A anistia no Brasil não é um mero expediente jurídico, tampouco uma concessão magnânima do Estado em favor da pacificação social. Ela é, antes de tudo, a expressão de um movimento dialético que, nas suas origens, mostra como a luta política se travestiu de direito positivo. A lei, que deveria nascer da universalidade, no caso brasileiro foi marcada desde cedo por um caráter particularista. O que se apresentou como reconciliação após a ditadura, por exemplo, não foi o desvelamento da razão universal, mas a vitória de uma narrativa. O Estado democrático de direito, longe de ser uma instância neutra, foi configurado como um sistema de garantias construído por uma classe política e intelectual que tinha lado e finalidade clara: a preservação da esquerda como sujeito histórico privilegiado.
Nesse sentido, a anistia de 1979 é paradigmática. O que deveria ser um processo recíproco de perdão e esquecimento, onde militares e militantes armados seriam colocados em pé de igualdade diante do futuro, tornou-se um mecanismo assimétrico. Na prática, perdoaram-se crimes de esquerda como se fossem atos de heroísmo, enquanto os atos do regime foram apenas “tolerados” sob a condição de futura condenação moral. O que foi vendido como equilíbrio já trazia em si o germe da desigualdade. Essa desigualdade não era um acidente, mas a forma pela qual o espírito da época — tomado pela retórica revolucionária e pela pressão internacional — moldou a instituição.
Assim nasce a peculiaridade brasileira: a lei que deveria transcender o conflito histórico passa a ser o instrumento para manter uma memória unilateral. O senso comum percebe essa deformação quando constata que qualquer tentativa de revisar o passado é tratada como “negacionismo” ou “retrocesso democrático”. O direito, em vez de se elevar à objetividade, torna-se uma pedagogia política. A anistia, nesse contexto, já não é um ato de pacificação, mas uma ferramenta de hegemonia.
A implicação presente é clara. Sempre que surge uma crise em que a esquerda está acuada, imediatamente se abre a possibilidade de recorrer a esse expediente, mas quando o polo contrário se encontra fragilizado, o mesmo recurso desaparece do horizonte. O que é tolerado em nome da democracia para uns, é rechaçado como atentado para outros. É por isso que, no imaginário atual, falar de anistia para os opositores soa como absurdo, enquanto anistia para movimentos e partidos de esquerda aparece como legítima.
Esse processo produz um efeito de alienação coletiva. O cidadão comum, que ainda acredita no mito da igualdade perante a lei, se vê diante de fatos que o desmentem, mas é induzido a calar ou relativizar. Ele percebe, por exemplo, que invasões de terra, depredações em nome da luta social e até discursos violentos contra instituições são enquadrados como “manifestações democráticas”. Já atos equivalentes, se praticados por grupos não alinhados à esquerda, são descritos como “terrorismo” e tratados com toda a força do aparato penal. O que deveria ser uma mesma medida, assume duas balanças diferentes.
A consequência disso é a corrosão do próprio conceito de Estado de direito. O que se apresenta como universalidade da lei já não é reconhecido como tal, e a desconfiança cresce. O povo passa a enxergar o sistema como um jogo de cartas marcadas, onde a letra da lei só serve para justificar o lado previamente escolhido. Quando essa percepção se generaliza, o efeito não é apenas jurídico, mas moral: o cidadão se sente desamparado, e o espaço público se degrada em ressentimento e ceticismo.
Exemplos abundam. Basta observar o tratamento dado a protestos recentes. Enquanto alguns atos foram enquadrados como “expressão legítima da sociedade civil”, outros, de igual ou menor intensidade, receberam o selo imediato de “ataque às instituições”. O critério não foi a natureza objetiva do ato, mas a posição política de quem o praticou. Isso chega ao senso comum quando um trabalhador compara na televisão dois episódios semelhantes e percebe a discrepância do julgamento. Ele pode não conhecer Hegel, mas sente na pele a contradição: a lei, que deveria ser espírito objetivo, se reduz a instrumento de facção.
O presente, portanto, é a manifestação plena dessa contradição entre forma e conteúdo. O Estado democrático de direito apresenta-se como universalidade, mas opera como particularidade. Essa dissonância não é sustentável indefinidamente. Na lógica dialética, toda contradição exige resolução, e aqui a resolução se dará na forma de um novo arranjo político-jurídico. O destino dessa deformação é revelar-se como crise do próprio conceito de democracia.
O objetivo futuro dessa engrenagem é cristalizar a hegemonia de um lado só. O que começou como artifício retórico para justificar uma reconciliação assimétrica se transforma em regra tácita: só há espaço para o perdão quando este fortalece a narrativa dominante. Nesse futuro, o instituto da anistia deixa de ser contingente e se torna sistemático. Ele funcionará como válvula de escape para os aliados e como clausura para os adversários.
No horizonte, isso significa que a democracia brasileira caminha para ser um simulacro: mantém as formas, mas esvazia o conteúdo. O cidadão continuará ouvindo discursos sobre pluralismo e tolerância, mas viverá sob uma ordem onde o perdão, a justiça e até a memória são distribuídos seletivamente. A promessa de igualdade é mantida apenas como ornamento, enquanto a realidade se afasta cada vez mais dela.
Nesse ponto, o exemplo do senso comum é revelador: todos entendem que, numa partida de futebol, se as regras mudam dependendo do time, já não há jogo, mas farsa. O mesmo se aplica aqui: o Estado de direito deixa de ser arena neutra e se torna palco de manipulação. A anistia, que deveria ser remédio de exceção, vira moeda de troca em benefício exclusivo de quem detém o discurso legitimador.
A origem explica, o presente denuncia e o futuro projeta. O cerne é que a lei, em vez de se manter acima das disputas, foi capturada por uma visão de mundo que se apresenta como universal, mas não passa de particularismo. A história brasileira da anistia é, portanto, a história de uma contradição ainda não superada.
E aqui a lição hegeliana se cumpre: o que se apresenta como síntese (a reconciliação democrática) contém em si a negação da própria universalidade. O espírito do direito não é reconhecido porque não se efetiva na prática. Resta a forma, mas o conteúdo é de facção. E essa distância entre forma e conteúdo não pode perdurar sem que o próprio edifício ruia.
Portanto, quando se pergunta por que a anistia só funciona para a esquerda no Brasil, a resposta não é meramente política, mas filosófica. Porque aquilo que foi instituído como universalidade nasceu já capturado pela particularidade. O resultado é um Estado democrático de direito que existe mais como mito do que como realidade.
O cidadão que percebe isso não precisa de tratados complexos para concluir: se a lei não é a mesma para todos, ela já não é lei, mas apenas ferramenta de poder. O futuro, então, é a encruzilhada entre continuar nesse ciclo de hegemonia seletiva ou enfrentar a contradição e buscar um verdadeiro reencontro com a universalidade perdida.
O risco, porém, é que a contradição não seja resolvida pela razão, mas pela ruptura. Se a desconfiança se generalizar, o próprio sistema colapsa em descrédito. A anistia, que nasceu como promessa de reconciliação, pode se tornar o símbolo maior da injustiça institucionalizada.
No fundo, esse é o destino de toda construção histórica que se pretende universal mas nasce particular. Ela carrega em si a semente de sua dissolução. A anistia brasileira é apenas mais um capítulo da longa luta entre o universal e o particular, luta que, em última instância, define não só o direito, mas o próprio espírito de um povo.
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