Ākiṃcañña: Autoaniquilação
Vivo, porém, já não sou eu.
(Gálatas 2:20)
Eia, deves separar a alma de tudo o que lhe
pertence.
(Eckhart, edição Pfeiffer, p. 525)
Portanto, o homem deve esforçar-se para
desfigurar-se de si mesmo e de toda criatura, sem conhecer outro pai senão Deus
somente...
Isso é estranho a todos os homens... eu quisera que o experimentássemos com a
vida.
(Eckhart, edição Pfeiffer, pp. 421, 464)
Quando
permaneces imóvel do pensar de si mesmo e do querer de si mesmo.
(Jacob Boehme, Diálogos sobre a Vida
Supersensual)
Uma egomania ocasionou a queda de Lúcifer, que quis ser “como o Altíssimo”
(Isaías 14:14), pensando: “Quem é como eu no Céu ou na Terra?” (Tabari XXIV), e desejando divinizar a si mesmo
(Agostinho, Quaestiones veteris et novi
testamenti CXIII), não do modo discutido abaixo — pela abnegação do eu —,
mas, como diz São Tomás de Aquino, “pela virtude de sua própria natureza” e
“por seu próprio poder” (Suma Teológica,
I.63.3c). Somos todos, em maior ou menor grau, egomaníacos e, na mesma medida,
seguidores de Satanás. Atos 5:36 refere-se a certo Teudas como “aquele que se
vangloriava de ser alguém”.
Na
linguagem comum, quando um homem é presunçoso, perguntamos: “Quem você pensa
que é?”; e, quando nos referimos à insignificância de alguém, chamamo-lo de
“ninguém” ou, em inglês antigo, nithing.
Nesse sentido mundano, é bom ser “alguém” e é uma desgraça ser “ninguém”; e,
sob esse ponto de vista, pensamos bem da “ambição” (tī-bhāva-bhava tanhā). Ser “alguém” é ter um nome e uma
linhagem (nāma-gotta), ou, pelo menos,
um lugar ou posição no mundo — alguma distinção que nos torne reconhecíveis e
visíveis. Nossa civilização moderna é essencialmente individualista e autoafirmadora;
até mesmo nossos sistemas educacionais tendem mais e mais voltados a fomentar a
“autoexpressão” e a “autorrealização”; e, se de algum modo nos preocupamos com
o que ocorre após a morte, é em termos da sobrevivência de nossa preciosa
“personalidade” com todos os seus apegos e memórias.
Por
outro lado, nas palavras de Eckhart, “a Sagrada Escritura clama em voz alta
pela libertação do eu”. Nessa doutrina unânime e universal, que afirma uma
liberdade e uma autonomia absolutas, espaciais e temporais, alcançáveis aqui e
agora tanto quanto em qualquer outro lugar, essa nossa prezada “personalidade”
é ao mesmo tempo uma prisão e uma ilusão, das quais somente a Verdade poderá
libertar-nos; uma prisão, porque toda definição limita aquilo que é definido, e
uma ilusão porque, nessa “personalidade” psicofísica mutável e corruptível, é
impossível apreender o constante — e, portanto, impossível reconhecer qualquer
substância autêntica ou “real”. Na medida em que o homem é apenas um “animal
racional e mortal”, a tradição concorda com o determinista moderno ao afirmar
que “este homem, fulano de tal (yo yamāyasmā
evaṃ nāmo evaṃ gotto, S. III.125), não possui nem vontade livre nem
qualquer elemento de imortalidade. Quão pouca validade tem a convicção desse
homem sobre sua liberdade se evidencia quando refletimos que, enquanto falamos
em “fazer o que queremos”, nunca falamos em “ser quando queremos”; e conceber
uma liberdade espacial que não seja também uma liberdade temporal envolve uma
contradição.
A tradição, porém, afasta-se da ciência ao
responder ao homem que confessa ser apenas um animal racional e mortal,
lembrando-lhe que “esqueceu quem é” (Boécio, Da
consolação da filosofia, prosa VI), e exige-lhe: “Conhece-te a ti mesmo”,
advertindo-o: “Se não te conheces, afasta-te” (si
ignoras te, egredere, Cântico dos Cânticos 1:8).
