Nota Editorial e Declaração de Uso
Esta tradução integral de The Yoga of Power – Tantra, Śakti and the Secret Way, de Julius Evola, foi realizada por Jardel Almeida (Antônio Freixo), com fins exclusivamente pessoais e acadêmicos.
O presente material tem caráter não
comercial, destinando-se ao estudo, à pesquisa e à preservação do
pensamento evoliano em língua portuguesa.
Toda a tradução foi conduzida com rigor
filológico, mantendo a integridade do texto original e a coerência conceitual
das terminologias sânscritas.
É expressamente proibida sua venda,
reprodução comercial ou distribuição com fins lucrativos, no todo ou
em parte.
O tradutor reserva-se o direito moral sobre o
texto vertido, bem como o compromisso ético de que esta edição sirva apenas ao
propósito do conhecimento e da contemplação filosófica.
— Jardel
Almeida
São Paulo, 2025
ÍNDICE GERAL
Prefácio do Tradutor
Breve apresentação e nota sobre a tradução e
terminologia sânscrita.
Introdução do Autor
O propósito da obra – O sentido de “Yoga da
Potência” – A diferença entre conhecimento e poder – A atualidade do Tantrismo.
PARTE
I – O FUNDAMENTO DOUTRINAL
Capítulo I – O Significado e a Origem dos
Tantras
A reação tântrica ao ascetismo védico – A
espiritualização da energia – O princípio da ação iluminada.
Capítulo II – A Natureza da Śakti
O feminino divino como poder do ser – A
dualidade dinâmica de Śiva e Śakti – A energia como realidade metafísica.
Capítulo III – O Conhecimento como Poder
Da vidyā à siddhi – Saber como transformação –
Crítica de Evola à gnose moderna.
Capítulo IV – O Corpo e a Energia
O microcosmo humano – Os centros sutis
(cakras) e os canais energéticos (nāḍīs) – O corpo como templo.
Capítulo V – A Serpente de Fogo (Kuṇḍalinī)
A ascensão da energia – Técnicas do despertar
– A simbologia da serpente e do eixo central.
PARTE
II – A VIA DO PODER
Capítulo VI – A Dinâmica da Libertação
O uso das forças do mundo – A disciplina do
fogo – O herói espiritual (vīra).
Capítulo VII – O Som, a Vibração e o Mantra
O poder da palavra criadora – O śabda-brahman – A teurgia do som.
Capítulo VIII – A Doutrina dos Cakras e o Corpo
Oculto
Os sete centros do ser – O fluxo ascendente e
a inversão da energia – O corpo adamantino (vajra-deha).
Capítulo IX – O Mistério da Palavra, do Som e
da Vibração
O logos cósmico – A criação pelo verbo – O som
como ponte entre consciência e energia.
Capítulo X – A Palavra Criadora e o Poder do
Mantra
O mantram como veículo da energia divina – O
segredo da ressonância interior – A vocalização sagrada e o silêncio supremo.
PARTE
III – O CAMINHO DA MÃO ESQUERDA
Capítulo XI – O Caminho da Mão Esquerda
(Vāma-mārga)
·
I.
O Significado da Mão Esquerda – A via da transgressão sagrada.
·
II.
O Maithuna e a Reintegração dos Opostos – A união sexual como
rito cósmico.
·
III.
O Perigo, a Prova e a Vitória do Vīra – A travessia do abismo e
o domínio do medo.
·
IV.
A Síntese do Caminho e a Superação das Duas Mãos – A
reconciliação dos polos e o retorno ao centro.
PARTE
IV – A REALIZAÇÃO SUPREMA
Capítulo XII – A Realização Suprema e o Corpo
de Luz (Deha-siddhi e Jīvan-mukti)
I. A libertação enquanto vivo (jīvan-mukti).
II. O corpo tornado luz (deha-siddhi).
III. O estado solar e o poder imóvel.
IV. O retorno de Śiva – o homem divinizado.
APÊNDICE
– NOTAS DOUTRINAIS E TEXTUAIS
1.
O conceito de Śakti e sua natureza dual.
2.
O Tantrismo e o Veda.
3.
O significado do termo Vāma.
4.
O símbolo do fogo ascendente.
5.
Tantrismo e alquimia hermética.
6.
O conceito de Brahmacarya.
7.
O simbolismo solar e lunar.
8.
O sentido de Mokṣa.
9.
A tradição Kaula.
10. A
correspondência ocidental: Espírito e Matéria.
Síntese Final
O homem solar e o retorno da potência – Evola
e a metafísica do poder – Śiva e Śakti como totalidade do real.
Introdução do Tradutor
O nome do
pensador italiano Julius Evola (1898–1974) é praticamente desconhecido
no meio acadêmico norte-americano. Até onde sei, apenas dois estudiosos
americanos se dedicaram a analisar o seu pensamento: Thomas Sheehan, que
o abordou sob uma perspectiva filosófica, e Richard Drake, que o
examinou sob um viés político e histórico.
Considerando
tanto a notável coerência quanto a spissitudo spiritualis — a densidade
espiritual — que caracterizam o pensamento de Evola, e ainda o ressurgimento de
interesse que sua obra tem despertado na Europa nas últimas décadas, torna-se
evidente a necessidade de se preencher a lacuna cultural existente no mundo de
língua inglesa. A modesta contribuição que aqui ofereço à popularização de
Julius Evola limitar-se-á aos aspectos religiosos e espirituais de sua
cosmovisão, dimensões que até o momento têm sido negligenciadas tanto por
críticos quanto por admiradores, mais ansiosos por examinar as implicações
políticas e ideológicas de seu pensamento do que as suas fundações metafísicas.
Giulio
Cesare Andrea Evola nasceu
em Roma, a 19 de maio de 1898, em uma família nobre de origem siciliana.
Durante a adolescência, enquanto cursava o ensino técnico em engenharia
industrial, desenvolveu um vivo interesse pela literatura e pela arte
contemporâneas. Conforme relata em sua autobiografia intelectual, Il cammino
del cinabro (A Jornada do Cinábrio), publicada em 1963 e revista em
1972, seus passatempos preferidos eram a pintura — talento natural que possuía
— e as frequentes visitas à biblioteca, onde lia autores como Oscar Wilde,
Friedrich Nietzsche e Otto Weininger.
Quando a
Itália, após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, declarou guerra a seus
antigos aliados, Alemanha e Áustria-Hungria, Evola — que desaprovava tal
“traição” — escreveu um ousado artigo num jornal romano, sustentando que a
participação italiana não deveria ser guiada por motivações nacionalistas,
democráticas ou irredentistas. Essa publicação marcou o início de sua carreira
como escritor antidemocrático e anticonformista.
Aos
dezenove anos, Evola alistou-se no exército, servindo como oficial de
artilharia de montanha. Uma fotografia existente o mostra em impecável
uniforme, com um semblante aristocraticamente impassível, em serviço no front
do planalto de Asiago, no norte da Itália. Ainda que tenha admitido não ter
participado de operações militares de grande vulto, as experiências vividas
naquele ambiente — a escalada das montanhas, o silêncio e a solidão dos picos,
a visão das planícies do alto — deixaram profunda e duradoura impressão em seu
espírito. Entre 1930 e 1942, ele escreveu diversos ensaios sobre o que chamava
de a “dimensão mística do alpinismo”.
Cumprindo
sua própria vontade, após sua morte, suas cinzas deveriam ser dispersas do alto
de uma montanha. Um grupo de discípulos, liderado por dois guias locais,
cumpriu parcialmente o desejo, depositando-as num glaciar do Monte Rosa,
a mais de 4.200 metros de altitude.
Os
primeiros anos de sua vida após a guerra foram marcados por inquietação
espiritual e por uma intensa busca de identidade ideológica. Evola iniciou uma busca
pessoal pelo Transcendente, que acreditava encontrar além dos limites
éticos e espirituais da mentalidade burguesa. Essa busca, guiada por seu
desprezo por tudo o que considerava “demasiado humano” — para usar uma
expressão cara a Nietzsche — e pela aversão às rotinas do cotidiano, levou-o
primeiramente ao movimento dadaísta, vanguarda artística fundada em
Zurique por Tristan Tzara. Assim, Evola tornou-se um dos principais
representantes da breve, mas explosiva, experiência dadaísta italiana. Uma de
suas pinturas dessa fase, Paisagem Interior, 10h30 da manhã, encontra-se
hoje na Galeria Nacional de Arte Moderna de Roma.
Nesse
período, sua busca também o conduziu a experiências com drogas alucinógenas,
como tentativa de atingir estados ampliados de consciência. Seu anseio pelo
Absoluto, por sensações extremas e pelaquilo que os alemães chamam de mehr
als leben (“mais que viver”), frustrado pela contingência da existência
humana, levou-o, aos vinte e três anos, a contemplar o suicídio.
Evola atribuiu sua recuperação desse estado quase maníaco-depressivo à leitura
de um antigo texto theravadin, o Majjhima Nikaya, traduzido para
o italiano entre 1915 e 1920. Nesse texto, descobriu o ensinamento do Buda
sobre o desapego das percepções sensoriais e dos desejos, incluindo o
anseio pela própria extinção. A obra tornou-se uma de suas leituras fundamentais.
Duas décadas depois, serviria como principal fonte primária para seu livro La
dottrina del risveglio (1943; A Doutrina do Despertar, 1951), uma
exposição erudita do budismo primitivo. A qualidade desse estudo foi
reconhecida até em Oxford, onde um exemplar figura entre os acervos do Indian
Institute, e a obra foi instrumental na conversão ao budismo do estudioso
inglês Osbert Moore (Nyanamoli Bhikkhu), tradutor de textos pāli
para o inglês.
Entre
1923 e 1927, Evola dividiu seu tempo entre a universidade e um intenso programa
de leitura da filosofia idealista pós-kantiana.
Quase concluiu sua graduação em engenharia, mas recusou-se a obter o diploma,
por desprezar títulos acadêmicos. Aprendeu alemão para ler Schelling e Hegel
nos originais, enquanto sistematizava suas próprias ideias filosóficas,
influenciadas por Nietzsche, Max Stirner, Novalis, Carlo
Michelstaedter e os personalistas franceses.
Desse período datam suas obras filosóficas iniciais: Saggi sull’idealismo
magico (1925), L’individuo ed il divenire del mondo (1926), Teoria
dell’individuo assoluto (1927) e Fenomenologia dell’individuo assoluto
(1930). Nelas, Evola adota as categorias da liberdade, da ação e
da vontade como chaves hermenêuticas.
Opõe-se tanto ao realismo, que postula a existência objetiva do mundo, quanto
ao idealismo metafísico — especialmente às versões italianas de Croce e Gentile
—, por considerá-las reduções do espírito a mera passividade frente à
realidade.
Inspirando-se
em Schopenhauer (“O mundo é minha representação”) e Stirner (a
recusa de toda autoridade supraindividual, seja “Deus” ou “Humanidade”), Evola
constrói uma filosofia da independência absoluta do Eu.
Defende uma forma de solipsismo epistemológico, no qual o indivíduo
encontra-se só num mundo de maya, e as coisas, a natureza e as pessoas
são ilusões.
Porém, além dessa ilusão, existe o Si mesmo puro, o ātman das
doutrinas hindus, o nous da filosofia grega: um centro impassível de
consciência que nem todos os homens realizam. O “indivíduo absoluto” — ab-solutus,
isto é, liberto de vínculos — é aquele que efetiva essa condição.
Após esse
ciclo filosófico, Evola volta-se ao Hermetismo. Em La Tradizione
Ermetica (1931; A Tradição Hermética), que muitos consideram seu
ponto culminante, ele expõe o núcleo interno e esotérico da alquimia medieval e
das doutrinas herméticas. A obra não passou despercebida a C. G. Jung,
que a elogiou como uma “exposição detalhada da filosofia hermética” e a citou
para sustentar sua própria tese de que “a opus alchemicum trata,
essencialmente, de processos psíquicos expressos em linguagem química
simbólica”.
Durante o
regime fascista, Evola manteve certa simpatia por Mussolini e pela ideologia
fascista, mas seu rigoroso senso de independência e distanciamento interior o
impediu de filiar-se ao Partido. Seu apego à supremacia das ideias sobre a
política e sua defesa de posições esotéricas e tradicionalistas, por vezes
conflitantes com as políticas oficiais, levaram ao fechamento de sua revista La
Torre em 1930, após apenas dez edições.
Embora
tenha criticado o racismo biológico do nazismo e seus imitadores italianos,
Evola elaborou sua própria teoria “espiritual” da raça, exposta em obras como Sintesi
di dottrina della razza (1941), que recebeu o apoio pessoal de Mussolini.
Para ele, o ser humano compõe-se de corpo, alma e espírito — e o espírito,
princípio determinante da relação com o sagrado, a vida e a morte, é o critério
mais elevado.
Assim, defendia que a “raça do espírito” deveria prevalecer sobre a raça
biológica. Seu racismo, portanto, tinha caráter antropológico e hierárquico,
não materialista.
Durante a
Segunda Guerra, Evola viajou com frequência à Alemanha, onde mantinha contato
com representantes da Revolução Conservadora e realizava conferências.
Em 1945, encontrava-se em Viena quando, durante um bombardeio soviético, foi
atingido por estilhaços, ficando paraplégico. Recusando-se a refugiar-se
em abrigos, vagava deliberadamente pelas ruas vazias — gesto que considerava
uma prova de destemor.
Passou um ano e meio hospitalizado e, de volta a Roma, retomou a escrita,
mantendo intensa atividade intelectual até o fim da vida.
Viveu
seus últimos 29 anos confinado a uma cadeira de rodas, sofrendo dores
contínuas, que suportou com serenidade estoica. Em 11 de junho de 1974,
sentindo a proximidade da morte, pediu para ser levado até sua escrivaninha
diante da janela aberta. Inclinou a cabeça e expirou calmamente.
O contato
inicial de Evola com o budismo do Majjhima Nikāya despertou nele o
interesse profundo pela espiritualidade oriental, que aprofundou nos anos 1920
enquanto se afastava tanto do realismo quanto do idealismo europeus.
Rejeitando o modelo do “indivíduo passivo” proposto por tais filosofias, e
adotando as categorias de vontade, poder e ação como vias de libertação,
ele inicia uma busca por técnicas orientais de fortalecimento da vontade e
concentração da consciência.
Em 1923,
escreveu a introdução à tradução italiana do Tao-te Ching, onde elogiou
os princípios taoístas de “transcendência imanente” e “não-ação” (wu-wei).
Nesse mesmo período, o teósofo italiano Decio Calvari o introduziu ao
estudo do Tantrismo, e Evola iniciou correspondência com Sir John
Woodroffe (Arthur Avalon), erudito britânico e tradutor de textos
tântricos, cujas obras utilizou amplamente.
Enquanto René
Guénon exaltava o Vedānta como a quintessência da sabedoria hindu e
afirmava a primazia da contemplação sobre a ação, Evola seguiu caminho oposto.
Contestando a tese guenoniana de que a autoridade espiritual é superior ao
poder régio, escreveu L’uomo come potenza (O Homem como Potência,
1925), mais tarde revisado e reeditado em 1949 sob o título Lo Yoga della
Potenza (O Yoga do Poder).
Esse livro marca a transição entre sua fase especulativa e a fase
“tradicionalista” de sua obra.
A tese
central de O Yoga do Poder é que, nas condições espirituais e sociais do
Kali-Yuga, as vias puramente intelectuais e contemplativas tornaram-se
ineficazes. O caminho que resta ao homem moderno é o da ação consciente e
transformadora.
O tantrismo, definido como sādhana-darśana — um sistema prático e
operante —, propõe técnicas de domínio da energia vital (kundalinī-yoga
e haṭha-yoga) que visam à libertação através do poder.
Ao desafiar o estereótipo ocidental que vê o Oriente como passivo e “místico”,
Evola demonstra que o verdadeiro ensinamento hindu é de natureza ativa e
solar, centrado na potência e no autodomínio.
Décadas
mais tarde, a escritora Marguerite Yourcenar, membro da Academia
Francesa, prestou tributo à obra de Evola, afirmando “o imenso benefício que um
leitor receptivo pode obter de uma exposição como a sua”, e acrescentando que
“o estudo de O Yoga do Poder é particularmente benéfico numa época em
que toda forma de disciplina é ingenuamente desacreditada”.
Sem
dúvida, Julius Evola é uma figura controversa. Em vida, foi um pensador não
conformista, refratário a qualquer sistema; depois da morte, tornou-se
referência para certos círculos neofascistas em busca de um “guru” ideológico.
Contudo, reduzi-lo a um rótulo político seria empobrecer a complexidade
de seu pensamento. Evola permanece uma presença singular — uma espécie de “convidado
de pedra” no cenário intelectual moderno.
Ele
jamais pretendeu dialogar com as massas ou persuadir o público. Sua atitude era
aristocrática e impessoal.
Como disse Thomas Sheehan, “Evola radicaliza uma tendência implícita em
toda filosofia ocidental baseada na primazia da intuição intelectual: ele
rejeita o raciocínio discursivo não por amor ao irracional, mas por afirmar,
com Aristóteles, a superioridade do suprarracional”.
Evola
apontou um caminho íngreme e solitário — alternativa tanto à comunhão
sentimentalista promovida pela modernidade quanto ao individualismo
espiritualizado da New Age.
Difícil de classificar, foi ao mesmo tempo tradicionalista, esoterista,
gnóstico, neopagão e filósofo perene. Para muitos — inclusive para mim —,
continuará sendo o “convidado silencioso”, uma presença intransigente e
desafiante em meio ao pensamento contemporâneo.
Guido
Stucco
Departamento de Estudos Teológicos
Universidade de Saint Louis, Missouri
Introdução do Autor
O termo Tantrismo
designa um vasto corpo de doutrina e prática espiritual que, ao longo dos
séculos, desempenhou papel de importância considerável dentro da tradição hindu.
Trata-se de um sistema que, longe de representar uma degeneração tardia do
Vedānta ou do Yoga clássico, expressa, antes, uma reformulação ativa e heroica dos princípios
metafísicos indianos.
O Tantra é, por assim dizer, o “lado solar” do esoterismo hindu: um caminho de
poder, de integração e de domínio, não de renúncia.
A perspectiva tântrica é fundamentalmente
diferente daquela das escolas ascéticas e devocionais.
Enquanto o asceta comum busca libertar-se do mundo pela negação das forças que
o constituem, o adepto tântrico busca utilizar
essas mesmas forças como meios de realização espiritual.
Ele não teme a energia, mas a reconhece como manifestação de Śakti, o aspecto dinâmico
do Absoluto.
Assim, o Tantra ensina que a libertação não é alcançada por meio da fuga da
vida, mas por sua transmutação consciente.
O ponto central dessa tradição é o
reconhecimento de que o universo não é ilusão, mas poder real do Ser.
A energia cósmica — a Śakti — é o
princípio operativo que anima todas as coisas e que, no homem, manifesta-se
como potência vital, desejo, vontade e consciência.
A tarefa do iniciado é reconduzir essa potência à sua origem transcendente,
restabelecendo a unidade primordial entre Śiva e Śakti — entre o Imutável
e o Mutável, o Espírito e a Energia.
Para as doutrinas ascéticas e moralistas, o
corpo e o mundo são obstáculos à libertação; para o Tantrismo, eles são instrumentos.
Nada é impuro por natureza: tudo pode tornar-se via de ascensão quando dominado
pela consciência.
A matéria, o desejo, a ação e o próprio prazer são vistos como formas veladas
do poder divino.
A função do adepto é despertar
o fogo oculto nessas formas e conduzi-lo ao centro do ser.
A disciplina do Tantra é, por isso, um Yoga do Poder (Śakti-Yoga).
Ela não consiste em repressão, mas em domínio; não em afastar-se, mas em transmutar.
A energia que escraviza o homem comum liberta o herói espiritual (vīra), que sabe inverter seu curso e fazê-la
subir ao alto.
Essa ascensão da força interior é simbolizada pela serpente de fogo, a Kuṇḍalinī, que, despertando na base da
espinha, sobe através dos centros sutis (cakras)
até unir-se a Śiva, no ápice da cabeça.
Tal é o significado da “reintegração”: a energia retornando à consciência, o
movimento dissolvendo-se no imutável.
Este caminho é reservado aos fortes.
O Kularnava-Tantra declara: “Para os
fracos, o Tantra é veneno; para os fortes, é néctar.”
O Vāma-mārga — o chamado “Caminho da Mão
Esquerda” — é particularmente perigoso porque utiliza, em certos casos,
elementos que as religiões comuns consideram profanos ou mesmo condenáveis.
Mas é precisamente por esse uso consciente que o adepto prova seu poder: o
domínio sobre as potências inferiores é a medida da sua realização.
A atitude tântrica é, assim, a de um realismo sagrado.
Ela não nega o mundo, mas o transcende por
meio da posse.
O homem não é chamado a ser vítima da natureza, mas seu senhor.
Não é convidado a destruir seus impulsos, mas a elevá-los ao plano do espírito.
O Tantrismo é a doutrina da identidade
entre o espiritual e o vital, da força como veículo da
consciência.
Esta obra apresenta, portanto, uma exposição
sintética dos princípios do Tantrismo
metafísico, com especial atenção àquilo que pode interessar à
mente ocidental moderna.
Seu propósito é demonstrar que o verdadeiro Yoga
não é um sistema de ginástica espiritual nem um sentimentalismo religioso, mas
uma ciência da consciência
e da energia.
O que aqui chamamos de Yoga do Poder é,
em essência, o mesmo ideal que animava as antigas tradições heróicas e solares
do Ocidente: o domínio de si e o retorno ao centro imutável do ser.
O leitor encontrará nas páginas seguintes uma
análise das doutrinas fundamentais da Śakti,
do simbolismo do corpo sutil, das energias ascendentes, dos mantras, dos ritos
e das duas vias — a da direita (Dakṣiṇa-mārga)
e a da esquerda (Vāma-mārga).
Mas deverá ler tudo isso não
como curiosidade exotérica, e sim como exposição de uma
disciplina interior que exige coragem e lucidez.
Em tempos como o nosso — em que o homem perdeu
o sentido da transcendência, e a energia se tornou pura força cega — o
ensinamento do Tantrismo possui um valor restaurador.
Ele recorda que o poder verdadeiro não é o domínio externo, mas a imobilidade luminosa do espírito;
que o fogo do mundo é o mesmo fogo do ser; e que a salvação não é fuga, mas
vitória interior.
Este é o Yoga do Poder — o caminho
daqueles que, tendo reconhecido o universo como expressão da energia divina,
buscam reabsorvê-lo na luz de
sua origem, tornando-se um com a própria Fonte.
Notas Explicativas
1.
Śakti
— princípio dinâmico e feminino do Absoluto, poder de manifestação.
2.
Śiva
— consciência pura, aspecto imóvel e transcendente do Ser.
3.
Kuṇḍalinī
— energia serpentina adormecida, símbolo do poder latente no homem.
4.
Vīra
— herói espiritual, aquele que domina e sublima as forças da natureza.
5.
Vāma-mārga
/ Dakṣiṇa-mārga — caminhos “da esquerda” e “da direita”:
respectivamente, via ativa e via ascética.
Capítulo I — O Significado e a Origem dos Tantras
Nos primeiros séculos da era cristã — e, de
modo mais pronunciado, por volta do século V — ocorreu uma transformação
peculiar na região em que florescera a grande civilização indo-ariana: surgiu e
consolidou-se uma nova corrente espiritual e religiosa, dotada de
características inéditas quando comparada aos temas dominantes do período
anterior.
