O luciferianismo contemporâneo se apresenta como arquétipo de rebelião e emancipação, mas a origem desse arquétipo sempre foi interpretada como queda, ruptura com a ordem, inversão de valores. Grimórios medievais descreviam pactos e invocações sempre acompanhados de riscos, de cláusulas implícitas, de advertências severas. A tradição antiga compreendia que o demônio não era metáfora psicológica, mas força simbólica da dissolução e da perda da unidade. Hoje, no entanto, há a vulgarização desses selos em nome da abundância material, como se o inferno tivesse se transformado em corretora de investimentos místicos.
O malefício não se limita ao campo espiritual, mas penetra profundamente na psicologia. Ao entregar esperança a um rito coletivo, o indivíduo transfere sua autonomia, abdica da construção lenta de virtude e disciplina, e se lança no abismo do imediatismo. Quando não alcança o prometido dinheiro rápido ou heranças ancestrais, a frustração se volta contra si mesmo. A narrativa do fracasso aprisiona, e o sacerdote do rito encontra aí espaço para oferecer novas soluções pagas, perpetuando o ciclo. O mal está em prometer o impossível e corroer pouco a pouco a autopercepção, gerando dependência e fragilidade emocional.
No plano social, esses movimentos se multiplicam em redes, transformando pessoas em seguidores devotos de um produto espiritual embalado em marketing digital. A lógica é idêntica à do comércio moderno: gatilhos de urgência, inscrições limitadas, promessa de resultados imediatos. Mas o que se vende não é prosperidade, e sim participação em uma egrégora que drena energia coletiva em benefício de poucos. Sob o disfarce do ritual, cria-se um mecanismo de vampirização psicológica e econômica.
A genealogia dessas práticas mostra o deslizamento. A Goetia e o Lemegeton surgiram como grimórios de poder, em épocas em que se acreditava firmemente na presença tangível do mundo espiritual. Os selos eram tratados como chaves perigosas, nunca abertas sem preparação. O ocultismo do século XX, com LaVey e Aquino, transformou essa herança em ideologia filosófica, retirando o peso religioso e exaltando o ego. Já o século XXI não apenas secularizou, mas mercantilizou: transformou o selo em logotipo, o rito em workshop e o demônio em coach financeiro.
Nessa transformação, vê-se a dialética hegeliana invertida: o que era tese (a crença no poder espiritual) encontrou a antítese (o ceticismo moderno), mas em vez de alcançar uma síntese superior, degradou-se em caricatura. O símbolo passou a ser explorado sem profundidade, e o poder vendido como espetáculo. A síntese não trouxe elevação, mas regressão; não trouxe consciência, mas manipulação. É um movimento histórico que revela não a ascensão do espírito, mas a dissolução da consciência no mercado de ilusões.
O perigo espiritual se impõe. Ao convocar forças que, mesmo tomadas como arquétipos, representam dissolução e avareza, o sujeito plasma em si mesmo tais qualidades. O arquétipo não é neutro: quando assumido, molda a psique, e a psique molda o comportamento. Assim, quem chama Bune para atrair riqueza, ainda que não creia literalmente no demônio, absorve inconscientemente o padrão de manipulação, egoísmo e exploração. Torna-se reflexo do que invoca.
Há também um preço existencial. Quando a fé é deslocada da transcendência e depositada em ritos de prosperidade, deixa de ser força de elevação e se torna superstição. Já não se busca a verdade, mas apenas vantagens. A vida espiritual, que deveria ser escola de virtudes, converte-se em balcão de pedidos. E quanto mais se procura atalhos mágicos, menos se reconhece o valor do esforço, da disciplina e da caridade.
Esse deslocamento produz uma inversão moral. Muitos, ao se entregarem a tais práticas, passam a justificar a trapaça, a exploração ou a mentira como meios legítimos de obter resultados, porque “o rito abriu caminhos”. A ética dissolve-se sob a lógica da eficácia. Não é a bondade que importa, mas a conquista. E quando o critério é apenas a conquista, o homem torna-se predador, incapaz de reconhecer o outro como fim em si mesmo.
À primeira vista, o rito coletivo parece inofensivo: um grupo se reúne virtualmente, paga um valor simbólico, recebe uma promessa. Mas em profundidade, ativa-se um campo de energia marcado por símbolos de queda e ruptura. Cada inscrição alimenta não a alma do participante, mas a força da egrégora que consome sua energia. Assim como em antigos relatos os deuses pediam sacrifícios, hoje se pedem inscrições. A lógica permanece: a multidão é combustível da entidade.
Muitos riem disso, chamando de exagero ou de superstição invertida. Porém, mesmo no campo psicológico, não há inocência. Quem se expõe repetidamente a símbolos de destruição acaba absorvendo sua atmosfera. Quem espera prosperidade de Bune acabará aprendendo que a riqueza não vem sem custo, e que esse custo pode ser a própria liberdade interior. O espírito se apequena à medida que se curva diante de tais promessas.
Os malefícios não estão apenas no engano econômico ou na fraude do vendedor. O perigo real é ontológico: a transformação lenta e silenciosa da alma em algo escravo de desejos. O homem que poderia buscar o bem, o belo e o verdadeiro passa a desejar apenas atalhos para o ter. A vida se reduz a cálculo de ganhos, e o rito substitui a virtude.
A picaretagem é apenas a máscara visível, o engodo mais óbvio. O que se esconde é mais grave: a deformação do espírito, a erosão da consciência, a perda do sentido da vida. Este é o mal que se perpetua através de símbolos arrancados de sua origem e transformados em mercadoria digital. É o triunfo do simulacro sobre a verdade, do marketing sobre a tradição, da ilusão sobre o ser.
A luta contra esses movimentos não é apenas externa, mas interna. É necessário recusar não apenas o convite explícito ao rito, mas também o impulso íntimo que deseja atalhos, prosperidade sem esforço, poder sem responsabilidade. O verdadeiro combate é dialético: superar o desejo e a frustração numa síntese que reconheça o valor da realidade, da virtude e da Providência. Somente assim é possível libertar-se das falsas promessas de prosperidade e reencontrar o caminho da unidade.
No fim, não se trata apenas de desmascarar a fraude, mas de compreender que o mal mais profundo atinge o coração humano quando ele abandona a busca pelo eterno e se entrega às miragens do imediato. Essa é a verdadeira prisão: não a do rito coletivo em si, mas a do espírito que já não distingue entre ilusão e realidade, entre inferno e salvação.
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