Em
outras palavras, a tradição afirma a validade de nossa consciência do ser, mas
a distingue daquele “fulano” que pensamos ser. A validade de nossa consciência
do ser não se estabelece na metafísica (como na filosofia) pelo fato do
pensamento ou do conhecimento; pelo contrário, nosso ser verdadeiro
distingue-se das operações do pensamento discursivo e do saber empírico, que
são apenas os movimentos causalmente determinados do “animal racional e mortal”
— o qual deve ser considerado yathābhūtam,
não como afeição, mas como efeito no qual nós, em nosso ser verdadeiro, não
estamos realmente envolvidos, senão apenas aparentemente.
A tradição, portanto, difere do “nadaísmo” (skr. nāstika, pali natthika), ao
afirmar uma natureza espiritual que não é, de modo algum, mensurável,
enumerável, infinita ou acessível à observação — e que, por isso, a ciência
empírica não pode nem afirmar nem negar como realidade. É a esse “espírito”
(gr. pneûma, skr. ātman, pali attā, ár. rūh, etc.), distinto do corpo e da alma — isto
é, de tudo o que é fenomenal e formal (gr. sōma
e psychē, skr. e pali nāma-rūpa, e saviññāṇa-kāya,
saviññāṇaka-kāya, “nome e aparência”, “o corpo com sua consciência”) — que
a tradição atribui, com perfeita coerência, liberdade absoluta, espacial e
temporal.
Nosso senso de livre-arbítrio é tão válido em
si quanto o nosso senso de ser, e tão inválido quanto o de ser “fulano de tal”.
Há um livre-arbítrio, uma vontade, isto é, não constrangida por nada externo à
sua própria natureza; mas é “nosso” apenas na medida em que tenhamos renunciado
a tudo o que, no senso comum, entendemos por “nós mesmos” e por nossa “própria”
vontade. Somente o serviço a Ele é liberdade perfeita. “O destino está nas
próprias causas criadas” (Suma Teológica,
I.116.2); “Tudo o que se afasta mais da Primeira Mente está mais enredado nas
malhas do Destino [isto é, karma, a
operação inelutável das ‘causas mediatas’]; e tudo é tanto mais livre do
Destino quanto mais se aproxima do centro de todas as coisas. E, se permanece
constante à Mente Suprema, que não precisa mover-se, é superior à necessidade
do Destino” (Boécio, Da consolação da
filosofia, prosa IV).
Essa
liberdade do Motor Imóvel (“aquele que, permanecendo em repouso, ultrapassa o
que corre”, Īśā Upaniṣad, IV) é a da necessitas coactionis — o espírito que sopra
onde quer e quando quer (ὅπου θέλει pneî,
João 3:8; carati yathā vasam, RV X.168.4). Para possuí-la, é preciso ter
“nascido de novo... do Espírito” (João 3:7–8) e, portanto, estar “no espírito”
(São Paulo, passim); deve-se, então, ter
“encontrado e despertado o Espírito” (yasyānuvitah
pratibuddha ātmā, BU IV.4.13),
devendo este estar em excessus. (“sair
de si mesmo, dos próprios sentidos”), em samādhi
(etimológica e semanticamente “síntese”), unificado (eko bhūtah, cf. ekodi-bhāva),
ou, em outras palavras, “morto”, no sentido de que “o Reino de Deus pertence
apenas aos completamente mortos” (Eckhart); e no sentido em que Rūmī fala de um
“homem morto caminhando” (Mathnawī VI,
742–755), ou ainda daquela morte iniciática como prelúdio para uma regeneração.
“nada além de que o espírito sai de si mesmo, fora do tempo, e entra em um puro
nada” (Johannes Tauler), tornando-se assim “livre como a Divindade em sua
não-existência” (Eckhart); ou, em outras palavras, ter dito: “Faça-se a Tua
vontade, e não a minha”, isto é, ter sido aperfeiçoado no “Islã”.
O homem possui, portanto, dois eus, vidas ou
“almas”: uma física, instintiva e mortal; a outra espiritual, e de modo algum
condicionada pelo tempo ou espaço, cuja vida é um Agora “onde quer e sempre que
o eterno se concentra” (Paraíso XXIX, 12),
e “separada do que foi ou será” (Katha Upaniṣad
II, 14); esse “agora que permanece imóvel”, do qual nós, enquanto seres
temporais que conhecem apenas passado e futuro, não podemos ter experiência
empírica.