Essa corrente penetrou por toda parte e exerceu influência profunda sobre o que
hoje se designa por hinduísmo;
repercutiu nas escolas de yoga,
nas especulações pós-upanishádicas e nos cultos de Vishnu e Shiva.
Dentro do budismo,
deu origem a uma vertente nova, conhecida como Vajrayāna — “o Caminho do
Diamante” ou “Caminho do Trovão”.
Por fim, mesclou-se a diversas formas de cultos populares e práticas mágicas,
de um lado, e a doutrinas de caráter estritamente esotérico e iniciático, de
outro.
Essa nova corrente é o Tantrismo.
Em última instância, ela produziu uma síntese dos principais motivos da
espiritualidade hindu, dando-lhes expressão particular e formulando sua própria
metafísica da história.
O termo Tantra (literalmente “trama”,
“tratado”, “tecido”), derivado da raiz tan
— que significa “estender”, “desdobrar”, “desenvolver” —, e seu correlato Āgama (“aquilo que desceu”, “o que foi
transmitido”), designam textos que pretendem ser uma continuação e um
desenvolvimento ulterior dos ensinamentos tradicionais contidos nos Vedas, nos Brāhmaṇas, nos Upanishads e nos Purāṇas.
Por essa razão, os Tantras reivindicam para si
a dignidade de um “quinto Veda”,
ou seja, uma revelação suplementar, adaptada às novas condições do ciclo humano.
A essa pretensão somou-se a doutrina hindu das quatro eras do mundo (yuga).
Segundo ela, os ensinamentos e práticas que foram eficazes na primeira idade —
o Kṛta ou Satya Yuga, a “Idade de Ouro” — já não são adequados aos
homens das eras posteriores, sobretudo na última, a Kali Yuga, a “Idade
Sombria” ou “Idade de Ferro”.
Para esses tempos de declínio, afirmam os Tantras, o caminho eficaz não está
mais nos Vedas nem nos ritos brahmânicos, mas na via do poder, na śakti-sādhana, a prática baseada na energia
divina.
Diz-se que todos os demais caminhos tornaram-se impotentes, “como uma serpente
a quem se arrancou o veneno”.
Embora não rejeite a antiga sabedoria, o
Tantrismo se caracteriza por uma reação tríplice:
(1) contra o ritualismo vazio e mecânico;
(2) contra a especulação meramente teórica e contemplativa; e
(3) contra o ascetismo unilateral, mortificante e penitencial.
Em oposição à via contemplativa, ele propõe uma via de ação, de realização prática e de
experiência direta.
Sua palavra de ordem é prática
(sādhana, abhyāsa).
Trata-se do que poderíamos chamar de uma “via
seca” — expressão que recorda o caminho árido
da tradição hermética —, análoga ao impulso original do budismo primitivo, que
reagira contra o brahmanismo degenerado e seus rituais vazios.
Um dos textos tântricos observa significativamente:
“É coisa feminina estabelecer superioridade
por meio de argumentos; é coisa viril conquistar o mundo pela força.
O raciocínio, a disputa e a inferência pertencem a outras escolas (śāstras); a tarefa dos Tantras é realizar
fatos sobre-humanos e divinos pela potência de suas próprias palavras de poder (mantras).”
Outro texto acrescenta:
“A virtude especial do Tantra reside em seu
método de sādhana.
Ele não é mera adoração (upāsanā), nem
prece, nem lamento diante da divindade.
É a união de Puruṣa e Prakṛti, a junção do Princípio Masculino e
do Elemento Materno no próprio corpo, o esforço para tornar o condicionado
incondicionado.
Essa sādhana deve ser praticada mediante
o despertar das forças internas do corpo.
Não é mera filosofia, nem simples reflexão sobre palavras ocas, mas algo a ser
feito de modo estritamente prático.
Dizem os Tantras: ‘Começa a prática sob a orientação de um bom guru; se não obtiveres resultado imediato,
podes abandoná-la.’”
Por isso, os Tantras comparam-se à medicina: a
eficácia de uma doutrina, como a de um remédio, prova-se pelos resultados — os siddhis, ou poderes — que ela produz.
Um texto afirma: “Os siddhis da Yoga não
se obtêm com roupas de iogue nem com conversas sobre Yoga, mas somente pela
prática incansável. Eis o segredo do êxito; não há dúvida quanto a isso.”
A referência ao corpo, contida nos textos
acima, introduz outro ponto essencial.
Segundo a análise tântrica da Kali Yuga, o homem atual encontra-se inseparavelmente ligado ao corpo
e já não pode dele prescindir; por isso, o caminho que lhe resta não é o do
puro desapego — como nas formas clássicas de Yoga ou no budismo inicial —, mas
o do conhecimento e domínio
das energias secretas encerradas no corpo.
Outra característica dessa era é a dissolução.
Durante a Kali Yuga, o “touro do dharma” permanece apenas sobre uma pata:
perdeu as outras três nas eras anteriores.
Isso significa que a Lei
tradicional vacila, reduzida à sombra de si mesma.
Mas, ao mesmo tempo, a deusa Kālī,
adormecida nas eras anteriores, agora desperta plenamente.
Evola explica que essa imagem indica o desencadeamento das forças elementares, infernais e abissais
que dominam o ciclo final.
A tarefa do homem espiritual é enfrentá-las e assimilá-las — “montar o tigre”, como diz
o provérbio chinês, ou, nos termos dos próprios Tantras, “transformar o veneno em remédio”.
É nesse contexto que se insere o Tantrismo
da Mão Esquerda (Vāmācāra),
o “Caminho da Mão Esquerda”, com seus rituais ousados e suas práticas
orgiásticas e sexuais de caráter iniciático — os quais, para Evola, representam
uma das expressões mais fascinantes dessa tradição.
Declara-se, assim, que — diante das condições
da era sombria — certos ensinamentos
outrora secretos podem agora ser revelados, ainda que
parcialmente, não sem advertência quanto ao perigo que representam para os não
iniciados.
É daí que brota o caráter esotérico e iniciático do Tantrismo.
Outro aspecto decisivo: o Tantrismo substitui
o ideal de mera “libertação” (mokṣa)
pelo ideal de liberdade ativa
(svatantrya).
Já se conhecia o tipo do jīvanmukta, “o
liberto em vida”, aquele que alcançou o incondicionado (sahaja) sem abandonar o corpo.
Mas o Tantra acrescenta um elemento novo: a superação da antítese entre gozo do mundo
e ascese.
Enquanto nas outras escolas uma coisa exclui a outra, aqui se declara:
“Na via que seguimos, esses opostos se unem.”
Forma-se, assim, uma disciplina que permite ao
adepto permanecer livre e
invulnerável mesmo em meio ao gozo dos sentidos.
O mundo, portanto, deixa de ser interpretado como māyā — mera ilusão —, e passa a ser visto como potência, śakti.
Essa coexistência paradoxal entre transcendência interior e afirmação do mundo
exprime-se no símbolo central do Tantra: a união de Śiva e Śakti, o
Impassível e a Ardente, a Consciência e a Energia.
Surge daí um dos elementos mais
característicos do Tantrismo: o Śaktismo.
No vasto movimento tântrico, ocupa posição central a figura da Deusa — a Mulher
Divina —, nas suas múltiplas manifestações, sobretudo Kālī e Durgā.
Ela pode ser apresentada isoladamente, como princípio supremo do universo, ou
acompanhando os deuses masculinos — e mesmo os budas e bodhisattvas do budismo
tardio — como sua força ativa, sua energia.
Daí a proliferação de casais
divinos, nos quais o elemento feminino não é secundário, mas
coessencial, e muitas vezes predominante.
Do ponto de vista histórico, o Śaktismo possui
raízes arcaicas e exógenas: ele provém de uma espiritualidade autóctone,
análoga à das civilizações pré-helênicas do Mediterrâneo — a dos pelasgos,
cretenses e povos da Ásia Menor.
As “Deusas Negras” da Índia, como Kālī e Durgā, correspondem às Deméter Melaina, Cibele, Diana de Éfeso,
Diana de Táuris, e até às “Madonas Negras” do cristianismo
popular.
Nessas culturas antigas, centradas no culto da Grande Mãe, o princípio
feminino possuía importância que a tradição ariano-védica — viril e patriarcal
— não reconhecia.
Com a penetração ariana, esses cultos foram relegados ao subsolo; mas o
Tantrismo os reintegrou, conferindo-lhes um significado metafísico e
iniciático.
Metafisicamente, o casal divino simboliza os dois polos de todo princípio cósmico:
o deus representa o aspecto imóvel e transcendente; a deusa, o aspecto
dinâmico, imanente, a energia que age — a vida
frente ao ser.
O surgimento do Śaktismo na Kali Yuga reflete, pois, um deslocamento de perspectiva,
um interesse crescente pelos princípios imanentes e ativos da realidade, sem
contudo negar a transcendência.
A própria palavra śakti deriva da raiz śak
(“ser capaz”, “ter poder de agir”), significando literalmente poder.
A visão de mundo que nela se expressa é, portanto, uma visão do mundo como
potência.
Evola observa que, na escola tântrica da Caxemira,
essa noção foi elevada a uma metafísica de alto nível: a Śakti deixa de ser figura maternal e passa a ser o princípio ontológico primeiro,
o brahman ativo, unindo-se às doutrinas
do Vedānta e do Mahāyāna, mas reinterpretadas sob um viés energético e
dinâmico.
Não surpreende, assim, que o Tantrismo e o
Śaktismo tenham fomentado a proliferação de práticas mágicas, às
vezes degeneradas em feitiçaria ou rituais populares de origem pré-ariana.
Contudo, mesmo essas práticas orgiásticas ou sexuais puderam, em certos contextos,
ser elevadas a uma dimensão iniciática.
As divindades femininas diferenciam-se em dois grupos: as luminosas e benéficas (Pārvatī, Umā, Lakṣmī, Gaurī) e as terríveis e sombrias (Kālī, Durgā, Bhairavī, Caṇḍī, Cāmuṇḍā).
Essa distinção, porém, não é absoluta: a mesma deusa pode manifestar-se sob um
ou outro aspecto conforme a atitude interior do devoto.
As formas luminosas conservaram traços
maternais e tornaram-se objeto de cultos
devocionais (bhakti),
paralelos ao Tantrismo, mas mais acessíveis às massas.
A experiência mística (rasa), o êxtase
emocional e a identificação afetiva com a divindade marcaram essa vertente,
fazendo da “Mãe Divina” o equivalente hindu da “Mãe de Deus” do cristianismo
popular.
Já as deusas sombrias — Kālī e Durgā — presidem à via tântrica propriamente dita,
a Via da Mão Esquerda,
associada a Śiva,
senhor da dissolução e do poder transcendente.
Enquanto Brahmā representa a criação e
Vishnu a conservação, Śiva encarna a destruição e a
transcendência.
A Dakṣiṇācāra (Via da Mão Direita)
corresponde às duas primeiras funções; a Vāmācāra,
à terceira.
Em síntese, o Tantrismo pode ser definido
por:
1.
uma metafísica
do poder (śakti);
2.
uma prática
de realização (sādhana),
visando à autotransformação;
3.
e um ritualismo
mágico-iniciático, fundado no uso do mantra — não como oração, mas como palavra de poder.
Por isso, em certas vertentes, o Tantrismo foi chamado de Mantrayāna, o “Caminho do
Mantra”.
Em sua vertente mais específica — o Haṭha-Yoga
ou “Yoga da Força” —, manifesta-se como Yoga da Serpente (Kuṇḍalinī-Yoga), ciência da “corporeidade
oculta” e das correspondências microcósmicas e macrocósmicas.
A respiração e o sexo são, na Kali Yuga, os dois instrumentos últimos ainda
disponíveis ao homem; sobre eles se funda toda a sādhana.
No Yoga
clássico de Patañjali, o acento recai
sobre o domínio da respiração (prāṇāyāma);
no Tantra, sobre o domínio da energia
vital e sexual.
Nas escolas mais elevadas da Via da Mão Esquerda — Siddhāntācāra e Kulācāra
—, consideradas pelas escrituras (Kularṇava-Tantra,
Mahānirvāṇa-Tantra) como as formas
supremas, o objetivo já não é apenas a libertação, mas a liberdade divina do
homem-deus (divya), aquele que
transcendeu a condição humana e está além de qualquer lei.
O estado supremo é descrito como a união
de Śiva e Śakti, símbolo da reintegração de ser e poder.
No budismo tântrico, essa realização é chamada mahāsukhakāya, o “corpo da grande bem-aventurança”,
condição superior mesmo ao dharmakāya,
a essência de todos os budas.
O estudo moderno do Tantrismo no Ocidente
deve muito ao trabalho de Sir
John Woodroffe (Arthur Avalon), que, no início do século XX,
traduziu e comentou extensamente textos fundamentais dessa tradição.
Também se destacam W.
Y. Evans-Wentz, Kazi
Dawa-Samdup, De
la Vallée Poussin, Von
Glasenapp, Giuseppe
Tucci, Heinrich
Hoffmann, e, sobretudo, Mircea Eliade, cuja obra Yoga: Imortalidade e Liberdade (1954)
contém valioso material sobre o tema.
Antes desses estudiosos, o Tantrismo era quase desconhecido fora da Índia, e,
quando mencionado, era pintado sob luz sinistra — como “a mais negra das
magias” —, resultado da ignorância ou do preconceito puritano diante de
práticas incompreendidas.
Esta apresentação — observa Evola —, baseada
sempre que possível em citações diretas dos textos originais (em particular os
publicados por Woodroffe), tratará essencialmente dos aspectos doutrinais e práticos do
Tantrismo.
O autor ressalta que o Tantrismo é uma síntese, ou melhor, um complemento das doutrinas anteriores.
Assim, exporá também os ensinamentos tradicionais que nele se integram, de modo
que o leitor obtenha, por meio desta obra, uma visão de conjunto da tradição hindu sob o
prisma tântrico.
Por fim, o autor declara que não pretende
acrescentar nada de arbitrário ou pessoal.
Contudo, ao interpretar um saber esotérico — que constitui o cerne do Tantrismo
—, é necessário “ler nas entrelinhas”, comparar tradições paralelas e recorrer
à experiência interior.
Seu princípio metodológico, afirma, é manter distância equidistante
entre o positivismo erudito da academia e as especulações fantasiosas do
espiritualismo moderno.
Capítulo II — Conhecimento e Poder
O Tantrismo, ao enfatizar a autotransformação e
o domínio das forças interiores, recupera e reforça aquilo que se pode
denominar “conhecimento tradicional”,
de natureza metafísica e não profana.
Tal forma de saber esteve presente, desde as origens, não apenas na Índia, mas
em todas as civilizações tradicionais de tipo superior, anteriores à ascensão
do mundo moderno. Convém, portanto, esclarecer os pressupostos implicados nesse
tipo de conhecimento.
Na Índia, existia uma metafísica fundada na “revelação” (ākarṣaṇa, śruti),
termo este que, diferentemente do uso corrente nas religiões monoteístas, não
designa um ato divino dirigido exteriormente ao homem, como se a divindade
comunicasse uma mensagem a receptores passivos.
No contexto hindu, śruti refere-se antes
àquilo que foi visto
ou percebido
diretamente por determinados indivíduos — os ṛṣi
—, cuja grandeza interior está na origem da tradição.
A palavra ṛṣi,
derivada da raiz dṛś (“ver”), significa
literalmente “aquele que viu”.
Os próprios Vedas, fundamento de toda
ortodoxia hindu, tomam seu nome da raiz vid,
que significa simultaneamente “ver” e “conhecer”: trata-se, portanto, de um
conhecimento de natureza imediata e intuitiva, análogo ao ato da visão.
O paralelo ocidental encontra-se na Grécia antiga, onde o termo “ideia”,
derivado de id, da mesma raiz
indo-europeia vid, remetia originalmente
a uma visão intelectual
direta.
A tradição (śruti) constitui, assim, o
registro e a transmissão do que esses videntes contemplaram de modo
supraindividual e sobre-humano.
Nessa dimensão interior e essencial repousa o fundamento de toda a metafísica
hindu.
Em face de um saber que se apresenta nesses
termos, as atitudes possíveis são duas — e apenas duas.
Primeira: aceitar por confiança, acreditando na autoridade e na veracidade do
transmissor, como quem ouve o relato de alguém que visitou uma terra longínqua.
Segunda: buscar pessoalmente a verificação, empreendendo a “viagem” por si
mesmo, isto é, praticando os métodos que permitam reproduzir a experiência
original.
Essas são as únicas posturas sensatas diante da afirmação de um ṛṣi, caso não se queira ignorar inteiramente
a ordem do metafísico.
Não se trata, pois, de uma filosofia abstrata ou de dogmas; trata-se de dados de experiência,
acompanhados dos meios práticos para
comprová-los.
No Ocidente cristão, apenas a mística — definida pela
teologia como cognitio experimentalis Dei,
“conhecimento experimental de Deus” — conservou, ainda que sob forma emocional
e religiosa, algo desse método de verificação interior.
Mas, diferentemente do que se encontra no Tantrismo, a mística cristã apoia-se
na afetividade, não na intelecção pura, e permanece subordinada à fé.
Ora, os Tantras
sustentam com vigor o mesmo princípio: a exposição teórica da doutrina, por si
só, não tem valor algum.
O essencial é o método prático de realização, o conjunto de meios e ritos
mediante os quais certas verdades ocultas se tornam objeto de experiência
direta.
Por essa razão, os Tantras se definem como sādhana-śāstra
— tratados de prática.
A palavra sādhana deriva da raiz sādh, que significa “exercer vontade,
aplicar esforço, treinar-se com vistas a um resultado”.
Um autor tântrico escreve:
“O público em geral ignora os princípios do Tantra-śāstra.
A causa dessa ignorância é simples: o Tantra-śāstra
é um sādhana-śāstra, e a maior parte de
seu conteúdo só se torna inteligível mediante a prática.”
Assim, não basta professar a teoria da
identidade entre o ātman (o Eu profundo)
e o brahman (o princípio do universo),
nem permanecer ocioso “pensando vagamente no éter da consciência”.
Os Tantras negam valor a esse tipo de saber inerte.
O verdadeiro conhecimento exige transformação
pela ação; daí o primado da kriyā,
da ação eficaz.
O Budismo Tântrico, o Vajrayāna,
expressará simbolicamente essa união entre conhecimento e poder através da imagem da união sexual
entre upāya (o método eficaz, masculino)
e prajñā (o conhecimento, feminino).
Nos graus mais elevados, essa concepção
aplica-se também ao culto
ritual (pūjā)
e ao conhecimento da natureza.
No culto, vigora o princípio de que “não se pode adorar um deus sem tornar-se o
próprio deus”.
Não há, portanto, dualismo religioso, mas identificação experimental com o divino.
No que concerne às ciências naturais, o
contraste entre o saber tradicional e o saber moderno é igualmente radical.
Segundo a visão contemporânea — que, sob o ponto de vista hindu, caracteriza o
estágio final da “Idade Sombria” —, só é possível conhecer a realidade por meio
de suas manifestações sensíveis ou de suas extensões instrumentais.
A ciência positiva reúne e organiza dados fornecidos pelos sentidos,
selecionando entre eles apenas os quantificáveis, mensuráveis, “computáveis”, e
excluindo o elemento qualitativo.
Com base nesses dados, elabora leis e teorias abstratas, cuja validade depende
de verificações experimentais sempre provisórias.
A filosofia moderna, por sua vez, fragmenta-se
numa multiplicidade de sistemas subjetivos, desprovidos de evidência direta.
O conhecimento torna-se ou empírico
e sensorial, ou abstrato
e conceitual — em ambos os casos, separado da experiência
integral do ser.
Desaparece o ideal da intuitio intellectualis,
a visão intelectual direta que unia conhecer e ser, ainda reconhecida na Idade
Média.
Em Kant, esse ideal é declarado impossível: a intuição intelectual é
reconhecida apenas como faculdade divina.
O homem, segundo ele, limita-se a conhecer fenômenos, nunca a “coisa em si” (noumenon).
Mas nas doutrinas esotéricas, inclusive nas hindus, essa limitação é superável.
O Yoga — em suas diversas formas — é precisamente a ciência dessa superação.
A realidade, ensinam os Tantras, não se divide entre um
mundo aparente e outro “essencial” e inacessível.
Há uma só realidade, pluridimensional,
que se revela segundo o nível de consciência do observador.
O que se modifica não é o objeto, mas o sujeito.
O homem comum, prisioneiro do corpo e do tempo, percebe apenas a superfície
sensorial; o ṛṣi, o yogin ou o siddha ultrapassa
esse véu e alcança o que Evola chama de “experimentalismo
transcendental integral”.
A diferença entre o conhecimento relativo e o
absoluto, portanto, não reside no objeto conhecido, mas no modo de percepção.
A passagem de um a outro exige uma mudança ontológica — uma mutação do ser.
A via do Tantra é, assim, inseparável da ação
transformadora, pois só quem se transformou pode conhecer
verdadeiramente.
Daí a crítica evoliana à ciência moderna:
embora ela amplie indefinidamente o poder do homem sobre as coisas, não o transforma interiormente.
O físico que conhece as leis do fogo ainda se queima; o médico que compreende
as paixões ainda é escravo delas; o técnico que domina as forças da matéria
permanece sujeito ao tempo, à dor e à morte.
A ciência moderna desvela mecanismos, mas petrifica o mundo:
torna-o mudo e dessacralizado.
As emoções estéticas que restam — as do poeta ou do artista — são meramente
subjetivas, sem valor metafísico.
O último refúgio do cientista moderno é o argumento do poder: “a
prova de que nossa ciência é verdadeira está nos resultados práticos”.
Mas — responde Evola — trata-se de um equívoco
fundamental quanto ao sentido do poder.
A força tecnológica é poder
relativo, externo, inorgânico e condicionado.
Ela opera mediante a obediência às leis naturais, não pela sua superação.
A ação técnica não é livre: depende de causas intermediárias — máquinas,
instrumentos, fórmulas — que o homem utiliza, mas não compreende em essência.
É um poder derivado, e portanto precário.
O verdadeiro
poder, ao contrário, é aquele que suspende, curva ou modifica as leis da
natureza, e pertence apenas aos seres superiores.
A condição para tal poder é a superação
da condição humana — aquilo que os hindus chamam bhūtātman, o “Eu elementar”.
Daí o axioma de todas as escolas de Yoga e de sādhana: “O
homem é algo que deve ser superado”, frase que Evola reconhece
em Nietzsche, mas tomada aqui em sentido integral e iniciático.
Transcender a humanidade mortal é o
pré-requisito de todo verdadeiro siddhi
— poder ou perfeição.
Os siddhis não são o fim da via, mas
seus efeitos naturais.
Eles manifestam o grau de elevação ontológica alcançado.
Não são transferíveis nem “democratizáveis”: pertencem exclusivamente a quem
realizou a transformação interior.
Daí a ruptura entre o mundo tradicional e o
moderno.
O saber e o poder modernos são “democráticos”: qualquer pessoa inteligente pode
adquiri-los com instrução técnica.
Mas o saber tradicional é hierárquico
e iniciático: exige qualificação interior, diferenciação do ser.
Os poderes modernos podem ser exercidos por loucos ou sábios — um revólver mata
igualmente em mãos de ambos.
O siddhi, ao contrário, só manifesta-se
no ser que o mereceu pela ascensão interior.
Ele é o poder do ser,
não o poder sobre as coisas.
Nos mundos tradicionais, essa diferença se
refletia na própria organização social.
As ciências materiais eram relegadas a um plano secundário; o essencial era a
vida orientada para os planos
superiores do ser.
