sábado, 13 de setembro de 2025

Entre o Rosto e o Nada: A Engenharia da Desumanização e o Quilesito da Tradição.

Eu sempre me perguntei como é possível reduzir um homem a menos que nada, e a resposta que encontrei não estava nos porões de tortura ou nos porretes dos algozes, mas nas pranchetas dos burocratas. É curioso perceber que a desumanização não começa com o tiro, mas com o carimbo. Eichmann, esse funcionário modelo que Arendt tão bem soube retratar, não precisou sujar as mãos de sangue; bastava-lhe despachar papéis. Eu, que já vi a vida reduzida a um protocolo de repartição, não consigo deixar de rir amargamente diante do espetáculo: a engrenagem que mata não se apresenta como monstro, mas como expediente.
De igual maneira, Victor Klemperer, meticuloso como só um filólogo poderia ser, mostra que a língua não é só meio de expressão, mas de condenação. Ali, no alemão do Terceiro Reich, o indivíduo deixou de ser homem para virar peça, inimigo, sub-raça, como quem troca a etiqueta de um produto. E eu, que ainda acredito nas palavras como pontes, sinto o sarcasmo corroer quando percebo que também podem ser armas. A ironia é que, ao ler Klemperer, o vocabulário político de hoje, cheio de eufemismos cintilantes, parece mais próximo de Goebbels do que de Cícero.
Bauman, por sua vez, faz a lição de casa e me esfrega na cara a evidência: o Holocausto não foi um surto bárbaro, mas o resultado impecável de um cálculo administrativo. Eis a piada de mau gosto que poucos têm coragem de contar: foi a modernidade, com sua ordem, sua higiene, seu planejamento racional, que produziu a fábrica da morte. Ao que me resta concluir que o progresso, quando divorciado da consciência, não passa de uma máquina bem lubrificada para triturar almas.
E aí vem Primo Levi, testemunha insubstituível, que não fala em abstrações, mas em cicatrizes. Quando ele pergunta “é isto um homem?”, não o faz como filósofo distante, mas como alguém que viu seus companheiros reduzidos a números gravados na pele. E eu, lendo suas memórias, não consigo escapar do desconforto de perceber que a linha que separa a dignidade da degradação é muito mais fina do que imaginamos. Basta uma fila, um uniforme, uma ordem sem réplica.
Já Lobaczewski, com seu olhar clínico de psiquiatra, não perdoa: diz que os psicopatas não apenas ocupam cargos de poder, mas criam sistemas inteiros desenhados à sua imagem e semelhança. A patocracia é, em suma, um hospício onde os loucos assumiram a administração, e os sãos, minoria cada vez mais acuada, são obrigados a agir como se fossem doentes para sobreviver. Eu rio, mas rio como quem percebe tarde demais que a chave da cela ficou do lado de dentro.
Entre o carimbo de Eichmann, as palavras torcidas de Klemperer, o cálculo de Bauman, o testemunho de Levi e o diagnóstico de Lobaczewski, há um fio perverso que une a todos: a desumanização não é acidente, mas método. É engenharia comportamental de alto nível, conduzida por homens que, ironicamente, se dizem racionais. E eu, que achava que a razão era a salvação, agora percebo que pode muito bem ser a arma do crime.
Mas há outro detalhe que me intriga: todos esses engenheiros da alma parecem ter uma obsessão em comum — apagar a singularidade. Um por um, os indivíduos são dissolvidos na massa, como se fossem grãos de areia indistinguíveis. Aí reside a piada suprema: em nome da ordem, da igualdade ou da eficiência, o sujeito é esmagado até que sobre apenas a poeira de sua humanidade. E dizem que isso é progresso.
Confesso que me dá vontade de rir quando vejo como o mesmo mecanismo se repete com roupagens diferentes. Antes era a raça, agora é o gênero, a classe, o meio ambiente, qualquer etiqueta serve. A técnica é sempre a mesma: inflar uma categoria abstrata até que o homem concreto desapareça. E quando o indivíduo se queixa, alguém o lembra de que é só uma peça substituível, descartável.
Talvez, no fundo, a desumanização seja menos um projeto maligno e mais uma vocação natural dos que ambicionam o poder absoluto. O psicopata, o burocrata, o ideólogo, todos se encontram no mesmo baile, dançando ao som da orquestra da morte. Eu assisto de fora, com certo humor negro, e penso: se é isto um homem, talvez a maior resistência que me resta seja insistir em permanecer homem, mesmo quando todos os outros já esqueceram o que isso significa.


      



Capítulo I — As Máquinas da Desumanização.

Artigo 1 — A Alemanha Nazista e a Morte Administrada.

Mostra como a burocracia alemã transformou o genocídio em expediente logístico, reduzindo pessoas a números e planilhas, revelando a engrenagem fria da morte racionalizada.

Artigo 2 — A União Soviética e o Silêncio dos GULAGs.

Explora a lógica do trabalho forçado e do exílio gelado, onde o homem é consumido lentamente pela fome e pelo silêncio, tornando-se sombra de si mesmo.

Artigo 3 — A China de Mao e a Fome como Ferramenta.

Analisa o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, mostrando como a fome, a delação e a paranoia se tornaram armas de controle e destruição do espírito humano.

Artigo 4 — Síntese: A Redução do Homem ao Nada.

Integra os três exemplos históricos, demonstrando que a desumanização, sob diferentes bandeiras, tem sempre o mesmo resultado: dissolver a dignidade, apagar o rosto humano e transformar a sociedade em cemitério de vivos.



Artigo 1 — A Alemanha Nazista e a Morte Administrada.