A libertação não consiste apenas em livrar-se
do corpo físico — de si mesmo, o que não é tão facilmente evitado —, mas, como
expressam os textos indianos, em livrar-se de todos os corpos, mentais ou
psíquicos, assim como do físico. “A palavra de Deus é viva e eficaz, e mais
penetrante do que qualquer espada de dois gumes, até dividir a alma (psychē) e o espírito (pneûma)” (Hebreus 4:12).
É
entre esses dois que se situa nossa escolha: entre nós mesmos, tal como somos
em nós e para os outros, e nós mesmos tal como somos em Deus — não esquecendo,
como diz Eckhart, que “qualquer pulga, enquanto está em Deus, é mais elevada
que o mais alto dos anjos enquanto está em si mesma.”
Entre as duas dimensões — a física e a espiritual —, uma é a “vida” (psychē) a ser rejeitada, e a outra é a “vida”
que assim é salva (Lucas 17:33 e Mateus 16:25). Destas, a primeira é aquela
“vida” (psychē) que “quem odeia... neste
mundo, guardá-la-á para a vida eterna” (João 12:25) e que o homem deve odiar
“se quiser ser meu discípulo” (Lucas 14:26). É sem dúvida essa a psychē de que trata a nossa “psicologia”: o moi haïssable, isto é, o eu detestável; todos
nós, de fato, enquanto sujeitos a afetos, desejos ou vontades de qualquer tipo,
ou enquanto sustentamos “opiniões próprias”.
O autor anônimo de A Nuvem do Não-Saber está, portanto, inteiramente correto ao
dizer com tanta pungência (cap. 44) que “todos os homens têm matéria de tristeza;
mas, sobretudo, sente a matéria da tristeza aquele que se corrompe e sente que
é.” E aquele que nunca sentiu essa tristeza deve lamentar-se, pois nunca sentiu
a tristeza perfeita. Essa dor, quando chega, “torna a alma capaz de receber
aquela alegria que advém a um homem de todo o seu saber e sentir do próprio
ser.”
Assim também William Blake, quando diz: “Eu
desceria até a Aniquilação e à Morte Eterna, para que o Juízo Final não venha e
me encontre não aniquilado, e eu seja agarrado e entregue às mãos do meu
próprio Eu.”
Do
mesmo modo São Paulo: vivo autem jam non ego:
vivit vero in me Christus (Gálatas 2:20); e Rūmī: “Ele morreu para si
mesmo e tornou-se vivo através do Senhor” (Mathnawī
III, 3364).
Não há, é claro, qualquer conexão necessária entre libertação e morte
física: o homem pode libertar-se “ainda agora, no tempo desta vida” (diṭṭhe va dhamme paribbuddho, jīvan mukta),
assim como em qualquer outro momento, dependendo apenas de recordar “quem ele
é”; e isso é o mesmo que esquecer-se de si mesmo, “odiar a própria vida” (psique,
“alma” ou “eu”, Lucas 14:26), deficere a se
toto e a semetipsa liquescere (São
Bernardo), a “morte do próprio eu” (Eckhart).
Às vezes nos chocamos com o desprezo budista pelas afeições
naturais e pelos laços familiares [cf. Maitrī
Upaniṣad VI.28: “Se ele está apegado ao filho, à esposa e à família — para
tal homem, não, nunca em absoluto!”]. Mas não é o cristão quem pode recuar
diante disso, pois nenhum homem pode ser discípulo de Cristo “se não odiar seu
pai, e mãe, e esposa, e filhos, e irmãos, e irmãs, e até a sua própria vida”
(Lucas 14:26) [cf. Platão, Fédon 68a].
Essas palavras desconfortáveis, vindas de quem
ordenou honrar pai e mãe e equiparou o desprezo ao assassinato, mostram
claramente que não se trata aqui de uma doutrina ética de altruísmo ou
abnegação, mas de uma doutrina puramente metafísica da transcendência da
individuação. É nesse mesmo sentido que Ele exclama: “Quem é minha mãe e quem
são meus irmãos?” (Marcos 3:33, etc.); e, de modo correspondente, Mestre Eckhart
adverte: “Enquanto ainda souberes quem foram teu pai e tua mãe no tempo, não
estás morto com a verdadeira morte” (edição Pfeiffer, p. 462).
