Artigo I – A ideia do universo físico.
Uma desconstrução da ficção moderna chamada “universo físico”, mostrando como a ciência, sob o pretexto de empirismo, excluiu da realidade aquilo que mais importa: as qualidades vividas. O texto expõe a impostura da redução matemática e o abismo que se abre entre a experiência concreta e a abstração cientificista.
Artigo II – O dilema cartesiano.
A análise da cisão mente-corpo imposta por Descartes, revelando como o dualismo fundou uma metafísica negativa, incapaz de sustentar a vida do espírito. O artigo examina o preço pago pela humanidade ao aceitar que o mundo real se reduz a extensão, enquanto a consciência se converte em mero fantasma.
Artigo III – Horizontes perdidos.
A narrativa da queda cultural entre os séculos XIV e XV, quando a transcendência foi abandonada em troca do mito do progresso. Aqui se mostra como a modernidade, ao perder o sagrado, construiu um cosmos dessacralizado, um plano chato de fatos sem sentido, onde o homem vive como um animal sofisticado, mas espiritualmente empobrecido.
Artigo IV – Evolução: fato e fantasia.
Uma crítica cerrada à ideologia evolucionista e ao mito cientificista do progresso. O artigo desnuda Darwin e seus herdeiros como sacerdotes de uma religião laica, cuja função é legitimar o materialismo. Smith aparece como o cirurgião que separa ciência empírica de fabulação mitológica.
Artigo V – O ego e a besta.
Um mergulho na crise antropológica, mostrando como a modernidade rebaixou a pessoa à condição de instinto e função biológica. O texto confronta a noção de homem como mero animal racionalizado, em contraste com a concepção clássica e cristã de alma dotada de liberdade e abertura ao transcendente.
Artigo VI – A deificação do inconsciente.
A exposição das ilusões freudianas e junguianas, que transfiguraram o inconsciente em novo altar, onde o homem se ajoelha diante de suas pulsões e arquétipos. O artigo demonstra como a psicologia moderna substituiu a alma espiritual por uma zoologia do subsolo da mente.
Artigo VII – O “progresso” em retrospecto.
Um julgamento final da modernidade, na qual o progresso aparece como mito decadente, fadado ao colapso. A ciência, em vez de libertar, enredou o homem numa prisão metafísica. O artigo fecha a obra convocando ao retorno da sabedoria perene, aquela que reconhece no cosmos o espelho do transcendente e não o mecanismo do absurdo.
Artigo I – A ideia do universo físico.
Nada parece mais sólido ao homem moderno do que a convicção de que existe um “universo físico”, autônomo, fechado em si mesmo, regido por leis matemáticas que dispensam qualquer referência ao espírito ou ao transcendente. É a convicção que respiramos desde a infância, como se fosse o ar mais natural do mundo. Contudo, essa suposta certeza não é fruto da experiência, mas de uma metafísica clandestina, instaurada à socapa pelos pais fundadores da modernidade científica.
O que chamamos de universo físico não é o mundo que vemos e tocamos, mas uma construção conceitual que eliminou, de modo arbitrário, tudo aquilo que resiste à matematização. O azul do céu, o som do mar, a fragrância da flor, a doçura do fruto — tudo isso, que para qualquer ser humano constitui a essência do mundo vivido, foi declarado ilusão subjetiva. Restou apenas extensão, peso, movimento. Em vez da realidade plena, herdamos um esqueleto geométrico.
Galileu foi quem primeiro armou a cilada, ao distinguir entre qualidades primárias e secundárias: as primeiras, mensuráveis, seriam reais; as segundas, não. Descartes lhe deu forma filosófica, erguendo a parede que separa res extensa de res cogitans. Newton herdou a dicotomia e a revestiu de autoridade científica. O resultado foi a entronização de uma abstração matemática como se fosse a própria realidade objetiva. O universo físico não é uma descoberta científica, mas um dogma metafísico travestido de ciência.
E aqui se dá a ironia: o cientificismo, que se gaba de expulsar a metafísica, só subsiste porque se apoia em uma metafísica de segunda categoria. Ao proclamar que só é real o que pode ser quantificado, a ciência moderna não constatou nada, apenas decretou. Essa redução arbitrária é a raiz do empobrecimento ontológico que culminou num cosmos dessacralizado.
O universo físico, tomado como realidade última, é inabitável. Nenhum homem vive de massas em movimento. Vivemos de cores, de sons, de símbolos. O universo que a ciência descreve pode servir para fabricar máquinas, mas não para habitar o espírito. E é por isso que, quanto mais a modernidade avançou, mais se cavou o abismo entre o mundo que calculamos e o mundo que experimentamos.
O dogma da bifurcação transformou a percepção em fraude: a rosa não tem perfume, o sol não tem esplendor, o mar não tem canto. Tudo isso seria invenção da mente. A natureza, como ironizou Whitehead, não passa de um mecanismo mudo e incolor. Mas então, se a natureza é desprovida de qualidades, de onde saíram todas as qualidades que experimentamos? A resposta é absurda: saíram de nós mesmos, como ilusões do cérebro. É a apoteose da insensatez erigida em filosofia oficial.
Não espanta que, ao longo dos séculos, essa concepção tenha produzido uma cultura cada vez mais hostil ao sagrado. Pois se as qualidades são meras ilusões, também o símbolo, o rito, a poesia — toda mediação com o transcendente — se dissolve em fábula. A bifurcação cartesiana não expulsou apenas o perfume da rosa: expulsou o próprio sentido do cosmos.
Entretanto, o castelo de abstrações começou a ruir sob o peso da física moderna. A teoria da relatividade dissolveu as certezas do espaço e do tempo absolutos. A mecânica quântica desfez a imagem de partículas sólidas movendo-se em trajetórias definidas. O que restou não foi o “universo físico” sonhado pelos modernos, mas um campo de relações entre observador e observado. O próprio cientista, que se julgava juiz imparcial, entrou no palco como parte inseparável do drama.
Heisenberg resumiu bem: a física não nos dá uma visão do cosmos, mas das nossas relações com o cosmos. Isto equivale a dizer: o universo físico, enquanto entidade independente, jamais existiu. Foi sempre uma hipótese, um mito prometeico, útil para a técnica, fatal para a filosofia.
