Deus é conhecido por nós de três modos:
1. Pela negação, quando removemos dele tudo o que pertence à imperfeição das criaturas — dizendo, por exemplo, que Ele é imutável, incorpóreo, infinito.
2. Pela eminência, quando afirmamos dele tudo o que é perfeição nas criaturas, mas de modo superior e eminente — dizendo que Ele é vida, sabedoria, bondade, mas não como nas criaturas.
3. Pela causalidade, quando o conhecemos como princípio de todas as coisas, por meio de seus efeitos, que participam de sua perfeição.
Todavia, nenhum desses modos alcança o que Ele é em si mesmo (quid est), mas apenas o que Ele é em relação a nós (quod est). E, por isso, Ele é dito “de algum modo desconhecido”: conhecido quanto à existência e às perfeições derivadas; desconhecido quanto à essência e à maneira pela qual essas perfeições existem nele.
Essa ignorância não é defeito, mas sinal da transcendência divina e da finitude da inteligência criada. Pois, quanto mais o intelecto se aproxima da luz divina, mais reconhece a profundidade daquilo que não pode compreender. Assim, o não saber de Deus é o princípio da verdadeira sabedoria, porque manifesta que Ele está além de toda medida e conceito.
Portanto, Deus é o primeiro princípio e, ao mesmo tempo, “quodammodo ignotus”: cognoscível em seus efeitos, inacessível em sua essência; conhecido como causa, mas desconhecido quanto ao modo de sua existência própria.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Deus é cognoscível segundo sua existência e segundo os efeitos de sua ação, mas permanece incompreensível quanto à sua essência. Por isso se diz que Ele é “de algum modo desconhecido”: não absolutamente, mas quanto ao modo perfeito de conhecimento.
2. À segunda, responde-se que, embora o universal seja, em si, mais conhecido que o particular, nosso intelecto não o conhece senão por meio dos particulares. Assim, ainda que Deus, em si mesmo, seja o mais evidente, para nós é o mais oculto, porque não podemos percebê-lo diretamente, mas apenas através das criaturas.
3. À terceira, deve-se dizer que a luz divina é inacessível não por obscuridade própria, mas por excesso de claridade. Pois, como a luz solar cega o olho fraco, assim a pureza do ser divino ultrapassa a capacidade da mente criada. Portanto, Deus é desconhecido não por falta de luz, mas por excesso de esplendor.
Conclusão.
Deus é o primeiro princípio e, de algum modo, desconhecido. Em si mesmo é a luz
suprema e o ser mais cognoscível; mas, para nós, é o mais oculto, porque excede
toda medida da inteligência criada. Ele é conhecido em seus efeitos e nas
perfeições que deles resplandecem, mas é incompreensível em sua essência.
Assim, o ápice do conhecimento humano consiste em reconhecer que Deus é
conhecido precisamente na medida em que permanece, de algum modo, desconhecido.
Quaestio XIII — Utrum sapientia sit desiderabilis propter se
(Se a sabedoria é desejável por si mesma)
Objeções.
1. Parece que a sabedoria não é desejável por si mesma. Pois todo desejo se ordena a um fim exterior, e aquilo que é desejável por si deve conter em si mesmo a perfeição de seu fim. Ora, a sabedoria consiste em conhecer, e o conhecimento é sempre ordenado a algo além de si — à ação ou à contemplação de um objeto. Logo, a sabedoria não é desejável por si, mas por causa do bem que dela resulta.
2. Além disso, o Filósofo diz no livro II da Ética que “o bem é o fim de toda obra e de todo saber”. Ora, o bem é algo distinto da sabedoria, pois esta está na inteligência, e o bem está na vontade. Logo, a sabedoria é desejável não por si, mas por causa do bem que ela proporciona.
3. Ademais, o que é desejável por si é o fim último, e o fim último do homem é a bem-aventurança. Ora, a sabedoria é apenas um meio pelo qual o homem alcança a bem-aventurança pela contemplação de Deus. Portanto, a sabedoria não é desejável por si, mas em razão da felicidade que dela procede.
Em contrário (Sed
contra).
Aristóteles, no livro I da Metafísica,
afirma: “Todos os homens, por natureza, desejam saber.” Ora, o desejo natural
não se ordena a um fim extrínseco, mas à perfeição própria da natureza. Logo, a
sabedoria é desejável por si mesma.
Respondeo.
Deve-se dizer que a sabedoria é, por excelência, desejável por si mesma, porque
é a perfeição suprema do intelecto e a mais nobre operação da alma racional.
Com efeito, todo ser é naturalmente movido para a sua perfeição, e a perfeição do intelecto consiste em conhecer a verdade. Ora, a sabedoria é o conhecimento das causas primeiras e do princípio último de todas as coisas, e, portanto, é o termo natural de todo o movimento do conhecer. Assim, quem atinge a sabedoria alcança o repouso próprio do intelecto, que nada mais busca além do que é o princípio de tudo.
A sabedoria é desejável por si porque une o intelecto àquilo que é mais digno de ser conhecido — o ser supremo e o bem absoluto. E, como o conhecimento do primeiro princípio não se ordena a nada além de si mesmo, mas é fim de todo o conhecer, segue-se que a sabedoria, que consiste precisamente nesse conhecimento, é desejável por si mesma.
Além disso, há dois tipos de bens: os que são úteis, e os que são desejáveis em si mesmos. Os bens úteis conduzem a outro fim; os bens desejáveis em si são o próprio fim. Ora, o conhecimento das causas segundas é útil, porque serve à ação e à técnica; mas o conhecimento das causas primeiras é fim em si mesmo, porque nele o intelecto encontra o repouso da verdade.
Por isso, Aristóteles diz que a sabedoria é “a mais livre das ciências”, porque é buscada não por utilidade, mas por amor à verdade. A sabedoria é, assim, a única ciência que se basta a si mesma, pois seu objeto é o que há de mais perfeito, e seu ato é o mais perfeito entre todos os atos do homem.
Também deve-se dizer que, enquanto as ciências inferiores têm por fim o bem humano ou material, a sabedoria tem por fim o bem divino, que é a verdade absoluta. Logo, ela é desejável por si, porque nada há acima dela que possa ser seu fim ou sua recompensa.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora todo conhecimento tenha um objeto distinto de si, a sabedoria difere dos demais porque o objeto que ela contempla é o próprio fim último do conhecer. Assim, ela não se ordena a outro bem, mas repousa no próprio bem que conhece.
2. À segunda, responde-se que o bem é, de fato, o fim de toda operação, mas o bem da inteligência é a verdade. Ora, a sabedoria é o conhecimento mais perfeito da verdade, e, portanto, o seu bem próprio é intrínseco. Assim, ela é desejável por si, não por causa de outro bem, mas porque é o bem da inteligência em ato.
3. À terceira, deve-se dizer que a bem-aventurança e a sabedoria não se distinguem senão quanto ao sujeito. Pois, na bem-aventurança, o homem goza da verdade que a sabedoria lhe faz conhecer; e, portanto, a sabedoria é a própria forma da bem-aventurança. Assim, dizer que a sabedoria é desejável por causa da bem-aventurança é o mesmo que dizer que é desejável por causa de si mesma.
Conclusão.
A sabedoria é desejável por si mesma, porque é a perfeição última do intelecto
e o fim de toda a vida racional. É o bem mais puro e o mais livre, pois nada se
busca além dela; nela, o intelecto encontra o repouso, a verdade e a
participação do divino. Assim, quem ama a sabedoria não deseja outra recompensa
senão possuí-la, porque nela se consuma o próprio ato de ser inteligente.
Quaestio XIV — Utrum studium metaphysicae pertineat ad perfectionem hominis
(Se o estudo da metafísica pertence à perfeição do homem)
Objeções.
1. Parece que o estudo da metafísica não pertence à perfeição do homem. Pois a perfeição do homem está em conformidade com sua natureza, e a natureza humana é composta de corpo e alma. Ora, a metafísica é ciência puramente especulativa, que não contribui para a conservação do corpo nem para a ordenação das ações humanas. Logo, não pertence à perfeição do homem, mas é algo supérfluo e distante da vida prática.
2. Além disso, a perfeição de cada coisa consiste em atingir o fim para o qual foi criada. Ora, o homem foi criado para agir e multiplicar as obras de justiça e virtude, e não para investigar o que excede sua capacidade. Portanto, o estudo da metafísica, que trata de coisas divinas e inacessíveis, não contribui para sua perfeição, mas pode desviá-lo de seu fim natural.
3. Ademais, a perfeição do homem deve ser acessível a todos os homens, pois é o termo de sua natureza comum. Ora, o estudo da metafísica é difícil e reservado a poucos, devido à sua profundidade e obscuridade. Logo, não pertence à perfeição do homem, mas é privilégio de uma minoria.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro I da Metafísica,
ensina que “o homem livre é aquele que existe para si mesmo”, e que “a
sabedoria é a ciência mais livre, porque é buscada apenas por si”. Ora, a
liberdade perfeita é sinal de perfeição. Portanto, o estudo da metafísica,
sendo o mais livre de todos, pertence à perfeição do homem.
Respondeo.
Deve-se dizer que o estudo da metafísica pertence, em grau supremo, à perfeição
do homem, porque o homem é o único ser do mundo visível ordenado à contemplação
da verdade universal.
Com efeito, toda criatura atinge sua perfeição quando realiza o fim próprio de sua natureza. As coisas corporais buscam a integridade de sua forma; os seres vivos, a conservação de sua espécie; os animais, o movimento e o instinto. O homem, porém, possui o intelecto, que é capaz de conhecer o ser e a causa de todas as coisas. Assim, sua perfeição não consiste no agir corporal, mas no conhecer verdadeiro e na contemplação do princípio supremo.
Ora, a metafísica é a ciência que conduz o intelecto ao conhecimento das causas primeiras e do ser enquanto ser. Nela o homem atinge o termo de sua capacidade racional, pois contempla o princípio de onde tudo procede e para onde tudo se ordena. Portanto, como o ato perfeito do homem é o ato do intelecto, e o ato mais alto do intelecto é a contemplação do divino, segue-se que o estudo da metafísica é o ato mais perfeito da natureza humana.
Além disso, a perfeição do homem não está apenas em possuir o conhecimento, mas em ordenar sua vida segundo a verdade conhecida. Ora, a metafísica, ao mostrar a ordem do ser e das causas, ensina também a ordem do fim e da hierarquia dos bens, elevando o homem a uma visão reta e universal da realidade. Por isso, ela não é apenas contemplação, mas princípio de toda sabedoria prática e moral, porque ilumina a razão sobre o sentido do todo.
E porque o homem é imagem de Deus segundo a inteligência, ele se torna tanto mais perfeito quanto mais conhece a verdade divina. Assim, ao estudar a metafísica, o homem participa, na medida de sua natureza, da luz do intelecto divino. Por isso, os antigos chamaram a sabedoria “assimilação do homem a Deus na medida do possível”.
Logo, o estudo da metafísica é o exercício supremo da razão e a via pela qual o homem atinge sua perfeição natural, porque nele a alma humana se une ao princípio de todas as coisas pelo conhecimento.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a perfeição do homem não se reduz à conservação do corpo, mas ao aperfeiçoamento do intelecto, que é sua parte superior. A metafísica, embora não sirva às necessidades corporais, serve à nobreza da alma, e, portanto, mais que qualquer outra ciência, pertence à perfeição humana.
2. À segunda, responde-se que o homem foi criado não apenas para agir, mas para conhecer e ordenar suas ações segundo a razão. A ação sem contemplação é imperfeita, porque carece de fim inteligido. Assim, o estudo da metafísica não desvia o homem de seu fim, mas o conduz ao conhecimento do fim último, que é o próprio Deus.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora nem todos possam compreender plenamente as profundezas da metafísica, todos podem participar de sua luz segundo a medida de sua capacidade. Pois a perfeição humana não exige igualdade de ciência, mas a ordenação reta da mente à verdade. Assim, mesmo aquele que busca a verdade participa, de algum modo, da perfeição da sabedoria.
Conclusão.
O estudo da metafísica pertence essencialmente à perfeição do homem, porque o
homem é ser racional, ordenado à verdade. Pela metafísica, o intelecto atinge o
seu termo natural, contemplando o ser em sua causa primeira e reconhecendo em
Deus o fundamento de toda realidade. Assim, na medida em que conhece o
princípio e o fim de todas as coisas, o homem realiza sua própria natureza e se
aproxima de sua semelhança com o divino.
LIBER SECUNDUS — DE PRINCIPIIS ENTIUM
(Livro Segundo — Sobre os Princípios dos Entes)
1.
Utrum
principia rerum naturalium et divinarum sint eadem.
Se os princípios das coisas
naturais e das coisas divinas são os mesmos.
2.
Utrum
forma et materia sint principia universalia entium.
Se a forma e a matéria são
princípios universais dos entes.
3.
Utrum
ex materia et forma fiat unum ens.
Se da matéria e da forma
resulta um ente uno.
4.
Utrum
principium formae sit actus.
Se o princípio da forma é o
ato.
5.
Utrum
materia sit potentia pura.
Se a matéria é pura potência.
6.
Utrum
materia possit esse causa sui.
Se a matéria pode ser causa de
si mesma.
7.
Utrum
materia sit infinita secundum potentiam.
Se a matéria é infinita
segundo a potência.
8.
Utrum
principium formae sit finis.
Se o princípio da forma é o
fim.
9.
Utrum
forma sit nobilior materia.
Se a forma é mais nobre que a
matéria.
10. Utrum forma sit causa efficiens.
Se a forma é causa eficiente.
11. Utrum forma det esse materiae.
Se a forma dá o ser à matéria.
12. Utrum forma sit primum principium motus.
Se a forma é o primeiro
princípio do movimento.
13. Utrum forma sit actus secundus respectu
materiae.
Se a forma é ato segundo em
relação à matéria.
14. Utrum universalia sint ante res, in
rebus vel post res.
Se os universais estão antes
das coisas, nas coisas, ou depois das coisas.
15. Utrum formae sint separatae ab
individuis.
Se as formas estão separadas
dos indivíduos.
16. Utrum principia entium sint quatuor.
Se os princípios dos entes são
quatro.
17. Utrum causa finalis sit principium
primum.
Se a causa final é o primeiro
princípio.
18. Utrum principia entium habeant ordinem
inter se.
Se os princípios dos entes
possuem ordem entre si.
19. Utrum causa finalis moveat efficientem.
Se a causa final move a
eficiente.
20. Utrum materia sit principium
individuationis.
Se a matéria é o princípio de
individuação.
Quaestio I — Utrum principia rerum naturalium et divinarum sint eadem
(Se os princípios das coisas naturais e das coisas divinas são os mesmos)
Objeções.
1. Parece que os princípios das coisas naturais e das coisas divinas são os mesmos. Pois toda ciência é una em razão do sujeito e do método. Ora, a metafísica trata tanto das coisas naturais quanto das divinas, porque ambas são entes, e o ente é o sujeito desta ciência. Logo, se o sujeito é um, também devem ser os princípios, de modo que os princípios das coisas naturais e das coisas divinas são os mesmos.
2. Ademais, toda diferença de princípios deve proceder da diferença de causas. Ora, o que é comum a todas as coisas, como o ser, não tem diferença de causa, porque a causa do ser enquanto ser é a mesma em todas as coisas. Portanto, também os princípios das coisas naturais e divinas, enquanto entes, devem ser idênticos.
3. Além disso, aquilo que é causa universal deve ter princípios universais idênticos em todos os seus efeitos. Ora, Deus é causa universal tanto das coisas naturais quanto das divinas. Logo, se o princípio das coisas divinas e naturais provém do mesmo Deus, também os princípios dessas coisas devem ser os mesmos.
4. Ademais, a unidade do universo exige uma harmonia e uma conexão entre todas as ordens do ser. Ora, tal unidade não subsistiria se houvesse diversidade nos princípios primeiros. Logo, deve-se admitir que os princípios das coisas naturais e divinas são os mesmos.
Em contrário (Sed contra).
Diz Aristóteles, no livro II da Metafísica, que “há uma diferença entre o ser que é movido e o ser imóvel, e entre o ser corruptível e o incorruptível”. Ora, se há diferença no modo de ser, há também diferença nos princípios, porque os princípios seguem a natureza das coisas. Portanto, os princípios das coisas naturais e das coisas divinas não são os mesmos.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que os princípios das coisas naturais e das coisas divinas são diversos, não por contrariedade, mas por ordem e eminência de causalidade.
Com efeito, a diferença entre as coisas naturais e as divinas consiste em que as naturais são compostas de potência e ato, e dependem do movimento e da matéria, ao passo que as divinas são ato puro, simples e imutável. Ora, onde há diversidade no modo de ser, deve haver também diversidade no modo de principiar. Pois os princípios são proporcionados à natureza das coisas que deles procedem.
Nas coisas naturais, os princípios são compostos — a matéria como sujeito em potência, e a forma como ato determinante; e há ainda a causa eficiente, que introduz a forma na matéria, e a causa final, que ordena o movimento. Mas nas coisas divinas, que são imateriais e puras atualidades, não há composição de matéria e forma, nem movimento que exija causa eficiente ou final extrínseca. Nelas, os princípios coincidem com a própria essência: o que é princípio é também aquilo que é, porque nelas não há distinção entre ser, essência e operação.
Daí resulta que os princípios das coisas naturais são multiplicados e compostos, enquanto os das coisas divinas são únicos e simples. E, contudo, não se pode dizer que sejam absolutamente diversos, porque os princípios inferiores participam dos superiores segundo a proporção de sua ordem. Assim, o ato e a potência das coisas naturais têm semelhança analógica com o ato puro das coisas divinas, e a forma e a matéria nas criaturas refletem, de modo limitado, a causalidade exemplar e eficiente que em Deus é una e simples.
Portanto, há identidade de nome e semelhança de razão, mas não identidade de essência nem de modo. Os princípios das coisas naturais são dependentes, compostos e finitos; os das coisas divinas, independentes, simples e infinitos.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora o sujeito da metafísica seja o ente enquanto ente, não é necessário que os princípios de todas as suas partes sejam os mesmos. Pois a unidade do sujeito se dá por analogia e não por univocidade; assim, o ser se diz de muitos modos, e os princípios se diversificam conforme esses modos.
2. À segunda, responde-se que a causa do ser enquanto ser é a mesma apenas por participação, mas não por identidade formal. Pois o ser do ente móvel é participado e limitado, enquanto o ser do ente divino é absoluto e pleno. Logo, a semelhança na causa não implica identidade nos princípios.
3. À terceira, diz-se que Deus é causa universal de todos os entes, mas causa de modos diversos: como eficiente e exemplar nas coisas naturais, e como essência e fim nas coisas divinas. Assim, embora a origem última seja uma, a via de causalidade e o modo de principiar diferem.
4. À quarta, responde-se que a unidade do universo não exige identidade de princípios, mas apenas ordenação deles a um mesmo fim. Assim como em uma casa há diversos materiais e causas ordenados a uma mesma forma arquitetônica, assim também na totalidade do ser há diversos princípios, ordenados pela sabedoria divina a uma mesma perfeição universal.
Conclusão.
Os princípios das coisas naturais e divinas não são os mesmos segundo o modo nem segundo a essência, mas somente por analogia de razão e por ordenação ao mesmo fim supremo. Nas coisas naturais, os princípios são compostos, múltiplos e dependentes; nas divinas, simples, únicos e eternos. Por isso, toda filosofia que confunde esses dois níveis destrói a distinção entre o ser participado e o ser absoluto — e, com ela, a própria possibilidade de uma metafísica verdadeira.
Quaestio II — Utrum forma et materia sint principia universalia entium
(Se a forma e a matéria são princípios universais dos entes)
Objeções.
1. Parece que a forma e a matéria são princípios universais de todos os entes. Pois tudo o que existe é ou ato ou potência, como ensina Aristóteles no livro IX da Metafísica. Ora, a matéria é potência e a forma é ato. Logo, tudo o que é ente deve provir de matéria e forma como de princípios universais.
2. Além disso, toda composição implica dois elementos ordenados: um que recebe e outro que determina. Ora, tanto os entes naturais quanto os inteligíveis compõem-se de potência e ato. Logo, a matéria e a forma, que correspondem a potência e ato, são princípios universais de todos os entes.
3. Ademais, aquilo que é comum a muitos segundo a razão da causa é universal. Ora, a matéria e a forma são causas comuns de todos os entes compostos, e mesmo nas substâncias espirituais há algo que faz o papel de potência e algo que faz o papel de ato. Logo, a matéria e a forma são princípios universais de todos os entes.
4. Além disso, se a forma e a matéria não fossem princípios universais, haveria algo que existisse sem nenhuma potência ou ato. Mas isso é impossível, exceto no próprio Deus, que é ato puro. Logo, em todas as criaturas há, de algum modo, matéria e forma; portanto, são princípios universais.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro VIII da Metafísica que “os seres separados não têm matéria”. Ora, os seres separados são verdadeiros entes. Logo, nem toda coisa tem matéria, e, portanto, a matéria e a forma não são princípios universais de todos os entes.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma e a matéria não são princípios universais de todos os entes, mas apenas dos entes compostos de potência e ato segundo o modo da natureza corporal.
Com efeito, o nome de “matéria” não se aplica univocamente a tudo o que tem potência, mas apenas àquilo que é sujeito para receber a forma substancial. Ora, nas substâncias imateriais, como as inteligências separadas, não há sujeito que receba forma, pois nelas o ser e a forma coincidem; elas não são compostas de matéria e forma, mas são formas subsistentes.
No entanto, a razão de potência e ato se encontra em todos os entes fora de Deus. Pois mesmo os seres espirituais, embora não compostos de matéria e forma, possuem algo que é potência em relação a um ato superior — por exemplo, a inteligência angélica, que é potência em relação à visão beatífica, e o intelecto humano, que é potência em relação ao ato de compreender.
Assim, deve-se distinguir:
· a matéria e a forma, enquanto princípios físicos, pertencem apenas aos entes corpóreos e naturais;
· a potência e o ato, enquanto princípios metafísicos, estendem-se a todos os entes criados.
Portanto, a confusão dos antigos, que tomavam “matéria” e “potência” como equivalentes, procede da ignorância dessa distinção. Pois, embora toda potência seja algo de imperfeito, nem toda potência é matéria.
A universalidade metafísica dos princípios não exige identidade material, mas semelhança proporcional. Assim, o que é potência numa ordem pode ser ato em relação a uma inferior. A alma é ato do corpo, mas potência em relação ao intelecto divino. Logo, a matéria e a forma, no sentido estrito, não são universais de todos os entes, mas apenas exemplares de uma estrutura ontológica que se repete analogicamente em toda a hierarquia do ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles fala da potência e do ato como princípios universais, não da matéria e da forma segundo o gênero da física. Pois a matéria é potência corpórea, e a forma é ato que informa matéria; mas há outras potências e atos fora desse âmbito.
2. À segunda, responde-se que, embora toda composição pressuponha algo que recebe e algo que determina, nem todo receptor é matéria nem todo determinante é forma. Nas substâncias espirituais, o que recebe é uma potência imaterial, e o que determina é o próprio ato de ser.
3. À terceira, deve-se dizer que a analogia de causalidade não implica universalidade unívoca. Pois a matéria e a forma causam nos corpos de um modo, e a potência e o ato nas substâncias superiores de outro. O universal verdadeiro é apenas segundo proporção, não segundo gênero.
4. À quarta, responde-se que apenas Deus é ato puro, mas disso não se segue que toda criatura tenha matéria física. O que se segue é que toda criatura tem composição de ato e potência, o que se realiza de diversos modos conforme a natureza de cada ente.
Conclusão.
A forma e a matéria, enquanto princípios físicos, não são universais a todos os entes, mas pertencem somente às coisas compostas e corpóreas. Todavia, o que elas significam — a relação de ato e potência — é universal, pois em toda criatura há alguma composição e imperfeição em relação ao ato puro de Deus. Assim, a metafísica reconhece na matéria e na forma os símbolos primeiros da estrutura do ser criado: potência que deseja o ato, e ato que dá ser à potência.
Quaestio III — Utrum ex materia et forma fiat unum ens
(Se da matéria e da forma resulta um ente uno)
Objeções.
1. Parece que da matéria e da forma não resulta um ente uno. Pois o que é composto de dois princípios diversos é múltiplo por natureza, a menos que haja um terceiro que os una. Ora, a matéria e a forma são princípios contrários e distintos, e nada se acrescenta a elas para uni-las. Logo, delas não pode resultar um ente verdadeiramente uno.
2. Além disso, a unidade do ser é o resultado da simplicidade do ato. Ora, na composição de matéria e forma há diversidade essencial: uma é potência, outra é ato. Portanto, dessa composição não pode resultar uma unidade perfeita, mas apenas uma unidade de agregação ou de ordem, como no conjunto de partes distintas.
3. Ademais, tudo o que é uno tem uma única operação. Ora, a operação pertence à forma e não à matéria. Logo, a forma e a matéria não constituem uma unidade verdadeira, mas uma relação acidental, na qual a forma domina e a matéria apenas serve de sujeito passivo.
4. Além disso, se da matéria e da forma se fizesse um ente uno, ou esse uno seria a matéria, ou seria a forma, ou seria algo composto de ambos. Ora, não pode ser a matéria, porque é potência; nem a forma, porque é ato distinto; nem algo composto de ambos, pois nada se acrescenta a eles que constitua a unidade. Logo, não se faz ente uno a partir de matéria e forma.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles afirma no livro VIII da Metafísica: “Cada uma das coisas compostas é uma, não por acidente, mas por natureza, e o que é por natureza é aquilo cuja forma e matéria constituem um só ser.” Logo, da matéria e da forma resulta um ente uno.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que da matéria e da forma resulta um ente uno, não por adição de um terceiro termo, mas pela unidade do ato de ser que a forma comunica à matéria.
Com efeito, a matéria e a forma não são dois entes em ato, mas dois princípios de um mesmo ente: a matéria enquanto potência para o ser, e a forma enquanto ato que atualiza essa potência. A união deles não é como a justaposição de partes exteriores, mas como a passagem da potência ao ato, pela qual o ser se realiza plenamente.
A forma não é algo que venha de fora à matéria como corpo estranho, mas o princípio intrínseco que determina sua essência e faz dela um sujeito determinado. Assim, quando a forma informa a matéria, o que surge não é um conjunto de dois entes, mas um só ente que subsiste pela unidade do ser.
A causa dessa unidade é o próprio ato de ser (esse), que pertence primariamente à forma e secundariamente à matéria enquanto informada. Pois a forma, ao dar o ser, não conserva a distinção essencial entre os princípios, mas os integra na unidade da substância. Por isso se diz que “o ser é o que há de mais uno em cada coisa”, porque é ele que unifica a potência e o ato em uma só realidade.
A distinção entre matéria e forma permanece apenas segundo a razão (secundum rationem), não segundo o ser (secundum esse). Com efeito, a matéria não tem ser senão pela forma, e a forma, embora possa ser considerada em si, não é substância completa senão enquanto informa a matéria. Assim, o ente é uno essencialmente, e composto apenas na origem de seus princípios.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria e a forma não são unidas por um terceiro termo, porque o próprio ser, que a forma comunica, é o vínculo intrínseco de sua união. Portanto, o que era potência e ato distintos torna-se um só ente pela comunicação do ser formal.
2. À segunda, responde-se que a diversidade de potência e ato não impede a unidade do ente, mas a constitui. Pois a potência não é um ser distinto do ato, mas uma disposição ordenada a ele. Assim, o ente composto é uno pela unidade do ato, embora duplo em princípio.
3. À terceira, diz-se que a operação pertence à forma como princípio formal, mas pertence também à substância composta enquanto agente. O calor atua pelo fogo inteiro, e não apenas pela forma do fogo; assim, a operação pertence ao composto enquanto uno, e não apenas a um de seus princípios.
4. À quarta, deve-se dizer que o ente composto é realmente algo distinto da matéria e da forma enquanto tais, não porque se lhes acrescente um terceiro ente, mas porque resulta da união intrínseca de ambos sob um mesmo ato de ser. O composto é o todo subsistente que tem ser por si, enquanto seus princípios têm ser apenas por participação.
Conclusão.
Da matéria e da forma resulta um ente uno, porque a forma dá à matéria o ser que as unifica. A unidade do composto não é acidental, mas essencial, fundada na comunicação do ato que faz da potência e do ato dois princípios de uma só realidade. Assim, o ente composto é uno no ser, duplo na razão, múltiplo na potência, mas simples na existência, porque tudo o que nele é potência recebe do ato o mesmo ser pelo qual tudo subsiste.
Quaestio IV — Utrum principium formae sit actus
(Se o princípio da forma é o ato)
Objeções.
1. Parece que o princípio da forma não é o ato. Pois o ato supõe a forma, e não o contrário. A forma é aquilo pelo qual algo é em ato, e não o que tem ato como princípio anterior. Logo, se o princípio da forma fosse o ato, haveria ato antes da forma, o que é impossível.
2. Além disso, toda forma é princípio de ato e não efeito dele. Ora, o princípio e o efeito não se invertem. Logo, se a forma é o princípio do ato, não pode o ato ser o princípio da forma.
3. Ademais, o ato é perfeição, e a forma é aquilo pelo qual a coisa é perfeita. Ora, nada é causa de si mesmo. Se, pois, o ato fosse o princípio da forma, a forma seria causa de si, já que é ato em potência. Logo, o princípio da forma não é o ato.
4. Além disso, a matéria é potência e tende à forma como ao seu ato. Ora, se o ato fosse o princípio da forma, ele não estaria na matéria, mas antes dela. Portanto, a matéria não poderia ser atualizada pela forma, porque aquilo que é princípio da forma seria anterior tanto à forma quanto à matéria.
Em contrário (Sed contra).
Diz Aristóteles, no livro IX da Metafísica: “O ato é anterior à potência, e a forma é ato.” Ora, aquilo que é anterior segundo a natureza é princípio. Logo, o ato é princípio da forma.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio da forma é o ato, não como princípio extrínseco ou eficiente, mas como razão intrínseca e exemplar do ser.
Com efeito, a forma é ato em relação à matéria, e, portanto, aquilo que dá razão de forma deve ser ato em relação ao que é apenas potência. O que significa que o ato é o princípio formal de toda forma, enquanto toda forma é perfeição que participa de um ato superior.
Assim como a matéria tende à forma, a forma tende ao ato pleno que é o ser (esse). Pois nenhuma forma é ato absoluto, mas ato participado; e o ser, que é o ato de todos os atos e perfeição de todas as formas, é o princípio primeiro pelo qual a forma é aquilo que é.
Portanto, o ato é princípio da forma, porque toda forma é determinada e sustentada pelo ser, que é o ato último e universal. A forma é ato secundário em relação à matéria, mas potência em relação ao ser absoluto; e, nessa medida, o ato é o princípio da forma enquanto a forma recebe do ser sua atualização e consistência.
De outro modo, pode-se dizer que o ato é princípio da forma segundo a causa exemplar, pois toda forma natural é semelhança de uma forma inteligível existente no intelecto divino ou no intelecto do agente. Nesse sentido, o ato primeiro — o intelecto divino — é princípio de todas as formas, porque nelas se espelha e as produz conforme sua razão exemplar.
Assim, há dois modos de entender que o ato é princípio da forma:
1. Segundo o ser (esse): o ser é ato que dá existência à forma.
2. Segundo o intelecto: a razão exemplar da forma é um ato primeiro, inteligível e simples.
Em ambos os sentidos, o ato precede a forma — não no tempo, mas na natureza e na causalidade.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ato não é anterior à forma segundo o tempo, mas segundo a natureza, enquanto é o fundamento de toda forma. A forma não é produzida por um ato distinto em si, mas participa do ato universal do ser, que é anterior a toda determinação formal.
2. À segunda, responde-se que a forma é princípio de ato apenas em relação à matéria, não absolutamente. Enquanto comunica ato à matéria, ela o recebe de um princípio mais alto. Portanto, é simultaneamente ato e potência: ato para o inferior, potência para o superior.
3. À terceira, deve-se dizer que o ato é princípio da forma não como efeito eficiente, mas como razão de perfeição. Assim, não se diz que a forma é causa de si, mas que é derivação participada de um ato mais alto que a fundamenta.
4. À quarta, responde-se que o ato que é princípio da forma não está na matéria como princípio material, mas acima dela como ato universal e fonte de ser. Assim como a luz não está contida nas cores, mas as torna visíveis, assim também o ato universal não está formalmente na matéria, mas a atualiza mediante a forma.
Conclusão.
O princípio da forma é o ato, porque toda forma é ato participado que recebe sua perfeição do ato universal do ser. O ato precede a forma segundo a ordem da natureza e da causalidade, e nela se manifesta como luz da atualidade sobre a potência da matéria. Assim, o ato é a fonte de toda forma, a forma é o espelho do ato, e a matéria o termo de sua comunicação.
Quaestio V — Utrum materia sit potentia pura
(Se a matéria é pura potência)
Objeções.
1. Parece que a matéria não é pura potência. Pois toda potência é ordenada a algum ato, e aquilo que é ordenado a um ato participa de algum modo desse ato. Ora, a matéria participa da forma, pois é capaz de recebê-la e de conservar o ente composto. Logo, não é pura potência, mas tem em si algo de ato.
2. Além disso, a matéria é princípio de individuação. Ora, o que é princípio deve possuir algum ser atual, senão não poderia causar nada. Logo, a matéria tem algum ato pelo qual é princípio de individuação e, portanto, não é pura potência.
3. Ademais, tudo o que é substância tem algum ser atual. Ora, a matéria é substância, pois é parte essencial da substância composta. Logo, tem ato e não é pura potência.
4. Além disso, se a matéria fosse pura potência, não poderia existir senão em ato, isto é, unida à forma. Ora, a tradição dos filósofos sustenta que a matéria prima subsiste em potência mesmo sem forma, ao menos segundo o intelecto. Logo, tem algum ser em si e, por conseguinte, não é potência pura.
Em contrário (Sed contra).
Diz Aristóteles, no livro IX da Metafísica: “A matéria é em potência o que a forma é em ato.” Ora, o que é em potência é pura potência, pois o ato está inteiramente do lado da forma. Logo, a matéria é pura potência.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a matéria é pura potência, porque nela não há nenhum ato próprio, mas somente uma aptidão ordenada ao ato que vem da forma.
Com efeito, a matéria é aquilo pelo qual a coisa é capaz de ser, e não aquilo pelo qual é. O ser atual pertence à forma, e a matéria o possui apenas enquanto informada. Por si mesma, ela não tem ser em ato, mas apenas a capacidade de recebê-lo.
Se houvesse na matéria algum ato próprio, ela seria algo em ato antes da forma; mas isso destruiria o fundamento da composição, pois o ato não pode ser recipiente de outro ato senão enquanto é potência. Portanto, é necessário afirmar que a matéria, enquanto princípio primeiro da geração e da corrupção, é pura potência — desprovida de toda forma, determinação e atualidade.
Deve-se, porém, entender essa pureza de modo relativo, não absoluto. Pois, embora a matéria seja pura potência quanto ao ser formal, não é nada fora da ordem ao ser. Ela não é o nada, mas o fundamento real da capacidade de receber. A pura potência, neste sentido, não é uma privação absoluta, mas uma disposição para o ato.
Assim, a matéria tem uma dupla relação:
1. Em si mesma, é potência pura, pois nada possui de atualidade;
2. Em ordem à forma, é potência relativa, pois tende naturalmente ao ato que a completará.
É por isso que os antigos a chamavam subiectum in potentia ad omnes formas, sujeito em potência para todas as formas. E justamente porque é potência pura, ela é o princípio da mutabilidade e da corrupção, pois aquilo que não é ato em si pode tornar-se outro pela recepção do ato alheio.
Logo, a matéria é pura potência, não porque seja o nada, mas porque é o limite extremo do ser criado: aquilo que está totalmente aberto ao ato, mas que nada tem de ato em si.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria participa do ato somente pela forma, e não por si mesma. Sua ordenação ao ato não é ato, mas capacidade; não é participação atual, mas potencial. Assim como o espelho é capaz de refletir a luz, mas não é luz por si, assim também a matéria é potência aberta ao ser, mas sem ser em ato.
2. À segunda, responde-se que a matéria é princípio de individuação não por ato próprio, mas por privação e limitação. Pois o ato universal da forma é individuado pela potência passiva da matéria, que o restringe a um aqui e agora. O princípio de individuação não exige ato positivo, mas apenas a aptidão para receber ato sob condições determinadas.
3. À terceira, deve-se dizer que a matéria, em si, não é substância completa, mas princípio de substância. Ela é substância apenas in potentia, não in actu, e por isso não possui ser senão enquanto informada. A substância composta, sim, é o ente em ato; a matéria é seu fundamento de possibilidade.
4. À quarta, responde-se que a matéria não pode existir separadamente da forma em realidade, mas apenas segundo a razão (secundum rationem). O intelecto pode concebê-la sem forma, abstraindo o ato, mas tal concepção é mental, não real. Por isso, não se deve concluir que a matéria tenha ser atual sem forma.
Conclusão.
A matéria é pura potência, porque não possui nenhum ato próprio, mas apenas a capacidade de recebê-lo. Ela é o princípio de possibilidade, o sujeito da mutação e o receptáculo universal das formas. Em si, nada é; em ordem ao ato, pode ser tudo. Assim, a pura potência é o limite inferior do ser, como o ato puro é o limite superior: ambos extremos do mesmo eixo ontológico que define toda a hierarquia do ente.
Quaestio VI — Utrum materia possit esse causa sui
(Se a matéria pode ser causa de si mesma)
Objeções.
1. Parece que a matéria pode ser causa de si mesma. Pois aquilo que é princípio de todos os entes é, de algum modo, causa de todos. Ora, a matéria é princípio de todos os entes corpóreos. Logo, deve ser também causa de si mesma, já que nenhuma outra coisa a precede como princípio de sua existência.
2. Além disso, toda causa é ordenada a um efeito que, de certo modo, permanece nela. Ora, a matéria permanece idêntica sob todas as mudanças e gerações; ela é o que subsiste enquanto as formas vêm e vão. Logo, deve ter em si mesma a razão de sua permanência e, portanto, ser causa de si mesma.
3. Ademais, a matéria é incorruptível, segundo Aristóteles, porque toda corrupção é a perda da forma, e a matéria nunca perde totalmente a potência para receber novas formas. Ora, o que é incorruptível por si deve ter em si a razão de sua conservação. Logo, a matéria é causa de si mesma.
4. Além disso, nada pode ser movido se não tiver um princípio intrínseco de movimento ou de permanência. Ora, a matéria está sempre em movimento potencial, sendo o sujeito de toda mudança. Portanto, possui em si o princípio de tal movimento, e, assim, é causa de si.
Em contrário (Sed contra).
Diz Aristóteles, no livro II da Física: “Nenhuma coisa é causa de si mesma, porque seria anterior e posterior a si mesma, o que é impossível.” Ora, a matéria, se fosse causa de si, seria anterior a si enquanto causa e posterior enquanto causada. Logo, não pode ser causa de si mesma.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a matéria não pode, de modo algum, ser causa de si mesma, nem segundo o ser (esse), nem segundo a forma, nem segundo o movimento, porque toda causalidade exige anterioridade, e nada pode ser anterior a si mesmo.
Com efeito, a matéria é pura potência, e toda causa é ato. Pois causar é agir, e agir pertence ao que é em ato. Ora, aquilo que é pura potência nada tem de atual, e, portanto, não pode agir nem produzir o próprio ser.
A matéria é princípio apenas no gênero da recepção, não no da produção. Ela é princípio passivo e não ativo: é o que recebe a forma, e não o que a dá; é o que é movido, e não o que move. Assim, embora seja chamada “princípio das coisas”, é princípio de um modo analógico e relativo, não absoluto.
Deve-se distinguir entre causa e sujeito:
· a causa tem ser no efeito e o produz;
·
o
sujeito tem ser com o efeito e o sustenta.
A matéria é sujeito, não causa: ela não produz a si, mas é o que permanece sob
a produção de outros.
A ilusão de atribuir-lhe causalidade de si provém da confusão entre permanência e produção. A matéria permanece sob a sucessão das formas, mas essa permanência não vem de si — é efeito da ordem divina que conserva o ser da substância corpórea e mantém o sujeito em potência contínua.
Por isso, a matéria depende sempre de uma causa exterior: de Deus, como causa primeira e conservadora; e das formas, como causas formais e atualizadoras. A matéria, em si, não é capaz de se dar o ser, nem de se conservar.
Logo, é impossível que a matéria seja causa de si mesma, porque a causalidade exige ato, e a matéria é inteiramente potência.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria é princípio de todas as coisas apenas no gênero da potência, não da causalidade eficiente. Ela não dá ser, mas recebe o ser. O primeiro princípio que dá ser é o ato, não a potência; e o ato primeiro é Deus, de quem procede a própria existência da matéria.
2. À segunda, responde-se que a permanência da matéria sob as mudanças não se deve a si mesma, mas à causa primeira que conserva o ser do universo. A matéria permanece porque é sustentada pelo ato divino, não porque tenha em si razão de subsistência.
3. À terceira, deve-se dizer que a incorruptibilidade da matéria não significa que ela se conserve por si, mas apenas que não tem princípio interno de corrupção. Ela não se destrói porque não é forma, mas potência; e, contudo, sua existência depende da causa primeira que a mantém.
4. À quarta, responde-se que a matéria não possui princípio de movimento em si, mas é o sujeito passivo de todo movimento. O princípio do movimento está na forma e na causa eficiente, não na potência. A matéria é o “onde” do movimento, não o “de onde” ele procede.
Conclusão.
A matéria não é causa de si mesma, porque é potência pura e, por isso, incapaz de ação. Ela é princípio passivo e sujeito de recepção, não princípio ativo de produção. Tudo o que nela há de ser e de permanência vem do ato, e o ato primeiro é Deus, cuja causalidade mantém a matéria e a ordena a todas as formas. Assim, a matéria é o fundamento da mutabilidade, mas sua existência depende inteiramente do ser que a transcende.
Quaestio VII — Utrum materia sit infinita secundum potentiam
(Se a matéria é infinita segundo a potência)
Objeções.
1. Parece que a matéria não é infinita segundo a potência. Pois o infinito não pode ser contido nem determinado. Ora, a matéria é sempre determinada pela forma. Logo, não pode ser infinita, mesmo quanto à potência.
2. Além disso, a potência que é ordenada a um ato determinado é também determinada por esse ato. Ora, a matéria está ordenada a formas finitas e determinadas, e não pode receber senão aquelas que a natureza comporta. Logo, sua potência é finita.
3. Ademais, se a matéria fosse infinita quanto à potência, poderia receber infinitas formas sucessivamente. Mas isso é impossível, porque as formas são finitas em número e espécie. Logo, a matéria é finita quanto à potência.
4. Além disso, o infinito é próprio apenas de Deus, que é ato puro e ilimitado. Ora, a matéria, sendo pura potência, é o extremo oposto do ato. Portanto, não lhe convém o infinito nem segundo o ser nem segundo a potência.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro III da Física, diz que “a matéria é infinita, não em ato, mas em potência”. Logo, há um modo legítimo de se afirmar que a matéria é infinita segundo a potência.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a matéria é infinita segundo a potência, mas não segundo o ato, porque a infinitude pertence à sua capacidade de receber e não à sua atualidade.
Com efeito, a matéria é potência pura, e a potência, enquanto tal, não tem termo em si, mas somente no ato que a determina. Assim, a matéria, considerada em si mesma, é indeterminada e ilimitada: pode receber qualquer forma, não porque possua todas, mas porque não é de si ordenada a uma só.
A infinitude da matéria, portanto, é privativa e relativa, não absoluta. Ela não é infinita como o todo divino que contém toda perfeição, mas como o indeterminado que carece de limite e medida.
Essa infinitude se manifesta de dois modos:
1. Quanto à recepção de formas, porque nada impede que a mesma matéria, ao perder uma forma, receba outra — e assim indefinidamente, pela sucessão das gerações e corrupções.
2. Quanto à divisibilidade, porque, sendo princípio da extensão corpórea, a matéria não tem em si termo último de divisão, mas pode ser sempre considerada como potência para novas partes menores.
Contudo, essa infinitude não é real, mas potencial: a matéria não contém infinitas formas nem infinitas partes, mas está apta a recebê-las sucessivamente. É uma infinitude de possibilidade, não de realização.
E como toda potência é medida pelo ato que a limita, a infinitude da matéria é sempre relativa ao ato que lhe dá forma. Em si, permanece ilimitada, mas, em cada ente determinado, é finita, porque o ato formal restringe a potência ao modo da espécie.
Assim, a matéria é infinita quanto à potência de ser — porque nada impede que possa sempre receber outro ato —, mas finita quanto ao ser atual, porque só existe sob forma e medida determinadas.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria é determinada pela forma em cada composto, mas não em si mesma. Em cada ente particular, é finita; considerada absolutamente, é infinita segundo a potência, porque não está circunscrita a uma forma, mas aberta a todas.
2. À segunda, responde-se que a matéria está ordenada às formas finitas enquanto está sob o domínio de uma natureza particular; mas, considerada segundo sua essência metafísica, é potência universal para toda forma corpórea. Assim, embora cada natureza limite sua potência, nenhuma o faz absolutamente.
3. À terceira, deve-se dizer que a matéria pode receber infinitas formas não simultaneamente, mas sucessivamente. Sua infinitude é temporal e transitiva, não formal. Ela pode ser informada por diversas formas ao longo do tempo, porque nenhuma forma a esgota totalmente.
4. À quarta, responde-se que o infinito pertence a Deus segundo a plenitude do ato; pertence à matéria segundo a carência do ato. Um é infinito por excesso, o outro por defeito. Deus é infinito porque contém toda perfeição; a matéria, porque carece de toda determinação. Assim, o mesmo nome de infinito se aplica a ambos apenas por analogia inversa.
Conclusão.
A matéria é infinita segundo a potência, porque é pura capacidade de receber o ser e a forma sem limite determinado. Sua infinitude não é positiva, mas privativa: é a infinitude da indeterminação, não da perfeição. Em cada ente particular, é limitada pela forma; em si mesma, é o campo ilimitado da possibilidade do ser criado. Assim, o infinito da matéria é o espelho invertido do infinito divino — um é plenitude de ato, o outro abismo de potência.
Quaestio VIII — Utrum principium formae sit finis
(Se o princípio da forma é o fim)
Objeções.
1. Parece que o princípio da forma não é o fim. Pois o fim é último na ordem das causas, enquanto o princípio é o primeiro. Ora, o princípio da forma é chamado princípio por prioridade de natureza. Logo, o fim e o princípio não podem coincidir na mesma realidade.
2. Além disso, o fim é aquilo em vista do qual algo é produzido; mas a forma é aquilo pelo qual algo é produzido em ato. Ora, o que é causa formal não é causa final, pois uma causa não é idêntica a outra em razão. Logo, o princípio da forma não é o fim.
3. Ademais, o fim move o agente, e o agente produz a forma. Logo, o fim precede a forma em razão e causalidade, e não coincide com ela. Portanto, o princípio da forma não pode ser o fim.
4. Além disso, há distinção entre o fim do movimento e o princípio da forma, porque o fim pertence à intenção da causa eficiente, e o princípio da forma pertence à constituição da coisa. Portanto, o princípio da forma não é o fim.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro II da Física: “A forma é o fim das coisas naturais.” Ora, o princípio da forma é aquilo em virtude do qual a forma existe. Logo, o princípio da forma é o fim.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio da forma é o fim, não segundo toda razão de causa final, mas enquanto o fim e a forma coincidem naquilo que dá o ser e a perfeição à coisa.
Com efeito, toda geração e movimento natural tendem à forma como ao termo e à perfeição do processo. Pois o movimento é o ato do ser em potência enquanto tal, e se ordena à atualização da forma. Logo, a forma é o fim do movimento, porque é aquilo em que o movimento cessa e repousa.
Mas o “princípio da forma” pode ser entendido de dois modos:
1. Como a razão formal da forma, isto é, o que faz com que a forma seja o que é;
2. Como a causa que dá origem à forma, isto é, o agente que a produz ou o exemplar segundo o qual ela é produzida.
Se o princípio da forma é tomado no primeiro sentido — como razão formal —, então ele é também o fim, porque a perfeição da coisa consiste precisamente na obtenção da forma que é seu termo natural. O que é princípio em ordem de essência é fim em ordem de geração.
Se, porém, for tomado no segundo sentido — como princípio eficiente ou exemplar —, então não é fim, mas meio para o fim. Pois o agente age por causa do fim e comunica a forma para que o fim seja alcançado.
No entanto, há uma correspondência íntima entre o fim e a forma: o fim é o bem visado, e a forma é o bem obtido. Assim, pode-se dizer que a forma é fim intrínseco, enquanto o fim movente é extrínseco. A forma é o fim interno que dá ser e completude à coisa; o fim é a intenção do agente que ordena esse ser a uma perfeição superior.
Portanto, o princípio da forma é fim, na medida em que todo princípio formal tende à perfeição e a realiza como ato último da potência. A forma é simultaneamente o princípio de ser e o termo do vir-a-ser — princípio no ser, fim no movimento.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o fim é último na execução, mas primeiro na intenção. Assim, nada impede que o mesmo termo seja princípio e fim, segundo ordens diversas: princípio quanto à essência formal, fim quanto à perfeição obtida.
2. À segunda, responde-se que, embora o fim e a forma se distingam segundo a razão de causalidade, coincidem na coisa, porque aquilo que dá o ser à substância é também o que constitui sua perfeição. Assim, a forma é formalmente a causa formal, mas materialmente é também o fim do movimento que a produz.
3. À terceira, deve-se dizer que o fim move o agente, e o agente comunica a forma; mas o fim é alcançado precisamente pela forma comunicada. Logo, a forma é o fim obtido, enquanto o fim é a intenção do agente — são diversos segundo a ordem causal, mas coincidem segundo o efeito.
4. À quarta, responde-se que o fim do movimento e o princípio da forma são distintos em razão, mas idênticos no termo: o fim do movimento é precisamente a atualização da forma, e o princípio da forma é a razão pela qual ela é desejada e alcançada.
Conclusão.
O princípio da forma é o fim, porque toda geração natural tende à forma como ao termo e à perfeição do ser. O que é princípio no ser é fim no movimento; o que dá essência é o mesmo que dá repouso. Assim, a forma é fim intrínseco de tudo o que se move e o princípio formal de tudo o que é. Nela, ato e fim se unem, e o vir-a-ser encontra seu repouso naquilo que é.
Quaestio IX — Utrum forma sit nobilior materia
(Se a forma é mais nobre que a matéria)
Objeções.
1. Parece que a forma não é mais nobre que a matéria. Pois a nobreza de cada coisa é medida pela sua duração e pela sua universalidade. Ora, a matéria permanece a mesma sob todas as mudanças, enquanto a forma vem e vai; e a matéria é comum a todas as coisas corpóreas, enquanto cada forma é restrita a uma espécie. Logo, a matéria é mais nobre do que a forma.
2. Além disso, o princípio é mais nobre que aquilo que dele procede. Ora, a matéria é o primeiro princípio de todas as coisas sensíveis, e a forma não se produz senão na matéria. Logo, a matéria é mais nobre que a forma.
3. Ademais, a forma, separada da matéria, não pode existir em realidade, enquanto a matéria, sendo incorruptível em sua potência, permanece sob todas as formas. Ora, aquilo que subsiste de modo mais permanente é mais nobre. Logo, a matéria é mais nobre que a forma.
4. Além disso, toda coisa é ordenada ao seu fim, e o fim da forma é estar na matéria, assim como o fim do agente é o paciente. Logo, a matéria é mais nobre, porque é o termo da intenção da forma.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz, no livro VIII da Metafísica: “A forma é mais nobre do que a matéria, porque é ato e perfeição.” Logo, a forma tem primazia sobre a matéria quanto à nobreza do ser.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma é mais nobre que a matéria, porque a nobreza de uma coisa se mede pelo grau de ato e de perfeição que ela possui, e a forma é o princípio de ato e perfeição na substância.
Com efeito, a matéria é potência pura, e o ato é o que dá ser à potência. Ora, o ser é o que há de mais perfeito em todas as coisas. Portanto, o que comunica o ser é mais nobre do que aquilo que apenas o recebe.
A forma é aquilo pelo qual a coisa é o que é, o que a determina no gênero, na espécie e no número. A matéria, por si, é indeterminada e sem razão de espécie. Logo, toda determinação, beleza, ordem e bondade que a coisa possui, procede da forma.
Por isso, diz Aristóteles que “a forma é causa do ser, e a matéria é causa de poder ser.” O ser em ato é mais nobre do que o poder ser, porque o poder é imperfeito e tende ao ato como ao seu bem. Assim, toda perfeição da matéria depende da forma, e nada há na matéria que não seja aperfeiçoado por ela.
Além disso, a forma é mais próxima de Deus, que é ato puro e perfeição absoluta, enquanto a matéria é o termo mais distante da divindade, sendo pura potencialidade. A hierarquia dos seres é uma gradação de formas, e não de matérias; quanto mais elevada é a forma, mais nobre é o ser.
Ainda, a forma é aquilo pelo qual as coisas imitam a bondade divina. A beleza da natureza, a ordem do universo e a inteligibilidade dos entes procedem da forma, não da matéria. Por isso, os antigos chamavam a forma de “luz do ser”, e a matéria de “sombra do ser”.
Contudo, a nobreza da forma não elimina a necessidade e dignidade da matéria, porque a perfeição do composto resulta da união de ambos. Mas essa união se dá por participação: a matéria participa da forma, e não o contrário; portanto, a forma é mais nobre como princípio do ser, e a matéria é inferior como sujeito do ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a permanência da matéria não indica nobreza, mas imperfeição, porque ela permanece a mesma justamente por carecer de ato próprio. A forma, ao contrário, é mais nobre porque dá o ser e a perfeição ao que é material, ainda que pereça acidentalmente quando se separa da matéria.
2. À segunda, responde-se que o princípio é mais nobre que o que dele procede somente quando é princípio em ato. Ora, a matéria é princípio em potência, e a forma é princípio em ato; portanto, a forma é superior.
3. À terceira, deve-se dizer que a matéria não subsiste por si, mas apenas como potência sustentada pela forma. Sua incorruptibilidade é de ordem potencial, não atual. A forma, ao contrário, é incorruptível segundo o ser formal que permanece na ordem da espécie, mesmo quando o indivíduo perece.
4. À quarta, responde-se que o fim da forma não é estar na matéria como dependente, mas aperfeiçoá-la. A forma se realiza na matéria não como serva, mas como dominadora. Assim, é o fim da matéria, e não o contrário; pois o movimento da natureza é sempre da potência ao ato, isto é, da matéria à forma.
Conclusão.
A forma é mais nobre que a matéria, porque é ato, perfeição e razão do ser. Tudo o que na matéria é ordenado, belo, verdadeiro ou bom, vem da forma. A matéria é potência, a forma é luz; a matéria é o sujeito, a forma é o princípio; a matéria é receptáculo, a forma é essência. Assim, toda a escala do ser se eleva da matéria à forma, e da forma ao puro ato, no qual a nobreza do ser se consuma.
Quaestio X — Utrum forma sit causa efficiens
(Se a forma é causa eficiente)
Objeções.
1. Parece que a forma não é causa eficiente. Pois a causa eficiente é princípio de movimento e de geração, enquanto a forma é termo do movimento e da geração. Ora, o que é termo não é princípio, mas resultado. Logo, a forma não é causa eficiente.
2. Além disso, a causa eficiente é extrínseca à coisa causada, e a forma é intrínseca à substância. Ora, o que está dentro não pode ser causa eficiente de si mesmo. Logo, a forma não é causa eficiente, mas apenas causa formal.
3. Ademais, a forma não move, mas é movida: pois é introduzida na matéria pelo agente. Ora, o que é movido não é princípio do movimento. Logo, a forma não pode ser causa eficiente.
4. Além disso, toda causa eficiente age por um fim, e a forma, sendo termo da geração, é o fim alcançado pela ação. Ora, o fim e a causa eficiente são correlativos, e não idênticos. Logo, a forma não é causa eficiente.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro VII da Metafísica: “A forma é, de certo modo, princípio do movimento.” Ora, o princípio do movimento é a causa eficiente. Logo, a forma é causa eficiente.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma é causa eficiente, não absolutamente e por si, mas por participação e secundum quid, isto é, enquanto é princípio intrínseco pelo qual o agente age e o efeito é produzido.
Com efeito, há dois modos de se entender a causa eficiente:
1. Como causa extrínseca e principal, que inicia o movimento ou a geração, como o artífice em relação à obra;
2. Como causa intrínseca e formal, que é o princípio pelo qual algo age, uma vez que o agente só age enquanto está em ato, e o ato pertence à forma.
Assim, a forma é causa eficiente formaliter, porque toda operação procede do ente segundo o modo de sua forma. O fogo aquece porque tem a forma do calor; o homem raciocina porque tem a forma da razão; o sol ilumina porque é luz em ato. Logo, é pela forma que o agente é eficiente, e toda eficiência se funda na atualidade formal do ser.
A forma, portanto, é causa eficiente instrumentalmente, enquanto comunica ao sujeito a virtude do agir. E é também causa eficiente por difusão do ser, porque todo ser tende a comunicar sua forma ao outro, produzindo algo semelhante a si.
Dessa maneira, toda geração é um processo de comunicação formal: a forma presente no agente se torna forma participada no paciente. Assim, a forma não é apenas o termo da geração, mas também seu princípio formal — princípio intrínseco da ação e fim extrínseco do movimento.
A distinção entre o agir e o ser é apenas de razão, não de realidade: aquilo pelo qual algo é, é também aquilo pelo qual age. Portanto, a forma é causa eficiente secundum modum intrinsecum, como o princípio do operar imanente, e causa formal secundum esse, como o princípio do ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a forma é termo da geração em relação à matéria, mas é princípio da ação em relação ao agente. Assim, em uma mesma ordem causal, é fim; em outra, é princípio. O que é fim do movimento é princípio da operação.
2. À segunda, responde-se que a forma não é causa eficiente do composto enquanto nele está, mas é causa eficiente em razão da virtude que comunica ao sujeito. Assim, o calor, enquanto qualidade formal do fogo, é princípio de ação, embora esteja intrinsecamente no agente.
3. À terceira, deve-se dizer que a forma é movida quanto à introdução, mas é causa de movimento quanto à operação. Assim, a forma recebida torna o sujeito agente. A forma do fogo é introduzida pelo fogo anterior, mas, uma vez recebida, torna-se princípio de calor e de movimento em outro.
4. À quarta, responde-se que a forma é o fim da geração, mas é princípio da ação. O mesmo que é fim na ordem da produção é princípio na ordem da operação. Assim, a forma é fim do vir-a-ser e causa do operar.
Conclusão.
A forma é causa eficiente, não como princípio extrínseco, mas como princípio intrínseco do operar. É pela forma que o agente age, e todo efeito é produzido segundo a semelhança da forma. Assim, o que a causa eficiente inicia exteriormente, a forma realiza interiormente: é o princípio de ser e o fundamento do agir. No universo, toda causalidade eficiente é difusão da forma, e toda forma é ato que, sendo perfeito, tende a comunicar-se — imagem criada da bondade divina que move e gera todas as coisas.
Quaestio XI — Utrum forma det esse materiae
(Se a forma dá o ser à matéria)
Objeções.
1. Parece que a forma não dá o ser à matéria. Pois a matéria, segundo Aristóteles, é princípio de todas as coisas corpóreas. Ora, o princípio é anterior ao que dele procede. Logo, se a forma recebesse o ser da matéria, não poderia ser ela quem desse ser à matéria.
2. Além disso, tudo aquilo que dá o ser deve ter ser por si. Ora, a forma não existe sem a matéria, mas nela se realiza e nela é recebida. Logo, não pode ser causa do ser daquilo em que é recebida.
3. Ademais, a forma é parte da substância, e nenhuma parte dá o ser ao todo; antes, recebe o ser do composto. Logo, a forma, sendo parte, não dá o ser à matéria, mas o recebe juntamente com ela.
4. Além disso, a matéria permanece sob as corrupções e as mutações das formas. Ora, aquilo que dá o ser não pode perecer sem que o ser se extinga. Logo, a forma, que perece enquanto a matéria permanece, não é a causa do ser da matéria.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz, no livro VIII da Metafísica: “A forma é o que faz cada coisa ser o que é.” Ora, a matéria é o que é apenas pela forma. Logo, a forma dá o ser à matéria.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma dá o ser à matéria, porque é pela forma que a matéria deixa de ser potência pura e se torna ente em ato.
Com efeito, a matéria, considerada em si, é potência para todas as formas, mas não tem ser em ato. Ela é o que pode ser, mas não é nada determinado. A forma, ao contrário, é ato, e o ato é o que dá ser à potência. Portanto, é a forma que confere à matéria a existência real, atualizando-a segundo uma natureza determinada.
A forma é causa do ser da matéria não como causa eficiente exterior, mas como causa formal intrínseca. Ela não produz a matéria, mas a faz ser aquilo que é — isto é, a torna sujeito determinado no ente composto.
Assim, a forma não se une à matéria como algo estranho que se junta a ela, mas como ato que a perfaz interiormente, tornando-a real e subsistente. Por isso, diz-se que a forma “dá ser”, porque ela é o princípio pelo qual o ser se realiza e pelo qual a substância é atual.
E, porque a forma é ato, e o ato é a perfeição da potência, o ser pertence primariamente à forma e secundariamente à matéria enquanto informada. O ser da coisa é o ser da forma na matéria.
Deve-se, porém, distinguir:
1. Quanto à causa do ser, a forma é princípio intrínseco do ser substancial;
2. Quanto à origem do ser, o ato primeiro (Deus) é o princípio extrínseco, porque dá às formas e às matérias a capacidade de existir.
Portanto, a forma dá o ser à matéria na ordem intrínseca da composição, mas o ser absoluto vem de Deus como causa universal de todo ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria é princípio das coisas corpóreas enquanto sujeito passivo e de potência; mas o ser atual procede da forma, que é o princípio ativo do composto. Assim, a matéria é princípio da possibilidade, e a forma, do ser.
2. À segunda, responde-se que a forma não existe sem a matéria no composto físico, mas possui ser enquanto ato recebido, e, por isso, dá o ser à matéria na medida em que comunica a atualidade do ser que nela reside. O ato, mesmo recebido, é o que dá ser ao sujeito que o recebe.
3. À terceira, deve-se dizer que a forma é parte da substância enquanto princípio formal, mas é por ela que o todo tem ser. Pois a união da forma e da matéria constitui a substância, e essa união só é possível porque a forma comunica o ser à matéria, tornando o composto uma realidade única.
4. À quarta, responde-se que a matéria não permanece no mesmo ser quando perde a forma, mas apenas quanto à potência de ser outra coisa. O ser atual da matéria é diverso segundo as formas sucessivas; o que permanece é apenas a potência, não o ser que a forma conferia.
Conclusão.
A forma dá o ser à matéria, porque é o ato que atualiza a potência e o princípio pelo qual o ente existe em ato. O ser pertence primariamente à forma e secundariamente à matéria enquanto informada. Por isso, a forma é o princípio interno da realidade, a luz do ser na obscuridade da potência. Assim, toda matéria vive da forma, e toda forma realiza na matéria o desígnio do ato supremo que dá existência a todas as coisas.
Quaestio XII — Utrum forma sit primum principium motus
(Se a forma é o primeiro princípio do movimento)
Objeções.
1. Parece que a forma não é o primeiro princípio do movimento. Pois o movimento procede da causa eficiente, que é princípio de ação. Ora, a forma é causa formal, não eficiente. Logo, não é o primeiro princípio do movimento.
2. Além disso, o movimento é ato do ente em potência enquanto tal. Ora, a matéria é precisamente o ente em potência. Logo, o princípio do movimento deve ser a matéria e não a forma.
3. Ademais, a forma é o termo do movimento, e o termo não pode ser princípio daquilo de que é fim. Logo, a forma é posterior ao movimento, e não princípio dele.
4. Além disso, toda forma é princípio de repouso e estabilidade, e o movimento é o contrário do repouso. Ora, os contrários não têm o mesmo princípio. Logo, a forma não é princípio do movimento.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro VIII da Metafísica, ensina: “A forma é o princípio da operação e do movimento, porque é o ato daquilo que está em potência.” Logo, a forma é o primeiro princípio do movimento.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma é o primeiro princípio do movimento, não enquanto é causa eficiente que move exteriormente, mas enquanto é causa formal e intrínseca que dá o ser e, com o ser, o poder de mover e de ser movido.
Com efeito, a forma é o ato da matéria, e o ato é princípio do movimento, porque é aquilo pelo qual a potência se torna capaz de agir. O que tem forma é agente em virtude da forma; o que carece de forma é paciente pela ausência dela. Assim, o movimento nasce da presença da forma no agente e da carência da forma no paciente.
A forma é o primeiro princípio do movimento porque todo movimento visa à atualização da forma. O agente move para comunicar sua forma, e o paciente se move para recebê-la. Portanto, tanto a ação quanto a paixão dependem da forma como primeiro princípio formal do movimento.
Além disso, a forma é também princípio do movimento por semelhança, porque o semelhante tende a gerar o semelhante. O fogo aquece porque tem a forma do calor, e comunica seu ato ao que está em potência de ser quente. Assim, o movimento do aquecimento tem por princípio formal a forma do calor no agente.
A forma é ainda princípio do movimento por perfeição, porque todo ser em ato tende naturalmente a difundir o seu ato. Como o bem é difusivo de si, assim também a forma tende a comunicar sua perfeição. Por isso, a forma é princípio de movimento no agente, e termo de movimento no paciente.
Portanto, embora a causa eficiente seja a que inicia o movimento exteriormente, a forma é o princípio intrínseco e primeiro, porque sem a forma o agente não teria o poder de agir, nem o paciente o de ser movido.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a causa eficiente move em virtude da forma, e a forma é o princípio da eficiência. Assim, a causa eficiente é segunda em relação à forma, porque age pela forma que a constitui agente.
2. À segunda, responde-se que a matéria é princípio do movimento apenas passivamente, enquanto está em potência para ser movida; mas a forma é princípio do movimento ativamente, enquanto confere ao sujeito a capacidade de agir. Assim, a matéria é princípio de recepção, e a forma, princípio de ação.
3. À terceira, deve-se dizer que a forma é termo do movimento no paciente, mas princípio do movimento no agente. A mesma realidade é fim em um e princípio em outro, conforme a direção da causalidade.
4. À quarta, responde-se que a forma é princípio de repouso no ente perfeito, e princípio de movimento no ente imperfeito. Pois enquanto a forma está plenamente realizada, produz estabilidade; enquanto tende a comunicar-se, produz movimento. O repouso é o ato perfeito; o movimento, o ato imperfeito. Ambos têm a forma como raiz.
Conclusão.
A forma é o primeiro princípio do movimento, porque é o ato que dá ao ente a potência de agir e de ser movido. Toda operação procede da forma, e todo movimento tende a ela. Assim, o universo se move pela força das formas, que são os atos primeiros e os princípios vivos do ser. A forma, sendo ato e perfeição, é o princípio do repouso na plenitude e do movimento na difusão — o coração do dinamismo ontológico que une potência e ato no fluxo da existência.
Quaestio XIII — Utrum forma sit actus secundus respectu materiae
(Se a forma é ato segundo em relação à matéria)
Objeções.
1. Parece que a forma é ato segundo em relação à matéria. Pois Aristóteles, no livro IX da Metafísica, distingue entre o ato primeiro e o ato segundo, dizendo que o ato primeiro é o hábito e o ato segundo é o uso. Ora, a matéria, antes de receber a forma, é como potência em hábito; ao receber a forma, passa a atuar. Logo, a forma é ato segundo da matéria.
2. Além disso, tudo aquilo que é princípio de operação é ato segundo. Ora, a forma é princípio de operação, porque pela forma o ente age. Logo, a forma é ato segundo.
3. Ademais, a forma é perfeição da matéria. Ora, toda perfeição é ato segundo, porque o ato primeiro é a potência ordenada ao ato. Logo, a forma é ato segundo da matéria.
4. Além disso, o movimento é ato imperfeito, e o repouso é ato perfeito. Ora, a forma é o que confere perfeição e repouso à matéria. Logo, a forma é ato segundo, que é a perfeição do ato primeiro.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro IX da Metafísica: “A forma é ato primeiro da matéria, assim como a visão é o ato do olho.” Logo, a forma não é ato segundo, mas ato primeiro.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a forma é ato primeiro da matéria e não ato segundo, embora dela proceda o ato segundo, que é a operação.
Com efeito, o ato primeiro é aquilo pelo qual algo é em ato simplesmente; o ato segundo é aquilo pelo qual algo, já sendo em ato, age. Ora, a matéria, antes de receber a forma, é em potência pura; ao receber a forma, torna-se ente em ato. Portanto, a forma é o ato primeiro, porque confere o ser à matéria e a atualiza.
O ato segundo, ao contrário, é o exercício da operação que procede do ser. Assim, viver é ato primeiro, e o exercício da vida — como sentir, mover-se, compreender — é ato segundo. De modo semelhante, a forma é o ato pelo qual o composto é, e a operação é o ato pelo qual o composto age.
No entanto, como a forma é também princípio de operação, pode-se dizer que ela é causa do ato segundo, mas não o ato segundo em si. Ela é o fundamento do agir, não o próprio agir.
Por isso, a forma é chamada ato primeiro em relação à matéria, e ato segundo apenas por analogia, em relação à potência operativa que dela procede. A forma, enquanto dá o ser, é ato primeiro; enquanto comunica o poder de agir, é origem do ato segundo.
Deve-se distinguir, portanto, três níveis:
1. A matéria, que é pura potência;
2. A forma, que é ato primeiro, conferindo ser;
3. A operação, que é ato segundo, procedente do ser.
Assim, a forma é ato primeiro da matéria e princípio do ato segundo que é a operação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a distinção aristotélica entre ato primeiro e ato segundo se aplica ao mesmo sujeito sob ordens diversas: o hábito é ato primeiro em relação ao uso, mas o uso é ato segundo. Do mesmo modo, a forma é ato primeiro em relação à matéria, e a operação é ato segundo em relação à forma.
2. À segunda, responde-se que a forma é princípio de operação, mas não operação em si. O princípio da operação é o ato primeiro, e a operação é o ato segundo. Logo, a forma é o que confere à coisa o poder de agir, mas não é o próprio exercício do agir.
3. À terceira, deve-se dizer que a perfeição se diz de dois modos: perfeição de ser, que é ato primeiro; e perfeição de agir, que é ato segundo. A forma é perfeição de ser, e, portanto, ato primeiro.
4. À quarta, responde-se que a forma é ato segundo apenas quanto à potência natural que dela decorre, isto é, quanto à operação. Mas em si mesma, enquanto dá o ser, é ato primeiro.
Conclusão.
A forma é ato primeiro da matéria, porque a atualiza no ser e a faz deixar o estado de pura potência. Dela procede o ato segundo, que é a operação, como efeito de sua perfeição. Assim, na hierarquia do ser, a matéria é potência, a forma é ato primeiro, e a operação é ato segundo. O universo se estrutura sobre essa tríade viva: potência, ato e operação — imagem criada da Trindade divina, na qual o ser, o agir e o amor coincidem em unidade absoluta.
Quaestio XIV — Utrum universalia sint ante res, in rebus vel post res
(Se os universais estão antes das coisas, nas coisas, ou depois das coisas)
Objeções.
1. Parece que os universais estão antes das coisas. Pois, conforme Platão, as formas universais existem separadamente, e delas participam as coisas singulares. Ora, aquilo de que as coisas participam é anterior às coisas. Logo, os universais estão antes das coisas.
2. Além disso, o universal é causa exemplar das coisas. Ora, a causa exemplar deve preceder o efeito, assim como o modelo precede a obra. Logo, os universais existem antes das coisas e são as ideias eternas das quais procede o mundo sensível.
3. Ademais, o intelecto divino contém as formas de todas as coisas como causas exemplares. Ora, Deus é anterior a todas as criaturas. Logo, os universais, que estão no intelecto divino, estão antes das coisas.
4. Além disso, os universais não se corrompem nem se multiplicam com a corrupção e multiplicação das coisas singulares. Ora, o que é incorruptível e imutável é mais antigo do que o corruptível e mutável. Logo, os universais estão antes das coisas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro VII da Metafísica, diz: “Os universais não existem separados das coisas, porque não há humanidade fora do homem.” Logo, os universais estão nas coisas, e não antes delas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o universal pode ser considerado de três modos: antes das coisas, nas coisas e depois das coisas; e que, sob cada um desses modos, ele tem um ser distinto, conforme a ordem da causalidade e do conhecimento.
Com efeito, a noção de “universal” implica dois elementos:
· o conteúdo formal, que é a natureza inteligível ou essência (por exemplo, “humanidade”);
· e a comunicação, pela qual essa essência é referida a muitos.
1. Antes das coisas, o universal existe no intelecto divino, como causa exemplar de todas as naturezas criadas. Pois Deus conhece em si mesmo as essências possíveis das coisas e, segundo essas formas inteligíveis, cria os entes no tempo. Assim, no intelecto divino, os universais são exemplares eternos, fundamentos da ordem e da inteligibilidade do mundo.
2. Nas coisas, o universal existe formalmente e realmente, enquanto essência comum individuada pela matéria e pelas condições particulares. Assim, a “humanidade” existe realmente em Sócrates e em Platão, não como universalidade, mas como natureza comum especificadora. O universal, enquanto tal, não tem ser separado, mas tem ser na coisa como essência formal.
3. Depois das coisas, o universal existe no intelecto humano, que abstrai das coisas singulares a natureza comum, considerando-a sem as condições de individuação. Assim, o universal é formado pela operação do intelecto, que conhece o mesmo sob múltiplas instâncias.
Portanto, o universal é tríplice quanto ao modo de ser:
· em Deus, exemplar;
· nas coisas, formal;
· na mente, lógico.
O erro dos platônicos foi afirmar que os universais existem realmente fora e antes das coisas, como substâncias separadas. O erro dos nominalistas é negar-lhes todo ser fora da palavra e do pensamento. A verdade de Aristóteles e dos doutores é a via média: os universais têm fundamento real nas coisas, mas o modo de universalidade é efeito do intelecto.
Assim, o universal, enquanto essência, é real nas coisas; enquanto ideia exemplar, é em Deus antes das coisas; e enquanto conceito, é no intelecto depois das coisas.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que os universais estão antes das coisas, não em si mesmos, mas em Deus, que é causa exemplar de tudo. O erro platônico foi atribuir às ideias separadas a função que pertence ao intelecto divino.
2. À segunda, responde-se que os universais são causas exemplares, mas não segundo um ser próprio fora de Deus. No Criador, as ideias são eternas; nas criaturas, as essências são participações finitas dessas ideias. Assim, o modelo é anterior segundo a causalidade, mas não segundo a substância criada.
3. À terceira, deve-se dizer que o argumento é verdadeiro se os universais forem entendidos como estão em Deus. Pois em Deus estão antes das coisas; nas coisas, são simultâneos; e no intelecto humano, são posteriores.
4. À quarta, responde-se que os universais são incorruptíveis enquanto inteligíveis, mas corruptíveis enquanto existentes nas coisas singulares. Pois a “humanidade” em Sócrates perece quando Sócrates morre, mas a “humanidade” enquanto conceito inteligível permanece no intelecto. Assim, são imutáveis quanto ao intelecto, mas não quanto à existência material.
Conclusão.
Os universais estão antes das coisas em Deus, nas coisas enquanto essência formal, e depois das coisas no intelecto humano. Antes das coisas, são exemplares divinos; nas coisas, naturezas comuns; depois das coisas, conceitos abstratos. Assim, há uma tríplice ordem: divina, real e lógica. Na primeira, os universais são eternos; na segunda, participados; na terceira, conhecidos. Desse modo, a sabedoria une Platão e Aristóteles: o universal é eterno no pensamento divino, imanente na realidade criada e inteligível no pensamento humano — tríplice reflexo da mesma verdade ontológica.
Quaestio XV — Utrum formae sint separatae ab individuis
(Se as formas estão separadas dos indivíduos)
Objeções.
1. Parece que as formas estão separadas dos indivíduos. Pois o que é comum a muitos não pode existir em um só. Ora, a forma é uma e comum a muitos indivíduos. Logo, ela não pode existir neles realmente, mas deve subsistir separada.
2. Além disso, a forma é incorruptível, enquanto o indivíduo é corruptível. Ora, o incorruptível e o corruptível não podem ser substancialmente unidos. Logo, a forma, sendo incorruptível, deve existir separada dos indivíduos corruptíveis.
3. Ademais, Aristóteles diz no livro XII da Metafísica que “as formas separadas são princípios das coisas sensíveis”. Ora, o princípio é anterior e distinto daquilo de que é princípio. Logo, as formas são separadas dos indivíduos.
4. Além disso, tudo o que é universal e inteligível deve estar separado da matéria. Ora, a forma é universal e inteligível. Logo, deve ser separada da matéria e, portanto, dos indivíduos materiais.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro VII da Metafísica: “A forma não está separada da matéria, pois o que é homem é sempre homem composto de alma e corpo.” Logo, as formas não estão separadas dos indivíduos, mas nelas subsistem.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as formas não estão separadas dos indivíduos segundo o ser natural, mas estão separadas segundo o ser inteligível.
Com efeito, na ordem da natureza, a forma é o ato da matéria, e o ato não pode existir sem aquilo de que é ato. Assim, a forma natural não tem ser próprio separado, mas existe somente no composto. Pois, se a forma se separasse da matéria, o composto deixaria de existir, e a própria forma não teria onde subsistir.
A separação das formas, portanto, é impossível segundo o ser real, porque a forma e a matéria são princípios de um único ente. A forma é aquilo pelo qual o composto é o que é, e a matéria é aquilo do qual o composto é. A natureza, portanto, não admite separação entre ato e potência senão no pensamento.
Contudo, a forma é separável segundo a razão, porque pode ser concebida sem as condições materiais. Assim, a “humanidade” pode ser concebida sem este ou aquele homem, embora não possa existir sem algum homem.
Há, portanto, três modos de separação:
1. Real, que pertence apenas às formas espirituais e divinas, como a inteligência e a alma separada;
2. Intelectual, que pertence às formas materiais, enquanto o intelecto as abstrai das condições da matéria;
3. Imaginária, que é falsa, como quando se pensa que as formas naturais existem em si mesmas.
Por conseguinte, as formas das coisas corpóreas não existem separadas dos indivíduos, mas nelas estão unidas e informam a matéria. As únicas formas realmente separadas são as substâncias intelectuais, que são atos sem matéria — como os anjos e as inteligências moventes dos céus.
Assim, as formas materiais existem nos indivíduos, as formas inteligíveis existem separadas, e as formas exemplares existem em Deus.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a forma é uma e comum quanto à definição, mas múltipla quanto ao ser. A humanidade é uma enquanto espécie, mas é multiplicada segundo os indivíduos. O universal é idêntico segundo a essência e diverso segundo a existência.
2. À segunda, responde-se que a forma é incorruptível em espécie, mas corruptível em indivíduo. A forma de homem, enquanto espécie, permanece; mas a forma deste homem, enquanto unida à matéria individual, perece com ela. Assim, não há contradição entre a incorruptibilidade da espécie e a corrupção do indivíduo.
3. À terceira, deve-se dizer que Aristóteles fala das formas separadas intelectualmente, que são princípios exemplares, não das formas naturais. As formas sensíveis têm existência nas coisas sensíveis, e apenas as formas puramente intelectuais são realmente separadas.
4. À quarta, responde-se que o inteligível é separado da matéria quanto ao modo de compreensão, mas não quanto ao modo de existência. A forma é inteligível enquanto abstraída pela mente, mas é real enquanto unida à matéria. Assim, a separação é de razão, não de ser.
Conclusão.
As formas não estão separadas dos indivíduos quanto ao ser natural, mas apenas quanto ao intelecto. Em realidade, estão nas coisas como ato da matéria e princípio do ser; no intelecto, estão separadas como objeto da contemplação; e em Deus, estão separadas como causas exemplares e eternas. Assim, há uma tríplice ordem de separação: divina na causa, natural na união, intelectual na compreensão. O erro de Platão foi tomar o terceiro modo como o primeiro; a verdade de Aristóteles é que as formas vivem nas coisas e nelas revelam a unidade do ser através da multiplicidade dos indivíduos.
Quaestio XVI — Utrum principia entium sint quatuor
(Se os princípios dos entes são quatro)
Objeções.
1. Parece que os princípios dos entes não são quatro, mas apenas dois. Pois Aristóteles, no livro I da Física, ensina que os princípios de todas as coisas naturais são a matéria e a forma. Ora, onde há dois princípios suficientes, não é necessário admitir mais. Logo, não há quatro princípios, mas dois.
2. Além disso, tudo o que existe é composto de potência e ato. Ora, a matéria é potência, e a forma é ato. Logo, todos os entes têm apenas dois princípios constitutivos, e não quatro.
3. Ademais, a causa eficiente e a causa final não são princípios constitutivos das coisas, mas princípios extrínsecos de movimento e de finalidade. Ora, o que é extrínseco não pertence à essência do ente. Logo, não são princípios no mesmo sentido que a matéria e a forma.
4. Além disso, os princípios devem ser causas primeiras e universais. Ora, a causa eficiente e a causa final são subordinadas a causas mais altas, e dependem de condições exteriores. Logo, não podem ser princípios primários e universais.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro II da Física, diz expressamente: “Há quatro causas e quatro princípios: matéria, forma, agente e fim.” Logo, os princípios dos entes são quatro.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que os princípios dos entes são quatro: matéria, forma, causa eficiente e causa final. E isso se prova tanto pela razão do ser quanto pela razão do movimento.
Com efeito, para que algo exista, é necessário que haja aquilo de que é feito, aquilo por que é feito, aquilo que o faz e aquilo em vista do qual é feito. O primeiro é a matéria; o segundo, a forma; o terceiro, o agente; o quarto, o fim.
Esses quatro princípios correspondem às quatro ordens do ser:
1. De potência, a matéria;
2. De ato formal, a forma;
3. De origem, o agente;
4. De perfeição e ordem, o fim.
Nenhum deles pode ser excluído sem destruir a inteligibilidade do ente, pois o ser é composto de potência e ato, e o ato é ordenado à perfeição.
A matéria e a forma são princípios intrínsecos, porque entram na constituição do composto. A causa eficiente e a causa final são extrínsecas, mas necessárias, porque sem o agente nada passaria da potência ao ato, e sem o fim nenhum agente agiria.
A causa final é o primeiro dos princípios segundo a intenção, porque o fim move o agente; e a causa eficiente é o primeiro segundo a execução, porque inicia o movimento. Assim, há uma ordem circular entre os quatro princípios:
· o fim move o agente;
· o agente introduz a forma;
· a forma aperfeiçoa a matéria;
· a matéria recebe o ser.
E essa circularidade imita a perfeição da natureza divina, em que causa eficiente e fim coincidem.
Portanto, é necessário reconhecer quatro princípios, porque o ente é composto de potência e ato, e toda passagem da potência ao ato implica um agente e um fim. Se fossem apenas dois, não haveria movimento nem ordem, mas mera coexistência passiva.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles, no primeiro livro da Física, tratou apenas dos princípios intrínsecos das coisas naturais, que são a matéria e a forma. Mas, no segundo livro, acrescenta os extrínsecos, o agente e o fim, sem os quais o movimento não se explica.
2. À segunda, responde-se que a distinção entre potência e ato é suficiente para explicar o ser em repouso, mas não o ser em movimento. A passagem da potência ao ato requer o agente e o fim. Assim, há dois princípios intrínsecos (matéria e forma) e dois extrínsecos (eficiente e final).
3. À terceira, deve-se dizer que, embora a causa eficiente e a causa final sejam extrínsecas, ainda assim são princípios do ente, porque o ser atual depende de sua produção e de sua ordenação. A essência vem da forma, mas a existência vem da eficiência, e a perfeição vem do fim.
4. À quarta, responde-se que cada um dos quatro princípios é universal em sua ordem: a matéria em ordem de substrato, a forma em ordem de ato, o agente em ordem de origem, e o fim em ordem de perfeição. Nenhum deles é subordinado a outro quanto ao gênero de causalidade, mas todos se completam mutuamente.
Conclusão.
Os princípios dos entes são quatro: matéria, forma, causa eficiente e causa final. A matéria é potência; a forma, ato; o agente, origem do ato; o fim, termo da perfeição. Assim, o universo é uma ordem de causalidades que procede do ato primeiro — Deus — e retorna a Ele como fim último. Na criação, o ato divino reúne em unidade o que na criatura se divide: em Deus, a causa eficiente é o próprio fim, e o ato é pura forma sem matéria.
Quaestio XVII — Utrum causa finalis sit principium primum
(Se a causa final é o primeiro princípio)
Objeções.
1. Parece que a causa final não é o primeiro princípio. Pois o fim é o termo do movimento e da operação, e o princípio é o que inicia o movimento. Ora, o que é último no ser não pode ser primeiro no princípio. Logo, a causa final não é o primeiro princípio.
2. Além disso, o agente é o princípio do movimento e da ação, e o fim só é conhecido por meio do agente. Ora, o que é posterior no conhecimento é também posterior na natureza. Logo, o agente é princípio anterior ao fim.
3. Ademais, o fim é causa apenas segundo o apetite e não segundo o ser, pois move apenas como algo desejado, não como algo existente. Ora, aquilo que move só por desejo é secundário em relação ao que move por poder real. Logo, o agente é princípio primeiro, e não o fim.
4. Além disso, em Deus, que é o primeiro princípio de todas as coisas, não há fim distinto de Si mesmo. Ora, se o fim fosse o primeiro princípio, haveria distinção em Deus entre o que age e o fim pelo qual age, o que é impossível. Logo, a causa final não é o primeiro princípio.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro II da Física, afirma: “O fim é a causa das causas.” Ora, aquilo que é causa das causas é o primeiro princípio. Logo, a causa final é o primeiro princípio.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a causa final é o primeiro princípio, não na ordem da execução, mas na ordem da intenção e da razão do agir.
Com efeito, todo agente age por um fim, e o fim é aquilo em vista do qual o agente move. Ora, nada age senão por alguma razão de bem, e o bem é o fim. Assim, o fim é o que move o agente a agir, e, portanto, é princípio no sentido de ser o primeiro na intenção e o último na consecução.
Diz-se que o fim é primeiro na intenção porque é ele que determina todas as outras causas. O agente só age por causa do fim; a forma é introduzida para alcançar o fim; e a matéria é disposta para receber a forma em vista do fim. Assim, o fim é a causa das causas, pois move o agente, determina a forma e ordena a matéria.
Por outro lado, o fim é último na execução, porque só é atingido quando o movimento cessa. Portanto, há uma inversão entre a ordem da intenção e a da realização: o fim é primeiro em intenção, mas último em execução.
A razão disso é que o bem, enquanto fim, tem força motiva e ordenadora. Todo o universo tende para o bem como para seu termo, e todas as causas inferiores são movidas pela ordenação ao fim supremo. Assim, o fim é o primeiro princípio da ordem universal, porque todas as causas agem em vista dele.
Na ordem divina, essa prioridade do fim é absoluta, porque em Deus o fim e o agente são o mesmo. Ele é o primeiro princípio de todas as coisas tanto como causa eficiente quanto como causa final: eficiente, porque tudo procede de Seu poder; final, porque tudo tende à Sua bondade.
Portanto, a causa final é o primeiro princípio em razão da intenção, porque o desejo do bem move todas as causas e porque todo ser age em vista da perfeição que o fim representa.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o fim é último na execução, mas primeiro na intenção. O movimento termina no fim, mas começa por ele, porque o fim é aquilo que move o agente a agir. Assim, é último no ser, mas primeiro na causa.
2. À segunda, responde-se que o agente conhece o fim e age por causa dele; logo, o conhecimento do agente pressupõe o fim como causa motiva. Portanto, o fim é anterior na ordem do querer, embora posterior na ordem da produção.
3. À terceira, deve-se dizer que o fim move por meio do desejo, mas esse movimento é o mais universal e eficaz, porque todo agente busca o bem. O desejo do bem é o primeiro impulso de toda ação. Assim, o fim, embora não mova fisicamente, move espiritualmente e ontologicamente antes de qualquer outro princípio.
4. À quarta, responde-se que em Deus o fim e o agente coincidem. Ele é o fim último de todas as coisas e também sua causa eficiente. Logo, não há distinção real, mas apenas de razão: Deus é o primeiro princípio porque é o bem supremo que tudo move e o poder supremo que tudo causa.
Conclusão.
A causa final é o primeiro princípio, porque toda ação e toda ordem procedem do desejo do bem. Ela é primeira na intenção, embora última na execução; é a causa das causas, pois move o agente, determina a forma e dispõe a matéria. No universo, tudo age e tudo se move em direção ao bem; e o bem absoluto, que é Deus, é simultaneamente fim último e causa primeira. Assim, o ser nasce do bem e para o bem retorna — princípio e termo coincidentes no Ato puro, em que eficiência e finalidade são uma só realidade.
Quaestio XVIII — Utrum principia entium habeant ordinem inter se
(Se os princípios dos entes possuem ordem entre si)
Objeções.
1. Parece que os princípios dos entes não possuem ordem entre si. Pois cada princípio é completo em sua própria causalidade: a matéria é princípio segundo a potência, a forma segundo o ato, o agente segundo a produção, o fim segundo a perfeição. Ora, o que é completo em si não depende de outro. Logo, os princípios não têm ordem entre si.
2. Além disso, se houvesse ordem entre os princípios, um dependeria do outro. Ora, o princípio, por definição, é aquilo de que depende o que é posterior. Logo, os princípios, enquanto tais, não podem depender entre si, mas apenas em relação aos efeitos.
3. Ademais, os princípios são universais e independentes em suas naturezas. Ora, a ordem só existe entre coisas coordenadas ou subordinadas quanto à matéria e ao fim. Logo, os princípios, sendo universais e absolutos, não podem ter ordem real entre si.
4. Além disso, se houvesse uma ordem necessária entre eles, um seria anterior por natureza, e os outros posteriores. Ora, essa anterioridade destruiria a igualdade dos princípios, tornando um causa do outro. Logo, não há ordem entre eles.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz, no livro II da Física: “As causas estão ordenadas entre si, porque o fim move o agente, o agente introduz a forma, e a forma atualiza a matéria.” Logo, há uma ordem entre os princípios.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que os princípios dos entes têm ordem entre si, tanto quanto à razão de causalidade quanto quanto à execução da produção.
Com efeito, embora cada princípio tenha causalidade própria e distinta, nenhum deles age isoladamente. Toda causalidade implica relação, e toda relação implica ordem. Ora, as causas não produzem o ente separadamente, mas conjuntamente, cada uma contribuindo com o que lhe é próprio.
A ordem entre os princípios é dupla:
1. Ordem de intenção, segundo a qual o fim é o primeiro, pois o fim é aquilo em vista do qual o agente age, e por causa do qual a forma é introduzida e a matéria é disposta;
2. Ordem de execução, segundo a qual a matéria é primeira, a forma segunda, o agente terceiro e o fim último, porque na execução o ser procede da potência ao ato e do ato à perfeição.
Assim, o fim é primeiro na razão, mas último na realização; a matéria é primeira na constituição, mas última na perfeição. A forma e o agente são intermediários: a forma atualiza a matéria e o agente realiza a passagem da potência ao ato em vista do fim.
Essa ordem dos princípios é necessária e harmoniosa, e constitui a estrutura do universo. Nela, o fim é o primeiro motor, o agente é o executor, a forma é o instrumento de perfeição, e a matéria é o sujeito que recebe.
Além disso, a ordem dos princípios é imagem da ordem divina, porque em Deus todos coincidem. Pois Ele é simultaneamente causa eficiente (criador), causa formal (exemplar), causa final (bem supremo) e causa material de modo eminente (fundamento de toda possibilidade).
Logo, na criatura, as causas estão ordenadas e distintas; em Deus, estão unidas e idênticas.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que cada princípio é completo em sua ordem, mas não independente da ordem total do ser. A causalidade universal exige cooperação: o fim ordena o agente, o agente ordena a forma, e a forma ordena a matéria. Assim, há dependência quanto à ordem, não quanto à essência.
2. À segunda, responde-se que os princípios não dependem entre si como efeitos dependem de causas, mas como ordens correlativas. O agente depende do fim quanto à intenção, o fim depende do agente quanto à execução, e ambos dependem da forma e da matéria quanto à realização.
3. À terceira, deve-se dizer que a ordem não destrói a universalidade dos princípios, mas manifesta sua coordenação no todo. Cada princípio é universal em seu gênero, mas todos cooperam na produção do mesmo efeito, e assim estão ordenados em uma hierarquia causal.
4. À quarta, responde-se que a anterioridade e posterioridade entre os princípios não implica desigualdade de natureza, mas apenas distinção de função. O fim é primeiro segundo a razão do mover; a matéria, primeira segundo a razão de ser substrato. Nenhum é causa do outro, mas todos são mutuamente ordenados no mesmo efeito.
Conclusão.
Os princípios dos entes têm ordem entre si: o fim move o agente; o agente introduz a forma; a forma atualiza a matéria. Assim, há uma hierarquia circular em que tudo começa e termina no bem. A matéria é potência, a forma é ato, o agente é movimento, o fim é repouso. Essa ordem expressa a estrutura inteligível da criação — uma harmonia que reflete na multiplicidade dos seres a unidade do princípio divino, onde todas as causas se reúnem no Ato puro.
Quaestio XIX — Utrum causa finalis moveat efficientem
(Se a causa final move a causa eficiente)
Objeções.
1. Parece que a causa final não move a causa eficiente. Pois mover é próprio da causa eficiente, e o fim é apenas aquilo em vista do qual se age. Ora, o que é movido não move. Logo, a causa final não move o agente eficiente.
2. Além disso, o fim ainda não existe quando o agente começa a agir, mas é algo futuro e não atual. Ora, o que não existe não pode mover. Logo, o fim, que é o que ainda há de ser, não move o agente.
3. Ademais, a causa eficiente é o princípio ativo da operação, e o fim é o termo passivo da mesma. Ora, o ativo não depende do passivo, mas o contrário. Logo, o agente eficiente não é movido pelo fim, mas o fim depende do agente para existir.
4. Além disso, o que é imóvel não pode mover. Ora, o fim, enquanto tal, é imóvel, porque é termo e repouso da operação. Logo, o fim não move o agente, que é o verdadeiro princípio do movimento.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz, no livro II da Física: “O fim é aquilo que move o agente.” E no livro VIII da Metafísica acrescenta: “O desejado move o desejante.” Logo, a causa final move a causa eficiente.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a causa final move a causa eficiente não por contato físico nem por ação real, mas por modo de apetição e intenção, isto é, como aquilo que é conhecido e desejado.
Com efeito, toda ação ordenada procede de algum bem, real ou aparente, que o agente busca alcançar. Ora, o bem, enquanto fim, é o primeiro na intenção e o último na execução. Assim, o agente não se move senão porque o fim o atrai como algo desejável e perfeito.
Portanto, o fim move a causa eficiente como objeto de desejo, e o agente é movido pelo fim como o amante é movido pelo amado. Essa moção é espiritual, não física; e, no entanto, é a mais universal e necessária de todas, pois nada age senão em vista de um bem.
O fim é, portanto, a causa do movimento do agente quanto à intenção, porque o determina a agir; e a causa eficiente é causa do movimento quanto à execução, porque realiza o ato. O fim é o “por que” da ação; o agente, o “pelo que” a ação se realiza.
Além disso, a moção do fim sobre o agente pode ser considerada em três níveis:
1. No intelecto, enquanto o fim é conhecido como bem;
2. Na vontade ou apetite, enquanto o fim é desejado;
3. Na operação exterior, enquanto o fim é buscado pela ação.
O fim é, pois, o primeiro princípio do movimento sob o aspecto formal da intenção. E, como todo agente age por um fim, o fim é a causa das causas, movendo todas as outras.
Na ordem divina, essa causalidade do fim é absoluta, porque em Deus o fim e o agente coincidem. Ele move todas as coisas por sua bondade, que é amada e desejada por todas as criaturas segundo seu grau de ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o fim move o agente, mas não como causa eficiente. Move de modo diverso: o agente move por força ativa; o fim move por atração. O primeiro é motor físico; o segundo, motor intencional.
2. À segunda, responde-se que, embora o fim ainda não exista em ato, existe na intenção do agente, e essa intenção basta para mover. O fim, enquanto conhecido e desejado, está presente na mente do agente e o determina a agir.
3. À terceira, deve-se dizer que o agente é ativo quanto à execução, mas passivo quanto à intenção, porque é movido pelo fim como pelo bem que o atrai. Assim, há reciprocidade: o agente faz o fim existir, e o fim faz o agente agir.
4. À quarta, responde-se que o fim é imóvel quanto ao ser, mas move quanto à noção de bem. Ele é imóvel em si, mas móvel quanto ao efeito de sua bondade. Assim como o belo imóvel move o olhar, assim o fim imóvel move o agente pela perfeição que representa.
Conclusão.
A causa final move a causa eficiente, porque o bem e o desejável têm força motiva sobre o agente. Essa moção é intencional, não física, mas é mais profunda que qualquer movimento corpóreo, pois é o princípio de toda ação e de toda ordem. O fim é o que desperta o agente, dá direção à forma e sentido à matéria. Por isso, o universo inteiro é movido pelo amor do bem: o bem é o motor imóvel que atrai todas as coisas ao seu termo, e esse termo é Deus, que é o fim último e o amor que move o todo sem ser movido.
Quaestio XX — Utrum materia sit principium individuationis
(Se a matéria é o princípio de individuação)
Objeções.
1. Parece que a matéria não é o princípio de individuação. Pois a matéria é comum a todas as coisas corpóreas, e o comum não é princípio do singular. Ora, a individuação pertence ao singular. Logo, a matéria não é o princípio de individuação.
2. Além disso, a forma é o que faz algo ser aquilo que é. Ora, o indivíduo é mais “isto” (hoc aliquid) pela forma do que pela matéria, porque é a forma que dá o ser determinado. Logo, a forma, e não a matéria, é o princípio de individuação.
3. Ademais, a matéria é indeterminada por natureza e torna-se determinada apenas pela forma. Ora, a individuação requer determinação. Logo, aquilo que é indeterminado não pode ser princípio da determinação individual.
4. Além disso, a individuação é uma perfeição, porque o ser individual é mais perfeito que o ser universal, que existe apenas no intelecto. Ora, a matéria é o princípio da imperfeição e da potencialidade. Logo, não pode ser princípio da individuação.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro VII da Metafísica: “A matéria é aquilo pelo que os seres são muitos.” Ora, o ser múltiplo é o ser individual. Logo, a matéria é o princípio de individuação.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que, entre os entes corpóreos, a matéria é o princípio de individuação, não absolutamente, mas enquanto determinada pela quantidade e pelas condições concretas que a especificam.
Com efeito, a forma é aquilo pelo qual a coisa é o que é segundo a espécie; mas o indivíduo é aquilo pelo qual algo é este ser particular, distinto de outros na mesma espécie. Ora, a distinção numérica entre os entes de uma mesma espécie só pode vir do princípio que é potencial e sujeito à diversidade — e esse princípio é a matéria.
A forma é uma e comum a todos os indivíduos da mesma espécie: a “humanidade” é a mesma em Sócrates e em Platão. O que os distingue é a matéria, enquanto está sob dimensões quantitativas diferentes e sob acidentes diversos de lugar e tempo.
Por isso, dizemos que a matéria é o princípio de individuação em potência, e a quantidade é o princípio de individuação em ato, porque é pela quantidade que a matéria se estende, se divide e se distingue.
Não se deve entender, porém, que a matéria pura — a materia prima — individualize, pois ela é potência absoluta e indeterminada. A individuação ocorre pela matéria determinada, isto é, pela matéria sob dimensões e condições concretas (esta carne, estes ossos, esta posição, este lugar).
Assim, a forma dá o ser específico, e a matéria, sob condições determinadas, dá o ser individual. O indivíduo é, portanto, composto de forma e matéria determinada — de ato e potência em situação singular.
Nos entes imateriais, entretanto, a individuação não vem da matéria, mas da própria forma, porque neles o ser é simples e incomposto. Assim, cada inteligência angélica é uma espécie única, e sua forma é princípio tanto de espécie quanto de indivíduo.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria é comum em razão de sua natureza, mas é princípio de distinção pela diversidade das dimensões e acidentes que recebe. O comum em potência torna-se singular em ato por determinação quantitativa.
2. À segunda, responde-se que a forma faz algo ser o que é em espécie, mas não em número. A individuação é distinção numérica dentro da mesma espécie, e isso não vem da forma, que é idêntica, mas da matéria, que é diversa.
3. À terceira, deve-se dizer que a matéria é indeterminada em si, mas se torna determinada pela forma sob condições de quantidade e lugar. Assim, não é a matéria enquanto pura potência que individualiza, mas a matéria sob a forma e as dimensões que a atualizam.
4. À quarta, responde-se que a individuação é perfeição quanto ao ser singular, mas vem de um princípio potencial porque toda multiplicidade procede da potência. O ato é fonte de unidade; a potência, de multiplicidade. Assim, a matéria, enquanto princípio de potência, é causa da pluralidade dos indivíduos.
Conclusão.
A matéria é o princípio de individuação nos entes corpóreos, enquanto determinada por quantidade e condições concretas. A forma confere o ser específico, e a matéria, o ser particular. A unidade vem do ato; a multiplicidade, da potência. Por isso, em Deus — ato puro — não há individuação, mas unidade absoluta; nos anjos, a forma individualiza; nos corpos, a matéria faz múltiplos. Assim, a individuação é o reflexo da finitude: quanto mais algo se afasta do ato puro, mais se multiplica em indivíduos.
LIBER TERTIUS — DE SUBSTANTIIS SEPARATIS
(Livro Terceiro — Sobre as Substâncias Separadas)
1.
Utrum
sint substantiae separatae a materia.
Se existem substâncias
separadas da matéria.
2.
Utrum
substantiae separatae sint formae purae.
Se as substâncias separadas
são formas puras.
3.
Utrum
sint plures substantiae separatae.
Se há várias substâncias
separadas.
4.
Utrum
sint mediae substantiae inter Deum et hominem.
Se existem substâncias
intermediárias entre Deus e o homem.
5.
Utrum
omnes substantiae separatae sint incorruptibiles.
Se todas as substâncias
separadas são incorruptíveis.
6.
Utrum
substantiae separatae sint intellectuales.
Se as substâncias separadas
são intelectuais.
7.
Utrum
substantiae separatae habeant cognitionem rerum materialium.
Se as substâncias separadas
têm conhecimento das coisas materiais.
8.
Utrum
substantiae separatae moveant corpora caelestia.
Se as substâncias separadas
movem os corpos celestes.
9.
Utrum
una substantia separata moveat plura corpora.
Se uma substância separada
pode mover vários corpos.
10. Utrum motus caelestium corporum sit ab
intellectu.
Se o movimento dos corpos
celestes provém do intelecto.
11. Utrum
substantiae separatae moveant per appetitum.
Se as substâncias
separadas movem por meio do apetite.
12. Utrum in substantiis separatis sit ordo
et hierarchia.
Se há ordem e hierarquia nas
substâncias separadas.
13. Utrum substantiae separatae cognoscant
se ipsas.
Se as substâncias separadas
conhecem a si mesmas.
14. Utrum substantiae separatae cognoscant
alia a se.
Se as substâncias separadas
conhecem outras além de si mesmas.
15. Utrum substantiae separatae sint agentes
in generatione inferiorum.
Se as substâncias separadas
agem na geração dos seres inferiores.
16. Utrum sit una prima substantia separata,
quae sit Deus.
Se há uma única substância
separada que é Deus.
17. Utrum substantiae separatae dependeant a
prima causa.
Se as substâncias separadas
dependem da causa primeira.
18. Utrum substantiae separatae sint causae
formarum in materia.
Se as substâncias separadas
são causas das formas na matéria.
19. Utrum substantiae separatae moveant per
intelligentiam et amorem.
Se as substâncias separadas
movem por inteligência e amor.
20. Utrum substantiae separatae sint
immobiles secundum essentiam.
Se as substâncias separadas
são imóveis quanto à essência.
Quaestio I — Utrum sint substantiae separatae a materia
(Se existem substâncias separadas da matéria)
Objeções.
1. Parece que não existem substâncias separadas da matéria. Pois toda substância é ou sensível ou inteligível. Ora, a substância sensível é inseparável da matéria, e a inteligível não é substância, mas ato do intelecto que compreende. Logo, nenhuma substância é verdadeiramente separada da matéria.
2. Além disso, Aristóteles diz, no livro VII da Metafísica, que “o ser é dito de duas maneiras: ou como substância ou como acidente, e a substância é o que está em algo como sujeito”. Ora, toda substância natural está em matéria como em sujeito. Logo, não há substância sem matéria.
3. Ademais, toda substância separada seria incorruptível e imaterial. Ora, o incorruptível e o imaterial pertencem somente a Deus. Logo, admitir substâncias separadas além de Deus seria multiplicar deuses, o que é inadmissível.
4. Além disso, tudo o que é conhecido deriva do sensível, e todo o sensível está unido à matéria. Ora, se houvesse substâncias separadas, seriam totalmente desconhecidas, e nada poderia ser dito delas. Logo, não existem substâncias separadas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “Há substâncias eternas e imóveis, que são causas das coisas sensíveis.” Logo, existem substâncias separadas da matéria.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que existem substâncias separadas da matéria, e que sua existência é necessária tanto pela razão quanto pela ordem das coisas.
Com efeito, toda ordem de seres é ordenada segundo graus de perfeição: há o ser puramente potencial, como a matéria prima; o ser misto de potência e ato, como as substâncias corpóreas; e o ser puramente atual, sem mistura de potência, que é o ser separado. Ora, é impossível que a hierarquia do ser se encerre na composição de potência e ato, sem que exista o termo último que é o ato puro. Logo, é necessário admitir substâncias separadas.
Além disso, a causa deve sempre ser mais perfeita do que o efeito. Ora, as causas do movimento celeste e da ordem natural são incorpóreas, porque o movimento regular e eterno dos céus não procede de algo sujeito à geração e à corrupção. Assim, deve haver substâncias que, não sendo corporais, são causas dos corpos e do movimento.
Do mesmo modo, o intelecto humano mostra pela sua própria natureza que o ser pode existir separado da matéria. Pois o intelecto é capaz de conhecer o universal e o imaterial; mas nada pode conhecer senão por certa semelhança com o que é conhecido. Logo, o intelecto tem afinidade com o ser separado e é sinal de que existem substâncias imateriais.
Além disso, toda forma que tem operação independente da matéria é substância separável. Ora, a operação do intelecto é imaterial, pois compreender não é ato de órgão corporal. Logo, o princípio dessa operação é uma substância que, em si mesma, é separada da matéria.
Portanto, a razão demonstra que, acima das substâncias corpóreas, existem substâncias espirituais e imateriais, distintas umas das outras segundo graus de perfeição, e todas dependentes do primeiro ser separado, que é Deus.
Essas substâncias são chamadas por Aristóteles de intelectos ou inteligências, e pela teologia de anjos. Elas não têm corpo nem forma material, mas são formas subsistentes, cuja essência é o próprio ato de ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a distinção proposta é insuficiente. Há, de fato, substâncias sensíveis unidas à matéria, e há substâncias inteligíveis separadas, que são inteligíveis não por abstração, mas por natureza. O intelecto humano é um ato imaterial, e por isso é princípio de conhecimento das substâncias imateriais.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles fala da substância natural, que é composta de matéria e forma, não da substância universal do ser. Pois ele mesmo, no livro XII da Metafísica, confessa a existência de substâncias separadas, imateriais e eternas.
3. À terceira, deve-se dizer que a incorruptibilidade pertence a Deus por essência, e às substâncias separadas por participação. Elas são incorruptíveis porque não estão compostas de partes, mas não são Deus, porque recebem o ser de outro. Assim, há diferença entre o ser necessário por si e o ser necessário por participação.
4. À quarta, responde-se que, embora o conhecimento humano comece pelos sentidos, ele se eleva, pela abstração e pela iluminação do intelecto agente, até o conhecimento das substâncias separadas, ao menos por analogia. Assim, elas são conhecidas não pelos sentidos, mas pela razão que ascende do visível ao invisível.
Conclusão.
Existem substâncias separadas da matéria, pois a perfeição da ordem do ser exige graus imateriais e incorruptíveis. Essas substâncias são inteligências puras, causas dos movimentos e da ordem do mundo. Nelas a forma subsiste sem matéria, o ato sem potência, e o ser sem corrupção. São os primeiros espelhos do ser divino, luzes intelectuais intermediárias entre Deus e as criaturas corporais, participando do ser e da verdade segundo a medida de sua proximidade ao Ato puro.
Quaestio II — Utrum substantiae separatae sint formae purae
(Se as substâncias separadas são formas puras)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não são formas puras. Pois toda forma é o ato de alguma matéria. Ora, se as substâncias separadas são totalmente imateriais, não podem ser formas, já que lhes falta o sujeito que é a matéria. Logo, não são formas puras.
2. Além disso, a forma é aquilo que dá o ser a outro, e não o que subsiste por si. Ora, se as substâncias separadas subsistem por si mesmas, não podem ser formas, porque a forma, em si, é princípio, não subsistência.
3. Ademais, a forma é princípio de individuação quando unida à matéria, e o que é separado da matéria não tem distinção numérica. Ora, se as substâncias separadas são formas puras, não haverá multiplicidade entre elas, mas apenas uma forma única, o que contradiz a pluralidade das inteligências. Logo, não são formas puras.
4. Além disso, a forma é princípio de ato, e o ato é sempre ordenado a uma potência. Ora, o que é separado da matéria não tem potência alguma. Logo, não pode haver forma sem potência, e, portanto, não há forma pura separada.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “As substâncias imateriais são formas em ato.” Logo, as substâncias separadas são formas puras, porque nelas o ser e o ato coincidem.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas são formas puras, porque nelas não há mistura de potência e ato segundo a composição matéria-forma, mas somente segundo o grau de participação no ser.
Com efeito, a forma é aquilo pelo qual algo é em ato, e a matéria é aquilo pelo qual algo é em potência. Ora, nas substâncias separadas, o ser não depende de matéria alguma; elas existem como atos subsistentes e perfeitos. Logo, são formas puras, isto é, essências cuja substância é o próprio ato de ser.
Nas coisas corpóreas, a forma é ato da matéria; nas substâncias separadas, é ato em si. Por isso, Aristóteles chama-as “formas sem matéria” e “entes em ato”.
Deve-se, porém, distinguir entre forma pura absolutamente, que é apenas Deus, e forma pura participada, que são as inteligências criadas. Em Deus, não há distinção entre forma e ser, porque Ele é o Ser subsistente; nas inteligências, a forma e o ser distinguem-se segundo a razão, mas não segundo a composição com matéria.
Assim, as substâncias separadas são formas puras por exclusão de toda matéria, mas não absolutamente simples como o Primeiro Ser. São formas subsistentes, mas criadas, e por isso possuem ato e limite: ato quanto ao ser recebido; limite quanto à dependência da causa primeira.
Além disso, cada substância separada tem grau próprio de perfeição segundo o modo de sua forma. Essa diferença não procede da matéria, mas da diversidade de participação no ser divino. Como a luz que emana do sol é uma, mas brilha com diferentes intensidades segundo o meio, assim as formas separadas são múltiplas segundo o grau de perfeição com que recebem o ser.
Portanto, as substâncias separadas são formas puras — não em sentido absoluto, mas por exclusão de toda composição material, sendo essências subsistentes em ato e distintas pela medida de sua participação no Ser primeiro.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a forma, nas coisas corpóreas, é ato da matéria; mas, nas substâncias separadas, é ato em si mesmo. A noção de forma não implica necessariamente um sujeito material, mas um princípio de atualidade. Assim, pode haver forma subsistente, como o intelecto, cuja essência é o próprio ato de compreender.
2. À segunda, responde-se que a forma, em si, não é necessariamente dependente de outro; apenas nas coisas compostas ela o é. Nas substâncias separadas, a forma subsiste por si porque é ato puro, e o ato, quando completo, é fundamento do ser, não acidente de outro.
3. À terceira, deve-se dizer que a multiplicidade das substâncias separadas não vem da matéria, mas da diversidade de perfeição formal. Cada forma separada é uma participação distinta da perfeição divina; e, assim como há muitos espelhos de uma única luz, há muitas inteligências que refletem o mesmo Ser sob diferentes graus de perfeição.
4. À quarta, responde-se que nas substâncias separadas não há potência passiva, mas há potência ativa e finita, isto é, capacidade de operar segundo o grau de sua forma. Assim, elas são formas puras quanto ao ser, mas potentes quanto à operação, porque toda criatura, ainda que imaterial, é limitada e ordenada a algo superior.
Conclusão.
As substâncias separadas são formas puras, porque nelas o ser não depende de matéria, e sua essência é ato subsistente. São essências intelectuais, diversas entre si pela intensidade do ser que recebem e hierarquicamente ordenadas ao Ser absoluto. Nelas se manifesta a pureza do ato sem composição material — a região metafísica em que o ser é luz, e cada forma, centelha do intelecto divino.
Quaestio III — Utrum sint plures substantiae separatae
(Se há várias substâncias separadas)
Objeções.
1. Parece que não há várias substâncias separadas. Pois a separação da matéria implica unidade de forma. Ora, se a substância separada é forma pura, e a forma pura é indivisível, então não podem existir muitas substâncias separadas sem matéria, porque a multiplicidade depende da diversidade de matéria. Logo, há apenas uma substância separada.
2. Além disso, a diversidade entre substâncias da mesma espécie exige matéria como princípio de distinção. Ora, se as substâncias separadas são sem matéria, não podem ser diversas segundo o número. Logo, há apenas uma única substância separada.
3. Ademais, o primeiro princípio é simples e único. Ora, as substâncias separadas, por sua proximidade com o primeiro, devem imitar sua simplicidade. Logo, quanto mais próximas do primeiro são, tanto mais devem tender à unidade; e, portanto, não há pluralidade entre elas.
4. Além disso, tudo o que é múltiplo deriva do que é um. Ora, se as substâncias separadas são totalmente imateriais, não há nelas causa de multiplicidade. Logo, há apenas uma substância separada, e essa é Deus.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, diz que “há tantas substâncias eternas quantos são os movimentos dos céus.” Ora, há diversos movimentos e orbes celestes. Logo, há várias substâncias separadas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que há várias substâncias separadas, distintas entre si, não pela matéria, mas pela diversidade de perfeição formal e de grau de participação no ser.
Com efeito, a multiplicidade
pode proceder de dois modos:
— pela matéria,
como nas coisas corpóreas, em que a forma é a mesma em muitos sujeitos;
— pela forma,
como nas coisas imateriais, em que a diversidade vem da desigualdade de
perfeição.
Ora, nas substâncias separadas, a diversidade procede do segundo modo, porque cada uma delas é uma forma pura e possui um grau distinto de semelhança com o primeiro ser.
Assim, quanto mais próxima uma substância está de Deus, mais perfeita e mais simples é; quanto mais distante, mais limitada e específica se torna. Daí resulta uma hierarquia de inteligências, nas quais cada uma tem essência própria e distinta, não pela composição, mas pela intensidade do ato de ser.
Essa distinção é comparável à dos números: todos procedem da unidade, mas são múltiplos conforme o modo de participação da unidade. Assim também, todas as substâncias separadas procedem de Deus, mas cada uma participa do Ser de maneira singular e finita.
Além disso, a ordem dos movimentos celestes confirma essa pluralidade, pois Aristóteles ensina que cada orbe celeste é movido por uma substância incorpórea distinta, chamada “intelecto motor.” Ora, há muitos orbes; logo, há muitas substâncias separadas, cada qual com sua operação própria.
Portanto, não é contra a unidade divina admitir pluralidade de inteligências; antes, essa multiplicidade manifesta a plenitude da bondade divina, que se difunde em muitos modos de ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a forma pura é indivisível, mas pode ser múltipla segundo o grau de perfeição. Assim como a luz é uma em espécie, mas múltipla em intensidade conforme o meio, também as substâncias separadas são muitas segundo o modo de participação do ato puro.
2. À segunda, responde-se que, embora a matéria seja princípio de distinção numérica nas coisas corpóreas, nas substâncias separadas a distinção é formal, segundo a diversidade do grau de perfeição essencial. Cada forma pura é um modo distinto do ser, e essa diferença basta para a pluralidade.
3. À terceira, deve-se dizer que as substâncias separadas imitam a simplicidade divina, mas não a igualam. A unidade de Deus é absoluta; a das substâncias separadas é derivada e hierárquica. Assim, há muitas que são simples em si mesmas, mas distintas umas das outras pela medida de perfeição recebida.
4. À quarta, responde-se que a multiplicidade das substâncias separadas procede do Uno, não por matéria, mas por difusão de perfeição. A unidade do primeiro princípio não exclui a pluralidade dos efeitos, mas antes a exige, porque o bem é difusivo de si mesmo.
Conclusão.
Há várias substâncias separadas, distintas entre si pela diversidade de perfeição e de grau de ser. Cada uma é forma pura, mas com participação diversa no Ser primeiro. Sua pluralidade não destrói a unidade divina, mas a manifesta, porque o Uno se reflete em muitos modos, como o sol em múltiplos raios. Assim, a ordem das inteligências separadas é a primeira imagem da ordem universal — uma harmonia de essências puras, ordenadas do Ato supremo até o limiar da matéria.
Quaestio IV — Utrum sint mediae substantiae inter Deum et hominem
(Se existem substâncias intermediárias entre Deus e o homem)
Objeções.
1. Parece que não existem substâncias intermediárias entre Deus e o homem. Pois entre dois extremos, dos quais um é infinito e o outro finito, não há meio proporcional, já que o infinito não admite medida. Ora, Deus é o ser infinito, e o homem é o ser finito. Logo, não há substâncias intermediárias entre ambos.
2. Além disso, se houvesse substâncias intermediárias, elas participariam do ser divino mais do que o homem e menos do que Deus. Ora, a participação do ser divino é sempre segundo um modo finito, e, portanto, a diferença de grau não estabelece um novo gênero de substância. Logo, não há natureza intermediária, mas apenas diferença de perfeição na mesma ordem.
3. Ademais, tudo o que é criado ou é espiritual ou é corporal. Ora, o homem é composto de espírito e corpo, e Deus é espírito puro. Logo, não pode haver uma substância intermediária entre ambos, porque toda criatura espiritual estaria mais próxima de Deus, e toda corporal mais próxima do homem.
4. Além disso, as substâncias intermediárias seriam ou imateriais ou materiais. Se materiais, não seriam intermediárias, mas inferiores; se imateriais, seriam puras inteligências, e, portanto, totalmente superiores ao homem. Logo, não existe grau médio entre Deus e o homem.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, ensina que há uma ordem de substâncias: o primeiro motor imóvel, as inteligências separadas e, depois delas, as substâncias corpóreas. Logo, entre Deus e o homem há substâncias intermediárias.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que existem substâncias intermediárias entre Deus e o homem, e que essa mediação é necessária para conservar a ordem e a continuidade do universo.
Com efeito, a sabedoria divina manifesta-se pela disposição hierárquica de todos os entes, de modo que não há salto abrupto entre os extremos, mas gradação contínua. Assim, entre o Ser infinito e as criaturas compostas de matéria e forma, é necessário que existam essências que participem do ser de modo mais puro e elevado do que o homem, e, no entanto, sejam finitas.
Ora, o homem participa do ser tanto segundo a alma quanto segundo o corpo; a alma é espiritual, o corpo é material. Entre o homem e Deus, que é ato puro, deve haver substâncias que sejam apenas espirituais, mas finitas — isto é, intelectos separados ou anjos, que são formas puras subsistentes sem matéria.
Essa ordem é confirmada pela proporção natural do ser: pois o ser corpóreo está para o ser espiritual assim como o sensível está para o inteligível. Ora, o homem é o termo mais alto do sensível e o mais baixo do inteligível. Logo, é necessário que acima dele existam seres totalmente inteligíveis, que fazem a transição entre o composto e o puro, entre o finito e o infinito.
Além disso, a causa sempre excede o efeito. Se o homem é capaz de conhecer o universal, deve haver uma causa que o ilumine e o mova nesse ato intelectual. Ora, essa causa não pode ser corpórea, nem o próprio Deus de modo imediato, mas deve ser intermediária — uma substância intelectual separada que comunica ao intelecto humano a luz da verdade.
Portanto, entre o homem e Deus existem substâncias puramente espirituais, diversas em graus e perfeição, que constituem uma hierarquia — os anjos e inteligências —, por meio das quais o influxo do Ser primeiro se difunde até as naturezas inferiores.
Assim, há uma tríplice ordem do ser:
1. O princípio absoluto, que é Deus, ato puro e causa primeira;
2. As substâncias separadas, que são formas puras finitas e imateriais;
3. O homem, composto de espírito e matéria, limite entre o inteligível e o sensível.
Essa estrutura garante a continuidade da criação e a comunicação harmoniosa entre o divino e o humano.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que entre o infinito e o finito não há meio proporcional em quantidade, mas há ordem de participação em perfeição. O ser pode ser participado de muitos modos, e essa diversidade de participação estabelece graus intermediários sem destruir a unidade do princípio.
2. À segunda, responde-se que as substâncias intermediárias não constituem novo gênero, mas nova ordem de perfeição. A diferença entre Deus, os anjos e o homem não é apenas de grau, mas também de modo de ser: Deus é ato puro; o anjo é ato finito sem matéria; o homem é ato limitado na matéria.
3. À terceira, deve-se dizer que as criaturas espirituais e corporais não exaurem toda a hierarquia do ser, pois há também o espiritual finito, que é intermediário entre o espírito puro e o espírito unido à matéria. Assim como a luz tem gradações entre o claro e o opaco, há graus entre o puro espírito e o espírito material.
4. À quarta, responde-se que as substâncias intermediárias são imateriais, mas finitas; por isso, não são absolutamente semelhantes a Deus, nem completamente diferentes do homem. Elas são mediação ontológica: espirituais quanto à essência, criadas quanto à dependência, e ordenadas quanto à operação entre o divino e o humano.
Conclusão.
Existem substâncias intermediárias entre Deus e o homem — inteligências puras ou anjos —, que participam do ser de modo mais elevado que o homem e mais limitado que Deus. Essa hierarquia mantém a continuidade do universo, une o mundo visível ao invisível e manifesta a ordem da providência divina, na qual tudo é ligado a tudo por graus de ser. O homem, por sua alma intelectual, toca o limiar dessas substâncias; e elas, por sua luz e operação, unem o cosmos ao seu princípio.
Quaestio V — Utrum omnes substantiae separatae sint incorruptibiles
(Se todas as substâncias separadas são incorruptíveis)
Objeções.
1. Parece que nem todas as substâncias separadas são incorruptíveis. Pois tudo o que é criado pode não ser, porque não é o próprio ser, mas tem o ser por participação. Ora, a corrupção é justamente a passagem do ser ao não ser. Logo, as substâncias separadas, sendo criadas, podem deixar de existir e, portanto, são corruptíveis.
2. Além disso, a incorruptibilidade pertence àquilo que é simples e imutável. Ora, toda substância criada é composta ao menos de essência e de ser, e onde há composição há possibilidade de separação. Logo, as substâncias separadas são corruptíveis, porque podem perder o ser que possuem.
3. Ademais, aquilo que depende de outro quanto à conservação pode ser destruído pela retirada da causa conservadora. Ora, as substâncias separadas dependem de Deus quanto ao ser e à conservação. Logo, se Deus retirasse seu influxo, elas pereceriam; portanto, são corruptíveis.
4. Além disso, segundo Aristóteles, a corrupção é a perda da forma. Ora, toda criatura tem forma recebida, e o que é recebido pode ser perdido. Logo, as substâncias separadas, por terem o ser recebido, podem corromper-se.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz, no livro XII da Metafísica, que “as substâncias separadas são imutáveis e eternas.” Logo, são incorruptíveis.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que todas as substâncias separadas são incorruptíveis, não por si mesmas como Deus, mas por participação na imutabilidade e eternidade divinas.
Com efeito, a corrupção pertence apenas ao que tem potência passiva para o não ser. Ora, a potência passiva está sempre ligada à matéria, porque é próprio da matéria ser o sujeito das mudanças e privações. Assim, tudo o que é composto de matéria e forma é corruptível, pois a matéria pode perder a forma que a informa.
Mas as substâncias separadas são totalmente imateriais; nelas não há potência passiva que as disponha à privação. Elas são formas puras e atos subsistentes, e por isso não estão sujeitas à dissolução.
Além disso, a operação segue o modo de ser: o que opera imaterialmente, existe imaterialmente. Ora, as substâncias separadas operam sem órgão corporal, pois conhecem e amam em ato puro. Logo, sua existência é conforme à sua operação — incorpórea, imutável e incorruptível.
Devemos, porém, distinguir
entre incorruptibilidade por
natureza e incorruptibilidade por causa.
— Por natureza, as substâncias separadas são incorruptíveis porque nada nelas
tende à dissolução, pois nelas não há contrariedade nem composição de partes
materiais.
— Por causa, são incorruptíveis porque dependem da vontade de Deus, que as
conserva no ser. Assim, não são necessárias por essência, mas por participação.
Por conseguinte, é impossível que uma substância separada pereça por corrupção natural, mas é possível que cesse de existir pela supressão do influxo divino, se assim Deus o quisesse. Contudo, isso repugna à ordem da sabedoria divina, que conserva perpetuamente o que criou para manifestar sua bondade.
Logo, as substâncias separadas são incorruptíveis quanto à natureza, contingentes quanto à origem, e necessárias quanto à conservação ordenada por Deus.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora toda criatura tenha potência de não ser em razão da dependência de Deus, não tem essa potência em si mesma como disposição interna. As substâncias separadas não têm matéria nem potência passiva; logo, não podem ser corrompidas naturalmente.
2. À segunda, responde-se que a composição de essência e ser não implica corruptibilidade, mas contingência de origem. A corrupção exige oposição de contrários ou privação na matéria, o que não existe nas substâncias separadas.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora dependam de Deus para existir, essa dependência não as torna corruptíveis, mas conservadas. Se Deus retirasse o ser, todas as coisas cessariam, mas isso seria aniquilação, não corrupção. A corrupção é mudança natural, e não aniquilação pela vontade divina.
4. À quarta, responde-se que a forma das substâncias separadas é sua própria essência subsistente; logo, não pode ser perdida, porque não está em sujeito que a receba. A forma que é o próprio ser subsistente é incorruptível.
Conclusão.
Todas as substâncias separadas são incorruptíveis, porque nelas não há matéria, nem potência passiva, nem contrariedade. Sua essência é forma pura e ato subsistente; sua conservação provém da vontade divina, que é imutável. Assim, são imortais, eternas e inalteráveis, não por natureza divina, mas por participação no Ser primeiro, que é o próprio Ato sem potência. Nelas a eternidade criada reflete a eternidade incriada — e o esplendor da permanência divina resplandece na estabilidade das inteligências imateriais.
Quaestio VI — Utrum substantiae separatae sint intellectuales
(Se as substâncias separadas são intelectuais)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não são intelectuais. Pois o intelecto é potência que depende de espécie inteligível recebida. Ora, nas substâncias separadas não há recepção, porque são atos puros. Logo, nelas não há intelecto.
2. Além disso, a operação intelectual consiste em abstrair o universal a partir do sensível. Ora, as substâncias separadas não têm sentidos nem contato com o sensível. Logo, não podem exercer operação intelectual.
3. Ademais, todo intelecto conhece por meio de espécie distinta de si. Ora, se as substâncias separadas fossem intelectuais, deveriam ter espécies diversas para conhecer. Mas isso implicaria composição e potencialidade nelas, o que contradiz sua simplicidade. Logo, não são intelectuais.
4. Além disso, o intelecto implica certa potência receptiva. Ora, o que é separado é ato puro e não tem potência passiva. Logo, nas substâncias separadas não pode haver intelecto.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “As substâncias separadas são inteligíveis e intelectuais; vivem e contemplam continuamente o que é divino.” Logo, as substâncias separadas são intelectuais.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que todas as substâncias separadas são intelectuais, porque sua operação própria é o conhecimento e a contemplação do ser.
Com efeito, o intelecto é o ato da substância imaterial. Pois conhecer é possuir a forma do conhecido sem que a matéria a receba materialmente. Ora, as substâncias separadas são formas puras, e, portanto, conhecem e vivem segundo a natureza do intelecto.
A operação de cada ser segue seu modo de ser. Se algo é material, opera materialmente; se é imaterial, opera imaterialmente. Mas a operação imaterial é o ato de compreender. Logo, as substâncias separadas, sendo imateriais, têm o intelecto como sua própria essência operativa.
Entretanto, seu modo de conhecer difere do humano. O homem conhece a partir das imagens sensíveis, abstraindo formas universais pela potência do intelecto agente. Já as substâncias separadas conhecem sem mediação sensível, pois possuem as formas inteligíveis em si mesmas.
Cada substância separada é, de certo modo, uma forma inteligível viva, e sua essência é o princípio de sua ciência. Ela não abstrai, mas intui; não aprende por raciocínio, mas contempla por presença. Seu conhecimento é simultâneo, não discursivo; conhece tudo o que lhe é proporcionado em um só ato de inteligência.
Além disso, há entre elas hierarquia de inteligências: as superiores conhecem mais universalmente, as inferiores mais particularmente. Assim, a ordem intelectual reflete a ordem ontológica: quanto mais perfeita a forma, mais simples e abrangente é o conhecimento.
Portanto, as substâncias separadas são intelectuais, porque sua essência é forma pura e seu ato é conhecimento. São inteligências subsistentes, cujo viver é compreender e cuja perfeição é contemplar o bem divino.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o intelecto, nas criaturas, é potência apenas quando unido à matéria. Nas substâncias separadas, o intelecto é ato puro; por isso, não depende de espécie recebida, mas possui em si as formas inteligíveis conforme sua própria essência.
2. À segunda, responde-se que as substâncias separadas não abstraem do sensível, porque o sensível não é o meio de seu conhecimento. Elas conhecem por emanação da luz intelectual, pela qual participam das ideias divinas. O homem conhece por via descendente; o anjo, por via de presença.
3. À terceira, deve-se dizer que as espécies inteligíveis nas substâncias separadas não são algo distinto da essência, mas participações formais do mesmo ser. Assim, nelas há diversidade de inteligidos sem composição, porque o ato de conhecer é idêntico ao ser que conhece.
4. À quarta, responde-se que o intelecto, enquanto potência receptiva, existe apenas nas naturezas compostas. Nas substâncias separadas, o intelecto é pura atualização, sem passividade. Sua receptividade é apenas segundo o influxo do Ser primeiro, de quem recebem continuamente o ato de entender.
Conclusão.
As substâncias separadas são intelectuais, pois sua essência é imaterial e sua operação é inteligível. Não conhecem por abstração, mas por presença; não pela imagem, mas pela forma; não pela potência, mas pelo ato. São inteligências puras, cuja vida é conhecimento, e cuja felicidade é a contemplação do Uno. Assim, o universo espiritual é ordem de mentes em contemplação — reflexo do Intelecto divino que as move e as ilumina.
Quaestio VII — Utrum substantiae separatae habeant cognitionem rerum materialium
(Se as substâncias separadas têm conhecimento das coisas materiais)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não conhecem as coisas materiais. Pois o conhecimento requer certa semelhança entre o conhecedor e o conhecido. Ora, as substâncias separadas são imateriais, e as coisas materiais são corpóreas e compostas. Logo, não pode haver semelhança entre elas, e, portanto, as substâncias separadas não conhecem as coisas materiais.
2. Além disso, todo conhecimento intelectual das coisas materiais requer abstração das formas sensíveis. Ora, as substâncias separadas não têm sentidos nem imaginação. Logo, não podem conhecer as coisas materiais, porque lhes falta o princípio da abstração.
3. Ademais, o conhecimento das coisas inferiores seria inútil às substâncias separadas, cuja operação é contemplar o divino. Ora, a natureza não faz nada em vão. Logo, as substâncias separadas não conhecem as coisas materiais.
4. Além disso, se as substâncias separadas conhecessem as coisas materiais, seu conhecimento dependeria da mutabilidade dessas coisas, e, portanto, seriam mutáveis quanto à sua operação. Ora, as substâncias separadas são imutáveis. Logo, não conhecem as coisas materiais.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma que “as substâncias separadas conhecem as coisas sensíveis por suas causas universais.” Logo, elas têm conhecimento das coisas materiais, ainda que de modo superior e imaterial.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas têm conhecimento das coisas materiais, mas não como nós as conhecemos, por abstração das imagens sensíveis; antes, conhecem-nas por participação da luz intelectual divina e pela virtude das formas universais que possuem em si.
Com efeito, o conhecimento pode
ser de duas maneiras:
— ou por abstração,
como ocorre no intelecto humano, que retira do sensível a espécie inteligível;
— ou por emanação,
como ocorre nas substâncias superiores, que conhecem o inferior a partir do
superior, e o material a partir do imaterial.
Ora, as substâncias separadas, sendo formas puras, possuem em si as razões universais das coisas, segundo as quais podem compreender tanto os princípios como os efeitos do mundo corpóreo. Elas conhecem as coisas materiais em suas causas exemplares, e não pelos acidentes mutáveis que nelas ocorrem.
O conhecimento das coisas inferiores é, pois, presente nelas de modo mais perfeito: conhecem o particular enquanto incluído no universal, e o mutável enquanto ordenado a um princípio estável.
Além disso, as substâncias separadas participam de uma hierarquia de luzes intelectuais: as superiores conhecem as inferiores por essência e causalidade; as inferiores, por recepção e dependência. Assim, as inteligências mais altas conhecem as coisas materiais universalmente e em sua ordem total; as inferiores, mais particularmente e segundo efeitos determinados.
Essa doutrina é confirmada por Aristóteles e pelos teólogos: a inteligência move os céus porque conhece o bem da ordem que comunica aos corpos. Ora, ninguém move o que não conhece. Logo, é necessário que as substâncias separadas conheçam as coisas materiais, porque delas dependem os movimentos e a harmonia do mundo visível.
Portanto, as substâncias separadas conhecem as coisas materiais por modo intelectual e universal, e não por modo sensível ou experimental.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a semelhança entre o intelecto e o sensível não é segundo a matéria, mas segundo a forma. Assim, as substâncias separadas conhecem as coisas materiais porque nelas existem as razões formais das coisas, não materialmente, mas espiritualmente.
2. À segunda, responde-se que o intelecto humano abstrai porque é unido à matéria e precisa libertar as formas da condição sensível. As substâncias separadas, ao contrário, já possuem as formas universais de modo puro e imaterial. Logo, não abstraem, mas contemplam diretamente as essências das coisas.
3. À terceira, deve-se dizer que o conhecimento das coisas materiais não é inútil às substâncias separadas, porque elas são causas e regentes do mundo corpóreo. O conhecimento do efeito é necessário àquele que o produz ou governa. Assim, conhecem o inferior não por curiosidade, mas por causalidade e governo.
4. À quarta, responde-se que o conhecimento das coisas materiais não as torna mutáveis, porque conhecem o mutável de modo imutável. O intelecto superior não depende da variação das coisas, mas contém em si suas causas eternas, pelas quais as conhece de modo fixo e estável.
Conclusão.
As substâncias separadas conhecem as coisas materiais, não por abstração, mas pela posse das formas universais em si mesmas. Conhecem o mundo sensível em suas causas, ordens e finalidades, não nos acidentes. Seu saber é causal e exemplar, não empírico. Assim, a natureza visível está contida no intelecto invisível como o reflexo na luz: o anjo contempla o mundo, não pela imagem das coisas, mas pela razão que as origina.
Quaestio VIII — Utrum substantiae separatae moveant corpora caelestia
(Se as substâncias separadas movem os corpos celestes)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não movem os corpos celestes. Pois o movimento requer contato entre o motor e o móvel. Ora, as substâncias separadas são imateriais e incorpóreas; logo, não podem tocar os corpos, nem, portanto, movê-los.
2. Além disso, todo movimento físico depende de uma potência natural intrínseca ao corpo movido. Ora, os céus possuem movimento natural circular e contínuo; logo, movem-se por si mesmos e não por substâncias separadas.
3. Ademais, se as substâncias separadas movem os corpos celestes, o movimento dos céus dependeria da vontade intelectual. Ora, o movimento dos céus é sempre uniforme e necessário, não contingente nem voluntário. Logo, não é causado por substâncias intelectuais.
4. Além disso, o movimento dos corpos celestes é local, e o que é incorpóreo não tem relação direta com o lugar. Logo, uma substância imaterial não pode mover o que é corpóreo segundo o lugar.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “Cada orbe celeste é movido por uma substância separada e incorpórea, que o move como objeto de desejo e de pensamento.” Logo, as substâncias separadas movem os corpos celestes.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas movem os corpos celestes, não por contato físico ou impulsão material, mas por modo intelectual e final, isto é, como aquilo que é amado e desejado pelo corpo celeste enquanto participa da ordem do universo.
Com efeito, Aristóteles ensina que o movimento dos céus é eterno e regular, e, portanto, deve proceder de uma causa eterna e imutável. Ora, nenhuma causa corpórea pode ser eterna, porque todo corpo está sujeito à mudança e à corrupção. Logo, é necessário que a causa motora dos céus seja incorpórea e separada.
Além disso, o movimento dos céus é ordenado e harmônico, dirigido ao bem do todo. Ora, o bem é aquilo que move o apetite, e o intelecto é o que apreende o bem. Assim, o corpo celeste é movido por uma substância intelectual, que o atrai como fim e o dirige como causa final.
Deve-se entender que em cada
orbe celeste há dois princípios de movimento:
— o motor separado,
que é uma substância imaterial e intelectual,
— e o motor intrínseco,
que é a alma ou forma do corpo celeste, pela qual o corpo obedece ao impulso da
substância separada.
Dessa forma, a substância separada move como fim e causa principal; a alma celeste move como instrumento e executora.
O movimento do céu é, pois, desejoso e amoroso: o corpo celeste, animado, tende ao intelecto separado, como o amante para o amado, buscando imitá-lo em sua perfeição. Assim, move-se perpetuamente, porque o objeto de seu amor é imutável e eterno.
Essa doutrina exprime a harmonia cósmica: cada esfera do universo é movida por uma inteligência que a ordena segundo o bem e o ser do todo. Deus move tudo como fim último; as inteligências, como causas intermediárias; e os céus, como instrumentos visíveis da ordem invisível.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o movimento causado pela substância separada não é por contato corporal, mas por influência de ordem e de desejo. O corpo celeste move-se não por impulsão física, mas por imitação e amor do bem inteligível.
2. À segunda, responde-se que o movimento natural dos céus é natural quanto à execução, mas depende de princípio intelectual quanto à intenção. A alma celeste move-se naturalmente em direção ao intelecto separado, e é isso que causa seu movimento circular e contínuo.
3. À terceira, deve-se dizer que o movimento dos céus é necessário e eterno, mas procede de intelecto e amor, não de escolha contingente. Assim, a vontade das substâncias separadas não é livre como a humana, mas ordenada por natureza ao bem que contemplam.
4. À quarta, responde-se que o incorpóreo não se relaciona com o lugar por si mesmo, mas por meio do corpo que o obedece. Assim, o intelecto separado move o corpo celeste segundo o lugar, não por si, mas enquanto é fim e forma motora da alma celeste.
Conclusão.
As substâncias separadas movem os corpos celestes como causas intelectuais e finais. O movimento dos céus é expressão do amor do inteligível: cada orbe é movido pela inteligência que o ilumina, e o universo inteiro gira em torno do desejo do bem supremo. Assim, o cosmos é um hino de movimento e de amor — uma dança circular onde o intelecto move o corpo, e o corpo, por seu giro eterno, manifesta a luz do espírito.
Quaestio IX — Utrum una substantia separata moveat plura corpora
(Se uma única substância separada pode mover vários corpos)
Objeções.
1. Parece que uma única substância separada pode mover vários corpos. Pois a substância separada é incorpórea e, portanto, não está confinada a um lugar. Ora, o que não está circunscrito a um ponto pode estender sua ação a muitos. Logo, uma só substância separada pode mover muitos corpos ao mesmo tempo.
2. Além disso, o intelecto superior é causa universal. Ora, a causa universal estende-se a muitos efeitos. Logo, uma só substância separada pode mover muitos corpos, assim como um só sol ilumina muitos lugares.
3. Ademais, a ordem do universo é uma, e sua causa primeira é uma. Ora, se a unidade do primeiro princípio não exclui a multiplicidade dos efeitos, parece que também uma substância separada, que é imagem mais próxima do Uno, pode mover diversos corpos subordinados.
4. Além disso, se cada corpo celeste fosse movido por uma substância separada distinta, haveria tantas inteligências quantos movimentos, o que parece multiplicação desnecessária de causas. Ora, a natureza não faz nada em vão. Logo, uma só substância separada deve mover vários corpos.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma que “há tantas inteligências quantos são os movimentos celestes.” Logo, não é uma só substância separada que move vários corpos, mas cada corpo é movido por sua própria inteligência.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que nenhuma substância separada move vários corpos, mas cada corpo celeste é movido por uma inteligência própria e singular, conforme sua ordem e movimento determinados.
Com efeito, a unidade de ação segue a unidade de forma e de fim. Ora, cada movimento do céu é distinto quanto ao fim e à direção: uns são mais rápidos, outros mais lentos; uns orientam-se para o oriente, outros para o ocidente. Logo, deve haver distinção proporcional nas causas motoras, porque a diversidade dos efeitos exige diversidade de princípios.
Além disso, a substância separada move o corpo celeste por modo de amor e de intelecto. Ora, o amor é sempre determinado a um bem próprio e particular. Assim, cada corpo celeste é movido por sua inteligência correspondente, que o atrai segundo a perfeição que lhe é própria.
É verdade, porém, que todas as substâncias separadas dependem de um único princípio, Deus, que é causa universal e fim último de todos os movimentos. Contudo, a causalidade de Deus é primeira e comum; a das inteligências, particular e subordinada.
Portanto, assim como o artífice universal age por meio de diversos instrumentos para realizar sua obra, também Deus age por meio de muitas inteligências para ordenar os diversos movimentos do céu. Cada inteligência é instrumento racional da harmonia cósmica.
Essa distinção é necessária para conservar a proporção entre a ordem espiritual e a material: cada orbe celeste manifesta a operação de uma inteligência, e a pluralidade dos movimentos exprime a pluralidade dos modos de contemplar e amar o primeiro bem.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a ausência de circunscrição não implica indeterminação de ação. A substância separada, embora incorpórea, tem operação determinada por sua essência e fim próprio. Assim, sua influência não se difunde a muitos corpos, mas se ordena a um só, segundo a medida da ordem divina.
2. À segunda, responde-se que o intelecto separado é universal quanto à natureza, mas particular quanto à operação. Assim como o sol ilumina muitos, mas cada raio tem direção determinada, também as inteligências têm poder universal de mover, mas cada uma move um corpo particular conforme sua forma e finalidade.
3. À terceira, deve-se dizer que a unidade do primeiro princípio não impede a pluralidade das causas segundas. A perfeição do universo requer multiplicidade de inteligências, porque a diversidade dos movimentos manifesta a riqueza do Ser divino.
4. À quarta, responde-se que não há multiplicação inútil de causas, pois cada inteligência corresponde a um movimento necessário para a ordem total. A natureza não multiplica causas sem necessidade, mas a ordem celeste exige diversidade de motores para conservar a harmonia dos orbes.
Conclusão.
Nenhuma substância separada move vários corpos, mas cada corpo celeste é movido por uma inteligência própria. A unidade de Deus reflete-se na multiplicidade ordenada das inteligências, e a multiplicidade dos céus espelha a hierarquia das causas espirituais. Assim, o universo é um coro em que cada esfera canta seu movimento distinto — e cada voz, movida por seu intelecto, converge na melodia do Uno.
Quaestio X — Utrum motus caelestium corporum sit ab intellectu
(Se o movimento dos corpos celestes provém do intelecto)
Objeções.
1. Parece que o movimento dos corpos celestes não provém do intelecto. Pois o movimento requer princípio de força e potência ativa. Ora, o intelecto é potência contemplativa, não motiva. Logo, o movimento dos corpos celestes não vem do intelecto, mas de uma virtude natural.
2. Além disso, o movimento dos céus é contínuo e natural, não voluntário nem discursivo. Ora, o intelecto age por deliberação e escolha. Logo, o movimento dos céus não pode vir do intelecto.
3. Ademais, o que se move pelo intelecto deve conhecer o fim do movimento. Ora, o corpo celeste, sendo inanimado e sem alma racional, não pode conhecer. Logo, seu movimento não provém do intelecto, mas de natureza que o inclina a mover-se.
4. Além disso, o movimento intelectual é espiritual e imaterial, enquanto o movimento dos corpos celestes é local e físico. Ora, entre o espiritual e o local não há proporção de causalidade direta. Logo, o movimento dos céus não pode provir do intelecto.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “O movimento dos céus é por causa do pensamento, porque o objeto amado e pensado move o motor.” Logo, o movimento celeste provém do intelecto.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o movimento dos corpos celestes provém do intelecto, não por modo de impulso físico, mas por modo de desejo e imitação.
Com efeito, Aristóteles ensina que o motor primeiro é objeto de amor e de pensamento, e que o movimento dos céus se ordena à contemplação do bem e da beleza divinos. Ora, o amor e o intelecto pertencem à ordem espiritual. Assim, o movimento celeste nasce do intelecto enquanto fim e forma motiva.
Cada corpo celeste é movido por uma inteligência separada, que contempla o bem divino e o imita pela perpetuidade e regularidade de seu movimento. Essa inteligência imprime no corpo celeste um desejo natural de participar do bem que conhece, e, assim, o corpo se move circularmente, pois o círculo é imagem da eternidade e da perfeição divina.
Portanto, o movimento dos céus não é violento nem casual, mas expressão simbólica da operação intelectual da inteligência motora. O corpo celeste é instrumento obediente ao intelecto que o governa; e o intelecto, por sua vez, é movido pelo amor ao primeiro motor.
Dessa forma, há uma cadeia de
causalidades:
— O intelecto divino,
que é o primeiro motor, move por amor e fim;
— As inteligências
separadas, que movem os céus pela imitação desse amor;
— Os corpos celestes,
que executam o movimento recebido pela alma e pela forma motora.
Assim, o universo se move intelectualmente: a causa do movimento físico é espiritual, e o movimento material é sinal do movimento da mente.
Além disso, a circularidade do movimento celeste representa a contemplação intelectual — um retorno contínuo ao mesmo objeto, sem fadiga, sem fim e sem interrupção. O céu gira porque o intelecto que o move contempla o eterno, e o corpo, ao imitá-lo, converte esse ato em rotação perpétua.
Portanto, o intelecto é causa motora dos céus, não como força física, mas como princípio exemplar e final.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o intelecto, embora não mova fisicamente, move por modo superior: o da finalidade. Assim, o corpo celeste não é movido por força natural cega, mas por direção racional que o ordena a seu bem próprio.
2. À segunda, responde-se que o movimento dos céus é natural quanto à execução, mas intelectual quanto à causa. O intelecto superior imprime na natureza do corpo celeste uma inclinação ordenada, e essa inclinação é o princípio de seu movimento contínuo.
3. À terceira, deve-se dizer que o corpo celeste não conhece, mas é movido pela inteligência que o governa e que conhece. Assim como o instrumento participa da arte do artífice sem compreendê-la, o céu participa do movimento intelectual sem o possuir por si.
4. À quarta, responde-se que, embora o movimento intelectual seja imaterial, ele pode causar movimento local por meio da forma que anima o corpo. Assim, o intelecto move o corpo celeste por meio da alma celeste, que é intermediária entre o espiritual e o físico.
Conclusão.
O movimento dos corpos celestes provém do intelecto, porque é ordenado, regular e eterno, e tende a um fim que é o bem e a beleza divina. O intelecto não move pela força, mas pelo amor; e o amor do bem eterno imprime nos céus a necessidade do giro incessante. Assim, o cosmos é uma imensa contemplação em ato, onde o pensamento se faz movimento, e o movimento, louvor visível da inteligência que o inspira.
Quaestio XI — Utrum substantiae separatae moveant per appetitum
(Se as substâncias separadas movem por meio do apetite)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não movem por meio do apetite. Pois o apetite é próprio do composto animado, que tem potência passiva e sensitiva. Ora, as substâncias separadas são puramente ativas e imateriais, sem potência passiva. Logo, nelas não há apetite, e, portanto, não movem por meio dele.
2. Além disso, o apetite implica tendência para o que não se possui. Ora, as substâncias separadas são perfeitas e imutáveis, possuindo o bem conforme sua natureza. Logo, não têm apetite, nem se movem por ele.
3. Ademais, o apetite é causa de movimento em direção a algo externo, como o animal se move em busca do alimento. Ora, as substâncias separadas não se movem localmente, nem necessitam de algo exterior a si. Logo, não têm nem produzem movimento por apetite.
4. Além disso, o apetite é inferior ao intelecto, e o que é mais nobre não age por meio do que é inferior. Ora, as substâncias separadas são intelectuais e puramente racionais. Logo, não movem por apetite, mas apenas por intelecto.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, diz: “O amado move como objeto de desejo, e o desejante é o motor.” Ora, as substâncias separadas movem os céus por amor do bem divino. Logo, movem por apetite.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas movem por meio do apetite, mas não do apetite sensitivo, e sim do apetite intelectual, que é a vontade ou o amor do bem conhecido.
Com efeito, em todas as naturezas espirituais o intelecto e o apetite estão unidos: o intelecto apreende o bem; o apetite tende a ele. Ora, o movimento do céu é efeito dessa dupla operação: a inteligência contempla o bem divino, e o apetite o ama e o imita.
O apetite espiritual é o que move, porque é a tradução dinâmica do amor. O intelecto, enquanto contempla, é imóvel; o amor, enquanto deseja a semelhança com o bem, é princípio de movimento. Assim, o amor é a raiz do movimento universal: o céu se move porque a inteligência que o rege ama o bem imutável e o quer imitar.
Contudo, o apetite nas substâncias separadas não é falta nem carência, mas ato de fruição ordenada. Elas não desejam o bem que lhes falta, mas se deleitam no bem que possuem e o comunicam segundo sua capacidade. Por isso, seu amor é simultaneamente repouso e movimento: repouso, porque gozam do bem presente; movimento, porque o expressam e o refletem no universo.
Esse amor não é sensível nem passional, mas intelectual e voluntário. É o mesmo amor que em Deus é essência, e nas criaturas espirituais é participação. Deus move o todo como objeto amado; as inteligências movem os céus porque amam a Deus; e os céus se movem porque amam e obedecem à inteligência que os governa.
Assim, o universo é regido pelo amor, e toda ordem nasce da inclinação das coisas ao bem. O movimento do céu é, pois, o símbolo visível desse amor invisível, que une o intelecto, o apetite e o ser em uma só harmonia.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o apetite sensitivo requer potência passiva e órgão corpóreo, mas o apetite intelectual não. Ele é ato do intelecto e expressão da vontade. Nas substâncias separadas, há apetite espiritual, porque há intelecto e amor.
2. À segunda, responde-se que o apetite das substâncias separadas não nasce da carência, mas da perfeição. Quanto mais perfeito o ser, mais intensamente ama o bem supremo. Assim, seu apetite é ato puro de amor e fruição, não desejo por falta.
3. À terceira, deve-se dizer que o movimento espiritual não é local, mas causal e exemplar. As substâncias separadas não se movem, mas movem outros; seu amor é princípio de movimento nos céus, como a finalidade move o agente.
4. À quarta, responde-se que o intelecto e o apetite não são dois princípios opostos, mas um só em ato: o intelecto mostra o bem, o apetite o ama. Assim, o apetite é o impulso do intelecto tornado vida; e, nas substâncias separadas, ambos coincidem na contemplação amorosa do divino.
Conclusão.
As substâncias separadas movem por meio do apetite intelectual, isto é, pelo amor do bem conhecido. Seu movimento não é físico nem passional, mas espiritual e final: o amor do bem supremo inflama o intelecto, e o intelecto ordena o amor. Assim, o céu gira movido pelo desejo eterno de Deus, e esse desejo é a força silenciosa que sustenta a harmonia das esferas — o amor que une o inteligível e o sensível, o imóvel e o móvel, o eterno e o temporal.
Quaestio XII — Utrum in substantiis separatis sit ordo et hierarchia
(Se há ordem e hierarquia nas substâncias separadas)
Objeções.
1. Parece que não há ordem nem hierarquia entre as substâncias separadas. Pois a hierarquia implica desigualdade de poder e de perfeição. Ora, todas as substâncias separadas são igualmente imateriais e incorruptíveis. Logo, não há entre elas ordem de superioridade e inferioridade.
2. Além disso, a ordem requer relação de prioridade e posterioridade. Ora, o que é eterno e imutável não tem antes nem depois. Logo, não há ordem nas substâncias separadas, que são eternas e imutáveis.
3. Ademais, toda hierarquia implica governo e subordinação. Ora, nas substâncias separadas não há dominação nem obediência, pois cada uma opera segundo sua natureza. Logo, nelas não há hierarquia.
4. Além disso, a ordem é uma disposição de partes em relação a um todo. Ora, as substâncias separadas são simples e indivisas. Logo, não podem constituir uma ordem hierárquica.
Em contrário (Sed contra).
Dionísio, no livro De Caelesti Hierarchia, afirma: “Há ordem e distinção nas substâncias intelectuais, conforme a proximidade de cada uma ao primeiro princípio.” Logo, nas substâncias separadas há hierarquia e gradação.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que nas substâncias separadas há ordem e hierarquia, tanto quanto à essência quanto quanto à operação, conforme a participação diversa que cada uma tem no Ser primeiro.
Com efeito, a perfeição do universo exige gradação e ordem, pois o bem é difusivo de si mesmo segundo diversos modos de participação. Ora, se nas coisas corporais há ordem e harmonia — entre os elementos, os corpos e os movimentos —, muito mais deve haver entre as substâncias espirituais, que são as causas primeiras e exemplares dessa ordem.
A hierarquia das substâncias separadas não é de lugar, mas de perfeição: umas são mais próximas de Deus, outras mais distantes; umas participam mais intensamente da luz intelectual, outras menos. Assim, a ordem espiritual é uma escala de luz e de amor, na qual o superior ilumina e move o inferior, e o inferior participa e imita o superior.
Dessa forma, há três aspectos de hierarquia entre as substâncias separadas:
1. Hierarquia de essência, segundo a pureza do ser recebido. Aquelas mais simples e universais estão acima das que têm ser mais limitado e específico.
2. Hierarquia de operação, segundo o modo de conhecer e de amar. As superiores conhecem de modo mais universal e intuitivo; as inferiores, de modo discursivo e particular.
3. Hierarquia de causalidade, segundo a medida em que comunicam o ser e o movimento aos inferiores. As mais próximas de Deus são causas das inferiores, e todas participam do governo do universo conforme sua ordem.
Essa hierarquia espiritual é imagem da ordem divina: Deus é o Uno que irradia em muitos, e os muitos retornam ao Uno por gradações de perfeição. Assim, as inteligências formam um coro de luzes, em que cada uma é espelho da sabedoria divina, refletindo segundo sua capacidade o esplendor da causa primeira.
A tradição teológica chama essa
ordem de hierarquia
angélica, composta, segundo Dionísio, de três tríades:
— a primeira, que contempla Deus imediatamente (Serafins, Querubins, Tronos);
— a segunda, que governa as ordens intermediárias (Dominações, Virtudes,
Potestades);
— a terceira, que executa os desígnios divinos no mundo (Principados, Arcanjos,
Anjos).
Embora Aristóteles não use esses nomes, reconhece igualmente a gradação das inteligências segundo a ordem dos movimentos celestes e a proximidade do primeiro motor.
Portanto, a hierarquia das substâncias separadas é natural, necessária e perfeita: natural, porque fundada na diversidade essencial; necessária, porque garante a comunicação ordenada do ser; perfeita, porque manifesta a harmonia da sabedoria divina.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que todas as substâncias separadas são imateriais, mas não igualmente perfeitas. A imaterialidade é comum, mas o grau de participação no ser é diverso. Assim como todos os números são imateriais, mas diferem em valor, também as inteligências diferem em perfeição.
2. À segunda, responde-se que, embora nelas não haja tempo sucessivo, há prioridade de natureza e de perfeição. O que é mais simples e mais semelhante a Deus é naturalmente anterior ao que é mais composto e distante.
3. À terceira, deve-se dizer que há governo e subordinação não por coação, mas por influxo e iluminação. O superior governa comunicando luz; o inferior obedece recebendo-a e operando conforme ela.
4. À quarta, responde-se que a simplicidade não exclui ordem, mas a torna mais perfeita. As substâncias simples não são partes de um todo material, mas graus de uma mesma luz espiritual. Assim, a ordem entre elas é harmonia, não composição.
Conclusão.
Nas substâncias separadas há ordem e hierarquia, porque toda participação no Ser primeiro é medida e graduada. Essa hierarquia é uma escada de luzes: o superior ilumina o inferior, e todos se voltam para Deus como origem e fim. O universo espiritual é, portanto, uma ordem viva, uma sinfonia de inteligências que cantam em graus diferentes a mesma verdade eterna. Nessa ordem hierárquica, o amor é o vínculo, a luz é o meio, e Deus é o termo.
Quaestio XIII — Utrum substantiae separatae cognoscant se ipsas
(Se as substâncias separadas conhecem a si mesmas)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não conhecem a si mesmas. Pois o ato de conhecer requer distinção entre o conhecedor e o conhecido. Ora, nas substâncias separadas não há composição, mas simplicidade absoluta. Logo, nelas não há dualidade entre o intelecto e o inteligido, e, portanto, não há conhecimento de si mesmas.
2. Além disso, conhecer é um tipo de movimento do intelecto em direção ao objeto. Ora, as substâncias separadas são imutáveis e sem movimento. Logo, não conhecem a si mesmas, porque isso implicaria mudança ou relação transitiva em si mesmas.
3. Ademais, o intelecto só conhece em ato quando tem presente uma espécie inteligível. Ora, as substâncias separadas, sendo formas puras, não recebem espécies de si mesmas, pois são o que são por essência. Logo, não conhecem a si mesmas, já que não há distinção entre o princípio cognoscente e o objeto conhecido.
4. Além disso, aquilo que se conhece a si mesmo conhece também seu contrário. Ora, as substâncias separadas não têm contrários, pois são imateriais e simples. Logo, sua natureza exclui o conhecimento de si mesmas, pois não conhecem por comparação, mas apenas por identidade.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, diz: “A substância separada pensa a si mesma, pois seu ato é o mesmo que seu ser.” Logo, as substâncias separadas conhecem a si mesmas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas conhecem a si mesmas, e que esse conhecimento é o mais perfeito que pode existir em uma criatura.
Com efeito, o intelecto, enquanto imaterial, é capaz de refletir sobre si mesmo, porque o conhecimento não requer matéria, mas forma e presença. Ora, a substância separada é forma pura e possui em si o ato de ser e de entender. Logo, conhece-se a si mesma, pois seu ser e seu entender coincidem em um mesmo ato.
O conhecimento de si mesmo nas substâncias separadas não é, como no homem, resultado de raciocínio ou reflexão sucessiva. O homem conhece a si próprio por abstração, isto é, conhecendo primeiro os atos da alma e, por meio deles, chegando à consciência de si. Mas a substância separada conhece-se por identidade formal, porque o que é forma pura é simultaneamente o que conhece e o que é conhecido.
Assim, sua essência é inteligível em si, e sua operação é a própria intelecção de si mesma. O intelecto separado, ao ser, conhece; e ao conhecer, confirma seu ser. Não há passagem nem mediação, mas presença total e simultânea.
Esse conhecimento, porém, não é infinito, como o de Deus. A substância separada conhece-se segundo o grau de ser que possui: compreende sua essência como ato limitado e dependente do Ser primeiro. Sabe que é, e sabe que é por participação. Nisso consiste sua sabedoria: ver-se como luz derivada, não como fonte absoluta.
Além disso, cada substância separada conhece não só a si mesma, mas também as inferiores, porque a superior contém em si as razões universais do que está abaixo. Assim, o conhecimento de si mesmo é também princípio do conhecimento das outras, pois cada inteligência é espelho do universo conforme o grau de sua luz.
Portanto, as substâncias separadas conhecem-se perfeitamente, porque sua essência é forma e ato de conhecimento, e porque o intelecto e o inteligido são uma só realidade nelas.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o conhecimento de si mesmo não exige distinção real entre o conhecedor e o conhecido, mas apenas distinção de razão. O intelecto separado conhece a si mesmo não como coisa diversa, mas como ato que se apreende enquanto ato.
2. À segunda, responde-se que o conhecimento de si mesmo não implica movimento, mas presença. A reflexão espiritual é ato de permanência, não de transição. Assim, as substâncias separadas conhecem-se sem mudança, porque seu ato é eterno e imóvel.
3. À terceira, deve-se dizer que as espécies inteligíveis não são acrescentadas nelas, mas idênticas à sua essência. A forma pela qual conhecem é a mesma pela qual existem. Portanto, nelas, conhecer e ser são uma só coisa.
4. À quarta, responde-se que conhecer o contrário não é condição universal do conhecimento, mas apenas do conhecimento comparativo. As substâncias separadas conhecem-se pela própria identidade formal, sem necessidade de oposição ou contraste.
Conclusão.
As substâncias separadas conhecem-se a si mesmas por identidade de ser e de intelecto. Sua essência é luz que se vê a si mesma: nelas, o ato de existir e o ato de conhecer são o mesmo. Tal conhecimento é puro, imutável e perfeito; não procede de reflexão, mas de presença; não de abstração, mas de identidade. Assim, cada inteligência separada é um espelho consciente do próprio ser — e, ao contemplar-se, vê refletida em si a luz do Ser que a criou.
Quaestio XIV — Utrum substantiae separatae cognoscant alia a se
(Se as substâncias separadas conhecem outras além de si mesmas)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não conhecem outras além de si mesmas. Pois, segundo Aristóteles, “o intelecto em ato é o mesmo que o inteligido.” Ora, se uma substância separada conhece outra, haveria multiplicidade no ato do conhecer, o que destruiria sua simplicidade. Logo, ela não conhece senão a si mesma.
2. Além disso, o conhecimento das coisas diversas requer espécies inteligíveis diversas. Ora, as substâncias separadas são formas simples e indivisas. Logo, não podem conter múltiplas espécies sem perder a simplicidade de sua natureza.
3. Ademais, o conhecimento é uma certa assimilação do sujeito ao objeto. Ora, o que é incorpóreo não pode assimilar-se ao que é corpóreo, pois não há proporção entre ambos. Logo, as substâncias separadas não conhecem as coisas corpóreas.
4. Além disso, conhecer é uma operação que supõe presença do objeto no intelecto. Ora, as substâncias separadas estão separadas por essência de tudo o que é material. Logo, o mundo inferior não lhes é presente, e, portanto, não o conhecem.
Em contrário (Sed contra).
Dionísio, no De Divinis Nominibus, afirma: “As inteligências puras conhecem o que está acima delas pela iluminação, o que está ao lado pela comunicação, e o que está abaixo pela providência.” Logo, as substâncias separadas conhecem outras além de si mesmas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas conhecem outras além de si mesmas, tanto superiores quanto inferiores, segundo a medida da luz intelectual que possuem.
Com efeito, o conhecimento nas substâncias separadas segue a ordem do ser. Quanto mais uma inteligência participa do Ser primeiro, mais universal e abrangente é o seu conhecimento. Assim, a mais elevada conhece a si mesma, as inferiores e as superiores; a mediana conhece a si e as inferiores; a mais baixa conhece apenas a si e o que está abaixo.
O princípio desse conhecimento é a participação do intelecto divino. Deus, que é ato puro e causa de todas as formas, conhece tudo em si mesmo. As substâncias separadas, participando de sua luz, conhecem também os entes, não por recepção de espécies exteriores, mas por visão das razões formais existentes em si mesmas.
Pois, em cada inteligência separada, há a presença ideal das formas das coisas, impressas nela pelo primeiro intelecto. Assim como o artífice conhece suas obras nas ideias da arte, a inteligência conhece as criaturas nas razões eternas que contempla.
Esse conhecimento, contudo, é
analógico e proporcional:
— as inteligências superiores conhecem universalmente e sem discurso;
— as intermediárias conhecem por distinção e comparação;
— as inferiores conhecem mais confusamente, por participação da luz das
superiores.
Além disso, as substâncias separadas conhecem as coisas corpóreas não como compostas e mutáveis, mas enquanto causas, formas e ordens. Conhecem os corpos como inteligências conhecem as figuras: não pelas cores e acidentes, mas pelas razões que as produzem. Assim, conhecem o universo como ordem inteligível, não como extensão sensível.
Portanto, o conhecimento das
substâncias separadas é universal, formal e exemplar:
— universal,
porque abrange o todo na unidade;
— formal,
porque apreende as causas das coisas;
— exemplar,
porque o mundo está nelas como modelo e espelho.
Assim, as substâncias separadas conhecem outras além de si não por multiplicação de espécies, mas por presença virtual das razões em sua inteligência, que é imagem da sabedoria divina.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o conhecimento das outras não destrói a simplicidade, pois o múltiplo está no simples de modo unitário. A substância separada não multiplica espécies distintas, mas contém todas as razões inteligíveis em ato simples.
2. À segunda, responde-se que a simplicidade não exclui a multiplicidade de objetos conhecidos, mas apenas a multiplicidade de formas recebidas. Assim, uma só forma pode representar muitos entes, como o sol ilumina diversos corpos sem dividir-se.
3. À terceira, deve-se dizer que o incorpóreo não se assimila ao corpóreo enquanto tal, mas à sua forma inteligível. As substâncias separadas conhecem os corpos segundo o ser formal e não segundo a matéria.
4. À quarta, responde-se que, embora as substâncias separadas estejam distantes da matéria, nada lhes é oculto quanto à ordem do ser. Pois, estando acima do tempo e do espaço, veem em si as razões eternas pelas quais tudo existe.
Conclusão.
As substâncias separadas conhecem outras além de si mesmas por participação da luz divina, na qual estão contidas as razões de todas as coisas. Seu conhecimento é universal e exemplar: veem tudo o que é, não pelas aparências sensíveis, mas pelas formas ideais que emanam do Ser primeiro. Assim, o mundo inteiro está presente à inteligência espiritual, não como peso nem distância, mas como reflexo da unidade suprema. Cada substância separada é, pois, um espelho consciente do cosmos, e, ao conhecer o outro, retorna a si mesma e a Deus.
Quaestio XV — Utrum substantiae separatae sint agentes in generatione inferiorum
(Se as substâncias separadas agem na geração dos seres inferiores)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não agem na geração dos seres inferiores. Pois toda geração natural procede de uma causa física e materialmente determinada. Ora, as substâncias separadas são incorpóreas e sem contato com a matéria. Logo, não podem ser causas agentes na geração dos corpos inferiores.
2. Além disso, a ação requer proporção entre o agente e o paciente. Ora, entre o espiritual e o material não há proporção, porque pertencem a ordens de ser diferentes. Logo, as substâncias separadas não podem agir nos seres inferiores.
3. Ademais, os corpos inferiores têm causas próximas suficientes — os elementos, os astros e as formas naturais. Ora, é supérfluo admitir uma causa espiritual quando a causa natural basta. Logo, as substâncias separadas não são agentes na geração dos inferiores.
4. Além disso, se as substâncias separadas agem na geração dos inferiores, toda produção material seria milagrosa e não natural. Mas a geração natural ocorre continuamente segundo leis fixas. Logo, as substâncias separadas não agem nela.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma: “As substâncias separadas são as causas primeiras dos movimentos do céu e, por meio do céu, de tudo o que se gera e se corrompe.” Logo, as substâncias separadas são agentes na geração dos inferiores.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas agem na geração dos seres inferiores, não imediatamente, mas por mediação dos corpos celestes, nos quais exercem sua virtude e direção.
Com efeito, toda causa segunda depende da primeira, e a ordem dos seres mostra que o movimento dos corpos superiores é princípio de toda mudança inferior. Ora, o movimento dos céus procede das substâncias separadas, que são suas inteligências motoras. Portanto, estas são causas primeiras e universais de tudo o que ocorre na região inferior, ainda que sua ação se exerça por meio das causas naturais.
Assim, as substâncias separadas agem de três modos:
1. Por causalidade universal, enquanto ordenam o movimento dos astros e, por eles, as mudanças e gerações do mundo inferior.
2. Por causalidade exemplar, enquanto as formas das coisas inferiores preexistem em sua inteligência, e o curso natural imita essas razões superiores.
3. Por causalidade eficiente, enquanto imprimem na natureza celeste a direção e o fim de sua operação.
Portanto, as substâncias separadas são causas da geração natural como motores e ordenadores, não como agentes físicos. A natureza inferior executa o que o intelecto superior concebe e ordena, como o instrumento realiza a arte do artífice.
Essa doutrina mantém a continuidade entre o espiritual e o material: o intelecto não age diretamente sobre a matéria, mas por meio do movimento celeste, que é intermediário entre o incorpóreo e o corpóreo. Assim, o influxo das substâncias separadas é intelectual na causa e natural no efeito.
Por isso, Aristóteles diz que “o céu é como o instrumento da inteligência”, e Dionísio chama as inteligências de “causas providentes”, porque operam por governo, não por contato.
Logo, embora a geração dos corpos inferiores se realize segundo leis naturais, sua ordem, direção e finalidade procedem das substâncias separadas, que movem o todo como causa universal do movimento e da forma.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a ação das substâncias separadas não requer contato físico, mas influxo de ordem. Elas não movem a matéria diretamente, mas por meio dos corpos celestes, que são instrumentos físicos de sua causalidade.
2. À segunda, responde-se que, embora não haja proporção direta entre o espiritual e o material, há proporção mediada pelo movimento e pela forma. O céu, sendo corpo perfeito e incorruptível, é o elo entre o inteligível e o sensível, e por ele as inteligências atuam sobre o mundo inferior.
3. À terceira, deve-se dizer que as causas próximas bastam quanto à execução, mas dependem das superiores quanto à direção. Assim como o artífice usa instrumentos naturais para produzir a obra, Deus e as inteligências usam as causas materiais como meios ordenados.
4. À quarta, responde-se que a intervenção das substâncias separadas não destrói a natureza, mas a constitui. O influxo espiritual é o princípio da ordem natural, não sua negação. Assim, o curso natural é efeito da sabedoria das causas superiores, não de exceção a ela.
Conclusão.
As substâncias separadas são agentes na geração dos seres inferiores, como causas universais e ordenadoras. Elas não tocam a matéria, mas movem os céus, e, pelos céus, regem o fluxo da geração e corrupção. O mundo material é, portanto, espelho do mundo espiritual: o que nasce e perece reflete a ordem eterna das inteligências. Assim, toda natureza é instrumento do intelecto, e toda mudança, eco da sabedoria que move as estrelas.
Quaestio XVI — Utrum sit una prima substantia separata, quae sit Deus
(Se há uma única substância separada que é Deus)
Objeções.
1. Parece que não há uma única substância separada que seja Deus. Pois a perfeição é comunicável segundo graus, e nada impede que haja várias substâncias supremas, cada uma perfeita em seu gênero. Logo, não há uma única substância primeira, mas várias perfeitas.
2. Além disso, o universo é múltiplo e variado, e sua causa deve corresponder à variedade dos efeitos. Ora, se tudo procede de uma só substância separada, haveria uniformidade no universo. Logo, é necessário admitir várias substâncias supremas.
3. Ademais, toda substância intelectual é de algum modo divina, por ser incorpórea, imortal e perfeita. Ora, as inteligências são muitas. Logo, há muitas substâncias divinas, e não apenas uma.
4. Além disso, Aristóteles, no livro XII da Metafísica, afirma que existem muitas substâncias eternas e imutáveis. Ora, se todas são separadas, parece que não há uma só que seja Deus, mas uma pluralidade de deuses.
Em contrário (Sed contra).
O mesmo Aristóteles afirma: “Há um primeiro motor, eterno e imóvel, separado e sem magnitude, que é ato puro.” E Dionísio diz: “Há uma única causa de todas as coisas, a qual é acima de toda substância e vida.” Logo, há uma única substância separada que é Deus.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que há uma única substância separada que é Deus, causa primeira e universal de todo o ser, à qual todas as outras substâncias separadas estão subordinadas como efeitos e participantes.
Com efeito, a razão do primeiro exige unidade. Pois, se houvesse muitos primeiros, deveriam distinguir-se por algo. Ora, essa distinção só poderia vir ou da essência, ou do que é fora da essência. Mas nada é fora da essência daquilo que é absolutamente primeiro; e, se a distinção fosse essencial, um dos dois não seria primeiro. Logo, é impossível que existam muitos primeiros.
Além disso, o primeiro motor deve ser ato puro, sem potência. Ora, dois atos puros não podem existir, porque o ato puro é infinito e indivisível. Assim, o primeiro ato, que é Deus, deve ser único e simples.
Toda multiplicidade procede da limitação do ser. O ser ilimitado e absoluto não se multiplica, porque o que é tudo não pode ter outro fora de si. Por isso, a unidade de Deus é necessária: o que é primeiro é um, porque contém em si, de modo eminente e sem divisão, toda perfeição que nas criaturas aparece fragmentada.
As demais substâncias separadas são muitas porque são limitadas; e, quanto mais próximas do primeiro, mais participam de sua unidade. Deus é o primeiro princípio do ser; as inteligências são princípios da ordem e do movimento; os corpos, instrumentos e efeitos.
Assim, a unidade do primeiro não destrói a pluralidade das causas segundas, mas a fundamenta. Pois, sendo o Uno fonte de todo ser, tudo o que existe tende à unidade e a imita segundo sua medida.
Portanto, há uma única substância separada que é Deus — simples, eterna, infinita, imutável, ato puro, sem potência, sem causa e sem limite. Tudo o mais é por participação do que Ele é por essência.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a perfeição é comunicável apenas secundum participationem, não secundum essentiam. Assim, pode haver muitas substâncias perfeitas por participação, mas só uma que seja a perfeição por essência — e essa é Deus.
2. À segunda, responde-se que a variedade dos efeitos procede não de multiplicidade de causas supremas, mas da fecundidade da causa única. O Uno é princípio de toda multiplicidade, assim como a luz, sendo uma, produz diversidade nas cores.
3. À terceira, deve-se dizer que as substâncias intelectuais são divinas por semelhança, não por essência. São chamadas “deuses” de modo analógico, como ministros da divindade primeira. Só Deus é Deus por natureza; as inteligências são divinas por participação.
4. À quarta, responde-se que Aristóteles admite muitas substâncias separadas, mas uma delas como primeira e causa de todas. As demais são causas secundárias, ordenadas a partir dessa única fonte, conforme a hierarquia do ser.
Conclusão.
Há uma única substância separada que é Deus, ato puro, causa universal e princípio de todo o ser. Nela coincidem a unidade e a infinidade, o ser e o pensar, a essência e o bem. Todas as outras substâncias, por mais elevadas, são finitas e derivadas. Assim, Deus é o primeiro e o último, o centro imóvel de onde procede e para onde retorna o movimento do universo. E quanto mais a inteligência se aproxima d’Ele, mais se unifica, porque toda multiplicidade se resolve na simplicidade do Uno.
Quaestio XVII — Utrum substantiae separatae dependeant a prima causa
(Se as substâncias separadas dependem da causa primeira)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não dependem da causa primeira. Pois o que é incorruptível e imutável não depende de outro para existir. Ora, as substâncias separadas são eternas e imutáveis. Logo, não dependem da causa primeira.
2. Além disso, a dependência implica potencialidade em relação ao princípio do qual se depende. Ora, as substâncias separadas são atos puros quanto à sua espécie e não têm potência passiva. Logo, não podem depender da causa primeira.
3. Ademais, o que depende de outro está submetido à necessidade desse outro. Ora, as substâncias separadas são causas livres e ordenadas por si mesmas em suas operações. Logo, não dependem de Deus como causa primeira, mas apenas como exemplo de perfeição.
4. Além disso, Aristóteles diz que as substâncias separadas são eternas, e o que é eterno não pode depender do que é anterior, pois não há anterioridade no eterno. Logo, elas não dependem da causa primeira.
Em contrário (Sed contra).
Dionísio afirma no De Divinis Nominibus: “Todas as inteligências e potências espirituais têm o ser e o operar por influxo da causa primeira.” E Aristóteles diz: “O primeiro move como objeto do amor e do pensamento.” Logo, as substâncias separadas dependem da causa primeira.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas dependem da causa primeira, tanto quanto à existência quanto quanto à operação, embora de modo diferente do das criaturas materiais.
Com efeito, a dependência pode ser considerada de dois modos: quanto à origem e quanto à conservação.
1. Quanto à origem: todas as substâncias, por mais elevadas que sejam, receberam o ser da causa primeira. Pois, se existissem por si, seriam idênticas ao Ser por essência, o que é próprio apenas de Deus. Ora, sendo o Ser por essência único, tudo o mais é por participação. Logo, as substâncias separadas existem porque o primeiro Ser as produziu.
2. Quanto à conservação: a causa primeira não só dá o ser, mas também o conserva, pois o que depende de outro para começar depende dele para permanecer. Assim, as substâncias separadas subsistem pela presença contínua da causa primeira, que as sustenta no ser.
A dependência das substâncias separadas, porém, não é material nem temporal, mas ontológica e exemplar. Elas não recebem influxo físico, mas iluminação do Ser que as origina. A causa primeira está nelas como luz no ar: não as altera, mas as faz existir e operar.
Além disso, essa dependência é também ordem de perfeição: as substâncias inferiores dependem das superiores, e todas dependem da suprema. Essa ordem é participação do modo como o Ser primeiro comunica sua bondade de forma hierárquica.
Assim, a dependência das substâncias separadas é sinal de sua perfeição, não de sua carência. Pois quanto mais um ser participa do Ser primeiro, mais nele está fundado e ordenado. O primeiro é causa não por necessidade exterior, mas por difusão de bondade: o Uno comunica o ser sem perder sua unidade.
Portanto, embora as substâncias separadas sejam incorruptíveis e imutáveis, não são independentes, porque sua existência e operação permanecem no influxo do Ser primeiro. A separação é quanto à matéria, não quanto à origem.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a incorruptibilidade não exclui a dependência, mas apenas a mutabilidade material. As substâncias separadas são incorruptíveis, mas dependem de Deus quanto ao ser, porque sua eternidade é participada, não essencial.
2. À segunda, responde-se que, embora não tenham potência passiva corpórea, têm potência obediencial para receber o influxo da causa primeira. Essa potência não é imperfeição, mas capacidade de participação.
3. À terceira, deve-se dizer que sua liberdade não as separa da dependência. Pois a liberdade das substâncias separadas é ordenada ao bem e depende da iluminação do Ser primeiro para agir. Deus é causa de sua liberdade, não limite dela.
4. À quarta, responde-se que a eternidade das substâncias separadas não elimina a anterioridade causal, mas apenas a temporal. Deus é anterior a tudo, não no tempo, mas na dignidade do ser. Assim, as substâncias eternas são sempre dependentes do eterno primeiro.
Conclusão.
As substâncias separadas dependem da causa primeira quanto ao ser, à conservação e à operação. Deus é sua origem, sua medida e seu fim. Elas são eternas, mas por participação; simples, mas derivadas; luminosas, mas iluminadas. O primeiro Ser é nelas como o sol na aurora: presença contínua que lhes dá o esplendor de existir. E assim, quanto mais se elevam em perfeição, mais profundamente dependem d’Aquele que é o Ser por essência — porque a verdadeira independência é própria só de Deus.
Quaestio XVIII — Utrum substantiae separatae sint causae formarum in materia
(Se as substâncias separadas são causas das formas na matéria)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não são causas das formas na matéria. Pois toda forma natural é educida da potência da matéria por agente material proporcionado. Ora, as substâncias separadas são imateriais e não têm contato com a matéria. Logo, não podem ser causas das formas materiais.
2. Além disso, Aristóteles afirma, no livro II da Física, que “a forma vem da forma e o ser vivo do ser vivo”. Ora, isso indica que o princípio da geração está na mesma ordem do ser gerado. Logo, as formas materiais procedem de causas materiais, não de substâncias separadas.
3. Ademais, se as substâncias separadas fossem causas das formas, não haveria necessidade de causas naturais. Ora, vemos que o fogo gera o fogo, e o homem, o homem, pela potência natural. Logo, as substâncias separadas não causam as formas.
4. Além disso, a forma é ato da matéria e princípio intrínseco do composto. Ora, as substâncias separadas não estão na matéria nem se unem a ela. Logo, não podem ser causas intrínsecas das formas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, ensina que “as inteligências separadas movem os céus, e por meio dos céus procedem todas as coisas geráveis e corruptíveis”. Logo, as substâncias separadas são causas das formas na matéria.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas são causas das formas na matéria, mas não como agentes próximos, e sim como causas universais e exemplares, das quais procedem as virtudes particulares da natureza.
Com efeito, toda forma natural tem dupla origem: uma próxima, na potência da matéria e no agente físico; outra remota e exemplar, no intelecto que a concebe. Assim como a arte existe no artífice antes de existir na matéria, também a forma natural existe nas substâncias separadas como razão inteligível antes de existir no composto material.
As substâncias separadas são, portanto, causas exemplares das formas, pois nelas estão contidas as razões eternas segundo as quais o primeiro intelecto ordenou o mundo. A natureza inferior é instrumento da sabedoria superior: as formas aparecem na matéria segundo a medida impressa pelo intelecto universal.
Além disso, são também causas eficientes universais, porque movem os corpos celestes, e, por meio do movimento dos céus, produzem nas coisas inferiores as disposições necessárias para a recepção das formas. Assim, o influxo das substâncias separadas chega à matéria por via de movimento e ordem, não por contato.
Devemos entender, pois, três graus de causalidade:
1. A causa primeira, que é Deus, contém as formas na unidade do intelecto divino e as produz por amor e vontade.
2. As substâncias separadas, que participam da sabedoria divina e imprimem na natureza as razões das coisas como causas exemplares e ordenadoras.
3. As causas naturais, que executam essa ordem no nível sensível e material.
Dessa forma, as formas materiais têm origem nas substâncias separadas como nas ideias da arte, embora sejam produzidas na matéria pelos agentes naturais. A inteligência move o céu; o céu move a natureza; e a natureza forma os seres.
Portanto, as substâncias separadas são causas das formas não formaliter, mas causaliter — isto é, não enquanto se unem à matéria, mas enquanto comunicam a ordem e a virtude que fazem as formas emergirem da potência da matéria.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora as substâncias separadas não toquem a matéria, agem sobre ela por meio do movimento celeste e das causas naturais. Assim, a causalidade não exige contato físico, mas ordem hierárquica.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles fala das causas próximas na geração natural, e não exclui as causas universais. Pois o ser vivo vem do ser vivo como instrumento, mas a razão da vida vem do intelecto primeiro.
3. À terceira, deve-se dizer que as causas naturais não são autônomas, mas instrumentos das causas superiores. O fogo gera o fogo, mas sob a direção da ordem celeste e da inteligência que governa o universo.
4. À quarta, responde-se que as substâncias separadas não são causas formais intrínsecas, mas causas eficientes e exemplares extrínsecas. A forma é na matéria por virtude delas, assim como a imagem é na pedra por virtude do artífice.
Conclusão.
As substâncias separadas são causas das formas na matéria, não por contato físico, mas por influxo intelectual e exemplar. O universo material nasce do espiritual, como a obra nasce da ideia. O intelecto superior imprime no movimento celeste a ordem do ser, e a natureza, obediente, traduz essa ordem em formas visíveis. Assim, toda forma é vestígio da inteligência, e toda geração, eco da sabedoria eterna.
Quaestio XIX — Utrum substantiae separatae moveant per intelligentiam et amorem
(Se as substâncias separadas movem por inteligência e amor)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não movem por inteligência e amor. Pois o movimento é ato de um corpo, e o amor e o intelecto pertencem à alma ou à mente. Ora, o movimento dos corpos celestes é local e físico. Logo, não pode proceder do amor e da inteligência, que são atos espirituais.
2. Além disso, Aristóteles, no livro VIII da Física, afirma que o movimento eterno procede do motor imóvel, mas não diz que seja por amor, e sim por necessidade do fim. Ora, o fim move como objeto do desejo, e não pelo amor enquanto paixão, mas enquanto causa final. Logo, o movimento não é pelo amor, mas pela necessidade natural.
3. Ademais, se o movimento dos corpos celestes fosse por amor, dependeria da vontade; e o que depende da vontade pode cessar. Mas o movimento celeste é contínuo e eterno. Logo, não procede do amor nem da inteligência, mas de uma necessidade natural.
4. Ainda, o amor implica desejo de posse do bem ausente. Ora, nas substâncias separadas não há carência nem ausência de bem, porque já o possuem de modo pleno. Logo, nelas não há amor como princípio de movimento.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, diz: “O primeiro motor move como amado, e o móvel é movido como amante.” E Dionísio ensina: “O amor divino é a causa do movimento de todas as coisas.” Logo, as substâncias separadas movem por inteligência e amor.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas movem por inteligência e amor, não como motores físicos, mas como causas finais e eficientes através da ordem do intelecto.
Com efeito, o movimento do universo é causado por uma hierarquia de inteligências que ordenam os corpos celestes ao bem divino. O primeiro motor, que é Deus, move tudo como fim inteligível e amado. As inteligências criadas, ao conhecerem e amarem esse bem supremo, comunicam sua tendência ao movimento às esferas celestes que lhes estão subordinadas.
Assim, o movimento dos céus não provém de necessidade material, mas do desejo espiritual das inteligências em imitar a perfeição do primeiro bem. Pois toda inteligência separada, conhecendo o bem divino, é movida por amor a Ele, e, ao mover-se por esse amor, move o corpo que lhe é unido como instrumento.
Dessa forma, o movimento dos corpos celestes é o símbolo visível do amor inteligível. O intelecto contempla o bem, o amor o deseja, e o corpo obedece ao desejo como ministro. Por isso, Aristóteles diz que o céu é movido “como amado”, porque o objeto da inteligência e do amor move sem ser movido.
O amor nas substâncias separadas não é paixão, mas inclinação voluntária e espiritual: um impulso do intelecto que tende à assimilação com o bem divino. O intelecto entende o bem; o amor o une à medida do possível; e, dessa união, procede o movimento ordenado do cosmos.
Assim, todo o universo é movido por dois princípios: inteligência e amor. A inteligência ordena o movimento segundo a medida da forma; o amor imprime nele o vigor da tendência ao fim. Deus é o termo de ambos: é conhecido como verdade, amado como bem.
Portanto, o movimento celeste é eterno, porque o amor das inteligências por Deus é eterno e imutável. Não é desejo do que falta, mas alegria em participar do bem supremo. Por isso, o amor das substâncias separadas é ato de perfeição, não de carência — é o amor que conserva, não o que busca.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o movimento local é efeito sensível de uma causa espiritual. Assim como a vontade humana move o corpo sem ser corpo, assim a inteligência celeste move o céu sem contato físico.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles não nega o amor, mas o entende sob a forma de fim desejado. Pois o fim move enquanto amado; logo, o amor é a razão pela qual o fim move.
3. À terceira, deve-se dizer que o amor das inteligências é eterno e necessário, não por coação, mas por perfeição. Elas amam o bem de modo estável e sem interrupção, porque sua vontade está plenamente unida ao fim.
4. À quarta, responde-se que o amor das substâncias separadas não é pelo bem ausente, mas pelo bem presente, em ato. É o amor de fruição e imitação, não de desejo. Assim, o amor nelas é causa do movimento ordenado, porque o bem presente as atrai sempre à sua assimilação.
Conclusão.
As substâncias separadas movem por inteligência e amor. A inteligência lhes mostra o bem divino; o amor as une a Ele e, nessa união, geram o movimento dos céus. Todo o universo, assim, é um ato de amor intelectual: os astros giram porque as inteligências que os regem se alegram no bem que contemplam. E o amor que as move não é desejo, mas gozo — a dança eterna da criação em torno do Uno que é o princípio e o fim de todas as coisas.
Quaestio XX — Utrum substantiae separatae sint immobiles secundum essentiam
(Se as substâncias separadas são imóveis segundo sua essência)
Objeções.
1. Parece que as substâncias separadas não são imóveis segundo a sua essência. Pois toda forma, enquanto ato, é princípio de operação. Ora, a operação é movimento, como diz Aristóteles no livro III da Física: “A operação é o ato do ente em potência, enquanto em potência.” Logo, se as substâncias separadas têm ato, têm também movimento.
2. Além disso, o intelecto é ato do inteligível. Se, pois, o inteligível se renova ou varia, também o intelecto se move segundo a sucessão dos objetos. Ora, as inteligências conhecem coisas múltiplas. Logo, movem-se com a sucessão das espécies inteligíveis, e portanto não são imóveis.
3. Ademais, Dionísio, no De Divinis Nominibus, diz que as substâncias celestes “procedem e retornam a Deus”. Ora, o proceder e o retornar são modos de movimento. Logo, as substâncias separadas são movidas, e não imóveis segundo a essência.
4. Ainda, tudo que ama tende ao amado. Mas as substâncias separadas amam a Deus. Logo, tendem a Ele; e tender é movimento. Portanto, não são imóveis segundo a essência.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro XII da Metafísica, diz que “as substâncias separadas são imóveis e eternas”. E Dionísio afirma que “os espíritos celestes permanecem firmes e inalteráveis nas potências que receberam de Deus”. Logo, são imóveis segundo a essência.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as substâncias separadas são imóveis segundo sua essência, embora nelas se encontre um certo movimento quanto à operação.
A imobilidade essencial significa ausência de potência passiva: não poder ser mudadas de um ser a outro, de uma forma a outra, nem de um ato a uma potência. Ora, as substâncias separadas são formas puras, sem matéria, e por isso carecem de potência passiva. Consequentemente, são imutáveis segundo o ser e a essência.
No entanto, quanto à operação, pode haver nelas certa sucessão, não de movimento físico, mas de ordem intelectual. Com efeito, o intelecto divino é ato puro e simples; mas o intelecto criado, por mais elevado que seja, não conhece todas as coisas de uma vez no mesmo ato. Ele pode voltar-se de um inteligível a outro, não por mudança essencial, mas por variedade de atenção.
Assim, há nelas um movimento de ordem e de intenção, não de essência. Como um homem que, permanecendo no mesmo lugar, muda o olhar de um objeto a outro, assim as inteligências podem variar o ato sem variar o ser.
Por isso, diz Aristóteles no livro XII da Metafísica que “a atividade das substâncias separadas é uma e contínua”, significando que, embora múltiplos sejam os objetos do conhecimento, o modo de operação é sempre uniforme, estável e perfeito.
Também quanto ao amor, elas não se movem por carência, mas por complacência: amam o bem divino que possuem e, nessa posse, repousam. Assim, seu amor não é movimento, mas quietude jubilosa.
Portanto, as substâncias separadas são imóveis segundo a essência, móveis apenas por analogia, enquanto exercem múltiplas operações dentro de uma ordem intelectual fixa e eterna.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ato de operação não implica movimento essencial, mas somente atualidade. Assim como o ato de compreender não muda o intelecto, mas o aperfeiçoa, assim também o ato das substâncias separadas é puro exercício da forma, sem alteração do ser.
2. À segunda, responde-se que a sucessão dos inteligíveis não implica mudança real, porque o intelecto não é mudado ao voltar-se a outro objeto, mas permanece na mesma potência atual. O que se diversifica é a ordem do conhecimento, não o sujeito que conhece.
3. À terceira, deve-se dizer que Dionísio fala de processão e retorno não segundo movimento local ou essencial, mas segundo a ordem da origem e da causalidade: procedem de Deus como causas segundas, retornam a Ele como ao fim último.
4. À quarta, responde-se que o amor das substâncias separadas é ato de repouso e fruição, não de tendência. Elas já possuem o bem amado e, possuindo-o, permanecem nele. Por isso, o amor nelas é quietude, não movimento.
Conclusão.
As substâncias separadas são imutáveis segundo o ser, pois são formas puras sem matéria. Mas em sua operação há uma sucessão analógica, como luz que brilha sobre diversos objetos sem mover-se. Sua essência é imóvel; sua ação é viva. Permanecem firmes no ser, móveis na contemplação. Assim, nelas se cumpre a perfeição do espírito: repouso no ato, imobilidade na vida.
Liber Quartus – De principiis contradictionis et identitatis
(Livro Quarto — Sobre os princípios da contradição e da identidade)
Quaestio I — Utrum principium contradictionis sit per se notum.
Se o princípio de contradição é conhecido por si mesmo.
Quaestio II — Utrum principium contradictionis sit universale et immutabile.
Se o princípio de contradição é universal e imutável.
Quaestio III — Utrum negatio possit esse vera simul cum affirmatione.
Se a negação pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação.
Quaestio IV — Utrum idem possit simul esse et non esse.
Se o mesmo pode ao mesmo tempo ser e não ser.
Quaestio V — Utrum principium identitatis sit idem cum principio contradictionis.
Se o princípio de identidade é o mesmo que o princípio de contradição.
Quaestio VI — Utrum principium identitatis sit prius quam principium contradictionis.
Se o princípio de identidade é anterior ao princípio de contradição.
Quaestio VII — Utrum idem et diversum dicantur de omnibus entibus.
Se o mesmo e o diverso se dizem de todos os entes.
Quaestio VIII — Utrum unum et ens convertantur secundum rationem.
Se o uno e o ser são convertíveis segundo a razão.
Quaestio IX — Utrum ens dicatur univoce vel analogice.
Se o ser se diz de modo unívoco ou analógico.
Quaestio X — Utrum entia dicantur aequivoce secundum praedicamenta.
Se os entes se dizem de modo equívoco segundo as categorias.
Quaestio XI — Utrum unum sit principium numeri.
Se o uno é o princípio do número.
Quaestio XII — Utrum unum sit indivisum secundum essentiam vel secundum quantitatem.
Se o uno é indiviso segundo a essência ou segundo a quantidade.
Quaestio XIII — Utrum unum sit prius ente vel posterius.
Se o uno é anterior ou posterior ao ser.
Quaestio XIV — Utrum unum sit ens reale vel rationis.
Se o uno é ente real ou de razão.
Quaestio XV — Utrum multitudo opponatur unitati secundum privationem vel contrarietatem.
Se a multidão se opõe à unidade por privação ou contrariedade.
Quaestio XVI — Utrum ens habeat gradus secundum unitatem et multitudinem.
Se o ser possui graus segundo unidade e multiplicidade.
Quaestio XVII — Utrum veritas fundetur in identitate entis et intellectus.
Se a verdade se funda na identidade entre o ser e o intelecto.
Quaestio XVIII — Utrum falsitas oriatur ex divisione vel ex privatione identitatis.
Se a falsidade nasce da divisão ou da privação da identidade.
Quaestio XIX — Utrum principium contradictionis possit cadere sub demonstratione.
Se o princípio de contradição pode ser demonstrado.
Quaestio XX — Utrum negatio contradictionis sit impossibilis secundum rationem et naturam.
Se a negação da contradição é impossível segundo a razão e a natureza.
Quaestio I — Utrum principium contradictionis sit per se notum
(Se o princípio de contradição é conhecido por si mesmo)
Objeções.
1. Parece que o princípio de contradição não é conhecido por si mesmo. Pois aquilo que é conhecido por si é evidente sem necessidade de mediação. Ora, muitos negaram o princípio de contradição, como se lê em Aristóteles, livro IV da Metafísica. Logo, o princípio não é conhecido por si mesmo, porque o que é evidente por si não pode ser ignorado nem negado.
2. Além disso, o conhecimento por si mesmo é próprio das noções primeiras que se impõem imediatamente ao intelecto, como “o todo é maior que a parte” ou “o igual é igual a si mesmo”. Ora, o princípio de contradição exige certa comparação entre o ser e o não ser, o afirmar e o negar. Logo, não é conhecido por si mesmo, mas pela reflexão sobre os contrários.
3. Ademais, o que é conhecido por si mesmo é conhecido igualmente por todos os que têm razão. Ora, alguns, como Heráclito e Anaxágoras, afirmaram que a mesma coisa pode ser e não ser. Logo, o princípio de contradição não é conhecido por si mesmo.
4. Ainda, o intelecto humano adquire ciência a partir da experiência sensível. Ora, o princípio de contradição é universal e necessário, e o sentido não apreende o necessário. Logo, não é conhecido por si mesmo, mas pela abstração do intelecto a partir das coisas particulares.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz expressamente: “É impossível que a mesma coisa pertença e não pertença ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.” E acrescenta: “Este é o princípio mais firme de todos.” Ora, o que é o mais firme de todos é conhecido por si mesmo. Logo, o princípio de contradição é evidente por si.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de contradição é conhecido por si mesmo, não segundo todo modo de conhecimento, mas segundo a luz natural do intelecto enquanto apreende o ser.
Com efeito, o intelecto, ao conhecer o ser, conhece também implicitamente o não ser; e, ao distinguir o que é do que não é, concebe necessariamente que o mesmo não pode simultaneamente ser e não ser sob o mesmo aspecto. Essa concepção é imediata, porque se funda na primeira apreensão do ente, que é o objeto primário da inteligência.
Por isso, o princípio de contradição é o mais universal e primeiro de todos, pois todo conhecimento depende da distinção entre o que é e o que não é. O intelecto, ao pensar qualquer coisa, supõe esse princípio, ainda que não o formule expressamente.
E ainda que alguns o neguem verbalmente, não podem negá-lo em ato, pois ao falar e afirmar qualquer proposição, já o empregam. Assim, quem diz “o ser e o não ser são o mesmo” distingue implicitamente entre o ser e o não ser, e, portanto, o afirma contra o que nega.
Por conseguinte, o princípio de contradição é conhecido por si, não quanto à forma verbal, mas quanto à verdade que ele exprime. Essa verdade é primeira, indemonstrável e necessária; é fundamento de todo raciocínio e condição de toda demonstração.
Assim, não é evidente por si em relação aos sentidos, mas é-o para o intelecto enquanto tal; não é adquirido, mas natural; não é posterior à experiência, mas condição dela.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o princípio de contradição é conhecido por si quanto ao intelecto em potência reta; mas pode ser negado verbalmente por ignorância, sofisma ou corrupção do juízo. Negá-lo é destruir o próprio ato de conhecer. Assim, quem o nega, nega também a si como cognoscente.
2. À segunda, responde-se que a comparação entre o ser e o não ser não é discursiva, mas imediata. O intelecto, ao apreender o ser, apreende também que o não ser é sua negação. Portanto, a distinção entre ambos é simultânea à apreensão do ser e, assim, o princípio é evidente por si.
3. À terceira, deve-se dizer que Heráclito e Anaxágoras não negaram o princípio de contradição em ato, mas apenas em palavras. Pois, ao afirmar que tudo se move e se transforma, pressupõem que algo é e algo não é. Logo, não o negam realmente, mas o utilizam sem o saber.
4. À quarta, responde-se que, embora o intelecto humano se eleve à ciência pelas coisas sensíveis, possui em si luz natural que apreende certos princípios universais independentemente da experiência. Entre esses está o princípio de contradição, que se funda na noção primeira de ser.
Conclusão.
O princípio de contradição é conhecido por si mesmo, porque a inteligência, ao conceber o ser, reconhece imediatamente a impossibilidade do não ser sob o mesmo aspecto. Essa evidência é inata ao ato do pensamento, fundamento de toda verdade e limite absoluto do erro. Negá-lo é negar o próprio logos, pois sem ele não há distinção entre o ser e o nada. Por isso, Aristóteles o chama “o mais firme dos princípios”, e Alberto o reconhece como a raiz mesma da metafísica — a lei pela qual o ser é inteligível e o pensamento, possível.
Quaestio II — Utrum principium contradictionis sit universale et immutabile
(Se o princípio de contradição é universal e imutável)
Objeções.
1. Parece que o princípio de contradição não é universal e imutável. Pois a universalidade se opõe à particularidade, e a imutabilidade à mudança. Ora, o intelecto humano adquire os princípios a partir das coisas mutáveis e particulares. Logo, o princípio de contradição, que está no intelecto, é mutável e particular, não universal e imutável.
2. Além disso, toda verdade depende do ser das coisas. Ora, o ser das coisas muda continuamente: o que é hoje não é amanhã. Logo, o princípio de contradição, que exprime a impossibilidade de que algo seja e não seja ao mesmo tempo, parece também mudar segundo o ser das coisas.
3. Ademais, a universalidade só convém ao que se aplica a todos os entes sem exceção. Ora, Deus, segundo alguns místicos, transcende o ser e o não ser. Logo, o princípio de contradição, que se funda na distinção entre ser e não ser, não é universal, pois não se aplica a Deus.
4. Ainda, Aristóteles diz que o intelecto em potência é como uma tábua em branco, e que só se atualiza com o exercício da experiência. Ora, tudo o que depende de atualização é passível de mudança. Logo, o princípio de contradição, sendo ato do intelecto, é mutável, não imutável.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, declara: “É impossível que o mesmo, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, seja e não seja.” E acrescenta: “Este princípio é universal e necessário.” Logo, o princípio de contradição é universal e imutável.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de contradição é universal e imutável, tanto quanto à sua verdade quanto quanto à sua aplicação, porque se funda no ser enquanto tal, que é o objeto primeiro e universal do intelecto.
Com efeito, o intelecto humano, ao conceber o ser, concebe simultaneamente que o não ser é sua negação. Ora, essa relação entre o ser e o não ser é necessária e eterna, pois a oposição entre ambos é absoluta. O que é, enquanto é, não pode não ser; e o que não é, enquanto não é, não pode ser. Essa impossibilidade é independente do tempo, do lugar e da natureza das coisas particulares.
Assim, o princípio de contradição é universal porque vale para tudo o que pode ser pensado, e é imutável porque a verdade que ele exprime não depende das vicissitudes do mundo, mas da estrutura mesma do ser e do intelecto.
A mudança das coisas não afeta a imutabilidade do princípio, porque a mudança só é inteligível sob a suposição do próprio princípio. Dizer que algo muda é dizer que, antes, era de um modo e, depois, de outro; o que só tem sentido se é impossível ser e não ser simultaneamente. Logo, toda mutação confirma, e não destrói, a imutabilidade do princípio.
Quanto à sua aplicação, o princípio de contradição não se restringe a um gênero de ente, mas se estende a todos. Ele é a medida universal da verdade, porque o verdadeiro é o ser conforme ao intelecto, e o falso é o não ser tomado como ser.
Por conseguinte, o princípio de contradição é universal quanto à extensão, pois se aplica a todos os entes possíveis; e é imutável quanto à intenção, pois sua verdade é necessária e eterna.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora o intelecto humano apreenda os princípios a partir da experiência, ele não os recebe das coisas mutáveis como se mudassem com elas, mas abstrai delas uma verdade universal e necessária. O princípio nasce da experiência, mas não se mede por ela.
2. À segunda, responde-se que a verdade do princípio não depende do ser das coisas particulares, mas da razão do ser enquanto ser. Mesmo que todas as coisas mudem, a oposição entre ser e não ser permanece a mesma, pois é condição de toda mudança.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora Deus transcenda o ser criado, Ele não se opõe ao princípio de contradição, porque em Deus não há mistura de ser e não ser. Pelo contrário, Deus é o ser puríssimo, em quem o princípio se cumpre de modo absoluto.
4. À quarta, responde-se que o intelecto é potência quanto à aquisição da ciência, mas ato quanto aos primeiros princípios, que são impressões naturais da luz intelectual. Assim, o princípio de contradição não é adquirido, mas reconhecido pela razão como algo sempre verdadeiro.
Conclusão.
O princípio de contradição é universal e imutável, porque deriva da natureza mesma do ser e do intelecto. Nenhum tempo, nem mente, nem criatura pode concebê-lo como falso, pois sua negação destruiria toda possibilidade de pensamento. É a lei eterna da inteligibilidade: o selo de identidade entre ser e verdade, e a fronteira intransponível entre o real e o impossível.
Quaestio III — Utrum negatio possit esse vera simul cum affirmatione
(Se a negação pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação)
Objeções.
1. Parece que a negação pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação. Pois as mesmas coisas são de algum modo verdadeiras e de algum modo falsas, conforme as diversas condições sob as quais são consideradas. Assim, o mesmo homem é “doente” enquanto padece de uma enfermidade, e “sadio” enquanto possui natureza ordenada à saúde. Logo, a mesma proposição pode ser afirmada e negada sob aspectos diversos, e, portanto, a negação pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação.
2. Além disso, na Sagrada Escritura lemos: “Deus se arrependeu de ter feito o homem” (Gn 6,6). Ora, o arrependimento supõe mudança e negação do que antes se afirmara. Logo, algo pode ser simultaneamente afirmado e negado em realidades diversas, e a negação ser verdadeira junto da afirmação.
3. Ademais, os filósofos heraclíteos sustentam que todas as coisas se transformam continuamente, e que nada é de modo fixo, mas tudo simultaneamente é e não é. Ora, se tudo é fluxo e movimento, o ser e o não ser coexistem. Logo, a negação pode ser verdadeira junto com a afirmação.
4. Ainda, o intelecto humano é finito e apreende o ser por partes. Ora, o que é verdadeiro para uma parte pode ser falso para outra. Logo, é possível que, em uma mesma coisa, a negação e a afirmação tenham algum modo de verdade simultânea.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, afirma: “É impossível que a mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.” Ora, se fosse possível que a negação fosse verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação, tal impossibilidade não se sustentaria. Logo, é impossível.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a negação não pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação, se ambas se referem ao mesmo sujeito, predicado, tempo e aspecto; mas pode sê-lo sob aspectos diversos, segundo distinção de razão ou de condição.
Com efeito, a verdade e a falsidade pertencem primariamente às proposições, porque nelas se dá a composição ou a divisão do intelecto. A afirmação une, a negação separa. Ora, unir e separar são atos contrários, e, portanto, não podem ser verdadeiros simultaneamente no mesmo respeito.
Se se diz, por exemplo, “o homem é animal”, a negação “o homem não é animal” destrói a mesma relação de predicação afirmada. Logo, uma delas é necessariamente falsa, porque o intelecto não pode simultaneamente afirmar e negar o mesmo sem destruir a própria inteligibilidade.
Entretanto, pode ocorrer que, sob diversos aspectos, uma mesma coisa seja afirmada e negada sem contradição. Assim, “o homem é justo” enquanto possui o hábito da justiça, e “o homem não é justo” enquanto não age justamente. Aqui não há contradição, porque o aspecto da predicação se distingue.
Portanto, a impossibilidade de simultaneidade entre afirmação e negação vale secundum idem, eodem tempore, eodem modo — isto é, segundo o mesmo sujeito, o mesmo aspecto e o mesmo tempo.
Quanto à realidade criada, a própria mutabilidade das coisas não destrói esse princípio, pois o que muda só o faz de um modo a outro, e nunca é ambos simultaneamente. Mesmo quando algo passa de ser a não ser, o movimento implica sucessão, não simultaneidade.
Assim, ainda que sob aspectos distintos a negação possa ser verdadeira enquanto a afirmação o é sob outro, nunca o são sob o mesmo aspecto. O princípio de contradição, portanto, mantém-se absoluto, e toda exceção aparente provém de confusão dos termos ou dos tempos.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o exemplo do homem são e doente não mostra contradição, mas distinção de aspecto. Ele é doente secundum accidens, sadio secundum naturam. Portanto, a afirmação e a negação não são ditas sob o mesmo respeito, e não há simultaneidade de verdade.
2. À segunda, responde-se que as expressões da Escritura se dizem metaforicamente secundum affectum nostrum, não secundum mutationem in Deo. Assim, “arrepender-se” não significa mudança real em Deus, mas mudança no efeito que Deus produz. Logo, não há contradição entre a afirmação e a negação.
3. À terceira, deve-se dizer que a doutrina de Heráclito confunde a sucessão temporal com a simultaneidade ontológica. O que se transforma é sucessivamente ser e não ser; nunca simultaneamente. Assim, mesmo o fluxo das coisas confirma o princípio de contradição.
4. À quarta, responde-se que a finitude do intelecto humano não torna contraditória a apreensão do ser, mas apenas parcial. O intelecto conhece em partes o que é uno, mas não afirma e nega o mesmo sob o mesmo aspecto.
Conclusão.
A negação não pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a afirmação, pois a contradição destrói a própria inteligibilidade do ser. Onde há ser, o não ser é excluído sob o mesmo respeito; onde há verdade, o falso é afastado. A distinção de aspectos pode coexistir, mas não a contradição. Assim, o princípio que regula toda ciência e pensamento permanece firme: o mesmo não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Quaestio IV — Utrum idem possit simul esse et non esse
(Se o mesmo pode ao mesmo tempo ser e não ser)
Objeções.
1. Parece que o mesmo pode ao mesmo tempo ser e não ser. Pois Agostinho afirma que nas coisas mutáveis coexistem o ser e o não ser: o ser, enquanto permanecem na ordem do Criador; o não ser, enquanto tendem à corrupção. Logo, nas criaturas o mesmo pode ser e não ser simultaneamente sob aspectos diversos.
2. Além disso, a experiência mostra que o mesmo corpo, enquanto sujeito, subsiste, mas perde e adquire formas sucessivas — ora quente, ora frio, ora em potência, ora em ato. Logo, sob o mesmo sujeito, o ser e o não ser se dão ao mesmo tempo, quanto a formas contrárias.
3. Ademais, o intelecto pode conceber o mesmo objeto sob noções opostas, como “homem” e “não-animal racional”, e cada uma delas tem algum fundamento na realidade. Logo, parece possível que o mesmo seja e não seja segundo diversos modos de consideração.
4. Ainda, Deus é o ser absoluto e causa de todo ser. Ora, o nada procede da ausência do ser, e essa ausência é também causada por Deus enquanto causa universal. Logo, o mesmo princípio contém o ser e o não ser, e, portanto, o mesmo pode ser e não ser sob certo aspecto.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles afirma expressamente, no livro IV da Metafísica: “É impossível que o mesmo seja e não seja ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.” Ora, se o mesmo pudesse simultaneamente ser e não ser, a distinção entre verdadeiro e falso seria destruída. Logo, é impossível.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que é absolutamente impossível que o mesmo seja e não seja ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, porque essa afirmação contradiz o fundamento de toda inteligibilidade, que é a distinção entre o ser e o não ser.
Com efeito, o ser e o não ser se opõem como afirmação e negação, e a oposição entre eles é a mais radical que pode haver, porque exclui toda conciliação. O intelecto, ao conceber o ser, exclui necessariamente o não ser; e ao conceber o não ser, exclui o ser. Se ambos pudessem coexistir no mesmo sujeito e sob o mesmo aspecto, toda distinção desaparecería, e nada poderia ser afirmado nem conhecido.
Essa impossibilidade é de ordem metafísica, não apenas lógica. Pois, mesmo que um sujeito mude de forma ou de estado, ele não é simultaneamente o que era e o que é — mas sucessivamente. O ser e o não ser podem alternar-se, jamais coexistir.
A experiência da mudança confirma isso: a madeira, quando se torna cinza, não é simultaneamente madeira e cinza; deixa de ser uma para ser outra. A mudança é transição ordenada, não simultaneidade contraditória.
Portanto, o que parece ser simultaneidade de ser e não ser é apenas sucessão veloz que a imaginação não distingue. Mas, na realidade do ser, não há meio entre o ser e o não ser; nem composição possível entre ambos.
Assim, o princípio de contradição é reafirmado: nada pode ser e não ser sob o mesmo aspecto. O “mesmo” e o “ao mesmo tempo” delimitam a impossibilidade de modo absoluto.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Agostinho fala do ser e do não ser sob diferentes respeitos: o ser segundo a causa, o não ser segundo a mutabilidade. Não é o mesmo ser simultaneamente e não ser sob o mesmo aspecto, mas ser pela conservação e não ser pela corrupção possível.
2. À segunda, responde-se que o sujeito material permanece, mas as formas se sucedem. O mesmo não é quente e frio simultaneamente, mas alternadamente. A permanência do sujeito não implica coexistência das contradições.
3. À terceira, deve-se dizer que o intelecto pode considerar o mesmo objeto sob razões opostas, mas não como ambas verdadeiras simultaneamente. A diversidade das noções não implica contradição real, mas distinção de conceito.
4. À quarta, responde-se que Deus é causa do ser enquanto é o bem; o não ser, enquanto privação, não é causado por Ele positivamente, mas é permitido segundo a limitação da criatura. Logo, Deus não é ao mesmo tempo causa do ser e do não ser do mesmo modo.
Conclusão.
O mesmo não pode ser e não ser simultaneamente sob o mesmo aspecto. A possibilidade do ser exclui o não ser, e a do não ser exclui o ser. Toda mudança, toda geração e toda corrupção pressupõem essa exclusão, que é a raiz da ordem e da verdade. Se algo pudesse ser e não ser ao mesmo tempo, o universo dissolver-se-ia em pura confusão, e o intelecto deixaria de ser luz. Assim, a negação da contradição é a primeira afirmação da razão, e sua firmeza é o fundamento de todo o ser.
Quaestio V — Utrum principium identitatis sit idem cum principio contradictionis
(Se o princípio de identidade é o mesmo que o princípio de contradição)
Objeções.
1. Parece que o princípio de identidade é o mesmo que o princípio de contradição. Pois dizer que algo é idêntico a si mesmo equivale a negar que possa ser e não ser ao mesmo tempo. Assim, “A é A” e “A não é não-A” parecem expressar a mesma verdade. Logo, os dois princípios são idênticos quanto ao sentido e ao conteúdo.
2. Além disso, ambos os princípios são indemonstráveis e primeiros. Ora, as realidades que são primeiras e indemonstráveis são de um mesmo gênero e têm a mesma força de evidência. Logo, o princípio de identidade e o de contradição são o mesmo princípio sob formulações diversas.
3. Ademais, Aristóteles diz que “a negação e a afirmação se reduzem ao mesmo fundamento”. Ora, a identidade e a contradição tratam dessa mesma redução — uma afirmando a unidade do ser, outra negando sua oposição. Logo, coincidem quanto à essência.
4. Ainda, toda negação supõe uma afirmação. Ora, o princípio de contradição é uma negação universal fundada na afirmação do mesmo ser. Logo, a identidade e a contradição são o mesmo princípio, enquanto uma é o lado afirmativo e a outra, o lado negativo de uma única verdade.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, distingue claramente os dois princípios, dizendo: “O mesmo é afirmar o que é, e negar o que não é; mas é outra coisa dizer que o que é, é o mesmo que ele mesmo.” Logo, o princípio de identidade e o de contradição são distintos, embora correlatos.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de identidade e o de contradição não são absolutamente o mesmo, mas são correlatos e dependentes entre si, de modo que um se funda no outro quanto à inteligibilidade.
Com efeito, o princípio de
identidade exprime o ser sob o aspecto afirmativo e positivo: “O que é, é.” O princípio de
contradição exprime o ser sob o aspecto negativo e exclusivo: “O que é, não pode ao mesmo tempo não
ser.”
Ambos se referem ao mesmo fundamento — o ser enquanto idêntico a si — mas o
apreendem sob aspectos diversos: a identidade afirma, a contradição exclui.
Por isso, a identidade é mais simples e anterior quanto à natureza, porque o intelecto primeiro concebe o ser como idêntico a si mesmo, antes de negar sua contradição. A negação pressupõe a afirmação. Assim, o princípio de identidade é o primeiro em ordem de concepção, e o princípio de contradição, o primeiro em ordem de demonstração.
Podemos, portanto, distinguir três níveis de relação entre eles:
1. Quanto à origem do conhecimento: a identidade é a primeira apreensão do ser; a contradição é a primeira negação que o intelecto formula.
2. Quanto à função lógica: a identidade é o fundamento da afirmação; a contradição, o fundamento da distinção e da exclusão.
3. Quanto à metafísica: ambas se referem à unidade do ser, mas a identidade a expressa como positividade absoluta, e a contradição como impossibilidade do contrário.
Logo, não são o mesmo princípio em formalidade, mas o mesmo quanto ao sujeito e à verdade que sustentam: o ser é idêntico a si, e, portanto, não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora “A é A” e “A não é não-A” impliquem a mesma verdade fundamental, a forma de expressão difere: a primeira é afirmativa, a segunda é negativa. Assim, coincidem quanto ao conteúdo material, mas se distinguem quanto à forma lógica.
2. À segunda, responde-se que a indemonstrabilidade é comum a ambos, mas isso não implica identidade formal. Assim como diversas verdades podem ser igualmente evidentes por si, sem serem idênticas, também esses dois princípios são primeiros, porém distintos quanto à função.
3. À terceira, deve-se dizer que a redução das afirmações e negações a um mesmo fundamento significa apenas que ambas dependem da unidade do ser, não que sejam a mesma proposição. A identidade funda a verdade das proposições; a contradição, sua exclusividade.
4. À quarta, responde-se que a contradição pressupõe a identidade, mas não a esgota. A identidade é o aspecto afirmativo do ser; a contradição é a negação da impossibilidade de sua dissolução. Assim, uma é raiz, a outra é limite — ambas pertencendo à mesma ordem da verdade.
Conclusão.
O princípio de identidade e o
princípio de contradição procedem da mesma fonte — o ser enquanto tal —, mas
não são o mesmo em formalidade. A identidade é o primeiro olhar da inteligência
sobre o real: “o que é, é.” A contradição é o primeiro limite desse olhar: “o
que é, não pode não ser.”
A identidade afirma o ser; a contradição o defende. Juntas, constituem a base
da verdade: o ser idêntico a si, e o não ser absolutamente excluído. Assim, o
pensamento nasce da identidade e se conserva pela contradição.
Quaestio VI — Utrum principium identitatis sit prius quam principium contradictionis
(Se o princípio de identidade é anterior ao princípio de contradição)
Objeções.
1. Parece que o princípio de identidade não é anterior ao princípio de contradição. Pois, como ensina Aristóteles, “a ciência e a demonstração se baseiam mais na negação do que na afirmação”, já que a verdade se distingue do erro pela exclusão do falso. Ora, o princípio de contradição é o fundamento de toda negação. Logo, é anterior, em ordem de conhecimento e de certeza, ao princípio de identidade.
2. Além disso, o princípio de identidade afirma o mesmo que o princípio de contradição nega, mas de modo menos evidente. Pois “o que é, é” não exclui imediatamente o erro, enquanto “o que é, não pode não ser” o faz. Logo, o princípio de contradição é mais evidente e, portanto, primeiro.
3. Ademais, a identidade parece depender da contradição, porque só se reconhece algo como idêntico a si quando se distingue do que não é. Ora, a distinção supõe o princípio de contradição. Logo, este é anterior à identidade.
4. Ainda, a ordem do conhecimento segue a ordem da demonstração. Ora, Aristóteles começa pela contradição como princípio de toda ciência. Logo, o princípio de contradição é primeiro.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no mesmo livro IV da Metafísica, diz que “o princípio de contradição se funda no fato de que o ser é o ser e o não ser é o não ser”. Ora, isso é justamente a afirmação do princípio de identidade. Logo, o princípio de identidade é anterior.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de identidade é anterior ao princípio de contradição, não quanto ao tempo nem quanto à demonstração, mas quanto à natureza e à ordem do conhecimento intelectual.
Com efeito, o intelecto, ao apreender o ser, apreende imediatamente que ele é o que é. Essa apreensão é afirmativa e positiva: ens est ens. Só depois, pela reflexão, o intelecto reconhece que o ser não pode ser o não ser, o que constitui o princípio de contradição. Assim, a identidade é primeira em ordem de concepção, e a contradição, primeira em ordem de explicitação e discurso.
A identidade exprime a unidade do ser consigo mesmo; a contradição, a exclusão de toda mistura entre o ser e o não ser. Mas a exclusão supõe a unidade. Pois só o que é idêntico a si pode excluir o seu contrário. Logo, o princípio de contradição depende, quanto à inteligibilidade, do princípio de identidade.
Além disso, na ordem ontológica, o ser precede a negação. O não ser só é concebido por oposição ao ser, e a contradição só é possível quando há algo afirmado. Assim, o princípio de contradição é secundário quanto à origem, porque deriva da noção afirmativa do ser e da identidade.
No entanto, quanto ao uso e à aplicação na ciência, o princípio de contradição é primeiro, porque é o fundamento de toda demonstração. O intelecto começa afirmando o ser, mas demonstra negando o contrário. Assim, o princípio de identidade é o primeiro quanto ao ser, e o de contradição é o primeiro quanto à razão discursiva.
Portanto, ambos são inseparáveis, mas a prioridade pertence à identidade quanto à natureza e à apreensão intelectual.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a contradição é primeira quanto à função demonstrativa, mas não quanto ao ser. A demonstração opera pela negação do falso, mas essa negação só tem sentido se o verdadeiro for previamente apreendido como idêntico a si mesmo.
2. À segunda, responde-se que a evidência da contradição é derivada da identidade. Dizer “o que é, não pode não ser” é afirmar de modo negativo o mesmo que a identidade afirma positivamente. Logo, o princípio de identidade é causa da evidência da contradição.
3. À terceira, deve-se dizer que a distinção não é anterior à identidade, mas posterior. O intelecto distingue porque antes apreendeu o ser como idêntico a si; do contrário, nada poderia distinguir. A contradição apenas confirma a identidade pela exclusão do contrário.
4. À quarta, responde-se que Aristóteles parte da contradição na exposição, não porque seja anterior por natureza, mas porque é o modo mais claro de manifestar a verdade da identidade. A ordem da exposição não é sempre a mesma da natureza.
Conclusão.
O princípio de identidade é anterior ao princípio de contradição, porque toda negação pressupõe uma afirmação e toda exclusão supõe uma unidade. A identidade é a raiz afirmativa do ser; a contradição, sua guarda negativa. O intelecto primeiro vê o ser como uno consigo mesmo — ens est ens —, e só então compreende que o ser não pode ser o não ser — ens non potest simul esse et non esse. Assim, o princípio de identidade é o primeiro resplendor da razão; o de contradição, sua primeira defesa.
Quaestio VII — Utrum idem et diversum dicantur de omnibus entibus
(Se o mesmo e o diverso se dizem de todos os entes)
Objeções.
1. Parece que o mesmo e o diverso não se dizem de todos os entes. Pois a identidade e a diversidade supõem comparação entre coisas múltiplas. Ora, Deus é absolutamente simples e não admite comparação nem composição. Logo, o mesmo e o diverso não se dizem de todos os entes.
2. Além disso, as noções de “mesmo” e “diverso” são relativas, e toda relação exige termos distintos. Ora, o ser enquanto tal é uno e anterior à relação. Logo, o mesmo e o diverso não se predicam universalmente do ser, mas apenas dos entes compostos ou múltiplos.
3. Ademais, o que é puro ato, sem potência, não admite diversidade, porque não há nele distinção real entre partes ou aspectos. Ora, existem entes que são puros atos, como as substâncias separadas. Logo, nelas não há diversidade nem identidade relativa.
4. Ainda, os contrários só se encontram no mesmo gênero. Ora, o mesmo e o diverso são opostos relativos. Logo, se se disserem de todos os entes, todos pertencerão a um mesmo gênero, o que é falso, porque o ser não é um gênero.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, ensina que “todo ente é necessariamente idêntico a si mesmo e diverso do que não é”. Logo, o mesmo e o diverso se dizem de todos os entes.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o mesmo e o diverso se dizem de todos os entes, mas segundo diversas ordens de significação: a saber, segundo o ser, segundo o intelecto, e segundo a relação de comparação.
Primeiro, segundo o ser, todo ente é idêntico a si mesmo, porque o ser implica unidade e exclusão do não ser. Essa identidade é transcendental, isto é, acompanha o ser em toda parte e de todo modo. O mesmo e o diverso, sob esse aspecto, não são categorias particulares, mas propriedades universais do ente enquanto tal.
Segundo, segundo o intelecto, o mesmo e o diverso se dizem de todas as coisas pensáveis, porque o intelecto apreende o ser distinguindo-o do não ser e comparando um ser a outro. O pensamento implica distinção, e toda distinção supõe diversidade.
Terceiro, segundo a relação, o mesmo e o diverso se dizem propriamente das coisas comparadas entre si: são relativas de oposição, e portanto exigem ao menos dois termos. Nesse sentido, o mesmo e o diverso pertencem à ordem da relação (ad aliquid), uma das dez categorias.
No entanto, há diferença entre o “mesmo transcendental” e o “mesmo relativo”. O primeiro é idêntico ao ser — pois tudo o que é, é o mesmo que si mesmo. O segundo nasce da comparação e se funda na unidade do primeiro. Assim, Deus é “o mesmo” consigo de modo absoluto e “diverso” de todas as criaturas de modo transcendental.
Dessa forma, o mesmo e o diverso se dizem universalmente de todos os entes: de Deus e das criaturas, das substâncias e dos acidentes, do ato e da potência. Mas não se dizem de modo unívoco, e sim analógico, conforme a ordem da perfeição.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que em Deus não há diversidade interna, mas há identidade perfeita e diversidade em relação às criaturas. Logo, o mesmo e o diverso se aplicam também a Deus, embora sob modo eminente e não comparativo.
2. À segunda, responde-se que, embora o ser seja anterior à relação, o mesmo e o diverso não são relações extrínsecas, mas modos de inteligibilidade do ser. Assim, podem ser ditos de todos os entes sem converter-se em gênero.
3. À terceira, deve-se dizer que nas substâncias separadas há ausência de diversidade material, mas não de identidade. O fato de não haver diversidade intrínseca não impede que sejam diversas entre si e idênticas cada uma consigo.
4. À quarta, responde-se que o mesmo e o diverso são transcendentais, não gêneros. A oposição entre eles é de razão, não de gênero. Pertencem à ordem do ser enquanto conhecido, não à classificação lógica dos entes.
Conclusão.
O mesmo e o diverso se dizem de todos os entes, mas de maneira analógica. Todo ser é o mesmo consigo, diverso do não ser e distinto dos outros seres. Essa identidade é a raiz da verdade; a diversidade, o fundamento da multiplicidade e da relação. Em Deus, o mesmo é absoluto; nas criaturas, participado. Assim, o universo é unidade múltipla: tudo é o mesmo em ser, e diverso em modo.
Quaestio VIII — Utrum unum et ens convertantur secundum rationem
(Se o uno e o ser são convertíveis segundo a razão)
Objeções.
1. Parece que o uno e o ser não são convertíveis segundo a razão. Pois o ser diz respeito à existência, e o uno à indivisão. Ora, é possível que algo exista e não seja uno — como o corpo dividido ou o agregado de partes sem unidade formal. Logo, o uno e o ser não são convertíveis.
2. Além disso, “uno” parece ser posterior ao “ente”, pois a unidade é um modo de ser, não o próprio ser. O ser é o ato primeiro de todas as coisas; o uno, um acidente do ente. Logo, não são convertíveis segundo a razão, mas o uno se diz do ente por adição.
3. Ademais, as categorias distinguem o ser segundo os modos de predicação, mas o uno pertence à categoria da quantidade, como o número e a medida. Ora, o ser transcende as categorias. Logo, o uno e o ser não são convertíveis, porque pertencem a ordens diversas.
4. Ainda, o ser e o uno têm contrários diversos: ao ser se opõe o nada, ao uno se opõe a multidão. Ora, se fossem idênticos segundo a razão, teriam o mesmo contrário. Logo, o uno e o ser não são convertíveis.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles diz no livro X da Metafísica: “É evidente que o uno e o ser significam o mesmo, embora difiram segundo a razão.” E Boécio afirma: “O uno não acrescenta nada ao ser, mas é o próprio ser enquanto indiviso.” Logo, o uno e o ser se convertem segundo a razão.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o uno e o ser se convertem segundo a razão, isto é, significam a mesma realidade, embora exprimam-na sob aspectos diversos.
Com efeito, o ser (ens) significa o ente enquanto possui ato de existência; o uno (unum) significa o mesmo ente enquanto é indiviso em si e distinto dos outros. Assim, o uno não acrescenta ao ser algo real, mas apenas um modo de inteligibilidade: o ser enquanto indiviso.
Por isso, todo ente é necessariamente uno, e todo uno é necessariamente ente. Se algo não fosse uno, não seria algo determinado, e, portanto, não seria ente. Assim, o uno e o ser são convertíveis quanto ao sujeito, mas não quanto à razão formal pela qual se dizem.
O ser é anterior segundo a concepção, porque o intelecto primeiro apreende o ente como tal e, em seguida, entende que é uno. Mas essa posteridade é apenas de razão, não de realidade. Pois, no real, o ser e a unidade são inseparáveis: a divisão destrói o ser, e a unidade o conserva.
Além disso, como a unidade é princípio de inteligibilidade, o intelecto só pode conhecer algo na medida em que o concebe como uno. A multiplicidade só é inteligível por relação à unidade. Assim, o uno é concomitante ao ser, e ambos são transcendentais — não pertencem a uma categoria, mas ultrapassam todas, fundando-as.
Portanto, o uno e o ser são o mesmo segundo a realidade e o sujeito, mas se distinguem segundo a razão: o ser quanto ao ato de existir; o uno quanto à negação da divisão.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o corpo dividido não é uno simpliciter, mas uno secundum quid. A divisão afeta o modo da unidade, não a essência do ser. Cada parte continua sendo ente, e enquanto tal, também una. Logo, a unidade acompanha o ser em cada parte e em todo o composto.
2. À segunda, responde-se que o uno não é acidente do ente, mas propriedade transcendental. Dizer que o uno é “modo do ser” não significa que lhe seja acidental, mas que exprime o ser sob a forma de indivisão. Assim, o uno é tão universal quanto o ser.
3. À terceira, deve-se dizer que o uno, enquanto número ou medida, pertence à quantidade; mas enquanto transcendental, pertence à ordem do ser. A confusão provém do uso analógico da palavra “uno”: o uno predicamental é posterior; o transcendental é anterior a todas as categorias.
4. À quarta, responde-se que os contrários do ser e do uno são diversos apenas quanto ao modo de oposição: o nada se opõe ao ser absolutamente, a multidão ao uno por divisão. Mas, como a divisão implica privação de ser, ambas as oposições se reduzem à mesma raiz.
Conclusão.
O uno e o ser são convertíveis segundo a razão, porque significam a mesma realidade sob aspectos distintos. O ser é a plenitude do ato; o uno, a indivisão desse ato. Onde há ser, há unidade; onde há divisão, há privação de ser. Assim, o uno é o selo do ser, e o ser é o fundamento do uno. Em Deus, ambos coincidem absolutamente: Ele é ser puríssimo e unidade perfeita — ens simplicissimum et unum verissimum.
Quaestio IX — Utrum ens dicatur univoce vel analogice
(Se o ser se diz de modo unívoco ou analógico)
Objeções.
1. Parece que o ser se diz unívoca e igualmente de todas as coisas. Pois a ciência requer univocidade nos termos; e a metafísica, sendo ciência do ser enquanto ser, exige que o ser se diga de modo unívoco. Logo, o ser é dito univocamente.
2. Além disso, os conceitos universais só podem ser comunicados univocamente, do contrário não haveria gênero comum entre as coisas. Ora, todas as coisas participam do ser, e é dito delas como comum. Logo, o ser se diz univocamente de todas as coisas.
3. Ademais, se o ser se dissesse apenas analogicamente, o intelecto não poderia apreendê-lo como objeto uno de ciência, pois a analogia não dá unidade perfeita de conceito, mas apenas proporção. Logo, para que haja uma ciência do ser, é necessário que se diga univocamente.
4. Ainda, a univocidade é condição da verdade, porque só o que é dito do mesmo modo pode ser verdadeiro de modo idêntico. Ora, a verdade se diz de todas as coisas que são. Logo, o ser se diz univocamente, porque é fundamento da verdade.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, afirma que “o ser se diz de muitas maneiras, mas todas se referem a um só princípio e a uma única causa”. Logo, o ser não é unívoco, mas analógico.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o ser não se diz univocamente, mas analogicamente, porque é dito de muitas coisas segundo proporção à mesma ordem ou fim, e não segundo igualdade de conceito.
Com efeito, “unívoco” se diz daquilo que tem o mesmo nome e a mesma definição em diversos sujeitos; “equívoco”, do que tem o mesmo nome, mas definição diversa; e “análogo”, do que tem o mesmo nome, mas segundo proporção a uma única realidade.
Ora, o ser se aplica a tudo o que é — à substância, aos acidentes, ao ato, à potência, a Deus e às criaturas —, mas não de modo idêntico nem de modo puramente equívoco. Ele se diz por referência a um único princípio, que é o ser como ato e perfeição.
Assim, o ser se predica da substância per prius, e dos acidentes per posterius, porque a substância tem o ser em si, e os acidentes o têm por outro. Do mesmo modo, se diz de Deus e das criaturas: em Deus, o ser é por essência; nas criaturas, por participação. Logo, o nome é comum, mas o modo de significação é proporcional.
Essa analogia é de dois tipos: de atribuição e de proporção.
– De atribuição, quando diversos entes se ordenam a um só, como a saúde ao
corpo e aos remédios.
– De proporção, quando há semelhança de relação entre diversos modos de ser, como
entre o ser de Deus e o ser da criatura.
O ser, portanto, é dito analogicamente de atribuição e de proporção: de atribuição, porque tudo o que é se refere ao primeiro ser; de proporção, porque há em todos uma certa semelhança proporcional com Ele.
Por isso, o ser é dito de modo múltiplo, mas convergente: não por mera ambiguidade, mas por hierarquia. E essa analogia é o fundamento da ordem do universo, em que o múltiplo participa do uno, e o imperfeito reflete o perfeito.
Assim, a ciência do ser enquanto ser é possível, não porque o ser seja unívoco, mas porque o intelecto apreende na multiplicidade de significados uma proporção ordenada a um princípio único — o ens per se, que é Deus.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a ciência requer unidade de proporção, não necessariamente univocidade. A metafísica tem por objeto o ser sob todos os modos, e sua unidade é de analogia ordenada, não de identidade formal.
2. À segunda, responde-se que o ser é comum, mas não como gênero, e sim como princípio transcendental. Ele não unifica as coisas sob uma definição única, mas as ordena segundo graus de participação no ato de ser.
3. À terceira, deve-se dizer que a analogia não destrói a unidade da ciência, mas a funda num sentido mais elevado. Pois o intelecto considera o ser sob proporção única ao ato, ainda que o ato se realize de modos diversos.
4. À quarta, responde-se que a verdade acompanha o ser analogicamente, não univocamente. Há verdade no intelecto divino por essência, e nas criaturas por participação. A univocidade limitaria a verdade ao mesmo nível de perfeição, o que é impossível.
Conclusão.
O ser não se diz univocamente, mas analogicamente: nem como gênero comum, nem como nome equívoco, mas como princípio de ordem. Em tudo o que é, há proporção ao ato primeiro do ser, que é Deus. A unidade do ser é hierárquica, não uniforme: o ser das criaturas é sombra e participação do ser divino. Assim, o ser é dito em muitos modos, mas todos retornam ao mesmo — unum principium et causam omnium entium.
Quaestio X — Utrum entia dicantur aequivoce secundum praedicamenta
(Se os entes se dizem de modo equívoco segundo as categorias)
Objeções.
1. Parece que os entes se dizem de modo equívoco segundo as categorias. Pois o ser da substância é essencial, o do acidente é dependente e relativo. Ora, o que se diz segundo significações diversas e independentes é equívoco. Logo, o ser se diz equívoca e não analogicamente segundo as categorias.
2. Além disso, Aristóteles afirma no livro Categorias que o ser “não é um gênero”, porque se predica de muitos modos sem unidade de definição. Ora, o que não tem unidade de definição é equívoco. Logo, o ser é equívoco segundo os predicamentos.
3. Ademais, entre os entes das categorias não há comunidade real: o ser da substância não participa do ser do acidente, nem o do tempo participa do do lugar. Logo, o nome “ente” se aplica a todos esses de modo equívoco, não proporcional.
4. Ainda, o equívoco se reconhece pelo fato de um mesmo nome significar naturezas completamente diversas. Ora, o nome “ente” significa o ser substancial, o ser relacional, o ser temporal e o ser de qualidade — todos essencialmente diversos. Logo, o ser se diz equívoco segundo as categorias.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, ensina: “O ser se diz de muitas maneiras, mas todas se referem a um só princípio e a uma única causa.” Ora, o que se refere a um mesmo princípio não é equívoco, mas analógico. Logo, o ser não se diz equívoco segundo as categorias.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que os entes não se dizem de modo equívoco segundo as categorias, mas analogicamente e por ordenação a um único princípio, que é a substância.
Com efeito, a equivocidade supõe ausência total de relação e unidade; ora, nas categorias há sempre referência à substância, que é o sujeito e fundamento de todas as demais. O acidente não existe por si, mas no e pelo sujeito substancial; o tempo e o lugar não são senão modos pelos quais a substância existe e age. Assim, embora o nome “ser” se aplique a todos, não o faz por pura ambiguidade, mas por dependência hierárquica.
O ser, portanto, é dito de muitos modos, mas por ordenação a um — ad unum ordinata. A substância é o ser per se; os acidentes são seres per aliud. A analogia aqui é de atribuição, não de proporção: o ser do acidente se ordena ao da substância como o da parte ao do todo, ou o do instrumento ao do agente.
Por isso, Aristóteles nega que o ser seja gênero, não porque seja equívoco, mas porque é transcendental. O gênero requer unidade formal de definição, enquanto o ser possui unidade de proporção, que ultrapassa a unidade genérica.
Além disso, a diversidade das categorias não destrói a unidade do ser, mas manifesta seus modos. Assim como a luz se refrata em múltiplas cores sem deixar de ser luz, assim o ser se expressa em múltiplas categorias sem deixar de ser o mesmo ato fundamental.
Logo, dizer que o ser é equívoco segundo as categorias é erro de nominalismo: confunde diversidade de modos com diversidade de essência. Na realidade, o ser é um em analogia e múltiplo em expressão.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ser da substância e o do acidente diferem quanto ao modo, não quanto ao fundamento. O acidente é ser pela substância, e a substância é ser em si. Essa dependência constitui a analogia, não a equivocidade.
2. À segunda, responde-se que o ser não é gênero porque transcende a ordem dos gêneros, não porque careça de unidade. Ele é comum por proporção, não por definição; e essa proporcionalidade é mais alta que a comunidade genérica.
3. À terceira, deve-se dizer que há comunidade real entre as categorias, não de essência, mas de relação: todas se ordenam à substância como ao primeiro sujeito do ser. A unidade do ser é a unidade de ordenação, não de composição.
4. À quarta, responde-se que as naturezas diversas nas categorias não tornam o nome “ente” equívoco, pois todas essas naturezas recebem o ser segundo relação proporcional. O nome é comum por dependência de significação, não por identidade formal.
Conclusão.
O ser não se diz equívoco segundo
as categorias, mas analógico: é dito de muitos modos segundo a ordenação ao
mesmo princípio. A substância é o ser primeiro; os acidentes, modos do ser; o
tempo, o lugar e a relação, expressões derivadas do mesmo ato de existir.
A equivocidade dispersa, a analogia unifica. O ser é múltiplo no dizer, uno na
raiz. Tudo o que é, é ser em proporção à substância — e, por ela, ao Ser
absoluto, que é o fundamento de toda unidade e de toda participação.
Quaestio XI — Utrum unum sit principium numeri
(Se o uno é o princípio do número)
Objeções.
1. Parece que o uno não é o princípio do número. Pois o número, segundo Aristóteles, é “multidão medida pelo uno”. Ora, o uno é, então, medida, não princípio. E o princípio é anterior à medida, porque o princípio é causa e a medida é apenas regra. Logo, o uno não é princípio do número.
2. Além disso, o número se constitui pela adição sucessiva de unidades. Ora, o princípio do número é o que torna possível a multiplicação. Assim, a dualidade é o primeiro número, e não o uno, que é anterior ao número e não o número mesmo. Logo, o uno não é princípio do número, mas o antecede como elemento extrínseco.
3. Ademais, o número é quantidade discreta, e toda quantidade pressupõe extensão ou pluralidade. Ora, o uno é indivisível e sem pluralidade. Logo, não pode ser princípio do número, que exige multiplicidade.
4. Ainda, o número, segundo os pitagóricos, tem natureza formal, e o uno, natureza material, pois é indeterminado até ser multiplicado. Ora, o princípio é formal, não material. Logo, o uno não é princípio do número.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles afirma, no livro X da Metafísica: “O uno é o princípio do número, assim como o ponto é o princípio da linha.” Logo, o uno é verdadeiramente princípio do número.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o uno é o princípio do número, não como parte do número constituído, mas como sua raiz e medida formal, sem a qual o número não pode ser compreendido.
Com efeito, o número, enquanto quantidade discreta, resulta da repetição e comparação do uno consigo mesmo. Assim, o número é a pluralidade de unidades, e o uno é aquilo cuja multiplicação produz o número.
O uno é, pois, o princípio do número segundo a forma, não segundo a matéria. A matéria do número é a pluralidade; sua forma é a unidade que ordena essa pluralidade. Se não houvesse unidade, não haveria possibilidade de contagem, pois o múltiplo seria caos sem relação.
Assim como o ponto, embora não componha a linha, é seu princípio enquanto indica o termo indivisível da extensão, também o uno é o princípio do número enquanto indica o indivisível do discreto. A linha se constitui pela continuidade dos pontos enquanto limites; o número, pela sucessão das unidades enquanto medidas.
Além disso, o uno é princípio do número como causa exemplar, porque é a noção pela qual o intelecto compreende a multiplicidade numerável. Todo número é participação do uno, e o uno, por sua vez, é imagem da unidade primeira, que é Deus.
Logo, o uno é o fundamento de toda quantidade discreta, pois o múltiplo é número apenas enquanto composto de unidades. Assim, o número é efeito do uno, e o uno, sua causa formal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o uno é medida e princípio ao mesmo tempo. Ele é medida quanto à aplicação, e princípio quanto à essência. Pois o que mede é aquilo pelo qual o medido é compreendido, e isso é função de princípio.
2. À segunda, responde-se que a dualidade é o primeiro número constituído, mas não o primeiro princípio. O uno não é número, mas origem de todo número; e o princípio não precisa ser parte do que dele procede, como a unidade divina não é parte da criação.
3. À terceira, deve-se dizer que o número exige multiplicidade ordenada, e essa ordem procede da unidade. O uno não é múltiplo, mas dá ao múltiplo sua forma. Assim, a pluralidade sem o uno seria indeterminada e ininteligível.
4. À quarta, responde-se que os pitagóricos chamavam “matéria” ao uno apenas em sentido comparativo, não próprio. Para Aristóteles e os peripatéticos, o uno é princípio formal, pois confere inteligibilidade à quantidade.
Conclusão.
O uno é o princípio do número,
não enquanto parte do múltiplo, mas enquanto causa formal e exemplar de toda
multiplicidade. O número é pluralidade medida pelo uno, e o uno é a raiz de
toda medida. Assim como o ponto é origem do espaço contínuo, o uno é origem do
discreto.
E, em sentido mais alto, todo número participa do Uno supremo, em quem cessam
toda divisão e toda medida. Nele, o múltiplo retorna à simplicidade — in quo omnia unum sunt.
Quaestio XII — Utrum unum sit indivisum secundum essentiam vel secundum quantitatem
(Se o uno é indiviso segundo a essência ou segundo a quantidade)
Objeções.
1. Parece que o uno é indiviso apenas segundo a quantidade, e não segundo a essência. Pois Aristóteles diz, no livro X da Metafísica, que “o uno é aquilo que é indivisível segundo a quantidade”. Ora, a essência pode dividir-se logicamente, como quando o homem é dividido em gênero e diferença. Logo, o uno se refere à indivisão quantitativa, não à essencial.
2. Além disso, a essência é comum a muitos, como a natureza humana em Sócrates e Platão. Ora, o que é comum a muitos não é uno essencialmente, mas só por semelhança de espécie. Logo, o uno não é indiviso segundo a essência, mas apenas segundo a quantidade.
3. Ademais, o que é indivisível segundo a essência é simples, e o simples é imaterial. Ora, muitas coisas corporais são unas, como o homem e o animal. Logo, o uno não é indiviso segundo a essência, porque há unidade em coisas compostas.
4. Ainda, toda essência que se compõe de potência e ato é divisível segundo o ser, pois o ato é distinto da potência. Ora, todo ser criado se compõe desses dois princípios. Logo, nenhum ente criado é uno segundo a essência.
Em contrário (Sed contra).
Boécio, no tratado De Hebdomadibus, diz: “Tudo o que é, é uno; e é uno porque é indiviso tanto na essência quanto na existência.” Logo, o uno é indiviso não só quantitativamente, mas também essencialmente.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o uno é indiviso tanto segundo a essência quanto segundo a quantidade, mas de modos diversos: quanto à essência, por negação de divisão formal; quanto à quantidade, por negação de divisão material.
Com efeito, o uno é conversível com o ser, e todo ser é indiviso em si mesmo e distinto de outro. A indivisão segundo a essência significa que a coisa é aquilo que é, e não outra; a indivisão segundo a quantidade significa que não é multiplicada em partes extensas. Assim, o uno é indiviso simpliciter segundo a essência, e secundum quid segundo a quantidade.
O uno segundo a essência pertence ao ser enquanto ato: o que é, é idêntico consigo mesmo e não dividido em sua forma. Essa unidade é metafísica e inteligível, e se encontra mesmo nas coisas compostas, pois nelas a essência, enquanto tal, é uma — composta, mas não dividida.
O uno segundo a quantidade pertence ao ser enquanto corpo. Essa unidade é sensível e divisível em partes. Por isso, o corpo é uno de modo imperfeito, pois sua unidade depende da continuidade e pode ser destruída pela separação.
O uno espiritual, ao contrário, é indiviso essencialmente, porque sua forma é simples e inteira. E o uno divino é indiviso absolutamente, porque nele a essência e o ser são idênticos.
Assim, o uno essencial é anterior e mais perfeito que o uno quantitativo. Pois a quantidade é acidente da substância, e o uno segundo a quantidade é fundado no uno segundo a essência. O que não é uno formalmente não pode ser uno materialmente.
Portanto, a verdadeira noção de unidade consiste na indivisão da essência. A indivisão da quantidade é efeito e sombra dessa unidade formal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles fala do uno quantitativo per prius em ordem à percepção sensível, não em ordem à natureza. Mas no livro X, ele mesmo explica que o uno, dito absolutamente, é aquilo que é indiviso em si e separado do outro, o que vale também para a essência.
2. À segunda, responde-se que a essência é comum apenas segundo a abstração do intelecto, não segundo o ser. A natureza humana é uma em Sócrates e outra em Platão, ainda que semelhante. Logo, há unidade essencial em cada indivíduo, mas não numérica entre os diversos.
3. À terceira, deve-se dizer que nas coisas compostas há unidade essencial pela forma que unifica a matéria. A unidade formal é mais profunda que a material, porque a forma é princípio de indivisão na essência.
4. À quarta, responde-se que, embora o ente criado se componha de potência e ato, a composição não destrói a unidade essencial, pois ambos os princípios constituem um só ser. A distinção é de razão, não de divisão real.
Conclusão.
O uno é indiviso tanto segundo
a essência quanto segundo a quantidade, mas de maneira hierárquica: a indivisão
essencial é causa e fundamento da indivisão quantitativa. O ser é uno enquanto
é idêntico a si mesmo e distinto de outro; e todo múltiplo deriva da divisão
daquilo que era uno.
No ápice da hierarquia está Deus, uno por essência e existência; no grau
inferior, o corpo, uno por continuidade. Assim, toda unidade nasce da
simplicidade, e toda simplicidade reflete a Unidade primeira, na qual essência
e ato são o mesmo — ipsum esse
unum et simplex.
Quaestio XIII — Utrum unum sit prius ente vel posterius
(Se o uno é anterior ou posterior ao ser)
Objeções.
1. Parece que o uno é anterior ao ser. Pois o ser implica multiplicidade de modos e graus, ao passo que o uno exprime simplicidade. Ora, o simples é anterior ao composto. Logo, o uno é anterior ao ser, já que o ser comporta multiplicidade enquanto o uno exclui toda divisão.
2. Além disso, o uno é medida do ser. Aristóteles diz, no livro X da Metafísica, que “o uno é princípio do número e de toda medida”. Ora, o que mede é anterior ao que é medido. Logo, o uno é anterior ao ser.
3. Ademais, na ordem do conhecimento, primeiro concebemos o uno e depois o ser. Pois o intelecto primeiro distingue o uno do múltiplo, e só então compreende o ser como aquilo que tem unidade. Logo, o uno é anterior.
4. Ainda, a unidade divina é causa do ser das coisas. Ora, a causa é anterior ao efeito. Logo, o uno é anterior ao ser, tanto na ordem real quanto na inteligível.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro X da Metafísica, afirma: “O uno e o ser são idênticos segundo o sujeito, mas o ser é primeiro segundo a razão.” Logo, o ser é anterior ao uno.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o ser é anterior ao uno segundo a razão, mas o uno é simultâneo ao ser segundo o sujeito, e posterior quanto à noção que dele temos.
Com efeito, o ser (ens) significa o ato de existir, enquanto o uno (unum) significa o ente enquanto indiviso. Ora, a indivisão é uma negação que acompanha o ser, mas não o constitui. Assim, o uno adiciona ao ser apenas a negação da divisão, sem acrescentar nova realidade.
Logo, o ser é concebido primeiro, porque é positivo e afirmativo; o uno é concebido em seguida, como privação de divisão no ser. O intelecto apreende primeiro o que é, e só depois considera que é indiviso e distinto de outro.
Por isso, o ser é anterior segundo a razão — prius ratione —, mas o uno é simultâneo segundo a realidade — simul natura. Pois não pode haver ser sem unidade, nem unidade sem ser. Todo ente é uno, e todo uno é ente; mas o ser funda a unidade, enquanto o uno exprime o ser em negação de divisão.
Quanto à causalidade, o uno pode dizer-se anterior, não como princípio extrínseco, mas como razão de ordem. Pois o ser é uno na medida em que participa da unidade primeira, que é Deus. Nesse sentido eminente, o Uno divino é anterior a todo ser participado.
Assim, há uma tríplice ordem entre ser e uno:
1. Quanto à razão formal: o ser é primeiro, porque o uno o supõe.
2. Quanto ao sujeito real: são simultâneos, pois o mesmo que é, é indiviso.
3. Quanto à causa exemplar: o uno é anterior, porque o ser participa da unidade suprema.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o simples é anterior ao composto, mas a simplicidade do uno é consequente ao ser. O uno é simples porque o ser é ato indiviso; assim, o ser é a raiz da simplicidade, e não o contrário.
2. À segunda, responde-se que o uno é medida do ser por razão de conhecimento, não de causalidade real. A medida é posterior ao medido, pois depende dele para existir como termo de comparação. Assim, o ser é anterior, e o uno mede enquanto abstraído do ser.
3. À terceira, deve-se dizer que o intelecto não concebe o uno antes do ser, mas simultaneamente. O primeiro conceito do intelecto é o ente; o uno é percebido implicitamente como negação de divisão no mesmo ato.
4. À quarta, responde-se que o Uno divino é anterior a todos os seres como causa, mas isso não significa que o uno enquanto noção transcendental seja anterior ao ser. Na criatura, o ser é o primeiro ato; a unidade é concomitante.
Conclusão.
O ser é anterior ao uno segundo a razão, pois o uno exprime o ser sob negação de divisão. Contudo, ambos são simultâneos no sujeito, porque tudo o que é, é uno. E, segundo a causalidade exemplar, o Uno supremo é anterior a todos os seres criados, pois n’Ele o ser e o uno são idênticos. Assim, no intelecto humano, o ser é a primeira luz; no universo, o uno é o primeiro espelho dessa luz; e em Deus, ser e unidade se confundem em ato puríssimo — in quo unum et esse sunt idem.
Quaestio XIV — Utrum unum sit ens reale vel rationis
(Se o uno é ente real ou de razão)
Objeções.
1. Parece que o uno é ente de razão e não real. Pois Aristóteles diz que o uno não é substância, mas atributo do ente. Ora, o que se predica de outro e não existe por si é ente de razão, não real. Logo, o uno é ente de razão.
2. Além disso, o uno significa negação de divisão. Ora, toda negação é operação do intelecto, não da realidade extramental. Logo, o uno é apenas concepção racional e não algo real.
3. Ademais, o uno não acrescenta nada ao ser, senão uma negação. Mas o ser é o que constitui o real. Logo, o uno é simples modo de pensar o ser, e não realidade distinta.
4. Ainda, o múltiplo é o contrário do uno. Ora, a multiplicidade surge apenas pela distinção do intelecto que numera e separa. Logo, também o uno, enquanto correlato, pertence ao intelecto e não às coisas.
Em contrário (Sed contra).
Boécio, no tratado De Hebdomadibus, afirma: “Tudo o que é, é uno.” Ora, o ser é real; logo, o uno é também real.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o uno é ente real, mas também de razão segundo o modo de sua apreensão. Real quanto ao fundamento na coisa; de razão quanto ao modo como é concebido pelo intelecto.
Com efeito, o uno não acrescenta ao ser algo positivo, mas exprime o ser enquanto indiviso. Ora, a indivisão pertence à própria realidade da coisa: toda substância é indivisa em si e distinta de outra. Assim, a unidade é real porque segue a realidade do ser, e não depende da mente para existir.
Contudo, o uno é de razão quanto à forma da sua concepção. Pois o intelecto, ao apreender o ser, pode considerá-lo segundo diversos aspectos: ora como existente (ens), ora como indiviso (unum), ora como verdadeiro (verum). Esses transcendentais são reais no fundamento, mas racionais na distinção.
Logo, o uno é fundado no real, mas formalizado pela razão. A unidade não é ficção, mas relação do intelecto a uma propriedade verdadeira do ente.
Assim, há três graus de unidade:
1. Unidade essencial, que pertence à substância como princípio real de indivisão.
2. Unidade lógica, pela qual o intelecto concebe o ente como indiviso.
3. Unidade transcendental, pela qual toda coisa, enquanto é, é una.
A primeira é real absolutamente; a segunda é racional quanto ao modo de apreensão; a terceira é comum a ambas e é o fundamento do transcendental “unum”.
Portanto, não se deve dizer que o uno é mero ente de razão, pois tem existência real nas coisas, embora a mente o conceba sob razão negativa.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o uno se predica do ente, não como acidente, mas como transcendental que exprime o ente sob outro aspecto. Não é adição ao ser, mas conversão com ele. Logo, é real, não acidental.
2. À segunda, responde-se que, embora a negação pertença à operação do intelecto, o fundamento da negação é real. A indivisão é negada de fato nas coisas: a pedra é indivisa enquanto é uma, não porque o intelecto assim a pensa.
3. À terceira, deve-se dizer que o uno não acrescenta realidade distinta, mas exprime o modo do ser. Ora, esse modo é real, porque o ser, enquanto indiviso, possui essa propriedade objetivamente.
4. À quarta, responde-se que, embora o múltiplo seja apreendido pelo intelecto ao distinguir, a multiplicidade tem fundamento na diversidade real das coisas. Logo, o uno, que é o correlato do múltiplo, tem também fundamento real.
Conclusão.
O uno é ente real no
fundamento, e de razão no modo de concepção. Real, porque toda coisa é indivisa
em si e distinta de outra; de razão, porque a mente o apreende como negação da
divisão.
Assim, o uno é transcendental, pois acompanha o ser em toda parte e sob todo
modo. E em seu grau supremo — no Uno divino —, não é apenas atributo do ser,
mas identidade absoluta com ele: in
Deo unum et esse sunt idem re et ratione.
Quaestio XV — Utrum multitudo opponatur unitati secundum privationem vel contrarietatem
(Se a multidão se opõe à unidade por privação ou por contrariedade)
Objeções.
1. Parece que a multidão se opõe à unidade por contrariedade e não por privação. Pois Aristóteles ensina que a contrariedade é oposição entre extremos de um mesmo gênero. Ora, a unidade e a multidão estão no gênero da quantidade. Logo, opõem-se como contrários, e não como privação e hábito.
2. Além disso, a privação e o hábito se dizem de um mesmo sujeito, como “visão e cegueira” se dizem do olho. Ora, a unidade e a multidão não se dizem do mesmo sujeito: onde há unidade, não há multidão. Logo, não é oposição de privação, mas de contrariedade.
3. Ademais, o que é oposto por privação é mais simples e imperfeito que o outro, como a cegueira em relação à visão. Ora, a multidão é mais complexa, não mais imperfeita, que a unidade. Logo, não é privação, mas contrariedade.
4. Ainda, os contrários têm causas diversas, e a unidade e a multidão têm causas diversas — a unidade provém da forma, a multidão da matéria. Logo, são contrários e não apenas correlativos.
Em contrário (Sed contra).
Agostinho, no livro De Quantitate Animae, afirma: “A multidão não é contrária à unidade, mas sua dissolução.” Ora, dissolução é privação, não contrariedade. Logo, a oposição é por privação.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a multidão se opõe à unidade segundo privação, e não segundo contrariedade, porque a unidade exprime perfeição de indivisão, e a multidão exprime falta dessa indivisão.
Com efeito, a contrariedade requer que ambos os extremos sejam positivos e tenham ato próprio. Mas a multidão não é ato positivo oposto ao ato da unidade; é antes a negação ou privação da indivisão que constitui o uno.
A unidade é algo real e afirmativo — o ser enquanto indiviso. A multidão é o mesmo ser considerado sob a ausência dessa indivisão. Assim, o múltiplo não tem natureza contrária ao uno, mas é a divisão do uno em partes.
Por isso, Aristóteles afirma que o uno e o múltiplo não são contrários, porque não se destroem mutuamente: o múltiplo depende do uno, pois cada parte da multidão é una em si. A multidão não anula a unidade, mas a multiplica.
A privação aqui é relativa, não absoluta. A multidão não carece totalmente da unidade, mas carece da unidade simpliciter, conservando unidades parciais. A oposição é, pois, de privação ordenada — privatio cum ordine ad habitum.
E se a unidade pertence à forma, e a multidão à matéria, isso não gera contrariedade, mas complementaridade. A forma une, a matéria divide; mas ambos pertencem ao mesmo ente composto, não como inimigos, mas como polos de um mesmo processo.
Assim, a unidade é princípio de perfeição e de ser; a multidão, princípio de limitação e de divisão. Ambas coexistem, mas uma enquanto ato, outra enquanto privação do ato.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora a unidade e a multidão estejam no gênero da quantidade, não são contrárias dentro dele, porque não têm igual positividade. A unidade é raiz da quantidade; a multidão, derivação por divisão.
2. À segunda, responde-se que a oposição de privação não exige o mesmo sujeito, mas a mesma ordem de perfeição. Assim como o “cego” e o “vidente” pertencem à mesma potência, o uno e o múltiplo pertencem à mesma ordem de quantidade, mas não ao mesmo sujeito em ato.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora a multidão pareça mais “ampla” que a unidade, é menos perfeita, porque é composta de unidades divididas. A perfeição está na simplicidade e na indivisão, não na multiplicação.
4. À quarta, responde-se que as causas diversas de unidade e de multidão não implicam contrariedade, mas distinção de princípio. A forma e a matéria não se excluem, mas se ordenam: a forma dá unidade, a matéria multiplica.
Conclusão.
A multidão se opõe à unidade
não por contrariedade, mas por privação. Pois não destrói o uno, mas dele
deriva pela perda de simplicidade. O uno é o ser enquanto indiviso; o múltiplo
é o mesmo ser enquanto dividido.
Assim, a oposição não é de natureza, mas de grau: toda multiplicidade é sombra
do uno, e toda unidade é o vestígio da simplicidade primeira. Em Deus não há
multidão, porque não há potência; n’Ele, unidade e ser são o mesmo — simplicissimum esse unum.
Quaestio XVI — Utrum ens habeat gradus secundum unitatem et multitudinem
(Se o ser possui graus segundo a unidade e a multiplicidade)
Objeções.