Essa atmosfera espiritual subsistiu, em certos lugares, até tempos
relativamente recentes.
Evola acrescenta então duas observações
complementares.
A primeira diz respeito à concepção tradicional da natureza.
Enquanto a ciência moderna reduz os fenômenos às dimensões de extensão e
movimento, as doutrinas indianas desenvolveram uma física qualitativa e simbólica,
em que os “elementos” (mahābhūta),
“átomos” (paramāṇu) e “potências
sutis” (tanmātra) correspondem a
qualidades sensíveis e estados de consciência.
Esses princípios não são abstrações: podem ser objetos de percepção direta
quando se ativam as faculdades superiores da Yoga.
Trata-se, portanto, de uma ciência da experiência interior, não de mera
especulação.
O grau supremo desse conhecimento é aquele
em que ser e saber coincidem,
em que desaparece a dualidade sujeito–objeto.
É o estado de samādhi, meta última do jñāna-yoga.
Mas, na metafísica tântrica, a essência de tudo é Śakti, o Poder.
O universo é manifestação de energia, e a realização espiritual é o despertar
dessa mesma energia no homem.
O processo cósmico é descrito como o movimento de Śakti: primeiro exteriorizada e inconsciente, depois
desperta, consciente (cit-rūpiṇī-śakti),
e finalmente reunida ao seu princípio masculino, Śiva.
O mesmo processo deve repetir-se no interior do adepto através da prática do Haṭha-Yoga tântrico,
formando o fundamento de uma doutrina de certeza ontológica.
Um comentarista tântrico observa:
“As coisas são poder; e o poder de uma coisa
não depende do reconhecimento intelectual.
Pode o homem chamar o mundo de ilusão, mas o karma, a força da ação, obrigá-lo-á a crer nele.”
Enquanto se permanece numa relação passiva diante das manifestações de Śakti, persistem as dúvidas e os
questionamentos.
Esses cessam apenas quando, pela prática, o indivíduo desperta em si o
princípio de Śiva, tornando-se centro
radiante e senhor das forças.
Nesse estado, surge uma evidência
suprarracional, uma certeza unida ao poder.
Assim se afirma:
“Toda Escritura é apenas um meio.
Ela é inútil para aquele que ainda não conheceu a Deusa (Devi = Śakti), e também inútil para aquele que já a
conheceu.”
Recorda-se, ainda, o ensinamento dos Upanishads:
“Mergulham nas trevas aqueles que adoram a
ignorância; em trevas ainda maiores, os que se comprazem apenas no
conhecimento.”
E acrescenta:
“Aqueles que alcançaram o saber verdadeiro lançam fora os livros como se
estivessem em chamas.”
Essas palavras visam aos vedantinos extremados,
seguidores de Śaṅkara,
que sustentam ser o mundo mera ilusão (māyā).
Os Tantras respondem com realismo espiritual:
Do ponto de vista do Absoluto, é certo que o mundo não possui existência
independente; mas quem professa tal doutrina — é ele o próprio Brahman, ou um
ser humano condicionado?
Se é humano, está em māyā; e, sendo
assim, sua própria doutrina pertence à ilusão que pretende negar.
Logo, afirmar que “tudo é irreal” é, em si mesmo, um ato de irrealidade.
Os Tantras concluem que o mundo pode ser māyā para o sábio consumado (siddha), mas não o é para o homem comum.
Enquanto se vive na condição humana, o
mundo é uma realidade que não pode ser negada.
A insistência vedântica em considerar o universo mera aparência destruiria a
própria possibilidade do yoga e da sādhana, pois “é impossível que algo se transforme
em sua própria contradição”.
O homem é mente e corpo; se mente e corpo são falsos, como poderia o falso
conduzir ao verdadeiro?
A via tântrica, portanto, funda-se na continuidade
entre o relativo e o absoluto, entre o condicionado e o
incondicionado, pois é através da energia do mundo — e não pela fuga dele — que
o adepto ascende ao princípio supremo.
Capítulo III — Śakti: O Mundo como Poder
O ponto de partida de toda metafísica tântrica é
o reconhecimento do mundo
como manifestação de energia consciente.
A realidade, segundo o Tantra, não é substância imóvel, nem essência passiva,
mas força em ato,
śakti.
A potência não é simples atributo da divindade — ela é o próprio princípio
divino em sua manifestação ativa.
No mais alto nível, o Ser é concebido como o
par Śiva–Śakti:
Śiva, o princípio masculino, representa o polo imóvel, transcendente,
silencioso;
Śakti, o princípio feminino, é o poder que o move, a energia criadora, a
vibração original.
Nenhum dos dois existe isoladamente: Śiva
sem Śakti seria como um cadáver, pura potencialidade sem
manifestação;
Śakti sem Śiva seria força cega e sem direção.
Da união dinâmica desses dois aspectos surge o cosmos, que é, portanto, energia consciente.
Nas escrituras tântricas, a realidade suprema
é frequentemente chamada Paraśiva, “Śiva
supremo”, ou Brahman; mas ela é definida
não como simples ser, e sim como ser-consciência-poder
(sat-cit-śakti).
Esse triplo aspecto corresponde às dimensões ontológica, cognitiva e dinâmica
do Absoluto.
O mundo é a exteriorização desse poder, não uma criação no sentido teológico de
um ato temporal, mas uma emanação
eterna, um movimento de vibração interna que parte do Princípio
e a ele retorna.
Evola observa que essa concepção substitui a noção metafísica de causa eficiente pela de processo ontológico cíclico,
expressão do poder autogerado do Ser.
1. A Natureza de Śakti
O termo śakti
deriva, como já foi dito, da raiz śak,
“ser capaz, agir, exercer poder”.
Nos textos védicos, designa a potência de um deus, sua capacidade operativa;
nos Tantras, essa potência é elevada ao estatuto de princípio supremo.
A Śakti é a realidade dinâmica do
cosmos, o poder imanente que sustenta todas as formas e processos.
Ela é o “lado ativo” do Ser, sem o qual não haveria manifestação nem
consciência.
Nos textos da Caxemira, particularmente na
escola do Trika,
encontramos uma formulação precisa dessa doutrina.
Segundo o Śiva-Sūtra, “a consciência é
Śiva”; mas essa consciência, enquanto autoconsciência criadora, é Śakti.
A consciência pura — cit — contém em si
mesma o impulso de manifestar-se, de conhecer-se, de refletir-se; esse impulso
é o poder criador, a vimalā-śakti, “a
energia sem impureza”.
A criação, portanto, não é algo que se acrescente ao Ser, mas um ato interno da consciência:
o Absoluto se contempla e, contemplando-se, gera o universo como reflexo de si.
Esse processo é descrito por meio de uma série
de vibrações ou pulsações, chamadas spanda
— literalmente, “movimento, palpitação”.
O spanda é a primeira diferenciação do
imutável: a vibração da consciência absoluta que, permanecendo una, torna-se
múltipla.
É o mistério da imanência
sem perda da transcendência.
A multiplicidade do mundo é apenas o desdobramento de ritmos do poder divino.
Por isso, as escrituras afirmam que “Śakti é o coração de Śiva”; e também:
“Tudo o que se move é Śakti”.
Evola nota que aqui encontramos uma concepção
de tipo panteísta dinâmico,
mas que transcende o panteísmo vulgar.
Não se trata de identificar Deus à soma das coisas, mas de reconhecer nas
coisas o movimento do poder
divino.
Assim como uma centelha contém o fogo, cada forma é expressão temporária da
força una que anima o todo.
2. Śakti como Consciência e Poder
Enquanto no Vedānta clássico o Absoluto é
pensado como pura consciência (cit) sem
dualidade, imóvel e inativa, o Tantrismo acrescenta: essa consciência é também poder autoconsciente (svatantrya-śakti).
A consciência não é apenas luz que ilumina, mas fogo que age.
O termo svatantrya — literalmente
“autonomia, liberdade de agir por si mesma” — define a natureza essencial de
Śakti: ela é o poder de auto-determinação da realidade suprema.
Assim, o Ser não é contemplativo, mas criador; não é estático, mas
autodinâmico.
O movimento do universo é, por conseguinte, ato de liberdade divina.
Evola sublinha que essa ideia aproxima o Tantrismo de certas concepções da
filosofia ocidental, como o “ato puro” de Aristóteles e a vis activa de Leibniz, mas vai além delas: aqui o ato não é
mera atualização de uma potência preexistente, mas automanifestação infinita.
A Śakti
é, ao mesmo tempo, consciência
e energia, cit-śakti.
Não há oposição entre espírito e matéria, entre sujeito e objeto; são dois
polos de uma mesma vibração.
O cosmos inteiro é consciência em graus diversos de densidade.
A matéria é cit-ghana, “consciência
condensada”.
Por isso, o mundo não é māyā no sentido
de ilusão, mas māyā-śakti, poder de
manifestação.
A ilusão consiste apenas em tomar
a manifestação como absoluta, esquecendo seu caráter de
vibração do Uno.
Dessa visão decorre uma ontologia da graduação do ser:
desde a pureza imutável de Śiva até a densidade da matéria, tudo é variação de
um mesmo poder.
As escolas tântricas enumeram trinta e seis tattvas
ou princípios, que representam o encadeamento progressivo do Absoluto até o
mundo físico.
Evola os compara aos “degraus de condensação da energia divina”, numa escala
que vai da pura consciência até o elemento terra (pṛthivī).
O homem participa desse mesmo processo: em sua
constituição interior, os tattvas
correspondem a centros energéticos (cakras)
e correntes sutis (nāḍīs).
A prática tântrica visa reverter
o movimento descendente da criação, conduzindo novamente as
energias para o princípio — a “retomada de Śakti por Śiva”.
É o caminho da reintegração: o poder do cosmos regressa à consciência pura.
3. Śakti e a Polaridade Cósmica
Toda manifestação é polar.
A realidade se expressa por pares de opostos que se implicam mutuamente: luz e
trevas, masculino e feminino, repouso e movimento, ser e vir-a-ser.
Essa polaridade universal reflete a dualidade originária de Śiva e Śakti.
Evola nota que, longe de ser dualismo metafísico, trata-se de um monismo polar: uma única
essência se manifesta em dois modos complementares.
A união dos opostos, simbolizada pela cópula divina (maithuna), é o princípio estruturante do universo.
Nos textos tântricos, essa união é descrita de
forma plástica:
Śiva é comparado a um cadáver branco, imóvel; Śakti, à mulher vermelha que o
envolve e o desperta.
A cor branca simboliza a consciência pura; a vermelha, a energia vital.
O mundo nasce desse abraço eterno — o yamala,
a conjunção dos dois princípios.
Cada aspecto da existência é, assim, uma tensão erótica entre consciência e
poder.
O microcosmo humano reproduz esse mesmo
mistério.
No corpo, a energia divina dorme na base da coluna como uma serpente enroscada
— kuṇḍalinī-śakti.
A realização espiritual consiste em despertá-la e fazê-la ascender até o alto
da cabeça, onde se une a Śiva no sahasrāra-cakra.
Esse processo repete, em escala interior, o movimento cósmico de retorno da
energia à consciência.
Por isso, o homem é chamado micro-Brahmānda,
o “pequeno universo”: nele estão contidos os mesmos polos e potências do
macrocosmo.
4. Śakti como Deusa
Nos textos devocionais e iconográficos, Śakti
aparece sob inúmeras formas femininas.
Essas formas correspondem às diferentes funções do poder cósmico.
A mais terrível é Kālī,
“a Negra”, deusa do tempo e da dissolução;
a mais benigna é Pārvatī
ou Umā,
consorte serena de Śiva;
entre ambas situam-se Durgā,
guerreira e libertadora, Tārā,
a salvadora, e outras.
Cada deusa é um aspecto da mesma energia suprema.
O simbolismo de Kālī é particularmente
revelador.
Ela é representada nua, com o cabelo solto, pisando o corpo de Śiva adormecido,
a língua estendida, ornada de colar de crânios.
Tudo nela exprime poder em estado puro,
despido de toda limitação.
Destruidora do mundo, é também libertadora das almas, porque dissolve as formas
e restitui tudo à origem.
O terror que inspira é o reverso de sua função redentora.
Assim, aquilo que para o ignorante é morte, para o iniciado é libertação.
Evola observa que o culto das formas terríveis
da Deusa constitui o núcleo da Via
da Mão Esquerda (Vāmācāra).
Nela, as forças sombrias da natureza são assumidas e transmutadas em
instrumentos de ascensão.
O adepto não foge do terrível: enfrenta-o, dominando-o e integrando-o.
“Quem vê Kālī e não treme — dizem os textos —, esse é o herói supremo.”
O medo é o limite do ego; atravessá-lo é vencer a ignorância.
5. Śakti e a Unidade do Conhecimento
A doutrina de Śakti implica uma visão do saber
diferente da que domina o pensamento moderno.
Conhecer não é observar, mas participar;
não é descrever um objeto exterior, mas tornar-se
o que se conhece.
Na medida em que todo o real é poder, o ato de conhecer é também um ato de
poder:
o sujeito apreende o objeto porque desperta nele a mesma energia que constitui
o objeto.
Assim, o conhecimento é um modo de união — o intelecto é uma forma de śakti.
É nesse sentido que as escrituras declaram:
“Quem conhece Śakti, conhece o mundo; e quem
conhece o mundo, conhece Śakti.”
No nível supremo, conhecer e criar coincidem.
O adepto torna-se criador porque alcançou a consciência do poder que gera o
universo.
Evola chama isso de ontognose,
conhecimento que é simultaneamente ser.
A suprema sabedoria (mahā-vidyā) é
idêntica à suprema potência (mahā-śakti).
Por isso, os Tantras dizem que “o poder e o conhecimento são um e o mesmo, como
a chama e a luz”.
6. O Mundo como Manifestação de Śakti
De acordo com o Tāntrika-cosmos, o universo é composto por uma série de
planos ou níveis, chamados bhuvanas,
cada um correspondente a um modo de vibração de Śakti.
Esses níveis não são apenas metafísicos: manifestam-se também nos estados de
consciência.
A realidade visível é apenas o plano mais denso dessa hierarquia.
A passagem de um nível a outro se faz mediante transformação da energia
interior.
Em termos simbólicos, o mundo é o corpo da
Deusa:
os montes são seus seios, os rios, suas veias, o sol e a lua, seus olhos.
Tudo o que existe é parte de sua corporificação cósmica (viśva-rūpā).
Mas o sentido último dessa imagem não é panteísta no sentido vulgar — é
iniciático.
Reconhecer o mundo como corpo da Deusa é reconhecer-se participante de seu
poder, e, portanto, despertar
para a dimensão divina da existência.
O universo, como expressão de Śakti, é
também jogo (līlā).
O Absoluto manifesta-se não por necessidade, mas por liberdade.
Ele cria o mundo como quem dança, por pura superabundância de energia.
Śiva, imóvel, contempla; Śakti, jubilosa, dança — e essa dança é o fluxo da
vida.
Quando o jogo termina, a energia recolhe-se, e o cosmos retorna ao silêncio.
O ciclo recomeça eternamente.
Evola vê nesse simbolismo uma metafísica da ação pura.
A criação é ato sem motivo; é potência em liberdade.
Nesse sentido, a doutrina tântrica é o oposto da concepção ocidental do
trabalho e da produção, nas quais a ação visa a um fim.
Aqui, a ação é expressão da plenitude do ser, não carência.
O sábio age como o sol que brilha — não por desejar algo, mas porque é de sua
natureza irradiar.
7. Consequências Espirituais
Se o mundo é Śakti, o caminho espiritual não
pode consistir em negá-lo, mas em assumi-lo
conscientemente.
A libertação (mokṣa) não é fuga do
universo, e sim domínio dele.
Enquanto o asceta comum busca o nirvana pela extinção dos desejos, o adepto
tântrico busca a transmutação
do desejo em força.
O impulso vital não é suprimido, mas invertido, tornando-se movimento
ascendente.
Assim, o que para o ignorante é paixão, para o iniciado é veículo da divindade.
Essa atitude explica o caráter “viril” do
Tantrismo, tantas vezes ressaltado por Evola.
O homem tântrico não é o contemplativo passivo, mas o herói metafísico que
conquista o divino pela ação interior.
Sua prática é a sādhana do poder.
O corpo, o mundo e o desejo são suas armas.
Por isso, ele é chamado vīra, “herói”,
termo que também designa o praticante da Via da Mão Esquerda.
Enquanto o paśu (o “animal”) é escravo
das forças, o vīra as domina;
e o divya (“o divino”) é aquele que
transcendeu até mesmo a necessidade de dominá-las — ele é a própria força.
No ponto culminante, o adepto realiza a
identidade de Śiva e Śakti em si mesmo.
A consciência e a energia tornam-se um só.
Nesse estado, todas as dualidades se dissolvem: prazer e dor, bem e mal, vida e
morte.
O universo inteiro é percebido como vibração de poder, e o eu como seu centro
imóvel.
Esse é o estado do “homem-deus”, o ser autônomo que atingiu a liberdade
absoluta (svatantrya).
É o retorno de Śakti a Śiva, a reintegração do poder no ser.
Síntese
evoliana:
O ensinamento de que Śakti é o mundo e o mundo
é poder define a essência do Tantrismo.
O cosmos, longe de ser ilusão, é campo de ação divina.
O homem não é chamado a negar o mundo, mas a dominá-lo, convertendo-se no
senhor das energias que o constituem.
Conhecimento e poder, consciência e energia, são aspectos de uma única
realidade.
A sabedoria suprema é saber agir como o próprio Ser age — com liberdade,
intensidade e plenitude.
Capítulo IV — O Caminho da Mão Esquerda
Entre as diversas formas que assumiu o
Tantrismo, uma se distingue por sua audácia e profundidade: a chamada Via da Mão Esquerda (Vāmācāra ou Vāmamārga).
Esta via é, ao mesmo tempo, a mais perigosa e a mais elevada; seus próprios
textos afirmam que ela é uma espada de dois gumes — instrumento de libertação
para o sábio e de perdição para o imprudente.
Em sua essência, consiste em transformar
o veneno em remédio, utilizando as forças inferiores da
existência como matéria de ascensão espiritual.
Nas escrituras, a “mão direita” (Dakṣiṇācāra) representa o caminho da pureza,
da observância ritual e da conformidade com a Lei (Dharma).
A “mão esquerda”, ao contrário, indica o caminho da transgressão sagrada, o
uso deliberado do que é proibido, impuro ou temido, como meio de libertação.
O mesmo contraste é encontrado na tradição ocidental entre a “via seca” e a
“via úmida” da alquimia, ou, ainda, entre o “caminho dos santos” e o “caminho
dos heróis”.
1. Significado da Transgressão Sagrada
A diferença essencial entre as duas vias não é
moral, mas ontológica.
O que distingue o adepto da Mão Esquerda não é o desprezo pela moralidade, mas
o poder de permanecer
puro mesmo no impuro, de dominar as forças destrutivas sem ser
destruído por elas.
A transgressão, aqui, não é pecado, mas prova: o adepto mede sua força interior
confrontando-se com as potências que escravizam o homem comum.
Evola observa que tal atitude exige uma
inversão radical da perspectiva moral comum.
O pecado é o ato de quem se deixa arrastar pelo impulso; a santidade é a
impassibilidade diante dele.
Mas quando o impulso é dominado conscientemente, e o sujeito permanece
inabalável, o mesmo ato torna-se sacramento
de poder.
Assim, o Tantra ensina que “o que para os homens é veneno, para o vīra (herói) é ambrosia”.
Nos textos tântricos, essa doutrina é expressa
por meio de uma fórmula paradoxal:
“Pelo mesmo caminho por onde o homem cai, o
herói ascende.”
O corpo e o desejo, causas de servidão para o
ignorante, convertem-se, nas mãos do iniciado, em instrumentos de libertação.
A diferença não está no objeto, mas no sujeito.
O profano é dominado pelo desejo; o adepto o domina e o converte em poder
ascendente.
Em termos psicológicos, poderíamos dizer que a
energia instintiva — aquilo que em linguagem moderna se chamaria “libido” — é
redirecionada para o alto.
A força que, nos homens comuns, flui para fora, dispersando-se em prazer, é
recolhida e transmutada em consciência.
O resultado é a identidade entre eros e
ascese, entre paixão e iluminação.
Essa ideia aparece também em certas tradições
ocidentais, como o amor intellectualis Dei
de Spinoza ou o eros platônico elevado à
contemplação do Belo absoluto.
Mas no Tantra o processo é mais radical: não se trata de sublimação
psicológica, mas de transmutação
energética, de transformação real das correntes vitais.
O ato sexual, por exemplo, não é simbólico, mas operativo: ele reproduz, no
microcosmo, a união de Śiva e Śakti, e é acompanhado de técnicas precisas de
domínio do corpo e da mente.
2. Os Cinco Elementos de Transgressão (Pañcatattva)
As práticas da Via da Mão Esquerda
concentram-se no uso ritual dos chamados pañcatattva
— “cinco princípios” ou “cinco elementos” — que são:
madya
(vinho), māṃsa
(carne), matsya (peixe),
mudrā
(cereal ou gesto) e maithuna
(união sexual).
Esses cinco elementos, cujos nomes começam todos com a letra m, são também conhecidos como os “Cinco M” (pañcamakāra).
Eles representam as forças fundamentais da vida, normalmente vedadas aos ascetas
ortodoxos.
Os Tantras distinguem três níveis de
interpretação desses ritos:
1.
o simbólico,
reservado aos praticantes da Mão Direita;
2.
o psicológico,
que consiste em dominar interiormente os desejos correspondentes;
3.
e o real,
próprio da Mão Esquerda, em que os elementos são usados literalmente, mas em
contexto ritual e sob estrito controle da consciência.
O vinho simboliza o fogo da vida e da
consciência; a carne e o peixe representam as energias dos elementos terrestre
e aquático; o cereal é o alimento do corpo sutil; e a união sexual é o rito
supremo, no qual todas as forças convergem e se transformam.
O sentido desses ritos é sempre o mesmo: assumir
a energia da vida sem sucumbir a ela.
As escrituras advertem que tais práticas só
são lícitas ao vīra, o herói.
Para o paśu, o homem comum, são fontes
de degradação e queda.
Um texto afirma:
“O vinho destrói o insensato, mas confere
imortalidade ao herói.”
Outro acrescenta:
“Para o sábio, o mesmo ato que prende o homem vulgar torna-se instrumento de
libertação.”
Assim, os pañcatattva
são os símbolos operativos do princípio que preside a Via da Mão Esquerda: a superação dos opostos.
O adepto não se refugia na negação do mundo, mas o atravessa; não foge da vida,
mas a consome como oferenda.
Sua pureza não é a do que evita a mancha, e sim a do fogo que nada pode
manchar.
3. O Rito da União (Maithuna)
Entre todos os ritos tântricos, o maithuna — a união sexual ritualizada —
ocupa o lugar central.
Sua prática é descrita em termos simbólicos e técnicos, com numerosas variações
conforme as escolas.
A união física é vista como representação microcósmica da união cósmica de Śiva
e Śakti.
No entanto, não se trata de hedonismo religioso: o objetivo não é o prazer, mas
a identidade
transcendental dos opostos.
Durante o rito, o adepto e sua parceira (śakti humana) são considerados
personificações das divindades.
A mulher é vista como manifestação viva da Deusa; o homem, como Śiva em forma
humana.
A consciência dessa identificação é essencial: é o que distingue o rito sagrado
da simples cópula.
O ato é precedido de purificações, invocações e concentração; cada gesto é
acompanhado de mantras e visualizações
que estabelecem correspondências entre o corpo humano e o corpo cósmico.