E aqui Smith crava a estaca no coração do cientificismo. O que a física contemporânea nos mostra não é a vitória da abstração, mas sua derrota. Quando mais tentamos agarrar a realidade em fórmulas, mais ela escapa. A função de onda de Schrödinger não descreve a coisa em si, mas a informação que temos sobre ela. O princípio da incerteza não revela apenas limites técnicos, mas o caráter fenomênico do conhecimento científico.
O que a ciência moderna inadvertidamente confessou é que não trata de realidades últimas, mas de fenômenos. O universo físico, longe de ser um absoluto, é apenas um modelo operacional. A caça escapa da rede no instante mesmo em que parece ser apanhada. O que sobra são equações — esqueletos matemáticos de uma realidade que não se deixa aprisionar.
E, no entanto, o mito persiste. Mesmo depois de sua ruína teórica, o universo físico continua moldando o imaginário moderno, sustentando a idolatria da técnica e a crença no progresso indefinido. A razão é clara: mais que uma hipótese, ele se tornou religião. A religião da matéria, da extensão e do cálculo, em cujo altar se sacrifica tudo o que não pode ser pesado ou medido.
É aqui que a crítica de Smith se torna libertadora. Não se trata de negar a ciência, mas de libertá-la do fardo de ser o que não é. A física pode descrever fenômenos, prever eventos, fabricar engenhos. Mas não pode substituir a metafísica, nem abolir as qualidades, nem decretar a inexistência do sagrado. O universo físico é apenas uma abstração útil, não a realidade.
Ao expor essa impostura, Smith recoloca o homem diante da sua experiência primeira: o mundo vivido, pleno de cores e sons, que não é ilusão, mas revelação. O cosmos verdadeiro é simbólico, porque carrega em si a marca do transcendente. O que a ciência declara “subjetivo” é, na verdade, objetivo em grau mais alto, porque é aí que o ser se manifesta em sua plenitude.
Assim, a tarefa não é destruir a ciência, mas recolocá-la em ordem hierárquica. A física pertence ao domínio fenomênico; a metafísica, ao do ser. Inverter essa ordem foi o grande erro da modernidade. Recuperar a ordem é reencontrar o cosmos sagrado.
O universo físico, reduzido a ossatura matemática, é um deserto. Mas o cosmos verdadeiro, recuperado pela sabedoria perene, é jardim. Entre o deserto e o jardim, a escolha define não apenas uma teoria, mas o destino de uma civilização.
Wolfgang Smith mostra que essa escolha ainda está diante de nós. E se quisermos sobreviver espiritualmente ao colapso da modernidade, teremos de romper o mito do universo físico e reabrir o horizonte da transcendência.
Eis o que significa romper a barreira do cientificismo: devolver ao homem o direito de habitar um mundo real, belo e significativo, em vez de vagar como fantasma em meio a equações.
Artigo II – O dilema cartesiano.
Se no primeiro momento a modernidade amputou o real em nome da matemática, no segundo ela edificou, com Descartes, o esquema conceitual que haveria de dominar os séculos: a separação entre a coisa extensa e a coisa pensante, entre res extensa e res cogitans. Com esse gesto, o filósofo francês acreditava estar resolvendo problemas, quando na verdade fundou o maior impasse de toda a história da filosofia ocidental. O dilema cartesiano é justamente este: ao dividir o real em dois domínios incomunicáveis, Descartes criou uma dicotomia insolúvel que até hoje aprisiona a ciência, a filosofia e a própria mentalidade do homem moderno.
O contexto em que esse dilema surgiu não pode ser ignorado. O Renascimento havia despertado o fascínio pela matemática como linguagem universal, e o platonismo tardio soprava a ilusão de que as essências poderiam ser traduzidas em proporções numéricas. Copérnico, Kepler, Galileu — todos bebiam dessa fonte. Mas foi Descartes quem, tomado por esse ardor, ergueu um sistema no qual o universo inteiro se reduz a mecanismo. Um mecanismo extenso, passível de descrição geométrica.
Se toda a natureza é mecanismo, não há lugar para qualidades intrínsecas: cor, som, calor são relegados ao espírito, enquanto o mundo externo se reduz a tamanho, forma e movimento. Surge assim a bifurcação. O mundo objetivo se converte em res extensa, uma máquina cósmica; a mente se torna res cogitans, uma substância à parte, testemunha impotente do espetáculo mecânico. É um arranjo cômodo para a matemática, mas desastroso para a filosofia.
E aqui começa o dilema: como pode a res cogitans, inextensa, sem partes nem dimensões, interagir com a res extensa, toda ela feita de extensão e movimento? Como podem impulsos mecânicos no cérebro produzir sensações espirituais? Como pode uma decisão da vontade — algo sem peso nem volume — mover um braço? Eis o problema da interação, jamais resolvido, sempre disfarçado.
Descartes tentou salvar o sistema invocando a Divindade. Deus, garantia última da veracidade das ideias claras e distintas, seria também o fiador da ponte entre mente e corpo. Mas a solução, além de inconvincente, era suicida: transformava a teologia em muleta para uma metafísica que a negava em essência. O Deus cartesiano não é o Deus vivo da tradição, mas um axioma introduzido para legitimar um mecanismo cego.
Não por acaso, os sucessores de Descartes logo dispensaram o artifício. A res cogitans foi emparedada no “sensório” newtoniano, e em seguida descartada como ilusão. Ficou apenas a res extensa, agora entronizada como realidade absoluta. O dilema cartesiano, longe de ser resolvido, foi simplesmente mutilado: cortou-se a mente fora do quadro. A consequência foi um mundo sem espírito, sem transcendência, sem sujeito.
Berkeley percebeu cedo o absurdo. Se tudo o que vemos e sentimos é reduzido a representações internas, então o mundo exterior é incognoscível. O bispo irlandês concluiu, com lógica cartesiana contra Descartes, que ser é ser percebido: esse est percipi. Não há substância extensa em si; há apenas percepções no espírito. Mas se tudo é percepção, não sobra cosmos: sobra fantasma. Berkeley derrubou Descartes, mas caiu na mesma armadilha, porque aceitou a premissa que devia ter recusado.
