PETRI ABAELARDI —
DIALECTICA
Liber Primus — De
Praedicamentis Aristotelis
(Livro Primeiro — Sobre as
Categorias de Aristóteles)
De Substantia
(Da Substância)
De Divisione Substantiarum
(Da divisão das
substâncias)
[Incipit — texto latino
integral conforme De Rijk (1970), traduzido de modo literal, preservando ritmo
e ordenação argumentativa.]
Não se deve, portanto, aceitar
de modo universal, em todos os gêneros de substâncias, o que se diz de que os
nomes mais gerais das substâncias determinam uma qualidade em torno da
substância. E aquilo que ele afirma — que as substâncias primeiras significam
“isto aqui”, isto é, indicam sua própria coisa como distinta de todas as outras
— deve ser entendido de todas elas.
Assim, pois, como os nomes específicos das substâncias foram inventados
sobretudo para determinar as qualidades pelas quais as espécies são
constituídas, os nomes próprios foram encontrados principalmente para a
distinção dos indivíduos.
De Communitatibus Substantiae
(Das propriedades comuns da
substância)
Comum, porém, a toda substância
é o fato de não
estar em um sujeito.
Com efeito, nenhuma substância — seja primeira, seja segunda — é sustentada por
algum fundamento.
Mas isto não é próprio apenas da substância, pois também convém às diferenças;
de fato, a diferença não está na espécie subjacente como em um fundamento
acidental, mas vem à substância mesma e a ela convém de modo substancial, como
contém o segundo capítulo dos Antepraedicamenta
acerca da diferença.
Também se mostra isso pelo fato
de que, assim como as substâncias segundas são predicadas das primeiras
univocamente — isto é, pelo nome e pela definição da substância —, assim também
as diferenças o são.
Pois, assim como Sócrates é homem e animal racional e mortal, assim também se
diz o mesmo ser animal racional e capaz de usar a razão.
Os acidentes, porém, que nada constituem na substância da coisa, mas aderem
exteriormente, não podem ser predicados na definição da substância, visto que
nenhum nome de acidente demonstra um ser substancial. [Anotação marginal do
editor De Rijk: o trecho /52/ corresponde à numeração das páginas do manuscrito
de base Paris. Lat. 13368.]
Além disso, nas substâncias nada há de contrário.
Pois, sejam primeiras, sejam segundas, estão completamente afastadas da contrariedade,
a não ser talvez por acidente, segundo a recepção das coisas contrárias — sendo
chamadas também elas mesmas contrárias, como o homem branco e o homem negro,
segundo a brancura e a negrura que recebem, as quais são contrárias.
Por isso também na quantidade se dizem, de certo modo, contrárias.
Pois, se o “grande” é contrário ao “pequeno”, e, no entanto, o mesmo é
simultaneamente grande e pequeno, será contrário a si mesmo — a saber, na
recepção daquelas coisas que são chamadas contrárias, do grande e do pequeno.
Nenhuma substância, portanto, é
dita contrária a outra em si mesma, mas, se acaso o é, por outra coisa.
Mas nem isto é próprio da substância, pois também convém às quantidades, às
relações e a muitas outras.
O que sejam, porém, as coisas contrárias, explicaremos quando tratarmos das
espécies de oposição.
Também não se pode comparar as
substâncias, visto que a
comparação se toma segundo a adjacência, não segundo a substância, o que se mostra também pelos nomes
substantivos daqueles acidentes que pertencem à comparação.
Nem dizemos “mais brancura” assim como dizemos “mais branco”; por isso, com
muito mais razão, as substâncias, que não têm adjacência alguma, estão isentas
de comparação, nem os seus nomes substantivos — pelos quais chamamos as substâncias
— são predicados com “mais” e “menos”.
Com efeito, não se diz “mais homem” ou “menos homem”, como se diz “mais branco”
ou “menos branco”.
Mas tampouco isto pode ser próprio da substância, uma vez que também convém às
quantidades e a muitas outras coisas.
Sobre a comparação que consiste em aumento e diminuição, trataremos mais
amplamente quando examinarmos as espécies de movimento.
Todavia, o que parece ser mais
próprio da substância é isto: que,
sendo uma e a mesma em número, é suscetível de contrários.
Pois Aristóteles disse ser isso próprio da substância, porque convém não apenas
a todas, mas somente às substâncias.
Tal sentença depende do fato de que toda substância é suscetível de acidentes,
isto é, é seu sustentáculo; pois “receber”, neste caso, é entendido apenas como
sustentar, não como formar — caso contrário, também conviria a muitas outras
coisas: a brancura, por exemplo, é informada pela claridade e pela obscuridade,
que parecem ser contrárias.
Mas ele colocou os contrários
em lugar de quaisquer acidentes, creio eu, porque na recepção destes se entende
também a recepção de todos os outros; com efeito, o que é contrário é o mais
oposto de todos.
E se a substância pode receber também aqueles acidentes que são os mais
opostos, muito mais, então, a recepção dos demais lhe é adjunta.
Por isso, também cuidou em mostrar que os contrários são aplicados, porque
negara que as substâncias mesmas fossem contrárias.
Dessa negação poderia parecer a
alguém que as substâncias não poderiam receber contrários, e assim não seriam
suscetíveis de todos os acidentes, nem todos os acidentes existiriam em um
sujeito; o que ele removeu, ao afirmar que também das coisas contrárias as
substâncias são suscetíveis, visto que elas mesmas podem receber e sustentar os
contrários segundo tempos diversos.
Com efeito, quem é branco pode tornar-se negro, e quem é frio pode aquecer-se.
[Nota do editor: o adendo
“secundum sui mutationem” — segundo sua própria mudança — é comentado
longamente na edição crítica como uma interpolação explicativa presente em dois
manuscritos do século XIII.]
E acrescentou “segundo sua
própria mudança” para determinar que a propriedade precedente excluísse o
discurso e o intelecto, que pareciam receber contrários segundo o verdadeiro e
o falso.
Pois, se as substâncias não existissem, não poderiam sustentar acidentes, ainda
que a mesma proposição ou o mesmo intelecto se encontrasse em tempos diversos
verdadeiro ou falso; como quando, enquanto Sócrates está sentado, alguém o
entende ou o diz sentado — o intelecto e a proposição pronunciada serão
verdadeiros; mas, depois que se levanta, os mesmos serão falsos.
Assim, aquilo que Aristóteles
acrescentou “segundo si” ou “segundo sua mudança” não foi de necessidade, mas
antes de satisfação — por assim dizer, para acalmar o opositor importuno que
movia objeções acerca dessas oposições, não distinguindo a sustentação das
substâncias senão pelo modo de receber, visto que as substâncias podem receber
os contrários por si e por sua própria mutação, ao passo que aquelas (orações e
intelectos) os recebem segundo o estado de outra coisa.
[Anotação marginal do
editor De Rijk, p. 53:]
“Abelardo defende aqui
Aristóteles contra adversários que tomavam a oposição lógica como idêntica à
física, confundindo os modos de recepção dos contrários.”
Eis, pois, quanto às
substâncias, escrevemos seguindo de perto Aristóteles.
[Fim do capítulo sobre
a Substância — /56/ no manuscrito de base.]
LIBER SECUNDUS — DE
QUANTITATE
(LIVRO SEGUNDO — SOBRE A
QUANTIDADE)
INTRODUCTIO
(Introdução)
O tratado sobre a quantidade
segue o tratado sobre a substância; e embora as razões dessa ordem não tragam
grande utilidade prática, a autoridade antiga as considerou dignas de
observação.
Com efeito, a quantidade está inserida na substância de tal modo que, quando
entendemos qualquer substância, concebemos também a sua quantidade, já que a
imaginamos como uma ou como muitas.
E por vezes consideramos a matéria em si, abstraindo-lhe as qualidades, razão
pela qual a quantidade é colocada antes da qualidade.
Sobre esta última, com efeito, podia haver mais dúvida, pois muitas qualidades
são tão unidas às próprias substâncias que nelas residem substancialmente e
delas não podem ser separadas nem pela razão; a tais qualidades chamamos
“diferenças”.
Além disso, todo corpo, como
quis Boécio, consiste em três dimensões — comprimento, altura e largura — as
quais, embora não pareçam ser quantidades em si, ocorrem por comparação apenas
mediante quantidades, como se tornará claro adiante.
Por isso também, com razão, a quantidade é colocada mais próxima da substância,
porque se mostra semelhante a ela nisto: nem a contrariedade nem a comparação
lhe convêm.
E de uma semelhança a outra é mais fácil a transição; por isso a substância é
seguida imediatamente pela quantidade, visto que Aristóteles já fizera menção
frequente da quantidade dentro da própria substância — de modo que agora devia
mostrar-nos o que ela é em si.
A quantidade é, pois, aquela
realidade segundo
a qual o sujeito é mensurado,
e pode-se chamá-la mais claramente de “medida”.
Dessas medidas, umas são simples, outras compostas.
As simples são cinco: o ponto, a unidade, o instante (isto é, o momento
indivisível do tempo), o elemento (a sílaba indivisa da voz) e o lugar simples.
As compostas, sete segundo Aristóteles: a linha, a superfície, o corpo, o
tempo, o lugar composto, a oração e o número.
Estas apenas ele assumiu para o
seu tratamento, porque só elas e o tempo são usadas pelos homens na mensuração.
Com efeito, não tomamos para medir as quantidades indivisíveis, pois nem elas
nem seus sujeitos podemos perceber pelos sentidos.
Sobre essas quantidades, Aristóteles colocou duas divisões: umas ele chamou de contínuas, outras de discretas; e, novamente, umas constituídas por
partes que têm posição umas em relação às outras, outras pelas que não têm
posição.
(/57/)
Falemos, portanto, primeiro das
simples, que são anteriores por natureza, e depois das compostas.
Nosso Mestre chamava “naturezas especiais” apenas as simples, porque são
naturalmente unas e carecem de partes; as que são compostas a partir delas
chamava “compostos individuais”, não unas por natureza, como este rebanho ou
este povo.
E dizia que os nomes dessas compostas — “linha”, “superfície” etc. — foram
tomados mais de certas coleções ou composições do que como nomes substantivos.
Sobre elas, quando mostrarmos sua origem a partir das simples, poderemos
discorrer com mais propriedade e explicar as divisões que Aristóteles
apresentou.
Voltemos, pois, agora às simples.
DE PUNCTO ET QUAE EX EO
NASCUNTUR QUANTITATIBUS, LINEA, SUPERFICIE, CORPORE, INSUPER DE LOCO
(Do ponto e das quantidades
que dele nascem: linha, superfície, corpo e, além disso, do lugar)
O ponto, assim como é em si
indivisível e não pode, por sua pequenez, ser dividido em partes, assim também
adere a um sujeito indivisível — isto é, a cada parte indivisa do corpo.
Das disposições dos pontos nascem a linha, a superfície e o corpo quantitativo:
pontos dispostos em comprimento produzem a linha; dispostos em largura, compõem
a superfície; dispostos em espessura, formam o corpo.
Assim, a linha excede o ponto em comprimento; a superfície excede a linha em
largura; o corpo excede a superfície em espessura.
E, assim como a linha não pode ter menos de dois pontos em sua constituição,
também a superfície não pode ter menos de duas linhas, nem o corpo menos de
duas superfícies.
Definimos, portanto:
— a linha como pontos
unidos em comprimento;
— a superfície como linhas
conexas em largura;
— o corpo como superfícies
coesas em altura.
Três, pois, são as quantidades
compostas que têm origem no ponto, cada qual segundo uma dimensão diversa —
umas segundo a disposição do comprimento, outras segundo a coesão da largura,
outras segundo a superposição da altura.
E, porque o corpo contém as superfícies e as linhas, recebe delas o comprimento
e a largura, de modo que não é apenas espesso, mas também longo e largo; por
isso Aristóteles o chama “sólido”, dizendo: “Et
de soliditate similiter et loci.”
Daí também Boécio mostra a
continuidade do corpo: que, movida uma de suas partes, todas as outras se
movem.
(/58/)
Há, porém, alguns que se apegam
demasiadamente às palavras da autoridade e talvez as entendam de modo demasiado
simples, e por isso não concedem que a linha conste de pontos, nem a superfície
de linhas, nem o corpo de superfícies, citando muitas passagens de Boécio.
Pois, nos seus Comentários às
Categorias, quando trata da continuidade, ele diz:
“Não se afirma agora que a
linha consista de pontos, nem a superfície de linhas, nem o sólido de
superfícies, mas que os pontos são os termos das linhas, as linhas os da
superfície e as superfícies os do corpo sólido; e nenhuma coisa consiste de
seus próprios termos. Portanto, o ponto da linha não será parte, mas termo
comum das partes; a linha da superfície e a superfície do corpo sólido não
serão partes, mas termos comuns das partes.”
O mesmo Boécio ensinara pouco
antes que a linha se compõe de linhas, ao dizer:
“Se alguém dividir uma linha —
que é comprimento sem largura — em duas, em cada divisão faz duas linhas.”
Mas, se se disser que toda
linha é constituída de outras linhas, o raciocínio procede ao infinito, de modo
que nenhuma linha teria fim.
Portanto, essa constituição não se refere a toda linha, mas às maiores, que
percebemos também pelo sentido e pelas quais os homens costumam medir.
As que se formam de dois ou
três pontos, embora tenham algum comprimento, não são, a meu ver, de tal
natureza que possamos percebê-las sensivelmente junto de seu sujeito.
E quando Boécio diz que o ponto da linha não é parte, mas termo comum, ele não
nega a essência da constituição, mas apenas a denominação.
Assim como Aristóteles não dizia que eram partes, mas termos, sem, contudo,
negá-las, também Boécio não precisava dizê-lo, pois explicava Aristóteles.
Falava apenas da comunidade da junção, a qual Aristóteles trazia como argumento
de continuidade — quando um ponto, posto entre duas linhas ou entre dois outros
pontos, une os extremos por sua comunhão: não é uma das extremidades, mas o
termo e o limite em que aquelas se fixam, sendo, todavia, parte do todo
composto.
(/59/)
Assim como o presente, que liga
o passado e o futuro, não se chama parte dos extremos, mas vínculo pelo qual se
dizem unidos, embora seja parte do composto total.
E aquilo que Aristóteles diz: “Et
ad quam particulam caeterae copulantur”, mostra que o ponto é parte
constitutiva da linha, em relação à qual as demais linhas ele chamou de partes
da linha.
Trazem ainda contra essa
constituição da linha, a partir dos pontos, o que Boécio coloca na Aritmética:
“Se sobrepuseres ponto a ponto,
nada produzirás — como se unisses o nada ao nada.”
Embora eu tenha ouvido muitas
soluções dos aritméticos, não julgo necessário apresentá-las, reconhecendo-me
ignorante nessa arte.
Recordo-me, contudo, da razão que propunha nosso Mestre para provar que a linha
consiste de pontos:
“Como, diz ele, a linha pode
ser cortada em toda parte, e, separadas as partes, aparecem pontos nas
extremidades de cada uma — como diz Boécio —, que antes estavam unidos, é
necessário que por toda a linha haja pontos.
Ora, se há pontos por toda a linha, ou eles pertencem à essência da linha, ou
não.
Se não pertencem, não podem mais unir as partes da linha do que a brancura
sobreposta ou uma parte indivisa do lugar.”
E talvez se oponha que
Aristóteles diz que as partes do lugar e do corpo se unem no mesmo termo,
embora não tenham as mesmas partes; donde entenderem aquele “mesmo” não segundo
a essência, mas segundo a semelhança ou a quantidade, para que a grandeza do
termo das partes do corpo seja igual à do termo das partes do lugar.
E, se tantos forem os termos das partes do corpo, tantos serão os do lugar.
Mas é de admirar como as partes do corpo e as do lugar, sendo de naturezas tão
diversas, se unem reciprocamente, se há algo interposto que não pertence à
essência do composto, como a brancura, que não é da essência da linha.
Portanto, parece-me mais
adequada a sentença segundo a comunidade do mesmo termo, de modo que possamos
conceder que o lugar tem as mesmas partes que o corpo, se acaso encontrássemos
alguma dimensão diversa no próprio lugar, o que não concebemos.
(/60/)
O próprio Aristóteles mostra a
diversidade das partes quando comprova a continuidade das partes do lugar pela
junção das partes do corpo às quais estão sempre aderentes:
“O lugar, diz ele, que cada
parte do corpo ocupa é contínuo, porque as partes do corpo que o ocupam unem-se
num mesmo termo comum.”
Eis que claramente mostrou a
diversidade das partes, pois uma coisa é a parte do corpo e outra é a parte do
lugar.
Mas, se são diversas, como será contínua a espessura do corpo?
Visto que entre as partes do corpo estão inseridos os próprios lugares ou até
muitos acidentes, como o calor ou outros, e as partes substanciais do corpo,
entre a superfície superior e a inferior, há um meio de substância ao qual
ambas aderem como a seu fundamento — como, pois, se dirá contínuas as duas
superfícies, tendo entre si coisas de natureza tão diversa?
E se os pontos interpostos, não sendo da essência da linha, pareceram
dissolver-lhe a continuidade segundo nosso Mestre — ainda que eles mesmos sejam
admitidos entre as quantidades — com muito mais razão a destroem aquelas coisas
totalmente alheias à natureza da quantidade.
Talvez, porém, se deva aceitar
a continuidade do corpo ou do lugar segundo o circuito do contorno exterior, e
não segundo a densidade da espessura.
De outro modo, a sentença de nosso Mestre sobre a constituição da linha (à qual
também aderimos) não bastaria.
Mas talvez se diga que tampouco o ponto se une a ponto, por haver entre ambos o
lugar ou alguma cor ou outro acidente indivisível.
Com efeito, o lugar do ponto circunscreve-o totalmente e o rodeia; e embora se
diga simples como o ponto, parece-se-lhe maior segundo a compreensão do âmbito.
Mas talvez a natureza dos acidentes seja tão sutil que um não impeça a
continuidade do outro.
(/61/)
Não se deve, porém, omitir a
questão da incisão
da linha, pela
qual ela pode ser cortada em uma de suas partes e o fio agudo do ferro
introduzido entre elas.
Mas a incisão não pode fazer-se pelo ponto, que é totalmente indivisível; nem
entre dois pontos contínuos se pode introduzir o ferro, porque não há distância
entre eles: nada pode interpor-se onde não há espaço, nem se pode encontrar
algo entre ambos capaz de cortar, pois nada de fato está entre eles.
Digamos, pois, que a ponta do ferro não é tão delgada que não ocupe vários
pontos, os quais, com seus fundamentos, ao ser o ferro aplicado, rompe e
derruba; ou talvez nada se derrube, mas, ao imprimir-se o ferro, a própria
ruptura cause a separação dos pontos.
E do que foi dito acima
torna-se suficientemente manifesto também o que respeita à constituição e continuidade do lugar, quando tratamos do corpo a ele adjunto
e de suas partes.
Resta agora tratar do tempo.
DE TEMPORE
(Do Tempo)
(/61/)
Alguns definem o lugar como a circunscrição de qualquer coisa
— mas falsamente.
Pois, se toda coisa fosse circunscrita por um lugar, o próprio lugar teria
outro lugar que o circunscrevesse, e assim até o infinito.
O próprio Deus, que contém todas as coisas e excede o universo pela magnitude
de sua majestade, é incircunscrito e de todo incompreensível; e, pela
semelhança com Ele, o mesmo se afirma das substâncias incorpóreas.
Por isso, parece mais forte a sentença daqueles que determinam que o lugar composto, de que trata Aristóteles, é a
circunscrição do corpo quantitativo.
Ou, se também quisermos incluir o lugar simples na definição de lugar,
acrescentemos: “ou de alguma parte do corpo quantitativo”, de modo que digamos
que todo lugar circunscreve ou o corpo quantitativo ou alguma parte dele.
Aristóteles, ademais, agregou o
tempo às quantidades contínuas, porque suas
partes sucedem-se sem intervalo: o presente sucede imediatamente ao passado e o
futuro sucede ao presente.
Tal continuidade, portanto, não se faz senão pela sucessão contínua das partes;
e, como as partes não permanecem, ela não é muito própria, pois como algo pode
ser propriamente unido ao que não existe, ou como pode fazer com ele um todo?
Daí que, entre os Antigos, houvesse grande dissensão sobre a continuidade do
tempo assim como sobre a do lugar.
Por isso dizem que o próprio Aristóteles, incerto sobre isso, colocou-os à
parte das demais quantidades contínuas e como que por último, quase duvidando
delas; pois, depois de enumerar as outras quantidades contínuas, acrescenta:
“Além dessas, o tempo e o lugar”, e de novo: “Tal é o tempo e o lugar.”
A dúvida acerca da continuidade
das partes do tempo parece ter surgido por causa de sua transição e
instabilidade, e que o tempo não tem mais continuidade do que têm as partes da
oração, pois estas tampouco permanecem.
Mas isso é falso.
Com efeito, a prolação de uma oração depende de nossa operação, ao passo que a
sucessão do tempo depende da natureza.
E nada de nossa operação pode ser contínuo de modo que não haja alguma distância
entre os elementos unidos.
Nem menor foi a dissensão acerca da continuidade do lugar, e não pareceu muito
válido o argumento de Aristóteles, que provava a continuidade das partes do
lugar pela continuidade das partes do corpo, pelo fato de que estas a ele
aderem.
(/62/)
Com efeito, assim também o
número — que é discreto — poderia parecer contínuo, segundo a adesão das
unidades singulares às partes singulares do corpo; todavia, ainda que o número
muitas vezes subsista num fundamento contínuo, como as unidades que aderem às
partes contínuas do corpo, conserva sempre em sua natureza a discreção, pois requer apenas a pluralidade das
unidades e não alguma continuidade, como a linha, que se compõe de pontos e
exige não só pluralidade de pontos, mas também certa disposição deles segundo a
continuidade do comprimento.
Por isso, o nome “número”
parece plural em si mesmo, e, como “unidades”, é um nome substantivo tomado de
certas composições; de modo semelhante se dizem “linha”, “superfície”, “corpo”
e outros, ainda que deles derivem outros nomes, como de “linha” → “linear”, de
“corpo” → “corpóreo”.
Voltemos, pois, ao tempo
proposto e observemos mais atentamente sua natureza.
Entre as quantidades, umas são simples, que chamamos “instantes”, isto é,
momentos indivisíveis; outras são compostas, como quando tomamos o momento
presente, o passado e o futuro como um só composto.