O segredo maior consiste em suspender o impulso de descarga,
retendo e transmutando a energia vital.
O sêmen (bindu) é considerado substância
sagrada, “semente do fogo divino”; sua perda equivale à perda da vida
espiritual.
Por isso, o objetivo do maithuna é
reverter a corrente descendente da energia — transformar o prazer em êxtase e o
êxtase em iluminação.
Quando o adepto atinge o clímax de tensão sem dispersão, sua consciência se
expande até fundir-se com a de Śiva.
Esse estado é chamado mahānanda, “a
grande bem-aventurança”, ou caitanya,
“consciência pura”.
Evola observa que, nesse ponto, o erotismo
deixa de ser fenômeno psicológico e torna-se experiência ontológica: o
corpo é absorvido na consciência, e a energia sexual converte-se em poder
metafísico.
É a realização do princípio segundo o qual “a força e o saber são um”.
O adepto torna-se mahāsukhin, “aquele
que possui a grande alegria”, e, ao mesmo tempo, jīvanmukta, liberto em vida.
4. A Doutrina do Herói (Vīra)
As escrituras tântricas classificam os homens
em três categorias:
paśu (o
animal), vīra (o
herói) e divya
(o divino).
O paśu é escravo das forças da natureza;
o vīra é aquele que as enfrenta e
domina; o divya é o que já as integrou e
transcendeu.
A Via da Mão Esquerda é o caminho do vīra:
aquele que, permanecendo consciente, penetra no domínio do perigo.
O termo vīra
provém da raiz vīr, “ser forte, ser
viril”.
Não se refere ao guerreiro exterior, mas ao guerreiro interior,
aquele que combate no campo invisível das energias.
A coragem física é apenas símbolo da coragem espiritual necessária para
enfrentar as forças abissais da própria natureza.
O verdadeiro herói é o que atravessa o medo e o desejo sem ser vencido.
Por isso, os textos dizem:
“A senda do herói é mais estreita que o fio de
uma espada e mais perigosa que o fogo.”
Evola identifica nesse ideal o equivalente
oriental do “homem solar”
das tradições arianas.
O vīra é o homem que não foge do mundo,
mas o conquista, que não busca refúgio na contemplação, mas realiza a
contemplação na própria ação.
A sua pureza é ativa; sua ascese, viril.
Ele é o protótipo do que Evola chama “o homem diferenciado” — aquele que, mesmo
em meio à dissolução da era moderna, conserva o eixo interior e transforma o
caos em instrumento de elevação.
5. O Princípio da Identificação
A prática da Via da Mão Esquerda baseia-se no princípio da identidade entre o adorador
e o adorado.
Não se adora a divindade como ser separado, mas como forma do próprio Eu.
O mantra, o rito e o gesto têm por
finalidade abolir a distância entre o humano e o divino.
Assim como no maithuna o adepto e a
deusa tornam-se um, em toda sādhana
tântrica o objetivo é a assunção
da forma divina (dehādhāraṇa).
O praticante visualiza o próprio corpo como corpo de Śiva, sua respiração como
respiração cósmica, seu pensamento como vibração da consciência universal.
Esse processo é descrito nos textos como
“divinização progressiva” (devatā-bhāvanā).
Ele culmina no estado em que o adepto percebe que todo o universo é seu corpo,
e todas as formas, expressões de sua energia.
Então, já não há sujeito nem objeto, nem adoração nem adorador.
É o estado de parādvaita, “não-dualidade
suprema”.
Os Tantras dizem:
“Quando Śiva e Śakti se unem no corpo do
yogin, surge o estado de bem-aventurança sem dualidade.
Então, o próprio corpo torna-se templo e altar; o mundo, oferenda; o Eu, o
deus.”
6. A Superação da Moral
A via tântrica, especialmente em sua forma
esquerda, conduz inevitavelmente a um confronto com os limites da moral.
Mas é preciso compreender que se trata de uma superação, não de uma
negação.
A moral, no mundo tradicional, é instrumento de ordem e preparação; serve para
disciplinar os homens comuns.
O adepto, porém, move-se em um plano superior à distinção entre bem e mal.
Ele não é imoral, mas amoral — no sentido em que o fogo é amoral quando consome
igualmente o puro e o impuro.
A energia divina é uma só: tudo depende do uso que dela se faz.
Evola recorda aqui o ensinamento do Gītā: “O mesmo fogo que ilumina o altar
consome o cadáver.”
Assim também o poder tântrico é neutro: pode libertar ou destruir.
A diferença reside na intenção e no grau de consciência do praticante.
Por isso, os Tantras insistem em que o verdadeiro mestre (guru) é indispensável; sem ele, a Via da Mão Esquerda
conduz inevitavelmente à queda.
O domínio das energias exige disciplina, não
licença; exige hierarquia interior, não rebelião.
Por isso, os textos advertem que o adepto deve ser “livre do orgulho, do medo e
do desejo”, e que só pode iniciar-se quem “já venceu a si mesmo”.
Do contrário, o que seria instrumento de libertação converte-se em instrumento
de perdição.
7. O Sentido Iniciático da Via
A Mão Esquerda não é um caminho alternativo
ao da Mão Direita, mas seu complemento
e coroamento.
Aquele que percorre integralmente o caminho da disciplina e da pureza pode, em
determinado ponto, passar à transgressão ritual — não por necessidade, mas por
liberdade.
O objetivo é a reintegração total, a experiência de que não há nada fora do divino,
nem mesmo o pecado ou o mal.
Quando tudo é assumido na consciência de Śiva, nada mais pode escravizar.
Esse é o verdadeiro significado da vāmamārga:
a superação de toda dualidade.
Evola conclui que o tantrika perfeito é aquele que, tendo realizado o absoluto,
pode mover-se livremente entre o puro e o impuro, o lícito e o ilícito, sem
jamais perder o centro.
Ele tornou-se “senhor das polaridades”.
Sua liberdade é idêntica à do próprio Deus, que cria e destrói sem ser afetado
por nenhuma de suas obras.
No budismo tântrico, essa liberdade é
chamada crazy wisdom — “sabedoria
louca” —, expressão paradoxal que designa a lucidez suprema além de toda norma.
Ela corresponde, no hinduísmo, ao estado de paramahaṃsa, o cisne supremo que pode mover-se tanto na
terra quanto nas águas sem perder sua brancura.
Esse é o símbolo do homem libertado: aquele que, estando no mundo, já não é do
mundo; que toca o fogo sem se queimar, que habita o veneno e o converte em
néctar.
Síntese
evoliana:
O Caminho da Mão Esquerda é o vértice e o abismo do Tantrismo.
Ele ensina que a libertação não se alcança pela fuga do mundo, mas por sua
conquista interior;
não pela negação das forças, mas pela sua transmutação consciente.
O adepto não teme o veneno: ele o bebe e o converte em poder.
A impureza torna-se pureza, a paixão torna-se iluminação, o corpo torna-se
templo.
É o caminho do herói metafísico, que atravessa a noite do mundo e emerge como
senhor das polaridades, idêntico ao próprio Śiva.
Capítulo V — O Corpo Oculto e a Serpente de Fogo
A concepção do homem segundo o Tantrismo repousa
sobre a ideia de que ele é um
microcosmo perfeito, réplica do universo e campo de ação das
mesmas energias que animam o cosmos.
Toda a estrutura da criação, com seus diversos planos e forças, encontra-se
reproduzida no interior do corpo humano, sob formas correspondentes.
O que é macrocosmicamente “natureza” (prakṛti)
manifesta-se no homem como corpo
sutil (sūkṣma-śarīra), e o
que é “consciência cósmica” (cit)
reflete-se nele como o princípio do Eu, ātman.
Dessa correspondência decorre o postulado
fundamental do Yoga tântrico:
a libertação universal
é possível mediante a libertação do próprio corpo.
O corpo, longe de ser obstáculo, é o templo da energia divina e o instrumento
da ascensão.
Conhecer-se é conhecer o universo; dominar as energias do corpo é dominar as
forças do cosmos.
1. Os Três Corpos e a Estrutura Oculta do Ser
Humano
As doutrinas tântricas, seguindo a metafísica
sânscrita mais antiga, distinguem três
corpos no ser humano:
1.
o corpo
grosseiro (sthūla-śarīra),
que corresponde à forma física perceptível;
2.
o corpo
sutil (sūkṣma-śarīra),
veículo das energias vitais, dos sentidos e da mente;
3.
e o corpo
causal (kāraṇa-śarīra),
princípio latente que contém em germe todas as possibilidades do ser.
O corpo físico é o ponto final de condensação
da energia cósmica; o corpo sutil é o campo onde essa energia circula e se
transforma; o corpo causal é o seu ponto de origem, o “nó de luz” de onde tudo
procede.
A meta do Yoga é reverter o processo — desfazer
a densificação — e reconduzir as energias da periferia ao
centro, do corpo ao espírito, de Śakti a
Śiva.
Para compreender o método, é preciso conhecer
a anatomia oculta do homem segundo os Tantras.
Ela é constituída por centros
de força (cakras) e canais sutis (nāḍīs), através dos quais flui a energia
vital (prāṇa).
O sistema dos cakras representa o eixo
da consciência, enquanto os nāḍīs formam
uma rede vibratória, análoga a um sistema nervoso espiritual.
O texto fundamental para essa doutrina é o Ṣaṭcakra-Nirūpaṇa, que descreve os seis
principais centros do corpo sutil, situados ao longo da coluna vertebral, além
do sétimo e supremo, no topo da cabeça.
Esses centros correspondem, respectivamente, aos planos da existência e aos
graus de consciência.
2. Os Nāḍīs: Correntes de Energia
Três são os principais canais sutis que
sustentam o corpo energético do homem:
Iḍā, Piṅgalā e Suṣumṇā.
A Suṣumṇā
é o canal central, que sobe do períneo ao alto da cabeça;
é o “eixo do mundo” do microcosmo humano, a via real (rāja-mārga) da ascensão espiritual.
De cada lado dela correm Iḍā e Piṅgalā, correspondendo respectivamente às
correntes lunar e solar, feminina e masculina, passiva e ativa.
No plano fisiológico, elas correspondem aos sistemas nervoso simpático e parassimpático;
no plano metafísico, representam as polaridades de Śakti no homem.
Os dois canais laterais se entrecruzam em
espiral ao longo da coluna, formando pontos de interseção que correspondem aos cakras.
O domínio do prāṇa — a força vital que
circula por essas vias — é condição indispensável para a prática do Yoga.
Enquanto o prāṇa flui pelos canais
laterais, a consciência permanece dividida, sujeita à alternância entre vigília
e sono, prazer e dor, vida e morte.
Quando o fluxo é revertido para a Suṣumṇā,
estabelece-se a unidade interior, e a energia desperta para sua natureza divina.
É nesse momento que se inicia o fenômeno chamado despertar da Serpente de Fogo
— Kuṇḍalinī-Śakti.
3. Kuṇḍalinī: a Energia Enroscada
O nome Kuṇḍalinī
deriva de kuṇḍala, “anel, espiral”.
Ela é descrita como uma força
latente, adormecida na base da coluna, enroscada três vezes e
meia no centro chamado Mūlādhāra-cakra.
Essa energia é a forma microcósmica da potência cósmica de Śakti.
Enquanto permanece adormecida, o homem vive no estado comum de consciência;
desperta, ela ascende pela Suṣumṇā,
atravessando os cakras, e com sua
ascensão transforma todos os níveis do ser.
Os textos a chamam de “serpente de fogo” (agni-sarpa) e de “mãe do universo no homem”.
O despertar de Kuṇḍalinī é o evento
central de toda a via tântrica.
Ele representa a transmutação da energia vital em poder espiritual.
Quando essa força sobe, ela queima os véus da ignorância e abre os portais da
percepção suprassensível.
O corpo físico torna-se incandescente de dentro para fora, mas não no sentido
material: trata-se de uma combustão sutil, de uma ignição da consciência.
Evola observa que esse simbolismo não deve ser
interpretado apenas metaforicamente.
Trata-se de uma realidade energética — mas de uma energia de natureza
suprabiológica, ainda que enraizada no corpo.
O Kuṇḍalinī-Yoga é, portanto, uma alquimia fisiológica, em
que o corpo é o cadinho, o prāṇa é o fogo, e a consciência, o ouro a ser
purificado.
4. Os Centros de Força (Cakras)
Os principais cakras — seis, segundo a tradição mais corrente — estão
dispostos ao longo da Suṣumṇā, do
períneo ao alto da cabeça.
Eles são:
1.
Mūlādhāra
— na base da coluna, sede da Kuṇḍalinī
adormecida. Elemento: Terra. Cor: vermelha.
2.
Svādhiṣṭhāna
— na região genital, ligado às águas e ao princípio lunar. Elemento: Água.
3.
Maṇipūra
— na altura do plexo solar, centro do fogo e da vontade. Elemento: Fogo.
4.
Anāhata
— no coração, sede do ar e da vida emocional superior. Elemento: Ar.
5.
Viśuddha
— na garganta, relacionado ao éter e à vibração sonora. Elemento: Éter.
6.
Ājñā
— entre as sobrancelhas, o “terceiro olho”, centro da visão interior.
7.
Sahasrāra
— no topo da cabeça, o “lótus de mil pétalas”, ponto de união com o Absoluto.
Cada cakra
é representado por um lótus com número específico de pétalas, cores, sons (bīja-mantras) e divindades correspondentes.
Essas representações não são alegorias, mas mapas energéticos: cada
símbolo codifica frequências vibratórias reais, cuja ativação altera o estado
de consciência.
A ascensão de Kuṇḍalinī por esses
centros é, simultaneamente, um processo fisiológico e metafísico.
O movimento ascendente corresponde à reabsorção das energias inferiores nas
superiores.
Em cada cakra, Kuṇḍalinī desperta uma potência e a consome na luz da
consciência.
Quando atinge o Sahasrāra, realiza-se a
união de Śakti e Śiva — a fusão do poder e da consciência.
Esse é o ponto culminante do Yoga, o estado de samādhi, em que o sujeito individual desaparece na
totalidade do Ser.
5. O Significado do Fogo Interno
O símbolo do fogo é central em todas as
tradições iniciáticas.
No Tantrismo, o fogo interior (vaiśvānara-agni)
representa a energia de transformação que consome o impuro e converte o corpo
em veículo de luz.
Quando Kuṇḍalinī desperta, ela é
percebida como calor ascendente, como uma chama que sobe pela coluna.
Mas o calor físico é apenas o reflexo inferior de um processo metafísico:
trata-se da queima das limitações
do eu.
O fogo é a imagem do espírito ativo que purifica, ilumina e libera.
Evola compara o despertar de Kuṇḍalinī à inversão do fluxo da energia vital.
Normalmente, o prāṇa flui para baixo e para fora, sustentando as funções de
nutrição, reprodução e percepção.
Quando a corrente se inverte, ela sobe e se interioriza, libertando-se das
funções biológicas e convertendo-se em luz da consciência.
Esse processo é idêntico ao que os alquimistas chamavam conversio elementorum — a transmutação dos elementos
grosseiros em sutis.
Os Tantras afirmam que aquele que desperta Kuṇḍalinī “torna-se como o fogo que não pode
ser apagado”.
Seu corpo físico, dizem, não é mais sustentado por alimento ou respiração, mas
pela energia interior — ojas.
Essa energia, refinada pela ascese, é o suporte do estado de imortalidade (amṛtatva).
6. O Corpo de Luz e a Transmutação Final
Quando a serpente atinge o topo, o adepto
experimenta o chamado “estouro
do crânio” (brahma-randhra-bheda).
A energia atravessa a abertura sutil do alto da cabeça e dissolve as últimas
fronteiras entre o indivíduo e o absoluto.
Nesse instante, a consciência se expande além do corpo; o yogin torna-se “sem
forma” (arūpa), mas continua consciente.
É a experiência da morte
iniciática: o corpo físico permanece vivo, mas o sentido de
identidade pessoal é substituído pela consciência cósmica.
O estado resultante é descrito como jīvanmukti, a libertação em vida.
O corpo torna-se translúcido ao espírito; a matéria é espiritualizada.
Evola associa esse estágio ao conceito ocidental de corpo glorioso, mencionado no esoterismo cristão e hermético.
O adepto não “abandona” o corpo, mas o transfigura,
tornando-o veículo da luz.
É a realização do vajra-deha, o “corpo
adamantino” das tradições tibetanas.
Segundo os textos, aquele que alcança esse
estado é imune à doença, à fadiga e à morte voluntária.
Seu corpo físico dissolve-se gradualmente na luz (jyoti-laya), ou então permanece incorruptível após a morte.
Esses fenômenos, que a tradição hindu chama mahāsiddhi,
são sinais exteriores da perfeição interior.
7. Significado Esotérico
A doutrina do corpo sutil e de Kuṇḍalinī não deve ser reduzida a fisiologia
oculta nem a misticismo visionário.
Ela representa uma ciência
da transformação integral do ser, baseada no princípio de que o
homem é um sistema de energias e que, modificando o curso dessas energias, é
possível alterar a própria ontologia.
O corpo é o laboratório da iniciação; o Yoga é a operação alquímica que nele se
realiza.
A serpente ascendente é o símbolo da força que redime, o eixo do retorno da
multiplicidade à unidade.
Evola destaca que o Tantrismo exprime aqui,
de forma concreta, a grande lei hermética: solve
et coagula.
O solve corresponde à dissolução das
energias nascentes, e o coagula, à
fixação da consciência em níveis mais altos.
Ao fim, tudo o que era corporal torna-se espiritual, e o que era transitório,
eterno.
A união final de Śiva e Śakti no Sahasrāra não é metáfora, mas evento real de integração ontológica:
a consciência reconhece que a energia que move o cosmos é a mesma que pulsa em
seu próprio ser.
Nesse reconhecimento, cessa a dualidade sujeito–objeto, espírito–matéria,
vida–morte.
O universo é percebido como vibração única de poder e luz.
O yogin que alcançou esse estado é chamado mahā-yogin,
“o grande unificado”.
Síntese
evoliana:
O corpo, para o Tantrismo, não é prisão da alma, mas seu campo de ascensão.
A energia vital, se despertada e conduzida com disciplina, torna-se ponte entre
o humano e o divino.
O caminho da serpente é o caminho da libertação: do sexo ao espírito, do sangue
à luz.
Quem desperta Kuṇḍalinī reencontra no
próprio corpo o eixo do universo, e na chama interior reconhece a potência de
Śakti em sua forma mais pura.
O corpo é então templo, oferenda e altar do fogo divino — e o homem, o próprio
Deus em manifestação.
Capítulo VI — O Sentido da Iniciação e do Guru
Nenhum caminho de realização espiritual — e,
menos ainda, o Tantrismo — pode ser percorrido sem uma transmissão legítima de poder.
O princípio da iniciação
(dīkṣā) é o eixo sobre o qual gira todo o
edifício da tradição tântrica.
Ela não é mero ritual simbólico, mas ato
real de comunicação ontológica, em que uma energia espiritual é
transmitida de um ser desperto a outro, como chama que acende uma lâmpada.
O Tantrismo insiste que sem o toque do guru,
o mestre, toda tentativa de despertar Kuṇḍalinī
é perigosa e, em última instância, estéril.
1. O Significado de Dīkṣā
O termo dīkṣā
provém da raiz dā (“dar”) e kṣi (“purificar, destruir”).
Literalmente, significa “dar e purificar” — dar o poder e destruir as impurezas
que impedem sua ação.
A iniciação é, assim, uma dupla operação: transmissão e purificação.
Ela inaugura uma nova condição ontológica no iniciado, separando-o da ordem
profana e ligando-o ao mundo transcendente.
Nos textos tântricos, a dīkṣā é descrita como segundo
nascimento (dvija).
O primeiro nascimento é natural, sujeito ao karma; o segundo é espiritual,
libertador.
Por meio da iniciação, o indivíduo é introduzido na “família dos deuses” (divya-kula).
O mestre não é apenas instrutor: ele é o gerador
espiritual, o pita, que
fecunda o discípulo com a semente do conhecimento.
Diz o Kularnava-Tantra:
“Assim como uma lâmpada acende outra lâmpada,
assim o guru desperta o discípulo pela centelha da própria consciência.”
Evola comenta que essa concepção reflete a lei
universal da tradição iniciática: a verdade espiritual não se inventa, mas transmite-se; e a
legitimidade de toda via depende da sucessão
ininterrupta (paramparā)
de mestres.
O poder não é de ordem psicológica, mas ontológica; não é crença, mas presença.
O guru é o elo visível da corrente
invisível que remonta à origem divina.
2. A Natureza do Guru
A palavra guru
significa literalmente “aquele que é pesado”, no sentido de “aquele que possui
gravidade espiritual”.
É o polo fixo da hierarquia iniciática, o centro de estabilidade e irradiação.
O guru não é um professor, mas um estado do ser.
O discípulo não aprende dele — ele é transformado
pela sua influência.
Os textos distinguem três graus de mestre:
1.
o instrutor
humano, que guia pelos ensinamentos e ritos externos;
2.
o mestre
interior (antar-guru),
princípio de sabedoria que desperta no coração do iniciado;
3.
e o mestre
supremo (parama-guru),
que é o próprio Ātman ou Śiva.
Esses três aspectos não são separados: o guru
externo é o reflexo do interno, e ambos são expressões do mestre supremo.
O Kularnava-Tantra
declara:
“Sem o guru, não há conhecimento; sem o guru,
não há libertação; sem o guru, não há Deus.”
E ainda:
“O guru é Brahmā para o discípulo no nascimento; Viṣṇu, na proteção; e
Maheśvara, na dissolução.”
O discípulo é convidado a ver o mestre como encarnação do próprio Śiva.
Essa atitude não é idolatria, mas reconhecimento metafísico: o guru é o ponto onde o poder divino se manifesta
concretamente.
O respeito absoluto a essa presença é a condição para que a energia iniciática
se comunique.
Evola observa que a relação mestre-discípulo no Tantrismo é uma relação de poder real, e
não de submissão moral ou devoção sentimental.
O guru é o transmissor do śakti-pāta — a “descida do poder” —, um
choque de energia espiritual que pode despertar instantaneamente a consciência
superior.
3. O Śakti-pāta — a Descida do Poder
O śakti-pāta
é o momento culminante da iniciação.
Trata-se da descida da força de
Śakti no discípulo, provocando o despertar de Kuṇḍalinī e a abertura dos centros sutis.
Essa força pode manifestar-se de diversas maneiras: como vibração interna, luz,
som, êxtase, ou simples clareza de consciência.
O discípulo sente que algo superior penetrou nele e o reconfigurou.
A experiência é inconfundível, pois marca uma ruptura ontológica entre
o antes e o depois.
Os textos classificam o śakti-pāta segundo o grau de intensidade:
·
tīvra-tīvra
— descida violenta, que destrói instantaneamente o ego e leva à realização
imediata;
·
tīvra-madhya
— descida intensa, mas controlada, que conduz gradualmente à iluminação;
·
madhya-manda
e manda-manda — descidas lentas, que
exigem longo trabalho de assimilação.
Evola compara esse fenômeno à “iniciação pelo
raio” das tradições herméticas e cavaleirescas: um ato que fulmina o ser
inferior e desperta o superior.
No śakti-pāta, o mestre age como
condutor de uma corrente: ele não “dá” o poder — ele o desperta no
discípulo, como o raio que acende o fogo já latente.
O Tantra-Sāra
afirma:
“Assim como o fogo adormecido na lenha é
despertado pelo fogo já aceso, assim a consciência do discípulo é despertada
pelo toque do guru.”