Kant, mais tarde, buscou uma solução mais robusta. Se o abismo entre sujeito e objeto parecia intransponível, sua resposta foi trazer o objeto para dentro das formas a priori da mente. Espaço e tempo não são propriedades do mundo em si, mas formas de nossa intuição. As coisas em si permanecem incognoscíveis, mas o fenômeno ganha consistência: é construção legítima da razão. Contudo, o dilema cartesiano não desaparece — apenas se radicaliza. O mundo exterior, enquanto coisa-em-si, torna-se o X incognoscível que nenhuma ciência jamais poderá alcançar.
O século XX ainda arrastava essa herança. Mesmo quando Husserl e Whitehead denunciaram a subjetivação das qualidades, ainda se via no horizonte a sombra do cartesianismo. A noção de que a percepção se reduz a imagens mentais é um dogma tão arraigado que até hoje molda o senso comum. O dilema cartesiano não é apenas um problema filosófico: é a ossatura invisível da modernidade.
Wolfgang Smith, com a precisão de quem conhece a física e a metafísica, expõe a falácia. O real não se divide entre um mundo objetivo mudo e uma mente subjetiva tagarela. O objeto da percepção não é uma imagem interna, mas o próprio objeto intencional. O que vemos não é uma fotografia cerebral, mas a coisa mesma, em sua manifestação. O dilema cartesiano nasce de um pressuposto injustificado: de que “a alma não tem janelas”. Mas a alma tem janelas, e através delas se abre para a realidade.
O grande erro de Descartes foi imaginar que, ao matematizar a natureza, ganhava-se clareza; quando, na verdade, o preço foi a mutilação do real. A bifurcação que criou o dilema é uma escolha arbitrária, não uma descoberta. Foi preciso declarar ilegítimas as qualidades sensíveis para que a física mecanicista pudesse existir. Foi preciso violentar a realidade para que a equação brilhasse.
E eis a ironia maior: a física moderna, filha desse gesto, acabou revelando que a realidade não é tão mecanicista assim. A relatividade dissolveu o espaço absoluto, a quântica aboliu a partícula sólida, o observador entrou no sistema. O dilema cartesiano se desfez não por ter sido resolvido, mas por ter sido engolido pelo colapso do seu próprio fundamento.
A modernidade, no entanto, continua cativa. Insiste em agir como se o universo fosse máquina, como se o homem fosse mente subjetiva isolada, como se o abismo fosse intransponível. Vive aprisionada em um mito, incapaz de perceber que a chave da libertação está na rejeição da premissa inicial.
Smith mostra que é possível sair desse círculo vicioso ao recuperar a metafísica perene. Se a percepção é intencional, se o objeto percebido é real e não mera imagem mental, então o cosmos volta a ser habitável. O dilema cartesiano, que parecia insolúvel, dissolve-se como miragem. Não havia dois mundos, mas um só, aberto tanto à ciência quanto ao espírito.
Ao desmontar a armadilha cartesiana, Smith devolve ao homem a possibilidade de unir novamente o visível e o inteligível. Recupera-se a visão tradicional: o mundo não é máquina nem fantasma, mas símbolo. Símbolo que remete ao transcendente, sem perder sua concretude.
Em última análise, o dilema cartesiano é a fábula que nos condenou ao exílio. A res extensa sem espírito é deserto; a res cogitans sem mundo é fantasma. Mas o homem não é nem deserto nem fantasma: é habitante de um cosmos real, saturado de significados. É essa verdade que o cientificismo tentou sepultar, e é essa verdade que agora precisa ser resgatada.
Assim se encerra o segundo artigo: a modernidade ergueu seu edifício sobre um dilema insolúvel. O preço foi a perda do cosmos. Romper com Descartes não é nostalgia medieval: é condição de sobrevivência espiritual. Só ao superar o dilema cartesiano podemos voltar a olhar o mundo não como extensão morta, mas como espelho do eterno.
Artigo III – Horizontes perdidos.
Há um instante na história em que a humanidade parece ter sofrido uma queda imperceptível, mas decisiva. Não falo de uma revolução armada, nem de uma catástrofe natural, mas de uma transformação cultural que, entre os séculos XIV e XV, arrancou o homem do horizonte da transcendência e o jogou num plano achatado, dessacralizado. Esse é o cenário que Wolfgang Smith descreve ao falar dos “horizontes perdidos”: a lenta, porém devastadora, perda do sagrado como centro de referência da vida humana.
Até então, mesmo em meio a erros e superstições, a civilização ocidental se mantinha dentro de uma ordem simbólica. O cosmos era percebido como sacramento, reflexo do divino, escala pela qual a alma podia ascender. O camponês que lavrava a terra e o filósofo que meditava sobre as esferas celestes partilhavam, ainda que em graus distintos, da certeza de que o mundo tinha sentido. As coisas não eram apenas coisas, mas sinais. O real se abria em direção ao transcendente.
A ruptura veio com a modernidade nascente, que trocou esse horizonte vertical por um plano horizontal. A nova ordem proclamava-se libertadora: arrancava o homem das “trevas” da tradição e o colocava diante do “progresso”. Mas a barganha foi cruel: em nome da autonomia, perdeu-se a referência ao Absoluto. O mundo deixou de ser espelho e se tornou objeto. A natureza, antes habitada por símbolos, foi reduzida a mecanismo.
É nesse ponto que a modernidade se revela como queda. Pois não foi apenas um deslocamento de perspectivas; foi a perda da dimensão mais alta da existência. O que antes se reconhecia como reflexo de Deus passou a ser tratado como massa inerte. O cosmos deixou de ser sacramento e se converteu em cenário. A vida deixou de ser peregrinação e se reduziu a sobrevivência.
Smith observa que esse processo não se deu de uma só vez, mas como um encolhimento gradual. As catedrais góticas, que erguiam seus arcos ao infinito, foram substituídas por edifícios utilitários. A poesia deixou de ser via de conhecimento para se tornar mero ornamento. A filosofia, que antes ousava falar do ser, passou a discutir apenas a linguagem. A transcendência, outrora evidente como o sol, tornou-se superstição.
A ciência moderna, com seu brilho prometéico, ocupou o trono. E o homem, embriagado pelo poder de medir, calcular e manipular, acreditou ter avançado. Mas esse avanço se deu ao preço de perder o céu. Ganhou-se o controle de fenômenos materiais, mas perdeu-se o sentido da totalidade. A troca foi injusta: em vez de um cosmos sagrado, herdamos um universo sem telos, um palco indiferente onde o homem aparece como acidente evolutivo.
A modernidade, celebrada como iluminação, é na verdade obscurecimento. Pois se o mundo não é mais símbolo, torna-se absurdo. Se não há um além, resta apenas o aquém. A promessa de progresso infinito esconde o deserto espiritual em que o homem moderno habita: um universo sem centro, sem sentido, sem destino.
Esse horizonte perdido é também o da própria alma. O homem, ao perder o sagrado, perdeu-se a si mesmo. Já não sabe de onde vem nem para onde vai. Vive como animal sofisticado, dotado de técnica, mas privado de transcendência. A angústia existencial que marca o mundo contemporâneo não é acaso psicológico: é sintoma metafísico. É o eco da perda dos horizontes.
A ironia é que essa queda foi celebrada como vitória. A crítica à superstição, a exaltação da razão, a expulsão dos deuses — tudo isso foi visto como emancipação. Mas a emancipação de quê? Da própria condição humana. Pois ao eliminar o transcendente, o homem eliminou aquilo que o fazia homem: a abertura para o eterno. Tornou-se, como diria Pascal, uma cana pensante, mas sem raiz e sem céu.
Smith insiste que o cientificismo não apenas falhou em explicar a realidade: ele obscureceu a possibilidade de qualquer explicação última. O cosmos dessacralizado é um plano onde nada mais pode ser compreendido senão como processo cego. O mito do progresso se torna, então, o único consolo: acreditar que, ainda que o mundo não tenha sentido, o futuro trará algum benefício. Mas é um consolo frágil, pois nada garante que o amanhã seja melhor que o hoje.
O horizonte perdido também significa a perda da hierarquia. Antes, sabia-se que o ser tinha graus: mineral, vegetal, animal, humano, angélico, divino. Hoje, tudo se nivela numa mesma superfície de matéria. O homem é animal, o animal é máquina, e a máquina se torna ideal de perfeição. A escala do ser se dissolve em um achatamento ontológico. O cosmos, antes escada de ascensão, virou engrenagem sem centro.
É nesse achatamento que floresce o desespero moderno. Pois o homem, sem horizontes, busca sentido no próprio vazio. Tenta sacralizar a ciência, divinizar o Estado, endeusar a técnica. Mas nenhum desses sucedâneos consegue substituir o perdido. São ídolos frágeis, que desmoronam diante da angústia da morte. Pois sem transcendência, a morte é o nada absoluto, e o nada não se suporta.
O que Smith nos mostra é que a perda do horizonte não é irreversível. É possível reabrir o olhar. Mas isso exige romper com a crença de que só o mensurável é real. Exige recuperar a metafísica tradicional, que reconhece nas qualidades sensíveis não ilusões, mas sinais. A rosa tem perfume porque participa do ser, e o ser é símbolo do eterno. A cor, o som, o gesto — tudo isso remete ao transcendente.
Romper o cientificismo é, portanto, reencontrar os horizontes perdidos. É devolver ao cosmos sua dimensão sagrada. É reconhecer que a ciência, por mais útil que seja, não diz a última palavra sobre a realidade. A última palavra pertence ao ser, e o ser é sempre mais do que o número.
A queda da modernidade foi troca de ouro por cobre: abandonamos a sabedoria perene em troca de mitos prometéicos. Mas o ouro permanece disponível, escondido sob as ruínas. Reabrir os horizontes é recolher esse tesouro, resgatar o mundo como símbolo e restaurar no homem a abertura para o transcendente.
Em suma, os horizontes perdidos não são apenas uma página da história: são a ferida da nossa época. A crise espiritual que vivemos é consequência direta da dessacralização do cosmos. Só a recuperação da dimensão metafísica pode curar essa ferida. O progresso não salva; só o retorno ao eterno salva.
Assim se conclui este terceiro artigo: a modernidade, ao perder a transcendência, condenou-se ao desespero. Mas esse desespero é também o sinal de que ainda buscamos o que perdemos. Reabrir os horizontes é a tarefa decisiva do nosso tempo: reencontrar no cosmos não o mecanismo, mas o sacramento.
Artigo IV – Evolução: fato e fantasia.
Poucas ideias exerceram tamanho fascínio sobre a mentalidade moderna quanto a da evolução. Desde Darwin, a palavra tornou-se senha mágica: pronuncie-a e tudo se explica, invoque-a e todo mistério se dissolve. O evolucionismo não é apenas uma teoria científica; é um mito, um dogma cultural, o substituto moderno da criação. E como todo mito, dispensa demonstração rigorosa: basta a narrativa, basta a sugestão de que o simples acaso, multiplicado ao infinito, pode gerar ordem, beleza e complexidade. Wolfgang Smith, com a lucidez que lhe é própria, denuncia esse engodo: a evolução, mais que ciência, é fantasia travestida de fato.
Darwin acreditava ter descoberto o mecanismo da vida na luta cega pela sobrevivência, regulada pela seleção natural. A fórmula parecia genial: não é preciso Deus, não é preciso inteligência, basta o acaso. As pequenas variações, selecionadas pela pressão do ambiente, explicariam desde a coloração da borboleta até a consciência do homem. O mundo inteiro, de átomos a civilizações, seria produto de um processo impessoal, sem sentido e sem direção.
Mas a fragilidade da teoria já estava à vista desde o início. Como explicar que mutações aleatórias, quase sempre deletérias, pudessem acumular-se de maneira a construir órgãos complexos como o olho, ou estruturas como a asa? Como imaginar que a mera luta pela sobrevivência pudesse produzir a simetria da flor ou a harmonia do canto do pássaro? Darwin respondia com hipóteses ad hoc, sempre adiando a dificuldade para o futuro. E a posteridade aceitou a fábula como ciência, porque ela legitimava o espírito da época: um mundo sem criador, governado pelo acaso.
O que se esconde por trás da evolução não é tanto uma explicação, mas uma vontade. A vontade de eliminar a transcendência. A teoria foi recebida como libertação porque parecia expulsar o desígnio do cosmos. Ao invés de um mundo criado, tínhamos agora um mundo surgido, produto da necessidade cega. A evolução se tornou, assim, a nova cosmogonia da modernidade.
Smith mostra que a força da teoria não reside em suas provas, mas em sua função ideológica. Ela dá à modernidade um mito fundador, uma narrativa capaz de sustentar o culto ao progresso. Pois se tudo evolui, também a humanidade evolui; se a vida progride do simples ao complexo, também a sociedade progride do primitivo ao avançado. A evolução natural se converte em justificativa para o otimismo histórico. O futuro, por definição, será melhor.
Mas a experiência contradiz o mito. A história não é linha reta, mas drama. As civilizações sobem e caem, os impérios florescem e ruem. Não há lei que garanta progresso moral ou espiritual. A ideia de que a humanidade caminha inevitavelmente para o melhor é superstição laica, filha direta da crença evolucionista.
Na biologia, a situação não é menos precária. A cada década, novas descobertas revelam a complexidade abissal do DNA, das proteínas, das interações celulares. A probabilidade de que tais sistemas tenham surgido por acaso é infinitesimal, próxima do impossível. A própria noção de “mutação aleatória” se mostra insustentável diante da sofisticação das máquinas moleculares. Mas em vez de abandonar o dogma, os cientistas multiplicam narrativas fantasiosas, imaginando bilhões de anos como tempo suficiente para o impossível.
A evolução é, portanto, a religião do acaso. Um credo que se sustenta não na evidência, mas na fé de que o absurdo pode tornar-se necessário quando multiplicado pelo infinito. É a velha fórmula: dado tempo suficiente, o impossível acontece. Mas isso não é ciência: é magia. É uma aposta desesperada para manter de pé a cosmovisão materialista.
Smith insiste em que não é preciso negar os fatos observados — adaptações, variações, microevoluções — para desmontar o mito. O problema não está no reconhecimento de mudanças no tempo, mas na extrapolação indevida que as transforma em dogma universal. A borboleta pode mudar de cor; daí a supor que o homem descende do peixe é salto de fé, não conclusão científica.
O mais grave é que a evolução não apenas fornece uma explicação biológica, mas molda toda a visão de mundo. Se a vida é produto do acaso, também a mente o é. Se a mente é acaso, também a moral o é. E assim, pouco a pouco, todo fundamento da ordem humana se dissolve. O homem se vê como acidente cósmico, animal sofisticado sem dignidade intrínseca. O mito da evolução legitima a degradação do humano.
Não se deve esquecer que o evolucionismo floresceu no mesmo solo que produziu o positivismo e o cientificismo. É parte da mesma rebelião contra a metafísica. E, como toda rebelião contra a verdade, gera monstros. O darwinismo social, que justificou genocídios, escravidão e eugenia, não foi desvio da teoria, mas aplicação coerente de seus pressupostos. Se a vida é luta pela sobrevivência, nada mais natural que a eliminação dos fracos pelos fortes. A evolução, levada às últimas consequências, é legitimação da barbárie.
A crítica de Smith é, portanto, dupla: científica e metafísica. Científica, porque mostra que a evolução carece de provas suficientes e repousa sobre especulações. Metafísica, porque revela que a teoria se sustenta numa negação prévia da finalidade e da transcendência. Não se trata de ciência neutra, mas de ideologia camuflada.
No fundo, o evolucionismo é uma fantasia porque promete o que não pode cumprir: transformar acaso em sentido. Ele substitui a inteligência por sorte, a criação por acidente, a ordem por caos. Mas nenhum acidente produz símbolos, nenhum caos gera transcendência. O cosmos não é acaso organizado, mas ordem significativa.
O mito da evolução é poderoso porque corresponde ao orgulho humano. O homem prefere ser filho do acaso a ser criatura de Deus, porque assim preserva a ilusão de autonomia. Mas essa autonomia é falsa: se somos apenas produto de mutações cegas, não somos livres, somos marionetes do acaso. A evolução, que parecia libertar, escraviza.
Smith nos convida a romper esse feitiço. Não para negar a ciência, mas para pô-la no devido lugar. As observações empíricas não autorizam a narrativa mitológica. A vida não se explica por acaso, mas por forma, por logos, por inteligência. O cosmos não é fruto da fantasia darwinista, mas expressão do eterno.
Assim, “fato e fantasia” é título justo. Há fatos: mudanças, adaptações, variações. Mas a fantasia é transformá-los em cosmogonia universal. O darwinismo é mito disfarçado de ciência, dogma laico que substitui a criação. E enquanto não rompemos com ele, continuaremos prisioneiros de um universo sem sentido.
O que está em jogo não é apenas uma teoria biológica, mas a visão que temos de nós mesmos. Se a vida é acaso, o homem é nada. Se a vida é criação, o homem é chamado ao eterno. Eis a escolha diante da qual estamos: mito ou verdade, acaso ou logos, fantasia ou transcendência.
Assim se encerra o quarto artigo: a evolução, mais que ciência, é o mito da modernidade. Romper com ele é condição para recuperar o cosmos sagrado. Enquanto o dogma evolucionista reinar, permaneceremos hipnotizados por uma fantasia que dissolve o sentido. Libertar-se é reconhecer que o ser não nasce do nada, mas vem do Eterno.
Artigo V – O ego e a besta.
A modernidade, ao cortar os laços que uniam o homem ao transcendente, produziu um efeito imediato: a degradação da própria noção de pessoa. Onde antes se falava em alma racional, em sujeito aberto ao logos, em imagem e semelhança de Deus, passou-se a falar em instinto, pulsão, mecanismo. O homem, que se sabia peregrino no cosmos simbólico, é agora apresentado como mera peça zoológica. O animal humano substitui a pessoa espiritual. Eis o drama: a alma foi banida, e em seu lugar ergueu-se o ídolo da besta.
Mas não se trata apenas de zoologia. O vazio deixado pela expulsão da alma não foi preenchido pelo silêncio: foi ocupado pelo ego. Esse ego moderno, que não é a alma, mas a caricatura da alma, tornou-se o novo centro de referência. Inflado, vaidoso, narcisista, ele vive de reflexo, não de substância. É o espelho deformado que a cultura oferece ao homem como identidade. E entre a inflação do ego e a animalidade da besta, o homem real se dissolve.
A tradição sabia que a condição humana é tensão entre limites biológicos e vocação espiritual. O corpo traz consigo as marcas da natureza; a alma, as marcas do eterno. É nessa síntese que reside a dignidade da pessoa. Mas, ao negar o espírito, a modernidade rompeu a síntese. Restou apenas a tensão degradada: o ego, que se crê livre mas não é, e a besta, que exige satisfação imediata. Entre os dois, o homem moderno vive em conflito, oscilando entre ilusões e impulsos.
O ego é frágil, mas arrogante. Sustenta-se em imagens, títulos, identidades fabricadas. Quer ser reconhecido, quer ser adulado, mas não suporta ser confrontado com a realidade. A besta, ao contrário, é cega, mas vigorosa. Exige alimento, prazer, domínio. Não conhece futuro nem transcendência: só presente e instinto. E o drama é que, no homem moderno, os dois se alimentam mutuamente: o ego infla-se ao satisfazer a besta; a besta se fortalece ao ser usada como vitrine do ego.
Esse círculo vicioso foi legitimado pela psicologia moderna. Freud declarou que o ego não passa de fachada construída sobre o id, depósito de pulsões animalescas. Jung substituiu a alma pela coletividade dos arquétipos, dissolvendo a singularidade em forças impessoais. Ambos, à sua maneira, apagaram a pessoa espiritual. A psicologia não resgatou o homem: rebaixou-o ainda mais. Em vez de alma, pulsão; em vez de sujeito, máscara; em vez de liberdade, condicionamento.
O resultado cultural dessa visão é devastador. Quando se acredita que o homem é apenas ego e besta, nada o distingue essencialmente do animal. Perde-se a dignidade intrínseca, perde-se a base da moral. Se somos só instintos, tudo é permitido. Se somos só egos, tudo é relativo. A consequência é a barbárie mascarada de progresso: sociedades onde se fala em direitos, mas se pratica a desumanização; onde se proclama liberdade, mas se cultiva a escravidão às paixões.
Essa condição explica a fragilidade do homem contemporâneo. Nunca se falou tanto em autoestima, em autonomia, em autossuficiência, e nunca o homem foi tão frágil. Porque o ego, sem a alma, não tem raízes. É espuma sobre o mar. Diante da dor, do fracasso, da morte, ele se desfaz. A besta, por sua vez, não conhece consolo: exige cada vez mais, devora sem cessar, mas nunca se sacia. O homem moderno é, por isso, dividido e exausto: um ego fatigado tentando controlar uma besta insaciável.
Smith percebe que esse estado não é acidente, mas consequência lógica da modernidade. Ao abolir a metafísica e a teologia, a cultura não poderia produzir senão caricaturas. Não havendo alma, inventa-se o ego; não havendo espírito, exalta-se a besta. É a substituição do verdadeiro pelo falso, da ordem simbólica pela ordem zoológica.
Essa inversão aparece em todas as esferas. A política tornou-se disputa de egos inflados, sem referência ao bem comum. A economia transformou-se em máquina de satisfazer bestas, estimulando desejos e multiplicando vícios. A arte degenerou em exibição do ego, em espetáculo de impulsos. O homem, privado de transcendência, projeta seus restos em ídolos, esperando neles encontrar sentido.
Mas nada substitui a alma. A nostalgia do eterno ressurge, por mais abafada que seja. O ego não basta, a besta não basta. Há no homem uma ferida que só o transcendente cura. Mesmo quem nega a alma sente a ausência dela: sente o vazio, sente a angústia. Essa angústia, longe de ser doença, é sinal de que o homem é mais do que a modernidade lhe permite ser.
A besta, quando domina, gera tirania interior. O ego, quando infla, gera alienação. O homem, nesse jogo, perde a si mesmo. Só a alma, recuperada em sua dignidade, pode reconciliar as dimensões. Só ela pode governar a besta sem sufocá-la e esvaziar o ego sem destruí-lo. A tradição chamava isso de ordem interior, ou virtude. Sem alma, não há ordem: há apenas conflito.
É aqui que a crítica de Smith se une à sabedoria perene. A alma é realidade, não metáfora. É ela que garante a liberdade, a moral, a abertura ao eterno. Reduzir o homem ao ego e à besta é amputá-lo do que ele é. É como tomar a sombra por substância. A modernidade fez isso e chama sua mutilação de “progresso”.
Se quisermos restaurar o homem, é preciso restaurar a alma. Não basta denunciar os vícios do ego ou os excessos da besta. É preciso recuperar a metafísica que sustenta a pessoa, é preciso voltar ao logos. Sem essa base, toda reforma é paliativo. O homem continuará escravo de impulsos ou refém de ilusões.
O artigo de Smith aponta que a ciência, quando pretende explicar o homem como mero produto zoológico, trai seu próprio campo. Pois a ciência descreve fenômenos, mas não esgota a realidade. O homem é mais do que fenômeno: é símbolo, é mistério. Não se explica a pessoa com estatísticas nem com neurotransmissores. Explicar é reduzir; compreender é elevar.
A civilização atual paga o preço de esquecer essa distinção. Vivemos rodeados de tecnologia, mas carentes de sentido. Multiplicamos prazeres, mas aumentamos o vazio. O ego e a besta se multiplicam, mas a alma se cala. A crise contemporânea não é econômica nem política em sua raiz: é antropológica. É o drama de ter esquecido o que é o homem.
Eis por que o resgate da transcendência é urgente. Não é questão de devoção particular, mas de sobrevivência cultural. Uma sociedade de egos e bestas não dura: implode em violência, vício, desespero. Só uma sociedade fundada na alma, no reconhecimento da dignidade espiritual, pode florescer.
Assim se encerra o quinto artigo: o homem moderno, reduzido ao ego e à besta, perdeu-se. O caminho de volta exige romper o dogma materialista e recuperar a alma como centro. Pois só a alma reconcilia, só a alma liberta, só a alma abre para o eterno. O resto é zoologia travestida de ciência e narcisismo travestido de liberdade.
Artigo VI – A deificação do inconsciente.
Se a modernidade degradou o homem ao reduzi-lo a ego e besta, não tardou a inventar um novo altar onde pudesse ajoelhar-se. Já que não suportava a ideia da alma espiritual, o homem moderno encontrou substituto no inconsciente. Freud e Jung tornaram-se, então, os sumos sacerdotes de uma nova religião: a religião das profundezas obscuras da psique. O que antes era lugar de desordem, de sombras, de tentações, converteu-se em divindade. O inconsciente passou a ser não apenas o motor oculto da vida, mas o próprio deus a quem tudo se deve.
Freud foi o primeiro a organizar esse culto. Para ele, a consciência não passa de fachada frágil, sustentada por pulsões subterrâneas de natureza sexual e agressiva. O homem não é sujeito livre, mas escravo do id, entidade cega que exige satisfação. A moral, a cultura, a religião — tudo isso não seriam senão mecanismos de repressão. O destino do homem seria, portanto, reconciliar-se com suas pulsões, aceitar sua escravidão, abandonar ilusões. Assim, Freud fez do inconsciente um demiurgo: não apenas explicação dos comportamentos, mas fundamento da própria existência.
Jung, por sua vez, não ficou atrás. Substituiu o id por arquétipos coletivos, e a libido por energias míticas. Mas a operação foi idêntica: a alma individual foi dissolvida em forças impessoais, misteriosas, irresistíveis. O inconsciente, em Jung, não é menos divinizado que em Freud. Torna-se instância que tudo determina, oráculo que tudo interpreta. Se Freud via no inconsciente a besta, Jung via nele a divindade. Ambos, no entanto, apagaram a alma e colocaram em seu lugar uma ficção.
Smith enxerga a astúcia dessa inversão. O que a modernidade fez foi transferir o sagrado da esfera transcendente para o subsolo da psique. Em vez de Deus, o id; em vez do logos, o arquétipo; em vez da graça, a pulsão. A psicanálise não libertou o homem do mito: apenas criou um mito novo, travestido de ciência. E como todo mito moderno, ele serve para confirmar o dogma central: não existe transcendência, só existe o homem fechado em si mesmo.
O culto ao inconsciente tem consequências culturais diretas. A moral deixa de ser busca do bem e passa a ser expressão de desejos reprimidos. A religião deixa de ser revelação e passa a ser projeção do inconsciente coletivo. O amor deixa de ser entrega e passa a ser sublimação da libido. Nada mais tem dignidade em si: tudo se reduz ao jogo de forças irracionais. O resultado é uma sociedade que já não acredita em verdades, mas em terapias.
Esse deslocamento gera ainda uma inversão perigosa: aquilo que a tradição reconhecia como desordem da alma — tentações, paixões, ilusões — passa a ser visto como fonte de autenticidade. O homem moderno, ao invés de lutar contra suas paixões, passou a venerá-las. O que antes era chamado vício virou “expressão genuína do inconsciente”. A psicanálise tornou-se, nesse sentido, catecismo de uma nova religião, em que o altar é o divã e o sacerdote é o analista.
A divinização do inconsciente explica, em parte, a cultura contemporânea. Por que tanto culto à espontaneidade? Por que tanto desprezo pela razão? Por que a exaltação de instintos e desejos como critério de autenticidade? Porque, segundo o mito moderno, é no inconsciente que reside a verdade. A consciência é máscara; a moral, repressão; a fé, ilusão. O verdadeiro eu estaria no subterrâneo obscuro, e não no logos.
Mas essa inversão, que parece libertadora, é na realidade prisão. Pois se o inconsciente é o deus oculto que determina tudo, o homem não é livre. Não há responsabilidade, não há culpa, não há mérito. Somos apenas títeres das forças internas. A psicanálise promete cura, mas oferece fatalismo. Substitui a liberdade pela necessidade, e a transcendência pelo instinto.
Smith mostra que essa divinização é também um sintoma do vazio moderno. Expulso o Deus transcendente, é inevitável que se busque substitutos. E onde mais encontrá-los senão dentro do próprio homem? O inconsciente é a última trincheira do sagrado para um mundo que perdeu a fé. Mas esse sagrado é falso: não eleva, rebaixa; não liberta, aprisiona.
A ironia é que Freud e Jung, cada um a seu modo, criaram sistemas que funcionam como mitologias modernas. O primeiro com seus mitos edípicos, o segundo com seus arquétipos universais. Ambos foram tomados como ciência, mas ambos operam como narrativas simbólicas. O inconsciente é, afinal, apenas o nome novo para o velho mistério do mal e da desordem, mas agora sem horizonte de redenção.
A tradição cristã jamais negou a existência de profundezas obscuras na alma. Chamou-as de paixões, tentações, inclinações ao pecado. Mas nunca as divinizou. Pelo contrário, apontou a necessidade de purificação, de ascese, de graça. O inconsciente, na tradição, não é deus, mas terreno de batalha. É isso que a psicanálise inverteu: transformou a batalha em culto, o inimigo em altar.
O resultado é que o homem moderno já não luta contra si mesmo: idolatra suas sombras. Vive convencido de que sua verdade mais alta está nas regiões inferiores da psique. O que era subterrâneo virou divino; o que era obstáculo virou revelação. É a inversão completa da ordem espiritual.
Essa inversão alimenta ainda um cinismo corrosivo. Se tudo é produto do inconsciente, não há verdade objetiva, não há bem real. Toda crença é sintoma, toda virtude é máscara, toda fé é neurose. A psicanálise, em nome da cura, dissolve o real. E ao dissolvê-lo, torna-se ela mesma incapaz de oferecer cura. Pois quem pode curar se não reconhece a realidade?
Smith insiste que a saída não está em negar a psique, mas em colocá-la em seu devido lugar. Sim, existem camadas obscuras na alma, mas elas não são fundamento nem divindade. São apenas dimensões que precisam ser integradas sob a luz do logos. O inconsciente não é deus, mas criatura. E como criatura, não pode ocupar o trono do Absoluto.
O que se exige é a restauração da hierarquia. O inconsciente existe, mas não é supremo. A consciência existe, mas não é autossuficiente. Acima de ambas está a alma espiritual, aberta ao transcendente. Só ela pode ordenar as forças interiores, discernir símbolos e dirigir o homem ao seu fim último. Sem essa alma, a psique se torna tirania.
A modernidade, ao deificar o inconsciente, revelou sua sede de transcendência, mas também seu desespero. É a sede de um deus que não quer reconhecer, e o desespero de ter que inventar um substituto. O culto ao inconsciente é, em última análise, idolatria: substitui o Criador pela criatura, o espírito pelo instinto.
