quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nota de Quinta - 04 de Setembro.

A ideia de mínimo esforço é um princípio que orienta grande parte das nossas escolhas: se for possível obter o maior retorno com o menor dispêndio, tanto melhor para nós. Essa lógica, que vale para o trabalho e para as ações práticas do cotidiano, também se aplica ao campo dos pensamentos e crenças. É sempre mais fácil aderir a uma formulação extravagante, ainda que fora dos cânones do bom senso, do que realizar o esforço de harmonizar o imaginário com aquilo que é factível — aquilo que Aristóteles chamava de real.
É justamente nesse ponto que florescem as explicações improváveis para fenômenos obscuros: vida extraterrestre, mortos que retornam, viajantes do tempo e indivíduos que supostamente pertencem a realidades paralelas. Entre tais possibilidades, concentro-me aqui na penúltima — a noção de pessoas deslocadas em mundos outros, como se existissem enclaves de realidade à margem da nossa.

(Jardel Almeida)

O sertão sempre teve dessas coisas. Você sai para caçar, como quem repete um costume antigo, e no meio da caminhada o espaço se abre para uma surpresa. Foi o que aconteceu: depois de subir um monte, deparar-se com um vilarejo que parecia suspenso no tempo. Sete casas apenas, gente que só se relacionava entre si, sem saber nem o nome da cidade que ficava a vinte quilômetros. A estranheza não era a pobreza, não era o isolamento físico, mas a sensação de estar pisando em outro mundo.
Essa experiência parece uma versão sertaneja de casos famosos, como o do homem de Taured, aquele sujeito que apareceu em Tóquio com passaporte de um país inexistente. A diferença é que, no meu caso, as casas estavam ali, o chão era palpável, a fumaça saía dos fogões. Era real, mas era como se não fosse. A gente cresce acreditando que todo mundo compartilha a mesma realidade, mas às vezes se descobre que a vida funciona em enclaves, pequenas ilhas de tempo e espaço que não se comunicam com o resto.
Pensa no tanto de lugares apagados da história. Até o século XIX se falava em Tartária como se fosse uma potência no norte da Ásia. Mapas traziam o nome, viajantes descreviam, mas de repente sumiu da cartografia. Não é que a terra deixou de existir; foi o nome, o registro, a identidade coletiva que evaporou. Hoje a gente chama de Rússia, Mongólia, Sibéria. É o mesmo solo, mas outra narrativa. Essa manipulação de mapas mostra como o que existe depende do que o poder decide mostrar.
O vilarejo que encontrei na infância funciona assim, mas num microcosmo. Eles existem fisicamente, mas o “mapa mental” da região não os inclui. Se ninguém os reconhece e eles não reconhecem ninguém, é como se tivessem sido riscados do mundo. O Taured do sertão. Uma cidade invisível que não precisou de máquinas dimensionais nem de buracos de minhoca. Bastou o esquecimento.
Um paralelo disso acontece até em cidades grandes. Tem bairros em São Paulo ou no Rio onde a polícia não entra, o correio não entrega, e o resto da cidade finge que não existe. Mas ali tem gente, comércio, festas, vida acontecendo. São comunidades inteiras que não aparecem no mapa oficial, embora estejam coladas na avenida principal. É o mesmo fenômeno: um enclave dentro do todo.
A própria Amazônia é um arquipélago de realidades ocultas. O Estado brasileiro reconhece oficialmente algumas tribos isoladas, mas há muito mais que vivem sem contato e sem nome oficial. São gente do presente, mas invisíveis à história. Eles não “deixaram de existir”, apenas estão encapsulados. E quando algum explorador cruza com eles, a sensação é igual à minha: parece ter encontrado outro universo.
O curioso é que não se trata só de lugares distantes. Até dentro da Europa isso aconteceu. Havia uma república chamada Cospaia, na Itália, que sobreviveu de 1440 até 1826 porque um erro de cartógrafo fez os papas e os florentinos esquecerem da existência dela. Durante quase quatro séculos, ninguém percebeu que aquele pedaço de terra tinha se tornado independente. Um enclave acidental, mantido pelo descuido dos poderosos.
O mesmo se pode dizer da ilha Bermeja, que aparecia em mapas antigos do México, mas que no século XX simplesmente sumiu. Cientistas dizem que pode ter afundado, mas há teorias de que foi apagada para resolver disputas de petróleo no Golfo. Uma ilha inteira, desaparecida dos registros, como se nunca tivesse existido. Esse é o poder de controlar o mapa: você decide o que existe e o que não existe.
