sábado, 25 de outubro de 2025

Entre a Luz e o Espelho Negro: Reflexões sobre o Comentário ao De Trinitate de Boécio.

Entre a Luz e o Espelho Negro: Reflexões sobre o Comentário ao De Trinitate de Boécio.

Traduzir Santo Tomás não é tarefa leve. Há algo de estranho e solene nesse ato de tentar verter para o nosso idioma um pensamento que parece mais próximo do ritmo do cosmos do que da linguagem humana. Cada linha do Comentário ao De Trinitate é como um degrau escuro em direção à luz — não a luz das coisas visíveis, mas aquela que habita o próprio ato de pensar. Quando decidi encarar essa obra, percebi que não era apenas uma tradução de palavras: era um convite a atravessar um espelho.
Tomás de Aquino, quando comenta Boécio, não o lê como quem comenta um filósofo antigo, mas como quem recolhe o último eco de uma sabedoria que ainda não havia sido fragmentada. Boécio, preso e condenado, escreve sobre a Trindade como quem escreve à beira do silêncio. E Tomás, séculos depois, o ouve. Há nisso uma fidelidade que transcende o texto. Ele não explica Boécio — ele o interpreta à luz do que Boécio mesmo pressentia: que toda verdade humana é sombra de uma Verdade maior.
A importância dessa obra não está apenas na doutrina — está no gesto. Santo Tomás faz da filosofia um ato de reconciliação entre a razão e o mistério. Ele não foge do problema da distinção das ciências, da ordem dos saberes, da relação entre o humano e o divino. Ao contrário, ele o enfrenta com uma serenidade que, hoje, parece impossível. Num tempo em que o saber se tornou dispersão, ele recorda que todo conhecimento é retorno — e que esse retorno só encontra repouso em Deus.
Traduzir esse comentário foi como acompanhar o movimento de um rio subterrâneo. Cada questão, cada articulus, descia mais fundo na relação entre o conhecer e o ser. O texto não apenas expõe conceitos: ele os transforma em etapas de um caminho. As dez questões que estruturam a obra não são divisões didáticas, mas graus de ascensão — da lógica à metafísica, e desta à teologia.
Houve momentos em que a linguagem parecia resistir. O latim de Tomás é ao mesmo tempo transparente e denso, como o ar antes de uma tempestade. Ele pensa em círculos, como se cada frase fosse um retorno ao centro. E é nesse movimento circular que está o segredo da obra: compreender é retornar. Todo conhecimento humano é um eco, e o eco só faz sentido se há uma voz original.
O que Boécio pressente em sua prisão — que a alma humana é um espelho quebrado da Trindade —, Tomás eleva à dignidade de sistema. Ele organiza o saber, não para dominá-lo, mas para ordená-lo ao princípio que o sustenta. O leitor moderno, acostumado a ver a razão como ferramenta, talvez estranhe esse gesto. Mas é exatamente aí que está a grandeza: Tomás pensa como quem reza.
Cada linha traduzida me lembrava que o conhecimento não é posse, é participação. A ciência, para ele, é uma forma de comunhão — não com o objeto estudado, mas com a luz que o torna inteligível. Essa perspectiva, perdida no ruído moderno, é o que torna a obra viva. Ela nos obriga a reexaminar o que chamamos de saber: será que conhecer é acumular ou deixar-se iluminar?
Há uma humildade radical nesse texto. Tomás reconhece o limite da razão, mas não a despreza. Ele sabe que a fé sem razão é cega, e a razão sem fé é estéril. Essa tensão, que ele nunca resolve por completo, é o que o torna grande. Ele habita o intervalo — entre o homem e Deus, entre o conceito e o mistério. Traduzir esse intervalo foi, para mim, o maior desafio.
Mas o esforço foi compensado. Porque ao terminar a tradução, percebi que a obra não fala apenas da Trindade; fala de nós. O homem moderno, acorrentado às suas próprias ideias, esqueceu que o espelho não brilha por si. O espelho negro de que falei na capa simboliza isso: a mente que, sem sabedoria, reflete apenas o vazio. Tomás nos recorda que até o vazio é um chamado à plenitude.
Há também um sentido quase profético na leitura atual dessa obra. Num mundo que confunde especialização com sabedoria, Tomás reordena o caos intelectual: física, matemática, metafísica e teologia não são compartimentos — são degraus. Cada ciência é um modo de se aproximar do Ser. E negar essa ordem é negar o próprio sentido do conhecimento.
Não sei se uma tradução pode “salvar” um texto antigo, mas sei que certos textos salvam quem os traduz. Essa obra me mostrou que o pensamento ainda pode ser sagrado, que a inteligência ainda pode ser um caminho de oração. Em tempos em que pensar se tornou um gesto utilitário, ler e traduzir Tomás é lembrar que a contemplação é o ato mais humano que existe.
Por isso, este trabalho não é apenas filológico — é um testemunho. O Comentário ao De Trinitate é a prova de que o intelecto humano, mesmo fragmentado, ainda pode aspirar à luz. Ele nos convida a compreender não para dominar, mas para nos deixar compreender. A sabedoria, no fim, não é saber muito — é saber de onde vem a luz.
Termino esta jornada com a sensação de que Santo Tomás não escreveu apenas um comentário sobre Boécio, mas uma confissão de fé na inteligência. Ele mostrou que entre o silêncio de Boécio e a clareza do Evangelho há um mesmo movimento: a busca por uma unidade que a linguagem tenta, em vão, aprisionar. Traduzir isso é, de certo modo, continuar o gesto dele — repetir com humildade o que o próprio Tomás insinuou: que toda palavra humana é apenas o eco de uma Palavra maior.
E talvez seja isso o que reste ao tradutor: aceitar que, ao fim, as palavras não são nossas. Elas apenas nos atravessam. O que permanece é o silêncio depois da luz — aquele instante em que o espelho negro, por um segundo, parece refletir.

       

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