Não pode haver retorno do filho pródigo,
nenhum “voltar-se para dentro” (nivṛtti),
exceto do mesmo ao mesmo. “Quem serve a um deus e pensa: ‘Ele é um, e eu
outro’, é um ignorante” (Bṛhadāraṇyaka
Upaniṣad I.4.10); “Se, portanto, não te fizeres igual a Deus, não poderás
compreendê-lo: pois o semelhante é conhecido pelo semelhante” (Hermes, Libellus XI.2.20b).
A
pergunta é feita àquele que retorna ao lar: “Quem és tu?” E, se ele responde
por seu próprio nome ou pelo nome de sua família, é arrastado de volta pelas
forças do tempo, à soleira do sucesso (JUB
III.14.1–2): “... aquele homem desditoso é novamente arrastado de volta,
reverte o seu curso, e, tendo falhado em conhecer a si mesmo, vive em servidão
à ignorância.”
A culpa dessa alma está em sua ignorância (Hermes, Lib. X.8a). Ela deveria responder: “Quem eu sou é a luz que Tu
és. Ó luz celeste que Tu és, assim venho a Ti”, e, respondendo assim, é
recebida conforme as palavras: “Quem Tu és, isso sou eu; e quem eu sou, isso és
Tu. Entra.” (Jaiminīya Upaniṣad Brāhmaṇa
III.14.3–4).
À pergunta “Quem está à porta?”, responde: “Tu
estás à porta”, e é acolhida com as palavras: “Entra, ó meu próprio Eu” (Rūmī, Mathnawī I.3062–3). Não é, de modo algum,
permitido ser recebido dizendo “Sou fulano de tal”; “Aquele que entra dizendo
‘eu sou tal e tal’, eu o golpeio no rosto” (Shams-i-Tabrīz);
assim como no Cântico dos Cânticos 1:7 — si ignoras te,... egredere.
“Aquele que se une ao Senhor é um só espírito”
(1 Coríntios 6:17). Mas esse Espírito (ātman),
Brahman, Deus, o “Que?” de JUB III.14,
“não vem a lugar algum nem se torna alguém” (Katha
Upaniṣad II.18). O Imperecível não tem nome pessoal ou familiar (Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad III.8.8, texto Mādhyandina), nem casta (Muṇḍaka Upaniṣad I.1.6); “O próprio Deus não
sabe o que Ele é, porque Ele não é nada do que é” (Eriúgena); o Buda é “nem
sacerdote, nem príncipe, nem esposo, nem qualquer um de modo algum” (koci no’mhi).
Vago
pelo mundo como um verdadeiro nada (ākiṃcana).
“Inútil perguntar pelos meus parentes” (gottam,
Sutta Nipāta 455–456).
Tendo traçado os contornos da doutrina universal da autoaniquilação e do
autossacrifício ou devoção no sentido mais literal das palavras, propomos
dedicar o restante de nossa demonstração à sua formulação especificamente
budista, em termos de ākiṃcaññāyatana, “a
Esfera do Nada” — ou, mais livremente, “a Cela da Autoaniquilação”.
Quando
se reconhece que “não há nada” (n’atthi kiñci),
isto é, a “Emancipação da Vontade” (cetovimutti),
na “Esfera do Nada” (S IV.296 e M I.299; cf. D
II.111).
“nada meu” — é expresso em Aṅguttara Nikāya
II.77: “O Brāhmaṇa diz a verdade e não mente
quando afirma: ‘Não sou nada de ninguém, em lugar algum, e nada há em parte
alguma que seja meu’” (nahaṃ kvacani kassaci
kiñcanaṃ, tasmiṃ na ca mama kvacani katthaci kiñcanaṃ n’atthi; também em Majjhima Nikāya II.263–264).