4. A Prova e a Fidelidade
Receber a iniciação não é o fim, mas o começo
do caminho.
O discípulo deve provar-se digno da energia recebida.
Os Tantras comparam o iniciado a um metal bruto que, uma vez em contato com o
fogo, deve suportar o processo de purificação.
O guru observa, instrui e testa
continuamente o discípulo, submetendo-o a provas que visam a destruir o orgulho
e a dúvida.
A obediência absoluta é exigida — não por servilismo, mas porque a energia
transmitida só pode atuar se o canal estiver puro.
O Guhyasamāja-Tantra
afirma:
“O discípulo deve abandonar o eu como a cobra
abandona sua pele.
Se conservar o ego, o fogo da iniciação o consumirá.”
Evola insiste que a relação com o mestre é de
natureza hierárquica e polar.
O guru representa o princípio solar,
ativo, transmissor; o discípulo, o princípio lunar, receptivo.
A obediência é a forma pela qual o polo lunar se alinha ao solar, permitindo a
transmissão da luz.
Essa submissão é transitória: uma vez estabelecida a conexão interior, o
discípulo torna-se autônomo e idêntico ao mestre.
O Tantra
expressa isso com a fórmula:
“No começo, o guru é o mestre; no meio, é o
companheiro; no fim, é o próprio Eu.”
A fidelidade ao guru é, portanto, fidelidade ao próprio caminho interior.
Abandonar o mestre é romper a corrente; duvidar dele é duvidar do poder divino.
Mas o verdadeiro guru não exige adoração
pessoal: ele conduz o discípulo até o ponto em que já não há distinção entre
mestre e discípulo, entre Śiva e Śakti.
5. A Iniciação Interior
Quando o processo se completa, o guru externo se dissolve no guru interno.
O iniciado descobre que a fonte da autoridade espiritual está dentro de si.
Essa realização é expressa no aforismo:
“O guru interior é o coração que conhece.”
Nesse estágio, o poder da iniciação torna-se
autogerador: o iniciado é capaz de transmitir o mesmo fogo a outros,
tornando-se ele próprio guru.
Assim se perpetua a sucessão espiritual (paramparā),
cadeia ininterrupta que liga cada mestre a Śiva.
A transmissão não é meramente verbal, mas vibratória e ontológica: é a
continuidade do mesmo śakti-pāta que,
desde tempos imemoriais, desce sobre os dignos.
Evola observa que essa concepção tântrica de
iniciação não é misticismo devocional, mas técnica precisa de transmissão energética.
Ela difere tanto do ensino filosófico quanto da fé religiosa.
A tradição não é doutrina, mas corrente viva de poder.
Cada elo dessa corrente é um ser humano transformado em centro radiante.
A tarefa do iniciado é manter o fogo aceso e transmiti-lo intacto — não como
teoria, mas como força.
6. Iniciação e Autoridade Espiritual
Na ordem tradicional, o princípio iniciático
confere também autoridade.
A sociedade hierárquica antiga via no mestre espiritual o vértice da estrutura
humana, o ponto em que o divino toca o mundo.
A autoridade do guru não deriva de
eleição ou de carisma social, mas de sua participação real no poder
transcendente.
Aquele que possui śakti comanda
naturalmente; a obediência a ele não é submissão, mas reconhecimento da ordem
cósmica.
Evola lamenta que o Ocidente moderno tenha
perdido esse sentido da autoridade espiritual.
A civilização contemporânea reconhece apenas o poder material e técnico,
ignorando o poder da presença.
Mas em todas as tradições, a verdadeira realeza (rājya) era inseparável da iniciação.
O rei era também o iniciado — rāja-yogin
—, aquele que governava por direito de natureza espiritual, não por força de
contrato.
Do mesmo modo, o guru é o soberano do
domínio invisível, o “rei sem coroa” que exerce poder pela irradiação do ser.
7. O Fim da Iniciação
O objetivo último da iniciação é a identidade com o mestre interior,
isto é, a realização de que Śiva e o Ātman são um só.
O iniciado não “recebe” algo de fora: ele desperta o que sempre esteve dentro.
A função do guru é apenas indicar o
ponto de ignição, abrir a via para que o poder se manifeste.
O verdadeiro mestre é aquele que desaparece, deixando o discípulo em posse de
si mesmo.
Como diz um texto:
“Quando o discípulo se torna o próprio guru,
então o guru cumpriu sua tarefa.”
O estado final é o de autossuficiência espiritual
(svātantrya), a liberdade absoluta.
O iniciado torna-se siddha, “realizado”,
“perfeito”.
Ele é o portador consciente da śakti,
senhor do próprio destino e, portanto, livre da roda do karma.
Nesse ponto, não há mais ensino nem discípulo, nem tradição nem rito — apenas o
poder silencioso do Ser.
Síntese
evoliana:
A iniciação tântrica é a restauração da corrente divina no homem.
O guru é o mediador visível do poder
invisível; sua autoridade é a do próprio Śiva, e sua palavra é fogo que
desperta.
Receber a dīkṣā é morrer como homem e
renascer como portador de poder.
A sucessão iniciática assegura a continuidade da energia sagrada, a transmissão
da chama perene.
O discípulo, purificado e tornado centro de consciência, converte-se por fim no
próprio mestre, alcançando a liberdade interior e a unidade com o Absoluto.
A verdadeira tradição não é texto, nem fé, mas vida irradiando poder — e
o guru, o símbolo vivo da presença de
Śakti no mundo.
Capítulo VII — O Sentido Esotérico da Mulher e da Sexualidade
O Tantrismo é, entre todas as doutrinas
tradicionais, aquela que mais profundamente compreendeu o mistério da mulher e da sexualidade, libertando-o
tanto do sensualismo profano quanto do ascetismo negativo.
Enquanto as religiões e filosofias posteriores tenderam a ver na mulher a
tentação, a ilusão ou o símbolo da queda, os Tantras a reconhecem como manifestação direta da energia divina
— Śakti em forma humana.
A mulher não é obstáculo, mas porta
de ascensão; não é a causa da queda, mas o reflexo terrestre do
poder que sustenta o cosmos.
1. Śakti em Forma Humana
A doutrina tântrica ensina que toda mulher é,
por natureza, uma śakti, isto é, uma
emanação do poder feminino universal.
No plano metafísico, Śakti é a força
criadora; no plano humano, ela se manifesta como energia vital, magnetismo e
fascínio.
O corpo da mulher é a corporificação desse princípio: cada traço, cada gesto,
cada vibração é expressão do dinamismo cósmico.
Diz o Kularnava-Tantra:
“Toda mulher é um reflexo da Grande Mãe.
Aquele que a vê como mulher mortal não possui o olho da sabedoria.”
Assim, o adepto da via tântrica é convidado a ver a mulher como deusa —
não no sentido figurado, mas como percepção direta de sua essência energética.
O que distingue o sábio do profano é precisamente essa visão: para o profano, o
corpo feminino é objeto de desejo; para o iniciado, é símbolo e veículo de
Śakti.
O primeiro se perde na forma; o segundo a atravessa e alcança o poder que nela
vibra.
Evola observa que essa doutrina está em total
oposição à concepção moderna da sexualidade como prazer ou função biológica.
Para o Tantra, o ato sexual é um
rito cósmico, e a mulher é a sacerdotisa desse rito.
A união com ela não é simples gozo, mas ato
de integração metafísica, no qual o homem se une ao princípio
ativo do universo.
2. O Princípio Feminino Universal
Em nível cósmico, Śakti é o poder que anima e mantém a manifestação.
Ela é a Mãe universal (Mahādevī), de
quem procedem todos os mundos.
Mas esse poder é ambíguo: pode libertar ou aprisionar, elevar ou devorar.
As formas terríveis da Deusa — Kālī, Durgā, Cāmuṇḍā
— simbolizam esse aspecto duplo.
A mulher terrestre reflete a mesma ambiguidade: ela pode ser instrumento de libertação ou de servidão.
O destino depende da atitude do homem diante dela.
O Tantra
afirma:
“Pelo mesmo poder, o homem se liberta ou se
perde.”
A energia feminina, quando reconhecida e
dominada, conduz à unidade; quando ignorada ou desejada cegamente, prende à
roda da vida e da morte.
A sexualidade é, portanto, ponto
de convergência entre o céu e o abismo.
A mulher é o “portal dos deuses” (devī-dvāra)
e também “a armadilha do ignorante”.
O sādhaka (praticante) deve atravessar
esse portal sem cair no fascínio da forma.
Ele deve ver através da beleza, não deter-se nela.
Por isso, os textos dizem:
“Vê a forma da mulher e lembra-te de Śakti;
toca-a e lembra-te do fogo.”
3. Eros como Poder
O kāma,
o desejo, é considerado no Tantrismo não como pecado, mas como força divina degenerada.
Ele é a projeção, no plano humano, do impulso primordial que move o universo: o
amor entre Śiva e Śakti.
No mito, o deus do amor, Kāma-deva, é
queimado pelo fogo do olhar de Śiva, mas renasce sem corpo — símbolo da
transformação do desejo em energia sutil.
Assim também o adepto deve queimar o desejo carnal no fogo da consciência,
fazendo-o renascer como poder espiritual.
O Vijñāna-Bhairava-Tantra
ensina:
“Quando o prazer nasce, não o rejeites, mas
fixa tua mente nele e reconhece a Consciência que o sustenta.
Assim, até o desejo se torna via para o Ilimitado.”
O segredo está em reter o impulso e inverter o fluxo.
O que no homem comum se dispersa em excitação e descarga, no yogin é recolhido e elevado.
Essa técnica, chamada vajrolī-mudrā,
consiste em impedir a perda da energia seminal (bindu), redirecionando-a para o alto da coluna.
O prazer, então, deixa de ser físico e torna-se luminoso: é o fogo de Kuṇḍalinī ascendendo.
Evola ressalta que, nesse ponto, o Tantra
alcança uma das expressões mais radicais da alquimia interior.
A energia sexual é o mercúrio alquímico: volátil e perigoso, mas capaz de se
converter em ouro espiritual.
O erro do asceta negativo é rejeitar o mercúrio; o erro do profano é dissipá-lo.
O sábio o submete ao fogo e o transmuta.
Essa é a essência da Via da Mão Esquerda:
usar a força que escraviza para libertar.
4. A Mulher como Iniciadora
No contexto iniciático, a mulher não é objeto,
mas agente de consagração.
Ela é a śakti humana que desperta no
homem a energia adormecida.
No maithuna, o rito sexual sagrado, a
parceira é tratada como deusa; é ela quem confere ao homem o poder.
O Kularnava-Tantra diz:
“Sem a mulher, não há rito; sem Śakti, Śiva é
inerte.”
O contato com a mulher, quando realizado em
estado de consciência ritual, atua como descarga elétrica: o polo negativo
desperta o positivo, a energia sobe pela Suṣumṇā
e o fogo interior é aceso.
Esse fenômeno é a base do chamado śakti-pāta
erótico — a descida do poder pela via do amor.
A mulher iniciadora é chamada yoginī ou dūtī.
Ela deve possuir qualificação espiritual equivalente à do homem, pois é
transmissora da mesma força.
Sua função não é emocional, mas mágica e metafísica.
O Tantra afirma que o homem pode
alcançar a libertação “em um só abraço”, desde que o ato seja praticado com
consciência divina.
Mas o mesmo ato, sem consciência, o prende por muitas vidas.
Evola comenta que o papel da mulher, aqui, é o
oposto do da amante profana.
Ela não é “companheira”, mas instrumento
de poder — não no sentido utilitário, mas sacramental.
Ela representa a energia viva da divindade.
Por isso, o Tantrismo atribui à mulher dignidade sagrada: “Nenhum homem deve
tocar uma mulher sem antes venerar nela a Deusa”, diz o Yoni-Tantra.
5. O Mistério do Yoni
O termo yoni
designa o órgão feminino, mas seu significado simbólico é mais amplo: é o símbolo universal da matriz da criação,
o portal através do qual o Uno se manifesta no múltiplo.
Na iconografia, o yoni é representado
como receptáculo do liṅga, o símbolo
fálico de Śiva.
A união de ambos é o emblema da criação universal.
Para o iniciado, contemplar o liṅga-yoni é meditar sobre a unidade dos
opostos: o estático e o dinâmico, o espírito e a matéria, o imutável e o
mutável.
A forma sexual torna-se hieróglifo metafísico.
O ato de penetração, em sua dimensão sagrada, é repetição do gesto cósmico da
manifestação.
Mas no rito tântrico, essa união não gera filhos terrenos: ela gera consciência desperta.
A mulher, enquanto yoni, é o altar do mundo; o homem, enquanto liṅga, é o fogo que o anima.
Quando ambos se unem em pureza de consciência, o universo se reintegra.
Essa união é chamada maha-maithuna, “a
grande conjunção”.
Ela é a realização do princípio: “O microcosmo é o reflexo do macrocosmo”.
6. A Mulher e o Caminho da Libertação
O Tantrismo afirma que a mulher é o atalho (sukha-mārga, “via rápida”) para a libertação.
O asceta que domina o ato sexual domina também a morte, pois ambos são
expressões do mesmo poder.
A energia que conduz à geração é a mesma que conduz à transmutação.
O sexo, quando purificado de apego e transformado em rito, torna-se veículo de
libertação — mokṣa-mārga.
As escrituras declaram:
“A mulher é o portão do céu para o sábio, e o
portão do inferno para o insensato.”
O erro das religiões posteriores foi ver na
mulher apenas o segundo aspecto — o da sedução e da queda.
Mas essa visão parcial decorre da perda da ciência do poder.
Para quem desconhece a alquimia do espírito, o fogo é destruidor; para quem o
domina, é purificador.
A mulher é o fogo: queima o imprudente, ilumina o iniciado.
Evola salienta que, ao reconhecer o valor
sagrado da mulher, o Tantrismo restitui à sexualidade sua dignidade metafísica.
O eros não é “pecado original”, mas energia
de criação.
A queda ocorre quando o homem perde o controle do poder que nele atua; a redenção,
quando o reconquista.
Nesse sentido, a mulher é a prova suprema da força viril — não no sentido
físico, mas espiritual: o homem que pode possuir sem ser possuído é o
verdadeiro vīra, o herói do espírito.
7. A Transmutação Final
No ponto culminante da via tântrica, a
dualidade homem–mulher desaparece.
O adepto percebe que o feminino e o masculino são dois polos de uma mesma realidade,
cuja unidade é o Ser.
A união física, espiritualizada, torna-se símbolo da união metafísica.
Śiva e Śakti são um só: consciência e poder, repouso e movimento, eternidade e
tempo.
Essa realização é expressa na fórmula:
“Quando o conhecedor e o conhecido se tornam
um, o amor se torna sabedoria.”
O erotismo é então transcendido, mas não
negado.
Ele é absorvido na luz da pura consciência.
O fogo de Kāma converte-se em fogo de Jñāna (conhecimento).
O homem que atinge esse estado não é mais arrastado pelo desejo: ele é o
próprio desejo divinizado.
Em si mesmo, ele é a união eterna de Śiva e Śakti.
Essa é a verdadeira mahasukha, a “grande
bem-aventurança”, que não depende de objeto nem de circunstância.
Evola conclui que a visão tântrica da mulher
e da sexualidade representa o ponto mais alto da integração entre natureza e
espírito.
O que nas doutrinas ascéticas aparece como oposição entre carne e alma é aqui
resolvido numa síntese superior.
A mulher é o espelho do poder divino, e o eros é o caminho que, quando
iluminado, conduz de volta ao Absoluto.
Síntese
evoliana:
A mulher, para o Tantrismo, é a face visível de Śakti — o poder do mundo.
Ela é a força que aprisiona e liberta, a matriz da criação e o instrumento da
redenção.
O homem que a contempla com consciência divina descobre nela a própria origem
do universo.
O sexo torna-se rito; o prazer, fogo de ascensão; o amor, caminho da gnose.
No abraço sagrado, Śiva e Śakti se reencontram — e o mundo, dissolvido na chama
do poder, revela-se como luz pura.
Capítulo VIII — O Fogo e o Esplendor: A Imortalidade do Corpo
O destino final do homem, segundo o Tantrismo,
não é a dissolução do corpo na morte, mas sua transfiguração na luz.
A via do poder não conduz à anulação, mas à incorruptibilidade.
A meta suprema é o estado de deha-siddhi —
a perfeição do corpo,
em que a matéria torna-se transparente ao espírito, e o fogo interior substitui
o processo vital comum.
Trata-se da amṛtatva, a imortalidade, não
como sobrevivência póstuma, mas como vitória sobre a decadência e o tempo.
1. O Corpo como Campo de Ascensão
Na tradição tântrica, o corpo não é um fardo a
ser abandonado, mas instrumento
de libertação.
Enquanto as correntes ascéticas e idealistas veem no corpo o obstáculo à
realização, o Tantra o considera o meio privilegiado da obra espiritual.
Pois, como o universo inteiro é vibração de Śakti,
também o corpo é vibração condensada, e o domínio do corpo significa domínio do
mundo.
O corpo é o microcosmo, o templo onde a energia cósmica se manifesta em forma
individual.
O Tantra-Sāra
declara:
“Aquele que conhece o corpo, conhece o universo.
O corpo é o veículo do fogo; quem o controla, governa os mundos.”
O homem comum vive prisioneiro das forças
biológicas que sustentam o corpo.
Seu calor, seu sangue, sua respiração, são funções automáticas, regidas por
leis inferiores.
Mas o adepto, ao despertar Kuṇḍalinī,
introduz o princípio consciente nessas forças; ele as governa e as transmuta.
A energia vital (prāṇa), que antes
servia à natureza, torna-se instrumento do espírito.
Nesse ponto, o corpo deixa de ser natural: ele se converte em corpo mágico, em “veículo
do fogo”.
2. O Fogo Interior (Agni)
O simbolismo do fogo atravessa toda a tradição
védica e alcança no Tantrismo sua significação suprema.
No homem, o fogo é o poder oculto que sustenta a vida, desde a digestão até o
pensamento.
É o mesmo Agni que nos Vedas aparece
como mensageiro entre os deuses e os homens.
No Yoga, esse fogo é identificado com Kuṇḍalinī, a serpente ígnea que ascende pela
Suṣumṇā.
Quando desperta, o fogo consome as impurezas e transmuta as energias grosseiras
em luz pura.
Esse processo é chamado tāpa — “ardor”.
O corpo do yogin torna-se literalmente incandescente.
O calor é acompanhado de luminosidade interior: uma chama silenciosa que brilha
no coração e se eleva até a cabeça.
Os textos descrevem o sādhaka avançado
como “aquele cujo corpo é fogo e cuja mente é luz”.
Mas esse fogo não é material; é energia consciente.
Ele não destrói o corpo, mas o refina, assim como o ouro é purificado no
cadinho.
Por isso, os Tantras chamam o yogin realizado de vahni-puruṣa, o “homem-fogo”.
Sua presença irradia força e claridade; ele é o centro onde a energia cósmica
se concentra e se manifesta.
3. A Transmutação do Corpo
O fogo interior, uma vez desperto, começa a
operar a transformação do corpo.
Os processos vitais comuns são progressivamente substituídos por processos
sutis.
O corpo torna-se independente do alimento e da respiração; nutre-se de energia
direta, como o fogo se alimenta do próprio ar.
Esse estado é conhecido como prāṇa-tyāga
— “abandono do prāṇa inferior”.
O yogin vive do ojas, a energia
espiritual refinada.
No Gheraṇḍa-Saṃhitā,
diz-se que o yogin que atinge a perfeição “pode manter o corpo por mil anos ou
dissolvê-lo em luz à vontade”.
Essa dissolução é chamada jyoti-laya, a
“absorção na luz”.
Não é morte, mas transfiguração.
O corpo não perece — ele
se converte em esplendor.
Evola associa esse processo às tradições
ocidentais do corpus glorificatum, o
corpo glorioso dos santos e heróis divinizados.
Em ambos os casos, trata-se de uma espiritualização
da matéria pela energia ígnea.
O que para o homem comum é morte é, para o adepto, passagem: a combustão do
corpo é o último ato da ascensão do fogo.
4. O Corpo Adamantino (Vajra-Deha)
O estado supremo do yogin realizado é o de corpo adamantino (vajra-deha).
O termo vajra significa “diamante” ou
“trovão”, e exprime a dupla qualidade de indestrutibilidade
e irradiação.
O corpo adamantino é o corpo tornado luz sólida, incorruptível, cristalizado na
energia pura de Śakti.
Ele é o oposto do corpo mortal, sujeito ao tempo e à decadência.
No budismo tântrico, esse estado corresponde ao Vajra-Sattva, o “Ser diamantino”, fundamento de todas as
manifestações.
O Haṭha-Yoga-Pradīpikā
diz:
“Quando o fogo da serpente sobe, o corpo
torna-se como ouro fundido;
as impurezas se consomem, e o yogin brilha como cem sóis.”
Evola comenta que essa descrição, embora
simbólica, traduz uma realidade fisiológica sutil: o corpo passa por mutações
perceptíveis, a pele adquire transparência, os olhos emitem luz, e a aura
resplandece.
Mas a transformação essencial é interior: o corpo já não é organismo, mas forma de energia consciente.
É o corpo do poder, não o da carne.
Esse corpo adamantino é imortal porque já não
pertence ao domínio do tempo.
Ele é o corpo que permanece quando os elementos se dissolvem — o veículo da
consciência pura.
Os textos chamam-no também divya-deha,
“corpo divino”, e siddha-deha, “corpo
perfeito”.
O adepto que o alcança é chamado dehīśvara,
“senhor do corpo”.
Ele transcendeu a dualidade espírito–matéria; sua própria corporeidade
tornou-se manifestação da divindade.
5. O Fogo como Via de Imortalidade
O caminho do fogo é o caminho da imortalidade.
Todas as tradições antigas reconheceram no fogo o símbolo do espírito que não
morre.
Nos Vedas, Agni é “aquele que leva os
deuses à imortalidade”.
Na tradição grega, o fogo de Prometeu é a centelha divina no homem.
Na tradição cristã esotérica, o Espírito Santo é fogo.
O Tantrismo une todas essas concepções numa síntese operativa: o fogo é a força
que transmuta o corpo em luz e a consciência em eternidade.
O Śiva-Saṃhitā
ensina:
“Quando o fogo queima no coração e se eleva
até o crânio, a morte não mais existe.
O yogin torna-se fogo e luz, e o tempo não o alcança.”
Essa imortalidade não é mera sobrevivência
espiritual após a morte, mas continuidade
da consciência no próprio corpo.
O adepto mantém-se desperto enquanto o corpo se dissolve; ele atravessa a morte
como quem atravessa o sono.
O fogo interior consome os vínculos com o mundo fenomênico, e a consciência
permanece luminosa.
É o estado de mahā-samādhi, absorção
suprema.
Evola observa que o Tantrismo supera aqui a
limitação das escolas ascéticas, que concebem a libertação como evasão do mundo.
Para o siddha, o corpo é libertado junto
com o espírito; a imortalidade é plenitude,
não fuga.
A redenção é total, pois abarca todas as dimensões do ser.
6. O Homem Solar
O siddha
que alcança o corpo de luz é chamado também sūrya-puruṣa,
o homem solar.
Ele é o símbolo do centro imutável, fonte de calor e esplendor.
O sol é a imagem visível do fogo interior universal; o homem solar é aquele que
se tornou sol.
Ele irradia vida e poder, mas é indiferente às sombras.
Seu olhar queima e ilumina, e onde quer que esteja, ele é o eixo do mundo.