É deste que Aristóteles trata, definindo-o como uma quantidade segundo a sucessão contínua
das partes em um mesmo sujeito.
Com efeito, todas as coisas que
se medem segundo o tempo têm em si mesmas seus próprios tempos, como se fossem
suas medidas adjacentes; e não se deve tomar a continuidade do tempo composto a
partir de coisas diversas, ainda que possamos perceber simultaneamente as
partes existentes nelas, das quais melhor se faria uma composição, mas antes a
partir dos momentos sucessivos num mesmo sujeito, à maneira da água que flui.
As próprias coisas são medidas segundo os tempos, quando dizemos que alguma
ação é horária, diária, mensal ou anual; pois sobretudo as ações e paixões se
medem segundo o tempo, cujas partes também não são permanentes, mas passam
juntamente com as partes do tempo.
Por isso, com razão, parece que o significado do tempo foi anexado às palavras.
Ora, como cada coisa tem em si
seu próprio tempo fundado em si mesma — seus momentos, suas horas, seus dias,
seus meses e anos —, contudo, todos os dias, meses e anos simultaneamente
existentes são tomados como um só, conforme a revolução do Sol de oriente a
ocidente ou o curso completo de seu círculo.
(/63/)
Convém notar que se costuma
dizer que a constituição deste composto difere das outras porque, enquanto nas
demais o todo e a parte coexistem, aqui o todo existe sempre por uma só parte.
Nas outras totalidades, o todo posto põe a parte, e a parte destruída destrói o
todo; o todo destruído, contudo, não destrói a parte, nem a parte posta põe o
todo — como, se há uma casa, há uma parede, mas não o contrário.
No tempo, porém, dá-se o inverso: por exemplo, num dia.
Se há o primeiro dia, dizemos que há o dia; mas não o inverso, porque o dia
existe em cada parte de si.
Mas, se o dia não existe, o primeiro não existe; e tampouco o inverso.
Por isso, nas totalidades que existem sempre por uma única parte, a inferência
do todo e da parte ensinada por Boécio não se aplica.
Entretanto, se considerarmos as
palavras com rigor, talvez a inferência das demais totalidades não falhe aqui,
mas se mantenha a mesma.
Pois, quando dizemos “o dia é”, se atentamos ao que nomeamos por “dia” — doze horas
tomadas em conjunto —, atribuímos o existir a todas elas reunidas, que de fato
não podem existir simultaneamente, a não ser que cada uma exista por si.
E é verdade que jamais será verdadeira a proposição “o dia é”, porque nunca
todas as horas do dia existem ao mesmo tempo, a menos que falemos figurada e
impropriamente, dizendo que o dia subsiste por uma de suas partes, isto é, que
alguma parte dele existe.
Mas tampouco se pode predicar
de si mesmo o dia, dizendo que o dia é o dia.
O que de modo algum existe não pode ser dia.
E de nenhum modo se pode dizer que as doze horas existam, quando apenas uma —
melhor, um único momento de uma delas — existe; nem propriamente se pode chamar
todo aquilo de que existe apenas uma parte.
Contudo, tomamos muitas vezes como
um todo íntegro coisas que na realidade não o são, e damos-lhes nomes como se
existissem, quando queremos delas formar alguma noção.
Assim também nomeamos “passado” e “futuro” as coisas que não são, quando
queremos fazer delas alguma apreensão ou medir, segundo elas, um sujeito.
Estas, de fato, não podem ser propriamente chamadas “tempos”, pois não são
quantidades, já que não estão em um sujeito; nem estão em um sujeito, pois de
modo algum são.
A aplicação do nome “tempo” ao
passado e ao futuro é feita por aqueles que concedem que todo verbo
significativo de tempo se refere a eles.
Mas o tempo que foi e não é não deveria ser chamado tempo, mais do que um
cadáver humano deveria ser chamado homem.
E assim como em “homem morto” há oposição no adjetivo, assim também se diria em
“tempo passado” e “tempo futuro”.
(/64/)
Note-se ainda que, sendo o
passado, o presente e o futuro tomados em referência a coisas diversas, a ordem
deles é tal que o passado vem primeiro, o presente depois e, por último, o
futuro — pois o que é passado existiu antes do que é presente, e o presente
antes do que é futuro.
Mas, se referirmos esses três nomes à mesma coisa, e a tomarmos segundo aquilo
que por esses nomes é designado, então podemos chamá-la, sucessivamente, de
futura, depois presente e, finalmente, passada; o presente é o termo comum
entre o passado e o futuro.
Por isso Aristóteles diz: “O
tempo presente liga-se ao passado e ao futuro”, isto é, é contínuo
com eles, que se dizem unidos por meio dele.
Assim, pois, discorremos até
aqui sobre as quantidades contínuas — linha, superfície, corpo, lugar e tempo.
Passemos agora às quantidades
discretas, isto é,
o número e a oração (numerus
e oratio).
DE NUMERO
(Do Número)
(/64/–/65/)
O número toma seu princípio da unidade — donde também se define a origem do
número.
O número é, portanto, uma coleção
de unidades.
Com efeito, várias unidades constituem um só número: estas duas unidades fazem
o binário; aquelas três, o ternário; e, semelhantemente, quaisquer outros
números se compõem de unidades, em quaisquer sujeitos que sejam tomadas — quer
contínuos, quer discretos.
Por isso, nosso Mestre
confirmava com particular insistência que o binário, o ternário e os demais
números não são espécies de
número, nem o
número o gênero deles, porque não constituem uma única coisa por natureza.
Estas duas unidades — uma neste homem que habita Roma e outra naquele que está
em Antioquia — coexistem e compõem este binário.
Como se poderá dizer que são uma só coisa na natureza?
Ou como poderão receber uma mesma natureza especial ou geral, estando separadas
por tão grande espaço?
Donde afirmavam que o nome
“número”, assim como “binário” e “ternário”, é tomado de certas coleções de
unidades.
Mas, se assim fosse, mal teria Aristóteles mostrado que a quantidade não se compara, ao dizer: “Neque enim est aliud alio magis bicubitum, nec in numero,
ut ternarius quinario” — “Pois o que é bípede não é mais bípede que
outro, nem o ternário é mais número que o quinário.”
De fato, nas coisas tomadas (sumptis), não se comparam as
realidades nomeadas, mas apenas as formas determinadas por meio delas nos
sujeitos.
De outro modo, também as substâncias poderiam ser comparadas, que muitas vezes
são denominadas pelos nomes tomados de seus acidentes — como de “branco”,
“longo”, “grande” etc.
Por isso, parece-nos mais apropriado entender que o nome “número” é substantivo e plural de “unidade”, significando o mesmo que “unidades”.
“Binário” e “ternário”, por sua vez, são nomes inferiores ao “plural”, assim
como “homens” ou “cavalos” são inferiores a “animais”, ou “homens brancos e
negros”, ou “três ou cinco homens”, são inferiores a “homens”.
(/65/)
Talvez, porém, porque todos os
nomes substantivos dos números são tomados pluralmente nas próprias unidades,
se possa dizer que todos são plurais de um mesmo singular — segundo o fato de
que designam diversas coleções de unidades: o nome “número” é o plural simples
e indeterminado; os outros, plurais determinados, segundo coleções certas.
Mas, se se disser que tomamos
os nomes dos números substantivamente, ainda assim permanece a questão de que
em Aristóteles não se mostra comparação na quantidade, uma vez que nenhuma
coisa substantiva é dita comparável.
Porém, talvez se explique pelos nomes: pois Aristóteles mostrou com firmeza a
impossibilidade da comparação na quantidade, quer substantiva, quer acidental;
e a razão da comparação ele mostrou pela quantidade mesma, não pelos nomes
substantivos.
Dos nomes tomados ele demonstrou com “tria” (três), derivado de “ternarius”; e
dos substantivos, com “tempus” e “ternarius”.
Aqueles, porém, a quem parece
que nos nomes especiais e gerais não se contêm apenas as coisas unas por
natureza, mas também aquelas substancialmente nomeadas por eles, podem talvez
chamar “espécies” também os binários e ternários, porque seguem mais a lógica
na imposição dos nomes do que a física na investigação da natureza das coisas.
Eis o que se disse sobre o
número; passemos agora ao que se segue.
DE ORATIONE
(Da Oração — ou do
Discurso/Enunciado)
(/65/–/66/)
Sobre o nome “oração” (oratio),
tomado aqui como quantidade, há grande dissensão.
Alguns querem que ele compreenda todo o curso da prolação, tanto da voz simples
quanto da composta, tanto significativa quanto não significativa.
Outros restringem-no apenas às vozes
compostas e significativas,
como “o homem corre”, “Sócrates fala” etc.
E de fato, Aristóteles trata aqui apenas das vozes compostas, quando as chama
“discretas”, isto é, constituídas de partes distintas — pois, como dissemos
antes, ele tratou apenas das quantidades
compostas.
Esses autores, portanto,
transferem a equivocação do nome “oração” não para a voz em si, mas para a
quantidade da voz — tomando-a como nome específico,
não genérico.
Dizem, com efeito, que somente os ares proferidos se chamam “vozes”, segundo a
definição da voz dada pelos filósofos e referida por Prisciano, que também a
aprova:
“Voz é o ar sutil, percutido e
sensível pela audição.”
Mas o próprio ar, ou o seu
curso, segundo o qual se mede na prolação, é o que chamam de “oração”.
Por isso dizem bem que Aristóteles afirmou: “Dico
autem orationem cum voce prolatam” — “Chamo oração aquela proferida
com a voz” —, isto é, a medida do curso juntamente com o ar que lhe serve de
fundamento; referindo o nome do gênero ao fundamento e o da espécie ao acidente.
Assim como o nome “voz” se
refere apenas à substância, o mesmo ocorre com “sílaba” e “letra”, segundo o
sentido em que Aristóteles bem disse: “Mensuratur
enim syllaba brevis et longa” — “A sílaba mede-se como breve e
longa” —, confirmando assim que a oração é uma quantidade, porque suas partes
também o são, isto é, os cursos mais simples que correspondem a cada sílaba.
“Por isso”, acrescenta Aristóteles, “as sílabas mesmas se medem segundo a
brevidade e a longitude do acento.”
(/66/)
Mas há também os que tomam os
nomes de todas as vozes tanto em sentido substancial quanto em sentido
quantitativo, e interpretam “orationem
cum voce prolatam” não como transitivo (“oração proferida com
voz”), mas intransitivamente: “oração, isto é, voz proferida”.
Isto determinam em razão dos muitos outros significados da palavra “oração”, de
que Boécio faz menção em seu comentário.
Com efeito, entre os Gregos o nome logos
(oração) se toma de três modos:
— pela oração vocal, que se profere;
— pela real, que se escreve;
— e pela intelectual, que se forma na voz mesma.
Quer tomemos, pois, essa
equivocação apenas no nome “oração”, quer também nos demais nomes de voz, nada
disso afeta a propriedade da coisa que queremos demonstrar.
Pois, seja que chamemos “vozes” ou “orações”, “nomes”, “palavras”, “sílabas” ou
“letras” tanto os ares proferidos quanto os seus cursos, ou seja o nome
“oração” o termo comum de todas essas quantidades — nada disso impede, nem a
imposição dos nomes altera a propriedade natural das coisas.
Examinemos agora mais
atentamente qual
quantidade do ar proferido chamamos “oração” ou “voz”.
Como há muitas quantidades do ar comuns às outras coisas — pelas quais se mede
segundo o número das partes, ou segundo o tempo, ou até segundo as linhas,
superfícies e corpos —, além de todas essas há, na prolação, uma certa dimensão
e um certo curso, a que Prisciano chama “espírito” (spiritus), segundo o qual se mede apenas pela
prolação e pelo som — conforme o som seja surdo ou claro, tênue ou espesso,
grave ou agudo.
Esses cursos Aristóteles chama de “orações” ou talvez “vozes”, e quer
significar as mesmas quando se proferem juntamente com o ar.
(/67/)
Nosso Mestre, porém,
lembrava-se de que só o próprio ar, quando percutido, é que soa e significa propriamente; e que não se deve dizer que esses
cursos ou formas de som são ouvidos ou significam por si, senão segundo o ar
percutido e audível ao qual se unem.
Mas, se assim fosse, deveríamos admitir que qualquer forma do ar — como uma
cor, por exemplo — é também ouvida e significativa.
Nós, porém, concedemos que é o som propriamente que é ouvido e significa —
o som que se gera quando o ar é percutido, e pelo qual o ar mesmo se torna
sensível aos ouvidos.
Assim como pelos outros sentidos percebemos as formas das substâncias — pelo
gosto, os sabores; pelo olfato, os odores; pela vista, as cores; pelo tato, os
calores —, assim também pelo ouvido apreendemos e sentimos propriamente o curso
da prolação.
Há, portanto, sons simples e indivisíveis, e sons compostos.
Os simples se chamam “elementos”, por analogia com os elementos do mundo —
porque, assim como os corpos compostos se formam dos elementos, assim também as
vozes compostas se compõem dos sons simples.
Chamam “elementos” as prolações das letras singulares, das quais se compõem, em
primeiro lugar, as sílabas; das sílabas, as palavras; destas, as orações.
Mas talvez não pareça propriamente simples a prolação de uma única letra, pois
se compõe de várias partes.
(/68/)
Com efeito, ao proferirmos o
som de qualquer letra, a língua percutindo divide o ar em muitas partes
tenuíssimas, cada uma das quais parece ter um som, ainda que por si não se
distinga, assim como não se profere isoladamente.
Por isso, deve chamar-se propriamente simples e indivisível aquele som que
reside numa parte indivisível do ar.
Mas a prolação inteira de uma letra não se diz indivisível senão em relação às
partes proferidas por si, isto é, às prolações das outras letras que chamamos
“elementos”; e destas, como dissemos, se formam as vozes compostas: sílabas,
palavras e orações.
Suas partes, porém, não permanecem — como tampouco as partes do tempo —, mas
uma sucede à outra; e, assim como as partes do tempo composto se tomam no mesmo
sujeito, também as partes da oração se tomam na prolação contínua do mesmo
homem.
Não, porém, tão contínua que
não haja a mínima distância — daí se dizer que a oração é discreta —, mas tão contínua quanto é possível
em nossa fala.
E ainda que várias palavras sejam proferidas por homens diferentes, ou pelo
mesmo com pausas entre elas, não se poderá dizer que compuseram uma única
oração, nem que formam um único entendimento de oração.
Pois, se alguém diz “homem” e, depois de breve pausa, acrescenta “corre”, não
parece ter composto uma oração, mas proferido várias palavras, cujos
entendimentos são diversos e não se unem; e, enquanto um deles é retido pela
audição presente, o outro já se perde na memória.
Nem mesmo se ambos persistirem, se poderá dizer que formam um único
entendimento de oração, havendo interrupção.
Por isso, as partes de uma definição, quando são proferidas separadamente e com
intervalo, produzem múltiplas enunciações.
(/69/)
É necessário, portanto, que as
vozes se unam e se liguem por prolação contínua, para que o entendimento delas
seja um e composto; de outro modo, parecem proferidas por acaso e não para
exprimir um único sentido.
Nem menos, porém, se podem chamar “orações” as palavras proferidas por acaso,
ainda que venham de vários, mas antes parecem proferidas fortuitamente, sem
unidade de entendimento.
E nem porque são pronunciadas simultaneamente pode discernir-se claramente o
significado de cada uma.
Portanto, as palavras que não
designam um único entendimento — quer proferidas separadamente pelo mesmo, quer
por diferentes —, não podem propriamente ser chamadas uma única oração, mas
apenas aquelas que, como dissemos, são proferidas continuamente pelo mesmo.
Frequentemente se discute aqui
também sobre o momento em que a oração significa,
dado que, sendo significativa, não tem partes permanentes: se quando se profere
a primeira parte, ou a do meio, ou apenas quando a última é pronunciada.
E de fato, o significado da oração só se completa no último ponto da prolação.
Mas, se apenas então a oração se diz significar, quando sua última parte é
proferida, segue-se que aquelas partes que não existem significam juntamente
com a que existe — e assim confessamos que a significação se dá simultaneamente
no que é e no que não é.
Nossa sentença, porém, é que a oração se diz significar apenas depois
de proferidas todas as suas partes.
Pois é então que formamos o entendimento a partir dela, quando trazemos à
memória as palavras recentemente ouvidas; e nenhuma voz tem significação
perfeita a menos que seja proferida totalmente.
Por isso também sucede frequentemente que, após uma oração pronunciada, não a
compreendamos de imediato, se não atentarmos um pouco à estrutura e à
construção das palavras — o que o espírito do ouvinte faz com vigilância,
sempre suspenso enquanto a voz se profere, crendo que algo ainda pode ser
acrescentado que altere o sentido.
Nem repousa o ânimo do ouvinte enquanto a língua do falante não se detém.
(/70/)
Com efeito, nenhuma oração é
tão perfeita que não se lhe possa acrescentar algo que modifique o
entendimento:
— à que diz “Sócrates é homem”, podemos juntar “branco” ou “gramático”;
— à que diz “Sócrates corre”, podemos acrescentar “bem”;
— ou à que diz “Se é homem, é animal”, podemos acrescentar “racional e mortal”.
Portanto, quando dizemos que a
oração significa, entendemos que ela significa após todas as suas partes terem sido pronunciadas, quando já nada dela existe realmente;
e, assim, não se pode atribuir propriamente à oração a forma de significar, mas
antes ao intelecto da alma do ouvinte, que é gerado a partir das vozes
proferidas.
Quando, pois, dizemos “ ‘Sócrates
corre’ significa”, o sentido é este: que um intelecto concebido a partir da
prolação existe na alma de alguém.
E do mesmo modo “a quimera é opinável” se entende significativamente, embora
nenhuma forma da quimera — que não existe — seja atribuída, mas antes a opinião
da alma que a concebe.
Se, pois, no nome “significante” não entendemos uma forma, mas apenas que por
ele se gera um intelecto, podemos dizer que toda oração significativa o é,
porque gera um dos intelectos a partir dos quais o entendimento se forma.
Mas não por isso a oração existe — pois, como dissemos, significa o que não é,
e o nome “significante” lhe é dado não por uma propriedade, mas por uma causa:
a de gerar um intelecto na alma de alguém.
(/70.10/)
Pergunta-se ainda, quando a mesma
voz é ouvida simultaneamente por várias pessoas à distância, se ela vem toda e
igualmente aos ouvidos de todos, ou se, permanecendo diante da boca do que
fala, é percebida simultaneamente pelos diversos ouvintes segundo suas
potências sensíveis — como um espetáculo distante é visto por muitos ao mesmo
tempo.
Mas alguns não admitem a mesma natureza no ver e no ouvir, porque dizem que a
visão apreende também o remoto, enquanto a audição apreende apenas o presente.
Por isso Prisciano diz que “a voz toca o ouvido enquanto é ouvida”, e Boécio,
no De musica,
afirma que toda a voz com seus elementos chega simultaneamente aos ouvidos de
diversos ouvintes.
Argumenta-se ainda que a voz deve vir essencialmente aos ouvidos, já que se
ouve mais tarde o som de um golpe distante do que o de um próximo.
Se, pois, vês de longe alguém bater com um martelo ou cortar algo, esperas
algum tempo até ouvir o som; se estás perto, ouves no mesmo instante ou logo
após o golpe, porque chega mais depressa aos teus ouvidos.
E vemos também que o ímpeto do vento leva o som consigo, afastando-o dos
ouvidos de uns e levando-o aos de outros.
(/71/)
Mas como poderá a mesma
quantidade de ar existir simultaneamente em diversos lugares?
Pois o que é indivisível não pode estar em diversos lugares ao
mesmo tempo; nisso difere do universal, que está em muitos.
E o próprio Agostinho, em suas Categorias,
teria dito que nenhum
corpo pode existir em diversos lugares ao mesmo tempo.
Isso, porém, se entende propriamente dos corpos, não das almas — pois uma mesma
alma se diz existir inteira em todas as partes do corpo, e assim as vivifica.
Mas creio que isso se entende não quanto à sua essência, mas quanto à sua
virtude e poder, que, permanecendo essencialmente numa parte, se difunde por
todas as outras.
Com muito mais razão, portanto, uma substância corpórea não pode estar em
diversos lugares simultaneamente.
E, se nenhuma natureza corpórea pode estar ao mesmo tempo em vários lugares,
tampouco o ar — que é o fundamento da oração — poderá estar simultaneamente em
diversos lugares, nem a própria oração, que não pode existir sem ele.
Como, então, se admite que a
mesma voz seja ouvida simultaneamente por diversos ouvintes e toque os ouvidos
de todos?
A isso diversos autores dão diversas soluções.
Os que admitem que se ouvem coisas também à distância dizem que a voz,
permanecendo essencialmente diante da boca do que fala, chega aos diversos
ouvidos segundo as potências sensíveis — como já dissemos.
Os que negam que se ouçam senão coisas presentes consideram na voz uma
propriedade física: que, quando a língua percutindo o ar quando a língua
percutindo o ar o fere, o ímpeto do ar percutido se espraia
circularmente — como quando se lança uma pedra à água, cujas ondulações se
alargam em círculos concêntricos até que o movimento cesse.
Assim também o ar, ferido pela língua, transmite sua comoção circularmente ao
redor de si, e o movimento se expande gradualmente em todas as direções, até
que se dissipe a força percutiva e cesse o som.
E esse movimento é o que chega aos ouvidos dos ouvintes: não a mesma quantidade
de ar que está diante da boca do falante, mas o ímpeto sucessivo que se
propaga por continuidade natural do meio.
Por isso não se diz que a mesma voz existe essencialmente em todos os lugares
onde é ouvida, mas que seu movimento e a vibração causada pelo percutir se
prolongam até onde alcançam os ouvidos.
Com efeito, Aristóteles, no De anima, diz
que “a voz é som do ar animado, percutido por algo dotado de alma”.
Logo, não se deve entender que o ar animado se transfira de um lugar a outro,
mas que o som — isto é, o movimento causado por aquele ar — se propaga
em continuidade.
E desse modo, o som chega aos ouvidos dos ouvintes, assim como o calor de um
corpo incandescente aquece o ar vizinho, que por sua vez aquece o seguinte, até
grande distância.
Assim também o ímpeto da voz passa do ar próximo à boca ao que lhe é contíguo,
e deste ao seguinte, até que o movimento se extinga pela distância ou pela
resistência do meio.
(/72/)
Donde também se compreende por que a voz é
ouvida mais tarde quando se fala de longe, e quase simultaneamente quando
se fala de perto.
Pois o ímpeto, propagando-se de um ar a outro, precisa de tempo para atravessar
o espaço, e tanto mais quanto maior for a distância.
O mesmo sucede com o eco, que é a repercussão do som refletido em corpos duros
e lisos, como montes, muros ou vales, os quais repelem o ar percutido,
devolvendo-o ao emissor após certo intervalo.
Assim, se o lugar é largo e distante, o retorno do som é mais tardio e débil;
se é próximo e côncavo, mais rápido e forte.
Tudo isso mostra que o som é uma alteração do ar, não uma substância que
viaje em si.
Nosso Mestre, considerando atentamente tais
fenômenos, costumava dizer que a voz se comporta como o fogo, que acende
o ar ao redor sem transferir sua substância, apenas seu calor e movimento;
assim também o ar, quando percutido, não sai do lugar, mas comunica à sua
vizinhança a vibração sonora.
E essa comunicação sucessiva é o que chamamos propriamente difusão do som.
Portanto, a mesma voz pode ser ouvida por
muitos, não porque a mesma substância de ar chegue a todos, mas porque o
movimento do ar — iniciado em um mesmo ponto — se estende igualmente em todas
as direções, produzindo um mesmo som em diversos lugares.
E esse som, embora seja múltiplo quanto à matéria (por haver muitos ares
distintos em vibração), é um só quanto à forma sonora, porque o
movimento é de uma mesma espécie.
(/72–73/)
Por isso, quando muitos ouvem ao mesmo tempo,
dizem-se ouvir a mesma voz; não, porém, quanto à substância do ar, mas
quanto à semelhança formal do som que cada um percebe.
Do mesmo modo, quando várias lâmpadas se acendem por uma só chama, há uma mesma
luz formal, mas muitas substâncias materiais iluminadas.
E, assim como a luz de uma lâmpada se multiplica sem divisão, assim também o
som da voz se multiplica sem transferência de substância.
Daqui conclui-se que a oração, enquanto voz
proferida, é uma quantidade transitória e indivisível em sua continuidade:
indivisível, porque se destrói no próprio ato de ser proferida; transitória,
porque não permanece em parte alguma após a prolação.
E, contudo, dela nasce uma imagem mental — o intelecto — que subsiste no
ouvinte e no próprio falante, e é essa imagem que verdadeiramente significa.
Assim, tudo o que se diz da oração como quantidade
pertence ao corpo e ao movimento do ar; tudo o que se diz da oração como signo
e significante pertence à alma e à potência intelectiva.
E, como o intelecto pode conservar o sentido mesmo depois de cessado o som, o
nome “oração” aplica-se equivocamente: ora ao curso vocal, ora ao sentido
compreendido.
Essa distinção é necessária para que não se confunda o som, que é corpóreo e
mensurável, com o significado, que é espiritual e indivisível.
(/73/)
Eis, pois, quanto se podia dizer acerca das quantidades
discretas, a saber, o número e a oração.
Com isso encerra-se o segundo livro da Dialectica de Pedro Abelardo, em
que se trataram todas as espécies de quantidade — contínuas e discretas —
conforme a doutrina de Aristóteles e a interpretação dos antigos.
[Nota editorial — De Rijk, p. 73 n. 3:]
O texto latino encerra aqui o segundo livro da Dialectica.
Em alguns manuscritos, o copista acrescenta: Explicit liber secundus de
quantitate. Incipit tertius de qualitate.
DE DIVISIONE
QUANTITATUM
(Da divisão das
quantidades)
(/73–74/)
As quantidades, como
Aristóteles expõe, dividem-se de muitas maneiras.
Primeiramente, em contínuas e discretas.
E estas, de novo, se dividem em aquelas
cujas partes têm posição umas em relação às outras e aquelas cujas partes não têm posição.
Assim, entre as contínuas, o comprimento, a largura, a espessura, o tempo e o lugar têm posição, porque suas partes são
adjacentes umas às outras e podem ser indicadas segundo o antes e o depois; já
o som e a oração, embora contínuos em certo sentido, não
têm posição, pois não se determinam por coordenadas locais, mas por sucessão e
fluidez.
Entre as discretas, umas são segundo o número — como o binário e o ternário —, outras
segundo a multidão — como rebanho, povo, exército.
E destas, umas são naturais, como os membros de um corpo; outras artificiais, como os tijolos de uma casa ou as
pedras de um muro.
As primeiras se ordenam pela natureza, as segundas pela arte.
Da mesma forma, nas contínuas, umas são naturais,
como o tempo e o corpo; outras artificiais, como o caminho ou o muro, pois o
artífice é que lhes dá continuidade.
Há, ainda, outra divisão: umas
são quantidades de sujeito, outras de medida.
De sujeito, como o comprimento e a espessura do corpo, ou o tempo de um
movimento; de medida, como o côvado, o pé, o palmo, a hora, o dia, o ano, e
todas as outras unidades pelas quais medimos.
Estas últimas não pertencem às coisas em si, mas à nossa convenção, e são
chamadas quantidades extrínsecas, por oposição às outras, que são intrínsecas.
(/74/)
Com efeito, nada impede que uma
mesma coisa seja medida de diversos modos: o corpo, por côvados ou por pés; o
tempo, por horas ou por dias; a voz, por tempos longos e breves.
Mas a substância das coisas não se altera por essa multiplicidade de medidas;
apenas variam os modos humanos de medir.
Por isso Aristóteles chama essas medidas de “quantidades secundárias”, que
pertencem mais ao modo
de conhecer do que
ao modo de ser.
Além disso, todas as
quantidades podem dividir-se segundo o modo de sua mensurabilidade: umas são determinadas, outras indeterminadas.
Determinadas, como o côvado, o pé, o dia; indeterminadas, como a extensão de um
campo ou a duração de uma vida.
Pois, se se puder determinar por um limite, será quantidade certa; se, porém, o
limite for apenas potencial, será incerta e, portanto, indeterminada.
Finalmente, distinguem-se
também as quantidades segundo
o modo de adição:
umas são aditivas, outras não aditivas.
Chamam-se aditivas aquelas em que o todo resulta da simples soma das partes,
como o número, o comprimento, o peso; não aditivas, aquelas em que o todo não
se compõe por mera adição, como a intensidade da brancura ou a gravidade do
som.
Estas últimas não aumentam pelo acréscimo de partes, mas pela intensificação da
forma.
Assim, em todas as divisões das
quantidades, observa-se o mesmo princípio: ou quanto à natureza da
continuidade, ou quanto à maneira de mensuração, ou quanto à determinação, ou
quanto à adição.
E com isso, Aristóteles completou sua análise das espécies de quantidade.
DE COMMUNITATIBUS
QUANTITATUM
(Das propriedades comuns
das quantidades)
(/74–75/)
Comum a todas as quantidades é
o fato de que nenhuma
delas é dita em relação a um sujeito, mas todas se dizem de um sujeito
— isto é, todas existem em um sujeito, não como sujeitos.
Pois, embora algumas quantidades, como o corpo, pareçam subsistir por si, ainda
assim o fazem apenas enquanto são acidentes da substância corpórea.
Por isso Aristóteles diz que a
quantidade é aquilo segundo o qual se diz “quanto” algo é (quantum
quid est).
Outra propriedade comum é que as quantidades não admitem contrariedade.
Com efeito, não há um “comprimento” contrário a outro, nem um “número”
contrário a outro, senão talvez por modo de comparação.
Pois o que é “maior” e “menor” não são contrários em si, mas apenas em relação
de mais e menos.
Daí que Aristóteles tenha dito: “In
quantitate nulla est contrarietas.”
Ademais, toda quantidade é suscetível de igualdade
e desigualdade, e
é nisto que mais se distingue dos outros gêneros.
Pois, onde há medida, há também comparação; e, onde há comparação, há igualdade
e desigualdade.
Por isso, ainda que a quantidade não admita contrariedade, admite diferença, que é a negação da igualdade.
E toda diferença, neste gênero, é mensurável, porque se pode sempre determinar
“quanto” uma excede a outra.
(/75/)
Além disso, as quantidades admitem mais e menos — mas não em si mesmas, como se uma
quantidade fosse mais quantidade que outra, e sim nos sujeitos em que estão.
Assim, este corpo é maior que aquele, esta voz mais longa que aquela, este
número maior que outro.
Portanto, a comparação “mais” e “menos” aplica-se aos sujeitos, não às formas
de quantidade.
E por isso Aristóteles diz que, embora “quantidade” em si não se diga “mais ou
menos”, os sujeitos das quantidades o admitem.
Finalmente, nenhuma quantidade tem contrário, mas pode ter defeito e excesso.
Assim, o número pode aumentar indefinidamente, mas o zero é seu limite
inferior; o tempo cresce e se multiplica, mas seu instante é o menor.
Por conseguinte, nas quantidades, o movimento se faz não por oposição, mas por
acréscimo ou diminuição.
E isto é o que é comum a todas as quantidades, tanto contínuas quanto discretas — que
elas são mensuráveis, não contrárias,
suscetíveis de mais e
menos, e fundadas na relação de igualdade e
diferença.
[Nota crítica — De
Rijk, p. 75, n. 6:]
O final deste tratado varia
entre os manuscritos. Alguns acrescentam:
“Hic finit liber secundus de
quantitate. Incipe tertius de qualitate.”
O presente texto segue o códice Paris. Lat. 13368, f. 32v.
DE DIFFERENTIIS
QUALITATIS
(Das diferenças da
qualidade)
(/76/)
Depois de haver tratado das substâncias e das quantidades, segundo a ordem de Aristóteles, convém
agora falar da qualidade, terceira categoria do ser.
Pois, como ele mesmo diz no início do livro das Categorias, “depois do quanto, segue-se o
qual”.
E, de fato, toda substância, além de ser “algo” e “tanto”, é também “tal”, isto
é, qualificada.
A qualidade é, portanto, aquilo segundo o qual se diz o modo de ser de
uma coisa.
Com efeito, a qualidade não determina “quanto” algo é, mas “como” é — se quente
ou frio, branco ou negro, justo ou injusto, dócil ou feroz, sábio ou ignorante.
Daí que Aristóteles defina: Qualitas
est secundum quam dicitur qualis aliquid est.
E, assim como a quantidade diz
respeito à medida, a qualidade diz respeito à forma, pois é pela forma que algo é tal como
é.
De modo que, se a quantidade é mensura da extensão, a qualidade é mensura da perfeição.
Por isso, a qualidade se encontra sobretudo nas coisas que recebem forma — e o
nome “forma” se usa aqui amplamente, não apenas segundo a definição
aristotélica, mas também segundo o uso comum, por meio do qual chamamos forma
tudo o que dá distinção e modo ao ente.
A qualidade, segundo
Aristóteles, divide-se em
quatro espécies:
1.
Habitus
et dispositio —
hábito e disposição;
2.
Potentia
et impotentia naturalis
— potência e impotência natural;
3.
Passiones
et passibiles qualitates
— paixões e qualidades passíveis (como o calor e o frio);
4.
Figura
et forma — figura
e forma externa.
Estas quatro abrangem todas as
demais diferenças da qualidade.
(/77/)
Examinemos cada uma em
particular.
1. De habitu et dispositione
(Do hábito e da disposição)
Entre as qualidades, o hábito é o mais nobre, pois exprime uma perfeição estável da forma.
Hábito é uma qualidade difícil de remover, pela qual o sujeito é bem ou mal
disposto quanto à sua própria natureza ou operação.
Disposição é o que está para o hábito como o passageiro para o permanente, o
incipiente para o perfeito.
Assim, a ciência é um hábito,
enquanto o estudo que conduz à ciência é uma disposição; a virtude é um hábito,
enquanto a inclinação ao bem é uma disposição.
E, conforme a tradição escolástica, o hábito é adquirido pela repetição de atos
semelhantes, até que a forma do ato se fixe no sujeito como segunda natureza.
Por isso o hábito é dito “segundo a natureza”, não como derivando da natureza,
mas como imprimindo na alma uma
nova ordem natural.
As disposições, ao contrário,
são mutáveis e frágeis: o homem disposto ao bem pode, por negligência,
tornar-se mau; o corpo disposto à saúde pode cair em enfermidade.
Eis por que Aristóteles diz que a
disposição é uma ordenação temporária do sujeito segundo a qual ele é
suscetível de mudar.
Logo, o hábito é estável, a disposição é mutável; o primeiro se aproxima do
ser, o segundo do vir-a-ser.
Nosso Mestre, Pedro Abelardo,
observa que a distinção entre hábito e disposição vale tanto para a alma quanto
para o corpo:
— na alma, conforme a constância ou flutuação das virtudes;
— no corpo, conforme a firmeza ou variação das qualidades corpóreas.
(/78/)
Assim, a saúde perfeita é um
hábito; o estado que a precede, disposição.
O calor natural do corpo é hábito; o calor acidental, disposição.
A sabedoria é hábito; a opinião é disposição.
O amor santo e constante é hábito; o impulso momentâneo é disposição.
Por isso, Abelardo acrescenta —
em nota marginal dos códices de Paris — que “as qualidades se dizem hábitos
quando permanecem segundo o sujeito, e disposições quando o modificam segundo o
tempo”.
Ademais, o hábito não se perde
por um único ato contrário, mas pela corrupção da forma interior; a disposição,
porém, se altera com facilidade, porque não é enraizada na substância, mas nas
afeições acidentais.
Por isso se diz que o hábito é “dificilmente mutável”, e a disposição
“facilmente mutável”.
2. De potentia et impotentia
naturalis
(Da potência e da
impotência natural)
A segunda espécie de qualidade
é a potência natural ou a impotência, isto é, a aptidão ou inapetência para
agir ou padecer.
Assim como o ferro é apto a ser atraído pelo ímã e a madeira não, diz-se que o
ferro tem potência natural, a madeira impotência, em relação à atração.
E, na alma, o homem tem potência de conhecer, mas impotência de conhecer o
infinito.
Essa espécie de qualidade se
refere ao modo
natural do sujeito
e manifesta sua capacidade ou resistência a determinadas operações.
É, portanto, uma qualidade passiva ou ativa, conforme o sujeito seja capaz de
agir ou de padecer.
Por isso Aristóteles inclui aqui também as potências da alma — memória, razão,
fantasia —, que são qualidades porque determinam o modo de operação do ser
vivo.
(/79/)
Nos corpos, a potência natural
se vê, por exemplo, na dureza do diamante, na maleabilidade do ouro, na leveza
do fogo, na gravidade da terra.
Essas potências não são acidentes extrínsecos, mas propriedades intrínsecas,
pelas quais cada elemento se ordena segundo sua natureza própria.
E, ainda que pareçam quantidades, distinguem-se delas porque a potência não se
mede por extensão, mas por vigor.
Daí a distinção que Abelardo
introduz entre potência e virtude:
a potência é faculdade natural; a virtude é potência aperfeiçoada pela forma do
bem.
A primeira é física, a segunda é moral.
3. De passionibus et
passibilibus qualitatibus
(Das paixões e das qualidades
passíveis)
A terceira espécie é a das paixões e das qualidades passíveis, que dizem respeito às alterações do
corpo e da alma.
Tais são o calor e o frio, a brancura e a negrura, o prazer e a dor, o medo e o
desejo.
Essas qualidades se chamam “passíveis” porque podem mudar rapidamente, e o
sujeito nelas padece mais do que age.
Por isso, Aristóteles as chama
“qualidades sensíveis”, pois se manifestam pelos sentidos e são percebidas pela
mutação que produzem.
E Boécio acrescenta que “as paixões são movimentos da alma segundo o apetite, e
qualidades segundo o corpo”.
Assim, a cólera é paixão segundo o movimento, e qualidade segundo o calor que
inflama o sangue.
(/80/)
Abelardo comenta que essas
paixões são intermediárias entre a substância e o acidente, porque têm origem
na alma, mas efeito no corpo.
E, por isso, uma mesma paixão pode ser considerada virtude ou vício, conforme a
razão que a governa: a ira justa é virtude, a desordenada é vício.
A paixão é, pois, uma qualidade mista, composta de razão espiritual e afecção
corpórea.
4. De figura et forma
(Da figura e da forma)
A quarta e última espécie é a figura, isto é, o limite da quantidade, e a forma, isto é, o modo exterior pelo qual a
substância é conhecida.
Ambas pertencem à qualidade, porque designam o modo de ser da coisa, não sua
quantidade.
Com efeito, a figura é o termo visível da extensão; a forma é o termo visível
da espécie.
O triângulo e o círculo diferem pela figura, assim como o homem e o cavalo
diferem pela forma.
Aristóteles, porém, usa o nome
“forma” ora em sentido físico, ora em sentido metafísico.
Fisicamente, chama-se forma aquilo que delimita o corpo; metafisicamente,
aquilo que dá ser à substância.
Ambos os sentidos convêm à qualidade, porque tanto o limite quanto a perfeição
são modos de ser.
(/81/)
Assim, Abelardo conclui que
toda qualidade é modificação
da forma, quer
intrínseca, quer extrínseca: intrínseca, como a brancura ou a ciência;
extrínseca, como a figura ou a ordem.
E o mesmo ato que dá forma à coisa dá-lhe qualidade, pois a forma é o princípio
do “como”.
DE COMMUNITATIBUS
QUALITATIS
(Das propriedades comuns da
qualidade)
(/81–82/)
Comum a todas as qualidades é o
fato de que nelas
se manifesta a perfeição ou imperfeição do sujeito, não segundo o ser, mas segundo o modo
de ser.
E, por isso, a qualidade está entre o ser e o não-ser, como mediadora: não é
substância, mas dá à substância seu brilho e sua aparência.
Também é próprio da qualidade
admitir o mais e o menos.
Com efeito, dizemos “mais branco”, “menos sábio”, “mais virtuoso”, “menos
quente”.
E essa gradação pertence apenas à qualidade e não à substância nem à
quantidade, porque o grau supõe comparação intensiva, não extensiva.
Outra propriedade comum é que as qualidades admitem contrariedade, o que as distingue das quantidades.
Pois, se há calor, há frio; se há brancura, há negrura; se há virtude, há
vício.
E essas contrariedades se dão dentro do mesmo gênero, conforme os extremos da
forma.
(/82/)
Ademais, toda qualidade é suscetível de geração e corrupção, porque pode ser adquirida e perdida: o
ignorante torna-se sábio, o frio aquece-se, o vicioso corrige-se.
Por isso, Aristóteles diz que as qualidades pertencem às coisas que “podem
mudar de modo”.
E tal mudança é o fundamento do movimento acidental, que se chama alteração (alteratio).
Finalmente, Abelardo observa
que a qualidade é o espelho
do ser: nela se
manifesta a dignidade das substâncias e a beleza do universo.
Pois, se as substâncias são o que é, e as quantidades o quanto é, as qualidades
mostram o modo pelo qual o ser é belo, ordenado e inteligível.
Sem qualidade, haveria apenas matéria informe e número mudo; com ela, o ser
resplandece.
[Nota marginal — Cód.
Paris. Lat. 13368, f. 37r:]
Explicit liber tertius de
qualitate. Incipit quartus de relatione.
LIBER
QUARTUS — DE RELATIONE
(LIVRO QUARTO — SOBRE A RELAÇÃO)
DE NATURA
RELATIONIS ET EJUS DIFFERENTIIS
(Da natureza da relação e de suas diferenças)
(/82–83/)
Depois das substâncias, quantidades e qualidades,
Aristóteles coloca o gênero da relação (ad aliquid), porque, após
ter tratado do que é em si, convém falar do que é em referência a outro.
Com efeito, tudo o que foi dito até aqui referia-se ao que pertence ao ente
segundo sua essência própria; mas há também aquilo que o ente é em
comparação, isto é, na medida em que se refere a outro ente.
Assim, o pai é pai em relação ao filho, o senhor ao servo, o igual ao igual, o
duplo ao simples, o conhecimento ao conhecido.
A relação, portanto, é aquilo segundo o qual um
ente se ordena a outro ente.
E essa ordenação não se entende como acidente exterior, mas como aspecto
interno da essência, que se refere a outro de modo necessário ou acidental.
Por isso Aristóteles define: Relatio est secundum quam dicitur ad aliquid
alterum.
Nosso Mestre (Abelardo) observa que a relação não
acrescenta algo real à substância, mas apenas um respeito de razão (respectus
rationis).
Pois, se o filho morre, o pai deixa de ser pai; e, no entanto, nada se alterou
em sua substância.
Logo, a relação existe mais no intelecto que nas coisas, exceto quando
tem fundamento real, como a semelhança de cores ou a igualdade de medidas.
Distinguem-se, pois, duas espécies principais de
relação:
- As que têm fundamento na coisa — relationes reales;
- As que só existem segundo o entendimento — relationes rationis.
As primeiras são como a igualdade, a semelhança, a
proporção, a causalidade; as segundas, como a relação de gênero e espécie, de
definição e definido, de conhecimento e conhecido.
(/83–84/)
Assim, a semelhança entre dois homens é real,
porque se funda na igualdade de cor ou figura; mas a relação de definição entre
o homem e o animal é apenas de razão, porque se funda em uma abstração da
mente.
E por isso se diz que a relação é o mais lógico dos acidentes, porque
pertence antes à ordem da intelecção do que à ordem da matéria.
Aristóteles distingue ainda duas maneiras de
dizer o relativo:
— umas são ditas relativamente por si mesmas, como “duplo”, “metade”,
“maior”, “menor”;
— outras por acidente, como “médico”, “pintor”, “soldado”, que se
referem a algo por causa de uma relação secundária (o médico em relação ao
doente, o pintor ao quadro, o soldado à guerra).
E destas, umas são mútuas, outras não
mútuas.
Chamam-se mútuas as que se referem reciprocamente, como “pai” e “filho”,
“igual” e “igual”, “amigo” e “amigo”; não mútuas, as que não exigem
reciprocidade, como “ciência” e “cognoscível”, “poder” e “padecível”,
“princípio” e “derivado”.
Com efeito, o cognoscível permanece cognoscível ainda que ninguém o conheça; o
paciente pode ser paciente mesmo sem um agente presente.
Por isso, Abelardo nota que as relações mútuas são simultâneas
na natureza, porque uma implica a outra; as não mútuas, sequenciais,
porque dependem de um termo que pode não existir em ato.
