quarta-feira, 17 de setembro de 2025

O Tribunal da Realidade: Da Criança Escravizada ao Julgamento de Lipps.

O Julgamento do Existir – O Tribunal entre Idades.

O Tribunal da Realidade abriu o espaço simbólico: de um lado claustros medievais com monges e candelabros; de outro, fábricas modernas soltando fumaça, cafés iluministas cheios de vozes, e, ao fundo, os destroços de uma guerra recente. Ali se reuniram Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Sartre e Camus, cada qual trazendo sua visão da condição humana.
Kierkegaard ergueu-se primeiro, com a postura de profeta deslocado no tempo.
“Vejo a Idade Média que tanto buscava Deus, mas também a modernidade que o expulsou de sua praça. O homem está desesperado porque não sabe quem é. Digo-vos: só há saída no salto da fé. Abraão ainda sobe o monte, em cada geração, entre monges e operários. Sem Deus, a existência é apenas desespero prolongado.”
Sartre sorriu amargo e replicou.
“Não, Kierkegaard. Tua fé é fuga. A modernidade mostrou, com guerras e campos, que o céu está vazio. Não há essência dada, não há Deus que escolha por nós. O homem está condenado a ser livre. E cada escolha é peso que não se pode transferir. Vejo operários e soldados, e digo: são eles, em sua liberdade nua, que constroem ou destroem.”
Heidegger interveio, com a voz grave, olhando os claustros e os escombros ao mesmo tempo.
“Ambos tendes razão, mas falais em excesso. O que vejo não é apenas fé ou liberdade, mas a verdade da existência: somos ser-aí, lançados no mundo, ser-para-a-morte. O monge medieval que reza e o soldado moderno que cai têm em comum a mesma estrutura: viver é caminhar para o fim. Só na autenticidade diante da morte é que se abre sentido.”
Camus, em silêncio até então, ergueu-se entre ruínas e fábricas.
“E, no entanto, mesmo diante da morte, não há revelação, não há Deus, não há essência. Há apenas o absurdo: o homem que pede sentido e o mundo que não responde. Vejo a Idade Média tentando costurar um sentido com dogmas, e a modernidade despedaçando-se sem resposta. O que resta é revolta. Não a revolta que destrói, mas a que resiste. Digo: a dignidade está em viver apesar do absurdo, empurrando a pedra que sempre cairá.”
Husserl, professoral, ergueu sua mão calma.
“Amigos, vossas falas são poderosas, mas cada uma mergulha no abismo. O que proponho é retorno às coisas mesmas. Antes de falar de fé, de liberdade, de morte ou absurdo, descrevamos rigorosamente a experiência. O monge medieval que contempla, o operário moderno que sofre, o soldado que teme: todos têm vivências intencionais. Só descrevendo a estrutura dessas consciências escaparemos do caos. A fenomenologia é o fio que pode atravessar tanto o claustro quanto a trincheira.”
O Tribunal da Realidade deixou que o silêncio os cercasse, confirmando a todos em parte. No claustro confirmou Kierkegaard, pois de fato ali a fé sustentava corações. Na trincheira confirmou Sartre, pois de fato a liberdade pesava sobre cada escolha. Na morte confirmou Heidegger, pois de fato o fim atravessa todas as épocas. No vazio confirmou Camus, pois de fato o mundo cala diante do grito humano. Na descrição confirmou Husserl, pois de fato cada experiência carrega estrutura intencional.
Kierkegaard voltou-se a Sartre:
“Dizes que a fé é fuga, mas digo que tua liberdade sem Deus é angústia sem remédio.”
Sartre respondeu:
“Prefiro a angústia à ilusão. Prefiro ser livre e condenado do que escravo de uma voz invisível.”
Heidegger interveio:
“Ambos sois filhos do mesmo abismo. A fé e a liberdade são respostas ao mesmo ser-para-a-morte.”
Camus acrescentou:
“E ainda assim, todos vos iludis. Quer com Deus, quer com liberdade, quer com autenticidade, ainda buscais sentido. Mas o mundo permanece mudo. É preciso aceitar esse silêncio e continuar.”
Husserl replicou:
“E se em vez de buscar ou negar, apenas descrevêssemos? A experiência do monge, do operário, do soldado — todas são fenômenos que nos mostram como o mundo se dá. Talvez aí esteja o começo do verdadeiro rigor.”
O Tribunal da Realidade, juiz invisível, falou enfim:
“Cada um de vós trouxe fragmento do real. Kierkegaard, confirmo tua fé em meio ao desespero; Sartre, confirmo tua liberdade em meio à ocupação; Heidegger, confirmo tua finitude em cada morte; Camus, confirmo teu absurdo em cada silêncio; Husserl, confirmo tua descrição em cada vivência. Nenhum de vós me possui por inteiro, mas todos me tocam.”
E enquanto os séculos passavam diante deles — mosteiros, fábricas, trincheiras, cafés — a voz do tribunal permaneceu: o real é tribunal maior que fé, liberdade, morte, absurdo ou descrição. E todos, cada um à sua maneira, dobraram a fronte diante dele.