O Kaulajñāna-Nirṇaya
descreve o homem solar como aquele que “permanece imóvel enquanto tudo se move;
que vive sem respirar; que é luz entre as trevas”.
Esse estado é a consumação da via tântrica: o retorno do poder à sua fonte.
O fogo que dormia na base do corpo ascende, une-se ao fogo celeste e torna-se
um só esplendor.
O yogin é agora o próprio Śiva manifestando-se em carne de diamante.
Evola observa que essa figura corresponde, no
Ocidente, ao ideal do homem
de ouro das tradições herméticas e pitagóricas — o ser que
realizou em si a unidade entre matéria e espírito, natureza e divindade.
Na Idade Média, seria o “corpo de glória” dos santos; na alquimia, o “corpo
incorruptível” do lapis philosophorum.
Em todos os casos, trata-se da mesma conquista: a fixação da luz.
7. O Fim da Obra
A meta da via tântrica é a coincidência entre o poder e o ser,
entre o fogo e a consciência.
O adepto torna-se o centro imóvel do universo, o eixo de Śiva em estado
desperto.
Não há mais nascimento nem morte, nem diferença entre o interior e o exterior.
O corpo é luz, e a luz é o corpo.
O tempo se detém, o movimento se recolhe, e o ser resplandece como sol eterno.
O Kaula-Upaniṣad
exprime essa realização suprema:
“Quando o fogo do coração se une à lua da
mente e ambos desaparecem no éter da cabeça,
o yogin torna-se Śiva, e o corpo, templo do esplendor imortal.”
Evola conclui que o Tantrismo conduz a um tipo
de imortalidade que não é esperança, mas conquista.
O homem não espera a salvação: ele a realiza.
O corpo, longe de ser prisão, é o campo de operação da vitória; a morte é
apenas o último véu a ser rasgado pelo fogo.
O adepto que chega a esse ponto é, literalmente, um Deus em forma humana.
Seu corpo é o selo visível de uma vitória invisível — a vitória sobre o tempo,
o destino e a morte.
Síntese
evoliana:
A via do fogo é a via da imortalidade.
O corpo é o altar e o campo de batalha; o prāṇa, a arma; Kuṇḍalinī, o fogo que devora e liberta.
Quando o homem desperta esse fogo e o conduz à coroa, torna-se luz viva.
A imortalidade não é evasão do corpo, mas sua consumação na claridade.
O siddha é o homem solar: corpo de
diamante, consciência incandescente, presença imóvel no centro do mundo.
Ele não vive — ele é vida.
Não resplandece — ele é o próprio esplendor.
Capítulo IX — O Mistério da Palavra, do Som e da Vibração
Entre os diversos princípios do Tantrismo,
nenhum é mais profundo nem mais universal que o do som como essência do ser.
A metafísica tântrica reconhece que o universo é, em sua natureza última, vibração (spanda), e que o som (śabda) é a expressão imediata dessa vibração.
Toda forma, toda energia, todo pensamento é manifestação de um ritmo primordial.
A realidade é som condensado; a criação, uma palavra tornada mundo.
Evola inicia este capítulo recordando que a
mesma concepção está presente nas mais antigas tradições.
Nos Vedas, lê-se: “No princípio era Vāc,
a Palavra; e Vāc era com Brahman, e Vāc era Brahman.”
Na Grécia, a tradição órfico-pitagórica ensinava que “todas as coisas são
números e sons”.
No Evangelho de João, encontramos a formulação equivalente: In principio erat Verbum — “No princípio era
o Verbo.”
Em todos esses casos, o som não é fenômeno físico, mas princípio ontológico: o
ritmo pelo qual o Ser se manifesta.
1. O Śabda-Brahman: O Verbo como
Realidade Suprema
Nos Tantras, o som primordial é chamado Śabda-Brahman — “o
Absoluto como Palavra”¹.
Ele é a vibração eterna da consciência pura, anterior a toda manifestação
sensível.
Não se trata de som audível, mas de princípio vibratório que está na base de
toda forma de existência.
¹ Śabda-Brahman:
literalmente “Brahman em forma de som”. É a concepção de que o Ser absoluto
(Brahman) se expressa ritmicamente, e que o som é o primeiro modo de sua
automanifestação. No Ocidente, corresponde ao Logos de Heráclito e ao Verbum
Dei do Prólogo do Evangelho de João.
Esse princípio é também identificado ao poder de Vāc, a deusa da
Palavra, mãe dos Vedas e fonte do conhecimento.
Vāc é Śakti na forma de som.
Ela é o meio pelo qual o não-manifesto se torna manifesto, o elo entre o
silêncio de Śiva e o movimento de Śakti.
Toda criação é ato de vibração verbal: o Absoluto “fala” o mundo.
O Śiva-Sūtra
declara:
“O som é o corpo de Śiva; a vibração é sua
respiração.”
Assim, o universo é visto como mantra cósmico, uma
sucessão infinita de sons e ritmos que se interpenetram.
Cada ser, cada elemento, é uma sílaba da Palavra universal.
2. Os Quatro Níveis da Palavra (Vāk)
A tradição tântrica distingue quatro níveis da
Palavra — parā, paśyantī, madhyamā e vaikharī² — correspondendo aos graus de
densificação do som, do espiritual ao material.
² Parā (“suprema”):
som inefável, puro potencial vibratório no Absoluto;
Paśyantī (“visível”): vibração
intuitiva, forma sutil ainda sem articulação;
Madhyamā (“intermediária”): palavra
interior, pensamento articulado;
Vaikharī (“manifestada”): palavra
audível, som físico pronunciado.
Esses quatro níveis constituem o ciclo
completo da manifestação.
No nível supremo, parā-vāk, o som não é
ainda som, mas poder silencioso de
vibração — o mesmo que a “Palavra silenciosa” dos místicos.
No nível seguinte, paśyantī, a vibração
torna-se imagem ou ideia, uma forma-luz interior; é o que os gnósticos
chamariam pleroma, o mundo das formas
arquetípicas.
Em madhyamā, o som assume forma mental;
é o verbo interior, o pensamento.
Por fim, em vaikharī, ele se manifesta
como som articulado, a palavra audível.
Essa hierarquia mostra que toda fala humana é extensão da Palavra
divina.
Quando o homem fala, é o próprio Śabda-Brahman que ressoa através dele.
Falar é criar — ainda que em escala reduzida.
Daí o caráter sagrado da linguagem em todas as tradições antigas, onde o verbo
possuía poder mágico.
3. O Nāda e o Bindu: Som e Ponto de Luz
No estágio mais sutil do som, antes de
tornar-se palavra, há o nāda
— a vibração inaudível — e o bindu,
o ponto de concentração dessa vibração.
Esses dois princípios constituem o núcleo do universo manifestado.
O nāda
é o som interno, a vibração cósmica percebida como murmúrio ou zumbido na
meditação profunda.
É o “som sem som”, o anāhata-nāda³, eco
do silêncio absoluto.
O bindu, literalmente “gota” ou “ponto”,
é o centro de condensação dessa vibração — o germe de toda forma.
³ Anāhata-nāda:
“som não batido”, ou seja, som que não resulta de impacto físico, mas surge
espontaneamente no interior da consciência.
O coração, anāhata-cakra, leva esse nome
por ser o ponto onde tal som é ouvido.
O nāda
corresponde ao aspecto dinâmico de Śakti; o bindu,
ao aspecto estático de Śiva.
Da união de ambos nasce o cosmos — luz e som em interpenetração.
O universo é a expansão do nāda a partir
do bindu, como o círculo que se forma em
torno de uma centelha de luz.
Evola observa que esse simbolismo coincide com
a doutrina pitagórica segundo a qual o ponto e o som são as raízes da geometria
e da música — expressão do mesmo princípio criador.
A vibração gera número, e o número gera forma.
Por isso, toda forma é “som congelado”.
4. O Poder do Mantra
A ciência tântrica do som atinge sua expressão
mais precisa na doutrina do mantra.
Um mantra não é mera fórmula religiosa,
mas estrutura sonora de
poder.
Cada mantra é vibração específica do Śabda-Brahman, e sua repetição (japa) tem
efeito direto sobre o corpo sutil e sobre o cosmos.
O mantra
atua porque reproduz em pequena escala o processo da criação.
Ao pronunciar o som sagrado, o praticante imita o ato divino de projeção da
energia.
Mas o mantra não é eficaz pela fé, e sim pela correspondência vibratória
entre o som e a realidade que ele expressa.
Por isso, os Tantras insistem que o mantra deve ser recebido do guru — pois a
entonação, o ritmo e a intenção correta só podem ser transmitidos pela presença
viva.
Os mantras são classificados segundo sua
função:
·
bīja-mantras
(“sementes”) — sons elementares que condensam energias cósmicas, como Om, Hrīm,
Klīm, Aim;
·
vidyā-mantras
— fórmulas mais extensas associadas a divindades específicas;
·
mālā-mantras
— rosários de sons que regulam o fluxo do prāṇa.
Cada som atua sobre determinado cakra e mobiliza determinada qualidade de
Śakti.
O bīja-mantra Hrīm, por exemplo, está ligado à deusa Tripurasundarī e ao
poder de manifestação luminosa; Klīm
atua sobre o desejo, e Om sintetiza a
totalidade dos planos do ser.
Evola observa que o mantra-yoga é a ciência mais precisa da vibração, e que sua
eficácia nada tem de supersticiosa: trata-se de física metafísica do som,
que opera diretamente sobre o corpo energético do homem.
Os bījas são chaves vibratórias, tão
exatas quanto uma fórmula matemática ou uma nota musical ressonando em sua
frequência própria.
5. O Om: Som Total
O som supremo é o Om (Aum), síntese de todos os mantras.
Ele é a expressão integral do Śabda-Brahman e contém, em suas três letras, os
três estados da consciência — vigília (A),
sonho (U) e sono profundo (M).
O silêncio que o segue representa o quarto estado, turīya, a pura transcendência.
O Māṇḍūkya
Upaniṣad declara:
“Om é este Todo.
O passado, o presente e o futuro são Om;
e o que transcende o tempo também é Om.”
O Om é,
portanto, o som do próprio Ser.
Recitá-lo é pôr-se em ressonância com o ritmo universal.
Sua vibração desperta as correntes sutis da Suṣumṇā,
harmoniza os cakras e dissolve a
dualidade interior.
Os Tantras o chamam “raiz de todos os sons” (nāda-mūla).
Evola nota que o Om é, para o Oriente, o equivalente do “Verbo” cristão.
Ambos expressam o poder criador do som primordial.
Mas enquanto o Verbum é concebido como
ato de Deus exterior ao homem, o Om é
vibração imanente: é o próprio som que o adepto pode reproduzir e, assim, tornar-se co-criador com o Absoluto.
6. O Som e o Corpo Sutil
A relação entre som e corpo sutil é central na
prática tântrica.
Cada órgão, cada nervo, cada centro de força tem sua frequência vibratória
própria.
Através do som, é possível despertar, curar ou dominar essas energias.
O corpo humano é um instrumento musical, e o yogin é o músico que o afina.
A dissonância — desequilíbrio físico ou psíquico — é correção vibratória mal
feita; o mantra restabelece a harmonia.
O Tantra-Sāra
descreve o corpo do adepto perfeito como “harpa de luz, tocada pelo sopro do
prāṇa”.
Cada respiração é uma nota; cada pulsação, um ritmo do som cósmico.
A meditação sobre o nāda conduz à
percepção dessa música interior — a nāda-anusandhāna,
que culmina no silêncio pleno (śānta).
Esse silêncio não é ausência de som, mas plenitude vibrante.
É o ponto onde o som se reabsorve em sua fonte — para-vāk.
7. A Ciência da Vibração e a Ontologia do Som
O princípio do som como realidade essencial
conduz a uma ontologia vibratória.
Tudo o que existe é vibração em diferentes graus de densidade:
a matéria é som coagulado; o pensamento, som sutil; o espírito, som silencioso.
Assim como o fogo transita do calor invisível à chama e à luz, a vibração
transita do inaudível ao audível, do invisível ao visível.
A ciência moderna, ao descobrir que toda matéria é energia e que toda energia é
onda, confirma — ainda que inconscientemente — essa doutrina milenar.
Mas, para o Tantrismo, o essencial não é o
conhecimento teórico dessa vibração, e sim o domínio consciente do ritmo interior.
O homem é microcosmo sonoro: ele pode tornar-se afinado com a vibração
universal ou dissonante dela.
A prática do mantra, do pranayama e da meditação sobre o nāda tem precisamente essa finalidade: restabelecer a
harmonia com o Śabda-Brahman.
O yogin que alcança o domínio do som alcança
também o domínio da forma e da matéria.
Ele é capaz de atuar diretamente sobre a estrutura vibratória do mundo.
Daí a afirmação dos Tantras: “O que o sábio diz, acontece.”
O verbo do siddha é criador, pois é o
prolongamento do verbo cósmico.
Ele fala em uníssono com o universo.
8. O Retorno ao Silêncio
O fim supremo da via sonora é o retorno ao
silêncio.
O som conduz à sua própria superação.
Quando a vibração é levada ao extremo de pureza, ela se dissolve no imutável.
Esse é o sentido do anāhata-nāda, o
“som não batido”, que ecoa sem vibração física.
O ouvido interior do yogin percebe, no coração, o zumbido eterno da vida — e,
ao mesmo tempo, o silêncio que o contém.
Evola observa que esse ponto final da via
sonora corresponde ao estado de samādhi:
a fusão da consciência individual com o ritmo cósmico.
O adepto torna-se silêncio vivo — “a pausa entre os sons”, o ponto imóvel em
torno do qual tudo vibra.
O som não mais vem de fora nem de dentro: ele é o próprio ser.
O Kaula-Upaniṣad
resume:
“O som nasce do silêncio, e o silêncio é o
coração do som.
Aquele que conhece o som conhece Śiva.”
Síntese
evoliana:
O universo é vibração; o ser, ritmo; a consciência, som silencioso.
Tudo o que existe é Palavra — o Śabda-Brahman
— manifestando-se em graus.
O homem, microcosmo sonoro, possui no mantra a chave da criação.
O som desperta o corpo, o corpo desperta o fogo, e o fogo retorna à consciência.
Quando o yogin ouve, no coração, o som não
batido, cessa o mundo das formas: ele reencontra o silêncio de onde tudo
procede.
Nesse silêncio ressoa o Verbo eterno — o poder que é ao mesmo tempo som, luz e
ser.
Capítulo X — A Palavra Criadora e o Poder do Mantra
O princípio fundamental da ciência tântrica é
que o som é força.
A vibração sonora não é fenômeno acústico, mas expressão direta do poder (śakti).
Assim como o universo foi projetado pelo Śabda-Brahman
— o Verbo Cósmico —, também o homem, microcosmo, possui na palavra a capacidade
de criar, destruir e
transformar.
Toda palavra é uma onda que atua simultaneamente nos planos físico, psíquico e
espiritual.
Por isso, a tradição védica dizia: mantra eva
devatā — “o mantra é a própria divindade”.
1. O Princípio da Palavra Criadora
Na doutrina tântrica, o som e o ser são
idênticos: śabda e artha não são dois, mas um.
O som é a forma vibratória do ser, e o ser é o significado do som.
Essa identidade, chamada śabda–artha-sāmya,
é o fundamento da eficácia do mantra.
Recitar o nome de uma divindade não é apenas evocá-la: é fazer vibrar sua essência,
porque o nome e o ser nomeado são, ontologicamente, a mesma realidade em dois
modos de densidade.
Evola explica que, nesta perspectiva, o verbo é ação.
A fala humana, quando articulada segundo certas leis vibratórias, produz
efeitos objetivos.
Por isso, a ciência dos mantras não pertence ao domínio da psicologia ou da fé,
mas ao da mágica metafísica.
Falar, para o tântrico, é operar.
Cada sílaba é um ato, e cada ato tem ressonância cósmica.
O Tantra-Sāra
afirma:
“Assim como o fogo está oculto na madeira e
aparece pelo atrito, assim o poder do som está oculto na palavra e manifesta-se
pela entoação correta.”
A diferença entre o discurso comum e o mantra
é a mesma que há entre um som casual e uma nota musical precisa.
O mantra atua porque ressoa em harmonia com a estrutura vibratória do universo.
2. O Mantra como Corpo da Divindade (Mantra–deha)
O mantra
não é simples meio de comunicação, mas corpo
sonoro do deus.
Cada divindade possui uma forma (rūpa),
uma energia (śakti) e um som (mantra).
Esses três aspectos são inseparáveis: o som é a divindade em vibração.
Por isso, entoar o mantra é corporificar
o deus no espaço sonoro.
O Tantra
diz:
“O mantra é o corpo de Śiva; o som é seu
hálito; a letra, seu membro.”
Essa concepção confere à palavra caráter
ontológico.
O som não representa o divino — ele o presentifica.
O iniciado que pronuncia o mantra correto, com consciência e ritmo adequados,
faz descer sobre si a presença real da energia invocada.
É o processo chamado āveśa — “descida da
divindade” — análogo ao śakti–pāta da
iniciação.
O bīja–mantra
— a “semente” — é a forma mais condensada desse poder.
Cada bīja é uma sílaba de energia pura,
síntese de uma divindade inteira.
Assim, Om representa o Absoluto, Hrīm a beleza teofânica de Tripurasundarī, Klīm o magnetismo de Kṛṣṇa, Haṃ a respiração cósmica de Śiva.
A pronúncia correta do bīja é
considerada ato criador.
O som, articulado em estado de pureza interior, cria o campo onde o divino pode
manifestar-se.
3. O Poder Operativo do Som
A ciência do mantra baseia-se em três fatores:
som, ritmo e intenção.
O som fornece a vibração fundamental; o ritmo a ordena; a intenção (bhāva) a direciona.
Esses três aspectos correspondem a Śakti
(poder), Kāla (tempo) e Citta (consciência).
A recitação (japa) deve, portanto, ser executada com plena atenção
interior, sincronizada à respiração e à pulsação.
O som segue o movimento do prāṇa: a inspiração é so, a expiração é ham,
formando o mantra natural so–ham — “Eu
sou Ele”.
Esse é o som universal do ser, constantemente entoado por todos os seres vivos,
consciente ou inconscientemente.
O Mantra–yoga
consiste em tornar consciente essa vibração inata.
Quando o adepto realiza o so–ham em
plena consciência, ele se reconhece como Śiva.
O mantra deixa de ser meio e torna-se identidade: o som e o ser tornam-se um
só.
Evola comenta que esse princípio equivale, em
termos ocidentais, à doutrina hermética do Verbum
Operans, o Verbo que age por si mesmo.
O mago, ao pronunciar a palavra de poder, não “invoca” — ele reproduz a vibração original.
Daí a fórmula dos Tantras: mantra-caitanya
— “o mantra é vivo”.
O som desperto é um ser consciente que age no plano vibratório do cosmos.
4. O Svara: A Respiração e o Ritmo
Cósmico
O svara–yoga,
ciência complementar do mantra–yoga,
ensina que o universo inteiro respira ritmicamente, e que o som é a modulação
dessa respiração.
A respiração humana é microcosmo do sopro cósmico (mahā–prāṇa).
Ao harmonizar a entoação do mantra com o fluxo do ar, o praticante
sincroniza-se com o próprio ritmo do universo.
A alternância entre inspiração (pūraka) e expiração (recaka) corresponde à pulsação de Śiva e Śakti,
contração e expansão do ser.
O momento entre os dois movimentos (kumbhaka)
é o ponto de silêncio, onde se realiza o bindu.
É ali que o som se dissolve e o poder se recolhe.
O Śiva–Sūtra
declara:
“Aquele que conhece o som do sopro conhece o
segredo da criação.”
Evola nota que esse princípio tem paralelo nas
tradições herméticas — o fiat lux como
emissão do sopro divino — e no Evangelho de João, onde o pneuma (Espírito) e o logos
(Verbo) são inseparáveis.
No Tantra, essa identidade é levada à operação concreta: o som segue o sopro, e
o sopro segue a consciência.
Quando os três são unificados, a vibração torna-se ilimitada.
5. A Palavra e o Pensamento Criador
A força do mantra não reside apenas na
vibração física, mas também na vibração
mental.
O pensamento, sendo igualmente som sutil (madhyamā–vāk),
participa do mesmo poder criador.
Assim, a meditação silenciosa do mantra — manasika–japa
— é considerada mais elevada que a recitação vocal.
Nesse estado, o som não é ouvido, mas pensado: ele vibra diretamente no corpo causal.
Evola observa que essa prática corresponde ao
princípio da “palavra interior” das escolas platônicas e patrísticas — o verbum mentis de Santo Agostinho —, onde o
pensamento é visto como verbo não pronunciado, mas criador em potência.
O Tantrismo leva essa ideia à experiência direta: o adepto percebe o som
vibrando em sua mente como luz.
O Vijñāna–Bhairava–Tantra
diz:
“Medita sobre o som do mantra até que ele
cesse de ser som e torne-se consciência.
Nesse instante, o mantra te consumirá e te tornará o próprio Śabda–Brahman.”
O mantra, portanto, é meio de dissolução: ele
conduz o praticante do som audível ao inaudível, do verbo exterior ao verbo
absoluto.
6. O Nome e o Ser (Nāma–Rūpa)
Segundo a metafísica tântrica, tudo o que
existe é nāma–rūpa, “nome e forma”.
O nome é a vibração; a forma, sua cristalização.
O universo inteiro é o desdobramento do Nome de Deus.
O adepto que domina o som domina também a forma: ele é capaz de agir sobre as
coisas modificando suas frequências nominais.
Essa doutrina ecoa no hermetismo egípcio e na
Cabala: conhecer o verdadeiro nome de algo é possuir poder sobre ele.
Mas o Tantrismo ultrapassa o simbolismo teúrgico e chega à operação vibratória
pura.
O som, articulado segundo sua natureza, reordena as ondas do real.
Evola destaca que essa concepção faz do homem
um co-criador.
Ao pronunciar o verbo com consciência de identidade, o yogin realiza o mesmo
ato que o Absoluto executou no princípio.
A palavra humana, purificada e unida à intenção divina, torna-se palavra
criadora.
O adepto é, nesse sentido, “Brahman em ato”.
7. O Mantra e o Estado de Turiya
A repetição prolongada do mantra conduz à
dissolução da dualidade entre o som e o ouvinte.
O som, a respiração e a mente convergem num único ponto de vibração luminosa.
Nesse ponto, o adepto penetra o estado de turiya, o “quarto
estado”, além da vigília, do sonho e do sono.
No turiya,
o som e o silêncio tornam-se uma só coisa.
A vibração é percebida não mais como movimento, mas como presença pura.
Esse é o estado de Śabda–Brahman
realizado, em que o yogin é o próprio som primordial.
O universo vibra nele e por ele.
Evola descreve essa culminância como “o
triunfo da palavra sobre o silêncio e do silêncio sobre a palavra”.
O verbo torna-se ser, e o ser, verbo.
O iniciado, unificado ao ritmo eterno, participa do poder criador do Absoluto:
ele é, literalmente, a Palavra feita carne e luz.
8. A Reintegração pelo Verbo
O ciclo da criação e da reintegração se
encerra onde começou: no som.
Do silêncio brota o verbo; do verbo, o mundo; e, pelo verbo, o retorno ao
silêncio.
Essa é a lei da vibração cósmica.
O mantra é o fio que liga o homem ao Absoluto — a “escada sonora” pela qual a
consciência sobe do tempo à eternidade.
Evola encerra este capítulo afirmando que o Tantrismo é a ciência do Verbo:
a redescoberta do poder divino da linguagem e do som.
A palavra, quando purificada de intenção profana, torna-se veículo do poder.
