sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Super Boetium De Trinitate.



 ÍNDICE GERAL — Super Boetium De Trinitate

Proêmio

  1. Introdução de Santo Tomás.
  2. Propósito do tratado.
  3. Unidade entre filosofia e teologia.
  4. O sentido do tratado de Boécio “De Trinitate”.

Proêmio de Boécio

  1. Contexto da obra.
  2. A investigação da substância divina.
  3. Relação entre fé e razão.
  4. A analogia da luz divina.

Exposição do Proêmio

  1. Comentário linha a linha ao texto de Boécio.
  2. A distinção entre o saber divino e o humano.
  3. O princípio de subordinação das ciências.
  4. A razão iluminada pela fé.

QUESTÃO I — De divinorum cognitione

Quanto ao conhecimento das coisas divinas

  1. Artigo I — Se a mente humana necessita de nova iluminação da luz divina para conhecer a verdade.
  2. Artigo II — Se a mente humana pode chegar ao conhecimento de Deus.
  3. Artigo III — Se Deus é o primeiro conhecido pela mente.
  4. Artigo IV — Se a mente humana pode alcançar o conhecimento da Trindade pela razão natural.

QUESTÃO II — De manifestatione veritatis divinae

Quanto à manifestação do conhecimento da verdade divina

  1. Se o homem pode manifestar a verdade divina por meio da razão.
  2. Se a filosofia é suficiente para a demonstração das verdades da fé.
  3. Se há modos distintos de manifestação da verdade divina.
  4. Se o conhecimento teológico depende do filosófico.

Capítulo I — Exposição do Capítulo Primeiro

  1. A doutrina de Boécio sobre o intelecto e o inteligível.
  2. A ordem dos graus do conhecimento.
  3. A analogia entre o conhecer humano e o conhecer divino.

QUESTÃO III — De his quae pertinent ad cognitionem fidei

Quanto às coisas que dizem respeito ao conhecimento alcançado pela fé

  1. Se o conhecimento de fé é um modo de ciência.
  2. Se a fé é contrária à razão.
  3. Se a fé pode ser confirmada pela filosofia.
  4. Se há uma hierarquia entre as verdades de fé.

QUESTÃO IV — De his quae pertinent ad causam pluralitatis

Quanto às coisas que dizem respeito à causa da pluralidade

  1. Sobre a unidade do ser e a origem da multiplicidade.
  2. Se a pluralidade procede da matéria, da forma ou de ambos.
  3. Se a distinção entre as criaturas reflete a Trindade.
  4. A relação entre unidade divina e diversidade criada.

Capítulo II — Exposição do Capítulo Segundo

  1. O modo como Boécio entende a causalidade.
  2. A distinção entre causa primeira e segundas causas.
  3. A analogia da criação e da processão trinitária.

QUESTÃO V — De divisione scientiarum speculativarum

A divisão da ciência especulativa

  1. Se as ciências especulativas se dividem corretamente em física, matemática e teologia.
  2. Se a teologia é ciência especulativa ou prática.
  3. Se há hierarquia entre as ciências especulativas.
  4. Se o conhecimento divino é o fim de toda ciência.

QUESTÃO VI — De modis scientiae speculativae

Os métodos da ciência especulativa

  1. Se os métodos de cada ciência derivam da natureza de seu objeto.
  2. Se a teologia tem método próprio distinto das ciências humanas.
  3. Se é possível ciência dos mistérios divinos.
  4. Se a razão pode alcançar os princípios da ciência teológica.

Conclusão Geral

  1. A síntese entre razão e fé.
  2. A luz natural como participação da luz divina.
  3. A ciência especulativa como via de ascensão ao conhecimento de Deus.
  4. Unidade de toda a sabedoria sob a Trindade.

PROÊMIO

A sabedoria divina, que ordena todas as coisas suavemente, quis que o homem, criado à sua imagem e semelhança, participasse, à sua maneira, da luz pela qual Ele mesmo tudo conhece. Por isso, ao ser dotado de razão e intelecto, o homem recebeu a capacidade de ascender, por meio das criaturas, ao conhecimento de seu Criador, e de contemplar, ainda que em sombras e vestígios, a unidade e a bondade daquele que é princípio e fim de todas as coisas.

Mas porque a mente humana, enredada nas imagens dos sentidos e sujeita às trevas do corpo, nem sempre se eleva facilmente à pura luz da verdade, a Providência divina dispôs que os homens fossem instruídos por outros homens, a fim de que, assim como a luz do sol é participada por múltiplos corpos sem que se divida, também a verdade, que procede de Deus, fosse comunicada através da palavra e da doutrina.

Por isso os antigos doutores, guiados pela fé e pela razão, buscaram compreender, cada um segundo a graça que lhe fora dada, os mistérios de Deus, e entre eles destacou-se Boécio, varão de suma erudição e de mente luminosa, que, sustentado pela sabedoria dos antigos e iluminado pela fé cristã, procurou conciliar a investigação filosófica com a contemplação teológica.

No livro intitulado De Trinitate, ele propõe considerar de que modo o intelecto humano pode elevar-se à inteligência das coisas divinas, e de que modo o múltiplo se reconduz à unidade na ordem do ser e do saber. Com admirável arte, Boécio procura mostrar que, se há entre as ciências humanas uma hierarquia, esta mesma disposição hierárquica deve refletir a ordem das causas e, finalmente, conduzir ao Uno, que é Deus.

Cumpre, portanto, examinar atentamente este tratado, não apenas para compreender o pensamento do próprio Boécio, mas também para que, ao seguir-lhe o raciocínio, sejamos conduzidos a uma mais profunda inteligência da verdade. Pois as palavras dos santos e dos sábios são como degraus que conduzem da terra ao céu: quem as lê com reta intenção, nelas descobre o eco da sabedoria eterna, que resplandece sob o véu das expressões humanas.

Assim, ao comentar esta obra, propomos investigar três coisas: primeiro, o sentido do texto de Boécio; segundo, a ordem de sua exposição; e terceiro, a conformidade de suas palavras com a doutrina católica. Procederemos, portanto, segundo o método usual dos doutores, expondo primeiro o texto, depois as questões que nele se contêm, e finalmente resolvendo as dificuldades que possam surgir.

PROÊMIO DE BOÉCIO

Depois de ter tratado, em outros escritos, das coisas que pertencem à razão humana, quis agora Boécio dirigir o olhar da mente para o que está acima da razão. Pois há duas ordens no conhecimento: uma que desce das causas primeiras até os efeitos, e outra que sobe dos efeitos às causas. A primeira é própria da ciência divina, que tudo conhece por seu princípio; a segunda pertence à ciência humana, que, partindo das coisas sensíveis, busca retornar ao invisível.

Assim, como o movimento natural das coisas tende a voltar ao seu princípio, assim também a alma racional, que procede de Deus, é movida interiormente por um desejo de retornar a Ele, e a esse retorno chama-se sabedoria.

Por isso, entre os estudos humanos, nenhum é mais digno nem mais elevado que aquele pelo qual o espírito se esforça por contemplar o Ser supremo e compreender, tanto quanto lhe é possível, de que modo n’Ele subsiste a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade. Pois a essência de Deus é simples e una, mas n’Ele há Trindade de pessoas, e esta pluralidade não divide a essência, nem a unidade confunde as pessoas.

A mente humana, entretanto, é débil para compreender de modo direto a substância divina; mas, por certa semelhança, pode formar acerca dela um juízo verdadeiro. Assim como quem vê o reflexo do sol na água conhece que o sol existe, ainda que não suporte o brilho de sua face, assim também o intelecto, pela consideração das criaturas, reconhece que há um Deus, embora não possa compreender o que Ele é.

Todavia, porque há em nós uma centelha da luz divina, pela qual somos capazes de inteligir, convém que essa centelha seja purificada e elevada, para que se conforme à sua origem. Pois o mesmo Deus que é princípio de todas as coisas é também fim de todas as inteligências; e, assim como delas procede toda luz, a Ele devem retornar todos os espíritos que são iluminados.

Este é, pois, o propósito de Boécio: mostrar como o intelecto humano, fortalecido pela fé e ordenado pela razão, pode, com auxílio da luz divina, elevar-se à contemplação do mistério da Trindade. Ele não pretende definir o inefável, mas indicar, com a modéstia própria dos sábios, o caminho que conduz à verdade. Pois, se a razão não pode compreender plenamente o mistério, pode ao menos preparar a alma para recebê-lo, e a fé, iluminando o entendimento, consuma o que a razão iniciou.

Por isso, a leitura deste livro é útil tanto aos que buscam a ciência quanto aos que aspiram à contemplação. Aos primeiros, porque ordena as ciências humanas sob o governo da sabedoria divina; aos segundos, porque lhes mostra o caminho da ascensão. Assim, filosofia e teologia se unem, como duas asas de um mesmo espírito, para que o homem, sustentado por ambas, possa elevar-se àquilo que ultrapassa toda compreensão.

EXPOSIÇÃO DO PROÊMIO

Boécio inicia sua obra com uma súplica à luz divina, pois aquele que deseja falar de Deus deve primeiro ser iluminado por Ele. Com isso, ensina que todo verdadeiro conhecimento das coisas divinas começa na humildade e na oração, não na presunção da razão humana. Assim como os olhos não podem contemplar o sol sem serem antes preparados pela claridade da aurora, também a mente não pode elevar-se ao esplendor da verdade divina sem ser disposta por uma graça interior.

Diz ele, portanto: “Conforme a luz divina se dignou acender em mim a débil centelha do intelecto, tratarei de investigar as coisas que concernem à Trindade”. Nesta frase estão contidos três elementos fundamentais: a fonte da sabedoria, que é Deus; o instrumento da sabedoria, que é a luz da mente; e o propósito da sabedoria, que é a contemplação do mistério trinitário.

Ao reconhecer que sua mente é apenas uma centelha, Boécio manifesta tanto a pequenez da razão humana diante da verdade divina quanto a semelhança da criatura com o Criador. Pois, embora a luz intelectual do homem seja mínima em comparação à luz incriada, participa, contudo, dela como o reflexo participa do fogo. A alma racional é, portanto, imagem de Deus, porque tem em si o poder de conhecer e de amar; e assim como Deus é luz que se entende e se ama a si mesmo, assim também o homem, à sua maneira, pode conhecer e amar a verdade.

Mas Boécio acrescenta que tal centelha foi “acesa pela luz divina”. Com isso, indica que o intelecto humano, embora criado e natural, procede da iluminação de Deus, pois é por Ele que toda alma é ordenada à verdade. A luz que brilha na mente é, por conseguinte, o vestígio do Verbo eterno, por meio do qual todas as coisas foram feitas. Aquele, pois, que investiga a verdade com reta intenção, ainda que o faça por esforço natural, é conduzido, de modo oculto, pela mão de Deus, que opera em todos os que buscam a sabedoria.

Prosseguindo, Boécio declara o tema de sua investigação: “Tratarei de investigar as coisas que concernem à Trindade.” Aqui se manifesta o fim da filosofia cristã, que é conduzir a razão à contemplação do mistério supremo — a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade. Pois, segundo os doutores, toda verdade reflui à sua causa primeira, e todas as distinções criadas têm seu termo na simplicidade divina.

Com admirável prudência, Boécio não pretende definir o que excede a mente humana, mas ordenar o pensamento, de modo que o homem aprenda até onde pode avançar pela luz natural e onde deve deter-se, deixando o resto à fé. Assim, une a ousadia do filósofo à reverência do crente: investiga, mas com temor; raciocina, mas sem pretensão.

Daí decorre o método que Santo Tomás seguirá em seu comentário: primeiro, expor o texto, mostrando a coerência interna do raciocínio de Boécio; depois, propor as questões que nascem dessa leitura; por fim, resolvê-las conforme a doutrina da Igreja. A intenção é que o leitor, guiado pela razão e pela fé, compreenda que toda ciência verdadeira conduz, em última instância, à contemplação de Deus, fonte e termo de toda luz.

Conclui-se, portanto, que Boécio, ao iniciar sua obra invocando a luz divina, quis mostrar que o saber humano, separado da graça, é sombra sem claridade; mas unido a ela, torna-se instrumento de elevação. Pois assim como a chama não subsiste sem o fogo que a sustenta, assim também a inteligência não persevera na verdade se não for continuamente nutrida pela presença do Deus que é luz e verdade em si mesmo.

EXPOSIÇÃO DO PROÊMIO

Boécio inicia sua obra com uma súplica à luz divina, pois aquele que deseja falar de Deus deve primeiro ser iluminado por Ele. Com isso, ensina que todo verdadeiro conhecimento das coisas divinas começa na humildade e na oração, não na presunção da razão humana. Assim como os olhos não podem contemplar o sol sem serem antes preparados pela claridade da aurora, também a mente não pode elevar-se ao esplendor da verdade divina sem ser disposta por uma graça interior.

Diz ele, portanto: “Conforme a luz divina se dignou acender em mim a débil centelha do intelecto, tratarei de investigar as coisas que concernem à Trindade”. Nesta frase estão contidos três elementos fundamentais: a fonte da sabedoria, que é Deus; o instrumento da sabedoria, que é a luz da mente; e o propósito da sabedoria, que é a contemplação do mistério trinitário.

Ao reconhecer que sua mente é apenas uma centelha, Boécio manifesta tanto a pequenez da razão humana diante da verdade divina quanto a semelhança da criatura com o Criador. Pois, embora a luz intelectual do homem seja mínima em comparação à luz incriada, participa, contudo, dela como o reflexo participa do fogo. A alma racional é, portanto, imagem de Deus, porque tem em si o poder de conhecer e de amar; e assim como Deus é luz que se entende e se ama a si mesmo, assim também o homem, à sua maneira, pode conhecer e amar a verdade.

Mas Boécio acrescenta que tal centelha foi “acesa pela luz divina”. Com isso, indica que o intelecto humano, embora criado e natural, procede da iluminação de Deus, pois é por Ele que toda alma é ordenada à verdade. A luz que brilha na mente é, por conseguinte, o vestígio do Verbo eterno, por meio do qual todas as coisas foram feitas. Aquele, pois, que investiga a verdade com reta intenção, ainda que o faça por esforço natural, é conduzido, de modo oculto, pela mão de Deus, que opera em todos os que buscam a sabedoria.

Prosseguindo, Boécio declara o tema de sua investigação: “Tratarei de investigar as coisas que concernem à Trindade.” Aqui se manifesta o fim da filosofia cristã, que é conduzir a razão à contemplação do mistério supremo — a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade. Pois, segundo os doutores, toda verdade reflui à sua causa primeira, e todas as distinções criadas têm seu termo na simplicidade divina.

Com admirável prudência, Boécio não pretende definir o que excede a mente humana, mas ordenar o pensamento, de modo que o homem aprenda até onde pode avançar pela luz natural e onde deve deter-se, deixando o resto à fé. Assim, une a ousadia do filósofo à reverência do crente: investiga, mas com temor; raciocina, mas sem pretensão.

Daí decorre o método que Santo Tomás seguirá em seu comentário: primeiro, expor o texto, mostrando a coerência interna do raciocínio de Boécio; depois, propor as questões que nascem dessa leitura; por fim, resolvê-las conforme a doutrina da Igreja. A intenção é que o leitor, guiado pela razão e pela fé, compreenda que toda ciência verdadeira conduz, em última instância, à contemplação de Deus, fonte e termo de toda luz.

Conclui-se, portanto, que Boécio, ao iniciar sua obra invocando a luz divina, quis mostrar que o saber humano, separado da graça, é sombra sem claridade; mas unido a ela, torna-se instrumento de elevação. Pois assim como a chama não subsiste sem o fogo que a sustenta, assim também a inteligência não persevera na verdade se não for continuamente nutrida pela presença do Deus que é luz e verdade em si mesmo.

QUESTÃO I — Quanto ao conhecimento das coisas divinas

Artigo I — Se a mente humana, para alcançar um conhecimento da verdade, requer uma nova iluminação da luz divina

Objeções

Parece que a mente humana necessita de uma nova iluminação da luz divina para conhecer qualquer verdade. Pois está escrito: “Não que sejamos capazes, por nós mesmos, de pensar alguma coisa como vinda de nós, mas a nossa capacidade vem de Deus” (2Cor 3,5). Ora, não pode haver percepção da verdade sem pensamento; portanto, a mente humana não pode conhecer nenhuma verdade a não ser que seja novamente iluminada por Deus.

Além disso, é mais fácil aprender a verdade por outro do que descobri-la por si mesmo. Por isso, os que conhecem pelas próprias forças são mais dignos do que os que aprendem dos outros, como se lê no primeiro livro da Ética. Ora, o homem não pode aprender de outro senão sendo interiormente ensinado por Deus, conforme Agostinho no De Magistro e Gregório na Homilia de Pentecostes. Logo, ninguém pode ver a verdade por si mesmo sem nova iluminação da mente por parte de Deus.

E mais, assim como o olho corporal se refere às coisas corpóreas que vê, o intelecto refere-se à verdade inteligível que contempla. Ora, o olho não pode ver as coisas corpóreas sem a luz do sol; portanto, o intelecto não pode ver a verdade sem a iluminação do sol invisível, que é Deus.

Ainda, é dito que nossos atos são propriamente nossos quando possuímos em nós mesmos os princípios suficientes para realizá-los. Mas muitos se esforçam para conhecer a verdade e, contudo, não a alcançam; logo, não possuímos em nós princípios suficientes para conhecer. É, portanto, necessário um auxílio exterior, isto é, uma nova iluminação divina.

Além disso, a operação da mente humana depende mais da luz divina do que a operação das criaturas sensíveis depende da luz celeste. Ora, as coisas inferiores, ainda que possuam formas próprias, não podem agir sem a luz do sol e das estrelas, como afirma Dionísio no De Divinis Nominibus, onde diz que a luz solar concorre para a geração dos corpos visíveis e os move, nutre e faz crescer. Assim também, a mente humana não é suficiente por sua luz natural, mas necessita da luz divina que a aperfeiçoa.

Além disso, em todas as causas ordenadas essencialmente, o efeito não procede da segunda causa sem a operação da primeira, como se lê no Livro das Causas. Ora, a mente humana está essencialmente ordenada sob a luz incriada; portanto, o conhecimento da verdade, que é seu efeito próprio, não pode proceder sem a operação da primeira luz incriada, cuja operação é a iluminação.

Por fim, assim como a vontade não pode querer o bem sem a ajuda da graça divina, segundo Agostinho, também o intelecto não pode conhecer a verdade sem ser iluminado pela luz de Deus.

Mas ao contrário, o salmista diz: “A luz do teu rosto, Senhor, está impressa sobre nós” (Sl 4,7). Ora, se essa luz natural não bastasse para ver a verdade, e fosse necessário sempre uma nova iluminação, então também esta nova luz exigiria outra superior, e assim até o infinito, o que é impossível. Logo, basta a primeira luz natural infundida na mente para que possa conhecer a verdade.

Resposta

Deve-se dizer que há diferença entre as potências ativas e as passivas: as passivas não entram em ato sem serem movidas por algo exterior — assim o sentido não percebe sem o sensível —, mas as ativas podem agir por si mesmas, como se observa nas potências vegetativas da alma.

Ora, no intelecto humano há uma dupla potência: a ativa, chamada intelecto agente, e a passiva, chamada intelecto possível. Alguns, porém, afirmaram que apenas o intelecto possível pertence à alma, sendo o intelecto agente uma substância separada — opinião de Avicena. Se isso fosse verdadeiro, a alma humana não poderia passar ao ato de conhecer sem uma iluminação externa vinda dessa substância. Mas, segundo Aristóteles, o intelecto agente é uma potência da própria alma, e a Sagrada Escritura concorda com isso, pois nos declara iluminados por uma luz inteligível. Assim, na alma há tanto uma potência ativa quanto uma passiva, suficientes para o conhecimento da verdade.

No entanto, como toda potência criada é finita, sua eficácia se limita a certos efeitos. Assim, há verdades inteligíveis que o intelecto humano pode atingir — como os primeiros princípios e tudo o que deles se deduz —, e para estas basta a luz natural. Outras, porém, ultrapassam o alcance da razão — como os mistérios da fé, os eventos futuros e as coisas divinas em si mesmas —, e essas só podem ser conhecidas se Deus acrescentar à luz natural uma nova iluminação.

Embora não se requeira uma nova luz para conhecer o que pertence à razão natural, requer-se sempre a operação divina. Pois, além de ter criado as naturezas das coisas, dando a cada uma suas formas e potências, Deus continua a dirigir todas em seus atos próprios. Assim como o calor natural opera sob a direção da virtude digestiva e os corpos inferiores sob o influxo dos astros, assim também toda potência criada opera movida e ordenada pelo Criador.

Portanto, em todo conhecimento da verdade, a mente humana necessita da operação divina; mas, nas coisas naturalmente cognoscíveis, basta o movimento e a direção de Deus, enquanto nas verdades superiores requer-se ainda nova iluminação.

Respostas às objeções

1.      É verdade que nada podemos conhecer sem a operação de Deus; contudo, isso não implica que, para cada conhecimento, se infunda sempre nova luz, pois a luz natural é também efeito contínuo da ação divina.

2.      Deus nos ensina interiormente nas coisas naturais ao causar e dirigir a luz natural em nós; nas sobrenaturais, infundindo ainda outra luz.

3.      O olho corporal depende sempre da luz exterior, porque não possui em si um princípio de visibilidade; mas o intelecto tem uma luz conatural — o intelecto agente —, pela qual torna os objetos inteligíveis.

4.      A luz inteligível nos anjos é pura e plena, razão pela qual conhecem naturalmente tudo o que lhes é próprio; em nós, porém, essa luz é enfraquecida pelo vínculo com o corpo, o que torna mais difícil o conhecimento.

5.      Assim como os corpos inferiores são movidos pelos celestes sem, contudo, receber deles novas formas, também a mente é movida por Deus sem precisar de nova luz para o conhecimento natural.

6.      Deus conserva continuamente em nós a luz natural, como o sol mantém o ar iluminado enquanto brilha; e, por isso, mesmo o uso dessa luz depende sempre da operação divina.

7.      A vontade não pode querer o bem sem o movimento divino, mas pode fazê-lo sem a infusão da graça, embora não de modo meritório; semelhantemente, o intelecto pode conhecer sem nova luz, mas não o que ultrapassa sua natureza.

8.      Assim como a obra de uma arte é atribuída mais ao artífice que à ferramenta, também o conhecimento é mais devido à causa primeira — Deus — do que à criatura racional.

Artigo II — Se a mente humana pode chegar ao conhecimento de Deus

Objeções

Parece que a mente humana não pode chegar a nenhum conhecimento de Deus.
Com efeito, o invisível não pode ser conhecido pelo que é visível; ora, Deus é invisível, e as coisas criadas são visíveis; logo, não se pode conhecer o invisível a partir do visível.

Além disso, o conhecimento se dá segundo a proporção entre o intelecto e o objeto conhecido; mas entre Deus e o homem não há proporção, pois o finito não é proporcional ao infinito. Assim, o intelecto humano, sendo finito, não pode compreender nem sequer conhecer o infinito, que é Deus.

Além disso, segundo o Filósofo, cada potência se ordena a um objeto próprio — e o objeto próprio do intelecto humano são as essências das coisas materiais; ora, Deus é imaterial e infinito, e portanto fora do alcance do intelecto humano. Logo, a mente não pode chegar ao conhecimento de Deus.

Mas ao contrário, diz o Apóstolo: “O que de Deus se pode conhecer é manifesto, porque Deus lho manifestou; pois o invisível de Deus, desde a criação do mundo, é conhecido por suas obras” (Rm 1,19-20).

Resposta

Deve-se dizer que, como ensina o Filósofo, o conhecimento humano nasce dos sentidos: nada há no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos. Mas as coisas sensíveis são efeitos das causas divinas. Ora, todo efeito, se for bem considerado, conduz ao conhecimento de sua causa, ao menos quanto à sua existência.

Assim, o homem, ao contemplar a ordem, a beleza e o movimento das criaturas, é levado a reconhecer nelas o vestígio de uma causa primeira e inteligente. E ainda que não possa compreender a essência dessa causa, pode saber que ela existe e que possui certas perfeições — como bondade, sabedoria e poder — que se manifestam de modo analógico nas criaturas.

Logo, a mente humana pode chegar ao conhecimento de Deus, mas imperfeito e indireto: conhece-O pelas suas obras, e não em si mesmo. Tal conhecimento é verdadeiro, mas não exaustivo. Pois o efeito, sendo finito, não pode manifestar plenamente a causa infinita; e, embora a razão possa demonstrar que Deus existe, não pode compreender o que Ele é.

Por isso se diz que o intelecto humano conhece de Deus que Ele é, mas não o que Ele é. Esta é a via que os filósofos chamaram de “via da causalidade” ou “via dos efeitos”: pela elevação das coisas visíveis às invisíveis, o espírito se eleva àquele que é causa de todas.

Convém ainda distinguir dois modos de conhecimento:
— o da razão natural, que atinge a Deus enquanto causa primeira e sumo bem;
— e o da fé, que o conhece como Trindade de pessoas e como fim último do homem.

A razão, sozinha, pode demonstrar que há um Deus uno, imutável e providente; mas só a revelação ensina que esse Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.

Assim, a mente humana pode chegar a conhecer Deus, não quanto à sua essência, mas quanto à sua existência e aos atributos que lhe convêm, tanto quanto estes se refletem nas criaturas.

Respostas às objeções

1.      À primeira, deve-se dizer que, embora Deus seja invisível em si mesmo, é de certo modo visível em seus efeitos, assim como a causa é conhecida pelo vestígio que deixa. As coisas criadas são, pois, espelhos nos quais o intelecto percebe, por semelhança, algo da luz divina.

2.      À segunda, responde-se que entre o finito e o infinito não há proporção de igualdade, mas há certa relação de causalidade e dependência. É nessa relação que o intelecto humano pode conhecer a Deus: não por igualdade, mas por analogia.

3.      À terceira, deve-se dizer que o objeto próprio do intelecto humano é, de fato, a essência das coisas materiais; mas por meio delas ele se eleva ao imaterial, assim como a vista, que conhece as cores, percebe pela luz algo que ultrapassa as próprias cores. Assim, o intelecto, embora naturalmente voltado ao sensível, é capaz de remontar à causa primeira, que é Deus.

Artigo III — Se Deus é o primeiro conhecido pela mente humana

Objeções

Parece que Deus é o primeiro conhecido pela mente humana.
Com efeito, aquilo pelo qual todas as coisas são conhecidas deve ser conhecido antes de todas; ora, como ensina Agostinho, Deus é a luz pela qual toda mente é iluminada para conhecer a verdade. Logo, Deus é o primeiro conhecido.

Além disso, o conhecimento é o ato pelo qual o intelecto se une àquilo que é inteligível. Ora, Deus está presente a todas as coisas e em todas opera; portanto, Ele é o primeiro que o intelecto apreende.

Além disso, o ser é o primeiro objeto do intelecto; mas Deus é o ser por essência; assim, sendo o primeiro na ordem do ser, deve também ser o primeiro na ordem do conhecimento.

Mas ao contrário, o Filósofo ensina que o intelecto humano nada conhece senão começando pelos sentidos. Ora, Deus não é acessível aos sentidos, mas supra-sensível. Logo, não pode ser o primeiro conhecido.

Resposta

Deve-se dizer que o conhecimento humano se dá em duas ordens: uma segundo o modo da natureza, e outra segundo o modo da graça.
— Segundo a ordem da natureza, o intelecto humano é como uma tábua em branco na qual nada está escrito; e, embora possua em si a luz pela qual conhece, não possui desde o início os objetos conhecidos. Assim, tudo o que conhece vem das coisas sensíveis.
— Segundo a ordem da graça, porém, a mente é iluminada de modo superior, recebendo de Deus uma participação mais perfeita de sua luz, pela qual é feita capaz de conhecer o próprio Deus na fé e, na glória, em visão direta.

Portanto, na ordem natural, Deus não é o primeiro conhecido pela mente humana, mas o último, pois a razão chega a Ele a partir das criaturas. Contudo, na ordem da graça, Deus é o primeiro conhecido — não por meio de demonstração, mas pela fé infusa.

Em outras palavras: naturalmente, a alma conhece primeiro os entes particulares, depois os universais, e por fim chega à noção de ser. A partir daí, por via de causalidade, negação e eminência, alcança o conhecimento de Deus. Assim, a existência divina é conhecida em último lugar, como o termo da ascensão da inteligência.

No entanto, sob a luz da fé, o processo se inverte: Deus é o primeiro conhecido, e as criaturas são então compreendidas à sua luz. Pois, como o sol faz ver os objetos visíveis, assim Deus faz conhecer todas as coisas.

Logo, Deus é o primeiro conhecido segundo a iluminação da fé; mas segundo a ordem da natureza, é o último a ser conhecido.

Respostas às objeções

1.      À primeira, deve-se dizer que Deus é, de fato, a luz pela qual todas as coisas são conhecidas; contudo, ser a causa da visão não implica ser o primeiro objeto visto. Assim, a luz do sol permite ver as cores, mas o olho vê primeiro o colorido, e só por reflexão entende a luz que o torna visível.

2.      À segunda, responde-se que Deus está presente a todas as coisas, mas não é conhecido imediatamente por todas; assim como a alma está presente ao corpo e, no entanto, não é percebida por todos os seus movimentos, senão por reflexão.

3.      À terceira, deve-se dizer que o ser é, de fato, o primeiro objeto do intelecto; mas o ser que o intelecto humano conhece primeiro é o ser comum, abstraído das coisas sensíveis, e não o ser absoluto que é Deus. Por isso, ainda que Deus seja o ser primeiro em si, não é o primeiro conhecido por nós.

Artigo IV — Se a mente humana pode alcançar o conhecimento da Trindade divina pela razão natural

Objeções

Parece que a mente humana pode, pela razão natural, alcançar o conhecimento da Trindade.
Com efeito, como diz Agostinho, toda criatura reflete, em certa medida, a imagem da Trindade: o ser, o conhecer e o amar estão impressos em todas as coisas que têm ordem e vida. Ora, aquilo que é espelhado pode ser conhecido a partir de sua imagem; logo, pela razão, é possível conhecer a Trindade divina.

Além disso, pela razão o homem conhece que em Deus há inteligência e vontade; mas, onde há intelecto e amor, há distinção de relações — o que parece suficiente para reconhecer nelas as pessoas divinas. Logo, pela via racional, pode-se alcançar o conhecimento da Trindade.

Ainda, o Filósofo ensina que o sumo bem é aquele que se comunica a si mesmo e aos outros; ora, tal comunicação supõe pluralidade de relações no mesmo ser; portanto, a razão pode chegar à noção de uma pluralidade de pessoas em Deus.

Mas ao contrário, o Apóstolo diz: “Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3), e noutro lugar: “O Espírito perscruta as profundezas de Deus” (1Cor 2,10). Ora, as profundezas de Deus dizem respeito ao mistério da Trindade. Logo, este não pode ser conhecido pela razão natural, mas apenas por revelação e pela fé.

Resposta

Deve-se dizer que o conhecimento natural da mente humana alcança Deus enquanto princípio universal do ser e fim de todas as coisas. Mas a Trindade de pessoas não se refere à ordem das causas criadas, senão à vida íntima de Deus em si mesmo, onde há distinção de relações sem divisão de essência.

Ora, o que se conhece naturalmente a partir das criaturas é o que tem nelas vestígio ou semelhança; e nas criaturas há vestígio da unidade e da bondade de Deus, e também certa imagem de sua sabedoria e de seu amor. Contudo, a distinção pessoal do Pai, do Filho e do Espírito Santo não está impressa de modo claro nas criaturas, mas apenas simbolicamente e por analogia remota.

Assim, pela razão natural o homem pode saber que Deus é uno, simples, inteligente e amoroso; mas não pode conhecer que n’Ele há três pessoas realmente distintas e uma só essência. Pois essa distinção ultrapassa o âmbito da criação e pertence ao segredo da vida divina, acessível apenas à fé.

Contudo, uma vez revelado o mistério da Trindade, a razão pode encontrar nas criaturas certas analogias e confirmações que o tornam mais inteligível, como o vestígio da tríplice processão na alma — memória, inteligência e vontade —, e nas coisas criadas — causa, forma e fim. Mas tais imagens não seriam suficientes para demonstrar a Trindade se esta não tivesse sido antes manifestada pela revelação.

Logo, a razão pode preparar o caminho, mas não penetrar o mistério; pode mostrar que não é impossível, mas não que é necessário. O conhecimento da Trindade, portanto, não pertence à filosofia natural, mas à sabedoria divina infusa pela fé.

Respostas às objeções

1.      À primeira, deve-se dizer que a imagem da Trindade nas criaturas é uma semelhança longínqua, pela qual se pode ser conduzido à crença na Trindade, mas não ao seu conhecimento próprio. Assim como o reflexo do sol na água mostra que há luz, mas não revela o astro em si, assim também o vestígio criado indica a Trindade sem manifestá-la.

2.      À segunda, responde-se que, embora a razão demonstre que em Deus há intelecto e vontade, disso não se segue que haja pessoas distintas, pois o ato de entender e o ato de amar são idênticos à essência divina. A pluralidade pessoal não se infere de atributos essenciais, mas de relações internas reveladas pela fé.

3.      À terceira, deve-se dizer que a comunicação do bem, segundo o Filósofo, refere-se à causa eficiente que se difunde nos efeitos, não a uma distinção real na essência divina. Por isso, a razão pode reconhecer Deus como bem difusivo, mas não como Trindade de pessoas.

QUESTÃO II — Quanto à manifestação do conhecimento da verdade divina

Artigo I — Se o homem pode manifestar a verdade divina por meio da razão

Objeções

Parece que o homem pode manifestar a verdade divina por meio da razão natural.
Com efeito, é próprio do homem, enquanto dotado de inteligência, buscar as causas das coisas e manifestar o que conhece aos outros. Ora, se Deus é causa primeira de todas as coisas, parece que o homem pode, pela razão, explicar e manifestar algo a respeito d’Ele.

Além disso, o Apóstolo diz: “O invisível de Deus, desde a criação do mundo, é conhecido pelas coisas criadas” (Rm 1,20). Ora, conhecer algo é o mesmo que poder manifestá-lo, pois quem sabe, ensina. Logo, pela razão natural, é possível manifestar a verdade divina.

Ainda, a filosofia natural trata de Deus como causa primeira, e o Filósofo, no livro Metafísica, demonstra que há um primeiro motor imóvel e uma inteligência suprema. Portanto, parece que pela razão natural o homem pode manifestar as verdades divinas.

Mas ao contrário, diz o Profeta: “Habita a luz inacessível, e ninguém jamais viu a Deus” (1Tm 6,16). Ora, o que não pode ser visto tampouco pode ser manifestado pela força natural do intelecto. Logo, a verdade divina excede o poder da razão e não pode ser plenamente manifestada por ela.

Resposta

Deve-se dizer que a verdade divina pode ser considerada de dois modos:
— em si mesma, isto é, enquanto exprime o próprio ser de Deus, simples e infinito;
— e enquanto é participada pelas criaturas, nas quais se reflete como em espelho.

Quanto à primeira, é impossível ao homem manifestar a verdade divina pela razão, pois o intelecto humano, limitado e dependente dos sentidos, não pode compreender o que é absolutamente imaterial e infinito. O que é infinito, enquanto tal, é inacessível a uma mente finita.

Contudo, quanto à segunda, o homem pode, pela razão, manifestar a verdade divina na medida em que esta se revela nas criaturas. Pois as coisas criadas são vestígios e sinais de Deus, e a mente, ao contemplá-las, pode deduzir que existe uma causa primeira dotada de sabedoria e de bondade.

Assim, o homem pode manifestar racionalmente certas verdades acerca de Deus, como a sua existência, sua unidade, sua imutabilidade, sua bondade e providência. Mas não pode, pela luz natural, manifestar os mistérios da vida divina, como a Trindade, a Encarnação e a graça.

Logo, a razão humana pode manifestar algo da verdade divina, mas de modo imperfeito, por via de efeitos; e o que manifesta é verdadeiro, mas insuficiente. O conhecimento natural é como o crepúsculo diante do sol da revelação: indica a luz, mas não a contém.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o homem, de fato, pode manifestar o que entende, mas apenas segundo a medida de sua capacidade. Ora, a verdade divina excede essa medida; por isso, só pode ser parcialmente manifestada.
  2. À segunda, responde-se que o Apóstolo não diz que os invisíveis de Deus são conhecidos em si mesmos, mas “pelas coisas criadas”; assim, o que se conhece é a existência e as perfeições de Deus, e não a sua essência.
  3. À terceira, deve-se dizer que o Filósofo, ao demonstrar o primeiro motor, não manifestou o que é Deus em si mesmo, mas apenas que há uma causa primeira; o seu conhecimento é verdadeiro, mas não pleno, pois não chega àquilo que a fé revela sobre o próprio Deus.

Artigo II — Se a filosofia é suficiente para demonstrar as verdades da fé

Objeções

Parece que a filosofia é suficiente para demonstrar as verdades da fé.
Com efeito, a filosofia é o esforço máximo da razão humana em direção à verdade. Ora, a fé também se ordena à verdade; logo, parece que a filosofia pode alcançar o mesmo fim e demonstrar o que a fé ensina.

Além disso, o Filósofo demonstrou racionalmente que há um primeiro motor eterno, imutável e separado; e a fé ensina que Deus é eterno, imutável e uno. Logo, parece que a filosofia basta para demonstrar as verdades da fé.

Ainda, aquilo que é verdadeiro não pode contradizer-se; se, portanto, as verdades da fé são verdadeiras, devem poder ser demonstradas pela razão, pois a razão é o instrumento natural da verdade.

Mas ao contrário, diz o Apóstolo: “A fé é o fundamento das coisas que se esperam, e a prova das que não se veem” (Hb 11,1). Ora, aquilo que é demonstrado pela razão é visto de algum modo; logo, o objeto da fé ultrapassa a esfera da demonstração racional.

Resposta

Deve-se dizer que a filosofia e a fé têm o mesmo fim — o conhecimento da verdade —, mas não pelo mesmo caminho. A filosofia procede pela investigação racional, a fé pela revelação divina.

Há certas verdades acerca de Deus que a razão pode demonstrar, como a sua existência e alguns de seus atributos. Mas há outras que ultrapassam completamente a capacidade da razão, como a geração do Filho, a processão do Espírito e o mistério da Encarnação.

A razão, por si mesma, não pode elevar-se à compreensão dessas verdades, porque dependem de uma ordem superior ao intelecto criado. Se fosse possível demonstrá-las, deixariam de ser objeto de fé e pertenceriam à ciência.

Logo, a filosofia é útil para esclarecer, confirmar e defender as verdades da fé, mas não para produzi-las nem demonstrá-las em seu próprio princípio. A razão é serva da teologia, não sua mestra.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a filosofia, embora se ordene à verdade, permanece dentro dos limites da natureza; a fé, porém, ultrapassa esses limites e atinge o sobrenatural.
  2. À segunda, responde-se que os filósofos conheceram certas verdades sobre Deus, mas em modo imperfeito e por via de conjectura; a fé, ao contrário, as possui com certeza, pois procede da própria palavra de Deus.
  3. À terceira, deve-se dizer que a razão e a fé não se contradizem, mas se distinguem: a fé contém verdades que a razão não pode alcançar, mas nenhuma que a contradiga. Assim, a razão pode confirmar o que a fé crê, mas não substituí-la.

 

CAPÍTULO I — Exposição do Capítulo Primeiro

Boécio, tendo declarado no prólogo que sua intenção é investigar as coisas divinas segundo a medida da luz que Deus acendeu em sua mente, começa agora a expor de que modo o intelecto humano se relaciona com a verdade e como pode elevar-se à contemplação do que é superior.

Ele observa que entre o inteligível e o sensível há uma ordem análoga à que existe entre o eterno e o temporal. Pois assim como há graus na realidade — desde as substâncias imutáveis até as mutáveis —, há também graus no conhecimento: o da sensação, o da imaginação, o da razão e o do intelecto.

A sensação conhece as aparências exteriores; a imaginação conserva e compõe as imagens; a razão penetra nas causas e forma conceitos universais; o intelecto, por sua vez, apreende a verdade simples e imutável. Assim, como há na criação uma hierarquia de seres, há também na alma uma hierarquia de potências cognoscitivas.

Ora, toda potência conhece segundo a natureza de seu objeto. Assim, o sentido, que depende do corpo, só conhece o que está sob as condições do tempo e do espaço; a razão, que abstrai, atinge o universal, mas ainda através das imagens sensíveis; o intelecto puro, porém, é elevado acima do tempo e do movimento, e por isso pode, de algum modo, participar do conhecimento eterno.

Boécio, seguindo a tradição dos platônicos, afirma que há uma diferença entre o conhecimento que procede do tempo e o que permanece fora dele. O conhecimento sensível e racional é temporal, porque se move do ignorar ao saber; o conhecimento intelectual é atemporal, porque apreende a verdade de uma só vez.

Contudo, enquanto o intelecto humano permanece unido ao corpo, participa apenas imperfeitamente desse modo superior de conhecer; ele necessita ordenar as coisas por meio de raciocínio e de discurso. Assim, o homem é uma criatura intermediária: participa do tempo pelo corpo e da eternidade pela alma.

Daí a conclusão de Boécio: todo conhecimento se mede pela natureza do conhecedor. O anjo, sendo imaterial, conhece imediatamente; o homem, composto de corpo e alma, conhece discursivamente; e Deus, sendo ato puro e sem sucessão, conhece todas as coisas em um só olhar.

Santo Tomás, comentando, ensina que essa distinção é de máxima importância, pois dela depende a possibilidade da teologia. O homem, por sua razão, pode ordenar as verdades e elevar-se gradualmente à contemplação; mas só o intelecto divino possui o conhecimento imediato e perfeito das coisas.

Assim como a luz se difunde do sol e se enfraquece nas sombras, também o conhecimento se difunde de Deus: pleno nos anjos, limitado nos homens, confuso nos sentidos. A verdade é, portanto, uma só, mas os modos de conhecê-la são diversos, conforme a pureza da mente que a recebe.

Por isso, quando o homem busca compreender o divino, deve lembrar-se de que sua razão não pode abarcar o que só a inteligência pura apreende. Deve proceder por via de analogia e proporção, reconhecendo que Deus é conhecido mais pelo que não é do que pelo que é.

Em resumo, Boécio quer mostrar que o conhecimento humano é um reflexo do conhecimento divino, assim como o tempo é uma imagem da eternidade. O tempo sucede, a eternidade permanece; o raciocínio se move, o intelecto contempla; o homem aprende, Deus vê.

Desse princípio brota toda a metafísica da luz e da verdade: conhecer é participar, e participar é receber segundo a capacidade do sujeito. Assim, quanto mais purificada a mente, mais luminosa se torna sua compreensão.

Por isso, Tomás conclui que o caminho da sabedoria é ascensional: começa nas sombras das coisas sensíveis, eleva-se pela abstração dos universais e culmina na contemplação de Deus, que é a luz sem sombra. O filósofo, portanto, é aquele que caminha da multiplicidade à unidade, do mutável ao imutável, da aparência à essência.

QUESTÃO III — Quanto às coisas que dizem respeito ao conhecimento alcançado pela fé

Artigo I — Se o conhecimento de fé é um modo de ciência

Objeções

Parece que o conhecimento de fé é um modo de ciência.
Com efeito, todo conhecimento certo, fundado em um princípio verdadeiro e infalível, é ciência. Ora, a fé se funda na autoridade de Deus, que não pode enganar nem ser enganado. Logo, a fé é ciência.

Além disso, o homem não pode crer a menos que tenha certeza de sua crença. Ora, a certeza pertence à ciência e não à opinião. Logo, a fé é uma espécie de ciência.

Ainda, como a ciência é comunicável e demonstrável, assim também a fé é comunicável por meio da pregação e ensinamento. Portanto, parece que a fé é ciência.

Mas ao contrário, a ciência é adquirida pela razão que demonstra; a fé, porém, repousa sobre o assentimento da vontade movida pela graça. Logo, a fé não é ciência, mas outra forma de conhecimento.

Resposta

Deve-se dizer que o conhecimento pode ser de dois modos:
— pela evidência daquilo que é conhecido, e esse é o conhecimento científico;
— ou pela adesão firme a algo que não se vê, mas é acreditado com certeza, e esse é o conhecimento de fé.

A diferença entre ambos está na maneira de assentir: na ciência, o intelecto se move pelo próprio objeto evidente; na fé, move-se pela autoridade de quem revela. Assim, a fé está entre a ignorância e a visão: tem certeza quanto à verdade, mas não possui evidência quanto à causa.

Entretanto, a fé é mais perfeita que a ciência em sua origem, pois deriva da luz divina e não apenas da luz natural. A ciência humana é fruto do raciocínio; a fé é fruto da revelação e da graça.

Logo, a fé não é ciência quanto ao modo de conhecer, mas o é quanto à certeza de seu assentimento. A ciência conhece pela demonstração; a fé crê pela autoridade. Mas ambas se ordenam à mesma verdade, e esta é una em Deus.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a fé se funda em um princípio infalível, mas não de modo evidente ao intelecto natural; por isso, não é ciência propriamente dita, ainda que seja mais segura quanto ao objeto.
  2. À segunda, responde-se que há duas espécies de certeza: a que nasce da evidência e a que nasce da confiança. A fé possui a segunda, e por isso não é opinião, mas firme adesão.
  3. À terceira, deve-se dizer que a fé é comunicável, mas não demonstrável; ela convence pela autoridade e pelo testemunho, não pela necessidade lógica das razões.

Artigo II — Se a fé é contrária à razão

Objeções

Parece que a fé é contrária à razão.
Com efeito, a fé trata de coisas que a razão não pode compreender; ora, o que escapa à razão parece opor-se a ela. Logo, a fé é contrária à razão.

Além disso, a razão exige provas e demonstrações; a fé, porém, dispensa-as e crê sem ver. Portanto, onde começa a fé, termina a razão.

Ainda, muitos filósofos negaram as verdades da fé justamente porque as julgaram irracionais. Logo, parece que a fé é contrária à razão.

Mas ao contrário, diz Agostinho: “Crê para compreender; pois, se não creres, não compreenderás.” Logo, a fé não é contrária à razão, mas a conduz ao seu cumprimento.

Resposta

Deve-se dizer que há contrariedade apenas entre afirmações que se opõem dentro de um mesmo gênero. Ora, a fé e a razão pertencem a ordens diferentes: a razão se move pela evidência natural; a fé, pela revelação divina.

Contudo, ambas provêm de um mesmo princípio — Deus, que é autor tanto da luz natural quanto da luz sobrenatural. Por isso, a fé não pode ser contrária à razão; antes, a razão bem ordenada prepara o caminho para a fé, e a fé purifica e eleva a razão.

Há, pois, três modos de relação entre fé e razão:

  1. A fé contém verdades que a razão pode alcançar, como a existência de Deus, mas as crê com certeza e sem dúvida.
  2. A fé contém verdades que a razão não pode compreender, mas também não contradizem seus princípios.
  3. A fé rejeita apenas os erros que a razão desviada introduz por ignorância ou orgulho.

Assim, o que parece irracional à razão obscura é, na verdade, supra-racional, não contrário, mas superior a ela. A luz da fé não apaga a luz da razão, mas a supera, como o sol supera a claridade da chama.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a fé trata de coisas que excedem a razão, não que a contradizem. O que está acima não se opõe ao que está abaixo, mas o aperfeiçoa.
  2. À segunda, responde-se que a fé não dispensa a razão, mas a conduz ao ponto onde esta, por si, não pode chegar. Crer é aceitar o que a razão reconhece ser digno de crédito.
  3. À terceira, deve-se dizer que os filósofos que rejeitaram a fé confundiram o que é superior à razão com o que é irracional. A fé não nega a razão; apenas a transcende.

Artigo III — Se a fé pode ser confirmada pela filosofia

Objeções

Parece que a fé não pode ser confirmada pela filosofia.
Com efeito, o que é recebido pela revelação divina não depende da razão humana. Ora, a filosofia é obra da razão; logo, não pode confirmar a fé.

Além disso, o mérito da fé consiste em crer no que não se vê. Se fosse confirmada pela razão, deixaria de ser fé.

Ainda, muitos que tentaram justificar racionalmente os mistérios da fé caíram em erro. Logo, é perigoso recorrer à filosofia para confirmar a fé.

Mas ao contrário, diz o Eclesiástico: “Honra o médico, pois o Senhor o criou” (Eclo 38,1). Ora, a razão é também dom de Deus; logo, deve servir à fé, e não contradizê-la.

Resposta

Deve-se dizer que a filosofia pode confirmar a fé de dois modos:
— indiretamente, mostrando que nada na fé é impossível;
— e diretamente, preparando a mente para acolher as verdades reveladas.

A razão natural é, de certo modo, serva da fé. Ela não demonstra os mistérios, mas mostra que é racional crer neles. E, ao fazê-lo, purifica a inteligência dos preconceitos e a dispõe para a iluminação superior.

Assim, a filosofia confirma a fé quando demonstra as verdades que são suas preambula, como a existência de Deus e a espiritualidade da alma; e também quando refuta os argumentos que pretendem negar os mistérios divinos.

O que a fé aceita como certo, a filosofia pode mostrar como possível. Não há, pois, oposição, mas cooperação entre ambas: a fé guia a razão, e a razão defende a fé.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a fé não depende da filosofia, mas a utiliza como instrumento de confirmação, não como fonte.
  2. À segunda, responde-se que, embora a fé se refira ao invisível, não é sem razão; crê-se com fundamento, não por impulso. A razão mostra que é sábio crer.
  3. À terceira, deve-se dizer que o perigo não está em usar a filosofia, mas em fazê-la senhora da fé. Quando subordinada à verdade revelada, ela é instrumento legítimo e fecundo.

Artigo IV — Se há hierarquia entre as verdades de fé

Objeções

Parece que todas as verdades de fé são iguais.
Com efeito, toda verdade procede igualmente de Deus, que é uno e simples; logo, não pode haver entre as verdades reveladas maior ou menor.

Além disso, o que se crê pela mesma autoridade divina tem igual certeza; ora, todas as verdades de fé são cridas pela mesma autoridade; portanto, são igualmente elevadas.

Ainda, a caridade é a forma da fé; mas a caridade é uma e simples, abrangendo tudo o que é de Deus. Logo, não há hierarquia entre as verdades cridas.

Mas ao contrário, a Escritura diz: “Entre os mandamentos, há o maior e o menor” (Mt 22,38). Ora, se há gradação nos preceitos, também deve haver nas verdades que os fundamentam.

Resposta

Deve-se dizer que, embora todas as verdades de fé procedam de um mesmo princípio e sejam igualmente certas quanto à autoridade, diferem quanto à sua importância e ordem de relação com o fim último.

Algumas são fundamentais e contêm em si a razão de todas as outras, como a Trindade e a Encarnação. Outras são derivadas e subordinadas, como as que tratam dos sacramentos, da graça e da vida futura.

Assim como na ciência há princípios e conclusões, também na fé há verdades centrais e periféricas. O grau de dignidade não altera a certeza, mas a importância: todas são igualmente verdadeiras, mas nem todas igualmente necessárias para a salvação.

Logo, a hierarquia das verdades de fé reflete a ordem da sabedoria divina: o centro é Deus em si mesmo; o círculo em torno d’Ele são as verdades que d’Ele procedem e a Ele conduzem.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a simplicidade de Deus não exclui a ordem em suas operações. Do mesmo modo, as verdades que d’Ele procedem mantêm unidade na origem, mas diversidade na manifestação.
  2. À segunda, responde-se que a certeza é igual em todas as verdades de fé, mas a dignidade não: crer na Trindade é mais sublime do que crer na existência dos anjos.
  3. À terceira, deve-se dizer que a caridade é uma, mas ordena o amor conforme o grau do bem amado; assim também a fé é una, mas ordena o assentimento conforme a grandeza do mistério.

QUESTÃO IV — Quanto às coisas que dizem respeito à causa da pluralidade

Artigo I — Se a pluralidade das coisas procede da matéria

Objeções

Parece que a pluralidade das coisas procede da matéria.
Com efeito, o Filósofo diz que a matéria é o princípio da multiplicidade, assim como a forma é o princípio da unidade. Ora, tudo o que é múltiplo o é por oposição e divisão. Logo, a pluralidade tem sua origem na matéria.

Além disso, nas coisas corpóreas vemos que as diferenças quantitativas geram distinções e multiplicidade; ora, a quantidade pertence à matéria. Logo, a matéria é a causa da pluralidade.

Ainda, se não houvesse matéria, todas as coisas criadas seriam simples e espirituais, e, portanto, sem diversidade. Logo, a matéria é o princípio da pluralidade.

Mas ao contrário, a matéria é em potência, e a potência, sem o ato, nada determina. Ora, o determinado é o que faz a diversidade. Logo, não é a matéria, mas a forma, o princípio da distinção das coisas.

Resposta

Deve-se dizer que a pluralidade pode considerar-se de dois modos:
— quanto ao número dos indivíduos dentro de uma mesma espécie;
— e quanto à diversidade das espécies entre si.

A pluralidade numérica procede da matéria, pois é a matéria que impede a unidade absoluta da forma. Assim, dois corpos são distintos porque estão em matérias diversas.

Mas a pluralidade específica, isto é, a diversidade das naturezas, procede das formas. É a diferença formal que faz de uma coisa o que ela é, e, por conseguinte, que a distingue de outra.

Contudo, se remontarmos a todas as formas e matérias, encontraremos uma causa primeira comum a ambas — a sabedoria divina —, na qual a unidade e a pluralidade se unem sem contradição. Pois Deus é um e simples, mas em sua sabedoria estão as razões de todas as coisas.

Logo, a pluralidade nasce da matéria quanto ao número, e da forma quanto à espécie, mas, em sentido mais alto, procede de Deus, que, sendo uno, é causa da diversidade sem perder a unidade.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o Filósofo fala da pluralidade numérica, que depende da matéria. Mas quanto à ordem do ser, a diversidade procede da variedade das formas, cuja origem é a vontade divina.
  2. À segunda, responde-se que a quantidade, sendo acidente da matéria, causa multiplicidade numérica, mas não diversidade essencial.
  3. À terceira, deve-se dizer que, mesmo sem matéria corpórea, há pluralidade nas substâncias espirituais, não por causa da matéria, mas da diversidade das formas criadas por Deus.

Artigo II — Se a pluralidade procede da forma

Objeções

Parece que a pluralidade não procede da forma.
Com efeito, a forma é o princípio de unidade; ora, o que é uno não pode ser causa da multiplicidade. Logo, a forma não é causa da pluralidade.

Além disso, a forma é aquilo pelo qual algo é determinado; mas a multiplicidade implica indeterminação e diferença. Logo, a pluralidade não provém da forma.

Ainda, a pluralidade supõe composição, e a forma, por si, é simples. Logo, a pluralidade não pode ter sua causa na forma.

Mas ao contrário, diz-se no Livro das Causas que “as formas são as primeiras multiplicidades em que o Uno se difunde”. Portanto, é pela forma que a unidade do primeiro princípio se multiplica nas criaturas.

Resposta

Deve-se dizer que a forma é o princípio de unidade em cada ente particular, mas é também o princípio da multiplicidade no universo. Pois, ao comunicar-se o ser uno e simples de Deus, ele o faz de modo diverso e participado, segundo diferentes formas.

A unidade de Deus é absoluta; mas nas criaturas, cada forma expressa de modo limitado um aspecto da perfeição divina. Assim, a variedade das formas manifesta a riqueza do Ser primeiro.

Logo, a pluralidade das coisas procede da forma, não enquanto forma unifica, mas enquanto limita o influxo do Ser. Pois cada forma participa da essência divina segundo um grau determinado, e a multiplicidade resulta da variedade desses graus.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a forma é princípio de unidade no indivíduo, mas de pluralidade no conjunto do ser.
  2. À segunda, responde-se que a indeterminação vem da matéria, mas a variedade formal vem da limitação do ato. Cada forma é determinada, mas distinta de outra por sua determinação própria.
  3. À terceira, deve-se dizer que, embora a forma seja simples em si, a pluralidade das formas decorre da infinita fecundidade do ato divino, que pode produzir múltiplas perfeições sem perder sua simplicidade.

Artigo III — Se a pluralidade das coisas reflete a Trindade divina

Objeções

Parece que a pluralidade das criaturas não reflete a Trindade divina.
Com efeito, a Trindade é unidade perfeita de essência e distinção de pessoas, mas as criaturas são separadas e múltiplas; logo, nelas não há imagem da Trindade, mas apenas vestígio da unidade de Deus.

Além disso, a Trindade pertence à vida íntima de Deus, enquanto a criação é exterior a Ele; logo, não pode haver semelhança entre o que é interno em Deus e o que é externo em suas obras.

Ainda, se a pluralidade criacional fosse imagem da Trindade, então toda multiplicidade seria boa, mas há pluralidades que procedem da desordem e da corrupção.

Mas ao contrário, diz Agostinho: “Toda a criação é vestígio da Trindade, porque contém número, forma e ordem.”

Resposta

Deve-se dizer que em todas as criaturas há um duplo vestígio de Deus: da unidade e da Trindade. Da unidade, porque toda criatura tende ao uno e participa de alguma perfeição simples; da Trindade, porque em todas há poder, sabedoria e bondade, que correspondem, por analogia, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Não se deve entender, porém, que a pluralidade criada seja imagem perfeita da Trindade, pois a imagem perfeita se encontra apenas na alma racional, onde há memória, inteligência e vontade. Mas a pluralidade universal das criaturas manifesta a exuberância das perfeições divinas, que se espelham, de modo múltiplo e ordenado, na diversidade dos seres.

Assim, a pluralidade reflete a Trindade não por igualdade de natureza, mas por participação: o Pai é princípio, o Filho é sabedoria, o Espírito é amor; e toda criatura, segundo sua medida, manifesta princípio, forma e fim.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que as criaturas são separadas umas das outras, mas ordenadas por Deus, e é essa ordem que manifesta a harmonia trinitária.
  2. À segunda, responde-se que, embora a Trindade pertença à vida íntima de Deus, sua bondade difusiva faz com que as criaturas participem de sua semelhança.
  3. À terceira, deve-se dizer que a multiplicidade desordenada não procede da Trindade, mas da limitação e corrupção das criaturas; a pluralidade ordenada, sim, é vestígio de Deus.

Artigo IV — Se a unidade divina é compatível com a pluralidade criada

Objeções

Parece que a unidade divina não é compatível com a pluralidade das criaturas.
Com efeito, o que é absolutamente uno não pode ser causa de diversidade, pois o semelhante gera o semelhante. Logo, se Deus é uno e simples, não pode causar uma pluralidade.

Além disso, tudo o que é produzido conserva alguma semelhança com sua causa. Ora, se Deus é absolutamente simples, as criaturas, sendo múltiplas e compostas, não poderiam proceder d’Ele.

Ainda, a unidade implica identidade; a pluralidade, distinção. Ora, o que é absolutamente idêntico não produz distinção senão por contradição. Logo, é impossível que da unidade divina proceda pluralidade.

Mas ao contrário, diz o Profeta: “Tudo o que o Senhor quis, Ele fez, no céu e na terra” (Sl 134,6). Ora, a vontade divina é uma, e suas obras são múltiplas. Logo, a unidade de Deus é compatível com a pluralidade das criaturas.

Resposta

Deve-se dizer que a unidade de Deus não exclui a pluralidade das criaturas, mas a exige. Pois o bem é difusivo de si, e a bondade infinita de Deus não poderia permanecer estéril. Assim como o sol, sendo uno, ilumina muitos corpos sem dividir-se, assim o Deus uno produz múltiplas criaturas sem perder sua simplicidade.

A pluralidade criada manifesta a perfeição do Criador. Nenhuma criatura, isoladamente, pode refletir a totalidade da bondade divina; mas a diversidade das coisas compõe, como um espelho fragmentado, o reflexo da perfeição una de Deus.

Logo, a unidade de Deus é a fonte da multiplicidade, e esta é o louvor da unidade. A pluralidade não diminui o Uno, mas o manifesta.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o semelhante produz o semelhante quanto ao ser, não quanto ao modo de comunicar o ser. Deus é uno no ser, mas múltiplo na virtude; por isso, de sua unidade procede a variedade das participações.
  2. À segunda, responde-se que as criaturas são semelhantes a Deus quanto ao ser, mas diferentes quanto ao modo: Ele é ser por essência; elas, por participação.
  3. À terceira, deve-se dizer que a distinção das criaturas não nasce por oposição à unidade divina, mas por difusão da bondade que, permanecendo una, multiplica suas expressões.

CAPÍTULO II — Exposição do Capítulo Segundo

Depois de mostrar, no capítulo precedente, que o conhecimento humano ascende dos efeitos ao princípio, e que a pluralidade dos seres manifesta a unidade da causa primeira, Boécio passa agora a considerar como essa pluralidade pode ser compreendida e ordenada pela mente.

Ele observa que há dois modos de proceder na investigação da verdade: um, que vai das coisas singulares aos princípios universais; outro, que, partindo dos universais, retorna ao particular. O primeiro é o caminho da descoberta; o segundo, o da aplicação.

A mente humana, por natureza, segue o primeiro caminho. Pois, como se inicia no sensível, precisa elevar-se gradualmente até os universais, e só então compreender o que é comum às coisas múltiplas. Deus, ao contrário, conhece de modo inverso: de si mesmo conhece todas as criaturas, porque n’Ele estão as razões eternas de tudo o que existe.

Assim, há na ordem do conhecimento humano uma correspondência com a ordem do ser: o inferior depende do superior, e o múltiplo do uno. A alma, portanto, reflete o cosmos em sua estrutura cognoscitiva: assim como o universo tem graus de ser, ela tem graus de conhecer.

Boécio distingue, então, quatro graus ou modos de entendimento: o sentido, a imaginação, a razão e o intelecto.
— O sentido apreende as formas materiais com as condições do corpo.
— A imaginação conserva essas formas, mas já sem a matéria.
— A razão abstrai os universais e discorre, comparando, dividindo e unindo.
— O intelecto, finalmente, apreende o que é simples e eterno, sem discurso nem tempo.

Desses quatro modos, o humano pertence propriamente à razão, que se move pelo discurso e alcança o universal pelas semelhanças das coisas sensíveis. Mas, pela iluminação divina, o homem pode ser elevado ao modo do intelecto, como na contemplação dos santos e dos profetas, nos quais o espírito, livre do peso das imagens, percebe de modo direto as verdades superiores.

Santo Tomás observa que esta distinção é fundamental para compreender as ciências. Pois o objeto de cada ciência se define pelo modo de conhecimento que a mente adquire. Assim:
— As ciências naturais ocupam-se do que está sujeito ao movimento e ao tempo.
— A matemática trata do que é imutável quanto à forma, mas dependente do corpo quanto à matéria.
— A metafísica considera o que é inteiramente separado da matéria e do movimento.

Desse modo, a hierarquia das ciências reflete a hierarquia do ser: as inferiores dependem das superiores, e todas, por fim, conduzem à teologia, que é a ciência mais alta, porque trata do princípio supremo, Deus.

O conhecimento humano, portanto, é uma ascensão ordenada.
Pelo sentido, conhece-se o que é contingente;
pela imaginação, o que é fixo na forma sensível;
pela razão, o que é universal e necessário;
e pelo intelecto, o que é eterno e divino.

Contudo, o intelecto humano, enquanto unido ao corpo, não atinge o modo de conhecer próprio dos anjos, que apreendem sem discurso. Mas, pela fé e pela graça, o homem pode ser conduzido a uma participação do modo angélico de inteligência, pois, segundo Dionísio, “a iluminação das inteligências inferiores provém das superiores”.

Assim, para Santo Tomás, a ascensão do intelecto humano é como uma escada que une o sensível ao divino. O primeiro degrau é o conhecimento das coisas naturais; o segundo, o das matemáticas; o terceiro, o da metafísica; o último, o da teologia. E cada degrau não suprime o anterior, mas o eleva à sua plenitude.

Por isso, a multiplicidade das ciências não destrói a unidade do saber, mas a manifesta. Pois o conhecimento, assim como a criação, é uma difusão da luz divina: múltipla em suas expressões, una em sua origem. A alma, iluminada, refaz em si o caminho da criação, retornando do múltiplo ao uno, da razão ao intelecto, do tempo à eternidade.

Eis, portanto, a ordem da sabedoria segundo Boécio e Santo Tomás:
— Tudo procede de Deus pela participação do ser e da verdade.
— Tudo é conhecido pelo homem segundo o grau de sua luz interior.
— E tudo retorna a Deus pela contemplação, onde cessam as imagens e o discurso, e o espírito repousa na unidade.

Assim se encerra o segundo capítulo do comentário, no qual se estabelece o princípio do método teológico: a razão ordena as verdades, o intelecto as contempla, e a fé as une na luz divina que ilumina todas as mentes.

QUESTÃO V — Quanto à distinção e ordem das ciências

Artigo I — Se as ciências se distinguem segundo a diversidade dos modos de abstração

Objeções

Parece que as ciências não se distinguem segundo a diversidade dos modos de abstração.
Com efeito, toda abstração é operação do intelecto. Ora, o intelecto é um e simples em sua essência. Logo, o modo de abstrair não deve multiplicar as ciências.

Além disso, a distinção das ciências deve provir do objeto e não do modo de considerá-lo. Ora, o mesmo objeto pode ser considerado sob diversos aspectos; se cada modo de consideração constituísse uma ciência, o número das ciências seria infinito.

Ainda, a abstração consiste em separar mentalmente o que está unido na realidade; ora, a natureza das coisas não se altera pela operação do intelecto. Logo, não pode haver diversidade real de ciências por mera distinção de abstração.

Mas ao contrário, Boécio ensina que “as ciências especulativas se distinguem pelos graus de abstração”: a física considera o que depende da matéria quanto ao ser e ao pensamento; a matemática, o que depende da matéria quanto ao ser, mas não quanto ao pensamento; e a metafísica, o que é separado da matéria tanto no ser quanto no pensamento.

Resposta

Deve-se dizer que a distinção das ciências procede do modo diverso como o intelecto apreende os objetos. Pois a ciência é a forma do conhecimento ordenado; e o modo de conhecer determina o gênero da ciência.

O intelecto, ao considerar as coisas, pode abstrair de dois modos:

  1. Quanto ao ser, isto é, considerando se o objeto existe ou não separado da matéria;
  2. Quanto ao modo de ser conhecido, isto é, se o objeto pode ser pensado sem referência à matéria.

Dessa distinção nascem as três ciências especulativas:
— A física, que considera o ser móvel e corpóreo, dependente da matéria tanto para existir quanto para ser concebido;
— A matemática, que considera as formas que, embora existentes na matéria, podem ser concebidas sem ela;
— A metafísica, que considera o ser enquanto ser, totalmente separado da matéria, tanto na realidade quanto no pensamento.

Assim, a diversidade das ciências provém não da diversidade das coisas, mas do grau de abstração do intelecto que as contempla. Pois a mesma coisa pode ser considerada sob diferentes aspectos: o corpo, pela física, como sujeito de movimento; pela matemática, como figura e quantidade; e pela metafísica, como ente participando do ser.

Logo, as ciências se distinguem segundo os modos de abstração, e essa distinção não divide o real, mas o ilumina segundo diversos graus da luz intelectual.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o intelecto é uno em essência, mas múltiplo em ato; e seus modos de abstração não dividem a potência, mas a aplicam a diversos objetos.
  2. À segunda, responde-se que, embora o mesmo objeto possa ser considerado de diversos modos, nem todos esses modos geram uma ciência distinta, mas apenas aqueles que implicam diferença essencial de abstração.
  3. À terceira, deve-se dizer que a abstração não altera o ser das coisas, mas o modo de conhecê-las; e é essa diferença de modo que produz distinção de ciências, não no real, mas no inteligível.

Artigo II — Se há uma única ciência para todas as coisas imateriais

Objeções

Parece que há uma única ciência para todas as coisas imateriais.
Com efeito, o imaterial é o objeto próprio do intelecto; e o intelecto, ao apreender o que é separado da matéria, não encontra distinção essencial. Logo, todas as coisas imateriais devem pertencer a uma mesma ciência.

Além disso, as coisas imateriais, como Deus, os anjos e a alma, estão unidas na ordem do ser espiritual. Ora, o que pertence a um mesmo gênero deve ser estudado pela mesma ciência. Logo, há uma única ciência do imaterial.

Ainda, se a multiplicidade das ciências depende do modo de abstração, e as coisas imateriais são absolutamente abstraídas da matéria, segue-se que todas devem pertencer a uma única ciência, a metafísica.

Mas ao contrário, o Filósofo distingue a teologia, que trata do ser supremo e imutável, da ciência matemática e da física. Logo, nem todas as realidades imateriais pertencem a uma única ciência.

Resposta

Deve-se dizer que as coisas imateriais não constituem uma única ciência, porque diferem não apenas quanto ao grau de separação da matéria, mas também quanto ao modo de dependência em relação à causa primeira.

Há três ordens de imaterialidade:

  1. A divina, absolutamente separada da matéria, tanto quanto ao ser quanto à operação;
  2. A angélica, separada da matéria quanto ao ser, mas operante sobre o mundo material;
  3. A intelectual humana, que, embora incorpórea em essência, depende da matéria na operação do conhecer.

Por isso, a teologia, que trata de Deus, é superior à filosofia natural e mesmo à metafísica, porque considera o imaterial em sua fonte primeira e absoluta. A metafísica, ao contrário, considera o imaterial apenas enquanto princípio comum do ser, e não enquanto Deus pessoal e trinitário.

Logo, embora todas as coisas imateriais sejam de algum modo unidas, distinguem-se quanto ao grau de causalidade e dependência da matéria, e, por conseguinte, quanto ao gênero de ciência que as estuda.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o intelecto, embora tenha um único objeto formal — o imaterial —, apreende sob diversos aspectos o que é imaterial em grau diverso.
  2. À segunda, responde-se que as coisas espirituais pertencem ao mesmo gênero quanto ao ser, mas diferem quanto ao modo de ser conhecido e quanto ao seu princípio; e disso nasce a diversidade das ciências.
  3. À terceira, deve-se dizer que a metafísica trata do imaterial em sentido amplo, mas não em todos os seus modos. A teologia trata do imaterial supremo; a psicologia racional, do imaterial criado; a metafísica, do imaterial como causa universal do ser.

Artigo III — Se as ciências práticas se distinguem das especulativas pelo fim

Objeções

Parece que as ciências práticas não se distinguem das especulativas pelo fim.
Com efeito, toda ciência visa à verdade. Ora, tanto a ciência prática quanto a especulativa buscam a verdade; logo, não diferem quanto ao fim.

Além disso, o mesmo objeto pode ser considerado sob o aspecto da verdade e sob o do bem; mas é o mesmo o que é verdadeiro e o que é bom. Logo, não há distinção essencial entre a ciência que contempla e a que opera.

Ainda, a razão especulativa e a prática são potências da mesma alma, e não podem constituir ciências essencialmente distintas.

Mas ao contrário, o Filósofo ensina que “a diferença entre o especulativo e o prático é a diferença entre o saber e o fazer”.

Resposta

Deve-se dizer que o fim das ciências distingue sua natureza.
A ciência especulativa tem por fim a contemplação da verdade; a ciência prática, a ordenação da ação segundo a razão.

Ambas consideram a verdade, mas sob aspectos diferentes: a especulativa considera a verdade como fim em si; a prática, como regra e norma da ação. Assim, a ciência especulativa descansa na contemplação; a prática tende ao movimento e à operação.

Por isso, distinguem-se também quanto aos objetos: a especulativa trata das coisas necessárias e imutáveis; a prática, das contingentes e mutáveis.
— A ética regula a ação do indivíduo;
— A economia, a da família;
— A política, a da comunidade.

Logo, a diferença entre ambas está no fim: a especulativa ordena o intelecto à verdade; a prática, à virtude.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que ambas visam à verdade, mas de modos diversos: a especulativa como fim, a prática como meio.
  2. À segunda, responde-se que o verdadeiro e o bem são realmente idênticos, mas diferem quanto ao modo de consideração: a verdade pertence ao intelecto, o bem à vontade.
  3. À terceira, deve-se dizer que a razão prática e a especulativa são faculdades de uma mesma alma, mas diferem quanto ao ato: uma ordena o agir, a outra o contemplar.

QUESTÃO VI — Quanto à distinção das ciências especulativas

Artigo I — Se há uma única ciência especulativa

Objeções

Parece que há apenas uma ciência especulativa.
Com efeito, toda ciência especulativa tem por objeto a verdade, e a verdade é una, sendo o reflexo da sabedoria divina. Ora, o que tem o mesmo objeto e o mesmo fim é uno. Logo, há uma única ciência especulativa.

Além disso, as diversas ciências especulativas se ordenam umas às outras, e o que é ordenado participa de uma mesma natureza. Assim, física, matemática e metafísica se referem à verdade universal. Logo, constituem uma única ciência.

Ainda, as distinções de abstração são operações do mesmo intelecto e não diversificam o objeto formal. Logo, a distinção entre física, matemática e metafísica é apenas nominal.

Mas ao contrário, Boécio e o Filósofo ensinam que há três ciências especulativas distintas — física, matemática e teologia —, porque consideram o ser sob aspectos diversos.

Resposta

Deve-se dizer que as ciências especulativas são múltiplas, não quanto ao objeto material — que é o ser —, mas quanto ao objeto formal, isto é, ao modo sob o qual o ser é considerado.

O ser pode ser apreendido de três modos:

  1. Como unido à matéria e ao movimento, e assim o considera a física, que trata do ser móvel e sensível.
  2. Como separado da matéria quanto ao pensamento, mas não quanto à existência, e assim o considera a matemática, que estuda quantidades e figuras abstraídas mentalmente.
  3. Como separado da matéria tanto quanto ao ser quanto ao pensamento, e assim o considera a metafísica ou teologia filosófica, que trata do ser enquanto ser, de suas causas primeiras e do princípio absoluto.

Logo, há três ciências especulativas, distintas pelo grau de abstração, mas ordenadas entre si.
A física é a primeira, porque parte do sensível;
a matemática é intermediária, pois abstrai da matéria sensível, mas não do movimento de modo total;
a metafísica é a última e mais alta, pois contempla o ser puro e imutável.

Assim, a pluralidade das ciências não divide o saber, mas o aperfeiçoa; e sua hierarquia reflete a ordem da realidade: o que é mais universal e separado ocupa o grau mais alto da contemplação.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a verdade é una em si, mas múltipla segundo os modos de participação do intelecto. A multiplicidade das ciências não contradiz, mas exprime a unidade da verdade.
  2. À segunda, responde-se que as ciências são ordenadas como degraus de uma mesma escada, mas cada degrau tem seu próprio objeto formal; por isso, a unidade do fim não destrói a diversidade dos meios.
  3. À terceira, deve-se dizer que a distinção de abstração é formal, e por isso suficiente para diversificar as ciências, pois determina o modo do conhecer, e este define a espécie de ciência.

Artigo II — Se a matemática é intermediária entre a física e a metafísica

Objeções

Parece que a matemática não é intermediária entre a física e a metafísica.
Com efeito, a matemática não trata das coisas que são na realidade, mas das que são concebidas; ora, o que é concebido e não existente está mais distante da realidade sensível do que da essência imutável. Logo, a matemática deve estar acima da metafísica, não entre ela e a física.

Além disso, a física considera o sensível e o mutável; a metafísica, o imutável e o divino. Ora, o matemático, tratando do número e da figura, não se ocupa de causas, mas apenas de quantidades; logo, sua ciência parece inferior à física.

Ainda, o Filósofo diz que a matemática é uma ciência demonstrativa, mas não universal. Ora, o universal pertence à metafísica, o particular à física. Logo, a matemática, por não tratar nem do universal nem do particular, não ocupa lugar intermediário.

Mas ao contrário, Boécio diz: “A matemática é intermediária entre a física e a teologia, porque abstrai da matéria sensível, mas não do movimento em todo sentido.”

Resposta

Deve-se dizer que a matemática é, de fato, intermediária entre a física e a metafísica, tanto quanto à origem quanto quanto ao grau de abstração.

Pois, como ensina Aristóteles, o intelecto humano conhece primeiro o sensível, depois o inteligível; e, nesse processo, eleva-se gradualmente, retirando da matéria o que pode ser concebido em si. A física considera as coisas enquanto unidas à matéria sensível; a matemática, enquanto abstraídas da matéria sensível, mas ainda dependentes da quantidade; a metafísica, enfim, considera o ser puro, separado de toda condição material.

Assim, a matemática ocupa o meio: não trata do movimento e da matéria como a física, mas também não se separa inteiramente deles como a metafísica. As suas formas são imutáveis em conceito, mas dependentes da matéria em existência.

Por isso, a matemática prepara a mente para a metafísica, purificando o intelecto da imaginação e habituando-o à contemplação das formas abstratas. O espírito, ao passar da física para a metafísica, encontra na matemática a ponte necessária entre o sensível e o inteligível.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o matemático não trata de coisas imaginárias, mas de formas reais abstraídas intelectualmente. Sua abstração não destrói a realidade, mas a purifica do acidental.
  2. À segunda, responde-se que a matemática é inferior à metafísica quanto à dignidade do objeto, mas superior à física quanto à pureza do modo de conhecer.
  3. À terceira, deve-se dizer que a matemática é intermediária também quanto à universalidade: suas conclusões são mais universais que as da física, mas menos que as da metafísica, que versa sobre o ser enquanto ser.

Artigo III — Se a teologia é a mais elevada entre as ciências especulativas

Objeções

Parece que a teologia não é a mais elevada entre as ciências especulativas.
Com efeito, a teologia se apoia na fé, enquanto as demais se baseiam na razão; ora, a ciência que depende menos da razão parece menos perfeita. Logo, a teologia é inferior.

Além disso, a metafísica considera o ser universal, que inclui todos os entes; ora, o universal é mais digno que o particular. Logo, a metafísica é superior à teologia, que trata apenas de Deus.

Ainda, a teologia tem por fim a salvação do homem, o que pertence à ordem prática, não à especulativa. Logo, a teologia não é ciência especulativa suprema.

Mas ao contrário, Boécio e Santo Tomás afirmam: “A teologia é a mais nobre das ciências, porque seu objeto é o mais nobre, Deus mesmo.”

Resposta

Deve-se dizer que a teologia é, de todas as ciências especulativas, a mais elevada, tanto pelo objeto quanto pelo modo de conhecimento e pelo fim.

Pelo objeto, porque trata de Deus em si mesmo, enquanto as outras o consideram apenas como princípio ou causa.
Pelo modo, porque conhece pela luz da revelação, que supera toda a capacidade da razão natural.
Pelo fim, porque não visa apenas o conhecimento, mas a união com o próprio Deus.

A metafísica é teologia natural, e a teologia propriamente dita é teologia sobrenatural. A primeira atinge Deus pelas criaturas; a segunda, pela fé. Assim, a filosofia termina onde a teologia começa.

Logo, a teologia não é apenas a mais alta ciência especulativa, mas também a que dá sentido e unidade a todas as outras, porque nela se cumpre o retorno do conhecimento ao princípio do ser.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a perfeição de uma ciência não se mede pela autonomia da razão, mas pela dignidade de seu objeto. A teologia é mais perfeita porque seu objeto é o próprio Deus.
  2. À segunda, responde-se que o universal da metafísica é inferior à simplicidade absoluta de Deus, pois o universal é comum por participação, e Deus é comunhão por essência.
  3. À terceira, deve-se dizer que, embora a teologia ordene o homem ao bem último, seu modo de conhecer é especulativo, pois contempla a verdade divina; sua aplicação prática é efeito, não essência.

QUESTÃO VII — Quanto às causas da distinção e ordem das ciências

Artigo I — Se a distinção das ciências procede da diversidade dos objetos

Objeções

Parece que a distinção das ciências não procede da diversidade dos objetos.
Com efeito, o objeto de todas as ciências é o mesmo, a saber, o ente; pois, como diz Aristóteles, “toda ciência versa sobre o ser de algum modo”. Logo, não se pode distinguir as ciências pela diversidade dos objetos.

Além disso, a mesma realidade pode ser considerada sob múltiplos aspectos: o corpo, enquanto móvel, pertence à física; enquanto quantificado, à matemática; enquanto ser, à metafísica. Ora, essa distinção provém do modo de consideração, não do objeto em si. Logo, a diversidade das ciências não depende dos objetos, mas dos modos do intelecto.

Ainda, se as ciências se distinguissem pelos objetos, seguir-se-ia que o número das ciências seria igual ao número dos entes, o que é absurdo.

Mas ao contrário, Boécio ensina que “a ciência se diversifica conforme a diversidade das coisas conhecidas”. Ora, o conhecimento é proporcionado ao objeto; logo, as ciências se distinguem segundo a diversidade dos objetos considerados.

Resposta

Deve-se dizer que as ciências se distinguem conforme a diversidade formal de seus objetos, e não quanto à matéria comum que podem compartilhar.
Pois, embora todas as ciências versem sobre o ser, cada uma o considera sob um aspecto formal próprio: a física o considera como móvel, a matemática como quantificável, a metafísica como ente em si mesmo.

A razão humana, em sua operação, não pode abarcar simultaneamente todas as condições do ser; por isso, separa intelectualmente o que está unido na realidade e, conforme o aspecto sob o qual o apreende, constitui uma ciência distinta.

Assim, a diversidade das ciências não decorre da diversidade absoluta dos entes, mas da diversidade dos aspectos formais segundo os quais o intelecto os contempla. A multiplicidade das ciências, portanto, reflete a multiplicidade das perspectivas do intelecto finito diante da unidade do ser.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o ente é o objeto comum de todas as ciências, mas cada uma o considera sob uma razão própria, o que basta para distinguir suas espécies.
  2. À segunda, responde-se que o mesmo objeto material pode pertencer a ciências diversas, por ser apreendido sob aspectos diferentes, e isso não implica multiplicação infinita, pois os modos formais de consideração são finitos.
  3. À terceira, deve-se dizer que o número das ciências não se iguala ao número dos entes, porque muitos entes caem sob uma mesma razão formal comum, e é por essa razão que as ciências se multiplicam.

Artigo II — Se a distinção das ciências procede da diversidade das potências da alma

Objeções

Parece que as ciências se distinguem segundo as potências da alma.
Com efeito, cada potência tem seu próprio objeto; ora, o conhecimento se realiza por diferentes potências — sentido, imaginação, razão, intelecto. Logo, as ciências devem distinguir-se conforme essas potências.

Além disso, o mesmo objeto conhecido por diferentes faculdades dá origem a conhecimentos diversos; e como há faculdades superiores e inferiores, parece que também as ciências, que são atos dessas faculdades, se distinguem segundo elas.

Ainda, toda operação segue a natureza do princípio operante; logo, se as potências são diversas, também o serão as ciências que delas procedem.

Mas ao contrário, o Filósofo afirma que as ciências se distinguem pelos objetos, não pelas potências. Ora, a potência é princípio do conhecer, não o termo conhecido. Logo, as ciências não se distinguem pelas potências.

Resposta

Deve-se dizer que a distinção das ciências não procede diretamente da diversidade das potências da alma, mas da diversidade dos objetos que essas potências apreendem.
Com efeito, as potências são ordenadas às coisas conhecidas: o sentido, ao sensível; a imaginação, às imagens; a razão, ao universal; o intelecto, ao simples e necessário.

Ora, como o intelecto humano é o mesmo que raciocina e contempla, as ciências que dele procedem se diversificam segundo o modo e o objeto da operação, não segundo a potência que opera. Assim, a física e a metafísica pertencem à mesma potência racional, mas diferem quanto ao modo de abstração e ao grau de universalidade.

Logo, a diversidade das potências é a causa remota da diversidade das ciências; a causa próxima é a diversidade formal dos objetos.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que, embora cada potência tenha um objeto próprio, a ciência não se define pela potência, mas pelo modo como o intelecto apreende a razão formal do objeto.
  2. À segunda, responde-se que o mesmo objeto pode ser conhecido por diversas potências, mas a ciência surge apenas quando o conhecimento atinge estabilidade racional, o que pertence ao intelecto, e não ao sentido ou à imaginação.
  3. À terceira, deve-se dizer que a operação segue a natureza da potência quanto ao princípio, mas se especifica pelo objeto; por isso, a multiplicidade das ciências depende do que é conhecido, não de quem conhece.

Artigo III — Se a ordem das ciências depende da dignidade de seus objetos

Objeções

Parece que a ordem das ciências não depende da dignidade de seus objetos.
Com efeito, a ciência mais perfeita é a que tem maior certeza; ora, há ciências de objetos inferiores, como a matemática, mais certas do que a física, que trata de coisas mais elevadas. Logo, a ordem das ciências não depende da dignidade dos objetos, mas da certeza do conhecimento.

Além disso, a teologia trata do mais alto objeto, Deus; contudo, sua demonstração não é racional, mas fundada na fé. Logo, o mais alto objeto não implica o mais alto grau de ciência.

Ainda, há ciências práticas que têm por fim o bem humano e são mais úteis que as especulativas; logo, a ordem das ciências não se mede pela dignidade do objeto, mas pela utilidade do fim.

Mas ao contrário, o Filósofo diz: “A ciência é tanto mais nobre quanto mais nobre é o objeto a que se ordena.”

Resposta

Deve-se dizer que a ordem das ciências depende essencialmente da dignidade dos objetos, e acidentalmente da certeza e da utilidade.
Pois a ciência é perfeição do intelecto, e o intelecto se aperfeiçoa na medida em que se une ao mais nobre objeto. Assim, quanto mais elevado o objeto, mais elevada a ciência que o contempla.

Contudo, como o modo de conhecer depende da condição do sujeito, acontece que o que é mais elevado em si é menos evidente para nós. Assim, as ciências inferiores são mais certas quanto à demonstração, mas menos nobres quanto ao objeto.

Logo, a hierarquia das ciências deve considerar ambas as ordens:
— quanto à dignidade do objeto, a teologia é suprema, seguida da metafísica, depois da matemática e, por fim, da física;
— quanto à certeza do conhecimento, a ordem se inverte, pois conhecemos melhor o que é mais próximo dos sentidos.

A sabedoria perfeita, porém, pertence àquela ciência que contempla o mais alto princípio de todas as coisas — e essa é a teologia.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a certeza se refere ao modo de conhecer; a dignidade, ao objeto conhecido. O que é mais certo para nós pode ser menos nobre em si.
  2. À segunda, responde-se que a fé não diminui a dignidade da teologia, mas a exalta, pois, embora não demonstre pela razão, crê por autoridade divina.
  3. À terceira, deve-se dizer que a utilidade pertence à ordem prática, e esta é inferior à especulativa; pois o agir é em função do conhecer, e não o contrário.

Artigo IV — Se a distinção e a ordem das ciências têm origem em Deus

Objeções

Parece que a distinção e a ordem das ciências não têm origem em Deus.
Com efeito, as ciências são produtos da razão humana; ora, o que procede da razão criada não deve ser atribuído à causa divina. Logo, a distinção das ciências é puramente humana.

Além disso, há ciências falsas e enganosas, como as que se fundam em princípios errôneos. Ora, nada de falso procede de Deus. Logo, a ordem das ciências não vem de Deus.

Ainda, a diversidade das ciências é resultado do esforço humano em dividir e classificar. Ora, o exercício da razão é ato livre do homem, não determinado por Deus.

Mas ao contrário, toda ordem da razão humana provém da sabedoria divina, conforme o livro da Sabedoria: “Ele dispôs todas as coisas suavemente e em ordem” (Sb 8,1).

Resposta

Deve-se dizer que toda distinção e ordem verdadeira das ciências tem origem em Deus como causa primeira da luz intelectual.
Pois Deus é a fonte de toda verdade, e a razão humana participa dessa luz ao conhecer. Assim, a diversidade e a hierarquia das ciências refletem a ordem da sabedoria divina difundida nas criaturas.

As ciências são múltiplas porque o intelecto humano, sendo finito, não pode abranger de uma só vez a totalidade da verdade divina. Ele a apreende por partes, segundo diversos aspectos. Essa multiplicidade de modos de conhecer é efeito da abundância da luz de Deus, não de sua carência.

Quanto às ciências falsas ou imperfeitas, não procedem de Deus enquanto erro, mas enquanto faculdade natural de raciocinar, que o homem pode usar bem ou mal.

Logo, a distinção e a ordem das ciências provêm de Deus como causa primeira da luz do entendimento, e do homem como causa segunda, que a ordena por meio do exercício racional.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a razão humana é causa instrumental da ciência, mas o primeiro princípio do conhecer é a luz divina, pela qual o intelecto é movido.
  2. À segunda, responde-se que o erro procede do desvio da razão, não de sua fonte; assim como a sombra procede da luz impedida, não da luz em si.
  3. À terceira, deve-se dizer que a liberdade do homem em ordenar as ciências é participação da liberdade divina, pela qual Deus age em todas as causas sem destruir sua autonomia.

QUESTÃO VIII — Quanto à ordem das ciências especulativas em relação às práticas

Artigo I — Se as ciências especulativas são superiores às práticas

Objeções

Parece que as ciências práticas são superiores às especulativas.
Com efeito, a perfeição do homem consiste em agir bem, e não apenas em conhecer. Ora, as ciências práticas ordenam o agir humano. Logo, são mais nobres.

Além disso, a ciência especulativa termina em si mesma, sem produzir efeito exterior; a prática, porém, move à ação e transforma a realidade. Ora, o que causa é superior ao que apenas contempla.

Ainda, a teologia, que é a mais alta das ciências, move a vontade ao amor de Deus, o que é um ato prático. Logo, as ciências práticas são mais elevadas.

Mas ao contrário, Aristóteles ensina no Ética a Nicômaco que “o fim das ciências práticas é a ação, e o das especulativas é a verdade”. Ora, a verdade é superior ao agir, pois o agir é ordenado à verdade e ao bem. Logo, as ciências especulativas são superiores.

Resposta

Deve-se dizer que a superioridade das ciências se mede segundo o fim. Ora, o fim da ciência especulativa é a contemplação da verdade; o da ciência prática é a direção da ação.

A contemplação é mais perfeita, porque o homem participa mais plenamente da semelhança divina quando conhece do que quando age. Deus conhece tudo por sua essência, mas não opera por necessidade exterior. Assim, o ato de contemplar é, em si, mais divino que o de agir.

Além disso, o conhecimento dirige a ação: ninguém pode agir retamente sem saber o que deve fazer. Logo, a prática depende da especulação como o efeito depende da causa.

A ordem, portanto, é esta: a ciência especulativa é superior em dignidade, e a prática, em utilidade. A primeira aperfeiçoa o intelecto; a segunda, a vida. Ambas, porém, convergem no mesmo princípio e fim — o bem supremo, que é a verdade divina.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a perfeição do homem consiste no conhecimento e no amor de Deus; o amor pertence à vontade, mas é movido pelo conhecimento. Logo, a ciência especulativa é primeira e mais nobre.
  2. À segunda, responde-se que a ação é nobre enquanto ordenada pela razão; e a razão se aperfeiçoa na especulação. Assim, o conhecimento é causa do agir, mas o agir não é causa do conhecer.
  3. À terceira, deve-se dizer que a teologia, embora mova ao amor, é ciência especulativa quanto ao modo, pois seu fim primário é a contemplação da verdade divina, da qual decorre a ação reta.

Artigo II — Se as ciências práticas dependem das especulativas

Objeções

Parece que as ciências práticas não dependem das especulativas.
Com efeito, o fim das práticas é o agir, e o das especulativas, o conhecer. Ora, o fim não depende do que tem outro fim. Logo, as práticas são independentes.

Além disso, muitos homens são hábeis no agir sem conhecimento das causas, como os artífices que produzem pela experiência. Logo, a prática pode subsistir sem a especulação.

Ainda, a política, que é a mais alta das ciências práticas, regula a vida humana e não depende da física, nem da matemática, nem da metafísica.

Mas ao contrário, diz Boécio: “As artes práticas são imagens das especulativas, porque aplicam à matéria os princípios que estas contemplam.”

Resposta

Deve-se dizer que as ciências práticas dependem das especulativas, não quanto ao objeto material, mas quanto ao princípio formal.
Pois toda ação reta procede de um juízo verdadeiro, e o juízo verdadeiro nasce da contemplação da verdade.

Assim como o artífice não pode agir sem o conhecimento da forma que deve imprimir, assim também o homem não pode agir virtuosamente sem o conhecimento do bem.

Por isso, as ciências especulativas são causas diretivas das práticas: a metafísica fornece o conhecimento do fim último; a física, dos meios naturais; e a matemática, da ordem e proporção das ações.

Logo, as ciências práticas derivam das especulativas como a aplicação deriva do princípio, e a execução, da concepção.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que os fins são distintos, mas ordenados: o agir é meio para alcançar o bem, e o bem é conhecido pela especulação.
  2. À segunda, responde-se que a experiência sem razão imita a arte, mas não a possui plenamente. O agir sem ciência é cego, e a ciência sem agir é estéreo; a perfeição está na união de ambas.
  3. À terceira, deve-se dizer que a política, embora trate de ações humanas, pressupõe os princípios especulativos da ética e da metafísica, pois governa os homens segundo a razão do bem.

Artigo III — Se há reciprocidade entre as ciências especulativas e práticas

Objeções

Parece que não há reciprocidade entre as ciências especulativas e as práticas.
Com efeito, a especulação termina na verdade, e a prática, na ação; logo, uma não retorna à outra.

Além disso, o especulativo é contemplativo e imóvel; o prático é ativo e mutável. Ora, o imóvel e o móvel não se convertem.

Ainda, o Filósofo afirma que “as ciências práticas recebem sua regra das especulativas, mas não a comunicam a elas”. Logo, a dependência é unidirecional.

Mas ao contrário, a razão humana é uma só, e age e contempla segundo um mesmo princípio de sabedoria. Logo, deve haver alguma reciprocidade entre ambas.

Resposta

Deve-se dizer que entre as ciências especulativas e práticas há reciprocidade, não de igualdade, mas de ordem circular: a especulativa ilumina a prática, e a prática, por sua vez, confirma a especulativa.

Com efeito, o conhecimento especulativo se aperfeiçoa pela experiência que o agir proporciona; e a ação, por sua vez, é guiada e purificada pela verdade contemplada.

Assim como o artífice, ao aplicar uma regra, conhece melhor a própria regra, também o homem, ao agir conforme a razão, entende melhor o valor da verdade que segue.

Portanto, há entre ambas uma relação de reflexo: a especulação gera o agir, e o agir, bem ordenado, aperfeiçoa a especulação, pois conduz à sabedoria prática, que é o conhecimento das causas pelos efeitos.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que, embora a verdade e a ação sejam fins diversos, a verdade regula a ação, e a ação, realizada segundo a verdade, é caminho de retorno à contemplação.
  2. À segunda, responde-se que o imóvel e o móvel não se convertem em essência, mas podem ordenar-se em ato: o conhecimento ilumina o agir, e o agir conduz à visão.
  3. À terceira, deve-se dizer que as práticas não comunicam princípios às especulativas, mas oferecem matéria de confirmação, pois a experiência das ações mostra a verdade dos princípios.

Artigo IV — Se a teologia, como ciência, abrange o especulativo e o prático

Objeções

Parece que a teologia não abrange ambos, mas somente o especulativo.
Com efeito, a teologia tem por fim a contemplação de Deus; ora, o que é puramente contemplativo exclui a ação. Logo, a teologia é apenas especulativa.

Além disso, o agir pertence à ordem da vontade; ora, a teologia é ciência do intelecto. Logo, não inclui o prático.

Ainda, a teologia sagrada trata do mistério divino, que está acima da razão e da ação humana; logo, não pode incluir o prático.

Mas ao contrário, Santo Agostinho diz: “A verdadeira sabedoria consiste em conhecer e amar a Deus.” Ora, o amor é ato prático e o conhecimento, ato especulativo. Logo, a teologia abrange ambos.

Resposta

Deve-se dizer que a teologia, como ciência divina, abrange em si o especulativo e o prático, mas de modo subordinado: é principalmente especulativa quanto ao fim e prática quanto ao efeito.

Ela é especulativa, porque tem por objeto a verdade suprema e imutável, Deus mesmo; e é prática, porque dessa verdade decorre o reto ordenamento da vida e da vontade humana.

Assim, a teologia une o que nas outras ciências está separado: contempla para agir, e age porque contempla.
Na teologia, o conhecimento gera amor, e o amor conduz a um conhecimento mais profundo.
Por isso, ela é chamada sapientia, isto é, o saber saboroso, porque une o intelecto e a caridade na mesma luz.

Logo, a teologia é a forma e o cume de todas as ciências:
— ilumina o intelecto pela contemplação da verdade;
— move a vontade pelo amor do sumo bem;
— e ordena todas as ações humanas à participação da vida divina.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a teologia é essencialmente contemplativa, mas sua contemplação é fecunda, pois gera caridade e ação virtuosa.
  2. À segunda, responde-se que a teologia é ciência do intelecto quanto à forma, e da vontade quanto ao efeito; e, por isso, abarca ambos os aspectos do espírito humano.
  3. À terceira, deve-se dizer que, embora a teologia trate de coisas que ultrapassam a ação humana, ela orienta o agir segundo o fim último, que é a união com Deus.

QUESTÃO IX — Quanto à causa da distinção entre as ciências especulativas e práticas

Artigo I — Se a diferença entre as ciências especulativas e práticas procede do fim

Objeções

Parece que a diferença entre as ciências especulativas e práticas não procede do fim.
Com efeito, toda ciência tem por fim a verdade, pois o conhecer é ato do intelecto, cuja perfeição é a apreensão do verdadeiro. Ora, tanto a especulativa quanto a prática buscam a verdade. Logo, não se distinguem pelo fim.

Além disso, o fim é posterior à operação, enquanto a distinção das ciências é anterior a ela, como sua forma. Logo, o fim não pode ser causa formal da diferença entre as ciências.

Ainda, o mesmo objeto pode ser contemplado e aplicado à ação, como o bem moral; logo, não é o fim que distingue, mas o modo de consideração.

Mas ao contrário, o Filósofo ensina que “as ciências se distinguem segundo o fim: umas ordenam o intelecto à verdade, outras a regulam segundo o agir”.

Resposta

Deve-se dizer que o fim é a causa formal e principal da distinção entre as ciências especulativas e práticas.
Pois o intelecto é ordenado a dois atos: um, pelo qual contempla a verdade; outro, pelo qual dirige a ação. No primeiro, repousa na verdade conhecida; no segundo, aplica o conhecimento ao agir.

Daí procede a divisão das ciências:
— as especulativas buscam a verdade como fim em si;
— as práticas buscam a verdade como regra da ação.

A diferença, portanto, está no fim do conhecimento, não na verdade que ambas consideram. A mesma verdade pode ser objeto de ambas: a teologia, por exemplo, é especulativa quando contempla Deus, e prática quando ordena o homem a Ele.

Assim, o fim formaliza a operação da ciência: o especulativo conhece para conhecer; o prático conhece para agir. E como o fim é o princípio da ordem, toda a distinção das ciências deriva dele.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que ambas buscam a verdade, mas de modo diverso: a especulativa como término, a prática como meio.
  2. À segunda, responde-se que o fim, embora último na execução, é primeiro na intenção; e a intenção define a espécie da ciência.
  3. À terceira, deve-se dizer que o mesmo objeto pode ser conhecido sob fins diversos, e conforme o fim o conhecimento assume outra natureza: o que é especulativo em si torna-se prático quando se ordena à ação.

Artigo II — Se a diferença entre as ciências especulativas e práticas procede das potências da alma

Objeções

Parece que a diferença entre as ciências especulativas e práticas procede das potências da alma.
Com efeito, há em nós duas potências principais: o intelecto e a vontade. Ora, as ciências especulativas pertencem ao intelecto, e as práticas à vontade. Logo, a distinção entre ambas provém das potências.

Além disso, a diferença entre o contemplar e o agir é a mesma que há entre conhecer e querer. Ora, conhecer pertence ao intelecto, e querer, à vontade. Logo, as ciências diferem pelas potências da alma.

Ainda, toda operação se especifica pelo princípio operante. Se as potências são diversas, diversas também serão as ciências que delas procedem.

Mas ao contrário, a vontade não produz ciência, mas movimento. Logo, a distinção das ciências não procede da vontade, mas do intelecto.

Resposta

Deve-se dizer que a diferença entre as ciências especulativas e práticas não procede primariamente das potências da alma, mas do fim de sua operação.
Pois todas as ciências pertencem ao intelecto, ainda que algumas se ordenem à vontade.

O intelecto, enquanto contempla a verdade, gera a ciência especulativa; enquanto ordena a verdade ao agir, gera a ciência prática. Assim, a diferença não vem de potências distintas, mas de atos diversos de uma mesma potência.

A vontade entra apenas como móvel que inclina o intelecto à aplicação do conhecimento, mas não como princípio formal da ciência.

Logo, a distinção entre o especulativo e o prático é formalmente intelectual e materialmente voluntária: nasce no intelecto e se realiza pela vontade.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que as ciências práticas dependem da vontade quanto à aplicação, mas não quanto à constituição, pois toda ciência reside no intelecto.
  2. À segunda, responde-se que a diferença entre conhecer e querer é essencial; porém, a diferença entre o conhecer especulativo e o prático é acidental, pois ambos pertencem ao mesmo poder, sob fins diversos.
  3. À terceira, deve-se dizer que a operação se especifica pelo objeto formal, não pelo princípio operante. Assim, a ciência é distinguida pelo modo de conhecer, não pela potência que conhece.

Artigo III — Se a diferença entre as ciências especulativas e práticas é natural ou arbitrária

Objeções

Parece que a diferença entre as ciências especulativas e práticas é arbitrária e não natural.
Com efeito, o homem pode aplicar qualquer conhecimento à ação ou à contemplação. Ora, o que depende da livre aplicação não é natural.

Além disso, as mesmas verdades servem tanto à especulação quanto à prática, como as leis morais, que podem ser conhecidas teoricamente ou aplicadas à vida. Logo, a diferença é de uso, não de natureza.

Ainda, a natureza das ciências é determinada por seus objetos; ora, os objetos das especulativas e das práticas são muitas vezes os mesmos. Logo, a diferença é convencional, não natural.

Mas ao contrário, Boécio ensina que “a divisão do saber é conforme à natureza das coisas e à condição do intelecto”. Ora, essa divisão inclui o especulativo e o prático. Logo, é natural.

Resposta

Deve-se dizer que a distinção entre as ciências especulativas e práticas é natural, pois decorre da dupla ordenação do intelecto humano:
— à verdade enquanto fim, o que gera o especulativo;
— e à ação enquanto meio, o que gera o prático.

O intelecto humano, por ser intermediário entre o puramente contemplativo (como o dos anjos) e o puramente ativo (como o apetite sensitivo), participa de ambos os modos: conhece a verdade e move-se pelo bem.

Por isso, a divisão do saber é reflexo da estrutura natural da alma racional, que contém em si o logos theoretikós e o logos praktikós.

Assim, não é por convenção que se distingue o saber contemplativo do operante, mas por natureza: um é repouso do intelecto, o outro é seu movimento aplicado.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o uso do conhecimento é livre, mas a ordenação do intelecto à verdade e à ação é natural.
  2. À segunda, responde-se que o mesmo princípio pode servir a fins diversos, mas sua natureza se determina pelo fim próprio, não pelo acidental.
  3. À terceira, deve-se dizer que os objetos podem coincidir materialmente, mas diferem formalmente: a mesma verdade, quando ordenada ao agir, muda de espécie de ciência.

Artigo IV — Se a distinção entre as ciências especulativas e práticas tem origem em Deus

Objeções

Parece que essa distinção não procede de Deus.
Com efeito, o conhecimento humano nasce da experiência e do raciocínio, não da inspiração divina. Logo, a divisão das ciências é produto da razão criada, não da causa primeira.

Além disso, se a distinção viesse de Deus, seria imutável. Ora, as divisões das ciências mudam com o tempo e o progresso humano. Logo, não procedem de Deus.

Ainda, Deus é uno e simples, e tudo o que d’Ele procede participa de sua unidade. Logo, não poderia ser causa da multiplicidade das ciências.

Mas ao contrário, a Escritura diz: “Toda sabedoria vem do Senhor, e está com Ele para sempre” (Eclo 1,1). Ora, se toda sabedoria procede d’Ele, também a sua distinção.

Resposta

Deve-se dizer que a distinção entre as ciências especulativas e práticas tem em Deus sua causa exemplar e final, e na alma humana sua causa instrumental e próxima.

Pois Deus é o primeiro sábio, em quem o conhecer e o agir são um só. Nele, a verdade e o bem são idênticos; no homem, porém, que é imagem de Deus, essa unidade se reflete em distinção, porque o intelecto humano participa de modo dividido da perfeição simples do intelecto divino.

Assim, o que em Deus é um — a sabedoria una e operante —, no homem se expressa em dois modos: o especulativo, que reflete o conhecer divino; e o prático, que reflete o agir divino.

Logo, a distinção entre essas ciências é o vestígio da unidade divina na criatura racional.
Deus é sua causa exemplar, porque o homem imita em seu saber o duplo aspecto da sabedoria eterna: contemplar e operar.
E é sua causa final, porque toda contemplação e toda ação se ordenam ao retorno a Ele, princípio e termo de toda ciência.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a razão humana é causa secundária do saber, movida pela luz primeira da sabedoria divina.
  2. À segunda, responde-se que as formas exteriores das ciências variam, mas sua distinção essencial permanece, porque se funda na estrutura imutável do intelecto.
  3. À terceira, deve-se dizer que a multiplicidade do saber não contradiz a unidade divina, mas a reflete em modos participados, como o prisma reflete a luz em múltiplas cores sem dividi-la.

QUESTÃO X — Quanto à possibilidade e modo de união entre o conhecimento humano e o divino

Artigo I — Se é possível ao intelecto humano unir-se ao conhecimento divino

Objeções

Parece que não é possível ao intelecto humano unir-se ao conhecimento divino.
Com efeito, o conhecimento divino é infinito, e o humano é finito; ora, entre o finito e o infinito não há proporção nem união. Logo, o intelecto humano não pode unir-se ao conhecimento divino.

Além disso, Deus conhece todas as coisas por si mesmo, enquanto o homem conhece por espécies abstraídas das criaturas. Ora, o que conhece por si não pode ser unido ao que conhece por outro. Logo, o conhecimento humano é de natureza diversa e inconciliável com o divino.

Ainda, o conhecimento divino é ato puro, e o humano, potência em atualização. Ora, ato puro e potência não se unem senão como causa e efeito. Logo, o homem pode ser iluminado por Deus, mas não unido ao seu conhecimento.

Mas ao contrário, está escrito: “Quem se une ao Senhor, torna-se um só espírito com Ele” (1Cor 6,17). Ora, essa união espiritual se dá sobretudo no intelecto, que é a mais alta potência da alma. Logo, é possível que o intelecto humano se una, de algum modo, ao conhecimento divino.

Resposta

Deve-se dizer que a união entre o conhecimento humano e o divino é possível, mas não segundo identidade de essência, e sim por participação e iluminação.

Com efeito, o intelecto humano, sendo criado à imagem de Deus, é capaz de receber a luz do entendimento divino, assim como o ar recebe a luz do sol.
Essa participação é o fundamento da possibilidade da teologia e da contemplação mística: o homem, iluminado pela graça, conhece em Deus e por Deus, embora de modo finito.

Há, portanto, três graus de união:

  1. Natural, pela semelhança da imagem — o intelecto humano é criado conforme o modelo do divino.
  2. Moral, pela conformidade da vontade — o homem ordena sua vida à verdade e ao bem.
  3. Sobrenatural, pela graça — o intelecto é elevado acima de sua condição para conhecer Deus por união.

Assim, o homem não se torna Deus pelo conhecimento, mas participa do modo divino de conhecer segundo a medida que lhe é concedida.
Essa união não destrói o humano, mas o transfigura: o intelecto não perde sua luz, mas a recebe de uma fonte maior, tornando-se translúcido à verdade.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que, embora o finito e o infinito não possam unir-se por essência, podem unir-se por participação.
  2. À segunda, responde-se que Deus conhece por si, e o homem, por Deus: o primeiro é luz, o segundo é reflexo.
  3. À terceira, deve-se dizer que o ato puro move e ilumina a potência sem destruí-la; assim, a união se dá pela elevação da potência ao ato divino que a informa.

Artigo II — Se a união do intelecto humano com o divino se dá pela fé ou pela visão

Objeções

Parece que a união do intelecto humano com o divino se dá pela fé e não pela visão.
Com efeito, a fé é o vínculo da alma com Deus, e sem fé é impossível agradar-Lhe. Ora, o que une a alma a Deus é a fé. Logo, essa união se dá pela fé.

Além disso, ninguém pode ver a Deus nesta vida, segundo o Evangelho: “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,18). Ora, a união com o conhecimento divino se dá nesta vida. Logo, não se dá pela visão, mas pela fé.

Ainda, a visão supõe identidade de objeto formal; ora, o objeto formal da visão divina é a essência de Deus, inacessível ao homem. Logo, a união não pode ser pela visão.

Mas ao contrário, Santo Agostinho diz: “A fé é o caminho, a visão é o termo.” Ora, a união perfeita com o conhecimento divino se dá no termo, não no caminho. Logo, dá-se pela visão.

Resposta

Deve-se dizer que há dois modos de união do intelecto humano com o divino: um imperfeito, pela fé; outro perfeito, pela visão.

A une o homem a Deus de modo mediato e obscuro: o intelecto adere à verdade divina sem vê-la, pela autoridade de Deus que revela.
A visão, ao contrário, une o homem a Deus de modo imediato e claro: o intelecto, elevado pela luz da glória, contempla a essência divina diretamente, sem espécies intermediárias.

Portanto, nesta vida, a união é pela fé, que é início e sombra da visão; na glória, será pela visão, que é consumação e presença.
A fé prepara, purifica e conforma o intelecto à luz; a visão o plenifica, identificando-o com o ato puro de Deus na medida da participação concedida.

Assim, o mesmo intelecto é uno em essência, mas duplo em estado: crente no tempo, vidente na eternidade.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que a fé une a alma a Deus nesta vida, mas ordena à união mais perfeita da visão.
  2. À segunda, responde-se que, enquanto vivemos, não há visão da essência divina, mas apenas participação pela fé.
  3. À terceira, deve-se dizer que a visão supõe identidade formal, mas por participação: o intelecto não se torna Deus, mas vê como Deus vê, na medida em que é iluminado pela luz increada.

Artigo III — Se o intelecto humano pode participar da ciência divina sem mediação das criaturas

Objeções

Parece que o intelecto humano não pode participar da ciência divina sem mediação das criaturas.
Com efeito, o homem conhece a partir dos sentidos, e todo conhecimento natural procede das coisas criadas. Logo, sem as criaturas não há conhecimento.

Além disso, a ciência divina é causa das coisas; ora, o efeito não pode alcançar a causa senão por meio de outros efeitos. Logo, o homem não pode participar da ciência divina senão através das criaturas.

Ainda, a luz divina excede infinitamente a capacidade do intelecto criado; ora, o excesso de luz impede a visão. Logo, a ciência divina não pode ser participada senão por meio de reflexos inferiores.

Mas ao contrário, o Senhor disse: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Ora, ver a Deus é participar de seu conhecimento sem mediação das criaturas. Logo, isso é possível.

Resposta

Deve-se dizer que há dois modos de participação da ciência divina: um imperfeito, por meio das criaturas; outro perfeito, por união imediata à luz divina.

No primeiro modo, o homem conhece a Deus pelas obras, como o artista é conhecido pela arte; e esta é a via natural e filosófica, que atinge a existência de Deus pelas causas criadas.
No segundo modo, o homem conhece a Deus em si mesmo, pela infusão da luz divina que ilumina o intelecto — não pelas espécies criadas, mas pela própria presença da Verdade.

Esse segundo modo se realiza na visão beatífica, onde o intelecto é informado pela luz da glória (lumen gloriae), tornando-se capaz de ver Deus sem intermediários.
Assim, o conhecimento não passa mais pelos sinais das criaturas, mas pela essência mesma do Criador, que se dá ao intelecto como forma inteligível.

Logo, a ciência divina é participada sem mediação quando o intelecto criado é unido à luz increada, não por natureza, mas por graça.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o conhecimento natural requer as criaturas, mas o sobrenatural, não; este se dá pela luz infusa que ultrapassa o modo humano de conhecer.
  2. À segunda, responde-se que, embora o homem chegue à causa pelas criaturas, é possível que, pela graça, a causa se revele imediatamente à criatura.
  3. À terceira, deve-se dizer que a luz divina não cega o intelecto puro, mas o aperfeiçoa; o excesso de luz é impedimento apenas enquanto o intelecto está preso à matéria.

Artigo IV — Se a união do intelecto humano com o divino é eterna

Objeções

Parece que a união do intelecto humano com o divino não é eterna.
Com efeito, toda criatura depende do ato de Deus para existir; logo, se Deus suspendesse sua ação, cessaria a união. Ora, o que depende do querer divino não é eterno.

Além disso, a bem-aventurança se dá no intelecto criado; ora, o que é criado pode mudar. Logo, a união com o divino pode cessar.

Ainda, a visão de Deus é ato; ora, nenhum ato criado é eterno. Logo, a união não é eterna.

Mas ao contrário, está escrito: “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1Jo 3,2). Ora, a semelhança com Deus implica participação na sua eternidade. Logo, a união do intelecto humano com o divino é eterna.

Resposta

Deve-se dizer que a união do intelecto humano com o divino, enquanto fundada na luz da glória, é eterna quanto ao efeito, embora não quanto à causa.
Pois a luz da glória é dom criado, mas sua sustentação é divina; e o ato de ver a Deus, uma vez concedido, não pode cessar, porque sua fruição é inseparável da vontade divina que o concede.

Assim, embora a criatura permaneça distinta de Deus, a união de fruição é perpétua, pois o intelecto vê a Deus sem tempo, em ato único e estável.
Não é eternidade por natureza, mas por participação: a alma entra no “agora eterno” de Deus, não se tornando eterna em essência, mas partícipe do ser eterno que a mantém.

Portanto, a união é imutável, não porque o intelecto se torne Deus, mas porque é mantido pela constância do amor e da visão divina.

Respostas às objeções

  1. À primeira, deve-se dizer que o querer divino é imutável, e o que Ele quer perpetuamente, perpetuamente subsiste.
  2. À segunda, responde-se que a mutabilidade da criatura permanece em potência, mas é impedida de ato pela presença de Deus que a fixa na luz.
  3. À terceira, deve-se dizer que o ato criado pode ser eterno quanto à duração, se sustentado pela causa eterna; assim, a visão beatífica é ato criado, mas perpetuado pela eternidade de Deus.

CONCLUSIO GENERALIS — Síntese e ordenação final da obra

Depois de examinar, segundo a doutrina de Boécio, a origem, distinção e ordem das ciências, e de ter mostrado que toda luz de conhecimento deriva da Sabedoria divina, resta agora recolher em unidade o que foi dito em partes, para que o intelecto veja em conjunto a estrutura total do saber humano e sua finalidade última.

Toda ciência nasce de uma dupla raiz: a luz da razão natural e a iluminação divina.
Da primeira procedem as ciências filosóficas, que investigam o ser pelas causas; da segunda, as ciências sagradas, que recebem o ser como revelado.
E, como toda multiplicidade exige um princípio de ordem, também a variedade dos conhecimentos humanos deve reconduzir-se a um único princípio e a um único fim — Deus, que é a Verdade e o Bem supremo.

Há, portanto, uma tríplice ascensão do espírito:

  1. Do sentido à razão, pela experiência e abstração;
  2. Da razão ao intelecto, pela contemplação dos universais e das causas;
  3. Do intelecto à sabedoria, pela união com a luz divina, que excede toda razão criada.

O primeiro grau dá origem às ciências empíricas e físicas; o segundo, às matemáticas e metafísicas; o terceiro, à teologia e à sabedoria mística.
Assim, o saber humano é uma escada de três degraus: o mundo visível, a ordem inteligível e a verdade eterna.

Na base está o conhecimento que depende da matéria e do movimento — a física, que considera as causas segundas e mutáveis.
No meio está a ciência que abstrai da matéria, mas retém o ser formal — a matemática, que purifica o intelecto pelo exercício da proporção e da medida.
No cume está a ciência que contempla o ser separado e imutável — a metafísica, que conduz à teologia natural.

Acima destas se eleva a teologia sagrada, que é o coroamento de todas, porque conhece pela luz da revelação e não pela luz da razão.
Ela não busca o princípio do ser, mas o próprio Ser subsistente; não investiga as causas segundas, mas contempla a Causa primeira; não infere, mas crê; não raciocina, mas adora.

Por isso, diz Boécio: “Toda investigação termina na contemplação.”
E Santo Tomás comenta: “Toda luz da razão é participação da luz divina, e toda ciência humana deve converter-se em sabedoria, que é o gosto da verdade eterna.”

As ciências práticas, por sua vez, derivam das especulativas como o rio da fonte.
Pois, conhecendo o verdadeiro, o homem deseja o bem; e desejando o bem, ordena suas ações segundo a reta razão.
Assim, da contemplação nasce o agir, e pelo agir purificado o homem retorna à contemplação mais alta.
O movimento da alma é circular: da verdade à virtude, e da virtude à verdade.

Dessa estrutura procede a hierarquia final:
— A teologia reina sobre todas as ciências, pois trata do primeiro princípio e do último fim;
— A metafísica está imediatamente abaixo, pois investiga as causas universais do ser;
— A matemática vem em seguida, como instrumento de ordem e clareza;
— A física ocupa o fundamento, porque liga o sensível ao inteligível;
— E as ciências práticas refletem na ação o que as especulativas contemplam na verdade.

Assim, a sabedoria se define como a união dessas duas ordens:
contemplar a verdade e ordenar a vida conforme ela.

O homem sábio é, portanto, aquele em quem a razão não apenas conhece, mas ama; em quem o saber se torna virtude e a contemplação, vida.
E, porque toda criatura racional foi feita à imagem de Deus, essa ordem do saber reflete em nós a ordem trinitária do próprio Ser divino:
— O Pai é princípio do conhecer, como a causa de toda luz;
— O Filho é a Verdade expressa, razão eterna de todas as coisas;
— O Espírito Santo é o Amor que une o conhecedor ao conhecido, a ciência à vida, o intelecto à caridade.

Assim, toda a estrutura do conhecimento humano é uma imagem, ainda que pálida, da Trindade:
no intelecto que conhece, imagem do Pai;
na verdade conhecida, imagem do Filho;
no amor que une o intelecto à verdade, imagem do Espírito.

E é nessa analogia que Boécio, e depois Tomás, veem o sentido último da filosofia:
a passagem da multiplicidade dos saberes à unidade da Sabedoria;
do discurso à visão;
da análise ao louvor.

Por isso, o homem, enquanto filósofo, busca a verdade; enquanto justo, pratica o bem; enquanto santo, contempla o Bem mesmo.
A ciência, a moral e a teologia são, portanto, estágios de uma única jornada: a retomada da imagem divina no espírito humano.

E quando essa jornada se consuma — quando a mente vê a Verdade sem sombra e o coração ama sem reserva —, então o círculo se fecha: o intelecto repousa em Deus, o amor se converte em visão, e a ciência termina na sabedoria.


Conclusão final

Toda ciência é caminho;
toda contemplação, repouso;
todo repouso, participação.

E o termo de todo esse movimento é o próprio Deus —
não como objeto distante, mas como luz presente,
não como conceito, mas como Presença.

Pois, como ensina Boécio, “feliz é aquele que vê a origem de todas as coisas; e ver é tornar-se aquilo que se contempla.”
E Santo Tomás acrescenta:

“Na medida em que o intelecto se une ao divino, ele é feito partícipe da eternidade; e assim como Deus é tudo pela essência, o homem, na visão, é tudo pela participação.”

Assim se encerra o Comentário ao De Trinitate de Boécio:
a ciência começa no mundo,
cresce na razão,
culmina na fé,
e repousa em Deus.

FINIS OPERIS

A razão percorreu o mundo, e encontrou em cada criatura o vestígio de uma ordem.
Procurou o princípio, e viu que o princípio é uno; buscou o fim, e descobriu que o fim é o mesmo princípio.
Entre ambos, encontrou-se a si mesma — espelho imperfeito do intelecto eterno.

Toda ciência é caminho da alma em direção ao seu modelo.
Quando o espírito conhece a verdade, participa da luz que o fez conhecer;
quando ama o bem, participa da vida que o move;
e quando ambos se unem, o homem toca o limite do possível — a união com o próprio Deus, que é simultaneamente o Intelecto, o Verbo e o Amor.

Assim termina a via do saber:
do sensível ao inteligível,
do múltiplo ao uno,
do humano ao divino.

Aqui cessa o discurso, e começa a contemplação.
Pois conhecer é ascender; ascender é ser atraído;
e ser atraído é já participar daquilo que se busca.

A ciência é, pois, semente; a sabedoria, fruto;
e o fruto do saber é o repouso em Deus,
onde o pensamento se converte em luz e a luz, em visão.

Finis Operis
“Omnis cognitio est via ad Veritatem, et Veritas est Deus.”
(Toda ciência é caminho para a Verdade, e a Verdade é Deus.)


NOTA SOBRE O USO DA TRADUÇÃO

Esta tradução do Comentário ao De Trinitate de Boécio de São Tomás de Aquino foi realizada a partir do texto latino integral, buscando conservar o espírito filosófico e teológico da obra, com fluência e clareza em língua portuguesa.

Não possui qualquer finalidade comercial e destina-se exclusivamente a fins de estudo, reflexão e uso pessoal ou acadêmico, respeitando integralmente os direitos autorais das edições críticas originais.

A tradução foi conduzida com o propósito de facilitar o acesso à tradição escolástica e à estrutura tomista do conhecimento, preservando o rigor lógico, a cadência conceitual e o caráter contemplativo da obra original.

Uso livre para fins de pesquisa, docência e formação filosófica ou teológica, vedada sua reprodução para fins lucrativos ou editoriais sem autorização expressa do tradutor.

Tradução, revisão e ordenação filosófica: Jardel Almeida

Revisão técnica e estruturação final: Sophión

 

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