Voltando ao sertão, o mais inquietante é o olhar dos moradores. Não era que não sabiam o nome da cidade vizinha porque eram ignorantes; era porque essa informação simplesmente não fazia parte do mundo deles. O universo terminava na cerca daquelas casas. O resto era desinteressante, talvez até inexistente para eles. Isso dá a impressão de que realidades diferentes coexistem no mesmo território.
É como se a humanidade fosse um mosaico de mundos paralelos, mas todos encaixados no mesmo planeta. Você atravessa um monte e cruza uma fronteira invisível, não marcada em nenhum mapa, mas que altera totalmente a percepção de realidade. Não precisa de física quântica para isso: basta a falta de interação.
No fundo, é o mesmo mecanismo que isola quem mora em uma favela do centro financeiro da cidade. Ambos estão separados por poucos quilômetros, mas o abismo cultural, político e econômico cria universos diferentes. São enclaves sociais que se ignoram mutuamente, ainda que compartilhem a mesma rua.
Esse padrão sugere que a Terra é cheia de Taureds locais. Vilarejos, bairros, tribos, até países inteiros que vivem encapsulados, invisíveis para o resto. O que aconteceu na Paraíba não é exceção: é a regra escondida da história. O problema é que a gente está tão acostumado com o mapa escolar que esquece que a realidade não cabe em linhas e legendas.
Outra analogia é com os mosteiros isolados do Tibete. Durante séculos, monges viveram ali sem contato com o mundo exterior, cultivando saberes próprios, como se fossem um país à parte. Só no século XX o mundo os absorveu, mas até então eram Taureds espirituais, enclaves que existiam e não existiam ao mesmo tempo.
Até na internet isso se repete. Pense nas chamadas “dark webs”: espaços digitais que funcionam em paralelo à rede oficial. Para a maioria das pessoas, elas não existem, mas ali há comunidades inteiras com suas próprias regras. É o mesmo conceito de enclave invisível, só que em versão digital.
Voltando ao vilarejo sertanejo, o choque é perceber que a ocultação não precisa de barreiras físicas ou censura explícita. Ela pode ser tão simples quanto a falta de pontes. Se eles nunca foram até a cidade e a cidade nunca foi até eles, o resultado é o mesmo: invisibilidade mútua.
Isso muda a forma de pensar o caso de Taured. Talvez o homem não viesse de outro universo, mas de um enclave esquecido, apagado da cartografia oficial. Ele não estava errado ao afirmar que seu país existia; errado estava o mapa que negava a existência dele.
Essa hipótese é mais perturbadora do que universos paralelos. Porque sugere que há territórios inteiros escondidos à nossa volta, intencionalmente ou por descuido, e que qualquer um de nós pode tropeçar neles sem aviso. Eu tropecei no sertão. Outros tropeçaram em aeroportos, florestas, fronteiras.
A diferença é que, quando isso acontece em escala global, logo entram forças maiores para apagar o rastro. No meu caso, ficou só a lembrança. Mas imagine se aquele vilarejo fosse encontrado por militares, jornalistas ou pesquisadores: ou seria “descoberto” e absorvido, ou seria silenciado. É sempre assim.
Esse jogo de aparecer e desaparecer no mapa é antigo. Roma chamava algumas regiões de “terra incognita”, não porque não existissem, mas porque não estavam sob controle. O desconhecimento era uma forma de negar a existência. Hoje, a ONU e os Estados modernos cumprem esse papel: o que não está reconhecido oficialmente, não existe.
No entanto, a vida sempre escapa. Existem lugares que insistem em ser, mesmo quando o mapa os ignora. Meu vilarejo é um desses. O homem de Taured também. A Cospaia medieval, idem. São janelas para um mundo que insiste em mostrar que a realidade não é uma linha reta, mas um quebra-cabeça cheio de peças escondidas.
O impacto desse tipo de encontro é profundo. Ele desmonta a ideia de que vivemos todos sob o mesmo céu e a mesma terra. Mostra que existem camadas de realidade que se tocam, mas não se misturam. Isso não é ficção científica, é experiência direta, como a minha.
E talvez seja por isso que esses casos fascinam tanto. Eles revelam que o mundo é maior do que a versão oficial. O mapa escolar é só uma caricatura, e a vida real é cheia de brechas. Brechas por onde escorrem vilarejos, tribos, países e até pessoas inteiras que não deveriam existir.
O sertão, nesse sentido, foi generoso: mostrou um desses enclaves a olho nu. Uma prova viva de que a cartografia oculta não é teoria, mas prática. Quem sabe quantos outros lugares como esse ainda existem, esperando que alguém atravesse um monte para descobri-los.
No fim, a grande ironia é essa: enquanto cientistas buscam universos paralelos em aceleradores de partículas, eu encontrei um atravessando uma colina. O extraordinário não está nas estrelas, mas no silêncio do interior.

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