sábado, 13 de setembro de 2025

Notas de Sábado - 13 de Setembro de 2025.

Eu sei que as palavras muitas vezes carregam mais peso do que a própria realidade, mas foi justamente por isso que me propus a olhar o oito de janeiro não pela lente da narrativa, mas pela frieza dos fatos. Muito se disse, muito se escreveu, e a palavra golpe foi repetida até se tornar um mantra. Contudo, quando recuo um passo e observo o que de fato ocorreu, vejo que a distância entre o discurso e o acontecido é abissal.
Golpe de Estado exige aparato de força organizado, exige comando interno presente, exige plano de substituição do poder. Nada disso existiu. O que vi foi uma turba desordenada, armada de paus e pedras, movida por raiva, ilusão ou manipulação. Vi símbolos sendo atacados, vi prédios invadidos, vi um espetáculo de insurreição sem substância prática. Mas o poder, este permaneceu intocado. O presidente não foi destituído, as forças armadas não se moveram, não surgiu nenhuma junta nem governo paralelo.
Se me perguntam, com a seriedade que a lógica exige, se houve um golpe, ou ao menos a tentativa real de um, respondo sem hesitar: não. O que houve foi uma encenação de golpe, uma agitação que carregava no imaginário a esperança de que alguém, em algum lugar, completasse o movimento que eles próprios não tinham meios de levar a cabo. Oito de janeiro foi teatro, foi tumulto, foi a aparência de uma ruptura, mas não o seu ser.
Eu sei que muitos insistirão em chamar de golpe, e isso porque a narrativa serve a propósitos políticos que não precisam se amparar no referente concreto. Mas se a verdade me interessa mais do que a conveniência, preciso dizer: não houve. Não houve porque não basta a intenção difusa nem o ataque a prédios públicos para configurar um golpe de Estado. O golpe é ato total, é a substituição consumada do poder soberano. O que vi foi barulho, não foi tomada.
A realidade, por mais dura ou impopular que seja, permanece superior à narrativa. E se a narrativa repete “golpe” como feitiço, cabe-me desfazer a ilusão, apontar que o fato se mantém imune ao encantamento das palavras. Não houve golpe, não houve tentativa real, houve apenas uma caricatura de golpe. E é justamente por isso que a análise honesta deve distinguir entre aquilo que se quis acreditar e aquilo que de fato ocorreu.



Índice:

Artigo I – A máscara do golpe: entre o ser e a aparência.

Neste artigo mostro como a palavra “golpe” é usada como feitiço, revestindo acontecimentos com uma carga simbólica maior do que a realidade que lhes deu origem. Exploro a tensão entre fato e narrativa, ressaltando a primazia do real sobre o discurso.

Artigo II – O simulacro insurrecional e a impotência do gesto.

Aqui desenvolvo a análise daquilo que se apresenta como tentativa de ruptura mas carece de substância. Examino a teatralidade política, a ausência de comando, de força e de plano, mostrando como a encenação substitui a execução.

Artigo III – A supremacia do fato sobre o mito político.

Neste último artigo demonstro como, apesar da insistência em se impor a narrativa, o fato prevalece como critério último de julgamento. Mostro a diferença entre a memória construída e a realidade ocorrida, concluindo que sem referente real não há golpe, mas apenas o seu fantasma retórico.






Artigo I – A máscara do golpe: entre o ser e a aparência.

Sempre me impressionou a facilidade com que uma palavra pode dobrar a realidade. Quando o termo “golpe” é lançado no espaço público, não é a descrição do fato que se impõe, mas uma atmosfera carregada de medo, condenação e urgência. A palavra, antes de ser conceito, é já um juízo. Ela não descreve, sentencia. E como sentença, atua mais rápido que a análise, mais forte que a prudência. O que era apenas um tumulto desordenado, uma invasão sem comando, se converte, pela mágica da linguagem, em um ato de guerra contra a República.
Mas se me detenho um instante, se coloco entre parênteses o clamor da narrativa, descubro algo mais simples: não havia ali o núcleo daquilo que constitui um golpe. Não havia comando interno, não havia tropas regulares, não havia plano de substituição. Havia, sim, barulho, quebra de vidraças e ocupação teatral de símbolos, mas não a substância do poder sendo deslocada. O poder permaneceu intocado, a autoridade não perdeu o comando real.
A insistência em chamar de golpe o que não foi não nasce da análise dos fatos, mas da utilidade política que o termo carrega. É preciso inflar a gravidade do acontecimento para justificar medidas, endurecer leis, consolidar alianças. O nome não corresponde à coisa, mas serve como máscara que a recobre. Essa máscara, uma vez ajustada, cola no imaginário coletivo e se torna quase impossível de remover.
O contraste entre ser e aparência nunca foi tão nítido. O ser, duro, mostra-nos uma cena de tumulto sem eficácia. A aparência, encenada e repetida, apresenta-nos uma conspiração grandiosa que teria ameaçado a sobrevivência do Estado. Entre o que foi e o que se diz, abre-se um abismo que só a lógica consegue iluminar.
Não me deixo enganar pela força do coro. Sei que a história costuma ser escrita pelos vencedores, e que eles moldam a memória de acordo com seus interesses. Mas também sei que há sempre uma fissura, uma linha de resistência onde o fato se impõe sobre a ficção. É aí que a palavra golpe se dissolve e se revela como instrumento, não como diagnóstico.
Se golpe significa a substituição abrupta do poder soberano por outro, então nada houve além da palavra. Se a palavra significa apenas violência simbólica contra instituições, então estamos diante de um uso vago, uma inflação semântica. Em qualquer caso, a máscara se destaca e revela que a essência do acontecimento foi menos do que se anuncia.
A análise honesta exige que eu resista à sedução da narrativa. Oito de janeiro não foi o que se diz, foi o que se viu: uma tentativa de encenação, um gesto que quis parecer maior do que era. E é por isso que falo em máscara. Porque sob a aparência de golpe não havia golpe algum, mas apenas o vazio recoberto por palavras.


Artigo II – O simulacro insurrecional e a impotência do gesto.

Olho para aqueles que avançaram contra os símbolos do poder e percebo que o que os movia não era a força capaz de decidir o destino de uma nação, mas a ilusão de que o gesto bastaria para convocar uma autoridade superior. Não havia ali soldados disciplinados, colunas de blindados, nem oficiais a ditar ordens. Havia apenas uma massa fragmentada, guiada mais pelo rumor e pelo desejo de ruptura do que por qualquer estratégia concreta. O que se apresenta como tentativa de golpe revela-se, sob análise, como simulacro.
Um simulacro é sempre a sombra de algo maior, a encenação de uma realidade que não se consegue realizar. Ali, a sombra se impôs: gritos, bandeiras, invasões, tudo para dar a impressão de que a ordem caía. Mas a queda nunca aconteceu. O poder não se abalou porque o poder não depende de janelas quebradas ou móveis revirados. Ele reside no controle da força legítima, no comando das instituições, e nisso nada foi alterado.
A impotência do gesto está justamente em sua desproporção. Acreditava-se que a tomada dos prédios equivaleria à tomada do Estado. Confundiu-se o símbolo com a substância, o cenário com o governo. Mas palácios e plenários, por mais grandiosos que sejam, não carregam em si o poder; são apenas o palco. O poder habita nas cadeias de comando, nas forças armadas, nas redes econômicas, e tudo isso permaneceu intacto.
É revelador notar como a narrativa inflou a encenação para dar-lhe consistência. O que não existiu na realidade foi suprido pelo discurso. Onde faltava comando, inventou-se conspiração; onde faltava plano, supôs-se estratégia; onde faltava força, ergueu-se a palavra golpe como compensação. Mas a palavra não cria o fato, apenas o recobre.
Há quem diga que todo simulacro é perigoso, porque abre a brecha para que o vazio se revista de aparência. E é verdade: uma multidão em fúria diante das sedes do poder cria a imagem de ruptura. Porém, quando a fumaça baixa, resta apenas o cenário devastado e a constatação de que nada mudou. O governo permaneceu, as instituições seguiram, e o gesto, tão grandioso no instante da ação, revelou-se impotente no dia seguinte.
Não há golpe onde falta a vontade organizada de governar. Houve raiva, houve caos, houve vandalismo, mas não houve governo alternativo emergindo, não houve tomada de comando, não houve sequer a pretensão clara de ocupar o poder. A ausência de substância condenou a ação ao fracasso antes mesmo de começar.
É por isso que falo em simulacro insurrecional: um teatro de revolta, uma máscara de poder sem poder, um espetáculo que confundiu aparência com essência. No fim, não foi mais do que a impotência travestida de ousadia, um gesto que quis abalar a ordem mas só conseguiu confirmar a sua própria fraqueza.

Artigo III – A supremacia do fato sobre o mito político.

Sempre me pareceu inevitável que a política, em tempos de crise, se refugie nas palavras como se nelas houvesse a salvação. O vocabulário se torna arma, e cada termo, carregado de moral e emoção, serve como martelo para esmagar adversários. Entre esses termos, nenhum é mais eficaz do que a palavra golpe. Ao ser pronunciada, ela suspende o debate e impõe uma atmosfera de condenação antecipada. Não se discute mais o que houve, apenas se repete o que a palavra ordena que se pense.
Contudo, por trás da palavra está o fato, e o fato é de uma teimosia desconcertante. Ele não se curva à vontade de quem narra, nem ao desejo de quem julga. O fato tem seu peso próprio, sua densidade, e é dessa densidade que brota a verdade. O golpe, na definição rigorosa, é a ruptura organizada do poder soberano, substituindo um governo por outro. Nada menos que isso.
Quando me volto ao oito de janeiro, não encontro essa substância. O que encontro é o tumulto, a depredação, o espetáculo de insurreição. Vejo símbolos atacados, vidraças quebradas, obras de arte destruídas. Mas não vejo o núcleo duro do poder sendo transferido. O presidente não perdeu o comando, os generais não assumiram, nenhuma junta foi anunciada. A máquina do Estado, apesar da fumaça e do caos, continuou funcionando.
É nesse contraste entre fato e narrativa que reside a chave. A narrativa chamou de golpe, porque precisava vestir o acontecimento com a gravidade que justificaria medidas excepcionais. Mas o fato insiste em mostrar que foi apenas um tumulto, impotente para alcançar o que pretendia. A diferença entre o nome e a coisa não poderia ser mais clara.
Muitos insistem que a intenção basta, que a mera invasão dos prédios já configuraria uma tentativa. Mas aqui a lógica se impõe: intenção sem meios não é tentativa, é delírio. Não houve armas capazes de enfrentar o Estado, não houve comando capaz de sustentar uma tomada, não houve sequer projeto de substituição. Falar em golpe, ainda que como tentativa, é conceder a uma turba a dignidade que não teve, é transformar vandalismo em estratégia.
Não ignoro o perigo das multidões. Sei bem que uma massa desordenada pode incendiar cidades, derrubar monumentos, gerar um espetáculo de destruição. Mas sei também que sem cadeia de comando, sem estrutura organizada, essa massa se esgota em si mesma. Ela não constrói poder, apenas consome energia. Foi o que ocorreu: após algumas horas, o gesto se desfez, restando apenas as ruínas do cenário.
Oito de janeiro foi elevado a uma narrativa de salvação nacional. A palavra golpe foi repetida como uma senha que, ao ser aceita, permitia a consolidação de um discurso: a democracia ameaçada, o Estado sob ataque, a ordem em risco. Mas quando se retira a cortina da retórica, o que se vê é apenas a impotência de um ato sem consistência.
Não posso aceitar que o mito suplante o fato. A história exige precisão, e a precisão exige distinções. Golpe é golpe, tumulto é tumulto. Quando confundo os dois, não só distorço a verdade, como crio um precedente perigoso: qualquer agitação pode ser inflada ao tamanho de uma conspiração. E, ao inflar, entrego aos que detêm o poder o pretexto para endurecer ainda mais seu controle.
É preciso perguntar: quem ganha com a narrativa? Oito de janeiro, na sua realidade, não derrubou governo nenhum. Mas na sua aparência, rendeu dividendos políticos incalculáveis. O mito do golpe serviu para unificar elites, justificar repressões, legitimar alianças. O fato, incapaz de produzir consequências, foi substituído pela narrativa, fértil em produzir efeitos.
Eis a supremacia do fato: ainda que obscurecido pela linguagem, ele permanece. Por mais que se insista, ninguém encontrará generais assumindo o comando, ninguém encontrará decretos de junta militar, ninguém encontrará o governo deposto. Tudo isso está ausente, porque nunca aconteceu. O que houve foi apenas o gesto vazio.
Não é a primeira vez que a história confunde símbolos com substância. Há exemplos abundantes de levantes que foram inflados até se tornarem quase revoluções na memória, quando na verdade não passaram de motins. Mas a história, quando revisitada com calma, corrige o erro. Ela separa o mito da realidade e restabelece o peso dos acontecimentos.
Oito de janeiro será lembrado, mas não como golpe. Será lembrado como a ilusão de um golpe, como o teatro da insurreição, como o dia em que muitos acreditaram poder tomar o poder com paus e pedras, e nada conseguiram além de encenar sua própria fraqueza.
Não nego que para alguns aquilo foi o ápice de sua esperança, e por isso agiram com paixão. Mas a paixão sem forma é fogo de palha. Ela arde alto, ilumina o instante, e se apaga deixando apenas cinzas. Foi exatamente isso que restou ao fim daquele dia: cinzas, escombros e a narrativa que se apressou em recolher o que a realidade não oferecia.
E assim, diante do tribunal do real, concluo: não houve golpe, não houve tentativa real. Houve mito, houve aparência, houve discurso. O fato permanece soberano, e ele sentencia que tudo não passou de um simulacro. A narrativa pode persistir, pode até se consolidar na memória coletiva, mas sempre haverá aqueles que lembrarão que o ser foi menor do que a aparência.
Oito de janeiro, na verdade dos fatos, não foi o dia em que quase se perdeu a República, mas o dia em que a narrativa encontrou sua maior vitória.










Oito de janeiro não foi golpe, nem sequer sua tentativa real, mas o simulacro de um golpe, um teatro de insurreição em que a aparência buscou encobrir a ausência de substância; o fato mostrou apenas tumulto e impotência, enquanto a narrativa, inflada como mito político, ofereceu ao poder a chance de se fortalecer; e assim, entre ser e aparência, prevalece o juízo final: não houve golpe, houve apenas a vitória da narrativa sobre as ruínas de um gesto vazio.

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