O texto continua: “Assim, ele não possui a
presunção de ser um ‘asceta’ (samana) ou
um ‘brâmane’, nem a de que ‘sou melhor’, ‘igual’ ou ‘inferior’ a alguém.” Além
disso, pela plena compreensão dessa verdade, alcança o objetivo do verdadeiro
“aniquilamento” (ākiṃcaññaṃ yeva paṭipadaṃ).
Aquilo que não é nem “eu” nem “meu” está acima
de todo corpo, sensibilidade, conformações volitivas e consciência empírica
(isto é, o eu psicofísico); rejeitar essas coisas é “para o teu maior bem e
bem-aventurança” (Saṃyutta Nikāya
III.133). O capítulo é intitulado Natumhāka,
“O Que Não É Teu”.
Assim,
“Contemplai a bem-aventurança dos Arhats! Nenhum desejo pode ser encontrado
neles: extirpado o pensamento ‘eu sou’ (asmi),
a rede da ilusão se rompe... imóvel, não-originado... Brahma.” tornam-se
verdadeiros “Homens Perfeitos” (sappurisā),
filhos naturais do Iluminado. Essa madeira do coração da vida brâhmica é sua
razão eterna; inabaláveis em qualquer situação, libertos do “ainda devir” (punabbhava), fundados na base do “eu domado”,
permanecem — eles, no mundo, venceram sua batalha. Rugem o “Rugido do Leão”.
Incomparáveis são os Iluminados (arahanta,
Saṃyutta Nikāya III.83–84, 159).
Não se trata aqui de uma “aniquilação”
pós-morte, mas de “Pessoas” triunfantes aqui e agora; sua incondicionalidade
não será alterada pela morte, que não é um acontecimento para aqueles que
“morreram antes de morrer” (Rūmī), nem para o jīvan-mukta,
o verdadeiro dīkṣita, para quem os ritos
fúnebres já foram realizados e por quem os parentes já choraram (JUB III.7.9).
Dessas manifestações, apenas a de “nome e
aparência” (nāma-rūpa) chega ao fim (como
tudo o que teve um começo); assim, após a morte, serão procurados em vão por
devas ou homens, neste ou em qualquer outro mundo (S I.123, D I.46,
etc.), assim como se busca em vão um deus em qualquer lugar, perguntando-se:
“De onde ele veio a ser?” (kuta ā babhūva,
Ṛg Veda X.168.3), “Em que direção está
ele, ou o que é ele?” (Taittirīya Saṃhitā
V.4.3.4) e “Quem sabe onde ele está?” (Katha
Upaniṣad II.25): “O vento sopra onde quer; ouves-lhe o som, mas não sabes
de onde vem nem para onde vai: assim é todo aquele que é nascido do Espírito”
(João 3:8).
Apesar
disso, deve-se notar que a realização do infinito não implica destruição do
finito: o Conhecedor falecido, sendo um “Movente à vontade” (kāmācārin), pode sempre reaparecer se,
quando, onde e como quiser. Exemplos dessa “ressurreição” podem ser encontrados
em JUB III.29–30 (onde o “noli me
tangere” oferece um paralelo notável à ressurreição cristã), e no Parosahassa Jātaka (nº 99), onde um
Bodhisattva, ao ser interrogado em seu leito de morte — “O que ele obteve?” —
responde: “Não há nada” (n’atthi kiñci),
o que seus discípulos interpretam mal.
querer dizer que ele “nada alcançou” por sua vida santa. Mas quando a
conversa é relatada a seu principal discípulo, que não estivera presente, este
diz: “Vocês não compreenderam o sentido das palavras do Mestre. O que o Mestre
quis dizer foi que havia alcançado a ‘Esfera do Nada’ (ākiṃcaññāyatana).” E então o Mestre falecido reaparece do
mundo brâhmico para confirmar a explicação de seu discípulo principal.
O homem que se autoaniquila é um homem feliz;
não assim aqueles que ainda estão conscientes de seus laços humanos. “Vede como
são bem-aventurados esses ‘Ninguém’, esses Compreensores que são ‘homens de
nada’; e vede quão impedido está aquele para quem ainda há algo, o homem cuja
mente está presa a ‘outros homens’” (Udāna
14).