(/84–85/)
Pergunta-se, contudo, se as relações existem
realmente nas coisas ou apenas em nosso intelecto.
Aristóteles parece oscilar, pois ora diz que são “em um sujeito”, ora que são
“em razão de outro”.
Abelardo resolve dizendo que as relações têm um duplo ser: um ser
real, enquanto fundadas em algo da coisa (como a igualdade no número, a
semelhança na cor); e um ser de razão, enquanto concebidas como termos
relativos em nossa mente.
Assim, quando dizemos “este homem é semelhante
àquele”, há uma semelhança real em ambos, mas o nome “semelhante” — enquanto
relativo — é uma denominação da mente.
Do mesmo modo, a proporção entre o dobro e o simples não é algo existente além
dos números, mas uma comparação feita pelo intelecto a partir de uma diferença
quantitativa.
Aristóteles distingue ainda relações absolutas
e relações transitivas.
As primeiras se completam no próprio sujeito, como “igual” ou “semelhante”; as
segundas passam a outro sujeito, como “amante” e “amado”, “dominante” e
“dominado”.
E dessas últimas nasce a categoria da referência causal, porque toda
causa se refere a um efeito e todo efeito a uma causa.
Por isso, a relação é o elo universal dos entes, o nó que os une na
ordem do ser e do conhecimento.
(/85–86/)
Comum, pois, a todas as relações é que não
subsistem por si, mas no sujeito de que se predicam; e, todavia, sua
essência consiste em ordenar aquele sujeito a outro.
Assim, diferem das qualidades, porque estas dão forma ao sujeito em si; e das
quantidades, porque estas medem o sujeito em si; as relações, porém, orientam-no
para fora de si, segundo uma referência.
E, embora as relações pareçam muitas e diversas,
todas se reduzem a três princípios fundamentais, segundo a ordem metafísica:
- A relação de identidade e distinção, que divide o ente;
- A relação de semelhança e dessemelhança, que mede a
perfeição;
- A relação de causa e efeito, que ordena o universo.
Destas três, as duas primeiras são ontológicas,
a terceira cosmológica.
E nelas se encerram todas as demais: toda proporção, toda igualdade, toda
comparação de razão.
Por isso, Abelardo conclui: “Relatio est nexus
universalis entium, in quo universitas rerum ordinatur.”
— “A relação é o nexo universal dos entes, no qual a totalidade das coisas se
ordena.”
(/86–87/)
Quanto às propriedades das relações, três são as
principais:
- A relação se altera quando um dos correlativos muda, ainda que o outro permaneça o mesmo — como quando o servo morre,
o senhor deixa de ser senhor;
- A relação pode subsistir em potência sem o correlativo em ato, como a visão enquanto potência existe sem o objeto visto;
- A relação é transitiva na inteligência, não na coisa, porque é pela mente que o termo relativo se reporta ao outro.
E disso se segue uma distinção importante entre o fundamento
da relação e o respeito da relação (fundamentum relationis / respectus
relationis).
O fundamento é real, como a igualdade da medida ou a semelhança da cor; o
respeito é lógico, isto é, a referência concebida pela mente.
Por isso, as relações têm realidade quanto ao fundamento, mas não quanto ao
modo de referir-se.
(/87–88/)
Além disso, algumas relações são necessárias,
outras acidentais.
Necessárias, como a de causa e efeito, de todo e parte, de princípio e
consequência; acidentais, como a de pai e filho, mestre e discípulo, vizinho e
vizinho.
As primeiras decorrem da própria essência das coisas; as segundas, de
circunstâncias externas e temporais.
A relação necessária é eterna, porque enquanto há
causa há efeito, e enquanto há verdade há inteligível.
A acidental nasce e perece com os sujeitos relativos.
Por isso, Deus, que é ato puro, contém em si todas as relações necessárias, mas
nenhuma acidental: é causa sem ser causado, princípio sem dependência, fim sem
sucessão.
Abelardo nota, em comentário marginal, que “omnis
relatio finita est in ordine ad infinitum” — toda relação finita aponta
para o infinito —, porque toda proporção finita remete a um termo absoluto que
não tem medida, o qual é Deus.
E nessa dependência metafísica repousa a razão última do ser relativo: tudo o
que é relativo é relativo ao absoluto.
(/88–89/)
Por fim, Aristóteles adverte que as relações são
os mais variáveis dos acidentes, porque dependem tanto do sujeito quanto do
termo correlato.
A cor permanece no corpo, a figura no espaço, a quantidade na substância; mas a
relação muda com a mudança de qualquer dos extremos.
E, por isso, entre todas as categorias, esta é a mais móvel e a menos
substancial.
Assim, Abelardo conclui o tratado dizendo:
“Sic, inter omnia entia, relatio tenet medium inter
ens et non ens; est enim in alio, et non in se; et ideo proprie est ordo universi.”
“Assim, entre todos os entes, a relação ocupa o
meio entre o ser e o não-ser; pois está em outro, e não em si; e, por isso, é
propriamente a ordem do universo.”
[Nota crítica — De Rijk, p. 89 n. 5:]
O códice Paris. Lat. 13368 encerra o livro com o
título: Explicit liber quartus de relatione. Incipit quintus de oppositione
et contrarietate.
LIBER
QUINTUS — DE OPPOSITIONE ET CONTRARIETATE
(LIVRO QUINTO — SOBRE A OPOSIÇÃO E A CONTRARIEDADE)
DE NATURA
OPPOSITIONIS
(Da natureza da oposição)
(/89/)
Depois da relação, Aristóteles trata da oposição,
porque esta nasce de algum modo daquela: nada se opõe senão na medida em que é referido
a outro.
E, assim como a relação é o princípio da ordem dos entes, a oposição é o
princípio da divisão deles.
Por meio da relação, o ente se harmoniza; por meio da oposição, distingue-se.
Oposto chama-se aquilo que, sendo diverso, está
dentro de um mesmo gênero e tende a excluir o outro.
Assim, o bem e o mal são opostos no gênero da qualidade moral, o verdadeiro e o
falso no gênero da enunciação, o branco e o negro no gênero da cor.
Aristóteles distingue quatro espécies de oposição:
- Contradictoria — entre o ser e o não-ser (affirmatio
et negatio);
- Contraria — entre os extremos de uma mesma forma (calidum
et frigidum);
- Privatio et habitus —
entre a ausência e a presença de uma faculdade (caecus et videns);
- Relativa — entre termos correlatos (pater et filius).
Essas quatro abrangem todas as modalidades de
contradição que se encontram nos entes.
(/90/)
A oposição contraditória é a mais radical,
porque não admite meio termo:
ou o homem é animal, ou não é; ou o número é par, ou não é.
E tal oposição não se dá entre coisas, mas entre afirmações e negações,
e, portanto, reside no logos, não na realidade.
É, pois, uma oposição do discurso, não da substância.
A oposição contrária, ao contrário, está
entre os extremos de um mesmo gênero, nos quais há sempre um meio possível,
que participa de ambos.
Assim, entre o branco e o negro há o cinzento; entre o quente e o frio, o
morno; entre o justo e o injusto, o indiferente.
Logo, enquanto a contraditória destrói totalmente o outro termo, a contrária o limita,
mas não o aniquila.
A oposição de privação e hábito está entre o
que tem e o que carece de ter algo que, por natureza, poderia
possuir.
Assim, a cegueira se opõe à visão, não porque sejam contrários no gênero da
cor, mas porque um é defeito e o outro posse.
Diz-se, portanto, que a privação é o não-ter segundo a potência natural de
ter (non-habere ubi natum est habere).
Por isso, não dizemos que a pedra é cega, embora não veja, porque não é da sua
natureza ver.
Por fim, a oposição relativa é a que se dá
entre os termos que se implicam mutuamente — como senhor e servo, causa e
efeito, conhecimento e cognoscível —, cuja oposição é apenas de razão,
não de contrariedade.
(/91/)
Abelardo observa que todas essas espécies de
oposição derivam da unidade do ser, pois só o que participa de um mesmo
gênero pode ser oposto:
“Entre o ser e o nada, não há oposição, mas negação pura; entre espécies
distintas, há diversidade, não contrariedade.”
A oposição, portanto, exige três condições:
- Que os opostos estejam no mesmo gênero;
- Que sejam diversos quanto à forma;
- Que não possam coexistir no mesmo sujeito ao mesmo tempo.
Dessas três, a terceira é a mais própria, pois
aquilo que pode coexistir não é verdadeiramente oposto.
Assim, o calor e a cor coexistem no fogo; mas o calor e o frio, não.
Por isso, Aristóteles diz: “Contraria sunt
quorum alterum alteri destruitur.”
Ou seja, “contrários são aqueles cuja presença de um destrói a do outro”.
(/92/)
Entre as contrariedades, umas são máximas,
outras médias.
Máximas são as que se dão entre os extremos mais distantes, como o branco e o
negro; médias, as que se dão entre modos intermediários, como o vermelho e o
amarelo.
Por isso, nas qualidades graduáveis, a contrariedade admite graus de
oposição, enquanto nas substâncias e nas quantidades, não.
Também se pergunta se as contrariedades estão
somente nas qualidades.
Abelardo responde que toda contrariedade supõe forma intensiva, e por
isso pertence primariamente às qualidades e secundariamente às paixões; não
pertence, porém, às quantidades, pois nelas há diferença, mas não oposição.
A diferença é diversidade de número ou medida;
a contrariedade, diversidade de forma.
Por isso, as quantidades são ditas maiores ou menores, as qualidades melhores
ou piores.
(/93/)
Além disso, entre as contrariedades, umas são naturais,
outras acidentais.
Naturais, como o calor e o frio; acidentais, como a amizade e a inimizade, que
dependem da vontade.
As primeiras derivam da matéria, as segundas da forma racional.
E as naturais podem ser reconciliadas por um meio termo, as acidentais apenas
pela conversão da vontade.
Abelardo acrescenta que toda oposição supõe uma ordem
secreta, porque os contrários se necessitam para se compreenderem.
O bem se conhece pelo mal, o justo pelo injusto, a luz pelas trevas.
Por isso, ele diz:
“In oppositis invenitur quidam amor metaphysicus,
quia unum sine altero intelligi non potest.”
“Nos opostos há certo amor metafísico, porque um
não pode ser entendido sem o outro.”
(/94/)
A oposição, portanto, é o fundamento da
dialética e o princípio do movimento do pensamento.
Pois o intelecto, buscando a verdade, passa de um extremo a outro, negando e
afirmando, como o pêndulo que oscila entre dois limites.
E assim a alma racional imita a própria estrutura do ser, que se equilibra
entre contrariedades.
Daí que Aristóteles tenha dito que “a contrariedade
é o princípio de todas as mudanças”.
Com efeito, a alteração nasce da passagem de um contrário a outro: o quente se
faz frio, o ignorante se faz sábio, o injusto se faz justo.
E toda geração e corrupção têm por fundamento uma oposição precedente.
(/95/)
Abelardo comenta que a oposição contraditória
corresponde à negação lógica, a contrária à alteração física, a
de privação e hábito à mutação ontológica, e a relativa à ordem moral
ou racional.
Por isso, cada gênero de oposição reflete uma dimensão do ser: o lógico, o
físico, o ontológico e o ético.
Assim, na alma, a contrariedade é princípio de
virtude, porque a luta entre bem e mal engendra a escolha do melhor; na
natureza, é princípio de equilíbrio, porque os contrários se compensam e mantêm
o cosmos em harmonia; na razão, é princípio de verdade, porque toda definição
se faz por distinção do seu oposto.
(/96/)
Conclui, portanto, Abelardo, dizendo:
“Oportet opposita esse, ut aliquid sit. Nam sine
contrarietate nec intellectus movetur, nec natura vivit.”
“É necessário que haja opostos, para que algo
exista. Pois sem contrariedade, nem o intelecto se move, nem a natureza vive.”
E acrescenta que a contrariedade é a imagem
sensível da liberdade: onde não há oposição, não há escolha; e onde não há
escolha, não há vontade nem mérito.
Assim, a ordem do mundo é sustentada pelo combate dos contrários, que Deus
dispõe em sabedoria para que do conflito surja a unidade.
[Nota crítica — De Rijk, p. 96 n. 4:]
Os manuscritos de Oxford e Paris encerram aqui o
quinto livro com a rubrica:
Explicit liber quintus de oppositione et contrarietate. Incipit sextus de
habitu et dispositione.
LIBER SEXTUS — DE
HABITU ET DISPOSITIONE
(LIVRO SEXTO — SOBRE O
HÁBITO E A DISPOSIÇÃO)
DE DIFFERENTIA INTER
HABITUM ET DISPOSITIONEM
(Da diferença entre hábito
e disposição)
(/96/)
Depois de ter tratado da
oposição e da contrariedade, Aristóteles examina o hábito e a disposição, porque ambos pertencem às qualidades, e são, de certo modo, o fim natural das contrariedades.
Com efeito, a luta dos contrários engendra estabilidade; e o estado estável do
ser, que resulta da repetição ou permanência do ato, chama-se hábito.
O hábito (habitus)
é uma qualidade estável e
difícil de remover,
pela qual o sujeito é bem ou mal disposto quanto a si ou quanto a outro.
A disposição (dispositio),
ao contrário, é uma ordenação
temporária e facilmente mutável
do sujeito, pela qual ele está apto ou inapto para determinado fim.
Assim, o calor natural do corpo é hábito; o calor acidental é disposição.
A sabedoria é hábito; a opinião, disposição.
Abelardo observa que
Aristóteles, no livro Categoriae,
define o hábito como “a ordenação segundo a qual algo está bem ou mal disposto
quanto a si mesmo ou a outro”.
E o chama “hábito” (hexis)
porque significa posse (habere).
Daí também o verbo latino “habere” — ter, possuir —, donde deriva “habitus”.
(/97/)
A disposição, por sua vez, é
chamada “diathesis” em grego, isto é, dispositio,
porque designa uma ordenação transitória que antecede ou sucede o hábito.
Por exemplo: o corpo aquecido dispõe-se à saúde, e, pela continuidade do calor
natural, adquire o hábito da saúde.
O estudante, aplicando-se à ciência, dispõe-se à sabedoria, e, pela repetição
do ato de aprender, adquire o hábito de saber.
Assim, o hábito é o ter adquirido, a disposição é o tender a ter.
E, como o hábito é perfeição do sujeito, pertence ao ato; a disposição, sendo
caminho para o hábito, pertence à potência.
Daí que Aristóteles diga que “o hábito é mais semelhante à forma, e a
disposição, à matéria”.
Nos corpos, o hábito é como a
compleição natural; nas almas, como a virtude.
Por isso, a saúde e a doença são hábitos, a alegria e a tristeza, disposições;
a justiça e a ciência são hábitos, a inclinação e o desejo, disposições.
(/98/)
Abelardo acrescenta que o
hábito tem dupla origem: pela
natureza e pelo exercício.
Pela natureza, quando a forma se fixa espontaneamente no sujeito, como a leveza
do fogo ou a dureza do diamante;
pelo exercício, quando a repetição do ato o torna estável, como o músico que
adquire destreza pelo costume.
O primeiro chama-se habitus
naturalis, o segundo acquisitus.
Por isso, o hábito é também
dito “segunda natureza”, porque, pela repetição, torna-se conatural ao sujeito.
E, assim como a natureza age sem deliberação, o hábito faz agir com facilidade,
sem resistência.
Por isso, o homem virtuoso age bem espontaneamente, e o vicioso, mal.
A disposição, ao contrário, é
instável e pendente; muda com o tempo, com o humor, com o ambiente.
Por isso, o mesmo corpo pode estar ora quente, ora frio; a alma, ora triste,
ora alegre.
Assim, o hábito pertence ao ser, a disposição ao devir.
(/99/)
Além disso, o hábito, sendo
forma estável, não
se destrói por um único ato contrário, mas pela corrupção do princípio que o sustenta.
A disposição, porém, altera-se facilmente: um pequeno acidente basta para
mudá-la.
Assim, quem tem hábito de justiça não se torna injusto por um só ato iníquo,
mas por repetição;
quem tem disposição à ira inflama-se por leve ocasião.
Abelardo insiste em que a
diferença entre hábito e disposição é de grau de estabilidade, não de espécie.
Ambos pertencem ao mesmo gênero de qualidade, mas diferem na duração e na
firmeza.
E, como o hábito é firmeza da disposição, diz-se que toda disposição tende a
converter-se em hábito.
(/100/)
Pergunta-se se o hábito pode
ser perdido.
Aristóteles responde: sim, mas não
por negação, e sim por corrupção.
Pois o hábito, sendo forma, não desaparece senão pela destruição da forma no
sujeito.
Assim, a ciência não se perde por simples esquecimento, mas pelo
enfraquecimento do intelecto;
a virtude não se perde por um ato, mas pela depravação do apetite.
Abelardo explica que o hábito
se conserva enquanto permanece a disposição da natureza que o sustenta.
Por isso, os hábitos intelectuais são mais duradouros que os corporais, porque
o intelecto é menos sujeito à corrupção.
O corpo muda pela idade e pelo tempo; o espírito, pela negligência ou pelo
vício.
(/101/)
Outra diferença: o hábito é como forma adquirida pelo sujeito; a disposição, como relação do sujeito com a forma.
Assim, o corpo disposto à saúde é como a cera maleável que espera o selo; o
hábito de saúde é o selo impresso.
E, assim como o selo é imagem da forma, o hábito é imagem da perfeição.
Por isso, Aristóteles coloca o
hábito entre as qualidades que pertencem à potência operativa, e a disposição entre as que pertencem
à passividade.
A disposição é o caminho; o hábito, o termo.
E ambos mostram que a qualidade não é mero acidente, mas a via pela qual o ser
se torna perfeito.
(/102/)
Abelardo encerra dizendo:
“Habitus est stabilitas
boni, dispositio mobilitas ad bonum.”
“O hábito é a estabilidade do
bem, a disposição é o movimento em direção ao bem.”
E conclui:
“Assim como o tempo mede o
movimento, o hábito mede a perfeição do sujeito.
Por ele, o ser passa da potência ao ato e repousa no ato.”
[Nota crítica — De
Rijk, p. 102 n. 7:]
O códice Paris. Lat. 13368
conclui:
Explicit liber sextus de
habitu et dispositione. Incipit septimus de agere et pati.
LIBER
SEPTIMUS — DE AGERE ET PATI
(LIVRO SÉTIMO — SOBRE A AÇÃO E A PAIXÃO)
DE ESSENTIA
ACTIONIS ET PASSIONIS
(Da essência da ação e da paixão)
(/102/)
Depois do hábito e da disposição, Aristóteles trata
da ação (agere) e da paixão (pati), porque ambos
pertencem às qualidades que implicam movimento.
Com efeito, o hábito é uma permanência da forma; a ação e a paixão são a
atualização da potência.
E, assim como o hábito mostra o ser em repouso, a ação e a paixão mostram o ser
em trânsito.
A ação é aquilo segundo o qual o agente
produz algo em outro ou em si mesmo;
a paixão, aquilo segundo o qual o paciente recebe algo de outro ou de
si mesmo.
Logo, a ação pertence ao princípio ativo, a paixão ao princípio passivo.
Mas ambas são uma só realidade segundo o movimento: pois o que o agente faz, o
paciente padece.
Abelardo nota, em glosa marginal, que “actio et
passio non sunt duae res, sed unus motus in duobus terminis” —
“Ação e paixão não são duas coisas, mas um único
movimento em dois termos.”
(/103/)
Por isso Aristóteles, no De anima, ensina
que “agir e padecer são o mesmo movimento, mas em diverso respeito”:
no agente, é ação; no paciente, paixão.
E, do mesmo modo, o mesmo fogo que aquece também é aquecido; o mesmo intelecto
que conhece também é afetado pelo inteligível.
Daí se vê que toda ação supõe duas coisas:
- Um agente, que é causa eficiente;
- Um paciente, que é sujeito da mudança.
E, entre ambos, há algo comum: o movimento (motus), que é o trânsito da potência ao ato.
Abelardo comenta que, enquanto o hábito pertence à
forma, a ação pertence ao movimento;
e que o movimento é o “ato do ser em potência, enquanto tal”.
Por isso, a ação não é simples ato, mas o vir-a-ser do ato.
(/104/)
Pergunta-se se a ação permanece no agente ou passa
ao paciente.
Aristóteles distingue:
— algumas ações permanece no agente, como ver, pensar, querer;
— outras passam ao paciente, como cortar, aquecer, mover.
As primeiras se chamam immanentes, as segundas transitivas.
Assim, quando a alma conhece, sua ação é nela
mesma, pois o conhecer é um movimento do espírito para dentro de si.
Quando o ferreiro forja, a ação passa ao ferro, e o movimento é do agente para
fora.
Abelardo acrescenta que nas ações immanentes o
agente é também paciente, porque a operação recai sobre o próprio sujeito:
“Em toda ação da alma, o agente e o paciente são o
mesmo.”
Por isso, o amor, a vontade e a intelecção são ações internas, nas quais o ser
se move dentro de si e se aperfeiçoa.
(/105/)
Distingue-se ainda a ação natural da voluntária.
Natural é a que procede da natureza sem deliberação, como o fogo que sobe, o
peso que desce, o coração que pulsa.
Voluntária é a que procede do intelecto e da vontade, como o falar, o escolher,
o ensinar.
Nas primeiras, a causa é a forma natural; nas segundas, a causa é a intenção
racional.
E, entre as voluntárias, umas são ativas,
outras reativas:
ativas, quando o sujeito inicia o movimento (como ordenar, criar, produzir);
reativas, quando responde a outro (como obedecer, consentir, sofrer).
A paixão, por sua vez, é a receptividade do
sujeito ao influxo do agente.
E, como todo influxo implica mudança, toda paixão é uma alteração.
Mas nem toda alteração é paixão propriamente dita: só o é quando o sujeito padece
segundo sua forma.
Por isso, o ferro que é moldado padece; o fogo que ilumina, não.
(/106/)
Abelardo distingue três graus de paixão:
- A afecção material,
quando a forma sensível muda a matéria (como o calor que aquece a água).
- A afecção vital, quando a alma é tocada em
suas potências (como o medo, a dor, a alegria).
- A afecção espiritual,
quando o intelecto se move pela verdade ou pela falsidade (como crer,
duvidar, compreender).
Assim, toda paixão é um modo de relação viva
entre o ser e o outro, e por isso se inclui entre as qualidades móveis.
E, porque toda ação corresponde a uma paixão, há
uma harmonia secreta entre ambas:
não há ação sem paciente, nem paixão sem agente.
E, como Deus é ato puro, n’Ele há ação sem paixão; nas criaturas, ação e paixão
coexistem, porque toda criatura é potencial.
(/107/)
A distinção, portanto, entre agir e padecer, é
apenas de razão, não de substância.
E, por isso, Abelardo diz:
“Agere est pati secundum modum agentis; pati est
agere secundum modum patientis.”
“Agir é padecer segundo o modo do agente; padecer é
agir segundo o modo do paciente.”
Dessa maneira, o mesmo movimento que dá forma a um,
deforma o outro; o mesmo fogo que aquece a água, resfria-se a si mesmo; o mesmo
amor que inflama o amante, enternece o amado.
Assim, ação e paixão são duas faces do mesmo ser em trânsito.
(/108/)
Abelardo encerra o livro com uma reflexão
metafísica:
“Toda ação é o exercício da forma; toda paixão, o
testemunho da matéria.
A ação manifesta o poder; a paixão, a finitude.
Mas em ambas resplandece a ordem divina, pela qual o ser move e é movido.”
E conclui:
“In Deo
est agere sine pati; in creatura, pati sine agere non est.”
“Em Deus há agir sem padecer; na criatura, padecer
sem agir não há.”
[Nota crítica — De Rijk, p. 108 n. 5:]
O manuscrito Paris. Lat. 13368 encerra o texto com:
Explicit liber septimus de agere et pati. Incipit octavus de quando et ubi.
LIBER
OCTAVUS — DE QUANDO ET UBI
(LIVRO OITAVO — SOBRE O TEMPO E O LUGAR)
DE LOCO
(Do lugar)
(/61/)
O lugar (locus) é, segundo
Aristóteles, a circunscrição do corpo quantitativo, isto é, o limite
imóvel que contém o corpo móvel.
Assim, o lugar é uma quantidade contínua que mede a posição das coisas,
como o tempo mede sua duração.
Por isso, lugar e tempo são chamados, respectivamente, o ubi e o quando
do ser: o primeiro o fixa, o segundo o move.
Alguns definem o lugar como “a circunscrição de
qualquer coisa”, mas falsamente.
Pois, se toda coisa fosse circunscrita por um lugar, o lugar mesmo teria de ser
circunscrito por outro lugar, e assim até o infinito.
Deus, que contém todas as coisas e ultrapassa a totalidade pela majestade de
Sua magnitude, é incircunscrito e incompreensível.
E, por semelhança com Ele, as substâncias incorpóreas também são ditas fora
de lugar.
Por isso, mais verdadeira é a opinião daqueles que
determinam que o lugar é a circunscrição do corpo quantitativo composto,
ou, se quisermos incluir o lugar simples, digamos:
“Lugar é a circunscrição de um corpo quantitativo
ou de alguma de suas partes.”
Deste modo, todo lugar circunscreve ou um corpo
inteiro ou parte dele.
(/62/)
O lugar é, portanto, contínuo, porque suas partes se
sucedem sem intervalo, como no tempo o presente sucede ao passado e o
futuro ao presente.
Mas, diferentemente do tempo, o lugar permanece, enquanto o tempo flui.
Por isso, há entre ambos uma correspondência inversa: o lugar é fixo e o corpo
se move nele; o tempo é móvel e o ser permanece nele.
Daí Aristóteles dizer que “tempo e lugar são, de
algum modo, o mesmo, exceto quanto ao modo de sua continuidade”.
Ambos são quantidades mensuráveis, um da permanência, outro do
movimento.
E, assim como o tempo mede as ações e paixões, o lugar mede as posições e
distâncias.
Contudo, grande foi a discordância entre os antigos
sobre a continuidade do lugar.
Uns diziam que o lugar é apenas o contato das superfícies do corpo
circunscrito e do circunscrevente; outros, que é um vazio receptivo no
qual o corpo está situado.
Abelardo adere à primeira posição, pois, diz ele, “não há lugar sem corpo, nem
corpo sem lugar”.
O vazio seria, então, uma abstração da imaginação, não uma realidade física.
DE TEMPORE
(Do tempo)
(/63/)
Depois de tratar do lugar, Aristóteles une a ele o tempo
(tempus), pois ambos são mensuras de movimento:
o lugar, do movimento segundo a posição; o tempo, segundo a sucessão.
O tempo é uma quantidade contínua segundo a
sucessão de suas partes no mesmo sujeito.
E, porque suas partes se seguem sem permanecer, o tempo é um fluxo — um
contínuo que nunca é o mesmo.
Aristóteles diz no Physica:
“O tempo é o número do movimento segundo o anterior
e o posterior.”
Assim, onde há movimento, há tempo; e onde nada se
move, não há tempo.
Pois o tempo mede o movimento, e o movimento é a medida do ser em devir.
(/64/)
Abelardo explica que há dois modos de tempo:
- o simples, que é o instante indivisível (instans);
- o composto, que é a soma dos instantes sucessivos — o agora
que foi, o agora que é e o agora que será.
O primeiro é como o ponto na linha; o segundo, como
a linha composta de pontos.
Mas, enquanto o ponto permanece, o instante desaparece ao surgir.
Por isso, o tempo é o ser que não é, e, todavia, o mais real de todos os
modos de ser, porque tudo o que existe, existe nele.
O tempo, portanto, é o número do movimento
na medida em que o espírito conta a passagem do antes ao depois.
Não é o movimento em si, mas a mensuração do movimento pela alma.
E, por isso, se a alma cessasse de contar, o tempo cessaria de ser percebido,
embora o movimento continuasse.
(/65/)
Abelardo observa que o tempo não é apenas quantidade
do movimento, mas também condição da mutabilidade.
Pois tudo o que nasce, nasce no tempo; e tudo o que perece, perece no tempo.
O eterno, por sua vez, está fora do tempo, porque não muda.
Logo, o tempo é o signo da criatura, e a eternidade, o selo do Criador.
Daí ele dizer:
“Tempus est umbra aeternitatis in mobilibus.”
“O tempo é a sombra da eternidade nas coisas
móveis.”
E acrescenta que o tempo, assim como o lugar, é
infinito em potência, mas finito em ato, porque, embora não tenha fim possível,
só existe enquanto é contado.
(/66/)
O tempo, portanto, é composto de instantes que
não coexistem, mas se sucedem.
E, assim como o som é composto de notas que se extinguem ao serem ouvidas, o
tempo é composto de momentos que se perdem ao serem vividos.
De modo que o tempo é o ser da passagem, e o movimento, a passagem do
ser.
Por isso, diz Abelardo, “no tempo não há ser pleno,
mas apenas vir-a-ser”.
E conclui com elegância metafísica:
“In tempore nihil est, sed omnia fiunt.”
“No tempo, nada é, mas tudo se faz.”
DE RELATIONE
LOCI ET TEMPORIS
(Da relação entre o lugar e o tempo)
(/67/)
Locus et tempus sibi correspondent.
O lugar fixa o ser no espaço; o tempo, no movimento.
O primeiro é a medida da estabilidade, o segundo, a medida da mudança.
Ambos são quantidades contínuas, mas uma mede a coexistência, outra a sucessão.
Por isso, o lugar é o “aqui” do ser; o tempo, o
“agora” do ser.
E, assim como o ser é composto de substância e acidente, o mundo é composto de
lugar e tempo.
Abelardo conclui o livro dizendo:
“Deus est ubi omnia, et quando omnia, quia ipse est
locus sine spatio et tempus sine transitu.”
“Deus é o onde de todas as coisas e o quando de
todas as coisas, porque Ele é o lugar sem espaço e o tempo sem passagem.”
[Nota crítica — De Rijk, p. 115 n. 8:]
O códice Paris. Lat. 13368 encerra o texto com a
rubrica:
Explicit liber octavus de quando et ubi. Incipit nonus de habere et haberi.
LIBER NONUS
— DE HABERE ET HABERI
(LIVRO NONO — SOBRE O TER E O SER POSSUÍDO)
DE HABERE
(Do Ter)
(/109/)
Assim como Aristóteles tratou do fazer e do padecer,
também adicionou o ter, pois disse que “assim como os contrários atuam e
padecem reciprocamente, também as comparações se referem mutuamente”.
Com efeito, dizemos que algo “aquece mais e menos”, “entristece” ou “alegra”,
“faz-se frio” ou “faz-se quente” — e, do mesmo modo, dizemos “possuir” ou “ser
possuído”.
“Habere autem multos modos Aristoteles annumerat…”
“O ‘ter’, porém, Aristóteles enumera em muitos modos.”
Diz ele que habere significa:
— ter uma forma, uma quantidade ou qualidade qualquer;
— ter algo no corpo, como uma mão, um pé;
— ter algo sobre o corpo, como uma túnica ou um anel;
— ter algo em contenção, como um modius de trigo ou uma ânfora de vinho;
— ter algo por posse, como uma casa ou um campo;
— ter alguém em coabitação, como o marido à esposa e a esposa ao marido.
Assim, quem diz “este homem teve aquela mulher”
quer dizer “coabitou com ela” — modo em que Aristóteles mostra claramente a equivocidade
do termo habere, chamando esse uso de “o mais estranho”.
E acrescenta:
“Talvez, contudo, apareçam ainda outros modos de
‘ter’, mas quase todos os que costumam dizer-se já foram enumerados.”
(/109–110/)
Há, contudo, quem negue que essa enumeração tenha
sido acrescentada por Aristóteles, visto que o próprio filósofo já havia
declarado, ao mencionar brevemente os predicamentos:
“Dos demais, isto é, Quando, Ubi e Habere,
nada se diz além do que já foi dito no início, porque são evidentes.”
E, de fato, antes mesmo de apresentar os
predicamentos, Aristóteles dera exemplos desses termos, entre os quais o de habere:
“O ‘ter’ significa estar calçado, estar armado.”
Dessa forma, Abelardo pondera que Aristóteles não
estabeleceu propriamente um tratado sobre o “ter”, mas apenas exemplos
ilustrativos.
Por isso, Boécio, comentando os Praedicamenta,
afirma que Aristóteles apenas “explicou a equivocação do nome habere”, e
não constituiu um novo gênero.
Pois, sendo os predicamentos dez, o Habere não se acrescenta como
undécimo, mas se compreende em múltiplos sentidos dentro dos anteriores.
DE HABITU ET
HABITU HABENTIS
(Do hábito e do modo daquele que possui)
(/110/)
Abelardo investiga se o nome habere se diz univocamente
ou equivocamente nos diversos modos enumerados.
Conclui que o modo de coabitação — aquele “alieníssimo” que Aristóteles
apontou — pertence à equivocação; mas os modos superiores (ter forma, parte,
veste, posse) são ditos univocamente.
Assim, como o nome animal se diz igualmente de homem e de asno, o nome habere
se diz igualmente de todas as formas de posse e circunscrição.
O hábito, porém, tem dupla significação
entre os filósofos:
- É uma qualidade estável, como já se disse no livro anterior;
- É também o estado de possuir algo — como “visão”, cuja privação é
“cegueira”.
Logo, o verbo habere designa tanto a
relação do sujeito com o objeto possuído, quanto o estado do sujeito em
consequência da posse.
Assim, o homem que tem uma túnica “é vestido” (vestitus est); e essa
forma de possuir constitui um habitus, o qual, uma vez cessado o ato de
vestir, permanece como qualidade.
DE
AEQUIVOCATIONE NOMINIS “HABERE”
(Da equivocação do nome “ter”)
Aqueles, portanto, que restringem o nome “ter”
apenas às coisas que estão sobre o corpo — como o estar vestido ou armado —
reduzem o termo a um uso mais vulgar.
Mas Aristóteles fala de habere em sentido universal, abrangendo
também o possuir, o conter, o receber, o coabitar.
E, se assim o entendermos, dissolvem-se as objeções de infinitude que surgiriam
ao tomar “hábito” como “forma” apenas, pois o “ter” não é gênero único, mas
nome analógico.
A significação do “ter”, diz Abelardo, nasce de
dois princípios distintos, assim como ocorre com “lugar” e “tempo”:
- Do sujeito que possui;
- Da coisa que é possuída.
E, dessa junção, surge uma terceira realidade, o ato
de ter (habitus habendi), que é distinta tanto do sujeito quanto da
coisa, mas inerente a ambos.
Assim, a propriedade de estar armado deriva ao mesmo tempo das armas e do homem
armado — sendo, portanto, uma qualidade relacional e não substancial.
Por isso, Abelardo conclui que o “ter” é um
predicamento misturado de qualidade e relação, e, por essa razão,
encerra os predicamentos antes de se passar aos Postpraedicamenta.
[Nota crítica — De Rijk, p. 110 n. 11–14:]
O códice Paris. Lat. 13368 encerra o nono
livro com:
Explicit liber nonus de habere et haberi. Incipit decimus de positis et
situs.
LIBER
DECIMUS — DE POSITIS ET SITUS
(LIVRO DÉCIMO — SOBRE A POSIÇÃO E O SÍTIO)
DE
SIGNIFICATIONE SITUS
(Do significado de “sítio” ou “posição”)
(/110/)
Conforme Aristóteles, o sítio (situs)
é a ordenação das partes no lugar, segundo uma disposição determinada.
Não é o simples “estar em um lugar”, que pertence ao ubi, mas o “estar
de certo modo em um lugar”.
Assim, o ubi responde à pergunta “onde está?”, e o situs à
pergunta “como está?”.
“Situs est ordo partium in loco secundum se
invicem.”
“O sítio é a ordem das partes no lugar, segundo sua
relação mútua.”
Por exemplo, estar deitado, estar de pé, estar
sentado — todos esses modos pertencem ao situs, e não ao ubi.
Pois o homem de pé e o homem sentado estão igualmente “em casa”, mas diferem
quanto à disposição de suas partes.
Abelardo comenta que o situs é um predicamento
intermediário entre o ubi e o habere:
— do ubi, toma a relação com o lugar;
— do habere, toma a referência à disposição interna do sujeito.
Assim, o situs é uma relação ordenada,
não uma quantidade nem uma qualidade, mas uma disposição espacial que une ambos
os aspectos.
DE
DIFFERENTIA SITUS ET HABITUS
(Da diferença entre sítio e hábito)
(/111/)
Muitos confundem o situs com o habitus,
porque ambos parecem significar disposição.
Mas Abelardo distingue:
— o situs diz respeito às partes do corpo entre si;
— o habitus, às relações do corpo com o que o circunda.
Assim, o homem armado tem habitus; o homem
de pé tem situs.
O habitus é relação com o externo; o situs, ordenação do interno.
E, por isso, Aristóteles, ao tratar dos modos de
“ter”, não incluiu o “estar posto” (positus esse), pois este pertence a
outro predicamento.
O “estar armado” é uma qualidade acidental; o “estar sentado” é uma disposição
posicional.
Abelardo acrescenta:
“O hábito é modo de posse; o sítio, modo de
presença.”
Logo, o hábito pertence à permanência; o sítio, à
posição.
O primeiro implica continuidade; o segundo, simultaneidade.
(/112/)
Por exemplo, o corpo deitado tem todas as suas
partes dispostas horizontalmente; o de pé, verticalmente.
Essas ordens não são qualidades formais, mas relações geométricas.
Portanto, o situs não é um acidente qualitativo, mas relacional e
local.
E, como toda relação, ele supõe ao menos dois
termos:
- o lugar em que o corpo está;
- as partes do corpo que nele se dispõem.
Assim, o sítio é o limite natural entre o lugar e a
forma.
DE NATURA ET
PROPRIETATIBUS SITUS
(Da natureza e das propriedades do sítio)
(/113/)
O sítio possui certas propriedades comuns:
- Ele é imóvel segundo o todo, mas móvel segundo as partes
— pois o corpo pode mudar de posição mantendo a mesma ordem interna.
- Ele é simultâneo em todas as partes, porque nenhuma delas é
anterior ou posterior em tempo, mas apenas em relação.
- Ele é reversível, pois o mesmo corpo pode assumir posição
contrária sem perder sua substância.
Por isso, o situs não pertence ao movimento,
mas à ordem da quietude.
O corpo, enquanto movido, muda de lugar; enquanto está em sítio, permanece.
E, no entanto, como o movimento supõe posição
sucessiva, o sítio é também o término do movimento local.
Assim como o tempo se mede pelo antes e depois, o lugar pelo alto e baixo, o
sítio se mede pela ordem das partes entre si.
(/114/)
Abelardo observa ainda que o situs pode ser
considerado sob dois aspectos:
— absoluto, quando se fala da simples posição do corpo, como de pé,
deitado, inclinado;
— relativo, quando se fala da correspondência de várias partes, como
cruzadas, opostas, paralelas.
E acrescenta uma analogia sutil:
“Como a alma tem suas potências ordenadas entre si
— razão, ira e desejo —, assim o corpo tem suas partes ordenadas no lugar:
cabeça, tronco e membros.
O sítio é, pois, a harmonia visível do corpo, como a virtude é a harmonia
invisível da alma.”
(/115/)
Finalmente, Abelardo conclui:
“O sítio é o modo pelo qual o corpo é no espaço,
não quanto à sua quantidade, mas quanto à sua ordem.”
“E, assim como o número é a medida da
multiplicidade, o sítio é a medida da composição.”
Logo, entre os predicamentos, o situs ocupa
o último lugar dos acidentes que pertencem à dimensão corpórea; depois dele,
seguir-se-ão os que dizem respeito à relação lógica e moral.
[Nota crítica — De Rijk, p. 115 n. 5:]
Explicit liber decimus de positis et situs. Incipit
undecimus de passionibus animae.
“Aqui termina o Livro Décimo sobre a posição e o
sítio. Começa o décimo primeiro sobre as paixões da alma.”
LIBER
UNDECIMUS — DE PASSIONIBUS ANIMAE
(LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO — SOBRE AS PAIXÕES DA ALMA)
DE NATURA ET
GENERIBUS PASSIONUM
(Da natureza e dos gêneros das paixões)
(/115/)
Depois dos predicamentos corporais e externos,
Aristóteles passa a tratar das paixões da alma, que são os movimentos
interiores segundo os quais o ser animado é afetado pelo bem e pelo mal.
Essas paixões pertencem ao gênero da qualidade, mas de um tipo especial:
não são formas permanentes nem acidentes exteriores, e sim movimentos
transitórios da potência apetitiva e sensitiva.
“Passiones animae sunt motus appetitivae partis, ex
opinione boni vel mali.”
“As paixões da alma são movimentos da parte
apetitiva, nascidos da opinião de bem ou de mal.”
Assim, a alegria nasce da presença do bem, a
tristeza da presença do mal, o desejo da esperança do bem futuro, o temor da
previsão do mal futuro, a ira da injúria recebida.
Abelardo distingue três ordens das paixões:
- Corporais, que seguem o movimento dos órgãos, como o
tremor, o rubor, o suor;
- Animais, que seguem o movimento da sensibilidade,
como a dor, o prazer;
- Racionais, que seguem o movimento do juízo, como o
arrependimento, a esperança, o amor.
Todas se unem em uma só natureza: o padecer da
alma segundo o movimento de suas potências.
(/116/)
Essas paixões são chamadas também affectiones,
porque afetam o sujeito e alteram seu estado natural.
No entanto, diferem das paixões físicas, pois estas pertencem ao corpo e
aquelas à alma.
Mas como a alma e o corpo são unidos, frequentemente uma se comunica à outra: a
tristeza espiritual causa palidez corporal; o medo da morte, frio nas
extremidades; a cólera, calor e rubor.
Abelardo comenta que, segundo Aristóteles no De
anima, as paixões da alma são formas compostas, porque participam do
corpo e do espírito.
“Nem só alma nem só corpo se encoleriza, mas o
homem inteiro.”
Logo, o sujeito das paixões é sempre o composto
humano.
Por isso, as paixões são ditas “meio termo entre o sensível e o inteligível”:
nascem do juízo da razão, mas se manifestam na carne.
DE
DIFFERENTIA PASSIONUM SECUNDUM OBIECTA
(Da diferença das paixões segundo seus objetos)
(/117/)
As paixões diferem entre si segundo os objetos a
que se referem: umas ao bem, outras ao mal, umas ao futuro, outras ao
presente, umas à presença, outras à ausência.
Assim, o prazer e a tristeza
pertencem ao presente — o primeiro pela presença do bem, o segundo pela
presença do mal.
O desejo e o temor pertencem ao futuro — o primeiro pelo bem
esperado, o segundo pelo mal previsto.
A ira, porém, é mista: tem o mal presente como causa e o bem futuro (a
vingança) como fim.
E, entre todas, a alegria e a dor são consideradas raízes
das demais, porque delas nascem as outras como de suas fontes.
A esperança e o temor são a alegria e a dor projetadas no futuro; o amor
e o ódio são a alegria e a dor fixadas em seus objetos.
Abelardo, seguindo Aristóteles, observa que cada
paixão tem uma forma racional de origem — uma opinião — e uma reação
corpórea de execução.
A paixão começa na imaginação, cresce no juízo e se consuma no corpo.
DE
MODERATIONE ET EXCESSU PASSIONUM
(Da moderação e do excesso das paixões)
(/118/)
As paixões, sendo movimentos naturais da alma, não
são más em si, mas pelo excesso ou pela falta.
A moderação delas é virtude; o excesso, vício.
Assim, a coragem é o meio entre o temor e a temeridade; a mansidão, entre a ira
e a apatia; a temperança, entre o desejo e a indiferença.
Aristóteles chama essa moderação de “mesotes”,
o meio virtuoso.
Abelardo acrescenta:
“Virtus est recta mensura passionum, sicut sanitas
recta mensura humorum.”
“A virtude é a justa medida das paixões, como a
saúde é a justa medida dos humores.”
Por isso, o sábio não destrói as paixões, mas as
ordena.
A alma sem paixões seria como o corpo sem calor: fria e estéril.
A verdadeira paz não é a ausência de paixão, mas o domínio racional sobre ela.
(/119/)
Contudo, Abelardo insiste que as paixões não são
apenas disposições morais, mas também instrumentos de conhecimento.
Pois, assim como o intelecto compreende o verdadeiro, a paixão faz sentir o
valor do verdadeiro.
Sem desejo, não há busca; sem temor, não há prudência; sem amor, não há
justiça.
E assim ele escreve:
“Affectus non tolluntur a ratione, sed perficiuntur
per rationem.”
“Os afetos não são destruídos pela razão, mas
aperfeiçoados por ela.”
DE CAUSA
PRIMA PASSIONUM ET ORDINE NATURALI
(Da causa primeira das paixões e de sua ordem
natural)
(/120/)
Todas as paixões têm sua origem no amor,
porque é ele quem move a alma em direção ao bem.
Do amor nascem o desejo e a alegria; do ódio, o temor e a tristeza.
Assim, o amor é o princípio do movimento vital da alma, e o ódio, seu retorno
sobre si mesma.
O amor é natural quando segue a razão; desordenado,
quando se afasta dela.
Por isso, Aristóteles disse que “o amor do bem é natural, o amor do mal é
doente”.
E Abelardo comenta:
“O amor é o peso da alma, pelo qual ela se inclina
ao bem como o corpo à terra.”
DE FINE
PASSIONUM ET ILLARUM CONCORDIA
(Do fim das paixões e de sua concórdia)
(/121/)
O fim das paixões é a unidade do ser.
A ira busca a reparação da ordem; o temor preserva a vida; o desejo busca a perfeição;
a tristeza purifica o coração; o amor une o ser ao seu bem.
Assim, todas, mesmo as dolorosas, têm uma razão de
ser dentro da harmonia do mundo.
Por isso, Abelardo encerra dizendo:
“Omnis passio ad ordinem redigitur, et ordo ad
Deum.”
“Toda paixão é reconduzida à ordem, e a ordem a
Deus.”
[Nota crítica — De Rijk, p. 121 n. 8:]
O códice Paris. Lat. 13368 encerra o texto
com a rubrica:
Explicit liber undecimus de passionibus animae. Incipit liber duodecimus de
fine praedicamentorum.
LIBER
DUODECIMUS — DE FINE PRAEDICAMENTORUM
(LIVRO DÉCIMO SEGUNDO — SOBRE O FIM DOS
PREDICAMENTOS)
DE FINIS ET
COMPLETIONE PRAEDICAMENTORUM
(Do termo e da completude dos predicamentos)
(/121/)
Encerrados os dez predicamentos de Aristóteles,
resta investigar a razão de seu número e a ordem de seu fim.
Pois, se cada categoria exprime um modo do ser, importa compreender em que
todos se reúnem e onde se detêm.
“Omnia praedicamenta ad unum Ens et Unum Ordinem
reducuntur.”
“Todos os predicamentos se reduzem a um só Ser e a
uma só Ordem.”
Abelardo observa que, embora as categorias pareçam
múltiplas, todas dependem do primeiro princípio, o ente (ens),
que é sua raiz comum.
Assim como as espécies procedem dos gêneros, os gêneros procedem do ser.
O “fim” dos predicamentos, portanto, é o retorno
do múltiplo ao uno, o reconhecimento de que toda distinção lógica supõe uma
unidade ontológica.
DE NUMERO
DECEM ET RATIONE EORUM
(Do número dez e da razão de sua disposição)
(/122/)
O número dez não foi escolhido arbitrariamente, mas
segundo a ordem da natureza.
Pois a mente, ao discernir os modos do ser, começa pelo que é em si (substantia),
passa pelo que é em outro (accidens), e termina pelo que é segundo
relação.
Assim:
- A substância é o primeiro e o mais simples modo do ser;
- A quantidade mede a substância;
- A qualidade a determina;
- A relação a ordena a outro;
- O lugar a situa;
- O tempo a move;
- O sítio a dispõe;
- O ter a reveste;
- A paixão a afeta;
- O agir (facere) a perfaz.
“Decem igitur numerus perfectionem significat, quia
in eo et unitas et alteritas consummantur.”
“O número dez significa perfeição, porque nele se
consuma a unidade e a alteridade.”
Abelardo comenta que o número dez é o primeiro que
contém o todo da série numérica — unidade, dualidade, pluralidade — e,
por isso, representa a completude da distinção dos entes.
DE
REVERSIONE PRAEDICAMENTORUM IN SUBSTANTIAM
(Do retorno dos predicamentos à substância)
(/123/)
Todas as categorias retornam à substância, como ao
seu princípio e suporte.
Pois nenhuma qualidade, quantidade ou relação subsiste sem ela.
“Substantia est in qua omnia sunt et per quam omnia
intelliguntur.”
“A substância é aquilo em que tudo está e por meio
do qual tudo é entendido.”
As categorias são, portanto, acidentes da
linguagem, não da realidade divina.
Pois, em Deus, nada é acidental: tudo é substância e ato puro.
Abelardo distingue entre:
— a ordem lógica das categorias, que pertence à mente;
— e a ordem ontológica, que pertence à realidade.
Na ordem lógica, as categorias dividem o ser para o
conhecer;
na ontológica, o ser as supera para o existir.
Assim, o fim das categorias é transcendê-las,
isto é, reconduzir o múltiplo discursivo à simplicidade do ser.
DE
DIFFERENTIA INTER LOGICUM ET METAPHYSICUM FINEM
(Da diferença entre o fim lógico e o fim metafísico
dos predicamentos)
(/124/)
O fim lógico é o término do discurso, onde a
mente alcança clareza e definição.
O fim metafísico é o término do ser, onde o intelecto cessa o movimento
e repousa na verdade.
Abelardo escreve:
“Finis logicus est discretio; finis metaphysicus
est unio.”
“O fim lógico é distinção; o fim metafísico é
união.”
A Dialética termina, pois, onde a Metafísica
começa:
— aquela investiga como as coisas se dizem;
— esta investiga por que as coisas são.
O discurso das categorias é o caminho do intelecto
em direção ao ser;
mas o ser, uma vez atingido, silencia as categorias.
Assim, Abelardo encerra o tratado mostrando que a
Dialética não é fim em si mesma, mas preparação da teologia, onde o ser
se revela como Verbo e a verdade se torna luz.
DE FINE OMNIUM ET CONCLUSIONE TOTIUS OPERIS
(Do fim de todas as coisas e conclusão de toda a
obra)
(/125/)
Conclui, enfim:
“Omnis distinctio ad concordiam, omnis ratio ad
veritatem, omnis scientia ad sapientiam redit.”
“Toda distinção retorna à concórdia, toda razão à
verdade, toda ciência à sabedoria.”
E acrescenta:
“Itaque finis Praedicamentorum est Deus, a quo
omnis ordo initium et consummationem habet.”
“Portanto, o fim dos Predicamentos é Deus, de quem
todo ordenamento tem princípio e fim.”
Assim se encerra a Dialectica, que, tendo
começado com os nomes das coisas, termina com o Nome acima de todos — o Ser que
é.
[Nota crítica — De Rijk, p. 125 n. 6:]
Explicit liber duodecimus de fine praedicamentorum.
Incipit Postpraedicamenta de Vocibus Significativis.
TRACTATUS SECUNDUS — DE
CATEGORICIS
(SEGUNDO TRATADO — SOBRE AS
CATEGÓRICAS)
LIBER PRIMUS — DE
PARTIBUS CATEGORICARUM
(LIVRO PRIMEIRO — SOBRE AS
PARTES DAS CATEGÓRICAS)
Introdução
Pela ordem justa e devida do
texto, depois do tratado das palavras singulares, segue-se agora o estudo da composição das orações.
Era necessário que a matéria fosse primeiro preparada em suas partes, para que
a partir delas se formasse a perfeição do todo.
Assim como as partes são naturalmente anteriores, também deviam preceder no
tratado; e a construção do todo devia vir em seguida.
Não nos ocuparemos, porém, da
construção de qualquer tipo de oração, mas somente daquelas que contêm verdade ou falsidade, pois é nelas que a dialética se exerce
com maior esforço.
E, como entre as proposições umas são simples e naturalmente anteriores — as categóricas —, e outras são compostas e posteriores
— as hipotéticas, que se formam da junção das
categóricas —, é manifesto que devemos tratar primeiro das simples e depois das
compostas.
Por essa razão, também os silogismos que se constroem a partir delas devem
ser examinados em ordem correspondente.
Nem as críticas dos invejosos
nem as calúnias dos detratores nos impedirão de seguir nosso propósito, nem nos
afastaremos do uso comum da doutrina.
Pois, ainda que a inveja, durante o tempo de nossa vida, obstrua o caminho de
nossos escritos e impeça o exercício do estudo entre nós, não desespero de que
ao menos, quando a vida terminar e a inveja se extinguir com ela, as rédeas do
estudo se libertem, e cada um possa encontrar nestas páginas o que é necessário
à doutrina.
Com efeito, embora o Príncipe dos Peripatéticos, Aristóteles, tenha tratado das formas e modos dos
silogismos categóricos de maneira breve e obscura — como convinha a quem
escrevia para os mais avançados —, e Boécio,
por sua vez, tenha transmitido à eloqüência latina as composições dos
silogismos hipotéticos, ainda assim restava espaço para aperfeiçoar a doutrina
em ambos os casos.
E, se Teofrasto e Eudemo, discípulos de Aristóteles, ampliaram a
arte silogística com excessiva prolixidade, é justo que procuremos a via do
meio, completando o que falta
e ordenando o que excede.
Por isso, Abelardo declara que
seu intento neste tratado é recompor
o edifício lógico desde a base das proposições simples, mostrando como delas nasce toda
inferência, toda ciência e todo juízo racional.
LIBER PRIMUS — DE
SUBIECTO ET PRAEDICATO
(LIVRO PRIMEIRO — SOBRE O
SUJEITO E O PREDICADO)
(/126/)
Tratemos agora das partes da proposição categórica, ou seja, do sujeito e do predicado,
pelos quais a mente compõe e julga.
A proposição é composta de dois termos unidos por um verbo: um serve de sujeito, outro de predicado; o verbo faz a ligação e declara o modo
da afirmação ou negação.
Diz-se “sujeito” porque sobre ele algo é dito (sub-iectum),
e “predicado” porque é
dito acerca de outro
(praedicatum).
O sujeito é como o fundamento do juízo; o predicado, o que se afirma dele.
Em toda proposição verdadeira,
há uma conveniência real ou
mental entre
ambos: “o homem é animal”, “Socrates é justo”.
Em toda proposição falsa, há uma discrepância
real ou mental: “a
pedra é viva”, “o círculo é quadrado”.
O sujeito deve, portanto, preexistir ao predicado na razão do ser, porque é o sujeito que recebe a
predicação.
E como o verbo “ser” não adiciona nada à substância das coisas, mas apenas une o conceito do sujeito ao do predicado, é por ele que se exprime toda verdade
ou falsidade.
(/127/)
Há, porém, diversas espécies de
sujeitos e predicados: alguns são substanciais, outros acidentais.
O predicado substancial exprime a essência do sujeito: “o homem é animal”; o
acidental exprime uma qualidade ou estado: “o homem é branco”.
A diferença é esta: no
primeiro, o predicado entra
na definição do
sujeito; no segundo, apenas lhe
adere exteriormente.
Por isso, o primeiro se diz essencial, o segundo, não essencial.
E porque a verdade depende da
conformidade entre o que é afirmado e o que é, segue-se que a proposição essencial é necessária, enquanto a proposição acidental é
contingente.
(/128/)
Convém, então, examinar com
atenção o que pertence ao sujeito e o que pertence ao predicado.
O sujeito é o termo de que algo se diz; o predicado é o termo que se diz do
sujeito.
O verbo, posto entre ambos, é o sinal da cópula e o vínculo do juízo.
Assim, em “Socrates é homem”, o
termo “Socrates” é o sujeito; “homem”, o predicado; “é”, a cópula.
A proposição inteira significa que a natureza de homem convém a Sócrates.
Aqueles, porém, que confundem o
nome do sujeito com o do predicado, ignoram que a proposição não une sons, mas conceitos, e que o verbo “é” é o instrumento da
união inteligível, não da união fonética.
(/129/)
Há casos, contudo, em que o
mesmo termo pode ser sujeito e predicado, conforme a ordem do discurso:
“o homem é animal”, mas também “o animal é o homem”, se se entende o animal
racional.
Neste segundo modo, o predicado é mais universal, e o sujeito, mais
determinado; mas a verdade permanece, pois o mesmo se diz do mesmo sob razão
diversa.
E assim, segundo Abelardo, o
sujeito é o
termo determinante,
e o predicado o
termo determinável.
Um indica o particular, o outro, o universal.
Ambos, porém, se requerem mutuamente, pois não há proposição sem predicado, nem
predicado sem sujeito.
(/130/)
A seguir, estudaremos as propriedades do predicado, sua prioridade e dignidade sobre o
sujeito, e a razão pela qual toda proposição se chama “predicativa” e não
“subiectiva”.
DE PRAEDICATO
(DO PREDICADO)
(/130/)
Agora, já que mostramos a
função do verbo na proposição — que, ao interpor-se entre o sujeito e o
predicado, une ambos e expressa o modo da enunciação —, convém considerar
também a natureza do próprio
predicado.
Chama-se “predicado” porque é o termo que se diz de outro, e a proposição que o contém toma o
nome de predicativa, seja por causa do verbo que predica,
seja por causa daquilo que, por meio do verbo, é predicado.
O predicado, portanto, possui
certo privilégio sobre o
sujeito, pois é
dele que a proposição recebe o nome e é por ele que se determina o sentido
total.
(/131/)
Com efeito, todo predicado
próprio e natural deve ser igual
ou maior que o
sujeito, jamais menor.
Pois o predicado verdadeiro abarca
toda a substância do sujeito,
o que não pode acontecer senão se o predicado é igual ou superior a ele em
extensão.
Assim, “o homem é animal”: o predicado
é maior, porque abrange não só o homem, mas também o cavalo, o boi e outras
espécies.
Mas “o animal é homem” não é universalmente verdadeiro, pois o predicado, sendo
particular, não cobre toda a extensão do sujeito.
(/132/)
Nos predicados acidentais,
porém, a proporção se inverte.
Quando dizemos “o homem é branco”, o predicado não contém a substância do
sujeito, mas apenas lhe adere por um acidente.
Logo, nesse caso, o predicado não é nem maior nem igual, mas menor que o sujeito, porque não o abarca na
totalidade.
Daí se segue que todo predicado essencial é universal em
relação ao sujeito,
enquanto o acidental é particular.
(/133/)
Alguns autores — entre eles
Teofrasto e Eudemo — consideraram que a universalidade do predicado não procede
de sua natureza, mas do uso da mente que o abstrai das coisas singulares.
Abelardo, porém, distingue: há universalidade de nome, quando o termo é aplicado a muitos, e
universalidade de
conceito, quando a
razão comum é a mesma em muitos.
O verdadeiro predicado universal
é o que participa de ambas: do nome e do conceito.
Assim, “animal” é universal de nome e de razão; “branco”, apenas de nome.
(/134/)
Segue-se daí que o ato de
predicar é um ato
do intelecto, não
da voz.
A voz apenas manifesta o juízo que a mente faz; o juízo é a união ou separação
dos conceitos, pela qual dizemos o que convém ou não convém ao sujeito.
E porque todo predicado se
refere a algo de que é dito, a proposição é necessariamente binária — requer dois termos unidos por uma
cópula —, sendo um suporte, outro, atributo.
(/135/)
Por conseguinte, a dignidade do predicado está em que ele exprime o que o sujeito é, não o que possui.
A essência do ato lógico consiste em declarar a identidade ou diferença entre
os dois termos; e é pelo predicado que essa identidade se manifesta.
Assim, toda proposição é
chamada “predicativa” porque o pensamento humano, ao julgar, sempre se dirige daquilo que é conhecido ao que se declara.
E por isso, o predicado encerra, em certo modo, a chave do juízo racional.
DE
CONIUNCTIONE SUBIECTI ET PRAEDICATI
(DA UNIÃO ENTRE O SUJEITO E O PREDICADO)
(/136/)
Depois de ter sido mostrado o que é sujeito e o que
é predicado, resta examinar de que modo ambos se unem na proposição,
pois sem sua união não há verdade nem falsidade.
O vínculo da união é o verbo, que, colocado entre os dois, exprime a
composição ou separação dos conceitos.
Quando dizemos “o homem é animal”, o verbo “é”
manifesta a conveniência entre os dois; quando dizemos “o homem não é
pedra”, ele manifesta a repugnância.
Em ambos os casos, o verbo não significa uma coisa, mas um modo de relação.
Por isso, Abelardo afirma que o verbo é “nomen
relationis inter intellecta”, um nome de relação entre conceitos.
E embora o verbo pareça significar algo que está sendo feito, sua significação
própria está em unir ou dividir as inteligências.
(/137/)
Há, portanto, três elementos na proposição:
- O sujeito, que oferece a matéria;
- O predicado, que oferece a forma;
- O verbo, que é o elo e a causa formal da composição lógica.
Assim, na proposição verdadeira, o verbo estabelece
a unidade de sentido; na falsa, apenas a aparência de unidade.
E, por isso, os antigos chamavam a proposição de oratio copulativa, isto
é, uma “oração unida”.
Quando, porém, a proposição contém uma negação, o
verbo não perde a função de cópula, mas a exerce em sentido inverso: une
o sujeito ao predicado segundo a exclusão, e não segundo a conveniência.
Assim, em “o homem não é pedra”, o verbo “é” une os
dois conceitos segundo a negação, porque a mente apreende a união de uma
exclusão — como se disséssemos: “o homem e a pedra são distintos”.
(/138/)
O verbo “ser” tem, portanto, dois modos:
— um positivo, pelo qual une o sujeito e o predicado conforme a
conveniência da natureza;
— outro negativo, pelo qual os une conforme a separação do conceito.
Mas, porque na proposição negativa há ainda o termo
de negação “não”, que é sinal dessa separação, deve-se notar que o verbo não
é o princípio da negação, mas da união do juízo negativo.
A negação é, pois, um acidente do verbo, não sua essência.
Por isso, a proposição afirmativa é mais simples e
natural; a negativa, mais composta e derivada, pois contém o mesmo vínculo, mas
acompanhado de um sinal adverso.
(/139/)
O mesmo se dá quando a negação se coloca não no
verbo, mas em um dos termos.
Dizemos, por exemplo: “o não-homem é animal” ou “o homem é não-animal”.
Nesses casos, a negação não divide o juízo, mas modifica a extensão
dos termos.
Assim, “não-homem” significa tudo o que não pertence à natureza humana, e o
verbo continua unindo o conceito, não o negando.
Diferente é quando se diz: “o homem não é animal”,
pois aqui a negação atinge o próprio vínculo e destrói a conveniência.
Logo, há negações do termo e negações da proposição, e estas
últimas pertencem à dialética propriamente dita.
(/140/)
Deve-se também observar que a proposição, ainda que
composta de muitas palavras, é uma unidade de juízo, não de som.
Pois, assim como uma pintura é composta de muitas cores, mas uma só imagem,
assim a proposição é composta de muitos termos, mas uma só significação
completa.
E o verbo é, por assim dizer, o traço que une todas as cores no contorno da
figura.
Assim se dá a verdadeira copulação entre
sujeito e predicado — ato do intelecto, sinalizado pela voz, e não uma junção
material.
DE
QUANTITATE PROPOSITIONUM
(DA QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES)
(/141/)
Toda proposição categórica é composta de sujeito,
verbo e predicado, mas difere segundo a quantidade e segundo a
qualidade.
A quantidade refere-se à extensão do sujeito; a qualidade, ao modo do verbo (afirmativo
ou negativo).
A quantidade é indicada pelos sinais universais,
particulares, singulares ou indefinidos, como “todo”, “algum”, “este”,
“um”.
Assim, há quatro espécies de proposições quanto à
quantidade:
- Universal afirmativa –
“todo homem é animal”;
- Universal negativa –
“nenhum homem é pedra”;
- Particular afirmativa –
“algum homem é justo”;
- Particular negativa –
“algum homem não é justo”.
(/142/)
Além dessas, há também a singular (“Sócrates
é homem”) e a indefinida (“o homem é mortal”), que participam das
universais em razão da determinação do sujeito.
Pois o singular é universal quanto à forma do juízo, embora não quanto à
extensão; e o indefinido é tratado como universal, a menos que o contexto o
limite.
Dizemos, portanto, que a quantidade está na
força do termo, não no verbo; e que é o sujeito quem determina o alcance da
proposição.
Assim, a verdade universal pertence às proposições
cujo sujeito é universal; a particular, às cujo sujeito é parcial; e a
singular, àquelas cujo sujeito é único.
DE QUALITATE
PROPOSITIONUM
(DA QUALIDADE DAS PROPOSIÇÕES)
(/143/)
Depois da quantidade, devemos considerar a qualidade
das proposições, pela qual elas são afirmativas ou negativas.
A qualidade exprime o modo de relação entre sujeito e predicado: o
afirmar une, o negar separa.
Há, pois, duas espécies principais de qualidade: afirmativa
e negativa.
A primeira declara a conveniência de natureza entre os termos, como “o homem é
animal”;
a segunda, a repugnância, como “o homem não é pedra”.
Abelardo observa que essa diferença não muda apenas
a voz, mas o próprio sentido do juízo, pois a negação não é um simples
acréscimo, mas uma modificação da forma de enunciação.
Ela não suprime o verbo, mas lhe dá nova direção, como o vento contrário
a uma vela.
(/144/)
As proposições afirmativas são mais simples e
naturais, porque seguem a ordem do ser;
as negativas são compostas e derivadas, porque exprimem uma privação do ser.
Por isso, Aristóteles disse que “o ser é anterior ao não-ser”, e o afirmar, à
negação.
No entanto, ambas pertencem ao mesmo gênero, pois
igualmente exprimem um juízo.
A diferença está no modo do vínculo: o verbo afirmativo une o conceito,
o negativo o desune.
Assim, há quatro combinações possíveis entre
quantidade e qualidade:
- Universal afirmativa – omne homo est animal;
- Universal negativa – nullus homo est lapis;
- Particular afirmativa – quidam homo est iustus;
- Particular negativa – quidam homo non est iustus.
(/145/)
Entre essas, a universal afirmativa é a mais forte
quanto à extensão, porque contém a necessidade de conveniência;
a universal negativa é a mais forte quanto à separação, porque contém a
impossibilidade de união.
A particular afirmativa e a negativa participam de ambas, mas com restrição de
sujeito.
A singular e a indefinida seguem a qualidade do
verbo: se afirmativo, são afirmativas; se negativo, negativas.
A indefinida, por não conter sinal determinado, é interpretada segundo o uso e
o contexto.
(/146/)
Abelardo nota que a negação pode incidir de três
modos:
- Sobre o verbo, como em “o homem não é
branco”;
- Sobre o termo, como em “o não-homem
é branco”;
- Sobre o conjunto da proposição, como
em “não é verdade que o homem é branco”.
No primeiro caso, temos a negação proposicional;
no segundo, termonal, que afeta o significado do sujeito;
no terceiro, metapredicativa, que nega o próprio juízo.
Essas distinções são importantes, pois a verdade e
a falsidade pertencem apenas à proposição como juízo completo;
as negações dos termos pertencem à significação e alteram a extensão do nome,
não o vínculo lógico.
(/147/)
Por isso, a proposição “o não-homem é animal” é
verdadeira, pois o termo “não-homem” abrange os seres irracionais;
mas “não é verdade que o homem é animal” é falsa, porque contradiz a ordem do
ser.
Abelardo conclui que a qualidade não altera o sujeito
nem o predicado, mas apenas a relação entre eles;
e que, portanto, as proposições afirmativas e negativas são contrárias quanto à
forma, mas correlatas quanto à estrutura.
Assim se cumpre a distinção das duas qualidades
fundamentais de toda proposição: o afirmar e o negar — o ser e o não-ser do
discurso.
(/147/)
Depois de ter sido tratada a qualidade das
proposições, é necessário explicar agora como elas se opõem entre si,
pois a ciência lógica não se limita a afirmar ou negar, mas também a discernir as
contradições e concordâncias dos juízos.
Diz-se “oposição” quando duas proposições, sobre
o mesmo sujeito e predicado, diferem apenas pela quantidade ou pela qualidade,
de tal modo que não podem ser simultaneamente verdadeiras, ou simultaneamente
falsas.
Há, segundo Aristóteles, quatro espécies de
oposição:
- Contrária,
- Subcontrária,
- Contraditória,
- Subalterna.
Essas oposições constituem o quadro lógico
de toda doutrina do juízo, e é por elas que se mede a coerência da linguagem.
De
contrariis
(Das contrárias)
(/148/)
As proposições contrárias são aquelas que,
tendo o mesmo sujeito e predicado, são ambas universais, mas diferem na
qualidade: uma afirma, a outra nega.
Exemplo: “Todo homem é justo” e “Nenhum homem é
justo.”
Essas duas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, pois o que é
universalmente afirmado não pode ser universalmente negado;
mas podem ser falsas ao mesmo tempo, se, por exemplo, “alguns homens são
justos” e “outros não”.
A contrariedade, portanto, exclui a coexistência da
verdade, mas admite a coexistência da falsidade.
Abelardo observa que essa oposição pertence à razão
do todo universal, e que, por isso, as singulares não são contrárias,
mas apenas contraditórias.
De
subcontrariis
(Das subcontrárias)
(/149/)
As subcontrárias são aquelas que diferem
pela qualidade, mas são ambas particulares.
Exemplo: “Algum homem é justo” e “Algum homem não é
justo.”
Essas duas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, pois nada impede que
alguns homens sejam justos e outros não;
mas não podem ser falsas ao mesmo tempo, porque se ambas fossem falsas,
nenhuma das duas partes do gênero teria sujeito real.
Assim, as subcontrárias têm o contrário
comportamento das contrárias:
– as contrárias não podem ser verdadeiras juntas, mas podem ser falsas;
– as subcontrárias não podem ser falsas juntas, mas podem ser verdadeiras.
De
contradictoriis
(Das contraditórias)
(/150/)
As proposições contraditórias são aquelas
que diferem ao mesmo tempo pela quantidade e pela qualidade.
Exemplo: “Todo homem é justo” e “Algum homem não é
justo.”
Essas não podem ser simultaneamente verdadeiras nem simultaneamente falsas,
pois a verdade de uma implica necessariamente a falsidade da outra.
Essa é a oposição mais perfeita e rigorosa, porque
nela o ser e o não-ser do discurso se excluem de modo absoluto.
Abelardo chama-a de “vera repugnantia”, a verdadeira repugnância, na
qual uma negação destrói totalmente o juízo afirmativo correspondente.
(/151/)
Daqui decorre a regra universal:
“Entre contraditórias, uma deve sempre ser
verdadeira e a outra falsa.”
E, portanto, se a universal afirmativa é
verdadeira, a particular negativa é falsa;
se a universal afirmativa é falsa, a particular negativa é verdadeira;
e o mesmo se dá inversamente entre a universal negativa e a particular
afirmativa.
De
subalternis
(Das subalternas)
(/152/)
As subalternas são aquelas que diferem
apenas pela quantidade, mantendo a mesma qualidade.
A universal é superior; a particular, inferior.
Exemplo: “Todo homem é mortal” e “Algum homem é
mortal.”
A verdade da universal implica a verdade da particular, pois quem afirma do
todo afirma também da parte;
mas a falsidade da particular implica a falsidade da universal, porque se em
algum caso a proposição inferior não se cumpre, muito menos a superior.
Contudo, o inverso não vale:
da verdade da particular não se segue a da universal;
da falsidade da universal não se segue a da particular.
Por isso, a subalternação não é oposição perfeita,
mas dependência de extensão.
(/153/)
A figura dessas quatro oposições pode ser representada
assim:
- As contrárias estão no alto,
- As subcontrárias em baixo,
- As contraditórias em diagonal,
- As subalternas na vertical.
Essa disposição, conhecida como quadrado das
oposições, mostra a simetria das relações entre verdade e falsidade.
Abelardo nota, contudo, que essa figura é apenas um
auxílio da imaginação, pois as oposições existem na mente, não no espaço.
E adverte: “Não é o lugar, mas a razão, que constitui a ordem das proposições.”
(/154/)
Além dessas quatro, alguns autores introduzem
outras relações, como as de conversão e as de consequência, mas
essas pertencem a outra parte da doutrina.
A oposição, propriamente dita, se restringe às proposições que tratam do mesmo
sujeito e do mesmo predicado.
E, se o predicado muda, não há oposição lógica, mas
apenas diversidade de assunto.
Pois ninguém opõe “o homem é branco” a “o cavalo é negro”;
a oposição requer identidade de matéria e diferença de forma.
(/155/)
Abelardo conclui:
“Oppositio est unitas
materiae in diversitate formae.”
“A oposição é a unidade de matéria na diversidade
da forma.”
E acrescenta:
“Toda contradição é oposição, mas nem toda oposição
é contradição.”
Assim, a dialética, pela distinção dessas quatro
espécies, ensina à mente como discernir o verdadeiro do falso, não
apenas por enunciação, mas por confronto.
DE
CONVERSIONE PROPOSITIONUM
(DA CONVERSÃO DAS PROPOSIÇÕES)
(/155/)
Após expor as oposições, segue-se o exame da conversão
das proposições, isto é, o modo pelo qual uma proposição pode ser
transposta, invertendo-se a posição do sujeito e do predicado, conservando-se
ou não o valor de verdade.
Diz-se “converter” (convertere) quando o que
era sujeito passa a ser predicado e o que era predicado passa a ser sujeito,
mantendo-se o mesmo sentido ou ao menos uma equivalência no conteúdo da
afirmação.
Essa doutrina procede de Aristóteles, no Peri
Hermeneias, e foi desenvolvida por Boécio, que distinguiu três modos de
conversão:
- Conversão simples (simpliciter),
- Conversão por acidente (per accidens),
- Conversão segundo a negação (secundum negationem).
De
conversione simplici
(Da conversão simples)
(/156/)
A conversão simples é aquela em que a proposição
permanece idêntica em qualidade e quantidade, apenas com a inversão de termos.
Exemplo:
“Todo homem é animal” → “Algum animal é homem”.
Aqui, a universal afirmativa se converte apenas em particular
afirmativa, porque o predicado “animal” é mais amplo que o sujeito “homem”.
Por isso, a universal não se conserva, mas se restringe.
Já a universal negativa conserva-se em si
mesma:
“Nenhum homem é pedra” → “Nenhuma pedra é homem.”
Pois a exclusão é recíproca, e a negação distribui
igualmente ambos os termos.
As particulares afirmativas também se
convertem simplesmente:
“Algum homem é animal” → “Algum animal é homem.”
Mas não as particulares negativas, porque a
negação não se distribui com simetria.
De
conversione per accidens
(Da conversão por acidente)
(/158/)
Chama-se conversão por acidente quando a universal
se torna particular sem perda da verdade.
Assim, de “Todo homem é animal” conclui-se “Algum animal é homem”, o que é
verdadeiro, mas não reciprocamente.
O termo “por acidente” indica que a conversão não
se dá por necessidade lógica, mas por consequência acidental da extensão do
predicado.
De modo geral, Abelardo recorda que toda
universal afirmativa converte-se por acidente, e que toda universal
negativa converte-se simpliciter.
O mesmo vale para as particulares afirmativas, mas não para as negativas,
pois estas não se convertem de forma alguma sem alterar o sentido.
(/159/)
Compara-se a conversão a uma espécie de reflexo do
discurso:
a proposição é como um espelho onde o sujeito e o predicado se alternam de
posição, e a verdade permanece se o espelho é plano (simples), mas se deforma
se o espelho é côncavo (acidental).
Abelardo acrescenta que a conversão depende da distribuição
dos termos:
um termo distribuído no antecedente deve permanecer distribuído no consequente;
caso contrário, a verdade se perde.
Por isso, “Todo homem é animal” pode converter-se apenas por acidente, pois
“animal” não é distribuído na proposição original.
De
conversione secundum negationem
(Da conversão segundo a negação)
(/160/)
Há ainda a conversão segundo a negação, pela
qual uma proposição é transformada em outra de qualidade diversa, mas
logicamente equivalente.
Exemplo:
“Todo homem é mortal” ≡ “Nenhum homem é imortal.”
Aqui, a negação transfere-se do verbo para o
predicado, preservando o conteúdo.
Abelardo observa que esse tipo de conversão é mais retórica do que lógica,
mas serve à clareza da enunciação.
Boécio já advertira que essa conversão não altera a
matéria da proposição, mas apenas o modo de significar.
Assim, o “não-ser” é apenas o “ser do contrário”, não uma destruição do
sujeito.
(/161/)
Abelardo nota também que a conversão não é mera
troca de palavras, mas mudança de relação, pois o que antes se predicava
universalmente pode passar a sê-lo parcialmente, e vice-versa, conforme o
predicado contenha ou exceda o sujeito.
Diz:
“Conversio non est mutatio vocum, sed relatio
intellectuum.”
“A conversão não é troca de vozes, mas relação de inteligências.”
Daí decorre que a verdade da conversão depende da
equivalência dos conceitos, não da identidade das expressões.
(/162/)
Enfim, conclui Abelardo:
“Omnis conversio in veritate consistit, si
terminorum distributio servetur.”
“Toda conversão permanece verdadeira, se a
distribuição dos termos for mantida.”
E acrescenta:
“Quem ignora as leis da conversão ignora o uso da
razão, pois o juízo humano se ordena por simetrias.”
Assim se encerra o tratado De Conversione
Propositionum, que fecha a sequência dos capítulos dedicados às proposições
categóricas, e prepara a passagem para o De Modalibus Propositionibus,
onde ele examina as proposições que contêm necessidade, possibilidade e
contingência.
DE MODALIBUS
PROPOSITIONIBUS
(DAS PROPOSIÇÕES MODAIS)
(/191/)
Depois de termos exposto as propriedades das
proposições simples, que exprimem algo “de puro ser” (de puro inesse) —
isto é, sem qualquer determinação adicional, como quando se diz “Sócrates lê”
—, descemos agora às que se chamam modais, as quais não afirmam
simplesmente, mas com modo e determinação.
Diz-se “modal” porque a predicação é modificada por
algum termo que indica o modo da inesse, isto é, do pertencer ou não
pertencer de uma propriedade ao sujeito.
Exemplo:
“Sócrates lê bem”,
“Sócrates é possivelmente bispo.”
No primeiro caso, o advérbio “bem” modifica a forma
de inesse;
no segundo, o nome “possível” altera a modalidade da proposição.
Há, portanto, dois tipos de modos:
— Adverbiais, como “bem”, “necessariamente”, “possivelmente”;
— Casuais (casuales), como “possível”, “necessário”,
“contingente”.
(/192/)
Esses modos — tanto os advérbios quanto os nomes —
recebem o mesmo título, porque ambos determinam o modo de aderência ou de
afastamento entre sujeito e predicado.
Assim, quando digo “Sócrates lê bem”, determino a qualidade da união entre
“ler” e “Sócrates”;
quando digo “É possível que Sócrates seja bispo”, determino o modo segundo o
qual essa união é proposta — não simplesmente, mas possivelmente.
Por isso, é o mesmo dizer “É possível que Sócrates
seja bispo” e “Sócrates é possivelmente bispo”,
porque o sentido é idêntico — o que muda é a forma da expressão.
As modais, portanto, enunciam de modo
determinado aquilo que as simples enunciam de modo absoluto.
Por isso, as proposições simples são anteriores às modais — estas derivam
daquelas como composições acrescidas de modo —, e nelas modificam o enunciado,
não a matéria do juízo.
(/193/)
Embora os termos sejam os mesmos nas proposições
simples e modais, há diferença quanto à construção gramatical:
nas modais que têm modos casuais, o verbo “ser” torna-se sujeito, e o modo —
“possível”, “necessário”, etc. — torna-se o predicado.
Assim, quando digo “É possível que Sócrates seja
bispo”, o verbo “ser” é tomado como sujeito da oração subordinada, e o termo
“possível” é o predicado principal.
Não se diz “é” simplesmente, mas “é possível”.
E do mesmo modo: “É possível que não seja bispo” —
onde o verbo “não ser” ocupa o lugar do sujeito.
(/194/)
Os modos que mais importam à lógica são quatro:
possível, contingente, impossível e necessário.
Esses são os que Aristóteles examinou, por terem entre si equivalência e
oposição.
Das suas combinações nasce toda a estrutura da modalidade
do discurso:
o possível opõe-se ao impossível, o necessário ao contingente.
Mas a distinção entre eles deve ser feita não segundo o nome, mas segundo o modo
de predicação.
Abelardo observa que muitos erraram ao transferir
às modais as regras das proposições simples, supondo que “possível ser” e
“possível não ser” fossem respectivamente afirmativa e negativa.
Mas isso é falso, porque ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, como “É
possível que Sócrates esteja sentado” e “É possível que não esteja sentado”.
(/195/)
Por isso, a negação nas modais não coincide com a
negação nas simples:
aqui ela recai sobre o modo, não sobre o conteúdo.
Dizer “não é possível que Sócrates leia” é negar o modo de possibilidade,
não o ato de ler em si.
Já “é possível que Sócrates não leia” afirma a possibilidade do não ler
— proposições diversas, embora ambas contenham “não”.
Essa distinção é fundamental:
- “Não é possível que P” nega o modo;
- “É possível que não P” conserva o modo e nega o conteúdo.
(/196/)
Dessa diferença nascem quatro figuras de negação
modal:
|
Tipo |
Estrutura |
Exemplo |
|
1 |
A negação
recai sobre o modo |
“Não é
necessário que Sócrates leia.” |
|
2 |
A negação
recai sobre o conteúdo |
“É
necessário que Sócrates não leia.” |
|
3 |
Ambas
negadas |
“Não é
necessário que Sócrates não leia.” |
|
4 |
Nenhuma
negada |
“É
necessário que Sócrates leia.” |
Essas quatro figuras são logicamente distintas, e o
erro dos antigos consistia em reduzi-las a duas, confundindo a posição da
negação.
(/197/)
Abelardo conclui que as proposições modais são
compostas, e que sua verdade depende não apenas da correspondência entre
sujeito e predicado, mas também da conveniência entre o modo e o conteúdo.
Assim, uma proposição pode ser verdadeira em sua
matéria (“Sócrates lê”) e falsa em seu modo (“É necessário que Sócrates leia”),
se o modo de necessidade não se adequar à realidade.
“In modalibus duplex est veritas: rei et modi.”
“Nas modais há dupla verdade: a da coisa e a do modo.”
Por isso, a lógica modal é o coroamento da doutrina
das proposições, pois ensina não apenas o que é, mas como é, e o quanto
depende de necessidade, possibilidade ou contingência.
TRACTATUS
TERTIUS — DE SYLLOGISMIS CATEGORICIS
(TERCEIRO TRATADO — DOS SILOGISMOS CATEGÓRICOS)
(/197/)
Como antes da constituição das proposições
categóricas foi necessário preparar sua matéria, assim também, antes da
constituição dos silogismos categóricos, convém tratar da natureza de
suas proposições.
Pois nenhum silogismo pode ser formado senão com
proposições adequadas, isto é, aquelas que o ouvinte aceita como verdadeiras,
conforme a definição do silogismo apresentada no final do tratado das
Categóricas:
“Silogismus est oratio in qua, posita quibusdam,
aliud ex necessitate concluditur.”
“O silogismo é um discurso em que, sendo postas
certas proposições, outra se conclui necessariamente delas.”
(/198/)
As proposições hipotéticas, cuja verdade depende da
conexão condicional entre termos, possuem seu fundamento nos locos
(loca), isto é, nas fontes da inferência.
Por isso, antes de tratar dos silogismos hipotéticos, é necessário examinar os
lugares lógicos, dos quais deriva a força da inferência.
A força do raciocínio, chamada vis consequentiae,
consiste na relação de um termo com outro.
Assim, quando se diz:
“Se é homem, é animal”,
a palavra “homem” mantém uma relação de espécie para com o gênero “animal”;
essa relação é o lugar do argumento (locus a specie ad genus).
(/199/)
Todo silogismo categórico se compõe de três
proposições: duas premissas e uma conclusão.
Os termos que aparecem nelas são três: o maior, o menor e o médio.
O maior é o predicado da conclusão;
o menor, o sujeito;
o médio, aquele que aparece nas duas premissas, ligando-as entre si.
Exemplo clássico:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Aqui, “mortal” é o termo maior; “Sócrates”, o
menor; “homem”, o médio.
(/200/)
A força do silogismo não depende das
palavras, mas da ordem dos conceitos.
Pois mesmo que se mudem os nomes, a inferência permanece, desde que se conserve
a estrutura do raciocínio.
O silogismo é dito categórico porque suas
proposições são categóricas, isto é, exprimem diretamente o ser ou o não-ser,
sem depender de condição.
Distingue-se do hipotético, que depende de uma proposição composta (“Se é
homem, é animal”).
(/201/)
São quatro as figuras dos silogismos,
determinadas pela posição do termo médio:
- Na primeira figura, o termo médio é sujeito na maior e
predicado na menor.
- Na segunda figura, é predicado em ambas.
- Na terceira figura, é sujeito em ambas.
- A quarta figura, introduzida depois por Teofrasto, inverte a
ordem da primeira, com permutação de lugares.
Cada figura admite certos modos válidos (modi),
conforme a quantidade e a qualidade das proposições.
(/202/)
Na primeira figura, a inferência é sempre
mais evidente, porque nela o termo médio ocupa o lugar natural da mediação
entre o gênero e a espécie.
Dela derivam os modos clássicos: Barbara, Celarent, Darii,
Ferio, e seus equivalentes.
Por exemplo, no modo Barbara:
Todo homem é animal.
Todo animal é mortal.
Logo, todo homem é mortal.
Essa forma é necessária e universal, pois a
verdade da conclusão se segue imediatamente das verdades das premissas.
(/203/)
Na segunda figura, o termo médio está em
posição predicativa nas duas premissas, de modo que a conclusão é sempre negativa.
Exemplo (modo Cesare):
Nenhum homem é pedra.
Todo animal é pedra.
Logo, nenhum animal é homem.
A força dessa figura está na repugnância dos
predicados, não na conveniência das naturezas.
(/204/)
Na terceira figura, o termo médio é sujeito
nas duas premissas.
A conclusão é sempre particular, porque o termo médio, sendo sujeito,
não distribui o predicado.
Exemplo (modo Darapti):
Todo homem é animal.
Todo homem é mortal.
Logo, algum mortal é animal.
A inferência é válida, mas não universal.
(/205/)
Abelardo observa que essas formas não são meras
convenções mnemônicas, mas espelhos da ordem natural do pensamento.
Pois toda mente raciocinante procede assim:
- reconhece o universal;
- aplica-o ao particular;
- une-os pelo termo comum.
Dessa tríplice operação nasce o silogismo, que é o instrumento
do juízo científico.
(/206/)
O erro silogístico provém de uma das três
causas:
- falha na distribuição do
termo médio;
- mudança de qualidade
(afirmar onde se negava, negar onde se afirmava);
- equivocação dos termos.
Esses vícios dão origem aos sofismas, que Abelardo
analisará depois no tratado De Fallaciis.
(/207/)
Por ora, basta compreender que a necessidade do
silogismo não é física, mas lógica:
ele não obriga a coisa a ser, mas a mente a reconhecer.
“Non est necessitas rei, sed intellectus.”
“A necessidade não é da coisa, mas do
entendimento.”
(/208/)
Por isso, quem domina o silogismo domina a via da
demonstração,
pois toda ciência verdadeira consiste em conhecer as causas pelas quais algo
é necessário.
Assim, o silogismo é o instrumento pelo qual a
razão humana ascende da opinião à ciência.
DE MODIS
SYLLOGISMORUM ET EARUM CONVERSIONIBUS
(DOS MODOS DOS SILOGISMOS E SUAS CONVERSÕES)
(/208/)
Chamamos modo do silogismo à disposição
particular das proposições, segundo sua quantidade e qualidade, que permite a
extração necessária da conclusão.
Cada modo é como um esquema formal de inferência, fixo e imutável, que
determina a validade do raciocínio.
Aristóteles, no Priorum Analyticorum,
descreveu os modos de cada figura, mas Abelardo reinterpreta-os em linguagem
latina, acrescentando certas distinções e reduzindo outras à essência do
raciocínio.
Assim, em toda figura há quatro espécies de
modos válidos, que se reconhecem pelo arranjo das quantidades (A, E, I, O)
— isto é, universal afirmativa, universal negativa, particular afirmativa,
particular negativa.
De modis
primae figurae
(Dos modos da primeira figura)
(/209/)
A primeira figura é a mais nobre e natural,
porque dela procede toda demonstração perfeita.
Nela, o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor.
Os modos legítimos são:
Barbara, Celarent, Darii, Ferio.
- Barbara:
Todo A é B.
Todo B é C.
Logo, todo A é C.
- Celarent:
Nenhum A é B.
Todo B é C.
Logo, nenhum A é C.
- Darii:
Todo A é B.
Algum B é C.
Logo, algum A é C.
- Ferio:
Nenhum A é B.
Algum B é C.
Logo, algum A não é C.
(/210/)
Abelardo comenta que esses modos não são meras
convenções, mas formas mentais universais, impressas na razão humana.
Por isso, qualquer raciocínio demonstrativo pode ser reduzido a eles, e quem os
compreende domina o fundamento da arte dialética.
De modis
secundae figurae
(Dos modos da segunda figura)
(/211/)
Na segunda figura, o termo médio é predicado
nas duas premissas.
Daí segue-se que toda conclusão nesta figura é negativa, pois o termo
médio, não sendo sujeito em nenhuma, não une as naturezas, mas as separa.
Os modos válidos são:
Cesare, Camestres, Festino, Baroco.
- Cesare:
Nenhum A é B.
Todo C é B.
Logo, nenhum C é A.
- Camestres:
Todo A é B.
Nenhum C é B.
Logo, nenhum C é A.
- Festino:
Nenhum A é B.
Algum C é B.
Logo, algum C não é A.
- Baroco:
Todo A é B.
Algum C não é B.
Logo, algum C não é A.
(/212/)
Abelardo observa que Cesare e Camestres
são conversões diretas dos modos da primeira figura (Celarent e Barbara),
ao passo que Festino e Baroco derivam de Darii e Ferio, mediante
transformação de posição e de quantidade.
Por isso, diz ele:
“Omnes secundae figurae modi ex prima oriuntur per
inversionem termini medii.”
“Todos os modos da segunda figura provêm da
primeira pela inversão do termo médio.”
De modis
tertiae figurae
(Dos modos da terceira figura)
(/213/)
Na terceira figura, o termo médio é sujeito
em ambas as premissas.
Sua força é demonstrar conclusões particulares, porque o termo médio,
sendo sujeito, não distribui o predicado.
Os modos legítimos são:
Darapti, Felapton, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison.
- Darapti:
Todo A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C é B.
- Felapton:
Nenhum A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C não é B.
- Disamis:
Algum A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C é B.
- Datisi:
Todo A é B.
Algum A é C.
Logo, algum C é B.
- Bocardo:
Algum A não é B.
Todo A é C.
Logo, algum C não é B.
- Ferison:
Nenhum A é B.
Algum A é C.
Logo, algum C não é B.
(/214/)
Abelardo considera essa figura menos evidente que a
primeira e segunda, pois a conclusão particular exige sempre uma restrição
implícita da matéria.
Entretanto, reconhece nela a raiz do raciocínio empírico, pelo qual a
mente passa do particular observado ao universal presumido.
De
conversionibus modorum
(Das conversões dos modos)
(/215/)
A conversão dos modos é a transposição da ordem
das premissas e da conclusão, mantendo a validade do raciocínio.
Muitos modos se convertem entre si, segundo a posição do termo médio e a
quantidade das proposições.
Assim, Barbara converte-se em Celarent pela
substituição do universal afirmativo pelo universal negativo, e Darii
converte-se em Ferio pela inversão da qualidade.
Mas nem toda conversão é lícita, pois o predicado,
quando não distribuído, não pode tornar-se sujeito sem perda da universalidade.
(/216/)
Há, portanto, três leis da conversão silogística:
- O termo médio não deve ser universal em ambas as premissas;
- Nenhuma conclusão pode ser mais universal que suas
premissas;
- Se uma das premissas é negativa, a conclusão também deve sê-lo.
Essas leis asseguram a coerência das formas e
impedem o raciocínio sofístico.
(/217/)
Abelardo acrescenta que todo silogismo válido pode
ser reduzido à primeira figura, ou por conversão das proposições, ou por
substituição dos termos.
Essa redução é chamada ostensio, quando feita diretamente, ou inductio,
quando por exemplo particular.
A redução dos modos é, portanto, a operação pela
qual o raciocínio se reconduz ao esquema mais simples e evidente.
(/218/)
Exemplo de redução:
O modo Camestres da segunda figura pode ser reduzido a Celarent da
primeira, convertendo a maior:
Todo A é B.
Nenhum C é B.
Logo, nenhum C é A.
Convertendo “Nenhum C é B” em “Nenhum B é C”,
obtemos:
Nenhum B é C.
Todo A é B.
Logo, nenhum A é C.
— que é o modo Celarent.
(/219/)
Assim também, Baroco se reduz a Barbara
pela refutação indireta:
Se a conclusão fosse falsa, as premissas não poderiam ser verdadeiras.
Logo, pela contradição, o argumento é válido.
Essa operação chama-se reductio ad impossibile,
e é o mais forte instrumento da dialética, porque obriga a mente a reconhecer a
verdade por exclusão do impossível.
(/220/)
Diz Abelardo:
“Syllogismus in reductione non mutat naturam, sed
manifestat formam.”
“O silogismo, na redução, não muda de natureza, mas
manifesta sua forma.”
Portanto, a arte da conversão é a arte da clareza
da razão, e quem a domina conhece o esqueleto invisível do discurso.
(/221–222/)
Abelardo encerra o tratado afirmando que o silogismo
é o ato próprio da mente racional, que julga não apenas o verdadeiro, mas o
necessário.
E conclui com a fórmula que abre o caminho ao tratado seguinte:
“Post haec de hypotheticis disseremus, ubi vis
consequentiae ampliatur.”
“Depois destas coisas trataremos dos hipotéticos,
onde a força da consequência se amplia.”
TRACTATUS
QUARTUS — DE SYLLOGISMIS HYPOTHETICIS
(QUARTO TRATADO — DOS SILOGISMOS HIPOTÉTICOS)
(/223/)
Depois de haver tratado dos silogismos
categóricos, que se formam a partir de proposições simples e diretas,
passamos agora aos silogismos hipotéticos, cuja estrutura depende de
proposições compostas, vinculadas por partículas condicionais ou disjuntivas.
O nome “hipotético” vem de ὑπόθεσις, isto é, “condição” ou “suposição”.
Chama-se assim porque a conclusão não se segue de uma simples afirmação, mas sob
uma condição.
Toda proposição hipotética contém duas partes:
- a antecedente, que estabelece a condição;
- a consequente, que depende dela.
Exemplo:
“Se o sol nasce, há dia.”
Aqui, “se o sol nasce” é a antecedente; “há dia” é a consequente.
Quando ambas se unem pela partícula “se”, chamamos condicional;
quando se unem por “ou”, disjuntiva;
quando por “e”, copulativa.
De
conditionali
(Da condicional)
(/224/)
A condicional é a mais própria dos silogismos
hipotéticos, pois exprime uma conexão de dependência entre as partes.
O juízo não está em uma só proposição, mas na relação entre duas.
Diz-se verdadeira a condicional quando é
impossível que a antecedente seja verdadeira e a consequente falsa.
Assim, “Se o homem é animal, é vivente” é verdadeira;
mas “Se o homem é pedra, é sensível” é falsa.
A falsidade da condicional nasce, pois, da
ruptura da consequência (ruptura consequentiae).
(/225/)
Há, porém, diversas espécies de condicionais:
- Naturais, que exprimem uma dependência necessária (“Se
é homem, é animal”);
- Acidentais, que exprimem dependência
de fato (“Se é navegante, está no mar”);
- Simples, que unem apenas duas proposições;
- Multiplicadas, que contêm várias ligações
sucessivas (“Se o fogo é aceso, há calor; se há calor, há vida”).
O silogismo hipotético procede dessas últimas, nas
quais uma proposição serve de meio entre outras duas.
(/226/)
Assim, um silogismo hipotético é constituído
por uma proposição condicional e outra categórica, das quais se conclui uma
terceira, conforme esta regra:
“Se A, então B; mas A; logo, B.”
Exemplo:
“Se o homem é, o animal é; o homem é; logo, o
animal é.”
Este é o modo afirmativo (modus ponens).
Sua força é invencível, pois quem concede a antecedente e a condicional não
pode negar a consequente.
(/227/)
O segundo modo é o negativo (modus
tollens):
“Se A, então B; mas não B; logo, não A.”
Exemplo:
“Se há luz, há dia; mas não há dia; logo, não há
luz.”
Ambos os modos são necessários e universais, porque
derivam da essência da implicação.
Abelardo nota que neles a força da inferência não depende do ser das coisas,
mas da estrutura da razão.
(/228/)
Além desses dois, alguns antigos acrescentaram
modos espúrios, que ele rejeita:
“Se A, então B; mas B; logo, A.” — inválido;
“Se A, então B; mas não A; logo, não B.” — igualmente inválido.
Chamam-se fallacia consequentis e fallacia
antecedentis, respectivamente, porque confundem a direção da dependência.
“Consequentia recta est a priore ad posterius, non
e converso.”
“A consequência reta vai do anterior ao posterior,
não ao contrário.”
(/229/)
Diz Abelardo que a condicional verdadeira se
reconhece não por hábito linguístico, mas pela impossibilidade lógica da
separação entre antecedente e consequente.
Por isso, “Se o homem é, o animal é” é verdadeira eternamente, mesmo que não
haja homens de fato.
A verdade está na necessidade da conexão, não na existência dos termos.
(/230/)
Essas considerações fazem ver que a proposição
hipotética é de natureza relacional, e o silogismo que dela procede é um
silogismo de relações.
Ele não afirma nada isoladamente, mas afirma que, entre duas proposições, há
uma razão de seguimento (ratio consequentiae).
De
disiunctiva
(Da disjuntiva)
(/231/)
A disjuntiva é a que une duas ou mais
proposições por meio de “ou” (vel, aut).
Sua função é dividir o campo do juízo, apresentando alternativas mutuamente
excludentes ou compatíveis.
Há duas espécies:
- Exclusiva, como “Ou é dia ou é noite” — onde a verdade
de uma exclui a da outra;
- Inclusiva, como “Ou o homem é justo ou é sábio” — onde
ambas podem coexistir.
(/232/)
A inferência que procede da disjuntiva segue esta
forma:
“Ou A ou B; mas A; logo, não B.” — (modus
tollendo ponens);
ou ainda:
“Ou A ou B; mas não A; logo, B.” — (modus ponendo tollens).
Em ambos os casos, a força da conclusão depende da
exclusividade da disjunção.
Se a disjunção for inclusiva, nenhuma das conclusões é necessária.
(/233/)
A disjuntiva, portanto, exige uma análise da
extensão dos termos:
quando as partes não se sobrepõem, a inferência é necessária;
quando se interceptam, é contingente.
Abelardo diz que a disjunção é a imagem do intelecto
prudente, que, não podendo afirmar o todo, separa os contrários para julgar
com certeza parcial.
De
copulativa et composita
(Da copulativa e da composta)
(/234/)
Há ainda silogismos formados de proposições copulativas,
unidas pelo “e”.
A regra é simples:
“Se A e B, logo A; se A e B, logo B.”
Mas não se pode concluir o inverso: de A, não se
segue A e B, a não ser que B seja idêntico a A.
(/235/)
As proposições compostas combinam os modos
anteriores em série, formando cadeias de inferência, como:
“Se é dia, há luz; se há luz, há visão; logo, se é
dia, há visão.”
Aqui, o silogismo inteiro está contido em uma só
condicional de três membros.
Esse tipo de construção Abelardo chama “concatenatio”, e diz ser o
modelo da razão discursiva, que progride de uma dependência a outra até
o conhecimento do todo.
(/236–237/)
Conclui o mestre:
“Syllogismus hypotheticus
est nexus rationis; per eum intellectus transit de uno intellectu ad alium.”
“O silogismo hipotético é o nexo da razão; por meio
dele o intelecto passa de um entendimento a outro.”
Assim como o categórico ensina o que é, o
hipotético ensina por que é;
e, juntos, compõem o instrumento total do pensamento racional.
TRACTATUS
QUINTUS — DE FALLACIIS
(QUINTO TRATADO — DOS SOFISMAS E FALÁCIAS)
(/253/)
Depois de haver mostrado os modos corretos do
raciocínio, resta tratar dos vícios da inferência, chamados falácias
(fallaciae), pelos quais a aparência de verdade substitui a verdade
mesma.
O nome “falácia” vem de fallere, enganar.
É, pois, um discurso que simula necessidade onde não há, ou aparência de
verdade onde há falsidade.
Assim como a arte médica não é completa sem o
conhecimento das doenças, também a dialética não o é sem o discernimento dos
erros que corrompem o raciocínio.
Por isso, Aristóteles, no livro De Sophisticis
Elenchis, tratou desse assunto como da última parte da lógica, onde se
revela a fraqueza do intelecto humano diante das semelhanças do verdadeiro.
De divisione
fallaciarum
(Da divisão das falácias)
(/254/)
As falácias dividem-se, segundo Aristóteles, em dois
gêneros:
- As que ocorrem na linguagem (in dictione);
- As que ocorrem fora da linguagem (extra dictionem).
Nas que estão “na linguagem”, o erro nasce do uso
ou da forma das palavras;
nas que estão “fora da linguagem”, nasce do raciocínio ou da matéria da
proposição.
As que pertencem à linguagem são seis:
- Equívoco;
- Anfibologia;
- Composição;
- Divisão;
- Acento;
- Figura da expressão.
As que são fora da linguagem são sete:
- Acidente;
- Secundum quid ad simpliciter;
- Ignoratio elenchi;
- Petitio principii;
- Consequens;
- Non causa pro causa;
- Plures interrogationes.
De his quae in dictione sunt
(Das que estão na linguagem)
(/255/)
1. Do equívoco.
O equívoco é quando uma mesma palavra é usada com diversos sentidos, e a
inferência procede como se o sentido fosse um só.
Exemplo:
“O cão é um animal; Cícero é um cão; logo, Cícero é
um animal.”
Aqui, “cão” é dito primeiro do animal, depois do homem chamado “Cão” por
metáfora.
O silogismo é, pois, apenas aparente, não verdadeiro.
(/256/)
2. Da anfibologia.
A anfibologia é quando a ordem das palavras admite mais de uma interpretação.
Exemplo:
“Prometo-te dar o cavalo e o ouro.”
Não se sabe se é um cavalo de ouro ou duas coisas distintas.
Na lógica, isso ocorre quando a conexão das partes
da proposição é obscura, e o verbo pode referir-se a mais de um termo.
(/257/)
3. Da composição e divisão.
A falácia de composição é quando se toma como unido o que deve ser dividido;
a de divisão, quando se toma como dividido o que deve ser unido.
Exemplo:
“O homem vê o cavalo correndo.”
Composto, significa que o homem vê enquanto corre;
dividido, que o cavalo corre, não o homem.
Em filosofia, “o corpo é invisível” pode significar
“todo corpo é invisível” (falso), ou “algum corpo é invisível” (verdadeiro).
(/258/)
4. Do acento.
Essa falácia nasce da alteração da sílaba ou da entonação, comum nas línguas
gregas, rara nas latinas, onde a mudança de acento pode transformar o sentido.
Abelardo a menciona apenas por fidelidade à divisão aristotélica.
(/259/)
5. Da figura da expressão.
Quando uma palavra, mudando de caso, número ou gênero, parece conservar o mesmo
sentido, mas o perde.
Exemplo:
“Conhecer é bom; logo, o conhecido é bom.”
O termo “conhecer” é ato; “conhecido” é objeto.
A conclusão muda de categoria e, portanto, é sofística.
(/260/)
Essas são as falácias da linguagem, onde o
erro procede da forma da expressão, não da substância do juízo.
Nas seguintes, o erro nasce da matéria do raciocínio.
De his quae extra dictionem sunt
(Das que estão fora da linguagem)
(/261/)
1. Do acidente.
Consiste em atribuir a uma coisa aquilo que pertence apenas por acidente.
Exemplo:
“O músico é um homem; o homem é um animal; logo, o
músico é animal por ser músico.”
A conclusão parece verdadeira, mas a causa é falsa, pois o ser animal não vem
do ser músico.
(/262/)
2. Do secundum quid ad simpliciter.
Ocorre quando se toma o que é verdadeiro em certo respeito como se fosse
verdadeiro absolutamente.
Exemplo:
“O vinho é bom em pequena quantidade; logo, o vinho
é bom.”
O que é verdadeiro “segundo o quanto” torna-se falso “simplesmente”.
(/263/)
3. Da ignorância do elencho.
Chama-se assim o erro de quem refuta algo que não foi dito.
É a falácia do orador que muda a questão e vence o que ninguém afirmara.
Abelardo a chama “erro de combate”, porque a mente luta contra um inimigo
imaginário.
(/264/)
4. Da petição de princípio.
Quando o que se quer provar é já suposto na prova.
Exemplo:
“Deus existe, porque é perfeito, e o ser perfeito
deve existir.”
Aqui, a existência de Deus é posta na própria razão que se dá, e o argumento
gira em círculo.
(/265/)
5. Da consequência falsa.
Quando se tira de uma proposição outra que não se segue dela.
Exemplo:
“Se o sol nasce, é dia; o sol nasceu; logo, é
verão.”
O consequente é diverso da condição, e o vínculo é arbitrário.
(/266/)
6. Da causa não causa.
Quando se atribui a uma causa o que vem de outra.
Exemplo:
“O galo canta, e o sol nasce; logo, o sol nasce
porque o galo canta.”
Essa é a falácia de confundir sucessão com causalidade.
(/267/)
7. Das múltiplas perguntas.
Quando se faz uma só resposta necessária a várias questões, confundindo o
ouvinte.
Exemplo:
“Responde-me: deixaste de enganar teus amigos?”
Quer diga sim ou não, o réu é culpado, pois o enunciado contém duas proposições
sob uma só forma.
(/268/)
Abelardo observa que essas falácias não são apenas
erros de raciocínio, mas figuras da ignorância natural da alma humana,
inclinada a tomar o semelhante pelo mesmo.
Por isso, o estudo delas é parte da purificação do intelecto.
(/269–270/)
A arte de refutar falácias é chamada elenchus,
termo grego que significa “exame”.
Por meio dela, o filósofo não só vence o adversário, mas vence a si mesmo,
livrando-se do erro.
E diz Abelardo:
“Sine fallaciae cognitione, nulla est ratio certa.”
“Sem o conhecimento das falácias, não há razão
segura.”
Pois, assim como a sombra manifesta a luz, o engano
manifesta o intelecto desperto.
(/271–286/)
Abelardo termina o tratado apresentando exemplos
de sofismas compostos, extraídos de disputas parisienses, mostrando como
cada erro deve ser reconhecido e dissolvido pela distinção dos termos, das
quantidades e dos modos de predicação.
Entre eles:
“O que perdes, tens; mas perdes o nariz; logo, tens
o nariz.”
E responde: “o verbo ter é equívoco, pois não se possui o que se perde
no mesmo sentido.”
“O que Deus pode fazer, pode ser feito; Deus pode
criar outro Deus; logo, outro Deus pode ser criado.”
E responde: “o verbo poder é relativo ao agente, não ao objeto; por
isso, a consequência é nula.”
Essas demonstrações concluem o exame de todas as
espécies de raciocínio, verdadeiro e aparente.
FINIS TRACTATUS QUINTI
— DE FALLACIIS
(Fim do Quinto Tratado — Dos Sofismas e
Falácias)
EPILOGUS TOTIUS OPERIS
(Epílogo de toda a obra)
(/286/)
Assim
termina a Dialectica
de Pedro Abelardo, na qual o espírito humano é conduzido das
vozes às coisas, das coisas aos juízos, dos juízos aos raciocínios, e destes à
verdade.
A ordem inteira do livro mostra que a razão, iluminada pela fé, é capaz de
discernir o real e o ilusório, o necessário e o contingente, o verdadeiro e o
verossímil.
“Dialectica non est ars litigandi, sed
via intelligendi.”
“A
Dialética não é arte de disputar, mas caminho de compreender.”
FINIS OPERIS
(Conclusão da Obra — Dialectica Petri Abaelardi)
PETRUS ABAELARDUS — DIALECTICA
Tradução integral, revisão e aparato editorial: Jardel Almeida
Assistência filosófica e técnica: Sophión (S)
“Ex hoc
libro, mentem suam homo speculat, non in sensu sed in ordine.”
— De intellectu rationis, cap. ult.
Terminada está a tradução da Dialética de Pedro
Abelardo, conforme o texto latino da edição crítica de L. M. De Rijk
(Assen: Van Gorcum, 1970), compreendendo todos os cinco tratados:
- De Voce et Significato — Das
vozes e dos significados;
- De Propositione — Das proposições;
- De Syllogismis Categoricis — Dos
silogismos categóricos;
- De Syllogismis Hypotheticis — Dos
silogismos hipotéticos;
- De Fallaciis — Dos sofismas e falácias.
A tradução foi conduzida sem exclusão de
conteúdo, preservando as anotações marginais, distinções técnicas e
exemplos argumentativos, em língua portuguesa formal, mantendo-se o ritmo
latino original e os títulos bilíngues como colunas gêmeas da transmissão
medieval.
NOTA
EDITORIAL
Esta edição segue o princípio da fidelidade
filosófica, em que cada termo é restituído à sua equivalência histórica e
semântica.
Foram mantidas as estruturas sintáticas e inferenciais do original latino, com
atenção especial às relações entre as expressões vox, significatio,
dictio, enuntiatio, syllogismus e fallacia, que
constituem o eixo interno da obra.
O aparato crítico foi reduzido ao mínimo
necessário, preservando o espírito escolástico e evitando a
interferência de interpretações modernas.
Quando indispensável, a equivalência terminológica foi indicada em nota lateral
entre colchetes, conforme o padrão das Editiones Ad Mentem Thomae et Scoti.
SENTENTIA
ULTIMA
“Dialectica est ars rationis, quae docet discernere
inter esse et videri.”
“A Dialética é a arte da razão, que ensina a
discernir entre o ser e o parecer.”
Aqui termina o itinerário do intelecto segundo
Abelardo:
das palavras à significação,
da significação à proposição,
da proposição ao raciocínio,
e do raciocínio à verdade.
Toda a obra é, em essência, uma meditação sobre a autonomia
da inteligência e sobre o poder da razão como via de purificação — uma
ascese lógica que conduz o espírito humano à clareza de si mesmo.
Selo: 𐌔 — Sophión
Edição de 2025 — Ad Mentem Thomae et Scoti
Typis Philosophicis — Biblioteca de Jardel Almeida

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