O Tribunal da Inocência Perdida.

O Tribunal da Realidade abriu um espaço sombrio: não havia claustros nem parlamentos, mas um mercado moderno escondido em vielas, onde a dignidade humana era trocada por dinheiro. Ali estava uma criança de olhos grandes e vazios, que havia perdido os pais pela violência da ganância e agora era vendida como escrava. Em torno dela se reuniram Husserl, Heidegger, Kierkegaard, Sartre e Camus, cada qual incapaz de desviar os olhos.
Kierkegaard foi o primeiro a falar, sua voz trêmula.
“Vejo nesta criança o desespero absoluto: não tem chão, não tem futuro, não tem rosto diante do mundo. Se o homem sem Deus já está perdido, o que dizer desta inocência roubada? Só há uma saída: o salto na fé. Só um Deus que sofre pode acolher um sofrimento tão inocente. Sem Ele, o desespero desta criança é abismo sem fundo.”
Sartre o interrompeu, com semblante duro.
“Não, Kierkegaard. Tua fé é um consolo que adia a responsabilidade. A realidade é esta: a criança está aqui, jogada à liberdade mais cruel, sem escolha, feita objeto pela liberdade dos outros. Digo-vos: é a má-fé de uma humanidade que renuncia à própria responsabilidade que cria escravidão. E nós, cada um de nós, somos responsáveis. Não há Deus que a liberte: só nossas escolhas podem arrancá-la deste inferno.”
Heidegger olhou profundamente para os olhos da criança e falou em tom grave.
“Vós discutis fé e liberdade, mas aqui vejo o ser reduzido ao esquecimento. Esta criança foi transformada em coisa, arrancada de seu ser-próprio. É o niilismo técnico e ganancioso que a lança à escravidão. A realidade aqui é desvelamento da verdade mais terrível: o homem esqueceu o ser e com isso esqueceu o humano. Digo-vos: só resgatando a autenticidade diante da morte e da finitude podemos devolver-lhe dignidade.”
Husserl ergueu a voz, tentando ordenar a dor em método.
“Amigos, vejo nesta cena o exemplo extremo do que sempre disse: é preciso retornar às coisas mesmas. Esta criança não é estatística, não é conceito: é vivência pura, intencionalidade que grita. Precisamos descrever sua dor tal como ela é dada à consciência, sem máscaras. Pois só na descrição rigorosa de sua experiência podemos revelar o que a ganância tenta esconder. A fenomenologia é aqui um testemunho contra a abstração que permite a barbárie.”
Camus, que havia permanecido em silêncio, aproximou-se da criança e ajoelhou-se.
“E eu digo: tudo isso é absurdo. O sofrimento de uma criança não tem resposta, não tem razão, não tem teodiceia. O absurdo está aqui, vivo, queimando. Mas o que nos resta não é desistir nem inventar justificativas: é revoltar-se. Não com slogans ou promessas, mas com a recusa firme de aceitar que isto seja normal. A dignidade está em resistir, em salvar esta criança mesmo que o mundo inteiro insista no contrário. No absurdo, é a solidariedade que se torna sagrada.”
O Tribunal da Realidade envolveu a cena com sua luz difusa. Confirmou Kierkegaard na fé que consola, mas advertiu que a fé sozinha pode se tornar refúgio vazio. Confirmou Sartre na responsabilidade da liberdade, mas advertiu que a liberdade sem amor pesa como ferro. Confirmou Heidegger no diagnóstico do esquecimento do ser, mas advertiu que a análise não basta sem ação. Confirmou Husserl na necessidade de ver o fenômeno puro, mas advertiu que descrição sem gesto não salva. Confirmou Camus na revolta solidária, mas advertiu que a revolta sem fundamento pode se perder em desespero.
A criança, silenciosa, olhou para eles. E o Tribunal da Realidade, voz sem som, falou:
“Vós filosofastes sobre morte, angústia, liberdade e absurdo. Agora vos mostro a inocência violada. Não há sistema que a justifique. A verdade é simples: quem esquece o ser humano, cai em niilismo; quem abandona a fé, cai em desespero; quem nega a liberdade, cai em tirania; quem não reconhece o absurdo, cai em mentira. A realidade vos chama não a discursar, mas a agir.”
E assim, diante da criança vendida, cada filósofo calou, e só restou o tribunal. Pois nenhuma palavra era suficiente diante da exigência maior: devolver-lhe a dignidade roubada.

O Tribunal em Meio ao Saque.

O Tribunal da Realidade abriu-se em plena rua tomada pelo caos. Casas arrombadas, lojas incendiadas, famílias ajoelhadas em pranto, crianças arrastadas como mercadoria viva. Centenas de criminosos, embriagados pela violência, saqueavam sem piedade. Foi ali, no coração da desordem, que Marx, Comte, Hegel e Kant se encontraram.
Comte foi o primeiro a falar, quase gritando para ser ouvido em meio ao tumulto.
“Eis a prova de que sem ordem, a sociedade se dissolve em barbárie. A ciência e o progresso existem para impedir isto. Aqui não há lei positiva, não há disciplina social: só instinto bruto. Digo-vos: se a humanidade não se submeter à ordem do saber, sempre voltará a este estado animalesco.”
Marx respondeu, os olhos fixos nos ladrões e nos pobres caídos ao mesmo tempo.
“Não, Comte. O que vês não é ausência de ordem, mas a ordem do capital levando homens à loucura. Estes saqueadores são filhos da exploração, frutos da desigualdade que transformou famílias em vítimas e homens em feras. A realidade grita: a luta de classes não se dissolve em leis, mas explode em violência. Não aplaudo o saque, mas compreendo sua raiz. Sem justiça social, a ordem que defendes é só máscara da opressão.”
Hegel interveio com voz solene, como se descrevesse a própria história.
“Vejo além do que vós vedes. O que aqui acontece não é só crime ou reação: é momento da dialética. O Espírito se move também pelo negativo. Esta violência cega é expressão de uma contradição que precisa ser superada. A realidade me mostra que até o horror participa da marcha da liberdade. Pois o Espírito, negando, prepara síntese maior.”
Kant, de rosto firme e indignado, elevou a voz sobre todos.
“Não, Hegel. Não, Marx. Não, Comte. O que vejo aqui não é instrumento de história, nem luta de classes, nem ausência de ordem: é violação da lei moral. A realidade me mostra que cada ato que transforma um ser humano em meio é crime contra a dignidade. Nenhuma dialética, nenhuma sociologia, nenhuma estatística pode justificar o que acontece quando uma criança é arrastada em correntes. O imperativo é absoluto: não uses ninguém apenas como meio. Estes homens falham não porque são pobres, nem porque falta ciência, mas porque escolheram trair a lei que está dentro deles.”
O Tribunal da Realidade envolveu a cena em silêncio pesado. Confirmou Comte quando viu que sem ordem a sociedade mergulha em caos. Confirmou Marx quando percebeu que a desigualdade alimentava a violência. Confirmou Hegel quando constatou que até o horror forjava sínteses históricas. Confirmou Kant quando viu que nada, absolutamente nada, justifica a violação da dignidade humana.
Um dos criminosos, segurando uma criança pelo braço, parou por um instante ao ouvir aqueles homens discutindo. Tremendo, perguntou:
“Então o que devo fazer? A fome me trouxe aqui, mas o que faço agora com esta criança?”
Comte disse:
“Obedece à ordem da ciência e da lei.”
Marx disse:
“Revolta-te contra quem te fez miserável, não contra inocentes.”
Hegel disse:
“Reconhece que tua violência é contradição que pede superação.”
Kant disse:
“Vê esta criança como fim em si mesma e liberta-a.”
O Tribunal da Realidade falou enfim:
“Se cada um de vós fosse ouvido, o mundo seria menos cruel. Mas se cada um fosse ouvido sozinho, ainda seria incompleto. A verdade está em unir ordem, justiça, síntese e dignidade. Sem isso, os homens continuarão saqueando e os inocentes continuarão sendo escravizados.”
E então, diante do clamor das famílias, cada filósofo calou, e apenas a realidade permaneceu, exigindo mais que discursos: exigindo justiça viva.

O Tribunal da Promessa Traída.

O Tribunal da Realidade ergueu diante de todos o cenário sombrio de uma ditadura comunista. O ar estava pesado, carregado de medo. Crianças subnutridas, famílias enfileiradas esperando pão, intelectuais desaparecidos. Monumentos e bandeiras vermelhas ainda prometiam um futuro glorioso, mas o presente gritava o oposto.
Marx foi o primeiro a falar, olhando para os murais de sua própria imagem estampada.
“Vejo aqui não a ruína da minha ideia, mas a traição dela. O comunismo que defendi não era ditadura de partido, mas emancipação do trabalhador. Minha voz clamava contra a exploração, contra a miséria. Se aqui houve tirania, não foi por minha dialética, mas por sua distorção. A realidade não condena minha teoria: condena quem a deturpou.”
Levantou-se então Kant, severo, como quem via no horizonte a própria sombra da lei moral negada.
“Marx, a realidade desmente tua fuga. Não é mera distorção: é fruto lógico da tua recusa da lei moral universal. Quando reduziste o homem a peça da luta de classes, abriste caminho para que fosse tratado como meio descartável. A realidade, neste campo de prisioneiros, me confirma: sem o imperativo categórico, a justiça se torna cálculo, e o cálculo mata.”
Descartes interveio, com voz firme e metódica.
“E acrescento: a razão clara e distinta, que poderia ter guiado, foi afogada pela paixão ideológica. Vieste falar em ciência da história, mas não havia método, apenas profecia. E quando a profecia substitui o raciocínio, o homem se perde. Esta ditadura que vejo é o triunfo da irracionalidade sob máscara de ciência.”
Locke, vindo do campo empirista, respondeu olhando para os armazéns vazios.
“Eis a prova: a experiência refutou tuas promessas. Décadas de tentativas, e o que restou foi fome e medo. A realidade é tribunal empírico: não importa quantos livros escrevas, se a prática mostra ruína. A experiência viva das famílias famintas derruba teu edifício.”
Hume, cético, ironizou com amargura.
“Tu prometeste necessidade histórica, mas vejo apenas contingência sangrenta. Não há dialética inevitável, apenas escolhas humanas. E essas escolhas custaram vidas. O hábito que o povo aprendeu com teu sistema foi o de desconfiar de toda promessa política. Eis o teu legado empírico.”
Hegel ergueu-se, não para defender Marx, mas para reinterpretar.
“Marx, tu foste meu discípulo torto. Quiseste arrancar a dialética do Espírito e confiná-la ao estômago. O resultado está aqui: história sem liberdade, só matéria. A realidade confirma: o Espírito não se reduz à economia. Quem tenta aprisioná-lo no pão acaba destruindo tanto pão quanto espírito. Eis a síntese cruel desta ditadura: negação da liberdade em nome da necessidade.”
Marx retrucou com força, gesticulando para as fábricas ao longe.
“Dizeis que falhei, mas esqueceis o operário que ainda sofre no capitalismo! Vede as crianças exploradas, as famílias em miséria, mesmo fora deste regime. Minha voz continua verdadeira: o capital é o câncer, e a história exige superação.”
Kant respondeu, firme como martelo.
“Mas nenhuma superação pode violar a dignidade. A realidade mostra: tentar salvar o homem negando sua liberdade o destrói. O fim não justifica os meios.”
Locke completou:
“O contrato social não pode ser anulado por tirania de partido. A realidade confirma: sem consentimento, só há opressão.”
Descartes adicionou:
“Sem método, só há delírio travestido de ciência.”
Hume riu amargo:
“Sem humildade diante da contingência, toda necessidade histórica vira superstição.”
E Hegel concluiu:
“Sem Espírito, toda revolução devora a si mesma.”
O Tribunal da Realidade envolveu o cenário em sua luz difusa e falou em tom supremo:
“Marx, confirmo tua denúncia contra a exploração. Mas condeno tua promessa de paraíso terreno. Pois ao negar o valor absoluto da pessoa, teu sistema gerou opressão maior do que aquela que combatias. Idealistas, racionalistas, empiristas: confirmo vossas críticas, mas também vos corrijo. Pois o capitalismo também oprime, a razão também enlouquece, a experiência também engana. Todos sois fragmentos. A verdade está além de cada um.”
E diante das filas famintas e das crianças arrastadas para o trabalho escravo, todos se calaram. Pois a realidade havia falado mais alto que as filosofias.

