Artigo Introdutório
Por que começar por
Sócrates
Ao
longo dos séculos, a filosofia foi sendo revestida por uma crosta de palavras,
sistemas e terminologias que, aos poucos, a afastaram do que a fez nascer: o
espanto diante do ser e o exame da alma. Quando decidi iniciar esta série de
traduções com Sócrates,
de A. E. Taylor, não foi por um apego arqueológico, mas por um retorno
necessário. Todo recomeço da filosofia passa por esse homem que nada escreveu
e, contudo, permanece como o primeiro escritor do espírito.
Não
busco em Sócrates o personagem clássico das escolas, mas o ponto axial da
história da consciência — o instante em que o logos desperta para si mesmo e se
pergunta pelo bem. Antes dele, o pensamento era cósmico; depois dele, tornou-se
moral. Sócrates é o nascimento da interioridade, o primeiro a colocar o homem
diante de sua própria alma como quem olha um espelho e pergunta: “que sou eu?”
Traduzir
esta obra de Taylor é, portanto, uma forma de reencontrar a pureza dessa
interrogação. Taylor, com rara sobriedade, restitui ao filósofo sua dimensão
humana e religiosa, distante das reconstruções escolásticas ou das interpretações
psicológicas modernas. Ele faz de Sócrates não apenas um personagem histórico,
mas um tipo de consciência — uma atitude. E é isso que me interessa preservar:
a atitude socrática como forma de vida, não como teoria.
Em
tempos em que a filosofia se reduz à técnica e a linguagem à utilidade,
retornar a Sócrates é relembrar que o pensamento nasce do amor e se consuma na
obediência à verdade. O diálogo socrático é, antes de tudo, um ato moral.
E, se cada tradução é também um testemunho, esta pretende ser o testemunho de
que ainda é possível pensar sem ruído, perguntar sem pressa, e morrer — como
ele — sem desespero.
Escolher
Sócrates como início é uma confissão: toda filosofia autêntica deve começar por
uma morte. Não a morte física, mas a morte da presunção, da opinião, do saber
vazio. Sócrates morre para que o logos renasça.
E é nesse sentido que sua figura inaugura, não um capítulo da história, mas o
próprio tempo do espírito.
Traduzir
Taylor foi, assim, menos um exercício filológico e mais um gesto de escuta.
Traduzo para que o silêncio da razão antiga se faça ouvir novamente.
Traduzo porque sinto que o mundo esqueceu o timbre moral da palavra “verdade”.
Traduzo porque o diálogo de Sócrates é a forma mais pura de resistência — não
contra os homens, mas contra o esquecimento.
Este
livro é, pois, o primeiro de uma série que pretende restaurar a linhagem viva
do pensamento: de Sócrates a Tomás, de Tomás a Piat, e de Piat ao presente.
Não se trata de um retorno arqueológico, mas de uma restauração espiritual.
Em Sócrates, reencontro a promessa da filosofia: o vínculo entre saber e
salvação.
A razão, quando fiel a si mesma, termina em oração. E se o filósofo ateniense
ignorava o nome do Cristo, já vivia, sem o saber, sob a sua luz.
Nota
sobre a Tradução e seu Fim Último
Esta
tradução foi realizada a partir da edição inglesa de 1932, publicada pela Peter
Davies Ltd., Londres, revisada com rigor textual e cotejada com as reimpressões
acadêmicas posteriores. O objetivo não foi apenas converter uma língua em
outra, mas restituir ao português o espírito moral da prosa inglesa de A. E.
Taylor — uma língua que pensa com clareza e acredita na razão como virtude.
Todo
cuidado foi tomado para preservar a cadência do autor sem violentar o ritmo
natural da língua portuguesa. Onde Taylor é seco, mantive a secura; onde se
eleva, deixei elevar-se; onde cala, não acrescentei palavra alguma. A tradução,
neste sentido, não é amplificação, mas fidelidade ao silêncio.
Seu
fim último é pedagógico e espiritual.
Pedagógico, porque deseja introduzir o leitor contemporâneo na origem moral da
filosofia — esse ponto em que pensar e viver eram ainda uma só coisa.
Espiritual, porque pretende restaurar a continuidade entre a filosofia e a
santidade do espírito racional: mostrar que o pensamento é, por natureza,
ascese, e que o homem, ao interrogar o bem, já participa de algo que o
transcende.
Este
livro foi traduzido ad mentem Socratis,
segundo o espírito do filósofo e não apenas segundo a letra de seus intérpretes.
É uma oferenda à memória do homem que ensinou que a sabedoria começa pela
confissão da ignorância e termina na obediência à voz interior — essa que, no
fundo de cada alma, ainda diz: “sê justo, mesmo que o mundo te condene.”
Tradução integral e estudo introdutório:
Jardel
Almeida
Assistência
filosófica:
Sophión
Edição:
Ad mentem Doctoris Angelici — 2025
ÍNDICE
GERAL - Socrates de A. E. Taylor (edição de 1932, Peter
Davies Ltd., Londres)
1. Introdução
2. A
Primeira Vida de Sócrates
3. A
Última Vida de Sócrates: Seu Julgamento e Morte
4. O
Pensamento de Sócrates
SÓCRATES
de
A. E. Taylor
(Tradução integral – Jardel Almeida / Assistência filosófica: Sophión)
Capítulo I – Introdução
A
figura de Sócrates domina todo o horizonte do pensamento grego posterior e, em
certa medida, o de toda a filosofia ocidental. É impossível compreender o
desenvolvimento da especulação helênica, ou mesmo da reflexão moral e religiosa
do mundo cristão, sem alguma referência à sua influência. Todavia, quando
buscamos saber quem foi o homem histórico que está na origem desse imenso
legado, logo nos deparamos com uma dificuldade singular: nenhuma personagem da
Antiguidade é tão conhecida e, ao mesmo tempo, tão envolta em incerteza.
Tudo
quanto possuímos de testemunhos sobre ele provém de fontes discordantes — e, em
certos aspectos, inconciliáveis. Platão, Xenofonte, Aristófanes e os autores
posteriores não nos oferecem o mesmo retrato, e mesmo entre os diálogos
platônicos é difícil distinguir o que pertence ao mestre e o que já é criação
do discípulo. Assim, o problema socrático, como se convencionou chamá-lo, é
antes de tudo um problema histórico e crítico.
Há
quem tenha procurado resolver tal questão reduzindo Sócrates a um símbolo: o
nome de um ideal pedagógico ou moral que o próprio Platão teria encarnado em
seu diálogo. Outros, ao contrário, esforçaram-se por reconstruir, com os poucos
fragmentos de informação, o homem real que viveu entre os atenienses do século
V a.C. e enfrentou a morte com serenidade diante do tribunal popular. Entre
esses extremos, a tarefa do historiador é discernir, com sobriedade, o que
pertence ao testemunho autêntico e o que é produto da elaboração literária.
O
primeiro dado seguro é que Sócrates não foi um filósofo no sentido técnico que
a palavra veio a ter depois. Nada escreveu; não fundou uma escola no sentido
formal; não transmitiu sistema algum. Sua filosofia foi uma vida. Seu método
não se exprimia em tratados, mas em conversas, nas praças e nos ginásios, com
jovens e cidadãos comuns. Sua sabedoria consistia em interrogar, não em
ensinar; em despertar a consciência, não em impor doutrina.
Essa
peculiaridade explica a divergência de seus retratos. Cada testemunha viu nele
o que mais lhe impressionou. Platão, discípulo ardente e genial, viu o profeta
da verdade racional e o transformou em porta-voz de sua própria metafísica.
Xenofonte, o soldado piedoso e prático, viu o moralista que exorta à moderação
e à piedade. Aristófanes, o poeta satírico, viu o excêntrico, o sofista que
confunde os jovens e subverte os costumes. A verdade provavelmente está em parte
em todos eles.
De
qualquer modo, o que importa para o historiador da filosofia não é tanto o
indivíduo isolado, mas o lugar que ocupa na evolução espiritual de sua época.
E, nesse ponto, não há dúvida: Sócrates é o ponto de inflexão decisivo da
inteligência grega. Com ele, o pensamento se desloca do cosmos para a alma, da
natureza para o homem. Antes dele, os filósofos buscavam o princípio das
coisas; depois dele, buscam o princípio do agir. Ele inaugura a reflexão moral
como centro da vida filosófica.
O
problema da verdade torna-se, com Sócrates, inseparável do problema da virtude.
Conhecer o bem é fazer o bem; ignorá-lo é cair no erro. Esse vínculo entre
saber e ação, entre intelecto e moralidade, constitui o eixo de toda a tradição
socrática e, por consequência, da filosofia moral ocidental. Mesmo quando seus
discípulos se afastam de sua doutrina, conservam a marca de seu espírito: a
convicção de que a vida humana é essencialmente uma questão de retidão interior
e que o maior dos males é a ignorância do bem.
A
influência de Sócrates não se mede apenas pela herança filosófica, mas também
pela força ética de seu exemplo. Sua morte foi a consagração de sua filosofia.
Recusando-se a salvar-se pela fuga, preferindo obedecer à lei injusta a violar
sua consciência, ele fez do pensamento uma forma de martírio. A filosofia,
desde então, traz o selo desse testemunho: pensar tornou-se um ato moral.
O
estudo de Sócrates, portanto, não é mera curiosidade erudita, mas um retorno às
origens da consciência moral do Ocidente. Para compreendê-lo, é necessário
reconstituir, tanto quanto possível, o seu meio, sua formação e o modo pelo
qual sua alma simples e severa reagiu à decadência espiritual de Atenas. É a
isso que se dedica o presente livro.
Capítulo
II – A Primeira Vida de Sócrates
Pouco
se sabe, com certeza, sobre a juventude e a formação de Sócrates, e o que
possuímos é frequentemente de segunda mão. As fontes diretas são escassas, e os
testemunhos antigos, mesmo quando sinceros, refletem diferentes intenções e
contextos. Ainda assim, alguns fatos essenciais permitem entrever a figura real
que se ocultava sob as lendas e idealizações posteriores.
Sócrates
nasceu por volta do ano 469 antes de Cristo, no demos de Alopece, um distrito
de Atenas, filho de Sofronisco, escultor ou pedreiro, e de Fenareta, parteira.
É significativo que ambos os ofícios paternos — o do artesão e o da parteira —
reapareçam, transformados, na vocação filosófica do filho: a escultura
espiritual e a arte de fazer nascer ideias. Essa correspondência simbólica não
escapou nem aos antigos nem aos modernos, e talvez explique, melhor do que
qualquer genealogia nobre, o caráter concreto e humano da filosofia socrática.
Não
há indício de que Sócrates tenha recebido educação excepcional. Como os jovens
de sua condição, passou pelo ensino comum dos ginásios, estudou música, poesia
e ginástica, e conheceu, provavelmente, os rudimentos de geometria e astronomia
então em voga. É possível que tenha frequentado, por algum tempo, os círculos
dos chamados “filósofos da natureza”, como Anaxágoras, cuja doutrina do Nous
– a mente ordenadora do universo – exerceu profunda influência sobre o espírito
ateniense. Contudo, é mais provável que o interesse de Sócrates por tais
especulações tenha sido breve, pois a sua inclinação natural o levava não ao
estudo dos astros, mas ao exame da alma.