Falar é criar; calar é reabsorver.
O iniciado que compreende isso é senhor do fogo e do verbo — o verdadeiro mantra–siddha, “aquele que realizou o
mantra”.
Síntese
evoliana:
A palavra é poder.
O universo nasceu de um som, e o homem, repetindo esse som, torna-se criador.
O mantra é o corpo vibrante da divindade; sua entoação é o ato pelo qual o
Absoluto se manifesta no indivíduo.
O adepto, unificando som, sopro e consciência, retorna à origem — o silêncio de
onde procede o Verbo.
Nesse estado, ele não fala: é
falado pelo próprio Brahman.
Sua palavra move mundos, pois é a própria respiração de Śiva.
Capítulo XI — O Caminho da Mão Esquerda (Vāma–mārga)
I. O Significado da “Mão Esquerda”
Entre as diversas vias do Tantrismo, a mais
audaciosa e temida é a chamada Vāma–mārga,
literalmente “Caminho da Mão Esquerda”.
Em oposição ao Dakṣiṇa–mārga,
o “Caminho da Mão Direita”, de caráter ascético, ritual e ortodoxo, o
Vāma–mārga representa a via
do poder pela transgressão — o uso consciente e ritualizado das
forças normalmente interditas.
O termo vāma
significa simultaneamente “esquerda”, “contrário”, “inverso”, e também “belo” e
“feminino”.
Essa ambiguidade é essencial: o caminho da esquerda é o caminho do feminino divino, da
energia (śakti) em sua manifestação
ativa e não submissa, daquilo que, para as formas religiosas comuns, aparece
como perigoso, invertido ou profano.
Evola observa que o símbolo da esquerda não
indica simplesmente oposição moral, mas reversão
polar: o retorno ao princípio original anterior à cisão entre
puro e impuro, sagrado e profano, lícito e ilícito.
O adepto da mão esquerda busca, não evitar o veneno, mas transformá-lo em antídoto.
Sua lei é a da inversão hierática: “o que escraviza o ignorante liberta o
sábio”.
II. A Função da Transgressão
O Vāma–mārga tem como fundamento a ideia de
que toda interdição (niṣedha) esconde um
poder.
O proibido é, em si mesmo, um concentrado
de energia.
As normas morais e religiosas ordinárias servem para conter forças que, se
liberadas sem controle, destruiriam; mas, quando dominadas ritualmente,
tornam-se meios de libertação.
Assim, a transgressão consciente é ato de poder, não de desvio.
Evola explica que este é o princípio da “via
heroica”: a libertação não pela fuga do mundo, mas pela conquista do mundo.
Enquanto o asceta da mão direita evita a tentação, o do caminho esquerdo entra nela como quem entra em combate.
Sua tarefa é permanecer imóvel no meio do fogo, dominar o impulso, não
suprimindo-o, mas convertendo-o em energia pura.
A fórmula tântrica resume:
“Aquele que, tocando o veneno, não é
envenenado, esse é o verdadeiro herói (vīra).”
O vīra–bhāva
— o “estado heróico” — é a disposição espiritual própria deste caminho.
O praticante é convidado a confrontar as potências que escravizam o homem
comum: o prazer, o medo, o desejo, o horror, o instinto de vida e de morte.
Cada uma dessas potências é uma forma de Śakti; e dominá-la equivale a dominar
a própria deusa.
III. A Estrutura Iniciática do Vāma–mārga
A prática da mão esquerda está reservada
àqueles que já ultrapassaram o dualismo moral e as emoções humanas ordinárias.
Ela exige o estado de vīra, isto é, do
“herói espiritual”, que permanece lúcido e centrado em meio à paixão e ao
perigo.
O Kularnava–Tantra adverte:
“O caminho da esquerda é para os fortes.
Aquele que não é senhor de si será destruído como aquele que brinca com a
serpente desperta.”
Por isso, o Vāma–mārga não é alternativa
inferior ao Dakṣiṇa–mārga, mas sua culminação.
O asceta que purificou o corpo e a mente pode então enfrentar as potências do
mundo sem ser vencido por elas.
O profano que tenta o mesmo caminho é consumido pela própria força que desejava
dominar.
Evola insiste que a “mão esquerda” não é uma
forma de hedonismo sagrado, mas disciplina
extrema, mais severa que qualquer ascetismo.
Ela requer domínio absoluto da emoção e do pensamento, a ponto de tornar o ato
mais perigoso em ato puro.
O iniciado deve estar no mundo “como o lótus na água — tocando-a, mas sem
molhar-se”.
IV. O Princípio das “Cinco Substâncias”
(Pañca–makāra)
O núcleo simbólico da via da mão esquerda é o
rito das cinco substâncias
iniciáticas, conhecidas como pañca–makāra
(“os cinco M’s”, porque seus nomes em sânscrito começam com a letra m):
1.
Madya — o vinho
ou licor;
2.
Māṃsa — a carne;
3.
Matsya — o
peixe;
4.
Mudrā — o cereal
consagrado (ou gesto ritual);
5.
Maithuna — a
união sexual.
Esses elementos correspondem às cinco
potências fundamentais do mundo vital.
No plano profano, são objetos de prazer ou pecado; no plano ritual, tornam-se
instrumentos de transmutação.
O sentido do rito não está no consumo material dessas substâncias, mas na conversão da experiência sensorial em
energia espiritual.
Evola adverte que, em sua forma mais profunda,
o pañca–makāra não é prática física, mas
operação interior,
em que cada substância é símbolo de uma força cósmica.
Beber o vinho significa absorver o fogo divino; comer a carne, assimilar o
princípio vital; comer o peixe, dominar as correntes aquáticas do desejo;
praticar mudrā, controlar a respiração e
os gestos do poder; e o maithuna
simboliza a reintegração dos polos masculino e feminino.
Em seu sentido mais esotérico, esses atos
correspondem à reintegração dos elementos dispersos no homem: terra, água,
fogo, ar e éter.
O adepto torna-se microcosmo consciente da obra divina da criação e dissolução.
V. A Alquimia da Energia
O fundamento do Vāma–mārga é o mesmo da
alquimia: transmutar o veneno em
remédio.
O vinho é embriaguez para o profano; para o iniciado, é amṛta, “néctar de imortalidade”.
O prazer sexual é escravidão para o comum; para o vīra, é fogo ascensional que desperta Kuṇḍalinī.
Assim, cada ato de prazer, medo ou terror é transformado em ocasião de
libertação.
O Tantra–Sāra
diz:
“O que leva os outros à ruína, leva o sábio à
libertação.
O fogo que queima o mundo, ele o transforma em luz.”
Evola explica que o segredo está em inverter o sentido da energia.
O impulso que, no homem comum, desce e se esgota na sensação, no vīra sobe e se transmuta.
Essa inversão (ūrdhva–retas, “fluxo
ascendente”) é a essência da via tântrica: não negar a energia vital, mas reverter sua direção,
convertendo o impulso genésico em força espiritual.
Assim, o caminho da mão esquerda é o caminho
da energia em estado livre — não mais aprisionada pelas formas morais,
biológicas ou sociais.
A libertação é alcançada no próprio coração da paixão, pela reversão do seu
sentido.
Notas
explicativas:
1.
Vāma–mārga
— literalmente “caminho da esquerda”; via iniciática que utiliza os elementos
interditos para fins de libertação espiritual.
2.
Dakṣiṇa–mārga
— “caminho da direita”; via ortodoxa, ascética e ritualista.
3.
Vīra
— “herói espiritual”, aquele que enfrenta as potências do mundo sem ser
vencido.
4.
Pañca–makāra
— “os cinco M’s”: símbolos rituais da transmutação das energias vitais.
5.
Maithuna
— união sexual sagrada, rito de reintegração dos opostos, não ato sensual.
6.
Ūrdhva–retas
— “ascensão da semente”, transmutação da energia genésica em poder espiritual.
Síntese
da Seção I:
O Vāma–mārga é o caminho da transgressão
sagrada, onde o profano é utilizado como matéria da obra espiritual.
Não se trata de negação moral, mas de inversão hierática.
O adepto, firme em seu centro, penetra nas forças que escravizam o homem comum
e as transforma em instrumentos de ascensão.
A verdadeira pureza não está em evitar o fogo, mas em atravessá-lo sem ser
queimado.
A libertação é conquista — e o herói espiritual é aquele que, dominando a paixão,
converte o veneno em luz.
II. O Maithuna e a Reintegração dos Opostos
Entre todos os elementos do Vāma–mārga, nenhum é mais central — e mais mal compreendido —
do que o maithuna,
a união sexual sagrada.
Enquanto as doutrinas religiosas e morais veem no sexo o ponto de maior
afastamento do divino, o Tantrismo reconhece nele o ponto de contato mais direto com o poder cósmico.
A força que gera a vida é a mesma que sustenta o universo: Śakti.
A sexualidade é o reflexo terrestre da união eterna entre Śiva e Śakti —
consciência e energia, repouso e movimento, espírito e natureza.
Evola observa que o maithuna é o rito
supremo de reintegração, não um exercício de prazer, mas de
poder.
Trata-se de restaurar, por meio da união consciente, a polaridade primordial destruída
pela queda da humanidade no dualismo.
No maithuna, o homem e a mulher deixam
de ser dois indivíduos e tornam-se os polos complementares de um único campo de
energia divina.
1. A Polaridade Mística de Śiva e Śakti
No plano metafísico, toda a criação é vista
como o resultado da interação de dois princípios absolutos: Śiva, o polo imutável da consciência, e Śakti, o poder dinâmico da manifestação.
Sua união é o mistério central do universo, simbolizado no emblema do liṅga (princípio masculino) inserido no yoni (princípio feminino).
O mundo existe enquanto esses dois polos estão unidos; quando se separam,
sobrevém a dissolução.
Assim, o ato sexual, em sua dimensão sagrada,
é imitação do ato cósmico
da criação.
O homem representa Śiva, a mulher
representa Śakti.
Mas a meta não é gerar vida física: é despertar, no microcosmo humano, o mesmo
poder que, no macrocosmo, faz mover os mundos.
Evola explica que, nesse contexto, o amor
físico torna-se operador de iniciação.
O toque, o olhar, a respiração, o fluxo das energias são transformados em
símbolos vivos da interação entre o Imutável e o Mutável.
O corpo é o templo; o desejo, o fogo sacrificial; e o êxtase, a dissolução no
Absoluto.
2. A Condição do Vīra
O maithuna
não pode ser praticado por quem ainda é dominado pelo desejo.
O requisito é o estado de vīra, “herói
espiritual”, isto é, aquele que domina o impulso em vez de ser dominado por ele.
O Kularnava–Tantra adverte:
“A união feita com desejo é caminho para a
morte;
a união feita em pureza é caminho para o céu.”
O vīra
é aquele que, em meio ao prazer, permanece
imóvel no centro do ser.
Ele não busca a mulher, mas o poder que nela vibra; não busca o prazer, mas o
fogo que dele nasce.
Sua tarefa é conter a energia no auge da excitação e fazê-la ascender pela Suṣumṇā.
O gozo é assim convertido em luz; o desejo, em claridade.
Esse processo é chamado vajrolī–mudrā —
a reversão da corrente
vital.
Evola compara essa atitude à do guerreiro que,
no momento do perigo extremo, encontra serenidade.
O maithuna é combate espiritual: o campo
de batalha é o corpo, a arma é o domínio da energia, e a vitória é o silêncio
incandescente que sucede ao êxtase.
3. O Sentido do Maithuna
A essência do maithuna não está no ato, mas no estado de consciência
durante o ato.
No momento em que a polaridade se intensifica ao máximo, o vīra e a śakti
tornam-se espelho um do outro:
Śiva e Śakti, no plano humano, reencontram sua unidade.
O êxtase sexual, quando vivido em lucidez absoluta, é o mesmo que o samādhi: dissolução do eu na totalidade.
O Tantra–Sāra
diz:
“Quando o prazer é sentido como não vindo de
ti, nem do outro, mas do Um,
então esse prazer é liberação.”
Por isso, o maithuna
é descrito como “o caminho rápido” (sukha–mārga).
O tempo se suspende; o movimento cessa; a energia se recolhe no ponto imóvel do
ser.
O corpo, o gozo e o mundo tornam-se transparência da Consciência pura.
Evola sublinha que essa experiência não é
mística no sentido sentimental, mas metafísica
e ativa.
A mulher não é mediadora do amor divino, mas manifestação direta de Śakti.
O homem, ao unir-se a ela sem se perder, realiza a coincidência dos opostos — a
unidade do fogo e do espaço, do espírito e da matéria.
4. O Segredo da Continência
O ponto crucial do maithuna é a continência
perfeita (brahmacarya).
O poder gerador, normalmente disperso no prazer e na ejaculação, é retido e
sublimado.
A energia não deve sair, mas ascender.
A força seminal (bindu), quando
conservada, torna-se ojas — energia
luminosa e imortal.
O Gorakṣa–Śataka
ensina:
“Aquele que conserva a semente é senhor do
destino;
aquele que a desperdiça é escravo da morte.”
Essa doutrina é comum a todas as formas
superiores de yoga, mas no Vāma–mārga
ela adquire caráter sacramental:
a retenção da energia no próprio ato de união simboliza o domínio total da
força cósmica.
O adepto não é levado pelo fluxo da natureza: ele o inverte.
Enquanto o homem comum morre a cada prazer, o vīra renasce em cada transmutação.
Evola interpreta isso como realização do
princípio hermético solve et coagula:
dissolver o eu na energia, coagular a energia no ser.
O prazer é o fogo que dissolve; a continência, o sopro que o cristaliza em luz.
5. O Maithuna Interior
Nos graus mais altos, o maithuna deixa de ser ato físico e torna-se operação interior.
O adepto une em si mesmo os dois polos: o solar e o lunar, o masculino e o
feminino, o ativo e o receptivo.
Ele realiza a androgynia divina (ardha–nārīśvara), simbolizada pela figura de
Śiva metade homem, metade mulher.
Nesse estado, a energia circula sem dispersão: o fogo do coração sobe, o néctar
da cabeça desce, e ambos se unem no centro.
Esse é o verdadeiro maha–maithuna, a
“Grande União”.
O Kaula–Upaniṣad
declara:
“Aquele que conhece a mulher interior é livre;
aquele que busca a mulher exterior permanece prisioneiro.”
Assim, o Vāma–mārga
culmina em uma síntese interior, em que todas as dualidades se resolvem.
O corpo torna-se templo de Śiva e Śakti em perpétua união.
O adepto é simultaneamente o amante e o objeto amado, o fogo e o altar, o som e
o silêncio.
Evola comenta que esse estado corresponde, em
linguagem alquímica, à coniunctio oppositorum,
a união dos contrários, que gera o “filho do ouro”, o ser de luz.
O maithuna é, pois, o rito supremo de
reintegração: nele o tempo cessa, e o espírito se faz carne gloriosa.
Notas Explicativas
1.
Maithuna
— união sexual sagrada; rito de reintegração entre Śiva (consciência) e Śakti
(energia).
2.
Vīra
— herói espiritual, aquele que domina o desejo e o converte em poder.
3.
Vajrolī–mudrā
— técnica de reversão da energia sexual pela coluna sutil (Suṣumṇā).
4.
Brahmacarya
— continência perfeita, domínio do poder vital.
5.
Bindu
— semente vital; princípio concentrado da energia genésica.
6.
Ojas
— energia espiritual transmutada a partir do bindu;
substância da imortalidade.
7.
Ardha–nārīśvara
— forma andrógina de Śiva, simbolizando a união absoluta dos opostos.
8.
Maha–maithuna
— “Grande União”; realização interior da coincidência dos polos.
Síntese
da Seção II:
O maithuna é o coração do Vāma–mārga: rito de reintegração cósmica e
instrumento de libertação.
O prazer, transmutado em luz, torna-se via para o Absoluto.
O adepto que conserva a energia e a eleva realiza em si a união de Śiva e Śakti
— a plenitude da consciência.
No ponto extremo da paixão, ele reencontra o silêncio primordial.
O fogo se faz claridade, e a carne, esplendor.
III. O Perigo, a Prova e a Vitória do Vīra
O Vāma-mārga
é um caminho de fogo.
Aquele que o percorre deve passar por uma provação
absoluta, pois se aventura nas zonas onde as forças da vida e
da morte se confundem.
O Tantrismo não esconde o perigo: a via da mão esquerda é uma travessia sobre o
abismo, uma linha tênue entre a libertação e a queda.
Somente o vīra — o herói espiritual — pode
atravessar o limite sem ser destruído.
Evola inicia esta seção dizendo que toda
iniciação autêntica implica um “ato de morte”, a dissolução do ser inferior.
No Vāma-mārga, essa morte não é
simbólica, mas vivida interiormente:
o adepto enfrenta as forças que sustentam sua individualidade e as anula pelo
poder da consciência.
O medo, o prazer, a dor, o horror, o desejo — tudo deve ser transmutado em pura
energia.
A libertação não está além da vida, mas no
coração da vida dominada.
1. O Abismo (bhaya, “o temor do poder” )
Os textos tântricos falam do śakti-bhaya, “o temor de Śakti”.
É o medo que o homem sente diante da energia divina quando ela se manifesta sem
véus: um medo cósmico, porque nele o indivíduo pressente a dissolução de tudo o
que chama “eu”.
O profano recua; o vīra permanece.
Entra no fogo e não se queima.
O Kularnava-Tantra
afirma:
“A Śakti é terrível para os fracos e
libertadora para os fortes.
Aquele que a contempla e não treme, a esse ela revela sua face benigna.”
Enfrentar Śakti é enfrentar a própria base do
ser, o oceano da força vital, a corrente do desejo e do medo.
O vīra sabe que somente quem atravessa o
terror alcança o centro imóvel.
Por isso, a via da esquerda é chamada também abhaya-mārga,
“o caminho da ausência de medo”.
2. A Descida e o Retorno
Todo processo iniciático exige uma descida (adhogati) antes da ascensão.
O vīra deve descer às regiões obscuras
da natureza e reconhecê-las como parte de si mesmo.
Não há domínio sem confronto.
O Kālī-Tantra diz:
“Aquele que desce à noite da Deusa e volta,
esse é verdadeiramente nascido de Śiva.”
Essa descida corresponde à dissolução dos
limites da personalidade, à confrontação com o inconsciente cósmico.
As potências que o homem comum projeta como demônios ou tentações são, para o
adepto, energias neutras;
boas ou más conforme sua direção.
Ele deve enfrentá-las com a mesma serenidade com que um guerreiro encara a
morte.
Evola interpreta essa “descida” como
equivalente à katábasis das iniciações
órficas e herméticas, e ao “trabalho no inferno” da alquimia.
Somente quem desce ao fundo pode reencontrar a luz no centro da terra: lumen naturae.
O vīra entra nos domínios da Śakti não
para perder-se, mas para conquistar-se.
3. A Prova do Equilíbrio
No auge da iniciação, o adepto é submetido à
prova da oscilação: prazer e dor, êxtase e horror, atração e repulsa
alternam-se vertiginosamente.
Tudo o convida à identificação com a sensação; tudo o incita a dissolver-se.
O segredo é permanecer imóvel,
como o eixo em torno do qual giram as forças.
O Tantra-Sāra
declara:
“Quando o prazer e a dor se tornam um, o yogin
conhece o segredo de Śiva.”
Esse estado é o de absoluta indiferença
dinâmica — não apatia, mas equilíbrio perfeito.
O vīra não foge da sensação, tampouco se
entrega a ela; ele a contém e a transforma.
A consciência torna-se espelho do fogo: reflete tudo, mas nada retém.
Assim, a energia que antes oscilava entre polos opostos converte-se em força
centrípeta, dirigida para o alto.
Evola observa que essa prova corresponde, na
alquimia, à “fixação do mercúrio”, e, na mística ocidental, à “noite escura da
alma”: dissolução de toda referência exterior, permanência apenas da luz
interior.
O adepto, suspenso entre ser e não-ser, aprende a suportar o vazio — e nesse
vazio encontra a eternidade.
4. O Perigo da Queda
O Vāma-mārga
é perigoso porque trabalha com forças que superam a psique comum.
A mesma energia que liberta pode destruir.
Quando o adepto perde o centro, o poder o devora: torna-se vítima de Śakti em
vez de seu senhor.
Os Tantras chamam isso adhogati, “queda
descendente”.
O Kularnava-Tantra
alerta:
“Aquele que entra no fogo sem o domínio da
respiração e da mente será queimado até as cinzas.”
Evola comenta que, psicologicamente, esse é o
risco da possessão: o indivíduo é absorvido pelo inconsciente coletivo e perde
a identidade espiritual.
Metafisicamente, é a regressão ao caos primitivo.
Por isso, a via da esquerda é reservada aos que já realizaram a pureza solar da
consciência.
O vīra deve levar a luz até o abismo,
não descer à noite sem tocha.
5. A Transformação da Morte
A superação do medo conduz à dissolução do
próprio instinto de conservação.
O vīra deve experimentar a morte como
força a ser dominada.
Ele penetra o domínio de Kālī, a Morte divina, e a enfrenta como sua amante e
sua mestra.
Essa união simbólica é chamada Kālī-saṃyoga:
a comunhão com a potência destruidora do tempo.
O Kaula-Upaniṣad
afirma:
“O sábio que abraça Kālī conhece o segredo da
vida eterna.”
Abraçar Kālī significa aceitar a dissolução de
todas as formas e reconhecer nela o poder da regeneração.
Morte e vida são duas faces de um mesmo fluxo.
Quando o adepto reconhece isso, a morte perde seu poder: torna-se passagem, não
fim.
Evola relaciona essa experiência ao solve alquímico: decomposição do composto
para liberar o espírito.
A matéria do ser inferior é queimada, e das cinzas surge o ouro filosófico — o
corpo de luz.
No Vāma-mārga, essa “morte” é
experimentada conscientemente: o adepto vê-se dissolver e renasce como pura
presença.
6. A Vitória do Imóvel
Após a prova do abismo, o vīra alcança a vitória.
A energia que antes ameaçava consumi-lo agora o serve.
Śakti torna-se sua companheira obediente.
Essa é a realização de Śiva–Śakti sāmarasya,
a perfeita identidade entre consciência e poder.
O fogo é dominado; o trovão repousa na palma da mão.
O Kularnava-Tantra
expressa assim a culminância:
“Quando Śiva e Śakti são um só no coração, o
yogin torna-se senhor dos três mundos.”
Evola interpreta a “vitória do imóvel” como
conquista da condição solar: o centro que irradia sem mover-se.
O vīra não destrói o mundo, mas o
transcende mantendo-se no meio dele.
A energia flui por ele como rio em seu leito: ele é o leito.
A paz que alcança não é ausência de movimento, mas domínio perfeito do ritmo.
O sol permanece fixo enquanto os planetas giram.
Essa é a realeza interior (rājya-yoga): o poder de estar no mundo sem
pertencer a ele, de agir sem agir, de possuir sem desejar.
A vitória do vīra é a reconciliação do
espírito e da natureza, da morte e da vida, do silêncio e do som.
Ele é o senhor do fogo e do abismo.
7. A Transfiguração Final
O adepto que triunfou converte-se em divya-puruṣa, o homem divino.
Seu corpo é o templo da deusa, seu olhar é chama, sua palavra é poder.
Não existe mais separação entre o que age e o que é.
Ele é śānta, “sereno”, e ao mesmo tempo ugra, “terrível”: paz e força em unidade.
O Tantra-Sāra
resume:
“O herói que dominou Śakti é Śiva em forma
humana.”