Quando observo a Alemanha do Terceiro Reich, não consigo evitar o desconforto de perceber que a barbárie ali instalada não nasceu do descontrole, mas da ordem. Não foi a fúria cega que ergueu os campos de concentração, mas a calma meticulosa de engenheiros, arquitetos e burocratas. Há quem ainda pense que o nazismo foi apenas a explosão de um ódio atávico, mas basta olhar mais de perto para notar que foi também o triunfo da racionalidade fria, da estatística impessoal e da linguagem administrativa. O assassinato em massa deixou de ser ato brutal e tornou-se expediente. E esse é o ponto mais cruel: matar com cálculo é muito mais devastador do que matar com raiva.
O símbolo maior desse espírito é Eichmann, aquele funcionário exemplar que, segundo Arendt, se limitava a obedecer. Ele não gritava, não batia, não sujava as mãos de sangue: apenas preenchia formulários e assinava documentos. O homem comum, vestido de gravata, podia decidir sobre a vida ou a morte de milhares com o simples gesto de carimbar um papel. A comédia macabra estava no contraste: enquanto um campo de extermínio se erguia no horizonte, em seu gabinete o oficial bebia café e discutia prazos como quem organiza o transporte de mercadorias. O genocídio, ali, era questão de logística, e o ser humano se resumia a “carga” a ser transportada.
A linguagem desempenhou papel central nessa operação de esvaziamento da humanidade. Não se falava em pessoas, mas em “unidades”. Não se falava em assassinato, mas em “solução”. Cada palavra foi cuidadosamente escolhida para anestesiar consciências e tornar tolerável o intolerável. Assim, o alemão culto, leitor de Goethe e ouvinte de Beethoven, podia dormir em paz enquanto ao lado trens abarrotados de homens, mulheres e crianças partiam rumo à aniquilação. Tudo estava devidamente embalado em palavras que eliminavam qualquer resquício de compaixão. O vocabulário era o anestésico do mal.
O curioso é que essa transformação não exigiu um esforço hercúleo de persuasão. Não foi preciso convencer cada cidadão a odiar profundamente o próximo. Bastava transformar o próximo em estatística. O horror, diluído em relatórios e tabelas, deixava de ter rosto. É como se o governo tivesse descoberto a fórmula de tornar a crueldade palatável: não mostre o sangue, mostre o gráfico. E, no entanto, essa manipulação não diminui a responsabilidade dos agentes; ao contrário, a aumenta, porque exige um ato consciente de distanciamento moral.
A engrenagem nazista conseguiu algo que parece inacreditável: tornar o mal não apenas praticável, mas rotineiro. Um funcionário levava o filho à escola de manhã, organizava deportações à tarde, lia romances policiais à noite. O crime absoluto convivia lado a lado com a banalidade da vida cotidiana. A desumanização triunfou justamente porque não se apresentava como ato grandioso, mas como rotina discreta. O indivíduo não precisava ser monstro para participar da monstruosidade; bastava-lhe ser normal.
E se havia algo ainda mais aterrador era a eficiência do processo. O regime não apenas matou, mas matou com método, com prazos, com metas cumpridas. O campo de extermínio era a versão perversa da fábrica moderna: tudo funcionava como linha de montagem, tudo obedecia à lógica da produção em massa. Só que, em vez de carros ou móveis, o produto final era a morte. A indústria alemã, orgulhosa de sua capacidade de organização, aplicou seus talentos à fabricação do vazio humano. E ali, diante da máquina, o homem já não passava de matéria-prima.
No fim, o que restou desse espetáculo de horror foi a prova irrefutável de que a desumanização não se alimenta apenas de ideologias delirantes, mas também da técnica impecável. O nazismo mostrou que é possível matar milhões sem levantar a voz, sem perder a compostura, apenas administrando bem. Eis a ironia sombria: o progresso, tão celebrado como emancipação humana, pode converter-se em instrumento de aniquilação. A Alemanha nazista não foi apenas a vitória da tirania, mas a vitória do expediente sobre a dignidade, da planilha sobre o rosto humano. E esse triunfo, frio e calculado, é talvez a face mais perturbadora da modernidade.

Artigo 2 — A União Soviética e o Silêncio dos GULAGs.

Se na Alemanha a desumanização tomou a forma meticulosa da logística, na União Soviética ela vestiu a farda do discurso ideológico. Não se tratava mais de exterminar raças consideradas inferiores, mas de apagar classes sociais declaradas inimigas. O método, contudo, era tão ou mais eficiente: bastava uma palavra mágica, “contrarrevolucionário”, e a vida de qualquer um se dissolvia como fumaça. A beleza cruel dessa máquina era a simplicidade. Não era necessário um crime real, uma prova concreta; era suficiente a suspeita, o sussurro, a denúncia anônima. Assim, milhões de homens e mulheres se viram arrastados para os vagões que levavam ao destino final dos GULAGs.
Os campos soviéticos não eram exatamente o espelho dos nazistas, ainda que o resultado fosse o mesmo. Não havia a mesma pressa industrial em matar, havia sim uma paciência diabólica em consumir o homem pelo trabalho. A fórmula era clara: reduzir o prisioneiro à condição de besta de carga, arrancar dele cada gota de suor até que o corpo, exaurido, se tornasse inútil e fosse descartado. A desumanização, ali, não estava apenas no número tatuado ou no uniforme, mas no cotidiano da fome, do frio, do silêncio interminável. Não era a morte rápida da câmara de gás, mas a morte lenta do esgotamento, a aniquilação progressiva da dignidade.
A ironia mais amarga era que tudo isso se fazia em nome da “libertação”. O regime que prometia criar o “novo homem” começou destruindo sistematicamente o homem existente. O coletivo substituiu o indivíduo, e, no altar da História, o sujeito concreto foi sacrificado. O trabalhador livre, que deveria ser exaltado, era transformado em escravo de Estado. E o burguês, aquele fantasma que justificava todo o terror, não passava de uma categoria arbitrária que podia recair sobre qualquer um a qualquer momento. Eu sorrio, mas sorrio com amargura, porque percebo que, sob a capa da justiça social, estava o mesmo velho desprezo pela vida singular.
O silêncio dos GULAGs era o complemento dessa engenharia. Ali, na vastidão gelada da Sibéria, não havia testemunhas, não havia imprensa, não havia olhos para registrar o sofrimento. O isolamento geográfico era parte da técnica: longe do olhar do mundo, o horror podia se tornar rotina sem causar incômodo. O prisioneiro deixava de ser alguém com rosto e história, e passava a ser apenas mais um corpo perdido nas neves infinitas. O anonimato era total, e talvez isso fosse ainda mais cruel do que a própria morte: desaparecer sem deixar vestígio, como se nunca tivesse existido.
E não pense que bastava sobreviver para escapar da desumanização. Mesmo os que retornavam eram marcados pelo estigma. Voltavam sem voz, desconfiados, mutilados interiormente, incapazes de recuperar a humanidade que lhes fora arrancada. Muitos, ao regressarem, eram tratados como párias, como suspeitos que haviam “fracassado” na pureza revolucionária. A cicatriz não era apenas física, mas moral, e o regime sabia disso: criar homens quebrados era mais eficaz do que simplesmente matá-los.
A engrenagem soviética mostrou uma sofisticação que, em certo sentido, superava até mesmo a alemã. Enquanto o nazismo pretendia eliminar o inimigo por inteiro, o comunismo de Stálin preferiu domesticá-lo pela degradação. O objetivo não era apenas o extermínio, mas a fabricação de indivíduos dóceis, submissos, incapazes de resistir. A desumanização se tornava permanente, não terminava com a vida, mas prolongava-se na memória, no trauma, no medo transmitido às gerações seguintes.
No final, o grande silêncio dos GULAGs é talvez o retrato mais perfeito da desumanização. Não há monumento, não há música de fundo, não há espetáculo. Apenas o vazio, o branco da neve, o silêncio da História que finge não ouvir. Ali, o homem foi transformado em sombra, em nada, em ausência. E se o nazismo nos mostrou a morte administrada, a União Soviética nos ensinou o que é a morte por dissolução: não se extermina o corpo de imediato, mas se apaga lentamente a alma até que reste apenas o pó humano espalhado pela estepe gelada.