1. Parece que o ser não possui graus segundo a unidade e a multiplicidade. Pois o ser é participado igualmente em tudo o que é, como diz Aristóteles: “o ser não se diz mais de uma coisa do que de outra, mas de todas do mesmo modo.” Logo, não há graus de ser conforme a unidade ou multiplicidade.
2. Além disso, a unidade e a multiplicidade pertencem à quantidade, não à substância. Ora, o ser, enquanto ser, é anterior à quantidade. Logo, o ser não pode graduar-se segundo a unidade e a multiplicidade, que são acidentes.
3. Ademais, os graus supõem diversidade de perfeição. Mas a unidade e a multiplicidade são apenas modos de número, não de perfeição. Logo, não se pode dizer que o ser tenha graus conforme esses modos.
4. Ainda, se o ser tivesse graus segundo a unidade e a multiplicidade, o mais uno seria mais ente. Ora, o gênero é mais uno que as espécies, e o universal é mais uno que o particular. Logo, o gênero e o universal seriam mais entes que o particular, o que é falso.
Em contrário (Sed contra).
Dionísio, no livro De Divinis Nominibus, afirma: “Toda multiplicidade participa da unidade, e há gradação segundo a proximidade ao Uno primeiro.” Logo, o ser tem graus conforme a unidade e a multiplicidade.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o ser possui graus segundo a unidade e a multiplicidade, mas não por acréscimo quantitativo, e sim por intensidade formal. Pois o ser é participado conforme o grau de perfeição da unidade em cada ente.
Com efeito, quanto mais algo é uno em si, tanto mais é ser; quanto mais dividido, tanto menos é ser. A unidade mede a perfeição do ser, porque o ser consiste em ato indiviso. A divisão introduz composição, e a composição limita o ato.
Assim, os entes superiores, como as substâncias espirituais, são mais unos e, por isso, mais perfeitos; os entes inferiores, sujeitos à divisão e corrupção, são menos unos e, portanto, menos perfeitos.
A gradação do ser, segundo a unidade e a multiplicidade, reflete a hierarquia do universo. No cume, o Uno divino é ato puríssimo, sem divisão e sem potência; abaixo, as substâncias separadas, unas por essência, mas múltiplas por ordem; depois, as substâncias compostas, unas por forma e múltiplas por matéria; e, por fim, os corpos inanimados, cuja unidade é apenas de agregação.
Essa gradação não destrói a comunidade do ser, mas manifesta sua participação diversa. O ser é comum a todos, mas não igualmente participado. Assim como a luz é uma, mas brilha mais intensamente nas substâncias transparentes do que nas opacas, o ser é uno, mas mais pleno nos entes mais unidos em si.
A multiplicidade, ao contrário, é sinal de imperfeição, porque procede da potência e da divisão. Quanto mais algo depende de partes, mais próximo está do não-ser.
Portanto, o ser tem graus segundo a unidade e a multiplicidade: não por adição de partes, mas por intensidade de ato e simplicidade de forma.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ser é comum a todos os entes quanto à analogia, não quanto à igualdade. Assim, é dito de todos, mas com graus diversos de participação.
2. À segunda, responde-se que, embora a unidade e a multiplicidade pertençam à quantidade em sentido próprio, há também unidade transcendental, que acompanha o ser em todo gênero. É dessa unidade transcendental que falamos.
3. À terceira, deve-se dizer que a unidade não é apenas numérica, mas ontológica: o uno é princípio de perfeição, porque exclui divisão. Por isso, o mais uno é mais perfeito, e, portanto, mais ser.
4. À quarta, responde-se que o gênero e o universal são mais unos na razão, mas não na realidade. O particular é mais ente, porque tem ser atual; o universal é mais uno apenas no intelecto. Logo, a regra da unidade e perfeição vale no ser real, não no lógico.
Conclusão.
O ser possui graus conforme a
unidade e a multiplicidade: quanto maior a unidade formal, maior o ser; quanto
maior a divisão, menor o ser. A hierarquia dos entes é gradação de unidade.
Assim, o ser começa na simplicidade absoluta de Deus, desce às substâncias
intelectuais e chega até os corpos divididos pela matéria. O caminho do ser é o
da unidade que se rarefaz. No Uno divino, o ser é plenitude; nas criaturas,
participação; na matéria, vestígio.
E, como ensina Dionísio, “o Uno está em tudo e acima de tudo”: nele, a unidade
não é grau, mas essência — in
quo unitas et esse sunt idem et infinitum.
Quaestio XVII — Utrum veritas fundetur in identitate entis et intellectus
(Se a verdade se funda na identidade entre o ser e o intelecto)
Objeções.
1. Parece que a verdade não se funda na identidade entre o ser e o intelecto. Pois a verdade é uma adequação (adaequatio) entre o intelecto e a coisa, como diz Anselmo. Ora, a adequação supõe distinção entre os correlatos. Logo, a verdade não consiste em identidade, mas em correspondência.
2. Além disso, a verdade se encontra no juízo, não no ser. Ora, o juízo é ato do intelecto, e o ser pertence à coisa. Logo, não há identidade, mas relação de conformidade entre o ser e o intelecto.
3. Ademais, o ser das coisas é anterior à verdade do intelecto. Pois as coisas seriam, ainda que não fossem conhecidas. Logo, a verdade não se funda em identidade entre ser e intelecto, mas na conveniência entre eles.
4. Ainda, em Deus a verdade é idêntica ao ser, porque o intelecto divino é sua própria essência. Mas nas criaturas, o intelecto é potência distinta do ser. Logo, nelas não há identidade, e, portanto, a verdade não pode fundar-se nessa identidade.
Em contrário (Sed contra).
Santo Agostinho, no livro De Vera Religione, afirma: “A verdade é aquela pela qual é o que é aquilo que é.” Ora, dizer que algo é o que é, é afirmar identidade entre o ser e o conhecer. Logo, a verdade se funda nessa identidade.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a verdade se funda na identidade entre o ser e o intelecto, não como identidade absoluta de essência em todas as coisas, mas como identidade de proporção e de ordem causal.
Com efeito, o ser e o intelecto são correlatos: o ser é aquilo que é inteligível, e o intelecto é a potência que conhece o ser. O ser, enquanto verdadeiro, é ser ordenado ao intelecto; e o intelecto, enquanto verdadeiro, é intelecto ordenado ao ser. Essa ordenação implica identidade de razão formal — identitas secundum rationem formalem veritatis.
Assim, a verdade nasce quando o ser e o intelecto se encontram numa só adequação: a coisa é tal como o intelecto a apreende, e o intelecto apreende a coisa tal como ela é. Nessa coincidência, há identidade de ato, embora distinção de sujeito.
No nível mais alto, em Deus, essa identidade é absoluta, porque o intelecto divino é o próprio ser de Deus: intelligere et esse idem sunt in Deo. Logo, a verdade divina é a própria substância divina.
Nas criaturas, a identidade é participada. O ser das coisas é verdadeiro porque é conforme ao intelecto divino, que é causa exemplar de todos os entes. Assim, a verdade das coisas consiste em sua conformidade com a ideia divina. Por outro lado, a verdade do intelecto humano consiste em sua conformidade com o ser real.
Portanto, há uma dupla verdade:
– A verdade ontológica,
que é a conformidade do ente ao intelecto divino;
– A verdade lógica,
que é a conformidade do intelecto humano ao ente.
Ambas se fundam na identidade última entre ser e inteligibilidade: o que é, é inteligível; e o que é conhecido, é enquanto é.
Logo, a verdade é como um espelho onde o ser se reconhece no intelecto: veritas est splendor entis in intellectu.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a adequação não exclui a identidade, mas a supõe. A adequação é o modo pelo qual a identidade se manifesta em sujeitos distintos. A verdade é adequação enquanto relação, e identidade enquanto fundamento.
2. À segunda, responde-se que, embora o juízo seja ato do intelecto, sua retidão depende da correspondência com o ser. Assim, a verdade do juízo é reflexo da identidade entre o ser e o inteligível.
3. À terceira, deve-se dizer que o ser é anterior à verdade quanto à existência, mas não quanto à noção. Pois o ser, enquanto verdadeiro, é ser em relação ao intelecto. A verdade não acrescenta algo real, mas o modo do ser enquanto cognoscível.
4. À quarta, responde-se que, em Deus, a identidade é essencial; nas criaturas, é participada. Contudo, em ambos os casos, a verdade se funda na mesma proporção entre ser e intelecto: nas criaturas, por participação; em Deus, por essência.
Conclusão.
A verdade se funda na
identidade entre o ser e o intelecto, porque toda inteligibilidade é aspecto do
ser, e todo ser é verdadeiro enquanto inteligível. A diferença entre ambos é de
razão, não de fundamento.
No intelecto divino, essa identidade é substancial; no humano, é proporcional.
Assim, todo conhecimento é participação da Verdade primeira, onde o ser e o
conhecer são um só ato. E por isso, como ensina Alberto, “a verdade é o ser
iluminado pela intelecção” — veritas
est ens manifestum intellectui.
Quaestio XVIII — Utrum falsitas oriatur ex divisione vel ex privatione identitatis
(Se a falsidade nasce da divisão ou da privação da identidade)
Objeções.
1. Parece que a falsidade nasce da divisão, e não da privação da identidade. Pois a verdade, como foi dito, consiste na adequação entre o intelecto e o ser. Ora, o contrário da adequação é a divisão ou disjunção. Logo, a falsidade nasce da divisão, pela qual o intelecto separa o que na realidade é unido, ou une o que é separado.
2. Além disso, Aristóteles diz no livro IV da Metafísica que “falso é afirmar que o que é, não é, ou que o que não é, é”. Ora, isso é divisão de afirmação e negação, e não privação de identidade. Logo, a falsidade nasce da divisão.
3. Ademais, a privação supõe potência para o hábito. Mas a verdade não é hábito da potência sensível, e sim ato do intelecto. Logo, a falsidade não é privação, mas erro ou divisão de ato intelectual.
4. Ainda, a falsidade pode ocorrer mesmo nas coisas, quando não correspondem à ideia exemplar divina. Ora, nas coisas não há divisão de juízo, mas imperfeição de ser. Logo, a falsidade não provém de divisão, mas de privação de identidade com a verdade divina.
Em contrário (Sed contra).
Santo Agostinho, no livro De Vera Religione, afirma: “Toda falsidade é privação da verdade, como a escuridão é privação da luz.” Logo, a falsidade não é divisão, mas privação da identidade da coisa com a verdade.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a falsidade tem uma dupla origem: na coisa, por privação da identidade com sua verdade exemplar; no intelecto, por divisão contrária à identidade do ser e do conhecer.
Assim, a falsidade é privação quanto à causa, e divisão quanto ao modo de manifestação.
No primeiro sentido, a falsidade nasce da privação da identidade, porque o ser é verdadeiro enquanto é conforme ao intelecto divino, e falso quando carece dessa conformidade. O defeito de ser é privação da medida exemplar, e não simples divisão.
No segundo sentido, a falsidade, enquanto ato do intelecto humano, se manifesta por divisão, isto é, quando o intelecto não mantém a identidade entre o que conhece e o que é. Então, ou une o que é dividido, ou divide o que é uno.
Logo, a falsidade, em sua raiz ontológica, é privação de conformidade com a verdade, e em sua expressão lógica, é divisão do intelecto em relação ao ser.
Essa distinção explica o duplo modo de falsidade:
1. Falsidade real (ontológica) — quando a coisa carece de ser conforme à ideia divina. Assim, uma natureza corrupta ou defeituosa é falsa porque não alcança plenamente sua forma exemplar.
2. Falsidade lógica (intelectual) — quando o intelecto afirma ou nega em discordância com o ser. Essa falsidade nasce da divisão do juízo em relação à unidade da coisa.
Por isso, Alberto diz que “toda falsidade é privação de verdade com divisão de proporção”. A privação é a causa formal, a divisão é o efeito cognoscitivo.
Assim, o verdadeiro e o falso não são contrários absolutos, como o quente e o frio, mas relativos ao ato do intelecto: a verdade é adequação, a falsidade é defeito dessa adequação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a divisão é efeito da falsidade no intelecto, mas não sua causa. A causa é a privação da identidade com o ser; a divisão é o modo como essa privação aparece no juízo.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles descreve o modo da falsidade, não sua raiz. Dizer que o falso é afirmar o que não é ou negar o que é, é descrever a divisão no intelecto, não a privação na realidade.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora o intelecto não tenha hábito no sentido sensível, tem ordem e proporção à verdade. A privação dessa ordem é propriamente falsidade.
4. À quarta, responde-se que nas coisas a falsidade é privação, e não divisão, pois nelas não há juízo, mas imperfeição de ser. Assim, a falsidade ontológica é privação de conformidade exemplar, e a falsidade lógica, divisão no juízo.
Conclusão.
A falsidade nasce da privação da identidade
entre o ser e o intelecto, e se manifesta pela divisão do juízo. No ser, é privação de
medida; no intelecto, separação da verdade.
A verdade é luz do ser; a falsidade, sua sombra. Onde há divisão, há ausência
de unidade; e onde falta unidade, falta verdade.
Em Deus, não há falsidade, porque n’Ele o ser e o conhecer são um. Nas
criaturas, há falsidade enquanto a forma não atinge sua perfeição exemplar.
Assim, toda falsidade é falha de identidade e perda de proporção com a Verdade
primeira — in qua falsum
nullum est, quia totum unum est.
Quaestio XIX — Utrum principium contradictionis possit cadere sub demonstratione
(Se o princípio de contradição pode cair sob demonstração)
Objeções.
1. Parece que o princípio de contradição pode cair sob demonstração. Pois toda verdade necessária é demonstrável. Ora, o princípio de contradição é a mais necessária de todas as verdades. Logo, deve ser demonstrável.
2. Além disso, aquilo que pode ser conhecido por meio de outro é demonstrável. Ora, o princípio de contradição é conhecido a partir do conhecimento do ser e do não-ser, e de sua oposição. Logo, é demonstrável a partir desses.
3. Ademais, a demonstração é o meio pelo qual se alcança a certeza. Ora, ninguém tem certeza sem o princípio de contradição. Logo, ele é demonstrado como primeiro fundamento de toda certeza.
4. Ainda, Aristóteles diz que “quem nega o princípio de contradição deve ser refutado por argumento”. Ora, refutar por argumento é demonstrar. Logo, o princípio de contradição pode ser demonstrado.
Em contrário (Sed contra).
O mesmo Aristóteles, no livro IV da Metafísica, diz expressamente: “Non est demonstrationis, sed est omnium demonstrationum principium” — “Não é objeto de demonstração, mas princípio de todas as demonstrações.”
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de contradição não pode cair sob demonstração, porque é anterior a todo processo demonstrativo.
A demonstração procede a partir de princípios anteriores e mais conhecidos, dos quais deriva a conclusão. Ora, o princípio de contradição é o mais conhecido de todos, porque é condição de possibilidade de qualquer pensamento, juízo ou discurso.
Por isso, não se pode demonstrá-lo, mas somente manifestá-lo por redução, isto é, mostrando que quem o nega destrói o próprio ato de afirmar ou negar.
A demonstração requer três coisas: um sujeito, um predicado e o vínculo entre ambos. Mas aquele que nega o princípio de contradição destrói o vínculo mesmo, afirmando que o ser e o não-ser podem coexistir. Logo, nega implicitamente toda forma de discurso racional.
O princípio de contradição é, portanto, per se notum secundum se et nobis — evidente por si mesmo e para nós, porque basta a compreensão dos termos para que se reconheça sua verdade: impossibile est idem simul esse et non esse.
Todavia, há uma distinção entre
demonstração
e manifestação por
impossibilidade do contrário (reductio ad impossibile).
Embora o princípio de contradição não possa ser demonstrado propriamente, pode
ser confirmado por redução,
mostrando que sua negação implica contradição. Assim, quem diz “é possível que
o ser e o não-ser coexistam” afirma e nega o mesmo em um só ato.
A mente, por natureza, conhece a impossibilidade de contradição. Este conhecimento é imediato, não discursivo. Assim, o princípio de contradição é a luz da demonstração, não o seu produto.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o princípio de contradição é necessário, mas não demonstrável, porque é fundamento da necessidade. As verdades necessárias são demonstráveis a partir dele, não ele a partir de outras.
2. À segunda, responde-se que o conhecimento do ser e do não-ser é simultâneo com o princípio, não anterior. Assim, não há demonstração, mas intuição intelectual do seu repúdio mútuo.
3. À terceira, deve-se dizer que a certeza depende do princípio de contradição como de seu fundamento. Ele é causa da certeza, não seu efeito. Portanto, é indemonstrável, mas princípio de toda demonstração.
4. À quarta, responde-se que a refutação dos que negam o princípio não é demonstração direta, mas reductio ad absurdum, pois leva o interlocutor a ver que sua própria fala se dissolve em autocontradição.
Conclusão.
O princípio de contradição não
pode ser demonstrado, porque é condição
de toda demonstração. É luz, não objeto iluminado; fundamento,
não edifício.
Tudo o que se demonstra o supõe. Negá-lo é negar o próprio pensamento. Por
isso, Alberto diz: “Primum
intellectum est discernere inter esse et non esse” — o primeiro ato
do intelecto é discernir entre ser e não-ser.
E desse discernimento nasce toda ciência, pois sem ele não há distinção, nem
juízo, nem verdade. Assim, o princípio de contradição é o início absoluto do inteligível,
a fronteira entre o ser e o nada, onde o pensamento se funda e o erro se
dissolve.
Quaestio XX — Utrum principium contradictionis sit idem cum principio identitatis
(Se o princípio de contradição é o mesmo que o princípio de identidade)
Objeções.
1. Parece que o princípio de contradição é o mesmo que o de identidade. Pois ambos afirmam algo sobre o ser enquanto ser: o princípio de identidade diz que o ser é o ser; o de contradição, que o ser não é o não-ser. Ora, afirmar o ser e negar o não-ser são o mesmo ato sob razões diversas. Logo, ambos são idênticos em substância.
2. Além disso, todo princípio supremo da razão é uno. Ora, o princípio de contradição e o de identidade são os mais universais de todos. Se fossem distintos, haveria dois princípios primeiros da razão, o que é impossível. Logo, são o mesmo princípio.
3. Ademais, o princípio de identidade é positivo — id quod est, est —, e o de contradição é negativo — impossibile est idem simul esse et non esse. Mas o negativo nada acrescenta ao positivo senão a negação do contrário. Logo, o segundo é apenas a forma negativa do primeiro, e assim são o mesmo em essência.
4. Ainda, o intelecto apreende o ser antes de toda distinção. Ora, tanto a identidade quanto a contradição pertencem à apreensão do ser enquanto tal. Logo, são o mesmo princípio, expresso de modos diversos.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no livro IV da Metafísica, distingue claramente ambos, dizendo: “O princípio de contradição é que o mesmo não pode ao mesmo tempo ser e não ser.” E noutro lugar: “O princípio de identidade é que cada coisa é o que é.” Logo, não são o mesmo princípio, mas correlatos.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o princípio de contradição e o princípio de identidade são distintos quanto à razão formal, mas idênticos quanto ao sujeito e ao fundamento do ser.
Ambos procedem da mesma raiz metafísica — o ser enquanto indiviso —, mas exprimem aspectos diversos dessa indivisão.
O princípio de identidade afirma a indivisão do ente consigo mesmo: omne ens est quod est — todo ser é o que é. É uma proposição afirmativa, que exprime o ser em sua consistência própria.
O princípio de contradição, ao contrário, nega a possibilidade da divisão entre o ser e o não-ser no mesmo sujeito e sob o mesmo aspecto: impossibile est idem simul esse et non esse. É uma proposição negativa, que exprime o mesmo conteúdo sob a forma de exclusão.
Logo, ambos têm o mesmo fundamento ontológico — a indivisão do ente —, mas diferem pela razão lógica: um afirma, o outro exclui.
Assim, o princípio de identidade é primeiro na ordem da afirmação, e o de contradição é primeiro na ordem da negação. O intelecto, ao conceber o ser, primeiramente o apreende como idêntico a si; em seguida, como excluindo o não-ser.
Esses dois princípios são, portanto, correlativos: o de identidade funda o de contradição, e o de contradição conserva o de identidade. O primeiro é fundamento da inteligibilidade; o segundo, da certeza e da verdade.
Sem identidade, não há o que afirmar; sem contradição, não há o que distinguir. A identidade dá o ser; a contradição dá a diferença.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que ambos se referem ao mesmo ente, mas sob razões distintas: o princípio de identidade afirma positivamente o ser; o de contradição nega o não-ser. Assim, são idênticos quanto ao sujeito, mas diversos quanto ao modo de enunciar.
2. À segunda, responde-se que há um só princípio radical da razão — o ser —, do qual derivam formalmente dois primeiros princípios: o de identidade e o de contradição. A unidade do fundamento não impede a dualidade das expressões.
3. À terceira, deve-se dizer que o negativo supõe o positivo, mas não se confunde com ele. O princípio de contradição não é mera forma negativa do de identidade, mas sua consequência imediata: da afirmação “o ser é” segue-se que “não pode não ser”.
4. À quarta, responde-se que o intelecto apreende o ser sob dois atos inseparáveis: o de afirmar o idêntico e o de excluir o contrário. Um é formalmente anterior, outro logicamente consequente; ambos, porém, são simultâneos no ato de conhecimento do ser.
Conclusão.
O princípio de contradição e o
de identidade nascem de
uma mesma raiz ontológica — o ser enquanto indiviso —, mas se
distinguem quanto à razão e à forma lógica: o primeiro é afirmativo, o segundo
negativo.
Ambos constituem o fundamento duplo de toda ciência: o de identidade estabelece
o ser como o que é; o de contradição impede o retorno ao nada.
Por isso, Alberto conclui: “Quem
nega o princípio de contradição dissolve o de identidade; e quem afirma o de
identidade afirma também o de contradição.”
Assim, no Uno divino, onde não há distinção entre afirmar e negar, ambos
coincidem em simplicidade absoluta — in
Deo idem est affirmare et esse, quia nihil potest opponere ipsi Esse.
ALBERTI MAGNI — SUPER LIBROS METAPHYSICORUM ARISTOTELIS
LIBER QUINTUS — DE PRAEDICAMENTIS ET DE CAUSIS
(Livro Quinto — Sobre as Categorias e as Causas)
Quaestio I — Utrum
entis divisio in decem praedicamenta sit naturalis.
Se a divisão do ente em dez categorias é natural.
Quaestio II — Utrum
praedicamenta sint genera entis aut modi essendi.
Se as categorias são gêneros do ente ou modos de ser.
Quaestio III — Utrum
praedicamenta sint realia an rationis.
Se as categorias são realidades ou apenas conceitos da razão.
Quaestio IV — Utrum
praedicamenta sint decem numero.
Se as categorias são dez em número.
Quaestio V — Utrum
substantia sit primum praedicamentum.
Se a substância é a primeira das categorias.
Quaestio VI — Utrum
accidens sit ens verum et distinctum a substantia.
Se o acidente é um ente verdadeiro e distinto da substância.
Quaestio VII — Utrum
quantitas sit accidens necessarium substantiae.
Se a quantidade é um acidente necessário da substância.
Quaestio VIII — Utrum
qualitas ordinetur ad formam vel ad materiam.
Se a qualidade se ordena à forma ou à matéria.
Quaestio IX — Utrum
relatio fundetur in actu vel in potentia.
Se a relação se funda no ato ou na potência.
Quaestio X — Utrum
relatio sit in re vel in intellectu tantum.
Se a relação existe na coisa ou apenas no intelecto.
Quaestio XI — Utrum
tempus et locus sint praedicamenta vera.
Se o tempo e o lugar são verdadeiras categorias.
Quaestio XII — Utrum
actio et passio sint species motus.
Se a ação e a paixão são espécies do movimento.
Quaestio XIII — Utrum
habitus et situs differant secundum speciem.
Se o hábito e a posição diferem segundo a espécie.
Quaestio XIV — Utrum
inter praedicamenta sit ordo secundum nobilitatem.
Se há ordem entre as categorias segundo a nobreza.
Quaestio XV — Utrum
praedicamenta comprehendant omnia entia.
Se as categorias abrangem todos os entes.
Quaestio XVI — Utrum
causa et principium differant.
Se causa e princípio diferem entre si.
Quaestio XVII — Utrum
causa sit aliquid extra causatum.
Se a causa é algo fora do causado.
Quaestio XVIII — Utrum causa
materialis sit vere causa.
Se a causa material é verdadeiramente causa.
Quaestio XIX — Utrum
causa formalis praecedat materialem secundum naturam.
Se a causa formal precede a material segundo a natureza.
Quaestio XX — Utrum
causa efficiens habeat priorem causam.
Se a causa eficiente tem uma causa anterior.
Quaestio XXI — Utrum
causa finalis sit prima in intentione, sed ultima in executione.
Se a causa final é a primeira na intenção, mas a última na execução.
Quaestio XXII — Utrum
inter causas sit circulus vel regressus.
Se entre as causas há círculo ou regressão.
Quaestio XXIII — Utrum
omne ens habeat quatuor causas.
Se todo ente possui quatro causas.
Quaestio XXIV — Utrum
una causa possit esse causa plurium effectuum.
Se uma causa pode ser causa de vários efeitos.
Quaestio XXV — Utrum
una res possit habere plures causas unius generis.
Se uma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero.
Quaestio XXVI — Utrum
causae inferiores agant in virtute superiorum.
Se as causas inferiores agem em virtude das superiores.
Quaestio XXVII — Utrum
causa efficiens moveatur ab appetitu finis.
Se a causa eficiente é movida pelo apetite do fim.
Quaestio XXVIII — Utrum
finis sit causa causarum.
Se o fim é a causa das causas.
Quaestio XXIX — Utrum
causae omnes dependeant a prima causa.
Se todas as causas dependem da causa primeira.
Quaestio I — Utrum entis divisio in decem praedicamenta sit naturalis
(Se a divisão do ente em dez categorias é natural)
Objeções.
1. Parece que a divisão do ente em dez categorias não é natural. Pois o ente é o mais universal de todos os conceitos, e o universal não pode ser dividido senão por diferenças contrárias que o limitem. Ora, as categorias não parecem proceder de diferenças contrárias, mas de diversos modos de predicação. Logo, tal divisão é de instituição racional, e não natural.
2. Além disso, Aristóteles, no Livro das Categorias, não demonstra que sejam dez, mas apenas as enumera. Ora, a enumeração sem demonstração indica convenção, e não necessidade natural. Logo, a divisão das categorias é mais lógica do que real.
3. Ademais, Boécio, em seu comentário às Categorias, diz que “as categorias são modos de dizer o ser”. Ora, modos de dizer pertencem à razão e à linguagem, não à natureza das coisas. Logo, a divisão é racional, não natural.
4. Ainda, as coisas existem antes de serem ditas. Ora, a divisão em categorias segue a predicação, que é ato do intelecto. Logo, é divisão do pensamento, e não do ente em si mesmo.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro V da Metafísica, diz: “As categorias são modos do ser enquanto ser.” Ora, o ser enquanto ser é objeto próprio da metafísica e não da lógica. Logo, a divisão em categorias é natural e metafísica, não meramente racional.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a divisão do ente em dez categorias é natural, não quanto à matéria das palavras, mas quanto à diversidade real dos modos de ser nas coisas.
Com efeito, o ente é dito em muitos gêneros, não por pura multiplicidade de nomes, mas porque há diversos modos reais de ser: ser por si, como substância; ser em outro, como acidente; e, entre os acidentes, múltiplas maneiras segundo que algo se ordena à substância, ora como medida (quantidade), ora como disposição (qualidade), ora como referência (relação), e assim sucessivamente.
Esses modos não são invenções do intelecto, mas fundados na própria realidade, segundo a ordem das causas e das dependências. O intelecto apenas distingue o que está naturalmente distinto e ordenado.
A divisão em dez categorias é, portanto, natural quanto à fundação, mas racional quanto ao modo de conceber e enunciar.
Pois o intelecto, ao conceber o
ser, considera primeiro o que existe por si — a substância —, e depois o que
existe em outro — os acidentes.
Entre os acidentes, distingue pela razão o que convém segundo quantidade,
qualidade, relação, lugar, tempo, situação, hábito, ação e paixão.
Tais distinções seguem a ordem da natureza, porque os acidentes derivam
necessariamente das condições de um sujeito corpóreo e móvel.
A natureza das categorias é,
portanto, dupla:
– Metafísica,
porque exprime a multiplicidade real do ser;
– Lógica,
porque exprime a ordem da predicação conforme o modo de inteligir.
Assim, as categorias são naturais na causa, racionais na expressão. A natureza fornece os modos de ser; a razão os dispõe em forma de divisão.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que as categorias não se dividem por diferenças contrárias como os gêneros inferiores, mas por modos transcendentais do ser. A diferença entre substância e acidente não é contrária, mas diversa por modo de existir: uma é por si, outra em outro.
2. À segunda, responde-se que Aristóteles enumerou as dez categorias não por mera convenção, mas porque observou que todo ente deve ser dito segundo uma dessas dez maneiras. A enumeração é empírica, mas fundada na necessidade natural do discurso sobre o ser.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora Boécio chame as categorias de “modos de dizer”, ele entende “modos de dizer o ser conforme é nas coisas”. Logo, a predicação segue a realidade, não a constitui.
4. À quarta, responde-se que o intelecto, ao predicar, não cria as categorias, mas as reconhece. Assim como o olho distingue cores, não porque as produza, mas porque as percebe, o intelecto distingue categorias porque nelas está fundada a diversidade natural dos entes.
Conclusão.
A divisão do ente em dez
categorias é natural na
ordem do ser, pois exprime modos reais de existência; mas é lógica na forma de conhecimento,
pois o intelecto as formula segundo o modo de dizer.
A natureza fornece o fundamento; a razão o discurso.
Assim, como a verdade é luz do ser no intelecto, as categorias são o espelho da
ordem do ser na linguagem.
Por isso, Alberto conclui: “Praedicamenta
sunt scala entis; per ea mens ascendit a sensibilibus ad intellecta.”
As categorias são a escada do ser: por elas, a mente sobe das coisas sensíveis
às inteligíveis.
Quaestio II — Utrum praedicamenta sint genera entis aut modi essendi
(Se as categorias são gêneros do ente ou modos de ser)
Objeções.
1. Parece que as categorias são gêneros do ente, e não modos de ser. Pois cada uma delas compreende sob si muitas espécies subordinadas, como a substância, que contém corpo, alma, homem e outros. Ora, o que contém espécies é gênero. Logo, as categorias são gêneros do ente.
2. Além disso, Aristóteles diz no Livro das Categorias: “Substantia, quantitas, qualitas et cetera praedicantur de subiectis”. Ora, tudo o que se predica de muitos de modo diverso é gênero. Logo, as categorias são gêneros supremos do ente.
3. Ademais, o ente se divide em categorias, como o gênero em espécies. Mas o gênero é dividido em espécies segundo sua natureza formal. Logo, as categorias são gêneros do ente segundo a natureza mesma do ser.
4. Ainda, o Filósofo chama as categorias de maxima genera. Ora, os gêneros máximos são aqueles acima dos quais não há outro gênero. Logo, as categorias são gêneros do ente, e não meros modos de ser.
Em contrário (Sed contra).
O mesmo Aristóteles, no Livro V da Metafísica, afirma: “Dicitur ens multipliciter secundum diversos modos.” Ora, os modos do ser são ditos conforme as categorias. Logo, as categorias são modos do ser, não gêneros dele.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as categorias não são propriamente gêneros do ente, mas modos de ser que o intelecto apreende como gêneros.
Com efeito, o ente não tem gênero superior, pois nada é mais comum do que o ser. Os gêneros dividem-se por diferenças que pertencem a uma mesma linha de predicação; mas o ente é participado de modos tão diversos que não se podem reduzir a um gênero comum.
Por isso, as categorias não
expressam a essência do ente sob um gênero, mas os diversos modos segundo os
quais algo existe e é concebido.
Assim, a substância é ser por si; o acidente é ser em outro; e os acidentes se
distinguem segundo modos de dependência ou relação à substância — quantidade,
qualidade, relação, e assim por diante.
Esses modos são reais, porque fundados na própria constituição das coisas, mas não constituem gêneros do ente, porque não há diferença comum que os una formalmente. São modos transcendentais da participação no ser, e não divisões de uma essência comum.
O intelecto, entretanto, para ordenar o múltiplo, concebe tais modos sob a razão de gêneros, não porque sejam realmente gêneros, mas porque servem de princípio de ordenação para o discurso.
Assim, as categorias são gêneros por analogia,
mas modos por natureza.
Por analogia, porque o intelecto as trata como divisões ordenadas do ser; por
natureza, porque exprimem apenas a maneira diversa de existir.
Logo, as categorias não dividem o ser como o gênero divide a espécie, mas como o uno se diversifica em múltiplas participações.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que as categorias contêm espécies, mas não como gênero formal, e sim como modos comuns de ser sob os quais recaem várias naturezas. Assim, “substância” contém homem e pedra, não por identidade de gênero, mas por semelhança de modo de existir — ambos são seres por si.
2. À segunda, responde-se que o Filósofo fala segundo o modo de predicação, não segundo o modo de essência. A predicação é universal e ordena-se como o gênero, mas a realidade do ser não é dividida formalmente em gêneros.
3. À terceira, deve-se dizer que o ente não é dividido em categorias como gênero em espécies, mas como o ato é diversamente participado segundo a potência dos sujeitos. A substância participa o ser totalmente; os acidentes, parcialmente.
4. À quarta, responde-se que Aristóteles chama as categorias de “máximos gêneros” não quanto à essência do ser, mas quanto ao discurso da razão, porque acima delas não há outro modo mais universal de predicar.
Conclusão.
As categorias são modos do ser antes de
serem gêneros do ente. O ser não é gênero, mas princípio transcendental que se
diversifica em modos conforme a proporção do existente.
Os gêneros são ordens lógicas; os modos, ordens ontológicas.
Logo, as categorias pertencem à ontologia por fundação e à lógica por
explicação.
E assim, como diz Alberto, “praedicamenta
sunt vestigia entis in intellectu humano” — as categorias são
vestígios do ser no intelecto humano, que traduz a ordem da realidade na
linguagem do pensamento.
Quaestio III — Utrum praedicamenta sint realia an rationis
(Se as categorias são realidades ou apenas conceitos da razão)
Objeções.
1. Parece que as categorias são apenas conceitos da razão, e não realidades. Pois Aristóteles diz, no início das Categorias, que “os nomes das categorias são ditos segundo o modo de dizer o ser”. Ora, o modo de dizer pertence ao intelecto e à linguagem, não às coisas. Logo, as categorias pertencem à razão, não à realidade.
2. Além disso, o Filósofo, no mesmo lugar, trata das categorias como gêneros de predicação, não de substância. Ora, a predicação é ato do intelecto. Logo, as categorias existem apenas como modos de pensar e de falar, não nas coisas mesmas.
3. Ademais, se as categorias fossem realidades, elas existiriam nas coisas separadas do intelecto. Mas nada há nas coisas que corresponda propriamente ao “habitus” ou ao “situs”, que são categorias. Logo, nem todas correspondem à realidade.
4. Ainda, o ente enquanto ente não tem divisão real senão nas coisas mesmas. Ora, a divisão em categorias depende da razão que distingue os modos de predicação. Logo, é divisão da razão, não da realidade.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro V da Metafísica, diz: “Dicitur ens multipliciter secundum praedicamenta.” Ora, o ser se diz de muitos modos porque há realmente muitos modos de existir. Logo, as categorias não são apenas da razão, mas têm fundamento real nas coisas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as categorias têm um duplo ser: o ser real nas coisas e o ser conceitual no intelecto.
Nas coisas, elas existem como modos reais de ser; no intelecto, como modos de conceber e de dizer o ser.
A razão pela qual os filósofos discordam sobre esse ponto é que as categorias pertencem simultaneamente à ordem do ser e à ordem do pensamento. À ordem do ser, porque exprimem modos reais pelos quais o ente existe na natureza; à ordem do pensamento, porque o intelecto as formula segundo o modo do discurso.
Portanto, as categorias não são puramente da razão, nem puramente reais, mas reais quanto ao fundamento e racionais quanto à explicitação.
Por exemplo: “substância” é
nome de um modo real de existir — aquilo que existe por si mesmo; “quantidade”
e “qualidade” também são realidades fundadas nas coisas, ainda que só o
intelecto distinga formalmente tais modos.
Quando o intelecto considera a extensão de um corpo, denomina-a “quantidade”;
quando considera a disposição de sua forma, chama-a “qualidade”. Assim, o
fundamento é real, mas a distinção formal é racional.
Além disso, a ordem das categorias é natural, porque corresponde à ordem das causas e das dependências ontológicas: primeiro o ser por si (substância), depois o ser em outro (acidentes), e entre os acidentes, segundo a ordem da natureza — quantidade, qualidade, relação, e os demais.
Deste modo, as categorias são espelhos da realidade no intelecto, como diz Alberto: “Praedicamenta sunt imagines entis in ratione.”
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles fala do “modo de dizer” não para negar o fundamento real, mas para indicar que o intelecto exprime o modo real das coisas mediante o discurso. O nome é racional, mas o que ele designa é real.
2. À segunda, responde-se que as categorias são gêneros de predicação apenas segundo a forma de conhecimento, não segundo a natureza. Pois o intelecto predica conforme concebe o ser, e concebe conforme ele se dá nas coisas.
3. À terceira, deve-se dizer que, embora nem todas as categorias correspondam a uma realidade separada (como “habitus” e “situs”), todas se fundam em aspectos reais das coisas. Pois “habitus” significa relação real entre sujeito e vestimento, e “situs” o ordenamento real das partes num corpo. Logo, ainda que dependam da mente para serem nomeadas, não são fictícias.
4. À quarta, responde-se que a divisão em categorias é racional quanto à forma, mas real quanto ao fundamento. O intelecto não inventa os modos do ser, apenas os reconhece e distingue.
Conclusão.
As categorias são reais segundo o fundamento, racionais
segundo o modo de conceber.
Elas estão nas coisas como modos do ser, e no intelecto como modos do conhecer.
O ser é a medida do pensamento, e o pensamento é o reflexo do ser.
Assim, como diz Alberto, “praedicamenta
sunt nexus inter mentem et ens.” — As categorias são o vínculo
entre a mente e o ser.
Quaestio IV — Utrum praedicamenta sint decem numero
(Se as categorias são dez em número)
Objeções.
1. Parece que as categorias não são dez em número. Pois Aristóteles não prova esse número por razões necessárias, mas apenas enumera os modos de predicação. Ora, o que se determina por enumeração, e não por demonstração, parece depender do uso, e não da natureza. Logo, o número das categorias é arbitrário.
2. Ademais, Santo Agostinho, no De Trinitate, menciona apenas oito categorias, omitindo o “habitus” e o “situs”. Logo, o número dez não é necessário nem universal.
3. Além disso, há muitos outros modos de ser que não estão incluídos nessas dez divisões, como o ser possível, o ser necessário, o ser verdadeiro, o ser bom. Ora, se o número das categorias fosse natural e completo, deveria abranger todos os modos de ser. Logo, o número dez é incompleto.
4. Ainda, cada categoria contém múltiplas espécies e ordens internas. Ora, se cada subdivisão constitui novo modo de ser, deveríamos ter infinitas categorias, e não apenas dez. Logo, o número dez é convencional e não natural.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, diz expressamente: “Praedicamenta sunt decem numero.” E Boécio, em seu comentário, afirma que “nenhum outro modo de ser pode ser acrescentado a estes dez sem redundância ou confusão”. Logo, o número é natural e completo.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o número das categorias é determinado pela natureza das coisas segundo os modos essenciais de existir e de se ordenar ao sujeito.
Com efeito, todo ente é ou substância, ou algo que existe em outro como acidente.
Os acidentes, por sua vez, diversificam-se segundo as principais relações de dependência
que podem existir em torno da substância:
– ou quanto à mensura
(quantidade),
– ou quanto à disposição
(qualidade),
– ou quanto à referência
(relação),
– ou quanto às condições
externas (lugar, tempo, situação, hábito),
– ou quanto ao movimento
ativo ou passivo (ação, paixão).
Assim, segundo Alberto, a razão
do número dez é a
plenitude dos modos de dependência do acidente em relação à substância.
Nada mais pode ser acrescentado, porque não há outro modo essencial pelo qual o
ente possa existir fora desses.
A substância é o primeiro modo
de ser, e os outros nove são seus acidentes, distribuídos conforme o que é
necessário para a ordem completa da realidade corpórea e móvel.
E por isso o número é natural,
não arbitrário, pois deriva da estrutura ontológica do ser.
Mais ainda, a tradição afirma que o número dez é perfeito, simbolizando a totalidade, como diz Pitágoras: o dez encerra o retorno do múltiplo ao uno. Assim também, nas categorias, o ser múltiplo é reconduzido ao ser uno pela razão do intelecto.
Logo, o número dez não é produto da convenção, mas da natureza, representando a ordem integral da realidade.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles não demonstrou por necessidade matemática, mas por indução metafísica, observando que todo ente conhecido se refere a uma dessas dez maneiras. A enumeração procede da experiência do ser, e a natureza confirma-a pela impossibilidade de acrescentar outro modo essencial.
2. À segunda, responde-se que Agostinho, omitindo duas categorias, não negou o número dez, mas falou conforme o uso comum da linguagem latina, em que “situs” e “habitus” se incluem implicitamente em “qualidade” e “relação”.
3. À terceira, deve-se dizer que os modos transcendentais como “ser bom”, “ser verdadeiro”, “ser necessário”, não constituem novas categorias, porque não exprimem modos acidentais, mas denominações do ser enquanto tal, que atravessam todas as categorias.
4. À quarta, responde-se que as subdivisões internas não constituem novas categorias, porque são diferenças dentro de um mesmo modo de ser, e não modos essencialmente diversos. Por exemplo, “qualidade” inclui cor e forma, mas ambas pertencem ao mesmo gênero de acidente.
Conclusão.
O número das categorias é natural e perfeito,
determinado pela estrutura do ser e pela ordem das dependências ontológicas.
Há uma substância e nove modos acidentais, conforme a plenitude das condições
do ser no mundo corpóreo.
Assim, as dez categorias formam o decálogo
do ser, imagem da totalidade criada e espelho da ordem divina.
Por isso Alberto conclui: “Numerus
decem complet naturam entis; ultra hunc numerum non est alius modus esse.”
O número dez completa a natureza do ser; fora dele não há outro modo de
existir.
Quaestio V — Utrum substantia sit primum praedicamentum
(Se a substância é a primeira das categorias)
Objeções.
1. Parece que a substância não é a primeira das categorias. Pois o ser é dito em muitos modos, e todos participam igualmente do nome de ente. Ora, o primeiro deve ser o que é comum a todos. Logo, nenhuma das categorias deve ser chamada primeira, mas todas devem ter igual dignidade.
2. Além disso, o acidente é mais conhecido por nós que a substância, pois o sentido apreende as qualidades e quantidades antes de compreender o que é substancial. Ora, o que é mais conhecido é primeiro na ordem do conhecimento. Logo, o acidente é primeiro, e não a substância.
3. Ademais, o intelecto humano, ao considerar o ente, concebe primeiro a relação entre as coisas e só depois o que existe por si. Ora, a relação pertence ao nono predicamento. Logo, a relação é primeira na ordem do inteligível, e não a substância.
4. Ainda, entre as categorias, não há ordem essencial, mas apenas de enumeração. Pois cada uma delas expressa um modo diferente de ser, e não uma dependência hierárquica. Logo, a substância não é primeira por natureza, mas apenas por convenção.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, diz expressamente: “Substantia est primum omnium praedicamentorum.” E Boécio comenta: “Substantia est fundamentum omnium aliorum generum.” Logo, a substância é a primeira das categorias por natureza.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a substância é a primeira das categorias, tanto quanto à natureza do ser, como quanto à ordem do conhecimento verdadeiro, embora não quanto à ordem do conhecimento sensível.
Com efeito, a substância é o fundamento do ser,
porque todas as outras categorias — quantidade, qualidade, relação, e as demais
— são modos de algo que existe em si.
O acidente não tem ser senão “em outro”, e este outro é a substância.
Logo, aquilo que confere ser aos demais deve ser o primeiro, pois o fundamento é anterior ao que se apoia sobre ele. Assim como o sujeito é antes das suas propriedades, assim a substância é antes dos acidentes.
Além disso, toda a ordem das
categorias depende da substância:
– a quantidade
mede a substância,
– a qualidade
a dispõe,
– a relação
a referencia,
– o lugar
e o tempo
a circunscrevem,
– o hábito,
a posição,
a ação e a
paixão a
qualificam em diversos modos.
Nada há, portanto, entre as categorias, que não pressuponha a substância como
sujeito e suporte.
Ora, dizer que a substância é
primeira não significa apenas que ela é o início da enumeração, mas que é a raiz ontológica das demais.
Pois, se a substância fosse retirada, nenhum acidente poderia permanecer, já
que o acidente não subsiste senão na substância.
E, embora os acidentes sejam
mais conhecidos sensivelmente, a substância é mais conhecida intelectualmente,
porque é o princípio pelo qual o ser é inteligível.
O sentido percebe o acidente, mas o intelecto, penetrando mais fundo, reconhece
o sujeito no qual os acidentes existem.
Por isso, Alberto afirma: “Substantia est primum praedicamentum,
quia in ea consistit ratio essendi, in aliis ratio ad aliud.”
A substância é o primeiro predicamento, porque nela está a razão do ser por si;
nos outros, a razão de ser em outro.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora o ser se diga de muitos modos, não se diz univocamente. O ser da substância é o primeiro e principal, porque existe por si; o ser dos acidentes é secundário, porque existe em outro. Logo, a substância é primeira no ser, e as demais o são por analogia a ela.
2. À segunda, responde-se que o acidente é primeiro no conhecimento sensível, mas não no conhecimento intelectual. O sentido apreende o que é manifesto; o intelecto apreende o fundamento. Ora, a ciência e a sabedoria pertencem ao intelecto, não ao sentido.
3. À terceira, deve-se dizer que a relação é conhecida antes da substância somente quanto à operação da mente, que começa pelo múltiplo e alcança o uno. Mas na ordem da natureza, o uno é anterior ao múltiplo, e a substância, anterior à relação.
4. À quarta, responde-se que há, sim, uma ordem natural entre as categorias, pois todas dependem ontologicamente da substância. A enumeração apenas reflete essa ordem, não a constitui.
Conclusão.
A substância é o primeiro predicamento,
porque é o ser por si,
fundamento e sujeito de todos os outros modos de ser.
Os acidentes são seres por
participação, dependentes e ordenados à substância como à sua
causa de subsistência.
Assim, o ser da substância é primário na natureza, e o dos acidentes,
secundário e relativo.
Por isso, Alberto conclui: “Substantia est basis entis; sine ea
nulla alia categoria manet.”
A substância é a base do ser; sem ela, nenhuma outra categoria permanece.
Quaestio VI — Utrum accidens sit ens verum et distinctum a substantia
(Se o acidente é um ente verdadeiro e distinto da substância)
Objeções.
1. Parece que o acidente não é um ente verdadeiro e distinto da substância. Pois aquilo que não pode existir sem outro não tem ser próprio. Ora, o acidente não pode existir sem a substância. Logo, não é um ente verdadeiro, mas apenas um modo ou disposição do ente substancial.
2. Além disso, todo o ser que depende essencialmente de outro é dito ser apenas por participação. Ora, o acidente participa do ser da substância, como o calor participa do ser do fogo. Logo, o acidente não tem ser verdadeiro, mas derivado e metafórico.
3. Ademais, o ente é aquilo que subsiste. Ora, o acidente não subsiste, mas existe in alio — em outro. Logo, não é propriamente ente, mas apenas um aspecto de ente.
4. Ainda, se o acidente fosse ente distinto da substância, poderia ter operação própria. Ora, o acidente não age, mas é agido pela substância. Logo, não é ente distinto, mas algo da substância.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, diz: “Accidens est quod potest esse et non esse sine corruptione subiecti.” Ora, o que pode ser e não ser é ente verdadeiro, ainda que não por si. Logo, o acidente é ente verdadeiro, distinto da substância, embora dependente dela.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o acidente é ente verdadeiro, mas não ente por si; é ente em outro e por outro.
Com efeito, o ser se divide
segundo dois modos principais:
– um, por si,
que pertence à substância,
– outro, em outro,
que pertence ao acidente.
Ora, aquilo que existe em outro
não é, por isso, mera ficção ou modo de pensamento, mas tem realidade fundada
na natureza do sujeito.
Assim, a brancura, enquanto acidente, tem ser verdadeiro enquanto existe
realmente na coisa branca, ainda que não subsista fora dela.
O erro dos antigos — especialmente de Parmênides e dos eleatas — foi pensar que o ser só é verdadeiro quando subsistente por si. Aristóteles, ao contrário, mostrou que há um ser verdadeiro também nos acidentes, embora dependente.
A distinção entre substância e
acidente não é de oposição, mas de modo
de ser.
A substância tem o ser in se;
o acidente, in alio.
Mas ambos pertencem à ordem real, pois o ser se comunica a cada um conforme sua
maneira própria.
Portanto, o acidente é ente verdadeiro, mas secundum quid, e distinto da substância não por separação, mas por razão de dependência: depende dela para existir, mas não se confunde com ela.
Deve-se ainda observar que o
acidente possui dupla distinção da substância:
– quanto à essência,
porque sua definição não inclui o ser por si,
– quanto ao ser,
porque sua existência é sustentada pelo sujeito.
Todavia, há verdadeira distinção formal, porque a essência da substância não
implica o acidente, nem vice-versa.
Assim, o acidente é real como ato secundário que aperfeiçoa ou determina a substância em seu modo de ser.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a dependência não suprime a realidade. O filho depende do pai, mas ambos são seres verdadeiros. Assim também, o acidente depende da substância, mas tem realidade própria no modo de ser que lhe é natural.
2. À segunda, responde-se que participar não é o mesmo que ser falso. Toda criatura participa do ser de Deus, mas nem por isso é irreal. Assim também, o acidente participa do ser da substância, e é verdadeiro enquanto participa realmente.
3. À terceira, deve-se dizer que subsistir in alio não elimina o ser, mas determina um modo inferior de existir. Há graus de ser: o ser por si (substância) e o ser em outro (acidente). Ambos são reais, mas ordenados hierarquicamente.
4. À quarta, responde-se que o acidente não opera por si, mas enquanto aperfeiçoa a operação da substância. O calor não age isoladamente, mas faz o fogo agir de modo caloroso. Assim, sua causalidade é participada, não própria — e, contudo, real.
Conclusão.
O acidente é ente verdadeiro, distinto da substância
por modo e dependência, mas não por separação.
Seu ser é real, porém participado: ele não subsiste, mas existe como determinação
real da substância.
Assim, Alberto diz: “Accidens
est ens in alio, non per metaphoram, sed per veritatem; quia dat esse perfectum
substantiae in suo modo.”
O acidente é ser em outro, não por metáfora, mas por verdade; porque dá à
substância o ser perfeito em seu modo.
Quaestio VII — Utrum quantitas sit accidens necessarium substantiae
(Se a quantidade é um acidente necessário da substância)
Objeções.
1. Parece que a quantidade não é um acidente necessário da substância. Pois há substâncias incorpóreas — como as substâncias separadas e as almas — que não têm quantidade. Ora, o acidente necessário deve acompanhar todo o sujeito de seu gênero. Logo, a quantidade não é necessária à substância em geral.
2. Além disso, o que é necessário à substância é inseparável dela. Ora, a quantidade é separável, pois uma substância pode perder sua extensão ou divisibilidade por corrupção ou por mudança de estado. Logo, a quantidade não é acidente necessário.
3. Ademais, a substância é ente por si, e a quantidade é ente em outro. Ora, o que é ente em outro não é necessário ao que é ente por si, porque o ser próprio não depende do ser alheio. Logo, a quantidade não é necessária à substância.
4. Ainda, a forma é o que dá ser e perfeição à substância. Ora, a quantidade não pertence à forma, mas à matéria. Logo, não é necessária à substância enquanto tal, mas apenas a certas substâncias materiais.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, diz: “Omne corpus habet quantitatem
naturalem.”
E Boécio comenta: “Quantitas
est conditio substantiae corporalis.”