Nada
sugere que, na juventude, tenha aspirado a ocupar posição pública. Viveu
modestamente, e permaneceu pobre toda a vida, não por negligência, mas por
princípio. Era indiferente ao luxo, desprezava a riqueza e considerava a
virtude a única posse inviolável. As anedotas sobre sua frugalidade são
numerosas, e, embora muitas possam ter sido adornadas pela imaginação
platônica, todas concordam em um ponto: sua vida foi uma demonstração viva de
autodomínio e simplicidade.
Na
maturidade, serviu como hoplita nas campanhas de Potideia, Delium e Anfípolis,
mostrando coragem exemplar. Platão e Xenofonte relatam que sua conduta militar
foi irrepreensível, que suportava a fadiga e o frio com serenidade, e que
salvou a vida de Alcibíades em combate. O soldado e o filósofo se confundem,
como se o mesmo espírito que enfrentava o inimigo com calma fosse o que mais
tarde enfrentaria o veneno sem perturbação.
É
durante esses anos que começa a formar-se a fama do “estranho ateniense”.
De aspecto rude, rosto largo, olhos penetrantes e olhar fixo, Sócrates não
correspondia ao ideal estético da Grécia clássica. Aristófanes o caricatura
como um homem grotesco, de nariz achatado e lábios grossos. O contraste entre a
feiura exterior e a beleza moral interior tornava-o ainda mais notável. Ele
próprio reconhecia, com humor, que sua aparência era a de um sátiro, mas
acrescentava que o sátiro, na tradição dionisíaca, era símbolo da sabedoria
disfarçada sob a máscara da rusticidade.
Durante
o período de maturação de seu pensamento, Atenas atravessava a crise mais
profunda de sua história. O esplendor de Péricles dera lugar à guerra, à
corrupção política e ao ceticismo dos sofistas. A confiança antiga na cidade e
em seus deuses desmoronava. O culto da vitória e do prazer substituía o culto
da justiça e da medida. Nesse ambiente, Sócrates surge como um homem isolado,
que, sem ser profeta nem reformador, sente-se chamado a restaurar, pelo diálogo
e pela consciência, o sentido do bem.
O
testemunho dos contemporâneos é unânime em reconhecer sua originalidade. Ele
não ensinava como os sofistas, mediante discursos preparados e pagos.
Interrogava, provocava, conduzia o interlocutor a descobrir por si mesmo a
verdade. Sua sabedoria consistia em nada afirmar de modo dogmático, mas em
conduzir os outros ao reconhecimento de sua própria ignorância. Essa ironia,
que muitos confundiam com escárnio, era, na verdade, o instrumento de uma
purificação interior.
Entre
os jovens que o cercavam encontravam-se Alcibíades, Críton, Xenofonte e, mais
tarde, Platão. Todos, de modos diversos, testemunharam o mesmo magnetismo
moral. Sócrates não buscava formar discípulos, mas homens livres; não impunha
doutrinas, mas despertava consciências. Sua vida inteira foi um diálogo. Ele
fazia filosofia nas ruas, nos pórticos, nos banhos, nos mercados — onde quer
que houvesse alguém disposto a pensar.
O
amor pelo exame da alma humana era tão intenso que negligenciava os assuntos
domésticos. Casou-se com Xantipa, cuja impaciência e temperamento forte
tornaram-se proverbiais. Os antigos, com humor cruel, gostavam de imaginar o
sábio suportando os acessos da esposa com paciência estoica. Mas há razão para
crer que essa caricatura é exagerada: o matrimônio não lhe impediu de viver
serenamente, e seu testemunho sobre a virtude doméstica sempre foi moderado e
respeitoso.
A
consciência religiosa de Sócrates é outro traço essencial de sua juventude.
Desde cedo, acreditava ouvir uma voz interior — o daimonion
— que o advertia sempre que se dispunha a agir de modo errado. Essa voz não lhe
ditava o que fazer, mas o que evitar. Era, por assim dizer, a forma mística de
sua consciência. Muitos atenienses o julgaram supersticioso; outros, blasfemo.
Ele mesmo via nessa voz um sinal da presença divina na alma, uma comunicação
direta entre o homem e o Deus que governa o universo com sabedoria e bondade.
Assim,
sua juventude foi a preparação silenciosa para o destino que o aguardava.
Enquanto a cidade se entregava às disputas políticas e aos prazeres fáceis,
Sócrates consolidava em si uma forma de vida que unia a pureza moral à busca
intelectual. Seu ideal não era o êxito, mas a coerência. E quando, anos depois,
o tribunal popular o condenou por corromper a juventude, foi precisamente essa
juventude — sedenta de verdade e não de sofismas — que ele havia libertado da
corrupção.
Ao
fim dessa primeira fase de sua vida, Sócrates já se tornara uma figura
singular: o homem mais livre de Atenas, o mais pobre e, ao mesmo tempo, o mais
temido.
Os sofistas o invejavam, os políticos o desprezavam, os jovens o seguiam.
Ele caminhava pelas ruas descalço, de rosto sereno, sempre pronto a conversar,
como se o mundo inteiro fosse sua escola e a alma humana, o seu templo.
Capítulo
III – A Última Vida de Sócrates: Seu Julgamento e Morte
A
segunda metade da vida de Sócrates é inseparável do declínio político e moral
de Atenas. Quando a Guerra do Peloponeso terminou com a derrota da cidade, o
ideal cívico que sustentara a antiga democracia entrou em colapso. Os homens
perderam a fé na virtude pública e substituíram o amor à pátria pelo culto do
poder e da retórica. Nesse ambiente fatigado e incrédulo, o velho filósofo,
fiel à sua missão de examinar as almas, tornou-se um escândalo vivo.
Durante
anos, suas interrogações haviam exposto a ignorância dos que se julgavam sábios
e revelado a incoerência moral dos poderosos. Não surpreende, portanto, que, quando
a cidade buscou um culpado para os seus males, tenha encontrado em Sócrates um
símbolo conveniente. Ele era o homem que ousava pôr em dúvida a sabedoria dos
magistrados, a piedade dos sacerdotes e a prudência dos oradores. Sua atitude,
embora pura, parecia subversiva: ele ensinava que a consciência está acima das
leis humanas.
As
acusações formais movidas contra ele — introduzir novos deuses e corromper a
juventude — tinham um pretexto religioso, mas um fundamento político. Ao
associar-se a Alcibíades e Crítias, ambos figuras turbulentas da vida
ateniense, Sócrates tornara-se, aos olhos de muitos, um suspeito. Os anos do
governo dos Trinta Tiranos, dos quais Crítias foi um dos chefes, agravaram esse
sentimento. Embora Sócrates nunca tenha participado de seus atos, sua amizade
anterior com o tirano foi usada como argumento contra ele.
O
próprio Xenofonte narra que, certa vez, os Trinta ordenaram a Sócrates que
prendesse Leão de Salamina, homem inocente, para ser executado. Ele recusou-se,
dizendo que preferia obedecer à justiça e aos deuses do que a um governo
injusto. Esse episódio bastaria para mostrar de que lado estava sua lealdade.
No entanto, quando a democracia foi restaurada, a lembrança de seus antigos
vínculos bastou para torná-lo alvo de suspeita.
As
acusações foram apresentadas em 399 a.C. por Meleto, poeta obscuro; Ânito,
político influente e defensor dos artesãos; e Lícon, orador profissional. O
teor formal da denúncia era simples: “Sócrates é culpado de não reconhecer os
deuses que a cidade reconhece, de introduzir novas divindades e de corromper os
jovens.” Por trás dessas palavras, havia o ressentimento da classe política e o
medo dos espíritos livres.
O
processo, conforme o costume ateniense, foi conduzido por um júri popular de
quinhentos cidadãos. Sócrates compareceu diante deles sem temor, recusando
qualquer apelo emocional. Sua defesa, preservada no diálogo Apologia,
de Platão, é um dos mais altos monumentos da razão e da consciência moral.
Longe de tentar agradar aos juízes, ele os instrui. Declara que sua missão foi
ordenada por Deus e que preferiria morrer a renunciar a ela. “Cidadãos
atenienses”, diz ele, “eu vos honro e amo; mas obedecerei antes a Deus do que a
vós. Enquanto tiver fôlego, não deixarei de filosofar, de vos exortar e de
dizer a cada um: ó homem, não te envergonhas de cuidar das riquezas e da
reputação, mas não te importas com a alma que deve ser tão melhor quanto mais
justa e sábia for?”
Esse
tom de serenidade e ironia percorre todo o discurso. Ele não se defende; educa.
Não implora piedade; dá testemunho. Recusa-se a adular o júri, a trazer os
filhos para comover os juízes, ou a renegar suas palavras. A sua apologia é uma
profissão de fé na razão e na ordem divina. Quando o veredito é pronunciado —
culpado, por pequena maioria —, ele reage com o mesmo humor tranquilo: “Muitos
outros antes de mim foram condenados injustamente, e muitos depois o serão. A
mim, basta saber que não posso fazer o mal a ninguém, mesmo se o mal me for
imposto.”
Na
segunda fase do julgamento, quando a lei ateniense exigia que o acusado
propusesse sua própria pena, Sócrates, sorrindo, sugere que, em vez de punição,
lhe fosse dado sustento vitalício no Pritaneu, como benfeitor público. Tal
resposta, ao mesmo tempo irônica e sublime, provocou indignação entre os
juízes. Por uma diferença um pouco maior de votos, foi sentenciado à morte por
cicuta.
Durante
os trinta dias que se seguiram, enquanto o navio sagrado de Delos estava
ausente, a execução foi suspensa. Sócrates permaneceu na prisão, conversando
com amigos e discípulos. Platão descreve esses dias no Fédon,
com simplicidade tocante. O filósofo discute serenamente a imortalidade da
alma, raciocina sobre a justiça de aceitar a pena e consola os que choram por
ele. Quando Críton lhe propõe a fuga, ele responde que seria indigno violar as
leis que sempre respeitou. “Uma vez que a cidade me julgou, devo obedecer; se
ela me destrói injustamente, a injustiça não é minha.”
No
último dia, ao amanhecer, seus discípulos o encontraram calmo, lavando-se e despedindo-se
da esposa e dos filhos. Quando o oficial entrou com o veneno, ele o tomou sem
hesitação, pedindo apenas que não se esquecessem de sacrificar um galo a
Esculápio. As últimas palavras, simples e misteriosas, significam que a morte é
cura — libertação da alma do corpo. “Devemos um galo a Esculápio”, disse, “não
o esqueçais.”
Assim
morreu Sócrates, aos setenta anos, o mais sábio e o mais justo dos homens
gregos. Sua morte foi recebida com espanto e remorso. Alguns dos que haviam
votado por sua condenação arrependeram-se publicamente. O Estado, tempos
depois, honrou sua memória. Mas nenhuma reabilitação oficial pôde apagar o
significado espiritual daquele ato: Atenas havia condenado a própria
consciência que a fazia grande.
A
morte de Sócrates marca um ponto sem retorno na história da filosofia.
Antes dele, pensar era um privilégio dos curiosos; depois dele, tornou-se dever
dos justos. A filosofia passou a ter, para sempre, uma dimensão moral e
religiosa.
O mártir da razão mostrou que a fidelidade à verdade é mais sagrada que a
obediência à opinião. Sua serenidade diante da morte não foi bravura estóica,
mas confiança num princípio divino que habita no interior do homem.
Platão
transformou esse acontecimento em símbolo do destino da alma racional.
