segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Outras Notas de Segunda - Cerco Militar a Venezuela.

A presença de uma força-tarefa naval norte-americana diante da Venezuela em 2025 não pode ser lida apenas como mais uma demonstração de bandeira. A composição da esquadra, que inclui um navio de assalto anfíbio da classe Wasp, dois transportes anfíbios modernos, três destroyers classe Arleigh Burke, um cruzador Ticonderoga e um submarino nuclear da classe Los Angeles, remete a uma configuração que historicamente antecede operações de coerção naval ou bloqueio. O simples fato de manter um LHD com capacidade para dezoito a vinte aeronaves de asas rotativas e decolagem curta, mais mil e oitocentos fuzileiros navais prontos para desembarque, já coloca a balança regional em estado de alerta. A América do Sul raramente assistiu a projeções de poder desta escala desde a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos estabeleceram patrulhas no Atlântico Sul para proteger comboios contra U-boats alemães.

A analogia com a Crise dos Mísseis de 1962 é inevitável. À época, a Marinha dos Estados Unidos estabeleceu uma “quarentena” marítima em torno de Cuba, não declarando formalmente um bloqueio, mas impedindo que cargueiros soviéticos descarregassem material bélico na ilha. A lógica jurídica e política daquela manobra era criar espaço para negociação sem disparar o gatilho de um ato de guerra pleno. No caso da Venezuela, a presença concentrada da 4ª Frota cumpre função semelhante: sustentar pressão máxima sobre Caracas e seus parceiros externos, sem necessariamente se comprometer com uma operação de invasão que teria custos humanos e políticos altíssimos. A história demonstra que, quando os EUA exibem capacidade anfíbia em cenário de crise no hemisfério, o objetivo primário costuma ser psicológico e diplomático, não necessariamente cinético.

No entanto, a configuração atual tem um diferencial em relação a 1962: a guerra moderna é muito mais dependente de sistemas de comando, controle e informação. Destroyers e cruzadores AEGIS na linha de frente não são apenas cascos pesados, mas nodos avançados de uma rede global que integra satélites, aeronaves de patrulha e sistemas de interceptação antimíssil. A presença do USS Lake Erie, cruzador com histórico de interceptação de alvos balísticos, sinaliza que o Comando Sul considera a hipótese de enfrentar não apenas meios convencionais da Força Armada Nacional Bolivariana, mas também vetores fornecidos por terceiros. Essa configuração lembra a Guerra do Golfo em 1991, quando navios equipados com o recém-testado AEGIS forneceram a camada de defesa essencial contra os mísseis Scud iraquianos, oferecendo cobertura para as forças anfíbias que permaneciam de prontidão, embora nunca desembarcassem.

O submarino nuclear USS Newport News adiciona uma camada de dissuasão silenciosa. Durante a Guerra das Malvinas, em 1982, o afundamento do cruzador argentino General Belgrano pelo submarino britânico HMS Conqueror mudou radicalmente o curso do conflito, forçando a Armada Argentina a se recolher. A simples notícia da presença de um Los Angeles-class ao largo da Venezuela gera impacto semelhante: qualquer capitão de corveta ou fragata venezuelana sabe que, em caso de escalada, a sobrevida de sua embarcação em mar aberto é mínima. A dissuasão não precisa ser declarada, apenas sugerida pela sombra de um casco nuclear que pode estar a qualquer distância, invisível.

O que distingue a conjuntura venezuelana de outros cenários é a sobreposição de interesses externos. A URSS não existe mais, mas a Rússia e o Irã mantêm assessores e fornecimento militar ao regime de Caracas, enquanto a China é credora fundamental e principal compradora de petróleo. O emprego de uma força naval robusta tão próxima da costa sul-americana tem também a função de testar a disposição desses parceiros em sustentar sua projeção. Em 1965, durante a intervenção norte-americana na República Dominicana, não houve reação internacional significativa, pois o eixo de poder ainda era bipolar. Hoje, a presença de múltiplos atores externos confere à crise um caráter muito mais complexo, aproximando-a de episódios como a Guerra da Síria, em que cada movimento local repercutia em Moscou, Teerã, Ancara e Washington.

Do ponto de vista técnico-militar, a combinação de um LHD e dois LPDs cria a capacidade de desembarque de pelo menos uma brigada anfíbia. Em termos históricos, é um poder comparável ao usado nas operações de Grenada em 1983, quando os Estados Unidos projetaram 7 mil homens em questão de dias. A diferença é que, em Grenada, a defesa era simbólica, enquanto a Venezuela, apesar de debilitada economicamente, mantém sistemas antiaéreos russos S-300 e caças Su-30 com alcance real. A história mostra que mesmo defesas relativamente modestas podem infligir custos a uma força anfíbia. O exemplo de Tarawa, na Segunda Guerra Mundial, permanece como advertência: o desembarque é sempre a opção mais arriscada.

Em analogia à Primeira Guerra do Golfo, o mais provável é que a força de superfície sirva como base de operações para ataques de precisão de longo alcance, neutralizando radares e defesas aéreas, antes de qualquer desembarque ser considerado. O emprego de Tomahawks a partir de cruzadores e destroyers, combinado com o poder aéreo de aeronaves embarcadas e bases em Aruba ou Curaçao, configura um teatro de supressão de defesas semelhante ao de Bagdá em 2003. A diferença é que a doutrina americana atual privilegia a coerção prolongada: manter o adversário em constante estado de alerta, desgastando seus recursos logísticos e políticos até que a rendição ou a negociação se tornem mais racionais do que a resistência.

Outro ponto histórico de comparação é o bloqueio britânico ao sul da África contra o regime do Apartheid, nas décadas de 1970 e 80. Embora menos ostensivo, demonstrou como uma marinha pode sufocar gradualmente um regime, impedindo fluxos comerciais e elevando os custos de manter alianças externas. No caso da Venezuela, um bloqueio formal seria juridicamente delicado, mas uma “quarentena seletiva”, como em Cuba 1962, poderia ser implementada sob justificativas de combate ao narcotráfico ou ao contrabando de armas. A narrativa legal importa tanto quanto a presença militar, pois legitima ou deslegitima a operação perante aliados regionais.

O Brasil, que observa a movimentação do lado de fora, precisa interpretar a situação como laboratório de contingência. A fronteira de Roraima e o corredor amazônico são vulneráveis à pressão migratória e à infiltração de ilícitos. O exemplo histórico é a Colômbia nos anos 2000: sob pressão interna, viu seu território ser usado como retaguarda para deslocados e como corredor de cartéis, até que o Plano Colômbia redesenhou sua política de defesa. A crise venezuelana, portanto, é para o Brasil uma advertência prática sobre como preparar protocolos de fronteira inteligente e operações interagências que integrem Exército, Polícia Federal e órgãos de inteligência.

Em suma, a composição da esquadra americana diante da Venezuela deve ser lida à luz das lições da história: bloqueios parciais como em Cuba, intervenções rápidas como em Grenada, projeção de dissuasão como nas Malvinas e supressão de defesas como em Bagdá. O poder técnico é inequívoco, mas o uso real sempre depende da equação política. A história ensina que forças desta magnitude raramente são mobilizadas em vão; sua presença já é, por si, uma arma de coerção. Para Caracas, o dilema é resistir e arriscar a destruição de suas defesas em dias, ou negociar sob pressão. Para o Brasil e a região, a mensagem é clara: a projeção naval dos Estados Unidos no hemisfério não é passado, mas presente renovado, e cada país precisa calcular sua posição antes que o primeiro míssil seja lançado.

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