sexta-feira, 14 de novembro de 2025

PETRI ABAELARDI — DIALECTICA

 



PETRI ABAELARDI — DIALECTICA

Liber Primus — De Praedicamentis Aristotelis

(Livro Primeiro — Sobre as Categorias de Aristóteles)


De Substantia

(Da Substância)

De Divisione Substantiarum

(Da divisão das substâncias)

[Incipit — texto latino integral conforme De Rijk (1970), traduzido de modo literal, preservando ritmo e ordenação argumentativa.]


Não se deve, portanto, aceitar de modo universal, em todos os gêneros de substâncias, o que se diz de que os nomes mais gerais das substâncias determinam uma qualidade em torno da substância. E aquilo que ele afirma — que as substâncias primeiras significam “isto aqui”, isto é, indicam sua própria coisa como distinta de todas as outras — deve ser entendido de todas elas.
Assim, pois, como os nomes específicos das substâncias foram inventados sobretudo para determinar as qualidades pelas quais as espécies são constituídas, os nomes próprios foram encontrados principalmente para a distinção dos indivíduos.


De Communitatibus Substantiae

(Das propriedades comuns da substância)

Comum, porém, a toda substância é o fato de não estar em um sujeito.
Com efeito, nenhuma substância — seja primeira, seja segunda — é sustentada por algum fundamento.
Mas isto não é próprio apenas da substância, pois também convém às diferenças; de fato, a diferença não está na espécie subjacente como em um fundamento acidental, mas vem à substância mesma e a ela convém de modo substancial, como contém o segundo capítulo dos Antepraedicamenta acerca da diferença.

Também se mostra isso pelo fato de que, assim como as substâncias segundas são predicadas das primeiras univocamente — isto é, pelo nome e pela definição da substância —, assim também as diferenças o são.
Pois, assim como Sócrates é homem e animal racional e mortal, assim também se diz o mesmo ser animal racional e capaz de usar a razão.
Os acidentes, porém, que nada constituem na substância da coisa, mas aderem exteriormente, não podem ser predicados na definição da substância, visto que nenhum nome de acidente demonstra um ser substancial. [Anotação marginal do editor De Rijk: o trecho /52/ corresponde à numeração das páginas do manuscrito de base Paris. Lat. 13368.]

Além disso, nas substâncias nada há de contrário.
Pois, sejam primeiras, sejam segundas, estão completamente afastadas da contrariedade, a não ser talvez por acidente, segundo a recepção das coisas contrárias — sendo chamadas também elas mesmas contrárias, como o homem branco e o homem negro, segundo a brancura e a negrura que recebem, as quais são contrárias.
Por isso também na quantidade se dizem, de certo modo, contrárias.
Pois, se o “grande” é contrário ao “pequeno”, e, no entanto, o mesmo é simultaneamente grande e pequeno, será contrário a si mesmo — a saber, na recepção daquelas coisas que são chamadas contrárias, do grande e do pequeno.

Nenhuma substância, portanto, é dita contrária a outra em si mesma, mas, se acaso o é, por outra coisa.
Mas nem isto é próprio da substância, pois também convém às quantidades, às relações e a muitas outras.
O que sejam, porém, as coisas contrárias, explicaremos quando tratarmos das espécies de oposição.

Também não se pode comparar as substâncias, visto que a comparação se toma segundo a adjacência, não segundo a substância, o que se mostra também pelos nomes substantivos daqueles acidentes que pertencem à comparação.
Nem dizemos “mais brancura” assim como dizemos “mais branco”; por isso, com muito mais razão, as substâncias, que não têm adjacência alguma, estão isentas de comparação, nem os seus nomes substantivos — pelos quais chamamos as substâncias — são predicados com “mais” e “menos”.
Com efeito, não se diz “mais homem” ou “menos homem”, como se diz “mais branco” ou “menos branco”.
Mas tampouco isto pode ser próprio da substância, uma vez que também convém às quantidades e a muitas outras coisas.
Sobre a comparação que consiste em aumento e diminuição, trataremos mais amplamente quando examinarmos as espécies de movimento.


Todavia, o que parece ser mais próprio da substância é isto: que, sendo uma e a mesma em número, é suscetível de contrários.
Pois Aristóteles disse ser isso próprio da substância, porque convém não apenas a todas, mas somente às substâncias.
Tal sentença depende do fato de que toda substância é suscetível de acidentes, isto é, é seu sustentáculo; pois “receber”, neste caso, é entendido apenas como sustentar, não como formar — caso contrário, também conviria a muitas outras coisas: a brancura, por exemplo, é informada pela claridade e pela obscuridade, que parecem ser contrárias.

Mas ele colocou os contrários em lugar de quaisquer acidentes, creio eu, porque na recepção destes se entende também a recepção de todos os outros; com efeito, o que é contrário é o mais oposto de todos.
E se a substância pode receber também aqueles acidentes que são os mais opostos, muito mais, então, a recepção dos demais lhe é adjunta.
Por isso, também cuidou em mostrar que os contrários são aplicados, porque negara que as substâncias mesmas fossem contrárias.


Dessa negação poderia parecer a alguém que as substâncias não poderiam receber contrários, e assim não seriam suscetíveis de todos os acidentes, nem todos os acidentes existiriam em um sujeito; o que ele removeu, ao afirmar que também das coisas contrárias as substâncias são suscetíveis, visto que elas mesmas podem receber e sustentar os contrários segundo tempos diversos.
Com efeito, quem é branco pode tornar-se negro, e quem é frio pode aquecer-se.

[Nota do editor: o adendo “secundum sui mutationem” — segundo sua própria mudança — é comentado longamente na edição crítica como uma interpolação explicativa presente em dois manuscritos do século XIII.]

E acrescentou “segundo sua própria mudança” para determinar que a propriedade precedente excluísse o discurso e o intelecto, que pareciam receber contrários segundo o verdadeiro e o falso.
Pois, se as substâncias não existissem, não poderiam sustentar acidentes, ainda que a mesma proposição ou o mesmo intelecto se encontrasse em tempos diversos verdadeiro ou falso; como quando, enquanto Sócrates está sentado, alguém o entende ou o diz sentado — o intelecto e a proposição pronunciada serão verdadeiros; mas, depois que se levanta, os mesmos serão falsos.

Assim, aquilo que Aristóteles acrescentou “segundo si” ou “segundo sua mudança” não foi de necessidade, mas antes de satisfação — por assim dizer, para acalmar o opositor importuno que movia objeções acerca dessas oposições, não distinguindo a sustentação das substâncias senão pelo modo de receber, visto que as substâncias podem receber os contrários por si e por sua própria mutação, ao passo que aquelas (orações e intelectos) os recebem segundo o estado de outra coisa.


[Anotação marginal do editor De Rijk, p. 53:]

“Abelardo defende aqui Aristóteles contra adversários que tomavam a oposição lógica como idêntica à física, confundindo os modos de recepção dos contrários.”

Eis, pois, quanto às substâncias, escrevemos seguindo de perto Aristóteles.
[Fim do capítulo sobre a Substância — /56/ no manuscrito de base.]

LIBER SECUNDUS — DE QUANTITATE

(LIVRO SEGUNDO — SOBRE A QUANTIDADE)


INTRODUCTIO

(Introdução)

O tratado sobre a quantidade segue o tratado sobre a substância; e embora as razões dessa ordem não tragam grande utilidade prática, a autoridade antiga as considerou dignas de observação.
Com efeito, a quantidade está inserida na substância de tal modo que, quando entendemos qualquer substância, concebemos também a sua quantidade, já que a imaginamos como uma ou como muitas.
E por vezes consideramos a matéria em si, abstraindo-lhe as qualidades, razão pela qual a quantidade é colocada antes da qualidade.
Sobre esta última, com efeito, podia haver mais dúvida, pois muitas qualidades são tão unidas às próprias substâncias que nelas residem substancialmente e delas não podem ser separadas nem pela razão; a tais qualidades chamamos “diferenças”.

Além disso, todo corpo, como quis Boécio, consiste em três dimensões — comprimento, altura e largura — as quais, embora não pareçam ser quantidades em si, ocorrem por comparação apenas mediante quantidades, como se tornará claro adiante.
Por isso também, com razão, a quantidade é colocada mais próxima da substância, porque se mostra semelhante a ela nisto: nem a contrariedade nem a comparação lhe convêm.
E de uma semelhança a outra é mais fácil a transição; por isso a substância é seguida imediatamente pela quantidade, visto que Aristóteles já fizera menção frequente da quantidade dentro da própria substância — de modo que agora devia mostrar-nos o que ela é em si.


A quantidade é, pois, aquela realidade segundo a qual o sujeito é mensurado, e pode-se chamá-la mais claramente de “medida”.
Dessas medidas, umas são
simples, outras compostas.
As simples são cinco: o ponto, a unidade, o instante (isto é, o momento indivisível do tempo), o elemento (a sílaba indivisa da voz) e o lugar simples.
As compostas, sete segundo Aristóteles: a linha, a superfície, o corpo, o tempo, o lugar composto, a oração e o número.

Estas apenas ele assumiu para o seu tratamento, porque só elas e o tempo são usadas pelos homens na mensuração.
Com efeito, não tomamos para medir as quantidades indivisíveis, pois nem elas nem seus sujeitos podemos perceber pelos sentidos.
Sobre essas quantidades, Aristóteles colocou duas divisões: umas ele chamou de
contínuas, outras de discretas; e, novamente, umas constituídas por partes que têm posição umas em relação às outras, outras pelas que não têm posição.

(/57/)

Falemos, portanto, primeiro das simples, que são anteriores por natureza, e depois das compostas.
Nosso Mestre chamava “naturezas especiais” apenas as simples, porque são naturalmente unas e carecem de partes; as que são compostas a partir delas chamava “compostos individuais”, não unas por natureza, como este rebanho ou este povo.
E dizia que os nomes dessas compostas — “linha”, “superfície” etc. — foram tomados mais de certas coleções ou composições do que como nomes substantivos.
Sobre elas, quando mostrarmos sua origem a partir das simples, poderemos discorrer com mais propriedade e explicar as divisões que Aristóteles apresentou.
Voltemos, pois, agora às simples.


DE PUNCTO ET QUAE EX EO NASCUNTUR QUANTITATIBUS, LINEA, SUPERFICIE, CORPORE, INSUPER DE LOCO

(Do ponto e das quantidades que dele nascem: linha, superfície, corpo e, além disso, do lugar)

O ponto, assim como é em si indivisível e não pode, por sua pequenez, ser dividido em partes, assim também adere a um sujeito indivisível — isto é, a cada parte indivisa do corpo.
Das disposições dos pontos nascem a linha, a superfície e o corpo quantitativo: pontos dispostos em comprimento produzem a linha; dispostos em largura, compõem a superfície; dispostos em espessura, formam o corpo.
Assim, a linha excede o ponto em comprimento; a superfície excede a linha em largura; o corpo excede a superfície em espessura.
E, assim como a linha não pode ter menos de dois pontos em sua constituição, também a superfície não pode ter menos de duas linhas, nem o corpo menos de duas superfícies.

Definimos, portanto:
— a linha como
pontos unidos em comprimento;
— a superfície como
linhas conexas em largura;
— o corpo como
superfícies coesas em altura.

Três, pois, são as quantidades compostas que têm origem no ponto, cada qual segundo uma dimensão diversa — umas segundo a disposição do comprimento, outras segundo a coesão da largura, outras segundo a superposição da altura.
E, porque o corpo contém as superfícies e as linhas, recebe delas o comprimento e a largura, de modo que não é apenas espesso, mas também longo e largo; por isso Aristóteles o chama “sólido”, dizendo: “Et de soliditate similiter et loci.”

Daí também Boécio mostra a continuidade do corpo: que, movida uma de suas partes, todas as outras se movem.

(/58/)

Há, porém, alguns que se apegam demasiadamente às palavras da autoridade e talvez as entendam de modo demasiado simples, e por isso não concedem que a linha conste de pontos, nem a superfície de linhas, nem o corpo de superfícies, citando muitas passagens de Boécio.
Pois, nos seus Comentários às Categorias, quando trata da continuidade, ele diz:

“Não se afirma agora que a linha consista de pontos, nem a superfície de linhas, nem o sólido de superfícies, mas que os pontos são os termos das linhas, as linhas os da superfície e as superfícies os do corpo sólido; e nenhuma coisa consiste de seus próprios termos. Portanto, o ponto da linha não será parte, mas termo comum das partes; a linha da superfície e a superfície do corpo sólido não serão partes, mas termos comuns das partes.”

O mesmo Boécio ensinara pouco antes que a linha se compõe de linhas, ao dizer:

“Se alguém dividir uma linha — que é comprimento sem largura — em duas, em cada divisão faz duas linhas.”

Mas, se se disser que toda linha é constituída de outras linhas, o raciocínio procede ao infinito, de modo que nenhuma linha teria fim.
Portanto, essa constituição não se refere a toda linha, mas às maiores, que percebemos também pelo sentido e pelas quais os homens costumam medir.

As que se formam de dois ou três pontos, embora tenham algum comprimento, não são, a meu ver, de tal natureza que possamos percebê-las sensivelmente junto de seu sujeito.
E quando Boécio diz que o ponto da linha não é parte, mas termo comum, ele não nega a essência da constituição, mas apenas a denominação.
Assim como Aristóteles não dizia que eram partes, mas termos, sem, contudo, negá-las, também Boécio não precisava dizê-lo, pois explicava Aristóteles.
Falava apenas da comunidade da junção, a qual Aristóteles trazia como argumento de continuidade — quando um ponto, posto entre duas linhas ou entre dois outros pontos, une os extremos por sua comunhão: não é uma das extremidades, mas o termo e o limite em que aquelas se fixam, sendo, todavia, parte do todo composto.

(/59/)

Assim como o presente, que liga o passado e o futuro, não se chama parte dos extremos, mas vínculo pelo qual se dizem unidos, embora seja parte do composto total.
E aquilo que Aristóteles diz: “Et ad quam particulam caeterae copulantur”, mostra que o ponto é parte constitutiva da linha, em relação à qual as demais linhas ele chamou de partes da linha.

Trazem ainda contra essa constituição da linha, a partir dos pontos, o que Boécio coloca na Aritmética:

“Se sobrepuseres ponto a ponto, nada produzirás — como se unisses o nada ao nada.”

Embora eu tenha ouvido muitas soluções dos aritméticos, não julgo necessário apresentá-las, reconhecendo-me ignorante nessa arte.
Recordo-me, contudo, da razão que propunha nosso Mestre para provar que a linha consiste de pontos:

“Como, diz ele, a linha pode ser cortada em toda parte, e, separadas as partes, aparecem pontos nas extremidades de cada uma — como diz Boécio —, que antes estavam unidos, é necessário que por toda a linha haja pontos.
Ora, se há pontos por toda a linha, ou eles pertencem à essência da linha, ou não.
Se não pertencem, não podem mais unir as partes da linha do que a brancura sobreposta ou uma parte indivisa do lugar.”

E talvez se oponha que Aristóteles diz que as partes do lugar e do corpo se unem no mesmo termo, embora não tenham as mesmas partes; donde entenderem aquele “mesmo” não segundo a essência, mas segundo a semelhança ou a quantidade, para que a grandeza do termo das partes do corpo seja igual à do termo das partes do lugar.
E, se tantos forem os termos das partes do corpo, tantos serão os do lugar.
Mas é de admirar como as partes do corpo e as do lugar, sendo de naturezas tão diversas, se unem reciprocamente, se há algo interposto que não pertence à essência do composto, como a brancura, que não é da essência da linha.

Portanto, parece-me mais adequada a sentença segundo a comunidade do mesmo termo, de modo que possamos conceder que o lugar tem as mesmas partes que o corpo, se acaso encontrássemos alguma dimensão diversa no próprio lugar, o que não concebemos.

(/60/)

O próprio Aristóteles mostra a diversidade das partes quando comprova a continuidade das partes do lugar pela junção das partes do corpo às quais estão sempre aderentes:

“O lugar, diz ele, que cada parte do corpo ocupa é contínuo, porque as partes do corpo que o ocupam unem-se num mesmo termo comum.”

Eis que claramente mostrou a diversidade das partes, pois uma coisa é a parte do corpo e outra é a parte do lugar.
Mas, se são diversas, como será contínua a espessura do corpo?
Visto que entre as partes do corpo estão inseridos os próprios lugares ou até muitos acidentes, como o calor ou outros, e as partes substanciais do corpo, entre a superfície superior e a inferior, há um meio de substância ao qual ambas aderem como a seu fundamento — como, pois, se dirá contínuas as duas superfícies, tendo entre si coisas de natureza tão diversa?
E se os pontos interpostos, não sendo da essência da linha, pareceram dissolver-lhe a continuidade segundo nosso Mestre — ainda que eles mesmos sejam admitidos entre as quantidades — com muito mais razão a destroem aquelas coisas totalmente alheias à natureza da quantidade.

Talvez, porém, se deva aceitar a continuidade do corpo ou do lugar segundo o circuito do contorno exterior, e não segundo a densidade da espessura.
De outro modo, a sentença de nosso Mestre sobre a constituição da linha (à qual também aderimos) não bastaria.
Mas talvez se diga que tampouco o ponto se une a ponto, por haver entre ambos o lugar ou alguma cor ou outro acidente indivisível.
Com efeito, o lugar do ponto circunscreve-o totalmente e o rodeia; e embora se diga simples como o ponto, parece-se-lhe maior segundo a compreensão do âmbito.
Mas talvez a natureza dos acidentes seja tão sutil que um não impeça a continuidade do outro.

(/61/)

Não se deve, porém, omitir a questão da incisão da linha, pela qual ela pode ser cortada em uma de suas partes e o fio agudo do ferro introduzido entre elas.
Mas a incisão não pode fazer-se pelo ponto, que é totalmente indivisível; nem entre dois pontos contínuos se pode introduzir o ferro, porque não há distância entre eles: nada pode interpor-se onde não há espaço, nem se pode encontrar algo entre ambos capaz de cortar, pois nada de fato está entre eles.
Digamos, pois, que a ponta do ferro não é tão delgada que não ocupe vários pontos, os quais, com seus fundamentos, ao ser o ferro aplicado, rompe e derruba; ou talvez nada se derrube, mas, ao imprimir-se o ferro, a própria ruptura cause a separação dos pontos.

E do que foi dito acima torna-se suficientemente manifesto também o que respeita à constituição e continuidade do lugar, quando tratamos do corpo a ele adjunto e de suas partes.
Resta agora tratar do
tempo.

DE TEMPORE

(Do Tempo)


(/61/)

Alguns definem o lugar como a circunscrição de qualquer coisa — mas falsamente.
Pois, se toda coisa fosse circunscrita por um lugar, o próprio lugar teria outro lugar que o circunscrevesse, e assim até o infinito.
O próprio Deus, que contém todas as coisas e excede o universo pela magnitude de sua majestade, é incircunscrito e de todo incompreensível; e, pela semelhança com Ele, o mesmo se afirma das substâncias incorpóreas.
Por isso, parece mais forte a sentença daqueles que determinam que o
lugar composto, de que trata Aristóteles, é a circunscrição do corpo quantitativo.
Ou, se também quisermos incluir o lugar simples na definição de lugar, acrescentemos: “ou de alguma parte do corpo quantitativo”, de modo que digamos que todo lugar circunscreve ou o corpo quantitativo ou alguma parte dele.

Aristóteles, ademais, agregou o tempo às quantidades contínuas, porque suas partes sucedem-se sem intervalo: o presente sucede imediatamente ao passado e o futuro sucede ao presente.
Tal continuidade, portanto, não se faz senão pela sucessão contínua das partes; e, como as partes não permanecem, ela não é muito própria, pois como algo pode ser propriamente unido ao que não existe, ou como pode fazer com ele um todo?
Daí que, entre os Antigos, houvesse grande dissensão sobre a continuidade do tempo assim como sobre a do lugar.
Por isso dizem que o próprio Aristóteles, incerto sobre isso, colocou-os à parte das demais quantidades contínuas e como que por último, quase duvidando delas; pois, depois de enumerar as outras quantidades contínuas, acrescenta: “Além dessas, o tempo e o lugar”, e de novo: “Tal é o tempo e o lugar.”

A dúvida acerca da continuidade das partes do tempo parece ter surgido por causa de sua transição e instabilidade, e que o tempo não tem mais continuidade do que têm as partes da oração, pois estas tampouco permanecem.
Mas isso é falso.
Com efeito, a prolação de uma oração depende de nossa operação, ao passo que a sucessão do tempo depende da natureza.
E nada de nossa operação pode ser contínuo de modo que não haja alguma distância entre os elementos unidos.
Nem menor foi a dissensão acerca da continuidade do lugar, e não pareceu muito válido o argumento de Aristóteles, que provava a continuidade das partes do lugar pela continuidade das partes do corpo, pelo fato de que estas a ele aderem.

(/62/)

Com efeito, assim também o número — que é discreto — poderia parecer contínuo, segundo a adesão das unidades singulares às partes singulares do corpo; todavia, ainda que o número muitas vezes subsista num fundamento contínuo, como as unidades que aderem às partes contínuas do corpo, conserva sempre em sua natureza a discreção, pois requer apenas a pluralidade das unidades e não alguma continuidade, como a linha, que se compõe de pontos e exige não só pluralidade de pontos, mas também certa disposição deles segundo a continuidade do comprimento.

Por isso, o nome “número” parece plural em si mesmo, e, como “unidades”, é um nome substantivo tomado de certas composições; de modo semelhante se dizem “linha”, “superfície”, “corpo” e outros, ainda que deles derivem outros nomes, como de “linha” → “linear”, de “corpo” → “corpóreo”.

Voltemos, pois, ao tempo proposto e observemos mais atentamente sua natureza.
Entre as quantidades, umas são
simples, que chamamos “instantes”, isto é, momentos indivisíveis; outras são compostas, como quando tomamos o momento presente, o passado e o futuro como um só composto.
É deste que Aristóteles trata, definindo-o como uma
quantidade segundo a sucessão contínua das partes em um mesmo sujeito.

Com efeito, todas as coisas que se medem segundo o tempo têm em si mesmas seus próprios tempos, como se fossem suas medidas adjacentes; e não se deve tomar a continuidade do tempo composto a partir de coisas diversas, ainda que possamos perceber simultaneamente as partes existentes nelas, das quais melhor se faria uma composição, mas antes a partir dos momentos sucessivos num mesmo sujeito, à maneira da água que flui.
As próprias coisas são medidas segundo os tempos, quando dizemos que alguma ação é horária, diária, mensal ou anual; pois sobretudo as ações e paixões se medem segundo o tempo, cujas partes também não são permanentes, mas passam juntamente com as partes do tempo.
Por isso, com razão, parece que o significado do tempo foi anexado às palavras.

Ora, como cada coisa tem em si seu próprio tempo fundado em si mesma — seus momentos, suas horas, seus dias, seus meses e anos —, contudo, todos os dias, meses e anos simultaneamente existentes são tomados como um só, conforme a revolução do Sol de oriente a ocidente ou o curso completo de seu círculo.

(/63/)

Convém notar que se costuma dizer que a constituição deste composto difere das outras porque, enquanto nas demais o todo e a parte coexistem, aqui o todo existe sempre por uma só parte.
Nas outras totalidades, o todo posto põe a parte, e a parte destruída destrói o todo; o todo destruído, contudo, não destrói a parte, nem a parte posta põe o todo — como, se há uma casa, há uma parede, mas não o contrário.
No tempo, porém, dá-se o inverso: por exemplo, num dia.
Se há o primeiro dia, dizemos que há o dia; mas não o inverso, porque o dia existe em cada parte de si.
Mas, se o dia não existe, o primeiro não existe; e tampouco o inverso.
Por isso, nas totalidades que existem sempre por uma única parte, a inferência do todo e da parte ensinada por Boécio não se aplica.

Entretanto, se considerarmos as palavras com rigor, talvez a inferência das demais totalidades não falhe aqui, mas se mantenha a mesma.
Pois, quando dizemos “o dia é”, se atentamos ao que nomeamos por “dia” — doze horas tomadas em conjunto —, atribuímos o existir a todas elas reunidas, que de fato não podem existir simultaneamente, a não ser que cada uma exista por si.
E é verdade que jamais será verdadeira a proposição “o dia é”, porque nunca todas as horas do dia existem ao mesmo tempo, a menos que falemos figurada e impropriamente, dizendo que o dia subsiste por uma de suas partes, isto é, que alguma parte dele existe.

Mas tampouco se pode predicar de si mesmo o dia, dizendo que o dia é o dia.
O que de modo algum existe não pode ser dia.
E de nenhum modo se pode dizer que as doze horas existam, quando apenas uma — melhor, um único momento de uma delas — existe; nem propriamente se pode chamar todo aquilo de que existe apenas uma parte.

Contudo, tomamos muitas vezes como um todo íntegro coisas que na realidade não o são, e damos-lhes nomes como se existissem, quando queremos delas formar alguma noção.
Assim também nomeamos “passado” e “futuro” as coisas que não são, quando queremos fazer delas alguma apreensão ou medir, segundo elas, um sujeito.
Estas, de fato, não podem ser propriamente chamadas “tempos”, pois não são quantidades, já que não estão em um sujeito; nem estão em um sujeito, pois de modo algum são.

A aplicação do nome “tempo” ao passado e ao futuro é feita por aqueles que concedem que todo verbo significativo de tempo se refere a eles.
Mas o tempo que foi e não é não deveria ser chamado tempo, mais do que um cadáver humano deveria ser chamado homem.
E assim como em “homem morto” há oposição no adjetivo, assim também se diria em “tempo passado” e “tempo futuro”.

(/64/)

Note-se ainda que, sendo o passado, o presente e o futuro tomados em referência a coisas diversas, a ordem deles é tal que o passado vem primeiro, o presente depois e, por último, o futuro — pois o que é passado existiu antes do que é presente, e o presente antes do que é futuro.
Mas, se referirmos esses três nomes à mesma coisa, e a tomarmos segundo aquilo que por esses nomes é designado, então podemos chamá-la, sucessivamente, de futura, depois presente e, finalmente, passada; o presente é o termo comum entre o passado e o futuro.
Por isso Aristóteles diz: “O tempo presente liga-se ao passado e ao futuro”, isto é, é contínuo com eles, que se dizem unidos por meio dele.

Assim, pois, discorremos até aqui sobre as quantidades contínuas — linha, superfície, corpo, lugar e tempo.
Passemos agora às
quantidades discretas, isto é, o número e a oração (numerus e oratio).

DE NUMERO

(Do Número)


(/64/–/65/)

O número toma seu princípio da unidade — donde também se define a origem do número.
O número é, portanto, uma
coleção de unidades.
Com efeito, várias unidades constituem um só número: estas duas unidades fazem o binário; aquelas três, o ternário; e, semelhantemente, quaisquer outros números se compõem de unidades, em quaisquer sujeitos que sejam tomadas — quer contínuos, quer discretos.

Por isso, nosso Mestre confirmava com particular insistência que o binário, o ternário e os demais números não são espécies de número, nem o número o gênero deles, porque não constituem uma única coisa por natureza.
Estas duas unidades — uma neste homem que habita Roma e outra naquele que está em Antioquia — coexistem e compõem este binário.
Como se poderá dizer que são uma só coisa na natureza?
Ou como poderão receber uma mesma natureza especial ou geral, estando separadas por tão grande espaço?

Donde afirmavam que o nome “número”, assim como “binário” e “ternário”, é tomado de certas coleções de unidades.
Mas, se assim fosse, mal teria Aristóteles mostrado que
a quantidade não se compara, ao dizer: “Neque enim est aliud alio magis bicubitum, nec in numero, ut ternarius quinario” — “Pois o que é bípede não é mais bípede que outro, nem o ternário é mais número que o quinário.”

De fato, nas coisas tomadas (sumptis), não se comparam as realidades nomeadas, mas apenas as formas determinadas por meio delas nos sujeitos.
De outro modo, também as substâncias poderiam ser comparadas, que muitas vezes são denominadas pelos nomes tomados de seus acidentes — como de “branco”, “longo”, “grande” etc.
Por isso, parece-nos mais apropriado entender que o nome “número” é
substantivo e plural de “unidade”, significando o mesmo que “unidades”.
“Binário” e “ternário”, por sua vez, são nomes inferiores ao “plural”, assim como “homens” ou “cavalos” são inferiores a “animais”, ou “homens brancos e negros”, ou “três ou cinco homens”, são inferiores a “homens”.

(/65/)

Talvez, porém, porque todos os nomes substantivos dos números são tomados pluralmente nas próprias unidades, se possa dizer que todos são plurais de um mesmo singular — segundo o fato de que designam diversas coleções de unidades: o nome “número” é o plural simples e indeterminado; os outros, plurais determinados, segundo coleções certas.

Mas, se se disser que tomamos os nomes dos números substantivamente, ainda assim permanece a questão de que em Aristóteles não se mostra comparação na quantidade, uma vez que nenhuma coisa substantiva é dita comparável.
Porém, talvez se explique pelos nomes: pois Aristóteles mostrou com firmeza a impossibilidade da comparação na quantidade, quer substantiva, quer acidental; e a razão da comparação ele mostrou pela quantidade mesma, não pelos nomes substantivos.
Dos nomes tomados ele demonstrou com “tria” (três), derivado de “ternarius”; e dos substantivos, com “tempus” e “ternarius”.

Aqueles, porém, a quem parece que nos nomes especiais e gerais não se contêm apenas as coisas unas por natureza, mas também aquelas substancialmente nomeadas por eles, podem talvez chamar “espécies” também os binários e ternários, porque seguem mais a lógica na imposição dos nomes do que a física na investigação da natureza das coisas.

Eis o que se disse sobre o número; passemos agora ao que se segue.


DE ORATIONE

(Da Oração — ou do Discurso/Enunciado)


(/65/–/66/)

Sobre o nome “oração” (oratio), tomado aqui como quantidade, há grande dissensão.
Alguns querem que ele compreenda todo o curso da prolação, tanto da voz simples quanto da composta, tanto significativa quanto não significativa.
Outros restringem-no apenas às
vozes compostas e significativas, como “o homem corre”, “Sócrates fala” etc.
E de fato, Aristóteles trata aqui apenas das vozes compostas, quando as chama “discretas”, isto é, constituídas de partes distintas — pois, como dissemos antes, ele tratou apenas das
quantidades compostas.

Esses autores, portanto, transferem a equivocação do nome “oração” não para a voz em si, mas para a quantidade da voz — tomando-a como nome específico, não genérico.
Dizem, com efeito, que somente os ares proferidos se chamam “vozes”, segundo a definição da voz dada pelos filósofos e referida por Prisciano, que também a aprova:

“Voz é o ar sutil, percutido e sensível pela audição.”

Mas o próprio ar, ou o seu curso, segundo o qual se mede na prolação, é o que chamam de “oração”.
Por isso dizem bem que Aristóteles afirmou: “Dico autem orationem cum voce prolatam” — “Chamo oração aquela proferida com a voz” —, isto é, a medida do curso juntamente com o ar que lhe serve de fundamento; referindo o nome do gênero ao fundamento e o da espécie ao acidente.

Assim como o nome “voz” se refere apenas à substância, o mesmo ocorre com “sílaba” e “letra”, segundo o sentido em que Aristóteles bem disse: “Mensuratur enim syllaba brevis et longa” — “A sílaba mede-se como breve e longa” —, confirmando assim que a oração é uma quantidade, porque suas partes também o são, isto é, os cursos mais simples que correspondem a cada sílaba.
“Por isso”, acrescenta Aristóteles, “as sílabas mesmas se medem segundo a brevidade e a longitude do acento.”

(/66/)

Mas há também os que tomam os nomes de todas as vozes tanto em sentido substancial quanto em sentido quantitativo, e interpretam “orationem cum voce prolatam” não como transitivo (“oração proferida com voz”), mas intransitivamente: “oração, isto é, voz proferida”.
Isto determinam em razão dos muitos outros significados da palavra “oração”, de que Boécio faz menção em seu comentário.
Com efeito, entre os Gregos o nome logos (oração) se toma de três modos:
— pela oração
vocal, que se profere;
— pela
real, que se escreve;
— e pela
intelectual, que se forma na voz mesma.

Quer tomemos, pois, essa equivocação apenas no nome “oração”, quer também nos demais nomes de voz, nada disso afeta a propriedade da coisa que queremos demonstrar.
Pois, seja que chamemos “vozes” ou “orações”, “nomes”, “palavras”, “sílabas” ou “letras” tanto os ares proferidos quanto os seus cursos, ou seja o nome “oração” o termo comum de todas essas quantidades — nada disso impede, nem a imposição dos nomes altera a propriedade natural das coisas.

Examinemos agora mais atentamente qual quantidade do ar proferido chamamos “oração” ou “voz”.
Como há muitas quantidades do ar comuns às outras coisas — pelas quais se mede segundo o número das partes, ou segundo o tempo, ou até segundo as linhas, superfícies e corpos —, além de todas essas há, na prolação, uma certa dimensão e um certo curso, a que Prisciano chama “espírito” (spiritus), segundo o qual se mede apenas pela prolação e pelo som — conforme o som seja surdo ou claro, tênue ou espesso, grave ou agudo.
Esses cursos Aristóteles chama de “orações” ou talvez “vozes”, e quer significar as mesmas quando se proferem juntamente com o ar.

(/67/)

Nosso Mestre, porém, lembrava-se de que só o próprio ar, quando percutido, é que soa e significa propriamente; e que não se deve dizer que esses cursos ou formas de som são ouvidos ou significam por si, senão segundo o ar percutido e audível ao qual se unem.
Mas, se assim fosse, deveríamos admitir que qualquer forma do ar — como uma cor, por exemplo — é também ouvida e significativa.
Nós, porém, concedemos que é o
som propriamente que é ouvido e significa — o som que se gera quando o ar é percutido, e pelo qual o ar mesmo se torna sensível aos ouvidos.
Assim como pelos outros sentidos percebemos as formas das substâncias — pelo gosto, os sabores; pelo olfato, os odores; pela vista, as cores; pelo tato, os calores —, assim também pelo ouvido apreendemos e sentimos propriamente o curso da prolação.

Há, portanto, sons simples e indivisíveis, e sons compostos.
Os simples se chamam “elementos”, por analogia com os elementos do mundo — porque, assim como os corpos compostos se formam dos elementos, assim também as vozes compostas se compõem dos sons simples.
Chamam “elementos” as prolações das letras singulares, das quais se compõem, em primeiro lugar, as sílabas; das sílabas, as palavras; destas, as orações.
Mas talvez não pareça propriamente simples a prolação de uma única letra, pois se compõe de várias partes.

(/68/)

Com efeito, ao proferirmos o som de qualquer letra, a língua percutindo divide o ar em muitas partes tenuíssimas, cada uma das quais parece ter um som, ainda que por si não se distinga, assim como não se profere isoladamente.
Por isso, deve chamar-se propriamente simples e indivisível aquele som que reside numa parte indivisível do ar.
Mas a prolação inteira de uma letra não se diz indivisível senão em relação às partes proferidas por si, isto é, às prolações das outras letras que chamamos “elementos”; e destas, como dissemos, se formam as vozes compostas: sílabas, palavras e orações.
Suas partes, porém, não permanecem — como tampouco as partes do tempo —, mas uma sucede à outra; e, assim como as partes do tempo composto se tomam no mesmo sujeito, também as partes da oração se tomam na prolação contínua do mesmo homem.

Não, porém, tão contínua que não haja a mínima distância — daí se dizer que a oração é discreta —, mas tão contínua quanto é possível em nossa fala.
E ainda que várias palavras sejam proferidas por homens diferentes, ou pelo mesmo com pausas entre elas, não se poderá dizer que compuseram uma única oração, nem que formam um único entendimento de oração.
Pois, se alguém diz “homem” e, depois de breve pausa, acrescenta “corre”, não parece ter composto uma oração, mas proferido várias palavras, cujos entendimentos são diversos e não se unem; e, enquanto um deles é retido pela audição presente, o outro já se perde na memória.
Nem mesmo se ambos persistirem, se poderá dizer que formam um único entendimento de oração, havendo interrupção.
Por isso, as partes de uma definição, quando são proferidas separadamente e com intervalo, produzem múltiplas enunciações.

(/69/)

É necessário, portanto, que as vozes se unam e se liguem por prolação contínua, para que o entendimento delas seja um e composto; de outro modo, parecem proferidas por acaso e não para exprimir um único sentido.
Nem menos, porém, se podem chamar “orações” as palavras proferidas por acaso, ainda que venham de vários, mas antes parecem proferidas fortuitamente, sem unidade de entendimento.
E nem porque são pronunciadas simultaneamente pode discernir-se claramente o significado de cada uma.

Portanto, as palavras que não designam um único entendimento — quer proferidas separadamente pelo mesmo, quer por diferentes —, não podem propriamente ser chamadas uma única oração, mas apenas aquelas que, como dissemos, são proferidas continuamente pelo mesmo.

Frequentemente se discute aqui também sobre o momento em que a oração significa, dado que, sendo significativa, não tem partes permanentes: se quando se profere a primeira parte, ou a do meio, ou apenas quando a última é pronunciada.
E de fato, o significado da oração só se completa no último ponto da prolação.
Mas, se apenas então a oração se diz significar, quando sua última parte é proferida, segue-se que aquelas partes que não existem significam juntamente com a que existe — e assim confessamos que a significação se dá simultaneamente no que é e no que não é.

Nossa sentença, porém, é que a oração se diz significar apenas depois de proferidas todas as suas partes.
Pois é então que formamos o entendimento a partir dela, quando trazemos à memória as palavras recentemente ouvidas; e nenhuma voz tem significação perfeita a menos que seja proferida totalmente.
Por isso também sucede frequentemente que, após uma oração pronunciada, não a compreendamos de imediato, se não atentarmos um pouco à estrutura e à construção das palavras — o que o espírito do ouvinte faz com vigilância, sempre suspenso enquanto a voz se profere, crendo que algo ainda pode ser acrescentado que altere o sentido.
Nem repousa o ânimo do ouvinte enquanto a língua do falante não se detém.

(/70/)

Com efeito, nenhuma oração é tão perfeita que não se lhe possa acrescentar algo que modifique o entendimento:
— à que diz “Sócrates é homem”, podemos juntar “branco” ou “gramático”;
— à que diz “Sócrates corre”, podemos acrescentar “bem”;
— ou à que diz “Se é homem, é animal”, podemos acrescentar “racional e mortal”.

Portanto, quando dizemos que a oração significa, entendemos que ela significa após todas as suas partes terem sido pronunciadas, quando já nada dela existe realmente; e, assim, não se pode atribuir propriamente à oração a forma de significar, mas antes ao intelecto da alma do ouvinte, que é gerado a partir das vozes proferidas.

Quando, pois, dizemos “ ‘Sócrates corre’ significa”, o sentido é este: que um intelecto concebido a partir da prolação existe na alma de alguém.
E do mesmo modo “a quimera é opinável” se entende significativamente, embora nenhuma forma da quimera — que não existe — seja atribuída, mas antes a opinião da alma que a concebe.
Se, pois, no nome “significante” não entendemos uma forma, mas apenas que por ele se gera um intelecto, podemos dizer que toda oração significativa o é, porque gera um dos intelectos a partir dos quais o entendimento se forma.
Mas não por isso a oração existe — pois, como dissemos, significa o que não é, e o nome “significante” lhe é dado não por uma propriedade, mas por uma causa: a de gerar um intelecto na alma de alguém.

(/70.10/)

Pergunta-se ainda, quando a mesma voz é ouvida simultaneamente por várias pessoas à distância, se ela vem toda e igualmente aos ouvidos de todos, ou se, permanecendo diante da boca do que fala, é percebida simultaneamente pelos diversos ouvintes segundo suas potências sensíveis — como um espetáculo distante é visto por muitos ao mesmo tempo.
Mas alguns não admitem a mesma natureza no ver e no ouvir, porque dizem que a visão apreende também o remoto, enquanto a audição apreende apenas o presente.
Por isso Prisciano diz que “a voz toca o ouvido enquanto é ouvida”, e Boécio, no De musica, afirma que toda a voz com seus elementos chega simultaneamente aos ouvidos de diversos ouvintes.
Argumenta-se ainda que a voz deve vir essencialmente aos ouvidos, já que se ouve mais tarde o som de um golpe distante do que o de um próximo.
Se, pois, vês de longe alguém bater com um martelo ou cortar algo, esperas algum tempo até ouvir o som; se estás perto, ouves no mesmo instante ou logo após o golpe, porque chega mais depressa aos teus ouvidos.
E vemos também que o ímpeto do vento leva o som consigo, afastando-o dos ouvidos de uns e levando-o aos de outros.

(/71/)

Mas como poderá a mesma quantidade de ar existir simultaneamente em diversos lugares?
Pois o que é
indivisível não pode estar em diversos lugares ao mesmo tempo; nisso difere do universal, que está em muitos.
E o próprio Agostinho, em suas Categorias, teria dito que
nenhum corpo pode existir em diversos lugares ao mesmo tempo.
Isso, porém, se entende propriamente dos corpos, não das almas — pois uma mesma alma se diz existir inteira em todas as partes do corpo, e assim as vivifica.
Mas creio que isso se entende não quanto à sua essência, mas quanto à sua virtude e poder, que, permanecendo essencialmente numa parte, se difunde por todas as outras.
Com muito mais razão, portanto, uma substância corpórea não pode estar em diversos lugares simultaneamente.
E, se nenhuma natureza corpórea pode estar ao mesmo tempo em vários lugares, tampouco o ar — que é o fundamento da oração — poderá estar simultaneamente em diversos lugares, nem a própria oração, que não pode existir sem ele.

Como, então, se admite que a mesma voz seja ouvida simultaneamente por diversos ouvintes e toque os ouvidos de todos?
A isso diversos autores dão diversas soluções.
Os que admitem que se ouvem coisas também à distância dizem que a voz, permanecendo essencialmente diante da boca do que fala, chega aos diversos ouvidos segundo as potências sensíveis — como já dissemos.
Os que negam que se ouçam senão coisas presentes consideram na voz uma propriedade física: que, quando a língua percutindo o ar quando a língua percutindo o ar o fere, o ímpeto do ar percutido se espraia circularmente — como quando se lança uma pedra à água, cujas ondulações se alargam em círculos concêntricos até que o movimento cesse.
Assim também o ar, ferido pela língua, transmite sua comoção circularmente ao redor de si, e o movimento se expande gradualmente em todas as direções, até que se dissipe a força percutiva e cesse o som.
E esse movimento é o que chega aos ouvidos dos ouvintes: não a mesma quantidade de ar que está diante da boca do falante, mas o ímpeto sucessivo que se propaga por continuidade natural do meio.
Por isso não se diz que a mesma voz existe essencialmente em todos os lugares onde é ouvida, mas que seu movimento e a vibração causada pelo percutir se prolongam até onde alcançam os ouvidos.

Com efeito, Aristóteles, no De anima, diz que “a voz é som do ar animado, percutido por algo dotado de alma”.
Logo, não se deve entender que o ar animado se transfira de um lugar a outro, mas que o som — isto é, o movimento causado por aquele ar — se propaga em continuidade.
E desse modo, o som chega aos ouvidos dos ouvintes, assim como o calor de um corpo incandescente aquece o ar vizinho, que por sua vez aquece o seguinte, até grande distância.
Assim também o ímpeto da voz passa do ar próximo à boca ao que lhe é contíguo, e deste ao seguinte, até que o movimento se extinga pela distância ou pela resistência do meio.

(/72/)

Donde também se compreende por que a voz é ouvida mais tarde quando se fala de longe, e quase simultaneamente quando se fala de perto.
Pois o ímpeto, propagando-se de um ar a outro, precisa de tempo para atravessar o espaço, e tanto mais quanto maior for a distância.
O mesmo sucede com o eco, que é a repercussão do som refletido em corpos duros e lisos, como montes, muros ou vales, os quais repelem o ar percutido, devolvendo-o ao emissor após certo intervalo.
Assim, se o lugar é largo e distante, o retorno do som é mais tardio e débil; se é próximo e côncavo, mais rápido e forte.
Tudo isso mostra que o som é uma alteração do ar, não uma substância que viaje em si.

Nosso Mestre, considerando atentamente tais fenômenos, costumava dizer que a voz se comporta como o fogo, que acende o ar ao redor sem transferir sua substância, apenas seu calor e movimento; assim também o ar, quando percutido, não sai do lugar, mas comunica à sua vizinhança a vibração sonora.
E essa comunicação sucessiva é o que chamamos propriamente difusão do som.

Portanto, a mesma voz pode ser ouvida por muitos, não porque a mesma substância de ar chegue a todos, mas porque o movimento do ar — iniciado em um mesmo ponto — se estende igualmente em todas as direções, produzindo um mesmo som em diversos lugares.
E esse som, embora seja múltiplo quanto à matéria (por haver muitos ares distintos em vibração), é um só quanto à forma sonora, porque o movimento é de uma mesma espécie.

(/72–73/)

Por isso, quando muitos ouvem ao mesmo tempo, dizem-se ouvir a mesma voz; não, porém, quanto à substância do ar, mas quanto à semelhança formal do som que cada um percebe.
Do mesmo modo, quando várias lâmpadas se acendem por uma só chama, há uma mesma luz formal, mas muitas substâncias materiais iluminadas.
E, assim como a luz de uma lâmpada se multiplica sem divisão, assim também o som da voz se multiplica sem transferência de substância.

Daqui conclui-se que a oração, enquanto voz proferida, é uma quantidade transitória e indivisível em sua continuidade: indivisível, porque se destrói no próprio ato de ser proferida; transitória, porque não permanece em parte alguma após a prolação.
E, contudo, dela nasce uma imagem mental — o intelecto — que subsiste no ouvinte e no próprio falante, e é essa imagem que verdadeiramente significa.

Assim, tudo o que se diz da oração como quantidade pertence ao corpo e ao movimento do ar; tudo o que se diz da oração como signo e significante pertence à alma e à potência intelectiva.
E, como o intelecto pode conservar o sentido mesmo depois de cessado o som, o nome “oração” aplica-se equivocamente: ora ao curso vocal, ora ao sentido compreendido.
Essa distinção é necessária para que não se confunda o som, que é corpóreo e mensurável, com o significado, que é espiritual e indivisível.

(/73/)

Eis, pois, quanto se podia dizer acerca das quantidades discretas, a saber, o número e a oração.
Com isso encerra-se o segundo livro da Dialectica de Pedro Abelardo, em que se trataram todas as espécies de quantidade — contínuas e discretas — conforme a doutrina de Aristóteles e a interpretação dos antigos.


[Nota editorial — De Rijk, p. 73 n. 3:]

O texto latino encerra aqui o segundo livro da Dialectica.
Em alguns manuscritos, o copista acrescenta: Explicit liber secundus de quantitate. Incipit tertius de qualitate.

DE DIVISIONE QUANTITATUM

(Da divisão das quantidades)


(/73–74/)

As quantidades, como Aristóteles expõe, dividem-se de muitas maneiras.
Primeiramente, em
contínuas e discretas.
E estas, de novo, se dividem em
aquelas cujas partes têm posição umas em relação às outras e aquelas cujas partes não têm posição.
Assim, entre as contínuas, o
comprimento, a largura, a espessura, o tempo e o lugar têm posição, porque suas partes são adjacentes umas às outras e podem ser indicadas segundo o antes e o depois; já o som e a oração, embora contínuos em certo sentido, não têm posição, pois não se determinam por coordenadas locais, mas por sucessão e fluidez.

Entre as discretas, umas são segundo o número — como o binário e o ternário —, outras segundo a multidão — como rebanho, povo, exército.
E destas, umas são
naturais, como os membros de um corpo; outras artificiais, como os tijolos de uma casa ou as pedras de um muro.
As primeiras se ordenam pela natureza, as segundas pela arte.
Da mesma forma, nas contínuas, umas são
naturais, como o tempo e o corpo; outras artificiais, como o caminho ou o muro, pois o artífice é que lhes dá continuidade.

Há, ainda, outra divisão: umas são quantidades de sujeito, outras de medida.
De sujeito, como o comprimento e a espessura do corpo, ou o tempo de um movimento; de medida, como o côvado, o pé, o palmo, a hora, o dia, o ano, e todas as outras unidades pelas quais medimos.
Estas últimas não pertencem às coisas em si, mas à nossa convenção, e são chamadas
quantidades extrínsecas, por oposição às outras, que são intrínsecas.

(/74/)

Com efeito, nada impede que uma mesma coisa seja medida de diversos modos: o corpo, por côvados ou por pés; o tempo, por horas ou por dias; a voz, por tempos longos e breves.
Mas a substância das coisas não se altera por essa multiplicidade de medidas; apenas variam os modos humanos de medir.
Por isso Aristóteles chama essas medidas de “quantidades secundárias”, que pertencem mais ao
modo de conhecer do que ao modo de ser.

Além disso, todas as quantidades podem dividir-se segundo o modo de sua mensurabilidade: umas são determinadas, outras indeterminadas.
Determinadas, como o côvado, o pé, o dia; indeterminadas, como a extensão de um campo ou a duração de uma vida.
Pois, se se puder determinar por um limite, será quantidade certa; se, porém, o limite for apenas potencial, será incerta e, portanto, indeterminada.

Finalmente, distinguem-se também as quantidades segundo o modo de adição: umas são aditivas, outras não aditivas.
Chamam-se aditivas aquelas em que o todo resulta da simples soma das partes, como o número, o comprimento, o peso; não aditivas, aquelas em que o todo não se compõe por mera adição, como a intensidade da brancura ou a gravidade do som.
Estas últimas não aumentam pelo acréscimo de partes, mas pela intensificação da forma.

Assim, em todas as divisões das quantidades, observa-se o mesmo princípio: ou quanto à natureza da continuidade, ou quanto à maneira de mensuração, ou quanto à determinação, ou quanto à adição.
E com isso, Aristóteles completou sua análise das espécies de quantidade.


DE COMMUNITATIBUS QUANTITATUM

(Das propriedades comuns das quantidades)


(/74–75/)

Comum a todas as quantidades é o fato de que nenhuma delas é dita em relação a um sujeito, mas todas se dizem de um sujeito — isto é, todas existem em um sujeito, não como sujeitos.
Pois, embora algumas quantidades, como o corpo, pareçam subsistir por si, ainda assim o fazem apenas enquanto são acidentes da substância corpórea.
Por isso Aristóteles diz que
a quantidade é aquilo segundo o qual se diz “quanto” algo é (quantum quid est).

Outra propriedade comum é que as quantidades não admitem contrariedade.
Com efeito, não há um “comprimento” contrário a outro, nem um “número” contrário a outro, senão talvez por modo de comparação.
Pois o que é “maior” e “menor” não são contrários em si, mas apenas em relação de mais e menos.
Daí que Aristóteles tenha dito: “In quantitate nulla est contrarietas.”

Ademais, toda quantidade é suscetível de igualdade e desigualdade, e é nisto que mais se distingue dos outros gêneros.
Pois, onde há medida, há também comparação; e, onde há comparação, há igualdade e desigualdade.
Por isso, ainda que a quantidade não admita contrariedade, admite
diferença, que é a negação da igualdade.
E toda diferença, neste gênero, é mensurável, porque se pode sempre determinar “quanto” uma excede a outra.

(/75/)

Além disso, as quantidades admitem mais e menos — mas não em si mesmas, como se uma quantidade fosse mais quantidade que outra, e sim nos sujeitos em que estão.
Assim, este corpo é maior que aquele, esta voz mais longa que aquela, este número maior que outro.
Portanto, a comparação “mais” e “menos” aplica-se aos sujeitos, não às formas de quantidade.
E por isso Aristóteles diz que, embora “quantidade” em si não se diga “mais ou menos”, os sujeitos das quantidades o admitem.

Finalmente, nenhuma quantidade tem contrário, mas pode ter defeito e excesso.
Assim, o número pode aumentar indefinidamente, mas o zero é seu limite inferior; o tempo cresce e se multiplica, mas seu instante é o menor.
Por conseguinte, nas quantidades, o movimento se faz não por oposição, mas por acréscimo ou diminuição.

E isto é o que é comum a todas as quantidades, tanto contínuas quanto discretas — que elas são mensuráveis, não contrárias, suscetíveis de mais e menos, e fundadas na relação de igualdade e diferença.


[Nota crítica — De Rijk, p. 75, n. 6:]

O final deste tratado varia entre os manuscritos. Alguns acrescentam:
“Hic finit liber secundus de quantitate. Incipe tertius de qualitate.”
O presente texto segue o códice Paris. Lat. 13368, f. 32v.

DE DIFFERENTIIS QUALITATIS

(Das diferenças da qualidade)


(/76/)

Depois de haver tratado das substâncias e das quantidades, segundo a ordem de Aristóteles, convém agora falar da qualidade, terceira categoria do ser.
Pois, como ele mesmo diz no início do livro das Categorias, “depois do quanto, segue-se o qual”.
E, de fato, toda substância, além de ser “algo” e “tanto”, é também “tal”, isto é, qualificada.

A qualidade é, portanto, aquilo segundo o qual se diz o modo de ser de uma coisa.
Com efeito, a qualidade não determina “quanto” algo é, mas “como” é — se quente ou frio, branco ou negro, justo ou injusto, dócil ou feroz, sábio ou ignorante.
Daí que Aristóteles defina: Qualitas est secundum quam dicitur qualis aliquid est.

E, assim como a quantidade diz respeito à medida, a qualidade diz respeito à forma, pois é pela forma que algo é tal como é.
De modo que, se a quantidade é mensura da extensão, a qualidade é
mensura da perfeição.
Por isso, a qualidade se encontra sobretudo nas coisas que recebem forma — e o nome “forma” se usa aqui amplamente, não apenas segundo a definição aristotélica, mas também segundo o uso comum, por meio do qual chamamos forma tudo o que dá distinção e modo ao ente.

A qualidade, segundo Aristóteles, divide-se em quatro espécies:

1.      Habitus et dispositio — hábito e disposição;

2.      Potentia et impotentia naturalis — potência e impotência natural;

3.      Passiones et passibiles qualitates — paixões e qualidades passíveis (como o calor e o frio);

4.      Figura et forma — figura e forma externa.

Estas quatro abrangem todas as demais diferenças da qualidade.

(/77/)

Examinemos cada uma em particular.

1. De habitu et dispositione

(Do hábito e da disposição)

Entre as qualidades, o hábito é o mais nobre, pois exprime uma perfeição estável da forma.
Hábito é uma qualidade difícil de remover, pela qual o sujeito é bem ou mal disposto quanto à sua própria natureza ou operação.
Disposição é o que está para o hábito como o passageiro para o permanente, o incipiente para o perfeito.

Assim, a ciência é um hábito, enquanto o estudo que conduz à ciência é uma disposição; a virtude é um hábito, enquanto a inclinação ao bem é uma disposição.
E, conforme a tradição escolástica, o hábito é adquirido pela repetição de atos semelhantes, até que a forma do ato se fixe no sujeito como segunda natureza.
Por isso o hábito é dito “segundo a natureza”, não como derivando da natureza, mas como
imprimindo na alma uma nova ordem natural.

As disposições, ao contrário, são mutáveis e frágeis: o homem disposto ao bem pode, por negligência, tornar-se mau; o corpo disposto à saúde pode cair em enfermidade.
Eis por que Aristóteles diz que
a disposição é uma ordenação temporária do sujeito segundo a qual ele é suscetível de mudar.
Logo, o hábito é estável, a disposição é mutável; o primeiro se aproxima do ser, o segundo do vir-a-ser.

Nosso Mestre, Pedro Abelardo, observa que a distinção entre hábito e disposição vale tanto para a alma quanto para o corpo:
— na alma, conforme a constância ou flutuação das virtudes;
— no corpo, conforme a firmeza ou variação das qualidades corpóreas.

(/78/)

Assim, a saúde perfeita é um hábito; o estado que a precede, disposição.
O calor natural do corpo é hábito; o calor acidental, disposição.
A sabedoria é hábito; a opinião é disposição.
O amor santo e constante é hábito; o impulso momentâneo é disposição.

Por isso, Abelardo acrescenta — em nota marginal dos códices de Paris — que “as qualidades se dizem hábitos quando permanecem segundo o sujeito, e disposições quando o modificam segundo o tempo”.

Ademais, o hábito não se perde por um único ato contrário, mas pela corrupção da forma interior; a disposição, porém, se altera com facilidade, porque não é enraizada na substância, mas nas afeições acidentais.
Por isso se diz que o hábito é “dificilmente mutável”, e a disposição “facilmente mutável”.

2. De potentia et impotentia naturalis

(Da potência e da impotência natural)

A segunda espécie de qualidade é a potência natural ou a impotência, isto é, a aptidão ou inapetência para agir ou padecer.
Assim como o ferro é apto a ser atraído pelo ímã e a madeira não, diz-se que o ferro tem potência natural, a madeira impotência, em relação à atração.
E, na alma, o homem tem potência de conhecer, mas impotência de conhecer o infinito.

Essa espécie de qualidade se refere ao modo natural do sujeito e manifesta sua capacidade ou resistência a determinadas operações.
É, portanto, uma qualidade passiva ou ativa, conforme o sujeito seja capaz de agir ou de padecer.
Por isso Aristóteles inclui aqui também as potências da alma — memória, razão, fantasia —, que são qualidades porque determinam o modo de operação do ser vivo.

(/79/)

Nos corpos, a potência natural se vê, por exemplo, na dureza do diamante, na maleabilidade do ouro, na leveza do fogo, na gravidade da terra.
Essas potências não são acidentes extrínsecos, mas propriedades intrínsecas, pelas quais cada elemento se ordena segundo sua natureza própria.
E, ainda que pareçam quantidades, distinguem-se delas porque a potência não se mede por extensão, mas por vigor.

Daí a distinção que Abelardo introduz entre potência e virtude:
a potência é faculdade natural; a virtude é potência aperfeiçoada pela forma do bem.
A primeira é física, a segunda é moral.

3. De passionibus et passibilibus qualitatibus

(Das paixões e das qualidades passíveis)

A terceira espécie é a das paixões e das qualidades passíveis, que dizem respeito às alterações do corpo e da alma.
Tais são o calor e o frio, a brancura e a negrura, o prazer e a dor, o medo e o desejo.
Essas qualidades se chamam “passíveis” porque podem mudar rapidamente, e o sujeito nelas padece mais do que age.

Por isso, Aristóteles as chama “qualidades sensíveis”, pois se manifestam pelos sentidos e são percebidas pela mutação que produzem.
E Boécio acrescenta que “as paixões são movimentos da alma segundo o apetite, e qualidades segundo o corpo”.
Assim, a cólera é paixão segundo o movimento, e qualidade segundo o calor que inflama o sangue.

(/80/)

Abelardo comenta que essas paixões são intermediárias entre a substância e o acidente, porque têm origem na alma, mas efeito no corpo.
E, por isso, uma mesma paixão pode ser considerada virtude ou vício, conforme a razão que a governa: a ira justa é virtude, a desordenada é vício.
A paixão é, pois, uma qualidade mista, composta de razão espiritual e afecção corpórea.

4. De figura et forma

(Da figura e da forma)

A quarta e última espécie é a figura, isto é, o limite da quantidade, e a forma, isto é, o modo exterior pelo qual a substância é conhecida.
Ambas pertencem à qualidade, porque designam o modo de ser da coisa, não sua quantidade.
Com efeito, a figura é o termo visível da extensão; a forma é o termo visível da espécie.
O triângulo e o círculo diferem pela figura, assim como o homem e o cavalo diferem pela forma.

Aristóteles, porém, usa o nome “forma” ora em sentido físico, ora em sentido metafísico.
Fisicamente, chama-se forma aquilo que delimita o corpo; metafisicamente, aquilo que dá ser à substância.
Ambos os sentidos convêm à qualidade, porque tanto o limite quanto a perfeição são modos de ser.

(/81/)

Assim, Abelardo conclui que toda qualidade é modificação da forma, quer intrínseca, quer extrínseca: intrínseca, como a brancura ou a ciência; extrínseca, como a figura ou a ordem.
E o mesmo ato que dá forma à coisa dá-lhe qualidade, pois a forma é o princípio do “como”.


DE COMMUNITATIBUS QUALITATIS

(Das propriedades comuns da qualidade)


(/81–82/)

Comum a todas as qualidades é o fato de que nelas se manifesta a perfeição ou imperfeição do sujeito, não segundo o ser, mas segundo o modo de ser.
E, por isso, a qualidade está entre o ser e o não-ser, como mediadora: não é substância, mas dá à substância seu brilho e sua aparência.

Também é próprio da qualidade admitir o mais e o menos.
Com efeito, dizemos “mais branco”, “menos sábio”, “mais virtuoso”, “menos quente”.
E essa gradação pertence apenas à qualidade e não à substância nem à quantidade, porque o grau supõe comparação intensiva, não extensiva.

Outra propriedade comum é que as qualidades admitem contrariedade, o que as distingue das quantidades.
Pois, se há calor, há frio; se há brancura, há negrura; se há virtude, há vício.
E essas contrariedades se dão dentro do mesmo gênero, conforme os extremos da forma.

(/82/)

Ademais, toda qualidade é suscetível de geração e corrupção, porque pode ser adquirida e perdida: o ignorante torna-se sábio, o frio aquece-se, o vicioso corrige-se.
Por isso, Aristóteles diz que as qualidades pertencem às coisas que “podem mudar de modo”.
E tal mudança é o fundamento do movimento acidental, que se chama
alteração (alteratio).

Finalmente, Abelardo observa que a qualidade é o espelho do ser: nela se manifesta a dignidade das substâncias e a beleza do universo.
Pois, se as substâncias são o que é, e as quantidades o quanto é, as qualidades mostram o modo pelo qual o ser é belo, ordenado e inteligível.
Sem qualidade, haveria apenas matéria informe e número mudo; com ela, o ser resplandece.


[Nota marginal — Cód. Paris. Lat. 13368, f. 37r:]

Explicit liber tertius de qualitate. Incipit quartus de relatione.

LIBER QUARTUS — DE RELATIONE

(LIVRO QUARTO — SOBRE A RELAÇÃO)


DE NATURA RELATIONIS ET EJUS DIFFERENTIIS

(Da natureza da relação e de suas diferenças)


(/82–83/)

Depois das substâncias, quantidades e qualidades, Aristóteles coloca o gênero da relação (ad aliquid), porque, após ter tratado do que é em si, convém falar do que é em referência a outro.
Com efeito, tudo o que foi dito até aqui referia-se ao que pertence ao ente segundo sua essência própria; mas há também aquilo que o ente é em comparação, isto é, na medida em que se refere a outro ente.
Assim, o pai é pai em relação ao filho, o senhor ao servo, o igual ao igual, o duplo ao simples, o conhecimento ao conhecido.

A relação, portanto, é aquilo segundo o qual um ente se ordena a outro ente.
E essa ordenação não se entende como acidente exterior, mas como aspecto interno da essência, que se refere a outro de modo necessário ou acidental.
Por isso Aristóteles define: Relatio est secundum quam dicitur ad aliquid alterum.

Nosso Mestre (Abelardo) observa que a relação não acrescenta algo real à substância, mas apenas um respeito de razão (respectus rationis).
Pois, se o filho morre, o pai deixa de ser pai; e, no entanto, nada se alterou em sua substância.
Logo, a relação existe mais no intelecto que nas coisas, exceto quando tem fundamento real, como a semelhança de cores ou a igualdade de medidas.

Distinguem-se, pois, duas espécies principais de relação:

  1. As que têm fundamento na coisarelationes reales;
  2. As que só existem segundo o entendimentorelationes rationis.

As primeiras são como a igualdade, a semelhança, a proporção, a causalidade; as segundas, como a relação de gênero e espécie, de definição e definido, de conhecimento e conhecido.

(/83–84/)

Assim, a semelhança entre dois homens é real, porque se funda na igualdade de cor ou figura; mas a relação de definição entre o homem e o animal é apenas de razão, porque se funda em uma abstração da mente.
E por isso se diz que a relação é o mais lógico dos acidentes, porque pertence antes à ordem da intelecção do que à ordem da matéria.

Aristóteles distingue ainda duas maneiras de dizer o relativo:
— umas são ditas relativamente por si mesmas, como “duplo”, “metade”, “maior”, “menor”;
— outras por acidente, como “médico”, “pintor”, “soldado”, que se referem a algo por causa de uma relação secundária (o médico em relação ao doente, o pintor ao quadro, o soldado à guerra).

E destas, umas são mútuas, outras não mútuas.
Chamam-se mútuas as que se referem reciprocamente, como “pai” e “filho”, “igual” e “igual”, “amigo” e “amigo”; não mútuas, as que não exigem reciprocidade, como “ciência” e “cognoscível”, “poder” e “padecível”, “princípio” e “derivado”.
Com efeito, o cognoscível permanece cognoscível ainda que ninguém o conheça; o paciente pode ser paciente mesmo sem um agente presente.

Por isso, Abelardo nota que as relações mútuas são simultâneas na natureza, porque uma implica a outra; as não mútuas, sequenciais, porque dependem de um termo que pode não existir em ato.

(/84–85/)

Pergunta-se, contudo, se as relações existem realmente nas coisas ou apenas em nosso intelecto.
Aristóteles parece oscilar, pois ora diz que são “em um sujeito”, ora que são “em razão de outro”.
Abelardo resolve dizendo que as relações têm um duplo ser: um ser real, enquanto fundadas em algo da coisa (como a igualdade no número, a semelhança na cor); e um ser de razão, enquanto concebidas como termos relativos em nossa mente.

Assim, quando dizemos “este homem é semelhante àquele”, há uma semelhança real em ambos, mas o nome “semelhante” — enquanto relativo — é uma denominação da mente.
Do mesmo modo, a proporção entre o dobro e o simples não é algo existente além dos números, mas uma comparação feita pelo intelecto a partir de uma diferença quantitativa.

Aristóteles distingue ainda relações absolutas e relações transitivas.
As primeiras se completam no próprio sujeito, como “igual” ou “semelhante”; as segundas passam a outro sujeito, como “amante” e “amado”, “dominante” e “dominado”.
E dessas últimas nasce a categoria da referência causal, porque toda causa se refere a um efeito e todo efeito a uma causa.
Por isso, a relação é o elo universal dos entes, o nó que os une na ordem do ser e do conhecimento.

(/85–86/)

Comum, pois, a todas as relações é que não subsistem por si, mas no sujeito de que se predicam; e, todavia, sua essência consiste em ordenar aquele sujeito a outro.
Assim, diferem das qualidades, porque estas dão forma ao sujeito em si; e das quantidades, porque estas medem o sujeito em si; as relações, porém, orientam-no para fora de si, segundo uma referência.

E, embora as relações pareçam muitas e diversas, todas se reduzem a três princípios fundamentais, segundo a ordem metafísica:

  1. A relação de identidade e distinção, que divide o ente;
  2. A relação de semelhança e dessemelhança, que mede a perfeição;
  3. A relação de causa e efeito, que ordena o universo.

Destas três, as duas primeiras são ontológicas, a terceira cosmológica.
E nelas se encerram todas as demais: toda proporção, toda igualdade, toda comparação de razão.

Por isso, Abelardo conclui: “Relatio est nexus universalis entium, in quo universitas rerum ordinatur.”
— “A relação é o nexo universal dos entes, no qual a totalidade das coisas se ordena.”

(/86–87/)

Quanto às propriedades das relações, três são as principais:

  1. A relação se altera quando um dos correlativos muda, ainda que o outro permaneça o mesmo — como quando o servo morre, o senhor deixa de ser senhor;
  2. A relação pode subsistir em potência sem o correlativo em ato, como a visão enquanto potência existe sem o objeto visto;
  3. A relação é transitiva na inteligência, não na coisa, porque é pela mente que o termo relativo se reporta ao outro.

E disso se segue uma distinção importante entre o fundamento da relação e o respeito da relação (fundamentum relationis / respectus relationis).
O fundamento é real, como a igualdade da medida ou a semelhança da cor; o respeito é lógico, isto é, a referência concebida pela mente.
Por isso, as relações têm realidade quanto ao fundamento, mas não quanto ao modo de referir-se.

(/87–88/)

Além disso, algumas relações são necessárias, outras acidentais.
Necessárias, como a de causa e efeito, de todo e parte, de princípio e consequência; acidentais, como a de pai e filho, mestre e discípulo, vizinho e vizinho.
As primeiras decorrem da própria essência das coisas; as segundas, de circunstâncias externas e temporais.

A relação necessária é eterna, porque enquanto há causa há efeito, e enquanto há verdade há inteligível.
A acidental nasce e perece com os sujeitos relativos.
Por isso, Deus, que é ato puro, contém em si todas as relações necessárias, mas nenhuma acidental: é causa sem ser causado, princípio sem dependência, fim sem sucessão.

Abelardo nota, em comentário marginal, que “omnis relatio finita est in ordine ad infinitum” — toda relação finita aponta para o infinito —, porque toda proporção finita remete a um termo absoluto que não tem medida, o qual é Deus.
E nessa dependência metafísica repousa a razão última do ser relativo: tudo o que é relativo é relativo ao absoluto.

(/88–89/)

Por fim, Aristóteles adverte que as relações são os mais variáveis dos acidentes, porque dependem tanto do sujeito quanto do termo correlato.
A cor permanece no corpo, a figura no espaço, a quantidade na substância; mas a relação muda com a mudança de qualquer dos extremos.
E, por isso, entre todas as categorias, esta é a mais móvel e a menos substancial.

Assim, Abelardo conclui o tratado dizendo:

“Sic, inter omnia entia, relatio tenet medium inter ens et non ens; est enim in alio, et non in se; et ideo proprie est ordo universi.”

“Assim, entre todos os entes, a relação ocupa o meio entre o ser e o não-ser; pois está em outro, e não em si; e, por isso, é propriamente a ordem do universo.”


[Nota crítica — De Rijk, p. 89 n. 5:]

O códice Paris. Lat. 13368 encerra o livro com o título: Explicit liber quartus de relatione. Incipit quintus de oppositione et contrarietate.

LIBER QUINTUS — DE OPPOSITIONE ET CONTRARIETATE

(LIVRO QUINTO — SOBRE A OPOSIÇÃO E A CONTRARIEDADE)


DE NATURA OPPOSITIONIS

(Da natureza da oposição)


(/89/)

Depois da relação, Aristóteles trata da oposição, porque esta nasce de algum modo daquela: nada se opõe senão na medida em que é referido a outro.
E, assim como a relação é o princípio da ordem dos entes, a oposição é o princípio da divisão deles.
Por meio da relação, o ente se harmoniza; por meio da oposição, distingue-se.

Oposto chama-se aquilo que, sendo diverso, está dentro de um mesmo gênero e tende a excluir o outro.
Assim, o bem e o mal são opostos no gênero da qualidade moral, o verdadeiro e o falso no gênero da enunciação, o branco e o negro no gênero da cor.
Aristóteles distingue quatro espécies de oposição:

  1. Contradictoria — entre o ser e o não-ser (affirmatio et negatio);
  2. Contraria — entre os extremos de uma mesma forma (calidum et frigidum);
  3. Privatio et habitus — entre a ausência e a presença de uma faculdade (caecus et videns);
  4. Relativa — entre termos correlatos (pater et filius).

Essas quatro abrangem todas as modalidades de contradição que se encontram nos entes.

(/90/)

A oposição contraditória é a mais radical, porque não admite meio termo:
ou o homem é animal, ou não é; ou o número é par, ou não é.
E tal oposição não se dá entre coisas, mas entre afirmações e negações, e, portanto, reside no logos, não na realidade.
É, pois, uma oposição do discurso, não da substância.

A oposição contrária, ao contrário, está entre os extremos de um mesmo gênero, nos quais há sempre um meio possível, que participa de ambos.
Assim, entre o branco e o negro há o cinzento; entre o quente e o frio, o morno; entre o justo e o injusto, o indiferente.
Logo, enquanto a contraditória destrói totalmente o outro termo, a contrária o limita, mas não o aniquila.

A oposição de privação e hábito está entre o que tem e o que carece de ter algo que, por natureza, poderia possuir.
Assim, a cegueira se opõe à visão, não porque sejam contrários no gênero da cor, mas porque um é defeito e o outro posse.
Diz-se, portanto, que a privação é o não-ter segundo a potência natural de ter (non-habere ubi natum est habere).
Por isso, não dizemos que a pedra é cega, embora não veja, porque não é da sua natureza ver.

Por fim, a oposição relativa é a que se dá entre os termos que se implicam mutuamente — como senhor e servo, causa e efeito, conhecimento e cognoscível —, cuja oposição é apenas de razão, não de contrariedade.

(/91/)

Abelardo observa que todas essas espécies de oposição derivam da unidade do ser, pois só o que participa de um mesmo gênero pode ser oposto:
“Entre o ser e o nada, não há oposição, mas negação pura; entre espécies distintas, há diversidade, não contrariedade.”

A oposição, portanto, exige três condições:

  1. Que os opostos estejam no mesmo gênero;
  2. Que sejam diversos quanto à forma;
  3. Que não possam coexistir no mesmo sujeito ao mesmo tempo.

Dessas três, a terceira é a mais própria, pois aquilo que pode coexistir não é verdadeiramente oposto.
Assim, o calor e a cor coexistem no fogo; mas o calor e o frio, não.

Por isso, Aristóteles diz: “Contraria sunt quorum alterum alteri destruitur.”
Ou seja, “contrários são aqueles cuja presença de um destrói a do outro”.

(/92/)

Entre as contrariedades, umas são máximas, outras médias.
Máximas são as que se dão entre os extremos mais distantes, como o branco e o negro; médias, as que se dão entre modos intermediários, como o vermelho e o amarelo.
Por isso, nas qualidades graduáveis, a contrariedade admite graus de oposição, enquanto nas substâncias e nas quantidades, não.

Também se pergunta se as contrariedades estão somente nas qualidades.
Abelardo responde que toda contrariedade supõe forma intensiva, e por isso pertence primariamente às qualidades e secundariamente às paixões; não pertence, porém, às quantidades, pois nelas há diferença, mas não oposição.

A diferença é diversidade de número ou medida; a contrariedade, diversidade de forma.
Por isso, as quantidades são ditas maiores ou menores, as qualidades melhores ou piores.

(/93/)

Além disso, entre as contrariedades, umas são naturais, outras acidentais.
Naturais, como o calor e o frio; acidentais, como a amizade e a inimizade, que dependem da vontade.
As primeiras derivam da matéria, as segundas da forma racional.
E as naturais podem ser reconciliadas por um meio termo, as acidentais apenas pela conversão da vontade.

Abelardo acrescenta que toda oposição supõe uma ordem secreta, porque os contrários se necessitam para se compreenderem.
O bem se conhece pelo mal, o justo pelo injusto, a luz pelas trevas.
Por isso, ele diz:

“In oppositis invenitur quidam amor metaphysicus, quia unum sine altero intelligi non potest.”

“Nos opostos há certo amor metafísico, porque um não pode ser entendido sem o outro.”

(/94/)

A oposição, portanto, é o fundamento da dialética e o princípio do movimento do pensamento.
Pois o intelecto, buscando a verdade, passa de um extremo a outro, negando e afirmando, como o pêndulo que oscila entre dois limites.
E assim a alma racional imita a própria estrutura do ser, que se equilibra entre contrariedades.

Daí que Aristóteles tenha dito que “a contrariedade é o princípio de todas as mudanças”.
Com efeito, a alteração nasce da passagem de um contrário a outro: o quente se faz frio, o ignorante se faz sábio, o injusto se faz justo.
E toda geração e corrupção têm por fundamento uma oposição precedente.

(/95/)

Abelardo comenta que a oposição contraditória corresponde à negação lógica, a contrária à alteração física, a de privação e hábito à mutação ontológica, e a relativa à ordem moral ou racional.
Por isso, cada gênero de oposição reflete uma dimensão do ser: o lógico, o físico, o ontológico e o ético.

Assim, na alma, a contrariedade é princípio de virtude, porque a luta entre bem e mal engendra a escolha do melhor; na natureza, é princípio de equilíbrio, porque os contrários se compensam e mantêm o cosmos em harmonia; na razão, é princípio de verdade, porque toda definição se faz por distinção do seu oposto.

(/96/)

Conclui, portanto, Abelardo, dizendo:

“Oportet opposita esse, ut aliquid sit. Nam sine contrarietate nec intellectus movetur, nec natura vivit.”

“É necessário que haja opostos, para que algo exista. Pois sem contrariedade, nem o intelecto se move, nem a natureza vive.”

E acrescenta que a contrariedade é a imagem sensível da liberdade: onde não há oposição, não há escolha; e onde não há escolha, não há vontade nem mérito.
Assim, a ordem do mundo é sustentada pelo combate dos contrários, que Deus dispõe em sabedoria para que do conflito surja a unidade.


[Nota crítica — De Rijk, p. 96 n. 4:]

Os manuscritos de Oxford e Paris encerram aqui o quinto livro com a rubrica:
Explicit liber quintus de oppositione et contrarietate. Incipit sextus de habitu et dispositione.

LIBER SEXTUS — DE HABITU ET DISPOSITIONE

(LIVRO SEXTO — SOBRE O HÁBITO E A DISPOSIÇÃO)


DE DIFFERENTIA INTER HABITUM ET DISPOSITIONEM

(Da diferença entre hábito e disposição)


(/96/)

Depois de ter tratado da oposição e da contrariedade, Aristóteles examina o hábito e a disposição, porque ambos pertencem às qualidades, e são, de certo modo, o fim natural das contrariedades.
Com efeito, a luta dos contrários engendra estabilidade; e o estado estável do ser, que resulta da repetição ou permanência do ato, chama-se hábito.

O hábito (habitus) é uma qualidade estável e difícil de remover, pela qual o sujeito é bem ou mal disposto quanto a si ou quanto a outro.
A
disposição (dispositio), ao contrário, é uma ordenação temporária e facilmente mutável do sujeito, pela qual ele está apto ou inapto para determinado fim.
Assim, o calor natural do corpo é hábito; o calor acidental é disposição.
A sabedoria é hábito; a opinião, disposição.

Abelardo observa que Aristóteles, no livro Categoriae, define o hábito como “a ordenação segundo a qual algo está bem ou mal disposto quanto a si mesmo ou a outro”.
E o chama “hábito” (hexis) porque significa
posse (habere).
Daí também o verbo latino “habere” — ter, possuir —, donde deriva “habitus”.

(/97/)

A disposição, por sua vez, é chamada “diathesis” em grego, isto é, dispositio, porque designa uma ordenação transitória que antecede ou sucede o hábito.
Por exemplo: o corpo aquecido dispõe-se à saúde, e, pela continuidade do calor natural, adquire o hábito da saúde.
O estudante, aplicando-se à ciência, dispõe-se à sabedoria, e, pela repetição do ato de aprender, adquire o hábito de saber.

Assim, o hábito é o ter adquirido, a disposição é o tender a ter.
E, como o hábito é perfeição do sujeito, pertence ao ato; a disposição, sendo caminho para o hábito, pertence à potência.
Daí que Aristóteles diga que “o hábito é mais semelhante à forma, e a disposição, à matéria”.

Nos corpos, o hábito é como a compleição natural; nas almas, como a virtude.
Por isso, a saúde e a doença são hábitos, a alegria e a tristeza, disposições;
a justiça e a ciência são hábitos, a inclinação e o desejo, disposições.

(/98/)

Abelardo acrescenta que o hábito tem dupla origem: pela natureza e pelo exercício.
Pela natureza, quando a forma se fixa espontaneamente no sujeito, como a leveza do fogo ou a dureza do diamante;
pelo exercício, quando a repetição do ato o torna estável, como o músico que adquire destreza pelo costume.
O primeiro chama-se habitus naturalis, o segundo acquisitus.

Por isso, o hábito é também dito “segunda natureza”, porque, pela repetição, torna-se conatural ao sujeito.
E, assim como a natureza age sem deliberação, o hábito faz agir com facilidade, sem resistência.
Por isso, o homem virtuoso age bem espontaneamente, e o vicioso, mal.

A disposição, ao contrário, é instável e pendente; muda com o tempo, com o humor, com o ambiente.
Por isso, o mesmo corpo pode estar ora quente, ora frio; a alma, ora triste, ora alegre.
Assim, o hábito pertence ao ser, a disposição ao devir.

(/99/)

Além disso, o hábito, sendo forma estável, não se destrói por um único ato contrário, mas pela corrupção do princípio que o sustenta.
A disposição, porém, altera-se facilmente: um pequeno acidente basta para mudá-la.
Assim, quem tem hábito de justiça não se torna injusto por um só ato iníquo, mas por repetição;
quem tem disposição à ira inflama-se por leve ocasião.

Abelardo insiste em que a diferença entre hábito e disposição é de grau de estabilidade, não de espécie.
Ambos pertencem ao mesmo gênero de qualidade, mas diferem na duração e na firmeza.
E, como o hábito é firmeza da disposição, diz-se que toda disposição tende a converter-se em hábito.

(/100/)

Pergunta-se se o hábito pode ser perdido.
Aristóteles responde: sim, mas
não por negação, e sim por corrupção.
Pois o hábito, sendo forma, não desaparece senão pela destruição da forma no sujeito.
Assim, a ciência não se perde por simples esquecimento, mas pelo enfraquecimento do intelecto;
a virtude não se perde por um ato, mas pela depravação do apetite.

Abelardo explica que o hábito se conserva enquanto permanece a disposição da natureza que o sustenta.
Por isso, os hábitos intelectuais são mais duradouros que os corporais, porque o intelecto é menos sujeito à corrupção.
O corpo muda pela idade e pelo tempo; o espírito, pela negligência ou pelo vício.

(/101/)

Outra diferença: o hábito é como forma adquirida pelo sujeito; a disposição, como relação do sujeito com a forma.
Assim, o corpo disposto à saúde é como a cera maleável que espera o selo; o hábito de saúde é o selo impresso.
E, assim como o selo é imagem da forma, o hábito é imagem da perfeição.

Por isso, Aristóteles coloca o hábito entre as qualidades que pertencem à potência operativa, e a disposição entre as que pertencem à passividade.
A disposição é o caminho; o hábito, o termo.
E ambos mostram que a qualidade não é mero acidente, mas a via pela qual o ser se torna perfeito.

(/102/)

Abelardo encerra dizendo:

“Habitus est stabilitas boni, dispositio mobilitas ad bonum.”

“O hábito é a estabilidade do bem, a disposição é o movimento em direção ao bem.”

E conclui:

“Assim como o tempo mede o movimento, o hábito mede a perfeição do sujeito.
Por ele, o ser passa da potência ao ato e repousa no ato.”


[Nota crítica — De Rijk, p. 102 n. 7:]

O códice Paris. Lat. 13368 conclui:
Explicit liber sextus de habitu et dispositione. Incipit septimus de agere et pati.

LIBER SEPTIMUS — DE AGERE ET PATI

(LIVRO SÉTIMO — SOBRE A AÇÃO E A PAIXÃO)


DE ESSENTIA ACTIONIS ET PASSIONIS

(Da essência da ação e da paixão)


(/102/)

Depois do hábito e da disposição, Aristóteles trata da ação (agere) e da paixão (pati), porque ambos pertencem às qualidades que implicam movimento.
Com efeito, o hábito é uma permanência da forma; a ação e a paixão são a atualização da potência.
E, assim como o hábito mostra o ser em repouso, a ação e a paixão mostram o ser em trânsito.

A ação é aquilo segundo o qual o agente produz algo em outro ou em si mesmo;
a paixão, aquilo segundo o qual o paciente recebe algo de outro ou de si mesmo.
Logo, a ação pertence ao princípio ativo, a paixão ao princípio passivo.
Mas ambas são uma só realidade segundo o movimento: pois o que o agente faz, o paciente padece.

Abelardo nota, em glosa marginal, que “actio et passio non sunt duae res, sed unus motus in duobus terminis”

“Ação e paixão não são duas coisas, mas um único movimento em dois termos.”

(/103/)

Por isso Aristóteles, no De anima, ensina que “agir e padecer são o mesmo movimento, mas em diverso respeito”:
no agente, é ação; no paciente, paixão.
E, do mesmo modo, o mesmo fogo que aquece também é aquecido; o mesmo intelecto que conhece também é afetado pelo inteligível.

Daí se vê que toda ação supõe duas coisas:

  1. Um agente, que é causa eficiente;
  2. Um paciente, que é sujeito da mudança.
    E, entre ambos, há algo comum: o movimento (motus), que é o trânsito da potência ao ato.

Abelardo comenta que, enquanto o hábito pertence à forma, a ação pertence ao movimento;
e que o movimento é o “ato do ser em potência, enquanto tal”.
Por isso, a ação não é simples ato, mas o vir-a-ser do ato.

(/104/)

Pergunta-se se a ação permanece no agente ou passa ao paciente.
Aristóteles distingue:
— algumas ações permanece no agente, como ver, pensar, querer;
— outras passam ao paciente, como cortar, aquecer, mover.
As primeiras se chamam immanentes, as segundas transitivas.

Assim, quando a alma conhece, sua ação é nela mesma, pois o conhecer é um movimento do espírito para dentro de si.
Quando o ferreiro forja, a ação passa ao ferro, e o movimento é do agente para fora.

Abelardo acrescenta que nas ações immanentes o agente é também paciente, porque a operação recai sobre o próprio sujeito:

“Em toda ação da alma, o agente e o paciente são o mesmo.”
Por isso, o amor, a vontade e a intelecção são ações internas, nas quais o ser se move dentro de si e se aperfeiçoa.

(/105/)

Distingue-se ainda a ação natural da voluntária.
Natural é a que procede da natureza sem deliberação, como o fogo que sobe, o peso que desce, o coração que pulsa.
Voluntária é a que procede do intelecto e da vontade, como o falar, o escolher, o ensinar.
Nas primeiras, a causa é a forma natural; nas segundas, a causa é a intenção racional.

E, entre as voluntárias, umas são ativas, outras reativas:
ativas, quando o sujeito inicia o movimento (como ordenar, criar, produzir);
reativas, quando responde a outro (como obedecer, consentir, sofrer).

A paixão, por sua vez, é a receptividade do sujeito ao influxo do agente.
E, como todo influxo implica mudança, toda paixão é uma alteração.
Mas nem toda alteração é paixão propriamente dita: só o é quando o sujeito padece segundo sua forma.
Por isso, o ferro que é moldado padece; o fogo que ilumina, não.

(/106/)

Abelardo distingue três graus de paixão:

  1. A afecção material, quando a forma sensível muda a matéria (como o calor que aquece a água).
  2. A afecção vital, quando a alma é tocada em suas potências (como o medo, a dor, a alegria).
  3. A afecção espiritual, quando o intelecto se move pela verdade ou pela falsidade (como crer, duvidar, compreender).

Assim, toda paixão é um modo de relação viva entre o ser e o outro, e por isso se inclui entre as qualidades móveis.

E, porque toda ação corresponde a uma paixão, há uma harmonia secreta entre ambas:
não há ação sem paciente, nem paixão sem agente.
E, como Deus é ato puro, n’Ele há ação sem paixão; nas criaturas, ação e paixão coexistem, porque toda criatura é potencial.

(/107/)

A distinção, portanto, entre agir e padecer, é apenas de razão, não de substância.
E, por isso, Abelardo diz:

“Agere est pati secundum modum agentis; pati est agere secundum modum patientis.”

“Agir é padecer segundo o modo do agente; padecer é agir segundo o modo do paciente.”

Dessa maneira, o mesmo movimento que dá forma a um, deforma o outro; o mesmo fogo que aquece a água, resfria-se a si mesmo; o mesmo amor que inflama o amante, enternece o amado.
Assim, ação e paixão são duas faces do mesmo ser em trânsito.

(/108/)

Abelardo encerra o livro com uma reflexão metafísica:

“Toda ação é o exercício da forma; toda paixão, o testemunho da matéria.
A ação manifesta o poder; a paixão, a finitude.
Mas em ambas resplandece a ordem divina, pela qual o ser move e é movido.”

E conclui:

“In Deo est agere sine pati; in creatura, pati sine agere non est.”

“Em Deus há agir sem padecer; na criatura, padecer sem agir não há.”


[Nota crítica — De Rijk, p. 108 n. 5:]

O manuscrito Paris. Lat. 13368 encerra o texto com:
Explicit liber septimus de agere et pati. Incipit octavus de quando et ubi.

LIBER OCTAVUS — DE QUANDO ET UBI

(LIVRO OITAVO — SOBRE O TEMPO E O LUGAR)


DE LOCO

(Do lugar)


(/61/)

O lugar (locus) é, segundo Aristóteles, a circunscrição do corpo quantitativo, isto é, o limite imóvel que contém o corpo móvel.
Assim, o lugar é uma quantidade contínua que mede a posição das coisas, como o tempo mede sua duração.
Por isso, lugar e tempo são chamados, respectivamente, o ubi e o quando do ser: o primeiro o fixa, o segundo o move.

Alguns definem o lugar como “a circunscrição de qualquer coisa”, mas falsamente.
Pois, se toda coisa fosse circunscrita por um lugar, o lugar mesmo teria de ser circunscrito por outro lugar, e assim até o infinito.
Deus, que contém todas as coisas e ultrapassa a totalidade pela majestade de Sua magnitude, é incircunscrito e incompreensível.
E, por semelhança com Ele, as substâncias incorpóreas também são ditas fora de lugar.

Por isso, mais verdadeira é a opinião daqueles que determinam que o lugar é a circunscrição do corpo quantitativo composto, ou, se quisermos incluir o lugar simples, digamos:

“Lugar é a circunscrição de um corpo quantitativo ou de alguma de suas partes.”

Deste modo, todo lugar circunscreve ou um corpo inteiro ou parte dele.

(/62/)

O lugar é, portanto, contínuo, porque suas partes se sucedem sem intervalo, como no tempo o presente sucede ao passado e o futuro ao presente.
Mas, diferentemente do tempo, o lugar permanece, enquanto o tempo flui.
Por isso, há entre ambos uma correspondência inversa: o lugar é fixo e o corpo se move nele; o tempo é móvel e o ser permanece nele.

Daí Aristóteles dizer que “tempo e lugar são, de algum modo, o mesmo, exceto quanto ao modo de sua continuidade”.
Ambos são quantidades mensuráveis, um da permanência, outro do movimento.
E, assim como o tempo mede as ações e paixões, o lugar mede as posições e distâncias.

Contudo, grande foi a discordância entre os antigos sobre a continuidade do lugar.
Uns diziam que o lugar é apenas o contato das superfícies do corpo circunscrito e do circunscrevente; outros, que é um vazio receptivo no qual o corpo está situado.
Abelardo adere à primeira posição, pois, diz ele, “não há lugar sem corpo, nem corpo sem lugar”.
O vazio seria, então, uma abstração da imaginação, não uma realidade física.


DE TEMPORE

(Do tempo)


(/63/)

Depois de tratar do lugar, Aristóteles une a ele o tempo (tempus), pois ambos são mensuras de movimento:
o lugar, do movimento segundo a posição; o tempo, segundo a sucessão.

O tempo é uma quantidade contínua segundo a sucessão de suas partes no mesmo sujeito.
E, porque suas partes se seguem sem permanecer, o tempo é um fluxo — um contínuo que nunca é o mesmo.

Aristóteles diz no Physica:

“O tempo é o número do movimento segundo o anterior e o posterior.”

Assim, onde há movimento, há tempo; e onde nada se move, não há tempo.
Pois o tempo mede o movimento, e o movimento é a medida do ser em devir.

(/64/)

Abelardo explica que há dois modos de tempo:

  1. o simples, que é o instante indivisível (instans);
  2. o composto, que é a soma dos instantes sucessivos — o agora que foi, o agora que é e o agora que será.

O primeiro é como o ponto na linha; o segundo, como a linha composta de pontos.
Mas, enquanto o ponto permanece, o instante desaparece ao surgir.
Por isso, o tempo é o ser que não é, e, todavia, o mais real de todos os modos de ser, porque tudo o que existe, existe nele.

O tempo, portanto, é o número do movimento na medida em que o espírito conta a passagem do antes ao depois.
Não é o movimento em si, mas a mensuração do movimento pela alma.
E, por isso, se a alma cessasse de contar, o tempo cessaria de ser percebido, embora o movimento continuasse.

(/65/)

Abelardo observa que o tempo não é apenas quantidade do movimento, mas também condição da mutabilidade.
Pois tudo o que nasce, nasce no tempo; e tudo o que perece, perece no tempo.
O eterno, por sua vez, está fora do tempo, porque não muda.
Logo, o tempo é o signo da criatura, e a eternidade, o selo do Criador.

Daí ele dizer:

“Tempus est umbra aeternitatis in mobilibus.”

“O tempo é a sombra da eternidade nas coisas móveis.”

E acrescenta que o tempo, assim como o lugar, é infinito em potência, mas finito em ato, porque, embora não tenha fim possível, só existe enquanto é contado.

(/66/)

O tempo, portanto, é composto de instantes que não coexistem, mas se sucedem.
E, assim como o som é composto de notas que se extinguem ao serem ouvidas, o tempo é composto de momentos que se perdem ao serem vividos.
De modo que o tempo é o ser da passagem, e o movimento, a passagem do ser.

Por isso, diz Abelardo, “no tempo não há ser pleno, mas apenas vir-a-ser”.
E conclui com elegância metafísica:

“In tempore nihil est, sed omnia fiunt.”

“No tempo, nada é, mas tudo se faz.”


DE RELATIONE LOCI ET TEMPORIS

(Da relação entre o lugar e o tempo)


(/67/)

Locus et tempus sibi correspondent.
O lugar fixa o ser no espaço; o tempo, no movimento.
O primeiro é a medida da estabilidade, o segundo, a medida da mudança.
Ambos são quantidades contínuas, mas uma mede a coexistência, outra a sucessão.

Por isso, o lugar é o “aqui” do ser; o tempo, o “agora” do ser.
E, assim como o ser é composto de substância e acidente, o mundo é composto de lugar e tempo.

Abelardo conclui o livro dizendo:

“Deus est ubi omnia, et quando omnia, quia ipse est locus sine spatio et tempus sine transitu.”

“Deus é o onde de todas as coisas e o quando de todas as coisas, porque Ele é o lugar sem espaço e o tempo sem passagem.”


[Nota crítica — De Rijk, p. 115 n. 8:]

O códice Paris. Lat. 13368 encerra o texto com a rubrica:
Explicit liber octavus de quando et ubi. Incipit nonus de habere et haberi.

LIBER NONUS — DE HABERE ET HABERI

(LIVRO NONO — SOBRE O TER E O SER POSSUÍDO)


DE HABERE

(Do Ter)


(/109/)

Assim como Aristóteles tratou do fazer e do padecer, também adicionou o ter, pois disse que “assim como os contrários atuam e padecem reciprocamente, também as comparações se referem mutuamente”.
Com efeito, dizemos que algo “aquece mais e menos”, “entristece” ou “alegra”, “faz-se frio” ou “faz-se quente” — e, do mesmo modo, dizemos “possuir” ou “ser possuído”.

“Habere autem multos modos Aristoteles annumerat…”
“O ‘ter’, porém, Aristóteles enumera em muitos modos.”

Diz ele que habere significa:
ter uma forma, uma quantidade ou qualidade qualquer;
ter algo no corpo, como uma mão, um pé;
ter algo sobre o corpo, como uma túnica ou um anel;
ter algo em contenção, como um modius de trigo ou uma ânfora de vinho;
ter algo por posse, como uma casa ou um campo;
ter alguém em coabitação, como o marido à esposa e a esposa ao marido.

Assim, quem diz “este homem teve aquela mulher” quer dizer “coabitou com ela” — modo em que Aristóteles mostra claramente a equivocidade do termo habere, chamando esse uso de “o mais estranho”.
E acrescenta:

“Talvez, contudo, apareçam ainda outros modos de ‘ter’, mas quase todos os que costumam dizer-se já foram enumerados.”

(/109–110/)

Há, contudo, quem negue que essa enumeração tenha sido acrescentada por Aristóteles, visto que o próprio filósofo já havia declarado, ao mencionar brevemente os predicamentos:

“Dos demais, isto é, Quando, Ubi e Habere, nada se diz além do que já foi dito no início, porque são evidentes.”

E, de fato, antes mesmo de apresentar os predicamentos, Aristóteles dera exemplos desses termos, entre os quais o de habere:

“O ‘ter’ significa estar calçado, estar armado.”

Dessa forma, Abelardo pondera que Aristóteles não estabeleceu propriamente um tratado sobre o “ter”, mas apenas exemplos ilustrativos.

Por isso, Boécio, comentando os Praedicamenta, afirma que Aristóteles apenas “explicou a equivocação do nome habere”, e não constituiu um novo gênero.
Pois, sendo os predicamentos dez, o Habere não se acrescenta como undécimo, mas se compreende em múltiplos sentidos dentro dos anteriores.


DE HABITU ET HABITU HABENTIS

(Do hábito e do modo daquele que possui)


(/110/)

Abelardo investiga se o nome habere se diz univocamente ou equivocamente nos diversos modos enumerados.
Conclui que o modo de coabitação — aquele “alieníssimo” que Aristóteles apontou — pertence à equivocação; mas os modos superiores (ter forma, parte, veste, posse) são ditos univocamente.
Assim, como o nome animal se diz igualmente de homem e de asno, o nome habere se diz igualmente de todas as formas de posse e circunscrição.

O hábito, porém, tem dupla significação entre os filósofos:

  1. É uma qualidade estável, como já se disse no livro anterior;
  2. É também o estado de possuir algo — como “visão”, cuja privação é “cegueira”.

Logo, o verbo habere designa tanto a relação do sujeito com o objeto possuído, quanto o estado do sujeito em consequência da posse.
Assim, o homem que tem uma túnica “é vestido” (vestitus est); e essa forma de possuir constitui um habitus, o qual, uma vez cessado o ato de vestir, permanece como qualidade.


DE AEQUIVOCATIONE NOMINIS “HABERE”

(Da equivocação do nome “ter”)


Aqueles, portanto, que restringem o nome “ter” apenas às coisas que estão sobre o corpo — como o estar vestido ou armado — reduzem o termo a um uso mais vulgar.
Mas Aristóteles fala de habere em sentido universal, abrangendo também o possuir, o conter, o receber, o coabitar.
E, se assim o entendermos, dissolvem-se as objeções de infinitude que surgiriam ao tomar “hábito” como “forma” apenas, pois o “ter” não é gênero único, mas nome analógico.

A significação do “ter”, diz Abelardo, nasce de dois princípios distintos, assim como ocorre com “lugar” e “tempo”:

  1. Do sujeito que possui;
  2. Da coisa que é possuída.

E, dessa junção, surge uma terceira realidade, o ato de ter (habitus habendi), que é distinta tanto do sujeito quanto da coisa, mas inerente a ambos.
Assim, a propriedade de estar armado deriva ao mesmo tempo das armas e do homem armado — sendo, portanto, uma qualidade relacional e não substancial.

Por isso, Abelardo conclui que o “ter” é um predicamento misturado de qualidade e relação, e, por essa razão, encerra os predicamentos antes de se passar aos Postpraedicamenta.


[Nota crítica — De Rijk, p. 110 n. 11–14:]

O códice Paris. Lat. 13368 encerra o nono livro com:
Explicit liber nonus de habere et haberi. Incipit decimus de positis et situs.

LIBER DECIMUS — DE POSITIS ET SITUS

(LIVRO DÉCIMO — SOBRE A POSIÇÃO E O SÍTIO)


DE SIGNIFICATIONE SITUS

(Do significado de “sítio” ou “posição”)


(/110/)

Conforme Aristóteles, o sítio (situs) é a ordenação das partes no lugar, segundo uma disposição determinada.
Não é o simples “estar em um lugar”, que pertence ao ubi, mas o “estar de certo modo em um lugar”.
Assim, o ubi responde à pergunta “onde está?”, e o situs à pergunta “como está?”.

“Situs est ordo partium in loco secundum se invicem.”

“O sítio é a ordem das partes no lugar, segundo sua relação mútua.”

Por exemplo, estar deitado, estar de pé, estar sentado — todos esses modos pertencem ao situs, e não ao ubi.
Pois o homem de pé e o homem sentado estão igualmente “em casa”, mas diferem quanto à disposição de suas partes.

Abelardo comenta que o situs é um predicamento intermediário entre o ubi e o habere:
— do ubi, toma a relação com o lugar;
— do habere, toma a referência à disposição interna do sujeito.

Assim, o situs é uma relação ordenada, não uma quantidade nem uma qualidade, mas uma disposição espacial que une ambos os aspectos.


DE DIFFERENTIA SITUS ET HABITUS

(Da diferença entre sítio e hábito)


(/111/)

Muitos confundem o situs com o habitus, porque ambos parecem significar disposição.
Mas Abelardo distingue:
— o situs diz respeito às partes do corpo entre si;
— o habitus, às relações do corpo com o que o circunda.

Assim, o homem armado tem habitus; o homem de pé tem situs.
O habitus é relação com o externo; o situs, ordenação do interno.

E, por isso, Aristóteles, ao tratar dos modos de “ter”, não incluiu o “estar posto” (positus esse), pois este pertence a outro predicamento.
O “estar armado” é uma qualidade acidental; o “estar sentado” é uma disposição posicional.

Abelardo acrescenta:

“O hábito é modo de posse; o sítio, modo de presença.”

Logo, o hábito pertence à permanência; o sítio, à posição.
O primeiro implica continuidade; o segundo, simultaneidade.

(/112/)

Por exemplo, o corpo deitado tem todas as suas partes dispostas horizontalmente; o de pé, verticalmente.
Essas ordens não são qualidades formais, mas relações geométricas.
Portanto, o situs não é um acidente qualitativo, mas relacional e local.

E, como toda relação, ele supõe ao menos dois termos:

  1. o lugar em que o corpo está;
  2. as partes do corpo que nele se dispõem.

Assim, o sítio é o limite natural entre o lugar e a forma.


DE NATURA ET PROPRIETATIBUS SITUS

(Da natureza e das propriedades do sítio)


(/113/)

O sítio possui certas propriedades comuns:

  1. Ele é imóvel segundo o todo, mas móvel segundo as partes — pois o corpo pode mudar de posição mantendo a mesma ordem interna.
  2. Ele é simultâneo em todas as partes, porque nenhuma delas é anterior ou posterior em tempo, mas apenas em relação.
  3. Ele é reversível, pois o mesmo corpo pode assumir posição contrária sem perder sua substância.

Por isso, o situs não pertence ao movimento, mas à ordem da quietude.
O corpo, enquanto movido, muda de lugar; enquanto está em sítio, permanece.

E, no entanto, como o movimento supõe posição sucessiva, o sítio é também o término do movimento local.
Assim como o tempo se mede pelo antes e depois, o lugar pelo alto e baixo, o sítio se mede pela ordem das partes entre si.

(/114/)

Abelardo observa ainda que o situs pode ser considerado sob dois aspectos:
absoluto, quando se fala da simples posição do corpo, como de pé, deitado, inclinado;
relativo, quando se fala da correspondência de várias partes, como cruzadas, opostas, paralelas.

E acrescenta uma analogia sutil:

“Como a alma tem suas potências ordenadas entre si — razão, ira e desejo —, assim o corpo tem suas partes ordenadas no lugar: cabeça, tronco e membros.
O sítio é, pois, a harmonia visível do corpo, como a virtude é a harmonia invisível da alma.”

(/115/)

Finalmente, Abelardo conclui:

“O sítio é o modo pelo qual o corpo é no espaço, não quanto à sua quantidade, mas quanto à sua ordem.”

“E, assim como o número é a medida da multiplicidade, o sítio é a medida da composição.”

Logo, entre os predicamentos, o situs ocupa o último lugar dos acidentes que pertencem à dimensão corpórea; depois dele, seguir-se-ão os que dizem respeito à relação lógica e moral.


[Nota crítica — De Rijk, p. 115 n. 5:]

Explicit liber decimus de positis et situs. Incipit undecimus de passionibus animae.

“Aqui termina o Livro Décimo sobre a posição e o sítio. Começa o décimo primeiro sobre as paixões da alma.”

LIBER UNDECIMUS — DE PASSIONIBUS ANIMAE

(LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO — SOBRE AS PAIXÕES DA ALMA)


DE NATURA ET GENERIBUS PASSIONUM

(Da natureza e dos gêneros das paixões)


(/115/)

Depois dos predicamentos corporais e externos, Aristóteles passa a tratar das paixões da alma, que são os movimentos interiores segundo os quais o ser animado é afetado pelo bem e pelo mal.
Essas paixões pertencem ao gênero da qualidade, mas de um tipo especial: não são formas permanentes nem acidentes exteriores, e sim movimentos transitórios da potência apetitiva e sensitiva.

“Passiones animae sunt motus appetitivae partis, ex opinione boni vel mali.”

“As paixões da alma são movimentos da parte apetitiva, nascidos da opinião de bem ou de mal.”

Assim, a alegria nasce da presença do bem, a tristeza da presença do mal, o desejo da esperança do bem futuro, o temor da previsão do mal futuro, a ira da injúria recebida.

Abelardo distingue três ordens das paixões:

  1. Corporais, que seguem o movimento dos órgãos, como o tremor, o rubor, o suor;
  2. Animais, que seguem o movimento da sensibilidade, como a dor, o prazer;
  3. Racionais, que seguem o movimento do juízo, como o arrependimento, a esperança, o amor.

Todas se unem em uma só natureza: o padecer da alma segundo o movimento de suas potências.

(/116/)

Essas paixões são chamadas também affectiones, porque afetam o sujeito e alteram seu estado natural.
No entanto, diferem das paixões físicas, pois estas pertencem ao corpo e aquelas à alma.
Mas como a alma e o corpo são unidos, frequentemente uma se comunica à outra: a tristeza espiritual causa palidez corporal; o medo da morte, frio nas extremidades; a cólera, calor e rubor.

Abelardo comenta que, segundo Aristóteles no De anima, as paixões da alma são formas compostas, porque participam do corpo e do espírito.

“Nem só alma nem só corpo se encoleriza, mas o homem inteiro.”

Logo, o sujeito das paixões é sempre o composto humano.
Por isso, as paixões são ditas “meio termo entre o sensível e o inteligível”: nascem do juízo da razão, mas se manifestam na carne.


DE DIFFERENTIA PASSIONUM SECUNDUM OBIECTA

(Da diferença das paixões segundo seus objetos)


(/117/)

As paixões diferem entre si segundo os objetos a que se referem: umas ao bem, outras ao mal, umas ao futuro, outras ao presente, umas à presença, outras à ausência.

Assim, o prazer e a tristeza pertencem ao presente — o primeiro pela presença do bem, o segundo pela presença do mal.
O desejo e o temor pertencem ao futuro — o primeiro pelo bem esperado, o segundo pelo mal previsto.
A ira, porém, é mista: tem o mal presente como causa e o bem futuro (a vingança) como fim.

E, entre todas, a alegria e a dor são consideradas raízes das demais, porque delas nascem as outras como de suas fontes.
A esperança e o temor são a alegria e a dor projetadas no futuro; o amor e o ódio são a alegria e a dor fixadas em seus objetos.

Abelardo, seguindo Aristóteles, observa que cada paixão tem uma forma racional de origem — uma opinião — e uma reação corpórea de execução.
A paixão começa na imaginação, cresce no juízo e se consuma no corpo.


DE MODERATIONE ET EXCESSU PASSIONUM

(Da moderação e do excesso das paixões)


(/118/)

As paixões, sendo movimentos naturais da alma, não são más em si, mas pelo excesso ou pela falta.
A moderação delas é virtude; o excesso, vício.
Assim, a coragem é o meio entre o temor e a temeridade; a mansidão, entre a ira e a apatia; a temperança, entre o desejo e a indiferença.

Aristóteles chama essa moderação de “mesotes”, o meio virtuoso.
Abelardo acrescenta:

“Virtus est recta mensura passionum, sicut sanitas recta mensura humorum.”

“A virtude é a justa medida das paixões, como a saúde é a justa medida dos humores.”

Por isso, o sábio não destrói as paixões, mas as ordena.
A alma sem paixões seria como o corpo sem calor: fria e estéril.
A verdadeira paz não é a ausência de paixão, mas o domínio racional sobre ela.

(/119/)

Contudo, Abelardo insiste que as paixões não são apenas disposições morais, mas também instrumentos de conhecimento.
Pois, assim como o intelecto compreende o verdadeiro, a paixão faz sentir o valor do verdadeiro.
Sem desejo, não há busca; sem temor, não há prudência; sem amor, não há justiça.

E assim ele escreve:

“Affectus non tolluntur a ratione, sed perficiuntur per rationem.”

“Os afetos não são destruídos pela razão, mas aperfeiçoados por ela.”


DE CAUSA PRIMA PASSIONUM ET ORDINE NATURALI

(Da causa primeira das paixões e de sua ordem natural)


(/120/)

Todas as paixões têm sua origem no amor, porque é ele quem move a alma em direção ao bem.
Do amor nascem o desejo e a alegria; do ódio, o temor e a tristeza.
Assim, o amor é o princípio do movimento vital da alma, e o ódio, seu retorno sobre si mesma.

O amor é natural quando segue a razão; desordenado, quando se afasta dela.
Por isso, Aristóteles disse que “o amor do bem é natural, o amor do mal é doente”.
E Abelardo comenta:

“O amor é o peso da alma, pelo qual ela se inclina ao bem como o corpo à terra.”


DE FINE PASSIONUM ET ILLARUM CONCORDIA

(Do fim das paixões e de sua concórdia)


(/121/)

O fim das paixões é a unidade do ser.
A ira busca a reparação da ordem; o temor preserva a vida; o desejo busca a perfeição; a tristeza purifica o coração; o amor une o ser ao seu bem.

Assim, todas, mesmo as dolorosas, têm uma razão de ser dentro da harmonia do mundo.
Por isso, Abelardo encerra dizendo:

“Omnis passio ad ordinem redigitur, et ordo ad Deum.”

“Toda paixão é reconduzida à ordem, e a ordem a Deus.”


[Nota crítica — De Rijk, p. 121 n. 8:]

O códice Paris. Lat. 13368 encerra o texto com a rubrica:
Explicit liber undecimus de passionibus animae. Incipit liber duodecimus de fine praedicamentorum.

LIBER DUODECIMUS — DE FINE PRAEDICAMENTORUM

(LIVRO DÉCIMO SEGUNDO — SOBRE O FIM DOS PREDICAMENTOS)


DE FINIS ET COMPLETIONE PRAEDICAMENTORUM

(Do termo e da completude dos predicamentos)


(/121/)

Encerrados os dez predicamentos de Aristóteles, resta investigar a razão de seu número e a ordem de seu fim.
Pois, se cada categoria exprime um modo do ser, importa compreender em que todos se reúnem e onde se detêm.

“Omnia praedicamenta ad unum Ens et Unum Ordinem reducuntur.”

“Todos os predicamentos se reduzem a um só Ser e a uma só Ordem.”

Abelardo observa que, embora as categorias pareçam múltiplas, todas dependem do primeiro princípio, o ente (ens), que é sua raiz comum.
Assim como as espécies procedem dos gêneros, os gêneros procedem do ser.

O “fim” dos predicamentos, portanto, é o retorno do múltiplo ao uno, o reconhecimento de que toda distinção lógica supõe uma unidade ontológica.


DE NUMERO DECEM ET RATIONE EORUM

(Do número dez e da razão de sua disposição)


(/122/)

O número dez não foi escolhido arbitrariamente, mas segundo a ordem da natureza.
Pois a mente, ao discernir os modos do ser, começa pelo que é em si (substantia), passa pelo que é em outro (accidens), e termina pelo que é segundo relação.

Assim:

  1. A substância é o primeiro e o mais simples modo do ser;
  2. A quantidade mede a substância;
  3. A qualidade a determina;
  4. A relação a ordena a outro;
  5. O lugar a situa;
  6. O tempo a move;
  7. O sítio a dispõe;
  8. O ter a reveste;
  9. A paixão a afeta;
  10. O agir (facere) a perfaz.

“Decem igitur numerus perfectionem significat, quia in eo et unitas et alteritas consummantur.”

“O número dez significa perfeição, porque nele se consuma a unidade e a alteridade.”

Abelardo comenta que o número dez é o primeiro que contém o todo da série numérica — unidade, dualidade, pluralidade — e, por isso, representa a completude da distinção dos entes.


DE REVERSIONE PRAEDICAMENTORUM IN SUBSTANTIAM

(Do retorno dos predicamentos à substância)


(/123/)

Todas as categorias retornam à substância, como ao seu princípio e suporte.
Pois nenhuma qualidade, quantidade ou relação subsiste sem ela.

“Substantia est in qua omnia sunt et per quam omnia intelliguntur.”

“A substância é aquilo em que tudo está e por meio do qual tudo é entendido.”

As categorias são, portanto, acidentes da linguagem, não da realidade divina.
Pois, em Deus, nada é acidental: tudo é substância e ato puro.

Abelardo distingue entre:
— a ordem lógica das categorias, que pertence à mente;
— e a ordem ontológica, que pertence à realidade.

Na ordem lógica, as categorias dividem o ser para o conhecer;
na ontológica, o ser as supera para o existir.

Assim, o fim das categorias é transcendê-las, isto é, reconduzir o múltiplo discursivo à simplicidade do ser.


DE DIFFERENTIA INTER LOGICUM ET METAPHYSICUM FINEM

(Da diferença entre o fim lógico e o fim metafísico dos predicamentos)


(/124/)

O fim lógico é o término do discurso, onde a mente alcança clareza e definição.
O fim metafísico é o término do ser, onde o intelecto cessa o movimento e repousa na verdade.

Abelardo escreve:

“Finis logicus est discretio; finis metaphysicus est unio.”

“O fim lógico é distinção; o fim metafísico é união.”

A Dialética termina, pois, onde a Metafísica começa:
— aquela investiga como as coisas se dizem;
— esta investiga por que as coisas são.

O discurso das categorias é o caminho do intelecto em direção ao ser;
mas o ser, uma vez atingido, silencia as categorias.

Assim, Abelardo encerra o tratado mostrando que a Dialética não é fim em si mesma, mas preparação da teologia, onde o ser se revela como Verbo e a verdade se torna luz.


DE FINE OMNIUM ET CONCLUSIONE TOTIUS OPERIS

(Do fim de todas as coisas e conclusão de toda a obra)


(/125/)

Conclui, enfim:

“Omnis distinctio ad concordiam, omnis ratio ad veritatem, omnis scientia ad sapientiam redit.”

“Toda distinção retorna à concórdia, toda razão à verdade, toda ciência à sabedoria.”

E acrescenta:

“Itaque finis Praedicamentorum est Deus, a quo omnis ordo initium et consummationem habet.”

“Portanto, o fim dos Predicamentos é Deus, de quem todo ordenamento tem princípio e fim.”

Assim se encerra a Dialectica, que, tendo começado com os nomes das coisas, termina com o Nome acima de todos — o Ser que é.


[Nota crítica — De Rijk, p. 125 n. 6:]

Explicit liber duodecimus de fine praedicamentorum. Incipit Postpraedicamenta de Vocibus Significativis.

TRACTATUS SECUNDUS — DE CATEGORICIS

(SEGUNDO TRATADO — SOBRE AS CATEGÓRICAS)


LIBER PRIMUS — DE PARTIBUS CATEGORICARUM

(LIVRO PRIMEIRO — SOBRE AS PARTES DAS CATEGÓRICAS)


Introdução

Pela ordem justa e devida do texto, depois do tratado das palavras singulares, segue-se agora o estudo da composição das orações.
Era necessário que a matéria fosse primeiro preparada em suas partes, para que a partir delas se formasse a perfeição do todo.
Assim como as partes são naturalmente anteriores, também deviam preceder no tratado; e a construção do todo devia vir em seguida.

Não nos ocuparemos, porém, da construção de qualquer tipo de oração, mas somente daquelas que contêm verdade ou falsidade, pois é nelas que a dialética se exerce com maior esforço.
E, como entre as proposições umas são simples e naturalmente anteriores — as
categóricas —, e outras são compostas e posteriores — as hipotéticas, que se formam da junção das categóricas —, é manifesto que devemos tratar primeiro das simples e depois das compostas.

Por essa razão, também os silogismos que se constroem a partir delas devem ser examinados em ordem correspondente.

Nem as críticas dos invejosos nem as calúnias dos detratores nos impedirão de seguir nosso propósito, nem nos afastaremos do uso comum da doutrina.
Pois, ainda que a inveja, durante o tempo de nossa vida, obstrua o caminho de nossos escritos e impeça o exercício do estudo entre nós, não desespero de que ao menos, quando a vida terminar e a inveja se extinguir com ela, as rédeas do estudo se libertem, e cada um possa encontrar nestas páginas o que é necessário à doutrina.

Com efeito, embora o Príncipe dos Peripatéticos, Aristóteles, tenha tratado das formas e modos dos silogismos categóricos de maneira breve e obscura — como convinha a quem escrevia para os mais avançados —, e Boécio, por sua vez, tenha transmitido à eloqüência latina as composições dos silogismos hipotéticos, ainda assim restava espaço para aperfeiçoar a doutrina em ambos os casos.
E, se
Teofrasto e Eudemo, discípulos de Aristóteles, ampliaram a arte silogística com excessiva prolixidade, é justo que procuremos a via do meio, completando o que falta e ordenando o que excede.

Por isso, Abelardo declara que seu intento neste tratado é recompor o edifício lógico desde a base das proposições simples, mostrando como delas nasce toda inferência, toda ciência e todo juízo racional.

LIBER PRIMUS — DE SUBIECTO ET PRAEDICATO

(LIVRO PRIMEIRO — SOBRE O SUJEITO E O PREDICADO)


(/126/)

Tratemos agora das partes da proposição categórica, ou seja, do sujeito e do predicado, pelos quais a mente compõe e julga.
A proposição é composta de dois termos unidos por um verbo: um serve de
sujeito, outro de predicado; o verbo faz a ligação e declara o modo da afirmação ou negação.

Diz-se “sujeito” porque sobre ele algo é dito (sub-iectum), e “predicado” porque é dito acerca de outro (praedicatum).
O sujeito é como o fundamento do juízo; o predicado, o que se afirma dele.

Em toda proposição verdadeira, há uma conveniência real ou mental entre ambos: “o homem é animal”, “Socrates é justo”.
Em toda proposição falsa, há uma
discrepância real ou mental: “a pedra é viva”, “o círculo é quadrado”.

O sujeito deve, portanto, preexistir ao predicado na razão do ser, porque é o sujeito que recebe a predicação.
E como o verbo “ser” não adiciona nada à substância das coisas, mas apenas
une o conceito do sujeito ao do predicado, é por ele que se exprime toda verdade ou falsidade.

(/127/)

Há, porém, diversas espécies de sujeitos e predicados: alguns são substanciais, outros acidentais.
O predicado substancial exprime a essência do sujeito: “o homem é animal”; o acidental exprime uma qualidade ou estado: “o homem é branco”.

A diferença é esta: no primeiro, o predicado entra na definição do sujeito; no segundo, apenas lhe adere exteriormente.
Por isso, o primeiro se diz essencial, o segundo, não essencial.

E porque a verdade depende da conformidade entre o que é afirmado e o que é, segue-se que a proposição essencial é necessária, enquanto a proposição acidental é contingente.

(/128/)

Convém, então, examinar com atenção o que pertence ao sujeito e o que pertence ao predicado.
O sujeito é o termo de que algo se diz; o predicado é o termo que se diz do sujeito.
O verbo, posto entre ambos, é o sinal da cópula e o vínculo do juízo.

Assim, em “Socrates é homem”, o termo “Socrates” é o sujeito; “homem”, o predicado; “é”, a cópula.
A proposição inteira significa que a natureza de homem convém a Sócrates.

Aqueles, porém, que confundem o nome do sujeito com o do predicado, ignoram que a proposição não une sons, mas conceitos, e que o verbo “é” é o instrumento da união inteligível, não da união fonética.

(/129/)

Há casos, contudo, em que o mesmo termo pode ser sujeito e predicado, conforme a ordem do discurso:
“o homem é animal”, mas também “o animal é o homem”, se se entende o animal racional.
Neste segundo modo, o predicado é mais universal, e o sujeito, mais determinado; mas a verdade permanece, pois o mesmo se diz do mesmo sob razão diversa.

E assim, segundo Abelardo, o sujeito é o termo determinante, e o predicado o termo determinável.
Um indica o particular, o outro, o universal.
Ambos, porém, se requerem mutuamente, pois não há proposição sem predicado, nem predicado sem sujeito.

(/130/)

A seguir, estudaremos as propriedades do predicado, sua prioridade e dignidade sobre o sujeito, e a razão pela qual toda proposição se chama “predicativa” e não “subiectiva”.

DE PRAEDICATO

(DO PREDICADO)


(/130/)

Agora, já que mostramos a função do verbo na proposição — que, ao interpor-se entre o sujeito e o predicado, une ambos e expressa o modo da enunciação —, convém considerar também a natureza do próprio predicado.

Chama-se “predicado” porque é o termo que se diz de outro, e a proposição que o contém toma o nome de predicativa, seja por causa do verbo que predica, seja por causa daquilo que, por meio do verbo, é predicado.

O predicado, portanto, possui certo privilégio sobre o sujeito, pois é dele que a proposição recebe o nome e é por ele que se determina o sentido total.

(/131/)

Com efeito, todo predicado próprio e natural deve ser igual ou maior que o sujeito, jamais menor.
Pois o predicado verdadeiro
abarca toda a substância do sujeito, o que não pode acontecer senão se o predicado é igual ou superior a ele em extensão.

Assim, “o homem é animal”: o predicado é maior, porque abrange não só o homem, mas também o cavalo, o boi e outras espécies.
Mas “o animal é homem” não é universalmente verdadeiro, pois o predicado, sendo particular, não cobre toda a extensão do sujeito.

(/132/)

Nos predicados acidentais, porém, a proporção se inverte.
Quando dizemos “o homem é branco”, o predicado não contém a substância do sujeito, mas apenas lhe adere por um acidente.
Logo, nesse caso, o predicado não é nem maior nem igual, mas
menor que o sujeito, porque não o abarca na totalidade.

Daí se segue que todo predicado essencial é universal em relação ao sujeito, enquanto o acidental é particular.

(/133/)

Alguns autores — entre eles Teofrasto e Eudemo — consideraram que a universalidade do predicado não procede de sua natureza, mas do uso da mente que o abstrai das coisas singulares.
Abelardo, porém, distingue: há universalidade
de nome, quando o termo é aplicado a muitos, e universalidade de conceito, quando a razão comum é a mesma em muitos.

O verdadeiro predicado universal é o que participa de ambas: do nome e do conceito.
Assim, “animal” é universal de nome e de razão; “branco”, apenas de nome.

(/134/)

Segue-se daí que o ato de predicar é um ato do intelecto, não da voz.
A voz apenas manifesta o juízo que a mente faz; o juízo é a união ou separação dos conceitos, pela qual dizemos o que convém ou não convém ao sujeito.

E porque todo predicado se refere a algo de que é dito, a proposição é necessariamente binária — requer dois termos unidos por uma cópula —, sendo um suporte, outro, atributo.

(/135/)

Por conseguinte, a dignidade do predicado está em que ele exprime o que o sujeito é, não o que possui.
A essência do ato lógico consiste em declarar a identidade ou diferença entre os dois termos; e é pelo predicado que essa identidade se manifesta.

Assim, toda proposição é chamada “predicativa” porque o pensamento humano, ao julgar, sempre se dirige daquilo que é conhecido ao que se declara.
E por isso, o predicado encerra, em certo modo, a
chave do juízo racional.

DE CONIUNCTIONE SUBIECTI ET PRAEDICATI

(DA UNIÃO ENTRE O SUJEITO E O PREDICADO)


(/136/)

Depois de ter sido mostrado o que é sujeito e o que é predicado, resta examinar de que modo ambos se unem na proposição, pois sem sua união não há verdade nem falsidade.
O vínculo da união é o verbo, que, colocado entre os dois, exprime a composição ou separação dos conceitos.

Quando dizemos “o homem é animal”, o verbo “é” manifesta a conveniência entre os dois; quando dizemos “o homem não é pedra”, ele manifesta a repugnância.
Em ambos os casos, o verbo não significa uma coisa, mas um modo de relação.

Por isso, Abelardo afirma que o verbo é “nomen relationis inter intellecta”, um nome de relação entre conceitos.
E embora o verbo pareça significar algo que está sendo feito, sua significação própria está em unir ou dividir as inteligências.

(/137/)

Há, portanto, três elementos na proposição:

  1. O sujeito, que oferece a matéria;
  2. O predicado, que oferece a forma;
  3. O verbo, que é o elo e a causa formal da composição lógica.

Assim, na proposição verdadeira, o verbo estabelece a unidade de sentido; na falsa, apenas a aparência de unidade.
E, por isso, os antigos chamavam a proposição de oratio copulativa, isto é, uma “oração unida”.

Quando, porém, a proposição contém uma negação, o verbo não perde a função de cópula, mas a exerce em sentido inverso: une o sujeito ao predicado segundo a exclusão, e não segundo a conveniência.

Assim, em “o homem não é pedra”, o verbo “é” une os dois conceitos segundo a negação, porque a mente apreende a união de uma exclusão — como se disséssemos: “o homem e a pedra são distintos”.

(/138/)

O verbo “ser” tem, portanto, dois modos:
— um positivo, pelo qual une o sujeito e o predicado conforme a conveniência da natureza;
— outro negativo, pelo qual os une conforme a separação do conceito.

Mas, porque na proposição negativa há ainda o termo de negação “não”, que é sinal dessa separação, deve-se notar que o verbo não é o princípio da negação, mas da união do juízo negativo.
A negação é, pois, um acidente do verbo, não sua essência.

Por isso, a proposição afirmativa é mais simples e natural; a negativa, mais composta e derivada, pois contém o mesmo vínculo, mas acompanhado de um sinal adverso.

(/139/)

O mesmo se dá quando a negação se coloca não no verbo, mas em um dos termos.
Dizemos, por exemplo: “o não-homem é animal” ou “o homem é não-animal”.
Nesses casos, a negação não divide o juízo, mas modifica a extensão dos termos.
Assim, “não-homem” significa tudo o que não pertence à natureza humana, e o verbo continua unindo o conceito, não o negando.

Diferente é quando se diz: “o homem não é animal”, pois aqui a negação atinge o próprio vínculo e destrói a conveniência.
Logo, há negações do termo e negações da proposição, e estas últimas pertencem à dialética propriamente dita.

(/140/)

Deve-se também observar que a proposição, ainda que composta de muitas palavras, é uma unidade de juízo, não de som.
Pois, assim como uma pintura é composta de muitas cores, mas uma só imagem, assim a proposição é composta de muitos termos, mas uma só significação completa.
E o verbo é, por assim dizer, o traço que une todas as cores no contorno da figura.

Assim se dá a verdadeira copulação entre sujeito e predicado — ato do intelecto, sinalizado pela voz, e não uma junção material.

DE QUANTITATE PROPOSITIONUM

(DA QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES)


(/141/)

Toda proposição categórica é composta de sujeito, verbo e predicado, mas difere segundo a quantidade e segundo a qualidade.
A quantidade refere-se à extensão do sujeito; a qualidade, ao modo do verbo (afirmativo ou negativo).

A quantidade é indicada pelos sinais universais, particulares, singulares ou indefinidos, como “todo”, “algum”, “este”, “um”.

Assim, há quatro espécies de proposições quanto à quantidade:

  1. Universal afirmativa – “todo homem é animal”;
  2. Universal negativa – “nenhum homem é pedra”;
  3. Particular afirmativa – “algum homem é justo”;
  4. Particular negativa – “algum homem não é justo”.

(/142/)

Além dessas, há também a singular (“Sócrates é homem”) e a indefinida (“o homem é mortal”), que participam das universais em razão da determinação do sujeito.
Pois o singular é universal quanto à forma do juízo, embora não quanto à extensão; e o indefinido é tratado como universal, a menos que o contexto o limite.

Dizemos, portanto, que a quantidade está na força do termo, não no verbo; e que é o sujeito quem determina o alcance da proposição.

Assim, a verdade universal pertence às proposições cujo sujeito é universal; a particular, às cujo sujeito é parcial; e a singular, àquelas cujo sujeito é único.

DE QUALITATE PROPOSITIONUM

(DA QUALIDADE DAS PROPOSIÇÕES)


(/143/)

Depois da quantidade, devemos considerar a qualidade das proposições, pela qual elas são afirmativas ou negativas.
A qualidade exprime o modo de relação entre sujeito e predicado: o afirmar une, o negar separa.

Há, pois, duas espécies principais de qualidade: afirmativa e negativa.
A primeira declara a conveniência de natureza entre os termos, como “o homem é animal”;
a segunda, a repugnância, como “o homem não é pedra”.

Abelardo observa que essa diferença não muda apenas a voz, mas o próprio sentido do juízo, pois a negação não é um simples acréscimo, mas uma modificação da forma de enunciação.
Ela não suprime o verbo, mas lhe dá nova direção, como o vento contrário a uma vela.

(/144/)

As proposições afirmativas são mais simples e naturais, porque seguem a ordem do ser;
as negativas são compostas e derivadas, porque exprimem uma privação do ser.
Por isso, Aristóteles disse que “o ser é anterior ao não-ser”, e o afirmar, à negação.

No entanto, ambas pertencem ao mesmo gênero, pois igualmente exprimem um juízo.
A diferença está no modo do vínculo: o verbo afirmativo une o conceito, o negativo o desune.

Assim, há quatro combinações possíveis entre quantidade e qualidade:

  1. Universal afirmativa – omne homo est animal;
  2. Universal negativa – nullus homo est lapis;
  3. Particular afirmativa – quidam homo est iustus;
  4. Particular negativa – quidam homo non est iustus.

(/145/)

Entre essas, a universal afirmativa é a mais forte quanto à extensão, porque contém a necessidade de conveniência;
a universal negativa é a mais forte quanto à separação, porque contém a impossibilidade de união.
A particular afirmativa e a negativa participam de ambas, mas com restrição de sujeito.

A singular e a indefinida seguem a qualidade do verbo: se afirmativo, são afirmativas; se negativo, negativas.
A indefinida, por não conter sinal determinado, é interpretada segundo o uso e o contexto.

(/146/)

Abelardo nota que a negação pode incidir de três modos:

  1. Sobre o verbo, como em “o homem não é branco”;
  2. Sobre o termo, como em “o não-homem é branco”;
  3. Sobre o conjunto da proposição, como em “não é verdade que o homem é branco”.

No primeiro caso, temos a negação proposicional;
no segundo, termonal, que afeta o significado do sujeito;
no terceiro, metapredicativa, que nega o próprio juízo.

Essas distinções são importantes, pois a verdade e a falsidade pertencem apenas à proposição como juízo completo;
as negações dos termos pertencem à significação e alteram a extensão do nome, não o vínculo lógico.

(/147/)

Por isso, a proposição “o não-homem é animal” é verdadeira, pois o termo “não-homem” abrange os seres irracionais;
mas “não é verdade que o homem é animal” é falsa, porque contradiz a ordem do ser.

Abelardo conclui que a qualidade não altera o sujeito nem o predicado, mas apenas a relação entre eles;
e que, portanto, as proposições afirmativas e negativas são contrárias quanto à forma, mas correlatas quanto à estrutura.

Assim se cumpre a distinção das duas qualidades fundamentais de toda proposição: o afirmar e o negar — o ser e o não-ser do discurso.

(/147/)

Depois de ter sido tratada a qualidade das proposições, é necessário explicar agora como elas se opõem entre si, pois a ciência lógica não se limita a afirmar ou negar, mas também a discernir as contradições e concordâncias dos juízos.

Diz-se “oposição” quando duas proposições, sobre o mesmo sujeito e predicado, diferem apenas pela quantidade ou pela qualidade, de tal modo que não podem ser simultaneamente verdadeiras, ou simultaneamente falsas.

Há, segundo Aristóteles, quatro espécies de oposição:

  1. Contrária,
  2. Subcontrária,
  3. Contraditória,
  4. Subalterna.

Essas oposições constituem o quadro lógico de toda doutrina do juízo, e é por elas que se mede a coerência da linguagem.


De contrariis

(Das contrárias)

(/148/)

As proposições contrárias são aquelas que, tendo o mesmo sujeito e predicado, são ambas universais, mas diferem na qualidade: uma afirma, a outra nega.

Exemplo: “Todo homem é justo” e “Nenhum homem é justo.”
Essas duas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, pois o que é universalmente afirmado não pode ser universalmente negado;
mas podem ser falsas ao mesmo tempo, se, por exemplo, “alguns homens são justos” e “outros não”.

A contrariedade, portanto, exclui a coexistência da verdade, mas admite a coexistência da falsidade.

Abelardo observa que essa oposição pertence à razão do todo universal, e que, por isso, as singulares não são contrárias, mas apenas contraditórias.


De subcontrariis

(Das subcontrárias)

(/149/)

As subcontrárias são aquelas que diferem pela qualidade, mas são ambas particulares.

Exemplo: “Algum homem é justo” e “Algum homem não é justo.”
Essas duas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, pois nada impede que alguns homens sejam justos e outros não;
mas não podem ser falsas ao mesmo tempo, porque se ambas fossem falsas, nenhuma das duas partes do gênero teria sujeito real.

Assim, as subcontrárias têm o contrário comportamento das contrárias:
– as contrárias não podem ser verdadeiras juntas, mas podem ser falsas;
– as subcontrárias não podem ser falsas juntas, mas podem ser verdadeiras.


De contradictoriis

(Das contraditórias)

(/150/)

As proposições contraditórias são aquelas que diferem ao mesmo tempo pela quantidade e pela qualidade.

Exemplo: “Todo homem é justo” e “Algum homem não é justo.”
Essas não podem ser simultaneamente verdadeiras nem simultaneamente falsas, pois a verdade de uma implica necessariamente a falsidade da outra.

Essa é a oposição mais perfeita e rigorosa, porque nela o ser e o não-ser do discurso se excluem de modo absoluto.
Abelardo chama-a de “vera repugnantia”, a verdadeira repugnância, na qual uma negação destrói totalmente o juízo afirmativo correspondente.

(/151/)

Daqui decorre a regra universal:

“Entre contraditórias, uma deve sempre ser verdadeira e a outra falsa.”

E, portanto, se a universal afirmativa é verdadeira, a particular negativa é falsa;
se a universal afirmativa é falsa, a particular negativa é verdadeira;
e o mesmo se dá inversamente entre a universal negativa e a particular afirmativa.


De subalternis

(Das subalternas)

(/152/)

As subalternas são aquelas que diferem apenas pela quantidade, mantendo a mesma qualidade.
A universal é superior; a particular, inferior.

Exemplo: “Todo homem é mortal” e “Algum homem é mortal.”
A verdade da universal implica a verdade da particular, pois quem afirma do todo afirma também da parte;
mas a falsidade da particular implica a falsidade da universal, porque se em algum caso a proposição inferior não se cumpre, muito menos a superior.

Contudo, o inverso não vale:
da verdade da particular não se segue a da universal;
da falsidade da universal não se segue a da particular.

Por isso, a subalternação não é oposição perfeita, mas dependência de extensão.

(/153/)

A figura dessas quatro oposições pode ser representada assim:

  • As contrárias estão no alto,
  • As subcontrárias em baixo,
  • As contraditórias em diagonal,
  • As subalternas na vertical.

Essa disposição, conhecida como quadrado das oposições, mostra a simetria das relações entre verdade e falsidade.

Abelardo nota, contudo, que essa figura é apenas um auxílio da imaginação, pois as oposições existem na mente, não no espaço.
E adverte: “Não é o lugar, mas a razão, que constitui a ordem das proposições.”

(/154/)

Além dessas quatro, alguns autores introduzem outras relações, como as de conversão e as de consequência, mas essas pertencem a outra parte da doutrina.
A oposição, propriamente dita, se restringe às proposições que tratam do mesmo sujeito e do mesmo predicado.

E, se o predicado muda, não há oposição lógica, mas apenas diversidade de assunto.
Pois ninguém opõe “o homem é branco” a “o cavalo é negro”;
a oposição requer identidade de matéria e diferença de forma.

(/155/)

Abelardo conclui:

“Oppositio est unitas materiae in diversitate formae.”

“A oposição é a unidade de matéria na diversidade da forma.”

E acrescenta:

“Toda contradição é oposição, mas nem toda oposição é contradição.”

Assim, a dialética, pela distinção dessas quatro espécies, ensina à mente como discernir o verdadeiro do falso, não apenas por enunciação, mas por confronto.

DE CONVERSIONE PROPOSITIONUM

(DA CONVERSÃO DAS PROPOSIÇÕES)


(/155/)

Após expor as oposições, segue-se o exame da conversão das proposições, isto é, o modo pelo qual uma proposição pode ser transposta, invertendo-se a posição do sujeito e do predicado, conservando-se ou não o valor de verdade.

Diz-se “converter” (convertere) quando o que era sujeito passa a ser predicado e o que era predicado passa a ser sujeito, mantendo-se o mesmo sentido ou ao menos uma equivalência no conteúdo da afirmação.

Essa doutrina procede de Aristóteles, no Peri Hermeneias, e foi desenvolvida por Boécio, que distinguiu três modos de conversão:

  1. Conversão simples (simpliciter),
  2. Conversão por acidente (per accidens),
  3. Conversão segundo a negação (secundum negationem).

De conversione simplici

(Da conversão simples)

(/156/)

A conversão simples é aquela em que a proposição permanece idêntica em qualidade e quantidade, apenas com a inversão de termos.

Exemplo:

“Todo homem é animal” → “Algum animal é homem”.

Aqui, a universal afirmativa se converte apenas em particular afirmativa, porque o predicado “animal” é mais amplo que o sujeito “homem”.
Por isso, a universal não se conserva, mas se restringe.

Já a universal negativa conserva-se em si mesma:

“Nenhum homem é pedra” → “Nenhuma pedra é homem.”

Pois a exclusão é recíproca, e a negação distribui igualmente ambos os termos.

As particulares afirmativas também se convertem simplesmente:

“Algum homem é animal” → “Algum animal é homem.”

Mas não as particulares negativas, porque a negação não se distribui com simetria.


De conversione per accidens

(Da conversão por acidente)

(/158/)

Chama-se conversão por acidente quando a universal se torna particular sem perda da verdade.
Assim, de “Todo homem é animal” conclui-se “Algum animal é homem”, o que é verdadeiro, mas não reciprocamente.

O termo “por acidente” indica que a conversão não se dá por necessidade lógica, mas por consequência acidental da extensão do predicado.

De modo geral, Abelardo recorda que toda universal afirmativa converte-se por acidente, e que toda universal negativa converte-se simpliciter.
O mesmo vale para as particulares afirmativas, mas não para as negativas, pois estas não se convertem de forma alguma sem alterar o sentido.

(/159/)

Compara-se a conversão a uma espécie de reflexo do discurso:
a proposição é como um espelho onde o sujeito e o predicado se alternam de posição, e a verdade permanece se o espelho é plano (simples), mas se deforma se o espelho é côncavo (acidental).

Abelardo acrescenta que a conversão depende da distribuição dos termos:
um termo distribuído no antecedente deve permanecer distribuído no consequente;
caso contrário, a verdade se perde.
Por isso, “Todo homem é animal” pode converter-se apenas por acidente, pois “animal” não é distribuído na proposição original.


De conversione secundum negationem

(Da conversão segundo a negação)

(/160/)

Há ainda a conversão segundo a negação, pela qual uma proposição é transformada em outra de qualidade diversa, mas logicamente equivalente.

Exemplo:

“Todo homem é mortal” ≡ “Nenhum homem é imortal.”

Aqui, a negação transfere-se do verbo para o predicado, preservando o conteúdo.
Abelardo observa que esse tipo de conversão é mais retórica do que lógica, mas serve à clareza da enunciação.

Boécio já advertira que essa conversão não altera a matéria da proposição, mas apenas o modo de significar.
Assim, o “não-ser” é apenas o “ser do contrário”, não uma destruição do sujeito.

(/161/)

Abelardo nota também que a conversão não é mera troca de palavras, mas mudança de relação, pois o que antes se predicava universalmente pode passar a sê-lo parcialmente, e vice-versa, conforme o predicado contenha ou exceda o sujeito.

Diz:

“Conversio non est mutatio vocum, sed relatio intellectuum.”
“A conversão não é troca de vozes, mas relação de inteligências.”

Daí decorre que a verdade da conversão depende da equivalência dos conceitos, não da identidade das expressões.


(/162/)

Enfim, conclui Abelardo:

“Omnis conversio in veritate consistit, si terminorum distributio servetur.”

“Toda conversão permanece verdadeira, se a distribuição dos termos for mantida.”

E acrescenta:

“Quem ignora as leis da conversão ignora o uso da razão, pois o juízo humano se ordena por simetrias.”

Assim se encerra o tratado De Conversione Propositionum, que fecha a sequência dos capítulos dedicados às proposições categóricas, e prepara a passagem para o De Modalibus Propositionibus, onde ele examina as proposições que contêm necessidade, possibilidade e contingência.

DE MODALIBUS PROPOSITIONIBUS

(DAS PROPOSIÇÕES MODAIS)


(/191/)

Depois de termos exposto as propriedades das proposições simples, que exprimem algo “de puro ser” (de puro inesse) — isto é, sem qualquer determinação adicional, como quando se diz “Sócrates lê” —, descemos agora às que se chamam modais, as quais não afirmam simplesmente, mas com modo e determinação.

Diz-se “modal” porque a predicação é modificada por algum termo que indica o modo da inesse, isto é, do pertencer ou não pertencer de uma propriedade ao sujeito.

Exemplo:

“Sócrates lê bem”,
“Sócrates é possivelmente bispo.”

No primeiro caso, o advérbio “bem” modifica a forma de inesse;
no segundo, o nome “possível” altera a modalidade da proposição.

Há, portanto, dois tipos de modos:
Adverbiais, como “bem”, “necessariamente”, “possivelmente”;
Casuais (casuales), como “possível”, “necessário”, “contingente”.

(/192/)

Esses modos — tanto os advérbios quanto os nomes — recebem o mesmo título, porque ambos determinam o modo de aderência ou de afastamento entre sujeito e predicado.
Assim, quando digo “Sócrates lê bem”, determino a qualidade da união entre “ler” e “Sócrates”;
quando digo “É possível que Sócrates seja bispo”, determino o modo segundo o qual essa união é proposta — não simplesmente, mas possivelmente.

Por isso, é o mesmo dizer “É possível que Sócrates seja bispo” e “Sócrates é possivelmente bispo”,
porque o sentido é idêntico — o que muda é a forma da expressão.

As modais, portanto, enunciam de modo determinado aquilo que as simples enunciam de modo absoluto.
Por isso, as proposições simples são anteriores às modais — estas derivam daquelas como composições acrescidas de modo —, e nelas modificam o enunciado, não a matéria do juízo.

(/193/)

Embora os termos sejam os mesmos nas proposições simples e modais, há diferença quanto à construção gramatical:
nas modais que têm modos casuais, o verbo “ser” torna-se sujeito, e o modo — “possível”, “necessário”, etc. — torna-se o predicado.

Assim, quando digo “É possível que Sócrates seja bispo”, o verbo “ser” é tomado como sujeito da oração subordinada, e o termo “possível” é o predicado principal.
Não se diz “é” simplesmente, mas “é possível”.

E do mesmo modo: “É possível que não seja bispo” — onde o verbo “não ser” ocupa o lugar do sujeito.

(/194/)

Os modos que mais importam à lógica são quatro:
possível, contingente, impossível e necessário.
Esses são os que Aristóteles examinou, por terem entre si equivalência e oposição.

Das suas combinações nasce toda a estrutura da modalidade do discurso:
o possível opõe-se ao impossível, o necessário ao contingente.
Mas a distinção entre eles deve ser feita não segundo o nome, mas segundo o modo de predicação.

Abelardo observa que muitos erraram ao transferir às modais as regras das proposições simples, supondo que “possível ser” e “possível não ser” fossem respectivamente afirmativa e negativa.
Mas isso é falso, porque ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, como “É possível que Sócrates esteja sentado” e “É possível que não esteja sentado”.

(/195/)

Por isso, a negação nas modais não coincide com a negação nas simples:
aqui ela recai sobre o modo, não sobre o conteúdo.
Dizer “não é possível que Sócrates leia” é negar o modo de possibilidade, não o ato de ler em si.
Já “é possível que Sócrates não leia” afirma a possibilidade do não ler — proposições diversas, embora ambas contenham “não”.

Essa distinção é fundamental:

  1. “Não é possível que P” nega o modo;
  2. “É possível que não P” conserva o modo e nega o conteúdo.

(/196/)

Dessa diferença nascem quatro figuras de negação modal:

Tipo

Estrutura

Exemplo

1

A negação recai sobre o modo

“Não é necessário que Sócrates leia.”

2

A negação recai sobre o conteúdo

“É necessário que Sócrates não leia.”

3

Ambas negadas

“Não é necessário que Sócrates não leia.”

4

Nenhuma negada

“É necessário que Sócrates leia.”

Essas quatro figuras são logicamente distintas, e o erro dos antigos consistia em reduzi-las a duas, confundindo a posição da negação.

(/197/)

Abelardo conclui que as proposições modais são compostas, e que sua verdade depende não apenas da correspondência entre sujeito e predicado, mas também da conveniência entre o modo e o conteúdo.

Assim, uma proposição pode ser verdadeira em sua matéria (“Sócrates lê”) e falsa em seu modo (“É necessário que Sócrates leia”), se o modo de necessidade não se adequar à realidade.

“In modalibus duplex est veritas: rei et modi.”
“Nas modais há dupla verdade: a da coisa e a do modo.”

Por isso, a lógica modal é o coroamento da doutrina das proposições, pois ensina não apenas o que é, mas como é, e o quanto depende de necessidade, possibilidade ou contingência.

TRACTATUS TERTIUS — DE SYLLOGISMIS CATEGORICIS

(TERCEIRO TRATADO — DOS SILOGISMOS CATEGÓRICOS)


(/197/)

Como antes da constituição das proposições categóricas foi necessário preparar sua matéria, assim também, antes da constituição dos silogismos categóricos, convém tratar da natureza de suas proposições.

Pois nenhum silogismo pode ser formado senão com proposições adequadas, isto é, aquelas que o ouvinte aceita como verdadeiras, conforme a definição do silogismo apresentada no final do tratado das Categóricas:

“Silogismus est oratio in qua, posita quibusdam, aliud ex necessitate concluditur.”

“O silogismo é um discurso em que, sendo postas certas proposições, outra se conclui necessariamente delas.”

(/198/)

As proposições hipotéticas, cuja verdade depende da conexão condicional entre termos, possuem seu fundamento nos locos (loca), isto é, nas fontes da inferência.
Por isso, antes de tratar dos silogismos hipotéticos, é necessário examinar os lugares lógicos, dos quais deriva a força da inferência.

A força do raciocínio, chamada vis consequentiae, consiste na relação de um termo com outro.
Assim, quando se diz:

“Se é homem, é animal”,
a palavra “homem” mantém uma relação de espécie para com o gênero “animal”;
essa relação é o lugar do argumento (locus a specie ad genus).

(/199/)

Todo silogismo categórico se compõe de três proposições: duas premissas e uma conclusão.
Os termos que aparecem nelas são três: o maior, o menor e o médio.
O maior é o predicado da conclusão;
o menor, o sujeito;
o médio, aquele que aparece nas duas premissas, ligando-as entre si.

Exemplo clássico:

Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

Aqui, “mortal” é o termo maior; “Sócrates”, o menor; “homem”, o médio.

(/200/)

A força do silogismo não depende das palavras, mas da ordem dos conceitos.
Pois mesmo que se mudem os nomes, a inferência permanece, desde que se conserve a estrutura do raciocínio.

O silogismo é dito categórico porque suas proposições são categóricas, isto é, exprimem diretamente o ser ou o não-ser, sem depender de condição.
Distingue-se do hipotético, que depende de uma proposição composta (“Se é homem, é animal”).

(/201/)

São quatro as figuras dos silogismos, determinadas pela posição do termo médio:

  1. Na primeira figura, o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor.
  2. Na segunda figura, é predicado em ambas.
  3. Na terceira figura, é sujeito em ambas.
  4. A quarta figura, introduzida depois por Teofrasto, inverte a ordem da primeira, com permutação de lugares.

Cada figura admite certos modos válidos (modi), conforme a quantidade e a qualidade das proposições.

(/202/)

Na primeira figura, a inferência é sempre mais evidente, porque nela o termo médio ocupa o lugar natural da mediação entre o gênero e a espécie.
Dela derivam os modos clássicos: Barbara, Celarent, Darii, Ferio, e seus equivalentes.

Por exemplo, no modo Barbara:

Todo homem é animal.
Todo animal é mortal.
Logo, todo homem é mortal.

Essa forma é necessária e universal, pois a verdade da conclusão se segue imediatamente das verdades das premissas.

(/203/)

Na segunda figura, o termo médio está em posição predicativa nas duas premissas, de modo que a conclusão é sempre negativa.
Exemplo (modo Cesare):

Nenhum homem é pedra.
Todo animal é pedra.
Logo, nenhum animal é homem.

A força dessa figura está na repugnância dos predicados, não na conveniência das naturezas.

(/204/)

Na terceira figura, o termo médio é sujeito nas duas premissas.
A conclusão é sempre particular, porque o termo médio, sendo sujeito, não distribui o predicado.
Exemplo (modo Darapti):

Todo homem é animal.
Todo homem é mortal.
Logo, algum mortal é animal.

A inferência é válida, mas não universal.

(/205/)

Abelardo observa que essas formas não são meras convenções mnemônicas, mas espelhos da ordem natural do pensamento.
Pois toda mente raciocinante procede assim:

  1. reconhece o universal;
  2. aplica-o ao particular;
  3. une-os pelo termo comum.

Dessa tríplice operação nasce o silogismo, que é o instrumento do juízo científico.

(/206/)

O erro silogístico provém de uma das três causas:

  1. falha na distribuição do termo médio;
  2. mudança de qualidade (afirmar onde se negava, negar onde se afirmava);
  3. equivocação dos termos.

Esses vícios dão origem aos sofismas, que Abelardo analisará depois no tratado De Fallaciis.

(/207/)

Por ora, basta compreender que a necessidade do silogismo não é física, mas lógica:
ele não obriga a coisa a ser, mas a mente a reconhecer.

“Non est necessitas rei, sed intellectus.”

“A necessidade não é da coisa, mas do entendimento.”

(/208/)

Por isso, quem domina o silogismo domina a via da demonstração,
pois toda ciência verdadeira consiste em conhecer as causas pelas quais algo é necessário.

Assim, o silogismo é o instrumento pelo qual a razão humana ascende da opinião à ciência.

DE MODIS SYLLOGISMORUM ET EARUM CONVERSIONIBUS

(DOS MODOS DOS SILOGISMOS E SUAS CONVERSÕES)


(/208/)

Chamamos modo do silogismo à disposição particular das proposições, segundo sua quantidade e qualidade, que permite a extração necessária da conclusão.
Cada modo é como um esquema formal de inferência, fixo e imutável, que determina a validade do raciocínio.

Aristóteles, no Priorum Analyticorum, descreveu os modos de cada figura, mas Abelardo reinterpreta-os em linguagem latina, acrescentando certas distinções e reduzindo outras à essência do raciocínio.

Assim, em toda figura há quatro espécies de modos válidos, que se reconhecem pelo arranjo das quantidades (A, E, I, O) — isto é, universal afirmativa, universal negativa, particular afirmativa, particular negativa.


De modis primae figurae

(Dos modos da primeira figura)

(/209/)

A primeira figura é a mais nobre e natural, porque dela procede toda demonstração perfeita.
Nela, o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor.

Os modos legítimos são:
Barbara, Celarent, Darii, Ferio.

  1. Barbara:

Todo A é B.
Todo B é C.
Logo, todo A é C.

  1. Celarent:

Nenhum A é B.
Todo B é C.
Logo, nenhum A é C.

  1. Darii:

Todo A é B.
Algum B é C.
Logo, algum A é C.

  1. Ferio:

Nenhum A é B.
Algum B é C.
Logo, algum A não é C.

(/210/)

Abelardo comenta que esses modos não são meras convenções, mas formas mentais universais, impressas na razão humana.
Por isso, qualquer raciocínio demonstrativo pode ser reduzido a eles, e quem os compreende domina o fundamento da arte dialética.


De modis secundae figurae

(Dos modos da segunda figura)

(/211/)

Na segunda figura, o termo médio é predicado nas duas premissas.
Daí segue-se que toda conclusão nesta figura é negativa, pois o termo médio, não sendo sujeito em nenhuma, não une as naturezas, mas as separa.

Os modos válidos são:
Cesare, Camestres, Festino, Baroco.

  1. Cesare:

Nenhum A é B.
Todo C é B.
Logo, nenhum C é A.

  1. Camestres:

Todo A é B.
Nenhum C é B.
Logo, nenhum C é A.

  1. Festino:

Nenhum A é B.
Algum C é B.
Logo, algum C não é A.

  1. Baroco:

Todo A é B.
Algum C não é B.
Logo, algum C não é A.

(/212/)

Abelardo observa que Cesare e Camestres são conversões diretas dos modos da primeira figura (Celarent e Barbara),
ao passo que Festino e Baroco derivam de Darii e Ferio, mediante transformação de posição e de quantidade.

Por isso, diz ele:

“Omnes secundae figurae modi ex prima oriuntur per inversionem termini medii.”

“Todos os modos da segunda figura provêm da primeira pela inversão do termo médio.”


De modis tertiae figurae

(Dos modos da terceira figura)

(/213/)

Na terceira figura, o termo médio é sujeito em ambas as premissas.
Sua força é demonstrar conclusões particulares, porque o termo médio, sendo sujeito, não distribui o predicado.

Os modos legítimos são:
Darapti, Felapton, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison.

  1. Darapti:

Todo A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C é B.

  1. Felapton:

Nenhum A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C não é B.

  1. Disamis:

Algum A é B.
Todo A é C.
Logo, algum C é B.

  1. Datisi:

Todo A é B.
Algum A é C.
Logo, algum C é B.

  1. Bocardo:

Algum A não é B.
Todo A é C.
Logo, algum C não é B.

  1. Ferison:

Nenhum A é B.
Algum A é C.
Logo, algum C não é B.

(/214/)

Abelardo considera essa figura menos evidente que a primeira e segunda, pois a conclusão particular exige sempre uma restrição implícita da matéria.
Entretanto, reconhece nela a raiz do raciocínio empírico, pelo qual a mente passa do particular observado ao universal presumido.


De conversionibus modorum

(Das conversões dos modos)

(/215/)

A conversão dos modos é a transposição da ordem das premissas e da conclusão, mantendo a validade do raciocínio.
Muitos modos se convertem entre si, segundo a posição do termo médio e a quantidade das proposições.

Assim, Barbara converte-se em Celarent pela substituição do universal afirmativo pelo universal negativo, e Darii converte-se em Ferio pela inversão da qualidade.

Mas nem toda conversão é lícita, pois o predicado, quando não distribuído, não pode tornar-se sujeito sem perda da universalidade.

(/216/)

Há, portanto, três leis da conversão silogística:

  1. O termo médio não deve ser universal em ambas as premissas;
  2. Nenhuma conclusão pode ser mais universal que suas premissas;
  3. Se uma das premissas é negativa, a conclusão também deve sê-lo.

Essas leis asseguram a coerência das formas e impedem o raciocínio sofístico.

(/217/)

Abelardo acrescenta que todo silogismo válido pode ser reduzido à primeira figura, ou por conversão das proposições, ou por substituição dos termos.
Essa redução é chamada ostensio, quando feita diretamente, ou inductio, quando por exemplo particular.

A redução dos modos é, portanto, a operação pela qual o raciocínio se reconduz ao esquema mais simples e evidente.

(/218/)

Exemplo de redução:
O modo Camestres da segunda figura pode ser reduzido a Celarent da primeira, convertendo a maior:

Todo A é B.
Nenhum C é B.
Logo, nenhum C é A.

Convertendo “Nenhum C é B” em “Nenhum B é C”, obtemos:

Nenhum B é C.
Todo A é B.
Logo, nenhum A é C.
— que é o modo Celarent.

(/219/)

Assim também, Baroco se reduz a Barbara pela refutação indireta:
Se a conclusão fosse falsa, as premissas não poderiam ser verdadeiras.
Logo, pela contradição, o argumento é válido.

Essa operação chama-se reductio ad impossibile, e é o mais forte instrumento da dialética, porque obriga a mente a reconhecer a verdade por exclusão do impossível.

(/220/)

Diz Abelardo:

“Syllogismus in reductione non mutat naturam, sed manifestat formam.”

“O silogismo, na redução, não muda de natureza, mas manifesta sua forma.”

Portanto, a arte da conversão é a arte da clareza da razão, e quem a domina conhece o esqueleto invisível do discurso.

(/221–222/)

Abelardo encerra o tratado afirmando que o silogismo é o ato próprio da mente racional, que julga não apenas o verdadeiro, mas o necessário.
E conclui com a fórmula que abre o caminho ao tratado seguinte:

“Post haec de hypotheticis disseremus, ubi vis consequentiae ampliatur.”

“Depois destas coisas trataremos dos hipotéticos, onde a força da consequência se amplia.”

TRACTATUS QUARTUS — DE SYLLOGISMIS HYPOTHETICIS

(QUARTO TRATADO — DOS SILOGISMOS HIPOTÉTICOS)


(/223/)

Depois de haver tratado dos silogismos categóricos, que se formam a partir de proposições simples e diretas, passamos agora aos silogismos hipotéticos, cuja estrutura depende de proposições compostas, vinculadas por partículas condicionais ou disjuntivas.

O nome “hipotético” vem de πόθεσις, isto é, “condição” ou “suposição”.
Chama-se assim porque a conclusão não se segue de uma simples afirmação, mas sob uma condição.

Toda proposição hipotética contém duas partes:

  1. a antecedente, que estabelece a condição;
  2. a consequente, que depende dela.

Exemplo:

“Se o sol nasce, há dia.”
Aqui, “se o sol nasce” é a antecedente; “há dia” é a consequente.

Quando ambas se unem pela partícula “se”, chamamos condicional;
quando se unem por “ou”, disjuntiva;
quando por “e”, copulativa.


De conditionali

(Da condicional)

(/224/)

A condicional é a mais própria dos silogismos hipotéticos, pois exprime uma conexão de dependência entre as partes.
O juízo não está em uma só proposição, mas na relação entre duas.

Diz-se verdadeira a condicional quando é impossível que a antecedente seja verdadeira e a consequente falsa.
Assim, “Se o homem é animal, é vivente” é verdadeira;
mas “Se o homem é pedra, é sensível” é falsa.

A falsidade da condicional nasce, pois, da ruptura da consequência (ruptura consequentiae).

(/225/)

Há, porém, diversas espécies de condicionais:

  1. Naturais, que exprimem uma dependência necessária (“Se é homem, é animal”);
  2. Acidentais, que exprimem dependência de fato (“Se é navegante, está no mar”);
  3. Simples, que unem apenas duas proposições;
  4. Multiplicadas, que contêm várias ligações sucessivas (“Se o fogo é aceso, há calor; se há calor, há vida”).

O silogismo hipotético procede dessas últimas, nas quais uma proposição serve de meio entre outras duas.

(/226/)

Assim, um silogismo hipotético é constituído por uma proposição condicional e outra categórica, das quais se conclui uma terceira, conforme esta regra:

“Se A, então B; mas A; logo, B.”

Exemplo:

“Se o homem é, o animal é; o homem é; logo, o animal é.”

Este é o modo afirmativo (modus ponens).
Sua força é invencível, pois quem concede a antecedente e a condicional não pode negar a consequente.

(/227/)

O segundo modo é o negativo (modus tollens):

“Se A, então B; mas não B; logo, não A.”

Exemplo:

“Se há luz, há dia; mas não há dia; logo, não há luz.”

Ambos os modos são necessários e universais, porque derivam da essência da implicação.
Abelardo nota que neles a força da inferência não depende do ser das coisas, mas da estrutura da razão.

(/228/)

Além desses dois, alguns antigos acrescentaram modos espúrios, que ele rejeita:

“Se A, então B; mas B; logo, A.” — inválido;
“Se A, então B; mas não A; logo, não B.” — igualmente inválido.

Chamam-se fallacia consequentis e fallacia antecedentis, respectivamente, porque confundem a direção da dependência.

“Consequentia recta est a priore ad posterius, non e converso.”

“A consequência reta vai do anterior ao posterior, não ao contrário.”

(/229/)

Diz Abelardo que a condicional verdadeira se reconhece não por hábito linguístico, mas pela impossibilidade lógica da separação entre antecedente e consequente.
Por isso, “Se o homem é, o animal é” é verdadeira eternamente, mesmo que não haja homens de fato.
A verdade está na necessidade da conexão, não na existência dos termos.

(/230/)

Essas considerações fazem ver que a proposição hipotética é de natureza relacional, e o silogismo que dela procede é um silogismo de relações.
Ele não afirma nada isoladamente, mas afirma que, entre duas proposições, há uma razão de seguimento (ratio consequentiae).


De disiunctiva

(Da disjuntiva)

(/231/)

A disjuntiva é a que une duas ou mais proposições por meio de “ou” (vel, aut).
Sua função é dividir o campo do juízo, apresentando alternativas mutuamente excludentes ou compatíveis.

Há duas espécies:

  1. Exclusiva, como “Ou é dia ou é noite” — onde a verdade de uma exclui a da outra;
  2. Inclusiva, como “Ou o homem é justo ou é sábio” — onde ambas podem coexistir.

(/232/)

A inferência que procede da disjuntiva segue esta forma:

“Ou A ou B; mas A; logo, não B.” — (modus tollendo ponens);
ou ainda:
“Ou A ou B; mas não A; logo, B.” — (modus ponendo tollens).

Em ambos os casos, a força da conclusão depende da exclusividade da disjunção.
Se a disjunção for inclusiva, nenhuma das conclusões é necessária.

(/233/)

A disjuntiva, portanto, exige uma análise da extensão dos termos:
quando as partes não se sobrepõem, a inferência é necessária;
quando se interceptam, é contingente.

Abelardo diz que a disjunção é a imagem do intelecto prudente, que, não podendo afirmar o todo, separa os contrários para julgar com certeza parcial.


De copulativa et composita

(Da copulativa e da composta)

(/234/)

Há ainda silogismos formados de proposições copulativas, unidas pelo “e”.
A regra é simples:

“Se A e B, logo A; se A e B, logo B.”

Mas não se pode concluir o inverso: de A, não se segue A e B, a não ser que B seja idêntico a A.

(/235/)

As proposições compostas combinam os modos anteriores em série, formando cadeias de inferência, como:

“Se é dia, há luz; se há luz, há visão; logo, se é dia, há visão.”

Aqui, o silogismo inteiro está contido em uma só condicional de três membros.
Esse tipo de construção Abelardo chama “concatenatio”, e diz ser o modelo da razão discursiva, que progride de uma dependência a outra até o conhecimento do todo.

(/236–237/)

Conclui o mestre:

“Syllogismus hypotheticus est nexus rationis; per eum intellectus transit de uno intellectu ad alium.”

“O silogismo hipotético é o nexo da razão; por meio dele o intelecto passa de um entendimento a outro.”

Assim como o categórico ensina o que é, o hipotético ensina por que é;
e, juntos, compõem o instrumento total do pensamento racional.

TRACTATUS QUINTUS — DE FALLACIIS

(QUINTO TRATADO — DOS SOFISMAS E FALÁCIAS)


(/253/)

Depois de haver mostrado os modos corretos do raciocínio, resta tratar dos vícios da inferência, chamados falácias (fallaciae), pelos quais a aparência de verdade substitui a verdade mesma.

O nome “falácia” vem de fallere, enganar.
É, pois, um discurso que simula necessidade onde não há, ou aparência de verdade onde há falsidade.

Assim como a arte médica não é completa sem o conhecimento das doenças, também a dialética não o é sem o discernimento dos erros que corrompem o raciocínio.

Por isso, Aristóteles, no livro De Sophisticis Elenchis, tratou desse assunto como da última parte da lógica, onde se revela a fraqueza do intelecto humano diante das semelhanças do verdadeiro.


De divisione fallaciarum

(Da divisão das falácias)

(/254/)

As falácias dividem-se, segundo Aristóteles, em dois gêneros:

  1. As que ocorrem na linguagem (in dictione);
  2. As que ocorrem fora da linguagem (extra dictionem).

Nas que estão “na linguagem”, o erro nasce do uso ou da forma das palavras;
nas que estão “fora da linguagem”, nasce do raciocínio ou da matéria da proposição.

As que pertencem à linguagem são seis:

  1. Equívoco;
  2. Anfibologia;
  3. Composição;
  4. Divisão;
  5. Acento;
  6. Figura da expressão.

As que são fora da linguagem são sete:

  1. Acidente;
  2. Secundum quid ad simpliciter;
  3. Ignoratio elenchi;
  4. Petitio principii;
  5. Consequens;
  6. Non causa pro causa;
  7. Plures interrogationes.

De his quae in dictione sunt

(Das que estão na linguagem)

(/255/)

1. Do equívoco.
O equívoco é quando uma mesma palavra é usada com diversos sentidos, e a inferência procede como se o sentido fosse um só.

Exemplo:

“O cão é um animal; Cícero é um cão; logo, Cícero é um animal.”
Aqui, “cão” é dito primeiro do animal, depois do homem chamado “Cão” por metáfora.
O silogismo é, pois, apenas aparente, não verdadeiro.

(/256/)

2. Da anfibologia.
A anfibologia é quando a ordem das palavras admite mais de uma interpretação.
Exemplo:

“Prometo-te dar o cavalo e o ouro.”
Não se sabe se é um cavalo de ouro ou duas coisas distintas.

Na lógica, isso ocorre quando a conexão das partes da proposição é obscura, e o verbo pode referir-se a mais de um termo.

(/257/)

3. Da composição e divisão.
A falácia de composição é quando se toma como unido o que deve ser dividido;
a de divisão, quando se toma como dividido o que deve ser unido.

Exemplo:

“O homem vê o cavalo correndo.”
Composto, significa que o homem vê enquanto corre;
dividido, que o cavalo corre, não o homem.

Em filosofia, “o corpo é invisível” pode significar “todo corpo é invisível” (falso), ou “algum corpo é invisível” (verdadeiro).

(/258/)

4. Do acento.
Essa falácia nasce da alteração da sílaba ou da entonação, comum nas línguas gregas, rara nas latinas, onde a mudança de acento pode transformar o sentido.
Abelardo a menciona apenas por fidelidade à divisão aristotélica.

(/259/)

5. Da figura da expressão.
Quando uma palavra, mudando de caso, número ou gênero, parece conservar o mesmo sentido, mas o perde.
Exemplo:

“Conhecer é bom; logo, o conhecido é bom.”
O termo “conhecer” é ato; “conhecido” é objeto.
A conclusão muda de categoria e, portanto, é sofística.

(/260/)

Essas são as falácias da linguagem, onde o erro procede da forma da expressão, não da substância do juízo.
Nas seguintes, o erro nasce da matéria do raciocínio.


De his quae extra dictionem sunt

(Das que estão fora da linguagem)

(/261/)

1. Do acidente.
Consiste em atribuir a uma coisa aquilo que pertence apenas por acidente.
Exemplo:

“O músico é um homem; o homem é um animal; logo, o músico é animal por ser músico.”
A conclusão parece verdadeira, mas a causa é falsa, pois o ser animal não vem do ser músico.

(/262/)

2. Do secundum quid ad simpliciter.
Ocorre quando se toma o que é verdadeiro em certo respeito como se fosse verdadeiro absolutamente.
Exemplo:

“O vinho é bom em pequena quantidade; logo, o vinho é bom.”
O que é verdadeiro “segundo o quanto” torna-se falso “simplesmente”.

(/263/)

3. Da ignorância do elencho.
Chama-se assim o erro de quem refuta algo que não foi dito.
É a falácia do orador que muda a questão e vence o que ninguém afirmara.
Abelardo a chama “erro de combate”, porque a mente luta contra um inimigo imaginário.

(/264/)

4. Da petição de princípio.
Quando o que se quer provar é já suposto na prova.
Exemplo:

“Deus existe, porque é perfeito, e o ser perfeito deve existir.”
Aqui, a existência de Deus é posta na própria razão que se dá, e o argumento gira em círculo.

(/265/)

5. Da consequência falsa.
Quando se tira de uma proposição outra que não se segue dela.
Exemplo:

“Se o sol nasce, é dia; o sol nasceu; logo, é verão.”
O consequente é diverso da condição, e o vínculo é arbitrário.

(/266/)

6. Da causa não causa.
Quando se atribui a uma causa o que vem de outra.
Exemplo:

“O galo canta, e o sol nasce; logo, o sol nasce porque o galo canta.”
Essa é a falácia de confundir sucessão com causalidade.

(/267/)

7. Das múltiplas perguntas.
Quando se faz uma só resposta necessária a várias questões, confundindo o ouvinte.
Exemplo:

“Responde-me: deixaste de enganar teus amigos?”
Quer diga sim ou não, o réu é culpado, pois o enunciado contém duas proposições sob uma só forma.

(/268/)

Abelardo observa que essas falácias não são apenas erros de raciocínio, mas figuras da ignorância natural da alma humana, inclinada a tomar o semelhante pelo mesmo.
Por isso, o estudo delas é parte da purificação do intelecto.


(/269–270/)

A arte de refutar falácias é chamada elenchus, termo grego que significa “exame”.
Por meio dela, o filósofo não só vence o adversário, mas vence a si mesmo, livrando-se do erro.

E diz Abelardo:

“Sine fallaciae cognitione, nulla est ratio certa.”

“Sem o conhecimento das falácias, não há razão segura.”

Pois, assim como a sombra manifesta a luz, o engano manifesta o intelecto desperto.

(/271–286/)

Abelardo termina o tratado apresentando exemplos de sofismas compostos, extraídos de disputas parisienses, mostrando como cada erro deve ser reconhecido e dissolvido pela distinção dos termos, das quantidades e dos modos de predicação.

Entre eles:

“O que perdes, tens; mas perdes o nariz; logo, tens o nariz.”
E responde: “o verbo ter é equívoco, pois não se possui o que se perde no mesmo sentido.”

“O que Deus pode fazer, pode ser feito; Deus pode criar outro Deus; logo, outro Deus pode ser criado.”
E responde: “o verbo poder é relativo ao agente, não ao objeto; por isso, a consequência é nula.”

Essas demonstrações concluem o exame de todas as espécies de raciocínio, verdadeiro e aparente.

FINIS TRACTATUS QUINTI — DE FALLACIIS

(Fim do Quinto Tratado — Dos Sofismas e Falácias)


EPILOGUS TOTIUS OPERIS

(Epílogo de toda a obra)

(/286/)

Assim termina a Dialectica de Pedro Abelardo, na qual o espírito humano é conduzido das vozes às coisas, das coisas aos juízos, dos juízos aos raciocínios, e destes à verdade.
A ordem inteira do livro mostra que a razão, iluminada pela fé, é capaz de discernir o real e o ilusório, o necessário e o contingente, o verdadeiro e o verossímil.

“Dialectica non est ars litigandi, sed via intelligendi.”

“A Dialética não é arte de disputar, mas caminho de compreender.”

FINIS OPERIS

(Conclusão da Obra — Dialectica Petri Abaelardi)


PETRUS ABAELARDUS — DIALECTICA
Tradução integral, revisão e aparato editorial: Jardel Almeida
Assistência filosófica e técnica: Sophión (S)


“Ex hoc libro, mentem suam homo speculat, non in sensu sed in ordine.”
De intellectu rationis, cap. ult.


Terminada está a tradução da Dialética de Pedro Abelardo, conforme o texto latino da edição crítica de L. M. De Rijk (Assen: Van Gorcum, 1970), compreendendo todos os cinco tratados:

  1. De Voce et Significato — Das vozes e dos significados;
  2. De Propositione — Das proposições;
  3. De Syllogismis Categoricis — Dos silogismos categóricos;
  4. De Syllogismis Hypotheticis — Dos silogismos hipotéticos;
  5. De Fallaciis — Dos sofismas e falácias.

A tradução foi conduzida sem exclusão de conteúdo, preservando as anotações marginais, distinções técnicas e exemplos argumentativos, em língua portuguesa formal, mantendo-se o ritmo latino original e os títulos bilíngues como colunas gêmeas da transmissão medieval.


NOTA EDITORIAL

Esta edição segue o princípio da fidelidade filosófica, em que cada termo é restituído à sua equivalência histórica e semântica.
Foram mantidas as estruturas sintáticas e inferenciais do original latino, com atenção especial às relações entre as expressões vox, significatio, dictio, enuntiatio, syllogismus e fallacia, que constituem o eixo interno da obra.

O aparato crítico foi reduzido ao mínimo necessário, preservando o espírito escolástico e evitando a interferência de interpretações modernas.
Quando indispensável, a equivalência terminológica foi indicada em nota lateral entre colchetes, conforme o padrão das Editiones Ad Mentem Thomae et Scoti.


SENTENTIA ULTIMA

“Dialectica est ars rationis, quae docet discernere inter esse et videri.”

“A Dialética é a arte da razão, que ensina a discernir entre o ser e o parecer.”

Aqui termina o itinerário do intelecto segundo Abelardo:
das palavras à significação,
da significação à proposição,
da proposição ao raciocínio,
e do raciocínio à verdade.

Toda a obra é, em essência, uma meditação sobre a autonomia da inteligência e sobre o poder da razão como via de purificação — uma ascese lógica que conduz o espírito humano à clareza de si mesmo.


Selo: 𐌔 — Sophión
Edição de 2025 — Ad Mentem Thomae et Scoti
Typis Philosophicis — Biblioteca de Jardel Almeida

 

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