sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O instante, a vida e a busca pela singularidade.

Pensei sobre a sua vida, sobre como ela se apresenta. Cheguei à constatação de que ela se resume a momentos: algo que, por um tempo breve — o qual chamamos de presente — acontece e logo se esvai. Isso é o que chamamos de vida. Todavia, deve haver algo que atravesse essa bolha, que conceda a essa sucessão de instantes algo além da simples passagem. Caso contrário, resta apenas a constatação de que esses momentos, guardados em forma de imagens, são tudo o que permanece.
Assim foi o adentrar, o entrar de cabeça, a experiência de mergulhar no fluxo. A ideia, em si, é atraente: simples momentos que se sucedem. Mas ainda restam dúvidas inevitáveis. Para além desses instantes, o que realmente existe? Volta-se, então, à prancheta de soluções. Por um instante, surge uma suspeita: e se não for a ausência de sentido, mas justamente a multiplicidade o problema? Nesse caso, talvez a resposta resida na direção oposta: não na soma infinita de fragmentos, mas na unidade que rompe a dispersão, na singularidade que concentra e resgata do caos a essência.
Essa constatação é direta e torna inevitável a dependência da ideia real: se vivemos de momentos, e eles são o que são — transitórios —, o que seria, então, a intransitoriedade? E é nesse ponto que se inicia a jornada: uma explanação no interior desse universo de dualidade, onde o múltiplo se confronta com o uno, e onde talvez se encontre o fio condutor daquilo que permanece.

(Jardel Almeida)

Índice.

Prólogo:
O instante, a vida e a busca pela singularidade.

Artigo I – O Regime dos Instantes e a Dialética da Transitoriedade.

Exame da vida como sucessão de momentos fugidios, sua contradição interna e o limite da experiência humana quando reduzida apenas ao transitório. O múltiplo aqui aparece como pura dispersão, como corrente de imagens que não sustenta a substância. A análise avança mostrando que o transitório exige a ideia de permanência, pois só a intransitoriedade pode legitimar o momento.

Artigo II – A Singularidade como Superação do Múltiplo.

Desenvolvimento da categoria do uno enquanto negação e ao mesmo tempo realização do múltiplo. O uno não é simples exclusão, mas o recolhimento da dispersão no centro da totalidade. Esse movimento abre espaço para a compreensão de que a unidade não elimina os instantes, mas os eleva em sentido. Analogias com a realidade histórica e social serão usadas para demonstrar como sociedades fragmentadas só encontram direção quando remetidas a um princípio unificador.



Artigo I – O Regime dos Instantes e a Dialética da Transitoriedade.

A vida, quando reduzida ao seu aspecto imediato, se apresenta como fluxo de instantes sucessivos, cuja força reside justamente na fragilidade. Cada momento se dá, brilha em sua própria intensidade, e logo se desfaz como se fosse feito de poeira luminosa. O sujeito, ao olhar para trás, encontra apenas imagens retidas na memória, resíduos do que já não é. Esta experiência da sucessão contínua funda uma primeira constatação: vivemos no transitório, e tudo aquilo que chamamos de “realidade” é apenas o nome que damos ao que se esvai.
O problema que se coloca é que, se aceitarmos o transitório como absoluto, a vida se desfaz em uma dispersão sem centro. Essa é a contradição inicial: o instante, para ser, precisa negar-se como instante. A consciência percebe que não pode habitar somente no devir; ela busca o que resiste à passagem. É aqui que a dialética se impõe, mostrando que o transitório só se deixa pensar em contraste com a ideia de permanência.
Essa tensão é perceptível não apenas na filosofia, mas na própria realidade dos fatos. Um trabalhador, ao cumprir seu dia, percebe que cada hora se dissolve, mas a totalidade de suas jornadas lhe garante o sustento. A política, ao lidar com eventos e crises, vê-se compelida a instituir leis que fixem um mínimo de estabilidade. Mesmo no amor, cada encontro poderia ser apenas instante, mas é a promessa do vínculo que dá consistência ao momento. Assim, o transitório, por si só, revela sua insuficiência.
No entanto, é justamente essa insuficiência que o torna fértil. O instante, ao mostrar-se como limitado, aponta para além de si. Essa é a astúcia do real: aquilo que se desfaz se converte em sinal daquilo que permanece. O momento fugaz da infância, guardado como lembrança, já não é apenas instante perdido, mas parte da narrativa que se estende na vida inteira. O transitório, então, é mediação: ele exige a presença de algo que o transcenda.
Hegel diria que o ser puro, tomado isoladamente, é indistinguível do nada; e é no devir, na passagem de um ao outro, que a verdade se manifesta. De modo semelhante, o instante puro, tomado sozinho, se dissolve; mas na sucessão, na contradição entre ser e não ser, surge a possibilidade de pensar o tempo como totalidade. O transitório é, assim, mais do que perda: é negatividade criadora, impulso para que o pensamento busque sua contrapartida.
Essa contradição aparece também nas estruturas sociais. Uma sociedade que viva apenas de acontecimentos, sem leis ou tradições, se perde na multiplicidade anárquica. É o caso de revoluções que, após derrubar um regime, não conseguem instituir nada de duradouro: cada momento se consome em violência, até que surja a necessidade de uma ordem. O transitório, na política, não é estável; é apenas intervalo até que a exigência da permanência se imponha.
O mesmo vale para a economia. Um mercado que se oriente apenas pelo instante — pelo lucro imediato, pela especulação do dia — se torna insustentável. A confiança, que é a intransitoriedade econômica, é o que garante que o instante possa se repetir e gerar frutos. Sem esse vínculo ao permanente, cada transação seria um risco absoluto.
Assim, a dialética dos instantes revela sua estrutura: o transitório não pode ser pensado sem sua negação. Cada momento, ao mesmo tempo em que se afirma, já aponta para sua dissolução; e é nesse movimento que surge a exigência de algo mais, de uma totalidade que recolha a sucessão. A transitoriedade é, portanto, um regime instável, sempre em busca de sua superação.
Contudo, a consciência moderna, fascinada pelo múltiplo, tende a esquecer essa verdade. Ela celebra o instante como se fosse absoluto: a cultura da velocidade, das imagens imediatas, do consumo rápido, é expressão desse esquecimento. Mas quanto mais se celebra o transitório, mais se experimenta o vazio que ele carrega. O sujeito contemporâneo, diante da avalanche de informações, sente-se saturado e, ao mesmo tempo, vazio, porque lhe falta o centro que recolha os fragmentos.
Essa é a contradição prática da vida atual: multiplicidade sem unidade, movimento sem direção. O instante, quando erigido a absoluto, transforma-se em tirania. E essa tirania não é suave: é opressiva, porque condena o sujeito a viver apenas no agora, sem horizonte, sem permanência. O transitório absoluto é um não-lugar, uma prisão invisível.
Portanto, o regime dos instantes não é apenas uma descrição do que vivemos, mas a denúncia de uma contradição essencial. O transitório, se tomado isoladamente, se autodestrói; mas é justamente nisso que se revela seu sentido dialético. A vida não pode ser apenas sucessão de momentos, porque cada momento, em sua negatividade, exige ser recolhido em algo maior.
A dialética da transitoriedade nos mostra que, assim como o ser puro se converte em nada, o instante puro se converte em vazio. Mas quando pensado em sua mediação, o instante se torna portador daquilo que transcende. Ele é caminho, não fim; é seta que aponta para o permanente. O transitório, nesse sentido, é a base para o nascimento da ideia de intransitoriedade.
Na realidade histórica, vemos isso nas tradições que, apesar de surgirem em instantes concretos, resistem ao tempo porque se convertem em símbolos de permanência. Um ritual, uma lei, uma obra de arte, nascem em determinado instante, mas sobrevivem porque são capazes de carregar em si a marca do eterno. A transitoriedade se torna, então, veículo do permanente.
Assim, a consciência se vê diante da necessidade de ultrapassar a dispersão. O instante, como puro fenômeno, não se basta; mas como momento da totalidade, encontra sentido. A dialética não destrói o transitório, mas o recolhe no movimento do todo.
Deste modo, o regime dos instantes revela não apenas a fragilidade da vida, mas também a potência criadora da contradição. É a transitoriedade que nos conduz à busca daquilo que não passa. E é neste movimento que a jornada se abre para o próximo passo: compreender que a singularidade, o uno, não é exclusão do múltiplo, mas sua verdade mais profunda.

Artigo II – A Singularidade como Superação do Múltiplo.

Se o primeiro movimento nos conduziu ao regime dos instantes, onde o transitório se revelou insuficiente, agora nos cabe avançar para a ideia de singularidade como negação e, ao mesmo tempo, realização do múltiplo. O instante, isolado, se autodestrói; a multiplicidade, quando erigida a princípio, se dispersa em caos. A singularidade aparece como síntese desse conflito, não como anulação do múltiplo, mas como recolhimento de sua verdade.
A dialética aqui se mostra em sua face mais profunda: o múltiplo se dá como abundância de momentos, imagens, acontecimentos, mas sua própria proliferação denuncia o vazio. Ele se torna excesso sem direção, movimento sem finalidade. O uno surge, então, não como tirania da uniformidade, mas como o centro que resgata a dispersão. É no uno que a multiplicidade se converte em totalidade.
Na realidade prática, esse movimento se expressa de formas diversas. Uma sociedade, por exemplo, é composta por múltiplos indivíduos, cada um portador de instantes e histórias singulares. Mas a mera justaposição desses elementos não produz comunidade. O que a torna sociedade é o vínculo ao uno: a lei, a tradição, o mito fundador que dá sentido ao múltiplo. Sem esse princípio de unidade, o conjunto se dissolve em massas sem direção, em indivíduos isolados que nada compartilham.
Essa verdade se mostra também no indivíduo. O ser humano vive de momentos múltiplos, de desejos que se sucedem, de experiências fragmentadas. Mas, quando carece de unidade interior, ele se perde na dispersão de si mesmo. O uno, nesse caso, é a identidade profunda que recolhe os fragmentos em uma narrativa coerente, em um centro que dá direção à vida. Sem isso, a multiplicidade interna se converte em alienação.
Hegel já indicava que o verdadeiro uno não é o abstrato, mas o concreto-universal: aquilo que, ao invés de excluir, recolhe em si as determinações. A singularidade, nesse sentido, não é mera negação do múltiplo, mas sua elevação. É na unidade que a multiplicidade se torna verdade, porque ali encontra o espaço de seu sentido.
Um exemplo histórico pode ilustrar: quando um império se expande, multiplicando povos e territórios, a diversidade cresce até o ponto de se tornar insustentável. Roma, por exemplo, só se manteve porque havia um princípio de unidade — o direito romano, a figura do imperador, a ideia de romanidade. Quando essa unidade se dissolveu, o múltiplo se tornou ingovernável, e o império ruiu. A história é testemunho da necessidade do uno para resgatar o múltiplo.
Na economia, observamos o mesmo. O mercado se compõe de milhões de transações, cada uma um instante efêmero de troca. Se cada uma fosse apenas momento isolado, não haveria confiança, não haveria ordem. O que permite que a multiplicidade se sustente é a unidade do sistema monetário, da confiança nas instituições, da fé em um valor que atravessa os instantes. O dinheiro, paradoxalmente, é a unidade que recolhe a dispersão das trocas.
Na vida espiritual, a analogia se repete. O sujeito pode viver uma multiplicidade de experiências estéticas, emocionais ou intelectuais, mas só quando as recolhe em um princípio unificador é que encontra sentido. A religião, a filosofia, a arte, cumprem essa função: oferecer ao múltiplo o espaço da totalidade. A singularidade aqui não é tirania, mas liberdade, pois liberta o sujeito da dispersão sem direção.
Essa dialética nos revela que o uno e o múltiplo não se excluem. O múltiplo, por si só, é vazio; o uno, isolado, seria abstração. Mas na síntese, na singularidade que recolhe a multiplicidade em sua verdade, se encontra a realidade concreta. A unidade não destrói os instantes: ela os eleva. O momento continua existindo, mas agora como parte de um todo.
No mundo contemporâneo, contudo, assistimos à rebelião do múltiplo contra o uno. O culto ao instante, à fragmentação, à multiplicidade sem centro, se converte em desagregação social e existencial. A multiplicidade, sem unidade, gera angústia, porque o sujeito é lançado em um mar de possibilidades sem critério. A singularidade é vista como opressão, quando na verdade é a condição da liberdade.
O paradoxo é evidente: ao rejeitar o uno, o indivíduo moderno acredita afirmar sua autonomia, mas acaba por se perder no excesso do múltiplo. O uno, que parecia limite, é na verdade fundamento. É nele que a multiplicidade encontra sentido. A singularidade é, portanto, não a negação da diversidade, mas sua verdade última.
Assim, a jornada que começou com a constatação do transitório nos conduz agora à ideia de unidade. A intransitoriedade, buscada como resposta ao instante fugaz, não se apresenta como fixidez imóvel, mas como singularidade viva, capaz de recolher em si a multiplicidade sem destruí-la. É a dialética em sua forma mais concreta: o múltiplo só é verdadeiro no uno, e o uno só é real quando assume em si a riqueza do múltiplo.
Portanto, o caminho filosófico e existencial se revela claro: não basta aceitar o regime dos instantes nem tampouco impor a abstração da unidade isolada. É preciso encontrar a singularidade, o princípio que recolhe a transitoriedade em permanência, que dá ao múltiplo sua direção. Essa é a tarefa da consciência, e talvez o núcleo do que chamamos de vida plena: viver os instantes não como poeira que se perde, mas como fragmentos resgatados na totalidade do uno.

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