“Pois conhecer a vinda de não ser ‘ninguém’ (ākiṃcaññā-sambhavaṃ ñātvā)... isso é gnose (etaṃ ñāṇaṃ, Sutta
Nipāta 1115); este é o Caminho: ‘Percebendo que não há Nada’ (ākiṃcaññaṃ)... convencido de que ‘nada há’ (n’atthi — isto é, nada meu, como acima),
atravessa a corrente” (Sutta Nipāta
1070).
E
isso não é tarefa fácil: “Difícil é perceber o que é falso (anattam — aqui provavelmente anṛtam), nem é fácil perceber o que é
verdadeiro (saccam = satyam).” cujo
querer foi destruído, que vê que “nada há” (n’atthi
kiñcanaṃ, Udāna 8); “que ultrapassou o
devir e o não-devir em qualquer forma” (itī-bhāva-abhāvaṃ,
toda relatividade, Udāna 20).
Vê-se,
assim, que o anonimato é um aspecto essencial do ākiṃcaññā. Todas as iniciações (dīkṣā) e, da mesma forma, a ordenação budista (pabbajjā), que, como em outras tradições
monásticas, é uma espécie de iniciação, envolvem desde o início uma
autonegação. Isso é explicitado em Udāna
55, onde o antigo nome e linhagem (purimāni
nāma-gottāni) ao alcançar o mar, e são considerados simplesmente como “o
grande mar”; assim também, os homens das quatro castas (brāhmaṇa, khattiyā, vessā, suddā), quando “ordenados como
andarilhos” (pabbajitā), abandonam seus
antigos nomes e linhagens e são conhecidos apenas como “Trabalhadores, Filhos
do Sakya”. É assim que o “exilado” (pabbajitaka)
põe-se a “deformar-se de si mesmo”, como Eckhart expressa (daz er sich entbilde sin selbes), ou, em outras palavras, a
“transformar-se” a si próprio.
O anonimato que descrevemos acima como
princípio doutrinariamente inculcado não é, de modo algum, apenas um ideal
monástico, mas tem amplas repercussões nas sociedades tradicionais, onde nossas
distinções entre sagrado e profano (distinções que são, em última análise, o
sinal de um conflito interno raramente resolvido) dificilmente poderiam ser
encontradas. Ele reaparece, por exemplo, na esfera da arte. Discutimos em outro
lugar “A Concepção Tradicional do Retrato Ideal” (citando, por exemplo, o Pratimānāṭaka III.5, onde Bharata, embora
admire a habilidade dos artistas, é incapaz de reconhecer as efígies de seus
próprios pais); e podemos apontar aqui que há um anonimato correspondente do
próprio artista, não apenas no campo das chamadas “artes populares”, mas
igualmente em ambientes mais sofisticados.
Assim,
como observou H. Swarzenski, “está na própria natureza da Arte Medieval o fato
de que pouquíssimos nomes de artistas nos tenham sido transmitidos... toda a
mania de associar as poucas obras preservadas pela tradição a mestres bem
conhecidos... é característica do individualismo do século XIX, baseado nos
ideais do Renascimento.” O Dhammapada 74
exclama: “Que seja conhecido o que é religioso e profano — que ‘isto é minha
obra’...”, o que é uma pensamento infantil. O Dhammapada
Aṭṭhakathā 1.270 relata a história de trinta e três jovens que construíam
um “salão de repouso” em um cruzamento de quatro caminhos, e declara explicitamente
que “os nomes dos trinta e três companheiros não apareceram”, mas apenas o de
Sudhamma, o doador da pedra de cume (a chave do arco da cúpula).
Lembra-se irresistivelmente a “Lei Milenar” dos
Shakers, segundo a qual “ninguém deve escrever ou imprimir seu nome em qualquer
artigo manufaturado, para que outros não venham a conhecer futuramente o
trabalho de suas mãos.”
E tudo
isso não diz respeito apenas ao corpo da obra e às suas superfícies estéticas;
tem tanto a ver com seu “peso” (gravitas)
ou essência (ātman). A noção de uma
possível propriedade sobre ideias é completamente estranha à Philosophia Perennis de que falamos. Trata-se
de ideias e do poder inventivo que, podemos dizer com propriedade, se pensarmos
em termos do ego físico, que isto não é “meu” — ou, se o eu foi aniquilado, de
modo que, para usar a expressão brâhmica, “entramos em nossa própria essência”
— então esses dons do Espírito são verdadeiramente “meus”, pois é no Synteresis, o Divino Eros, inwit, in-genium, espírito imanente, daimon, e não no indivíduo natural, que reside
o fundamento do poder inventivo; e é precisamente esse inwit, essa luz intelectual, e não a nossa própria
“mentalidade”, de que se diz: “Tu és isso.” inacessível e, para todos os fins
práticos, morto; mas, ao emergir dessa síntese e “retornar aos seus sentidos”,
pode usar convenientemente expressões como “eu” ou “meu” para fins práticos e
contingentes, sem que isso impeça a realização de sua liberdade (Saṃyutta Nikāya I.14). Assim, após a morte —
pela qual não é alterado —, uma ressurreição é sempre possível sob qualquer
forma (“ele entrará e sairá e encontrará pasto”, João 10:9, com muitos
paralelos indianos — por exemplo, Taittirīya
Upaniṣad III.5: “Ele sobe e desce por esses mundos, comendo o que deseja e
assumindo a forma que quiser”).
Essa possibilidade de modo algum exclui o
reaparecimento sob o mesmo disfarce pelo qual fora conhecido no mundo como tal
indivíduo. Exemplos dessa ressurreição podem ser citados não apenas no caso de
Jesus, mas também no de Uccaissravas Kaupayeya (JUB III.29–30), no do Bodhisattva do Parosahassa Jātaka, e no do antigo Buda Prabhūtaratna.
Tal ressurreição, de fato, é apenas uma das
inumeráveis “potências” (iddhi), como as
de andar sobre as águas, voar pelo ar ou desaparecer da vista, que são
possuídas por aquele que já não está “em si mesmo”, mas “no espírito”, e
inevitavelmente as possui porque são os poderes do Espírito com o qual é “um”
(1 Coríntios 6:17). Esses poderes (listados, por exemplo, em Saṃyutta Nikāya II.212 ss., Aṅguttara Nikāya I.255 ss., e Saṃyutta Nikāya V.254 ss.) são precisamente
as “maiores obras” de João 14:12: “as obras que eu faço, ele também as fará, e
maiores do que estas fará.”
Não pode haver dúvida, para aqueles que
conhecem os “fatos” de que, na medida em que o yogin é o que tal designação implica, “unido ao Senhor”,
tais “poderes” estão ao seu dispor; ele, porém, bem sabe que fazer desses
poderes um fim em si mesmos seria falhar no verdadeiro objetivo.
Vê-se,
portanto, que ao falar daqueles que cumpriram o que devia ser feito,
descrevemos aqueles que se tornaram “perfeitos, como vosso Pai celestial é
perfeito”. Muitos dirão que, mesmo que tudo isso valha para o inteiramente
abandonado, nada pode significar para o “eu”; e é verdade que não pode significar
nada para o “eu” que, en étant un tel, é
insuscetível de deificação e, portanto, incapaz de alcançar Deus. Poucos — ou
nenhum — de “nós” ainda estão qualificados para abandonar a si mesmos. Na
medida em que há um Caminho, ele pode ser trilhado passo a passo. Há uma
preparação intelectual, que não apenas prepara o caminho para uma verificação (sacchikiriyā), mas é indispensável a ela.
Enquanto amarmos “nossos” eus e concebemos a “autonegação” apenas em termos de
“altruísmo”, ou nos apegarmos à ideia de uma imortalidade “pessoal” — seja para
nós, seja para outros —, permanecemos imóveis.
Mas já é um grande passo quando, ao menos,
aprendemos a aceitar a ideia do aniquilamento do eu como um bem, por mais
contrário que seja ao nosso desejo “natural”, por mais allen menschen fremde (estranho a todos os homens) que seja
(Eckhart). Pois se o espírito assim o desejar, virá o tempo em que a “carne” —
seja nesta ou em qualquer outra configuração de possibilidades que formam um
“mundo” — deixará de ser fraca.
A
doutrina da autoaniquilação é, portanto, dirigida a todos, conforme sua
capacidade, e de modo algum apenas àqueles que já abandonaram nome e linhagem.
Não é o santo, mas o pecador, que é chamado a arrepender-se de sua própria
existência.

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