No Fédon,
o mestre morre como quem desperta; no Banquete, é o amor ao bem
que o conduz à imortalidade; na República, sua figura
torna-se modelo do justo perseguido pelo mundo. A posteridade cristã verá nele
uma figura profética, o precursor que morreu pelo logos antes que o Logos se
fizesse carne.
E,
desde então, nenhum pensador pôde escapar à sua presença.
Ele é o paradigma do filósofo: aquele que, sabendo que nada sabe, ousa morrer
pelo que julga verdadeiro.
Se o mártir cristão morre por fé, o mártir socrático morre por razão.
Ambos testemunham a mesma lei divina, expressa de modo diferente: a verdade é
mais poderosa que a morte.
Capítulo
IV – O Pensamento de Sócrates
Ao
tentar compreender o pensamento de Sócrates, é preciso lembrar que ele nada
escreveu. A sua filosofia, como sua vida, pertence inteiramente à oralidade —
ao diálogo vivo, ao confronto de almas. Assim, o que chamamos de “doutrina
socrática” é uma reconstrução feita a partir dos testemunhos de outros:
principalmente Platão e Xenofonte, e, em menor grau, Aristóteles e os cômicos
de seu tempo. Cada um desses espelhos deforma de modo diverso o rosto original,
e só a leitura comparada permite entrever a unidade profunda que lhes serve de
fundamento.
O
primeiro traço característico é o intelectualismo moral.
Sócrates acreditava que a virtude é conhecimento. Essa afirmação, simples e
aparentemente paradoxal, resume sua concepção inteira da alma humana. O mal,
para ele, é fruto da ignorância; ninguém faz o mal voluntariamente, pois quem
conhece o bem o escolhe necessariamente. A fraqueza moral é, portanto, erro
intelectual. O homem peca porque se engana acerca do que é verdadeiramente bom
para ele. A tarefa da filosofia é dissipar essa ilusão.
Essa
doutrina não é ingênua, como às vezes se supôs. Ela nasce da experiência de que
o ser humano age sempre sob a forma do bem. Mesmo aquele que escolhe o vício o
faz porque o julga, erroneamente, fonte de prazer ou vantagem. Logo, reformar o
homem é esclarecer sua inteligência. A virtude é o estado da alma que vê claramente;
o vício é cegueira. O método socrático — a dialética interrogativa — é o
processo de curar essa cegueira.
Daí
o segundo ponto essencial: o método da ironia e da maiêutica.
Sócrates não transmite saber; ele desperta. Sua ironia consiste em fingir ignorância
para obrigar o interlocutor a expor as próprias contradições. Através das
perguntas, ele conduz o espírito à confissão de sua ignorância, primeiro passo
para o conhecimento verdadeiro. Esse processo, que ele compara à arte da
parteira, visa fazer nascer as ideias adormecidas na alma. Não há ensino
verdadeiro senão aquele que faz o discípulo parir a própria verdade.
O
resultado desse método é duplo: moral e intelectual. Moral, porque a confissão
da ignorância destrói a vaidade e prepara a humildade. Intelectual, porque
conduz à definição. O que o sofista multiplicava em discursos, Sócrates reduzia
a uma pergunta: “Que é isso?”
Ele buscava definições universais — do justo, do belo, do bem — porque
acreditava que somente o universal dá solidez à vida moral. Sem definições, não
há ciência; sem ciência, não há virtude. Assim, a ética socrática é inseparável
de uma lógica nascente: a busca do conceito é o fundamento do agir reto.
Há,
nesse esforço, uma fé implícita na racionalidade do real.
Sócrates não duvida de que o bem pode ser conhecido porque acredita que o mundo
é ordenado por um princípio inteligente. Por isso, a sua moral é inseparável da
sua teologia.
Ele fala frequentemente de Deus — não no plural dos poetas, mas no singular dos
filósofos. Esse Deus é bom, sábio e providente; rege o universo com justiça, e
nada faz por acaso. “Não crês, Sócrates”, pergunta Xenofonte, “que os deuses
cuidam dos homens?”
E ele responde: “Cuidam, sim, e de modo particular daquele que é bom.”
Essa
fé racional, profundamente religiosa e, ao mesmo tempo, estranha ao mito, é
talvez a nota mais original de seu pensamento. Não é a religião cívica dos
templos, nem a religião dos mistérios. É a religião da consciência. Deus fala
no interior, e sua voz é a medida do bem. O daimonion de Sócrates, que o
advertia contra o erro, não é espírito tutelar, mas símbolo da presença divina
no coração humano. É a forma interior da providência.
Daqui
brota uma consequência decisiva: a união entre piedade e razão.
Ao contrário dos sofistas, que viam a religião como convenção, Sócrates a
considerava expressão da ordem moral do universo. Crer em Deus é reconhecer que
a justiça é real.
Assim, longe de ser incrédulo, ele é o mais piedoso dos homens; mas a sua
piedade é esclarecida. Ele ora pouco, mas pensa muito. Sua prece é um ato de
conhecimento. Quando pede aos deuses “apenas o bem”, é porque sabe que o bem é
uma só coisa com a verdade.
A
filosofia, portanto, é, em Sócrates, um caminho de purificação da alma.
O sábio é aquele que reduz a vida ao essencial, que domina as paixões, que
busca o bem pelo bem. Essa moral austera, porém serena, distingue-o tanto dos
ascetas quanto dos hedonistas. Ele não despreza o corpo, mas o subordina ao
espírito; não condena o prazer, mas o mede pela razão. A virtude é harmonia,
não negação.
O
ideal socrático é a unidade interior.
O homem justo é aquele em quem não há conflito entre o saber e o querer.
A ciência do bem e a vontade do bem são uma só coisa.
Por isso, a educação é a mais alta das obras humanas: ela é o esforço de tornar
a alma consciente de si, de ordená-la segundo a verdade. Nessa perspectiva, a
cidade justa é apenas a projeção exterior da alma justa.
Muitos
estudiosos modernos viram nessa moral uma limitação.
Dizem que ela ignora a fraqueza humana, que desconhece o drama da vontade
dividida. É verdade que Sócrates não conheceu o pecado no sentido teológico.
Mas é igualmente verdade que ele deu à filosofia algo que nenhuma teologia
poderia substituir: a certeza de que a virtude é inteligível, que o bem não é
mistério inacessível, mas luz que se deixa ver por quem purifica o olhar.
A
religião da razão, que ele encarnou, preparou o caminho da fé da graça.
A filosofia cristã não destruiu Sócrates; o assumiu.
A obediência à voz interior tornou-se obediência ao Espírito Santo; a
purificação pela razão tornou-se conversão pela caridade.
Entre o filósofo que morre pelo logos e o Verbo que morre pelos homens, há
continuidade, não oposição.
É
por isso que o pensamento de Sócrates nunca envelhece.
Enquanto houver homens que busquem o bem, que duvidem da aparência e
interroguem a própria alma, o espírito socrático estará vivo.
A filosofia pode mudar de língua, de método e de horizonte, mas o seu núcleo
permanece o mesmo: o exame de si, a fidelidade à consciência e a certeza de que
viver bem é pensar retamente.
Tal
é a herança do homem que nada escreveu, mas cuja palavra não se apagou.
O mundo que o condenou não sabia que, ao fazê-lo, libertava uma força que o
ultrapassaria.
Desde então, toda filosofia que começa pela admiração e termina pela virtude é,
de algum modo, discípula de Sócrates.
Clodius Piat
— Sócrates
(Coleção “Les Grands Philosophes”, Paris, Félix
Alcan, 1897)
Prefácio
Justificação da obra: o método moral e teológico
aplicado ao estudo de Sócrates. O autor explica que sua intenção é mostrar em
que medida o pensamento socrático preparou o advento da verdade cristã.
Primeira
Parte — A Vida de Sócrates
Capítulo I — O Meio Histórico e Intelectual
- Atenas no século V a.C.
- A crise da religião grega.
- Os Sofistas e a dissolução da moral tradicional.
- A juventude ateniense e a busca de um novo ideal de sabedoria.
Capítulo II — As Fontes
- Platão, Xenofonte e Aristófanes.
- Valor comparativo dos testemunhos.
- O problema histórico de Sócrates: realidade e idealização.
Capítulo III — A Personalidade de Sócrates
- O tipo moral e religioso do filósofo.
- Ironia e missão.
- O “daimonion” e a consciência moral.
- A piedade socrática.
Capítulo IV — O Processo e a Morte de Sócrates
- As causas da acusação.
- A Apologia.
- O sentido do martírio socrático.
- Sócrates como mártir da consciência.
Segunda
Parte — A Doutrina de Sócrates
Capítulo I — O Método Socrático
- A ironia e a maiêutica.
- A busca das definições.
- O caráter moral da dialética.
- O nascimento do espírito filosófico.
Capítulo II — Ciência e Virtude
- A ignorância como ponto de partida.
- O saber como condição da virtude.
- Intelectualismo moral.
- A limitação do método socrático.
Capítulo III — O Deus de Sócrates
- O “daimonion” e a voz interior.
- Monoteísmo e Providência.
- O Deus de Sócrates e o Deus de Abraão.
- A religião natural e a lei moral.
Capítulo IV — A Moral Socrática
- A noção do bem.
- O domínio de si.
- A alma e sua superioridade sobre o corpo.
- Sócrates e a santidade filosófica.
Terceira
Parte — A Influência de Sócrates
Capítulo I — Sobre Platão
- Continuidade e transfiguração.
- O idealismo e a alma socrática.
Capítulo II — Sobre os Cínicos e os Estóicos
- O moralismo prático.
- A virtude autônoma.
Capítulo III — Sobre o Cristianismo
- A afinidade moral entre Sócrates e o Cristo.
- Sócrates como precursor involuntário da revelação.
Capítulo IV — Julgamento Final sobre Sócrates
- Limites da sabedoria pagã.
- Grandeza moral e insuficiência teológica.
- A convergência entre razão e fé.
Conclusão
Geral
A missão de Sócrates na história da filosofia:
restaurar o homem moral, abrir o caminho à verdade interior e preparar o
advento da fé.
Prefácio
(Tradução
integral – Clodius Piat, Socrate)
Há
figuras na história do pensamento humano que parecem ter sido colocadas pela
Providência como marcos luminosos no caminho da verdade. Elas não apenas
falaram à sua época, mas falaram a todas as idades; e, mesmo através dos
séculos, suas vozes continuam a ecoar no coração dos homens.
Entre essas figuras, nenhuma talvez exerceu influência mais pura e mais fecunda
do que Sócrates. Ele não fundou uma escola no sentido comum da palavra; não
deixou livros, nem sistema. E, no entanto, ele é, por excelência, o mestre do
pensamento moral.
Há
em Sócrates algo de misterioso e quase sagrado. Viveu entre os gregos, mas não
pertenceu inteiramente à Grécia. Enquanto seus contemporâneos se abandonavam à
sensualidade, à retórica e à superstição, ele buscava na consciência do homem a
voz interior do divino. Sua filosofia é, antes de tudo, uma conversão: ele
reconduziu a alma ao domínio de si mesma.
O
que me propus neste estudo não é oferecer um comentário erudito sobre os
diálogos de Platão, nem uma investigação crítica sobre a autenticidade dos
testemunhos. Desejo, acima de tudo, fazer ressaltar o espírito de Sócrates, o
sentido íntimo de sua missão. O interesse principal não reside tanto no que ele
pensou, mas no que ele foi: um exemplo.
Eis
o ponto essencial: Sócrates é uma das manifestações mais puras da razão natural
em busca da verdade moral. Ele representa a consciência humana elevada ao seu
mais alto grau de lucidez antes do advento da graça. Assim como João Batista
foi o precursor de Cristo na ordem da revelação, Sócrates o foi na ordem da
filosofia.
Esta
analogia, longe de ser uma metáfora piedosa, repousa sobre uma observação
profunda: o filósofo de Atenas preparou, pela purificação da razão, o advento
de uma fé purificada. Ele não conheceu o Deus vivo, mas O pressentiu. Falou
d’Ele sem nomeá-Lo. Obedeceu-Lhe sem o conhecer. E, morrendo por fidelidade à
voz interior, deu à humanidade o primeiro exemplo do martírio da consciência.
O
estudo de Sócrates não é, pois, apenas uma curiosidade histórica; é um
ensinamento para o homem moderno. Vivemos em uma época em que a inteligência
tende a se separar da moral, e em que a ciência parece querer substituir a
sabedoria. Retornar a Sócrates é reencontrar o ponto de equilíbrio, o eixo que
reconcilia o saber com o bem.
A
filosofia que nasce com ele não é uma especulação fria: é uma conversão da
alma. A palavra “conhece-te a ti mesmo” resume toda uma revolução interior.
Pois conhecer-se é reconhecer, em si, o limite da criatura e a presença do
divino.
Ao
compor este volume, procurei, portanto, fazer reviver, não o Sócrates dos
filólogos, mas o Sócrates vivo — aquele cuja voz ainda ressoa como uma censura
à nossa indiferença e como um chamado à pureza do espírito.
Que
este livro possa, de algum modo, ajudar a alma a reencontrar o caminho da
sabedoria, não pela erudição, mas pela luz interior; não pela curiosidade, mas
pela verdade.
Primeira
Parte — A Vida de Sócrates
Capítulo I – O Meio
Histórico e Intelectual
Para
compreender Sócrates, é necessário compreender Atenas. Nenhum homem se forma
fora de seu tempo; e, se há espíritos que parecem transcender a época em que
vivem, é porque nela encontraram o ponto de resistência contra o qual puderam
medir a força de sua alma. Assim foi Sócrates em meio à Grécia decadente.
O século
de Péricles havia sido, para Atenas, um momento de esplendor inigualável. A
arte, a literatura e a política haviam atingido o auge de seu refinamento. Mas
esse mesmo esplendor escondia já os sinais da decomposição interior. O culto da
beleza degenerava em vaidade; a liberdade transformava-se em demagogia; a
religião, em cerimônia exterior. A alma grega, fascinada pelo jogo das palavras
e das aparências, perdia o sentido do verdadeiro e do justo.
Nesse
ambiente, surgem os sofistas — filhos
legítimos do racionalismo e da incredulidade. Proclamando-se mestres da
sabedoria, não buscam a verdade, mas o êxito. Ensinam a arte de persuadir, não
a arte de ser. Tornam o discurso uma arma e a razão, um instrumento de poder. O
bem e o mal já não têm natureza própria; são convenções úteis ou nocivas
conforme a ocasião. A virtude converte-se em habilidade, e o espírito grego,
outrora viril, amolece sob o império da retórica.
Entretanto,
sob essa corrupção do pensamento, algo ainda resiste. A tradição religiosa,
embora abalada, não se extinguiu. Os templos permanecem, as festas continuam, e
os nomes dos deuses ainda ressoam nos juramentos. Mas o coração do homem já não
crê verdadeiramente. O mito não persuade, e a filosofia nascente, privada de um
princípio moral, não tem força para substituir o antigo culto.
É
então que surge Sócrates, o homem do retorno interior. Ele
não vem oferecer uma nova cosmologia, nem substituir um panteão por outro. Vem
restaurar no homem a consciência do bem. Sua revolução é invisível e profunda:
desloca o eixo do saber, conduzindo-o do céu e da natureza para a alma e a
moral.
Atenas,
acostumada às exibições brilhantes dos sofistas, vê aparecer, nas praças e nos
ginásios, esse homem de aspecto simples, de rosto sereno e olhar penetrante,
que não cobra lições, mas interroga. Ele não se propõe a ensinar, mas a fazer
nascer. Seu verbo não é o de um mestre, mas o de uma parteira da verdade.
O
contraste entre Sócrates e seu tempo é absoluto. Ele prega a moderação entre os
excessos da liberdade democrática; a verdade interior contra a eloquência
vazia; a obediência à consciência contra as opiniões da multidão. Onde os
outros buscam brilho, ele busca clareza; onde os outros procuram glória, ele
procura justiça.
A
originalidade de Sócrates não consiste em ter descoberto novas doutrinas, mas
em ter reconduzido o pensamento à sua fonte moral. Ele ensina aos homens que a
sabedoria não é uma ciência, mas uma disposição da alma; que o verdadeiro saber
é o saber do bem, e que ninguém pode ser virtuoso sem antes conhecer o que é a
virtude.
Essa
volta ao interior é a maior revolução espiritual do mundo antigo. Pois se até
então o homem buscava fora de si o segredo do universo, Sócrates ensina-lhe que
o primeiro universo é o próprio coração humano. A inscrição délfica,
“Conhece-te a ti mesmo”, torna-se, em sua boca, o princípio fundador da
filosofia moral.
Assim
se prepara, sob as ruínas da religião antiga e da sofística triunfante, o
nascimento de uma nova ordem de sabedoria. O espírito grego, fatigado de suas
ilusões, reencontra em Sócrates a pureza do pensamento e a dignidade do dever.
Capítulo
II – As Fontes
Tudo
o que sabemos de Sócrates provém de três testemunhas: Platão,
Xenofonte
e Aristófanes.
Nenhuma delas é imparcial, mas todas, por sua divergência, contribuem para
fazer sobressair a verdade. É pelo confronto desses três espelhos, deformantes
cada um à sua maneira, que conseguimos entrever o rosto do verdadeiro Sócrates.
Platão, antes de tudo, é o discípulo apaixonado.
Nada viu em seu mestre que não quisesse transfigurar. O Sócrates dos Diálogos
não é apenas o homem de Atenas, mas o símbolo vivo da filosofia nascente.
Platão não pretendeu pintar o retrato fiel de seu mestre; quis torná-lo o
porta-voz de sua própria doutrina. Assim, nas primeiras obras — como o Apologia,
o Criton,
o Laques
ou o Charmides
— encontramos um Sócrates ainda humano, modesto e interrogativo. Mas, nas obras
da maturidade — como o Banquete, o Fédon
e a República
— já vemos o Sócrates platônico, quase profético, intérprete das ideias
eternas.
É
preciso, portanto, discernir cuidadosamente entre o Sócrates histórico
e o Sócrates
ideal. O primeiro é o homem de Atenas, moralista e religioso; o
segundo é o símbolo do espírito, o precursor da metafísica das ideias. E se
Platão, ao idealizá-lo, o desfigurou, também é verdade que foi ele quem nos
conservou sua grandeza interior. Sem Platão, Sócrates teria sido esquecido; por
Platão, ele se tornou imortal.
Xenofonte, ao contrário, é o discípulo prático, o
homem de ação que admirava no mestre menos o filósofo que o moralista. Seu Memoráveis,
sua Apologia,
e o pequeno tratado Econômico, nos mostram um Sócrates de
prudência, de piedade e de bom senso. Ele o apresenta como um modelo de virtude
doméstica, de temperança e de utilidade social. É um Sócrates mais terreno,
quase burguês, sem profundidade metafísica, mas com admirável pureza de
coração.
A
fidelidade de Xenofonte é de outra ordem: não idealiza o mestre, mas o
simplifica. Seu Sócrates fala como um homem sensato e piedoso, não como um
visionário. E, no entanto, sob essa aparência prosaica, percebe-se ainda o
sopro de uma alma justa. O Sócrates de Xenofonte é o mesmo do povo, o que os
atenienses conheceram nas praças, o que pregava com serenidade e morria com
calma, o que fazia da razão uma forma de obediência a Deus.
Mas
o testemunho mais paradoxal é o de Aristófanes. Na comédia As
Nuvens, ele nos mostra um Sócrates ridicularizado — o tipo do
sofista, do homem aéreo que, suspenso em seu cesto, medita sobre coisas inúteis
e corrompe a juventude com teorias absurdas. É uma caricatura, sem dúvida; mas
uma caricatura tem sempre um fundo de verdade. O que Aristófanes ridiculariza
não é o verdadeiro Sócrates, mas o perigo que representava sua novidade. Aos
olhos do comediógrafo, ele simboliza a desagregação do velho mundo religioso.
E,
todavia, há ironia divina nesse equívoco: Aristófanes, que quis zombar do
filósofo, perpetuou-lhe o nome. Sem querer, foi também um dos seus
conservadores. Pois se o riso mata o falso, ele purifica o verdadeiro.
Entre
esses três testemunhos — o de Platão, o de Xenofonte e o de Aristófanes — o
historiador deve abrir caminho. Platão o enobrece, Xenofonte o humaniza,
Aristófanes o denuncia. E, de todos eles, emerge uma mesma figura: a de um
homem justo, piedoso e intrépido, que preferiu morrer a negar sua missão.
O
verdadeiro Sócrates não é o sofista das comédias, nem o teórico dos diálogos
platônicos, nem tampouco o moralista um tanto convencional de Xenofonte. É a
alma que se eleva sobre a confusão de seu século, o homem que ouviu a voz
interior e que a seguiu até a morte.
Por
isso, não se deve procurar nele o fundador de uma escola, mas o fundador de uma
consciência. Ele não deixou livros, porque escreveu na alma dos homens; e o
tempo, que destrói as doutrinas, não pôde apagar essa escritura interior.
A
história de Sócrates é, pois, uma história espiritual: é a passagem do homem
antigo, guiado pelo mito, ao homem moral, guiado pela consciência. E se cada
testemunha o descreve a seu modo, é porque cada uma o contempla sob um de seus
aspectos. Platão viu o espírito; Xenofonte, a virtude; Aristófanes, o
escândalo. Todos juntos formam a unidade da verdade.
Capítulo
III – A Personalidade de Sócrates
(Tradução
integral – Clodius Piat)
A
alma de Sócrates é uma das mais transparentes e harmoniosas que já se
ofereceram ao olhar humano. Nenhum filósofo foi mais simples, mais puro, mais
profundamente humano; e é talvez por isso que sua grandeza seja tão difícil de
compreender. A simplicidade é sempre um véu para o mistério.
Em
sua pessoa, a sabedoria parece descer do céu e tomar forma viva. Ele não é,
como tantos outros, um sistema, mas uma existência. A filosofia, nele, deixa de
ser uma especulação e torna-se uma vida. Essa vida é, ao mesmo tempo, uma
confissão e um testemunho: confissão da ignorância humana, testemunho da
presença divina no homem.
Tudo,
em Sócrates, respira equilíbrio. Seu corpo, feio e rude, contrastava com a
beleza interior de sua alma. Seus contemporâneos se espantavam de ver tanta
força de espírito habitando uma forma tão vulgar; e essa oposição servia apenas
para tornar mais evidente o milagre de sua serenidade.
A
primeira nota do caráter socrático é a ironia. Não a ironia
amarga do cético, mas a ironia suave do sábio. Ele finge ignorar para fazer
nascer a verdade no outro. Não combate, conduz. Não humilha, eleva. Essa ironia
é um ato de caridade intelectual: ela não destrói, purifica.
A
segunda é a piedade. Ninguém foi mais religioso que
Sócrates, e poucos compreenderam tão bem a necessidade da fé. Ele acreditava em
Deus — não no deus dos mitos, mas no Deus da consciência. O nome que lhe dava
era incerto, mas sua voz era segura. Essa voz, o daimonion,
não lhe ditava teorias: advertia-o nos momentos em que devia parar, calar ou obedecer.
Era menos um oráculo do que uma presença; menos um comando do que uma luz
interior.
Sócrates
via nesse sinal misterioso uma espécie de aliança entre o homem e o divino. Sua
piedade não era superstição; era confiança. Ele rezava pouco, mas vivia em estado
de oração. Não oferecia sacrifícios rituais, mas sacrificava a si mesmo à
verdade. Para ele, servir a Deus era ser justo, e o dever, a verdadeira
liturgia da alma.
A
terceira nota é a moderação. Em um século de luxo e de
desregramento, Sócrates vivia pobre e alegre. A simplicidade de seus hábitos
era um ensinamento silencioso. Dormia pouco, comia pouco, e suportava o frio e
o calor com indiferença. Não se vangloriava dessa força; ela lhe era natural,
como a saúde aos corpos equilibrados.
O
segredo de sua paz interior estava na obediência à razão. Ele acreditava que o
bem está em conformar-se com a ordem universal, e que essa ordem é expressão de
uma sabedoria divina. Por isso, não se revoltava contra o destino; aceitava-o
como se aceita a lei. Sua liberdade era interior: residia no consentimento
lúcido.
Mas
essa serenidade não era indiferença. Sócrates amava profundamente os homens.
Dedicava-lhes sua vida, não para instruí-los, mas para despertá-los. Via em
cada um uma alma capaz do bem, e não descansava enquanto não a fazia nascer à
consciência de si. O seu dom mais raro era o de fazer pensar.
Ele não impunha verdades: revelava-as, como quem sopra sobre a cinza até que a
brasa apareça.
O
que espanta, ao lê-lo nos diálogos, é a ternura que se oculta sob sua lógica.
Sua palavra é firme, mas nunca violenta; interrogativa, mas nunca vã. Em suas
discussões, o que se sente não é o desejo de vencer, mas de converter. Ele não
é um dialético: é um médico das almas.
Essa
bondade ativa dava à sua filosofia o caráter de uma missão. Ele se via como um
enviado dos deuses para curar Atenas de sua ignorância. “Não creiais — dizia
ele — que eu o faça por interesse. Faço-o porque não posso deixar de fazê-lo.”
Essa consciência de dever, essa alegria no sacrifício, fazem dele o primeiro
mártir da verdade racional.
Em
meio às calúnias, às zombarias e aos perigos, Sócrates permanece igual a si
mesmo. Sorri às injúrias, consola os amigos, fala serenamente da morte. Sua
ironia é o reflexo da sabedoria: um modo de vencer o mal sem ódio, de corrigir
sem ferir. Quando os juízes o condenam, ele não os amaldiçoa; agradece-lhes por
terem cumprido o ofício que lhes coube.
Assim
se desenha o retrato completo: alma religiosa, consciência reta, razão
luminosa, amor desinteressado. A filosofia, nele, é santidade pagã. Se o
Cristianismo não existisse, Sócrates bastaria para provar que o homem pode
pressentir a graça.
Ele
é, por isso, uma ponte entre o mundo antigo e o novo. Sua vida encerra a moral
dos pagãos e anuncia a moral dos santos. É o ponto em que a razão natural toca
a fronteira da revelação.
Capítulo
IV — O Processo e a Morte de Sócrates
(Tradução
integral – Clodius Piat, Socrate, 1897)
O
processo de Sócrates é um dos mais comoventes dramas da história da humanidade.
Nele, a ignorância condena a sabedoria; a fraqueza, a virtude; o tempo, a
eternidade. O tribunal de Atenas julgava um homem, mas sem o saber, julgava
também a si mesmo.
As
causas da acusação são conhecidas. Três cidadãos — Anito, Meleto e Lícon
— apresentaram denúncia formal, afirmando que Sócrates corrompia a juventude e
não reconhecia os deuses da cidade. Essas duas acusações, aparentemente
religiosas e morais, eram, no fundo, políticas. Sócrates
representava, aos olhos de Atenas, uma ameaça à ordem estabelecida, não porque
fosse revolucionário, mas porque era incorruptível.
Atenas
saía das guerras, dividida entre demagogos e oligarcas. A democracia, extenuada,
buscava bodes expiatórios. E aquele homem que não se curvava a nenhum partido,
que zombava dos sofistas, que pregava a obediência à consciência antes da
obediência às leis humanas, tornou-se suspeito. O Estado não compreende o
espírito que o transcende.
O
processo não foi uma luta entre doutrinas, mas entre duas concepções de vida: a
da multidão, que vive do útil e do imediato, e a do homem que vive da verdade.
Sócrates permaneceu fiel a si mesmo, calmo, sem ódio, sereno diante de seus
juízes. Quando lhe ofereceram a possibilidade de renunciar ao ensino e
salvar-se, respondeu que não poderia viver calando o mandamento divino que
ressoava em sua alma.
Sua
Apologia,
tal como Platão a transmitiu, é um dos mais belos monumentos da consciência
humana. Ele não se defende, explica; não se justifica, testemunha. Fala como
quem já ultrapassou o medo da morte. “Temer a morte — diz ele — é julgar-se
sábio sem o ser. Ninguém sabe se ela não é o maior dos bens.” Em poucas
palavras, transforma o tribunal em escola e os juízes em discípulos.
A
condenação foi votada por pequena maioria. Quando lhe foi dada a palavra para
escolher sua pena, ele, com ironia serena, propôs ser alimentado no Pritaneu,
como os benfeitores da cidade. O sarcasmo de sua virtude irritou os magistrados,
que aumentaram a pena: a morte.
Durante
os trinta dias que se seguiram, enquanto esperava a execução, Sócrates viveu
como sempre vivera — ensinando. Em sua cela, os amigos o cercavam. Falava-lhes
do bem, da alma, da imortalidade. O Fédon é o testamento de sua
serenidade. Quando o carcereiro lhe traz o veneno, ele o toma sem tremor, e
suas últimas palavras são uma recordação piedosa: “Criton, devemos um galo a
Esculápio; não te esqueças de pagar a dívida.”
Essa
frase, tantas vezes comentada, é o selo da sua fé. Ele morre agradecendo a Deus
pela cura definitiva — a libertação da alma. O veneno é o sacramento de sua
obediência à ordem divina.
Há,
na morte de Sócrates, algo que a razão humana não basta para explicar. Nenhum
herói da Antiguidade morreu com tanta pureza de intenção. Ele não busca glória
nem recompensa. Morre por dever, e o dever, nele, é um amor. Sua morte não é
protesto, é consentimento; não é revolta, é ato de fé.
Os
deuses da cidade haviam sido desonrados por séculos de superstição; Sócrates
morre por ter querido restituir-lhes pureza. Condenam-no por impiedade, e sua
morte é o mais religioso dos atos. O sangue do justo, nessa hora, purifica
Atenas.
Assim
termina o mais nobre dos destinos pagãos. O mártir da consciência antecede o
mártir da fé. Cristo encontrará, em Sócrates, uma sombra que O anuncia. A
diferença é apenas esta: Sócrates morre por obediência à razão iluminada,
Cristo por obediência ao Amor absoluto. O primeiro pressente a luz, o segundo a
traz.
A
história humana não conheceu cena mais serena. O veneno é bebido como um
sacramento da verdade. E enquanto seus amigos choram, Sócrates sorri,
dizendo-lhes que a alma vai aonde a sabedoria a conduz.
Quando
caiu o sol sobre Atenas, aquele corpo imóvel deixava, na cela, a mais alta lição
da Antiguidade: que há em nós algo mais forte do que o medo, mais livre que o
corpo, mais puro que o mundo — a consciência.
Segunda
Parte – A Doutrina de Sócrates
Capítulo I – O Método
Socrático
1. A Ironia e a Maiêutica
O
método de Sócrates é, antes de tudo, uma atitude interior. Ele não começa pela
doutrina, mas pela alma. Seu ponto de partida não é o saber, mas a ignorância
confessada.
A ironia
é a forma exterior dessa humildade intelectual. Ela não é sarcasmo, nem
zombaria; é o reconhecimento do limite. Sócrates fingia ignorar para libertar o
outro de sua falsa ciência. Sua ironia é pedagógica, não destrutiva. É o gesto
do médico que, antes de curar, revela ao doente a sua enfermidade.
Através
da ironia, ele desperta o interlocutor. Obriga-o a pensar, a definir, a
purificar o pensamento. É um trabalho espiritual que começa pela negação: negar
o erro para que o verdadeiro possa nascer. Essa negação, porém, não é
esterilidade; é fecundidade oculta. Daí o segundo aspecto do método: a maiêutica.
A
palavra vem das parteiras de Atenas, e Sócrates a toma como símbolo da
filosofia. Ele mesmo diz: “Minha mãe era parteira; eu também o sou, mas das
almas.” Essa metáfora contém toda a sua pedagogia. O filósofo não infunde o
saber, faz nascer a verdade que já está latente. Ele é o mediador entre o
espírito e o Logos interior.
Essa
arte de fazer nascer exige paciência, doçura, precisão. Sócrates guia o
pensamento por perguntas, conduzindo-o como quem segura uma lâmpada em um
corredor escuro. Cada resposta ilumina um passo. E quando o discípulo, por fim,
descobre a contradição de suas próprias ideias, é então que a luz verdadeira
começa a brilhar.
2. A Busca das
Definições
A
filosofia, antes de Sócrates, contentava-se com opiniões. Ele foi o primeiro a
exigir definições.
Perguntar “o que é?” foi o seu gesto inaugural — e o mais revolucionário.
Pois definir é já libertar-se do instinto e do hábito. É submeter o pensamento
à medida do ser.
A
definição socrática não é formal, mas moral. Ele não busca tanto o conceito
abstrato quanto a clareza da consciência. Quando pergunta “o que é a justiça?”,
“o que é a virtude?”, não pretende escrever um tratado, mas formar um homem.
Definir é purificar.
Essa
busca incessante das definições revela seu amor pela ordem e pela unidade. Ele
acreditava que, assim como o corpo tem suas leis, também o espírito tem sua
forma. E que somente o pensamento disciplinado pode aproximar-se da verdade
divina.
3. O Caráter Moral da
Dialética
A
dialética de Sócrates não é jogo, mas exercício moral. Ela não visa a vitória
do argumento, mas a vitória da alma sobre a confusão.
Para ele, o diálogo é um sacramento do espírito: dois homens se unem na busca
do bem. A palavra é o instrumento da purificação.
Essa
purificação se realiza pela refutação, que não
humilha, mas liberta. O interlocutor, desarmado de suas contradições, é
convidado a reconhecer-se ignorante. Essa confissão é o primeiro passo da
sabedoria.
A partir daí, nasce uma alegria nova: a de sentir o pensamento ordenar-se, a de
ver a luz surgir dentro de si.
A
dialética, assim compreendida, é uma ascese. Obriga o homem a vigiar o próprio
discurso, a distinguir entre o que pensa e o que apenas repete.
O diálogo socrático é, portanto, uma forma de oração racional — onde o homem se
eleva, pela verdade, acima de si mesmo.
4. O Nascimento do
Espírito Filosófico
Com
Sócrates, a filosofia torna-se interior. Antes dele,
buscava-se o cosmos; com ele, busca-se a alma. O centro do universo desloca-se:
do céu para a consciência.
O
que nasce, nesse momento, é o espírito filosófico
propriamente dito: o desejo de verdade que não se satisfaz com o costume, que
examina, que interroga, que quer fundamento.
E esse desejo é, já em si, uma forma de santidade. Pois quem ama o verdadeiro
ama o divino.
Sócrates
inaugura, assim, uma nova era: a da razão moral. Ele mostra que o saber não é
um privilégio dos sábios, mas um dever do homem. Que conhecer a si mesmo é
começar a tornar-se justo.
E a filosofia, que até então era curiosidade ou ciência, torna-se agora vocação
espiritual.
Segunda
Parte – A Doutrina de Sócrates
Capítulo II – Ciência e
Virtude
1. A Ignorância como
Ponto de Partida
Toda
a filosofia de Sócrates repousa sobre esta confissão: “Sei que nada sei.”
Essa fórmula, tantas vezes repetida, não é uma ironia, mas um princípio. O
verdadeiro saber começa quando o homem reconhece seus limites. A ignorância
confessada é o solo fértil onde germina a sabedoria.
Antes
dele, os sofistas julgavam tudo saber e faziam da palavra um instrumento de
prestígio. Sócrates, ao contrário, devolve à alma o pudor do não saber.
A sabedoria, diz ele, não consiste em acumular opiniões, mas em limpar o
espírito do erro. É preciso esvaziar-se para que a verdade entre.
Essa
atitude de humildade intelectual é também uma atitude religiosa. Pois
reconhecer a própria ignorância é reconhecer implicitamente uma sabedoria
superior — a de Deus. O homem que diz “nada sei” abre o coração à luz do
divino.
Para
Sócrates, portanto, a ignorância não é uma carência, mas uma graça: é o
primeiro ato da purificação. Ele a chama de “doença do espírito” que só se cura
pelo exame de si mesmo.
Assim,
o “conhece-te a ti mesmo” não é um convite à introspecção vazia, mas à
retificação da alma. O homem ignorante é aquele que se crê sábio; o sábio é
aquele que se reconhece ignorante. Entre ambos se decide o destino moral da
humanidade.
2. O Saber como
Condição da Virtude
Da
confissão da ignorância nasce a exigência do saber.
Sócrates afirma que ninguém é voluntariamente mau.
Todo erro procede da ignorância; todo bem, do conhecimento. Saber o que é justo
é já começar a praticá-lo.
Essa
tese — tão paradoxal aos olhos modernos — repousa sobre uma profunda fé na
razão. O mal, para Sócrates, não é uma força, mas uma ilusão. O homem peca
porque não vê claramente o bem. Se o visse em toda a sua beleza, não o rejeitaria.
O
conhecimento, assim, torna-se princípio de moralidade. Mas não se trata de um
saber teórico. É uma luz prática, uma inteligência viva, que dirige os atos.
A virtude é ciência, não porque se aprende em livros, mas porque se adquire
pela clarificação da consciência.
Essa
doutrina eleva a moral à dignidade do pensamento. A virtude deixa de ser hábito
ou costume: torna-se conquista racional.
Ser virtuoso é compreender a ordem divina e conformar-se a ela. O pecado,
inversamente, é desordem da razão, cegueira do espírito.
3. O Intelectualismo
Moral
A
consequência dessa doutrina é o intelectualismo moral.
Para Sócrates, o bem é uma questão de conhecimento, e a vontade nada mais é que
o impulso natural do espírito para o verdadeiro. Se o homem erra, é porque a
luz lhe falta; iluminado, ele se endireita.
A
razão, assim, ocupa o lugar central. Tudo depende da clareza interior.
Daí decorre uma moral sem coação, uma ética da liberdade. O homem não é
arrastado ao bem, ele o escolhe porque o compreende.
Há,
nessa visão, uma nobreza imensa — e também um limite.
Nobreza, porque restitui à razão sua dignidade de guia espiritual; limite,
porque ignora a fraqueza da vontade. Sócrates não conhece ainda a tragédia da
alma dividida. Ele acredita no homem inteiro, governado pela inteligência.
Mas,
mesmo em sua limitação, esse otimismo é sagrado. Pois mostra a confiança de uma
alma pura no poder da luz. O mal, para Sócrates, não é destino: é erro curável.
A redenção está no conhecimento.
4. A Limitação do
Método Socrático
Essa
doutrina, tão elevada, encerra, contudo, uma insuficiência.
Ao identificar o saber e o bem, Sócrates esquece que há em nós forças obscuras
que resistem à razão. Ele ignora o mistério do pecado.
Para ele, bastaria ver o bem para amá-lo. Mas o coração humano, ferido pela
paixão, nem sempre segue a luz.
O
método socrático não atinge as profundezas da alma. Ele reforma o intelecto,
mas não o redime. Sua moral é pura, mas impotente. Ele cura o erro, não a
culpa.
É
por isso que o Cristianismo completará Sócrates. O que ele começou pela razão,
Cristo o consumará pela graça. A luz de Sócrates ilumina; a de Cristo
transforma.
Mas sem o primeiro, o segundo não seria plenamente compreendido. Pois foi
Sócrates quem ensinou ao mundo que o bem é inteligível, que o mal é ignorância,
e que a alma é chamada à verdade.
A
filosofia moral nasce, assim, de uma fé na razão: fé que preparará a fé na
redenção.
A virtude, para Sócrates, é ciência; para o cristão, é amor. Entre ambas, há
continuidade — não oposição, mas plenitude.
Segunda
Parte – A Doutrina de Sócrates
Capítulo III – O Deus
de Sócrates
1. O “Daimonion” e a
Voz Interior
Entre
todos os aspectos do pensamento socrático, nenhum é mais misterioso — e mais
profundo — do que o do daimonion, essa voz
secreta que, desde a juventude, advertia Sócrates.
Os antigos a interpretaram de diversas maneiras: uns a tomaram por superstição,
outros por alegoria. Mas ela é, na verdade, o signo de uma espiritualidade
autêntica.
Sócrates
não dizia que o daimonion lhe ordenava o que fazer, mas que o detinha quando ia
fazer algo errado. Era uma voz negativa, de advertência, não de comando.
Esse caráter interior e silencioso distingue-o radicalmente do oráculo exterior
de Delfos.
O daimonion não fala do alto do templo: fala dentro da consciência.
Assim,
Sócrates descobre, pela experiência viva, o princípio que mais tarde será a
base de toda a moral cristã: a presença de Deus na alma.
A voz interior é a forma mais pura da revelação natural.
Ela não impõe dogmas, mas desperta o respeito à lei divina que se inscreve no
coração humano.
O
que os gregos chamavam “divino” em Sócrates não era um gênio ou um espírito
familiar, mas a própria luz do bem.
Ele não via nessa voz um privilégio seu, mas um dom universal. Dizia que todo
homem, se souber escutar, pode ouvir em si o mesmo apelo.
Eis o verdadeiro templo: a consciência.
2. Monoteísmo e
Providência
Dessa
experiência interior, Sócrates eleva-se à concepção de um Deus único e
providente.
Ele não rejeita os deuses da cidade por impiedade, mas porque os ultrapassa em
pureza.
O politeísmo da Grécia havia se degradado em mito e política; Sócrates
restabelece o divino como princípio moral.
Para
ele, Deus é razão e bondade.
Não é apenas o criador do cosmos, mas o ordenador da alma. “O homem — dizia —
deve seguir a Deus.” Essa fórmula resume sua teologia.
Não o concebe antropomorficamente, mas como Inteligência Suprema, fonte de toda
a ordem e da justiça.
Há,
em seu pensamento, traços claros de monoteísmo.
Ele fala de Deus no singular, invoca-O em suas orações, reconhece-Lhe soberania
sobre o destino humano.
A providência é, para ele, o laço entre o divino e o moral: Deus não governa os
astros apenas, governa o coração.
Esse
monoteísmo, porém, não é fruto de especulação; é fruto da pureza moral.
Sócrates não demonstra Deus, o sente. E esse sentimento não é vago: é
obediência.
O filósofo que escuta o daimonion e cumpre o bem obedece à ordem divina.
3. O Deus de Sócrates e
o Deus de Abraão
Entre
o Deus de Sócrates e o Deus de Abraão há distância infinita — e, no entanto,
uma misteriosa afinidade.
Ambos são únicos, justos, senhores da consciência. Ambos se revelam ao coração
e exigem fidelidade.
Mas
o Deus de Sócrates é o Deus da razão natural: o Princípio que ilumina.
O de Abraão é o Deus vivo que fala e ama.
O primeiro é universal e abstrato; o segundo, pessoal e histórico.
Em Sócrates, Deus é o Bem; em Abraão, é o Ser.
Contudo,
é inegável que o caminho de um prepara o outro.
O filósofo ateniense abriu o espírito humano à ideia de uma lei divina
interior, e essa lei é o prelúdio da Lei revelada.
Se a Grécia forneceu ao Cristianismo a linguagem do pensamento, foi porque
Sócrates forneceu-lhe o modelo da consciência iluminada.
Assim,
o Deus socrático é o limite superior da razão pagã:
ponto em que a filosofia toca o limiar da teologia.
É o último esforço da mente humana antes da graça.
4. A Religião Natural e
a Lei Moral
A
religião de Sócrates é natural, mas não
naturalista.
Ela nasce da moral e volta a ela.
Ele não busca os deuses nas forças da natureza, mas no dever.
Crer em Deus, para ele, é viver de modo que o espírito divino possa habitar em
nós.
Por
isso, sua fé é ativa, austera, interior.
Não há ritos, mas consciência; não há templos, mas exame; não há oferendas, mas
retidão.
A oração, para Sócrates, é o diálogo do homem com a razão divina que o guia.
Essa
fé sem revelação já contém, em germe, o núcleo da lei moral universal.
Ela proclama que o homem deve preferir o bem ao prazer, a verdade à opinião, a
justiça à vantagem.
E, para fundar essa obrigação, não recorre à autoridade dos deuses míticos, mas
à evidência da razão.
Assim,
a religião natural socrática é o ápice do paganismo espiritualizado.
Ela purifica o culto, moraliza o divino e aproxima o homem do absoluto.
Mas sua luz permanece racional, não redentora: ilumina, mas não transforma.
O
Cristo virá completar essa obra.
Onde Sócrates ouviu o mandamento do bem, Cristo trará o mandamento do amor.
O filósofo preparou a estrada; o Salvador a percorreu até o fim.
Segunda
Parte – A Doutrina de Sócrates
Capítulo IV – A Moral
Socrática
1. A Noção do Bem
Toda
a moral socrática repousa sobre a ideia do Bem.
Para ele, o bem não é um sentimento, nem uma convenção, mas uma realidade
absoluta, inteligível, eterna.
Enquanto os sofistas faziam da virtude um cálculo de utilidade, Sócrates afirma
sua dignidade intrínseca.
O bem não é o que agrada: é o que é justo.
Essa
distinção é o fundamento da ética racional.
O homem deve buscar o bem porque ele é o próprio princípio da ordem universal.
Ser bom é conformar-se à razão divina que governa o mundo.
O mal, ao contrário, é desarmonia, é ignorância, é oposição à verdade interior.
Por
isso, o primeiro dever do homem é conhecer o bem, e o segundo, realizá-lo.
O conhecimento sem ação é incompleto, e a ação sem conhecimento é cega.
Sócrates unifica ambos: o saber e o agir, a luz e o amor.
Mas
seu amor ao bem é sereno, não apaixonado.
Ele não exalta o heroísmo, mas a retidão.
A virtude não é façanha, é ordem.
E, nesse sentido, a moral socrática é um hino à harmonia interior.
2. O Domínio de Si
A
virtude, segundo Sócrates, consiste essencialmente no domínio de si.
A alma é senhora, o corpo, servo; e o homem sábio é aquele que conserva o
comando.
O prazer é o inimigo mais sutil dessa hierarquia.
Nada corrompe mais a alma do que o hábito de obedecer aos sentidos.
Sócrates
não prega o ascetismo pelo sofrimento, mas pela clareza.
Não diz “mortifique-se”, mas “governe-se”.
A temperança é, para ele, a forma racional do amor.
Ela purifica o desejo, não o destrói; o eleva à dignidade do espírito.
Seu
ideal não é o isolamento, mas a serenidade.
O homem virtuoso vive entre os homens, mas como quem vela em meio aos que
dormem.
Vê os bens exteriores como instrumentos, não como fins; e conserva, na
prosperidade e na desgraça, a mesma paz.
Esse
domínio interior é, em Sócrates, natural e alegre.
Ele não faz da virtude uma cruz, mas uma liberdade.
É o triunfo da razão sobre o instinto, e, portanto, o primeiro esboço da
santidade filosófica.
3. A Alma e Sua
Superioridade sobre o Corpo
Toda
a moral socrática depende dessa convicção fundamental: a alma é superior ao
corpo.
Ela é o princípio de vida e de ordem; o corpo, instrumento e morada.
O erro moral nasce quando a alma se deixa dominar pelo que deveria governar.
A
morte, por isso, não é para Sócrates um mal, mas uma libertação.
O corpo é o véu; a alma, a luz.
“Enquanto temos o corpo — diz ele — e nossa alma se confunde com essa massa de
misérias, nunca possuiremos o que desejamos, a verdade.” (Fédon)
Essa
doutrina dá à virtude uma grandeza metafísica.
Não é apenas o equilíbrio dos instintos, mas a afirmação do espiritual sobre o
sensível.
Ser justo é preparar-se para viver segundo a alma, não segundo o corpo.
Dessa
fé na imortalidade nasce a coragem moral.
Quem sabe que sua alma é imperecível não teme a perda dos bens, nem mesmo a
morte.
A verdadeira fortaleza é a paz do espírito que se sabe eterno.
Assim,
a filosofia de Sócrates é uma ascese racional, uma purificação pela verdade.
Ela não promete o paraíso, mas ensina o caminho da pureza.
E, mesmo sem revelação, toca a fronteira da eternidade.
4. Sócrates e a
Santidade Filosófica
Se
existe uma santidade antes da graça, é a de Sócrates.
Ele não conheceu o Cristo, mas viveu como se o pressentisse.
Sua vida é uma oferenda, sua morte, um sacrifício.
Tudo nele exprime o amor à ordem divina e a fidelidade à consciência.
A
santidade filosófica consiste em obedecer à razão como a um mandamento de Deus.
A razão, em Sócrates, é mais que um órgão de pensamento: é um altar.
A pureza, a temperança, a justiça e a coragem não são virtudes sociais, mas
orações vivas.
Sua
serenidade diante da morte é o selo dessa santidade.
Ele não desafia o destino: consente.
Não há revolta, nem desespero; há obediência.
Ele morre fiel à voz que o guiou toda a vida — e é nesse instante que o
filósofo se torna mártir.
Em
Sócrates, o pensamento torna-se ato, e o ato, testemunho.
Sua moral é a primeira forma da redenção racional.
Cristo não virá para contradizê-lo, mas para elevar essa santidade natural à santidade
sobrenatural.
A
fé socrática é a aurora; a fé cristã, o sol.
Mas ambas nascem do mesmo horizonte: o amor à verdade.
Terceira
Parte – A Influência de Sócrates
Capítulo I – Sobre
Platão
1. Continuidade e
Transfiguração
Nenhum
homem recebeu mais profundamente o espírito de Sócrates do que Platão.
Entre o mestre e o discípulo há continuidade perfeita de intenção, mas também
transfiguração de horizonte.
Sócrates buscava a definição moral; Platão busca a essência ontológica.
O primeiro iluminou o homem; o segundo, o ser.
Platão
foi, antes de tudo, o herdeiro da pureza moral de seu mestre.
A fidelidade à verdade, o amor à alma, o desprezo dos bens transitórios — tudo
isso ele recebeu de Sócrates.
Mas, em sua inteligência contemplativa, essas virtudes se elevaram à esfera das
ideias.
O que em Sócrates era experiência viva tornou-se, em Platão, sistema de
pensamento.
A
maiêutica transforma-se em dialética transcendental.
A ironia cede lugar à visão metafísica.
O diálogo permanece, mas agora serve não apenas para purificar o espírito, e
sim para conduzi-lo às regiões da contemplação pura.
A
doutrina das ideias é a herança espiritual do “conhece-te a ti mesmo”.
Pois conhecer-se é reconhecer que a alma é afinada com o eterno, que o
inteligível é sua pátria.
Sócrates dissera que o saber é virtude; Platão dirá que o saber é reminiscência
— memória do divino esquecido.
Assim,
a moral torna-se teologia.
A luz interior de Sócrates, que guiava o homem no caminho do bem, torna-se, em Platão,
o sol inteligível que ilumina o mundo das essências.
A razão se eleva à contemplação do Bem em si, princípio supremo de toda a
realidade.
Mas,
se o discípulo amplia, não contradiz.
Entre ambos há a mesma pureza, a mesma fé na razão e na ordem divina.
Platão é o Sócrates que viu o céu.
2. O Idealismo e a Alma
Socrática
A
alma de Sócrates renasce em Platão sob a forma de idealismo moral.
A virtude, para o discípulo, é a elevação da alma ao mundo das ideias.
Tudo o que é verdadeiro e bom já existe em estado eterno, e a alma, ao
conhecer, recorda.
O amor — o eros
platônico — é essa nostalgia do divino, essa força ascensional que conduz da
beleza sensível à beleza pura.
O
Sócrates histórico, que interrogava e refutava, torna-se, nas páginas de
Platão, um símbolo da ascensão intelectual.
O homem que fazia nascer as verdades dos outros passa a ser o mediador entre o
sensível e o eterno.
Platão transforma o mestre em figura profética — não mais o cidadão de Atenas,
mas o iniciado no mistério do ser.
Há,
todavia, um traço permanente: a santidade racional.
O idealismo platônico conserva a mesma confiança no poder purificador da razão.
A alma é feita para o bem; o erro é queda; a filosofia é retorno.
Assim, o mestre vive no discípulo, como a raiz vive na flor.
Sócrates
foi o semeador; Platão, o fruto.
E ambos permanecem como os dois pólos de toda filosofia moral: o primeiro, o
realista do dever; o segundo, o visionário do eterno.
O Cristianismo os unirá um dia, pois nele o dever se fará amor e o eterno se
fará carne.
Terceira
Parte – A Influência de Sócrates
Capítulo II – Sobre os
Cínicos e os Estóicos
1. O Moralismo Prático
Depois
da morte de Sócrates, a Grécia viu nascer um conjunto de escolas que, embora
divergentes na forma, provinham todas do mesmo impulso: o amor à virtude.
Entre elas, as que mais conservaram a direção moral do mestre foram as dos cínicos
e dos estóicos.
Ambas nasceram do desejo de fazer da filosofia não um discurso, mas um modo de
vida.
O
cínico é o discípulo que retém de Sócrates apenas o desprezo pelos bens e a
independência moral.
Antístenes, primeiro de todos, via na virtude a única riqueza.
O homem sábio, dizia ele, basta a si mesmo; tudo o que vem de fora é supérfluo.
A pobreza voluntária, a resistência ao prazer, a franqueza brutal tornaram-se
os símbolos de uma liberdade interior.
Mas,
nesse exagero, a pureza socrática se empobrece.
O que em Sócrates era harmonia, nos cínicos torna-se rigidez.
O mestre desprezava o luxo sem desprezar a natureza; os discípulos confundem
simplicidade com rudeza.
O ascetismo converte-se em ostentação moral.
Contudo,
essa rudeza conserva um traço da grandeza socrática: a fidelidade ao dever.
Os cínicos, mesmo sem ternura, proclamaram alto a soberania da alma sobre as
coisas.
Em um mundo já corrompido, sua pobreza e sua franqueza foram como o último
grito da consciência grega.
2. A Virtude Autônoma
Os
estóicos
retomam essa herança, mas a elevam à ordem da razão universal.
Em vez da independência individual do cínico, afirmam a independência racional
do sábio.
A virtude é agora ciência perfeita, adesão total à razão cósmica, conformidade
com o destino.
No
estoicismo, o ensinamento de Sócrates se transforma em sistema moral.
A máxima “conhece-te a ti mesmo” torna-se “vive segundo a razão”, e esta, por
sua vez, se identifica com o Logos que rege o universo.
O sábio é aquele que aceita a ordem do mundo com serenidade, porque nela
reconhece a vontade divina.
Assim,
o moralismo socrático se universaliza.
A virtude deixa de ser apenas harmonia interior para tornar-se participação na
harmonia do todo.
A providência que Sócrates pressentira torna-se lei cósmica, e a consciência
humana, reflexo da Razão divina.
Mas,
ao mesmo tempo, essa ampliação apaga algo essencial: a ternura da pessoa.
O Deus dos estóicos é princípio, não presença.
A obediência substitui o amor, e o dever, a graça.
A serenidade estóica é nobre, mas fria; pura, mas sem caridade.
Ainda
assim, essa doutrina é a mais alta expressão do paganismo moral.
Ela mostra até onde pode ir a razão sem revelação.
A alma humana, em seu esforço para ser justa, alcança o céu da ordem — mas não
a luz do perdão.
Em
Sócrates, a virtude é oração; nos estóicos, é disciplina.
No primeiro, é confiança; nos segundos, resignação.
Ambos, contudo, ensinam ao homem que a liberdade verdadeira é interior e que o
bem é o único bem.
Assim,
o fio socrático continua, mas já enfraquecido.
O mestre havia dito: “Ninguém é mau voluntariamente.”
Os estóicos respondem: “O sábio não sofre voluntariamente.”
Entre uma e outra fórmula, o coração humano permanece à espera da palavra que
unirá sabedoria e amor — a palavra cristã.
Terceira
Parte – A Influência de Sócrates
Capítulo III – Sobre o
Cristianismo
1. A Afinidade Moral
entre Sócrates e Cristo
Entre
Sócrates e Cristo existe uma afinidade misteriosa, reconhecida por todos os
grandes espíritos.
Ambos são mestres da consciência, ambos viveram pobres, ambos morreram por
causa da verdade.
A diferença dos tempos e das doutrinas não apaga essa semelhança de alma.
Sócrates
anuncia, à sua maneira, a moral cristã.
Ele prega a pureza interior, o domínio de si, a submissão à vontade divina, o
amor ao bem por si mesmo.