Artigo 3 — A China de Mao e a Fome como Ferramenta.

Se na Alemanha a técnica era a logística e na União Soviética o silêncio, na China maoísta a desumanização alcançou o paroxismo pela fome. Não a fome natural, fruto da escassez, mas a fome administrada, fabricada, imposta como instrumento de poder. Quando Mao lançou seu famigerado Grande Salto Adiante, o que se deu não foi um salto, mas uma queda abissal na condição humana. Ali, o camponês deixou de ser agricultor e tornou-se soldado de uma guerra contra o próprio ventre. A ordem não era cultivar para si, mas entregar tudo ao Estado, que, com a mesma eficiência de um carrasco, distribuía ou negava o alimento conforme a lealdade política.
É curioso notar como a engenharia do delírio foi apresentada como progresso. Fundiam-se panelas para produzir aço imprestável, desviavam-se camponeses para erguer projetos mirabolantes, enquanto os campos ficavam estéreis e a população definhava. O resultado foi a morte de dezenas de milhões, não pela espada do inimigo, mas pelo prato vazio à mesa. O homem, reduzido a mero número dentro de um plano quinquenal, não tinha sequer o direito de colher o fruto de sua terra. Sua vida dependia do capricho de burocratas que, em nome da revolução, distribuíam migalhas. A fome, ali, era a pedagogia da submissão.
Mas a crueldade não se limitava à fome. A Revolução Cultural, que veio logo depois, foi o golpe final contra a alma chinesa. A juventude, embalada pelos slogans do Pequeno Livro Vermelho, tornou-se o exército de delatores de seus próprios pais. A cena, ao mesmo tempo grotesca e trágica, mostra adolescentes denunciando seus mestres, filhos humilhando seus progenitores, famílias inteiras dissolvidas pela lógica da lealdade absoluta ao Partido. Não bastava destruir corpos; era preciso destruir vínculos, apagar tradições, eliminar qualquer laço que pudesse resistir ao poder central.
O que a Alemanha fizera com campos e a União Soviética com a Sibéria, Mao conseguiu em cada aldeia: tornar o próximo em inimigo potencial. A paranoia foi elevada à categoria de virtude revolucionária. Quem não acusava, era acusado. Quem não denunciava, era denunciado. O vizinho já não era companheiro, mas espião em potencial. A desumanização, nesse contexto, não dependia apenas da força estatal, mas era internalizada pela própria população, transformada em massa de autômatos. O regime não se limitou a oprimir: ensinou o povo a oprimir-se mutuamente.
E havia a ironia suprema: enquanto milhões morriam de fome, o discurso oficial falava em abundância. As estatísticas maquiadas anunciavam recordes de produção, colheitas mirabolantes, grãos que nunca existiram. Era como se a mentira fosse o prato principal do banquete. O corpo definhava, mas a propaganda se inflava. E assim, a realidade desaparecia sob a cortina de slogans, e o sofrimento humano se tornava invisível até para aqueles que o viviam. A fome não era apenas biológica, era também espiritual: fome de verdade, fome de liberdade, fome de humanidade.
O camponês faminto, ajoelhado diante do retrato de Mao, talvez seja a imagem mais cruel dessa época. O rosto cadavérico erguido em adoração ao líder sintetiza o paradoxo: quanto mais o regime o matava, mais exigia sua devoção. A desumanização atingia aqui um grau quase litúrgico, como se a miséria fosse sacramento de fé. O culto à personalidade substituiu qualquer noção de dignidade; o homem deixou de ser filho de sua família, membro de sua comunidade, para ser apenas partícula perdida no corpo mítico do Partido.
No fim, o que restou da China maoísta não foi apenas um país devastado por crises econômicas, mas uma população mutilada em sua essência. A fome deliberada não exterminou apenas milhões de vidas, mas quebrou a espinha moral de uma sociedade inteira. A técnica ali empregada provou ser talvez a mais sofisticada das três: matar o corpo pela inanição, matar a alma pela delação, matar a memória pela propaganda. Eis a marca registrada da desumanização de Mao: a transformação do homem em criatura faminta e obediente, incapaz de se lembrar do que era viver como ser humano pleno.

Artigo 4 — Síntese: A Redução do Homem ao Nada.

Ao contemplar em conjunto os espectros da Alemanha nazista, da União Soviética stalinista e da China maoísta, não vejo três experiências históricas distintas, mas uma única e mesma engrenagem adaptada a diferentes idiomas. Trocam-se os slogans, as bandeiras, os símbolos e as justificativas, mas a técnica permanece. É a velha arte de apagar o rosto do próximo, dissolvê-lo em uma categoria abstrata e, depois disso, manipulá-lo como matéria bruta. A desumanização não é acidente, é projeto; não é falha do sistema, é o próprio sistema.
A Alemanha escolheu a raça como critério de purificação, e por essa régua exterminou milhões em nome de uma suposta ordem superior. A União Soviética escolheu a classe, declarando que alguns homens não eram homens, mas inimigos da História. A China, por sua vez, preferiu a fome e a paranoia, reduzindo aldeias inteiras a organismos famintos, submissos, denunciando-se uns aos outros como ratos em um navio em chamas. Eis o fio subterrâneo que os une: todos encontraram uma forma de arrancar do indivíduo aquilo que o torna humano, seja a dignidade, a voz ou a memória.
E a ironia maior é que tudo isso foi feito em nome de ideais supostamente grandiosos. Não se matava por ódio gratuito, mas por amor a uma abstração: a raça pura, a sociedade sem classes, a revolução eterna. O ser humano de carne e osso foi sacrificado no altar daquilo que não existe senão no papel e no delírio ideológico. Quando se mata por paixão a uma ideia, não há limites para a crueldade; afinal, o inimigo concreto não é mais uma pessoa, mas um obstáculo a ser removido. Eis a magia perversa da abstração: ela lava as mãos do carrasco e perfuma o fedor da cova.
Esses regimes nos mostram que a técnica da desumanização é mais eficaz quanto mais invisível. Não é necessário transformar todos em monstros, basta tornar todos indiferentes. A Alemanha anestesiou pela linguagem, a União Soviética pelo silêncio, a China pela fome. Em cada caso, o resultado foi o mesmo: vizinhos assistindo ao desaparecimento do outro sem mover um dedo, famílias dissolvidas sem resistência, sociedades inteiras convivendo com o horror como se fosse rotina. Quando a crueldade deixa de chocar, ela já venceu.
E não se pense que essa porcaria pertence ao passado, trancada em livros de história e documentários. A essência da técnica continua à solta, adaptando-se aos novos tempos. Hoje não se fala em “raça inferior”, mas em “inimigo da democracia”. Não se fala em “contrarrevolucionário”, mas em “extremista”. Não se fala em “burguesia apodrecida”, mas em “negacionista”. A linguagem muda, o método não. Continuamos a dissolver pessoas em etiquetas e, em nome delas, a justificar toda sorte de perseguição. O rótulo sempre vem antes do rosto.
A tragédia suprema da desumanização é que ela não mata apenas o outro, mas também nos mata por dentro. Ao aceitar que o próximo seja reduzido a nada, corroemos em nós mesmos o senso do humano. Viramos cúmplices, ainda que não levantemos a mão contra ninguém. A cada passo que damos nessa direção, perdemos a capacidade de ver no outro um semelhante e, sem perceber, também perdemos a nossa própria humanidade. O carrasco e a vítima compartilham o mesmo destino: ambos são desfigurados, ambos são roubados de sua essência.
É por isso que, quando revisito essas três experiências, não sinto apenas horror histórico, mas advertência pessoal. A desumanização não é apenas um fenômeno político, é uma tentação perene do espírito humano. É sempre mais fácil lidar com categorias do que com rostos, com slogans do que com histórias pessoais. A vigilância contra essa tentação não é dever de museu, mas de cada instante presente. Do contrário, repetiremos a mesma coreografia macabra com novos uniformes e novas bandeiras. E no final, restará apenas o vazio: um mundo repleto de abstrações e cadáveres, mas carente daquilo que dá sentido à existência — o homem real.


Capítulo II — A Dinâmica da Desumanização.

Artigo 1 — A Fábrica do Discurso e a Linguagem como Algema.

Aqui será exposto como a primeira etapa do processo é sempre a manipulação da palavra: cria-se um vocabulário anestésico que troca o rosto pelo rótulo. O cidadão, sem perceber, passa a repetir termos que não descrevem mais pessoas, mas caricaturas abstratas. É pela língua que se molda a percepção, e pela percepção que se abre o caminho para a indiferença.

Artigo 2 — O Teatro do Poder e os Engenheiros do Nada.

Neste artigo será desnudado quem está por trás: não apenas os governantes visíveis, mas os burocratas, tecnocratas e ideólogos que, como diretores de teatro, escrevem o roteiro da degradação. O processo não nasce da massa, mas é cuidadosamente arquitetado em gabinetes, universidades, redações e escritórios, para depois ser servido ao povo como inevitável.

Artigo 3 — A Contaminação do Cotidiano e a Banalidade da Crueldade.

Por fim, será mostrado como a engrenagem chega ao cidadão comum, convertendo vizinhos em delatores, colegas em inimigos, familiares em traidores. A desumanização só triunfa quando se infiltra na rotina: quando o homem comum, sem farda nem cargo, adere ao jogo. Aqui se vê como a crueldade se torna banal, não porque deixa de ser cruel, mas porque passa a ser hábito.



Artigo 1 — A Fábrica do Discurso e a Linguagem como Algema.

Toda desumanização começa com uma traição da língua. Antes que o homem seja privado do pão, ele é privado do nome. Não se extermina primeiro o corpo, mas a palavra que o identifica. É por isso que regimes de todo tipo investem tanto no vocabulário: não há tirano que não crie sua cartilha semântica. Na Alemanha, “solução final” soava mais palatável do que “extermínio”. Na União Soviética, “inimigo do povo” substituía o nome do vizinho. Na China, “contrarrevolucionário” servia para que o filho não reconhecesse mais o pai. O truque é simples: troca-se o substantivo que remete ao humano por uma etiqueta que remete a uma função ou ameaça. A palavra se torna a primeira algema.
Não é preciso muito esforço para perceber que essa fábrica de discurso opera com a precisão de um laboratório. Ela escolhe seus termos, os repete exaustivamente até que ganhem ares de naturalidade, e então os injeta no cotidiano pela imprensa, pela escola, pela boca dos intelectuais orgânicos que sabem exatamente como transformar uma aberração em senso comum. O cidadão comum, sem se dar conta, passa a repetir expressões que não descrevem nada real, mas que moldam o real ao serem ditas. É o que se poderia chamar de alquimia semântica: transformar homens em coisas pela força do verbo.
O curioso é que esse processo não exige a violência da censura explícita. Basta a sedução da linguagem. Quando uma palavra ganha prestígio, quem ousa questioná-la já se vê de antemão condenado. Assim, ninguém precisa ser coagido fisicamente: todos, por medo de parecer antiquados, insensíveis ou mesmo “inimigos da democracia”, adotam o novo vocabulário como se fosse a senha para a salvação. A tirania mais eficiente é a que faz do cidadão seu próprio policial de linguagem.
A ironia amarga é que essa manipulação não acontece apenas em discursos inflamados de tribunos ou ditadores. Ela se infiltra no café da manhã, na piada do trabalho, no comentário banal. Uma vez que o termo é plantado, ele floresce em toda parte. O cidadão não precisa ser ideólogo para contribuir com o processo; basta-lhe ser repetidor. E nessa repetição, aparentemente inocente, reside a maior das traições: transformar o próximo em inimigo por meio de uma palavra dita de modo distraído.
Eu sorrio, mas é um sorriso de sarcasmo, quando percebo como essa dinâmica se repete no presente. Hoje já não se fala em “raça impura”, mas em “negacionista”. Já não se fala em “contrarrevolucionário”, mas em “extremista”. As palavras mudam, o mecanismo não. O que ontem justificava expurgos sangrentos, hoje legitima censuras elegantes. A violência continua, apenas trocou de uniforme: deixou a farda para vestir o paletó do politicamente correto.
E a eficácia desse método é justamente sua invisibilidade. O homem não percebe que já foi algemado quando repete o vocabulário de seus algozes. Ele acredita estar apenas acompanhando o progresso, atualizando-se, tornando-se moderno. Mal sabe ele que cada palavra assimilada é um tijolo a mais no muro que o separa de sua própria humanidade. Quando finalmente se dá conta, já não consegue se expressar fora dos termos impostos. A língua, que deveria libertar, passa a ser prisão.
No fim, a fábrica do discurso não é apenas um instrumento de propaganda: é a fundação mesma da desumanização. É pela palavra que se inaugura o processo, pela palavra que se mantém a engrenagem, e pela palavra que se legitima o horror. Se o carrasco precisa da corda para enforcar, o ideólogo precisa da palavra para tornar o enforcamento aceitável. A morte física pode vir depois; a morte semântica sempre vem antes. Eis o segredo do jogo: quem controla o vocabulário controla o destino do homem.

Artigo 2 — O Teatro do Poder e os Engenheiros do Nada.

Nunca me enganaram com essa história de que os horrores do mundo brotam espontaneamente da massa. A multidão pode até urrar, pode até invadir, mas só o faz depois que lhe entregam o script. E o script é sempre escrito nos bastidores, por meia dúzia de engenheiros do nada que sabem muito bem como mexer nos fios invisíveis da sociedade. São eles, os intelectuais servis, os burocratas disciplinados, os tecnocratas com cara de tédio, os jornalistas que repetem o catecismo, todos a serviço de um projeto que jamais ousam chamar pelo nome: a redução do homem a pó.
A cena pública, aquilo que chamamos de política, não passa de teatro. Os discursos inflamados, os slogans berrados em alto-falantes, tudo isso é cortina de fumaça. O verdadeiro poder não se exibe, administra. E administra como? Através de comitês, decretos, cátedras universitárias, conselhos de imprensa, relatórios de organismos internacionais. Ali se decidem os rótulos que amanhã todos repetirão como se fossem verdades eternas. Ali se escolhem os inimigos de ocasião, que logo estarão estampados nos jornais como se sempre tivessem sido inimigos. O público vê o espetáculo; eu, de longe, não consigo deixar de notar os diretores nos bastidores.
O que mais me assombra é a frieza com que esses engenheiros trabalham. Eles não têm pressa, não têm emoções. Redigem pareceres, organizam seminários, publicam artigos acadêmicos, aprovam legislações — tudo com a calma de quem ajeita móveis numa sala. Não há ódio ali, nem fúria, apenas cálculo. E, no entanto, desse cálculo saem os instrumentos mais devastadores de dominação. Não são monstros, não são carrascos: são homens de terno, polidos, alguns até simpáticos. É essa normalidade que me causa mais náusea do que o grito histérico de qualquer déspota.
Os engenheiros do nada sabem que o segredo não é matar de uma vez, mas corroer aos poucos. Criam instituições que parecem neutras, mas que lentamente vão definindo quem é humano de verdade e quem é apenas um “problema social”. Criam conselhos que parecem protetores, mas que acabam determinando quem tem direito à palavra e quem deve ser silenciado. A grande vitória deles é vestir a tirania com a roupa da legalidade, da ciência, da racionalidade. Assim, enquanto a massa acredita que está vivendo em plena democracia, já se encontra engaiolada em regulamentos invisíveis.
Eu observo esse teatro e me divirto amargamente com a plateia. O povo acredita que participa, acredita que decide, acredita que governa. Mas tudo já estava decidido antes mesmo de a peça começar. O cidadão se emociona com as falas dos atores no palco, sem perceber que as falas foram escritas por outros, em salas fechadas, longe dos olhos do público. É como se a vida política fosse uma novela mal encenada, e o povo, viciado em drama, nem sonha que o final já estava escrito desde o início.
E a cada vez que essa engrenagem se põe em movimento, repete-se a mesma desculpa: é para o bem comum. Nunca falta uma justificativa nobre. Ora é a raça, ora é a classe, ora é a defesa da democracia, ora é a salvação do planeta. A máscara muda conforme a moda, mas o rosto por baixo é sempre o mesmo: o do engenheiro do nada, que sabe muito bem que a abstração é apenas desculpa para aumentar o controle. E quanto mais nobre a causa, mais fácil é convencer a massa a aceitar a redução da própria liberdade.
O teatro do poder é uma comédia macabra: atores que acreditam ser protagonistas, plateia que acredita participar da história, e diretores invisíveis que riem enquanto puxam os cordéis. No fim, a peça sempre termina do mesmo modo: o indivíduo reduzido a peça descartável, a dignidade esmagada sob a desculpa de uma ideia grandiosa. E eu, de fora, com meu olhar cáustico, vejo tudo isso não como novidade, mas como repetição. A História não passa de uma temporada infindável dessa mesma peça, e nós, se não estivermos atentos, acabamos aplaudindo a nossa própria desumanização.

Artigo 3 — A Contaminação do Cotidiano e a Banalidade da Crueldade.

Sempre que me falam de grandes atrocidades, o imaginário comum se volta para generais ensandecidos, ditadores histéricos ou soldados com a farda manchada de sangue. Mas o que mais me apavora não é a cena grandiosa do massacre, e sim o detalhe pequeno, repetitivo, quase banal. A desumanização só triunfa quando chega ao cotidiano, quando o vizinho comum, o funcionário de repartição, o professor da escola ou o repórter da rádio passam a agir como se a crueldade fosse rotina. É nesse instante que o horror deixa de ser exceção e se torna hábito.
Não preciso ir longe para enxergar isso. Quando o discurso fabricado chega às bocas do povo, já não se trata mais de ideologia abstrata, mas de prática incorporada. O sujeito que ontem conversava amigavelmente com o vizinho, hoje o denuncia como “suspeito” ou “inimigo”. O aluno que reverenciava seu mestre, hoje o entrega como “reacionário”. O funcionário que dividia café com o colega, agora o olha com desconfiança porque leu num jornal que ele pertence à categoria errada. A engrenagem do poder só funciona porque encontra eco no gesto banal de quem repete, denuncia, exclui.
É impressionante como o mal, quando revestido de normalidade, se espalha como vírus. Ninguém se vê como cúmplice, porque ninguém empunha a arma. A vizinha apenas fez uma denúncia “por precaução”. O jornalista apenas publicou a notícia “como estava no informe oficial”. O professor apenas repetiu a cartilha “aprovada pelo ministério”. Cada um se exime de responsabilidade porque acredita estar cumprindo um dever mínimo, um papel social. No entanto, cada ato banal vai montando o quebra-cabeça da crueldade, até que, de repente, já não há humanidade em lugar nenhum.
Eu rio, mas rio com amargura, quando percebo como a própria vítima, muitas vezes, se torna cúmplice de sua degradação. Por medo de parecer suspeita, ela adere ao vocabulário do regime, repete os slogans, aceita a humilhação. O homem, para sobreviver, veste a máscara que lhe é imposta, sem perceber que, ao fazê-lo, já entregou sua alma. A desumanização só triunfa de verdade quando consegue ser internalizada, quando a vítima começa a falar a língua do algoz e a enxergar o mundo pela lente que a oprime.
A crueldade banal tem ainda outro aspecto: ela dispensa grandes espetáculos. Não precisa de campos de concentração à vista de todos. Basta o silêncio, a ausência, o desaparecimento repentino. O sujeito que não volta para casa, o vizinho que some do trabalho, a professora que de repente não dá mais aula. A rotina continua, o pão é comprado, a missa acontece, a rádio toca música. A vida segue, e é exatamente isso que dá ao mal sua vitória mais profunda: ele não interrompe o cotidiano, ele o atravessa.
Esse processo é tão eficiente porque ninguém se sente responsável. Todos acreditam que a culpa está em outro lugar, mais alto, mais distante, mais poderoso. Mas a verdade incômoda é que o horror se alimenta do gesto pequeno, do silêncio conveniente, do riso cúmplice, da assinatura no papel. O campo pode estar longe, o GULAG pode estar oculto, a fome pode estar na aldeia distante, mas a engrenagem que sustenta tudo isso está aqui, na indiferença do homem comum que escolhe não ver.
E é por isso que, ao falar da banalidade da crueldade, não falo de um conceito abstrato, mas de uma experiência universal. Todo regime desumanizador só prospera porque encontra, na vida ordinária, terreno fértil para suas raízes. É quando o mal se torna hábito que a humanidade se dissolve sem resistência. O carrasco pode ser temido, o ditador pode ser odiado, mas quando o vizinho se converte em cúmplice silencioso, aí sim não resta mais escapatória. A engrenagem já não está apenas no Estado; está no coração do cotidiano, instalada no próprio tecido da vida.

Capítulo III — As Ruínas Interiores do Homem.

Artigo 1 — A Ferida Psicológica e o Homem Quebrado.

Aqui será mostrado como a desumanização não se contenta em dominar de fora: ela implode o sujeito por dentro. A perda da dignidade, o trauma, o medo transmitido às gerações seguintes, tudo transforma o homem num sobrevivente que já não sabe se é inteiro.

Artigo 2 — O Vazio Espiritual e o Eclipse da Alma.

Neste artigo será explorado o impacto metafísico: o homem que perde a noção de transcendência, que já não enxerga no outro a imagem de Deus ou de algo superior. A desumanização mata não apenas o corpo e a psique, mas a alma, criando um vazio existencial que nada preenche.

Artigo 3 — A Moral Invertida e a Sociedade sem Rosto.

Por fim, será analisado como a corrosão interna se transforma em corrosão coletiva. Quando o indivíduo perde a si mesmo, a sociedade perde seu rosto, e surge uma ordem em que o mal não apenas acontece, mas é celebrado como virtude. O resultado é uma comunidade sem humanidade.


Artigo 1 — A Ferida Psicológica e o Homem Quebrado.

Sempre me impressionou o fato de que a desumanização não se encerra quando o regime cai ou quando os carrascos são enforcados. Ela continua viva, não nos tribunais da história, mas no interior das vítimas. A verdadeira vitória do poder tirânico não está na pilha de cadáveres, mas no homem que sobrevive e já não sabe se é homem inteiro. O corpo respira, mas a alma se arrasta. E é justamente nesse resíduo de existência, nesse estado de sobrevivência, que a ferida psicológica se instala e se perpetua.
O homem desumanizado aprende a viver em estado de alerta permanente. Cada gesto, cada palavra, cada olhar é medido pelo medo. Ele já não confia no vizinho, nem no colega, nem na própria sombra. O trauma faz com que mesmo em tempos de paz o sujeito carregue dentro de si o campo, o GULAG, a fome coletiva. A paranoia deixa de ser imposição externa e passa a ser hábito interno. O regime já não precisa mais vigiar de fora: a vítima leva consigo o carcereiro enraizado na memória.
É nessa interiorização da opressão que nasce o homem quebrado. Ele sobrevive, mas já não consegue erguer a voz. Fala baixo, anda devagar, calcula os movimentos como se ainda houvesse uma polícia secreta atrás da porta. Esse tipo humano é talvez o maior triunfo dos engenheiros do nada: um sujeito que já não precisa ser reprimido, porque ele mesmo se reprime. A liberdade, quando finalmente lhe é oferecida, lhe parece quase insuportável. Ele teme a própria escolha, teme a própria palavra, teme até o próprio silêncio.
A ferida psicológica se manifesta ainda de outra maneira: na perda da confiança em si mesmo. O homem que foi tratado como número, como peça ou como inimigo, acaba acreditando que realmente não vale nada. A humilhação repetida cria cicatrizes invisíveis, mas indeléveis. Quantos, ao saírem de prisões políticas ou campos de trabalho, não se sentiam menos do que homens? Quantos, mesmo livres, não carregavam dentro de si a convicção de serem culpados de algo? O poder não apenas os castigou, mas convenceu-os de que mereciam o castigo.
E não é apenas o indivíduo que carrega esse peso: as gerações seguintes herdam a cicatriz. O filho cresce com o silêncio do pai, com o medo da mãe, com as histórias que nunca podem ser contadas. A ferida psicológica não morre com a vítima, mas se infiltra nos descendentes como sombra persistente. O neto do prisioneiro ainda carrega o peso do silêncio que nunca viveu, porque a alma de sua família foi moldada pelo trauma. Assim, o regime consegue prolongar sua presença mesmo depois de morto: governa fantasmas.
Eu rio com sarcasmo quando vejo intelectuais ocidentais exaltando tais regimes como se fossem experimentos nobres. É fácil romantizar a tirania quando não se viveu sob ela. O homem quebrado não aparece em estatísticas, não rende monumentos, não se exibe em museus. Ele está escondido nas casas comuns, nos rostos que evitam o olhar direto, nos silêncios incômodos de famílias inteiras. A maior covardia dos ideólogos é ignorar esse escombro humano, como se a morte fosse o único critério para medir o horror.
No fim, a desumanização deixa sempre o mesmo saldo: homens que respiram, mas não vivem. Não é preciso que todos morram para que a humanidade seja derrotada. Basta que muitos sobrevivam como fragmentos, pedaços de si mesmos, incapazes de confiar, de se entregar, de recomeçar. O homem quebrado é a cicatriz viva da crueldade, a prova de que o mal não se contenta em destruir a carne: ele quer possuir a memória, o coração e o espírito. E uma vez que essa ferida se abre, não há remédio fácil, não há analgésico moderno que a feche. Resta apenas o longo e doloroso trabalho de reconquistar a dignidade roubada, e esse trabalho, ironicamente, quase ninguém tem coragem de assumir.