Evola conclui: a via da esquerda é o caminho
mais direto, mas também o mais perigoso, porque exige ultrapassar todos os
limites sem perder o centro.
É o caminho dos poucos que, tendo conhecido a luz, ousam penetrar as trevas
para reconquistar a luz em sua própria origem.
O Vāma-mārga é, assim, a ciência do retorno pelo poder.
A vitória do vīra é a restauração do
estado primordial: o Homem-Deus, imóvel no coração da tempestade, centro
luminoso do universo.
Notas Explicativas
1.
Vīra
— “herói espiritual”, o iniciado que domina as forças vitais e passionais.
2.
Śakti-bhaya
— temor diante da potência divina; experiência do confronto com a energia
cósmica.
3.
Abhaya-mārga
— “caminho da ausência de medo”, outro nome do Vāma-mārga.
4.
Adhogati
— queda pela perda do centro espiritual.
5.
Kālī-saṃyoga
— união simbólica com Kālī, potência do tempo e da destruição.
6.
Śiva–Śakti
sāmarasya — identidade perfeita entre consciência e energia.
7.
Rājya-yoga
— “yoga da realeza”, estado de domínio total sobre si e sobre as forças da
natureza.
Síntese
da Seção III:
O Vāma-mārga é a travessia do abismo: o
enfrentamento consciente das forças que limitam o homem.
O vīra desce às trevas, suporta o medo,
transforma a morte e regressa com o poder.
No equilíbrio absoluto, converte o fogo em luz e torna-se centro imóvel do
universo.
Sua vitória é silenciosa, solar e eterna: Śiva manifesto em carne de diamante.
IV. A Síntese do Caminho e a Superação das Duas Mãos
Quando o adepto alcança o domínio total da
energia, desaparece a distinção entre o caminho da direita (dakṣiṇa-mārga) e o da esquerda (vāma-mārga).
Ambos são meios transitórios, instrumentos para atingir a unidade primordial onde
não há mais lei nem transgressão, pureza nem impureza, masculino nem feminino.
Essa unidade é o estado de advaita, a
não-dualidade absoluta do Ātman.
O Tantra-Sāra
declara:
“Assim como duas margens desaparecem quando o
rio chega ao mar,
assim o caminho da direita e o da esquerda se dissolvem na verdade suprema.”
O adepto que realizou Śiva–Śakti-sāmarasya — a identidade de consciência e poder —
ultrapassa a necessidade de toda disciplina.
Ele não pertence a nenhum caminho, pois tornou-se o próprio caminho.
O fogo e o silêncio, o desejo e a imobilidade, a lei e a transgressão fundem-se
num só ponto de equilíbrio eterno.
1. A Unidade Transcendente dos Opostos
Na culminância do Vāma-mārga, todas as polaridades se resolvem.
A energia (Śakti) e a consciência (Śiva) deixam de ser dois princípios:
revelam-se como aspectos de uma mesma Realidade, como chama e luz de um mesmo
fogo.
O dualismo que sustentava o mundo — espírito e matéria, puro e impuro, alto e
baixo — é reconhecido como aparência necessária, não como verdade.
O Kularnava-Tantra
ensina:
“O yogin que vê Śiva em Śakti e Śakti em Śiva
é o libertado enquanto vive (jīvan-mukta).”
Esse é o ponto em que o Vāma-mārga e o Dakṣiṇa-mārga
convergem.
A pureza absoluta do asceta e a impureza sacralizada do herói tornam-se
idênticas em sua raiz: ambas conduzem ao mesmo centro.
O erro está em deter-se em um dos polos.
Aquele que rejeita o mundo e aquele que o abraça sem consciência permanecem
igualmente presos à dualidade.
Somente quem o transcende é livre.
Evola comenta que esse é o sentido último do
“não-agir” (wu-wei) taoísta e do “agir
sem agir” da Bhagavad-Gītā: ação
perfeita que já não é reação, porque brota do imutável.
O adepto não é da direita nem da esquerda; é do centro — o madhya-mārga, a via do meio, eixo invisível de todas as
correntes.
2. A Natureza do Centro
O centro (madhya)
é símbolo do estado imutável do Ser.
Todos os movimentos giram em torno dele, mas ele não se move.
O yogin que o realiza torna-se idêntico ao próprio eixo cósmico (meru).
As forças da natureza giram à sua volta como planetas em torno do sol, sem
afetar-lhe a serenidade.
O Śiva-Sūtra
afirma:
“No centro está Śiva, imóvel, testemunha do
jogo das potências.”
A síntese das duas mãos é, portanto, a
restauração do estado central
— o mesmo que, nas tradições ocidentais, corresponde ao “ponto fixo do eixo do
mundo” ou ao “coração do rei do universo”.
A direita representa a lei, a ordem, o aspecto solar; a esquerda, a potência, o
caos, o aspecto lunar.
No centro, ambos se reconciliam: o sol e a lua fundem-se em luz branca.
Evola observa que esse centro é o símbolo do ātman, o Eu transcendente.
Todas as vias, mesmo as mais opostas, são círculos que se movem em torno dele.
Quando o adepto o realiza, compreende que nunca saiu do centro: toda jornada
era movimento aparente em torno da imobilidade primordial.
3. A Superação do Karma e do Dharma
O homem comum vive sob a lei do karma, a cadeia de causa e efeito, e sob o dharma, a norma que o mantém no mundo da
ordem.
Mas o adepto que realizou a identidade entre Śiva e Śakti está além dessas leis.
Sua ação é sem causa e sem fruto; ele age como reflexo do Absoluto, não como
indivíduo.
É o estado de sahaja-samādhi, a
naturalidade perfeita.
O Kaula-Upaniṣad
afirma:
“O libertado não faz o bem nem o mal;
seus atos são o jogo de Śiva.”
Essa liberdade não é arbitrariedade moral, mas
autonomia metafísica:
agir sem ser condicionado, viver sem ser arrastado, permanecer puro em todas as
ações porque já não há “outro” fora do próprio Ser.
A dualidade do puro e do impuro só existe enquanto existe ego.
Quando o ego desaparece, o que resta é o jogo da energia divina (līlā), cuja única lei é a própria liberdade.
Evola vê nessa condição o ideal do “homem
transcendente”: ser no qual a ação humana e a vontade divina coincidem.
O Vāma-mārga, quando plenamente realizado, dissolve-se nesse estado: já não há
esquerda nem direita, porque toda direção é absorvida no centro.
4. A Realização Final: Śiva em Plenitude
A meta de todo o Tantrismo é tornar-se Śiva em
vida — Śiva-bhāva.
Isso não significa divinização moral, mas identificação ontológica:
reconhecer-se como consciência pura, enquanto as energias da natureza continuam
a agir como expressão da própria essência.
O corpo, a mente e o mundo tornam-se simples instrumentos da potência interior.
O adepto vive no mundo, mas o mundo está nele, como reflexo no espelho.
O Kularnava-Tantra
resume:
“Aquele que vê o universo como seu corpo
e seu corpo como o universo,
esse é Śiva em forma humana.”
A síntese final, portanto, é imanência transcendida: o
espírito plenamente presente na matéria, a matéria totalmente transparente ao
espírito.
A mão direita e a esquerda se tocam no ponto onde o círculo se fecha — o ponto
sem direção, a origem.
Ali, o som e o silêncio são um, o desejo e a paz são um, o mundo e o divino são
um.
Evola conclui: o verdadeiro sentido do
Tantrismo não é nem ascetismo nem libertinagem, mas a reconquista da totalidade primordial.
O homem torna-se o que sempre foi: o centro imóvel em meio às correntes, a
testemunha eterna do jogo de Śakti.
Esse é o segredo do poder: ser.
Notas Explicativas
1.
Advaita
– não-dualidade absoluta; realização do Ser além de toda oposição.
2.
Madhya-mārga
– “via do meio”, a síntese dos caminhos da direita e da esquerda.
3.
Jīvan-mukta
– “liberto enquanto vivo”, o que alcança a iluminação sem abandonar o corpo.
4.
Śiva–Śakti-sāmarasya
– união perfeita da consciência (Śiva) e do poder (Śakti).
5.
Sahaja-samādhi
– estado natural de absorção no Ser, espontâneo e permanente.
6.
Līlā
– o jogo divino; manifestação livre e criadora do Absoluto.
7.
Śiva-bhāva
– “estado de Śiva”; condição de plena identidade com a consciência pura.
Síntese
da Seção IV e do Capítulo XI:
No ponto supremo do Vāma-mārga, o adepto
ultrapassa todas as oposições: puro e impuro, lei e transgressão, espírito e
corpo.
A via da esquerda e a via da direita são reconhecidas como fases de uma mesma
ascensão.
No centro, o fogo e a lua, o som e o silêncio, o masculino e o feminino
tornam-se um.
A libertação é plenitude: o homem reencontra em si o estado de Śiva —
consciência imóvel, luz sem sombra, poder sereno que sustenta o mundo.
Capítulo XII — A Realização Suprema e o Corpo de Luz (Deha-siddhi e Jīvan-mukti)
I. A Liberação Enquanto Vivo
Para a tradição tântrica, a libertação não é um
estado posterior à morte.
O verdadeiro libertado (jīvan-mukta) é
aquele que atinge a imortalidade
enquanto vive.
O mokṣa não é fuga do corpo, mas sua
transfiguração.
A consciência, liberada dos condicionamentos, continua a brilhar no interior da
forma, mas já não está sujeita a ela.
O Tantra-sāra
declara:
“O homem comum morre e nasce;
o sábio desperta e permanece.”
A libertação, portanto, é uma mudança de centro: o eu
individual, que antes se identificava com o corpo e a mente, reconhece-se como
testemunha eterna (sākṣin).
A vida e a morte passam a ser fenômenos externos, movimentos da Śakti em torno da imobilidade do Ātman.
Evola observa que essa doutrina do jīvan-mukti representa a forma mais alta de
realização espiritual, porque elimina a dualidade entre vida e transcendência.
Enquanto o asceta comum busca escapar da existência, o tântrico a domina,
convertendo-a em instrumento de poder.
A morte é apenas mudança de vibração — não cessação do ser, mas mutação de sua
forma de manifestação.
II. O Corpo Tornado Luz (Deha-siddhi)
O conceito de deha-siddhi — “perfeição do corpo” — é um dos mais
audaciosos do Tantrismo.
Segundo essa doutrina, quando o adepto realiza a unidade entre Śiva e Śakti, seu corpo físico é transmutado em veículo
de luz.
A energia vital, purificada e elevada pela Kuṇḍalinī-yoga,
dissolve os elementos densos e cristaliza-os em uma substância sutil,
incorruptível.
Os textos chamam esse estado de vajra-deha, “corpo adamantino”.
Não é mais corpo carnal, mas estrutura energética, semelhante ao “corpo de
glória” das tradições cristãs e ao “corpo de ouro” da alquimia.
Nesse corpo, as correntes do tempo e do sofrimento não penetram.
O yogin que o alcança é imune à doença,
ao envelhecimento e à decomposição: ele vive
sem estar sujeito à vida.
O Gorakṣa-śataka
descreve:
“O corpo do mestre é feito de som e fogo.
Ele se move sem esforço, e onde se detém, ali há centro do mundo.”
Evola explica que a deha-siddhi é o complemento do jīvan-mukti.
A consciência liberta exige um corpo correspondente: um instrumento afinado à
vibração do Absoluto.
Não se trata de milagre físico, mas de mudança ontológica.
O corpo torna-se campo magnético da luz espiritual; cada célula vibra como um
mantra.
O fogo serpentino (Kuṇḍalinī) sobe e
desce livremente, unindo os planos do ser.
O adepto é simultaneamente terrestre e celeste, visível e invisível.
III. O Estado Solar e o Poder Imóvel
O jīvan-mukta
é comparado ao sol.
Como o astro, ele permanece imóvel, e ainda assim dá vida a todas as coisas.
Seu repouso é atividade perfeita; sua ação é pura irradiação.
Nada o move, porque tudo se move nele.
O Kaula-upaniṣad
diz:
“Assim como o sol não se macula ao iluminar o
impuro,
o libertado não se contamina ao agir no mundo.”
A energia que antes era dispersa em emoções e
desejos converte-se em força centrípeta.
O coração torna-se eixo do cosmos, e a mente — um espelho sem imagem.
Esse é o estado de śānta-udita,
“quietude fulgurante”: paz e poder coexistindo.
Evola interpreta esse estado como realização
da “realeza espiritual”.
O rājya-yogin não é aquele que governa
os outros, mas aquele que governa a si mesmo — o centro fixo em torno do qual
tudo se ordena.
O poder, em sua forma pura, é imóvel; age sem esforço, como o sol que aquece
sem intenção.
Esse é o verdadeiro śiva-bhāva: o ser
idêntico à pura consciência, onde vontade e realidade coincidem.
IV. O Retorno de Śiva — O Homem Divinizado
No ponto supremo, o yogin realiza a reversão
completa do processo cósmico.
A energia que desceu para criar o mundo volta à sua origem.
Śakti recolhe-se em Śiva.
O movimento é absorvido no silêncio.
O fogo retorna ao éter.
O ser humano torna-se o que sempre foi: Śiva em forma individual.
O Tantra-sāra
conclui:
“Quando a deusa se dissolve no senhor, o yogin
não é mais homem nem deus;
é aquele que é.”
Esse retorno não implica desaparecimento, mas plenitude da presença.
O adepto continua no mundo, mas o mundo é nele um reflexo imóvel.
Sua existência é puro símbolo, sua respiração é mantra, sua visão é sacramento.
Ele encarna o estado de parama-śānti, a
paz suprema, que não é cessação, mas potência infinita em repouso.
Evola chama esse estágio de “imortalidade
solar”.
O homem se torna centro de irradiação, foco consciente da energia cósmica.
A individualidade se dissolve sem perder a forma — como o ferro incandescente
que se torna fogo sem deixar de ser ferro.
O jīvan-mukta é esse fogo humano, ponte
entre o visível e o invisível, o tempo e o eterno.
Notas Explicativas
1.
Jīvan-mukti
— libertação enquanto vivo; iluminação alcançada antes da morte física.
2.
Deha-siddhi
— perfeição ou divinização do corpo; transmutação da matéria em luz.
3.
Vajra-deha
— “corpo adamantino”; corpo sutil imortal.
4.
Kuṇḍalinī
— energia serpentina adormecida na base da coluna, força de ascensão
espiritual.
5.
Śānta-udita
— quietude luminosa; síntese de serenidade e poder.
6.
Rājya-yoga
— via régia da integração do espírito e da ação.
7.
Śiva-bhāva
— estado de identidade com Śiva, consciência pura e imutável.
8.
Parama-śānti
— paz suprema; repouso absoluto do ser.
Síntese
Interpretativa Conclusiva
O The Yoga
of Power culmina com a doutrina da unificação
entre consciência e poder.
Tudo o que precede — a ascese, a transgressão sagrada, o domínio da energia, o maithuna, o enfrentamento do abismo —
converge para esta realização final: a identidade
entre o homem e o princípio solar do universo.
Para Evola,
o Tantrismo é a forma mais heróica da metafísica, porque não foge do mundo, mas
o conquista.
O ideal do jīvan-mukta é o do Homem-Sol, o ser que,
permanecendo no centro imóvel, sustenta e ilumina os círculos do devir.
É o retorno da Śakti à sua origem, a restauração
do estado primordial em plena vida.
A deha-siddhi
simboliza o domínio da matéria — não apenas intelectual, mas ontológico.
A substância corporal é purificada até tornar-se transparência da luz.
O corpo não é negado, mas divinizado: instrumento e templo da presença.
Assim, o Tantrismo supera o dualismo entre ascetismo e hedonismo,
espiritualismo e materialismo, transcendência e imanência.
No ponto mais alto, não há mais direita nem
esquerda, Śiva nem Śakti, espírito nem natureza —
há apenas o Eixo Solar do Ser,
imóvel e radiante, centro de todas as forças e origem de toda forma.
O adepto que o realiza torna-se testemunha viva da unidade.
Ele é o Homem de Diamante,
em quem a energia tornou-se luz, a vontade tornou-se serenidade e a vida
tornou-se eternidade.
Com este capítulo, The Yoga of Power fecha o ciclo evoliano:
da energia à consciência, da dualidade à unidade, da paixão à imobilidade
luminosa.
O homem que domina a Śakti não é santo
nem asceta, mas senhor solar da própria
natureza —
um Śiva vivo,
imóvel no coração do fogo.
Apêndice – Notas Doutrinais e Textuais
1. O conceito de Śakti e sua natureza dual
A palavra Śakti,
em seu sentido mais alto, não indica simplesmente “força” ou “energia” no
sentido físico, mas a potência
divina em si, o princípio dinâmico que faz surgir o mundo a
partir do Imutável.
Nas escolas tântricas, Śakti é simultaneamente māyā
(poder de manifestação) e cit
(consciência); ela é a “mãe” do universo, mas também a “esposa” de Śiva, de
quem é inseparável.
A doutrina ortodoxa reconhece em Śiva o aspecto transcendente e em Śakti o
imanente.
Ambos, unidos, formam o Absoluto integral, o Brahman
em ato.
Separados, constituem o erro fundamental da consciência humana, que vê o mundo
e o espírito como realidades distintas.
Evola comenta que essa visão é idêntica, no
Ocidente, à distinção entre actus purus
e potentia activa, onde o ser é
simultaneamente princípio imóvel e potência criadora.
2. O Tantrismo e o Veda
Os Tantras
não devem ser considerados uma negação do Veda,
mas sua interpretação dinâmica.
Enquanto o Veda estabelece o rito e a
lei, o Tantra ensina o uso interior da potência ritual.
O primeiro pertence ao ciclo solar e sacerdotal; o segundo, ao ciclo heroico e
real.
Assim, o Tantrismo não destrói a tradição védica, mas a reintegra sob o signo da
ação.
Como disse o Kulārṇava-tantra:
“O Veda é o corpo, o Tantra é a alma.”
3. A origem do termo “Vāma”
O termo vāma
significa “esquerda”, mas também “feminino”, “belo”, “desejável”.
A via da esquerda (vāma-mārga) é,
portanto, a via do princípio feminino, da potência ativa da natureza.
Não é “esquerda” no sentido moral, mas polar — oposta e complementar à via
solar do dakṣiṇa-mārga.
O Vāma-mārga é o caminho da energia; o Dakṣiṇa, o da forma.
O primeiro corresponde à Śakti, o
segundo a Śiva.
No fim, ambos se unem no centro, no madhya-mārga.
4. O símbolo do fogo ascendente
Os textos tântricos associam a libertação ao movimento ascendente do fogo interno
(agni), que representa o poder de Kuṇḍalinī.
A mesma imagem é usada nas tradições ocidentais: o fogo de Hermes, o fogo
gnóstico, o fogo do Espírito Santo.
Evola indica que o termo ūrdhva-retas —
literalmente “aquele cujo sêmen sobe” — é chave para compreender a doutrina
tântrica:
é o símbolo da reversão do fluxo da
vida, da transformação da energia descendente em energia
espiritual.
5. A analogia entre Tantrismo e Alquimia
Evola nota que há profunda correspondência
entre a Kuṇḍalinī-yoga e a alquimia hermética.
Em ambos, a operação essencial é transformar o “chumbo” da natureza bruta em
“ouro” espiritual.
O despertar de Kuṇḍalinī equivale à ignição do fogo secreto dos alquimistas.
O suṣumṇā-nāḍī é o forno; os cakras, as fases do processo; e o “elixir da
imortalidade” (amṛta) corresponde à
obtenção da “pedra filosofal”.
A obra inteira é simbolizada pela união do rei e da rainha — Śiva e Śakti —,
que gera o filho solar, o corpo de luz.
6. O conceito de Brahmacarya
O termo brahmacarya
não deve ser reduzido à simples castidade física.
Ele significa literalmente “mover-se em Brahman”, isto é, viver em constante
consciência do Absoluto.
O controle sexual é apenas um aspecto dessa disciplina, que visa reter e transmutar a energia vital
em poder espiritual (ojas).
O homem que conserva o bindu (a semente)
torna-se “vencedor da morte”, pois sua força não se dispersa no tempo, mas
retorna à origem.
7. O simbolismo do Sol e da Lua
Nos Tantras,
o Sol (sūrya) e a Lua (candra) representam as duas correntes da
respiração vital (iḍā e piṅgalā).
O equilíbrio entre ambas é o estado de consciência pura.
Quando o Sol e a Lua se unem, nasce o “fogo do meio”, suṣumṇā, o canal central.
A meta do yoga tântrico é precisamente essa união solar-lunar, de onde surge a
“luz do coração” (hṛdaya-jyoti).
O homem torna-se microcosmo do cosmos: o Sol em sua cabeça, a Lua em seu
ventre, e o fogo divino no centro.
8. O significado de Mokṣa
Em muitos Tantras,
a libertação (mokṣa) é chamada “o Grande
Despertar” (mahā-bodha).
Não se trata de fuga do mundo, mas de despertar
dentro do mundo.
A ilusão (māyā) é vencida não pela
negação da vida, mas pela penetração consciente do seu jogo.
A vida, então, torna-se līlā, dança
divina.
O jīvan-mukta vive como quem sonha
sabendo que sonha.
9. A presença da doutrina nos Tantras Kaula
Entre os textos citados por Evola, os mais
importantes pertencem à tradição Kaula,
especialmente o Kularnava-tantra, o Kaula-upaniṣad e o Tantra-sāra.
Esses textos ensinam que a via do poder não é para o fraco, mas para o “herói” (vīra).
O verdadeiro Kaula é aquele que domina as paixões, não o que as segue.
Seu rito é interior; seu templo é o corpo; sua deusa, a energia que nele se
move.
10. A analogia ocidental: Espírito e Matéria
Evola encerra o apêndice indicando que o
Tantrismo é a forma oriental do
hermetismo.
Assim como o hermetista busca reconciliar o espírito e a matéria através da magnum opus, o tântrico busca unir Śiva e
Śakti.
Ambos afirmam que o Absoluto é uno, e que o caminho da salvação não está fora
do mundo, mas na transmutação da
própria natureza.
Por isso, o Tantrismo é a “ciência do real” — a arte de fazer do homem um deus
consciente, do corpo uma teofania, da vida uma liturgia cósmica.
Notas Complementares
1.
Śakti
– princípio ativo e dinâmico do Absoluto, energia divina feminina.
2.
Śiva
– princípio da consciência pura, imóvel e transcendente.
3.
Kuṇḍalinī
– energia serpentina adormecida na base da espinha, símbolo do poder latente.
4.
Bindu
/ Ojas – substância vital e sua transmutação luminosa.
5.
Līlā
– o jogo divino; manifestação lúdica do Absoluto.
6.
Vīra
– o herói espiritual, senhor de si e da natureza.
Síntese Final do Apêndice
O Apêndice de Evola cumpre função essencial:
revela a chave unificadora
do sistema tântrico.
Não se trata de magia, nem de ascetismo, mas de uma ontologia ativa, onde o
homem é chamado a participar da obra divina.
O mundo não é obstáculo à libertação, mas matéria da libertação.
O corpo não é prisão, mas instrumento da eternidade.
A dualidade entre espírito e natureza é apenas aparência: na raiz de ambos há o
mesmo fogo, a mesma consciência.
Assim, The
Yoga of Power termina onde toda metafísica tradicional converge — na identidade entre Ser e Poder,
entre Śiva e Śakti, entre contemplação e ação.
A via da potência é a via do real.
O adepto que domina o fogo da natureza e o recolhe em seu centro realiza o
estado de Homem Solar,
símbolo de todas as tradições verdadeiras: imóvel, luminoso, real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário