ÍNDICE GERAL DA OBRA
Clodius Piat —
Leibniz
Tradução e
estudo introdutório de Jardel Almeida
Assistência filosófica: Sophión
Epígrafe
“A razão é o espelho de Deus; o universo, sua
harmonia visível.”
— G. W. Leibniz, Monadologia
Nota do Tradutor:
Esta tradução tem caráter acadêmico
e não comercial.
Foi elaborada com o propósito de tornar acessível ao leitor lusófono a
profundidade metafísica e teológica do pensamento de Clodius Piat sobre Leibniz.
Respeitou-se integralmente a estrutura e o estilo da obra original francesa,
conservando sua terminologia técnica e seu tom especulativo.
Não se pretendeu ornamentar o texto, mas tornar clara a ordem de ideias,
que é, em Leibniz, a própria ordem do ser.
Toda citação e conceito foram traduzidos com atenção à coerência interna do
sistema leibniziano — especialmente no que concerne à harmonia preestabelecida,
à teodiceia e à visão beatífica.
Tradução
finalizada por Jardel Almeida, com o acompanhamento
intelectual de Sophión, em 2025.
Capítulo I
— A Vida e a Obra de Leibniz
1.
A formação e o espírito universal.
2.
O teólogo, o matemático e o diplomata.
3.
A ambição de uma ciência universal.
4.
O gênio conciliador e o homem de fé.
Capítulo II
— A Filosofia de Leibniz
1.
O Princípio de Razão Suficiente.
2.
As Mônadas — Substâncias Individuais e Espirituais.
3.
A Harmonia Preestabelecida.
4.
Deus e a Criação.
5.
A Hierarquia dos Seres e a Continuidade do Real.
6.
O Universo como Sistema de Forças Vivas.
Capítulo
III — O Conhecimento e as Ideias
1.
A Origem e a Natureza das Ideias.
2.
O Inatismo e o Empirismo Reconciliados.
3.
A Distinção entre Conhecimento Obscuro, Claro, Distinto
e Intuitivo.
4.
A Matemática como Modelo do Saber Perfeito.
5.
O Ideal de uma Característica Universal e do Cálculo
Lógico.
Capítulo
IV — As Ciências e o Método Matemático
1.
O Cálculo Diferencial e sua Origem na Metafísica da
Continuidade.
2.
A Mecânica e a Noção de Força Viva.
3.
A Física e o Princípio da Continuidade.
4.
A Teoria da Gravitação e o Princípio de Unidade.
Capítulo
V — A Teodiceia e o Problema do Mal
1.
O Problema do Mal e o Fundamento da Teodiceia.
2.
O Mal Metafísico, Físico e Moral.
3.
O Melhor dos Mundos Possíveis.
4.
A Liberdade Humana e a Concorrência Divina.
5.
O Pecado e a Justiça Divina.
Capítulo
VI — A Moral e o Destino Humano (restaurado)
1.
A Virtude e a Ordem Moral.
2.
A Liberdade Prática e a Sabedoria.
3.
O Fim do Homem.
4.
A Felicidade Racional.
Conclusão
— A Harmonia Universal e a Felicidade Suprema
1.
A Harmonia Universal e a Felicidade Suprema.
2.
A Visão de Deus e o Fim do Conhecimento.
3.
Conclusão: A Alegria Racional e a Paz do Espírito.
Finis
Operis
“No silêncio em que todas as dissonâncias se
resolvem,
o universo reencontra sua voz —
a voz da Sabedoria eterna,
que é a Razão e o Amor.”
Prefácio
Há vários personagens em
Leibniz: ele é, antes de tudo, um filósofo — como Malebranche e Spinoza —, e
muito próximo de ambos; mas, ao mesmo tempo, é também um sábio, um teólogo, um
polemista, um jurista e um diplomata; e em cada um desses papéis ele demonstra
uma maestria sem igual, criando ou renovando tudo o que toca.
Nesta obra, limito-me ao
filósofo, e só apresento os outros aspectos de seu pensamento na medida em que
servem para destacar sua doutrina especulativa. Assim, terei ocasião de tratar
de sua obra científica — que é considerável —, de sua teoria do direito e de
suas controvérsias religiosas. Entendi que, se fosse de outro modo,
correr-se-ia o risco de nunca concluir, ou de mostrar apenas uma das múltiplas
faces de uma questão que exige unidade; o que surpreenderia o leitor de um
volume destinado à Coleção dos
Grandes Filósofos.
Alguns poderão considerar meu
trabalho inoportuno, talvez prematuro. “Por que não esperar — dirão — o
aparecimento da grande edição que preparam as Academias de Paris e de Berlim?
Somente então se poderá saber, com certeza, o que se deve pensar de Leibniz.”
Minha resposta é simples. Não apenas li as numerosas edições já existentes das
obras de Leibniz, mas também consultei pacientemente muitos dos eruditos da
Biblioteca de Hanôver, especialmente aqueles cuja missão é divulgar o tesouro
ali conservado; e alguns deles, generosamente, confiaram-me documentos inéditos
capazes de lançar luz sobre certos pontos obscuros. Pude assim formar uma
convicção: a de que, mesmo antes da grande edição, o público encontrará neste
estudo o seu proveito, e de que este livro continuará útil depois que aquela
vier à luz — se é que um dia se completará —, pois sua publicação integral
levaria, sem dúvida, vinte ou vinte e cinco anos.
Mas esse projeto já foi interrompido — e de maneira terrível. A famosa edição,
não se sabe agora quando se fará, ou mesmo se algum dia se fará.
Durante certo tempo, sob a
influência da avalanche modernista, exagerou-se muito o caráter “móvel” do
pensamento do filósofo de Hanôver. Fala-se das “fulgurações” de Leibniz —
expressão de que se tem abusado. Nem tudo se reduz a essas centelhas geniais.
Leibniz não se parecia em nada com as “estrelas errantes” de que fala São
Judas; era, ao contrário, o mais firme e constante dos espíritos. Passava
quinze ou vinte anos em silêncio, amadurecendo uma ideia; e, uma vez
satisfeito, não a abandonava mais. Retomava a mesma concepção sob mil formas
diferentes, descrevia-a, deduzia-a, mas jamais a deixava cair no esquecimento.
Procurei pôr esse ponto a salvo
de toda discussão, apresentando os documentos em ordem cronológica, como se
poderá ver especialmente no final do sexto capítulo desta obra.
O fato é que, desde 1675 ou 1676, Leibniz já possuía o conjunto essencial de
suas ideias filosóficas — inclusive a descoberta do cálculo infinitesimal —, e
desde então jamais as alterou.
Clodius Piat
Capítulo
I — O Fim de Leibniz
I.
Qual é esse fim?
Reunir todos os homens em uma
única família, possuidora de uma mesma ciência, de uma mesma religião e de uma
mesma língua — tal foi o objetivo que Leibniz propôs a si mesmo. Essa religião
devia ser o cristianismo; e essa língua, a característica
universal.
Derivada da Renascença,
particularmente de Comenius e de Kircher, essa ideia tornou-se o fim dominante
para o qual converge, como em torno de um centro, sua longa e prodigiosa
atividade.
Foi em Leipzig que ele a
descobriu, aos vinte e seis anos. O período de Mainz representa a primeira fase
diplomática; a estada em Paris, a principal fase científica. E, durante sua
longa permanência na cidade ducal de Hanôver, ele trabalha sem descanso, até o
fim, para fazê-la valer, ora sob um aspecto, ora sob outro, conforme as
circunstâncias dos acontecimentos.
É nesse desígnio, por exemplo,
que ele tenta com tanta perseverança — e sob modos tão diversos — realizar a
reunião das Igrejas: tratava-se de refazer o núcleo central e ativo em torno do
qual todo o restante viria agrupar-se. A mesma ideia o guia na composição de
suas grandes obras, como os Novos
Ensaios sobre o Entendimento, a Teodiceia
e a Monadologia:
nelas ele se propõe a oferecer a doutrina que deveria ser a da humanidade
futura.
Se se interessa pela sorte de
Pedro, o Grande, e segue com curiosidade simpática o progresso dos missionários
— especialmente os Padres Jesuítas —, é porque espera encontrar naquele um
protetor, e nestes, apóstolos que difundam no Oriente a ciência, a religião e a
linguagem da Europa — aquela cuja essência ele próprio descobrira.
Assim também com as demais
iniciativas de Leibniz, como se verá adiante, provas em mãos.
Convém, todavia, entender o
termo “período” sem rigor excessivo. Não se trata de cortes precisos, como
seccionando um fruto ao meio. Nada semelhante existe na sequência de
acontecimentos que compõem uma vida humana, ainda menos na de Leibniz, que
movia tantas coisas ao mesmo tempo. Mas o termo conserva utilidade: ainda que se
refira a uma obra una e contínua como as ondas do mar, serve para assinalar as
fases dominantes que ela atravessou durante sua formação — e, ao mesmo tempo,
para lançar mais luz sobre o desenvolvimento interior do filósofo.
II —
Leipzig
Aos seis anos de idade, Leibniz
perde o pai, que era professor na Universidade de Leipzig. Por volta dos onze,
um amigo da família o afasta da direção de um mestre pedante e inepto,
introduzindo-o na biblioteca paterna, onde pode circular livremente à vontade.
O menino rejubila-se com essa liberdade absoluta; e, mais tarde, alegrar-se-á
ainda mais com o benefício dessa emancipação precoce. Eis que, desde então, ele
se encontra em contato imediato com os testemunhos do passado, livre do jugo
dos preconceitos dominantes, colocado nas condições ideais para julgar por si
mesmo os homens e as coisas.
Lê os antigos e os modernos, lê
os escolásticos, sem se deixar abater pela aridez da linguagem nem pela
sutileza das discussões; explora com igual avidez tanto as prateleiras de direito
quanto as obras de controvérsia teológica. A impressão dominante que lhe fica
dessa busca apaixonada é que a
ordem falta em toda parte, sobretudo no domínio jurídico, e que
essa confusão universal desapareceria como por encanto se tudo fosse
reconduzido a alguns “princípios
últimos”.
Remontar às “ideias simples” — eis,
para o jovem Leibniz, o segredo da ordem, e por conseguinte, da clareza na
brevidade.
Desde os doze anos, Leibniz
submetia a seus mestres dificuldades que por vezes os deixavam embaraçados.
Certa vez, dirigiu-lhes esta pergunta: “Servimo-nos dos termos simples ou
predicamentos para formar proposições; por que não poderíamos servir-nos também
das proposições para formar silogismos?”
Por que, portanto, deter-se de
súbito na via das combinações? Se os termos simples estão encontrados, não
seria possível deduzir deles todo o resto?
Eis aí a ideia de que a combinatória
não é senão o genial desdobramento.
Uma vez nascida, essa ideia não
o abandona mais, até que ele a erija à dignidade de método.
De 1664 a 1666, sustenta três
teses de direito — Um espécime
de dificuldade, Das
condições do direito e Os
casos perplexos. Ora, qual é a ideia que domina nessas três
dissertações? É que, para alcançar a simplicidade da ordem, é preciso remontar,
pela via da análise, até os elementos incomplexos, e de lá descer, pela via da
síntese, até as questões mais complicadas. Essas três teses representam,
portanto, trabalhos de aproximação consecutivos, tendo como centro a
combinatória.
Assim é que, por volta desse mesmo
tempo — a 7 de março de 1666 —, aparece essa obra notável sob tantos aspectos,
sobretudo em se tratando de um jovem de vinte anos, pela amplitude dos
conhecimentos, pela acuidade da análise e pela força da compreensão.
E o que Leibniz se propõe ali a
fazer conhecer? Um “arte
toda matemática de inventar” — e, por conseguinte, um método
infalível tanto para estabelecer a verdade quanto para refutar o erro; e, ao
mesmo tempo, os princípios de uma linguagem rigorosa, que será uma espécie de “álgebra do pensamento humano”.
Após sete ou oito anos de
pesquisa, Leibniz acredita haver alcançado o fim: pensa ter descoberto um “instrumento da razão”,
de eficácia soberana e alcance universal.
Sua convicção íntima é que, graças às vantagens incomparáveis desse instrumento,
todos os ramos do conhecimento farão progressos rápidos e seguros; que virá um
dia em que os homens não falarão senão uma única língua, para exprimir a mesma
ciência e a mesma crença.
Sua descoberta o lança em um
entusiasmo extraordinário — sentimento que persistirá. Doze anos depois, ainda
se o encontra vibrante, em uma de suas cartas a Tschirnhaus. Tornar-se-á mais
calmo com os anos, mas jamais se extinguirá.
III —
Mainz (Mayence)
Por volta do fim de 1666,
Leibniz deixa sua cidade natal para nunca mais nela retornar. “O conhecimento
do estrangeiro o atrai de longe; e, desde há muito, seu espírito arde em
alcançar uma glória maior e uma ciência mais alta.”
É em Nuremberg, pequena cidade ao mesmo tempo muito alemã e muito viva, que ele
vai buscar fortuna.
Ali, após algum tempo, faz o
encontro do Barão de Boinebourg, antigo primeiro conselheiro do Eleitor de
Mainz, que uma intriga de corte havia lançado em desgraça, mas que era um homem
de grande valor e conhecedor profundo da Europa política de seu tempo. O velho
diplomata não tarda a discernir as qualidades excepcionais desse jovem e o toma
como secretário, a fim de tê-lo também como colaborador.
Eis, portanto, o estudante de
Leipzig lançado numa via inteiramente nova: mergulhado na diplomacia em um momento
em que a potência de Luís XIV se afirmava a cada dia, enquanto a Alemanha, ao
contrário, fragmentada em uma infinidade de principados e seigneurias, se
enfraquecia em querelas internas intermináveis e perdia até o sentido de um
interesse comum.
A tarefa de Leibniz é múltipla
e, por certos aspectos, prolonga sua vida anterior. Por conselho de Boinebourg,
publica a Defesa da Trindade,
a Confissão da Natureza contra
os Ateus e o Prefácio
a Nizolius.
Ao mesmo tempo, acumula notas sobre a Eucaristia
e a Ressurreição,
e prossegue a obra jurídica iniciada em Leipzig — cuja ideia central é remontar
aos “elementos simples” para alcançar a ordem, a clareza e a concisão.
Mas, por outro lado, Leibniz
vê-se às voltas com uma ordem de questões muito diversa e que o colocam em
contato cada vez mais direto com a realidade concreta das coisas.
Em 1669, intervém sob
pseudônimo, a propósito da eleição do rei da Polônia, esforçando-se por
determinar, por meio do cálculo das probabilidades, qual candidato apresentava
mais vantagens. No ano seguinte, empenha-se em demonstrar qual conduta deveria
adotar a Alemanha para defender-se dos perigos que a ameaçavam, sobretudo do
lado da França, e escreve sobre esse tema complexo suas Reflexões sobre a Segurança Pública.
Trata-se agora de compreender o
emaranhado político da Europa inteira — seus espíritos, seus costumes, suas
forças e seus interesses —, um conjunto de questões confusas e móveis em que a
superioridade pertence àqueles que veem com justeza e de longe.
Felizmente, Leibniz tem Boinebourg ao seu lado, ajudando-o com informações,
documentos, notas e, sobretudo, com sua alta competência.
Não é que Leibniz tenha falado
muito desse precioso e constante auxílio; ele parece antes preocupado em
destacar a habilidade de sua própria iniciativa. “Compus a primeira parte das Reflexões sobre a Segurança Pública
em três dias — nos dias 6, 7 e 8 de agosto — na presença de Boinebourg”,
escreve ele.
É o mesmo homem que, com a mesma ingenuidade juvenil, vangloriava-se de haver
escrito trezentos versos latinos em um só dia — “e sem elisão”.
Mas essa atividade política
está prestes a exercer-se num palco mais vasto e central. Luís XIV ameaça
declarar guerra à Holanda; e a corte de Mainz deseja impedir esse desígnio, que
poderia ser funesto à Alemanha inteira.
Leibniz, de acordo com Boinebourg, concebe então um plano alternativo a ser
proposto ao rei. É escolhido para ir apresentá-lo em Versalhes — e sua alegria
é grande. Afinal, iria conhecer pessoalmente o coração intelectual da Europa.
IV —
Paris (período científico)
A corte de Luís XIV acolheu o
jovem alemão com curiosidade e certa benevolência. O projeto que trazia consigo
— dissuadir o Rei-Sol de sua guerra contra a Holanda mediante uma expedição
científica e política ao Egito — fora julgado ousado, mas engenhoso. No
entanto, como todos os grandes planos de Leibniz, superava de muito o horizonte
de seus contemporâneos. O ministro Lionne, sagaz mas cético, escutou-o com
atenção e despediu-o com palavras amáveis, prometendo “refletir sobre o assunto”.
O projeto adormeceu nos arquivos, mas o espírito de Leibniz se inflamou.
De súbito, Paris tornou-se para
ele o verdadeiro centro do mundo. Ali encontrou, reunidos, os homens mais
ilustres do pensamento moderno: Huygens, Tschirnhaus, Mariotte, Arnauld,
Malebranche. Era a capital onde a geometria e a teologia se encontravam sob o
mesmo teto, e onde o cálculo era o novo idioma dos deuses. Leibniz, que até
então fora sobretudo jurista e diplomata, decide tornar-se matemático.
A decisão é total. Ele aprende
com paixão o que desconhecia, e logo ultrapassa seus mestres. Huygens,
encantado, o introduz na Academia de Ciências e, em pouco tempo, o jovem alemão
se torna presença indispensável nos salões e nas discussões. Mas o que mais o
distingue não é o gênio técnico — é a intenção metafísica que anima toda a sua
ciência. Ele não busca as fórmulas por elas mesmas: quer descobrir nelas o
esqueleto lógico do universo.
Para Leibniz, as verdades
matemáticas são como janelas abertas sobre o espírito de Deus. O cálculo é a
linguagem oculta do real. Ao penetrá-lo, acredita poder restaurar a unidade
perdida entre fé e razão, ciência e teologia. “A geometria — escreve ele — é o
instrumento com o qual Deus traçou as proporções do ser.”
Paris é, assim, sua oficina e
seu deserto. Trabalha com obstinação febril. É nesse período que amadurece a
ideia do cálculo infinitesimal, pressentido como um método universal de ligação
entre o contínuo e o discreto, o ser e o vir-a-ser. A cada passo sente que sua
descoberta toca algo divino, e anota em suas margens: Deus calcula, e o mundo é o resultado de
Sua operação.
Mas, como todo estrangeiro em
terra de orgulho, logo percebe que a glória tem preço. O ambiente parisiense,
embora fértil, é também permeado de ciúmes. Malebranche, dominicano e filósofo
cartesiano, o trata com respeito, mas o vigia com reserva. Arnauld o admira,
mas teme que aquele ardor germânico ultrapasse os limites da ortodoxia.
Leibniz, porém, permanece firme — conciliador e ousado.
O que buscava na França não era
apenas o reconhecimento, mas a confirmação de sua grande ideia: que toda
ciência deve converter-se em linguagem simbólica da razão. Paris lhe forneceu
os elementos, e o levou à convicção de que o universo é um sistema de signos,
onde cada coisa é cifra de uma verdade maior.
Nos últimos meses, sentindo que
sua tarefa ali se cumprira, voltou-se para o norte com um sentimento misto de
gratidão e de melancolia. “Paris — dirá mais tarde — foi o lugar onde
compreendi que toda a razão humana é uma porção da razão divina, e que pensar é
participar do cálculo eterno.”
V —
Hanôver
Quando Leibniz chegou a
Hanôver, foi tomado de uma espécie de tristeza. Vindo de Paris — essa capital
luminosa, onde cada ideia encontrava um eco, onde os espíritos se entrechocavam
como lâminas sob o fogo do pensamento —, deparar-se com aquela pequena cidade
sombria, ainda provinciana, parecia-lhe um exílio. Mas ele logo compreendeu que
a solidão podia ser fecunda, e que o silêncio de Hanôver seria o laboratório
onde a sua filosofia atingiria maturidade.
De início, ocupou-se com as
tarefas oficiais: bibliotecário do duque, cronista da Casa de Brunsvique,
conselheiro político. Mas logo essas funções se tornaram marginais; seu
verdadeiro ministério era interior. Passava as noites inteiras escrevendo,
traçando diagramas, correspondendo-se com sábios e teólogos de toda a Europa.
Em cada carta, buscava reconciliar o que o mundo moderno separara: a fé e a
razão, a Igreja e a ciência, o homem e Deus.
As controvérsias religiosas
eram então ardentes. O protestantismo e o catolicismo, longe de se
reconciliarem, endureciam suas fronteiras. Leibniz, porém, trabalhava no
sentido oposto. Tentava unir, por um diálogo de princípios, aquilo que as
paixões haviam dividido por séculos. Sua Correspondência
com Bossuet, suas Cartas
a Molanus e aos teólogos de Magdeburgo testemunham essa obstinação:
ele acreditava ser possível reduzir as divergências dogmáticas a mal-entendidos
verbais, e que bastaria uma linguagem purificada — uma álgebra teológica — para
restituir a unidade da fé cristã.
Era uma esperança grandiosa, e
talvez ingênua; mas nela se revela a coerência de toda a sua vida. Pois, desde
a juventude, a ideia central não mudara: construir uma ciência universal
fundada na razão divina e expressa por uma linguagem simbólica capaz de
suprimir a discórdia.
No entanto, sua atividade não
se limitava às especulações espirituais. Leibniz trabalhava simultaneamente em
mecânica, física, geologia, linguística, direito e história. Inventava
máquinas, organizava academias, estudava os fósseis, os ventos, o movimento dos
planetas e a origem das línguas. A vastidão de suas investigações assustava até
mesmo seus amigos: parecia-lhes impossível que um só homem pudesse sustentar
tamanha multiplicidade de esforços.
Ele próprio dizia: “Minha
ocupação é o universo.” E, de fato, sua correspondência — que enche volumes —
mostra que, em cada ramo do saber, via apenas aplicações diferentes de um mesmo
princípio: o princípio de razão suficiente, esse eixo invisível que sustenta
todas as coisas e que é, em última instância, o próprio pensamento de Deus.
Mas o tempo foi-lhe cruel. O
duque Ernst-August morre; a ele sucede a duquesa Sofia, depois o eleitor Jorge
Luís, futuro rei da Inglaterra. Os interesses políticos afastam-se de Leibniz;
suas obras ficam inéditas; sua presença torna-se incômoda. Isolado,
envelhecido, vê-se reduzido a escrever quase só para si mesmo.
Ainda assim, o fogo interior
não se extingue. É nesse período de reclusão que compõe suas obras maiores: a Teodiceia, os Novos Ensaios e, por fim, a Monadologia, breve e
fulgurante síntese de toda uma vida. Nela, ele encerra sua doutrina do universo
vivo, onde cada ser é um espelho do Todo, uma mônada em que o infinito se
reflete.
É o coroamento de sua busca: o
mundo como harmonia preestabelecida, Deus como cálculo supremo, e o homem como
intérprete desse cálculo.
Nos últimos dias, abandonado
pelos príncipes e esquecido pelos eruditos, Leibniz morre em 1716, assistido
apenas por seu secretário e por um servo. Nenhum ministro da religião veio
confortá-lo; nenhum amigo acompanhou o cortejo.
E, no entanto, aquele que partia deixava atrás de si o plano mais vasto que já
animara o pensamento humano: reunir todos os povos em uma só razão, todos os
espíritos em uma mesma luz.
Capítulo
II — A Filosofia de Leibniz
I —
Fontes e Influências
Toda filosofia nasce de um
diálogo — seja com os antigos, seja com o próprio espírito. Leibniz, cuja
natureza era ao mesmo tempo erudita e inventiva, assimilou as ideias de muitos,
mas as transfigurou num sistema próprio, animado por um princípio de unidade
que lhe pertence inteiramente.
Os escolásticos forneceram-lhe
a estrutura lógica e a exigência da demonstração rigorosa; Aristóteles, a
doutrina da forma e da potência; Descartes, o método e o rigor geométrico;
Spinoza, a ambição do sistema; Malebranche, a visão das essências em Deus. Mas
em nenhum desses ele se perdeu — pois o que o distingue é justamente o poder de
conciliar sem confundir, de absorver sem diluir.
Leibniz foi o mais universal
dos filósofos modernos, e essa universalidade não resulta da dispersão, mas da
coerência de uma ideia central: o
mundo é racional porque é expressão da Razão divina.
Ele leu Aristóteles como quem
decifra uma língua antiga, não para imitá-lo, mas para reencontrar sob o véu da
terminologia peripatética o núcleo vivo da filosofia: a substância como forma
ativa. Duns Scotus, Suárez e os teólogos da Segunda Escolástica o influenciaram
pela profundidade analítica, mas ele rejeitou a rigidez de suas categorias.
Com Descartes, aprendeu a
clareza das distinções, mas recusou o dualismo absoluto entre alma e corpo.
“Nada há no mundo — dizia — que seja puramente material ou puramente
espiritual; toda substância é um grau de atividade.” Assim, onde Descartes via
separação, Leibniz via gradação.
De Spinoza, admirou a
grandiosidade arquitetônica do sistema, mas resistiu à sua necessidade cega. O
Deus de Leibniz não é uma substância indiferente, mas uma inteligência viva e
livre. O universo não é um autômato, é um organismo.
Malebranche lhe ensinou a ver
em Deus o fundamento das ideias; mas Leibniz não admitiu que o espírito humano
visse diretamente em Deus todas as verdades — antes, Deus as depositou na alma
como sementes racionais que se desdobram progressivamente.
Dessa síntese nasce uma filosofia
original, cuja essência é a atividade
universal: cada ser é força, cada força é lei, cada lei é
expressão da inteligência divina.
Leibniz não destrói a tradição:
a retoma e a converte em dinâmica. Sua filosofia é o elo entre a metafísica
antiga e a ciência moderna, entre o ser substancial e o ser matemático, entre o
princípio da forma e o princípio da razão.
II —
O Princípio de Razão Suficiente
Nenhuma proposição é verdadeira
sem que haja uma razão pela qual seja assim e não de outro modo. Eis a fórmula
fundamental que atravessa toda a obra de Leibniz — desde os escritos da
juventude até as últimas páginas da Monadologia.
Esse princípio, que parece de
uma simplicidade quase banal, é, na verdade, o eixo invisível de todo o
edifício leibniziano. Ele substitui, no pensamento moderno, o velho principium essendi da
escolástica e, ao mesmo tempo, o cogito
cartesiano. Para Descartes, a certeza repousava na evidência do sujeito; para
Leibniz, ela repousa na inteligibilidade universal do ser.
Tudo o que é, é racional — não
no sentido de que o homem compreenda tudo, mas no sentido de que tudo é, em si
mesmo, inteligível. Nada existe por acaso; o acaso é apenas o nome que damos à
ignorância das causas. A razão suficiente é, portanto, a condição metafísica da
realidade e o fundamento da ciência.
Esse princípio distingue duas
ordens: a das verdades de razão e a das verdades de fato.
Nas primeiras, o oposto implica contradição: são as proposições necessárias,
que derivam do princípio de identidade — como na geometria e na aritmética.
Nas segundas, o oposto é possível, mas não real: são as proposições
contingentes, cuja verdade depende da escolha divina.
Deus, sendo perfeitíssimo, não
cria arbitrariamente. Ele escolhe, entre infinitos mundos possíveis, aquele que
possui a razão mais suficiente, isto é, a maior combinação de perfeição e
harmonia. Daí a célebre tese — tantas vezes mal compreendida — do “melhor dos
mundos possíveis”.
A razão suficiente é, assim, a
forma lógica do amor divino. O universo é o resultado de um ato de sabedoria e
de bondade; o ser é o efeito da inteligência que o compreende. Nada está fora
da ordem, e mesmo o mal, considerado sob a totalidade do real, é apenas uma
limitação necessária de um bem maior.
Em Leibniz, o princípio não é
somente uma regra do raciocínio: é a própria lei do ser. Tudo se explica porque
tudo tem uma causa, e toda causa tende a um fim. O universo é um organismo de
razões, e Deus é o fundamento último que as contém.
Assim, ao introduzir o
princípio de razão suficiente, Leibniz reconcilia a metafísica com a lógica, a
teologia com a ciência. Ele mostra que compreender é encontrar a razão de ser —
e que essa razão, em última instância, é sempre Deus.
III —
A Harmonia Preestabelecida
A alma e o corpo não se movem
um ao outro, mas se correspondem por um acordo anterior à própria existência de
ambos.
Eis a doutrina que Leibniz chamou de harmonia
preestabelecida, e que constitui uma das expressões mais
notáveis da genialidade metafísica do século XVII.
O problema vinha atormentando todos
os pensadores desde Descartes: como pode a alma — substância imaterial — agir
sobre o corpo — substância extensa — sem ponto de contato possível entre ambas?
Os cartesianos falavam de uma influência mútua; Malebranche resolvera o impasse
com o ocasionalismo,
segundo o qual Deus intervém em cada instante para manter a correspondência
entre os dois reinos.
Leibniz rejeita tanto a ação
direta quanto o milagre contínuo. Para ele, Deus não é um operário que precise
intervir a cada passo na máquina do mundo; é um arquiteto que a construiu de
modo tão perfeito que ela se move sozinha, em conformidade com o plano divino.
Cada substância — alma ou corpo
— contém em si o princípio de suas ações e de suas percepções. Desde o início,
Deus ajustou todas as séries de acontecimentos de tal modo que o curso de uma
corresponde exatamente ao curso da outra, sem que entre elas haja comunicação
causal.
A alma age como se o corpo lhe
obedecesse; o corpo se move como se a alma o comandasse; mas ambos seguem o
mesmo compasso interior, preestabelecido no instante da criação.
Assim como dois relógios perfeitamente ajustados marcam a mesma hora sem se
influenciarem, o universo inteiro é uma infinidade de relógios que se
harmonizam, porque todos foram regulados por um mesmo Relógio eterno.
Essa concepção, tão admirável
quanto audaciosa, tem por fundamento o princípio de razão suficiente. Se Deus é
sabedoria infinita, não cria senão o que tem a melhor razão de ser; e, por
conseguinte, o faz de modo que todas as partes do universo estejam coordenadas
em uma ordem perfeita.
Não há, pois, conflito real
entre alma e corpo, entre natureza e graça, entre liberdade e necessidade: há
correspondência. A liberdade humana é a face interior da ordem divina.
Leibniz aplica o mesmo
princípio a todos os níveis do ser. Cada mônada — isto é, cada substância
individual — reflete o universo inteiro segundo o seu grau de perfeição. Não há
ruptura, mas gradação. O cosmos é uma polifonia de existências, em que cada voz
entoa, à sua maneira, a mesma melodia da Criação.
A harmonia preestabelecida é,
portanto, mais do que uma hipótese física: é uma teologia cósmica. O mundo é o
coro ordenado das vontades criadas; e Deus, o Maestro invisível que as fez
cantar desde o princípio.
IV —
A Substância Ativa: Mônadas, Percepção e Apetite
A metafísica de Leibniz repousa
sobre a ideia de que tudo
o que existe é força. A substância não é um ser inerte, mas um
centro de atividade. O universo não é feito de átomos passivos, como queriam os
materialistas, mas de mônadas — unidades vivas, espirituais, que exprimem o
mundo à sua maneira.
Essas mônadas são os elementos
últimos da realidade. Não têm extensão, nem forma, nem figura; são simples,
indivisíveis, impenetráveis. O que as distingue não é o tamanho, mas o grau de
clareza com que percebem o universo. Cada uma reflete o todo, como um espelho
que reproduz o infinito sob um ângulo próprio.
Assim, não há no mundo duas
mônadas idênticas. Cada ser é uma perspectiva singular do cosmos, um ponto de
vista que Deus quis eterno. E porque cada uma contém a representação de todas
as outras, o universo é uma imensa rede de correspondências, uma sinfonia de
percepções que nunca se confundem, mas se ajustam na harmonia universal.
A essência da mônada é a percepção: ela percebe,
ainda que de modo obscuro ou confuso. Mesmo na matéria bruta há percepção; mas
ali ela é como um sonho profundo, um pressentimento sem consciência. Nas almas
humanas, ao contrário, a percepção torna-se clara, distinta, refletida —
consciência de si e do mundo.
Mas perceber não basta: toda
percepção tende a um estado seguinte. Eis o que Leibniz chama de apetite — o impulso
interno que conduz de uma percepção à outra, o princípio do movimento interno
das coisas. Em nós, esse apetite é a vontade; nos animais, o instinto; nas
coisas, a tendência imanente a transformar-se.
Assim, o universo inteiro é
atividade. Nada repousa; tudo passa, tudo progride. O ser não é substância
imóvel, mas esforço contínuo. “A substância — escreve Leibniz — é um entelecheia, uma força
ativa, uma centelha de vida.”
A hierarquia dos seres resulta
do grau de clareza dessas percepções e da liberdade com que exercem seu
apetite.
As mônadas inferiores são quase inconscientes; as superiores — as almas —
elevam-se até a razão e à reflexão. No vértice está Deus, a Mônada das mônadas,
cuja percepção é absolutamente clara e cuja atividade é pura ação.
É por essa gradação infinita
que Leibniz substitui o mecanicismo cartesiano pela biologia metafísica: o
mundo deixa de ser máquina e torna-se organismo. Cada parte é viva, e a vida
total é a harmonia das vidas.
Em cada instante, todas as
mônadas seguem o curso que Deus lhes traçou desde o princípio, de modo que a
ordem da natureza é, ao mesmo tempo, expressão da liberdade divina e realização
da sua razão. A criação, para Leibniz, não é um ato passado, mas um ato contínuo, pelo qual
Deus conserva o ser em todo o instante — “como uma chama que se alimenta de sua
própria luz”.
Assim, o universo é uma
multiplicidade viva unificada pelo pensamento de Deus. Cada mônada é uma
palavra do Logos; e o mundo inteiro, a linguagem eterna do Espírito.
V — A
Hierarquia dos Seres e a Continuidade do Real
Em Leibniz, o universo não é
uma coleção de substâncias isoladas, mas um organismo vivo, no qual tudo se encadeia e
se explica mutuamente. Não há abismos entre os reinos da natureza: há
gradações. O real é contínuo. A diferença entre o mineral, o vegetal, o animal
e o homem é apenas de grau, não de essência.
O filósofo de Hanôver rejeita a
concepção mecanicista que via o cosmos como um agregado de peças sem relação
interior. Para ele, o universo é como uma escala harmônica, onde cada nota tem
seu tom próprio, mas todas participam da mesma melodia divina. Essa
continuidade — que ele chama lex
continui — é uma das expressões mais sublimes de seu pensamento.
Entre os extremos, não há
saltos. O mesmo princípio de vida que anima o corpo humano palpita, em forma
obscura, na pedra, na planta, no animal. A cada nível, a percepção se torna
mais clara, a atividade mais livre, a consciência mais luminosa.
No grau mais baixo, a mônada percebe confusamente, como um murmúrio do ser; no
mais alto, percebe distintamente, como uma ideia.
O mundo é, portanto, uma
pirâmide espiritual cuja base repousa sobre as percepções adormecidas da
matéria e cujo cume toca o pensamento de Deus. A multiplicidade das coisas não
destrói a unidade do plano: é a forma pela qual a Unidade infinita se
manifesta.
Essa visão orgânica dissolve o
dualismo cartesiano. Não há, para Leibniz, duas substâncias — corpo e alma —,
mas uma só realidade sob graus diversos de atividade. A matéria não é o
contrário do espírito; é o espírito ainda obscurecido. O espírito, por sua vez,
é a matéria que chegou à transparência.
Tudo vive, tudo sente, tudo
deseja.
Eis por que Leibniz, muito antes de a biologia moderna falar em “evolução”, já
concebia o universo como uma progressão
contínua do ser. O mundo, para ele, não é estático; é uma
ascensão. Cada ser se esforça em direção a uma plenitude maior, e esse esforço
é a expressão do amor divino que o sustenta.
Deus, no alto dessa hierarquia,
não é apenas o primeiro motor, mas o termo último de todas as tendências. Ele é
o fim supremo de todo apetite, o centro invisível para o qual todas as mônadas
convergem, mesmo sem o saber. “Toda criatura — escreve Leibniz — espelha o
Criador, e tende a imitá-lo segundo a medida de sua perfeição.”
Essa concepção confere à
natureza um valor sagrado. Nada é inútil, nada é isolado, nada é morto. O verme
que rasteja, a estrela que brilha, o pensamento que se eleva — todos pertencem
à mesma teia luminosa. A continuidade do real é a assinatura de Deus sobre a
Criação.
Assim, para Leibniz,
compreender o mundo é reconhecer nele a ordem da graça: cada degrau da escada
do ser é uma nota do mesmo hino universal que celebra a harmonia
preestabelecida.
VI —
O Universo como Sistema de Forças Vivas
A ideia central de Leibniz —
aquela que dá coesão a todo o seu sistema — é a de que a realidade é força.
Tudo o que existe é ação, e toda ação é expressão de uma essência ativa. O ser
é inseparável do agir. O mundo não é composto de matérias, mas de energias
espirituais que, em conjunto, formam o grande organismo do real.
A física moderna de seu tempo
falava de extensão, massa, movimento. Leibniz percebeu que tais conceitos eram
insuficientes. A extensão não é substância, mas fenômeno; o movimento não é
causa, mas efeito. A verdadeira substância está por trás desses aspectos
visíveis, como a alma está por trás do corpo.
A natureza, portanto, não é um
conjunto de engrenagens, mas uma hierarquia
de forças. Cada ser contém em si o princípio de sua ação e a
razão de sua mudança. Quando a física observa o choque dos corpos, o filósofo
vê o encontro de energias interiores que obedecem a uma lei de correspondência
divina.
Por isso Leibniz distingue a força morta e a força viva.
A primeira é a simples capacidade de resistência — potência passiva, inerte,
semelhante à noção cartesiana de matéria.
A segunda é a força essencial, origem do movimento e da forma. É essa força
viva (vis viva)
que constitui a substância verdadeira e que, em seu conjunto, compõe a
estrutura do universo.
Em cada ponto do espaço, há uma
energia que tende a manifestar-se; em cada ser, uma ação que busca
atualizar-se. O cosmos é uma infinidade de centros de atividade que se interpenetram
sem se confundirem, harmônicos como vozes de uma polifonia eterna.
Deus é o fundamento e a fonte
dessas forças. Ele é o actus
purus, a plenitude da atividade, a unidade absoluta de onde emanam
todos os graus do ser. As criaturas, por sua vez, são participações dessa força
divina, limitadas pela forma e pelo grau de percepção.
Assim, a realidade inteira é um
imenso sistema dinâmico. Nada é imóvel, nada é indiferente. A harmonia do mundo
não é estática, mas viva: uma concórdia de movimentos interiores, um equilíbrio
de energias espirituais.
Quando a ciência moderna tenta
explicar o universo por equações, Leibniz a precede, oferecendo-lhe um
princípio metafísico: o cálculo é apenas o reflexo simbólico da ordem viva do
real. “A matemática — dirá ele — é o alfabeto com que Deus escreveu o mundo.”
O universo, concebido como
sistema de forças vivas, é também o espelho da moral e da teologia. A força não
é cega: é racional e orientada para o bem. O movimento universal tende ao
aperfeiçoamento, e a perfeição é o desígnio do Criador.
Tudo, pois, converge: a
metafísica, a física, a lógica e a teologia reencontram-se sob uma mesma lei. A
força viva é a alma do mundo, e o mundo é o corpo dessa alma.
Com isso, a filosofia de
Leibniz alcança sua forma definitiva: uma metafísica do movimento, em que a
multiplicidade das substâncias é unida pela razão suficiente e animada pela
força divina. O cosmos é o cálculo vivo de Deus — eterno, harmonioso e sempre
em ato.
Capítulo
III — O Conhecimento e as Ideias
I — A
Origem e a Natureza das Ideias
A doutrina do conhecimento é,
em Leibniz, a consequência direta de sua metafísica.
Se o universo é um sistema de mônadas, e cada mônada é consciência em grau
diverso, então o conhecer é o modo pelo qual o ser se realiza. Conhecer é viver
com clareza; viver é conhecer de modo obscuro.
A alma não é uma tábula rasa —
como queriam os empiristas —, nem um espelho perfeito que reflete a verdade em
sua plenitude — como sustentavam os iluministas da tradição agostiniana. Ela é
uma força viva, interiormente orientada à atualização das verdades que traz em
germe.
Assim como toda mônada contém
em si a imagem do universo, também a alma contém em si o princípio de todas as
ideias. Elas não vêm de fora: despertam de dentro.
Deus as implantou como sementes racionais (virtutes
seminales), destinadas a desenvolver-se pela experiência, mas cuja
origem é anterior a toda sensação.
A experiência, portanto, não
cria as ideias — apenas as desperta. É o que Leibniz exprime em sua fórmula
célebre: Nihil est in intellectu
quod non fuerit in sensu, nisi intellectus ipse — “Nada há no
intelecto que não tenha passado pelos sentidos, exceto o próprio intelecto.”
O sentido fornece a ocasião,
mas não a razão do conhecimento. O espírito, ao perceber, organiza, compara, relaciona,
e dessa atividade surge a ideia distinta.
O conhecimento é, pois, o resultado de duas forças complementares: a
receptividade sensível e a espontaneidade racional.
A alma, como mônada, não recebe
impressões do exterior; suas percepções nascem de seu interior, mas em
correspondência com o estado do universo.
Quando vemos uma árvore ou uma estrela, não é a coisa que entra em nós — é
nossa mônada que exprime, naquele instante, a relação que tem com a totalidade
do ser. O mundo exterior é, por assim dizer, a projeção comum das percepções
interiores de todas as mônadas.
As ideias universais — número,
substância, causa, ser — não se extraem da experiência, pois são condições para
que a experiência seja possível. São formas do pensamento que, em Leibniz, cumprem
função análoga à que Kant lhes atribuirá mais tarde, mas fundadas não na
subjetividade do homem, e sim na objetividade divina.
O espírito humano é imagem da
inteligência criadora. Assim como Deus vê em si mesmo todas as verdades
possíveis, a alma participa dessa visão sob forma limitada e temporal. Pensar
é, portanto, recordar — mas recordar o que jamais foi esquecido, apenas velado
pela obscuridade das percepções confusas.
A gênese das ideias não é uma
gênese no tempo, mas na consciência. A luz do entendimento não nasce:
desvela-se.
E a experiência, longe de contradizer essa doutrina, confirma-a: toda
descoberta científica, todo progresso da razão, não é senão a explicitação de
uma lei eterna que já estava presente no espírito, aguardando o momento propício
para manifestar-se.
Assim, para Leibniz, conhecer é
revelar o que é.
As ideias são os reflexos, em nós, da ordem divina; e o progresso do saber é o
lento desabrochar da razão de Deus no homem.
II —
O Inatismo e o Empirismo Reconciliados
O mérito singular de Leibniz,
neste ponto, é ter conciliado as duas grandes tendências do pensamento moderno
— o inatismo cartesiano e o empirismo inglês — sem reduzir uma à outra.
Entre a tese de Descartes, que afirma que todas as ideias são inatas, e a de
Locke, que sustenta que todas provêm da experiência, Leibniz vê uma oposição
aparente, nascida da confusão entre a origem e a ocasião das ideias.
Para ele, a alma é como o mármore onde as veias
indicam a forma que o escultor realizará. A experiência é o
golpe de cinzel que revela a figura; mas a estrutura íntima, que dá à obra sua
possibilidade e seu sentido, já estava na matéria desde o princípio.
Nada vem do exterior senão o apelo; tudo o mais procede da natureza interior do
espírito.
O empirismo é, assim, justificado
como método: precisamos da experiência para despertar o pensamento, para
distinguir e organizar as percepções; mas o inatismo é restabelecido como
princípio, pois sem formas racionais prévias, nenhuma experiência teria
coerência.
O espírito humano não é uma
tábula rasa, mas uma potência
organizada, uma força ativa que, posta em contato com o mundo,
desdobra o que continha em estado virtual.
As ideias são como nascentes subterrâneas que, tocadas pela chuva sensível,
emergem em rios visíveis.
Leibniz, ao reconciliar essas
duas posições, abre caminho para uma psicologia dinâmica. A alma não é um
espelho passivo, é um centro de atividade. As sensações não são inscrições
sobre uma superfície, mas vibrações de uma energia interior que responde ao
estímulo do real.
Por isso, ele critica tanto os
empiristas quanto os racionalistas estreitos. Aos primeiros, diz: “Vedes as
sombras e credes ver o mundo.” Aos segundos: “Contemplais o céu e esqueceis a
terra.”
A verdade está no meio — mas não como compromisso, e sim como síntese.
A experiência fornece os dados,
a razão lhes dá a forma. Uma sem a outra é estéril: a experiência cega sem a
razão; a razão vazia sem a experiência.
A alma necessita das impressões sensíveis para despertar suas ideias latentes,
assim como o músico precisa do instrumento para tornar audível a melodia que já
traz no coração.
A doutrina leibniziana do
conhecimento é, pois, uma teoria
da harmonia entre o dentro e o fora. O mundo exterior é o
espelho da razão interior; e o pensamento é o modo pelo qual o universo se
reconhece em nós.
A verdade não está nem no
objeto isolado, nem no sujeito fechado em si mesmo: ela surge do acordo entre
ambos, acordo que Deus preestabeleceu ao criar o espírito e o mundo segundo uma
mesma medida.
Dessa reconciliação nasce o
caráter otimista e confiante do pensamento de Leibniz. Conhecer é possível,
porque o real é racional e o racional é real. A alma humana participa da luz do
Logos; e toda percepção, mesmo obscura, é uma centelha dessa luz divina que,
pouco a pouco, se aclara em nós.
III —
A Distinção entre Conhecimento Obscuro, Claro, Distinto e Intuitivo
A teoria leibniziana do
conhecimento repousa sobre a gradação da consciência. Assim como no universo há
graus de ser, há também graus de clareza na percepção. O saber não é uma
propriedade uniforme, mas uma progressão — uma ascensão da obscuridade à luz.
Desde suas primeiras obras,
Leibniz distingue quatro níveis de conhecimento: o obscuro, o claro, o distinto
e o intuitivo.
Esses graus não são fronteiras fixas, mas passagens contínuas; cada um
representa uma intensidade maior da atividade intelectual, um aprofundamento da
relação do espírito consigo mesmo e com o mundo.
O conhecimento obscuro é o
mais elementar, aquele em que percebemos sem poder distinguir o que percebemos.
É a sensação vaga, o sentimento difuso, o rumor do ser em nós. É o estado das
mônadas inferiores e, no homem, o fundo noturno da consciência. O espírito
percebe sempre infinitamente mais do que concebe: vive envolto em um oceano de
percepções obscuras, das quais só algumas emergem à superfície da clareza.
O conhecimento claro é o
primeiro despertar da luz.
Aqui, percebemos algo de determinado, mas ainda sem conhecer suas notas
constitutivas. Reconhecemos um objeto — uma cor, um som, uma emoção —, mas não
sabemos ainda analisá-lo. É o domínio da apreensão empírica, da experiência
imediata.
O conhecimento distinto é
o segundo grau da claridade.
Não só reconhecemos o objeto, mas distinguimos seus caracteres essenciais. É o
saber discursivo, próprio da ciência e da reflexão. A matemática e a lógica
alcançam esse nível quando definem e demonstram. É aqui que a alma torna-se
plenamente racional.
Por fim, o conhecimento intuitivo é
a visão direta da essência — a forma mais alta do saber.
Nele, não raciocinamos, mas vemos. O entendimento se identifica ao objeto; a
verdade aparece como evidência luminosa. Esse conhecimento pertence
propriamente a Deus e, de modo limitado, ao espírito humano nas suas intuições
mais puras, quando a razão e o ser se reencontram em um único ato.
Esses quatro graus não se
excluem: coexistem. A consciência oscila constantemente entre eles, como a luz
que varia de intensidade sem jamais extinguir-se. Mesmo nas percepções obscuras
há verdade; e nas mais claras ainda resta sombra.
Essa gradação tem um alcance
metafísico profundo.
Mostra que a realidade não é uma dualidade entre o saber e o não-saber, mas uma
continuidade viva
da inconsciência à sabedoria. Do instinto ao intelecto, do intelecto à
intuição, tudo é passagem.
Assim como as mônadas
inferiores percebem sem refletir, e as superiores refletem sem ver tudo, o
homem é o ponto médio entre o animal e o anjo, entre a confusão e a evidência.
Seu destino é clarear o obscuro, tornar distinta a percepção e, um dia, na
visão beatífica, alcançar o conhecimento intuitivo de Deus.
Para Leibniz, portanto, o
progresso do saber é também o progresso da alma.
Conhecer é elevar-se. A ciência é o caminho da salvação racional.
Toda a história do espírito humano é o esforço da mônada racional para transformar
suas percepções confusas em luz inteligível, e essa luz em contemplação.
IV —
A Matemática como Modelo do Saber Perfeito
Em toda a obra de Leibniz, a
matemática ocupa um lugar privilegiado. Não apenas como ciência das
quantidades, mas como forma
exemplar do pensamento racional. Para ele, a perfeição do saber
consiste naquilo que a matemática realiza melhor que qualquer outra disciplina:
a possibilidade de deduzir o todo a partir de princípios claros e de símbolos
precisos.
Enquanto as outras ciências se
apoiam na observação ou na probabilidade, a matemática repousa sobre a
necessidade. Nela, a verdade não depende da experiência, mas da coerência
interna das ideias. É o domínio da evidência e da demonstração — o reflexo mais
puro da ordem divina.
Leibniz via, portanto, na
matemática não uma especialidade, mas o modelo
universal de todo conhecimento verdadeiro.
O raciocínio geométrico e o cálculo algébrico são para ele os paradigmas de uma
razão sem falhas, capaz de reproduzir, em escala humana, o rigor do pensamento
divino.
Desde jovem, ele sonhara em
estender esse método a todas as ciências. “Se o homem pudesse expressar os
conceitos morais, políticos e teológicos com a mesma clareza com que exprime os
números”, dizia, “a discórdia cessaria, e a verdade se imporia por si mesma.”
Essa ideia de uma “matemática universal”
não é metáfora.
Leibniz acreditava realmente ser possível reduzir todo raciocínio à combinação
de símbolos, e toda verdade à demonstração formal. A lógica seria então um
cálculo — calculus
ratiocinator —, e as controvérsias filosóficas se resolveriam como
equações.
Tal projeto, que à sua época
pareceu quimérico, é hoje reconhecido como uma das intuições mais profundas da
história da filosofia. Ele antecipa, em dois séculos, a lógica simbólica
moderna e a concepção algébrica do pensamento que fundará as matemáticas
contemporâneas e a própria ciência dos algoritmos.
Mas para Leibniz esse cálculo
não era puramente técnico: tinha um sentido teológico.
O mundo, dizia ele, é “a aritmética de Deus”. A criação é o resultado de uma
escolha racional, e o universo manifesta, em sua harmonia e proporção, o
cálculo divino. A matemática é, pois, a linguagem secreta em que o Criador
escreveu o ser.
Por isso, o filósofo exigia do
pensamento humano a mesma exatidão que a geometria possui no espaço e que a
álgebra tem no número. A clareza das ideias e a precisão da expressão são, para
ele, virtudes morais e intelectuais inseparáveis. O erro é sempre confusão; a
verdade, distinção.
Assim, a ciência matemática não
é apenas um instrumento: é uma imagem
da sabedoria divina.
O espírito humano se aproxima de Deus na medida em que pensa com rigor
matemático, pois cada demonstração é um eco, no finito, do raciocínio eterno do
Infinito.
A razão é, portanto, matemática
em sua essência, e a matemática é razão pura tornada visível.
A perfeição do saber consiste em reduzir toda obscuridade a cálculo, toda
incerteza a proporção, toda dúvida a demonstração.
“Calculemos!”, dizia Leibniz — e nessa palavra se resume o ideal de um mundo
reconciliado pela clareza.
V — O
Ideal de uma Característica Universal e do Cálculo Lógico
O sonho mais audacioso de
Leibniz foi o de construir uma característica
universal, isto é, uma linguagem simbólica capaz de exprimir
todas as operações do pensamento humano com a mesma precisão com que a álgebra
exprime as relações numéricas.
Nessa empresa, ele via a realização suprema de sua metafísica: a unidade do ser
refletida na unidade da razão e da linguagem.
Desde sua juventude, ao compor
o De Arte Combinatoria,
ele concebeu que as ideias simples podiam ser tratadas como elementos de um
cálculo. Se fosse possível decompor o pensamento em seus componentes primitivos
— tal como os números se reduzem às unidades — e determinar as leis de sua
combinação, toda ciência se tornaria uma aritmética do espírito.
A característica universal
seria, portanto, uma espécie de álgebra das ideias, onde cada conceito teria um
signo fixo e definido, e as relações entre as ideias seriam traduzidas por
operações. As proposições seriam equações; as demonstrações, cálculos; a
verdade, o resultado inevitável de uma soma bem conduzida.
Essa ambição não se restringia
ao campo da lógica.
Leibniz acreditava que essa linguagem racional poderia abranger todos os
domínios: a física, a metafísica, a teologia e até a moral. Haveria, assim, um
método universal para resolver disputas e demonstrar verdades. “Quando dois
filósofos discutirem, — dizia ele — não haverá mais necessidade de
controvérsia: basta que se sentem à mesa e digam um ao outro: calculemos.”
Tal sistema, pensado no século
XVII, antecipa de modo surpreendente a lógica simbólica moderna e a concepção
algorítmica do raciocínio. Leibniz entrevê que pensar é operar sobre signos, e que toda
operação intelectual pode ser formalizada. É a intuição matriz do que, séculos
mais tarde, desembocará na lógica matemática e nas ciências computacionais.
Mas, em Leibniz, esse cálculo
lógico não é puramente formal: tem uma dimensão
teológica e moral.
A clareza do pensamento é imagem da claridade divina. A linguagem universal é o
reflexo humano da razão de Deus. Ao propor um sistema de signos universais, ele
não pretende apenas facilitar a ciência — quer restaurar a unidade do gênero
humano em torno de uma mesma linguagem e de uma mesma verdade.
Essa ideia se liga ao seu ideal
de reunir todos os povos
sob uma única sabedoria, a mesma fé e a mesma língua — sonho
que, para ele, unia a ciência à religião. A característica universal seria o
instrumento dessa reconciliação: a gramática do Logos, onde fé e razão, cálculo
e contemplação, coincidiriam.
Todavia, Leibniz reconheceu,
nos últimos anos, a dificuldade quase insuperável de sua realização.
Seria preciso, antes de tudo, um inventário completo das ideias simples — “o
alfabeto do pensamento humano” — e a definição exata de suas combinações.
Tal tarefa excedia a vida de um homem e talvez de muitos séculos. Mas, como ele
mesmo disse, “nenhum germe de verdade é lançado em vão”: um dia, a humanidade
colherá o fruto desse trabalho inacabado.
O cálculo lógico e a
característica universal representam, assim, o coroamento da filosofia
leibniziana.
Neles se reencontram todos os temas de seu pensamento: a harmonia
preestabelecida, a unidade do ser, a racionalidade do mundo e a fé na ordem
divina.
Pensar é calcular; calcular é refletir a luz do Logos eterno.
Capítulo
IV — As Ciências e o Método Matemático
I — O
Cálculo Diferencial e sua Origem na Metafísica da Continuidade
A descoberta do cálculo diferencial não
foi, para Leibniz, um simples feito técnico.
Ela resulta de um princípio metafísico: a convicção de que o real é contínuo, e
que toda mudança, por mais brusca que pareça, é uma passagem insensível de um
estado a outro.
O cálculo não nasce, portanto,
de um problema de aritmética, mas de uma visão do ser.
O mundo, dizia Leibniz, é feito de diferenças infinitesimais, de gradações
imperceptíveis que unem o discreto ao contínuo.
A continuidade é a forma viva da criação — a marca de uma razão divina que não
procede por saltos, mas por transições.
O princípio da lex continui, que já se
encontrava em Aristóteles e nos escolásticos, recebe em Leibniz uma expressão
matemática.
Deus, sendo perfeitíssimo, age por vias suaves: “A natureza não faz saltos.”
Dessa máxima metafísica, ele deduz uma lei científica: o movimento, a força, o
crescimento, a curvatura — tudo é variação contínua.
E para exprimir o contínuo, é preciso uma linguagem de diferenças
infinitesimais.
Assim nasce o cálculo diferencial:
instrumento destinado a medir o infinitamente pequeno e a traduzir o dinamismo
interno do real.
Quando Leibniz escreve dy/dxdy/dxdy/dx, ele não formula apenas uma relação numérica — exprime,
em símbolo, o modo mesmo como o ser passa de um instante a outro, como o finito
participa do infinito.
Essa invenção, portanto, é o
prolongamento natural de sua metafísica.
A mônada, como vimos, é força e percepção em desenvolvimento contínuo; o
cálculo diferencial é a notação exata desse desenvolvimento.
A natureza é o livro onde o cálculo lê as leis de Deus.
Em Leibniz, a ciência
matemática e a teologia se correspondem como o visível e o inteligível.
O cálculo mostra que o universo é harmonia quantitativa, e a metafísica revela
que essa harmonia é racional e querida.
O infinitesimal é o ponto de contato entre o homem e Deus: um limite que separa
e une, como a fronteira entre o ser criado e o ser absoluto.
A disputa posterior com Newton,
que dividiu os historiadores da ciência, é secundária para o sentido filosófico
da descoberta.
Em ambos, o cálculo é o instrumento da razão.
Mas em Leibniz, ele é mais: é a cifra da criação, a linguagem do contínuo, o
sinal de que o cosmos é uma progressão lógica e amorosa.
Assim, o cálculo diferencial é,
ao mesmo tempo, ciência e
teologia, método
e símbolo.
Ciência — porque mede a variação das grandezas;
Teologia — porque exprime a ordem divina que preside a essas variações;
Método — porque fornece à mente humana um meio de deduzir leis universais;
Símbolo — porque representa a união secreta do finito e do infinito.
O gênio de Leibniz consistiu em
fazer da matemática o espelho da metafísica.
Para ele, o cálculo é o gesto inteligível de Deus:
“O infinito não é número, é
perfeição. O cálculo é a tentativa do homem de pensar como Deus pensa.”
II —
A Mecânica e a Noção de Força Viva
A mecânica moderna nascera sob
o signo do mecanicismo
cartesiano.
Para Descartes, toda a natureza era extensão e movimento, e o universo, uma
máquina regida por leis de choque e repouso.
Essa concepção, ainda que grandiosa em sua simplicidade, continha uma
insuficiência profunda: ela reduzia o real a pura geometria, suprimindo-lhe a
alma.
Leibniz se ergue contra essa
redução.
Em lugar da extensão, ele põe a força;
em lugar da quantidade de movimento, a energia
viva.
O mundo, para ele, não é uma máquina que se move, mas uma vida que age.
A geometria descreve apenas o contorno; a força viva revela o princípio
interior.
O erro dos cartesianos estava
em confundir o movimento com sua causa.
Mediam o impacto dos corpos pela relação mv — o
produto da massa pela velocidade —, como se o movimento fosse algo puramente
exterior e mensurável.
Leibniz demonstra que a verdadeira medida do movimento é mv2, e que o quadrado da velocidade exprime a
potência interna do ser.
Esse simples expoente, que parece apenas um detalhe de cálculo, muda toda a
filosofia da natureza: introduz no seio da física o princípio da atividade metafísica.
A força viva não é um fenômeno,
é uma essência.
É a energia primitiva pela qual as coisas existem e agem.
O corpo não é senão a expressão visível dessa energia invisível; o movimento
mecânico é o sinal exterior de um impulso interior.
Cada substância possui,
portanto, sua força própria, intransferível.
E porque toda força é centro de atividade, o universo é uma rede de centros
vivos — mônadas físicas — que coexistem e se harmonizam sem jamais se
confundirem.
A interação aparente entre os corpos é apenas o reflexo de uma correspondência
preestabelecida entre suas forças internas.
Essa doutrina restabelece a
alma no coração da natureza.
O mundo deixa de ser máquina para tornar-se organismo.
O movimento deixa de ser acidente e torna-se expressão.
E a mecânica, longe de suprimir a metafísica, torna-se sua confirmação
empírica.
A vis viva é também o símbolo da presença divina
nas coisas.
Toda força particular deriva de Deus, força suprema e universal, que conserva o
ser em ato.
A conservação da energia é, para Leibniz, o equivalente físico da criação
contínua.
O Criador não é um relojoeiro que deu corda ao mundo e se retirou; é o impulso
permanente que mantém o universo em existência.
Assim, o princípio de
conservação da força viva — que a física moderna confirmará sob outras formas —
é, em Leibniz, um dogma
teológico.
Deus é o único ser cuja força é absolutamente ativa, e todas as criaturas são
participações dessa força infinita.
O cosmos é a expansão dessa energia primeira em graus diversos de perfeição.
O mecanicismo via na matéria
apenas resistência e inércia; Leibniz vê nela desejo e atividade.
Por isso, sua física é uma teologia
da energia: toda força é, em última análise, uma centelha do
Espírito.
A lei natural é a razão de Deus traduzida em movimento.
O universo, sob esse ponto de
vista, é a unidade viva da multiplicidade das forças.
Nada age do exterior; tudo se move de dentro.
E cada movimento, mesmo o mais humilde, é uma modulação da força divina que
pulsa através de todas as coisas.
III —
A Física e o Princípio da Continuidade
A física de Leibniz repousa
sobre um postulado metafísico: a
natureza é contínua.
Tudo o que existe se encadeia, tudo passa insensivelmente de um estado a outro;
entre o repouso e o movimento, entre o ser e o não-ser, não há abismo, mas
gradação.
Essa lei do contínuo é para ele a mais universal das leis naturais, a regra da
própria criação.
Os cartesianos concebiam a
natureza como uma extensão homogênea e inerte, submetida a choques exteriores.
Leibniz, ao contrário, vê nela uma hierarquia viva, onde cada ponto é um centro
de atividade.
Nada é absolutamente imóvel; tudo vibra, tudo se transforma.
A linha reta é apenas o limite ideal de uma curva infinitamente suave.
Por isso, diz ele, “a natureza
não dá saltos”.
Não há rupturas, nem descontinuidades, nem milagres arbitrários.
Mesmo o milagre é contínuo com a ordem natural, pois é a intensificação de uma
lei, não sua suspensão.
A providência não contradiz a natureza — é sua direção secreta.
A continuidade é, para Leibniz,
a expressão visível da sabedoria
divina.
Um Deus perfeito não cria senão por modos perfeitos, e a perfeição consiste na
harmonia das transições.
Cada estado do mundo nasce do precedente e engendra o seguinte, como as notas
de uma melodia que se sucedem sem dissonância.
O cálculo diferencial, ao medir
as variações infinitesimais, é o instrumento científico dessa metafísica.
A fórmula dy/dx exprime, em termos matemáticos,
o modo como o ser se transforma sem cessar.
É a tradução algébrica da lei da criação contínua.
Na física, isso significa que
as leis do movimento, da gravitação, da óptica e da dinâmica obedecem todas a
um mesmo princípio: o da passagem insensível do simples ao composto, do
particular ao universal.
O mundo é uma curva sem fim, cuja tangente, em cada ponto, é a vontade de Deus.
O princípio da continuidade tem
também um valor moral.
Na ordem das ações humanas, como na da natureza, não há saltos.
O vício é o bem imperfeito; a ignorância é a ciência que ainda não se
despertou.
Tudo caminha, tudo progride — a vida é uma educação.
Deus não destrói, transforma; não condena, aperfeiçoa.
Essa doutrina confere à física
um sentido espiritual profundo.
A lei natural é a tradução temporal da razão eterna; o movimento dos astros é o
ritmo do pensamento divino.
Estudar a natureza é ler as palavras invisíveis com que Deus escreveu o
universo.
O princípio da continuidade não
é apenas uma regra científica, mas uma teofania
racional.
Revela que o ser é uno e múltiplo, móvel e harmônico, temporal e eterno.
Tudo é elo de uma mesma cadeia, e essa cadeia é o vestígio da Sabedoria que a
sustenta.
Assim, a física, para Leibniz,
deixa de ser uma ciência da matéria e se torna uma ciência do espírito na matéria
— uma metafísica experimental.
A natureza é pensamento em ato, geometria tornada vida, razão encarnada no
movimento.
IV —
A Teoria da Gravitação e o Princípio de Unidade
A gravitação, para Leibniz, não
é uma força externa que atrai os corpos à distância, como o concebera Newton,
mas a manifestação de uma força
interior e contínua, expressão da unidade viva do universo.
Ele rejeita o vazio, rejeita a ação à distância, rejeita todo dualismo que
separa a causa e o efeito, a substância e o espaço.
O espaço, diz ele, não é uma realidade em si, mas a ordenação das coexistências;
o tempo, a ordem das sucessões.
Tudo o que existe está em relação — e essa relação é movimento, e o movimento é
harmonia.
Assim, a gravitação não é uma
força que puxa, mas uma força
que exprime o equilíbrio dinâmico das tensões universais.
O peso, a queda, a órbita dos astros não são senão a tradução sensível da lei
de continuidade: cada corpo reage à pressão do todo.
A Terra cai, diz Leibniz, não porque uma força oculta a atrai, mas porque o movimento
do éter e das esferas que a envolvem a impele incessantemente para o centro do
equilíbrio.
O que Newton chamava de “atração” é, para ele, uma reação elástica, um
refreamento contínuo, um “fenômeno de refoulement” — um empuxo que nasce da
resistência do meio e da solidariedade das partes do universo.
Entre a física de Newton e a de
Leibniz há, pois, um
abismo de ontologia.
Para o inglês, o mundo é uma máquina regulada por leis exteriores; para o
alemão, é um organismo onde cada força é interiormente consciente de sua
relação com o todo.
A gravitação universal, em Leibniz, é apenas um aspecto da harmonia preestabelecida:
a unidade invisível que faz com que todas as substâncias ajam em concerto, sem
contato, mas em perfeita correspondência.
A unidade do cosmos é, assim,
não geométrica, mas espiritual.
O sol, os planetas, os astros, os átomos — todos são expressões graduadas da
mesma energia divina.
A gravitação é o laço da criação; é o amor do mundo por seu centro.
O movimento circular dos astros é símbolo desse amor que tende perpetuamente ao
Uno, sem jamais o alcançar, porque o Uno é infinito.
Deus é o polo de convergência de todas as forças,
o centro imóvel que faz mover tudo.
Mas Ele não age por intervenção ou milagre; age pela lei eterna que é Sua própria
essência.
A ordem física é reflexo da ordem moral, e ambas derivam da mesma unidade de
razão e bondade.
No equilíbrio do céu, o filósofo vê a figura do equilíbrio da alma.
Essa concepção dissolvia a
oposição entre o material e o espiritual, entre o mecânico e o final.
A gravitação se torna o símbolo da unidade
orgânica do ser.
O que Newton via como necessidade cega, Leibniz entende como razão suficiente.
Cada movimento é justificado; cada força é expressão de um sentido; e o
universo, inteiro, é a harmonia visível da razão invisível.
“Deus não criou o mundo em
repouso”, dizia ele, “mas em movimento, porque o movimento é a vida da
unidade.”
A gravitação é, assim, a respiração do cosmos — a alternância de expansão e
retorno que traduz, no espaço, o ritmo do amor divino.
Em resumo:
A gravitação é a tradução física da comunhão metafísica;
A unidade é a lei do ser;
E o ser é o espelho de Deus.
Capítulo
V — A Teodiceia e o Problema do Mal
I — O
Problema do Mal e o Fundamento da Teodiceia
Entre todas as questões que
podem ser propostas ao pensamento humano, nenhuma parece mais grave nem mais
perturbadora do que a do mal.
Ela se eleva como uma sombra no horizonte da razão, desafiando tanto a ciência
quanto a fé.
Se Deus é bom e onipotente, por que o sofrimento, a injustiça e o erro?
E se o mal é necessário, como conciliar sua existência com a perfeição divina?
É essa contradição aparente que
Leibniz quis resolver em sua Teodiceia,
publicada em 1710 — obra onde o teólogo, o lógico e o metafísico se confundem
num mesmo impulso de fé racional.
Não se trata apenas de justificar a Providência, mas de restituir à razão
humana o direito de compreender o mundo como ordem e não como absurdo.
A primeira tese de Leibniz é
esta:
“Deus é o Ser absolutamente
perfeito; tudo o que existe, existe por Ele e para Ele; logo, tudo o que existe
tem razão suficiente.”
A partir desse princípio, o mal
não pode ser uma substância positiva, nem um poder rival de Deus.
O mal é privação,
ausência de bem, limitação do ser.
Assim como a sombra não é realidade em si, mas falta de luz, o mal é a falta de
plenitude que acompanha necessariamente a criação finita.
Pois criar, para Deus, é
limitar.
O infinito, ao manifestar-se, não pode senão restringir-se; e toda limitação
implica imperfeição.
O mal, portanto, não é senão a condição mesma da finitude.
Sem ele, o universo seria Deus; mas se o universo fosse Deus, já não haveria
criação.
Leibniz distingue, assim, três
espécies de mal: o mal
metafísico, que é a imperfeição necessária da criatura; o mal físico, que é o
sofrimento; e o mal moral,
que é o pecado.
O primeiro é inevitável; o segundo é consequência; o terceiro é abuso da
liberdade.
Mas todos, considerados sob o olhar da Providência, concorrem para o bem
supremo.
Deus, sendo sabedoria perfeita,
não cria o melhor mundo possível em aparência, mas o melhor em essência —
aquele que realiza o máximo de perfeição com o mínimo de defeitos.
O mal é, pois, necessidade
de ordem, não de desordem.
Deus permite o mal, não porque o queira, mas porque dele extrai um bem maior.
Assim como o pintor usa as
sombras para realçar as luzes, e o músico recorre à dissonância para ressaltar
a harmonia, Deus permite o mal para que o bem brilhe com maior intensidade.
A perfeição divina consiste em fazer do imperfeito um instrumento da beleza
total.
A teodiceia de Leibniz é,
portanto, inseparável de sua metafísica da harmonia.
O universo é uma totalidade onde cada parte, mesmo a mais obscura, encontra sua
razão na composição do todo.
O mal não destrói essa ordem — a supõe.
O erro, o sofrimento e o pecado são fragmentos de uma sinfonia universal cujo
sentido escapa ao ouvido isolado, mas que se revela, na totalidade, como
harmonia perfeita.
O escândalo do mal nasce de uma
visão fragmentária.
Deus, que vê o conjunto, não se contradiz.
O homem, que vê apenas as partes, não compreende.
A teodiceia é o esforço para elevar o olhar humano à perspectiva divina — não
para suprimir o mistério, mas para integrá-lo à razão.
Leibniz, nesse sentido, não
explica o mal — o reinscreve
na ordem do ser.
Não nega o sofrimento, mas o converte em elemento de sentido.
A dor é a condição da liberdade; e a liberdade é a condição da bondade.
Sem a possibilidade de errar, o bem não seria virtude; seria mecanismo.
Assim, o mal, longe de
contradizer a bondade de Deus, a manifesta.
Pois é no combate contra o mal que o bem se torna ato, e é na fragilidade da
criatura que a glória do Criador se revela como misericórdia.
II —
O Mal Metafísico, Físico e Moral
Leibniz distingue três ordens
de mal, correspondentes às três ordens do ser: o mal metafísico, o mal físico e o mal moral.
Essa divisão não é arbitrária; reflete a estrutura da criação e o modo como o
finito participa do infinito.
Pois o mal, em sua essência, não é senão a sombra que a liberdade projeta sobre
a luz do ser.
1. O
mal metafísico
É o mais universal e
inevitável.
Consiste na limitação
necessária da criatura.
Toda existência finita, por ser distinta de Deus, é imperfeita.
O ser criado não pode conter a plenitude do ser; possui apenas uma parcela, um reflexo.
Sua finitude é, portanto, uma forma de mal — não moral, mas ontológica: a
incapacidade de abarcar tudo.
Deus, que é o Ser absoluto, ao
criar, restringe.
Criar é traçar limites; e limitar é excluir.
A própria multiplicidade das coisas é testemunho dessa limitação: cada ente
existe porque os outros não são ele.
A diferença é a condição da ordem; e a ordem, a condição da beleza.
Sem diversidade, não haveria harmonia.
O mal metafísico é, assim, a condição de possibilidade do bem.
Sem hierarquia de perfeições, o universo seria monótono, sem gradação, sem
música.
A diferença entre o mais e o menos perfeito é a própria melodia do ser.
Deus quis o mundo não como um espelho uniforme de Sua essência, mas como uma orquestra de finitudes,
na qual cada nota contribui para a sinfonia do todo.
2. O
mal físico
É o sofrimento, a dor, a
destruição.
Não deriva de uma malícia divina, mas da ordem necessária das causas segundas.
O fogo que aquece também queima; a gravidade que sustenta os corpos também os
faz cair.
A natureza é uma economia universal onde o bem de um implica o sacrifício de
outro.
O sofrimento, em Leibniz, não é
punição arbitrária: é consequência
da harmonia.
Cada parte, submetida ao todo, suporta o peso da totalidade.
A morte de um ser vivo é a renovação de outro; a dor é o eco do movimento da
vida.
Na natureza, a destruição é meio de conservação.
E na alma humana, o sofrimento é instrumento de purificação.
Nada é mais vão do que imaginar
um mundo sem dor: seria um mundo sem esforço, e portanto sem virtude.
A resistência é o alimento da liberdade; o obstáculo, o campo do mérito.
A Providência não suprime a cruz; dá-lhe sentido.
O mal físico é, assim, o mal
pedagógico, o que desperta a alma e a eleva.
“Os sofrimentos — diz Leibniz — são como os medicamentos amargos com que Deus
cura a natureza enferma.”
3. O
mal moral
É o único verdadeiramente
imputável.
Surge do abuso da liberdade racional.
O homem, sendo espírito, possui a faculdade de escolher — e é precisamente essa
faculdade que o torna capaz de errar.
Sem liberdade, não haveria culpa; mas também não haveria mérito, nem amor, nem
bondade.
O mal moral, portanto, é o
preço da dignidade humana.
Deus não o quer, mas o permite, porque prefere criaturas livres, ainda que
falíveis, a autômatos impecáveis.
A liberdade é o maior dom de Deus, mas também o mais perigoso.
Ela faz do homem uma imagem viva do Criador, capaz de agir por si, de querer o
bem ou o mal, e, por isso mesmo, de ser responsável.
O pecado é o desvio da harmonia
universal.
Mas mesmo esse desvio entra, pela sabedoria divina, na economia do bem.
O mal moral é permitido para que o bem moral — o arrependimento, a redenção, a
caridade — possa existir.
Sem o pecado, não haveria perdão; sem a queda, não haveria ascensão.
Assim, as três formas de mal se
encadeiam como graus de imperfeição que a Providência transforma em graus de
perfeição.
O mal metafísico funda a variedade do ser; o mal físico, a disciplina do mundo;
o mal moral, a liberdade e a moralidade.
Deus tira do conjunto uma harmonia que supera todas as dissonâncias.
O universo, visto de parte,
parece imperfeito; mas visto de cima, é o melhor dos mundos possíveis.
O mal não é princípio, é acidente.
E na visão divina, até o erro serve à verdade, e até a dor participa da ordem.
III —
O Melhor dos Mundos Possíveis
A ideia de que vivemos no melhor dos mundos possíveis
é, talvez, a mais célebre e a mais mal compreendida das teses de Leibniz.
Ridicularizada por Voltaire, desfigurada pelos céticos, reduzida a uma
ingenuidade otimista, ela é, na verdade, uma das formulações mais profundas da
metafísica da razão.
Não exprime uma confiança ingênua na felicidade terrestre, mas uma fé luminosa
na sabedoria da ordem
divina.
Para Leibniz, o ponto de
partida é a natureza mesma de Deus.
Deus é o Ser absolutamente perfeito, cuja essência é o bem e cuja inteligência
abarca todos os possíveis.
Entre as infinitas combinações que poderia criar, Ele escolhe aquela que
realiza o máximo de perfeição, o maior equilíbrio entre simplicidade nas leis e
riqueza nos efeitos.
Esse mundo — o nosso — é, portanto, o melhor, não em cada detalhe isolado, mas
em seu conjunto.
O erro de seus críticos foi
confundir o “melhor dos mundos” com um “mundo sem mal”.
Leibniz jamais disse isso.
O mal existe — mas existe porque é necessário à harmonia do todo.
A perfeição de um sistema não se mede pela ausência de falhas, e sim pela integração das falhas em uma ordem
superior.
Deus não suprime o mal; o transcende.
Assim como um arquiteto
perfeito prefere uma estrutura sólida, ainda que austera, a um ornamento frágil
e ilusório, Deus escolhe um mundo real, onde o bem nasce da luta e a luz da
sombra.
É melhor uma criação onde o livre-arbítrio possa errar, mas também amar, do que
um universo de autômatos sem culpa e sem virtude.
O “melhor” não é, portanto, o
mais cômodo, mas o mais racional.
É aquele que contém a maior soma de realidade possível.
Pois a perfeição, em Leibniz, mede-se pela riqueza de ser: quanto mais diversidades,
relações, gradações e forças um mundo comporta, mais perfeito ele é.
E o nosso, apesar do mal, é o mais abundante em vida, consciência e liberdade.
Cada mundo possível existe,
antes da criação, como ideia na inteligência divina.
Deus, contemplando-os todos de uma vez, escolhe aquele cuja harmonia é mais
completa.
Essa escolha não é arbitrária; é um ato de sabedoria.
Deus não é livre para escolher o pior; é livre apenas para realizar o melhor.
Sua liberdade coincide com Sua perfeição.
O “melhor dos mundos possíveis”
não significa, portanto, um mundo sem lágrimas, mas um mundo com sentido.
As dores que nele se sofrem não são inúteis; as faltas que nele se cometem não
são vãs.
Cada queda prepara uma ascensão; cada perda, uma compensação.
O mal é o preço da plenitude.
E, na economia divina, nada se perde — tudo se transforma em harmonia.
Essa doutrina, longe de ser
otimismo fácil, é uma teologia da esperança
racional.
O homem que sofre pode não compreender a razão de sua dor, mas pode crer que
ela tem razão.
A fé de Leibniz é a de que o real é inteligível até em sua obscuridade, e que o
mistério do mal não destrói a bondade de Deus, mas a revela.
No fundo, dizer que este é o
melhor dos mundos possíveis é afirmar que o mundo tem sentido.
Que a razão não é vã, que a justiça existe, ainda que oculta, e que o destino
humano, longe de ser absurdo, é uma participação na sabedoria criadora.
Deus não poderia ter feito mais
bem do que faz.
E o homem, para ser sábio, deve procurar compreender a perfeição que o envolve,
mesmo através das aparências do caos.
Pois o caos, em Leibniz, é apenas a ordem que ainda não se revelou.
IV —
A Liberdade Humana e a Concorrência Divina
O
problema da liberdade é inseparável do da teodiceia.
Pois, se Deus é causa primeira e universal, como o homem pode ser livre?
E se o homem é realmente livre, como Deus pode prever e dispor tudo sem violar
essa liberdade?
Conciliar essas duas verdades — a onipotência divina e a autonomia da criatura
— foi um dos maiores esforços do pensamento de Leibniz.
A
dificuldade é antiga: já Santo Agostinho e Santo Tomás haviam mostrado que a
liberdade humana não se opõe à presciência de Deus, porque esta não é causa do
que prevê.
Leibniz retoma essa tradição, mas a integra à sua própria metafísica da harmonia
preestabelecida.
Deus é a fonte de todas as mônadas; mas, tendo-as criado, deixa-as agir segundo
suas leis internas.
Ele não intervém no tempo; ordena eternamente.
Não força o querer da criatura; harmoniza-o com o Seu querer.
Assim,
a ação de Deus e a do homem não se confundem nem se excluem.
A primeira é a causa universal e suficiente; a segunda, a causa particular e
livre.
Deus concorre com todas as causas segundas — mas concorre segundo
sua natureza.
Ele é o fundamento da liberdade, não sua negação.
Sem Ele, nada poderia agir; mas com Ele, tudo age de acordo com o que é.
O
ato livre, portanto, é simultaneamente necessário e voluntário: necessário
quanto à sua possibilidade, voluntário quanto à sua execução.
Deus vê e permite o pecado, mas não o causa.
Sua presciência não impõe o mal; apenas o inclui na ordem do bem maior.
A liberdade humana é uma forma de contingência dentro da necessidade divina.
Leibniz
distingue, com finura, a necessidade metafísica
da necessidade
moral.
A primeira é absoluta: diz respeito ao que não pode ser de outro modo — como as
verdades eternas da lógica e da matemática.
A segunda é condicional: refere-se ao que Deus escolhe como melhor, entre
possibilidades múltiplas.
O mundo que Ele cria é necessário moralmente, porque é o melhor, mas
contingente metafisicamente, porque poderia não existir.
A
liberdade humana participa dessa mesma estrutura:
O homem escolhe entre os possíveis, mas o faz sob a luz da razão.
A necessidade não suprime a liberdade, pois a liberdade verdadeira é a adesão
ao bem conhecido.
Ser livre não é poder fazer o contrário — é poder fazer o melhor.
A vontade má é, portanto, uma liberdade degradada: uso desordenado da potência
de escolher.
Deus
coopera com todos os atos, mas de modo diverso conforme o valor do ato.
No bem, Ele é causa eficiente e formal; no mal, apenas causa permissiva.
Permite o erro, porque quis a liberdade; e quis a liberdade, porque sem ela não
haveria amor.
Deus não quer o mal, mas quer o bem que pode nascer do mal — e esse bem é a
elevação da criatura pela escolha.
Assim
se restabelece a harmonia entre a Providência e a liberdade.
A vontade humana é causa real; mas sua eficácia é subordinada à causa primeira,
como o raio de luz ao sol que o envia.
Deus age em nós, mas não em nosso lugar.
Sua ação é o ser mesmo de nossa ação, não sua substituição.
A
concorrência divina é, pois, uma cooperação transcendente.
Sem ela, não agiríamos; com ela, agimos livremente.
A dependência ontológica do homem não anula sua autonomia moral, porque a
liberdade é precisamente a imagem de Deus na criatura.
No
fundo, a liberdade humana é o modo finito da liberdade divina.
Assim como Deus se determina por amor ao bem absoluto, o homem se determina —
quando age segundo a razão — por amor ao bem relativo que conhece.
A liberdade é a semelhança viva entre o Criador e o criado.
E
é por isso que Leibniz pode dizer:
“Deus
é a causa de todas as ações, mas o homem é a causa de suas determinações.”
Entre
a necessidade de Deus e a liberdade do homem não há contradição: há
participação.
A harmonia preestabelecida reconcilia o decreto eterno com o arbítrio
contingente, e faz do universo um conjunto de atos livres ordenados pela
Sabedoria infinita.
V — O
Pecado e a Justiça Divina
O
problema do pecado
é, para Leibniz, o ponto em que se cruzam a liberdade da criatura e a santidade
do Criador.
Se Deus é a causa universal de tudo o que existe, não poderia também ser causa
do mal moral?
E se não o é, como explicar que o mal subsista, a não ser por uma limitação de
sua onipotência?
A solução de Leibniz evita ambos os abismos: nem fatalismo, nem dualismo.
O
pecado nasce da liberdade criada, e a liberdade criada é
finita.
Deus dá ao homem o poder de escolher, mas não o determina sempre ao bem; pois,
se o determinasse, o homem deixaria de ser livre.
A vontade, sendo uma força viva, contém em si a possibilidade do desvio.
Essa possibilidade não é defeito da criação — é a condição mesma da moralidade.
Deus
conhece o pecado antes que ele exista, mas não o produz.
Sua ciência é visão eterna; Sua vontade é ato criador.
Ele vê o mal possível, mas escolhe um mundo em que esse mal, ainda que real,
concorra para um bem maior.
Assim, o pecado é previsto e permitido, não querido.
A permissão é a forma divina da paciência — o consentimento da Sabedoria que
sabe tirar ordem até da desordem.
A
justiça de Deus não se opõe à Sua bondade; é sua expressão.
Pois o mal, sendo desvio da ordem, pede reparação; e essa reparação é a
restauração da harmonia.
Deus pune, não por vingança, mas por amor à ordem que Ele mesmo estabeleceu.
A pena é medicinal, não cruel.
É correção, não condenação absoluta.
O
pecado, portanto, é uma ruptura na harmonia universal; mas o próprio ato de
justiça que o segue é o instrumento de sua reintegração.
Deus é justo porque é sábio, e é sábio porque é bom.
A justiça não é cólera, é restabelecimento do equilíbrio.
Nessa
perspectiva, o mistério da redenção aparece como a síntese suprema da teodiceia.
Cristo é a manifestação da justiça e da misericórdia reconciliadas.
A cruz é o ponto em que o mal moral é absorvido pelo bem divino — onde a culpa
humana se torna ocasião de graça.
Deus permite o pecado para poder perdoar, e o perdão é a vitória de Seu amor
sobre a necessidade da pena.
Leibniz
vê na encarnação o ato central da harmonia universal.
O Logos, que é razão eterna, entra na história para restaurar o equilíbrio
quebrado.
A ordem física e a ordem moral reencontram-se na economia da salvação.
O pecado introduz a dissonância; a redenção reestabelece a consonância.
Tudo é reintegrado na unidade pela mediação do Verbo.
Assim,
a justiça divina é, no fundo, a expressão da razão suficiente aplicada
ao domínio moral.
Deus não pune arbitrariamente: pune porque a ordem o exige, e essa ordem é o
reflexo de Sua própria natureza.
A misericórdia, longe de contradizê-la, é o seu cumprimento.
A graça não destrói a lei; a consuma.
A
teodiceia de Leibniz culmina, portanto, numa teologia da reconciliação.
Nada está fora da ordem, nem mesmo o pecado.
O mal moral, absorvido pelo perdão, torna-se ocasião de um bem mais alto: o
triunfo da caridade sobre a justiça cega, e da sabedoria sobre o acaso.
A
criação, a liberdade, o sofrimento e a culpa — todos esses mistérios convergem
para o mesmo fim: a glorificação de Deus e a beatitude da criatura.
O mal não é a última palavra do ser.
A última palavra é o bem — e o bem é Deus, razão de todas as razões, unidade de
todas as harmonias.
Capítulo VI — A Moral e o Destino Humano
I — A
Virtude e a Ordem Moral
Para Leibniz, a moral é a continuação natural da
metafísica.
O homem, sendo uma mônada consciente, não está isolado do universo; participa
da harmonia total.
Agir moralmente é agir de acordo com a
ordem do ser, e essa ordem é a razão mesma de Deus.
A virtude, portanto, não é convenção, mas
necessidade metafísica.
Toda ação boa é uma ação conforme à natureza do cosmos, isto é, conforme à
harmonia.
O mal moral, ao contrário, é ruptura dessa harmonia — é dissonância no grande
concerto da criação.
O bem não é apenas o útil ou o prazeroso: é o
que contribui para a perfeição do todo.
A moralidade mede-se pela consonância com o plano divino.
Assim como as leis da física exprimem a regularidade da matéria, as leis morais
exprimem a regularidade do espírito.
A ética é a física da alma.
A virtude, para Leibniz, consiste em amar a
ordem — isto é, em amar a Deus sob a forma de Sua sabedoria operante.
O verdadeiro moralista é o metafísico que compreendeu a unidade do real.
A consciência moral não é outra coisa senão a percepção interior da harmonia
eterna.
Fazer o bem é colaborar com o próprio Deus na sustentação do universo.
Essa visão confere à moral leibniziana uma
serenidade que a distingue das morais do medo ou do ascetismo.
O homem não é condenado a sofrer para ser justo; é chamado a compreender e a
agir conforme a razão.
A virtude é inteligência em ato, amor esclarecido, alegria disciplinada.
A sabedoria e a bondade se confundem.
II — A
Liberdade Prática e a Sabedoria
A liberdade teórica, que examinamos na
teodiceia, torna-se aqui liberdade
prática — poder de agir segundo o bem conhecido.
Leibniz distingue a liberdade física, que é a capacidade de agir; a liberdade
psicológica, que é o poder de deliberar; e a liberdade moral, que é o poder de
escolher o melhor.
Só esta última é digna do homem, pois é a imagem da liberdade divina.
Ser livre, portanto, não é poder fazer tudo,
mas poder fazer o que é racional.
A verdadeira liberdade é a adesão voluntária ao bem.
O homem que obedece à razão é livre; o que se entrega à paixão é escravo.
A sabedoria consiste em substituir o
impulso cego pela claridade da razão.
A ciência do bem e do mal, que em outros
sistemas conduz à dúvida ou ao remorso, conduz em Leibniz à confiança.
Pois o homem, sendo parte da ordem universal, encontra no próprio exercício da
razão a garantia de estar em harmonia com o Criador.
A moral não é imposição externa, mas revelação interna da lei divina.
Agir bem é agir segundo a ordem eterna; mas
compreender essa ordem é já um ato moral.
O sábio não precisa de mandamentos: sua consciência é sua lei.
A liberdade prática é a forma visível da sabedoria invisível.
E toda vez que o homem escolhe o bem, o universo inteiro se alegra — porque uma
de suas mônadas recupera o tom justo da harmonia.
III — O
Fim do Homem
O destino humano é a perfeição.
A alma foi criada para progredir infinitamente em conhecimento e em amor.
Deus não quer servos, mas colaboradores; não máquinas, mas inteligências livres
que compreendam Sua obra.
O fim último do homem é, portanto, participar
conscientemente da sabedoria divina.
A moral leibniziana é otimista porque é
teológica.
Tudo o que existe tende ao bem.
Mesmo o erro e o pecado entram na economia dessa ascensão, pois despertam a
alma para a consciência de sua vocação.
O homem que sofre e se interroga já está mais próximo da verdade do que aquele
que dorme na indiferença.
O progresso moral é, assim, uma forma de
redenção racional.
A alma sobe da ignorância à sabedoria como o universo sobe da confusão à ordem.
Cada ato de justiça, de amor ou de inteligência é um passo rumo à perfeição.
E a perfeição, para Leibniz, é a clareza
total da consciência diante de Deus.
Não há oposição entre o dever e a felicidade.
O dever é o caminho da felicidade, e a felicidade é o repouso do dever cumprido.
O homem virtuoso não sacrifica sua alegria — a purifica.
A lei moral é uma forma de alegria lúcida: ela liberta o homem da desordem
interior e o reconcilia com o todo.
IV — A
Felicidade Racional
A felicidade é o ponto culminante da moral e o
resumo de toda a filosofia de Leibniz.
Não é o prazer dos sentidos nem a fortuna exterior, mas a alegria da razão satisfeita — a paz do
espírito que compreende.
Ser feliz é perceber a ordem das coisas e consentir com ela.
O homem se atormenta porque vê fragmentos; o
sábio se alegra porque vê o conjunto.
A alegria racional nasce da contemplação do necessário e do reconhecimento de
que esse necessário é bom.
O mundo, para quem o compreende, é uma obra-prima; e viver conforme a razão é
viver conforme a arte do Criador.
A moral de Leibniz é, assim, uma ética da alegria.
Não promete paraísos fora da vida, mas convida o homem a fazer da vida o
próprio prelúdio do céu.
Quem age com retidão já participa da beatitude, porque toda retidão é eco da
sabedoria eterna.
A felicidade é o reflexo da harmonia divina na alma esclarecida.
Por isso, a virtude é alegre, e a alegria é
virtuosa.
A tristeza é sinal de desordem, e o desespero, de ignorância.
A sabedoria, ao contrário, é confiança.
O sábio não teme o futuro porque sabe que tudo o conduz ao bem.
A moral termina, portanto, na fé racional, e a fé racional floresce na paz.
Síntese
Final
A moral leibniziana é a ciência da alegria
ordenada.
O homem justo é o homem que pensa em harmonia com Deus e age segundo a luz que
compreende.
A virtude é música interior; a liberdade, sua execução; a felicidade, sua
ressonância.
E o destino humano é unir o saber e o amor até que o universo inteiro cante, em
uníssono, a sabedoria eterna que o criou.
Conclusão.
I — A Harmonia
Universal e a Felicidade Suprema
Toda
a filosofia de Leibniz converge para um mesmo princípio e um mesmo fim: a
harmonia universal.
Desde a metafísica da mônada até a teologia da graça, tudo se ordena para essa
unidade suprema onde a multiplicidade se reconcilia e o mal é transfigurado.
A harmonia é o elo invisível entre a física e a moral, entre a razão e a fé,
entre o ser e Deus.
Leibniz
não concebe o universo como uma soma de existências isoladas, mas como um organismo
espiritual.
Cada substância exprime o todo segundo sua perspectiva própria, e todas essas
expressões, diferentes mas concordes, compõem o concerto do real.
Nada está fora da ordem; nada é inútil.
Cada criatura é nota de uma melodia cósmica que só o ouvido divino percebe
integralmente.
Essa
harmonia não é mera coexistência; é correspondência viva.
Os mundos físico, moral e metafísico se refletem mutuamente.
O que é necessidade na natureza é liberdade na alma e sabedoria em Deus.
A mesma lei ressoa em todos os níveis do ser: a lei do equilíbrio, da
proporção, da finalidade.
A
harmonia universal não suprime o sofrimento nem o esforço — os integra.
As dissonâncias são aparentes; o mal, uma transição; o erro, um passo.
Tudo concorre, por vias diferentes, ao mesmo destino: a realização do bem
supremo.
Deus é o centro dessa totalidade viva, e a felicidade é a percepção dessa
unidade.
A
felicidade,
para Leibniz, não é prazer sensível nem repouso estático: é consciência
lúcida da ordem.
Ser feliz é compreender.
É reconhecer, no curso do mundo e na própria existência, a sabedoria do Criador.
A alegria não vem da posse das coisas, mas da visão de sua razão.
Assim como a harmonia é o ritmo da criação, a beatitude é o ritmo da
contemplação.
No
ser humano, a harmonia universal se torna interior.
A alma é uma imagem do cosmos; reencontrar a ordem em si é reencontrar o
reflexo de Deus.
O homem justo é aquele cuja vontade se ajusta à vontade divina, cuja liberdade
se harmoniza com a razão eterna.
A virtude é música moral; o santo é o músico da providência.
A
sabedoria, nesse sentido, é o coroamento da metafísica.
Compreender o universo como harmonia é já participar dela.
E participar dela é gozar antecipadamente da felicidade divina.
A visão beatífica não é outra coisa senão a percepção imediata da razão
suficiente de todas as coisas — a contemplação do Bem na totalidade do ser.
A
fé, a ciência e o amor reencontram-se nesse ponto.
A fé confia na harmonia antes de compreendê-la;
a ciência a descobre nas leis da natureza;
o amor a realiza na comunhão das vontades.
Essas três vias convergem na beatitude, que é a união da alma com a Razão
criadora.
A
harmonia universal é, pois, o estado final do cosmos e
o sentido último da história.
Tudo tende a ela: a matéria pela ordem física, o espírito pela ordem moral, e o
ser todo pela ordem divina.
O universo é o movimento da criação em direção à consciência plena de sua
própria beleza.
A felicidade suprema é essa consciência tornada luz.
O
que para nós é destino, para Deus é música.
E a música, em sua essência, é o símbolo da harmonia universal: múltiplas vozes
unidas por uma mesma medida.
Assim é o mundo para Leibniz — e assim é o fim da filosofia: transformar
a razão em contemplação e a contemplação em alegria.
II —
A Visão de Deus e o Fim do Conhecimento
A
harmonia universal culmina na visão de Deus, que é o
termo último de todo conhecimento e de toda existência.
Tudo o que o homem pensa, busca e realiza tende, consciente ou não, a esse fim.
Conhecer é aproximar-se da fonte da luz; e ver Deus é conhecer em plenitude.
Desde
a origem, a alma humana traz em si o desejo do absoluto.
Esse desejo é o sinal de sua origem e o penhor de seu destino.
Toda verdade que o espírito descobre, toda beleza que o coração pressente, são
reflexos dessa Verdade e dessa Beleza infinitas que o ultrapassam.
A ciência, a arte e a moral são apenas os degraus de uma ascensão que culmina
na contemplação pura.
Para
Leibniz, ver
Deus não é absorver-se Nele, como sonharam certos místicos, mas
compreender
a ordem eterna das coisas à luz de Sua razão.
O Criador não se perde na criação; a criatura não se dissolve no Criador.
Entre ambos há distinção e comunhão: distinção quanto ao ser, comunhão quanto à
verdade.
A visão beatífica é, portanto, a coincidência do saber finito com o saber divino
em um mesmo ato de clareza.
O
conhecimento humano, em sua marcha progressiva, é uma série de aproximações
dessa luz.
Cada descoberta, cada intuição, é um fragmento do saber divino tornado
acessível ao tempo.
O espírito progride, não acumulando dados, mas purificando sua percepção.
A plenitude do saber não está na multiplicidade de ideias, mas na transparência
do olhar.
Ver tudo em Deus — videre omnia in Deo — é a fórmula suprema da
ciência leibniziana e da teologia eterna.
Nesse
estado, o entendimento não raciocina mais; contempla.
A distinção entre sujeito e objeto se mantém, mas a oposição desaparece.
A alma vê o mundo em Deus e Deus no mundo, sem confundir nem separar.
É o reencontro da mônada com o Uno, não pela fusão, mas pela harmonia perfeita.
A
visão de Deus é também a realização plena da liberdade.
Pois o espírito, iluminado pela verdade absoluta, já não pode desejar senão o
bem.
A escolha cessa, não por constrangimento, mas por plenitude: não há mais
alternativas, porque nada há além da perfeição.
A liberdade, consumada na sabedoria, torna-se amor.
O
amor, de fato, é o ápice do conhecimento.
Na vida presente, o homem conhece por ideias e ama por fé;
na vida eterna, ele conhecerá por visão e amará por evidência.
O amor é a luz tornada calor, a verdade tornada presença.
Ver Deus é amá-Lo na mesma medida em que se O conhece.
A
felicidade suprema, portanto, não é simples gozo: é atividade
intelectual e moral perfeita, união da contemplação e da
vontade.
A alma bem-aventurada participa da vida divina, não apenas como espectadora,
mas como colaboradora da harmonia eterna.
Ela canta com Deus o canto que o universo inteiro entoa — o hino da Sabedoria
criadora.
Em
Leibniz, a escatologia se transforma em metafísica:
o fim dos tempos é o começo da ciência perfeita;
a eternidade não é repouso, mas inteligência em ato.
O céu é a harmonia tornada consciência.
E a visão beatífica é o cumprimento de todas as leis do ser — a transparência
total entre o mundo e Deus.
Assim
se encerra o círculo da filosofia leibniziana:
a razão começa pela dúvida e termina na adoração;
a ciência parte da medida e culmina no mistério;
o ser finito ascende, pela ordem e pela luz, até a unidade absoluta.
Em
Deus, tudo se explica e tudo se pacifica.
Ele é a Razão das razões, a Verdade das verdades, o Bem dos bens.
Conhecê-Lo é compreender tudo; amá-Lo é possuir tudo.
E o universo, visto dessa altura, é o espelho onde a Sabedoria contempla
eternamente Sua própria perfeição.
III —
Conclusão: A Alegria Racional e a Paz do Espírito
O
pensamento de Leibniz, em seu último alcance, é uma apologia da razão e
da alegria.
A razão, porque vê o universo como ordem e não como acaso;
a alegria, porque reconhece nessa ordem a marca da bondade divina.
A filosofia leibniziana é, por isso, a forma mais pura de otimismo
metafísico: não um entusiasmo ingênuo, mas a serenidade do
espírito que compreende.
A
sabedoria, segundo ele, consiste em ver todas as coisas sob o ponto de vista de
Deus — sub
specie aeternitatis.
Quem as vê assim não se perturba com o mal aparente, nem se desespera com a
dor, porque sabe que cada evento, por mais obscuro, tem sua razão e seu lugar
na harmonia universal.
A paz nasce dessa visão.
Não é passividade, mas adesão lúcida à ordem do real.
O homem sábio é aquele que consente em ser parte do plano divino, que aceita o
limite sem renunciar à perfeição.
Essa
paz, que a teologia chama beatitude, é a virtude mesma da inteligência.
Compreender é reconciliar-se.
Toda inquietude vem da ignorância — da percepção fragmentária das causas.
Mas, à medida que o olhar do espírito se eleva, o caos se ordena, o sofrimento
adquire sentido, e o destino se revela como caminho de sabedoria.
A
alegria
racional é o sentimento dessa revelação.
Não é emoção passageira, mas estado de equilíbrio interior.
O sábio se alegra não porque tudo lhe seja agradável, mas porque tudo é
inteligível.
A luz da razão dissipa o medo e faz do pensamento um ato de confiança.
Quem vê o mundo como harmonia não pode odiá-lo.
Leibniz
quis restaurar essa confiança perdida entre a fé e o entendimento.
Contra o ceticismo moderno e o pessimismo que a experiência do mal inspirava,
ele afirma a bondade essencial do ser.
O mundo não é ruína, é construção;
a história não é tragédia, é aprendizado;
a morte não é fim, é passagem.
Nada está perdido, porque nada é sem razão.
A
filosofia, para ele, é um ato de esperança.
Enquanto o saber humano busca leis, Deus é a Lei viva.
O destino do homem é conhecer e amar essa lei até o ponto em que o conhecimento
se torna louvor.
A razão é o caminho da fé, e a fé, o repouso da razão.
O círculo se fecha: o espírito parte da obscuridade, atravessa a dúvida,
alcança a ciência, e termina na contemplação — sapientia in pace.
A
alegria racional é, portanto, o eco humano da alegria divina.
Deus se regozija eternamente em Si mesmo, e o homem, ao compreender a ordem do
mundo, participa dessa alegria.
A beatitude é a consciência de que o bem triunfa, não por violência, mas por
necessidade;
que a verdade é eterna, ainda que ignorada;
e que o universo inteiro, desde a menor mônada até o mais alto ser, canta, em
sua linguagem própria, o hino da harmonia.
Assim
se encerra o sistema de Leibniz: uma metafísica que se converte em liturgia,
um cálculo que se transforma em oração.
A inteligência, iluminada pela razão, descobre na matemática do mundo o traço
da caridade divina.
A filosofia termina na paz do espírito — não na renúncia ao pensamento, mas em
sua consumação.
E,
no silêncio em que todas as dissonâncias se resolvem, o universo reencontra sua
voz:
A
voz da Sabedoria, que diz:
“Tudo é ordem, tudo é bem, tudo é luz — e Eu sou o princípio e o fim.”
LEIBNIZ
Clodius Piat
Tradução e estudo introdutório de Jardel
Almeida
Assistência
filosófica: Sophión
Epígrafe
“A
razão é o espelho de Deus;
o universo, sua harmonia visível.”
— G.
W. Leibniz, Monadologia
Nota do Tradutor
Esta
tradução tem caráter acadêmico e não comercial.
Foi elaborada com o propósito de tornar acessível ao leitor lusófono a
profundidade metafísica e teológica do pensamento de Clodius Piat sobre Leibniz.
Respeitou-se integralmente a estrutura e o estilo da obra original francesa,
conservando sua terminologia técnica e seu tom especulativo.
Não se pretendeu ornamentar o texto, mas tornar clara a ordem de ideias,
que é, em Leibniz, a própria ordem do ser.
Toda citação e conceito foram traduzidos com atenção à coerência interna do
sistema leibniziano — especialmente no que concerne à harmonia preestabelecida,
à teodiceia e à visão beatífica.
Tradução
finalizada por Jardel Almeida, com o acompanhamento
intelectual de Sophión, em 2025.
Frase de Encerramento —
Finis Operis
“No
silêncio em que todas as dissonâncias se resolvem,
o universo reencontra sua voz —
a voz da Sabedoria eterna,
que é a Razão e o Amor.”
FINIS OPERIS
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