Logo, para as substâncias corpóreas, a quantidade é acidente necessário e
inseparável enquanto permanecerem na ordem da corporeidade.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a quantidade é acidente necessário à substância corpórea, mas não à substância em geral.
Com efeito, a substância,
enquanto tal, significa o ser por si; ora, esse ser pode existir tanto sem
matéria quanto com matéria.
As substâncias separadas — como Deus, os anjos e as almas intelectuais — não
têm quantidade, porque não estão sujeitas à extensão ou à divisibilidade, mas
existem de modo simples e indiviso.
Mas as substâncias corpóreas, cuja natureza implica matéria e forma, têm a quantidade como acidente necessário, porque a matéria, ao receber a forma, determina-se segundo o lugar e a extensão.
A quantidade, portanto, não é necessária absolutamente à substância, mas necessária segundo o gênero de substância corpórea, cuja essência não pode existir sem a dimensão.
E essa necessidade é de
conveniência, não de essência: não é que a substância dependa da quantidade
para existir, mas que, sendo corpórea, não pode existir sem extensão.
Pois a matéria sem quantidade seria pura potência, e o corpo sem quantidade não
seria corpo.
Logo, a quantidade é acidente inseparável das substâncias materiais enquanto tais, e delas se distingue apenas segundo o modo de ser: a substância é o que existe; a quantidade, o que mede e delimita o existir.
Por isso, Alberto diz: “Quantitas est mensura substantiae in
materia, et ideo inseparabilis ab ea secundum statum naturae.”
A quantidade é a medida da substância na matéria, e por isso inseparável dela
segundo a ordem da natureza.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o argumento procede quanto às substâncias imateriais, que carecem de quantidade. Mas a questão se refere às substâncias corpóreas, nas quais a quantidade é necessária por natureza, pois ser corpo implica extensão.
2. À segunda, responde-se que a quantidade é separável por corrupção, não por abstração. Ou seja, pode ser removida quando a substância deixa de ser corpo, mas não enquanto o corpo permanece corpo. Assim, é inseparável enquanto dura o ser corporal.
3. À terceira, deve-se dizer que o ser por si não exclui o ser em outro, mas o ordena como complemento. A substância é por si, mas se manifesta no sensível por meio da quantidade. Logo, o ser da quantidade depende da substância, mas sua necessidade resulta da natureza do composto material.
4. À quarta, responde-se que, embora a forma dê o ser, a quantidade segue necessariamente a composição de matéria e forma. A forma substancial, ao informar a matéria, confere-lhe o ato de ser corpo; e esse ato inclui a extensão, que é a primeira propriedade consequente da corporeidade.
Conclusão.
A quantidade é acidente necessário da substância
corpórea, porque todo corpo é, por natureza, extenso e
divisível.
Mas não é necessária à substância absolutamente considerada, pois há
substâncias sem matéria e sem dimensão.
Logo, a quantidade é necessária segundo
a natureza do corpo, não segundo
a essência universal da substância.
Assim, Alberto conclui: “Quantitas non dat esse substantiae, sed
complet esse corporeum; ideo est accidens necessarium in genere corporum.”
A quantidade não dá o ser à substância, mas completa o ser corpóreo; por isso é
acidente necessário no gênero dos corpos.
Quaestio VIII — Utrum qualitas ordinetur ad formam vel ad materiam
(Se a qualidade se ordena à forma ou à matéria)
Objeções.
1. Parece que a qualidade se ordena à matéria, e não à forma. Pois a qualidade é acidente que modifica o sujeito segundo a disposição passiva. Ora, a potência passiva está na matéria. Logo, a qualidade pertence à matéria enquanto sujeito de recepção.
2. Além disso, as qualidades corpóreas — como o quente, o frio, o úmido e o seco — resultam da combinação dos elementos materiais. Ora, o que procede da composição dos elementos pertence à matéria. Logo, a qualidade se ordena primariamente à matéria.
3. Ademais, o Filósofo diz, no De Generatione et Corruptione, que “a alteração é movimento segundo a qualidade”. Ora, todo movimento supõe sujeito que se altera, e esse sujeito é a matéria. Logo, a qualidade tem relação direta à matéria e não à forma.
4. Ainda, a forma é princípio de ato e perfeição. Ora, a qualidade é, muitas vezes, imperfeição ou disposição para a forma, como a doença é disposição contrária à saúde. Logo, a qualidade pertence à matéria, que é o princípio de imperfeição e privação.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, define qualidade como “forma qua aliquid dicitur quale” — a forma pela qual algo é dito ser tal. Ora, o nome “forma” pertence ao princípio ativo e informante, não à matéria. Logo, a qualidade ordena-se à forma e não à matéria.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a qualidade, em sua razão formal, ordena-se à forma, mas em seu modo de recepção, refere-se à matéria.
Com efeito, a qualidade exprime a determinação do ente segundo a forma que o atualiza. É por meio da forma que a coisa é tal, e a qualidade é precisamente o modo dessa talidade.
A matéria, por si, é pura potência; a forma, por si, é ato. Ora, entre potência e ato deve haver um meio que disponha a primeira para receber o segundo, e que conserve a perfeição recebida. Esse meio é a qualidade.
Por isso, há dois modos de
considerar a qualidade:
– Quanto à origem e
sujeito: refere-se à matéria, porque nela é recebida;
– Quanto à razão e
essência: ordena-se à forma, porque dela deriva sua
especificação e perfeição.
A qualidade é, portanto, mediadora entre a forma e a matéria — radicada na matéria, mas procedente da forma.
Assim, o calor no fogo procede da forma ígnea, mas reside na matéria ígnea; a brancura do corpo luminoso provém da forma da luz, mas se encontra na substância corpórea.
A qualidade pertence à matéria
como subiectum e à
forma como principium.
Ela é o selo visível da forma na matéria, o vestígio do ato no possível.
Por isso, Alberto diz: “Qualitas est participatio formae in
materia; per eam materia in actu manet.”
A qualidade é a participação da forma na matéria; por ela, a matéria permanece
em ato.
E, porque há diferentes ordens
de formas, há também diversas ordens de qualidades:
– algumas pertencem à forma
substancial, como a leveza e a gravidade;
– outras à forma acidental,
como a cor, o calor e o sabor;
– outras ainda à disposição
moral ou espiritual, como as virtudes e ciências, que são
qualidades da alma.
Mas em todas essas, a qualidade é sempre modo da forma, não da matéria: a matéria apenas a recebe, a forma a produz.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a qualidade se recebe na matéria, mas não se ordena a ela como a seu princípio. O sujeito da qualidade é a matéria, mas sua causa eficiente é a forma. Assim, o paciente é o recipiente, mas não o autor da paixão.
2. À segunda, responde-se que as qualidades elementares derivam das formas dos elementos. O quente e o frio procedem das formas ígnea e aquosa, não da matéria em si. A matéria apenas conserva o efeito.
3. À terceira, deve-se dizer que o movimento segundo a qualidade se dá na matéria, mas é causado pela forma. A alteração acontece in materia, mas ab forma. Assim, a mudança pertence à potência passiva, mas o princípio da qualidade é ativo e formal.
4. À quarta, responde-se que, embora algumas qualidades disponham a matéria para a forma, todas procedem da virtude formal. Até mesmo as disposições imperfeitas — como a doença — resultam da corrupção de uma qualidade perfeita, e por isso implicam relação à forma precedente.
Conclusão.
A qualidade procede da forma e reside na matéria:
é modo formal em sujeito material.
Enquanto efeito, pertence à forma; enquanto sujeito, pertence à matéria.
É, por assim dizer, o brilho da forma sobre a superfície da matéria, o vestígio
do ato sobre a potência.
Por isso, Alberto conclui: “Qualitas est habitus formae in materia,
qui facit rem esse talem qualis est.”
A qualidade é o hábito da forma na matéria, que faz a coisa ser tal como é.
Quaestio IX — Utrum relatio fundetur in actu vel in potentia
(Se a relação se funda no ato ou na potência)
Objeções.
1. Parece que a relação se funda na potência e não no ato. Pois a relação é meio entre dois termos distintos. Ora, o meio pertence àquilo que é capaz de se referir a outro, não ao que está em ato pleno. Logo, a relação nasce da potência de se ordenar a outro, e não do ato.
2. Além disso, o Filósofo diz, no Livro das Categorias, que “as relações são posteriores às substâncias e dependentes delas”. Ora, o que é dependente é por natureza potencial em relação ao que é primeiro. Logo, a relação funda-se na potência.
3. Ademais, a relação implica comparação, e a comparação se dá quando algo é ainda imperfeito em sua natureza e busca medida ou proporção. Ora, a medida pertence ao que é potência em ordem ao ato. Logo, a relação funda-se na potência.
4. Ainda, entre as relações há uma que se diz segundo a ordem de causa e efeito. Ora, o efeito é em potência em relação à causa. Logo, toda relação, enquanto tal, funda-se na potência.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro V da Metafísica, diz: “Relatio est ad aliquid secundum
operationem vel potentiam.”
Mas a operação é ato, não potência. Logo, a relação pode fundar-se tanto no ato
quanto na potência, mas primeiramente no ato, pois a potência é ordenada ao ato
como ao fim.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a relação pode fundar-se tanto no ato quanto na potência, mas de modo principal e perfeito, funda-se no ato.
Com efeito, a relação é uma ordem ou proporção entre dois entes,
e toda proporção supõe certa atualização — ou do sujeito, ou do termo, ou de
ambos.
Sem ato, não há proporção real, mas apenas possibilidade de proporção.
Por isso, as relações reais, que existem nas coisas, derivam do ato, enquanto as relações de razão, que existem apenas no intelecto, derivam da potência considerada em sua capacidade de se ordenar a outro.
Assim, entre o mestre e o
discípulo, a relação é fundada no ato do ensinar e do aprender; entre o pai e o
filho, no ato da geração; entre o agente e o paciente, na ação e na paixão.
Mas entre a matéria e a forma, a relação é fundada na potência da primeira em
ordem ao ato da segunda.
Logo, deve-se distinguir:
– Relações ativas,
que se fundam no ato;
– Relações passivas,
que se fundam na potência;
– Relações mistas ou de
razão, que dependem do intelecto que compara os dois termos.
A primazia pertence, todavia,
ao ato, porque o ato é anterior e mais nobre que a potência.
A potência só é relacional por ordenação ao ato.
Por isso, toda relação real se enraíza, de algum modo, num ato atual — ainda
que em um dos termos apenas.
E, segundo Alberto, “Relatio non est pura habitudo
potentiae, sed consequitur operationem actus in ordine ad alterum.”
A relação não é pura disposição de potência, mas segue a operação do ato em
ordem a outro.
Em síntese: toda relação exige potência enquanto capacidade de referência, mas só se atualiza realmente quando há ato que a estabelece.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a potência fornece a capacidade de relação, mas não o fundamento de sua realidade. Assim como a capacidade de ver não é o mesmo que o ver, a potência de se relacionar não constitui a relação, senão quando se atualiza.
2. À segunda, responde-se que as relações são dependentes das substâncias, mas isso não as torna puramente potenciais. Dependem das substâncias como acidentes dependem do sujeito, mas são reais enquanto expressam atual ordenação entre entes.
3. À terceira, deve-se dizer que a comparação se dá entre atos determinados, não entre potências indeterminadas. Medir é ato de inteligência, e proporção é relação de ato a ato. Assim, a relação verdadeira pressupõe algum ato de perfeição.
4. À quarta, responde-se que na relação de causa e efeito há ato em ambos os termos: na causa, o ato de causar; no efeito, o ato de ser causado. A potência entra apenas como via para o ato, não como seu fundamento.
Conclusão.
A relação funda-se primariamente no ato,
e secundariamente na potência.
A potência prepara, o ato constitui.
Toda relação verdadeira nasce quando algo sai de si em direção a outro por ato
de ser, agir ou conhecer.
Por isso, Alberto conclui: “Relatio in actu est perfectissima, quia
tunc utrumque relatorum in suo esse constituitur.”
A relação é perfeitíssima quando fundada no ato, porque então ambos os
relacionados estão constituídos em seu ser.
Quaestio X — Utrum relatio sit in re vel in intellectu tantum
(Se a relação existe na coisa ou apenas no intelecto)
Objeções.
1. Parece que a relação existe apenas no intelecto, e não na realidade. Pois Aristóteles, no Livro das Categorias, diz que “as relações são ditas por comparação”. Ora, toda comparação é ato do intelecto, que mede e distingue. Logo, a relação é apenas do intelecto, e não da coisa.
2. Além disso, a relação não altera o ser da coisa, pois nada acrescenta de real, mas apenas a põe em referência a outra. Ora, o que não altera nem aumenta o ser não é real, mas lógico. Logo, a relação é somente um modo de pensar.
3. Ademais, duas coisas podem estar relacionadas sem mudança real em nenhuma delas, como quando Deus é chamado “Senhor” por causa da criatura, e a criatura “serva” de Deus. Ora, em Deus não há acidente real. Logo, a relação é apenas de razão.
4. Ainda, os números, proporções e similitudes, que são espécies de relação, existem só no intelecto que compara as grandezas e as qualidades. Logo, a relação pertence ao intelecto e não às coisas mesmas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro V da Metafísica,
afirma: “Relatio est ad
aliquid secundum esse in rebus.”
E Boécio comenta: “Relatio est
accidens reale, quod in re consistit et ad aliud refertur.”
Logo, a relação existe verdadeiramente nas coisas e não apenas no intelecto.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que há dois modos de relação: a relação real (relatio realis) e a relação de razão (relatio rationis), e que ambas têm fundamento diverso.
A relação real existe nas
coisas, fundada num princípio real de conexão, quando um ente depende de outro
por natureza ou ação.
Assim, o filho é realmente ordenado ao pai, o efeito à causa, o semelhante ao
semelhante, o duplo ao simples.
Essas relações são reais porque derivam de um fundamento real — geração, ação,
proporção ou semelhança — que não depende do ato do intelecto, mas do próprio
ser das coisas.
Já a relação de razão surge
quando o intelecto, ao comparar dois entes, estabelece entre eles uma ordem que
não existe formalmente nas coisas, mas apenas segundo a apreensão mental.
Por exemplo, a relação entre gênero e espécie, entre definição e definido,
entre conhecimento e cognoscível enquanto conhecidos, não existe nas coisas
fora da mente, mas no juízo intelectual.
A distinção é, pois, esta:
– A relação real
é fundata in re et habet esse
extra animam;
– A relação de razão
é fundata in intellectu et
habet esse in anima.
Contudo, deve-se notar que muitas relações que existem na mente têm fundamento real nas coisas. Assim, a relação de semelhança é real entre dois corpos de igual cor; mas a relação de identidade entre “homem” e “animal racional” é apenas de razão, porque a unidade é formalmente estabelecida pelo intelecto.
Portanto, não se deve dizer que toda relação é apenas mental, mas que algumas são mentais por origem, outras reais por fundamento.
E, segundo Alberto, “Relatio est in re secundum ordinem
naturae, et in intellectu secundum modum cognitionis.”
A relação está nas coisas segundo a ordem da natureza, e no intelecto segundo o
modo do conhecer.
Em suma:
– onde há dependência real, há relação real;
– onde há apenas comparação conceitual, há relação de razão.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a comparação é ato do intelecto, mas o fundamento comparado é real. Assim, o intelecto percebe a proporção entre duas grandezas porque ela existe realmente, e não porque ele a cria.
2. À segunda, responde-se que a relação não acrescenta uma nova substância, mas uma nova ordenação real. O ser do pai não se muda por gerar o filho, mas adquire nova referência real. Logo, a relação é real sem ser substancial.
3. À terceira, deve-se dizer que nas criaturas há relação real a Deus, porque dependem realmente d’Ele. Mas em Deus não há relação real às criaturas, apenas de razão, porque nada se acrescenta ao ser divino. Assim, a relação é dupla — real de um lado, racional do outro.
4. À quarta, responde-se que os números e proporções têm existência formal no intelecto, mas fundamento real nas grandezas ou quantidades que os sustentam. A mente abstrai a proporção, mas não a inventa.
Conclusão.
A relação é real nas coisas, quando
fundada em um princípio natural de ordem ou dependência, e racional no intelecto,
quando surge apenas por comparação conceitual.
Ela constitui o elo entre o ser e o conhecer: real no fundamento, mental na
expressão.
Por isso, Alberto conclui: “Relatio duplex est: una quae oritur ex
ordine naturae, et altera quae nascitur ex consideratione mentis; sed utraque
est vera in suo genere.”
A relação é dupla: uma que nasce da ordem da natureza e outra da consideração
da mente; mas ambas são verdadeiras em seu gênero.
Quaestio XI — Utrum tempus et locus sint praedicamenta vera
(Se o tempo e o lugar são verdadeiras categorias)
Objeções.
1. Parece que o tempo e o lugar não são verdadeiras categorias. Pois Aristóteles, no Livro das Categorias, não os trata como modos de ser, mas como condições do movimento. Ora, as condições do movimento não pertencem ao ser enquanto ser, mas ao vir-a-ser. Logo, tempo e lugar não são categorias verdadeiras.
2. Além disso, o tempo e o lugar não significam o ser de uma coisa, mas o ubi e o quando, que são circunstâncias externas. Ora, as circunstâncias não pertencem à essência nem ao modo próprio de ser das coisas. Logo, o tempo e o lugar não são categorias verdadeiras, mas acessórios de outras categorias.
3. Ademais, o tempo e o lugar dependem do movimento e das coisas móveis. Ora, o movimento pertence à categoria de actio e passio. Logo, o tempo e o lugar não têm categoria própria, mas estão contidos sob outra.
4. Ainda, as substâncias imateriais, como os anjos e as almas, não estão no tempo nem no lugar segundo o modo corpóreo. Ora, as categorias devem ser universais a todos os entes. Logo, tempo e lugar não são categorias verdadeiras, mas relativas ao corpo.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no mesmo Livro das Categorias,
enumera expressamente ubi
e quando entre os
dez predicamentos. E Boécio comenta: “Tempus
et locus dicuntur praedicamenta, quia determinant esse corporale secundum
circumstantiam.”
Logo, o tempo e o lugar são verdadeiras categorias, ainda que acidentais.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o tempo e o lugar são verdadeiras categorias, mas não pertencem ao ser por essência, e sim por circunstância acidental da substância corpórea.
Com efeito, toda substância
corpórea existe necessariamente em um lugar e sob certo tempo, porque o corpo,
enquanto composto de matéria, está sujeito à extensão e ao movimento.
O lugar é a determinação do corpo segundo a posição espacial; o tempo, a
determinação segundo a sucessão de movimento.
Ambos, portanto, pertencem à ordem acidental, mas exprimem modos reais de ser, pois toda substância corpórea está realmente em algum lugar e em algum tempo.
O lugar (ubi) não é mera relação lógica, mas realidade física, como ensina Aristóteles no Livro IV da Física: o lugar é “a superfície do corpo continente, que toca o contido”. Assim, não é invenção do intelecto, mas estrutura real do mundo corpóreo.
O tempo (quando), por sua vez, é “número do movimento segundo o antes e o depois” (Physica, IV). Ora, o número, enquanto medição real do movimento, exprime modo real da existência móvel.
Portanto, tempo e lugar são categorias reais e verdadeiras, ainda que acidentais e subordinadas, porque não exprimem o ser em si mesmo, mas o ser enquanto situado e sucessivo.
São, assim, predicamentos da condição corporal do ente, e não do ente absoluto.
Por isso, Alberto escreve: “Tempus et locus sunt modi accidentales
entis, quibus corpus limitatur et continetur in mundo.”
O tempo e o lugar são modos acidentais do ser, pelos quais o corpo é limitado e
contido no mundo.
Contudo, é preciso distinguir:
– Quanto às substâncias
espirituais, o tempo e o lugar são ditos apenas por analogia;
– Quanto às substâncias
corpóreas, são ditos propriamente, pois estas se movem e ocupam
extensão.
Assim, o tempo e o lugar são categorias reais e físicas, não metafísicas, mas subordinadas à categoria da quantidade e da relação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora tempo e lugar se refiram ao movimento, o movimento pertence à realidade natural do corpo. Portanto, o tempo e o lugar, enquanto medidas reais desse movimento, são modos reais do ser corpóreo e, por isso, verdadeiras categorias.
2. À segunda, responde-se que as circunstâncias externas, quando constantes e inseparáveis da natureza do sujeito, têm razão de predicamento. Assim, todo corpo é necessariamente em algum lugar e tempo; logo, essas circunstâncias são modos reais e universais.
3. À terceira, deve-se dizer que o tempo e o lugar não se reduzem à ação e à paixão, mas as pressupõem. A ação implica mudança, e o tempo mede essa mudança; a paixão implica contato, e o lugar o determina. Logo, são categorias correlatas, não subordinadas.
4. À quarta, responde-se que, nas substâncias espirituais, o tempo e o lugar existem apenas analogicamente, porque nelas não há extensão nem sucessão natural. Todavia, a analogia não destrói a universalidade da categoria, mas a adapta ao modo de ser.
Conclusão.
O tempo e o lugar são verdadeiras categorias,
pertencentes à ordem acidental do ser corpóreo, porque exprimem modos reais de
existência — o estar situado e o estar sucessivo.
São reais, porque dependem do ser das coisas móveis; acidentais, porque não
constituem sua essência.
Assim, Alberto conclui: “Tempus et locus sunt vera
praedicamenta, non secundum essentiam, sed secundum modum esse creaturae
corporalis.”
O tempo e o lugar são verdadeiras categorias, não segundo a essência, mas
segundo o modo de ser da criatura corporal.
Quaestio XII — Utrum actio et passio sint species motus
(Se a ação e a paixão são espécies do movimento)
Objeções.
1. Parece que a ação e a paixão não são espécies do movimento. Pois o movimento é definido por Aristóteles, no Livro III da Física, como “ato do ente em potência enquanto em potência”. Ora, a ação é ato do agente enquanto em ato, e a paixão é ato do paciente enquanto passivo. Logo, ação e paixão são princípios do movimento, e não espécies dele.
2. Além disso, o movimento é uma só realidade contínua, mas a ação e a paixão são em dois sujeitos distintos — um que age, outro que padece. Ora, o que é uno não pode dividir-se essencialmente em dois. Logo, a ação e a paixão não são espécies do movimento, mas dois aspectos correlativos.
3. Ademais, Aristóteles enumera três espécies de movimento — quanto à quantidade, à qualidade e ao lugar. Ora, a ação e a paixão não se incluem entre essas três, mas pertencem à causa eficiente. Logo, não são espécies do movimento.
4. Ainda, há ações sem movimento, como o entender e o querer, que não implicam mudança corporal. Logo, a ação não é espécie de movimento, pois pode existir sem ele.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias, inclui “agir” (facere) e “padecer” (pati) entre os dez predicamentos, e no Livro III da Física afirma que “a ação e a paixão são movimentos do mesmo gênero, mas em sujeitos diversos.” Logo, a ação e a paixão são verdadeiramente espécies do movimento.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a ação e a paixão são espécies do movimento enquanto o movimento é considerado sob a razão de ato transitivo entre agente e paciente.
Com efeito, o movimento é ato
imperfeito — um ser a caminho do ato pleno. Ora, esse “a caminho” pode ser
considerado do lado do
agente, enquanto produz a forma no outro, e do lado do paciente,
enquanto recebe a forma produzida.
O primeiro se chama ação
(actio), o segundo
paixão (passio).
Esses dois não são movimentos
distintos, mas um mesmo
movimento segundo a dupla relação de origem e de término.
Assim como o calor que sai do fogo e penetra a água constitui um só processo,
mas é dito “ação” quanto ao fogo e “paixão” quanto à água.
Por isso, Alberto diz: “Actio et passio sunt idem motus
secundum rem, differunt secundum rationem.”
A ação e a paixão são o mesmo movimento quanto à realidade, mas diferem quanto
ao conceito.
Entretanto, enquanto predicamentos, a ação e a paixão são consideradas separadamente, porque designam dois modos de ser relativos à causalidade: o ser enquanto age e o ser enquanto padece.
Logo, como predicamentos, ação e paixão são gêneros de acidentes que se realizam na ordem do movimento; como realidades físicas, são duas relações de um mesmo ato — uma ativa, outra passiva.
Deve-se, contudo, observar que
nem toda ação ou paixão implica movimento corporal.
Nas substâncias espirituais, há ações e paixões imateriais — como o ato de
entender ou o de amar — que são movimentos apenas por analogia, pois
representam passagem da potência ao ato, mas sem transição local ou material.
Portanto, a ação e a paixão são espécies do movimento enquanto movimento transitivo; e analogicamente, de todo processo de atualização de potência.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ato do agente e o ato do paciente, embora distintos em razão, coincidem no mesmo movimento em realidade. A ação é o movimento quanto à causa eficiente; a paixão, quanto ao sujeito que o recebe.
2. À segunda, responde-se que a unidade do movimento não é destruída pela dualidade dos sujeitos, porque a causa e o efeito estão ordenados numa única operação contínua. O movimento é um só na coisa movida e na causa que move, mas se distingue apenas pela razão de origem e de término.
3. À terceira, deve-se dizer que as três espécies de movimento (segundo quantidade, qualidade e lugar) são distinções materiais, ao passo que ação e paixão são distinções formais e causais. Assim, não se excluem, mas se sobrepõem: há ação e paixão em cada um desses três modos.
4. À quarta, responde-se que as ações imateriais não são movimentos em sentido próprio, mas analogado, isto é, segundo a passagem de potência a ato sem mudança física. Assim, nelas o nome de movimento se conserva por semelhança de atualização.
Conclusão.
A ação e a paixão são espécies do movimento,
não segundo a diversidade essencial do movimento, mas segundo os dois aspectos
complementares do mesmo processo — o ativo e o passivo.
Ambas são reais e inseparáveis enquanto houver transição do ato ao efeito.
Assim, Alberto conclui: “Actio et passio sunt idem secundum esse
motus, et differunt sicut principium et terminus operationis.”
A ação e a paixão são o mesmo quanto ao ser do movimento, e diferem como
princípio e termo da operação.
Quaestio XIII — Utrum habitus et situs differant secundum speciem
(Se o hábito e a posição diferem segundo a espécie)
Objeções.
1. Parece que o hábito e a posição não diferem segundo a espécie. Pois, segundo Aristóteles no Livro das Categorias, ambos são modos de disposição corporal. Ora, o que se reduz a uma mesma disposição pertence ao mesmo gênero e não se distingue especificamente. Logo, o hábito e a posição não diferem segundo a espécie.
2. Além disso, o hábito (habitus) é uma disposição pela qual o corpo se encontra em certo estado ordenado. Ora, a posição (situs) também é uma ordenação das partes entre si. Logo, ambos têm a mesma natureza, e não se distinguem senão por nome.
3. Ademais, quando um homem se veste e está sentado, não se introduz novo acidente senão uma mesma disposição do corpo segundo o modo de estar. Ora, estar vestido é hábito, estar sentado é posição. Logo, o hábito e a posição são a mesma coisa em espécie.
4. Ainda, todo gênero que se multiplica por acidentes o faz por diversidade essencial. Mas tanto o hábito quanto a posição são espécies de um mesmo gênero de disposição. Logo, não diferem segundo a espécie, mas segundo a razão de expressão.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro das Categorias,
distingue claramente o habitus
do situs, dizendo:
“Aliter habens dicitur qui
indutus est, aliter qui sedet aut iacet.”
Logo, o hábito e a posição diferem não só de nome, mas de espécie.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o hábito e a posição diferem especificamente, ainda que ambos pertençam ao gênero da disposição (dispositio).
Com efeito, o hábito é uma
disposição resultante de
algo extrínseco aderido ou ajustado ao corpo, como a veste, o
ornamento, a armadura; e o sujeito que o possui é dito “habente” (habens).
Assim, o hábito supõe relação de contiguidade
e permanência
entre o sujeito e o que o reveste.
Já a posição é uma
disposição intrínseca das
partes do corpo entre si, segundo certo ordenamento espacial,
como estar deitado, sentado, inclinado, em pé.
Nela não há adição de algo externo, mas apenas ordenação interior do corpo
segundo as dimensões e a gravidade.
Logo, o hábito refere-se à relação do corpo com algo que o cobre ou o circunda, enquanto a posição se refere à relação das partes entre si.
Por isso, Alberto diz: “Habitus est dispositio ad extra, situs
est dispositio ad intra.”
O hábito é disposição em relação ao exterior; a posição, disposição em relação
ao interior.
Além disso, diferem segundo o
modo de permanência:
– o hábito é mais permanente,
pois pode durar mesmo quando o corpo muda de posição (um homem vestido pode
estar em pé ou deitado);
– a posição é mais transitória,
pois se altera a cada movimento corporal, sem mudar o hábito.
Ambos, porém, têm fundamento real e pertencem às categorias acidentais, expressando o ser segundo a ordem física e corpórea.
Portanto, o hábito e a posição são espécies diversas de disposição, distintas pelo fundamento formal de ordenação — o um extrínseco, o outro intrínseco.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o gênero comum — disposição — não exclui diversidade específica. Assim como há muitas espécies de movimento, há também muitas disposições corpóreas. O hábito e o sítio diferem pelo modo de disposição, não pelo gênero.
2. À segunda, responde-se que o hábito é disposição pelo contato de algo externo, enquanto o sítio é disposição das próprias partes. Logo, a semelhança de ordem não implica identidade formal.
3. À terceira, deve-se dizer que vestir-se e sentar-se são dois acidentes diversos, ainda que ocorram simultaneamente. O primeiro nasce da relação com a veste, o segundo da ordenação corporal. São, pois, dois modos acidentais distintos que coexistem num mesmo sujeito.
4. À quarta, responde-se que a multiplicidade das espécies não se dá por mera diferença lógica, mas por fundamento físico distinto. O hábito se funda na agregação, o sítio na posição. Logo, diferem realmente e segundo a espécie.
Conclusão.
O hábito e a posição diferem segundo a espécie,
porque o primeiro se refere à disposição do corpo em relação a algo externo, e
o segundo, à ordenação das partes entre si.
Ambos pertencem ao mesmo gênero de disposição, mas têm razões formais diversas
e reais.
Por isso, Alberto conclui: “Habitus et situs differunt specie, quia
alter ordinatur ad aliud extrinsecum, alter ad se ipsum.”
O hábito e a posição diferem em espécie, porque um se ordena a algo extrínseco,
e o outro, a si mesmo.
Quaestio XIV — Utrum inter praedicamenta sit ordo secundum nobilitatem
(Se há ordem entre as categorias segundo a nobreza)
Objeções.
1. Parece que não há ordem entre as categorias segundo a nobreza. Pois todas as categorias são modos do ente, e o ente, enquanto ente, é uno e indiferente a todas as suas determinações. Ora, onde há unidade de princípio, não pode haver hierarquia essencial. Logo, entre os predicamentos não há ordem segundo a nobreza.
2. Além disso, as categorias são divisões primeiras do ser. Ora, o que é primeiro não tem algo anterior nem posterior. Logo, as categorias são coordenadas, não subordinadas por nobreza.
3. Ademais, as categorias se distinguem segundo diferentes modos de predicação e não segundo graus de perfeição. Ora, o diverso por modo não implica superioridade de essência. Logo, entre os predicamentos não há ordem de nobreza, mas apenas diversidade formal.
4. Ainda, se houvesse ordem de nobreza, um predicamento seria mais ente que outro. Ora, todo acidente é igualmente acidente, e toda substância igualmente substância quanto à razão de ente. Logo, não há superior nem inferior entre os predicamentos.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles, no Livro XI da Metafísica,
afirma: “Substantia est prior
secundum rationem, cognitionem et naturam.”
E Boécio comenta: “Inter
praedicamenta est ordo secundum dignitatem, quia substantia praecedit, alia
vero dependent ab ea.”
Logo, há ordem entre as categorias segundo a nobreza.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que há entre os predicamentos uma ordem de nobreza e prioridade, não quanto à divisão formal do ser, mas quanto à dependência ontológica e causal das coisas significadas por eles.
Com efeito, todos os
predicamentos são modos do ente, mas não igualmente primeiros.
Entre eles, a substância
é o fundamento e o sujeito de todos os outros, porque tudo o que é quantidade,
qualidade, relação, ação, paixão, tempo, lugar, hábito ou posição só existe
enquanto inerente a alguma substância.
Portanto, a substância é o predicamento mais nobre e primeiro, e todos os outros se ordenam a ela como acidentes ao sujeito.
Depois da substância vêm os
acidentes segundo o grau
de proximidade à essência:
– a quantidade,
porque determina a extensão da substância e é seu primeiro acidente intrínseco;
– a qualidade,
porque dá forma e virtude operativa;
– a relação,
que manifesta a ordem da substância a outro;
– em seguida, ação e
paixão, que exprimem a operação e a receptividade;
– depois, tempo e lugar,
que delimitam a existência corpórea;
– por fim, hábito e
posição, que são modos exteriores e acidentais de disposição.
Assim, há uma hierarquia de predicamentos, do mais nobre ao mais inferior, conforme sua proximidade da essência substancial.
A ordem, portanto, é a
seguinte:
Substantia → Quantitas →
Qualitas → Relatio → Actio/Passio → Ubi/Quando → Habitus/Situs.
Essa gradação não é apenas lógica, mas ontológica, pois expressa o modo como o ser se difunde e se determina nas coisas: o ser primeiro é substância, depois é qualificado, relacionado, movido e finalmente situado.
Por isso, Alberto diz: “Substantia est radix entis, et ex ea
descendunt alii praedicamentorum modi sicut rami ex trunco.”
A substância é a raiz do ente, e dela descem os outros modos das categorias
como ramos do tronco.
Além disso, quanto à nobreza,
há também distinção entre os acidentes:
– alguns são intrínsecos,
como quantidade e qualidade, e por isso mais nobres;
– outros são extrínsecos,
como lugar, tempo e hábito, e portanto mais imperfeitos.
Logo, a ordem de nobreza entre as categorias é tanto segundo a dependência ontológica quanto segundo a perfeição formal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora o ser seja uno em conceito, difere segundo o modo de participação. A substância participa do ser plenamente; os acidentes, parcialmente. Logo, há nobreza proporcional.
2. À segunda, responde-se que a divisão das categorias é primeira quanto à lógica da predicação, mas na realidade há anterioridade natural. Assim, a substância é anterior em ser, ainda que as categorias sejam simultâneas em razão de divisão.
3. À terceira, deve-se dizer que os modos de predicação refletem modos reais de ser. Logo, a diversidade formal corresponde a uma diversidade ontológica, e por isso comporta nobreza.
4. À quarta, responde-se que cada predicamento é igualmente ente quanto à participação, mas não quanto à plenitude do ser. Assim, a substância é mais ente porque subsiste, enquanto os acidentes apenas inherecem.
Conclusão.
Entre as categorias há ordem segundo a nobreza e prioridade,
pois a substância é o primeiro e mais nobre dos predicamentos, e os demais se
ordenam a ela conforme a dependência ontológica e a perfeição do ser.
Essa ordem reflete o modo de emanação do ente — do subsistente ao relativo, do
essencial ao acidental.
Por isso, Alberto conclui: “Inter praedicamenta est ordo naturae,
secundum quod substantia praeeminet et alia dependent ab ea sicut a fundamento
entis.”
Entre as categorias há uma ordem natural, segundo a qual a substância preexiste
e as demais dependem dela como fundamento do ser.
Quaestio XV — Utrum praedicamenta comprehendant omnia entia
(Se as categorias abrangem todos os entes)
Objeções.
1. Parece que as categorias não abrangem todos os entes. Pois as substâncias separadas, como os anjos e as almas, não pertencem a nenhuma das dez categorias corpóreas. Ora, se algo está fora de toda categoria, então as categorias não compreendem tudo o que é.
2. Além disso, o nada é também objeto do pensamento, e o intelecto pode formar conceito de negação ou privação. Ora, o nada não pertence a nenhum dos predicamentos. Logo, as categorias não abrangem todo o conteúdo do pensamento nem do ser.
3. Ademais, o ente de razão — como gênero, espécie, definição, proposição, e toda a ordem lógica — não está em nenhum predicamento real, porque não tem ser fora da alma. Logo, há entes fora das categorias.
4. Ainda, o ser divino transcende todo gênero e predicação. Ora, Deus é o ente mais perfeito. Logo, há pelo menos um ente fora das categorias, e portanto as categorias não abrangem todos os entes.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
das Categorias, afirma que “as categorias são os modos primeiros
segundo os quais o ser se diz”.
E Boécio comenta: “Per decem praedicamenta comprehenditur omnis ratio entis
creati.”
Logo, todos os entes criados são compreendidos pelas categorias.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se
dizer que as categorias abrangem todos os entes, mas não de modo unívoco
nem absoluto.
Com efeito, elas exprimem os modos fundamentais segundo os quais o
ser se divide,
isto é, as maneiras primeiras pelas quais o ente se manifesta na realidade.
Há, porém, três modos de ente:
1. O ente real criado, que subsiste nas coisas;
2. O ente de razão, que existe apenas no intelecto;
3. O Ente Primeiro, que é Deus, causa de todo ser.
As
categorias abrangem plenamente o ente real criado, porque todo ente criado é ou substância, ou acidente de substância.
Assim, todo o conteúdo do mundo criado está sob uma das dez categorias.
O
ente
de razão não está
nas categorias secundum
esse reale, mas nelas secundum analogiam, pois a
razão abstrai seus conceitos a partir das realidades categorizadas.
Assim, o gênero e a espécie estão nas categorias enquanto fundados na natureza
das coisas, mas não enquanto construções mentais.
Quanto
ao Ente
Divino, está acima
das categorias, pois estas são modos finitos de ser, e Deus é o ser infinito,
sem gênero nem diferença.
Assim, Ele não é compreendido pelas categorias, mas é sua causa e medida.
Logo, as categorias abrangem tudo o que é criado e finito, e representam a totalidade do ser participado, não do ser absoluto.
Por
isso, Alberto diz: “Praedicamenta sunt totius creaturae divisio, sed non
comprehendunt ipsum Deum, qui est supra omnem praedicationem.”
As categorias são a divisão de toda criatura, mas não compreendem o próprio
Deus, que está acima de toda predicação.
Do mesmo modo, os entes de razão estão nelas apenas por dependência do intelecto que as forma, e não por natureza própria.
Portanto, as categorias compreendem tudo o que existe no mundo criado, mas não o Criador nem as ficções mentais, salvo por analogia.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que as substâncias separadas são incluídas sob a categoria de substância, não enquanto corpóreas, mas enquanto têm ser próprio e subsistente. As categorias não se limitam ao sensível, mas se aplicam a todo ente finito.
2. À segunda, responde-se que o nada não é ente, mas negação do ser. Por isso, não está nas categorias, que são divisões do ser. O intelecto o concebe por negação, não por afirmação de existência.
3. À terceira, deve-se dizer que os entes de razão são fundados nas categorias reais. Assim, o gênero “animal” é conceito de razão, mas fundado na natureza das substâncias animais. Logo, estão nas categorias por fundamento, não por essência.
4. À quarta, responde-se que Deus está fora das categorias, não por defeito, mas por eminência. Ele é o ser absoluto, enquanto as categorias exprimem modos limitados do ser. Por isso, as categorias não o incluem, mas dele recebem sua luz e inteligibilidade.
Conclusão.
As
categorias compreendem todos os entes criados e reais, porque todo o ser criado é ou
substância, ou acidente que dela depende.
Não compreendem, porém, o Ente Primeiro, que é Deus, nem os entes de razão, senão por analogia e dependência.
Por
isso, Alberto conclui: “Praedicamenta continent omnia entia
creata, sed non comprehendunt ipsum Ens per essentiam, quod est Deus.”
As categorias contêm todos os entes criados, mas não compreendem o Ser por
essência, que é Deus.
Quaestio XVI — Utrum causa et principium differant
(Se causa e princípio diferem entre si)
Objeções.
1. Parece que causa e princípio não diferem entre si. Pois, segundo Aristóteles, no início da Metafísica, “os princípios são as causas primeiras das coisas”. Ora, o que é dito causa primeira é o mesmo que princípio. Logo, causa e princípio são a mesma coisa.
2. Além disso, tanto a causa quanto o princípio implicam ordem de dependência e prioridade. Ora, onde há a mesma razão de prioridade, há identidade de conceito. Logo, causa e princípio significam o mesmo.
3. Ademais, as quatro causas — material, formal, eficiente e final — são chamadas também princípios das coisas naturais. Ora, aquilo que tem os mesmos efeitos não difere essencialmente. Logo, causa e princípio não diferem senão por nome.
4. Ainda, Boécio diz que “o princípio é o primeiro termo da causa”. Ora, se é o primeiro termo, contém a causa em potência. Logo, não há distinção real entre eles.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
V da Metafísica, distingue: “Omne principium est causa, non tamen
omnis causa est principium.”
E Alberto comenta: “Principium dicitur respectu ordinis, causa respectu
efficientiae.”
Logo, há diferença real e de razão entre causa e princípio.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que causa e princípio não são idênticos, mas se distinguem quanto à razão formal, embora possam coincidir no sujeito.
Com
efeito, o nome de princípio (principium) significa aquilo
de onde algo procede,
sem importar o modo da procedência — seja física, lógica, temporal ou essencial.
Assim, chamamos princípio: o ponto de partida de uma linha, o primeiro termo de
um raciocínio, a origem de um movimento, ou o fundamento de uma série.
Já o nome de causa (causa) significa aquilo do qual algo depende para o seu ser ou para o seu vir-a-ser, e implica, portanto, uma relação de eficiência ou dependência real.
Logo, toda causa é princípio, porque toda causa é início de algo; mas nem todo princípio é causa, porque há princípios que não produzem nem influem, como o ponto é princípio da linha, mas não sua causa eficiente.
Além disso, o princípio pode ser de ordem, de tempo, de conhecimento ou de substância; a causa, porém, é sempre de ser ou de mudança.
Portanto,
há uma distinção segundo a razão de procedência:
– o princípio designa o termo inicial de qualquer
processo, sem determinar a maneira da influência;
– a causa designa o termo ativo ou passivo que
realmente confere o ser.
Por
isso, Alberto diz: “Principium est universalius quam causa, quia est primum in
omni ordine; causa vero proprie dicitur in ordine generationis et esse.”
O princípio é mais universal que a causa, porque é primeiro em toda ordem; mas
causa se diz propriamente na ordem do vir-a-ser e do ser.
Assim, podemos ter princípios que não são causas (como o ponto ou o axioma), mas não causas que não sejam princípios.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que Aristóteles chama as causas “princípios” por excelência, porque são princípios na ordem do ser. Mas daí não se segue identidade absoluta, pois o gênero não se confunde com a espécie. Toda causa é princípio, mas nem todo princípio é causa.
2. À segunda, responde-se que tanto o princípio quanto a causa envolvem prioridade, mas não segundo o mesmo aspecto. O princípio é primeiro quanto à posição ou origem; a causa é primeira quanto à produção e dependência real.
3. À terceira, deve-se dizer que as quatro causas são ditas princípios por extensão, porque de todas procede o ser. No entanto, há outros princípios que não têm causalidade — como os termos da demonstração ou as partes do tempo.
4. À quarta, responde-se que o princípio é o primeiro termo da causa não por identidade, mas por inclusão. Ele é o primeiro entre muitos modos de início, e a causa é um desses modos, aquele que implica influxo real.
Conclusão.
Causa
e princípio diferem quanto à razão formal, embora coincidam muitas vezes no
sujeito.
O princípio é o primeiro em toda ordem; a causa é o primeiro em ordem de
produção.
O princípio é mais universal; a causa, mais própria e determinada.
Por
isso, Alberto conclui: “Omnis causa est principium, sed non
omne principium est causa; differunt enim sicut universale et particulare.”
Toda causa é princípio, mas nem todo princípio é causa; diferem, pois, como o
universal e o particular.
Quaestio XVII — Utrum causa sit aliquid extra causatum
(Se a causa é algo fora do causado)
Objeções.
1. Parece que a causa não é algo fora do causado. Pois a causa formal e a causa material estão dentro da própria coisa causada: a matéria como sujeito, e a forma como ato que a constitui. Logo, nem toda causa é algo extrínseco ao causado.
2. Além disso, a causa final é o próprio bem desejado, que às vezes se identifica com o causado, como o fim da medicina é a saúde, e a saúde é o próprio causado. Logo, nem toda causa é externa ao efeito.
3. Ademais, a causa eficiente pode estar na própria coisa causada, como a alma é causa do movimento do corpo, e a forma do calor é causa da calefação no mesmo sujeito. Logo, a causa pode estar intrinsecamente no causado.
4. Ainda, o Filósofo ensina que “a natureza é princípio de movimento e de repouso naquilo em que está”. Ora, o princípio do movimento é a causa eficiente. Logo, a causa não é sempre fora do causado.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, diz: “Causa efficiens agit extra se, quia
nihil agit in se ipsum.”
E Boécio acrescenta: “Causa est propter quod aliquid est, quod praecedit ipsum.”
Logo, a causa, ao menos enquanto eficiente, é algo fora do causado.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se
dizer que a causa pode ser considerada de dois modos: formaliter e
materialiter, isto
é, quanto à essência do que é causa e quanto ao modo de sua influência.
E, segundo essa distinção, algumas causas estão dentro do causado, outras fora.
A causa formal e a causa material estão no próprio efeito: a forma constitui a essência do causado, e a matéria é o sujeito no qual a forma é recebida. Assim, são causas intrínsecas, porque pertencem à composição da coisa.
A
causa
eficiente e a causa
final, porém, são extrínsecas: a eficiente porque dá o ser, e o fim
porque atrai o agente e ordena o efeito.
A eficiente é anterior no tempo ou na natureza; a final é posterior no tempo,
mas primeira na intenção.
Portanto,
nem
toda causa é fora do causado, nem toda causa está dentro dele.
Há causas intrínsecas e causas extrínsecas, conforme a dupla origem do ser —
uma de constituição, outra de produção.
A
intrínseca confere o ser como parte; a extrínseca confere o ser como
princípio produtor.
Assim, o fogo aquece a água — causa extrínseca — mas o calor recebido na água é
causa intrínseca de sua temperatura.
Além
disso, é preciso observar que o nome “causa” se aplica por analogia a todos
esses modos, mas primariamente à causa eficiente, pois esta é o modelo mais
próprio de causalidade.
E, como tal, ela é sempre extra causatum, porque todo agente age em outro e não
em si mesmo.
Por
isso, Alberto diz: “Causa efficiens semper est extra effectum, sed forma et
materia sunt in ipso; finis vero est extra secundum rationem, sed in
intentione.”
A causa eficiente está sempre fora do efeito, mas a forma e a matéria estão
nele; o fim está fora segundo a realidade, mas dentro segundo a intenção.
Logo, a distinção entre interior e exterior em relação ao efeito é de ordem e de modo, não de essência causal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a matéria e a forma são causas intrínsecas, e por isso não contradizem a proposição, que se refere à causa eficiente propriamente dita, a qual é sempre exterior.
2. À segunda, responde-se que o fim é exterior quanto à realidade, pois é o termo desejado e causa da ação, mas interior quanto à intenção, pois é conhecido e movente no agente. Assim, está fora no ser, mas dentro no desejar.
3. À terceira, deve-se dizer que a causa eficiente não está propriamente dentro do efeito, mas pode estar unida a ele por modo de presença, como a alma no corpo ou o calor no aquecido. Mesmo assim, age como princípio formalmente distinto do efeito.
4. À quarta, responde-se que a natureza é princípio de movimento interior, mas não enquanto causa eficiente perfeita, senão enquanto participa do influxo da causa primeira. Assim, a causa eficiente, em sentido pleno, é sempre externa.
Conclusão.
A
causa pode ser intrínseca ou extrínseca, conforme o modo de dependência do
causado.
A forma e a matéria são dentro; a eficiência e o fim são fora — o fim segundo a realidade, mas dentro
segundo a intenção.
Em todo caso, a causa eficiente, que é a principal, é sempre algo
fora do causado.
Por
isso, Alberto conclui: “Causa dupliciter dicitur: intrinseca et
extrinseca; intrinseca constituit, extrinseca producit.”
Causa se diz de dois modos: a intrínseca, que constitui; e a extrínseca, que
produz.
Quaestio XVIII — Utrum causa materialis sit vere causa
(Se a causa material é verdadeiramente causa)
Objeções.
1. Parece que a causa material não é verdadeiramente causa. Pois a matéria é pura potência, sem ato próprio. Ora, causar é próprio do ato, não da potência. Logo, a matéria não é causa, mas princípio passivo do efeito.
2. Além disso, a causa é aquilo de onde procede o ser do causado. Ora, a matéria não produz nada, mas apenas recebe a forma. Logo, não pode ser chamada causa, mas somente sujeito.
3. Ademais, o Filósofo diz, no Livro II da Física, que “a matéria não age nem se move”. Ora, o que não age nem move não causa. Logo, a matéria não é causa, mas paciente.
4. Ainda, na geração natural, o agente é o que confere o ser, e a forma é o que o determina; mas a matéria nada acrescenta além de ser receptáculo. Logo, a matéria não é causa, mas condição.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
V da Metafísica, inclui entre as quatro causas a material, dizendo:
“Causa
est ex qua res fit, ut aes statuae.”
E Boécio comenta: “Materia dicitur causa, quia dat substantiam rei generatae.”
Logo, a matéria é verdadeiramente causa.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a matéria é verdadeiramente causa, mas de modo próprio e proporcional à sua natureza de potência.
Com efeito, a noção de causa implica dependência do efeito quanto à origem do ser. Ora, o ser da coisa compõe-se de ato e potência, de forma e matéria. Assim, o efeito depende da matéria quanto ao ser potencial e da forma quanto ao ser atual.
A
matéria, portanto, é causa do ser em potência, assim como a forma é causa do ser em
ato.
Ela não confere o ser, mas recebe-o e o sustenta, sendo o sujeito
que permite à forma existir em algo determinado.
Por
isso, a causalidade da matéria é passiva e constitutiva, não ativa nem eficiente.
É causa não por agir, mas por ser princípio real de possibilidade e de
individuação.
De
fato, nada pode existir na ordem corpórea sem matéria; e o que é composto não
existe senão pela união da forma com a matéria.
Logo, a matéria é causa — não de movimento, mas de constituição
substancial.
Alberto distingue três modos de causalidade material:
1. Causa material prima, que é a potência pura, indiferente a toda forma (como a materia prima dos corpos).
2. Causa material secunda, que é a matéria determinada sob certa forma (como o bronze em relação à estátua).
3. Causa material remota, que é o elemento que, permanecendo, entra na composição (como o ferro para o instrumento).
Em todos esses modos, a matéria é causa enquanto aquilo a partir do qual algo é feito e no qual o ser é recebido.
Logo, embora a matéria não produza, ela concorre essencialmente para o efeito, e sem ela não haveria coisa corpórea.
Por
isso, Alberto afirma: “Materia est causa per modum subiecti, non per modum
agentis; est principium quod recipit, non quod operatur.”
A matéria é causa segundo o modo de sujeito, não de agente; é princípio que
recebe, não que opera.
Assim, ela é verdadeiramente causa — non causalitate activa, sed passiva, por via de composição e sustentação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora a matéria seja pura potência, ainda assim é princípio real e necessário da coisa composta. A causalidade não exige ato de operação, mas dependência ontológica; e nisso a matéria tem causalidade própria.
2. À segunda, responde-se que a matéria não produz o ser, mas o suporta. O ser composto depende dela tanto quanto da forma, pois ambos concorrem essencialmente para o existir do todo.
3. À terceira, deve-se dizer que a matéria não age nem move, mas causa formaliter, enquanto fundamento real da recepção e continuidade. Assim, é causa de modo passivo e constitutivo, não eficiente.
4. À quarta, responde-se que a matéria não acrescenta algo ativo, mas dá possibilidade e permanência. Sem ela, o ato formal não subsistiria em coisa sensível. Logo, é causa verdadeira, ainda que por via de potência.
Conclusão.
A
matéria é verdadeira causa,
não por produzir o efeito, mas por constituí-lo e
sustentá-lo como
sujeito de recepção.
Sua causalidade é passiva, mas real, pois dela depende a existência corpórea e
a individualidade de cada ser composto.
Por
isso, Alberto conclui: “Materia est vere causa, quia dat esse
in potentia et sustentat formam in actu.”
A matéria é verdadeiramente causa, porque dá o ser em potência e sustenta a
forma em ato.
Quaestio XIX — Utrum causa formalis praecedat materialem secundum naturam
(Se a causa formal precede a material segundo a natureza)
Objeções.
1. Parece que a causa formal não precede a material segundo a natureza. Pois o que é sujeito e receptivo parece ser anterior ao que nele se introduz. Ora, a matéria é sujeito e a forma é recebida nela. Logo, a matéria é naturalmente anterior à forma.
2. Além disso, a geração das coisas naturais começa pela disposição da matéria antes que pela introdução da forma. Pois primeiro se gera o sujeito apto, e depois se infunde a forma. Logo, a matéria precede segundo a natureza.
3. Ademais, o Filósofo diz, no Livro II da Física, que “a natureza é princípio de movimento naquilo em que está”. Ora, tal movimento se inicia na matéria pela privação, que é disposição natural. Logo, a matéria é naturalmente anterior à forma.
4. Ainda, em todas as coisas compostas, a matéria permanece quando a forma se perde. Ora, o que permanece é naturalmente primeiro. Logo, a matéria precede a forma.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
VII da Metafísica, afirma: “Forma est actus et finis materiae.”
Ora, o fim é por natureza anterior ao que é por ele ordenado. Logo, a forma é
naturalmente anterior à matéria.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a prioridade pode ser considerada de três modos: segundo a ordem do tempo, segundo a ordem da geração, e segundo a ordem da natureza.
Segundo
o tempo, a matéria é anterior, pois ela é o sujeito no qual a forma é
introduzida.
Segundo a geração, também a matéria é primeira, porque o processo natural
dispõe o sujeito antes da atualização.
Mas segundo a natureza, a forma é anterior, porque é ela que confere o ser e
determina o composto.
Com efeito, a matéria não é algo completo nem determinado sem a forma; é potência pura, e sua inteligibilidade depende da forma que a atualiza. Assim, a matéria é conhecida e definida apenas pela forma.
Portanto, ainda que na ordem de geração a matéria seja primeira, na ordem do ser e da essência a forma tem prioridade natural, pois o ato é por natureza anterior à potência, e o perfeito anterior ao imperfeito.
Por
isso, Aristóteles diz: “Actus est prior potentia, sicut
perfectum imperfecto.”
A forma é o ato, e a matéria, potência; logo, a forma é naturalmente primeira,
pois aquilo em virtude do qual algo é, é mais nobre que o que apenas é capaz de
ser.
Alberto distingue três modos de precedência:
1. In esse, onde a forma precede, pois confere o ser.
2. In fieri, onde a matéria precede, pois é preparada antes de receber.
3. In cognitione, onde a forma é anterior, pois é pela forma que conhecemos a matéria.
Dessa forma, a forma é anterior por natureza, mas a matéria é anterior na geração, e ambas são simultâneas no composto perfeito.
Assim,
o Filósofo diz que “a matéria é em potência, mas o ser em ato é pela forma”.
E Alberto conclui: “Materia ordinatur ad formam sicut potentia ad actum; actus
autem est nobilior et naturaliter prior.”
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o sujeito é anterior quanto ao receber, mas posterior quanto ao ser. A matéria não é naturalmente anterior, senão potencialmente; a forma, porém, é a razão e o fim de sua existência.
2. À segunda, responde-se que na geração o processo começa pela disposição da matéria, mas a disposição é em vista da forma. Assim, o movimento natural tende do menos ao mais perfeito, e o fim é o primeiro na intenção da natureza.
3. À terceira, deve-se dizer que o movimento natural começa na matéria, mas só é movimento enquanto tende à forma. Assim, a prioridade do princípio material é apenas segundo a via, não segundo a natureza.
4. À quarta, responde-se que a matéria permanece, mas permanece imperfeita e incompleta; não é por si, mas por ordenação à forma. Logo, não é naturalmente anterior, mas apenas permanente em potência.
Conclusão.
A
causa formal precede naturalmente a causa material, porque o ato é por
natureza anterior à potência, e o ser depende mais do ato que da possibilidade.
A matéria é anterior apenas segundo a geração, mas a forma é anterior segundo a
natureza, o conhecimento e a perfeição do ser.
Por
isso, Alberto conclui:
“Forma
est prior natura, materia tempore; sed simul sunt in composito, sicut actus et
potentia.”
A forma é anterior por natureza, a matéria no tempo; mas são simultâneas no
composto, como ato e potência.
Quaestio XX — Utrum causa efficiens habeat priorem causam
(Se a causa eficiente tem causa anterior)
Objeções.
1. Parece que a causa eficiente não tem causa anterior. Pois aquilo que é causa por si é princípio primeiro do movimento e do ser. Ora, se a causa eficiente tivesse outra causa antes dela, deixaria de ser primeira. Logo, a causa eficiente não tem causa anterior.
2. Além disso, se toda causa eficiente tivesse outra anterior, proceder-se-ia ao infinito, o que é impossível. Logo, é necessário parar em uma causa eficiente primeira, que não tenha causa antes de si.
3. Ademais, Deus é causa eficiente universal de todas as coisas. Ora, Ele é causa sem causa. Logo, se há causa eficiente suprema sem causa anterior, as demais, enquanto causas, a imitam e possuem causalidade própria sem necessidade de outra anterior em sua espécie.
4. Ainda, na ordem natural, o fogo aquece por si mesmo e não por outro; e, se houvesse outra causa anterior de seu aquecer, o fogo não seria verdadeiramente causa. Logo, a causa eficiente não tem causa anterior.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina: “Causae ordinantur sicut movens et
motum.”
E Alberto comenta: “Nihil est causa efficiens nisi moveatur ab alio in ordine
causarum.”
Logo, toda causa eficiente, exceto a primeira, depende de uma causa anterior.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a causa eficiente, segundo a ordem da natureza, pode ter ou não ter causa anterior, conforme se considere em si ou na série das causas ordenadas.
Com
efeito, toda causa eficiente que não é primeira age por
participação e por
dependência de
outra.
A ação de qualquer agente finito depende de uma causa superior que lhe confere
o poder de agir; e, portanto, nenhuma causa eficiente criada é
totalmente primeira.
Somente
Deus é causa eficiente sem causa anterior, porque é ato puro, e sua ação procede
de sua própria essência, não de participação.
Nas criaturas, porém, o poder de agir vem de outro: ou da causa que lhes dá a
forma ativa, ou de uma causa universal superior.
Assim, a luz aquece por razão do fogo, e o fogo por razão do movimento celeste, e o movimento celeste por razão da inteligência motriz; e assim até chegar à Primeira Causa, que é o próprio Deus.
Portanto, há ordem hierárquica entre as causas eficientes, de modo que cada uma depende de outra mais alta em poder e ser.
Alberto distingue três modos de prioridade entre as causas eficientes:
1. In ordine naturae, quando uma causa confere à outra o poder de agir, como o sol ao fogo.
2. In ordine temporis, quando uma causa sucede a outra, como o artífice ao aprendiz.
3. In ordine intentionis, quando uma causa inferior age por virtude da superior, como o servo executa pela vontade do senhor.
Assim,
em todo o universo criado, não há causa eficiente que não dependa, de algum
modo, de outra anterior.
Somente a Primeira Causa — Deus — é absolutamente sem causa.
Por
isso, Alberto diz: “Omnis causa efficiens creata habet priorem causam, vel
quae dedit virtutem, vel quae ordinavit actum; sola causa prima est sine causa.”
Toda causa eficiente criada tem causa anterior, ou que lhe deu a virtude, ou
que ordenou seu ato; só a causa primeira é sem causa.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a causa eficiente é primeira apenas em certa ordem, não absolutamente. Pode ser primeira entre as causas subordinadas, mas não em toda a cadeia. A Primeira Causa é só Deus.
2. À segunda, responde-se que não há regressão infinita, porque toda série de causas eficientes termina na Primeira, que é ato puro e não recebe poder de outro. Sem tal fim, nada agiria.
3. À terceira, deve-se dizer que as causas inferiores participam da causalidade divina; por isso, são verdadeiramente causas, mas não por si mesmas, e sim por participação do poder da Causa Primeira.
4. À quarta, responde-se que o fogo aquece por si quanto à forma que recebeu, mas não quanto à origem dessa forma. Ele é causa secundária, dependente do agente universal que lhe conferiu a natureza ativa.
Conclusão.
A
causa eficiente tem causa anterior, exceto a Primeira, que é Deus.
Toda causa criada depende de outra superior quanto ao poder e à ordenação do
ato.
Assim, há uma hierarquia de causas eficientes, culminando na Causa Primeira,
que age por si e não por outro.
Por
isso, Alberto conclui:
“In
ordine causarum efficientium est unum primum et alia dependenter; sicut in
lumine est sol et splendor ab eo.”
Na ordem das causas eficientes há uma primeira e outras dependentes, assim como
na luz há o sol e o esplendor que dele procede.
Quaestio XXI — Utrum causa finalis sit prima in intentione, sed ultima in executione
(Se a causa final é a primeira na intenção, mas a última na execução)
Objeções.
1. Parece que a causa final não é a primeira na intenção, nem a última na execução. Pois a causa final é o bem desejado, e o bem é conhecido somente após o ato, quando se experimenta seu resultado. Logo, o fim não é primeiro na intenção, mas último também no conhecimento.
2. Além disso, a ordem da natureza procede do agente para o efeito; ora, o fim é o termo da ação, não seu princípio. Logo, o fim é último tanto na execução quanto na intenção.
3. Ademais, o fim é o que se adquire por meio da ação, e os meios são determinados antes dele. Ora, o que depende dos meios é posterior à determinação destes. Logo, o fim não é o primeiro, mas o último também na intenção.
4. Ainda, o Filósofo diz no Livro II da Física que “a natureza não delibera, mas age como o artífice que ignora o fim.” Ora, a natureza age ordenadamente sem conhecer o fim. Logo, o fim não é nem primeiro na intenção, nem necessário para a execução.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina: “Finis est causa causarum, et propter
ipsum alia sunt.”
E Boécio comenta: “Quod est ultimum in executione, est
primum in intentione.”
Logo, o fim é primeiro na
intenção e último na execução.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que a causa final é, de fato, a primeira na intenção e a última na execução, porque ordena toda a cadeia causal, tanto quanto ao movimento do agente quanto quanto à perfeição do efeito.
Com
efeito, a intenção é ato do intelecto ou da vontade que tende a algo como
desejável e perfeito. Ora, nada se deseja ou se busca senão em vista de um fim.
Assim, toda operação racional e natural tem o fim como princípio
formal de sua direção,
e como termo real de sua execução.
Por
isso, no intelecto e na vontade, o fim é o primeiro, porque é a razão pela qual o agente
se move e determina os meios.
Mas na
ordem do ser e da operação,
o fim é o último, porque só se alcança quando todos os meios estão completos.
Portanto,
há dupla prioridade:
– de
intenção, na qual o
fim é primeiro, como causa do agir;
– de
execução, na qual
o fim é último, como termo da ação.
Assim,
o construtor quer primeiro a casa perfeita (fim), mas executa por último o
acabamento que a realiza.
E a natureza tende ao seu fim por movimentos ordenados: o germe visa a forma do
animal, mas chega a ela após muitas disposições sucessivas.
Por
isso, Aristóteles diz que o fim é “aquilo em vista do qual o primeiro se move.”
A ordem do movimento é invertida em relação à ordem da intenção: o que é
primeiro em um é último no outro.
E
Alberto comenta:
“Finis
est primus in intentione, quia movet agentem; sed est ultimus in executione,
quia est terminus motus.”
O fim é primeiro na intenção, porque move o agente; mas é último na execução,
porque é o termo do movimento.
Além
disso, o fim é chamado “causa das causas”, porque sem ele nenhuma delas agiria:
o agente só age em vista de um fim, a forma é assumida por causa do fim, e a
matéria é ordenada à forma pelo mesmo motivo.
Logo, todas as outras causas dependem da final como de seu princípio primeiro.
Por isso, o fim é simultaneamente princípio de movimento e termo de perfeição.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o bem é conhecido antes do ato pela apreensão intelectual, ainda que sua experiência plena ocorra depois. Assim, o fim é primeiro na ordem da intenção e do desejo, mesmo se for conhecido mais plenamente após a execução.
2. À segunda, responde-se que, embora o movimento parta do agente, a razão de agir procede do fim. O fim é causa motriz por modo de atração, não de impulso; ele move enquanto desejado.
3. À terceira, deve-se dizer que os meios são determinados em razão do fim; e, embora sejam executados antes, são escolhidos depois de o fim ser conhecido. Assim, o fim é primeiro na ordem racional, mas último na ordem da operação.
4. À quarta, responde-se que a natureza não delibera como a razão, mas é movida pela intenção da inteligência divina, que ordena todos os fins. Logo, ainda que não conheça o fim, tende a ele como causa final da ordem natural.
Conclusão.
A
causa final é primeira na intenção e última na execução, porque move o agente antes de toda
ação e se realiza após todos os meios.
É o princípio
formal da ordem causal
e o termo
da perfeição do ser.
Por
isso, Alberto conclui:
“Finis
est primus movens in intentione et ultimus in perfectione; quia per ipsum omnes
causae ordinantur et complentur.”
O fim é o primeiro movente na intenção e o último na perfeição, pois por ele
todas as causas se ordenam e se completam.
Quaestio XXII — Utrum inter causas sit circulus vel regressus
(Se entre as causas há círculo ou regressão)
Objeções.
1. Parece que entre as causas há círculo e regressão. Pois em muitas coisas naturais, o efeito retorna à sua causa, como quando o vapor gerado pela água sobe e, resfriando-se, volta a ser água. Ora, o retorno do efeito à causa é círculo causal. Logo, há círculo entre as causas.
2. Além disso, as causas são correlativas, e o correlativo implica reciprocidade. Ora, se o agente depende do fim, e o fim depende do agente, parece haver um círculo, pois cada um causa e é causado.
3. Ademais, na ordem do movimento celeste, o gerado procede do gerador e, depois, torna-se gerador de outro semelhante. Assim, o gerador é causa do gerado e o gerado, por sua vez, torna-se causa do semelhante. Logo, há um círculo de causalidade natural.
4. Ainda, no intelecto e na vontade, o conhecimento move o amor, e o amor move novamente o conhecimento, porque quanto mais o homem ama, mais deseja conhecer. Logo, também na ordem espiritual há círculo entre as causas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina: “In causis naturalibus non est circulus,
sed ordo rectus.”
E Alberto comenta: “Causa est prior effectu secundum naturam; si rediret
effectus in causam, tolleretur ordo universi.”
Logo, não há círculo perfeito entre as causas, mas apenas ordem hierárquica.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que não pode haver círculo perfeito entre as causas, mas pode haver regresso parcial ou analógico, segundo diferentes ordens de dependência.
Com
efeito, a ordem causal é essencialmente hierárquica e não circular, porque toda causa é anterior ao efeito
segundo a natureza e a razão do ser.
Se o efeito fosse causa da sua própria causa, haveria contradição, pois o mesmo
seria anterior e posterior a si mesmo, o que é impossível.
Contudo, pode haver circularidade acidental ou secundária, não quanto à produção do ser, mas quanto à sucessão dos indivíduos ou quanto à influência recíproca de certos aspectos.
Alberto distingue três modos de regressão causal:
1. Regressus secundum successionem, como quando um gerado se torna gerador — por exemplo, o homem gerado torna-se pai de outro homem. Aqui há retorno segundo a espécie, mas não segundo o número; o círculo é natural e sucessivo, não simultâneo.
2. Regressus secundum influxum mutuum, como entre o fim e o agente: o fim move o agente enquanto desejado, e o agente produz o fim enquanto realizável. Não há contradição, pois o movimento é duplo e de ordens distintas — o do desejo e o da execução.
3. Regressus secundum analogiam spiritualem, como no intelecto e na vontade, onde o conhecimento move o amor e o amor intensifica o conhecimento. Aqui há reciprocidade dinâmica, mas não círculo real de causa e efeito, pois um mesmo ato não é causa de si mesmo, mas disposição para outro ato mais perfeito.
Logo, em nenhum caso há círculo causal em sentido próprio, porque toda causalidade exige anterioridade essencial; mas pode haver ordem de reciprocidade ou retorno analógico, em que o efeito imita e conserva a causalidade de sua origem.
Por
isso, Alberto diz:
“In
causis non est circulus essentialis, sed regressus secundum speciem vel
analogiam, quia effectus redit in similitudinem causae, non in causalitatem
ipsius.”
Entre as causas não há círculo essencial, mas regressão segundo a espécie ou
analogia, porque o efeito retorna à semelhança da causa, não à causalidade dela
mesma.
Assim, o universo conserva a ordem linear da causalidade: do Primeiro ao último ser, sem retroação essencial, mas com reflexo e conservação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que na transformação da água em vapor e do vapor novamente em água não há círculo essencial, mas alternância de causas materiais e formais. A mesma matéria recebe formas sucessivas, mas o efeito não se torna causa de si mesmo.
2. À segunda, responde-se que o fim e o agente se ordenam reciprocamente, mas não de modo circular. O fim é causa do agente segundo a intenção, e o agente é causa do fim segundo a execução. São causas de ordens diversas, não recíprocas no mesmo aspecto.
3. À terceira, deve-se dizer que o gerado se torna gerador, mas não de si mesmo. O círculo é apenas específico, não numérico; é retorno da semelhança, não da identidade. Assim, o ciclo natural das gerações é retorno da espécie, não do indivíduo.
4. À quarta, responde-se que no intelecto e na vontade há movimento circular analogicamente, não realmente, pois um ato precede o outro segundo a perfeição, e ambos se aperfeiçoam reciprocamente sem contradição causal.
Conclusão.
Não
há círculo
essencial entre as causas,
porque toda causa é naturalmente anterior ao efeito.
Há, porém, regresso parcial,
quer na sucessão das espécies, quer na dependência recíproca das ordens
distintas — como entre o fim e o agente, ou entre o conhecer e o amar.
O círculo verdadeiro destruiria a ordem do universo; o regresso ordenado a
confirma.
Por
isso, Alberto conclui:
“In
causis non est circulus sed regressus ordinatus, per quem universum redit ad
causam primam, non tamen eadem re iteratur.”
Entre as causas não há círculo, mas regressão ordenada, pela qual o universo
retorna à causa primeira, sem que a mesma realidade se repita.
Quaestio XXIII — Utrum omne ens habeat quatuor causas
(Se todo ente possui quatro causas)
Objeções.
1. Parece que nem todo ente tem quatro causas. Pois os entes eternos, como as substâncias separadas e os corpos celestes, não são compostos de matéria e forma, nem têm princípio de geração ou corrupção. Logo, neles não há causa material nem eficiente propriamente dita.
2. Além disso, Deus é o ente por essência, e nele não há nem causa formal, nem causa material, nem eficiente, nem final — porque é ato puro e simplicíssimo. Logo, nem todo ente tem quatro causas.
3. Ademais, os entes matemáticos, como a linha, o ponto e a superfície, não têm causa eficiente, porque não são gerados, nem causa final, porque não tendem a um fim. Logo, há entes que não possuem as quatro causas.
4. Ainda, a definição de certas coisas simples, como o ponto ou a unidade, não admite composição causal, mas apenas noção de princípio. Logo, nem todo ente tem quatro causas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina: “Omnis scientia considerat quatuor
causas: materialem, formalem, efficientem et finalem.”
E Alberto comenta: “Quicquid est, habet causam per quam est et propter quam
est.”
Logo, todo ente, enquanto ente, tem suas quatro causas, pelo menos por
analogia.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que todo ente tem quatro causas, ao menos por analogia e proporção, embora nem sempre em sentido próprio e literal.
Com
efeito, o nome de causa é dito univocamente nas coisas corpóreas e compostas, mas analogicamente nas simples e imateriais.
Pois a causalidade é relação ao ser, e todo ente, enquanto é, possui de algum
modo o que nas coisas compostas chamamos de matéria, forma, agente e fim.
Assim:
– a causa
material
corresponde ao princípio de possibilidade ou receptividade do ser;
– a causa
formal, ao
princípio de determinação e ato;
– a causa
eficiente, ao
princípio do movimento ou produção;
– a causa
final, ao
princípio da ordem e perfeição.
Ora, toda realidade existente tem algo que a recebe, algo que a determina, algo de que provém e algo a que tende — ainda que de modo diverso.
Nas
coisas corpóreas,
isso se verifica propriamente: há matéria, forma, agente e fim reais.
Nas coisas imateriais criadas,
como os anjos, há analogia:
– a potência de receber o ser equivale à matéria;
– a essência é forma;
– Deus é causa eficiente;
– e o próprio retorno ao Bem é causa final.
Em
Deus, porém, as quatro causas se
identificam, porque Ele é causa de si por essência, não por dependência.
É fim de si mesmo, agente por sua natureza, forma absoluta e matéria de nenhuma
coisa. Assim, n’Ele as causas não se distinguem, mas se reduzem à simplicidade
do ser.
Logo, em todos os entes fora de Deus, há pluralidade causal; em Deus, há unidade causal eminente.
Portanto, todo ente tem as quatro causas, ou propriamente (nas coisas compostas), ou analogicamente (nas coisas simples), porque nada é sem princípio de ser, de determinação, de produção e de finalidade.
Por
isso, Alberto diz:
“Omne
ens, secundum quod est ens, habet materiam ut potentiam, formam ut actum,
efficientem ut principium motus, et finem ut terminum appetitus.”
Todo ente, enquanto é ente, tem matéria como potência, forma como ato, agente
como princípio de movimento, e fim como termo do apetite.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que os entes eternos não têm causa material no sentido de matéria sujeita à geração, mas têm potência de ser como fundamento de dependência. E têm causa eficiente — Deus — que lhes dá o ser, e fim — sua própria perfeição no movimento celeste.
2. À segunda, responde-se que em Deus não há causas distintas, mas todas estão identificadas em sua essência. Assim, n’Ele as quatro causas se reduzem a um único princípio: o próprio Ser subsistente.
3. À terceira, deve-se dizer que os entes matemáticos têm as quatro causas na ordem da razão, não da realidade: a matéria é o sujeito abstrato, a forma é a figura, a causa eficiente é o intelecto que os concebe, e o fim é o conhecimento da proporção e do número.
4. À quarta, responde-se que nas coisas simples a causalidade é virtual e analógica, não real e composta. Mesmo o ponto e a unidade têm, na razão do intelecto, algo que representa matéria (como capacidade), forma (como determinação), causa eficiente (como princípio de número) e fim (como completude do raciocínio).
Conclusão.
Todo
ente, enquanto é ente, tem quatro causas: material, formal, eficiente e final —
umas realmente, outras por analogia.
Nas coisas compostas, as quatro são distintas; nas simples, são unidas; em
Deus, são uma só.
Por isso, a estrutura causal é universal e exprime a totalidade da ordem do
ser.
Por
isso, Alberto conclui:
“Omne
ens habet quatuor causas, vel proprie vel analogice; quia sine his non
intelligitur ratio essendi.”
Todo ente tem quatro causas, propriamente ou analogicamente; porque sem elas
não se entende a razão do ser.
Quaestio XXIV — Utrum una causa possit esse causa plurium effectuum
(Se uma causa pode ser causa de muitos efeitos)
Objeções.
1. Parece que uma causa não pode ser causa de muitos efeitos. Pois, segundo Aristóteles, “uma potência se ordena a um só contrário”. Ora, a causa é princípio de operação, e operação segue a potência. Logo, uma só causa não pode produzir muitos efeitos diversos.
2. Além disso, toda causalidade é determinada pela natureza da causa. Ora, o que é determinado a um não pode produzir múltiplos efeitos sem multiplicar-se. Logo, uma única causa não pode causar muitos efeitos.
3. Ademais, o mesmo não pode produzir simultaneamente contrários, mas efeitos diferentes implicam diferença de espécie, e frequentemente contrariedade. Logo, uma só causa não pode ser princípio de muitos efeitos, a menos que se destrua a unidade da causa.
4. Ainda, se uma causa produz muitos efeitos, ou o faz simultaneamente, ou sucessivamente. Se simultaneamente, um dos efeitos não teria razão de consequência do outro; se sucessivamente, cada efeito exigiria uma nova causa. Logo, uma só causa não pode ser causa de muitos.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Metafísica, ensina: “Una causa potest habere plures effectus
secundum diversos modos participationis.”
E Alberto comenta: “Deus est causa unius mundi in se et multorum effectuum per
diversitatem dispositionum.”
Logo, uma causa pode produzir múltiplos efeitos segundo a diversidade dos
receptores.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que uma causa pode ser causa de muitos efeitos, mas não do mesmo modo nem sob a mesma razão de causalidade.
Com
efeito, o princípio da multiplicidade dos efeitos não está na causa enquanto
tal, mas na disposição dos efeitos receptivos e na amplitude do poder
causal.
Pois o que é uno em ato pode agir sobre muitos, desde que o poder seja
universal e os sujeitos diversos estejam ordenados a receber essa ação.
Assim, o Sol, que é uma só causa natural, produz calor, luz, secura e maturação — não porque se multiplique em si, mas porque sua virtude única se diversifica segundo as naturezas dos corpos sobre os quais influi.
O mesmo se dá com as causas espirituais: uma só inteligência pode mover vários orbes, e Deus, Causa Primeira, é causa universal de todos os seres, cada qual segundo sua capacidade de participação.
Logo, a unidade da causa não impede a multiplicidade dos efeitos, desde que a causalidade seja de ordem universal e o poder exceda a capacidade de um único efeito.
Há, porém, distinção entre três modos dessa multiplicidade:
1. Per essentiam, quando a causa é universal e contém virtualmente a razão de muitos efeitos (como Deus ou a alma).
2. Per accidens, quando vários efeitos se seguem de um mesmo movimento causal, mas sem ordem intrínseca entre si (como o fogo que ilumina e aquece ao mesmo tempo).
3. Per participationem, quando a mesma causa age de modo diverso segundo a disposição dos sujeitos, como a mesma arte médica que cura uns e mata outros conforme o temperamento.
Portanto,
a multiplicidade dos efeitos não destrói a unidade da causa, mas manifesta a plenitude de sua
virtude.
O ser limitado produz poucos efeitos; o ser mais perfeito produz muitos; e o
ser perfeito em ato produz todos — como Deus.
Por
isso, Alberto diz:
“Unum
agens, si sit universale et perfectum, producit multa; et quanto magis unum,
tanto magis causativum plurium.”
Um agente, se for universal e perfeito, produz muitos; e quanto mais uno, tanto
mais é causa de muitos.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a potência se ordena a um só contrário, mas à multiplicidade de efeitos não contrários pode estender-se por analogia. Assim, o sol não causa contrários, mas diferentes perfeições proporcionais.
2. À segunda, responde-se que a determinação da causa não exclui a multiplicidade, desde que ela seja de ordem superior. O universal não é indeterminado, mas contém virtualmente as razões de muitos particulares.
3. À terceira, deve-se dizer que uma mesma causa não produz contrários ao mesmo tempo, mas pode produzir efeitos opostos segundo diversas condições do sujeito. Assim, o mesmo sol derrete a cera e endurece o barro, não por contrariedade da causa, mas por diversidade da matéria.
4. À quarta, responde-se que a simultaneidade ou sucessão dos efeitos depende da ordem da natureza e não da divisão da causa. A unidade do agente permanece, enquanto seus efeitos se multiplicam conforme a diversidade dos tempos e disposições.
Conclusão.
Uma
causa pode ser causa de muitos efeitos, quando possui poder suficiente e
universalidade de virtude.
A multiplicidade dos efeitos não contradiz a unidade da causa, mas manifesta
sua perfeição: quanto mais uno o princípio, mais múltiplos os efeitos que dele
procedem.
Por
isso, Alberto conclui:
“Una
causa est causa multorum, secundum diversitatem recipientium et abundantiam
virtutis agentis.”
Uma causa é causa de muitos, segundo a diversidade dos receptores e a
abundância da virtude do agente.
Quaestio XXV — Utrum una res possit habere plures causas unius generis
(Se uma mesma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero)
Objeções.
1. Parece que uma mesma coisa não pode ter várias causas do mesmo gênero. Pois a unidade do efeito exige unidade de princípio. Ora, se há várias causas do mesmo gênero, o efeito não seria uno, mas múltiplo conforme a multiplicidade das causas.
2. Além disso, duas causas do mesmo gênero concorrem sob a mesma razão formal de causalidade. Ora, onde há identidade de razão causal, não há distinção de causas, mas redundância. Logo, uma só coisa não pode ter muitas causas do mesmo gênero.
3. Ademais, o Filósofo diz, no Livro II da Física, que “duas causas formais ou duas matérias para uma mesma coisa são impossíveis”. Ora, o que é impossível na causa formal ou material é igualmente impossível nas outras. Logo, uma mesma coisa não pode ter múltiplas causas de um só gênero.
4. Ainda, se o mesmo efeito procedesse de várias causas do mesmo gênero, não se poderia determinar qual delas seria a verdadeira causa. Mas é próprio da natureza que cada efeito tenha uma razão suficiente de ser. Logo, não há pluralidade de causas do mesmo gênero para o mesmo efeito.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Metafísica, afirma: “In causis est multiplex concursus, quia
multae causae possunt ordinari ad idem secundum diversos modos.”
E Alberto comenta: “Possunt esse plures causae unius generis ad idem effectum,
si ordinantur sub una ratione agentis.”
Logo, uma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero, contanto que haja ordem
e subordinação entre elas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que uma mesma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero, contanto que essas causas estejam ordenadas entre si ou atuem sob modos diversos de causalidade, e não de forma simultânea e absoluta.
Com efeito, a multiplicidade de causas do mesmo gênero não destrói a unidade do efeito, desde que não sejam causas concorrentes em igualdade, mas subordinadas ou cooperantes.
Assim, há diversas maneiras em que isso se dá:
1. Na
ordem da causa eficiente.
Uma mesma coisa pode ter vários agentes que concorrem para o mesmo efeito — por
exemplo, o médico e o cirurgião para a cura, o artífice e o instrumento para a
escultura, o sol e o fogo para o calor.
Nesse caso, há várias causas eficientes, mas subordinadas: o instrumento
depende do agente principal, e o inferior age em virtude do superior.
2. Na
ordem da causa formal.
Uma mesma coisa pode conter várias formas sob diversas razões, como o homem que
possui a forma corporal e a forma racional.
Aqui há pluralidade de causas formais, mas não do mesmo nível: uma é
subordinada à outra, e todas convergem para o mesmo sujeito.
3. Na
ordem da causa material.
Também há multiplicidade de matérias ordenadas — por exemplo, na estátua, o
bronze é a matéria próxima, e o metal, a remota. Ambas pertencem ao mesmo
gênero, mas em graus diversos.
4. Na
ordem da causa final.
Uma mesma ação pode ter vários fins do mesmo gênero, contanto que estejam
subordinados, como o soldado que luta pela vitória e pela pátria. O fim mais
próximo é meio para o fim mais alto, e ambos pertencem ao mesmo gênero de
finalidade.
Portanto, a pluralidade de causas do mesmo gênero é possível quando há hierarquia, ordem ou dependência, mas não quando há igualdade absoluta e simultânea, o que destruiria a unidade do efeito.
Por
isso, Alberto diz:
“In
causis unius generis potest esse multitudo, si sint ordinatae; non autem, si
sint aequales.”
Nas causas de um mesmo gênero pode haver multiplicidade, se forem ordenadas;
não, porém, se forem iguais.
Logo, é conforme à natureza do universo que múltiplas causas cooperem no mesmo efeito, sob a direção de uma causa superior que unifica a ação.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que a unidade do efeito não exige a unicidade absoluta da causa, mas a unidade de ordem. Assim, múltiplas causas podem concorrer ordenadamente sem multiplicar o efeito.
2. À segunda, responde-se que a identidade de razão causal não impede distinção quanto ao modo ou grau de causalidade. Assim, dois agentes podem agir sob a mesma razão formal de eficiência, mas em níveis diversos — como o sol e o fogo.
3. À terceira, deve-se dizer que é impossível haver duas matérias ou formas sem ordem numa mesma coisa, mas não quando uma é subordinada à outra. Assim, a alma racional contém em si a sensitiva e a vegetativa, sem contradição.
4. À quarta, responde-se que, ainda que haja várias causas do mesmo gênero, a razão de causalidade permanece una na causa superior que as ordena. Assim, a determinação do efeito provém da unidade da causa principal, não da multiplicidade dos meios.
Conclusão.
Uma
mesma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero, desde que estejam ordenadas
hierarquicamente
ou cooperem
sob uma mesma razão final.
A multiplicidade não destrói a unidade do efeito, mas manifesta a harmonia da
ordem causal.
Por
isso, Alberto conclui:
“Una
res potest habere plures causas unius generis, si earum actus non repugnent,
sed ordinentur sub uno principio.”
Uma coisa pode ter várias causas do mesmo gênero, se seus atos não se
contradizem, mas se ordenam sob um único princípio.
Quaestio XXVI — Utrum causae inferiores agant in virtute superiorum
(Se as causas inferiores agem em virtude das superiores)
Objeções.
1. Parece que as causas inferiores não agem em virtude das superiores. Pois o agente age enquanto é em ato, e o ato é próprio da forma individual. Ora, a forma individual pertence à causa inferior, e não à superior. Logo, a operação da causa inferior procede de sua própria virtude e não da superior.
2. Além disso, nada age senão na medida em que é causa suficiente. Se as causas inferiores dependessem do influxo das superiores, não seriam causas verdadeiras, mas meros instrumentos. Ora, isso repugna à dignidade natural das coisas inferiores, que agem por si mesmas. Logo, as causas inferiores não agem pela virtude das superiores.
3. Ademais, se as causas inferiores agem em virtude das superiores, então toda causalidade inferior seria mera participação. Mas a experiência mostra que as causas inferiores produzem efeitos que as superiores não produzem diretamente, como o fogo aquece e consome, enquanto o sol apenas aquece. Logo, as causas inferiores possuem virtude própria, e não apenas derivada.
4. Ainda, se toda ação inferior dependesse da superior, a cadeia de causas seria infinita, pois toda causa teria outra acima de si. Isso é impossível. Logo, as causas inferiores não agem apenas pela virtude das superiores.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
VIII da Física, ensina: “Causa inferior agit in virtute causae
superioris, sicut instrumentum in virtute principalis agentis.”
E Alberto comenta: “In universo inferiora moventur a superioribus, et actio
eorum dependet ab influxu caelesti.”
Logo, as causas inferiores agem em virtude das superiores.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que as causas inferiores agem em virtude das superiores, mas não como se carecessem de poder próprio, e sim porque toda virtude finita depende do influxo de uma causa mais universal e eminente, na qual participa.
Com
efeito, o universo é uma hierarquia de causalidades ordenadas — desde a
Primeira Causa, que é Deus, até os agentes naturais e materiais.
Ora, nenhuma causa finita é totalmente suficiente para o seu efeito; toda ação
limitada requer um princípio superior que lhe comunique ser, movimento e
direção.
Assim,
a causa
superior age universaliter, isto é, pela difusão de um poder
geral, e a causa inferior
age particulariter, determinando esse poder segundo a
forma e a matéria do efeito.
Dessa maneira, a ação da causa inferior não é independente, mas uma participação
determinada da virtude da superior.
Exemplo
disso é o sol,
que age sobre os elementos inferiores: o calor do fogo é participação da
influência solar; e o movimento dos corpos terrestres depende da disposição
celeste.
Por isso, Aristóteles e Alberto dizem que “as causas inferiores são
instrumentos das superiores”, não por privação de poder, mas por subordinação
ordenada.
Em toda cadeia causal há, pois, três níveis de influxo:
1. Causa principal, que contém a virtude universal (como Deus ou o céu).
2. Causa subordinada, que recebe e aplica essa virtude (como os corpos celestes ou os agentes espirituais).
3. Causa particular, que determina o influxo em ato (como o fogo, o homem ou o animal).
Assim, o fogo aquece em virtude de seu próprio calor formal, mas também em virtude da influência do sol, que é sua causa superior; e o sol, por sua vez, age em virtude de Deus, que é o primeiro motor.
Portanto,
a ação da causa inferior é dupla:
– propria, segundo sua forma particular;
– derivada, segundo o influxo da causa superior.
Daí
Alberto conclui:
“Causa
inferior non agit nisi motu superioris, sicut instrumentum non agit nisi per
virtutem principalis.”
A causa inferior não age senão movida pela superior, assim como o instrumento
não age senão pela virtude do principal.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o ato pertence à forma individual, mas toda forma finita é participada. Assim, a causa inferior age enquanto é em ato, mas o ser e a eficácia desse ato procedem da virtude superior que o sustenta.
2. À segunda, responde-se que a dependência da causa inferior não a anula como causa verdadeira. O instrumento é verdadeiramente causa do efeito, embora dependa do principal. Assim, as causas inferiores agem por si, mas sob o influxo de uma virtude mais alta.
3. À terceira, deve-se dizer que as causas inferiores produzem efeitos diversos dos superiores, mas não contrários. A diferença provém da limitação da virtude recebida, não da independência. O sol não queima porque sua ação é universal; o fogo, particular, limita e especifica a mesma virtude em calor intenso.
4. À quarta, responde-se que a ordem das causas não é infinita, pois termina na Primeira Causa, que age por si e em todas as outras. As causas inferiores agem em virtude das superiores, e as superiores em virtude de Deus, em quem a causalidade se detém.
Conclusão.
As
causas inferiores agem em virtude das superiores, participando do poder e da influência
destas, sem perder sua causalidade própria.
Toda ordem natural e espiritual é regida por influxo descendente e operação
subordinada.
Por
isso, Alberto conclui:
“Causae
inferiores agunt in virtute superiorum, sicut lumen per speculum transit ab uno
fonte in alia inferiora.”
As causas inferiores agem em virtude das superiores, assim como a luz passa,
por um espelho, de uma fonte a outras inferiores.
Quaestio XXVII — Utrum causa efficiens moveatur ab appetitu finis
(Se a causa eficiente é movida pelo apetite do fim)
Objeções.
1. Parece que a causa eficiente não é movida pelo apetite do fim. Pois o agente é causa do fim, e não o contrário. Ora, o que é causa de outro não é movido por ele. Logo, a causa eficiente não é movida pelo fim.
2. Além disso, mover e ser movido são opostos. Ora, a causa eficiente move; portanto, não é movida, nem pelo fim nem por outra coisa.
3. Ademais, o apetite pertence ao domínio das coisas animadas e voluntárias. Mas a causa eficiente pode ser natural e inanimada. Logo, o apetite do fim não pode mover toda causa eficiente, senão apenas as voluntárias.
4. Ainda, o fim é posterior ao agente na ordem da execução; portanto, não pode mover o que o precede no ser. Logo, a causa eficiente não é movida pelo apetite do fim.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina: “Finis est causa causarum, quia propter
ipsum movetur agens.”
E Alberto comenta: “Causa efficiens non movet nisi mota a fine, quia omnis
actio ordinatur ad bonum.”
Logo, a causa eficiente é movida pelo apetite do fim.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que toda causa eficiente é movida pelo apetite do fim, não necessariamente por apetite sensível ou racional, mas por inclinação natural, intelectual ou voluntária, conforme o grau do ser que age.
Com efeito, toda ação é por causa de um bem, real ou aparente, e o bem é o objeto do fim. Ora, a causa eficiente não agiria senão na medida em que estivesse ordenada a esse bem. Portanto, o fim é aquilo que move a causa eficiente, dando-lhe razão e direção de ato.
A
causalidade eficiente e final não se opõem, mas se complementam:
– o fim move o agente segundo a intenção, como aquilo pelo qual o agente deseja
ou tende a agir;
– o agente move o efeito segundo a execução, como aquilo que põe em ato o desejado.
Por isso, diz Alberto:
“Finis
est primus in intentione, ultimus in executione; et movet efficientem, non
sicut efficiens efficit, sed sicut desideratum trahit.”
O fim é o primeiro na
intenção e o último na execução; e move a causa eficiente, não como agente que
atua, mas como desejado que atrai.
Assim, há três ordens de movimento pelo fim:
1. Em causas voluntárias e intelectuais, o fim é conhecido e desejado: o artífice age por causa da obra a realizar, o médico por causa da saúde.
2. Em causas naturais, o fim não é conhecido, mas está impresso como inclinação: o fogo tende a elevar-se, a pedra a cair, e cada ser busca sua perfeição natural.
3. Em causas divinas, o fim é o próprio bem absoluto: Deus age por amor de Si mesmo, e n’Ele o fim e o agente se identificam.
Portanto,
a causa
eficiente é movida pelo fim,
mas de modos diversos:
– por conhecimento no agente racional;
– por inclinação no agente natural;
– por identidade no agente divino.
Dessa maneira, o fim é causa primeira em intenção e causa última em execução, sendo o princípio do movimento do agente e o termo da ação.
Por
isso, Alberto sintetiza:
“Efficiens
agit propter finem, et finis movet efficientem sicut desideratum movet
appetentem.”
O agente age por causa do fim, e o fim move o agente como o desejado move quem
o deseja.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o fim não é causa eficiente do agente, mas causa motiva; não o produz, mas o atrai. Assim, o fim não é causa do ser do agente, mas de seu agir.
2. À segunda, responde-se que a causa eficiente é movida pelo fim, não quanto ao movimento físico, mas quanto à ordem intencional. O fim não imprime movimento material, mas suscita a ação enquanto conhecido ou naturalmente inclinado.
3. À terceira, deve-se dizer que, ainda que o apetite pertença propriamente aos seres animados, há analogia de apetite em toda natureza. Assim, o fogo “apetece” elevar-se, e a semente “apetece” crescer — não por vontade, mas por forma. Portanto, o apetite do fim move todas as causas eficientes, quer intelectuais, quer naturais.
4. À quarta, responde-se que, embora o fim seja posterior na execução, é anterior na intenção. E a intenção é o princípio do movimento. Logo, o fim, enquanto desejado, é primeiro e move o agente a agir.
Conclusão.
A
causa eficiente é movida pelo apetite do fim, pois nenhuma ação ocorre sem ordenação
ao bem.
O fim é o primeiro no pensamento e o último na realização; move o agente como o
desejado move o amante.
Por
isso, Alberto conclui:
“Causa
efficiens movetur a fine sicut ab eo quod intendit; et ideo finis est causa
causarum, quia sine eo nulla agitio est.”
A causa eficiente é movida pelo fim como por aquilo que ela intenta; e por isso
o fim é a causa das causas, porque sem ele não há ação alguma.
Quaestio XXVIII — Utrum finis sit causa causarum
(Se o fim é a causa das causas)
Objeções.
1. Parece que o fim não é causa das causas. Pois o fim é último na execução e primeiro apenas na intenção. Ora, o que é posterior no ser não pode ser causa do que o precede. Logo, o fim não é causa das causas.
2. Além disso, a causa eficiente produz o efeito sem necessidade do fim enquanto tal, pois muitas ações naturais ocorrem por necessidade da forma, e não por busca de finalidade. Logo, o fim não é causa universal de todas as causas.
3. Ademais, o fim depende da causa eficiente, que o realiza; e o dependente não pode ser causa do que o produz. Logo, o fim não é causa das causas, mas efeito delas.
4. Ainda, o fim é extrínseco à essência da causa, sendo apenas termo do movimento. Ora, o que é extrínseco não é causa intrínseca. Logo, o fim não é causa das causas.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Física, ensina expressamente: “Finis est causa
causarum, et hoc est quod est optimum.”
E Alberto comenta: “Finis est regula et ordo causarum, quia propter ipsum
omnia agunt et ordinantur.”
Logo, o fim é verdadeiramente a causa das causas.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que o fim é a causa das causas, não como princípio eficiente que produz, mas como princípio de ordem e direção, pelo qual todas as causas agem e se coordenam.
Com
efeito, o fim é a razão de ser da causalidade, porque é aquilo
em vista do qual a
causa eficiente age, a causa formal se determina e a causa material se ordena.
Sem o fim, nenhuma causa teria razão de causar, porque toda operação tende a um
bem, e o bem é o fim.
Assim,
o fim move a causa eficiente, especifica a formal e determina a material — e,
por isso, é dito “causa das causas”.
Alberto o explica com precisão:
“Finis
est causa causarum, quia propter ipsum agens agit, forma informat, materia
disponitur.”
O fim é a causa das causas, porque por causa dele o agente age, a forma informa
e a matéria se dispõe.
A ordem causal se estabelece, portanto, em função do fim:
1. O fim é a causa primeira em intenção — pois é aquilo pelo qual se age;
2. A causa eficiente é a primeira em execução — pois é a que põe o movimento;
3. A causa formal determina o que será feito;
4. A causa material é aquilo de que se faz.
Mas
o princípio de toda esta série é o fim, pois todas as outras causas
se ordenam a ele como ao seu termo próprio.
Deus, por exemplo, é o fim último do universo, e por Ele todas as causas agem e
subsistem; assim, no plano metafísico, o fim é o primeiro princípio.
Alberto distingue, porém, três modos de causalidade final:
1. Causa final natural, impressa nas coisas — como o peso tende ao centro.
2. Causa final intencional, presente nos seres racionais — como o artífice que age por um propósito.
3. Causa final absoluta, que é o Bem divino — o qual move todas as causas por amor e ordena o universo à sua perfeição.
Logo, o fim é causa das causas por excelência, porque dá sentido, direção e perfeição a todas as ordens de causalidade.
Sem
o fim, as causas eficientes agiriam sem direção, as formas seriam
indeterminadas, e a matéria permaneceria em pura potência.
Por isso, Aristóteles o chama de “causa das causas” e “melhor entre as causas”,
porque é a razão do agir em todas as outras.
Assim,
Alberto conclui:
“In
fine est ratio totius ordinis causarum; et ideo dicitur finis esse causa
causarum.”
No fim está a razão de toda a ordem das causas; e por isso se diz que o fim é a
causa das causas.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que o fim é último na execução, mas primeiro na intenção. Ora, a intenção é o princípio do movimento. Assim, o fim é causa motiva e diretiva das outras causas.
2. À segunda, responde-se que mesmo nas ações naturais o fim está presente como inclinação impressa pela forma. Assim, o fogo tende naturalmente a elevar-se e aquecer, e essa tendência é seu fim natural. Logo, não há ação sem fim, ainda que o agente não o conheça.
3. À terceira, deve-se dizer que o fim depende da causa eficiente na existência, mas é anterior a ela na intenção e na razão de agir. Assim, o artífice depende da obra para manifestar o fim, mas a ideia do fim é o que o move a agir.
4. À quarta, responde-se que, embora o fim seja extrínseco quanto à posição, é intrínseco quanto à ordem e razão de causalidade. Ele é extrínseco no ser, mas intrínseco na intenção, e é por isso que regula todas as causas.
Conclusão.
O
fim é verdadeiramente a causa das causas, pois todas as causas agem em vista
dele e recebem dele sua ordem e razão.
Ele é o primeiro na intenção, o último na execução, e a razão da totalidade do
agir.
Por
isso, Alberto conclui:
“Finis
est causa causarum, quia ipse facit ut aliae causae sint et operentur.”
O fim é a causa das causas, porque é ele que faz com que as outras causas
existam e operem.
Quaestio XXIX — Utrum causae omnes dependeant a prima causa
(Se todas as causas dependem da causa primeira)
Objeções.
1. Parece que nem todas as causas dependem da causa primeira. Pois algumas causas segundas produzem seus efeitos imediatamente, sem intervenção da primeira. Ora, o que age imediatamente não depende de outro quanto à operação. Logo, nem todas as causas dependem da causa primeira.
2. Além disso, Aristóteles ensina que “o agente particular é causa particular do efeito”. Ora, o particular, enquanto tal, age segundo sua forma própria e não segundo a universalidade da causa primeira. Logo, a dependência universal é desnecessária.
3. Ademais, se toda causa dependesse da primeira, a causalidade de cada uma seria apenas instrumental. Mas muitas causas agem por sua própria virtude, como o fogo aquece por sua forma e o homem gera pelo poder de sua alma. Logo, nem todas dependem da causa primeira.
4. Ainda, se todas as causas dependessem da primeira em ato, a vontade divina seria causa imediata de todos os efeitos. Ora, isso parece suprimir a causalidade secundária e toda ordem intermediária. Logo, nem todas as causas dependem da causa primeira.
Em contrário (Sed contra).
Aristóteles,
no Livro
II da Metafísica, afirma: “Omnes causae reducuntur ad unam primam
causam.”
E Alberto comenta: “Sicut omnis motus dependet a primo motore, sic omnis causa
ab una prima.”
Logo, todas as causas dependem da causa primeira.
Respondeo dicendum quod.
Deve-se dizer que todas as causas dependem da causa primeira, tanto quanto à existência quanto quanto à operação, mas de modos diversos conforme a ordem da causalidade.
Com
efeito, a causa primeira — que é Deus — é o princípio absoluto do
ser e da operação de todas as causas segundas.
Nada pode agir a não ser enquanto participa do ato de ser, e todo ser criado
participa do ser pela causalidade da Causa Primeira.
Assim,
toda causa segunda depende da primeira:
– quanto
ao ser, porque
recebe dela sua existência e poder;
– quanto
ao agir, porque só
pode operar enquanto movida ou sustentada pela virtude da primeira.
Por
isso, Alberto afirma:
“Omnis
causa secunda agit in virtute primae, sicut lumen in virtute solis.”
Toda causa segunda age em virtude da primeira, como a luz em virtude do sol.
Há, porém, três graus de dependência:
1. Dependência essencial, quanto ao ser: toda causa criada é causada pela Primeira, sem a qual não subsistiria.
2. Dependência operativa, quanto ao agir: toda causa segunda opera em virtude do influxo da Primeira, que a conserva em ato.
3. Dependência final, quanto à ordem: toda causa se dirige ao fim último, que é o Bem divino.
Logo, ainda que as causas segundas tenham virtudes próprias e verdadeiras, essas virtudes são participadas e sustentadas pelo poder da Causa Primeira, que é ato puro e fonte de toda causalidade.
Assim como a chama depende da tocha, e a tocha da fogueira, e a fogueira do fogo primeiro — assim todas as causas dependem de Deus, que é causa das causas, motor dos motores e fim dos fins.
Por isso, a Primeira Causa não suprime as causas segundas, mas as funda e as conserva, porque é mais íntima a cada uma do que ela mesma.
Alberto
diz com precisão:
“Deus
est in omnibus causis, non sicut pars, sed sicut virtus in actu agente.”
Deus está em todas as causas, não como parte, mas como virtude no ato do
agente.
E
ainda:
“Causae
secundae non agunt sine prima, nec prima sine ordine secundarum.”
As causas segundas não agem sem a primeira, nem a primeira sem a ordem das
segundas.
Logo, há cooperação, não exclusão: o influxo da Causa Primeira é a raiz da eficácia das demais.
Respostas às objeções.
1. À primeira, deve-se dizer que, embora as causas segundas operem imediatamente sobre seus efeitos, dependem mediatamente da Primeira quanto ao poder de agir. A presença da Primeira não suprime a ação imediata, mas a fundamenta.
2. À segunda, responde-se que o agente particular age segundo sua forma própria, mas essa forma é efeito da Causa Primeira e participa do seu ser e poder. Assim, o particular é causa verdadeira, mas dependente.
3. À terceira, deve-se dizer que a causalidade das segundas não é meramente instrumental, mas participada. O fogo aquece por sua forma, mas essa forma age em virtude do poder recebido do Ser primeiro. Assim, a dependência não destrói, mas sustenta a autonomia natural.
4. À quarta, responde-se que a Primeira Causa é causa imediata quanto à origem do poder, mas não quanto à execução do ato. Deus causa o ser e a virtude de agir, mas as causas segundas realizam a operação conforme suas próprias naturezas. Assim se conserva a hierarquia causal e a providência divina.
Conclusão.
Todas
as causas dependem da Causa Primeira, que é princípio do ser, do agir e do
fim.
Ela comunica a existência, move à operação e ordena ao bem.
Sem ela, nada poderia existir, agir ou ordenar-se.
Por
isso, Alberto conclui:
“Omnes
causae dependent a prima causa, sicut lumen a sole et motus a primo motore.”
Todas as causas dependem da primeira causa, assim como a luz depende do sol e o
movimento do primeiro motor.
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