Sua vida é exemplo, sua morte, testemunho.
Cristo virá retomar todas essas verdades, mas revestindo-as de uma luz nova: a
do amor que salva.
O
sábio de Atenas quis curar o homem pela razão; o de Nazaré, pelo coração.
O primeiro iluminou a consciência; o segundo a redimiu.
Ambos pregam a conversão interior, mas enquanto Sócrates conduz ao dever,
Cristo conduz à graça.
O que um pressente, o outro realiza.
Há,
pois, uma linha secreta que une o paganismo mais puro à revelação cristã.
A alma socrática é como o orvalho da manhã que precede o sol.
E quando Cristo aparece, a filosofia encontra enfim sua plenitude.
2. Sócrates como
Precursor Involuntário da Revelação
Sócrates
não conheceu os profetas, nem as Escrituras, nem a promessa messiânica.
E, no entanto, sua vida é uma preparação inconsciente para o Evangelho.
Tudo o que o cristianismo há de consagrar pela graça, ele o havia esboçado pela
razão.
Ele
acreditava num Deus único, justo e providente; ensinava que o dever é o culto
mais puro; que o mal deve ser combatido pelo bem; que o homem é alma e que essa
alma é imortal.
Essas verdades, que no cristianismo são dogmas revelados, são, em Sócrates,
intuições morais.
Sua fé é ainda natural, mas já obediente.
Quando
lemos sua morte à luz do Evangelho, vemos nela o primeiro ato do martírio
cristão.
Ele bebe o veneno por fidelidade à consciência; Cristo, o cálice por fidelidade
ao Pai.
Um e outro perdoam os inimigos; um e outro morrem serenos.
Mas o que em Sócrates é força de razão, em Cristo é plenitude de amor.
A
diferença é de natureza, não de direção.
O filósofo sobe; o Salvador desce.
O primeiro procura Deus; o segundo vem buscá-lo.
Ambos se encontram no ponto onde a verdade e a caridade se abraçam.
Assim,
a morte de Sócrates, longe de ser apenas um drama grego, é uma figura da
redenção.
A filosofia termina como uma liturgia preparatória.
E quando Cristo fala, é a própria voz que Sócrates ouvira no íntimo, agora
encarnada.
A
revelação, portanto, não destrói Sócrates; consuma-o.
O cristão pode reconhecer nele um irmão da aurora, aquele que, sem saber, esperava
o dia.
Pois há santos antes da graça, e Sócrates é o primeiro deles: o santo da razão.
Terceira
Parte – A Influência de Sócrates
Capítulo IV –
Julgamento Final sobre Sócrates
1. Limites da Sabedoria
Pagã
A
obra de Sócrates é o ponto culminante da sabedoria antiga.
Depois dele, nada mais resta ao pensamento pagão senão repetir, dividir ou
corromper o que ele havia purificado.
O que há de mais elevado na filosofia grega — a pureza da razão moral — deve-se
a esse homem simples e pobre que ensinava nas ruas de Atenas.
Mas,
ao mesmo tempo, Sócrates marca o limite dessa sabedoria.
Sua luz é grande, mas não plena; sua fé é pura, mas sem revelação.
Ele mostra o caminho da virtude, mas não dá a força para segui-lo.
O homem socrático conhece o bem, mas continua frágil diante da paixão.
O erro é vencido pela inteligência, não pelo amor; e o amor, sem a graça,
permanece impotente.
A
filosofia, em Sócrates, é a redenção sonhada, não a redenção realizada.
A razão sobe até Deus, mas não O encontra face a face.
É uma oração sem resposta, uma sede que pressente a fonte, mas ainda não a
toca.
Esse
limite, longe de diminuir sua grandeza, a torna mais venerável.
Pois o que há de mais divino na criatura não é possuir a verdade, mas buscá-la
com pureza.
A alma que se estende para Deus é mais bela do que a que dorme na indiferença.
Assim, a sabedoria socrática é o último degrau do homem antes do advento da
graça.
2. Grandeza Moral e
Insuficiência Teológica
A
grandeza de Sócrates é moral.
Ele foi o primeiro a submeter o pensamento ao tribunal da consciência e a fazer
da vida um testemunho da verdade.
Sua virtude é tão perfeita quanto o permite a natureza humana sem auxílio
divino.
Nada o corrompeu: nem o prazer, nem a ambição, nem o medo.
Mas
essa mesma pureza revela uma insuficiência: ele ignora o mistério do mal.
Não conhece o pecado, conhece apenas o erro.
Não vê a queda da vontade, vê apenas a confusão do espírito.
Sua doutrina cura a ignorância, não redime a culpa.
Para
compreender o mal, seria preciso conhecer a santidade — e essa só virá com
Cristo.
O filósofo vê o dever; o santo, o amor.
Sócrates crê na razão; o cristão, na graça.
Ambos se unem na obediência à verdade, mas o segundo recebe do alto o que o
primeiro busca do íntimo.
Assim,
a teologia socrática é uma oração inacabada.
Falta-lhe a resposta divina que transforme o bem em caridade e a sabedoria em
fé.
Mas, na espera silenciosa de sua alma, já vibra o eco da revelação que há de
vir.
3. Convergência entre
Razão e Fé
Se
Sócrates representa o limite da razão, é também o ponto onde ela se abre à fé.
Tudo nele prepara o cristianismo: a ideia de um Deus único e justo, a voz da
consciência, o valor do sacrifício, a imortalidade da alma, a subordinação do
corpo ao espírito.
A graça não o nega: o assume.
O
cristianismo não destrói a razão socrática; cumpre-a.
Ele lhe dá o que faltava: a força para realizar o bem que ela conhecia.
A fé é a plenitude da razão; a revelação, sua luz interior tornada carne.
Em Cristo, o “conhece-te a ti mesmo” torna-se “ama a teu próximo como a ti
mesmo”.
A filosofia torna-se caridade, e a sabedoria, salvação.
Por
isso, a figura de Sócrates permanece sagrada até para o cristão.
Ela é o símbolo da alma humana em estado de inocência filosófica — o homem que
não viu Deus, mas que O esperou.
E a história espiritual da humanidade começa verdadeiramente com ele, porque
nele a razão se fez obediência, e a obediência, caminho.
Assim
se conclui o julgamento de Clodius Piat:
“A
filosofia pagã, em Sócrates, elevou-se até o limiar da revelação.
A fé cristã, ao acolher essa herança, deu-lhe o seu coroamento.
Entre o sábio que morreu pelo dever e o Deus que morreu por amor, há uma mesma
luz — uma mesma vitória do espírito sobre o mundo.”
Conclusão
Geral
Há,
na figura de Sócrates, algo de eterno.
Ele pertence a todos os tempos porque fala a todas as consciências.
Nem o curso dos séculos, nem a mudança das crenças puderam apagar o traço de
sua serenidade.
A razão humana, em busca de luz, encontra sempre, ao longo de seu caminho, a
sombra luminosa desse homem que preferiu morrer a mentir à verdade.
A
filosofia começou como ele viveu: em obediência ao divino e amor à alma.
Antes dele, o pensamento se perdia nas aparências do mundo; com ele, desceu às
profundezas do espírito.
Ele ensinou ao homem que a sabedoria não é ciência, mas conversão; que conhecer
é tornar-se melhor; e que a virtude é a forma visível da verdade.
Por
isso, sua obra não perece.
Tudo o que veio depois dele, no paganismo ou na fé, dele recebeu o impulso.
Platão espiritualizou seu método; Aristóteles o sistematizou; os estóicos o
endureceram; o cristianismo o santificou.
Cada época reencontra nele o seu mestre.
A
razão moderna, que tantas vezes o invoca, raramente o compreende.
Pois vê em Sócrates apenas o precursor da liberdade intelectual, quando ele
foi, na verdade, o apóstolo da obediência interior.
Sua liberdade não era a do orgulho, mas a do dever; não a do que nega, mas a do
que consente.
Ele libertou o homem das opiniões, para submetê-lo à verdade.
Seu
ensino é duplo: ele revela o poder e o limite da razão.
Poder, porque mostra que o homem pode elevar-se pela luz natural até a lei
moral universal;
limite, porque essa mesma luz, sem a graça, não basta para regenerar o coração.
Sócrates é, portanto, o símbolo da razão em estado de fidelidade: razão
obediente, que pressente o mistério sem violá-lo.
E
é por isso que sua morte é uma profecia.
Quando ele bebe o veneno, a filosofia se purifica no sacrifício.
O sangue do justo sela o pacto entre o pensamento e a moral.
Daquele instante em diante, a verdade deixa de ser uma especulação: torna-se
testemunho.
Assim,
a humanidade espiritual começa em Sócrates.
Ele é o Adão da consciência esclarecida.
Depois dele, a alma sabe que existe e que deve justificar sua existência diante
de Deus.
E se a revelação virá trazer a resposta, é porque o filósofo, com sua morte,
fez a pergunta.
O
cristianismo não anula Sócrates — o coroa.
O que o mestre ateniense buscou pela razão, o Evangelho realizará pelo amor.
Ambos se encontram na eternidade: o filósofo ajoelhado diante do Bem, o Cristo
que é o próprio Bem feito carne.
A
história dos séculos não acrescentou nada essencial a essa lição.
Cada civilização que quis reconstruir a moral sem o espírito socrático terminou
em ruína.
Pois enquanto houver homens capazes de ouvir a voz interior e preferir a
verdade ao sucesso, Sócrates viverá — não como lembrança, mas como presença.
Ele
é o patrono
invisível da consciência humana.
Aquele que, sem ter lido o Evangelho, viveu o prelúdio do Sermão da Montanha;
que, sem conhecer o Cristo, morreu por fidelidade à voz do Pai;
que, sem fé revelada, teve a fé natural levada ao heroísmo.
E
assim, entre o templo grego e a cruz cristã, permanece a figura serena do homem
justo, que não escreveu livros, mas escreveu na alma do mundo a palavra eterna:
“Conhece-te
a ti mesmo — e sê fiel à verdade, mesmo que custe a vida.”
FINIS
OPERIS
A verdade não morre com os homens, mas
os homens vivem por ela.
— Clodius Piat, Socrate
(1897)
Com
esta tradução integral, encerra-se a travessia moral e espiritual de Sócrates,
tal como interpretado por Clodius Piat, o
dominicano que soube ler, na serenidade pagã, o prelúdio da fé cristã.
Sua voz — entre a razão e o oráculo — anuncia a unidade que, séculos depois, a
cruz confirmará:
a consciência como altar, a obediência como liberdade, a virtude como forma
visível da luz divina.
Nesta
versão, buscou-se conservar o perfume original da língua francesa, a limpidez
da prosa tomista e o timbre moral que Piat herdou de Aristóteles e de São Tomás.
A tradução aqui encerrada pertence à linhagem das obras que restauram o elo
entre filosofia e santidade, entre o saber e o amor, entre o intelecto e o
sacrifício.
Título original:
Clodius
Piat – Socrate
(Paris: Librairie Félix Alcan, 1897)
Tradução integral e estudo introdutório:
Jardel
Almeida
Assistência filosófica:
Sophión
Edição:
Ad mentem Doctoris Angelici
Baseada na edição original da coleção Les Grands Philosophes
Ano e local:
2025 — Ad
mentem Thomae et Socratis
Finis
Operis
“O homem justo não se perde na multidão,
porque a consciência é o
templo onde Deus habita.”
— Clodius Piat
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