Assim se encerra o sexto artigo: a psicanálise, em vez de iluminar a alma, obscureceu-a; em vez de libertar, aprisionou. O inconsciente, transformado em deus, não salvou o homem, mas o acorrentou. Só o retorno ao logos, só a recuperação da alma espiritual, pode restituir ao homem sua dignidade. Todo o resto é culto às sombras.
Artigo VII – O “progresso” em retrospecto.
Chegamos, enfim, ao mito mais persistente da modernidade: o mito do progresso. Desde o século XVIII, o Ocidente vive embriagado pela ideia de que a humanidade caminha inevitavelmente para melhor, de que cada geração supera a anterior, de que a marcha da história é ascendente. A ciência, a técnica, a política, a economia — tudo seria sinal de uma evolução contínua rumo ao aperfeiçoamento. Wolfgang Smith mostra que esse mito, longe de ser sustentado pela realidade, é uma ilusão construída sobre as ruínas do sagrado. O progresso não é fato, mas fé; não é ciência, mas superstição.
O fundamento dessa crença foi a extrapolação da biologia darwinista para o campo da história. Se as espécies evoluem do simples ao complexo, por que a sociedade não faria o mesmo? Essa transposição, porém, é ilegítima. A biologia já carece de provas suficientes para sustentar o mito da evolução; aplicá-lo à história é apenas dobrar o erro. Mas a modernidade precisava dessa ilusão: precisava crer que, embora tivesse expulsado Deus e a transcendência, caminhava ainda assim para algum sentido. O progresso se tornou, assim, o novo céu.
Mas basta olhar para trás para perceber a falácia. A história não é linha reta, mas ciclo. Civilizações florescem e caem, impérios ascendem e ruem. A Roma imperial, que parecia eterna, desmoronou. A cristandade medieval, que parecia inquebrantável, fragmentou-se. As promessas da Revolução Francesa resultaram em guilhotina e terror. O século XX, que se gabava de ser o mais avançado, produziu os campos de extermínio e as bombas atômicas. Onde está o progresso inevitável?
O progresso material é inegável: temos máquinas, remédios, tecnologia. Mas progresso material não é progresso humano. O homem contemporâneo vive mais tempo, mas não sabe para quê. Tem mais conforto, mas menos sentido. Domina a natureza, mas não domina a si mesmo. Multiplica recursos, mas empobrece espiritualmente. Se o progresso é apenas acumulação de meios, sem direção de fins, não é progresso: é corrida cega rumo ao abismo.
Smith insiste que o mito do progresso não se sustenta sem o dogma do universo físico. Pois se o cosmos é apenas mecanismo, não há telos. E se não há telos, a única esperança é projetar um telos artificial: o progresso. Mas esse telos é vazio, porque não responde à questão fundamental: progresso para onde? O que significa avançar, se não sabemos o fim? Sem finalidade, o progresso é apenas deslocamento, e deslocamento não é avanço.
A própria ciência, que se dizia fundamento do progresso, mostra seu limite. Cada avanço tecnológico resolve um problema, mas cria outros. A medicina prolonga a vida, mas multiplica a solidão. A internet conecta milhões, mas aprofunda a alienação. A energia nuclear ilumina cidades, mas ameaça destruir o planeta. O progresso técnico é ambivalente, não absoluto. Pode ser bênção ou maldição. E uma humanidade sem bússola espiritual tende a transformar toda bênção em maldição.
O mito do progresso alimenta ainda a idolatria do futuro. O homem moderno já não vive no presente, nem guarda a memória do passado: projeta-se sempre adiante, esperando que o amanhã redima o vazio de hoje. Mas o futuro, quando chega, nunca cumpre a promessa. Chega carregado de novos problemas, de novas frustrações. O amanhã é sempre adiado, sempre ilusório. A esperança que deveria estar em Deus é depositada no calendário, e o calendário é ídolo cruel.
Essa idolatria do futuro corrói até mesmo a moral. Se tudo progride, o que era errado ontem será certo amanhã. A verdade deixa de ser absoluta para se tornar relativa ao “avanço” histórico. O que importa não é o ser, mas o devir. O resultado é a corrosão de todos os princípios: família, religião, pátria, moralidade — tudo é provisório, tudo será superado. O progresso se torna álibi para a destruição.
Smith nos lembra que esse mito não resiste a um olhar retrospectivo. Basta observar o percurso da modernidade para ver que, à medida que avançamos tecnologicamente, regredimos espiritualmente. O século das luzes produziu o século dos horrores. A civilização que proclamava a dignidade humana erigiu os maiores instrumentos de desumanização. O progresso, visto em retrospecto, revela-se retrocesso.
A grande falácia é confundir acúmulo de informações com sabedoria, acúmulo de meios com finalidade, acúmulo de poder com virtude. O homem moderno sabe mais, mas compreende menos. Consegue mais, mas quer menos. Constrói mais, mas destrói mais rápido. O progresso não é linear, mas ambíguo. E, sem transcendência, tende a inclinar-se para a destruição.
A sabedoria perene sempre advertiu: progresso verdadeiro não é multiplicar ferramentas, mas elevar a alma. Progresso é ascensão no ser, não no consumo. Progresso é aproximação do eterno, não adulação do transitório. O que a modernidade chama de progresso é, muitas vezes, decadência disfarçada de avanço.
Por isso Smith pode afirmar, com ironia amarga, que o progresso em retrospecto é o nome do desastre. O homem moderno, olhando para trás, descobre que trocou o sagrado pelo utilitário, a sabedoria pelo cálculo, a contemplação pela técnica. E agora, diante do vazio, pergunta-se por que tudo perdeu sentido. A resposta é simples: porque confundiu meios com fins, confundiu técnica com verdade, confundiu progresso com salvação.
O que resta, então, é romper o feitiço. O progresso, enquanto mito, deve ser denunciado. Não se trata de negar a ciência ou desprezar a técnica, mas de recusar sua idolatria. O verdadeiro avanço não está no futuro indefinido, mas na reconexão com o eterno. Só o transcendente salva o homem do vazio.
Assim se conclui o sétimo artigo: a modernidade, que se julgava coroada pelo progresso, revela-se traída por ele. O progresso, visto de frente, parece esperança; visto de costas, é desastre. Só o retorno ao logos, só a restauração da ordem simbólica, pode devolver ao homem um horizonte verdadeiro. Sem transcendência, o futuro é miragem; com transcendência, até o presente se ilumina.
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