quinta-feira, 4 de setembro de 2025

A Servidão Invisível: Dialética da Liberdade Estrangulada no Brasil.

Sempre que me perguntam sobre ditadura, gosto de responder ao bom e velho modo olaviano: quem não percebe é porque já se tornou um peixe no aquário; nunca saberá o que é água, porque não conhece nada além de água. A ideia de um regime democrático por aqui não existe; já vivemos um regime de exceção — se não abertamente, ao menos de forma velada. Insegurança social, jurídica, existencial; ou, como dizia meu bom e velho professor Olavo, vivemos num país onde se nasce, cresce, não entende nada e morre.
Ademais, elaborei esses três artigos justamente para se ter uma ideia da situação em que nos encontramos: modelos ditatoriais sendo louvados por ministros da suprema corte, parceiros do executivo aplaudindo, e legisladores recebendo a cartilha pronta para transformar tudo em lei. Eis o retrato do Brasil.

(Jardel Almeida)

Artigo I – O Sufocamento como Forma de Liberdade.

A dialética da história brasileira manifesta-se com uma ironia cruel: enquanto o discurso oficial proclama a liberdade como valor supremo, a realidade concreta da vida social mostra um processo contínuo de sufocamento. A cada passo em que se afirma a liberdade, um novo laço é apertado, e o indivíduo se vê reduzido a mera engrenagem na máquina estatal. Tal movimento não é acidental, mas o próprio desenrolar de uma lógica histórica que transforma o contrário em seu oposto, onde a liberdade aparece como máscara da servidão.
Lenin, em sua estratégia, acreditava que seria necessário impor pela força o estrangulamento econômico da sociedade, multiplicando impostos, confiscando propriedades e criando uma inflação devastadora que dissolvesse a autonomia material do povo. O Brasil, contudo, desenvolveu uma versão ainda mais sofisticada desse processo: não há necessidade de revolução aberta, nem de confisco violento, basta a contínua promulgação de leis, decretos e resoluções que, a cada camada, restringem a respiração social sem que o corpo perceba que lhe falta o ar.
Esse sufocamento travestido de liberdade encontra sua legitimidade não no terror, mas no discurso da modernização e da proteção. A cada nova norma aprovada, afirma-se que se está defendendo o consumidor, garantindo a igualdade, protegendo o meio ambiente ou promovendo a justiça social. A retórica é sempre positiva, mas o efeito é sempre negativo: a restrição da ação, a multiplicação da burocracia, a drenagem da energia produtiva. É a mesma lógica de Lenin, mas sem a brutalidade explícita; é a violência em forma de benevolência.
O paradoxo se torna ainda mais evidente quando se observa o funcionamento das instituições brasileiras. O parlamento, suposto guardião da soberania popular, age como oficina de correntes. Cada deputado, muitas vezes incapaz de compreender sequer os fundamentos do projeto que apresenta, converte-se em agente involuntário de um processo de alienação coletiva. O estudo técnico, o parecer elaborado por organismos distantes da vida real, torna-se escritura sagrada que dispensa debate. E assim, sob a forma de lei, o grilhão é lançado sobre milhões de cidadãos que jamais foram consultados.
Enquanto a União Soviética necessitava da força militar para impor seus decretos, o Brasil desenvolveu o mecanismo da adesão passiva. O cidadão não enxerga um inimigo armado diante de si, mas um servidor público com um formulário, um fiscal com um manual, um juiz com uma toga. A opressão não se materializa em baionetas, mas em intimações. Não se escuta o ruído das botas, mas o silêncio frio das notificações eletrônicas. O efeito, porém, é o mesmo: a paralisia social diante de um poder que se apresenta como incontornável.
Essa é a forma mais perfeita de servidão, pois o indivíduo não tem sequer a clareza de que está submetido. Ele se crê livre porque pode votar, opinar em redes sociais ou consumir mercadorias, mas a cada passo de sua vida encontra-se com a presença do Estado, exigindo declarações, pagamentos, documentos. A liberdade converte-se em rito vazio, enquanto a vida concreta se transforma em labirinto de obrigações. O cidadão brasileiro é como o prisioneiro que pode decorar sua cela, mas não pode sair dela.
A comparação com o modelo soviético mostra que o Brasil superou em sofisticação aquilo que Lenin havia projetado. Lá, o peso do Estado esmagava de maneira explícita, e a população ao menos tinha consciência de sua servidão. Aqui, o estrangulamento é paulatino e mascarado de benefício, de modo que a maioria acredita estar sendo protegida ao mesmo tempo em que é explorada. É a dialética da alienação em sua forma mais acabada: a inversão total da consciência.
Esse sufocamento também se manifesta na economia, onde a inflação, apresentada como fenômeno incontrolável, serve como imposto invisível sobre os mais pobres. O trabalhador acredita que recebe um salário, mas no momento em que vai ao mercado percebe que sua força de trabalho vale menos do que antes. E, ainda assim, é convencido de que isso é culpa de fatores externos, de crises internacionais, jamais de um sistema que se beneficia do empobrecimento constante da população.
Os impostos diretos e indiretos, por sua vez, funcionam como correntes invisíveis. O cidadão paga taxas sobre sua renda, sobre seu consumo, sobre sua propriedade, sobre sua morte. Cada ato da vida é tributado, e no entanto a promessa de serviços em troca nunca se cumpre. A analogia com o feudalismo é inevitável: o súdito medieval entregava parte de sua colheita ao senhor em troca de proteção; o brasileiro moderno entrega mais da metade de seu esforço ao Estado e recebe em troca apenas insegurança, precariedade e dívida.
A burocracia, terceira dimensão do sufocamento, converte-se em prisão administrativa. Para cada ação simples, surge uma exigência documental. Para cada direito reconhecido, uma série de obstáculos técnicos que o tornam inacessível. A vida torna-se preenchida por papéis, formulários, senhas, protocolos. A liberdade se dissolve em esperas intermináveis, filas digitais e exigências que paralisam a iniciativa. O homem livre é transformado em suplicante diante de balcões eletrônicos.
Nesse sentido, o Brasil realiza uma obra que, em sua eficácia, deixaria Lenin admirado. Pois o revolucionário russo precisou mobilizar multidões, instaurar o terror e enfrentar resistências abertas. Aqui, a resistência se desfaz antes mesmo de nascer, pois cada medida vem embrulhada em discursos de progresso, e quem ousa questionar é imediatamente rotulado de retrógrado, antidemocrático ou inimigo da nação. O consenso fabricado é o mais eficiente dos cárceres.
A dialética do sufocamento brasileiro alcança sua síntese quando percebemos que a liberdade é não apenas negada, mas invertida em seu contrário. O que se apresenta como liberdade é, na prática, servidão. O que se proclama como autonomia é, na realidade, dependência. E o cidadão, ao aderir a esse jogo, torna-se cúmplice de sua própria escravidão.
A tragédia hegeliana está em que a liberdade real só pode surgir pela consciência do negativo, pelo reconhecimento da opressão. Mas, quando o negativo é ocultado sob a máscara de progresso, a consciência não se forma, e a servidão torna-se destino naturalizado. O brasileiro não se revolta porque acredita que assim deve ser; acredita que é livre porque lhe disseram que é livre, mesmo quando sua experiência cotidiana prova o contrário.
O Estado, ao infiltrar-se em cada aspecto da vida, realiza o que Lenin havia previsto: estar dentro das casas, governar até os detalhes da existência. A diferença é que, no Brasil, isso se faz com aplauso e entusiasmo, pois cada nova lei é celebrada como vitória civilizatória. O povo aplaude a corrente que o prende, e chama de liberdade a prisão em que vive.
Essa contradição mostra a dimensão mais sombria da dialética: a negação não apenas do indivíduo, mas da própria capacidade de reconhecer-se negado. O cidadão, alienado em sua servidão, torna-se sujeito que consente com sua própria opressão. E nesse ponto, a tirania não precisa mais impor-se pela violência, pois já venceu pela adesão.
O Brasil construiu, assim, uma ditadura legalista que supera a brutalidade soviética, porque internaliza a servidão no coração do sujeito. O medo já não é da bala ou da prisão, mas da multa, do bloqueio de conta, da impossibilidade de agir sem autorização. O Estado não precisa mais gritar, porque já sussurra dentro da consciência de cada um.
A liberdade, reduzida a palavra, torna-se símbolo vazio que oculta a realidade de uma sociedade enjaulada. E quanto mais se repete o mantra da democracia, mais distante ela se encontra de sua essência. O Brasil é o retrato da dialética negativa em sua plenitude: a realização da servidão sob o nome de liberdade, a consagração da alienação como forma de vida.
A síntese trágica é que, nessa forma de governo, não há espaço para a verdadeira emancipação. Pois o indivíduo, alienado, já não sabe distinguir entre o que é livre e o que é prisão. A dialética do sufocamento fecha-se sobre si mesma, e o resultado é um povo que acredita viver em democracia enquanto respira, a cada dia, o ar rarefeito da tirania invisível.
Assim, compreendemos que o Brasil realizou a transmutação perfeita do projeto leninista: do terror explícito à opressão legalizada, da baioneta à caneta, do expurgo ao relatório. A tirania deixou de ser visível, mas tornou-se absoluta. E o povo, sufocado, chama de liberdade o que não passa de servidão.
O futuro dirá se essa contradição se manterá indefinidamente ou se, em algum momento, a consciência do negativo despertará. Mas até lá, o sufocamento seguirá sendo chamado de proteção, e a prisão seguirá sendo celebrada como liberdade. Eis a ironia cruel da história brasileira: Lenin teria inveja.

Artigo II – O Parlamento como Forja da Corrente.

A essência da dialética política brasileira revela-se com clareza quando observamos a função que o parlamento assumiu em nosso tempo. Aquilo que, em teoria, deveria ser a instância suprema de deliberação popular, converteu-se em oficina de correntes, em fábrica incessante de normas que, sob o disfarce da representatividade, transformam a vida da sociedade em prisão legal. O que no discurso se apresenta como pluralidade democrática, na prática é a univocidade de uma máquina que opera sempre na mesma direção: a do estrangulamento social.
A lógica hegeliana nos ensina que toda instituição contém em si mesma a semente de sua negação. O parlamento brasileiro, criado como instrumento de expressão da soberania do povo, tornou-se seu oposto, o local onde a soberania é dissolvida em compromissos obscuros, relatórios técnicos de origem duvidosa e discursos previamente fabricados por gabinetes e lobbies. O povo acredita que está representado, mas o que se representa ali não é a vida concreta da nação, e sim os interesses de corporações, de organismos internacionais, de partidos que já não têm ligação com a realidade social.
Essa alienação manifesta-se de forma quase caricata quando um deputado ou senador apresenta um projeto de lei com base em estudos que ele mesmo não leu, relatórios técnicos redigidos em linguagem hermética, muitas vezes traduzidos de documentos estrangeiros que sequer mencionam a realidade brasileira. Aquele que deveria ser mediador da vontade popular torna-se mero carimbo de interesses que lhe ultrapassam. O processo legislativo, nesse sentido, é apenas a teatralização de uma decisão que já nasceu fora dali.
O mais grave é que, uma vez aprovada, a lei assume o peso de verdade incontestável. A norma publicada no diário oficial não admite contestação, porque se reveste da aura da ciência e da democracia. Quem ousa questioná-la é acusado de ignorante, de inimigo do progresso ou, em casos extremos, de criminoso. E assim, o parlamento, ao invés de ser espaço de debate, é transformado em martelo que sela a corrente sobre a sociedade.
A comparação com a experiência soviética é inevitável. Os tribunais revolucionários de Lenin produziam expurgos e sentenças sumárias contra os que se opunham ao regime. No Brasil, não se fuzila, mas se legisla. O efeito, no entanto, é análogo: a eliminação da dissidência e a criação de um sistema em que toda iniciativa social depende da anuência do Estado. Se lá a violência era aberta, aqui é travestida de legalidade.
A sofisticação brasileira é tamanha que até mesmo as forças supostamente contrárias, direita e esquerda, convergem no mesmo movimento. A esquerda justifica cada nova lei como instrumento de justiça social; a direita, como mecanismo de responsabilidade fiscal e de fortalecimento institucional. Ambas as narrativas conduzem ao mesmo resultado: mais normas, mais tributos, mais restrições. O parlamento, nesse sentido, é a síntese da dialética negativa: dois polos que parecem opostos, mas que se unem na prática da servidão.
Essa maquinaria legislativa funciona em ritmo acelerado, produzindo diariamente dezenas de novos dispositivos, resoluções e regulamentações. O cidadão comum, incapaz de acompanhar essa torrente normativa, descobre apenas no momento de agir que sua liberdade já foi transformada em infração. O que ontem era permitido, hoje é proibido; o que antes era simples, agora exige licenciamento. A vida social é assim encurralada por uma avalanche contínua de obrigações.
O poder do parlamento, nesse quadro, não está em representar o povo, mas em legitimar a opressão. É o selo democrático que torna aceitável aquilo que, de outra forma, seria visto como tirania. O cidadão não percebe que sua servidão foi decretada porque acredita que ela foi votada por seus representantes. A alienação atinge aqui seu ponto máximo: a corrente é aceita porque se acredita que ela foi escolhida.
A analogia com a forja não é gratuita. Cada projeto de lei é como um golpe do martelo sobre o ferro incandescente da vida social. A cada golpe, a corrente ganha forma, solidifica-se, e o indivíduo perde mais um espaço de respiração. O parlamento, que deveria ser a bigorna da liberdade, tornou-se a bigorna da servidão.
Essa dinâmica revela também a simbiose perversa entre a tecnocracia e a política. O parlamentar, incapaz de compreender os detalhes técnicos, entrega-se ao parecer dos especialistas, que por sua vez estão comprometidos com interesses externos ou com burocracias que se alimentam da própria complexidade. Assim, cria-se uma cadeia de irresponsabilidade: ninguém é culpado, todos apenas cumprem seu papel, mas o resultado é a opressão generalizada.
Lenin, que sonhava com o Estado onipresente, teria inveja da sutileza brasileira. Pois aqui não há necessidade de expurgos sangrentos ou de campos de trabalho forçado. O próprio cidadão, convencido de que está em democracia, aceita a lei que o aprisiona. O terror se torna desnecessário quando a servidão é celebrada como escolha.
A dialética, no entanto, ensina-nos que todo excesso contém em si a semente de sua superação. O excesso normativo, ao transformar cada ato da vida em infração potencial, cria também o terreno para o descrédito generalizado das instituições. Quando tudo é regulado, nada mais é respeitado. O risco para o Estado brasileiro é que sua ânsia de legislar destrua a própria legitimidade que lhe sustenta.
Mas até que esse ponto seja alcançado, a sociedade segue enredada em sua prisão legal. O trabalhador que tenta empreender descobre que precisa de autorizações múltiplas. O agricultor que planta sem a licença correta é tratado como criminoso ambiental. O comerciante que não emite a nota no modelo exato é acusado de sonegação. Cada esforço produtivo encontra-se cercado de riscos, não pela concorrência, mas pela lei.
A alienação atinge o ápice quando até mesmo a cultura popular internaliza esse processo. O cidadão já não reclama da carga tributária, apenas busca formas de “estar em dia”. Já não questiona a legitimidade das normas, apenas teme a multa. A liberdade é substituída pela conformidade, e a obediência cega é vista como virtude. O parlamento, nesse sentido, conseguiu criar não apenas correntes externas, mas grilhões internos que moldam a própria consciência do povo.
O processo legislativo, assim, converte-se em mecanismo de reprodução da servidão. A cada nova legislatura, a promessa é de renovação, mas o resultado é sempre o mesmo: mais leis, mais restrições, mais tributos. O ciclo repete-se indefinidamente, e a cada volta da engrenagem a corrente se torna mais pesada.
Em termos dialéticos, podemos dizer que o parlamento brasileiro realizou a negação de sua própria essência. Criado como instrumento de representação, tornou-se o contrário: instrumento de dominação. O que deveria ser espaço de liberdade é agora oficina de opressão. E a sociedade, alienada, aplaude esse processo como se fosse conquista civilizatória.
A síntese dessa contradição é sombria: o parlamento não é apenas cúmplice da tirania legalista, mas seu principal artífice. A servidão brasileira não se constrói à revelia das instituições, mas por meio delas. A democracia tornou-se a forma mais eficaz de ditadura, porque legitima o que em qualquer outro regime seria visto como abuso.
O parlamento, ao invés de proteger a sociedade, transformou-se em martelo que sela sua prisão. E a cada golpe legislativo, o grilhão se fortalece, até que reste apenas a aparência da liberdade, sustentada pela realidade da servidão.
Eis a tragédia do Brasil: a oficina da liberdade tornou-se forja da corrente, e o povo, acreditando estar protegido, caminha alegremente em direção ao cárcere que ajudou a construir.

Artigo III – A Dialética da Servidão Consentida.

A dialética da história atinge seu ápice quando a opressão já não precisa mais se impor pela força externa, mas se realiza pela aceitação íntima do dominado. É nesse estágio que o Brasil se encontra, superando até mesmo os desígnios leninistas. Se Lenin precisava do terror e da propaganda para forçar a adesão, o Estado brasileiro conseguiu algo mais sutil: transformar a servidão em hábito, a dependência em virtude e a obediência em expressão de cidadania.
Esse movimento é o ponto final de um processo que começa com a criação de normas, passa pela institucionalização da burocracia e culmina na internalização da opressão. O cidadão brasileiro não apenas obedece, mas deseja obedecer; não apenas paga impostos, mas sente culpa se não paga; não apenas cumpre normas absurdas, mas enxerga nisso uma forma de estar moralmente correto. A alienação é total quando a corrente já não é percebida como corrente, mas como ornamento.
A liberdade, reduzida a formalidade, é celebrada em discursos e solenidades, mas não se manifesta na vida concreta. O voto, as eleições, os debates parlamentares são rituais que reforçam a crença na autonomia popular, mas cuja substância foi corroída. O indivíduo acredita participar da democracia porque deposita um papel na urna, mas não percebe que suas escolhas reais já foram feitas por ele, de cima para baixo, através da estrutura normativa que o cerca por todos os lados.
A analogia com a União Soviética revela uma diferença essencial. Lá, o cidadão era compelido a aderir ao regime sob ameaça de prisão, exílio ou morte. Aqui, o cidadão adere de forma voluntária, acreditando que cumpre seu dever cívico. O soviético vivia sob o peso do medo, o brasileiro vive sob o peso da ilusão. Ambos são prisioneiros, mas apenas o primeiro sabia disso.
Esse consentimento é o que torna a ditadura legalista brasileira mais eficaz e mais duradoura. Pois enquanto a tirania explícita tende a provocar resistência, a tirania consentida se perpetua pela própria adesão do dominado. O cidadão que paga seus impostos exorbitantes acredita estar financiando o bem comum; o trabalhador que enfrenta a burocracia acredita estar participando de um processo civilizatório; o empresário que se curva a exigências absurdas acredita estar contribuindo para o progresso do país.
A alienação é reforçada pela linguagem, que inverte os sentidos das palavras. Liberdade passa a significar obediência; cidadania, submissão; responsabilidade, conformidade. O vocabulário oficial molda a percepção da realidade, até que o próprio povo repita, sem perceber, os mantras que legitimam sua servidão. Quando a consciência é capturada, a opressão já não encontra resistência.
O Estado, nesse estágio, já não precisa agir como inimigo, mas como tutor. Ele se apresenta como guia, como protetor, como gestor da vida coletiva. O cidadão, infantilizado, aceita essa tutela como necessária, porque acredita ser incapaz de viver sem ela. A dialética da servidão se fecha quando o dominado não apenas se submete, mas teme a ausência do dominador.
Essa forma de alienação revela-se com clareza em momentos de crise. Quando a inflação corrói salários, quando a insegurança ameaça famílias, quando a precariedade dos serviços se manifesta, a reação popular não é contra o Estado que criou tais problemas, mas contra a falta de mais Estado. A solução nunca é menos intervenção, mas mais. O prisioneiro pede mais grades para sentir-se seguro.
O que Lenin planejou como estágio transitório – o fortalecimento do Estado para, em seguida, dissolvê-lo – torna-se no Brasil um estado permanente, autojustificado, impossível de ser revertido. Pois o povo já não deseja a dissolução do Leviatã, mas sua expansão. A sociedade, domesticada, já não vê no Estado uma ameaça, mas sua própria condição de existência.
Essa dialética da servidão consentida cria um círculo vicioso: quanto mais o Estado sufoca, mais o povo acredita que precisa ser sufocado; quanto mais o Estado tributa, mais o povo acredita que deve pagar; quanto mais o Estado intervém, mais o povo acredita que deve obedecer. A contradição desaparece porque foi internalizada como harmonia.
Mas a harmonia é ilusória. Pois a vida concreta revela as fissuras dessa alienação. O cidadão sente, ainda que não saiba nomear, o peso de uma existência limitada, o fardo de uma liberdade esvaziada. Ele percebe a rarefação do ar, mas chama isso de normalidade. Vive sufocado, mas acredita estar respirando. Eis a tragédia da consciência alienada: viver no cárcere e chamar de lar.
A comparação com as sociedades totalitárias mostra que o Brasil alcançou uma forma de opressão mais refinada. O soviético sabia que era vigiado; o brasileiro não percebe que já é rastreado em cada compra, em cada movimentação bancária, em cada clique digital. O soviético desconfiava da propaganda oficial; o brasileiro repete slogans governamentais como se fossem verdades inquestionáveis. O soviético temia o Estado; o brasileiro o reverencia.
A dialética da servidão consentida também revela o papel da mídia e da cultura. Ao invés de denunciar a opressão, elas a legitimam. Cada novela, cada campanha publicitária, cada notícia repete a narrativa de que a lei é boa, de que o imposto é necessário, de que a burocracia é civilizatória. O imaginário social é colonizado pela linguagem do dominador.
Nesse contexto, a resistência torna-se quase impossível. Pois resistir significaria não apenas enfrentar o Estado, mas enfrentar a própria consciência moldada pela alienação. O dominado não sabe mais distinguir entre a sua voz e a voz do opressor. A servidão já não é externa, mas interna, instalada no íntimo do sujeito.
A tragédia é que, nesse estágio, a possibilidade de emancipação é reduzida. Pois só se liberta quem reconhece estar preso. E como libertar-se quando se acredita que a prisão é liberdade? A dialética mostra que a superação só virá por meio de um choque, de uma contradição tão aguda que rompa a ilusão. Até lá, a servidão seguirá sendo celebrada como conquista.
O Brasil, portanto, não apenas aplicou as diretrizes de Lenin, mas as superou. Construiu um modelo em que a opressão não precisa de violência, porque já se instalou no coração do povo. O Estado não domina apenas corpos, mas mentes; não controla apenas ações, mas desejos. O resultado é a forma mais perfeita de ditadura: aquela em que o dominado pede por mais dominação.
A alienação é tamanha que até mesmo as críticas ao sistema são absorvidas por ele. O indivíduo que protesta o faz dentro das regras estabelecidas, pedindo reformas que apenas reforçam o mecanismo de opressão. A rebeldia é domesticada antes de nascer. A síntese é que até o ato de resistir se torna forma de colaborar.
A dialética da servidão consentida mostra, assim, a vitória absoluta da tirania legalista brasileira. Não há necessidade de campos de trabalho forçado, porque o trabalho livre já é forçado. Não há necessidade de censura explícita, porque a autocensura já foi internalizada. Não há necessidade de polícia secreta, porque cada cidadão vigia a si mesmo.
Eis o estágio mais sombrio: a ditadura sem ditador, a opressão sem opressor, a servidão sem corrente. A sociedade brasileira internalizou a tirania a tal ponto que já não precisa ser lembrada dela. Vive sob ela como quem respira o ar rarefeito da montanha: com dificuldade, mas acreditando que não existe outro ar.
A tragédia dialética, portanto, é que o Brasil realizou a forma mais completa do projeto leninista, mesmo sem revolução, mesmo sem ideologia oficial. O sufocamento tornou-se lei, a lei tornou-se hábito, o hábito tornou-se consciência. E a servidão, finalmente, tornou-se liberdade.

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