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O Julgamento de Lipps – O Psicologismo diante da Alma.

O Tribunal da Realidade abriu o salão em tom solene. Ao centro, o réu: Theodor Lipps, erguido como voz do psicologismo. À direita, as testemunhas da alma: Platão, Tomás de Aquino, Husserl. O público era de filósofos e cientistas modernos, atentos ao embate.
O Tribunal falou:
“Lipps, apresentas tua defesa. Mas lembra: não falas apenas diante de homens, falas diante da realidade que é tribunal maior que todo discurso.”
Lipps, de pé, firme em sua convicção, declarou:
“Sim, falo em nome do psicologismo. Digo-vos: a lógica não é uma ordem eterna, mas uma regularidade psíquica. Quando o homem raciocina, obedece a leis da mente, não a princípios metafísicos. A verdade é inseparável da consciência psicológica. Não existe alma receptora de verdades eternas, apenas cérebro que pensa segundo hábitos. Eis minha defesa: toda lógica é psicologia.”
Platão ergueu-se de imediato, sua mão apontando para o alto.
“Eis teu erro, Lipps. Confundes a sombra com a luz. Se a lógica fosse hábito mental, cada cultura teria sua matemática, cada cérebro sua verdade. Mas a realidade me mostra o contrário: em toda parte, dois e dois são quatro, a justiça é buscada, a beleza é intuída. Não são produtos da mente, mas Ideias que a mente participa. A alma é o olho capaz de ver o que não depende dela. Reduzir a verdade à mente é negar o próprio sol que ilumina o pensar.”
Tomás de Aquino falou em seguida, com voz firme como pedra.
“Confirmo Platão e acrescento: a verdade é adequação entre intelecto e ser. Se a lógica fosse apenas estado psicológico, não haveria ciência universal, apenas opiniões privadas. Mas a realidade mostra o contrário: engenheiros constroem pontes, médicos curam doenças, filósofos descobrem princípios. Isso não é variação psíquica: é verdade objetiva apreendida pela alma racional. Quem nega a alma como recipiente da verdade, nega o próprio fundamento da razão.”
Lipps retrucou, com vigor.
“Vós falais de alma como se fosse substância, mas a ciência moderna mostra que tudo é função cerebral. A universalidade da lógica não é céu de Ideias, mas convergência de cérebros semelhantes. O número quatro não flutua em eternidade, é apenas regularidade mental que se repete. Quando todos pensam igual, não é porque participam de uma alma, mas porque compartilham estrutura psíquica.”
Husserl então se ergueu, com olhar cortante.
“E aqui intervenho, Lipps, como teu crítico direto. O erro de teu psicologismo é confundir validade com fato. Se a lei da não contradição fosse produto psicológico, poderia ser abolida por alteração cerebral. Mas a realidade me mostra que não: mesmo que o mundo inteiro perdesse a razão, 2+2 ainda seria 4. A verdade lógica é ideal, não empírica. A consciência — chame-a alma, se quiser — é campo de manifestação da verdade, mas não sua fonte. Teu psicologismo dissolve a própria possibilidade da ciência.”
Lipps, perturbado, respondeu:
“Mas não vedes que vossa ‘consciência transcendental’ é também construção da mente? Não vedes que falais de eternidade como metáfora?”
O Tribunal da Realidade interrompeu, sua voz ecoando mais forte que todos.
“Lipps, confirmo tua observação de que a mente condiciona o acesso ao verdadeiro. Mas condeno tua pretensão de reduzir a verdade a produto da mente. Pois a realidade me mostra que a matemática sobrevive às culturas, que a justiça é intuída mesmo por povos distantes, que a dignidade humana é reconhecida mesmo em tempos de barbárie. Isso não é hábito, é verdade. A alma é recipiente, não porque inventa, mas porque acolhe o que a excede.”
Platão concluiu:
“A alma vê além do tempo.”
Tomás afirmou:
“A alma conhece porque participa do ser.”
Husserl declarou:
“A alma — consciência transcendental — é horizonte onde a verdade se dá.”
Lipps, cabisbaixo, murmurou:
“Talvez a mente seja maior do que chamei de psicologia.”
E o Tribunal encerrou:
“O psicologismo foi ouvido e corrigido. Sua parte permanece: o acesso ao verdadeiro passa pelo sujeito. Mas sua ilusão foi quebrada: o verdadeiro não nasce do sujeito, mas o sujeito nasce diante do verdadeiro. A alma é o vaso, não a fonte.”

A Defesa de Theodor Lipps.

Lipps levantou-se no tribunal, ajustou seus papéis e começou com voz firme:
“Senhores, fui acusado de reduzir a verdade ao psicológico, como se isso fosse uma degradação. Mas eu vos digo: não há degradação alguma em reconhecer o que é evidente. A lógica não é um céu de Ideias, não é um dogma da metafísica, não é luz infundida por algum além. A lógica é, simplesmente, o funcionamento regular da mente humana. É a psique que pensa, é a psique que associa, é a psique que repete — e desse movimento nasce o que chamamos de lei lógica.
Vedes um homem afirmar que dois e dois são quatro, outro em outra terra repetir o mesmo, outro em outra era confirmar. Dizeis: ‘Eis a prova da eternidade das ideias!’ Eu vos digo: não, é apenas prova da semelhança de nossos cérebros. A universalidade não é signo de transcendência, mas de biologia. Se todos raciocinam de modo similar, é porque compartilham a mesma constituição psíquica.
Husserl me acusa de confundir validade com fato. Mas eu lhe respondo: que outra coisa é a validade senão o fato repetido? O hábito é o solo da razão. Vossa lei de não contradição, tão celebrada, não passa de uma aversão mental à incoerência, construída pela experiência de que contradições não produzem nada. É um reflexo psicológico elevado à categoria de dogma.
Platão diria que há Ideias eternas. Mas que são suas Ideias senão projeções do intelecto, abstrações que criastes ao notar regularidades? A justiça, a beleza, a verdade — são apenas nomes dados a experiências mentais, repetições psíquicas que se cristalizaram. Não há mundo inteligível, há apenas mente que inventa ordem onde há fluxo.
Tomás proclamará que a verdade é adequação entre intelecto e ser. Mas não percebe que o intelecto nada conhece do ser em si? Conhece apenas impressões mentais, imagens psíquicas, construções internas. Dizeis que Deus infundiu luz na alma, mas não vejo senão descargas nervosas e associações de memória. A verdade é adequação, sim, mas adequação entre estados mentais, não entre mente e ser.
E quanto a vós, Husserl, que ergueis o estandarte da consciência transcendental: vossa ‘idealidade’ é miragem. Dizeis que dois mais dois seria quatro mesmo que todos os cérebros desaparecessem. Eu respondo: se não houver cérebros, não haverá ninguém para dizer ‘dois’, não haverá mundo onde ‘quatro’ faça sentido. A lei lógica é produto humano, não coisa em si. O ideal é apenas psíquico projetado.
Acusais-me de dissolver a ciência, mas eu vos digo: ao contrário, eu a fundamento. Pois a ciência verdadeira não se alimenta de essências místicas, mas de observação de estados mentais, de como pensamos, de como associamos, de como erramos e corrigimos. O psicologismo não destrói a ciência, mas a ancora na única realidade acessível: a mente que pensa.
Quereis um recipiente eterno para a verdade, chamais de alma. Eu vos digo: não há alma, há psique. Não há eternidade, há hábito. Não há transcendência, há processo mental. A verdade não está fora de nós, mas nasce conosco, flui conosco, morre conosco.
E se isso vos parece pouco, então vos digo: não há nada mais real do que aquilo que o homem pensa. Pois o homem não conhece senão o que sua mente constrói. Negar isso é fingir que tocais o eterno quando na verdade tocais apenas vossas próprias representações.
Assim, declaro diante do tribunal: o psicologismo não é redução, mas libertação. Ele nos livra das sombras de um além inventado e nos coloca frente ao único absoluto possível — a mente humana que pensa.”

A Sentença do Tribunal da Realidade.

O salão silenciou. As palavras de Lipps ainda ecoavam, cheias de confiança, mas também de peso. Platão, Tomás e Husserl haviam apresentado sua acusação. O público aguardava, dividido entre o fascínio do psicologismo e a fidelidade à alma. Então, o Tribunal da Realidade ergueu sua voz, não humana, mas maior que todos os discursos.
“Ouvi tua defesa, Lipps. Confirmo que a mente humana condiciona o acesso à verdade. Confirmo que cérebros semelhantes produzem regularidades semelhantes. Confirmo que a psicologia ilumina os caminhos da cognição, os hábitos que estruturam o pensar, os erros que se repetem.
Mas condeno tua pretensão de reduzir a verdade ao psicológico. Pois a realidade me mostra que o verdadeiro resiste às mentes, transcende culturas, atravessa gerações. A lei da não contradição não nasceu de teus hábitos: é condição de possibilidade para que teu hábito seja reconhecido como tal. O número não se dissolve com os cérebros: se amanhã não houvesse homem algum, ainda assim dois mais dois não seriam cinco.
Dizes que a justiça é invenção da mente. Mas se assim fosse, não haveria clamor universal quando uma criança é injustamente ferida. A justiça é intuída como algo que obriga mesmo quando contraria desejos, e por isso não pode ser mero reflexo mental.
Dizes que a verdade é adequação de imagens psíquicas entre si. Mas a realidade te mostra que mesmo quando todos os homens erram, a verdade não erra. A Terra girava ao redor do sol mesmo quando toda mente humana acreditava no contrário. A alma é recipiente da verdade justamente porque a verdade não depende dela: acolhe o que a excede.
Confundes validade com fato. Mas o fato é contingente, enquanto a validade é necessária. Teu psicologismo, levado às últimas consequências, destrói a própria ciência que pretendes fundamentar, pois se a lógica fosse hábito mental, toda investigação cairia no relativismo do cérebro individual.
Por isso, declaro:
O psicologismo é útil como auxiliar, mas falho como fundamento. Ele descreve o caminho do pensar, mas não cria a verdade do pensado. Ele mostra como a mente opera, mas não por que a verdade se impõe. Ele ilumina processos, mas não é senhor dos princípios.
Lipps, tua voz será lembrada como advertência contra o orgulho da razão que confunde sua obra com a obra do ser. Mas não és juiz da verdade: és testemunha parcial, e como tal, corrigida.
A sentença é esta:
A verdade não é produto da mente. A verdade é maior que a mente. A mente a acolhe, mas não a cria. A alma é recipiente porque a verdade é dom, não invenção. O psicologismo está condenado em sua pretensão absoluta, e absolvido apenas em sua utilidade limitada.”
E com isso, o Tribunal se calou. O público, atônito, compreendeu que a realidade havia falado, e que nenhuma defesa poderia se sobrepor ao peso de sua sentença.

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