Artigo 2 — O Vazio Espiritual e o Eclipse da Alma.

Se a ferida psicológica mutila o homem por dentro, é o vazio espiritual que o arranca por inteiro do horizonte da transcendência. A desumanização não se contenta em calar a boca ou quebrar a confiança: ela pretende apagar o sentido último da vida, aquele sopro que faz do homem mais que matéria ambulante. Quando um regime consegue convencer alguém de que não há nada além do Partido, da Raça ou da História, já venceu antes mesmo de matar. O corpo pode resistir à fome, pode sobreviver à prisão, mas sem transcendência a alma se torna sombra, e o homem passa a vagar como morto-vivo.
Eu sempre desconfiei da obsessão de certos regimes com a religião. Não é apenas pelo controle social, como alguns gostam de explicar, mas por algo mais profundo: quem tem Deus não pode ter o tirano como absoluto. A fé cria uma esfera inviolável que nem o mais eficiente dos sistemas consegue penetrar. Por isso os totalitários não descansam enquanto não substituem a oração pelo slogan, o templo pela assembleia, a liturgia pelo comício. A guerra não é apenas contra os corpos, mas contra a alma que ousa dizer: “há algo acima de ti”. O vazio espiritual é a obra-prima da desumanização.
Esse eclipse da alma não se dá de uma vez, mas em camadas. Primeiro, ridiculariza-se a fé: quem acredita é tolo, ultrapassado, retrógrado. Depois, substitui-se o objeto da devoção: em vez de Deus, o líder; em vez da eternidade, o futuro radiante prometido; em vez do bem e do mal, a conveniência política. Por fim, naturaliza-se o vazio: o homem se acostuma a viver sem horizonte, a viver apenas do instante, sem perguntar por quê. A alma não explode; ela se apaga lentamente, como vela que arde até virar fumaça.
E quando esse apagamento se completa, o homem já não é mais que peça dócil. Sem transcendência, ele não encontra motivo para resistir. Quem crê em algo além pode morrer, mas morre em pé; quem não crê em nada, curva-se por qualquer migalha. A desumanização, nesse ponto, já não precisa de chicote, basta o pão ou a promessa de pão. A alma, eclipsada, aceita qualquer ordem, porque já não sabe distinguir o bem do mal. Não há voz interior que acuse, não há consciência que se levante. Resta apenas o vazio, e o vazio é o terreno fértil da tirania.
Eu rio, e rio com sarcasmo, quando ouço dizer que a religião é “ópio do povo”. É justamente o contrário: o verdadeiro ópio é a ausência dela, esse entorpecimento que faz o homem esquecer que tem alma. O vazio espiritual é o narcótico perfeito, porque elimina a sede de sentido e a substitui pela anestesia da rotina. O sujeito não reza, não contempla, não sonha: apenas consome, trabalha, obedece. A vida se resume a funções, e o homem se torna máquina que respira. É a vitória suprema dos engenheiros do nada: transformar filhos de Deus em bonecos de Estado.
E não pense que esse eclipse é exclusivo dos grandes regimes totalitários. Ele se infiltra em sociedades ditas livres, de forma sutil, elegante, quase imperceptível. O abandono da transcendência é incentivado como sinal de maturidade, de emancipação. Mas o que vem no lugar não é liberdade, é vazio. E esse vazio, uma vez instaurado, prepara o terreno para qualquer dominação, porque o homem sem alma aceita qualquer ídolo que lhe estendam. Seja a estatística, seja o mercado, seja o próprio Estado, tudo se torna absoluto quando o Absoluto é esquecido.
No fim, o eclipse da alma é a etapa mais trágica da desumanização, porque mata antes mesmo da morte. O prisioneiro que ainda acredita, ainda luta; o faminto que ainda reza, ainda resiste; mas aquele que perdeu a fé, esse já está vencido. O vazio espiritual é o triunfo silencioso da tirania, porque torna o homem incapaz de se levantar, incapaz de se indignar, incapaz de amar. Ele pode até continuar vivendo, mas vive sem raiz e sem destino, como folha solta ao vento. E quando uma sociedade inteira se vê tomada por esse vazio, o que resta é apenas um imenso deserto, onde a humanidade se dissolve como areia levada pelo tempo.

Artigo 3 — A Moral Invertida e a Sociedade sem Rosto.

O passo final da desumanização não é apenas ferir a psique ou eclipsar a alma, mas inverter por completo a bússola moral de uma sociedade inteira. Quando o mal deixa de ser percebido como mal e começa a ser celebrado como virtude, então o processo se consuma. O homem já não se reconhece no espelho da consciência, e a comunidade que o cerca já não distingue mais o justo do injusto. É nesse ponto que nasce a sociedade sem rosto, um aglomerado de indivíduos que não sabem mais quem são, nem para onde vão, porque já perderam o eixo do verdadeiro.
Sempre achei curioso como a tirania não se limita a proibir, mas se diverte em obrigar. Não basta silenciar quem discorda, é preciso aplaudir quem oprime. O indivíduo é forçado não apenas a calar-se, mas a aclamar a mentira. O regime não quer apenas que o homem se curve, mas que sorria enquanto se curva. Essa inversão moral exige que o cidadão participe ativamente da própria degradação, aplaudindo aquilo que no fundo sabe ser indigno. O triunfo do mal está em arrancar o aplauso da vítima.
Quando a inversão se instala, a virtude passa a ser crime e o vício, medalha de honra. A coragem de dizer a verdade é punida, a covardia de repetir o slogan é recompensada. O pai que educa com firmeza é tratado como opressor, enquanto o filho que delata os pais é exaltado como herói. O professor que ensina a pensar é perseguido, e o doutrinador que ensina a repetir é promovido. E a sociedade, entorpecida, vai aceitando essa lógica ao ponto de já não se espantar com ela. O riso machadiano, nesse cenário, não é opção, é necessidade: rir da própria inversão é a única forma de não enlouquecer.
Eu vejo nisso a mais cruel das corrupções: a corrupção do senso moral. Enquanto a ferida psicológica ainda dói e o vazio espiritual ainda entristece, a inversão moral anestesia. O homem já não sente que está doente, porque a doença foi transformada em saúde. O corpo social, tomado por essa febre, acredita que está curado. O que antes causava horror passa a ser motivo de orgulho. O carrasco é homenageado, a vítima é esquecida. E quando a mentira se consolida como norma, a verdade já não encontra espaço sequer para ser sussurrada.
O mais irônico é que essa inversão moral não acontece de forma abrupta, mas lenta, quase imperceptível. Hoje se relativiza um princípio, amanhã se tolera uma exceção, depois se consagra a exceção como regra. Quando o indivíduo finalmente percebe, já não há mais como voltar. Ele se vê vivendo numa sociedade em que tudo está de cabeça para baixo, e a tentativa de colocar as coisas de pé é tratada como loucura. É assim que a normalidade do mal se instala: como hábito, como rotina, como tradição invertida.
E ao final, o que sobra é uma sociedade sem rosto. Não há mais indivíduos, apenas máscaras que se ajustam ao clima do momento. O sujeito que antes se via como pai, mãe, filho, cidadão, agora é apenas “aliado”, “traidor”, “progressista”, “reacionário”. A identidade não é mais construída no íntimo, mas concedida pelo rótulo que o poder distribui. O homem já não olha nos olhos do outro para reconhecer humanidade, mas lê a etiqueta que lhe foi colada. Essa perda do rosto é a perda definitiva: sem rosto, não há encontro; sem encontro, não há comunidade; sem comunidade, não há humanidade.
É por isso que digo que a moral invertida é a vitória suprema da desumanização. Não basta quebrar o homem por dentro, nem apagar sua alma; é preciso perverter sua bússola moral, para que ele caminhe alegremente rumo ao abismo acreditando que está marchando para o paraíso. Esse é o segredo da sociedade sem rosto: uma coletividade de sombras que celebram sua própria ruína. E eu, que observo essa coreografia macabra, não consigo deixar de rir com ironia amarga: rir porque sei que a comédia já foi vista antes, e rir porque percebo que ainda haverá muitos aplaudindo o espetáculo, sem notar que são eles os protagonistas da tragédia.


Conclusão Geral — Entre o Rosto e o Nada.


Ao percorrer essas páginas, percebo que a desumanização não é acidente da história, nem desvio episódico, mas uma técnica que reaparece, com novas máscaras, sempre que o homem esquece quem é. A Alemanha, com sua logística da morte, mostrou como a frieza do cálculo pode se tornar mais letal que a espada. A União Soviética, com seus campos gelados, ensinou que o silêncio pode matar tanto quanto a bala. A China de Mao, com sua fome fabricada, deixou claro que é possível subjugar uma sociedade inteira pelo estômago e pela delação. Tudo isso não são relíquias do passado, mas avisos permanentes.
Também aprendi que a engrenagem da desumanização só funciona porque começa na língua. Uma palavra torcida, um rótulo repetido, um slogan martelado — e o próximo já não é mais vizinho, mas inimigo. A fábrica do discurso prepara o terreno, os engenheiros do nada escrevem o roteiro, e o cidadão comum, no gesto banal do dia, repete a crueldade sem perceber. Assim o mal se infiltra não apenas nas estruturas do Estado, mas no café da manhã, no corredor da escola, no balcão da repartição. O horror se instala sorrateiro, mascarado de normalidade.
Mas o efeito mais devastador não está apenas fora, mas dentro. A desumanização quebra o homem em pedaços, arranca-lhe a alma, apaga sua bússola moral. A vítima sobrevive, mas como sombra; respira, mas já não vive. E quando essa corrosão se espalha, a sociedade inteira perde o rosto, transforma-se em aglomeração de máscaras, onde a mentira é celebrada como virtude e a verdade, punida como crime. Nada mais trágico do que assistir a um povo rindo enquanto marcha alegremente para o abismo.
Eu olho para a tradição e não encontro meio-termo. O quilesito é simples, brutal, definitivo: ou vencemos ou morreremos. Não há terceira via, não há conciliação possível entre a dignidade humana e a máquina da desumanização. A tradição sempre nos advertiu que a vida do homem não é apenas sobreviver, mas viver como ser dotado de rosto, de alma e de moral. Sem isso, a existência perde sentido, e a vitória do tirano se torna completa.
Vencer, aqui, não significa esmagar o inimigo com as mesmas armas, mas relembrar e afirmar o que é humano. Significa resistir à mentira, ainda que custe caro. Significa guardar a fé, mesmo quando o mundo inteiro zomba dela. Significa conservar a dignidade, ainda que o preço seja o próprio sangue. É por isso que digo, sem ironia desta vez, que a luta contra a desumanização não é opcional: é questão de sobrevivência espiritual.
E se a História nos mostra que as máquinas da desumanização sempre retornam, cabe a nós recordar que a resistência também pode retornar. Não se trata de ingenuidade, mas de realismo: ou mantemos acesa a chama da tradição que reconhece no outro um semelhante, ou seremos engolidos pela sombra que nos reduz a nada. Entre o rosto e o vazio, entre o homem e o pó, só há uma escolha digna. E se ainda há força em mim para escolher, que seja esta: vencer, porque morrer sem lutar não é destino, é traição.


Nenhum comentário: