O SISTEMA DO ANTICRISTO.
CONTEÚDO
Preface
Prefácio
Introduction
Introdução
Part One: Tradition vs. the New Age
Parte Um: Tradição vs. a Nova Era
Foreword
Prefácio
1 Postmodernism, Globalism, and the New Age
1 Pós-modernismo, Globalismo e a Nova Era
2 Who are the Traditionalists?
2 Quem são os Tradicionalistas?
3 What is the New Age?
3 O que é a Nova Era?
I A Short History of the ‘Spiritual Revolution’ and
the New Age Movement
I Uma Breve História da “Revolução Espiritual” e do Movimento Nova Era
II The Dangers of the
Occult
II Os Perigos do Oculto
III New Age Doctrines Refuted
III Doutrinas da Nova Era Refutadas
4 New Age Authorities: A Divided House
4 Autoridades da Nova Era: Uma Casa Dividida
I The Fallacy of the Psychic
Absolute: Truth and Deception in The Seth Material
I A Falácia do Absoluto Psíquico: Verdade e Engano em The Seth Material
II The Postmodern Traveler: Don Carlos Castaneda
II O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda
III Transcendence without Immanence: The
Neo-Gnosticism of A Course in Miracles
III Transcendência sem Imanência: O Neognosticismo de Um Curso em
Milagres
IV The Celestine Prophecy: a Pre-Columbian Singles
Culture
IV A Profecia Celestina: Uma Cultura de Solteiros Pré-colombiana
V Having It vs. Eating It:
The Entrepreneurial Hinduism of Deepak Chopra
V Ter vs. Consumir: O Hinduísmo Empresarial de Deepak Chopra
Part Two: Spiritual Warfare
Parte Dois: Guerra Espiritual
5 The Shadows of God
5 As Sombras de Deus
6 The War Against Love
6 A Guerra Contra o Amor
7 UFOs and Traditional Metaphysics: A Postmodern
Demonology
7 OVNIs e a Metafísica Tradicional: Uma Demonologia Pós-moderna
8 Vigilance at the Eleventh Hour: A Refutation of
The Only Tradition
8 Vigilância na Décima Primeira Hora: Uma Refutação de The Only Tradition
9 Comparative Eschatology
9 Escatologia Comparada
10 Facing Apocalypse
10 Encarando o Apocalipse
Index
Índice
Nasir [Xerife de Medina] virou-se de costas, com
meus óculos, e começou a estudar as estrelas, contando em voz alta primeiro um
grupo e depois outro; gritando de surpresa ao descobrir pequenas luzes que não
percebia a olho nu. Auda nos levou a falar de telescópios — dos grandes — e de
como o homem, em trezentos anos, avançara tanto desde seu primeiro ensaio que
agora construía lentes tão longas quanto uma tenda, através das quais contava
milhares de estrelas desconhecidas. Passamos a falar de sóis além de sóis, de
tamanhos e distâncias além da inteligência.
“E o que acontecerá agora com esse conhecimento?”,
perguntou Mohammed.
“Nós prosseguiremos, e muitos homens eruditos e
alguns inteligentes juntos farão lentes mais poderosas do que as nossas, assim
como as nossas são mais poderosas que as de Galileu; e ainda mais centenas de
astrônomos distinguirão e contarão mais milhares de estrelas agora invisíveis,
mapeando-as e dando a cada uma seu nome. Quando as virmos todas, não haverá
noite no céu.”
“Por que os ocidentais sempre querem tudo?”, disse
Auda provocando. “Atrás das nossas poucas estrelas conseguimos ver Deus, que não
está atrás de seus milhões.”
“Queremos o fim do mundo, Auda.”
“Mas isso pertence a Deus”, reclamou Zaal…
∼ T. E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom
Um grupo do meu povo não deixará de lutar pela
verdade até a vinda do Anticristo… mas Deus o matará pela mão de Jesus, que
lhes mostrará seu sangue sobre a lança.
∼ Hadith
Prefácio
Neste livro tentarei realizar dez coisas:
Tomar sondagens da cena religiosa e cultural atual
do ponto de vista da metafísica tradicional.
Introduzir a um público leitor mais amplo as
doutrinas da “Escola Tradicionalista”: René Guénon, Ananda Coomaraswamy,
Frithjof Schuon, Martin Lings, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr, Huston
Smith et al., e, no processo, dar ao leitor um vislumbre da cidade do
Tradicionalismo e do campo de batalha espiritual que a rodeia.
Com base na metafísica tradicional, criticar as
doutrinas das espiritualidades da Nova Era dentro do contexto do
pós-modernismo, do qual são uma expressão.
Demonstrar, durante essa crítica, que metafísica,
misticismo e esoterismo são fundamentalmente diferentes e muitas vezes
radicalmente opostos às práticas mágicas, à busca de poderes psíquicos e à
canalização de “entidades espirituais”.
Demonstrar aos meus amigos cristãos que não são
apenas eles que veem, no Neopaganismo e na Nova Era, um declínio na compreensão
cultural tanto de Deus quanto do homem.
Apresentar tradições e profecias relativas aos
“últimos dias” do ciclo presente sob o ponto de vista da religião comparada,
recorrendo a doutrinas relevantes do Budismo, Hinduísmo, Judaísmo,
Cristianismo, Islã, Zoroastrismo e povos nativo-americanos.
Publicar os sinais e especular sobre a natureza
social, psíquica e espiritual daquele ser conhecido pelo Cristianismo, Judaísmo
e Islã como o Anticristo; apresentá-lo como indivíduo e como sistema; alertar
aqueles dispostos a serem alertados contra a sedução espiritual e o terror que
ele representa, e contra o regime que será — e é — a expressão social dessa
sedução e desse terror.
Rastrear as raízes do Anticristo na natureza esquecida
e/ou caída do homem.
Começar a definir a qualidade particular da
espiritualidade própria aos tempos apocalípticos, os perigos que enfrenta e as
oportunidades únicas que se abrem a ela.
Traçar meu próprio percurso desde a “revolução
espiritual” dos anos 1960, passando pelo mundo das espiritualidades da Nova
Era, até o limiar do esoterismo e da metafísica tradicionais.
O paradigma modernista-materialista, segundo o qual
dinâmicas históricas e intervenções sobrenaturais não podem ambas ser aceitas
como explicações para as notícias diárias, ainda possui força. E o
pós-modernismo, agora claramente a visão dominante, embora possa estar mais
próximo de validar ambas essas realidades, só as admite como mundos fechados de
significado unidos por nenhum “paradigma abrangente”.
Consequentemente, fui forçado — não contra a minha
vontade, mas de acordo com meu deleite — a retornar à metafísica tradicional
(que, embora profundamente consistente, não pode ser um sistema fechado, já que
se abre para o Infinito) como a única visão de mundo que pode dar sentido
unificado à experiência pós-moderna, como a ideologia pós-moderna claramente e
abertamente não pode fazer.
Às vezes escrevo como erudito, às vezes como
teósofo especulativo, às vezes como popularizador de princípios metafísicos
básicos para o leitor geral, às vezes como crítico social, às vezes como
autobiográfico, às vezes como poeta. Cruzo essas fronteiras proibidas
deliberadamente. Tão reduzida e fragmentada é a consciência da humanidade dos
“últimos dias” — em parte como reflexo automático da qualidade do tempo, em
parte como resultado de um programa deliberado de hipnose social em massa — que
somente o choque de encontro com uma amplitude e profundidade de significação
proibidas socialmente pode despertá-la, agora que choques repetidos e a
subsequente anestesia a deixaram entorpecida.
O remédio específico para o choque do desespero é o
choque mais profundo do significado. Onde o tempo e a história nos esmagaram
sob sua “insuportável leveza”, nada além do peso da eternidade, rompendo a fina
e frágil casca do céu pós-moderno, pode nos colocar de pé. Esse é um dos vários
significados da palavra “apocalipse”.
Introdução
No início do terceiro milênio, a raça humana está
no processo de esquecer o que significa ser humano. Não sabemos quem ou o que
somos; não sabemos o que deveríamos estar fazendo aqui, em um cosmos que
rapidamente se torna nada além de uma tela para a projeção de fantasias
aleatórias e cada vez mais demoníacas.
A vida humana já não é sentida como valiosa diante
da eternidade simplesmente porque é criação de Deus, nem nos é tão fácil quanto
antes ver o empreendimento humano como valioso devido às nossas realizações
coletivas ou ao impulso histórico que as produziu, já que, sem uma escala de
valores enraizada na eternidade, a realização não pode ser medida, e sem uma
meta eterna para a qual o tempo necessariamente tenda (no sentido espiritual,
não material, dado que a eternidade não pode estar no fim de um movimento
linear acelerado que é precisamente fuga de tudo que é eterno), a história é
uma estrada que leva a lugar nenhum.
Chamamos esse estado de coisas de “pós-modernismo”.
Todos nós, de alguma forma, sabemos disso. Sentimos
isso nos ossos. Mas não conseguimos abarcar; não conseguimos definir a escala do
que enfrentamos ou do que perdemos, porque já não possuímos a verdadeira escala
do que somos. Assumimos o nome de pós-modernos, mas seria mais próximo da
verdade dizer que somos pós-humanos — não em essência, mas em efeito, já que
qualquer conceito de natureza humana adequado à essência humana foi descartado
como ultrapassado.
O humanismo não é suficiente para nos dizer o que
significa ser humano. A ciência é ainda menos capaz de suportar esse fardo,
razão pela qual desistiu de tentar. Somente a religião, entendida em seu
sentido mais profundo, pode fazer essa pergunta e respondê-la. E somente uma
compreensão completa das forças sociais e psíquicas que escondem o rosto da
Realidade Absoluta e Infinita que chamamos “Deus” pode nos mostrar a escala
verdadeira do que ameaça a forma humana nestes “últimos dias”, quando o ciclo
presente do tempo biológico e humano aproxima-se de seu fim.
Se o nome “Deus” denota a verdade eterna das
coisas, e o nome “Homem” o espelho central dessa Verdade no espaço e tempo
terrestres, então o nome dessas forças de obscuridade e negação que são opostas
ao “Homem”, em sua forma plenamente revelada e terminal, é “Anticristo”.
Os Últimos
Dias
É comum hoje imaginar que o universo, de acordo com
ideias progressistas e evolucionistas, deve de alguma forma estar avançando
espiritualmente. Se concluirmos que a evolução espiritual do macrocosmo não é
possível, podemos até nos perguntar qual é o valor ou proveito da existência
material. Para que serve? Para que existe? Com medo de nos tornarmos
“gnósticos”, que negam o valor da vida terrestre, acabamos negando o
significado eterno desta própria vida.
O problema com o conceito de que o universo evolui
para níveis superiores de organização, conceito básico nas doutrinas de
Teilhard de Chardin, Rudolf Steiner e muitos outros mestres da Nova Era (bem
como na tentativa dentro do Judaísmo de aplicar a Cabala Luriânica — e no
Ismaelismo, a ideia de uma “desvelação” em massa das realidades espirituais — à
evolução histórica), é a Segunda Lei da Termodinâmica.
Essa lei afirma que, por meio da entropia, a ordem
geral da matéria/energia no universo está sempre diminuindo — uma diminuição
inseparável, em princípio, da expansão do universo iniciada no Big Bang.
Em certo momento, cientistas postularam grandes
quantidades de “matéria escura” que permitiriam ao universo contrair-se
novamente, via gravitação, quando o impulso do Big Bang se esgotasse.
Entretanto, no momento em que este texto foi escrito, a opinião científica
tende a afastar-se dessa hipótese. Assim, parece que o universo material deve
continuar expandindo-se e aumentando sua desordem para sempre.
Isso está de acordo com a metafísica tradicional.
“Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda.
“Tudo perece, exceto Seu Rosto”, diz o Alcorão.
A criação, segundo a visão tradicional, é um
sucessivo rebaixamento de ordens superiores de realidade para ordens
inferiores. Deus, que em Sua Essência está totalmente além de forma, número,
matéria, energia, espaço e tempo, deve — como Frithjof Schuon nunca se cansou
de afirmar — “transbordar” nessas dimensões da existência porque Ele é
Infinito; não existe em Sua Natureza qualquer barreira que impeça a irradiação
de Seu Ser superabundante.
As escatologias tradicionais, em grande parte,
concordam com a Segunda Lei da Termodinâmica. Em vez de progresso — mito que
não tem mais que três ou quatro séculos em sua forma moderna — elas postulam
uma entropia espiritual, social e cultural.
Isso é particularmente verdadeiro no Hinduísmo e na
mitologia greco-romana clássica, com sua ideia de que um ciclo de manifestação
emerge completamente formado do Criador sob a forma da Idade de Ouro, seguida
pela Idade de Prata, de Bronze e, finalmente, pela Idade de Ferro, que termina
em um cataclismo escatológico, um Dia de Purificação, após o qual a Idade de
Ouro do próximo ciclo começa.
Esse esquema é mais ou menos aceito, através de
diferentes linguagens mitológicas, por judeus tradicionais, cristãos, hindus, e
até pelos índios Lakota (Sioux) e outros povos primordiais. (Os budistas,
embora sua doutrina de ciclos tenda a negar a possibilidade de uma renovação
abrupta, também aceitam que a era presente terminará em cataclismo.)
As doutrinas dentro das religiões reveladas
tradicionais que parecem falar de progresso espiritual do mundo manifestado —
como o conceito na Cabala Luriânica do tikkun, ou restauração universal — são:
Uma aplicação equivocada ao coletivo de doutrinas
que pertencem ao desenvolvimento espiritual individual;
Ou a ideia de que Deus continuamente cria e
sustenta o mundo manifestado, podendo conceder a um indivíduo, dispensação
religiosa ou nação um papel especial na renovação da Imagem Divina para uma
época, dentro do contexto mais amplo da degeneração geral;
Ou a referência ao retorno escatológico de toda
manifestação a Deus no fim dos tempos.
O que é criado deve deixar a Casa do Criador para
existir; e aquilo que entrou na manifestação cósmica já começou a morrer.
Os crentes periodicamente prevêem o triunfo final
(embora temporário) do mal nos últimos dias, o fim do mundo e a vinda do
Messias. Os não-crentes zombam quando tais previsões parecem não se cumprir.
Eles poderão continuar zombando até o momento em que o mundo realmente
terminar, depois do qual nem crentes nem descrentes terão, em termos mundanos,
oportunidade ou impulso de dizer “eu não disse?”.
Nesse último instante de verdade, encontrar-se-ão
face a face com uma Realidade tão profunda e tão rigorosamente exigente que
suas opiniões — certas ou erradas — e as razões psicológicas para sustentá-las
desaparecerão na insignificância. Apenas o motivo essencial pelo qual se
apegaram à Verdade ou caíram no erro lhes restará, como sinal de seu destino
eterno diante do rosto de Deus.
Os não-crentes dizem:
“Em todas as gerações houve pessoas que pensaram viver nos tempos mais
sombrios; essa lamúria sobre degeneração humana nos ‘últimos dias’ não é
novidade.”
E os crentes — ao menos os tradicionais —
concordam. Segundo um hadith do Profeta Muhammad (que a paz esteja sobre ele):
“Não virá sobre vós uma geração que não seja seguida por outra pior.”
A história não desce de forma uniforme — há picos e
vales, reavivamentos religiosos, retificações, renovações parciais de tradições
espirituais, pequenas e breves idades de ouro, lutas heroicas para restabilizar
a sociedade em níveis mais baixos, renascimentos impulsivos baseados no desejo
de dissipar o capital cultural e espiritual herdado — mas a direção é sempre da
ordem para o caos.
A capacidade humana de ver, compreender e nutrir-se
das realidades espirituais superiores se reduz inevitavelmente. À medida que se
afasta do Sol espiritual, a luz da Verdade diminui; o calor da Vida desvanece.
O resultado final desse processo é o fim de um
mundo ou de uma idade.
Esse mundo pode nunca terminar nos calendários dos simplórios que tomam
literalmente as previsões, mas ele terá de terminar algum dia.
E considerando que hoje possuímos mais meios de
autodestruição do que qualquer geração anterior, a distância entre nós e as
condições finais não parece infinita.
Se considerarmos seriamente a possibilidade de
estar vivendo nos últimos dias, enfrentamos dois problemas:
Definir o que “últimos dias” significa;
E decidir se há evidências além de sentimentos sombrios que justifiquem essa
conclusão.
Meu argumento não é que vivemos nos últimos dias
absolutos da criação — pois ninguém sabe quando virão — mas nos últimos dias de
um ciclo de existência humana, marcado por degradação gradual espiritual,
social e cultural, conduzindo a uma ruptura.
Estamos, como nunca antes na história humana, com
meios concretos de pôr fim ao mundo: seja por guerra nuclear, química ou
biológica, seja pela degradação ambiental — ou ainda pela desconstrução da
própria forma humana por meio de engenharia genética movida por forças
econômicas cegas, pelos caprichos de tolos emocionalmente desequilibrados ou
inspirados demoníacamente, e certamente pelo medo e pelo desejo humanos
primordiais, não temperados nem pela sombra da sabedoria. Uma meditação sobre
os Tempos Finais é, no mínimo, oportuna.
E, na verdade, ela é sempre oportuna. Todos os dias
uma nova geração passa para o esquecimento. É sempre o pior dos tempos: um dia
mais distante do Jardim do Éden, quando o mundo, recém-saído das mãos do
Criador, era jovem — e sempre o melhor dos tempos: um dia mais próximo do Momento
inevitável em que a contingência e a ilusão precisam ruir, e a Realidade
Absoluta deve amanhecer, de forma definitiva, sobre este mundo que morre, esta
imagem móvel da Eternidade.
O Anticristo
A degeneração espiritual da humanidade não pode
continuar indefinidamente; ela deve atingir um ponto terminal, além do qual a
própria forma humana, ao menos em sua encarnação terrena, já não poderia
sobreviver. E, em consonância com o princípio corruptio optimi pessima —
“a corrupção do melhor é a pior” — o ponto mais baixo da receptividade
espiritual humana deve, segundo muitas tradições espirituais, manifestar-se não
apenas como o desaparecimento da espiritualidade, mas como a sua falsificação
satânica.
É daí que vem o mito do Anticristo — mito que,
poucos percebem, é tão importante no Islã quanto no Cristianismo, já que os
muçulmanos acreditam que o profeta Jesus retornará à terra no fim dos tempos
para enfrentar esse Adversário e matá-lo em batalha.
Assim como o ego é a sombra do Eu Divino em nós, o
Anticristo é a sombra do Messias — do salvador escatológico que representa o
desvelamento completo do Eu Divino no fim do ciclo. Muitas vezes, o ego chega a
um clímax de desespero, delírio e violência justamente quando um avanço
espiritual é iminente; da mesma forma, o Anticristo reunirá em si todas as
forças sociais e psíquicas que escolheram resistir a Deus exatamente no momento
em que o Rosto do Absoluto estiver prestes a amanhecer sobre o mundo. As
palavras de Mestre Eckhart poderiam muito bem ter sido ditas sobre o
Anticristo, assim como foram certamente ditas sobre o ego humano: “Quanto mais
ele blasfema, mais ele louva a Deus.”
O Messias
Ao longo da história, religiões que esperam por um
Messias sempre tenderam a concretizá-lo. De tempos em tempos surge um Mahdi no
Islã, apenas para ser cooptado ou derrotado. Sabbatai Zevi, falso messias do
século XVII, comoveu profundamente o mundo judaico, apenas para depois
converter-se ao Islã sob ameaça de morte imposta pelo sultão turco. E o
Cristianismo certamente não está livre de seus falsos Cristos e falsos
profetas. Então quem é o verdadeiro Messias? Como reconhecê-lo?
O verdadeiro Messias está eternamente chegando ao
mundo, eternamente rompendo suas dimensões espaço-temporais e eternamente
atraindo seus seguidores para a comunhão de Seu reino. Na medida em que os
“falsos” messias são receptivos a essa verdade, são, de certo modo, messias
parciais — reflexos imperfeitos do próprio Messias. Mas, na medida em que se
identificam com o papel messiânico no nível do ego, alimentando assim o ego
coletivo dos seus seguidores — e é o que sempre fazem — tornam-se anticristos.
A humanidade, afundada no materialismo, não pode
ser despertada do “pesadelo da história” sem algum tipo de esperança histórica.
Mas essa esperança é sempre frustrada. A revolução é cooptada. A renascença se
desfaz. A renovação espiritual torna-se alimento para a literalização da
doutrina e o enrijecimento das linhas sociais e culturais. O Espírito está
sempre dando vida; a letra está sempre arrastando essa vida para o túmulo da
contingência, para o tempo e para a história.
Aqueles que, respondendo à esperança messiânica,
passam do turbilhão do tempo para a visão da Eternidade encontraram o
verdadeiro Messias. Aqueles que não rompem seu pacto com o tempo — porque
esperam algo do destino e da contingência, ou porque acreditam tola e
arrogantemente que podem manipulá-los — caíram na armadilha do Anticristo.
Quando, então, virá o verdadeiro Messias? A
resposta é sempre dupla: Ele virá Agora; Ele virá no Fim. Se habitamos
o Agora, estamos à Sua espera; se não ocupamos o Agora, perderemos Sua vinda.
Já O perdemos inúmeras vezes. Mas quando o Agora e o Fim coincidirem — o fim
deste ego, o fim deste mundo — então estaremos na presença do Messias.
A história sempre nos leva para longe do dia da
vinda messiânica, longe da porta do Agora — e, no entanto, a história um dia
terá de terminar; esta partida infinita deverá, num instante misterioso,
transformar-se em chegada. O que recebemos no segredo do coração e o que surge nos
“horizontes” da realidade exterior devem um dia convergir. Como diz o Alcorão:
“Eu lhes mostrarei Meus sinais nos horizontes e em si mesmos, até que saibam
que isto é a Verdade. Não vos basta isso, visto que Eu sou Testemunha de todas
as coisas?”
A Profecia de René Guénon
Minha abordagem fundamental neste livro segue a
metafísica tradicional, tal como apresentada pelos autores da Escola
Tradicionalista. Para a metafísica “pura”, segui sobretudo Frithjof Schuon.
Para a própria escatologia — a ciência das “últimas coisas” — apoiei-me em
Martin Lings, especialmente em seu livro The Eleventh Hour, e ainda mais
no fundador dos Tradicionalistas, René Guénon, cujo livro profético O Reino
da Quantidade e os Sinais dos Tempos, publicado em 1945, torna-se mais relevante
a cada ano que passa.
Mas, embora tenham sido os Tradicionalistas que me
apontaram os caminhos para as escrituras das religiões do mundo, para os
escritos dos grandes sábios e para as lendas dos povos primordiais, não me
limitei estritamente às doutrinas deles; em muitos casos consultei diretamente
os documentos primários. Parafraseando Blake, olhei através dos olhos
deles, e não com eles.
Em O Reino da Quantidade, Guénon via a
história segundo o conceito hindu de manvantara — o ciclo de
manifestação composto de Idades de Ouro, Prata, Bronze e Ferro. Ele via esse
ciclo como uma descida inevitável do polo da Essência, ou forma — o Purusha
hindu — para o polo da Substância, ou matéria — a Prakriti hindu.
A Essência é qualitativa, embora transcenda a própria qualidade. A Substância é
quantitativa, embora, em realidade, esteja abaixo da própria quantidade.
À medida que o ciclo progride — ou melhor, desce —
a própria natureza do tempo e do espaço se transforma. Nas idades antigas, o
espaço domina; as formas das coisas são mais importantes, mais reais, do que as
mudanças que sofrem; o tempo é “relativamente eterno”. Porém, conforme o ciclo
avança, o tempo começa a dominar, derretendo o espaço e as formas nele
contidas, até que tudo se torna um fluxo acelerado de mudança.
Talvez compreendamos melhor o que Guénon quis dizer
se lembrarmos que, quando estamos em profundo silêncio e calma, o espaço parece
mais real que o tempo; quando estamos agitados, o tempo parece mais real que o
espaço. E não é difícil perceber como modos de viagem mais rápidos e,
sobretudo, os meios eletrônicos — que agitam e perturbam a consciência — também
aniquilam o espaço; o ciberespaço, em particular, é a aniquilação de toda
dimensão espacial. Nos últimos dias, nada mantém uma forma estável. Tudo se
move cada vez mais rápido, até que toda forma — incluindo a Forma Humana —
torna-se um borrão disforme.
Mas essa aceleração constante do tempo não pode
continuar para sempre. Em algum ponto, ela terá de cessar. “O tempo devorador”,
cita Guénon, “acaba por devorar a si mesmo.” No fim do tempo, o tempo será
instantaneamente transformado novamente em espaço. Esse ponto supremo e
atemporal é simultaneamente o fim deste ciclo de manifestação e o início do
“próximo”.
Mas antes dessa transformação última, nos últimos
dias do ciclo atual, certos desenvolvimentos finais devem ocorrer. Como a
quantidade tem relação particular com a matéria, o “reino da quantidade” deve
também ser o reino do materialismo — e onde ideias materialistas dominam, o
próprio ambiente cósmico torna-se, de certo modo, mais material. A “era dos
milagres” cessa; o mundo torna-se menos permeável às influências dos planos
superiores de realidade; a própria crença nesses planos — bem como num Deus
eterno e transcendente — torna-se mais difícil de sustentar.
A própria densidade do materialismo, contudo, acaba
produzindo uma espécie de “fragilidade”. O ambiente cósmico, tendo perdido boa
parte da flexibilidade que lhe permitia ser movido pelo Espírito Divino, começa
a rachar, como uma árvore velha que já não pode curvar-se ao vento, e termina
por ser arrancada pela tempestade. Mas essas fissuras no ambiente cósmico — na
“Grande Muralha” que separa o mundo material do mundo das energias sutis —
ocorrem primeiro no sentido descendente, e não ascendente, permitindo a entrada
de uma inundação de forças “infra-psíquicas”, ora neutras, ora demoníacas.
Na volatilização geral do mundo sensível produzida
pela mídia eletrônica e por nossa “cultura da informação”; talvez também pelo
predomínio da poluição eletromagnética e pela liberação de energia nuclear;
pelo interesse contemporâneo em drogas psicodélicas, magia e poderes psíquicos;
e mais claramente pelo chamado “fenômeno OVNI”, que teve um efeito incalculável
sobre nossa visão comum da realidade — podemos ver os efeitos diretos dessas
forças sobre a qualidade da nossa consciência, sobre a estrutura da nossa
sociedade, sobre nossas formas culturais e sobre nossas prioridades econômicas.
E essas forças infra-psíquicas não operam sozinhas.
Tendências culturais formam-se ao redor do zeitgeist infra-psíquico, e, dentro
desse contexto, grupos organizados surgem em resposta às forças que lhes deram
origem. Em alguns casos, esses grupos consistem apenas de pessoas que adotam os
mitos modernistas ou pós-modernistas do “espírito do tempo”. Em outros casos,
entretanto, tais grupos adoram abertamente as forças que os inspiraram, sem
compreender que se colocaram contra a sabedoria perene, contra as verdades
metafísicas das eras. A estes Guénon chama de “anti-tradicionais” ou
“pseudo-iniciáticos”. A maior parte das organizações Nova Era se encaixaria
nessa definição. E, por fim, existem grupos cujo objetivo é minar
deliberadamente a religião revelada e a metafísica tradicional, para instaurar
o reino do Anticristo; estes, segundo Guénon, são os agentes da
“contra-tradição” e da “contra-iniciação”: “os contemplativos de Satanás”, cuja
função é subverter não apenas a religião exotérica, mas também a
espiritualidade esotérica.
Por mais deprimente que isso possa soar, tais
desenvolvimentos são totalmente legítimos, dadas as condições finais do ciclo.
As possibilidades mais baixas da manifestação também precisam ter seu dia; e,
felizmente, como são inerentemente instáveis — baseando-se não na Verdade, mas
apenas no poder — esse dia será breve. “É necessário que venha o mal”, disse
Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” E existem certas possibilidades
espirituais da mais alta ordem que nunca poderiam ser realizadas senão diante
desse desafio demoníaco extremo à integridade do espírito humano.
Meus Dignos Oponentes
Neste livro, tentarei, entre outras coisas, expor
os erros do pós-modernismo criticando algumas das doutrinas centrais daquilo
que passou a ser chamado de “espiritualidade da Nova Era”, o nome contemporâneo
de uma vertente do ocultismo extra-cristão — e às vezes anti-cristão — que pode
ser rastreada ao menos até a Renascença. Se o pós-modernismo é a negação
filosófica final da metafísica, então uma análise da falsa metafísica da Nova
Era é uma via pela qual o pós-modernismo pode ser criticado — não
necessariamente a melhor, mas sem dúvida a que estou mais apto a trilhar, dada
minha formação.
Seja dito claramente, antes de prosseguir:
Primeiro: o mundo das espiritualidades da Nova Era
não é, em si, o sistema do Anticristo. Toda espiritualidade na Terra acabará
contribuindo com algo para esse regime — as falsas espiritualidades por sua
própria existência; as verdadeiras, segundo o princípio corruptio optimi
pessima, porque “a corrupção do melhor é a pior”. É por isso que, por
exemplo, os muçulmanos acreditam que o Anticristo será muçulmano, e os cristãos
ortodoxos acreditam que ele surgirá da Ortodoxia Oriental.
Segundo: nem todos os envolvidos com
espiritualidades da Nova Era são necessariamente almas perdidas. Alguns — Deus
o sabe — podem até ser santos. Apesar do comercialismo que permeia a Nova Era,
muitos de seus praticantes são sinceros. E, já que o Espírito de Deus “sopra
onde quer”, alguns deles estão inevitavelmente na longa e espinhosa estrada
para a plenitude da Verdade divina, embora eu jamais indicasse tal estrada a
quem busca a Verdade. Isso não significa que a sinceridade seja suficiente para
proteger alguém dos danos intelectuais e espirituais causados por doutrinas
objetivamente falsas; significa apenas que o sincero é capaz de arrepender-se
de seu erro quando confrontado com a Verdade objetiva, ao passo que o hipócrita
não o é.
Terceiro: não pretendo atribuir a todos os mestres
da Nova Era ou ideólogos pós-modernistas os mesmos erros. A maioria dos meus
adversários deplora muitos dos males modernos que eu também deploro. Não estou
dizendo que fazem parte de uma vasta conspiração unificada. Apenas os tomo como
marcos nos diversos afluentes que correm para o centro da escuridão
contemporânea.
Quarto: nem todas as práticas da Nova Era são
necessariamente destrutivas. Algumas, especialmente várias formas de cura
holística, são simplesmente boas. Eu mesmo usufruí benefícios reais delas.
Dito isso, porém, preciso deixar absolutamente
claro que, em minha opinião informada, o movimento geral da crença Nova Era
caminha em direção a um ponto extremamente sinistro e perigoso da bússola
espiritual. Além disso, tomarei como axioma neste livro que, sempre que a
doutrina Nova Era contradiz o que se convencionou chamar de “filosofia perene”
— os princípios metafísicos centrais compartilhados por todas as grandes
religiões e tradições sapienciais — a Nova Era está em erro, e não a sabedoria
das eras.
Minha História
Fui criado católico — mais ou menos tradicional —
já que a maior parte da minha vida católica, até por volta dos dezesseis anos,
deu-se numa Igreja essencialmente pré-Vaticano II. Costumo dizer que pertenço à
última geração católica (os Baby Boomers) que podia se identificar plenamente
com Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce.
Sendo um Baby Boomer vivendo na área da baía de São
Francisco, passei pela contracultura hippie, protestei contra a Guerra do
Vietnã — estive nas ruas na Convenção Democrata de Chicago em 1968 —
experimentei drogas psicodélicas, senti atração pelo Hinduísmo e pelo Budismo,
e passei por um flerte autodidata com xamanismo e kundalini yoga. Também fui
poeta (secretamente ainda sou) e pupilo do poeta da Geração Beat Lew Welch, que
me apresentou ao meu primeiro verdadeiro iniciado sufista, Samuel Lewis
(conhecido carinhosamente, no estilo hippie, como Sufi Sam), bem como a Carlos
Castaneda — escritor e praticante de alguma forma de feitiçaria indígena
norte-americana — antes que ele se tornasse famoso demais para arriscar
aparecer nas praias hippies.
festas com
participação do Grateful Dead. (“Ponho diante de ti a morte e a vida: escolhe,
pois, a vida.”)
Na primeira
metade dos anos 80 passei por um segundo período de ativismo político, em
oposição à intervenção norte-americana na Nicarágua e em El Salvador, quando
minha esposa e eu nos juntamos a uma igreja presbiteriana local para participar
do movimento Santuário para refugiados centro-americanos, e para adorar a Deus
(possivelmente nessa ordem). Nesse período estivemos imersos na cosmovisão da
Teologia da Libertação, que hoje descrevo como o modo mais generoso e
compassivo ainda aberto à tradição cristã, caso ela deseje destruir a si mesma.
Ainda assim, continuo convencido de que, se não fossem os esforços das igrejas
norte-americanas, teríamos enfrentado um segundo Vietnã na América Central e no
sul do México, vastamente mais destrutivo para a cultura dos Estados Unidos e
para sua estabilidade política do que uma guerra distante na Ásia.
Na segunda
metade dos anos 80 fiz uma passagem pela Nova Era, não porque sentisse qualquer
identificação profunda com ela — embora, a despeito da minha atitude de “grão
de sal”, em algum lugar eu devesse acreditar nela — mas porque queria ver se
ainda restava algo da “revolução espiritual” dos anos 60, e porque conviver com
pessoas menos responsáveis do que eu me fazia parecer muito mais sábio e maduro
aos meus próprios olhos. Encontrei alguns poucos “yuppies” em ascensão
liderando uma massa maior de semi-hippies ou ex-hippies em decadência, rumo a
uma esperada “mudança de paradigma” vagamente messiânica, que acabou se
revelando, a meu ver, nada mais do que a vanguarda de sensibilidade terna do
atual globalismo econômico de mentalidade dura. Os Novaeristas dos anos 80 eram
hábeis em articulação global, incluindo a “diplomacia cidadã” com a União
Soviética, mesmo antes do nascimento da World Wide Web, embora também houvesse
muitos pioneiros da informática pessoal entre eles. Através da Global Family e
de outras redes, organizamos vários Dias de Oração pela Paz Mundial,
culminando, em agosto de 1987, na Convergência Harmônica, criação do artista
visionário e manipulador de símbolos José Argüelles. A Convergência Harmônica
foi o primeiro — e possivelmente o último — verdadeiro evento popular
internacional. Baseando-se na interpretação de Argüelles do calendário maia, 16
e 17 de agosto de 1987 deveriam anunciar uma grande mudança no equilíbrio
energético da Terra e na qualidade da consciência global.
A Convergência
reuniu como nunca antes Novaeristas, cristãos liberais, hindus, budistas e
povos primordiais de todo o mundo. Índios americanos dos dois hemisférios,
wiccanos britânicos e até aborígenes australianos participaram, encenando
rituais simultâneos de iluminação e cura da Terra, de natureza extremamente variada
e ambígua.
De uma forma
modesta, fui um dos organizadores da Convergência. Conduzi um retiro no Monte
Tamalpais, no condado de Marin, Califórnia. Recolhi sonhos do mundo inteiro,
sonhados na Convergência ou próximos a ela, e os encadernei em um manuscrito
que chamei de The Harmonic Convergence Book of Dreams. Antes e depois da
Convergência, explorei e pratiquei várias formas de “sonho xamânico” — pelo
menos era assim que eu chamava.
Então, acabou.
Ou nada aconteceu, ou algo aconteceu. O que me aconteceu foi que percebi, bem
no centro do meu ser, que eu estava indo longe demais, em direções demais, sem
orientação nem mapas. O caos se avizinhava. E se não salvássemos a Terra? E se
a revolução espiritual não se desenrolasse como planejado? E se a maior parte —
ou tudo — do que fazíamos não passasse de fantasia infantil, ou talvez das
primeiras notas de alguma sinfonia ascendente de trevas?
Pela graça de
Deus, dei meia-volta, cento e oitenta graus, e busquei orientação numa fonte
tradicional: o esoterismo islâmico. Doze anos depois, posso olhar para trás e
ver quão por pouco escapei da destruição.
Minha
Confissão
Eu adoraria
poder escrever este livro no estilo da maioria dos autores da Escola
Tradicionalista, simplesmente deixando a Verdade falar por si mesma, sem
intromissões autobiográficas ou confessionais da parte do autor. Mas não posso
fazê-lo. Este livro é autobiográfico e confessional porque, sendo um livro
sobre o Anticristo, o assunto sou eu, é o meu ego. Se eu não admitisse esse
fato, The System of Antichrist induziria meus leitores ao erro; seria um ato de
desonestidade.
Muitos mestres
espirituais dizem que, seja qual for o mal que você veja no mundo, saiba que
você é a fonte última dele. Tudo o que acontece é vontade de Deus, e Deus só
quer o bem; a visão do mal não passa da visão do próprio ego; o Anticristo é,
precisamente, o ego. A nota dominante do meu ego é “medo da matéria” ou “medo
do mundo” — fato que explica, aliás, minha antiga atração pelo gnosticismo, que
teceu um universo inteiro de heresia, ainda que muito plausível, em torno desse
mesmo medo. Esse é o meu trauma essencial, meu grande ponto cego, meu apego
central. Cheguei até a inventar uma piada: “Você soube da novidade? Os
cientistas descobriram que a própria matéria é tóxica.” O interessante é que,
quando conto essa piada, cerca de sete em cada dez ouvintes não veem graça
nenhuma: “Sério? Descobriram mesmo?” Tomo isso como sinal de que o meu estilo
de ego, embora seja inteiramente de minha responsabilidade e certamente não
seja culpa de mais ninguém, é na verdade bastante comum no nosso tempo — fato
que não deveria surpreender, dado o estado atual do mundo. E assim a história
do meu ego, refletida não no espelho de sua própria subjetividade, mas tanto
quanto possível na Objetividade Divina, o Espelho de Deus, pode — se Deus
quiser — ser de alguma ajuda para outros que estejam vivendo estes mesmos
últimos dias do ciclo presente.
Dizer que
“todo mal está no ego” não é, contudo, negar a experiência humana universal de
um mundo que, muitas vezes, está cheio de ilusão e sofrimento; qualquer outra
coisa violaria a virtude da compaixão. A Manifestação Divina transmite em todos
os canais; o pecado do ego é simplesmente manter a atenção sintonizada em
faixas cada vez mais estreitas. O ego não cria, em outras palavras; ele apenas
edita. O mal que ele vê é uma versão editada de uma situação objetiva real que,
em última instância, é o próprio Deus. Meu ego não inventou os males e
falsidades revelados neste livro; ele apenas prestou atenção a eles. Mas, se
algo é percebido apenas pelo ego, cai no ponto cego do ego (que, claro, é tudo
o que o ego realmente é); desaparece de vista. Tudo aquilo com que o ego se
ocupa ele passa a identificar consigo mesmo — e, com o que se identifica, já
não consegue enxergar.
No processo
inverso, de purificação espiritual ou catarse, aquilo que o ego manteve oculto
começa a aparecer, primeiro como uma série de males a serem combatidos, depois
como um conjunto de pecados dos quais é preciso arrepender-se, em seguida como um
espectro de ilusões a serem desmascaradas e, por fim, como uma constelação de
atos de Deus, perfeitos em essência — quer expressem o deleite misericordioso
do Divino, que acompanha a conformidade voluntária à lei da forma humana tal
como Deus a criou, quer expressem a justiça severa do Divino, que compensa e,
em última análise, cura nossas violações dessa forma.
O ego
inconsciente, feliz em sua própria cegueira e em sua crença ingênua em seus
próprios desejos, é o que o sufismo chama de “eu que ordena”, o eu que incita
ao mal. O ego que combate o mal é o “eu acusador”, descrito como “mau” (porque
testemunha o mal), “mas não incitador do mal”. (Como escreveu certo
correspondente de guerra no Vietnã: “Aprendi que você é tão responsável pelo
que vê quanto pelo que faz.”) A guerra travada pelo eu acusador embrionário
contra os males externos é o “menor jihad”, geralmente traduzido como “guerra
santa”; e a luta travada pelo eu acusador amadurecido contra seus próprios
pecados é o “maior jihad”. A psique purificada do egocentrismo, que vê todos os
acontecimentos como atos perfeitos de Deus, sem por isso tornar-se cega ou
insensível ao sofrimento alheio, é chamada de “eu em paz”.
O clássico da
Ortodoxia cristã, a Filocalia, comenta assim o momento de transição do “eu que
ordena” para o “eu acusador”, que defini como “o menor jihad”:
“O
conhecimento espiritual nos ensina que, no início, a alma em busca da teologia
[que, na Ortodoxia oriental, significa realização espiritual, não mera teoria]
é perturbada por muitas paixões, sobretudo pela ira e pelo ódio. Isso não
acontece tanto porque os demônios estejam atiçando essas paixões, mas porque
ela está progredindo. Enquanto a alma é mundana, permanece imóvel e
imperturbável, por mais que veja as pessoas pisoteando a justiça. Absorvida em
seus próprios desejos, não presta atenção nenhuma à justiça de Deus. Quando,
porém, por desprezo deste mundo e amor a Deus, ela começa a elevar-se acima de
suas paixões, não consegue suportar, nem mesmo em sonhos, contemplar a justiça
sendo desprezada. Enfurece-se contra os malfeitores e permanece irada até ver
os violadores da justiça obrigados a reparar o que fizeram.
É por isso que
ela odeia o injusto e ama o justo. O olho da alma não pode ser desviado quando
o seu véu — quero dizer, o corpo — é refinado até tornar-se quase transparente
pela prática da autodominação. Ainda assim, é muito melhor lamentar a
insensibilidade dos injustos do que odiá-los; pois, mesmo que mereçam nosso
ódio, é insensato que uma alma que ama a Deus seja perturbada pelo ódio, já
que, quando o ódio está presente na alma, o conhecimento espiritual fica
paralisado.”
Sem uma
passagem pelo deserto do combate espiritual — exterior e interior — não há
chegada à Morada da Paz. Alguns, porém, permanecem tempo demais nesse deserto,
lutando para se arrepender, mas incapazes de “arrepender-se do arrependimento”.
Nas palavras de Omar Khayyam:
“Vem, enche a
Taça e, no Fogo da Primavera,
Lança fora o Manto de Inverno do Arrependimento;
A Ave do Tempo tem tão pouco caminho a voar —
E eis que a Ave já está em pleno voo.”
Este livro é,
em parte, uma Jeremiada, uma denúncia dos males e falsidades do mundo
pós-moderno e do reino das espiritualidades da Nova Era. Essa dimensão de The
System of Antichrist nasce dos primeiros movimentos do eu acusador, que precisa
ser temperado no campo do menor jihad, o mundo da luta social. Mas, no decorrer
da escrita, comecei a perceber que todo erro que eu via e denunciava nos
outros, eu mesmo já acreditara nele — muitas vezes, até bem pouco tempo atrás.
Em alguns casos, o próprio ato de escrever esbarrou em resíduos vivos de erros
que eu ainda não queria abandonar, e acabou expulsando-os. Essa dimensão do
livro constitui uma espécie de “Confissões”; é escrita a partir do eu acusador
propriamente dito, cujo campo é o maior jihad, onde o que antes era ataque e
defesa agora é autoexame e arrependimento. E que outro tipo de abordagem, senão
uma abordagem ao menos parcialmente confessional, poderia me dar o direito de
denunciar males e expor erros alheios, cometidos por pessoas que, por tudo o
que sei, podem estar mais próximas de Deus do que eu?
O neopaganismo
(em sua vertente céltica), a feitiçaria e as ideias da Nova Era já foram, um
dia, realidades vivas para mim. Tomei o material de Seth — a divinização da
dimensão psíquica — como Evangelho, durante anos, e até experimentei com
canalização. Como em A Course in Miracles, eu ansiava por negar as limitações
do mundo contingente em que vivemos, fingindo que as condições da realidade
desencarnada poderiam ser realizadas aqui e agora, sem sacrifício ou
sofrimento. Brinquei com feitiçaria à maneira de Carlos Castaneda, usando
alguns de seus métodos e outros que intuí ou inventei, durante um período
sombrio e traumatizado da minha vida. Cheguei à beira do mundo que ele
propunha, caracterizado por acontecimentos inexplicáveis de estranha
profundidade e por alguns episódios de verdadeira “ação à distância” (ação de
quem, hoje me pergunto), mas não avancei mais por essa estrada simplesmente
porque não via por que fazê-lo. (Agradeço a Deus por ter enviado um anjo,
invisível para mim na época, que me barrou o caminho.) Como Deepak Chopra, eu
esperava que uma compreensão técnica e um uso operativo da Verdade espiritual
produzissem automaticamente bem-estar físico e material. Como em A Profecia
Celestina, imaginei-me membro de uma vanguarda espiritual iluminada, capaz de
mudar o rumo descendente da história apenas confiando e agindo sobre nossas
intuições, sem nenhuma orientação de uma tradição revelada ou de um Mestre espiritual.
Como John Mack, permiti que minha mente se detivesse em realidades sinistras, e
as chamei de boas. Como William Quinn, esperei que minha compreensão da
metafísica me colocasse entre os pioneiros de uma Nova Ordem Mundial,
concedendo-me pertencimento a um grupo cuja influência sobreviveria ao
holocausto que se aproximava. Por meio de um poema épico de inspiração
blakiana/gnóstica, cheguei até a desejar, como Benjamin Creme, anunciar um
Messias desenhado em grande parte por mim mesmo, e forçar magicamente sua
aparição para salvar o mundo. Consequentemente, hoje sou compelido a “mascar
pregos” enquanto escrevo sobre o Anticristo — porque, outrora, sem saber, ou
pelo menos sem admitir, estive entre seus servidores.
Cada uma
dessas experiências, desses falsos começos, dessas excursões sem guia ou mal
orientadas, deixou sua marca em minha alma; por isso, o Caminho espiritual,
para mim, às vezes se pareceu ao trabalho de desembaraçar um fardo de arame
farpado enferrujado. Com base nos meus próprios erros, hoje sou capaz de
alertar outros. Espero que, ao fazê-lo, acabe se revelando que meus erros não
foram inteiramente em vão, e que William Blake não estivesse apenas arranjando
desculpas ao dizer: “Se o Tolo persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio.”
Minha Apologia
Este livro
representa, para mim, uma luta entre duas concepções aparentemente opostas
sobre a natureza da existência e da vida espiritual. Essas concepções rivais
tomam o campo como campeãs de dois lados da minha alma — ou talvez as “duas
almas” que “habitam em meu peito, apartadas”, segundo as palavras de Goethe,
sejam, na verdade, as campeãs dessas concepções. Aceito pela fé — que, nas
palavras de São Paulo, é “a prova das coisas que não se veem” — que essas duas
visões da realidade não são, em última instância, opostas, porque o Ser é Um.
Como no combate cavalheiresco entre Balin e Balan, em Morte d’Arthur, de
Malory, os irmãos lutam apenas porque não se reconhecem; seus rostos estão
mascarados. Mas o nível em que a oposição aparente entre eles se resolve é tão
profundo na própria natureza de Deus, que só o vislumbrei raramente, e mal
comecei a aprender a vivê-lo.
Por um lado,
minha tradição e meu Mestre espiritual me ensinam que, se vejo algo de errado
na criação de Deus, esse erro está em mim; que todos os acontecimentos são atos
de Deus, e que tudo o que Deus faz é bom. Creio profundamente que isso é
verdade; às vezes até o soube, de fato. Por outro lado, Deus impôs a mim, como
parte essencial do meu caráter, a necessidade de dizer Não ao “Mundo”, de
recusar, no núcleo da minha vontade espiritual, “comprar” o que esse Mundo
oferece e o que afirma ser verdadeiro. O imperativo dessa recusa está presente
em toda tradição espiritual, em que o conhecimento de que o mundo relatado
pelos sentidos é, na realidade, uma manifestação velada da Verdade Absoluta é
sempre equilibrado pelo mandamento de rejeitar, ao menos para si, as crenças e
agendas daqueles que não percebem isso.
“O Mundo” é a
concepção coletiva das coisas fundada no ego humano. Aquilo que é bom do ponto
de vista espiritual, o “Mundo” chama de mal ou loucura; aquilo que é
fundamentalmente destrutivo para qualquer possibilidade de libertação
espiritual e autotranscendência, o “Mundo” chama de sábio e bom. Meu sufismo me
ensina que esse “Mundo” é, em essência, nada mais do que o meu ego, e que a
melhor maneira de superar esse ego é esforçar-me por ver como todas as coisas
são atos, ou faces, ou palavras de Deus.
— exceto eu.
Nas palavras de Lao Tsé: “todas as coisas são claras; só eu estou turvo.” E
isso é profundamente verdadeiro: nada vela o rosto de Deus em todas as coisas
além desse pequeno “eu”, fundamentalmente inexistente. Mas a prática espiritual
de ver todas as coisas, exceto o “eu”, como manifestações de Deus, como
qualquer outra prática espiritual, pode dar errado. E o ponto em que uma
prática baseada numa verdade espiritual profunda se retorce e se desvia é,
inevitavelmente, o terreno fértil de um erro espiritual profundo.
O Islã é
considerado uma religião militante. Não é, em teoria, mais militante do que o
Hinduísmo, com sua concepção de combate divinamente ordenado no Bhagavad-Gita, nem, na prática, mais
do que o Cristianismo com suas Cruzadas. Até mesmo o Budismo, a religião mais
comprometida com a não violência, absorveu o credo Samurai e apoiou o esforço
de guerra japonês na Segunda Guerra Mundial. Porém o Islã, como o Judaísmo em
certos aspectos, cresceu em meio à guerra; poucos anos depois da morte do
Profeta, o dār
al-Islām
era um império mundial construído pela espada. Essa militância, os sufis em
grande parte sublimaram, seguindo o conhecido hadith do Profeta, segundo o
qual, quando retornava com seus seguidores de uma campanha militar, disse-lhes:
“Agora retornamos do jihad menor ao maior.” “E o que é o jihad maior?” “A
guerra contra a alma [passional]” — o eu que ordena. (A palavra russa podvig, da tradição ortodoxa
oriental, frequentemente traduzida como “feito ascético”, exprime uma ideia
semelhante.) Isso não significa, porém, que os sufis tenham rejeitado
totalmente o jihad menor. Muitos sufis, como alguns santos cristãos,
participaram de guerras. Ali ibn Abi Talib foi ao mesmo tempo o grande herói
militar da primeira geração do Islã e o primeiro mestre espiritual, depois do
próprio Profeta, reivindicado pela maioria das ordens sufis vivas. Tanto a
cavalaria cristã quanto a muçulmana reconheceram que a agonia, a exaltação e o
auto-sacrifício da batalha podiam ser dedicados a um fim espiritual; o jihad
menor podia, se Deus quisesse, ser colocado a serviço do maior.
Mas jihad não significa
simplesmente “guerra santa”; é melhor traduzido como “esforço no caminho de
Deus”. Esse esforço pode ser pela justiça social, pelo alívio do sofrimento
humano ou pela preservação de uma tradição espiritual. É claro que não há
dúvida de que tal luta pode, às vezes, aumentar o egocentrismo em vez de
superá-lo — sobretudo o egocentrismo coletivo. Adorar a própria nação, ou mesmo
a própria religião, no lugar de Deus é uma das piores formas de idolatria, e a
mais difícil de reconhecer, porque alguém pode demonstrar enorme
auto-sacrifício em favor de ídolos nacionais ou religiosos, até a morte. No
entanto, também se pode sacrificar a própria vida por um ídolo como o álcool; e
há perigo de idolatria também no jihad maior, pois orgulhar-se das próprias
“conquistas espirituais” é entregar todo o próprio tesouro a Iblis (o Satanás
muçulmano), que é perito em disfarçar orgulho espiritual como a mais profunda
humildade e auto-sacrifício.
Este livro foi
concebido como uma luta, um jihad contra os erros espirituais do pós-modernismo
e da Nova Era. Esses erros existem no Mundo; são tão objetivamente reais — e
ainda mais destrutivos espiritualmente — do que qualquer exército material de
bárbaros, totalitários ou terroristas. São como uma quinta coluna: destroem a
religião a partir de dentro, corrompem a alma humana. Como ídolos, deixam sua
marca na alma de todos os que os adoram. E como eu próprio adorei esses ídolos,
devo agora assumir parte da responsabilidade por derrubá-los. E da mesma forma
que posso apontar doutrinas espirituais bem definidas — começando pela poesia
de William Blake e, neste momento, incluindo os escritos de Frithjof Schuon,
dos demais autores da Escola Tradicionalista e de meu próprio Mestre espiritual
— que literalmente salvaram minha vida espiritual (ainda que, no caso do meu
Mestre, eu tenha sido salvo não tanto por seus escritos quanto por sua
Presença), agora espero, se Deus quiser, estender essa ajuda espiritual — não em
meu nome, mas em nome de meus mestres — a todos os que sejam capazes de dela se
beneficiar.
Mas, ao fazer
isso, preciso contradizer e criticar as palavras de outras pessoas. Espero ser
capaz de fazê-lo cavalheirescamente, sem ferir desnecessariamente os
sentimentos ou manchar o caráter de meus oponentes. Mas este é um ideal que, na
prática, não pode ser alcançado por completo. É claro que sentimentos serão
feridos. Assim como ninguém pode empunhar a espada material sem dar e receber
ferimentos, também não se pode brandir a espada intelectual sem isso acontecer.
Meu Mestre me diz que não é próprio de um sufi criticar as crenças religiosas
alheias. E sempre foi meu costume estender de bom grado, não apenas tolerância,
mas verdadeira veneração e apoio a todas as fés autênticas, costume que em
geral está em consonância com o ensinamento do Alcorão. Todavia, Muhammad
expulsou os ídolos pagãos da Caaba. Ele foi, então, inimigo da religião? Não,
porque aqueles ídolos não representavam a religião, mas a corrupção dela. Os
autores que critico nominalmente neste livro são todos ou abertamente
contrários às religiões tradicionais — quase sempre ao Cristianismo — ou então
publicaram deturpações, abertas ou veladas, das doutrinas dessas religiões. Ao
criticá-los, portanto, estou defendendo tudo o que, tradicionalmente, se chamou
“religião”.
Mas os
propagadores de doutrinas Nova Era e neopagãs não têm “direito” de adorar como
bem entenderem? Quem sou eu para negar os direitos dos outros? E que direito
tem qualquer religião de reivindicar superioridade em relação a outra? Isso não
é o caminho para o fanatismo, para a Inquisição, para a “guerra santa” em seu
sentido mais pervertido? Certamente pode ser. Por outro lado, se tomarmos a
liberdade religiosa como absoluta, então devemos permitir, por exemplo, a
prática do sacrifício humano, que foi parte integrante de certas religiões
pagãs da Antiguidade. Assim, a liberdade religiosa, por mais preciosa que seja,
não pode ser absoluta. Como Frithjof Schuon repete, citando os rishis hindus: “não há
direito superior ao da Verdade.” A cultura pós-moderna, é claro, não acredita
na Verdade. Não admite absolutos, porque vê questões de verdade apenas em
termos de poder. O que historicamente se chama de verdade é visto como nada
mais do que o triunfo deste ou daquele bloco de poder. Se “não há deus senão
Deus”, isso se dá porque o Islã triunfou política e militarmente sobre o
paganismo na península Arábica; certamente não porque a Verdade seja Una,
porque o Ser, de fato, seja uma Unidade transcendente. Mas, se esta afirmação
sobre a natureza do Ser não é intrinsecamente verdadeira, então nenhuma
doutrina religiosa ou afirmação metafísica é verdadeira. E, se nenhuma doutrina
religiosa é verdadeira, todas as religiões acabam negadas e, em última análise,
destruídas. É essa, então, a tal “liberdade religiosa”?
Pessoalmente,
oponho-me de forma fundamental à coerção física em matéria religiosa. Nas
palavras do Profeta: “não há compulsão na religião.” É verdade que, numa
sociedade islâmica — ou outra sociedade tradicional baseada numa lei religiosa
divinamente instituída — a coesão social se funda em sustentar e obedecer a
essa lei. E ninguém que negligencie uma via de salvação universalmente
acessível, como a sharī‘a muçulmana, pode ser
considerado verdadeiramente dedicado a essa salvação. Mas, numa sociedade
pluralista como a nossa, em que a separação entre Igreja e Estado é
fundamental, qualquer tentativa de legislar doutrina ou prática religiosa é
destrutiva, salvo quando a “religião” em questão viola de maneira aberta e
profunda os costumes e a moral, como no caso do sacrifício humano mencionado
acima. (Apresso-me a acrescentar que, embora esse tipo de sacrifício sem dúvida
tenha ocorrido em grupos satanistas, é vigorosamente repudiado e combatido pelo
movimento neopagão em geral.) Por outro lado, sempre me senti justificado em
criticar o erro espiritual. Na medida em que a espada material do jihad menor
me é negada — e com razão —, empunhei a espada do jihad menor intelectual. Onde
há liberdade religiosa, há necessariamente também liberdade de expressão em
matéria religiosa.
Mas, em meio a
toda essa crítica tão bem justificada das ideias alheias, onde fica o
entendimento de que todas as coisas, todas as pessoas e até todas as ideias são
manifestações de Deus, de que a única coisa que não O manifesta é este “eu”
fechado, crispado e rabugento, que está sempre encontrando defeitos na criação
de Deus? Não aconselhou Jesus seus seguidores a tirar primeiro a trave dos
próprios olhos, antes de tentar remover o cisco do olho do próximo? Não ensinou
Ibn al-‘Arabī que Deus aceita toda concepção que se tenha d’Ele, por mais
limitada que seja, como forma válida de adoração? Não censurou ele até o
profeta Noé, até certo ponto, por denunciar o paganismo de sua época, já que
todos os ídolos pagãos — se seus adoradores o soubessem, e se Noé o soubesse —
eram na verdade formas do Deus Único? E, no entanto, Deus salvou Noé, o
transcendentalista, e varreu os idólatras no dilúvio, ao mesmo tempo em que o
próprio Ibn al-‘Arabī aconselhou o governante de Konya a proibir o culto
público dos cristãos — assim como a Cristandade medieval fazia em relação às
religiões não cristãs —, porque a unidade e o caráter islâmico do dār al-Islām precisavam ser
preservados.
Conta Rumi
que, certa vez, Moisés encontrou um pastor cuja ideia de adorar a Deus era
pentear-Lhe o cabelo, lavar-Lhe os pés e dar-Lhe leite para beber. O profeta
trovejou contra o pastor por rebaixar Deus ao nível humano: “Longe d’Ele
precisar que Lhe penteiem o cabelo! Deus é Senhor dos Mundos; Ele está
infinitamente acima da tua concepção mesquinha de Sua Majestade. Corrige,
então, a tua prática. Adora-O em Espírito, não em forma.” Mas, enquanto Moisés
seguia viagem, Deus veio a ele numa visão e o repreendeu: “Meu servo, o pastor,
adorava-Me segundo a concepção que tinha de Mim — assim como tu. Julgaste-o
mal; sua sinceridade é perfeita aos Meus olhos.” Desesperado e arrependido,
Moisés correu de volta para pedir perdão ao pastor. “Peço-te desculpas, pastor;
Deus revelou-me que eu te julguei seriamente mal. Por favor, continua a
adorá-Lo como te parecer correto.” “Mas eu estava prestes a agradecer-te pela
tua correção!”, respondeu o pastor. “O choque que me deste abriu meus olhos para
uma concepção de Deus incomparavelmente mais ampla do que a que eu tinha antes.
Depois do que vi, jamais poderei voltar à prática anterior.” Assim, tanto
Moisés quanto o pastor aprenderam algo. Uma vez que Moisés julgou em nome de
Deus, o julgamento esclarecedor de Deus caiu sobre todos os envolvidos,
incluindo o próprio Moisés. O pastor superou seu apego à forma, baseado no
orgulho de sua ignorância, enquanto Moisés superou seu apego à transcendência,
baseado no orgulho de seu conhecimento.
Segundo William
Blake, a única maneira de perdoar o inimigo é separar o indivíduo de seu
estado. Isso é relativamente fácil para mim, exceto quando me parece que o
adversário está sendo ardiloso e desonesto; nesse momento, a ira justa (ou
pseudojusta) torna-se uma tentação. E, para alguém como eu, que crê na Verdade
objetiva, a maioria das manifestações da mentalidade pós-moderna tenderá a
parecer desonestidade — o que não é necessariamente o mesmo que falta de
sinceridade, preciso lembrar, mas antes uma desonestidade objetiva imposta
pelas condições intelectuais vigentes, tal como a criminalidade é imposta (se é
que o é) aos jovens dos grandes centros urbanos que não encontram outro modo de
sobreviver. O uso correto dessa ira — o modo específico que, se Deus quiser, a
tornará justa em vez de autojusta — não é fixar o adversário no erro, para
julgá-lo como condenado (porque o estado da alma alheia diante de Deus está
além do meu alcance e não é da minha conta), mas separá-lo de seu erro, como
com um maçarico, na minha consciência, e, se possível, na dele também, e voltar
a chama contra o erro apenas.
É nesse ponto
que tenho a chance de ver que o erro em questão é também meu, que ele faz parte
desse pequeno “eu” que vela o rosto de Deus, pois, se não tivesse guarida na minha
natureza, eu nunca teria cruzado espadas com ele.
Dado que há
criação, necessariamente haverá erro; e, dado que há erro, necessariamente
haverá monstros. Quando monstros ameaçam a vida humana, devemos ir à guerra
contra eles — porém o monstro verdadeiro está em nós, em “mim”. A
monstruosidade do erro também faz parte da vontade de Deus, já que não existe
nada que não faça. Mas qual é a função do erro? Como aquilo que nega Deus pode
ser, em certo sentido, parte d’Ele? Nas palavras do Tao Te Ching: “O discípulo tolo
ouve falar do Tao e ri às gargalhadas. Se não houvesse riso, o Tao não seria o
que é.” Como disse Rumi, “as coisas são definidas pelos seus opostos.” Se não
soubéssemos o que evitar, não poderíamos ver claramente o que abraçar. A
vontade humana é livre, e o campo dessa liberdade é a escolha entre a Verdade
que aniquila o eu, apresentada pelo Intelecto espiritual, e o erro que serve ao
eu, apresentado pelo ego. Sem essa escolha, o amor a Deus — arquétipo de todo
amor — seria impossível. Portanto, o erro, embora seja manifestação da ira de
Deus, é, em último e mais profundo nível, manifestação de Sua Misericórdia,
pois “Minha misericórdia precede Minha ira”; nas palavras de William Blake,
“estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus”. Entramos no
campo dessa Misericórdia, num certo plano, ao expor um dado erro, invocando
assim a Verdade escondida atrás dele — mas eu poderia expor o erro espiritual
até o Dia do Juízo e nunca chegar a saber, na medula dos ossos, que Deus
sustenta o universo na palma da mão, que todos os atos são atos de Deus, e que
tudo o que Deus faz é bom. Só se eu fizer de cada crítica às ideias de outrem
uma ocasião de morte para o meu próprio eu poderei avançar em direção a esse
conhecimento.
Mas como é
possível que marcar pontos sobre o adversário com a espada do intelecto
discursivo seja uma morte para o eu? Se eu venço, sinto-me bem comigo mesmo;
sinto-me poderoso; meu ego engorda e fica lustroso. A única forma que conheço
de dedicar o jihad intelectual ao Caminho espiritual é admitir que criticar as
ideias dos outros causa dor tanto a mim quanto a eles; e, em seguida, sentir
essa dor completamente; e, por fim, deixar que ela queime, até o fim, aqueles
lugares da alma onde os erros em questão — e, portanto, a necessidade de
criticá-los — criaram raízes. É interpretar esotericamente, e em consonância
com as regras do jihad maior, a doutrina de Jesus segundo a qual “quem vive
pela espada morrerá pela espada.”
Talvez algumas
pessoas sejam capazes, desde o início, de evitar completamente criticar o que
quer que apareça no ser manifestado. Outras podem ser “isentas” de criticar o
mal simplesmente porque não possuem talento para isso. E há também aqueles que
realmente aceitam as manifestações mais horrendas — não apenas de sofrimento,
mas de falsidade e ilusão — como vontade perfeita de Deus, porque alcançaram a
estação espiritual em que nada lhes aparece, no campo dos acontecimentos, senão
a ação direta de Deus. Essas pessoas estão mais próximas de Deus do que eu; seu
nível de entrega, de Islã, está além de minha capacidade atual. Sua estação é a
de Rabi‘a quando disse: “Eu amo a Deus; não me sobra tempo para odiar o diabo.”
São aqueles
que despertaram do sonho do mal. Mas há outros — muitos outros — que ainda não
despertaram plenamente para o sonho do mal. Sua consciência moral está
adormecida ou meio adormecida. Muitos temem o mal ao redor porque veem como ele
destrói a humanidade e arruína a terra. No entanto, não conseguem rejeitar
moral e espiritualmente as coisas que odeiam e temem, porque não veem nenhum
fundamento objetivo do bem sobre o qual se apoiar para poder chamar essas
coisas de “mal”. Acabam aceitando, com resignação, forças e condições que
destroem suas almas. E muitos outros, seja por aceitação ingênua do anormal,
seja por desespero profundamente reprimido, aceitam sem crítica como boas — ou
ao menos como inevitáveis e, portanto, “boas” de fato — as mais satânicas
distorções da vida humana. Eles não dizem: “Se eu morrer depois de comer
alimento envenenado, serei grato, porque essa é a vontade de Deus”; dizem, em
vez disso: “Este alimento não está realmente envenenado; se…”.
Se eu o comer,
ficarei saudável e forte, e se eu o der a outras pessoas estarei lhes prestando
um serviço.” Assim, se eu lhes digo: “Evitem aquele prato, ele está cheio de
veneno”, isso é um ato de amizade — desde que, é claro, eu possa sinceramente
oferecer esse aviso em espírito de amizade. Se castigo o Mundo, é apenas para
lançar uma corda àqueles que estão se afogando nesse Mundo, cujas consciências
foram sistematicamente pervertidas, a tal ponto que, se começam a suspeitar que
uma certa ação ou crença possa ferir gravemente suas almas e violar sua
integridade humana, não têm como apresentar essa intuição a si mesmos, não
dispõem de linguagem para dizê-lo. Pessoas nessa condição — e são muitas —
habitualmente sentem culpa diante do juízo do Mundo pelo crime de querer fazer
o bem; envergonham-se de seus impulsos mais altos e nobres; envergonham-se de
Deus. Foram ensinadas a aceitar tudo, com uma complacência indistinguível do
desespero total, não como vontade de Deus, mas como decreto do Mundo, cujo
objetivo é esmagar qualquer coisa em suas almas que possa lembrá-las de que
Deus é real. Em vez de transcender o mal, ainda não chegaram ao ponto em que a
palavra “mal” signifique qualquer coisa para elas além do próprio desconforto
pessoal. É assim que o niilismo se disfarça de desapego espiritual. E, se eu
mesmo não fosse tentado pelo mesmo niilismo, não teria sido compelido a lutar
com ele, e este livro jamais teria sido escrito.
Talvez apenas
os psicopatas — há muitos psicopatas perfeitamente “bem ajustados” na sociedade
atual — sejam completamente tomados pelo niilismo do Mundo. Mas o Mundo e seu
niilismo têm pelo menos um pé fincado em cada um de nós, a menos que sejamos
realmente santos; e esse ponto de apoio está se tornando mais tóxico e
virulento a cada hora. Nas palavras de Rabi‘a:
Para onde vai
uma parte de ti
O resto seguirá — dado o tempo.
O resto seguirá — dado o tempo.
Chamas a ti mesmo de mestre:
Portanto, aprende.
Se um judeu
aceita o holocausto porque foi vontade de Deus, isso é verdadeira piedade,
verdadeiro Islã. Se outro judeu o aceita porque foi vontade de Hitler e passa a
invejar Hitler em segredo, isso é idolatria e blasfêmia. “É necessário que
venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” Aqueles que
investiram suas esperanças e temores, seu senso fundamental de realidade, no
mundo precisam desesperadamente de ajuda vinda de uma Realidade que transcende
esse mundo. Este livro foi escrito para lembrá-los de que tal ajuda existe. Por
outro lado, a essência de “investir” em algo é o ato de prestar atenção a isso.
Se eu não visse nenhum mundo, mas apenas Deus, seria uma fonte de luz e ajuda
para todos os que se estivessem afogando no mar do mundo; mas isso está além do
meu poder — embora não além do poder de Deus. Minha estação se assemelha mais à
dos “amigos santos” de Rabi‘a, no seguinte poema:
Um dia Rabi‘a
estava doente,
E seus santos amigos vieram visitá-la, sentaram-se ao lado de sua cama
E começaram a falar mal do mundo.
“Vocês devem estar bem interessados nesse ‘mundo’”, disse Rabi‘a,
“Do contrário não falariam tanto dele:
Quem quebra a mercadoria
É porque já a comprou antes.”
É fácil ver
Deus nas pétalas da rosa ou na forma de uma bela mulher. É mais difícil vê-Lo,
não apenas em Sua Majestade e Ira, mas até em Sua Beleza e Sua Misericórdia,
nos horrores do mundo atual. Mas, se Deus pode ser visto ali, então nenhum
traço de reprovação contra Sua criação ou Seus decretos soberanos pode
permanecer no Coração. E isso é o eu em paz.
Minha
Esperança
O Anticristo
pode ou não ser um indivíduo, embora muitas autoridades tradicionais,
exotéricas e esotéricas, incluindo muçulmanos e cristãos ortodoxos e escritores
como Martin Lings e René Guénon, afirmem que será, e eu me inclino a concordar.
(1 João 2,18 fala de vários anticristos.) Mas, seja ele ou não um único
indivíduo, já é um sistema. É por isso que não me interessa especular qual
personagem, em minha própria galeria de vilões ou na de outros, poderia ser
secretamente o Anticristo, assim como não considero útil ou possível (ao menos
para mim) datar sua ascensão. A relação entre a simbologia apocalíptica e o
tempo histórico é oblíqua, não direta. Se o Anticristo é conhecido como
princípio, contudo, então as crenças, tendências e indivíduos no mundo exterior
que manifestam esse princípio, em maior ou menor grau, podem ser reconhecidos.
Mas, a menos que o sistema mais amplo daquele princípio seja compreendido —
tanto quanto a própria absurdidade inerente do mal o permita —, se e quando
aparecer o indivíduo em quem esse sistema estiver destinado a assumir sua forma
mais plena e terminal, talvez nos descubramos incapazes de reconhecê-lo.
Espero, neste livro, ajudar o leitor a extrair sentido do caos e da escuridão
destes últimos dias, evitar a participação inconsciente em um mal destruidor de
almas e intuir a Misericórdia Divina que está sempre presente, escondida até
nas condições mais críticas, como sinal claro daquela Realidade superior
misteriosamente presente por detrás da máscara desta, onde Verdade é sinônimo
de Bondade, e o mal não passa de outro nome para a ilusão: “Tudo perece”, diz o
Alcorão, “exceto Seu Rosto.”
Parte Um:
Tradição vs. Nova Era
Prefácio
Atualmente há
uma confusão considerável entre “religião” e “sistemas de crenças”. De fato,
certos acadêmicos tentam reduzir todas as religiões a “sistemas de crenças”
que, de algum modo, “pegaram”. Mas há uma distinção a ser feita entre eles,
pois as religiões genuínas se fundamentam na Revelação, que lhes fornece um
credo, um código e um culto fixos, independentes de qualquer pensamento ou
sentimento individual, enquanto os sistemas de crenças não baseados na
Revelação estão inevitavelmente sujeitos à opinião humana. É claro que muitos
fundadores de seitas se apoiam parcialmente na Revelação — aceitando o que lhes
agrada e rejeitando o que não lhes agrada — e a maioria dessas seitas
reivindica inspiração pelo Espírito Santo. Mas o fato permanece: todas se
baseiam, ao menos em parte, no pensar e no sentir que residem na psique e estão
sujeitos à ilusão, problema que só pode ser evitado pela adesão a uma fonte
externa fixa. Infelizmente, muitos representantes religiosos atualmente atacam
o fundamento revelado de suas fés na tentativa de acomodá-las aos valores do
mundo moderno, o que, na prática, as reduz ao mesmo nível que os demais
sistemas de crenças.
Uma vez
reconhecido que a maioria de nossos sistemas de crenças se baseia em
sentimentos e pensamentos — todos eles propriedades que se situam no âmbito da
psique —, segue-se que se torna impossível criticar qualquer sistema de crenças
específico. Todas as religiões e sistemas de crenças são equivalentes porque a
verdade ou as crenças de cada um — desde que não causem problemas a outros —
têm igual valor. Dizer que um culto ou religião é falso é considerado um ato de
presunção que ninguém ousa cometer. Além disso, acredita-se que é justamente
esse tipo de visão exclusiva que levou a conflitos e guerras — tudo em nome de
Deus — e, portanto, tais atitudes devem ser evitadas. (Observe-se, porém, que,
como disse São Paulo, “são as nossas cobiças e os nossos desejos” a raiz dos
conflitos.) Na ordem prática, tudo o que “funciona” para o indivíduo é
considerado aceitável. E, de fato, os psiquiatras estão começando a reconhecer
que a “religião” tem sua utilidade, pois ajuda as pessoas a enfrentar os
problemas da vida, e a crença em uma vida após a morte torna a morte mais fácil
de suportar.
A maior parte
da religião moderna está enraizada e centrada na psique, de modo que, pela
própria natureza das coisas, as pessoas podem afirmar que aquilo que é
verdadeiro para elas é verdadeiro. A psique não conhece absolutos e, portanto,
o indivíduo não tem compromissos reais. Mais perigoso ainda é o fato de que, ao
tentar encontrar alguma medida de verdade nesse reino nebuloso, abre-se a alma
a influências de natureza possivelmente nefasta. Muitos, como o próprio Jung,
deixaram “guias espirituais” instruí-los sobre como viver e agir, guias que se
descrevem como “anjos”, o que, de fato, são — pois, como acreditava uma época
anterior, existem espíritos em circulação que são “anjos caídos”, ansiosos para
invadir nossas psiques quando a oportunidade se apresenta. E assim é que o
“canalizar” (channeling) se tornou moda, com uma multidão de “guias”, de Ramtha
a Seth, supostamente nos dando acesso a uma forma de superconsciência ou
“consciência divina”, que seria o resultado evolutivo de nascimentos repetidos
dentro da moldura deste universo. É apenas um pequeno passo, a partir daí, para
o envolvimento com o ocultismo. As sociedades tradicionais sempre proibiram o
contato com tais espíritos, não só pelos perigos espirituais envolvidos, mas
também porque tais contatos podem levar a desvios psiquiátricos, como está bem
ilustrado na história bíblica de Saul.
O movimento
Nova Era foi bem caracterizado como a secularização da religião e a
espiritualização da psicologia. Aqueles que veem com facilidade a insipidez do
materialismo buscam algo “espiritual” para satisfazer os anseios de seus
corações. Limitados pela visão cartesiana, que nega a verdadeira natureza
espiritual do homem, fazem ídolos da música e das artes, do amor e da natureza
— sempre dentro dos limites de suas ramificações psíquicas. Isso os leva, bem
como a muitos na vida religiosa, a voltar-se para a psique em busca de
realização.
Aqueles
“aprisionados” na psique, que centralizam a vida em sentimentos ou na convicção
de que seus pensamentos privados e individuais são absolutos, são descritos
pelos autores medievais como estando “apaixonados por si mesmos”. Esse “amor a
si”, em oposição ao “Amor de Si” (isto é, do verdadeiro Self), é visto como um
defeito a ser corrigido. Imediatamente ouvimos o protesto dos que declaram que
ninguém lhes dirá como pensar ou agir. Insistem na liberdade de decidir essas
coisas por si mesmos. E isso é plenamente compreensível em alguém cuja visão de
mundo se baseia no princípio cartesiano segundo o qual somos exclusivamente
corpo e mente. Se é só isso que somos, então, de fato, têm direito a tal
posição, pois sua mente e seu corpo não têm mais autoridade do que os meus.
Reconhecer, porém, a natureza tripartite do homem — o que de modo algum nega a
psique — orienta-nos para restabelecer uma hierarquia de ordem em que o Espírito
dirija a psique, assim como a psique dirige, ou deveria dirigir, o corpo.
Mas o Espírito
não está apenas em nós; está também acima e fora de nós. E, em última
instância, Ele somos nós: nossas faculdades têm raiz no Senhor e “na Sua Luz
vemos a Luz”.
O livro de
Charles Upton é uma exposição notável do que resulta da aceitação do dualismo
cartesiano, a ideia de que nossa totalidade se compõe apenas de corpo e mente.
Em certo sentido, mostra as inúmeras formas que os cultos pseudorreligiosos
podem assumir quando fundamentam a verdade em sentimentos e opiniões privadas,
em vez de na revelação. E, talvez mais importante ainda, mostra como todas
essas seitas são fundamentalmente semelhantes, tanto em sua origem quanto em
sua visão de mundo. Para quem busca a verdade, este livro oferece um excelente
guia através do labirinto das “ofertas” religiosas modernas.
RAMA P.
COOMARASWAMY, MD, FACS, Professor Assistente Clínico de Psiquiatria,
Albert Einstein College of Medicine, Nova York
Pós-modernismo,
Globalismo e Nova Era
No início do
Terceiro Milênio, nosso espaço é dominado pela globalização da Terra, pelo
“caldeirão” de todas as culturas nacionais, tribais e religiosas; e nosso
tempo, pelo “pós-modernismo”, em que parecemos aproximar-nos de uma condição
impossível na qual todas as eras do passado, em virtude da cultura da
informação, são igualmente disponíveis, igualmente válidas, igualmente
falsificadas e igualmente corruptas. Esta era, a terminal para o presente ciclo
de manifestação, nos apresenta perigos espirituais sem precedentes, bem como
oportunidades espirituais únicas. Neste capítulo são explorados muitos dos
perigos — e algumas das oportunidades — sociais, filosóficos, religiosas e
metafísicas que se situam sob o signo do Fim.
O que é
Pós-modernismo?
O tempo em que
vivemos tem sido chamado de “pós-moderno”. O que exatamente isso significa? O
que poderia possivelmente vir depois de estar “atualizado”? E, se algo
realmente vier depois, como poderíamos ser contemporâneos disso? “Pós-moderno”
significa “depois da história”? Poderia ter algo a ver, talvez, com o “fim do
tempo”?
Pós-modernismo,
ou pós-modernidade, é um nome para a qualidade geral do nosso tempo. Mas também
se refere a certas correntes da filosofia, da arte e da crítica literária. O
que se segue é uma breve visão geral da filosofia pós-moderna; depois de tornar
alguns de seus conceitos básicos o mais claros possível, farei o que puder para
mostrar como esses conceitos — ou suposições, ou preconceitos — se aplicam a
outras áreas da vida contemporânea.
Segundo Huston
Smith, em Beyond
the Post-Modern Mind,
o “modernismo” baseou-se (e se baseia) na crença de que “(a) nada que careça de
um componente material existe e (b) naquilo que existe, o componente físico tem
a palavra final”. Assim, o modernismo é essencialmente naturalismo ou
materialismo. Esse naturalismo assumiu o comando, a partir do Renascimento e
com aceleração durante a revolução científica do século XVII, à medida que a
metafísica e a religião revelada começaram a ser marginalizadas. A visão de
mundo unificada apresentada pela teologia foi substituída por uma nova unidade
— ou, melhor dizendo, por uma nova crença de que a unidade poderia finalmente
ser alcançada — fundada no estudo da natureza e da história humana. Quanto mais
fatos descobríssemos nessas áreas, mais material teríamos disponível para a
construção do Grande Desenho.
Mas, segundo o
pós-modernismo, não existe Grande Desenho. A verdade é plural e, em última
instância, subjetiva. A realidade é apenas aquilo que é configurado: por um
período histórico, uma sociedade, uma linguagem ou um indivíduo dados. Não há
nada realmente “lá fora” além de uma massa de potencial caótico à espera de ser
moldado em alguma forma arbitrária. Huston Smith cita Kant, Kierkegaard,
Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein e o desconstrucionista Jacques Derrida entre
os arquitetos conscientes ou inconscientes desse movimento, que começou a
suplantar o modernismo, ao menos nas sociedades ocidentais, na primeira metade
do século XX.
Kant ensinou
que o ser humano jamais pode experimentar a Verdade transcendente, ou a
realidade objetiva (númeno) de coisa alguma, mas
apenas o mundo dos fenômenos tal como nos é apresentado por nossos esquemas
inatos e fixos de percepção. E Nietzsche, com sua “morte de Deus”, anunciou o
fim da metafísica — um desenvolvimento aterrador, mas historicamente inevitável
—, ao mesmo tempo que fazia tudo o que podia para promovê-lo, atacando o
Cristianismo e substituindo a noção metafísica de princípios eternos e
imutáveis na mente de Deus pela doutrina estóica do retorno circular e
interminável de todas as coisas. (O que poderia ser mais niilista do que
trabalhar pela realização de algo que se julga terrível, simplesmente porque se
acredita que é inevitável?) Segundo o Prof. Smith, Kierkegaard também teve seu
papel, com a ideia de que a verdade objetiva desumaniza. Essa crença é
sustentada hoje por milhões de pessoas, que a aplicam não à filosofia
hegeliana, como ele fazia, mas à ciência. Depois veio Heidegger, que afirmou
não haver verdade objetiva além da que um período histórico específico define
como real; Wittgenstein, que sustentou não haver verdade objetiva além da
definida pelas culturas e mediada pela linguagem; e Derrida, que nos diz que
qualquer tentativa de definir uma verdade objetiva deve necessariamente excluir
e, portanto, marginalizar e oprimir outras versões possíveis do que seja
verdadeiro. A diversidade cultural e filosófica deve ser celebrada porque a
unidade tiraniza. Acreditar que uma sociedade, ou uma linguagem, ou mesmo um
texto, tenha alguma estrutura inerente é opressivas. Consequentemente, qualquer
pessoa que pense ter apreendido o verdadeiro significado de um texto —
inclusive quem o escreveu — está enganada… exceto, ao que parece, Derrida e os
desconstrucionistas. Jacques Derrida poderia ter tido uma carreira brilhante
como devastador satirista do pós-modernismo, não fosse o fato de que o humor só
pode existir na fronteira entre o real e o absurdo, e os desconstrucionistas,
tão sem humor quanto são, eliminaram o primeiro desses dois termos de
consideração.
Eis o
pós-modernismo em poucas palavras: (1) não existe verdade objetiva, portanto
(2) a realidade não é percebida, mas construída — pelos padrões inatos de
percepção, ou pela história, ou pela sociedade e pela linguagem, ou pelo
indivíduo — de modo que (3) todas as tentativas de criar visões de mundo
abrangentes que transcendam a história, a sociedade ou até (em última
instância) o indivíduo são opressivas; logo (4) todas essas visões de mundo
arbitrariamente construídas devem ser desconstruídas para que se celebre a
diversidade e se preservem os direitos das construções de realidade de minorias
marginalizadas (as quais, evidentemente, sendo também construções, precisam
igualmente ser desconstruídas; tanto faz, portanto, a preservação dos direitos
das minorias). Assim, o pós-modernismo termina no desconstrucionismo, e o
desconstrucionismo termina (ou assim esperamos) na desconstrução do próprio
desconstrucionismo: se a visão construída pela maioria oprime as minorias, também
as visões minoritárias oprimem os indivíduos… e as visões individuais (por que
não?) oprimem as visões das subpersonalidades dentro do indivíduo, enquanto
essas subpersonalidades oprimem a experiência de frações de segundo de
consciência, etc., etc., etc. Ninguém reconhece aqui a qualidade familiar de
nossa vida diária, a pulverização progressiva da realidade? É como se os
desconstrucionistas fossem criaturas absolutas da mídia eletrônica, pessoas que
consideram criminoso possuir capacidade de atenção, porque isso imporia forma
arbitrária e opressiva sobre a experiência “pura”; pelo menos é para essa fase
terminal que parecem caminhar. Se os levamos a sério, teremos que concluir que
existir é, necessariamente, oprimir e ser oprimido? Que o fim da opressão deve
ser o fim da existência? Que o objetivo final do niilismo pós-moderno é, e
deveria ser, a aniquilação? Talvez a palavra “pós-modernismo” de fato se refira
à terminação da história, ao fim do tempo. É óbvio que se trata de uma casa
construída sobre a areia.
Modernismo e
pós-modernismo são perfeitamente capazes de atuar em conjunto na mente
contemporânea, inclusive na mente de um único indivíduo, para neutralizar a
visão tradicional ou metafísica da realidade. Para tomarmos apenas um exemplo:
se eu mostrar a tal indivíduo que certas tendências sociais se encaixam
precisamente na definição tradicional de demonismo, e têm consequências que
ninguém em perfeito juízo buscaria deliberadamente, seu lado pós-moderno
caótico validará essas tendências como parte da “celebração universal da
diversidade”, enquanto seu lado moderno materialista negará que algo como
demonismo possa existir. Ao fazer isso, ele obviamente nega parte da
diversidade que acaba de validar; mas, como esses dois lados de sua consciência
nunca se encontram, a contradição entre eles “não é problema” — e continuaria a
“não ser problema” mesmo que se encontrassem, já que o pós-modernismo vê a
inconsistência como uma espécie de “riqueza” e a consistência, até a
consistência lógica, como forma de opressão. Aí podemos ver como o
pós-modernismo é de fato a visão dominante, da qual o modernismo se tornou nada
mais que um subconjunto, apenas mais um item desconectado no espectro
pós-moderno da “diversidade”. E tanto a celebração pós-moderna quanto a negação
moderna agem em conjunto para sustentar, e não para se opor, às tendências em
questão — tendências que o mesmo indivíduo, com outra faceta igualmente
desconectada de sua consciência fragmentada, pode sinceramente deplorar.
A Verdade
Escondida no Pós-modernismo
Mas existe
algo de bom no pós-modernismo? Huston Smith menciona o útil alerta dos
desconstrucionistas de que pretensões absolutistas, inclusive as metafísicas,
podem se tornar tirânicas, bem como seu louvável empenho em defender o Outro,
tanto em termos de minorias excluídas quanto de ideias marginalizadas. Se o
pós-modernismo vê todas as visões de mundo como construídas — ou seja, como
função do poder, e não da verdade —, então o desconstrucionismo precisa surgir
como defensor das muitas visões diversas que detêm menos poder do que a visão
dominante em determinado tempo e lugar. Ele nos adverte, contudo, contra a
absolutização dessa mesma diversidade, já que “não honraríamos a alteridade do
Outro se não reconhecêssemos também a sua identidade conosco”.
Smith vê o
desconstrucionismo, a mais radical das correntes pós-modernas, como uma espécie
de Teorema de Gödel no campo da filosofia. O matemático Kurt Gödel provou que
nenhum sistema pode ser ao mesmo tempo completo e consistente. Para ser consistente,
deve deixar coisas de fora; para ser completo, precisa incluir contradições.
“Como não pode haver sistema que seja completo e consistente”, lembra Smith, “é
impossível que um único sistema possua toda a verdade. Outras vozes devem ser
ouvidas.” É igualmente impossível, porém, que toda a verdade possa ser
conhecida somando-se sistema a sistema. Informação, verdade quantitativa, pode
ser acumulada; a Verdade transcendente e espiritual, não.
Mas o que
exatamente é um sistema? A própria existência, em seu próprio nível, é
completa, embora nunca possamos experimentar tudo o que ela contém. Ela é
também misteriosamente consistente, impressionando aqueles que a contemplam em
profundidade como um universo, um cosmo ordenado, uma expressão do Tao. No
entanto, jamais é perfeitamente previsível. Um sistema, então, é uma tentativa
de sintetizar, por meio de uma construção da mente humana, a completude e a
consistência que só podemos intuir na existência primordial em si.
Em qualquer
sociedade tradicional baseada numa revelação religiosa, pouca dissonância — se
é que alguma — é visível, para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo,
entre o sistema sagrado de mito, teologia e ritual e a própria existência. Só
nesta era de pluralismo forçado, em que todas as revelações religiosas
sobreviventes, os “universos” mitológicos de muitas tribos primitivas, diversos
sistemas filosóficos e distintos universos artísticos de sensibilidade, a
historicidade e o naturalismo da visão de mundo modernista, os paradigmas da
ciência e do cientificismo e a anti-visão-de-mundo que é o pós-modernismo se
chocam de frente, é que um “Teorema de Gödel” sociológico se tornou necessário.
Em tempos
antigos, como na Antiguidade tardia, ou em boa parte da história da Índia,
quando muitas religiões e filosofias se encontravam e se fecundavam mutuamente,
o sincretismo, para o bem ou para o mal, ainda era possível. Restava o
suficiente do sentido primordial da unidade da existência para que os filósofos
traçassem um quadro mais ou menos unificado do cosmos que abraçasse a
pluralidade das formas religiosas, e para que o povo aceitasse o pluralismo
religioso como algo mais ou menos natural, parte da “ecologia” do espírito —
embora esse sincretismo estivesse sempre num nível mais baixo do que qualquer forma
tradicional isolada e frequentemente fosse hostil ao sentido mais alto do
sagrado mediado por essas formas. Mas hoje perdemos em grande medida até esse
vago, intuitivo senso de unidade. As visões de mundo da ciência e da revelação,
do materialismo e do transcendentalismo, são demasiado radicalmente opostas
para serem reconciliadas. Isso não quer dizer que não haja sincretismo em nosso
tempo; de certo modo, este é o “tempo de ouro” do sincretismo. O fato é que o
sincretismo não tem mais poder para superar, nem mesmo de forma parcial e
relativa (que era tudo o que jamais pôde fazer), nossa ansiedade existencial e
nossa fragmentação cognitiva. Quando tentamos abraçar a completude, hoje,
deparamos de imediato com contradições agonizantes. Quando optamos pela
consistência, ficamos com algo isolante, constritor e radicalmente incompleto.
Os termos
“completo” e “consistente” são, em certo sentido, ambos horizontais. Se o tampo
de uma mesa tem extensão infinita, ele inclui “tudo” — tudo no plano da mesa,
isto é —, mas a pequena parte visível não fará sentido. Se a mesa é finita,
pequena o bastante para ser abarcada com um olhar, será consistente, porém
deixará muita coisa de fora; se olharmos além de suas bordas, veremos muitas
outras mesas. Nenhuma das palavras “completo” ou “consistente”, entretanto,
pode carregar todo o peso dos termos metafísicos Realidade e Verdade, ambos
nomes de Deus. Só Deus, digamos assim, é totalmente completo e perfeitamente
consistente — e Deus não é um sistema. Sua completude não pode ser abrangida
nem esgotada porque é Infinita; Sua consistência não pode ser definida nem
racionalizada porque é Absoluta. O Teorema de Gödel, então, é a expressão
matemática da transcendência de Deus em relação ao cosmos, da pobreza relativa
do cosmos quando considerado à parte de Deus. Mas, uma vez que perdemos em
grande parte o senso imediato de mundos superiores invisíveis — mais reais do
que este — e de um Absoluto Divino e Transcendente, o Teorema de Gödel se torna
apenas irônico, expressão matemática do desespero pós-moderno quanto à verdade
objetiva.
Quando o norte
está congelado, o oeste inundado, o sul em chamas e o leste bloqueado por um
deslizamento de terra, a única saída é para Cima. Um sistema filosófico não
precisa ser absolutamente consistente ou absolutamente completo para cumprir
sua função. Não tem de ser Deus, assim como um elevador não precisa ter o
tamanho de todo o prédio. Isso é assim porque Deus já é Deus; consistência e
completude já estão garantidas. Tudo o que uma filosofia (ou, para sermos
estritamente exatos, uma teosofia) precisa de fato é estar aberta, na dimensão
vertical, à Verdade transcendente, ao sentido do Absoluto, e conformar suas
formulações, tão imperfeitas quanto forem, a esse sentido. E, desde que
percebamos que a religião, diferentemente da filosofia, dirige-se ao ser humano
inteiro, não apenas à sua mente, o mesmo se pode dizer de qualquer forma
religiosa viável. Ela não precisa ser absolutamente consistente ou completa; só
Deus pode sê-lo. Basta que preserve, operativamente intacto, em seus dogmas,
rituais, moral e prática contemplativa, o raio vivo de Deus por meio do qual
entrou no mundo, e ao longo do qual as almas humanas nela contidas podem
retornar à Fonte que a enviou.
Entender isso
é superar a idolatria doutrinal, que podemos definir como a adoração de um
sistema de crenças — heterodoxo ou ortodoxo — no lugar de Deus. Não me
interpretem mal: a ortodoxia doutrinária é necessária se quisermos manter uma
relação viva com o Absoluto. Está o mais longe possível de qualquer
utilitarismo ou pragmatismo. Não é arbitrária, mas integral e necessária à
revelação que expressa. Nos termos de Frithjof Schuon, é “relativamente
absoluta”. As doutrinas religiosas que possuem verdadeira ortodoxia são
providenciais. Sua eficácia operativa não se deve ao fato de serem complexas,
ou simples, ou fascinantes o suficiente para nos motivar espiritualmente, mas
ao fato de serem objetivamente verdadeiras: não totalmente completas e
consistentes, mas ainda assim as mais altas expressões possíveis (ainda que nem
sempre as únicas) da Realidade de Deus e de Sua relação com a criação, dentro
de determinado universo religioso. São como elevadores que vão até o Último
Andar. Outros elevadores podem levar parte do caminho, mas, se o objetivo é o
Último Andar, será preciso descer novamente ao térreo para tomar o elevador
certo. E, embora mais de um elevador — mais de uma tradição revelada — possa
subir ao Último Andar, não é possível tomar dois ao mesmo tempo.
A idolatria
doutrinária é uma forma da idolatria mais universal das visões, a tendência
humana inevitável de confundir a própria visão da realidade com a própria
realidade. O pós-modernismo, em seu melhor aspecto, ao negar a completude e a
consistência de qualquer visão única das coisas, poderia trabalhar contra essa
idolatria das visões e dar a seus adeptos algum senso da incomparabilidade
transcendente das “formas de vida” singulares — bem como de indivíduos e
momentos singulares —, nível de compreensão atingido de modo permanente apenas pelos
grandes místicos, como o sufi Ibn al-‘Arabī, que veem todos os acontecimentos
como atos ou aspectos simbólicos de Deus — “Ele (Allah) está a cada dia em uma
nova obra”, diz o Alcorão —, por aqueles que transcenderam com limpidez o dogma
sistemático sem, de forma alguma, negá-lo. Como ensina William Blake, a
singularidade concreta dos “minutos particulares” está mais próxima da
verdadeira revelação de Deus do que a ideia abstrata de transcendência. Na
prática, porém, o pós-modernismo parece produzir o efeito oposto. Embora o
Prof. Smith fale do respeito relutante e intermitente de Jacques Derrida pela
metafísica, e de certas intuições metafísicas em Heidegger, na maior parte das
vezes o pós-modernismo é ainda mais anti-metafísico do que o modernismo. E, sem
a dimensão vertical, sem um senso concreto do Absoluto, a celebração da
diversidade, em oposição à unidade, só pode ser um comentário irônico sobre a
impossibilidade de chegar à verdade objetiva, acompanhado de uma negação
niilista de que tal verdade seja sequer desejável.
Nossas visões
não são a realidade; contudo, são visões da realidade, embora variem amplamente
em capacidade e exatidão. Até o paranoico constrói seu delírio sobre algum
traço ou aspecto de verdade. Mas, se negamos que exista qualquer verdade
objetiva além de nossas visões, isso nos impede de idolatrá-las, já que
entendemos que não são “reais”? Ou nos força a idolatrá-las, precisamente
porque agora elas são a única “realidade” que existe? E um mundo habitado por
solipsistas — mundo que o pós-modernismo, por meio da mídia eletrônica, está em
vias de criar — é realmente um mundo tolerante? Se eu o aceito apenas porque
você é parte de mim (em vez de eu ser parte de você, o que seria uma blasfêmia
contra o solipsismo), terei realmente aceitado você?
De certo modo,
a prática contemplativa pode ser definida como o trabalho de superar a
idolatria das visões. A concentração no Absoluto implica a realização
progressiva, momento a momento, de que nossas visões da Realidade de Deus não
são Deus. À medida que passamos a entender, e a aceitar, que nenhuma concepção
nossa pode conter o Absoluto, aprendemos a deixar nossas concepções ir. Na
terminologia técnica do misticismo, isso é a contemplação “apofática” da
transcendência de Deus.
Mas isso é
apenas metade do quadro. Ao soltarmos nossas concepções, concepções maiores
nascem, que também precisamos soltar, abrindo espaço para concepções maiores
ainda. E, à medida que o processo continua, passamos a perceber que essas
concepções não são tentativas frágeis de compreender Deus, mas generosas e
misericordiosas auto-revelações de Deus para nós. Como somos finitos, jamais
podemos conter Sua auto-revelação total, a não ser pela aniquilação de nossa
existência separada e autodefinida, aniquilação que, em última instância,
renasce como uma das infinitas auto-revelações de Deus contidas em Sua
existência maior. Porém podemos aceitar as auto-revelações de Deus como dons
gratuitos pelos quais aspectos de Sua Essência inconcebível se tornam
conhecidos de nós, segundo nossa capacidade. Esta é a contemplação “catofática”
da imanência de Deus.
Tal como a
prática contemplativa, a filosofia pós-moderna trabalha contra o “realismo
ingênuo”, que nos faz acreditar que a realidade objetiva se limita ao que
vemos, que as coisas são simplesmente o que parecem. Mas também nos ensina,
paradoxalmente, que as coisas são apenas o que vemos, que nada, ou nada
inteligível, existe de fato “lá fora”. E, em vez de colocar essas duas verdades
em relação, como faz a metafísica tradicional, ela as volta uma contra a outra.
Em vez de postular uma Realidade que transcenda todas as nossas visões, nega
que tal Realidade possa existir; no lugar do Vazio Divino além de toda
concepção, ficamos com um vazio literal, uma falta morta. E, em vez de considerar
nossas concepções das coisas como auto-manifestações daquela Realidade
Inconcebível, vê-as como produções, em última análise arbitrárias, de um
substrato material cego e destituído de unidade, produções formadas e mediadas,
quase inteiramente, por inconscientemente, apenas pelos “egos” da história, da
sociedade, da linguagem e do indivíduo isolado. Em lugar, portanto, da
Inacessibilidade unida à Manifestação, temos a inadequação de toda concepção
unida à sua proliferação cega e interminável. O niilismo pós-moderno é, assim,
uma espécie de misticismo falsificado, uma sombra distorcida do próprio
Absoluto. E, quando a sombra do Absoluto — aquela que os muçulmanos chamam de
“Iblis” — se torna o princípio orientador de toda uma época histórica, somos
obrigados a concluir que o fim do ciclo está próximo.
Pós-modernismo
e Nova Era
As
espiritualidades da Nova Era parecem opor-se em muitos aspectos ao
pós-modernismo. Acreditam na verdade objetiva de realidades transcendentais.
Não se interessam em limitar essa verdade àquilo que pode ser visto através da
lente desta ou daquela linguagem, sociedade ou época histórica. Em vez de
desconstruir escrituras e mitologias, examinam as escrituras e mitologias do
mundo inteiro e de toda a história humana em busca de pistas para alguma
verdade oculta. Acreditam em “estrutura profunda”. O segredo da metafísica e da
profecia está oculto nas dimensões da Grande Pirâmide; o “Livro de Dzyan” de
Madame Blavatsky seria a escritura mais antiga do mundo e a chave de todas as
outras; os ensinamentos de Seth, ou de A Course in Miracles, ou de A Profecia Celestina revelam a forma
destinada da história humana e a estrutura objetiva e real do universo. Podem
ser heterodoxas do ponto de vista das ortodoxias tradicionais, mas não seriam
pós-modernas.
Ou seriam? A
primeira semelhança entre a Nova Era e o pós-modernismo é que ambos são
pluralistas; ambos gostam de “celebrar a diversidade”. A Nova Era pode ter
herdado o resíduo da crença da cristandade em uma verdade metafísica objetiva;
ainda assim, a palavra “objetividade” não é simpática aos adeptos da Nova Era.
Para eles, como para pós-modernos em geral, tende a ser sinônimo de
“ortodoxia”, “dogmatismo” e “hierarquia”, que, por sua vez, são sinônimos de
“opressão”.
A pluralidade
de espiritualidades Nova Era não é divisiva; não é sectária. A transcendência é
buscada, mas é essencialmente uma transcendência subjetiva — o que é uma
contradição em termos, já que é precisamente nossa subjetividade, nosso ponto
de vista egocêntrico e limitado, que precisa ser transcendido. E, uma vez que
transcendência e subjetividade são simultaneamente abraçadas como valores, a
autoridade espiritual é ao mesmo tempo buscada e desconfiada. Gurus reúnem
seguidores, mas acredita-se ao mesmo tempo, até por muitos desses seguidores,
que “você é o seu próprio guru”. Cada vez mais adeptos da Nova Era canalizam
entidades psíquicas na tentativa de contornar a autoridade espiritual de
mentores humanos, válidos ou não; mas em seguida dão a essa “entidade”
autoridade absoluta sobre sua visão da realidade — autoridade que, porém, pode
ser “massageada” quando necessário, já que nada é mais fácil do que operar a
própria “entidade” como um boneco de ventríloquo para que ela diga o que
queremos ouvir. A Nova Era compartilha com o pós-modernismo uma desconfiança em
relação à autoridade, enquanto ao mesmo tempo possui suas próprias autoridades,
assim como o pós-modernismo possui as suas.
É prática
comum, para muitos adeptos da Nova Era, não permanecer fiel a um único mestre
ou a uma única visão, mas multiplicá-los deliberadamente. Quanto mais mestres e
ensinamentos se consegue colecionar — e, no extremo neopagão do espectro,
quanto mais deuses e deusas —, mais ampla se supõe ser a área de consciência do
indivíduo. Essa tendência poderia ser definida como “o reino da quantidade” na
esfera religiosa, e é indistinguível do pluralismo pós-moderno, pois, se não
existe realidade objetiva, a “expansão da consciência” só pode ser horizontal e
quantitativa. Do mesmo modo, a crença de que cada um é seu próprio guru, ou
pode canalizar sua própria entidade, ou deve construir o próprio “mito
pessoal”, nada mais é do que uma versão popular da doutrina da filosofia
pós-moderna segundo a qual “a realidade é apenas como é configurada”.
A pluralidade
e a diversidade da doutrina Nova Era garantem que ela jamais possa transcender
o nível psíquico. O domínio do Espírito é objetivo e unitário; o da psique é
necessariamente múltiplo, por se basear nos pontos de vista subjetivos de seus
muitos habitantes, humanos e outros. A Verdade espiritual objetiva,
arquetípica, pode refletir-se aí, mas também se refrata e se quebra, como a
imagem do Sol numa baía revolta. Nenhum fragmento isolado da imagem do Sol nas
ondas em movimento é o Sol inteiro; nesse ponto, a advertência pós-moderna
contra a absolutização de visões subjetivas é bem-vinda. Mas tampouco se pode
ver o Sol inteiro somando-se fragmento a fragmento; um milhão de fotografias do
Sol cintilando sobre a água nunca produzirão a imagem do Sol inteiro. E somente
uma tal imagem unitária pode demonstrar que existe algo como o próprio Sol, uma
realidade em si, situada em plano mais elevado do que o de seus reflexos.
O subjetivismo
religioso da Nova Era é, em essência, uma tentativa de encontrar refúgio na
psique subjetiva contra o terror do mundo, contra o materialismo e o
cientificismo, entendendo a psique como, de certo modo, transcendente às
condições materiais, mas ignorando o fato de que, se a psique não está
enraizada no Espírito, em algo superior a si mesma, torna-se mero apêndice das
condições materiais — como Karl Marx demonstrou com tanta clareza. Uma
transcendência subjetiva é uma transcendência fragmentada, e uma transcendência
fragmentada não pode ser verdadeiramente transcendente.
Globalismo e
Anticristo
O globalismo e
o Governo Mundial Único, a meu ver, não são o sistema do Anticristo, embora
estejam entre os fatores que tornarão possível esse regime.
Creio que o
sistema do Anticristo surgirá — está, de fato, surgindo — do conflito entre a
Nova Ordem Mundial e o espectro de reações militantes contra ela.
No tempo de
Jesus, o Governo Mundial Único era o Império Romano. Os zelotes eram os
revolucionários e/ou milicianos anti-romanos. Jesus tomou o cuidado de não
deixar-se arrastar a declarações que comprometessem a causa zelote e o fizessem
parecer um colaborador de Roma. Porém também se relacionou com oficiais
militares romanos e com serviçais de Roma, como os cobradores de impostos
judeus, de maneiras que escandalizavam muitos patriotas nacionalistas judeus. Ele
emergiu do povo comum, oprimido tanto por Roma quanto pelas classes dirigentes
judaicas coloniais que faziam o “trabalho sujo” do Império; denunciou aqueles
setores da elite — escribas, fariseus, saduceus e herodianos — que se aliavam
ao Império, sem pronunciar palavra contra zelotes e essênios, que não o faziam.
Mas não se identificou com a “vanguarda” violenta que agia em nome do povo.
Podemos dizer, portanto, que, se Cristo se esforçou por não ser identificado
nem com o Império Romano nem com seus opositores militantes, por essa mesma
razão devemos tomar cuidado para não identificar estritamente o Anticristo nem
com o Governo Mundial Único nem com o terrorismo antiglobalista. Juntos, eles
fornecerão o meio de onde ele surgirá; mas, assim como Cristo evitou ser
reivindicado por qualquer das partes porque sua missão era redimir não apenas
os judeus, mas toda a humanidade, o Anticristo “jogará dos dois lados” nos
últimos dias para construir seu poder sobre todos os aspectos da alma humana. O
Anticristo não é principalmente inimigo da democracia ou da autonomia nacional,
em outras palavras, mas da própria Humanidade, considerada como feita à imagem
e semelhança de Deus. Em sua essência mais profunda, a batalha entre Cristo e
Anticristo não é entre liberdade e tirania (embora, onde haja verdadeira
liberdade, o Anticristo não possa vir), nem entre corpos religiosos
tradicionais e sociedade secular (ainda que o campo desse conflito possa, ao
menos em alguns casos, estar mais próximo da verdadeira guerra), mas entre a
presença sagrada de Deus no coração humano e a violação sacrílega dessa
presença: “Quando, pois, virdes a Abominação da Desolação de que falou o
profeta Daniel, erguida no lugar santo (quem lê, entenda), então os que
estiverem na Judeia fujam para os montes” (Mt 24,15–16).
O globalismo
está em processo de destruir todas as culturas tradicionais e nacionais,
minando e comprometendo todas as formas religiosas tradicionais. Mas
simplesmente opor-se a todo planejamento e ação em escala global também é problemático.
A verdade irônica é que, dado o globalismo, precisamos de globalismo. Se os
negócios são internacionais, os sindicatos também precisam ser internacionais,
ou os salários poderão, em última análise, cair abaixo do nível de subsistência
em toda parte. Se as epidemias são globais, os esforços de saúde pública devem
ultrapassar as fronteiras nacionais. Se a poluição é global, os esforços para
limitá-la precisam ser globais. Se o crime é global, a polícia também deve ser.
Se nações “emergentes” e bandos terroristas desenvolvem armas de destruição em
massa, esforços devem ser feitos para limitar sua disseminação. Não temos
escolha senão tentar administrar a Terra em nível planetário. Mas a luta para
realizar isso produz, por sua vez, resultados ambíguos. Se os poderes
constituídos podem usar o ambientalismo, os esforços de saúde pública, as ações
de imposição armada da paz e a guerra contra o crime internacional, o
terrorismo e o tráfico de drogas para consolidar ainda mais seu poder, eles o
farão. Ou melhor, já o fazem. Quem se opõe a esforços para salvar o meio
ambiente, combater o tráfico internacional de drogas ou limitar a possibilidade
de terrorismo nuclear age contra os melhores interesses da humanidade e da
Terra. Mas quem se identifica com esses esforços ou deposita neles sua
esperança está iludido. A Terra não pode ser administrada em nível planetário
porque as forças do globalismo que aspiram gerir esse processo — negócios e
finanças globais, em outras palavras, seguidos, e não liderados, pela tendência
à unificação política — são as mesmas que estão criando esses problemas em
primeiro lugar. A expansão global da indústria e da exploração de recursos —
iniciada e até hoje impulsionada, apesar do interlúdio comunista, pelo
capitalismo transnacional — está na origem da degradação ambiental. Ao destruir
economias tradicionais de subsistência e proletarizar o trabalho — assistida,
em grande medida, pela brutal coletivização da agricultura, à custa de dezenas
de milhões de vidas, na Rússia e na China comunistas —, ao explorar mão de obra
barata e ameaçar identidades culturais nacionais e religiosas, as forças do
capitalismo global criaram elas próprias o comércio subterrâneo global de
drogas, armas, espécies animais em risco, escravos… todos monumentos ao
espírito empreendedor. Só um Governo Mundial Único poderia limitar o poder
destrutivo dessas forças econômicas internacionais. Mas, se e quando tal
governo emergir, ainda que possa exercer alguma influência mitigadora sobre
desastres globais, será agente dessas forças, não seu adversário.
A política é a
arte do efêmero. Tudo o que tem valor humano e é obtido pela ação política é
temporário, ambíguo e corruptível. Essa é a natureza do tempo e da história —
da própria matéria. A ação pela justiça social, a ação para salvar o meio
ambiente são louváveis. Cada pessoa que consegue evitar ser esmagada pelas
circunstâncias sem se tornar exploradora e opressora de outros é uma bênção
para a raça. Cada espécie que pode ser salva da extinção permanece como um
espelho incomparável de um aspecto único da natureza divina e pode (ou não)
acrescentar à biodiversidade disponível no próximo ciclo de manifestação
terrestre, já que não podemos saber com absoluta certeza se o fim deste eão
precisa implicar a destruição total de toda a vida na Terra, ou mesmo de toda a
vida humana; tudo o que sabemos é que será o fim para “nós”.
Mas a batalha
contra o Anticristo está em outro nível. Embora para alguns possa ter uma
expressão política, é essencialmente espiritual. “O meu Reino não é deste
mundo.” É uma luta para salvar não o mundo, mas a alma humana — começando, e
terminando se preciso for, pela própria.
Vetores do
Anticristo nos Três “Estados” Religiosos
Huston Smith
divide todas as manifestações religiosas em três níveis básicos: religião de
igreja, religião popular e religião mística. Há grande interpenetração entre
esses domínios, mas a divisão permanece, em essência, correta. Muito se
esclarece quando percebemos que nem tudo o que passa por “religião” tem a mesma
orientação, o mesmo campo de atividade, o mesmo objetivo último.
Tal como vejo
as coisas, o objetivo principal da religião de igreja é a salvação do indivíduo
em um estado após a morte. O objetivo principal da religião popular é o
atendimento do desejo humano e a proteção da vida humana contra o dano. O
objetivo principal da religião mística é a realização de Deus, a libertação
final da existência contingente, já nesta vida. A religião popular, portanto,
pode ser designada como a religião deste mundo; a religião de igreja, do outro
mundo; e a religião mística, do Absoluto, além tanto deste mundo quanto do
outro. Esse esquema está longe de ser perfeito, mas, apesar das muitas
exceções, ainda me parece um modo útil de dar sentido às tendências diversas
abrangidas pela palavra “religião”.
Sem dúvida, a
religião de igreja tem, entre seus objetivos secundários, a proteção do
indivíduo e da comunidade contra o mal e a obtenção de metas moralmente
aceitáveis nesta vida. E toda religião baseada na revelação possui pelo menos
uma porta em seu interior — largamente reconhecida ou meio esquecida — que se
abre para o Caminho místico. Também a religião popular não é totalmente
destituída de elementos que dizem respeito ao destino da alma no além — como,
por exemplo, a veneração dos antepassados — e muitas religiões populares
conservam restos de doutrinas místicas expressas em termos de mito e folclore.
Além disso, embora a religião mística renuncie ao apego ao sucesso e à
segurança mundanos, e considere a imortalidade pessoal em um além bem-aventurado
como meta severamente limitada (“o paraíso é a prisão dos gnósticos”) ou como
metáfora velada da própria União mística, a bênção de um santo ou sábio
realizado sempre foi reconhecida como auxílio à salvação da alma, fonte de
proteção e até, em alguns casos, talismã de sucesso terreno, dependendo da
intenção e da capacidade do beneficiário. Não obstante, os três objetivos de
poder (via magia), salvação (via obediência) e libertação (via realização)
caracterizam, respectivamente, a essência da religião popular, da religião de
igreja e da religião mística.
O Judaísmo, o
Cristianismo e o Islã são religiões de igreja que contêm elementos místicos — a
Cabala, a hesicastia e o sufismo — e incorporam também certa dose de religião
popular. O Budismo é primordialmente uma religião mística, embora em suas
formas Terra Pura ou Amidista tenda a tornar-se religião de salvação, ainda que
continue vendo a obtenção de um além bem-aventurado como apenas o primeiro
passo rumo à Iluminação final. Na China e em outros lugares, o Budismo absorveu
inúmeros elementos populares, e a seita Nichiren Shoshu, e outras semelhantes,
com sua ênfase no sucesso mundano, embora ainda orientadas para a Iluminação
final, partilham do objetivo fundamental da religião popular.
O Confucionismo,
ao evitar (sem negar) o sobrenaturalismo, é mais um sistema de sabedoria social
e moral — profundo e providencial, é verdade — do que aquilo que costumamos
chamar de religião. O Taoismo, a outra grande tradição chinesa, assume três
formas, segundo Huston Smith: taoismo filosófico, taoismo higiênico-iogue e
taoismo eclesiástico instituído. O taoismo filosófico e o higiênico-iogue são
essencialmente místicos, correspondendo aproximadamente ao jñāna-yoga e ao
rāja-yoga no Hinduísmo (embora o taoismo higiênico-iogue, com sua ênfase em
saúde e longevidade, incorpore elementos populares), ao passo que o taoismo
eclesiástico pode ser descrito como uma religião popular mágica que se
converteu em igreja organizada. O Taoismo compartilha com o xamanismo, um de
seus ancestrais longínquos, uma união mais estreita entre magia e mística do
que foi o caso nas As religiões abraâmicas, o budismo (fora das seitas
Vajrayana) e talvez até o hinduísmo preservaram, em maior ou menor grau, a
separação entre magia e mística; apesar disso, essas duas tendências permanecem
distintas.
Quanto ao
hinduísmo, ele abrange os três elementos: toda forma imaginável de religião
popular mágica e/ou politeísta; um “politeísmo eclesial” superior, baseado nos
cultos dos grandes deuses e deusas; e uma rica espiritualidade mística,
amplamente derivada dos ensinamentos transcendentes do Vedānta, incluindo os
cultos de Kali, Shiva e os avatares de Vishnu reinterpretados como formas do
Absoluto unitário.
A forma
dominante na Europa e nos Estados Unidos tem sido tradicionalmente a religião
de igreja; e, como o cristianismo norte-americano foi predominantemente
protestante, tanto as espiritualidades místicas quanto as populares foram
amplamente excluídas — embora algumas vertentes do protestantismo carismático
tenham preenchido parcialmente essa lacuna, não incorporando a religião
popular, mas quase transformando o cristianismo, elas mesmas, em uma religião
popular mágica. Não era bem assim no catolicismo tradicional da América Latina,
que abraçava muitos mais elementos populares e preservava, em certa medida, a
dimensão mística, ao menos no contexto do monaquismo. A mística também
sobreviveu no catolicismo norte-americano — como testemunham figuras como
Thomas Merton —, mas um protestantismo eclesial estreito, embora muitas vezes
profundamente enraizado, e um catolicismo eclesial igualmente estreito
continuaram sendo, até talvez o fim dos anos 1960, a realidade denotada pela
palavra “religião” na mente da maioria dos americanos.
A supressão
tanto da religião popular quanto da religião mística no contexto
norte-americano tornou possível um erro fundamental que ganhou grande força
cultural nos anos 1960 e 1970 e continua a se espalhar até hoje: a saber, que a
religião popular é, na verdade, mística. Como tantas vezes ocorreu ao longo da
história, na política e na religião, ideias essencialmente incompatíveis
tornaram-se associadas no imaginário popular por terem sido ambas excluídas da
visão oficial da realidade. Embora a busca da segurança e do sucesso mundano,
própria da religião popular, esteja no pólo oposto da meta de renúncia e
libertação própria da religião mística, a dinâmica histórica predominante
assegurou que muitas pessoas que professavam interesse pelo misticismo também
se interessassem pela magia; a necessidade sentida de “abandonar” a
religiosidade eclesial estreita significava que se estava muito propenso a
“adentrar” tudo o que essa religião de igreja havia deixado de fora — fosse
algo elevado, simplesmente vulgar, ou ativamente sinistro.
O
protestantismo evangélico continua, sem surpresa, a propagar o erro de que
metafísica e misticismo (num extremo) e magia e fenômenos psíquicos (no outro)
são, na verdade, a mesma coisa; enquanto o protestantismo liberal e o
catolicismo caíram no mesmo erro pela direção oposta: muitos liberais acreditam
que a dimensão mística perdida do cristianismo — ou de seu cristianismo — pode
ser ressuscitada pela inclusão de mais elementos populares, por meio do
interesse em mitologia universal, religiões pagãs, xamanismo e até bruxaria. E
o protestantismo carismático (e também o catolicismo carismático) fez o
possível para transformar o cristianismo em uma religião mágica ou popular.
A supressão da
religião mística no cristianismo norte-americano levou até mesmo contemplativos
como Thomas Merton a buscar a dimensão mística perdida em tradições não
cristãs. Isso produziu o efeito ambíguo de despertar o cristianismo para seus
próprios aspectos místicos ao preço de contaminá-lo com elementos heterogêneos
que, embora sem dúvida de profunda verdade e eficácia espiritual em seus
próprios contextos tradicionais, tendem a lançar uma sombra distorcida sobre a
filosofia metafísica cristã tradicional e sua espiritualidade mística. E a
incapacidade do protestantismo americano de santificar, na medida do possível,
a dimensão popular — algo que tanto o catolicismo quanto a ortodoxia russa
foram mais capazes de fazer, embora não sem tolerar, de tempos em tempos,
certos elementos ambíguos —, somada à apostasia rastejante do próprio catolicismo
romano, abriu o cristianismo americano para subversões tanto pelo neopaganismo,
seja sob a forma de religiões afro-americanas como a Santería, seja sob a de
renascimentos “pagãos” comercializados em massa, como a Wicca de Starhawk,
quanto por várias ideias da Nova Era e/ou neoespiritualistas. Tampouco se pode
ignorar a grande e destrutiva influência do junguianismo — uma psicologia que
possui muitos insights válidos no seu próprio nível, mas que assumiu a forma
infeliz de uma pseudomística incorporando muitos elementos populares —
especialmente dentro do protestantismo liberal e da Igreja Católica.
Dado que a
religião mística é o núcleo, intrínseco ou reconhecido, de toda verdadeira
espiritualidade, e que o elemento mágico — o desejo de alcançar sucesso mundano
e evitar o dano mundano por meios sutis — sempre se apresentará à porta de
nossa vida religiosa exigindo reconhecimento, devemos levar ambos em conta. Se
falharmos nisso, o resultado será pseudomisticismo de um lado, e feitiçaria do
outro. O perigo da feitiçaria só é superado incorporando uma oração
peticionária poderosa e espiritualmente eficaz em nossa vida religiosa, e
reconhecendo ao mesmo tempo que devemos “buscar primeiro o Reino de Deus e sua
justiça”, que “não é deste mundo”; à medida que o poder miraculoso da teurgia
se retira da vida espiritual — ao menos dentro de um contexto cristão —, o
poder subversivo da magia tomará o seu lugar. E o perigo do pseudomisticismo só
pode ser superado mediante o verdadeiro misticismo, cujos aspectos metafísicos
e operativos, no contexto do cristianismo, estão plenamente apresentados na
tradição patrística e nos escritos dos santos místicos das Igrejas do Oriente e
do Ocidente. Sem uma compreensão abrangente e uma prática viva de sua própria
tradição mística, as igrejas cristãs permanecem abertas à invasão por uma
metafísica falsa e por uma prática contemplativa falsa — a religião do
Anticristo.
Certos
aspectos da religião popular estão claramente posicionados para prestar tributo
ao regime do Anticristo, não porque a religião popular (no contexto
norte-americano contemporâneo, principalmente o neopaganismo) seja sempre má em
si — ela é capaz, no seu melhor, de proporcionar às pessoas uma forma viável de
lidar umas com as outras e com o mundo ao redor, e despertá-las, ao menos até
certo ponto, para o significado sagrado do mundo natural —, mas porque forças
satânicas podem usá-la para subverter tanto a religião eclesial quanto a
religião mística. E a religião mística pode servir fielmente ao Anticristo por
si só, se começar a se ver como rival da religião de igreja e, assim, como uma
“igreja” alternativa, em vez de profundidade mística de uma dada tradição, cuja
“igreja” é sua forma externa necessária e providencial. Se tomar esse caminho,
acabará tanto por minar essa “igreja” quanto por trair sua própria essência. E
a religião de igreja, se degenerar em um legalismo estreito de um lado, ou em
um fideísmo anti-intelectual de outro, abrirá necessariamente sua porta às
duplas subversões do pseudomisticismo e da feitiçaria.
No mundo da
Nova Era, feitiçaria e pseudomisticismo juntaram-se. Contudo, a espiritualidade
da Nova Era não pode realmente ser chamada de “religião popular”, pois está
sendo comercializada em massa, de maneira muito sofisticada, para uma “massa”
que já não é realmente um “povo”. E ela se apoia tanto, por exemplo, em
pesquisas avançadas sobre o cérebro e especulações da física pós-einsteiniana
quanto em tradições antigas como o xamanismo. A libertação espiritual é
pregada, e técnicas místicas que afirmam ser capazes de produzi-la são
ensinadas. Contudo, a Nova Era não pode ser caracterizada como religião
mística, já que a libertação em questão é abordada ou por meio de uma
metafísica falsa, ou por meio de verdadeiros princípios metafísicos retirados
de contexto, ou por meios puramente psíquicos — meios que são, por definição,
insuficientes para a libertação espiritual, uma vez que é justamente da
dominação da psique — o universo, sutil ou grosseiro, definido pelo ego humano
— que o Caminho espiritual existe para nos libertar. E a libertação espiritual
é apresentada pela Nova Era não como fruto da renúncia ao mundo, mas como
plenamente compatível com a busca mágica de metas mundanas, se não como a mais
poderosa magia de todas. O princípio central da Nova Era parece ser: “você pode
servir a Deus e a Mamom.”
Além disso, as
técnicas amplamente disseminadas são fantasias sem sentido, ferramentas
psicológicas úteis mas não espirituais, técnicas mágicas perigosas ou,
novamente, práticas místicas verdadeiras que só podem ser eficazes de modo
confiável dentro de uma tradição espiritual viva, possuidora de doutrina
ortodoxa e de uma compreensão prática de como a espiritualidade contemplativa
deve ser exercida, tanto no contexto doutrinal quanto no moral. Mas, se algo
caracteriza a espiritualidade Nova Era, é a redução da compreensão doutrinal ou
metafísica do universo, de sua relação com seu Princípio divino e da natureza
essencial desse Princípio a um conjunto de regras técnicas, juntamente com a
tendência de retirar métodos de prática contemplativa, ióguica ou mágica de
qualquer contexto moral, bem como de um contexto doutrinal suficiente. Se não é
exigido compromisso moral para operar um computador pessoal, tampouco é exigido
para a operação mágica do sistema nervoso humano e da manipulação das forças
sutis às quais esse sistema pode, sob certas circunstâncias, ter acesso. Para
qualquer pessoa com entendimento de verdadeira espiritualidade, seja devocional
ou contemplativa, o resultado inevitável de tal abordagem é dolorosamente
óbvio. Não é tão óbvio, infelizmente, para os praticantes da Nova Era, que
acreditam que sua experimentação perigosa e caótica com a consciência humana é
espiritualidade mística, e foram cuidadosamente treinados para rotular como “preconceito”
qualquer advertência ou expressão de preocupação daqueles que sabem mais do que
eles. Porém a falta de ouvintes em nada absolve os mais bem informados de seu
dever de falar.
Em livros como
Theosophy:
History of a Pseudo-Religion, The Spiritist Fallacy e The Reign of Quantity
and the Signs of the Times, o filósofo metafísico René Guénon pregou não contra a
religião popular mágica em si — a menos que o espiritismo seja considerado uma
forma atípica de religião popular moderna —, mas especificamente contra certos
movimentos mais sofisticados da era moderna — a teosofia, o ocultismo e outros
— que vão além das práticas populares “tradicionais”. Esses movimentos
representavam para ele não meras religiões “mundanas” do povo, sejam
efetivamente mágicas ou simplesmente supersticiosas, mas, em alguns casos pelo
menos, tentativas deliberadas e conscientes de subverter tanto a religião de
igreja quanto a espiritualidade mística por meio de uma mistura caótica de
elementos populares, espiritualidades místicas mal compreendidas ou
distorcidas, doutrinas heréticas e até formas de satanismo explícito. Ele
considerava o crescimento de tais movimentos como um dos primeiros sinais
claros da vinda do Anticristo e, portanto, como arautos do fim apocalíptico do
presente ciclo, após o qual um novo ciclo seria inaugurado por um novo avatāra
— evento chamado, em termos cristãos, de parousia, a segunda vinda de
Cristo.
A World Wide
Web
Uma das
expressões mais claras do pós-modernismo é a “cultura da informação”, cujo
“corpo místico” é a internet. Não há dúvida de que a World Wide Web é útil.
Facilita enormemente a pesquisa de imensos volumes de dados e possibilita
formas de comunicação criativa que jamais foram possíveis antes. O preço dessa
inegável amostra de “progresso” é, contudo, mais alto do que pode ser
compensado pelo melhor uso que dela se faça. (Como um amigo meu disse uma vez,
quando lhe perguntei para que servem os computadores: “Eles servem para lidar
com a explosão de informação criada pelos próprios computadores.”) Não é sempre
um pecado usar a internet, mas é sempre um perigo espiritual, cujo alcance e
profundidade não podem ser definidos apenas em termos do tipo de informação que
escolhemos acessar por meio dela. (Segundo um estudo recente, o uso da internet
produz sintomas de depressão e solidão. Um leve, porém estatisticamente
significativo aumento nesses sintomas pode surgir com apenas uma hora por
semana online.)
A internet é o
símbolo sociotecnológico perfeito do pós-modernismo. Não há “paradigma
abrangente” que dê ordem e coerência à visão de realidade que ela apresenta. A
“realidade” é simplesmente aquilo que o indivíduo configura de acordo com suas
necessidades, seus interesses, seus medos e seus desejos. Como o “inconsciente
coletivo” de Jung, a Web representa não uma realidade objetiva, material ou
metafísica, mas uma subjetividade massiva com consequências objetivas.
Poder-se-ia caracterizá-la como forma de treinamento coletivo em solipsismo ou
introversão autística, donde a proverbial inabilidade social do “nerd de
computador”. Nada existe senão o “eu” e seus tentáculos globais. Eu sou o
pensador; você é meu pensamento. O mundo é meu sistema nervoso.
A megalomania
potencialmente gerada pela fantasia — induzida pela Web — de que estou falando
ao “mundo inteiro” por trás de uma tela de anonimato eletrônico, aliada à
ausência de qualquer referência à realidade objetiva que possa reduzir essa
megalomania, garante que as visões menos objetivas e portanto mais extremas e
desequilibradas da “realidade” oferecidas na internet ganhem um poder
desproporcional ao seu valor intrínseco, especialmente dada a extrema
passividade que, lado a lado com a inflação do ego, é consequência inevitável
da supressão de qualquer senso de realidade fora do “eu”. A experiência, sem uma
relação viva com a verdade objetiva que a reabasteça, entra em um estado de
entropia acelerada. Tal entropia começou no Ocidente com a marginalização da
religião e a morte da metafísica, e agora parece caminhar, por analogia com a
segunda lei da termodinâmica, rumo a uma espécie de “morte térmica” do
significado, onde até mesmo a relativa objetividade representada por um mundo
comum de experiência sensível é marginalizada pelo domínio dos meios
eletrônicos. Se o fim teórico de um universo em expansão é a estagnação de uma
temperatura uniforme, o fim correspondente da explosão de informação parece
destinado a ser uma espécie de “temperatura uniforme do significado”, onde
boatos são elevados ao estatuto de fatos e fatos degradados ao nível de
opiniões arbitrárias, onde nenhum dado é mais significativo ou mais
significativo do que qualquer outro. Mas felizmente — ou infelizmente — tal
limite teórico de falta absoluta de significado não pode, de fato, ser
alcançado. Nas palavras de René Guénon em The Reign of Quantity and the Signs of
the Times:
“Depois do igualitarismo da nossa época” — a cultura da informação sendo uma
espécie de igualitarismo do significado — “voltará a haver uma hierarquia
visível e estabelecida, mas uma hierarquia invertida, na verdade uma autêntica
‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que estará, de fato, mais
próximo que qualquer outro do fundo do ‘poço do Inferno’.”
A internet, no
nível metafísico, é em certos aspectos uma inversão satânica da imanência de
Deus. Nicolau de Cusa, numa tentativa de representar essa imanência,
caracterizou Deus como “uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e
cuja circunferência não está em lugar nenhum”. Esta é uma descrição adequada da
internet. É a primeira utilidade aparentemente administrada por ninguém — ou
por todo mundo. (Aparentemente, porque, embora ninguém a administre, pessoas
como Bill Gates, que têm o poder econômico e técnico para explorá-la, estão
usando nossa experiência online — de que a “intenção configura a realidade” —
para ocultar o fato de que estão nos alimentando, como se fosse a própria
natureza primordial, com os termos, métodos e sistemas pelos quais somos
“livres” para configurá-la.)
O populismo
espiritual — que foi uma grande influência, via Peter Russell (The Global Brain), Barbara Marx Hubbard
e outros, no desenvolvimento da internet — sustenta que cada um de nós, no
plano da manifestação, é igualmente divino. A forma como a realidade é
configurada por mim não é, portanto, mais nem menos válida do que a forma como
é configurada por você. Acreditávamos que, se a verdade de que “o centro está
em toda parte” pudesse ser efetivamente realizada em escala global, então Deus
seria encarnado em nível massivo e a Terra seria salva. Mas, quando Nicolau de
Cusa disse que “o centro está em toda parte”, ele não quis dizer que a visão de
mundo de um pedófilo ou de um esquizofrênico paranoide tivesse o mesmo valor
que a de um crítico social dedicado como Noam Chomsky ou um filósofo espiritual
como Huston Smith. Ele quis dizer que o atman, a Testemunha Divina, é imanente em
todos os seres, incluindo todos os seres humanos. Embora o grau em que essa
Testemunha é realizada ou traída difira radicalmente de caso a caso, ela
continua sendo o núcleo transcendente de cada pessoa. A Testemunha Divina não é
a subjetividade de cada um de nós, mas precisamente aquilo que transcende essa
subjetividade e, ao fazê-lo, nos apresenta as coisas como são. Como Sujeito
Absoluto, o atman não é este ou aquele
ego subjetivo com sua configuração excêntrica da experiência; ele é Aquilo que
nada testemunha senão a Verdade Objetiva Absoluta. Só a “configuração” de
realidade de Deus — aquela Essência sem forma que é a Forma de toda forma — é
absolutamente verdadeira. O ato d’Ele de configurar abrange todos os nossos, do
criminoso ao santo; o santo é santo precisamente porque sua configuração se
aproxima mais da de Deus, o criminoso é criminoso porque dela se afasta o mais
radicalmente possível.
Colocar a
verdade de que “o centro está em toda parte” no plano das condições manifestas,
e não no plano de uma Realidade Absoluta transcendente que, no entanto, é
imanente em todas as coisas, é transformar a visão de Deus em todas as coisas
em uma “absolutização do relativo”, uma divinização da ilusão. É adorar avidyā-māyā, o universo das
condições na medida em que vela, em vez de revelar, o Absoluto. E um dos
símbolos universais dessa maya,
em muitas culturas e tradições, é a teia de aranha. Assim, a World Wide Web, em
sua tendência principal — embora não em seus usos inegavelmente valiosos — é
uma expressão de avidyā-māyā, o poder da
ignorância. E, como Marshall McLuhan nos ensinou, é a tendência principal que
conta: “o meio é a mensagem”. A forma essencial de um meio — ou de uma
tecnologia, como a energia nuclear ou a engenharia genética — tem efeito global
sobre a consciência e a sociedade maior do que aquilo que decidimos fazer com
ela. A forma essencial da World Wide Web, com seu dilúvio de informação
configurada subjetivamente (muito dela indistinguível de simples mentira), sua
negação da objetividade e a consequente supressão tanto do desprendimento
quanto do alcance intelectual, é bem expressa na declaração de Nietzsche: “Nada
é verdadeiro; tudo é permitido” — o grito de guerra do pós-modernismo em seis palavras.
Na Idade de
Ouro, a percepção se conforma, na medida do possível, à Realidade. Na Idade de
Kali, a percepção se afasta da Realidade, na medida do possível, e acaba
entrando em guerra com ela — guerra essa que a Bíblia chama de “Armagedom”.
Quando a percepção tornada ilusão virtual entra em guerra com a Verdade, a
Verdade deve assumir a forma irada de Kali, cuja essência não manifesta é
Shiva: a Realidade Absoluta como destruidora da ilusão do mundo.
Antes dessa
batalha última, porém, a objetividade reprimida, agora degradada do nível da
inteligência ao nível exclusivo do poder, retornará em forma negativa e falsa.
Onde nada é verdadeiro e tudo é permitido, aqueles que tomam o poder podem
configurar a realidade como se fossem o próprio Deus — mas configurá-la segundo
o quê? Com a verdade objetiva suprimida e o poder absolutizado, que realidade
podem os poderosos tomar como modelo segundo o qual esse poder possa ser
exercido? Nenhuma realidade além do próprio poder, o que significa: nenhuma
verdade senão o caos. Portanto, depois que os poderosos terminarem de tomar o
poder, o Anticristo tomará posse deles. O Anticristo, essa instabilidade
colossal, esse centro de subjetividade massiva erguendo-se contra a verdade
objetiva apenas por meio do poder, será a expressão universal, devastadora e
final do pós-modernismo. E a Web será sua Prostituta. O que é uma prostituta,
afinal, senão uma expressão do desejo humano de que a realidade objetiva se
conforme à fantasia subjetiva? E o que nos ensina a experiência de frequentar
prostitutas — se a objetividade algum dia nos libertar dessa experiência para
que possamos aprender com ela — senão que aqueles que desejam ter poder sobre
suas fantasias estão simplesmente entregando a suas fantasias poder sobre eles?
Isto é a Web:
observe e aprenda.
Pós-modernismo
e Globalismo
O
pós-modernismo é a ideologia religiosa, filosófica e cultural do globalismo.
Mas como isso é possível? Como uma unificação econômica e política do mundo
pode surgir de uma visão de mundo — ou de uma anti-visão de mundo — que exalta
a diversidade e define toda unidade, inclusive a unidade política, como
opressão?
A resposta
irônica é que a Unidade, que o pós-modernismo nega, é implicada em cada
declaração que ele faz, pelo simples fato de que toda afirmação de que o
conjunto da realidade é de tal ou qual modo — inclusive a afirmação de que ela
é múltipla, diversa e sem referente objetivo — é um exemplo dessa unidade. A
doutrina de que não há paradigma abrangente é, ela mesma, um paradigma
abrangente. Assim, embora a Unidade seja negada, é perpetuamente invocada; mas
invocar algo que é intelectualmente negado e emocionalmente temido é garantir
que isso se apresente em sua face mais negativa.
A Unidade é.
Se não a reconhecermos, ela não se expressará em termos de conhecimento, mas de
poder. Em outras palavras, a negação de todas as unidades, da qual a Unidade
metafísica é o princípio radical, garante que nenhuma visão possa subsistir
como rival da “unidade” do poder nu. O pós-modernismo derrete as religiões tradicionais,
as culturas e as formas de vida, e o poder assume o controle. Assim, o
pós-modernismo pavimenta o caminho para o globalismo, primeiro destruindo
qualquer visão que possa rivalizar com ele, e, em segundo lugar, criando um
nível de caos que clama por medidas repressivas — na crença equivocada de que o
caos é liberdade (ver Capítulo Seis). A Unidade é uma verdade metafísica. Se
for negada, reaparecerá não tanto contra quanto por meio dessa negação: e esse
é o sistema do Anticristo. Nos termos de René Guénon em O Reino da Quantidade, do Reinado da
Quantidade moderno-materialista, cujo fase terminal é o pós-modernismo, nasce,
em última instância, o Reinado da Qualidade Invertida, em que o igualitarismo
democrático é destruído não em nome da aristocracia, mas do caos, em benefício
daqueles magos socioeconômicos globalistas para os quais o caos cultural é algo
natural e o caminho mais direto para o poder. A diversidade, para eles, implica
aceitar a existência de uma classe dirigente global multiétnica, já que ninguém
que não consiga trabalhar com “ingleses, franceses, beduínos, japoneses,
asiáticos e negros” pode ser cosmopolita de forma eficaz segundo o modelo
atual. Como o bom comunista, o bom globalista aprende que raça não importa, que
cultura é um empecilho que pode e deve ser superado, e que tudo o que realmente
conta é a classe. Além disso, ninguém é mais útil na legitimação desses
costumes de “classe mundial” do que os supremacistas brancos (ou negros) e os
terroristas/ separatistas étnicos que representam sua imagem especular
invertida.
A fusão
cultural mundial é também uma maneira de a elite dirigente globalizar mercados,
padronizar tanto consumidores quanto força de trabalho e hipnotizar
permanentemente as massas, não apenas lançando um manto temporário de segredo
sobre suas ações, mas destruindo até o desejo humano normal de saber o que
realmente está acontecendo, por meio de uma ideologia que prega que, de fato,
nada está acontecendo fora das fantasias subjetivas do indivíduo isolado. E os
horrores do caos social, das armas de destruição em massa e da degradação
ambiental tornam tal ideologia insana muito atraente como fuga — para aqueles,
isto é, que ainda não optaram pelo suicídio assistido que Jack Kevorkian, esse
satanista pós-moderno perfeitamente contemporâneo e altamente relevante, se
dispõe de bom grado a lhes fornecer, com a bênção cada vez mais aberta do mundo
tal como é, e como está destinado a tornar-se.
Um dos
“profetas” dessa demência solipsista baseada no medo e na negação, curiosamente,
foi o pioneiro do LSD Timothy Leary. Perto do fim de sua vida, quando morria de
câncer, fez declarações como as seguintes: já que a Terra está morrendo, nosso
melhor recurso é viajar em massa para o ciberespaço, para a realidade virtual,
e deixar a Terra para trás; esta é a “nova fronteira” tecnológica e cultural.
Ele esqueceu apenas um detalhe: a realidade virtual ainda exige tanto o sistema
nervoso humano para experienciá-la quanto uma fonte de energia para alimentar
nossos computadores. Alimentos, água, abrigo e ar continuarão sendo
necessários, juntamente com usinas de energia e um “contrato de manutenção
estendido” para o caso de nossos computadores quebrarem.
Outras mentes
“menos desequilibradas”, no entanto, aparentemente imaginaram um meio de contornar
essas limitações: simplesmente faremos o upload de nossa consciência diretamente em
computadores que serão mantidos por robôs que não precisam de comida, água,
abrigo e ar.
Pois bem… a
cada um o seu. Mas voltemos ao pós-modernismo em um nível um pouco mais humano:
em toda essa “celebração da diversidade”, quem é que, de fato, está realizando
a verdadeira celebração? Não são os “locais” desclassificados atolados em
visões de mundo marginalizadas que um dia foram culturas, religiões,
civilizações. Não são os modernistas obsoletos celebrando unificações
“literárias” defuntas. Somente aqueles que são herdeiros dessas visões podem
realmente celebrar a diversidade: a elite global. Certamente uma espécie de
diversidade faz necessariamente parte da cultura de massa pós-moderna, uma
diversidade retratada como “riqueza” — mas a atenção estreitada e a visão em
túnel que a qualidade de descontinuidade supersônica e recortada dessa cultura
cria na maioria das pessoas impedem que se alcance o nível de “visão de conjunto”
em que essa “diversidade” possa sequer ser percebida, quanto mais “celebrada”.
E a multiplicação quantitativa dessa “diversidade”, em detrimento dos elementos
qualitativos sem os quais o próprio conceito de diversidade fica sem sentido,
torna a experiência pós-moderna, apesar de sua “riqueza” caleidoscópica,
estranhamente uniforme e morta. A consciência das massas tende a ficar presa,
cada vez mais irremediavelmente, no milésimo de segundo da reação ao estímulo,
desprovida tanto de um passado sabiamente contemplado quanto de um futuro
razoavelmente projetado — um modo de “consciência” que é precisamente a versão
do ego, a falsificação satânica, daquele Presente Eterno pelo qual Deus, como
Testemunha Absoluta em nós, contempla o mundo.
Apenas aqueles
que dispõem de poder cultural, econômico e tecnológico suficiente para comandar
a presença simultânea de muitas visões de realidade podem colocar uma
porcentagem significativa de toda a diversidade pós-moderna sobre a mesma mesa
de banquete ao mesmo tempo — mas nunca toda ela, e nunca por muito tempo:
porque a mudança desencadeada pela tecnologia global da informação é caótica e
rápida demais para que alguém consiga realmente acompanhar; porque a taxa de
desgaste e de substituição daqueles que administram o mercado global também se
acelera; e porque a destruição pós-moderna da consciência humana terá de
afetar, por fim, aqueles que esperam lucrar com ela — talvez mais rapidamente,
e certamente mais profundamente, do que afeta seus fantoches mais dóceis e seus
títeres mais vulneráveis. Aqueles que envenenam o poço acabarão,
inevitavelmente, obrigados a beber dele.
Uma
multiplicidade de visões só pode ser percebida a partir do ponto de vista de
uma Unidade abrangente. Mas a capacidade de perceber qualquer visão que não
seja a própria também é negada — implicitamente, se não abertamente — pelas
formas mais extremas de pós-modernismo, conforme a doutrina de que não há
percepção de uma realidade objetiva, mas apenas construção dela. Se a realidade
se baseia apenas em visões construídas, o mesmo vale para qualquer visão que
tenhamos da visão de outro — e como podemos celebrar a diversidade de visões se
negamos nossa capacidade de perceber objetivamente qualquer visão que não seja
a nossa?
O
pós-modernismo toma da fenomenologia o imperativo de ver com os olhos dos
outros, de andar um quilômetro nos sapatos deles. Mas também toma a negação de
uma única verdade objetiva, o que leva à absolutização do subjetivo, implicando
necessariamente a absolutização da minha subjetividade, o que, por sua vez,
torna impossível ver com os olhos alheios. O pós-modernismo é, então, o gesto
desesperado de um solipsista (eu, é claro) na direção de outros solipsistas
conjecturais cuja existência ele precisa negar justamente enquanto lhes sinaliza
por meio da fumaça.
Mas nem isso é
o fundo do pântano pós-moderno. Sem a presença libertadora e estabilizadora de
uma realidade objetiva fora do “eu”, onde todos os pontos de vista subjetivos
possam convergir, tudo é ego — e o ego não é definido pela verdade, mas pelo
poder. Esse ego, no entanto, por não possuir realidade intrínseca, é de fato a
mais fraca de todas as pseudo-realidades imagináveis. Como tal, seu solipsismo
está destinado a ser devorado por um solipsismo maior, uma irrealidade maior, uma
fraqueza mais poderosa — pelo regime daqueles que, em nome do poder,
esvaziaram-se mais completamente de realidade, a serviço daquela maior
irrealidade, daquela fraqueza mais poderosa de todas — o Anticristo. Nas
palavras de Guénon:
“O Anticristo
deve evidentemente estar tão próximo quanto possível da ‘desintegração’, de
forma que se poderia dizer que sua individualidade, ao mesmo tempo em que se
desenvolve de modo monstruoso, está quase aniquilada, realizando assim o
inverso do apagamento do ‘ego’ diante do ‘Si-mesmo’, ou, em outras palavras,
realizando a confusão no ‘caos’ em oposição à fusão na Unidade principial...” (The Reign of Quantity, p. 327).
A irrealidade
deliberadamente buscada e meticulosamente engenhada do mundo pós-moderno é
também, de forma análoga, uma falsificação satânica da doutrina budista da
“vacuidadão” dos fenômenos. Para os budistas, o mundo fenomenal em sua
realidade essencial — aos olhos de quem está plenamente desperto — é vazio de
natureza própria, vazio de qualquer limitação relativa ou contingente. A
vacuidadão das coisas é uma só com sua “talidade”, o que equivale a dizer que
as coisas estão livres de todas as definições limitadoras porque são, em
essência, incomparáveis. Todas as formas são manifestações de seu Princípio absoluto,
que não é, porém, um objeto cognitivo separado; o saṃsāra é ele mesmo o Nirvana.
Para o pós-modernista, em contrapartida, as formas são “absolutamente”
relativas. Nada existe nelas além de sua natureza própria, relativa e
indefinível como é, e é essa sua “vacuidadão”. Em sua limitação impermanente e
contingente, “como tal”, são tudo quanto existe; são opacas e nada manifestam;
não há Nirvana, nenhuma natureza búdica nelas, apenas um saṃsāra que jamais pode ser
visto como é — isto é, como um mundo de ilusão baseado no desejo e na
ignorância — porque não existe Verdade libertadora além dele à luz da qual sua
natureza ilusória possa ser apreendida. Não há saída.
Pós-modernismo
e Paranóia
Michael
Kelley, num artigo intitulado “The Road to Paranoia” (The New Yorker, 19 de junho de 1995),
cunhou o termo “paranoia de fusão” (fusion paranoia) para descrever a
convergência das franjas lunáticas tanto da esquerda quanto da direita, somadas
aos porta-vozes de paranoias especializadas de todos os quadrantes, num caldo
geral antigoverno e antiglobalista temperado com bastante racismo e incipiente
terrorismo doméstico. Ele também aponta como a paranoia se tornou muito mais
aceitável no “mainstream” da vida política americana. “Numa era de paranoia de
fusão”, escreve Kelley, “já não se faz qualquer distinção entre acusações
críveis e calúnias totalmente infundadas. Qualquer sugestão de mal
conspiratório contra um político de destaque, por mais extrema que seja a
acusação ou por mais escassa que seja a evidência, desliza das margens da
política até o centro, em uma espécie de esteira rolante que o transporta dos
delírios de grupelhos marginais da direita e da esquerda para a zona
respeitável do discurso público”.
Essa paranoia
institucionalizada é parte integrante do ethos pós-moderno. Se não há verdade
objetiva, não há como distinguir entre acusações plausíveis e boatos
delirantes. Se não há verdade objetiva, qualquer visão estabelecida da
realidade é automaticamente suspeita; só pode ser entendida como uma
conspiração dos poderosos contra os fracos (o que, evidentemente, às vezes é o
caso). Se não há verdade objetiva, qualquer um que consiga lançar um boato que
não possa ser definitivamente desmentido — processo que a internet parece ter
sido especificamente desenhada para facilitar — pode sentir que, como o próprio
Deus Todo-Poderoso, criou uma “realidade” a partir do nada.
O que
exatamente é paranoia? É a tentativa da mente humana de alcançar um fechamento
cognitivo em uma situação que não o permite, seja porque há informação de menos
para justificá-lo, seja porque — como no caso do esquizofrênico paranoide — há
informação demais para fazer sentido, a não ser por meio do delírio.
Nossa cultura
de informação pós-moderna é perfeitamente desenhada para criar paranoia. Ela
nos obriga a processar informação demais; e esse “demais” é, em outro sentido,
também “de menos”, já que, à medida que a quantidade de fatos (ou conjecturas,
ou fantasias) aumenta, nossa certeza a respeito da verdade de qualquer fato
isolado diminui. Como tentativa de alcançar o fechamento cognitivo, porém, a paranoia
não é mais do que uma faculdade humana normal e necessária que assumiu forma
distorcida e patológica: a capacidade de criar um ponto de vista estável, uma
visão de mundo coerente e unificada. Em um mundo que nega a existência de algo
como verdade objetiva, essa faculdade normal é forçada a trabalhar até atingir
um estado de insanidade, como as filhas de Dánao no inferno tentando tirar água
com uma peneira.
A prevalência
da paranoia em nossa cultura é a prova de que não estamos à vontade com o
pós-modernismo, de que a disposição de adiar permanentemente o fechamento
cognitivo, exigida pelo pós-modernismo, vai contra a natureza humana. É uma
forte evidência de que jamais ficaremos realmente confortáveis com a ideia de
que não existe verdade objetiva. E é aí que reside o maior perigo do
pós-modernismo: em sua compreensível tentativa de evitar ideologias
totalitárias, ele acumula no inconsciente coletivo, por meio de seu próprio
“relativismo totalitário”, um desejo profundo pela Unidade perdida que antes era
proporcionada pela religião, pela metafísica e pela intuição intelectual de
Deus. Quando nosso cansaço com o caos e o relativismo chegar ao ponto de
ruptura — que será também o ponto em que nossa capacidade de reconhecer a
verdadeira Unidade objetiva e metafísica estará mais profundamente erodida —
então nosso desejo inconsciente por essa Unidade irromperá explosivamente. E
aquele que conseguir melhor satisfazer esse desejo, em escala global — por mais
irreais que sejam suas promessas, já que nosso senso coletivo de realidade
estará então em seu nível mais baixo — assumirá o papel de Anticristo.
As Religiões
Globalistas
É lógico supor
que, em algum lugar dos conselhos dos grandes, ideias e propostas como as
seguintes estejam sendo seriamente discutidas:
“Todas as
civilizações estáveis conhecidas da história se basearam, de uma forma ou de
outra, na religião. As religiões tradicionais são divisivas, causam guerras e
instabilidade social, porque nenhuma delas está destinada a triunfar, em
definitivo, em escala global; estarão sempre em conflito. A Nova Ordem Mundial
global, portanto, precisa de uma religião própria.
“Nenhuma
religião vem realmente de ‘Deus’; todas são criações da mente humana.
Essencialmente, são expressões de nosso potencial humano. Os maiores
engenheiros sociais da história foram os sacerdotes, que, por meio de um árduo
processo de tentativa e erro, descobriram as leis que regem o estabelecimento
da estabilidade social e a orientação de todos os recursos humanos de uma
determinada civilização rumo aos objetivos centrais dessa civilização. Quando a
civilização global da Nova Ordem Mundial se tornar uma realidade, haverá um
perigo real de que seja destruída, entre outros fatores, por guerras entre
religiões. Por isso, devemos criar uma nova religião que supere todas as
outras, tomando de cada uma o que tem de melhor, mas deixando para trás sua
tendência à divisão e sua oposição ao progresso. Devemos à paz e à segurança do
mundo o estabelecimento de tal religião.
“Essa nova
religião deve combinar os arquétipos míticos mais profundos do passado humano
com uma exaltação da tecnologia e da unidade mundial. A forma exata que
assumirá ainda não é conhecida; ainda estamos na fase de pesquisa e
desenvolvimento. Daremos nosso patrocínio a várias religiões experimentais,
observaremos como funcionam e analisaremos seus efeitos sobre as sociedades
nacionais e globais, bem como suas interações com as religiões tradicionais. O
que fracassar, descartaremos; o que funcionar, incorporaremos.
Diversas
“novas religiões” já captaram, ao menos em linhas gerais, nossos planos nesse
sentido. Estão começando a bater à nossa porta, solicitando nosso patrocínio.
Algumas serão rejeitadas, outras adotadas como programas piloto. Assim, cresce
um intercâmbio frutífero entre as tendências religiosas que surgem na base das
massas e os resultados de nossas próprias experiências de propaganda e de
engenharia social. A Igreja da Cientologia, o culto do ‘Maitreya’ de Benjamin
Creme, o EST e seus sucessores, os seminários de treinamento Avatar, os vários
cultos ufológicos, a Igreja da Unificação de Sun Myung Moon... todos têm algo a
nos ensinar. Tomaremos de cada um o que pareça útil e descartaremos o que não
se mostrar eficaz no campo.”
Quem
exatamente é esse “nós”, nesse cenário, não está claro. Os planejadores da
religião global são um único “comitê gestor”, a espécie de ideia simplista que
atrai imediatamente paranóicos de todos os cantos? Representam apenas a
“cultura” semiconsciente das corporações multinacionais? Ou a verdade está em
algum ponto intermediário?
No “Millennium
Summit” de Ted Turner, em 2000, ouviu-se um estrondoso apelo para sufocar o
proselitismo religioso; sentimentos semelhantes foram expressos em outros
setores do ecumenismo liberal. Parece que as elites globais querem usar a
legítima preocupação com os excessos de missionários ocidentais no Oriente para
restringir o direito de todas as religiões de fazer conversões. Se todas as
religiões apontam para a mesma Realidade, segundo a argumentação, então as
diferenças religiosas são meras disputas de território. As religiões não passam
de “expressões culturais” mediadas ou pelos acidentes de nascimento ou por
“escolhas de estilo de vida”; afirmar que uma religião é verdadeira em qualquer
sentido é como afirmar que apenas uma marca de sabão ou um modelo de automóvel
é válido. Que fiquem restritas a seus próprios territórios, como atrações
turísticas pitorescas. E que não reivindiquem propriedade sobre esse
território; todo o solo pertence às elites. Sob o globalismo, a religião deve
ser “federal”, com direitos religiosos severamente limitados, tal como os
direitos dos estados foram limitados após a Guerra Civil americana.
George Bush,
ex-presidente dos Estados Unidos e ex-diretor da CIA, discursou no fim dos anos
90 em uma convenção da Igreja da Unificação, que então planejava criar uma
comunidade de “fusão mundial”, possivelmente no Brasil, na forma de um
agrupamento de pequenas comunidades, cada uma representando um país-membro da
ONU. Por que um “estadista” da estatura de Bush se interessaria pelos moonies,
que na opinião pública não passam de uma seita desacreditada de vendedores de
flores lavados cerebralmente?
O Parlamento
Mundial das Religiões, que continua a se reunir regularmente, representa uma
tentativa inicial desse tipo de ecumenismo quase político. Na data em que
escrevo, a United
Religions Initiative
— que, em parte, cresceu a partir do Parlamento — esforça-se para organizar as
religiões do mundo em um conselho permanente nos moldes da ONU; possui sólido
apoio financeiro e já está organizada em 58 países. E certamente veremos muitas
tentativas semelhantes no futuro. Essas incursões no ecumenismo global foram,
até agora, em grande parte, domínio de idealistas impraticáveis, distantes dos
centros reais de poder internacional. A emergência de uma “Nova Ordem Mundial”
global, contudo, pode ter mudado tudo. Dado que o imperialismo econômico e
cultural global reacendeu movimentos separatistas “tribais” em todo o mundo,
muitos dos quais motivados religiosamente — a Revolução Iraniana sendo apenas o
maior e mais óbvio exemplo —, o impulso para homogeneizar as religiões do mundo
em nome da estabilidade política e econômica sobe cada vez mais na pauta das
elites globalistas.
A ideia de que
a antiga sabedoria espiritual e as novas “tecnologias” religiosas (no jargão da
cultura corporativa) despertam grande interesse nas elites globais só é
estranha para quem jamais investigou essa possibilidade. Recordo um dia, nos
anos 80, em que me sentei, na condição de amigo de um amigo, nos jardins de um
palacete em uma colina de Hillsboro, Califórnia, com executivos da
Hewlett-Packard e seus consultores de treinamento espiritual — Nova Era em
tudo, exceto no nome. Dependendo da visão de realidade que o leitor adote, eu
estava ou diante de uma sombria conspiração yuppie, ou privilegiado por acompanhar uma
convocação de idealistas puros. E idealistas eles eram. Desejavam sinceramente
trabalhadores saudáveis e felizes, intercâmbio criativo entre empregados e
administração, proteção do meio ambiente (dentro dos limites do lucro), uma
visão do papel social do setor corporativo pautada pelos mais elevados
princípios espirituais, tal como os entendiam — uma situação win/win para todos. Sem
dúvida, estavam inventando uma nova religião global à medida que avançavam; e o
que haveria de errado nisso? Eram a vanguarda do progresso global, da nova
cultura de informação que transformava o mundo. Que lugar melhor para valores
espirituais e ideais éticos elevados?
O único
problema era que eles não acreditavam em Deus — ao menos não em um Deus que, em
relação a nós, se não em Sua própria Essência, fosse capaz de intenção
consciente e ação independente. A espiritualidade era seu experimento, seu
produto, sua propriedade. Obediência a normas transpessoais, estabelecidas pelo
Criador por meio da revelação de Sua Vontade a avatares, santos e profetas, não
fazia parte de seu vocabulário de ideias. Lembro-me de ter brincado com o amigo
que me convidara para aquele encontro, imaginando um anúncio de revista que dizia:
INFORMAÇÃO.
O SUMO BEM.
“Claro”,
respondeu ele. “O que tem de engraçado nisso?”
Ecumenismo
Liberal vs. Ecumenismo de Frente Unida
Os cristãos
conservadores tendem a se ver como os únicos que percebem qualquer perigo no
pós-modernismo e na Nova Era. E amontoam as espiritualidades New Age junto com
todas as religiões orientais e as espiritualidades nativo-americanas como parte
do que o Pe. Seraphim Rose chamou de “a religião do futuro” — o regime do
Anticristo. Infelizmente, eles têm razões reais para enxergar as coisas dessa
maneira.
Hinduísmo e
budismo penetraram na cultura norte-americana em grande parte por meio da
contracultura dos anos 60 (e antes), que também abraçou — ou apropriou de
maneira deturpada — ideias religiosas nativo-americanas. (Black Elk Speaks e, naturalmente, O Livro Tibetano dos
Mortos
eram presença comum nas estantes hippies.) Muitos mestres budistas tibetanos
neste país parecem ainda manter laços com a contracultura; uma cultura
“alternativa” de tonalidade geralmente neopagã acolhe com entusiasmo os lamas,
muitos dos quais não veem motivo para se diferenciar dela. (Nem todos os
mestres tibetanos, porém, compartilham desse espírito; dizem-me que o irmão do
Dalai Lama, o Dr. Thubten Jigme Norbu, tem sérias reservas quanto à Nova Era.)
Assim, a “espiritualidade de fusão mundial”, que inclui um cristianismo
ultra-liberal, o budismo ocidental, o hinduísmo ocidentalizado, várias
espiritualidades nativo-americanas comercializadas (da semitradicional à
totalmente espúria), o neopaganismo, a New Age e certas vertentes do chamado
sufismo, é uma realidade neste país. Sua existência parece confirmar a visão
dos cristãos conservadores de que apenas o cristianismo pode opor-se ao
“mundo”, ao pós-modernismo, aos “falsos profetas” da Nova Era que anunciam a
vinda do Anticristo.
As doutrinas
da Escola Tradicionalista, porém, demonstram que as grandes religiões reveladas
do mundo — hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo — possuem
entre si uma afinidade intrínseca muito maior, infinitamente maior, do que
qualquer uma delas possui com o neopaganismo ou a Nova Era — tendências sociais
mais ou menos irônicas à parte. Um ecumenismo liberal que ignore ou comprometa
a doutrina é apenas destrutivo para a causa da religião. Um ecumenismo de
frente unida, que busque um entendimento comum, entre as religiões reveladas,
das forças espirituais, culturais e intelectuais que ameaçam todas elas — entre
as quais não se incluem apenas o pós-modernismo, o globalismo, o separatismo
étnico e religioso militante, mas também as doutrinas neopagãs e de Nova Era —,
e que o faça sem confraternização vazia nem concessão doutrinária frouxa, é uma
possibilidade bem mais frutuosa.
Tal
entendimento inter-religioso incluiria não apenas respeito pelas diferenças
teológicas, mas também uma vontade mútua de acentuar as particularidades
doutrinárias: que os judeus sejam mais judeus, os cristãos mais cristãos, os
hindus mais hindus, os budistas mais budistas, os muçulmanos mais muçulmanos,
no reconhecimento de que a Única Verdade só pode ser abordada através das
formas particulares da revelação divina, não por meio de algum denominador
comum ético ou doutrinário mínimo em que todas as religiões possam concordar —
nem através de qualquer “comitê de supervisão” quase político que possa
emergir, via United Religions Initiative ou tentativa similar, em seu nome.
A base de tal
entendimento seria o princípio que Frithjof Schuon chamou de A Unidade
Transcendente das Religiões, segundo o qual os caminhos representados pelas
diversas revelações ortodoxas só podem finalmente convergir no plano do
Transcendente, em Deus mesmo.
Essa doutrina,
infelizmente, é altamente suscetível de má interpretação, o que constitui um de
seus aspectos escatológicos: ela deve ser anunciada e deve — pelo menos por
alguns — ser mal interpretada. Para dar apenas um exemplo, William E. Swing,
bispo episcopal da Califórnia, que apresenta uma versão da Unidade
Transcendente das Religiões em The Coming United Religions — manual da United
Religions Initiative — baseado numa leitura imprecisa da introdução de Huston
Smith à The
Transcendent Unity of Religions de Schuon, afirma que “a distinção importante
não é entre as religiões, mas entre as pessoas dentro de cada religião” — os
exotéricos e os esotéricos. Os esotéricos “intuem que, em última análise, estão
em unidade com pessoas de outras religiões porque todos se reúnem no ápice, no
Divino”, enquanto os exotéricos “pretenderiam vincular a forma de fé ao
conteúdo ou à verdade final de sua própria fé” (p. 59). Os exotéricos são,
portanto, exclusivistas, ao passo que os esotéricos são universalistas.
Segundo
Schuon, porém, o fato de que mais de uma religião é necessária neste mundo
manifestado é também uma verdade esotérica, razão pela qual ele caracteriza as
diversas revelações divinas como “relativamente Absolutas”. Em Christianity/Islam:
Essays in Esoteric Ecumenism, ele diz:
“Toda
religião, por definição, quer ser a melhor, e ‘deve querer’ ser a melhor, como
um todo e também no que diz respeito a seus elementos constitutivos; isto é
simplesmente natural, por assim dizer, ou melhor, ‘sobrenaturalmente
natural’... As oposições religiosas não podem deixar de existir, não apenas
porque as formas se excluem umas às outras... mas porque, no caso das
religiões, cada forma veicula um elemento de absolutidade que constitui a
justificativa de sua existência; ora, o absoluto não tolera alteridade, nem,
com muito mais razão, pluralidade. ... Dizer forma é dizer exclusão de
possibilidades, donde a necessidade de que as possibilidades excluídas venham a
se realizar em outras formas...” (p. 151)
O objetivo
primordial de um ecumenismo de frente unida seria opor-se tanto ao sincretismo
globalista quanto ao separatismo étnico/religioso militante, não
necessariamente por meio de modo algum de forma ostensiva — a menos que Deus
queira o contrário, e quem pode dizer que não quererá? — mas para ajudar as
religiões tradicionais a purificar suas doutrinas da influência dessas forças.
Talvez pouco se possa fazer para reverter a degeneração da religião em nível
coletivo, mas ainda é possível, e certamente vale a pena, definir com mais
clareza a verdadeira encruzilhada entre a Unidade Transcendente das Religiões e
um sincretismo globalista que de modo algum é expressão da
unidade-na-multiplicidade da autorrevelação de Deus, mas apenas a sua
caricatura — um falso imitado pela esperteza da mente humana que tenta operar
para além dos limites dessa revelação, nas trevas exteriores.
Quem são os
Tradicionalistas?
NESTE capítulo
apresento um breve panorama das doutrinas da Escola Tradicionalista, com base
nas obras do fundador da escola, René Guénon, e ainda mais nas do recentemente
falecido mestre da escola, Frithjof Schuon, aplicando-as às condições sociais
atuais e contrastando-as com as ideias falsas e autodestrutivas sobre as quais
o mundo pós-moderno se apoia. As doutrinas metafísicas centrais eu extraio
sobretudo de Schuon; a crítica profética do mundo moderno, em maior medida de
Guénon.
As verdadeiras
ideias são coisas vivas. Cada mente que as acolhe e cada situação a que as
aplicamos faz surgir novos aspectos de seu sentido uno e imutável. Quem são os
Tradicionalistas?
Os escritores
tradicionalistas tratam principalmente da metafísica tradicional, que nada ou
quase nada tem a ver com a maior parte do que se encontra na seção de
“metafísica” da livraria do seu bairro: livros sobre magia, poderes psíquicos e
encontros com OVNIs.
Metafísica é teologia e/ou filosofia mística; tem mais a ver com Platão e Santo
Agostinho do que com Aleister Crowley ou Terry Cole-Whitaker.
A maioria das
pessoas que hoje investiga religião e espiritualidade tende a ficar com a
impressão de que há apenas duas escolhas básicas: a Direita cristã
fundamentalista, ou o mundo que inclui o judaico-cristianismo liberal, as
religiões orientais, o neopaganismo e a Nova Era. Trata-se, obviamente, de uma
simplificação grosseira, já que há muitos cristãos liberais e membros de
religiões orientais que não se identificam com a Nova Era, bem como formas não
cristãs de “fundamentalismo”, como as de alguns muçulmanos (embora de modo
algum todos), judeus, ou mesmo hindus. Mas, em linhas gerais, a pessoa
interessada em religião, mas ainda sem compromisso sólido, tende a ser puxada
numa dessas duas direções. E, se ela não consegue se identificar com nenhuma
delas, a perspectiva de um compromisso religioso sério parecerá bastante
sombria, e o cinismo em matéria de religião parecerá a única resposta madura.
É aí que
entram os Tradicionalistas. Como alguns liberais, eles reconhecem a validade de
todas as grandes religiões do mundo; mas, ao passo que os Liberais costumam
prestar mero tributo verbal à mística, retirando-a de seu verdadeiro contexto,
os Tradicionalistas reconhecem na mística e na metafísica o verdadeiro centro e
profundidade de toda tradição religiosa, a profundidade em que podemos dizer,
com propriedade, que cada religião, a partir de sua perspectiva necessariamente
única, fala da mesma Realidade divina.
Por outro
lado, como os cristãos conservadores, eles entendem que uma tradição religiosa
é algo sagrado, que não pode ser alterado ao sabor da moda sem ser destruído, e
que misturar caoticamente elementos de diferentes religiões, na tentativa de
criar algum tipo de salada ecumênica, é profanar a própria religião, já que é
tão necessário que Deus Se revele em formas religiosas diferentes e únicas
quanto é necessário que existam seres humanos diferentes e únicos. Os liberais
se enganam ao pensar que o único tipo válido de ecumenismo é o sincretismo, a
mistura de religiões. E os conservadores também estão errados, não apenas
porque não conseguem ver o Divino operando em outras religiões além da sua, mas
também porque não sabem distinguir as alturas da mística e da filosofia
metafísica da busca mais frívola e perigosa por poderes mágicos e psíquicos, e,
consequentemente, tendem a extirpar vastas áreas de sua própria tradição. Os
Padres da Igreja que foram grandes metafísicos, como Clemente de Alexandria ou
Gregório de Nissa, não podem ser comparados a L. Ron Hubbard; os grandes
místicos cristãos, como Mestre Eckhart ou São João da Cruz, não devem ser
confundidos com Carlos Castaneda. Pelo que posso perceber, somente os
Tradicionalistas realmente compreendem esses princípios. Como não são nem
liberais caóticos nem conservadores exclusivistas, representam uma autêntica
“terceira força” na religião de hoje.
Quem é o
Sábio?
Todos temos
alguma ideia do que seja um “santo”. Quando ouvimos a palavra, pensamos em
alguém como Madre Teresa, ou em uma figura quase mítica, como São Pedro ou São
Francisco, que viveu há muito tempo. Mas o que é um “sábio”? Se o santo é um
exemplo de santidade, de uma bondade profunda e muitas vezes heroicamente
autossacrificial, que qualidade o sábio exemplifica?
A qualidade em
questão é o “conhecimento”. Hoje somos condicionados socialmente a pensar o
conhecimento como informação, e a informação quase exclusivamente em termos de
“dados duros”: informação técnica e fatos bem estabelecidos. Como disse o poeta
T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que se perdeu no conhecimento? Onde está o
conhecimento que se perdeu na informação?” Definimos um amontoado de pequenos
pontos factuais digitalizados como “informação”, esquecendo que a palavra
originalmente significava “aquilo que nos forma por dentro”. Essa crença, de
que apenas o conhecimento factual ou técnico é objetivamente válido, é tão
penetrante que não me choquei tanto quanto deveria ao ouvir recentemente uma
mulher, numa estação de rádio cristã, dizer que “não é preciso ser cientista de
foguetes” para entender determinada doutrina — insinuando, para mim, a ideia de
que talvez haja doutrinas mais difíceis que apenas um cientista de foguetes
poderia compreender, de que a sabedoria metafísica é apenas uma espécie de
competência técnica.
Por outro
lado, um dos escritores tradicionalistas, Wolfgang Smith, é cientista de
foguetes; foi ele quem desenvolveu as equações que permitem às espaçonaves
reentrar na atmosfera terrestre sem se incinerarem. Assim, a objetividade do
grande cientista e a do sábio metafísico não são inteiramente alheias uma à outra.
Ainda assim, permanece verdadeiro que acreditamos falsamente que todo
conhecimento objetivo deve ser científico ou técnico por natureza; a ideia de
que poderia existir um nível superior de objetividade, que trate das coisas
espirituais, é completamente estranha a nós.
A mente
contemporânea está dividida em dois compartimentos principais: o conhecimento
científico ou prático é considerado “objetivo”, ao passo que o conhecimento
“espiritual”, na medida em que admitimos que exista algo assim, é visto como
“subjetivo”, o que significa que tendemos a tomar nossas impressões das coisas
como absolutas nesse domínio; já que o conhecimento espiritual é subjetivo por
definição, que outro indivíduo, credo dogmático ou autoridade tradicional tem o
direito de questionar minhas impressões? Que fiquem satisfeitos com as próprias
impressões — esse é o “direito” deles — e me deixem com as minhas, visto que
qualquer tentativa da parte deles de converter-me ao seu modo de pensar, usando
o argumento impossível e injusto de que suas crenças são de algum modo
“objetivamente verdadeiras”, nada mais é do que uma tentativa vampírica de me
transformar neles.
É assim que a
maioria de nós reage hoje quando confrontada com doutrinas religiosas e ideias
filosóficas, e esta é uma das razões pelas quais, ao menos em meios “liberais”,
a psicologia está substituindo a teologia. Desde que Descartes operou a cisão
radical entre corpo e mente, “objetivo” passou progressivamente a significar
material, e “subjetivo”, psicológico; por conseguinte, a noção de que existe um
campo objetivo de verdade espiritual foi gradualmente desaparecendo, com o
resultado de que tudo o que é espiritual, por ser considerado essencialmente
subjetivo, foi reduzido ao psicológico, às produções da mente individual isolada
alimentando-se das próprias impressões. E o conceito junguiano de uma
subjetividade massiva — o “inconsciente coletivo” —, embora verdadeiro e útil
em seu próprio nível, de modo algum restaurou a visão de uma ordem espiritual
objetiva; apenas a substituiu por uma paródia da verdade, ao menos na mente
daqueles que confundem psicologia com metafísica, tornando muito mais difícil
que a verdadeira verdade metafísica venha a ser compreendida.
É este estado
de coisas que Frithjof Schuon passou a vida tentando remediar; e esta é uma
obra que apenas um sábio pode realizar. Cabe aos santos superar o orgulho, o
vício e o egoísmo, primeiro em si mesmos e depois, na medida do possível, na
sociedade ao seu redor. Cabe ao sábio, ao contrário, superar a ilusão e a falsidade,
primeiro na própria alma e, em seguida, na sociedade que ele ou ela enfrenta.
Devemos lembrar, porém — e Schuon nos recorda isso continuamente — que
santidade e sabedoria estão intimamente ligadas. Ninguém com alma viciosa pode
atingir um conhecimento profundo e estável de Deus e de Sua relação com o
universo que é Sua manifestação; inteligência, tal como a entendemos
normalmente, combinada a um interesse por ideias metafísicas, somada ao acesso
aos escritos dos grandes metafísicos da história, não basta para fazer um
sábio.
O outro
requisito é a pureza de coração, pois é preciso ser pura, ou digamos
“virginalmente”, receptivo à Verdade divina para que essa Verdade se torne uma
“realização” e não simplesmente um objeto intelectual que possuímos como
possuímos uma casa ou um automóvel. Não se exige perfeição; tanto santos quanto
sábios são tentados e às vezes caem. O que se exige é uma ausência de
resistência fundamental à perfeição que Deus reserva para nós — uma essência
aberta ao Conhecimento por meio da Bondade, já que sabe que a Verdade Absoluta
é também o Sumo Bem.
Poucos ouviram
falar de Frithjof Schuon, embora o pequeno número dos que o ouviram em
profundidade inclua pessoas da estatura do poeta T. S. Eliot, que disse de seu
primeiro grande livro, The Transcendent Unity of Religions: “não encontrei obra
mais impressionante no estudo comparativo da religião oriental e ocidental”; e
do professor Huston Smith, que escreveu sobre Schuon: “Em profundidade e
amplitude, um paradigma de nosso tempo. Não conheço pensador vivo que comece a
rivalizar com ele.”
E essa
tendência de falar aos poucos, e de encontrar poucos caminhos de acesso à mente
popular ou mesmo ao mundo acadêmico, se não é exatamente como deveria ser, é,
contudo, como tem de ser. “O segredo protege a si mesmo.” E, num mundo
contemporâneo inundado de ilusões venenosas, uma voz que não compartilha
nenhuma das suposições sobre as quais se baseia toda a mentalidade moderna, e
que fala sem compromissos a partir do ponto de vista da verdade objetiva,
necessariamente cairá, em sua maior parte, em ouvidos moucos. Como na parábola
evangélica, ainda que a semente seja fértil, se cai em solo pedregoso nada
brota. E, no entanto, também é verdade — especialmente em nossos tempos, mas em
certa medida em todos os tempos — que é difícil prever onde solo fértil pode
aparecer.
Os verdadeiros
intelectuais metafísicos têm grande dificuldade hoje em se encontrar. Por um
lado, o mundo acadêmico perdeu em grande medida o amor pela sabedoria enquanto
tal, e os “intelectuais” favorecidos pela sociedade são essencialmente
propagandistas a soldo das grandes empresas e dos grandes governos. Por outro
lado, o mundo do ocultismo, da psicologia, das religiões “alternativas” e da
espiritualidade “Nova Era” não se interessa mais por metafísica tradicional do
que a “intelligentsia”. Embora possa prestar tributo verbal a algumas das
grandes figuras da história da metafísica e da mística, retira-as de seu
contexto tradicional e ou as esvazia de todo sentido, ou as perverte a ponto de
fazê-las representar ideias diametralmente opostas às suas doutrinas reais.
Para o
cristianismo conservador, “mística” é quase um palavrão. O cristianismo liberal
às vezes parece valorizar mística e metafísica, mas, na realidade, vê as coisas
muito mais em termos de sociologia, história, psicologia e ciências físicas. E
as várias religiões orientais no Ocidente ou fazem causa comum — muitas vezes
por simples inércia — com a Nova Era e/ou várias atitudes antitradicionais, ou
então permanecem encapsuladas na veneração de seus próprios mestres e gurus,
que podem ou não ser verdadeiros santos ou sábios representando a essência viva
de suas respectivas tradições, mas que, em todo caso, geralmente não conseguem
criticar de forma eficaz as atitudes do mundo moderno, nem sempre preservam a
plenitude de suas próprias doutrinas tradicionais diante dele.
Diante desse
estado de coisas, Frithjof Schuon e os outros escritores de sua escola, vivos
ou mortos, representam uma alternativa metafísica à religião estreita e reacionária
dos fundamentalistas e à religião informe e caótica — se ainda podemos usar
esse nome — dos liberais e da Nova Era. No seu melhor, eles oferecem uma via
que vai além tanto do exclusivismo religioso fanático quanto do sincretismo
amorfo de uma “espiritualidade de fusão mundial”, que, em muitos aspectos,
representa os primeiros movimentos do regime global do Anticristo.
O que é
Metafísica?
A língua
inglesa está cheia de “palavras caídas”, palavras que outrora carregaram todo
um peso de significado, mas que agora foram reduzidas a sombras de si mesmas.
Termos outrora precisamente exatos, compreendidos por todas as pessoas
instruídas, tornaram-se clichês, quando não tiveram seus sentidos efetivamente
invertidos. Palavras outrora cheias de alusão, ressonância e profundidade de
implicação ficaram chapadas.
Uma dessas
palavras é “metafísica”. A seção “metafísica” da sua livraria local
provavelmente conterá livros que nada têm a ver com o que a palavra
“metafísica” significou, de Aristóteles até a última metade do século XX. É
verdade que a palavra significa literalmente “para além da física”, mas sempre
foi usada para designar o que podemos chamar, de modo amplo, filosofia mística:
o estudo dos “primeiros princípios”. Esses princípios são verdades permanentes,
afirmações sobre realidades eternas. Dizem respeito ao Ser, e à relação do Ser
com o universo — espiritual, psíquico e material — que permite a esse Ser
manifestar-se. Tocam até mesmo aquilo que está para além do Ser.
Em linguagem
religiosa, a metafísica trata da natureza de Deus e da relação de Deus com o
cosmos e com a humanidade. A metafísica é, portanto, parceira natural da
teologia; a única diferença é que a teologia estuda a “revelação”, aquilo que
Deus nos revelou por Sua própria iniciativa, e a metafísica estuda Deus e Sua
manifestação a partir de nossa capacidade, dada por Ele, de conhecê-Lo
simplesmente porque Ele é nosso Criador e, portanto, algo d’Ele permanece em
nossa natureza. Isso não significa, contudo, que teologia e metafísica componham
dois mundos distintos, já que é principalmente a Autorrevelação de Deus nas
grandes tradições religiosas que desperta, do sono de nossa natureza caída (ou
esquecida), nossa capacidade “sobrenaturalmente natural” de conhecê-Lo; e é
precisamente por meio da Intelectualidade — intuição metafísica — perfeitamente
unida ao Amor divino que essa Autorrevelação vem a se aperfeiçoar na alma
humana. [NOTA: No cristianismo ortodoxo oriental, a palavra “teologia” abrange
muito mais do que no Ocidente, já que incorpora uma dimensão operativa ou
contemplativa. Não denota apenas teoria, mas também realização, tornando-se
aproximadamente sinônima do termo islâmico ma‘rifah.]
Durante a
maior parte da história cristã, até o final da Idade Média, teologia e
filosofia metafísica ou eram a mesma coisa, ou se relacionavam estreitamente,
embora a tentação de separá-las certamente sempre estivesse presente, já que
alguns metafísicos tendiam a ver os teólogos estudiosos das Escrituras como
pessoas que trabalhavam mecanicamente com material de “segunda mão”, enquanto
alguns teólogos viam habitualmente os metafísicos como hereges em potencial,
que se metiam, com arrogância, em assuntos demais os mistérios divinos por
iniciativa própria, sem o aval da Escritura e da Tradição. Cada lado via a
“sombra” do outro, não a essência. Ambos tinham razão quanto à forma pela qual
a metafísica ou a teologia podem se desviar, mas não quanto ao que esses dois
modos de conhecer a Deus são em si mesmos.
Contudo, foi
apenas no século XVIII, durante o período chamado, por algum motivo, de
“Iluminismo”, que teologia e filosofia começaram realmente a divergir, embora
as sementes dessa divergência tenham sido plantadas já no Renascimento. Mas a
filosofia ainda era, basicamente, metafísica; os filósofos ainda faziam as
perguntas últimas: qual é a natureza do Ser? Como podemos conhecê-Lo? E de que
maneira o Ser-em-si se relaciona com o universo da natureza e da experiência
humana? Coube ao período moderno, com o pragmatismo, o positivismo lógico, a
fenomenologia e a desconstrução pós-moderna, separar enfim a “filosofia” da
metafísica. As questões últimas passaram a ser consideradas destituídas de
significado; já não eram mais “da moda”. A filosofia foi reduzida a reflexões
secundárias sobre os achados das ciências físicas e sociais. E, por fim, até
mesmo a teologia começou a seguir a filosofia por essa estrada longa e cada vez
mais estreita. O próprio conceito de Primeiros Princípios saiu de moda, com o
resultado de que o tempo e a mudança passaram a ser tidos como mais reais do
que a verdade eterna; de fato, a própria existência de verdade eterna foi
negada. Ela passou a ser vista como um tipo de superstição medieval, a ser
estudada apenas como parte da “história das ideias”.
É como se uma
bela mulher, com caráter corajoso e alma formosa, se aproximasse de mim e
dissesse: “Sempre te amei”, e eu respondesse a mim mesmo da seguinte maneira:
“Sinto-me fisicamente atraído por ela devido a uma propensão genética inata que
me leva a procriar com um membro saudável da espécie, combinada a uma
sensibilidade condicionada culturalmente ao padrão de beleza física da Europa
Ocidental/América do Norte; e sou atraído por sua personalidade em razão de uma
apreciação herdada culturalmente por certos tipos de caráter, incluindo determinados
resquícios da moral judaico-cristã pré-pós-moderna. Ela talvez esteja atraída
por mim por algumas das mesmas razões; contudo, é possível que esteja
projetando em mim qualidades que não possuo, devido a uma capacidade crítica
deficiente de sua parte; também é possível que esteja deliberadamente
distorcendo seus sentimentos a fim de obter alguma vantagem.”
Ora, é óbvio
que tais pensamentos não estariam totalmente destituídos de significado, mas é
igualmente óbvio que eles perdem por completo o ponto central. Em outras
palavras, a possibilidade de que eu esteja realmente diante do verdadeiro amor,
e de que esse amor tenha de fato algo de eterno, a despeito de personalidades
belas poderem definhar e corpos belos terem de envelhecer e morrer, é totalmente
eliminada.
Assim ocorre
com a filosofia contemporânea separada da metafísica. Ela pode produzir muitos
detalhes interessantes e perspectivas úteis, mas perde de vista o ponto
principal, que é o fato de que a palavra “filosofia” significa “amor à sabedoria”.
O verdadeiro filósofo precisa ser um metafísico, e o verdadeiro metafísico
conhecerá a sabedoria como algo eminentemente amável. O símbolo central desse
amor à sabedoria, no mundo judaico-cristão, é a figura da Santa Sabedoria, a
Hagia Sophia. Como ela diz no Livro dos Provérbios (8,17): “Eu amo os que me
amam, e os que madrugam para procurar-me me encontrarão.”
Por que isso é
importante?
O simples fato
de termos de fazer essa pergunta mostra o quão densas se tornaram as trevas dos
tempos atuais. E, em certo sentido, trata-se de um exercício fútil, visto que
aqueles que nasceram com uma potencial capacidade de compreender a metafísica
provavelmente já sabem a resposta, ao passo que aqueles sem esse potencial
jamais poderão ser “convencidos”. A metafísica é o mundo da certeza, não o
mundo das opiniões. Ainda assim, precisamos realmente colocar essa questão,
porque, numa sociedade que já não se baseia em princípios espirituais, a
metafísica pode parecer sem sentido ou, na melhor das hipóteses, um mero “interesse”,
tal como rafting em corredeiras ou culinária gourmet.
O desafio que
a sociedade lança a todos os interesses intelectuais é: “Se você é tão esperto,
por que não é rico?”, o que pode tentar algumas pessoas com afinidade natural
pela metafísica a “retrucar” à sociedade, talvez tentando provar que
“princípios de verdade” metafísicos podem ajudá-las a ganhar dinheiro, ou, ao
menos, afirmando que o valor da metafísica reside em outro lugar que não no
fato de ela ser verdadeira. A ideia de que ela é valiosa porque contribui para
construir estabilidade psicológica, ou melhorar a sociedade, ou tornar as
pessoas mais sensíveis ao meio ambiente é a morte da metafísica, tal como a
ideia de que se pode amar alguém porque essa pessoa satisfaz esta ou aquela necessidade
física, psicológica ou social é a morte do verdadeiro amor.
Ora, a
verdadeira metafísica e o verdadeiro amor produzem, sim, efeitos positivos
sobre outros níveis da existência; satisfazem necessidades reais, embora não
possamos prever nem controlar como tal influência se materializará. Mas, se
buscamos essas coisas pelo “valor em dinheiro” e não porque são belas e
verdadeiras em si mesmas, então não passamos de ladrões. Como se diz nos
Evangelhos: “Buscai primeiro o Reino dos Céus, e todas essas coisas vos serão
acrescentadas”, e “quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a
vida por minha causa a encontrará.”
C. S. Lewis,
em Cartas
de um Diabo a seu Aprendiz (pp. 108–109), coloca a questão nestes termos, pela boca
de seu demônio Fitafuso (Screwtape):
“Certamente
não queremos que os homens deixem que o cristianismo transborde para a vida
política, pois o estabelecimento de qualquer coisa parecida com uma sociedade
justa seria um grande desastre. Por outro lado, queremos, e muito, fazer com
que os homens tratem o cristianismo como um meio. (…) O que se deve fazer é
levar um homem, primeiro, a valorizar a justiça social como algo que o Inimigo
exige, e, depois, conduzi-lo ao estágio em que ele passa a valorizar o
cristianismo porque este pode produzir justiça social. (…) ‘Creia nisto, não
porque é verdade, mas por algum outro motivo.’ Esse é o jogo.”
E o que Lewis
diz aqui sobre a fé vale em dobro para a intuição espiritual, pois vender a fé
por seu valor de mercado produz apenas hipocrisia ou fanatismo, ao passo que
vender a intuição espiritual produz magia negra.
Assim, uma
resposta à pergunta “Por que a metafísica é importante?” é: “Para que não
percamos o próprio conceito de Verdade objetiva.” A metafísica lida com
absolutos, com as implicações necessárias da Verdade Absoluta. Se já não
acreditamos na Verdade Absoluta, então tudo se torna relativo. Se tudo se torna
relativo, a Verdade é substituída pelo poder; fica reduzida ao que quer que
este ou aquele indivíduo poderoso, ou governo, ou grupo de interesse tenha o
poder de declarar como verdadeiro.
E é exatamente
assim que passamos a encarar hoje as questões de verdade: acreditamos que elas
não são senão máscaras de questões de poder. Já tentou manter uma conversa com
um partidário convicto desta ou daquela posição? Pode ser muito difícil
sentar-se com ele ou ela para “raciocinarem juntos” sobre a verdade ou
falsidade dessa posição, em parte porque o partidário já está convencido, mas
também em parte porque ele ou ela está ocupado(a) tentando analisar seus
motivos, descobrir “de que lado você está” e o que, exatamente, “você está
tentando aprontar”.
Tudo o que o
partidário diz é dito “com um efeito” em vista, e isso já há bastante tempo;
por isso, torna-se muito difícil para ele ou ela acreditar que você levanta uma
questão ou faz uma pergunta simplesmente porque deseja saber o que é
verdadeiro; a busca desinteressada da verdade foi abandonada há muito de seu
repertório. Ele ou ela sacrificou a verdade ao poder e supõe que todos os
demais fizeram o mesmo.
E a crença de
que a verdade é sempre, necessariamente, sacrificada ao poder torna-se profecia
autorrealizadora; uma vez que o partidarismo é tomado como universal, nada fora
dele é reconhecido ou admitido. As religiões deixam de ser visões da Verdade
divina para se tornarem entidades sócio-históricas com esta ou aquela agenda. O
estudo da história passa a ser visto como algo que nada tem a ver com a
tentativa imparcial de descobrir o que realmente aconteceu e por quê, mas é
tomado como parte do programa deste ou daquele bloco de poder. O mesmo se dá
com a ética; o bem e o mal já não têm nada de universal, mas são apenas
expressão do interesse de tal ou qual religião, classe ou cultura. Achados
sociológicos e dados econômicos são igualmente postos a serviço de interesses
especiais; por fim, até mesmo dados científicos — como, por exemplo, aqueles
que poderiam provar ou refutar a teoria darwinista da evolução — já não ficam
imunes.
E, se a
suposição de que a verdade deve servir ao poder é levada longe o bastante, ela
contamina o mundo das relações humanas: o que digo ao outro já não se baseia na
verdade, mas apenas na vantagem. Ao caminhar pelas ruas de qualquer grande
cidade americana, logo se descobre, caso ainda não o tenha feito, que o contato
visual nada tem a ver com o desejo de ver outra pessoa simplesmente para obter
uma impressão de quem ela é; ele se reduz a questões de poder: posso obter
sexo, drogas ou dinheiro daquela pessoa? Ela deseja o mesmo de mim? É alguém
que posso vitimar ou alguém que pode ferir-me? Aqueles que não se interessam
por essas coisas rapidamente desenvolvem a habilidade de não atrair atenção
sobre si mesmos; aprendem a evitar o contato visual, se puderem. (Em áreas
rurais, as pessoas às vezes ainda dizem “olá” a estranhos “sem motivo”; para
quem viveu a vida toda em cidades, isso pode ser um choque considerável.)
Esse é o
resultado extremo do crescimento de um tipo de sociedade em que a metafísica
não tem lugar. Sem um senso de Verdade absoluta e objetiva, tudo se torna
subjetivizado, e é por isso que a psicologia está agora substituindo tanto a
teologia quanto a filosofia. E, quando a Verdade espiritual se oculta, nem
mesmo a psicologia consegue manter seu próprio nível; ela é empurrada numa
direção materialista, até que tudo o que reste dela seja o behaviorismo e, por
fim, a psicofarmacologia.
Além disso,
quando o Absoluto é substituído pelo subjetivo, todas as subjetividades são
“absolutizadas”: minha experiência individual é tão “absoluta” quanto a sua, e
a sua quanto a minha; a isso se chama “tolerância”. Mas, se não há uma
Realidade objetiva que inclua a mim e a você por ser maior do que nós, se não
passamos de universos de experiência separados e hermeticamente fechados, como
podemos nos relacionar? Apenas (como na visão do Inferno em C. S. Lewis)
devorando-nos mutuamente.
Se tudo é
subjetivo, se não há Verdade objetiva, então ou você precisa tornar-se parte de
mim, ou eu acabarei tornando-me parte de você, restando apenas a opção de
devorarmo-nos igualmente (se ao menos isso fosse possível) e chamar a isso de
“amor”.
Assim, todo o
complexo daquilo que se chama “codependência” pode, em última análise, ser
atribuído à supressão do senso de Verdade objetiva, cuja forma mais alta e mais
completa é a metafísica.
Dado que,
neste mundo, a verdade é muitas vezes sacrificada ao poder, precisamos manter
nosso gume crítico; caso contrário, não conseguiremos encontrar nosso caminho
através do deserto em que o chefe é o poder, até chegarmos ao oásis em que o
Rei é a Verdade. Mas, se nos tornarmos tão desconfiados e cínicos a ponto de já
não crer que exista algo como “a verdade”, é evidente que fomos longe demais…
ou não fomos longe o bastante.
Se a polícia
deseja descobrir quem cometeu um assassinato, precisa questionar a veracidade
das histórias que ouve; não pode simplesmente aceitá-las ao pé da letra. Mas,
se, de tanto ouvir mentiras e meias-verdades ano após ano, os policiais se
tornam tão cínicos a ponto de já não crer que exista algo como verdade objetiva
— que alguém realmente cometeu aquele assassinato, o que significa que os
outros suspeitos não o fizeram —, então deixam de poder cumprir sua função,
como quando uma força policial se vê tentada a recolher “os suspeitos de
sempre” para satisfazer a pressão pública.
Da mesma forma,
a crítica pós-moderna — que se opõe à metafísica como poucas visões do mundo
poderiam fazê-lo — pode envolver-se tanto em questionar os motivos de quem
profere afirmações sobre o que é verdade que acaba esquecendo, e por fim nega
conscientemente, que algo possa ser verdadeiro — exceto enquanto enunciado sem
ponto de referência objetivo, que teria um “direito” de existir igual ao de
qualquer outro enunciado, assim como uma espécie de planta ou animal teria o
direito de ser salva da extinção por ser única e insubstituível.
Mas doutrinas
não são animais. Nenhum animal ou raça humana pode ser “errado”, mas doutrinas
podem. Se eu ensino que uma dieta rica em colesterol é boa para o coração, e
outra pessoa ensina o oposto, tais afirmações não possuem igual direito de
existir como meras manifestações da crença cultural ou da autoexpressão
pessoal; uma delas está certa e a outra errada.
Os
pós-modernos usam o mesmo argumento em relação às culturas humanas: cada qual
tem igual direito de existir como expressão única do espírito humano. Mas aqui
a questão torna-se ambígua, pois, embora cada expressão de cultura humana
integral — seja “primal”, como a dos australianos ou dos hopis, seja
“desenvolvida”, como a cultura islâmica norte-africana ou a greco-ortodoxa — faça
parte do patrimônio insubstituível da raça, ainda assim uma cultura como a dos
budistas tailandeses e a “cultura” de um cartel de drogas, ou a “cultura”
tecnocrática mundial que está hoje destruindo toda a Terra, tanto cultural
quanto ambientalmente (a si mesma incluída), não possuem igual direito de
existir.
Mas, num mundo
em que o conhecimento metafísico é suprimido, tudo é colocado no mesmo plano de
valor; as crenças ou manifestações culturais mais saudáveis e as mais
destrutivas possuem igual “direito” de existir, simplesmente porque “estão aí”.
A única coisa
que os pós-modernos parecem temer realmente é a tirania da uniformidade, em que
uma cultura dominante toma tudo para si e reprime todos os costumes e crenças
minoritários. Isso, por certo, é exatamente o que está acontecendo hoje no
mundo, e é profundamente destrutivo. Mas colocar uma cultura como a dos hopis,
que fomenta virtudes como a cortesia, a auto-discrição, a cordialidade e um
profundo senso ritual dedicado a manter o equilíbrio entre as necessidades do
povo e os poderes do mundo espiritual, no mesmo nível da cultura da ilha de
Dobu, baseada na magia negra, onde as “virtudes” admiradas (ao menos na década
de 1930, quando a antropóloga Ruth Benedict escreveu sobre eles) são a
capacidade de trair amigos e conterrâneos, arruinar suas colheitas e lançá-los
na doença, não é imparcial; trata-se de algo caluniosamente destrutivo para a
cultura hopi, ao mesmo tempo que deixa a cultura de Dobu ilesa.
Somente a
compreensão de uma metafísica integral, derivada do estudo dos cumes do
espírito humano tal como expressos nas grandes religiões do mundo e nas
tradições sapienciais, pode fornecer-nos os padrões objetivos pelos quais se
pode julgar se determinada cultura é saudável, cansada, degenerada ou ativamente
subversiva da verdade.
Nem o
“celebrar a diversidade” pós-moderno é necessariamente benéfico para as
culturas primordiais e marginalizadas que pretende proteger, pois negar a
validade de uma hierarquia absoluta de valores é, ao fim e ao cabo, negar a
hierarquia de valores de cada cultura individual, que, na medida em que diz
respeito a essa cultura, é absoluta.
Se nenhuma
manifestação cultural é mais ou menos válida do que outra, então, se a geração
jovem dos hopis passar a girar em torno, por exemplo, da “cultura” do uso de
drogas e da música heavy metal, com o resultado de que a cultura hopi morra,
quem poderá queixar-se?
Além disso,
verifica-se que os partidários da nascente cultura tecnocrática global e
aqueles que falam sobre a necessidade de celebrar a diversidade são, muitas
vezes, as mesmas pessoas; desejam celebrar a diversidade cultural porque,
enquanto tecnocratas econômicos globais, não possuem uma cultura local própria.
Precisam explorar culturas locais em escala global para preencher suas
necessidades espirituais, tal como exploram mão de obra barata para satisfazer
suas necessidades econômicas. Quando afirmei, acima, que a “espiritualidade de
fusão mundial” é a religião do Anticristo, é a isso, em parte, que eu me
referia.
Assim, a
relação de uma sociedade com a verdade metafísica tem tudo a ver com a natureza
essencial dessa sociedade. Mas o valor social da metafísica é apenas um reflexo
de níveis de verdade muito mais profundos, um dos quais diz respeito ao fato de
que algumas pessoas precisam absolutamente do conhecimento metafísico para
terem uma relação viva com Deus. Essas pessoas não são “crentes”; são
“conhecedores”. A fé não lhes basta, não porque desprezem a fé, mas porque são
capazes de conhecimento e não lhes será permitido “enterrar o seu talento” sem
consequências graves.
Mas numa
sociedade como a nossa, que ao mesmo tempo nega de modo fundamental a verdade
metafísica objetiva e fornece um vasto espectro de falsas doutrinas — tolas,
inconscientemente sinistras ou deliberadamente subversivas — que se disfarçam
de metafísica, a pessoa com potencial para ser um “conhecedor” é desviada em
cada esquina. Ela corre o risco de se tornar um cético religioso, já que as
doutrinas religiosas às quais é exposta lhe parecem infantis (por ignorar o seu
sentido mais profundo), ou então uma apologista de doutrinas aparentemente mais
sofisticadas que, sem que ela o saiba, são radicalmente opostas à metafísica
tradicional.
As tentações,
provas e armadilhas que se apresentam aos “conhecedores” são formidáveis; eles
têm um caminho muito mais longo e difícil a percorrer do que os crentes.
Estarão atravessando zonas de conhecimento que, embora não se oponham à
doutrina religiosa ortodoxa, não podem, pela própria natureza das coisas, ser
explicitadas para todo adulto normalmente inteligente. Consequentemente,
ficarão expostos a falsas ideias de toda espécie, algumas das quais
extremamente sutis e fascinantes. Navegar por um mar como esse exige tanto uma
vigilância intelectual aguda quanto uma firme e constante docilidade à vontade
de Deus.
E também terão
de enfrentar, em determinado momento, o demônio do Orgulho Intelectual,
sobretudo se se sentirem incompreendidos ou perseguidos pelos crentes. As
únicas coisas que podem salvá-los são uma humildade radical diante de Deus e
uma clara compreensão de que o simples fato de possuírem um conhecimento
metafísico sofisticado não significa que não possam também ser condenados, ao
passo que o mais simples dos crentes, se segue sinceramente uma doutrina
verdadeira, será salvo mesmo que jamais tenha ouvido falar de tal conhecimento.
Como se diz nos Evangelhos: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” É por
isso que, tradicionalmente, se entende que o caminho do conhecimento sagrado
não pode ser percorrido com segurança, salvo em casos raros e imprevisíveis,
sem uma moldura doutrinal ortodoxa e sem a orientação de um mestre espiritual.
A metafísica é
também importante porque a fé “simples” está se tornando cada vez mais rara. No
tempo em que a maioria vivia dentro de universos religiosos fechados, havia
pouca dúvida quanto ao que se devia crer, já que quase não havia
“alternativas”. A pessoa era crente, libertina, canalha ou talvez ateia
secreta; mas não vivia confusa e indecisa sobre o que crer, pelo menos não no
grau em que tantos vivem hoje. Ser confrontado por centenas de seitas e
religiões, e por terapias que se passam por religiões; ser chamado a escolher,
entre todas elas, aquela que representa a Verdade divina sem dispor de uma
tradição da Verdade divina que lhe diga como escolher; e, depois, exausto pela
luta, desistir da busca da objetividade e optar pelo sistema (ou pelos dez
sistemas) mais compatível com o seu estilo pessoal — o que significa que, em
vez de adorar a Deus, você está na verdade adorando a si mesmo —, nada disso
figurava entre as armadilhas que se punham diante de um membro de qualquer
cultura tradicional.
Numa sociedade
global emergente, em que as doutrinas e práticas de todas as religiões
mundiais, e de todos os caminhos místicos dentro dessas religiões, mais dezenas
de formas de xamanismo tradicional, estão se tornando acessíveis em toda parte
a buscadores sérios — e também a curiosos frívolos e magos iniciantes em busca
de poder psíquico —, a religião passa a ser relativizada. Se mais de uma religião
é verdadeira, então nenhuma religião pode ser absoluta — mas a justificativa
essencial de qualquer religião é precisamente esta: que ela dá acesso à Verdade
absoluta.
Logo, os
“crentes” religiosos não têm outra saída senão ou denunciar violentamente as
outras religiões — é aqui que nasce o “fundamentalismo” cristão, muçulmano,
judeu e hindu que vemos hoje — ou então “relaxar”, tornando-se “ecumenistas
promíscuos”, diletantes espirituais e degustadores de vinhos, como os
“liberais” religiosos de hoje, que negam que possa haver algo como a Verdade
Absoluta, excetuando aquele tipo de “verdade” que, como vimos acima, é tida
como nada mais do que uma máscara de poder.
É aqui que o
conceito de Frithjof Schuon sobre a “absolutidade relativa” de qualquer religião
tradicional se torna tão importante; ele é, de fato, a única saída dessa
dicotomia. Só a metafísica pode demonstrar, ao mesmo tempo, que existe uma
Verdade Absoluta comum a todas as verdadeiras religiões (lembrando que nem tudo
o que se chama “religião” o é de fato) e que, entretanto, essa Verdade não pode
ser alcançada por meio da combinação entre elas, já que a existência de
diferentes revelações religiosas, assim como a de diferentes raças ou
indivíduos, é metafisicamente necessária. Como está dito no Alcorão: “Se Allah
quisesse, teria feito de vós um só povo.”
Qualquer
indivíduo inteligente e espiritualmente sensível, com ou sem formação
religiosa, deve passar pelo fogo do ceticismo religioso no mundo de hoje. A
crença simples, a menos que alguém tenha a felicidade de conservar uma real
simplicidade de alma, de estar entre aqueles que chamamos de “sal da terra”, já
não é possível para muitos. A capacidade sofisticada de enxergar profundidade e
valor em tradições religiosas diferentes da própria quase inevitavelmente
corrói a fé, ao menos num primeiro momento. Para uma pessoa assim, não há
caminho “de volta” à fé religiosa simples; o único caminho é “para a frente”:
chegar a compreender que existe uma Verdade Absoluta por detrás de todas as
religiões, mas que, porém, só se pode alcançá-la seguindo uma dessas religiões
até o fim, até essa Verdade.
O único
remédio para a doença da sofisticação é uma sofisticação maior, que finalmente
retorna à simplicidade. Onde o relativismo religioso destruiu a fé, nada senão
a compreensão metafísica pode restaurá-la.
Mas é injusto
e irrealista exigir compreensão metafísica de todos. Um mundo em que todos
fossem metafísicos ou místicos seria um lugar extremamente desequilibrado. Eis
por que os metafísicos, no mundo de hoje, têm de lutar para encontrar o seu
nicho na sociedade, a partir do qual possam oferecer sua contribuição ao
conjunto. E numa sociedade tão antitradicional e antimetafísica quanto a Nova
Ordem global emergente, isso não é tarefa fácil, sobretudo porque essa luta
precisa incluir a compreensão de que tanto o fundamentalismo quanto o
ecumenismo promíscuo fazem parte da qualidade da época. Os metafísicos podem
criticá-los, mas não podem fazê-los desaparecer.
Ainda assim,
estar sob a maldição de ser capaz de compreender pessoas que jamais o
compreenderão sempre foi o destino do metafísico — e é assim que deve ser,
porque, se um dom espiritual não é também um fardo, o dotado acabará se
inflando de orgulho espiritual e cairá como Ícaro, quando voou demasiado perto
do Sol. Além disso, sem as trevas circundantes da ignorância espiritual para
contê-la, a luz da compreensão espiritual abandonaria por completo este mundo —
e, segundo a doutrina tradicional, se isso acontecesse, o mundo seria
destruído. Como diz Rumi:
“Se não
houvesse desatenção, este mundo deixaria de existir.
O desejo por Deus, a lembrança do outro mundo, a ‘embriaguez’ e o êxtase são os
arquitetos do outro mundo.
Se todos estivessem afinados com aquele mundo, todos abandonaríamos este e
iríamos para lá.
Deus, porém, quer que permaneçamos aqui, para que haja dois mundos.
Para isso, Ele estabeleceu dois chefes, desatenção e atenção, de modo que ambos
os mundos floresçam.”
(Sinais
do Invisível [Fihi ma Fihi], p. 114.)
Em última
análise, porém, todas essas razões pelas quais a metafísica é importante são
apenas questões secundárias. A razão verdadeira pela qual a metafísica é
importante é porque ela é verdadeira, e tudo o que é verdadeiro é também bom. O
próprio Deus, sendo a Verdade Absoluta, é também o Sumo Bem. Num provérbio dos
rishis hindus, que Schuon tantas vezes cita: “Não há direito superior ao da
Verdade.”
O que é
Tradição? O que é o Homem?
Hoje, quando
falamos em “tradição”, tendemos a significar qualquer costume ou crença que
tenha durado mais de uma geração — ou até por um período mais curto, como
quando um estabelecimento comercial se anuncia como “uma tradição desde 1979”.
No catolicismo, na ortodoxia oriental e na cabala hebraica, “tradição”
refere-se a doutrinas transmitidas oralmente, ou sob formas como a liturgia e a
iconografia. “Tradição” pode às vezes referir-se também aos escritos dos Padres
da Igreja, dos rabinos judeus e, no Islã, dos sufis, que incluem, entre outras
coisas, as ciências tradicionais da hermenêutica das Escrituras.
Tradição,
então, não se opõe à Escritura; é um modo de transmitir, por meios diferentes,
as mesmas doutrinas que a Escritura transmite. Quando os reformadores
protestantes adotaram a doutrina da sola scriptura, a tradição cristã no
Ocidente ficou radicalmente empobrecida. Contudo, já que reagiam a um
empobrecimento que já existia — dado que as linhas de transmissão tradicional
dentro do catolicismo estavam em vias de extinção —, não se pode culpar
inteiramente os protestantes por essa degeneração.
A Escola Tradicionalista
usa a palavra “Tradição” num sentido específico. Para eles, significa “a soma
total da transmissão da Verdade divina por meios humanos, desde o início dos
tempos até hoje”, por meio de Escritura, comentário, ensino oral, arte sagrada
ou qualquer outra forma. Nesse sentido, ela é parceira da Revelação.
Segundo uma
imagem usada pelo tradicionalista James Cutsinger, a Verdade revelada desce
“verticalmente”; ela entra no tempo diretamente a partir da Eternidade, como
uma pedra lançada num lago sereno. Se a pedra é a Revelação, as ondas que se
espalham horizontalmente a partir do ponto em que ela atinge a água são a
Tradição. Cada uma das grandes religiões do mundo representa um caso de
Revelação e, assim, uma renovação da Tradição. A Revelação original, porém, foi
a criação do universo, razão pela qual a natureza é muitas vezes chamada de “a
primeira Escritura de Deus”.
E a síntese
dessa manifestação divina universal é a Forma Humana, motivo pelo qual, na
doutrina islâmica (assim como no historiador judeu Josefo), Adão é visto como o
primeiro profeta, o destinatário da autorrevelação primordial de Deus. Em
Gênesis e no Alcorão, diz-se que Adão, ainda no Jardim do Éden, nomeou os
animais. Esotericamente, isso significa que ele os conhecia como projeções dos
arquétipos eternos presentes na Natureza divina. Ele não inventou seus nomes,
em outras palavras, mas olhou para dentro do próprio coração, para o seu
Intelecto espiritual, e ali compreendeu os Atributos ou Nomes de Deus que se
encontravam representados nas formas do mundo natural à sua volta.
Tradição,
então, não é simplesmente qualquer coisa que nos chega de um passado remoto;
uma série de erros filosóficos e heresias religiosas também têm pedigree
antigo. Ela é, especificamente, a transmissão da Verdade absoluta por meio da
forma e da consciência humanas — transmissão tão crucial que, segundo muitas
autoridades, se cessasse de modo absoluto o mundo seria destruído. É o “caule”
da criação, a ligação vital entre a flor do universo visível e o seu Fundamento
divino. Corte-se o caule, e a flor murcha.
O que é o
Intelecto?
Outro
“vocábulo caído” é intelecto. Para a maioria de nós, ele significa lógica,
racionalidade ou até a capacidade de manipular e memorizar grande quantidade de
informações. Não era assim para os filósofos escolásticos da Idade Média. Para
eles, intellectus (tradução latina do
grego nous) significava a
faculdade pela qual podemos compreender diretamente a Verdade espiritual ou
metafísica, assim como o olho humano “compreende” a luz. Eles o distinguiam de ratio, a mente racional ou
lógica. Dada uma premissa, a ratio pode chegar a uma conclusão, mas não
chega, com isso, a uma verdade inteiramente “nova”. Não tem poder para
apreender a Verdade por si, apenas para demonstrar as implicações lógicas de
uma verdade já dada — uma verdade “dada” a ela pelo intellectus.
O Intelecto é
a fonte de todos os axiomas — verdades que não podem ser demonstradas, apenas
conhecidas intuitivamente.
Segundo
praticamente todas as tradições antigas, inclusive o cristianismo tradicional e
a filosofia platônica, o ser humano é composto de três níveis de ser: Espírito,
alma e corpo — em grego, Pneuma (ou Nous),
psyché e soma; em latim, Spiritus (ou Intellectus), anima e corpus.
Na era
moderna, contudo, a distinção entre Espírito e alma se perdeu, com
consequências desastrosas. Tendemos agora a crer, a não ser que sejamos
materialistas completos, que tudo o que não é material deve ser espiritual — o
que muitas vezes significa, para nós, que tudo o que encontramos por meio de
sonhos, introspecção psicológica ou experiências psíquicas deve ser
“verdadeiro” e, por implicação, “bom” — ou pelo menos não deve ser criticado,
mesmo que o detestemos ou temamos… quanto mais, é claro, se for agradável ou
fascinante.
E é
precisamente esse erro metafísico — a ideia de que não há distinção entre psyché e Espírito — que,
neste momento, está abrindo massas inteiras de pessoas a influências demoníacas
e que tornará possível ao Anticristo fabricar um contrafação psíquica plausível
da Realidade espiritual eterna.
Se soubéssemos
que psyché e Espírito são duas
coisas diferentes (ou melhor, dois níveis diferentes de ser), não, por exemplo,
recorreríamos às múltiplas “linhas psíquicas” hoje anunciadas na televisão e em
outros lugares, porque entenderíamos que o fato de alguém conseguir dizer-lhe a
cor de sua roupa íntima ou o que você fez na terça-feira passada não significa,
de forma alguma, que essa pessoa seja sábia ou boa. E o fato é que muitos
médiuns (embora certamente não todos) apresentam personalidades desequilibradas
e tenderão a usar seus poderes psíquicos de modo desonesto, já que tais poderes
lhes deram uma certa capacidade de “viver de sua esperteza”.
Certa vez
trabalhei com uma mulher extremamente psíquica. Ela percebeu que havia sido
cometido um assassinato numa loja que planejávamos alugar — fato depois
confirmado pelo corretor de imóveis. Durante uma conversa telefônica comigo,
conseguiu localizar objetos escondidos num apartamento em que eu estava
hospedado, que ela jamais visitara, quando eu mesmo não sabia onde estavam. Mas
a principal forma como ela usava seus dons era para extorquir dinheiro das
pessoas e escapar de processos.
Os psíquicos
frequentemente têm problemas de “limite”. Estão tão abertos às energias sutis
alheias que a linha entre eles e os outros tende a se confundir. Muitos
esquizofrênicos têm a mesma dificuldade e, com frequência, certo grau de
sensibilidade psíquica também. Esse “limite do ego” excessivamente permeável
pode resultar em várias formas de descortesia radical, “codependência” e
dissipação da energia psíquica da pessoa no ambiente que a cerca, fazendo dela
uma espécie de “vampiro” que precisa drenar a vitalidade dos outros
simplesmente para repor aquilo que está continuamente perdendo. Pode igualmente
abrir essa pessoa à possessão demoníaca.
Numa conversa
com um budista da linhagem Gelugpa (a escola do budismo vajrayana tibetano à
qual pertence o Dalai Lama), disseram-me que há dois tipos de clarividência: o
tipo legítimo, próprio do sábio budista avançado, que se desenvolve diretamente
a partir das virtudes da compaixão e da concentração (um aprofundamento raro,
mas não anormal, do cuidado e da atenção, usado sobretudo no contexto da
direção espiritual), e aquilo que se chama de clarividência “contaminada”, que
é uma das consequências kármicas de um curso interrompido de desenvolvimento
espiritual e é considerada um grande obstáculo à Iluminação.
Portanto,
“psíquico” não é sinônimo de “espiritual”. A psyché é um nível de ser baseado na polaridade
sujeito/objeto, em que a experiência “objetiva” é condicionada pela
“subjetividade” de quem a experimenta. O Espírito ou Intelecto transcende essa
polaridade. Podemos descrevê-lo como perfeitamente Objetivo, já que é o que é,
quer eu esteja consciente disso ou não; e, com igual validade, como o Sujeito
absoluto (ou pelo menos um “raio” desse Sujeito divino que intercepta a alma
humana), pois é a Testemunha última de tudo o que acontece, seja no plano dos
arquétipos espirituais, seja dentro da minha psique, seja no mundo material. Em
qualquer caso, Ele transcende a minha subjetividade individual. Não é, como
alguns imaginam, o meu ego blasfemamente absolutizado; não é o grande “Eu”.
Antes, é Deus dizendo “Eu Sou” dentro de mim, quer eu esteja consciente disso
ou não, quer eu seja ou não fiel às implicações disso. “Já não sou eu quem
vive”, diz São Paulo, “mas Cristo vive em mim.” Ou, nas palavras de Mestre
Eckhart: “Há algo dentro da alma que é incriado e increável.”
Esse “Algo” é
o Intelecto. De certo modo, é a nossa capacidade inata de conhecer Deus
diretamente. De outro modo, é o próprio Autoconhecimento de Deus, do qual
podemos ou não participar conscientemente, mas que, em qualquer caso, é a Fonte
da nossa vida. Visto do ponto de vista da nossa subjetividade psíquica, tal
conhecimento é, em última análise, impossível, já que nenhuma consciência
individual limitada pode abarcar o Absoluto: “A luz brilha nas trevas, mas as
trevas não a compreenderam.” Visto do ponto de vista do Intelecto, porém, tal
conhecimento não é apenas possível, mas necessário, pois o Conhecimento
completo da Verdade é parte integrante da própria Verdade. É por isso que um
dos nomes de Deus, no hinduísmo, é Satchitananda — Ser ou Verdade (Sat), Consciência dessa
Verdade (Chit) e a Bem-aventurança
da união entre Verdade e Consciência (Ananda). Este é também um dos significados do
primeiro versículo do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo, e o
Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”
Fé, Crença e
Conhecimento
Fé e
conhecimento são às vezes vistos como opostos, especialmente no mundo cristão.
Aqueles que pensam poder chegar a Deus por meio do conhecimento e não da fé são
frequentemente rotulados de “gnósticos” — termo que realmente quer dizer algo,
embora seja tão frequentemente aplicado, como espécie de difamação genérica, a
tudo aquilo de que o falante ou escritor desconfia na área da religião, mais ou
menos como as palavras “comuna” ou “fascista” têm sido usadas na área da
política. Os próprios Tradicionalistas às vezes são tachados de gnósticos por
aqueles que não compreendem plenamente suas doutrinas.
Os gnósticos
foram um grupo extremamente heterogêneo de seitas religiosas na Antiguidade
tardia, que, entretanto, tendiam a partilhar certas doutrinas: que os universos
psíquico e material são produto de uma “queda” dentro da Divindade, e não uma
manifestação dessa Divindade no espaço, no tempo e na consciência humana; que a
própria matéria é má; que Deus é, consequentemente, “alheio” à criação; que o
cosmos é criado e governado, em vez disso, por falsos deuses maus e/ou
iludidos, muitas vezes chefiados por um Demiurgo maligno, normalmente
identificado com as esferas planetárias concêntricas da cosmologia ptolomaica
(geocêntrica), consideradas como uma espécie de prisão cósmica; que o pecado de
Adão foi uma revolta heróica e prometeica contra esse Demiurgo maligno; que a
saída da prisão cósmica se dá pelo conhecimento, em oposição à fé —
especificamente, pelo conhecimento de como o mundo decaído foi criado e como e
por quem é governado; que a fé não passa de uma crença cega no sistema falso e
opressor de coisas que é o universo; que o salvador, frequentemente mas não
sempre identificado com Cristo, desliza para dentro desse falso mundo
disfarçado, a fim de enganar os governantes cósmicos, e traz salvação à elite
espiritual sob a forma de um conhecimento secreto ou gnosis; que esse Salvador não
encarna realmente no mundo material, mas é uma espécie de aparição (como na
heresia docetista), que nunca sofreu de fato na cruz, nem morreu, nem ressuscitou;
e que (como na heresia ariana) ele não é divino, mas sim um dos Aeons eternos, uma espécie
de arcanjo; que, sendo o cosmos falso e governado por falsos deuses, a
“moralidade” apropriada é ou afastar-se inteiramente dele, através de um
ascetismo extremo que em certas seitas gnósticas levava, às vezes, ao suicídio
por inanição, ou então afrontar abertamente a falsa moralidade dos governantes
do mundo mediante libertinagem e autossatisfação rebelde. Em alguns aspectos, o
gnosticismo foi uma heresia cristã; em outros, um espectro de movimentos
religiosos independentes.
Deveria ser
relativamente óbvio que o gnosticismo, como todas as heresias, contém um grão
de verdade, posto em contexto falso. A verdade, neste caso, é que a humanidade
está, de algum modo, caída — seja por ignorância, seja por transgressão, seja
por uma combinação de ambas — e que, consequentemente, o mundo que habitamos
tem limitações radicais que não existiam no estado não caído do “Éden”. Segundo
a doutrina cristã, até mesmo a morte é produto da queda do homem; não é
realmente “natural”. O erro dos gnósticos foi tornar-se tão obcecados pelas
consequências da queda que se esqueceram de que “os céus proclamam a glória de
Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”; em termos teológicos, negaram
a imanência de Deus em Sua criação, fazendo-o totalmente transcendente e, por
isso, “estranho”. Desse modo, a despeito de toda a sua suposta sofisticação
esotérica, em certo sentido levaram a queda do homem demasiado ao pé da letra.
Obcecados com falsidade e erro, esqueceram-se de que o erro, embora produza
efeitos reais, não é real em si. Concretizaram o erro; por conseguinte, sua
“gnose” já não era a pura capacidade de ver através do erro na contemplação da
Verdade divina, mas converteu-se numa tentativa de “lograr” os governantes do
mundo por meio de um conhecimento especial, oculto. Isso não quer dizer que não
houvesse nenhum autêntico entendimento metafísico entre os gnósticos, mas sim
que os erros do movimento colocavam esse conhecimento num contexto falso e
distorcido. E, como dizem os sufis, “basta um único cão para estragar toda uma
bacia de água de rosas”.
A luta dos
primeiros cristãos contra os gnósticos sectários — assim como a luta semelhante
que ocorre hoje contra vários neognósticos — tem contribuído para obscurecer a
verdade de que fé e conhecimento não se opõem, mas estão de fato intimamente
relacionados. Aqueles cristãos que sustentam que toda metafísica é uma forma de
gnosticismo — ou aqueles muçulmanos e orientalistas que veem a metafísica sufi
como uma espécie de neoplatonismo, ou de xamanismo, ou de budismo, em vez de
enxergá-la como a quintessência do Islã, baseada numa compreensão da revelação
corânica profunda o bastante para penetrar não apenas a mente e a vontade, mas o
Coração espiritual — e que, por isso, pensam que não devemos tentar conhecer
diretamente as verdades de Deus, já que o intelecto humano é incapaz disso,
devendo-nos limitar a recebê-las por “fé cega”, estão enganados. Na verdade,
caíram numa espécie de heresia gnóstica própria ao repetir a oposição radical
gnóstica entre fé e conhecimento. Por outro lado, sua crença de que a mente
humana é incapaz de adquirir a Sabedoria divina também é verdadeira, em dois
sentidos específicos: primeiro, porque a Sabedoria é dom, não conquista;
segundo, porque só Deus pode conhecer Deus. Ignoram, no entanto, que o ser
humano — e o seu Arquétipo na Natureza divina, que os sufis chamam al-insân al-kâmil, “o Homem Perfeito”, e
os cristãos chamam “Deus Filho” (sem negar, evidentemente, as diferenças
irredutíveis entre essas duas doutrinas) — é precisamente a forma desse
Autoconhecimento divino.
A fé não pode
ser limitada à crença (embora a crença seja parte necessária dela); é, antes, o
início de um conhecimento direto e objetivo. Crede ut intellegas: “crê para que possas
compreender”. É verdade que tentar acessar o Conhecimento divino ignorando a
doutrina revelada é uma forma de orgulho espiritual, fadada ao desastre. Mas
lutar para crer a doutrina religiosa unicamente pela força de vontade, ao mesmo
tempo negando que essa crença possa algum dia florescer em verdadeira
compreensão, é desprezar os dons do Espírito.
Nas palavras
de São Paulo, a fé é “a substância das coisas que se esperam, a evidência das
coisas que não se veem”. Ou seja, a fé é uma intelecção virtual — e um sinônimo
de intelecção é gnosis.
Muitos Padres
da Igreja, como Clemente de Alexandria, Máximo, o Confessor, e Dionísio
Areopagita, foram metafísicos e “gnósticos” justamente nesse sentido — o que
não significa que tenham professado a heresia do gnosticismo. Segundo Clemente,
“podemos entrever algo do que Deus é se tentarmos, por meio de cada sensação,
alcançar a realidade de cada criatura, sem desistir até que estejamos vivos
para aquilo que a transcende.” Nas palavras de Dionísio: “É, pois, falso
repetir o lugar-comum de que o mal reside na matéria enquanto tal. Para dizer a
verdade, a própria matéria participa da ordem, da beleza, da forma...” E Máximo
declara:
“[Deus] se
mostra às nossas mentes na medida de nossa capacidade de compreender, por meio
dos objetos visíveis que agem como letras do alfabeto. (...) Ele, o
não-diferenciado, é visto em coisas diferenciadas, o simples, no composto.
Aquele que não tem princípio é visto nas coisas que necessariamente têm princípio;
o invisível, no visível; o intangível, no tangível. Assim Ele nos reúne em Si,
por meio de todas as coisas.”
Ninguém que
ensine tais doutrinas — que creia, como esses Padres da Igreja creem, que os
céus proclamam a glória de Deus — pode ser chamado, com justiça, de gnóstico
herético ou sectário.
A fé é “a
substância das coisas que se esperam” no sentido de que a gnosis está virtualmente
presente na alma humana. É “a evidência das coisas que não se veem” no sentido
de que, pela fé — que é maior do que a crença, embora menos do que o
conhecimento direto, podendo ser definida como receptividade à intelecção,
prontidão para conhecer —, realidades invisíveis podem aparecer à mente sob a
forma de símbolos e aos sentidos sob a forma de objetos materiais compreendidos
simbolicamente. Nas palavras de Frithjof Schuon, “as formas sensíveis
correspondem com exatidão às intelecções” (A Unidade Transcendente das Religiões, p. 62).
O que é
Esoterismo?
No uso
popular, a palavra “esotérico” significa algo como “desnecessariamente obscuro
e complicado”, como quando nos pedem para não ficar “muito esotéricos”, mas
“manter a coisa simples”. Aqueles com interesse superficial na espiritualidade
mística tendem a definir esoterismo, na prática, como “segredos especiais para
pessoas especiais”, enquanto os que desconfiam da mística, em parte como reação
a essa atitude “elitista”, o verão como uma doutrina secreta e herética, oposta
à revelação e à tradição.
Segundo a
doutrina de alguns sufis (os “místicos organizados” dentro do Islã), bem como
da seita xiita (os partidários do primo e genro do Profeta, Ali, que foi ao
mesmo tempo o quarto califa sunita e o primeiro imã xiita), há um “equilíbrio”
em todas as coisas, particularmente na religião, entre interior e exterior. Em
toda forma há essência, e a essência manifesta-se sempre como forma. Visto
assim, a espiritualidade mística é a essência interior da religião, enquanto a
religião é a forma exterior da mística. Mas ela não é “meramente” a forma
exterior; interior e exterior são igualmente necessários. Como dizem os sufis,
sem a casca o miolo apodrece. No Alcorão, por exemplo, Deus é chamado tanto de
“o Interior” (al-Batin) quanto de “o
Exterior” (al-Zahir), termos que também
poderiam ser traduzidos como “o esotérico” e “o exotérico”.
Na história
islâmica, os clérigos exotéricos que periodicamente perseguiram os sufis deram
origem a várias formas de “fundamentalismo” muçulmano, que ameaçavam arrancar o
Coração do Islã, enquanto aqueles sufis que foram longe demais na direção oposta,
tentando tornar-se puros batinis, muitas vezes desenvolveram tendências heréticas que
ameaçavam a tradição de outra forma: tentaram, por assim dizer, viver como um
Coração sem corpo.
Toda tradição
espiritual precisa tanto de expressões interiores quanto exteriores. Mesmo o
budismo, que talvez esteja mais próximo do que qualquer outra tradição de um
esoterismo quase puro, exige a moralidade (sila) como equilíbrio complementar à
sabedoria (prajñā) e à concentração (dhyāna). E o mesmo vale para
a Escritura. Se a Bíblia ou o Alcorão forem reduzidos aos níveis
socio-histórico e moral de significado — ou mesmo ao psicológico —, então seu
sentido essencial é negado; são reduzidos à estatura de algo que qualquer
filósofo moral poderia ter produzido com base num bom senso esclarecido. Mas se
uma hermenêutica esotérica é usada para negar os níveis socio-histórico, moral
e psicológico de significado, então a Escritura em questão não está sendo
compreendida de modo completo ou equilibrado, com o resultado de que o próprio
nível esotérico ou metafísico também sofre, já que enfatizar o sentido interior
“espiritual” da Escritura descartando o sentido exterior “físico” implica que o
Espírito não é a Fonte da vida da alma e do corpo, mas algo externo a eles,
algo sem ligação “orgânica” com nossas vidas, um “Deus estranho” como o dos
gnósticos, espécie de fantasma ou espectro — e isso é um erro metafísico.
Os exotéricos
religiosos muitas vezes acreditam que o esoterismo não passa de uma espécie de
doutrina alternativa e, portanto, necessariamente uma heresia — equívoco
reforçado diariamente por milhares de pseudo-esoteristas, ou ocultistas, que
pensam exatamente a mesma coisa. Essas pessoas se orgulham de chamar a si
mesmas de “hereges”, como se essa palavra denotasse um tipo de rebeldia heroica
baseada numa compreensão mais profunda das coisas espirituais do que a da massa
de “ortodoxos” simplórios e superficiais; na realidade, porém, ela não é mais
do que a admissão de que sua própria compreensão é superficial e de que se encontram
em estado de erro metafísico.
A tragédia da
religião exotérica é que ela possui a “pérola de grande preço”, “a única coisa
necessária”, mas, em tantos casos, a perdeu de vista. A tragédia daqueles que
inicialmente possuem certa medida de compreensão espiritual esotérica é que
frequentemente sucumbem à tentação de identificar falsamente “ortodoxia” com
“exoterismo” e, em seguida, repetir o erro de muitos exotéricos ao identificar
falsamente “esoterismo” com “heresia”, esquecendo-se de que, se sua compreensão
esotérica fosse verdadeira, estariam necessariamente no âmago da ortodoxia e,
em certos aspectos — ou em certas ocasiões —, potencialmente ainda mais
ortodoxos que os próprios exotéricos.
O pecado dos
exotéricos é a estupidez militante que esmaga toda sutileza doutrinal. O pecado
dos esotéricos é o orgulho intelectual, que leva, em alguns casos, a uma
frivolidade no trato da doutrina. A doutrina religiosa ortodoxa só pode ser
plenamente salvaguardada por um equilíbrio entre ambos, que às vezes estará à
vista e às vezes permanecerá oculto, para ser preservado.
Esoterismo,
portanto, não é uma doutrina alternativa, ainda que os escritos de certos
esotéricos — como Mestre Eckhart no cristianismo, por exemplo, ou Ibn ‘Arabi no
Islã — possam fazê-lo parecer assim aos olhos daqueles dotados de menor
sutileza e profundidade de entendimento. Esoterismo é gnosis, um testemunho
presente das verdades de Deus que emana das profundezas da Natureza divina. Não
é, em última análise, doutrina, mas realização.
Os que estão
disponíveis a essa realização constituirão necessariamente uma espécie de
elite. Hoje não há ideal mais impopular — na verdade, mais desprezado — do que
o de uma elite espiritual ou política, e com boa razão. A história está cheia
de lições de como “elites” autoproclamadas e interessadas em si mesmas podem
causar danos — como, por exemplo, os “Assassinos” ismaelitas no Islã, aquela
confraria de terroristas esotéricos. Mas, se eu tiver um tumor cerebral e
precisar de uma cirurgia, espero em Deus que o médico que a realizar seja o
mais “elite” possível!
Do mesmo modo,
há certas funções espirituais profundas que apenas poucos podem cumprir;
chamamo-los de “santos”. Nem todos os santos são intelectuais, embora a gnosis deva estar
virtualmente presente neles, já que a santidade se baseia na submissão da
vontade a Deus, e o rosto de Deus apresentado à vontade traz a forma precisa da
Verdade divina.
A verdade à
qual se deve submeter é o Intelecto. E nem todos os santos intelectuais são
esotéricos: Tomás de Aquino é um bom exemplo do “metafísico não esotérico”. É
somente nos santos mais raros, como Máximo, o Confessor, e possivelmente São
Bernardo, o patrono espiritual dos Templários, que santidade e gnose estão
combinadas. Há também aqueles que ficam aquém da santidade realizada, mas ainda
possuem certo grau de gnose — embora não o grau mais elevado — e é a partir
deles que muitos dos problemas associados aos autoproclamados esotéricos têm
origem, especialmente se falham em reconhecer suas limitações, idolatrando o
Intelecto em vez de adorarem a Deus por meio dele. Há ainda aqueles que possuem
certo grau de insight verdadeiramente esotérico — embora, nesse caso, não possa
realmente ser chamado espiritual, mas sim um contrafação psíquica de alto nível
do conhecimento espiritual — e que estão em liga com Satanás, sem o saber, e às
vezes sabendo; e estes são as pessoas mais perigosas da terra, já que, dentre
eles, os “contemplativos de Satanás” (awliyāʾ
al-Shayṭān) serão escolhidos como
a “guarda de elite” do Anticristo.
Quando elites
espirituais tomam forma organizada no mundo exterior, estamos diante tanto do
mais alto potencial para a transformação espiritual da sociedade quanto da mais
satânica tentação ao orgulho espiritual titânico. É por isso que, segundo a
opinião de alguns, uma verdadeira elite espiritual, como na lenda dos
Cavaleiros da Távola Redonda, nunca dura muito em termos históricos: ou é
destruída pelo pecado do orgulho, ou é dissolvida — deliberadamente por seus
mestres iluminados, ou providencialmente pelo próprio Deus — antes que possa
tornar-se totalmente corrupta. No Islã, muitos círculos sufis duraram como
manifestações vivas apenas enquanto o mestre vivia, e então ou se dispersaram,
ou continuaram como cascas vazias — embora isso certamente não seja verdade
para as grandes ordens sufis sobreviventes, onde a transmissão da verdadeira baraka espiritual (graça)
continua, em alguns casos, há muitos séculos. No Cristianismo, o exemplo mais
claro de uma elite espiritual visível foi, segundo alguns, o dos Templários,
cuja brutal supressão pela monarquia francesa, com o apoio do papado, foi ou a
destruição trágica de uma espiritualidade profundamente esotérica pelas mãos de
exotéricos invejosos e estúpidos, ou a necessária eliminação de uma irmandade
internacional herética e corrupta com excesso de riqueza, poder e independência
— ou talvez um pouco de ambos.
É verdade que
o conhecimento “esotérico” costumava ser transmitido somente aos membros da
elite espiritual, primeiro porque somente eles se interessavam, e segundo
porque uma interpretação esotérica da doutrina pode desequilibrar a mente
daqueles que a ela se atraem sem poder compreendê-la plenamente. Mas em nossos
tempos todos os segredos esotéricos que podem ser ditos foram ou estão sendo
ditos, então não há mais nada a perder nesse aspecto; é por isso que os
Tradicionalistas frequentemente citam o provérbio dos cabalistas: “é melhor que
a doutrina seja mal compreendida do que esquecida.” O fato é que nem todos
podem compreender a metafísica — o que é o sentido da frase “o segredo protege
a si mesmo” — e nem todos os que podem compreendê-la mentalmente são capazes de
serem transformados espiritualmente por ela. Mas a qualidade do tempo presente
exige que toda a verdade seja dita, custe o que custar, já que “o gato saiu do
saco”, e é vital que essa verdade alcance aqueles poucos — dispersos por toda a
população mundial — que podem lucrar com sua expressão plena.
Nem a questão
sobre revelar ou ocultar doutrinas esotéricas é realmente nova. Guénon procurou
um potencial esotérico secreto dentro do Catolicismo, possivelmente um
resquício do Templarismo, mas não o encontrou. E muitas pessoas hoje ainda
tentam descobrir — ou inventar — um Cristianismo esotérico. Mas, segundo
Schuon, o Cristianismo em si é Cristianismo esotérico. A revelação cristã é uma
espécie de “eso-exoterismo”, uma iniciação esotérica tornada disponível a
todos; os ritos iniciáticos são o batismo e a confirmação. No Islã, a sabedoria
esotérica é guardada pelos sufis, os místicos organizados. No Cristianismo — ao
menos no Cristianismo pré-Reforma — ela estava dispersa por toda a tradição,
“oculta a céu aberto”. O Catolicismo a possuía, mas, na ausência de uma
tradição esotérica organizada comparável ao sufismo, não compreendeu o valor do
tesouro que lhe fora confiado, razão pela qual hoje está no processo de “jogar
fora o bebê junto com a água do banho”. Somente dentro da Ortodoxia Oriental,
em grande parte devido à presença do hesicasmo, essa dimensão permaneceu
relativamente intacta — o que não significa que a plenitude da salvação de
Cristo, e portanto o potencial do esoterismo, não esteja presente também em
algumas igrejas protestantes e no próprio Catolicismo, como testemunham grandes
esoteristas como Jakob Böhme dentro do luteranismo.
A visão de
Schuon sobre o Cristianismo é parcialmente confirmada por um interessante
detalhe histórico: entre os mandeanos, uma antiga seita gnóstica do sul do
Iraque, que afirma ter sido fundada por João Batista e que, segundo alguns
estudiosos, pode descender dos essênios, Jesus é visto como uma espécie de
renegado que revelou doutrinas esotéricas ao público. Isso demonstra, a meu
ver, que o potencial espiritual fecundo no ministério de Jesus consistia em
manifestar a profundidade interior da doutrina — e não em ocultá-la — e que as
raízes da heresia gnóstica podem residir na tentativa de vários círculos
esotéricos de desenvolverem seu próprio exoterismo, sua própria doutrina
“alternativa”, em vez de permanecerem como “fermento” ou “grão de mostarda”
dentro do Cristianismo como um todo. Por outro lado, Jesus sabia bem que nem
todos seriam capazes de compreender a profundidade revelada da doutrina, razão
pela qual nos Evangelhos Ele está continuamente dizendo coisas como “aquele que
tem ouvidos para ouvir, ouça”, e por isso falava ao povo em parábolas, mas aos
seus discípulos escolhidos falava direta e abertamente. A imagem central dessa
qualidade “eso-exotérica” do Cristianismo é a Transfiguração de Cristo, onde a
luz interior da tradição foi revelada abertamente. Mas permanece o fato de que
nem todos têm olhos para ver essa luz: até mesmo Pedro, um dos doze escolhidos,
não compreendeu totalmente o que acontecia. Assim, o segredo protege a si
mesmo.
Segundo a
sabedoria inerente à economia divina, pertencer a uma verdadeira elite
espiritual, organizada ou não, é necessariamente o fardo mais pesado que pode
ser suportado pela alma humana, embora a Intelectividade em si possa ser vista
como uma graça compensatória, já que, como disse Jesus, “meu jugo é suave e meu
fardo é leve.” E isso é justo: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” Não
há tolice maior do que alguém crer que sua percepção esotérica é uma vantagem,
uma “regalia”. Compreender coisas que pessoas com maior santidade, e até com
maior inteligência mental, jamais compreenderão — coisas que, se você falhar em
sua vida espiritual, apenas o condenarão mais profundamente — é um destino
duro, assim como retornar de uma batalha heróica com um braço a menos pode ser
um emblema de honra, mas não é, no sentido usual do termo, um caso de boa
fortuna. Como me apontou o escritor tradicionalista Rama Coomaraswamy, no
sistema tradicional de castas hindu, o dharma (dever sagrado) das duas castas mais
elevadas — os brâmanes (sacerdotes e intelectuais espirituais) e os xátrias
(guerreiros e administradores) — incluía salvaguardas internas contra o orgulho
de sua posição elevada. Os brâmanes, proibidos de trabalhar para viver, tinham
de mendigar seu pão de porta em porta entre a terceira casta, os vaixás,
cidadãos trabalhadores e sólidos; esta é uma humilhação que intelectuais
incapazes de ganhar dinheiro, como eu, conhecem bem. E o orgulho heroico dos
xátrias era temperado pela possibilidade sempre presente de ferimento,
mutilação e morte na batalha.
Portanto,
parte integral da prática de um membro da elite espiritual é não identificar
seu ego com sua função — lembrar de Deus, como dizem os sufis, e esquecer de si
mesmo. Em outras palavras, a humildade requerida do esotérico é muito mais
radical do que aquela suficiente para o exotérico, chegando a uma verdadeira
autoaniquilação. Como disse Groucho Marx (sem dúvida repetindo, na forma de uma
piada “Nasruddin” de uma só linha, um autêntico fragmento de saber esotérico,
provavelmente transmitido pelos hassídicos): “Eu jamais ingressaria em um clube
que me aceitasse como membro.”
Frithjof
Schuon foi talvez um dos doze maiores metafísicos da história conhecida,
comparável, em muitos aspectos, ao sábio hindu Shankaracharya, ao jñani cristão
Mestre Eckhart ou ao filósofo neoplatônico Plotino. Contudo, a comparação da
Escola Tradicionalista com o neoplatonismo tem outro sentido pertinente. A
filosofia platônica e neoplatônica só conseguiu sobreviver ao se anexar a uma
das grandes religiões reveladas, principalmente ao Cristianismo e ao Islã. A
tradição neoplatônica iluminou profundamente esses universos religiosos,
revelando em linguagem filosófica explícita muito do que teria permanecido
implícito na linguagem densamente simbólica e mitopoética da Bíblia e do
Alcorão. Mas nem o Cristianismo nem o Islã poderiam “tomar residência” dentro
do neoplatonismo, que em si não podia prover uma matriz fértil. Sem o arcabouço
de uma religião revelada, ele lentamente morreu. Nem mesmo o imperador romano
Juliano, o Apóstata, conseguiu restabelecer o Paganismo filosófico de forma
viável. E embora parte da razão para o desaparecimento das escolas filosóficas
possa ser atribuída à perseguição cristã, o fato permanece: o platonismo tardio
não era suficientemente amplo ou suficientemente em contato com a graça divina
para sobreviver por si só. O abismo entre suas concepções elevadas e o
paganismo degenerado que o cercava — e que teria de servir como sua base
popular — era demasiado grande. Isso pode explicar por que começou, sob
Jâmblico, a descer à teurgia quase mágica, e por que, segundo algumas
especulações, pode até ter se tornado ancestral de certas formas de magia
cerimonial ocidental.
A Escola
Tradicionalista enfrenta um dilema semelhante. Os ensinamentos profundos e
inspirados de Schuon e seus colegas só podem servir para reavivar as religiões
do mundo à profundidade metafísica de suas próprias tradições ortodoxas. Até
certo ponto, dentro tanto do Cristianismo quanto do Islã, esse processo já
começou. Mas na medida em que o Tradicionalismo se apaixona tanto pela
metafísica “pura” a ponto de esquecer que todo conhecimento metafísico, para
ser espiritualmente operativo, necessita de uma matriz viva dentro de uma das
grandes tradições reveladas — e, além disso, que não se pode simplesmente
relacionar-se a essas tradições como se representassem nada mais do que um
requisito mínimo, uma espécie de carteirinha exotérica que, após validar as
buscas esotéricas como ortodoxas, pode ser guardada na carteira e largamente
ignorada — ele corre o risco de tornar-se um “exoterismo alternativo”: em
outras palavras, um culto. Segundo Ibn al-‘Arabī, um dos maiores esotéricos
islâmicos, as obras espirituais obrigatórias para todos os crentes — oração,
jejum, peregrinação, esmola e testemunho de fé — são maiores do que as obras
“supererrogatórias”, inclusive as realizadas apenas pelos sufis. Ele adverte os
esotéricos sufis contra se deixarem enganar pelas revelações ou “desvelamentos”
que lhes vêm de Deus, de modo a abandonarem essas obras obrigatórias:
Encontramos
pessoas sinceras entre o Povo de Deus que foram enganadas por este estado. Elas
preferem seu próprio desvelamento e aquilo que se manifesta em seu entendimento
de modo que anula a regra estabelecida. Confiam nisso em seu próprio caso, e
permitem que outros observem a regra estabelecida em seu significado exterior.
Mas… qualquer um que confia nisso está totalmente confuso e deixou sua
afiliação ao Povo de Deus… Pode até acontecer que o possuidor de tal
desvelamento continue a praticar o sentido exterior dessa regra, embora não
creia nela para si mesmo. Ele a pratica estipulando a situação exterior (ẓāhir), dizendo para si: “A este mandamento
da Lei eu dou apenas o exterior de mim mesmo, pois conheci o seu segredo (sirr). Assim, sua
propriedade em minha consciência interior é diferente de sua propriedade em meu
exterior.” Portanto, ele não acredita nela em sua consciência interior enquanto
a pratica. Quem a pratica assim… “seu ato falhou, e no mundo vindouro estará
entre os perdedores” (Alcorão 5:5).
Futūḥāt al-Makkīyya II 233–34.
É preciso
aproximar-se das tradições espirituais de modo íntegro, sem reservas secretas.
Só então se perceberá que o verdadeiro esoterismo não se encontra em nenhum
outro lugar senão nas profundezas raramente sondadas das doutrinas ortodoxas
necessariamente aceitas por todos os crentes. E é precisamente isso que a
Escola Tradicionalista prega. Que continuem a praticar o que pregam.
O
Absoluto e o Infinito
Segundo
Frithjof Schuon, Deus é tanto Absoluto quanto Infinito:
Em metafísica
é necessário partir da ideia de que a Realidade Suprema é absoluta, e que,
sendo absoluta, é infinita. É absoluto aquilo que não permite aumento ou
diminuição, nem repetição ou divisão; é portanto aquilo que é ao mesmo tempo
unicamente si mesmo e totalmente si mesmo. E infinito é aquilo que não é
determinado por nenhum fator limitante e, portanto, não termina em qualquer
fronteira…
O Infinito é,
por assim dizer, a dimensão intrínseca do Absoluto; dizer Absoluto é dizer
Infinito, um sendo inconcebível sem o outro.
A distinção
entre o Absoluto e o Infinito expressa os dois aspectos fundamentais do Real: o
da essencialidade e o da potencialidade; esta é a mais alta prefiguração
principial dos polos masculino e feminino. A Radiação Universal, e assim a Māyā tanto divina quanto
cósmica, brota do segundo aspecto, o Infinito, que coincide com a
Toda-Possibilidade.
Survey
of Metaphysics and Esoterism, pp. 15–16.
O
Sumo Bem
Deus não é
apenas Absoluto e Infinito; Ele é também o Bem. A ideia de Absolutidade sem a
de Infinitude nos leva a imaginar Deus como um objeto remoto, inacessível, que
não tem necessidade de comunicar-se: um Ser que, em vez de criar ou emanar
todas as coisas, as exclui e nega. A ideia de Infinitude sem Absolutidade
comunica uma sensação de proliferação interminável e fatigante, sem centro
intrínseco de significado ou realidade. A ideia de uma Realidade Absoluta e
Infinita que não seja também o Sumo Bem postula um Deus onipresente e
todo-poderoso, mas sem solidariedade intrínseca com Sua criação — um Deus que,
apesar de Seu Absoluto e de Seu Infinito, poderia ainda ser fundamentalmente
cruel em relação a nós. E o conceito de um Deus que é apenas Bem, sem ser
Absoluto ou Infinito, não passa do “Deus liberal”, um ideal moral impotente que
deseja nosso bem, mas não é nem muito efetivo nem muito convincente quando
confrontado com a “realidade dura”. Segundo Schuon:
O “Sumo Bem” é
a Causa Primeira na medida em que é revelado por fenômenos que chamamos
precisamente de “bons”, isto é, que o real e o bom coincidem. De fato, são os
fenômenos positivos que atestam a Realidade Suprema, e não os negativos, privativos
ou subversivos; estes últimos manifestariam o nada “se existisse”, e isso
apenas num sentido indireto e paradoxal, na medida em que nada corresponde a um
fim irrealizável que, no entanto, tende à realização.
Portanto, se chamamos o Princípio Supremo de Bem, Agathón, ou se dizemos que é o
Sumo Bem que é o Absoluto e portanto o Infinito, isso é não porque
paradoxalmente limitemos o Real, mas porque sabemos que todo bem provém dele e
o manifesta essencialmente, e assim revela a sua Natureza. Com certeza pode-se
dizer que a Divindade está “além do bem e do mal”, mas com a condição de
acrescentar que esse “além” é por sua vez um “bem”, no sentido de que dá
testemunho de uma Essência em que não pode haver sombra de limitação ou
privação, e que, consequentemente, não pode deixar de ser o Bem absoluto ou a
Plenitude absoluta. . . .
Survey
of Metaphysics and Esoterism, p. 16
Transcendência
e Imanência
Toda tradição religiosa válida, de uma forma ou de outra, dá testemunho do fato
de que a Realidade Absoluta é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O que
significam essas palavras? Dizer que Deus é transcendente quer dizer que Ele
está além de todas as coisas e de todas as concepções. Dizer que Ele é imanente
quer dizer que todas as formas e concepções são manifestações d’Ele. E como
poderia ser diferente? Imaginemos um campo branco infinito com muitos círculos,
e círculos dentro de círculos, de tamanhos vastamente diferentes, inscritos
sobre ele. Que o campo infinito represente Deus. O campo branco é infinitamente
maior que um círculo de uma polegada de diâmetro; é também infinitamente maior
que um círculo de um quilômetro de diâmetro. Transcende ambos. No entanto, não
há nada dentro nem do círculo de uma polegada nem do círculo de um quilômetro
senão aquele campo branco infinito; ele é imanente em ambos. Schuon, porém,
expressa de modo mais exato o significado de transcendência e imanência,
evitando as armadilhas da minha ilustração simplista, quando diz:
em conexão com
os aspectos ou modos do Sumo Bem, devemos também considerar as relações de
Transcendência e Imanência, a primeira ligada mais ao aspecto da Absolutidade,
a segunda ao da Infinitude. Segundo a primeira relação, só Deus é o Bem; só Ele
possui, por exemplo, a qualidade de beleza; em comparação com a Beleza divina,
a beleza de uma criatura não é nada, assim como a própria existência não é nada
em face do Ser divino; tudo isso do ponto de vista da Transcendência.
A perspectiva da Imanência também parte do axioma de que somente Deus possui
tanto as qualidades quanto a realidade; mas a sua conclusão é positiva e
participativa, e assim se dirá que a beleza de uma criatura — sendo beleza e
não o seu contrário — é necessariamente a de Deus, já que não há outra; e o
mesmo é verdadeiro de todas as outras qualidades, sem esquecer, em sua base, o
milagre da existência. A perspectiva da Imanência não anula as qualidades
criadas, como o faz a da Transcendência, mas, pelo contrário, torna-as divinas,
se é lícito assim se exprimir.
Survey
of Metaphysics and Esoterism, p. 17
Hierarquia
Não há conceito mais impopular hoje em dia do que o de hierarquia. No
vocabulário da maioria das pessoas, ele não significa nada mais nem nada menos
que “poder estabelecido, portanto arbitrário”.
O modernismo
liberal rebelou-se contra as antigas hierarquias da Igreja e do Estado,
distribuindo ao “povo” (na realidade, à burguesia) as prerrogativas que outrora
pertenciam ao rei e ao papa. A interpretação das Escrituras passou a ser
unicamente questão de inspiração individual; a casa de um homem era seu
castelo. O resultado foi o domínio do “capitalismo predatório”, no qual
indivíduos poderosos, sem relação orgânica ou “corporativa” com as massas,
tomaram o poder, em grande parte por meios econômicos. O marxismo surgiu em
reação a isso. Nas nações comunistas, o poder era teoricamente distribuído à
maior e mais baixa classe, os trabalhadores, mas na realidade ficava nas mãos
de uma pequena oligarquia partidária.
Essa rebelião
contra as hierarquias sociais ocultou a verdade de que tais hierarquias
existiam originalmente para fornecer uma imagem concreta e um lembrete da
verdadeira hierarquia ontológica, a Grande Cadeia do Ser. Um rei ou papa
individual seria desprezado pelo povo se traísse o seu arquétipo, se não
estivesse à altura de sua função, mas o Trono e a Cátedra Papal, os arquétipos
em si, permaneciam sacrossantos. O sacerdócio representava Deus no céu e no
outro mundo; a monarquia representava o poder ativo de Deus neste mundo.
É claro que
essa estrutura social “hierática” sempre foi imperfeita. E, quando em
determinado lugar e época se degenerava, erguia-se como a pior forma de
idolatria. Em vez de funcionar como símbolo transparente da Hierarquia do Ser,
tornava-se um falso dessa Hierarquia, um véu sobre o rosto das realidades
espirituais.
Tanto no
Antigo Testamento quanto no Alcorão, o símbolo por excelência dessa
falsificação da hierarquia espiritual é o Faraó do Egito. Segundo o Alcorão, o
Faraó acreditava literalmente ser Deus — e é exatamente isso o que acontece
quando uma estrutura régia ou eclesiástica elaborada começa a adorar o próprio
saber e magnificência em vez do Deus a quem existe para servir. A verdadeira
hierarquia, como a escada no sonho de Jacó, sobre a qual os anjos subiam e
desciam constantemente, existe para fornecer uma “comunicação de mão dupla”,
por assim dizer, entre a existência manifestada e a sua Fonte transcendente. O
próprio universo é uma hierarquia desse tipo. Mas, quando o conceito humano de
hierarquia degenera e se petrifica, a ideia da transcendência divina torna-se
nada além de uma imagem falsa da inacessibilidade e indiferença de Deus. Nesse
ponto é quando, pela misericórdia de Deus, a imanência divina muitas vezes
entra em ação na mente coletiva. Moisés e os israelitas, como escravos dos
egípcios, obviamente não podiam relacionar-se com Deus através da “pirâmide”
esmagadora do sistema religioso egípcio (o que não quer dizer que nada tenham
recebido dele; pelo menos um dos Salmos foi originalmente um antigo hino
egípcio). Foi a Moisés, um fugitivo procurado por homicídio, escondido no
deserto, que Deus falou através da sarça ardente. Quando a religião hierárquica
se torna um refúgio para “guias cegos que não entram e não deixam os outros
entrar”, então a visão da imanência divina, da disponibilidade misericordiosa
de Deus para com os pobres e oprimidos — para com aqueles que têm verdadeira
simplicidade de alma, inocentes de oprimir outros, inocentes de complexidades
mentais e organizacionais estéreis — é desvelada. À luz disso, o Êxodo pode
talvez ser visto como uma espécie de Reforma protestante contra uma religião
egípcia tornada petrificada e espiritualmente morta.
Não obstante,
a hierarquia é. Ela é intrínseca à natureza do Ser. Moisés, pela graça e pelo
poder de Deus, foi chamado a ascender ao Monte Sinai, símbolo da Hierarquia do
Ser, para receber a Torá. Aqueles que negaram a realidade dessa Hierarquia, que
quiseram relacionar-se com Deus somente através de Sua Imanência, negando Sua
Transcendência, permaneceram embaixo para adorar o Bezerro de Ouro.
Modos e níveis
hierárquicos
O relato dos níveis do Ser que separam o Criador do universo material, ao mesmo
tempo em que os unem, é semelhante em todas as tradições reveladas e nas obras
de muitos filósofos místicos. Mas nunca é idêntico, já que tudo o que pode ser
tornado explícito já entrou no mundo da relatividade. As doutrinas
verdadeiramente metafísicas são infinitamente mais estáveis, articuladas,
inteligíveis e concretas do que qualquer coisa nos mundos material ou psíquico.
Mas, embora o Absoluto as emane, elas não podem contê-lo; só podem indicá-lo.
O Ser
manifesta-se em diferentes níveis, mas aparece também em termos de diferentes
qualidades ocupando um mesmo nível. Os níveis são verticais; cada nível
superior é causa dos níveis abaixo dele e contém tudo o que está nesses níveis
inferiores em forma mais elevada. Da mesma forma, cada nível inferior é
manifestação ou expressão — um símbolo — de tudo o que está acima dele; nas
palavras de René Guénon, “o efeito é um símbolo da causa”. Os modos do Ser, por
outro lado, são horizontais; diferem em qualidade e função, mas não em grau de
realidade; são manifestações polarizadas e mutuamente definidoras de um único
nível de Ser.
A distinção
entre modos e níveis pode ser ilustrada no campo do gênero. Em termos verticais,
o homem, considerado como reflexo do Logos criador, é superior à mulher,
considerada como reflexo da Substância universal receptiva. Vista a partir da
perspectiva oposta, porém, a mulher, tomada como símbolo da Essência divina ou
do Além-do-Ser, é superior ao homem, visto como símbolo do ímpeto
particularizante do Logos, cujo limite ontológico é o mundo material tal como
percebido pelo ego humano. Mas, em termos horizontais, homem e mulher estão
polarizados como opostos complementares, no mesmo nível de Ser. A mão direita
não é mais real do que a esquerda; por serem complementares, são iguais. Mas
igualdade, nesse sentido, nada tem a ver com identidade ou mesmidade. A mão
direita conserva sua conexão simbólica com os reinos superiores do Ser, com a verdade
e o “direito”, enquanto a mão esquerda ou “sinistra” mantém afinidade com os
reinos inferiores. Por outro lado — trocadilho deliberado — a mão direita
também está relacionada ao ego consciente exterior e a mão esquerda à Verdade
interior, como Jesus deu a entender quando recomendou que, ao praticar a
caridade, alguém não deixasse que “a mão direita (ego consciente) saiba o que
faz a esquerda (impulso espiritual interior)”. [NOTA: Quem meditar sobre o
famoso símbolo Yin/Yang verá nele uma representação visual deste parágrafo.]
Segundo
Schuon, o Princípio Supremo possui dimensões, modos e graus ou níveis. Suas
dimensões são Absolutidade e Infinitude — bem como, em relação à Sua Māyā, à Sua potencialidade
inerente de auto-manifestação, Perfeição. “Absolutidade do Real, Infinitude do
Possível, Perfeição do Bem.” Seus modos são Sabedoria, Poder e Bondade, cada um
dos quais, por sua vez, é Absoluto, Infinito e Perfeito. Seus graus ou níveis
são “a Essência divina, a Potencialidade divina e a Manifestação divina; ou o
Além-do-Ser, o Ser criador e o Espírito ou o Logos extensional que constitui o
Centro divino do cosmos total” (Survey of Metaphysics and Esoterism, pp. 25–26). Schuon e
outros metafísicos — Plotino, por exemplo, ou Dionísio Areopagita, ou Ibn
al-‘Arabī — multiplicam essas dimensões, modos e graus da Realidade de muitos
modos diferentes, apenas para reconduzi-los novamente à absoluta simplicidade
de seu Princípio. A exposição acima visa apenas dar ao leitor uma ideia
preliminar de alguns dos princípios mais essenciais da metafísica pura de
Schuon.
Amor e
Conhecimento
Os escritores da Escola Tradicionalista colocam o caminho da gnosis ou jñāna, a via de união com
Deus por meio do conhecimento, acima do caminho da devoção ou bhakti, que se baseia no
amor. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento nunca está separado do amor.
“Há uma bhakti sem jñāna”, afirma Schuon, “mas
não há jñāna sem bhakti.”
“Em princípio,
o conhecimento é maior do que o amor. . . .”, diz Schuon. No entanto, ele
prossegue: “. . . mas de fato, no mundo, a relação é inversa, e o amor, a
vontade, a tendência individual é, na prática, mais importante. . . .” (Spiritual Perspectives
and Human Facts,
p. 148). Assim, um amor dinâmico a Deus é maior, em seus efeitos reais, do que
um conhecimento mental ou “mundano” da metafísica, porque conduz a um
conhecimento ainda mais elevado, que é a verdadeira realização. Em outro ponto
do mesmo capítulo Schuon escreve: “Um culto da inteligência e a paixão mental
afastam o homem da verdade. A inteligência se retira assim que o homem põe a
sua confiança apenas nela. A paixão mental perseguindo a intuição intelectual é
como o vento que apaga a luz de uma vela” (ibid., p. 132) e: “Tudo o que São
Paulo diz sobre a caridade diz respeito ao conhecimento efetivo, já que este é
amor. . . .” (ibid., p. 138).
Assim, Schuon,
em certo sentido, define o amor como a energia que conduz à Meta, e em outro
como um aspecto da própria Meta. Como diz em outro lugar: “A via do amor — bhakti metódica — pressupõe
que através dela possamos ir em direção a Deus; enquanto o amor como tal — bhakti intrínseca — acompanha
a via do conhecimento, jñāna,
e baseia-se essencialmente em nossa sensibilidade à Beleza divina” (Roots of the Human
Condition,
p. 118).
Segundo
Schuon, “o amor perfeito é ‘luminoso’ e o conhecimento perfeito é ‘quente’. . .
. Em Deus o Amor é Luz e a Luz é Amor” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 148). “É
necessário cavar fundo no solo da alma”, diz ele, “através de camadas de aridez
e amargura, a fim de encontrar o amor e viver dele” (The Essential Writings
of Frithjof Schuon,
p. 451). Não obstante, Schuon escreve mais frequentemente a partir de uma
perspectiva que coloca o conhecimento acima do amor. Ele diz:
Para o amor, o
homem é sujeito e Deus é Objeto. Para o conhecimento, é Deus quem é Sujeito e o
homem, objeto. . . . Para o homem espiritual de temperamento emocional, amar é
ser e conhecer é pensar, e o coração representa a totalidade, a própria base do
ser, e o cérebro, o fragmento, a superfície. Para o homem espiritual de
temperamento intelectual, ao contrário, o conhecimento é ser e o amor é querer
ou sentir, e o coração representa a universalidade ou o Si-mesmo (Self) e o cérebro, a
individualidade ou o “eu”. O conhecimento parte do Universal, e o amor, do
individual; é o Conhecedor absoluto que conhece, enquanto o sujeito humano, a
criatura, é chamado a amar.
Spiritual
Perspectives and Human Facts, pp. 144–145
Quatro páginas
adiante, porém, Schuon toma outra direção. Depois de afirmar que, sob a
perspectiva do Conhecimento, Deus é o Conhecedor e o sujeito humano o amante,
ele agora diz: “O amor do homem afetivo consiste em que ele ama Deus. O amor do
homem intelectual consiste em que Deus o ama; isto é, ele percebe
intelectualmente — mas não de modo simplesmente teórico — que Deus é Amor”
(ibid., p. 149). Aqui, portanto, mesmo para o homem intelectual — como para
Dante no Paraíso — Deus ama, e é o
próprio Amor. Como Schuon diz em outro ponto do mesmo livro, “[Deus] é Amor,
não porque ama, mas ama porque é Amor” (ibid., p. 107). O Deus pessoal em ação
é o “Amante”; a Essência divina é “Amor”; e isto é verdadeiro mesmo sob a
perspectiva do conhecimento. Não obstante, o ponto de vista de Schuon permanece
essencialmente jñānico e não bhaktico. Em The Essential Writings of Frithjof Schuon, pp. 39–40, ele escreve:
Quando
colocamos a ênfase na Realidade objetiva — que então passa a ter precedência na
relação entre sujeito e objeto — o sujeito torna-se objeto, no sentido de que,
determinado inteiramente pelo objeto, esquece o elemento consciência; nesse
caso, o sujeito, na medida em que é um fragmento, é absorvido pelo Objeto, na
medida em que este é uma totalidade, assim como o acidente é reintegrado na
Substância.
Esta é a
perspectiva da bhakti, em que o amante de
Deus é extaticamente aniquilado em seu Amado. Mas a perspectiva de jñāna, em que Deus não é o
Objeto absoluto, mas o Atman,
a Testemunha divina, é mais elevada ainda:
Mas o outro
modo de ver as coisas, que reduz tudo ao Sujeito, tem precedência sobre o ponto
de vista que concede primazia ao Objeto: se adoramos Deus, não é simplesmente
pelo fato de Ele se apresentar a nós como uma realidade objetiva de imensidão
vertiginosa e esmagadora — caso contrário adoraríamos as estrelas e as
nebulosas — mas é sobretudo porque essa realidade, a priori objetiva, é o maior
dos sujeitos; porque Ele é o Sujeito absoluto de nossa subjetividade
contingente; porque é ao mesmo tempo onipotente, onisciente e consciente em
grau sumo e benéfico.
O Problema do
Mal
Um dos problemas perenes da teologia é o seguinte: se Deus é todo-poderoso, no
sentido de que, em última análise, é responsável por tudo o que ocorre, então
Ele deve ser também o autor do mal. Como, então, pode ser o Sumo Bem? E, se Ele
é sumamente bom, não seria necessário haver um segundo princípio, distinto e
oposto a Ele, para explicar a existência do mal? Se assim for, como pode Ele ser
onipotente?
Os dualistas
maniqueus adotaram esta última posição. O judaísmo e o islã tendem mais para a
primeira, embora continuem a afirmar dogmaticamente a bondade e a misericórdia
de Deus, de modos que só podem ser plenamente reconciliados com a onipotência
divina, porém, a partir de uma perspectiva esotérica. O cristianismo
aparentemente tende à posição mais dualista; seu dualismo, contudo, não é
primariamente o que opõe Deus ao Diabo, mas sim o que opõe a bondade divina à
vontade livre humana e angélica. Deus não quer o mal, mas o “permite”, embora o
motivo por que um Deus bom e onipotente permitiria o mal apenas para nos dar a
chance de lutar contra ele permaneça um enigma para muitos — ao menos para
aqueles que não veem que o livre-arbítrio é um dom gratuito dado a nós, por
Deus, de um aspecto de Sua própria Natureza.
Se Deus é bom,
Ele não pode ser onipotente, e se é onipotente não pode ser bom — ou assim
parece. Para Schuon, contudo, essa contradição resolve-se com facilidade. Dado
que Deus é Infinito, Ele deve irradiar as possibilidades inerentes à Sua
natureza, manifestando-as como a Hierarquia do Ser; e, à medida que a criação
desce essa Hierarquia, tornando-se progressivamente menos real e menos viva, a
possibilidade do mal — que não é um princípio em si, mas “apenas” uma condição
de irrealidade relativa ou de não-entidade, assim como a fome não é uma coisa
em si, mas “apenas” falta de alimento — entra em cena. (Dizer que “Ele deve”
irradiar o Seu Ser não significa, contudo, que Ele não tenha escolha quando se
trata de criar o universo, mas apenas que essa escolha é feita na eternidade,
não no tempo. Para nós, aquilo que necessariamente somos por natureza e aquilo
que livremente escolhemos fazer são duas coisas diferentes; para Deus, são a
mesma.) Nas palavras de Schuon:
O mal é a
“possibilidade do impossível”, cuja ausência faria com que o Infinito deixasse
de ser o Infinito; perguntar por que a Toda-Possibilidade inclui a
possibilidade de sua própria negação — possibilidade sempre reiniciada, mas
nunca totalmente atualizada — é como perguntar por que a Existência é
Existência, ou por que o Ser…
Primordialidade
Para os
Tradicionalistas, a religião é primordial. Quando Santo Agostinho disse que o cristianismo
sempre existiu, mas só foi chamado por esse nome depois da vinda de Jesus
Cristo, ele estava afirmando essa primordialidade. Judeus e muçulmanos tocam na
mesma verdade quando ensinam que Adão foi o primeiro profeta.
Todas as
religiões verdadeiras têm uma única origem, que, em termos macrocósmicos, é o
próprio universo, onde “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento
anuncia a obra de Suas mãos”, e, em termos microcósmicos, a natureza
“teomórfica” do homem, “terrível e maravilhosamente feito” à imagem e
semelhança de Deus.
Na Idade de
Ouro deste ciclo, todas as religiões eram uma só. Aquilo que o coração humano
conhecia do Criador por intelecção direta, o olho humano via, pela
contemplação, nos objetos do mundo natural e na forma do corpo humano. Mesmo
hoje, alguns dos “povos primordiais” conservam vestígios dessa visão primordial
do cosmos como manifestação do Grande Espírito. (Em reconhecimento de sua
apreciação das espiritualidades primordiais, Frithjof Schuon foi admitido como
membro tribal tanto entre os Crow quanto entre os Lakota [Sioux], e contou
vários pajés tradicionais entre seus amigos espirituais.)
Primordialidade,
porém, não significa que uma simples apreciação estética ou sentimental da
natureza possa equivaler a uma orientação religiosa espiritualmente eficaz. Já
não estamos na Idade de Ouro; a Árvore da Religião, cujas raízes estão na
eternidade, no Absoluto unitário, já se ramificou muitas vezes desde então.
Nestes últimos tempos, salvo casos imprevisíveis baseados em destino espiritual
individual, a verdadeira religião só é encontrada em uma das tradições
reveladas. O tronco da árvore pode ser um só, mas frutos nutritivos só crescem
nos ramos.
As religiões
reveladas, entretanto, não são inovações. Apesar de todas as suas dessemelhanças
necessárias e providenciais, decorrentes de seu lugar no tempo cósmico e da
natureza das coletividades humanas às quais foram e são dirigidas, cada
revelação, num sentido mais profundo, é uma recordação da Revelação Primordial
Una: a criação do cosmos por Deus, cujo centro consciente e auto-transcendente
é o homem — na medida em que, por seu Intelecto interior, ele contempla sua
Origem divina por meio desse mesmo Intelecto.
A
Unidade Transcendente das Religiões
Assim, todas
as religiões verdadeiras e reveladas são ramos da Única Verdade. Elas se
encontram não apenas nas profundezas do tempo, mas nas profundezas da Natureza
divina. Fora dessas profundezas, porém, divergem necessariamente. É possível,
portanto, contemplar panoramas da Verdade revelada através de muitas tradições,
mas não é possível praticar mais de uma religião ao mesmo tempo como meio de
salvação, tanto quanto não se pode caminhar simultaneamente por duas ou três
estradas. A essência da verdade espiritual, como a do amor humano, não está nas
semelhanças abstratas que se podem traçar entre várias tradições religiosas,
mas na particularidade de uma única tradição, plenamente assumida e plenamente
vivida. Como dizem os sufis, é melhor cavar um poço com trinta metros de
profundidade do que dez poços com três metros, se se quer encontrar água. Nas
palavras de Rumi:
Quando é que a
religião já foi uma só? Sempre foi duas ou três, e a guerra sempre grassou
entre correligionários. Como você vai unificar a religião? No Dia da
Ressurreição ela será unificada, mas aqui neste mundo isso é impossível, porque
cada um tem um desejo e uma vontade diferentes. A unificação não é possível
aqui. Na Ressurreição, porém, quando todos estiverem unidos, todos olharão para
uma única coisa, todos ouvirão e falarão uma única coisa.
Signs
of the Unseen
[Fihi
ma-Fihi],
p. 29
O “Dia da
Ressurreição” é também “antes da Queda” e “nas profundezas da Natureza divina”.
O
Caminho Espiritual
James S.
Cutsinger, em Advice
to the Serious Seeker: Meditations on the Teaching of Frithjof Schuon, fala de quatro
aspectos do Caminho espiritual: Verdade, Virtude, Beleza e Oração.
A Verdade é a
doutrina metafísica que, com a graça de Deus, pode abrir-nos a uma intuição do
Intelecto transcendente no centro da alma humana. Mas, para que a alma se
conforme de modo permanente a esse Intelecto, é necessária a Virtude. As três
virtudes primárias aqui são humildade, caridade e veracidade, que se relacionam
às três faculdades principais da alma. A humildade conforma a vontade humana ao
Intelecto transcendente, a caridade conforma os sentimentos, e a veracidade
conforma a mente pensante. Ou, sob outra perspectiva, podemos dizer que cada
virtude conduz a alma a uma relação mais profunda com o seu próprio arquétipo
divino: a humildade abre a alma para a Virtude de Deus, e assim para uma
apreciação humilde da virtude onde quer que apareça; a caridade, para a Beleza
de Deus, e assim para toda Beleza em toda parte, incluindo a beleza moral
daquele que não é fisicamente belo, ou a beleza virtual da própria condição
humana naquele que carece até mesmo de beleza moral; e a Veracidade, para a
Verdade de Deus, e assim para a Verdade em todas as suas formas, incluindo a
verdade de situações contingentes e até de simples fatos. Na Natureza divina,
porém, esses três arquétipos não são separados, razão pela qual cada um deles
afeta cada uma das três faculdades da alma humana à sua maneira. A virtude é a
verdade em ação, um de cujos frutos é a beleza moral. A beleza pode nutrir e
fortalecer a vontade, além de ser, por direito próprio, um modo de
conhecimento. E a Verdade em si é singularmente forte e incomparavelmente bela;
ela torna possível tanto a honestidade emocional quanto uma avaliação objetiva
do próprio progresso na virtude.
Nas palavras
de Platão, “a Beleza é o esplendor da verdade”. Segundo Schuon, “a Beleza, com
a amplitude de seu infinito e sua generosidade, rompe as atitudes fixas e os
sistemas fechados do… egoísmo espiritual” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 164). As coisas
belas, porém, não estão isentas de ambiguidades:
Toda Beleza é
ao mesmo tempo uma porta fechada e uma porta aberta… um obstáculo e um veículo:
ou a Beleza nos separa de Deus porque está totalmente identificada, em nossa
mente, com o seu suporte terrestre, que então assume o papel de ídolo, ou a
Beleza nos aproxima de Deus porque nela percebemos as vibrações da Beatitude e
do Infinito que emanam da Beleza divina.
Esoterism
as Principle and as Way, p. 182
Mesmo num
objeto indigno, ou num objeto tornado indigno em relação a nós por causa de
nossa idolatria, a Beleza continua sendo um raio da Natureza divina.
“A virtude é a
Beleza da alma, assim como a Beleza é a Virtude das formas” (Logic and Transcendence, p. 246). É a Beleza
que nos permite contemplar as formas ao nosso redor em sua “transparência
metafísica”:
Se o ouro não
é chumbo, é porque ele ‘conhece’ melhor o Divino. Seu ‘conhecimento’ está em
sua própria forma… a rosa difere do lírio-d’água por sua particularidade
intelectual, por seu ‘modo de conhecer’… Um animal nobre ou uma flor formosa é
intelectualmente superior a um homem vil.
Spiritual
Perspectives and Human Facts, p. 121.
O quarto
aspecto do Caminho espiritual, a Oração, é a essência dos outros três. Longe de
ser mera técnica para realização de desejos ou alteração da consciência, ela é
a Beleza essencial, a Virtude essencial e a Verdade essencial; como disse um
rabino, “a própria oração é o Divino”.
A oração toma
três formas complementares: a oração canônica, que nos conecta organicamente
com nossa comunidade e tradição espirituais escolhidas; a oração pessoal, que
nos conecta em nossa particularidade com o rosto específico do Divino que, na
eternidade, se volta para essa particularidade; e a oração invocativa, que
transcende ambas. A oração invocativa significa a invocação (idealmente)
perpétua do Nome divino, prática chamada dhikr no sufismo, Oração de Jesus ou Oração
do Coração no hesicasmo cristão ortodoxo, e japa(m) no hinduísmo. Pela
Invocação, virtualmente senão de fato, somos aniquilados em nossa individualidade
separada e divinizados pela atividade do Nome, já que “Deus e Seu Nome são um”.
No sufismo isso se chama fanā
e baqā, “aniquilação e
subsistência-em-Deus”; na Ortodoxia, chama-se theosis ou deificação. É o
estado a que São Paulo se referia quando disse “já não sou eu quem vivo, mas
Cristo vive em mim”. Quando Jesus ordenou aos discípulos que “orassem sem cessar”,
é provável que se referisse à prática da oração invocativa. Segundo o Dr.
Cutsinger, a invocação do Nome divino é de tal profundidade e poder que jamais
deve ser empreendida por iniciativa própria, mas apenas com a permissão de um
mestre espiritual — ou, à falta de acesso a tal mestre, com base em um voto
solene perante Deus e sob a orientação de um diretor espiritual. Por fim, não
existe algo como uma Invocação “genérica”; os Nomes divinos que carregam o
poder de engendrar Deus na alma humana são aqueles que o próprio Deus nos
revelou, nas línguas dos Caminhos que Ele mesmo fundou.
Simplicidade
de Alma
A metafísica é
complexa; o seu Objeto é simples. Ela é complexa precisamente porque o seu
Objeto é de tal simplicidade que toda complexidade concebível e mesmo
inconcebível pode existir dentro d’Ele, sem caos, sem obscurecimento mútuo,
numa paz ardente e trovejante.
Frithjof
Schuon atribuía um lugar muito alto à simplicidade de alma. Embora seus livros
fossem dirigidos a “intelectuais”, ele também atraía muitos que não tinham
interesse em teorias complexas. A gnose, recorda ele, não é uma aquisição
mental, mas um contemplar, em simplicidade total e virginal, a Verdade nua, até
que o Objeto visto se transforme naquele que vê. Em Light on the Ancient
Worlds
(p. 109), ele escreve:
Se a Bíblia é
ingênua, é uma honra ser ingênuo. Se as filosofias que negam o Espírito são
inteligentes, então não existe tal coisa como inteligência. Uma crença humilde
em um Paraíso situado entre as nuvens tem pelo menos um pano de fundo de
Verdade inalienável, mas tem também — e sobretudo — o pano de fundo de uma
realidade misericordiosa na qual não há engano, e isso é algo acima de qualquer
preço.
Crítica
do Mundo Moderno
A Verdade
projeta uma longa sombra. Se algumas coisas são necessariamente verdadeiras,
então outras são necessariamente falsas. O amor da Verdade deve, portanto,
incluir o ódio ao erro, assim como o amor por uma pessoa amada humana deve
incluir a vontade de defendê-la de tudo o que possa feri-la ou degradá-la, mesmo
ao ponto de sacrificar a própria vida. Qualquer coisa menor não é verdadeiro
amor — nem verdadeiro amor à sabedoria. E, no entanto, crítica e defesa estarão
sempre em nível inferior ao da afirmação da Verdade, que é por sua vez inferior
à contemplação pura da Verdade. Toda rosa tem seus espinhos; contudo, as rosas
não são cultivadas por causa dos espinhos, mas por causa de sua forma, de sua
cor e de seu perfume. A Verdade, embora tenha um gume duro, é essencialmente
misericordiosa e redentora; nas palavras de Allah, um de Cujo Nomes é al-Ḥaqq (a Verdade), “Minha
Misericórdia precede Minha ira”. Mas o que dizer de al-Ḥaqq em sua própria
Essência, o que dizer da Verdade absoluta, dado que (segundo Schuon) o Absoluto
não tem oposto? Como pode qualquer negação existir nas profundezas da Natureza
divina? Talvez a melhor maneira de responder a isso seja com dois provérbios
aparentemente paradoxais de William Blake, que certamente se referem ao nível
da manifestação cósmica, e talvez até ao de maya-in-divinis: “Tudo o que é
possível ser acreditado é uma imagem da Verdade”, e “Estar em erro e ser
lançado fora faz parte do plano de Deus.”
Os escritores
da Escola Tradicionalista elaboraram talvez a crítica mais contundente do mundo
moderno e pós-moderno de que dispomos. Livros
representativos são The Bugbear of
Literacy, de Ananda K. Coomaraswamy; The
Destruction of the Christian Tradition,
de Rama P. Coomaraswamy; King of the
Castle, de Charles LeGai Eaton; The
Crisis of the Modern World e The
Reign of Quantity and the Signs of the Times,
de René Guénon; Ancient Beliefs and Modern Superstitions, de Martin Lings; seções de The
Transcendent Unity of Religions, Spiritual
Perspectives and Human Facts, Light
on the Ancient Worlds e outras obras de
Frithjof Schuon; e Beyond the
Postmodern Mind, de Huston Smith. O presente livro foi
escrito, em parte, para expandir e atualizar certos aspectos dessa crítica.
Para resumir a
crítica tradicionalista do mundo moderno numa frase: eles não “compram” o
pacote. Como viver dentro dele se você não o compra, e como aproveitar as
oportunidades espirituais únicas propiciadas por tempos de trevas espirituais
coletivas, é uma das questões centrais que os Tradicionalistas tentam
responder.
Segundo a
visão da maioria das religiões tradicionais, o tempo é cíclico, e entrópico.
Uma Autorrevelação divina inaugura uma era do mundo, que desce de uma Idade de
Ouro original até uma Idade de Ferro terminal, sendo finalmente destruída, após
o que um novo ciclo de manifestação desce dos mundos superiores. Segundo essa
visão, o progresso só pode ser uma ilusão; para cada bem que se ganha com o
aumento do conhecimento humano e do controle sobre a natureza, um bem cultural
e espiritual maior é perdido. O ciclo não pode ser revertido. As perversões do
mundo moderno, sua destruição da metafísica, seus ataques à religião e suas
violações do mundo natural e da forma humana são males, mas não são ilegais no
sentido mais elevado do termo, já que as consequências terríveis da violação
humana da justiça divina e natural são elas mesmas justas. “É necessário que
haja escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo vem.” A humanidade
coletiva, em certo sentido, pode ser perdoada; não é crime simplesmente
envelhecer. Mas a “velhice do macrocosmo” não absolve os indivíduos de seu
dever de discernir e escolher a Verdade. E quando Verdade e engano estão tão
radicalmente polarizados, como devem estar nestes últimos dias, a escolha que
se apresenta a cada indivíduo é mais momentosa do que em qualquer outro ponto
de todo o ciclo.
A projeção
desse falso mito do progresso sobre a biologia resulta na ideologia conhecida
como evolucionismo, a doutrina de que o menos é a origem causal do mais, de que
formas de vida mais elevadas e complexas, incluindo o homem, desenvolveram-se
gradualmente a partir de formas mais simples. Os Tradicionalistas, por outro
lado, ensinam que o advento de novas formas de vida — que o registro fóssil
mostra ser mais descontínuo do que contínuo, pondo assim a “seleção natural de
mutações aleatórias” de Darwin em séria dúvida — representa na realidade a
descida de arquétipos espirituais organizadores da matéria a partir dos planos
superiores do Ser, em resposta à palavra criadora de Deus. Essas “Ideias
platônicas” das espécies então atraem para si a matéria de que necessitam para
construir veículos físicos para sua vida no espaço e no tempo.
O progressismo
e o evolucionismo são aspectos da ideologia mais abrangente conhecida como
cientificismo, a crença de que nada existe para além do mundo material, e,
portanto, de que o propósito e o destino do homem estão em conquistar e
controlar a matéria, no curso da qual ele deve aprender a definir-se como
matéria e nada mais.
Os
Tradicionalistas também têm algo de valioso a dizer contra os excessos da
democracia, que mantém íntima ligação histórica com o progressismo, o
cientificismo e o evolucionismo. Quando a verdade se degrada a opinião da
maioria, e quando o indivíduo consequentemente tenta basear suas escolhas
morais na subjetividade de massa da sociedade coletiva que o cerca, em vez de
em princípios objetivos, o resultado é o caos. (Acrescentaria apenas uma
advertência: segundo Platão, a democracia sempre degenera em tirania; por isso
nos convém manter a democracia o máximo de tempo que pudermos. O perigo que se
ergue no horizonte pós-moderno não é a democracia, mas uma espécie de
neo-aristocracia satânica, chamada por Guénon de “hierarquia invertida” e
identificada por ele com o regime do Anticristo.)
Guénon
vs. os Ocultistas
O fundador da
Escola Tradicionalista, René Guénon (1886–1951), foi um dos dois ou três
maiores expoentes da “metafísica pura” nos tempos modernos. Em livros como Introduction to
the Study of the Hindu Doctrines, Man
and His Becoming according to the Vedanta,
The Symbolism of the Cross e Multiple States of Being,
ele reintroduziu a metafísica e o esoterismo tradicionais, tanto oriental
quanto ocidental, no mundo ocidental. Mas havia outro lado em seu gênio. Antes de seu
encontro com aquilo que passou a chamar de Tradição com “T” maiúsculo, ele
explorou profunda e extensivamente o submundo do ocultismo ocidental —
Rosacrucianismo, Maçonaria, Martinismo, Templarismo, Neognosticismo, Teosofia,
Espiritismo e outras seitas — aproximadamente de 1905 ao início dos anos 1920.
Saiu desse período convencido não apenas da falsidade doutrinal do ocultismo,
especialmente quando comparado à herança metafísica comum das grandes religiões
mundiais, mas também de seu profundo perigo espiritual. Atribuiu a morte de sua
primeira esposa a influências sombrias provenientes daquele meio, e declarou
sentir-se incapaz, mesmo depois de tornar-se muçulmano ortodoxo e iniciado
sufi, de assumir o papel de mestre espiritual, já que sua alma fora marcada por
um contato íntimo demais com forças psíquicas malignas em seus primeiros anos.
Numa tentativa
de advertir outros desse perigo, e sem dúvida também como modo de purgar-se a
si mesmo, publicou seu segundo livro (em 1921, quando seu primeiro livro, Introduction to the
Study of the Hindu Doctrines, também apareceu) sob o título Le Théosophisme,
histoire d’une pseudo-religion (Teosofismo: História de uma
Pseudo-Religião),
um libelo contra a Sociedade Teosófica de Madame Blavatsky, bem como contra a
Antroposofia de Rudolf Steiner. (No decorrer do presente livro, a teosofia
moderna surgirá várias vezes como a “sombra” contínua do Tradicionalismo.) Em Le Théosophisme, ele anuncia alguns
dos temas aos quais retornaria em várias outras obras, incluindo L’Erreur Spirite (O Erro Espírita), em 1923, e sua
obra-prima profética The
Reign of Quantity and the Signs of the Times, de 1948, onde aplica a metafísica pura
à “crítica social” no plano mais universal imaginável, isto é, ao curso
necessariamente descendente e ao fim apocalíptico do presente ciclo de
manifestação na terra. Entre esses temas está um que apareceria em vários
lugares de sua obra, incluindo Le Roi du Monde (O Rei do Mundo), 1927, e alcançaria
seu auge em The
Reign of Quantity:
o do Anticristo.
Em Theosophy: History of a
Pseudo-Religion,
ele escreve:
Os falsos
Messias que vimos até agora só realizaram milagres muito inferiores, e seus
discípulos provavelmente não foram difíceis de converter. Mas quem sabe o que o
futuro reserva? Quando se reflete que esses falsos Messias nunca foram senão
instrumentos mais ou menos inconscientes daqueles que os conjuraram, e quando
se pensa mais particularmente na série de tentativas feitas sucessivamente
pelos teosofistas [a mais famosa sendo a promoção de Krishnamurti como Messias;
os esforços contemporâneos parecem limitar-se ao “Maitreya” de Benjamin Creme],
somos levados à conclusão de que não passaram de ensaios, experiências, por
assim dizer, que serão renovadas sob várias formas até que se obtenha sucesso,
e que, nesse meio-tempo, produzem invariavelmente um efeito algo inquietante.
Não que acreditemos que os teosofistas, mais do que os ocultistas e os
espíritas, sejam fortes o bastante, por si sós, para levar com êxito a cabo uma
empreitada dessa natureza. Mas não poderia haver, por detrás de todos esses
movimentos, algo muito mais perigoso, de que seus líderes talvez nada saibam,
sendo eles próprios, por sua vez, instrumentos inconscientes de um poder
superior?
Citado em The
Morning of the Magicians, Louis Pauwels e
Jacques Bergier, Avon Books, 1960, pp. 219–220
[NOTA: É óbvio
que a Sociedade Teosófica — ou, em termos contemporâneos, as “Sociedades” — não
pode ser responsabilizada pelas ações ou declarações de cada um de seus
membros, particularmente dado que carece de dogma oficial. Sem dúvida abrange
muitos buscadores sinceros, e sua editora, Theosophical Publishing House, sob o
selo Quest Books, publicou até alguns escritores tradicionalistas: Frithjof
Schuon, Huston Smith — e o próprio autor. No entanto, aquilo que Guénon
chamaria de “ação antitradicional” continua a emanar, ao menos oficiosamente,
de muitos naquele meio, como veremos nos Capítulos Oito e Nove.]
René Guénon
foi claramente uma figura central na crítica, no século XX, das religiões “Nova
Era”, qualquer que seja o nome que assumam em determinado período. O que o
torna a ele e a seus seguidores únicos é que baseiam essa crítica não em
dogmatismo confessional, mas em metafísica universal. Que outro enfoque poderia
demonstrar que o ocultismo e a doutrina Nova Era não são nem legitimamente
metafísicos nem realmente esotéricos?
O
Erro Espírita: Uma Sinopse
O que se segue
é uma sinopse de The
Spiritist Fallacy
(L’Erreur
Spirite),
de Guénon, baseada numa tradução manuscrita do Dr. Rama Coomaraswamy. Ela é
altamente esclarecedora, pois expõe muitas doutrinas “de ponta” da Nova Era
como muitas vezes com mais de um século de idade, e fornece um valioso pano de
fundo histórico para o movimento Nova Era atual.
Guénon define
espiritismo não simplesmente como a crença de que seja possível comunicar-se
com os mortos, mas como a crença de que tal comunicação possa ocorrer por meios
materiais — pancadas de “espíritos”, telecinesia, materializações etc. Ele não
nega nem o poder dos médiuns espíritas de produzir tais fenômenos, nem a
possibilidade de uma comunicação “mental, intuitiva ou inspirada” com os
falecidos — embora pouco faça para definir exatamente o que essa forma de
comunicação poderia implicar. Mas repudia a ideia de que tal comunicação seja
possível pelos métodos dos espíritas, concluindo, portanto, que os fenômenos
espíritas representam algo inteiramente diverso.
Ele vê no
espiritualismo uma espécie de materialismo ampliado. Descartes postulou uma
cisão radical entre “corpo” e “espírito”, negando assim e suprimindo
culturalmente a doutrina tradicional que, em sua forma mais simples, afirma que
a forma humana é tripartida, composta de corpo, alma e Espírito. Os
espiritualistas, teosofistas e ocultistas, numa tentativa equivocada de
restaurar uma concepção mais abrangente e exata, postularam um “perispírito”
(espiritualismo) ou “corpo astral” (Teosofia) como ponte entre corpo e
espírito. Mas o viram, erroneamente, como uma espécie de corpo material sutil,
capaz de agir sobre a matéria. Na realidade, porém, dado que corpo e espírito
não são, como acreditava Descartes, completamente isolados um do outro, é
desnecessário postular, como substituto da doutrina tradicional da alma, uma
realidade quase material para fazer a ponte sobre um hiato inexistente entre
ambos.
Uma
dificuldade na concepção da alma como um corpo “sutil” é que isso faz parecer que
a morte não passa de descartar o corpo material, após o que a “vida” do
indivíduo continua sem mudança fundamental. (Segundo o sacerdote cristão
ortodoxo Seraphim Rose, em seu livro The Soul After Death, doutrinas como essa
removem o sentido da morte como confronto entre a alma humana e Deus,
eliminando na prática toda ideia de juízo divino e destruindo um dos pontos
fundamentais de orientação para a vida espiritual.) Além disso, se o
“perispírito”, sendo quase material, pode agir diretamente sobre a matéria, por
que a mediunidade é necessária para sua manifestação, como afirmam
universalmente os espiritualistas? O espiritualismo ensina que um fluido ou
energia sutil que emana do médium, chamada “força ódica”, “ectênica”, “força
neurítica”, “ectoplasma” etc., é ingrediente necessário na manifestação do
espírito. Por que, então, é necessário postular a existência de um perispírito
ou corpo astral em primeiro lugar?
(A existência
de um corpo sutil, na verdade, não é algo tão antitradicional quanto Guénon, em
sua reação contra as doutrinas claramente antitradicionais dos espiritualistas,
e contra Descartes, parece afirmar em The Spiritist Fallacy — um aparente deslize
que ele mais que compensa em outras obras, especialmente Man and His Becoming
according to the Vedanta. O próprio Vedanta fala de um corpo sutil, o sūkṣma
śarīra, que, segundo os Brahma Sūtras, sobrevive até a
Libertação final. Jesus, após sua ressurreição, apareceu em um corpo palpável,
ainda que “glorificado”, e tanto Mullā Ṣadrā
quanto Ibn al-‘Arabī, esoteristas muçulmanos,
sustentam que a alma necessita de um corpo em todo estágio de existência. Um
ser individual pode ser definido como uma relação polar entre sua fonte
espiritual e sua manifestação formal, nenhuma das quais pode existir sozinha,
porque são manifestações complementares de uma única Realidade. O polo
espiritual tem precedência sobre o formal, uma vez que o Espírito representa,
de fato, essa Realidade absoluta no modo de polaridade com sua própria
manifestação; contudo, um polo nunca existe sem o outro. E à luz dessa
doutrina, Guénon tem razão ao criticar os espiritualistas por conceberem a
morte como nada além do desaparecimento do corpo material, deixando o corpo
sutil exatamente como era antes, porque esse próprio desaparecimento exige uma
“repolarização” entre o Espírito e sua manifestação em um nível inteiramente
diferente, situando assim o ser individual em um novo plano ontológico. Mas, na
medida em que ele se opõe à tendência espiritualista de conceber o corpo
material como espécie de modelo para o corpo sutil, em vez de entender o corpo
sutil como modelo do corpo material, Guénon está certíssimo.)
Guénon traça
uma breve história do espiritualismo, que se originou em Hydesville, Nova York,
devido a uma manifestação de “batidas de espírito” na casa de uma família alemã
de sobrenome Fox (forma anglicizada de Voss), em 1847. O “espírito” produzia
ruídos de pancadas, que estão entre os fenômenos relatados ao longo da história
em relação a casas chamadas “mal-assombradas”. O “espírito” era interrogado com
várias perguntas, e respondia corretamente por meio das pancadas. O que era
significativo, segundo Guénon, não era o fenômeno em si, mas o conjunto único
de conclusões tiradas a partir dele: especificamente, que a sociedade humana
deveria ser promovida e aperfeiçoada pela instituição de uma comunicação ampla
e contínua entre vivos e mortos. Surgiu um quaker de nome Isaac Post que — no
verdadeiro espírito da inventividade ianque — concebeu um “telégrafo
espiritual”, uma espécie de tábua ouija, para que o “espírito” pudesse se
comunicar com mais facilidade. (Guénon observa as semelhanças entre a forma de
culto quaker e as práticas de médiuns espíritas.) Descobriu-se então que o
fenômeno se tornava mais intenso quando as irmãs Fox se encontravam no recinto,
e esse foi, segundo Guénon, o momento exato em que o mundo moderno descobriu a
mediunidade. O “espírito” afirmava ser o de um caixeiro-viajante que fora
assassinado e enterrado no porão da casa da família Fox. Posteriormente o porão
foi escavado e um esqueleto foi encontrado. O interesse por esses
acontecimentos cresceu rapidamente até que se tornou o influente movimento
internacional conhecido como Espiritualismo. A primeira convenção
espiritualista nacional teve lugar em 1852, em Cleveland, Ohio, apenas cinco
anos após as manifestações iniciais.
Os “espíritos”
que enxameavam Hydesville afirmavam ser liderados por Benjamin Franklin, o
arquétipo de todos os inventores ianques. Eles sustentavam ainda que as
pesquisas modernas sobre eletricidade haviam preparado o caminho para a
comunicação com eles, e que “Franklin” vinha sendo guiado em métodos para
melhorar essa comunicação. O autor menciona também, em outro contexto, o caso
de Thomas Edison, inventor ianque tornado capitão da indústria, que tentou
seriamente construir um “rádio” para comunicação com os mortos!
Guénon
pergunta por que um fenômeno que, desde a Antiguidade, se associava a casas
assombradas teria, de repente, em meados do século XIX, gerado um movimento
pseudo-religioso internacional. Embora admita que o clima da época tornara possível
esse desenvolvimento, observa também como significativo o fato de que Madame
Emma Hardinge-Britten, membro da sociedade secreta conhecida como Hermetic
Brotherhood of Luxor, a qual Guénon investigara anteriormente, tenha se
associado ao movimento espiritualista desde o início e escrito um livro
intitulado History
of Modern American Spiritualism (1870). A importância disso reside no fato de
que a referida Irmandade sempre se opusera às teorias espiritualistas, e
alegara ainda que os primeiros fenômenos espiritualistas haviam sido produzidos
na realidade por indivíduos vivos atuando à distância — em outras palavras, por
feitiçaria. Aparentemente, Annie Besant, da Sociedade Teosófica, em certa
ocasião fez afirmação semelhante. Dada a natureza suspeita dessas fontes,
Guénon não aceita necessariamente as suas alegações, mas admite a possibilidade
de que possam estar certas. Em vista do fato de que a Hermetic Brotherhood of
Luxor guardava afinidades com várias sociedades secretas anteriores na
Alemanha, algumas delas maçônicas, que praticavam magia e “evocações” entre o
fim do século XVIII e o início do XIX, ele especula que certos “adeptos”
ligados à Irmandade ou a outros grupos possam ter produzido os fenômenos em
Hydesville, talvez aproveitando “resíduos psíquicos” aderentes a uma casa onde
ocorrera uma morte violenta — resíduos que, insiste, não são de modo algum o
“espírito do morto”. O objetivo desses “adeptos”, segundo Guénon, poderia ter
sido produzir determinados fenômenos psíquicos de grande projeção a fim de
combater, na mente do público, a filosofia do materialismo, levando-o a crer na
doutrina espiritualista, enquanto eles próprios sabiam mais. (Sou imediatamente
lembrado dos vários embustes, alguns engenhosos o bastante para requerer alto
nível de organização, que continuam a surgir em torno do fenômeno UFO.) Como
hipótese mínima, ele considera provável que agentes de tais grupos tenham
influenciado a população de Hydesville por meio de propaganda encoberta,
tirando proveito, nesse cenário, de uma situação já existente. Mas combater o
Materialismo com o Espiritualismo, esclarece Guénon, é simplesmente opor um
erro a outro — verdade que se torna mais evidente a cada dia, à medida que uma
fascinação por várias tecnologias arcanas e fenômenos psíquicos ou quase
psíquicos, como telepatia e contatos com UFOs, continua a fundir-se na mente
coletiva.
Em seguida
Guénon nos apresenta Allan Kardec, o mais influente dos espiritualistas
franceses, que produziu vários livros “canalizados” de “filosofia de espíritos”.
Em seguida cita Daniel Dunglas Home, o mais fenomenal médium de materialização
já estudado, tido como um dos mais confiáveis, que afirmava que Kardec era na
realidade uma espécie de hipnotizador que se rodeava de médiuns impressionáveis
aos quais tratava como sujeitos hipnóticos, com o resultado de que a filosofia
por eles “recebida” era inteiramente composta das ideias preconcebidas de
Kardec, transmitidas por sugestão. Guénon aceita essa avaliação, exceto por
atribuir a sugestão não apenas a Kardec, mas à “mente de grupo” que ele
partilhava com certos colegas.
O autor
observa como o espiritualismo moderno se propagou na América sobretudo em
jornais socialistas, e mostra como, na França, assumiu o caráter progressista,
anticlerical e “cientificista” do iluminismo revolucionário dos séculos XVIII e
XIX. (Também é interessante, de passagem, o fato de Robert Dale Owen
[1801–1877], congressista norte-americano e filho do célebre socialista galês
Robert Owen, ter sido um espiritualista entusiasta. Como conservador, Guénon
estava naturalmente mais interessado nos vínculos do espiritualismo com a
esquerda, mas é bem conhecido o fato de que o Partido Nacional-Socialista de
Hitler, de extrema direita, bebeu em muitas influências semelhantes.)
Guénon mostra
como os ensinamentos dos “espíritos” tendem a refletir as ideias do meio social
em que surgem, uma vez que o poder de sugestão opera na mente coletiva assim
como opera na mentalidade partilhada de grupos menores. Assim o espiritualismo
francês fez da reencarnação um dogma, interpretando-a como forma de progresso
espiritual e “evolução”, enquanto a reencarnação foi negada nas mensagens
“espirituais” recebidas na sociedade mais conservadora da Inglaterra.
Socialismo e espiritualismo tornaram-se profundamente entrelaçados na França,
onde os “espíritos” tendiam a defender a ideologia da revolução de 1848.
Guénon, então,
rebate os que afirmam que o espiritualismo é uma espécie de “bramanismo
esotérico” — inexistente — ou um “fakirismo” ocidental. A palavra árabe faqīr, como o termo persa dervish — ambos às vezes
usados como sinônimos de “sufi” — significa “pobre” ou “mendigo”. As pessoas
chamadas de “faquires” pelos viajantes europeus são (sejam faquires ou não) na
realidade magos. O autor deixa claro como a magia, embora seja uma “ciência
experimental” válida, capaz de produzir fenômenos reais, é extremamente
perigosa, motivo pelo qual é desencorajada pelas autoridades tradicionais em
toda a Ásia, assim como o era na Antiguidade clássica. Magia e espiritualismo são
radicalmente opostos, já que o mago, como o hipnotizador, é um agente ativo com
objetivo definido, ao passo que o médium, como o sujeito hipnótico, está
passivamente aberto a quaisquer influências. Nem a magia nem a mediunidade,
contudo, podem ser explicadas por simples hipnotismo. Nas sociedades
tradicionais, a mediunidade é vista como calamidade, sendo considerada um caso
de possessão demoníaca; a ideia de elevar tal possessão ao posto de dom
espiritual é inteiramente moderna e ocidental. Quanto à “evocação” deliberada
de “espíritos”, ela sempre foi tida como crime grave, o crime de necromancia.
As forças evocadas, porém, não são “almas dos mortos”, e sim resíduos psíquicos
perigosos aderidos ao cadáver, o que explica por que magos negros gostam de frequentar
cemitérios. Esses resíduos, que os hebreus chamavam ob, são idênticos aos manes romanos.
A afirmação de
Guénon de que as sociedades tradicionais tinham uma atitude negativa em relação
à magia precisa, porém, ser qualificada. Isso é certamente verdadeiro para as
sociedades fundadas sobre o Judaísmo, o Cristianismo, o Islã, o Hinduísmo
vedântico (ainda que não para a sociedade hindu como um todo, que abarca muitas
formas de religião popular em que a magia, para o bem ou para o mal, desempenha
um papel) e a maioria das formas de Budismo. A magia, especialmente a
feitiçaria e a bruxaria, também era em grande parte malvista no paganismo
pré-cristão da Europa e do Oriente Próximo, embora os cultos oficiais dessas
sociedades pudessem conter elementos que hoje chamaríamos de mágicos. Segundo The Golden Bough, de Sir James Frazer,
até mesmo os druidas celtas queimavam bruxas. Quando consideramos, porém, a
grande área cultural da Ásia setentrional/central que deu origem ao xamanismo,
a posição de Guénon precisa ser modificada. E, embora Confúcio tenha dito certa
vez: “acredito nos seres sobrenaturais, mas os mantenho à distância”, o taoísmo
e o xintoísmo incorporaram claramente elementos xamânicos, por meio dos quais
as forças benéficas do cosmos eram invocadas para o bem geral do povo, ao passo
que, no caso único do budismo vajrayāna do Tibete e do budismo Tiantai da China
— ou de algumas de suas formas — forças semelhantes foram colocadas a serviço
da Iluminação Total Perfeita. E embora as tradições da Ásia oriental pareçam
ser, entre as “religiões mundiais”, as únicas a manter uma ligação ininterrupta
com o xamanismo (a menos que consideremos a ioga indiana e certas práticas do
sufismo centro-asiático como em certa medida xamânicas), a função de invocar
forças espirituais para a proteção da sociedade e a cura de doenças sempre foi
parte integral de qualquer sociedade baseada na religião — em outras palavras,
de qualquer sociedade tradicional. A questão é: de que nível ontológico se
extrai tal poder? A sociedade em questão é destinatária direta, por meio de
revelação, de um raio do Absoluto? Ela invoca forças angélicas para cura,
fertilidade e proteção contra forças mais demoníacas? Em que ponto, tendo
perdido o contato direto com os mundos angélicos, ela começa a apaziguar essas
forças demoníacas para mantê-las satisfeitas? E quando tal apaziguamento do mal
se transforma em serviço direto a ele? Questões como essas, especialmente
quando lidamos com sociedades “primitivas”, precisam ser respondidas caso a
caso.
Neste ponto é
necessário dizer algo sobre o xamanismo. O interesse pelo xamanismo fora das
sociedades tribais tradicionais não era tão difundido em 1921 quanto é hoje,
embora Guénon o tenha tratado brevemente em The Reign of Quantity, onde admite que
provavelmente representa uma tradição espiritual válida, embora em estado de
séria degeneração. Diante disso, pode a avaliação negativa de Guénon sobre a
magia ser aplicada ao xamanismo também? A resposta depende de muitos fatores.
Em seu melhor, o xamanismo é uma espécie de “teurgia hiperbórea” mediante a
qual o xamã, através de sofrimento ascético voluntário, se coloca
conscientemente sob a guia de seu daimon ou genius ou “anjo da guarda”, o arquétipo
específico ou “Nome de Deus” com o qual tem afinidade intrínseca “pré-eterna”.
Mas os loas ou mystères do vudu são, em sua
origem, precisamente tais Nomes de Deus — e o vudu (como o obeah e a santeria),
embora apresente sinais de derivar de um antigo “esoterismo” provavelmente
sincrético, em que elementos africanos tropicais, egípcios, hebraicos, e até
cristãos e helenísticos se entrecruzaram, é claramente uma tradição degenerada
e contaminada, envolvida com, ainda que não estritamente idêntica a, magia
negra demoníaca. Além disso, até a alta “teurgia” dos neoplatônicos resvalou na
direção da magia à medida que a tradição que lhes deu origem se enfraquecia.
Tudo o que se pode dizer sobre o xamanismo é que, embora parte dele represente
uma verdadeira espiritualidade tradicional, revelada por Deus aos siberianos e
nativos americanos tanto quanto a Torá aos hebreus ou o Alcorão aos árabes,
grande parte do que hoje passa por xamanismo em círculos Nova Era e neopagãos,
e até entre alguns nativos americanos, é degenerado, boa parte é espúria e
alguma parte é má.
Guénon
distingue entre magia e teurgia, situadas em níveis vastamente diferentes,
sendo a teurgia a intervenção de poderes celestes. O poder numinoso da Arca da
Aliança e do Templo de Jerusalém, de ícones sagrados e lugares santos, dos
túmulos de santos, e do “ensombramento” de várias ordens sufis pela barakah (graça) de seus
shaykhs fundadores, que podem ter morrido há séculos, são exemplos de teurgia,
não de magia. Essa distinção de níveis, porém, é precisamente o que a mente
pós-moderna já não consegue perceber. Magos contemporâneos rotineiramente
retratarão a distinção entre o “mágico” e o “milagroso” apenas em termos de
poder político e social. “Se alguém na Igreja realiza maravilhas”, queixam-se,
“chama-se milagre; se fazemos a mesma coisa, carimba-se como magia.” Na realidade,
as duas coisas não são idênticas, mas nem os magos, nem em alguns casos os
próprios eclesiásticos, já conseguem notar a diferença.
Guénon
rastreia a relação entre espiritualismo e ocultismo. Ele define como
“ocultismo” o movimento derivado de Eliphas Levi (nome real Alphonse-Louis
Constant, m. 1875) e posteriormente popularizado por Papus (Gérard Encausse),
que rompeu com a Sociedade Teosófica em 1890. (Madame Blavatsky usava
“ocultismo” como sinônimo de sua “Teosofia”, mas Guénon distingue os dois movimentos,
embora sejam obviamente primos próximos.) O ocultismo é o resultado de uma
tentativa equivocada de redescobrir, ou reinventar, o esoterismo iniciático.
Tende a ser mais centralizado, mais intelectual ou ao menos pseudo-intelectual
de forma elaborada, e mais elitista do que o espiritualismo, que resiste à
centralização e gravita em direção ao pluralismo, ao sentimentalismo e à
democracia. O ocultismo está também impregnado do espírito do “cientificismo”,
que o levou a buscar a produção de fenômenos experimentalmente verificáveis,
desqualificando-o totalmente como até mesmo uma aproximação do esoterismo
tradicional. Os ocultistas franceses geralmente se opunham ao espiritualismo;
contudo, seu próprio ecletismo às vezes levou a tentativas de aproximação. E
tanto o ocultismo quanto a Teosofia, sem admiti-lo, tomaram de empréstimo
várias doutrinas ao espiritualismo, incluindo a da reencarnação. Nessa
polarização entre ocultismo e espiritualismo podemos ver as raízes da
divergência atual entre o semi- ou pseudo-tradicional “ocultismo literário”,
como o de Jocelyn Godwin e outros, e a Nova Era propriamente dita —
representada, por exemplo, por Shirley MacLaine — com seu populismo solto do
tipo “você também pode” e sua deliberada vocação para o grande público. O
ocultismo literário parece, no momento, ganhar terreno sobre a Nova Era, ao
menos do meu ponto de vista, já que dá a ilusão de substância quando comparado
à fluidez etérea das ideias novaeristas. Se Deepak Chopra representa a
comercialização de ideias pseudo-hindus para um público Nova Era (The Seven Spiritual
Laws of Success),
e James Redfield (The
Celestine Prophecy)
uma ideologia especificamente Nova Era, entre muitas, William Quinn (The Only Tradition) é um exemplo de
ocultismo literário tentando obter legitimidade acadêmica — e, até certo ponto,
conseguindo (ver os Capítulos Quatro e Oito).
Guénon admite
que muitos “fenômenos psíquicos”, incluindo os produzidos por médiuns, são
reais. Mas esse fato, por si só, em nada valida a explicação espiritualista de
tais fenômenos, que podem ter muitas causas diferentes. A mediunidade, mesmo
quando os fenômenos produzidos são genuínos, permanece uma forma de doença
mental. Algumas “obsessões espirituais” são simplesmente casos de personalidade
múltipla. Além disso, até médiuns verdadeiros podem recorrer à fraude,
especialmente os “profissionais”. Dado que seus poderes não estão sob seu
próprio controle, precisam de tempos em tempos suplementá-los por outros meios,
já que “o espetáculo não pode parar”. Os médiuns às vezes também são mentirosos
patológicos.
A tentativa de
cientistas de investigar empiricamente os fenômenos psíquicos é viciada desde o
início, uma vez que muitos investigadores ignoram as dinâmicas psicológicas que
operam em personalidades instáveis, e praticamente nenhum deles compreende os
princípios metafísicos, especificamente a distinção ontológica entre o plano
psíquico e o espiritual. Um resultado disso é que médiuns altamente psíquicos e
sugestionáveis podem canalizar “espíritos” que, para deleite do pesquisador,
confirmam estrondosamente todas as suas teorias preferidas — teorias que,
naturalmente, o médium está apenas extraindo diretamente da mente do próprio
investigador. Competência em um ramo da ciência física não garante de modo
algum a objetividade de um pesquisador diante de coisas como transtornos de
personalidade e fenômenos psíquicos (ou, acrescentaria eu, ilusionismo de
palco).
Os
espiritualistas, como os ocultistas, tendem a uma ideologia humanista e
anticatólica, algo que continua verdadeiro até hoje, ao menos quanto ao
anticatolicismo. Tanto Jane Roberts, do material Seth, quanto Helen Schucman,
canalizadora de A
Course in Miracles,
eram ex-católicas ressentidas com a Igreja; o mesmo provavelmente pode ser dito
de Carlos Castaneda. E The Celestine Prophecy, de James Redfield, é um ataque direto ao
catolicismo tradicional. Guénon cita uma passagem do espiritualista francês
Charles Fauvety, em que este declara que a moralidade será um dia um ramo da
ciência, não da religião, que uma fé mística na Ciência com “c” maiúsculo
derrubará a autoridade de todos os sacerdócios. (Sou lembrado aqui do fato,
interessante, de que foi o congressista e espiritualista Robert Dale Owen quem
apresentou pela primeira vez o projeto de lei que deu origem ao Smithsonian
Institution, o templo americano do cientificismo, onde os devotos do deus
americano da Técnica podem venerar diariamente o “Spirit” of St. Louis e outros
ídolos.)
Guénon
caracteriza filosofias como o espiritualismo do psicólogo William James, que
ele abraçou no fim da vida (embora o pai de James tenha sido seguidor de
Swedenborg), bem como as tendências espiritualistas do filósofo Henri Bergson,
como “satanismo inconsciente”. James prometeu fazer tudo que estivesse em seu
poder para se comunicar com os vivos após a morte; o autor não se surpreende,
portanto, que uma multidão de médiuns americanos tenha diligentemente recebido
“mensagens” dele — a mais recente delas sendo Jane Roberts, que publicou, em
1978, um livro intitulado The Afterdeath Journal of an American Philosopher: The World
View of William James.
O que se segue
é o comentário do próprio autor sobre a validade do “material canalizado”:
Como o vejo,
tal material pode ser distribuído em cinco categorias: (1) bobagens banais; (2)
fantasias psicóticas; (3) prognósticos ou percepções clarividentes que se
revelam exatas; (4) filosofias falsas; e (5) filosofias contendo elementos de
verdade. As categorias 1, 2 e 4 podem ser explicadas em termos de doença mental
e/ou obsessão demoníaca, embora nem sempre seja fácil distinguir ambas,
sobretudo porque podem estar presentes ao mesmo tempo em uma mesma alma. As
categorias 3 e 5 são mais difíceis de caracterizar. Uma visão psíquica exata de
uma condição física, passada, presente ou futura (categoria 3), pode ser
simplesmente caso de um talento natural, ainda que relativamente raro; pode ser
sinal de intervenção angélica, sobretudo quando resulta em cura, proteção
contra perigo ou esclarecimento de um dilema moral; pode também, em qualquer
caso particular, ser exemplo de ilusão demoníaca. Quanto à categoria 5,
filosofias “canalizadas” contendo elementos de verdade podem representar
tentativa, por parte de poderes celestes, de ressuscitar certos aspectos da
sabedoria tradicional que as pessoas de uma dada região e período histórico
perderam, mas não há garantia de que seja esse o pode ser o caso em qualquer
instância concreta. As doutrinas de Emmanuel Swedenborg, por exemplo —
cientista físico de muitos talentos que se tornou visionário espiritual — representam
talvez a categoria mais elevada de “filosofia de espíritos”. Seu Divine Love and Wisdom contém elementos que
lembram o aristotelismo esotérico desenvolvido dentro da tradição islâmica. Sua
doutrina dos anjos é em alguns aspectos semelhante à doutrina cristã ortodoxa
de Dionísio Areopagita, e sua imagem do Homem Universal a doutrinas análogas
que podem ser encontradas nos Padres da Igreja, na Cabala, e nos sufis e
teósofos do Islã. Podemos especular que, dado que tais doutrinas não estavam
disponíveis para um luterano sueco do século XVIII, foi necessário
reintroduzi-las por meio de inspiração direta. Por outro lado, isso talvez não
seja exato. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge and the Sacred, aponta que o
luteranismo abraçou uma tradição teosófica, alquímica e mística, representada
por figuras como Sebastian Franck, Paracelso, V. Weigel, Jacob Boehme, G.
Arnold, G. Gichtel, C. F. Oetinger e outros. E os cientistas físicos antes e
durante a época de Swedenborg eram bem mais propensos a ter preservado
interesse por “ciências esotéricas”; até Isaac Newton escreveu sobre alquimia.
Assim, permanece em aberto se Swedenborg derivou suas doutrinas inteiramente de
inspiração direta ou em parte por transmissão humana (ele certamente poderia
ter obtido seu aristotelismo esotérico da tradição alquímica, por exemplo). Em
todo caso, suas doutrinas sobre a estrutura do mundo espiritual parecem todas
transpostas a um nível mais literalista do que o encontrado em muitas fontes
tradicionais, qualidade que, como Guénon assinala, é comum a muitos
ensinamentos “de espírito”. Ele parece inseguro se esse mundo é um domínio de
símbolos vivos e corporificados de realidades invisíveis, como na doutrina
ibn-arabiana do ‘ālam
al-mithāl,
o “plano imaginal”, ou simplesmente uma espécie de natureza material superior.
E entremeadas às suas doutrinas inegavelmente elevadas há outras de caráter
mais fantástico ou mesmo psicótico, como quando, em Earths in the Universe, diz que os marcianos
têm rostos metade negros e metade trigueiros, vivem de frutas e se vestem com
fibras feitas de casca de árvore, ou que a atmosfera da Lua é tão diferente da
terrestre que os habitantes falam a partir do estômago em vez dos pulmões, com
um efeito semelhante a arrotar.
No caso de
Swedenborg — e o mesmo talvez se possa dizer até de ensinamentos “canalizados”
menos confiáveis, como o material Seth e A Course in Miracles — é difícil determinar
se a mistura de doutrina sofisticada e material duvidoso pode simplesmente ser
atribuída a uma comunicação imperfeita, ou se representa, em alguns casos pelo
menos, uma tentativa satânica de perverter doutrinas teológicas, filosóficas e
esotéricas profundas ao associá-las com lixo. O que podemos afirmar com maior
segurança é que apenas aqueles que não têm acesso a fontes confiáveis de
alimento serão forçados a tomar suas refeições misturadas a lixo. Que uma
grande quantidade de doutrina profunda pode ser encontrada nos escritos de
Swedenborg é inegável. Mas, agora que as escrituras e os clássicos das
religiões do mundo e os escritos dos maiores sábios da história estão
prontamente disponíveis, já não precisamos tomá-lo, e a outros como ele, como
autoridades unicamente inspiradas, já que podemos julgá-los à luz de seus
“originais” ortodoxos. Como deixa claro Guénon, já não há qualquer razão para
depender de fontes suspeitas, não importa quais grãos de verdade possam conter.
Guénon
apresenta em grande detalhe várias ideias espiritualistas fantásticas sobre a
“sobrevivência” da personalidade humana, permitindo que sua própria absurdidade
fale por si mesma. Ele trata longamente da teoria da reencarnação —
lembrando-nos, por exemplo, que as formas mais antigas de espiritualismo
moderno, a inglesa e a americana, a negavam, e que espiritualistas notáveis
como Daniel Dunglas Home se opunham a ela veementemente — e rastreia a doutrina
até o espiritualismo francês, especialmente o de Allan Kardec, de onde se
espalhou para a Teosofia e o ocultismo. Ele distingue claramente reencarnação,
transmigração e metempsicose, com base no que nega que o hinduísmo jamais tenha
ensinado as doutrinas reencarnacionistas posteriormente cozinhadas pelos
espiritualistas. (Para um tratamento mais completo das ideias de Guénon sobre a
impossibilidade da reencarnação e da viagem no tempo, ver o Capítulo Sete.)
Ele mostra
como o espiritualismo, enraizado no Zeitgeist do século XIX, adotou
a teoria evolutiva, reinterpretou-a em termos “espirituais” (como fizeram os
mórmons) e a identificou com a reencarnação. Ainda se pode ver essa influência
no material Seth de Jane Roberts, onde a entidade “Seth” é às vezes definida
como uma “porção futura” de Jane, assim como o “Seth II”, mais sublime,
distante e etéreo, é uma “porção futura” de Seth — “futura”, aqui, tomando o
lugar de “ontologicamente superior”. Porém, quando o material Seth fez sua
estreia, em 1963, a confiança incontestada no progresso própria do século XIX e
da primeira metade do XX já começara a vacilar, em parte por causa das armas
nucleares, em parte também por um “einsteinismo social” baseado em uma versão
popularizada da teoria da relatividade. Essa erosão do mito do progresso, bem
como várias teorias de espaço-tempo multidimensional, é provavelmente o que
levou Seth, ainda em muitos aspectos um “progressivista macrocósmico”, a falar
da evolução biológica como conceito muito estreito e simplista, e das vidas
reencarnacionais como fundamentalmente simultâneas em vez de sucessivas.
Guénon trata
então da relação entre espiritualismo e satanismo, caracterizando como
satanismo inconsciente qualquer doutrina subversiva à metafísica tradicional.
Ele relata uma série de histórias sugestivas de influência demoníaca em
círculos espiritualistas, ou ao menos de emanações tóxicas provenientes do
subconsciente que, segundo ele, não são menos demoníacas em seus efeitos. Elas
incluem escândalos sexuais de cunho sádico, bem como histórias de relações
sexuais com íncubos, como as que frequentemente aparecem no folclore
contemporâneo sobre UFOs. Detalha as tentativas repetidas de espiritualistas
franceses de perverter e deturpar a doutrina católica, mencionando um panfleto
difamatório sobre a Eucaristia que afirmava que “Jesus não estava inteiramente
orgulhoso do papel clerical que desempenhou”, em termos altamente reminiscentes
do material Seth. Menciona grupos como a Mental Science e a Christian Science
que (como A
Course in Miracles)
negam a realidade do mal, fortalecendo assim a mão das forças demoníacas.
Prossegue falando do espiritualismo como movimento quase político com grandes
recursos de propaganda, caracterizando-o como grave perigo para a segurança
pública.
Ele admite a
validade, em certos casos, da clarividência e da cura psíquica, ainda que tais
fenômenos permaneçam altamente ambíguos. Mas esses poderes psíquicos de modo
algum provam que espiritualistas possam manter comércio contínuo com as almas
dos mortos, mesmo se é assim que os próprios praticantes explicam suas
habilidades. Os fenômenos, diz Guénon, jamais podem provar a verdade ou
falsidade de uma doutrina. Por fim, fala dos perigos do espiritualismo para os
próprios praticantes, relatando muitos casos de colapso mental, emocional e
físico, epilepsia etc.
The Spiritist Fallacy é também valioso pela
luz histórica que lança sobre a crença em “alienígenas” e UFOs. Muitos
espiritualistas, segundo Guénon, acreditam que espíritos desencarnados ocupam o
espaço. Ele cita um certo Ernest Bosc, que os chama de “nossos amigos no
Espaço”, em resposta a um artigo publicado em 1913 na revista espiritualista Fraternist. Pode ser
significativo que, cinquenta e cinco anos depois, os hippies chamassem
extraterrestres de “irmãos do espaço”, e que o movimento Nova Era desde os anos
70 praticamente tenha apagado a distinção entre alienígenas espaciais e
espíritos desencarnados.
Guénon
menciona, como exemplo das pretensões infladas dos espiritualistas americanos,
um grupo que se chamava “Ancient Order of Melchizedek”. Fala também de uma
“Esoteric Fraternity” em Boston, liderada pelo cego Hiram Butler. Curiosamente,
essa mesma Ordem de Melquisedeque, bem como Hiram Butler — que também, ao que
parece, fundou um grupo do mesmo nome na Califórnia, em 1889, numa fazenda
comunitária na encosta da Sierra — reaparecem em Messengers of Deception (1979), do pesquisador
de UFOs Jacques Vallée. Vallée investigou vários grupos, tanto na França quanto
nos Estados Unidos, que se denominavam Ordem de Melquisedeque, e descreveu a
figura de Melquisedeque, o mestre de Abraão no livro do Gênesis, que não tinha
pai nem mãe, como “um símbolo e um ponto de reunião para contatados de discos
voadores” (ver Capítulo Sete). Assim, parece possível que a crença generalizada
em UFOs, se não a proliferação do próprio fenômeno, esteja entre os frutos
sociais e psicológicos do movimento espiritualista do final do século XIX e
início do XX, que é, de tantas maneiras, o ancestral direto do movimento Nova
Era de hoje.
Em The Spiritist Fallacy, Guénon diz o
seguinte:
O que vemos…
no espiritualismo e em outros movimentos semelhantes são as influências que
incontestavelmente vêm do que alguns chamaram de “Reino do Anticristo”. Essa
designação pode ser tomada simbolicamente, mas isso nada muda quanto à
realidade e não torna essas influências menos malignas. Decerto aqueles que
participam de tais movimentos, e mesmo os que acreditam dirigi-los, podem nada
saber disso. É isso que torna tudo isso tão perigoso, pois muitos deles
certamente fugiriam de horror se reconhecessem que são servos das “potências
das trevas”. Mas sua cegueira é muitas vezes incurável, e sua boa-fé até
contribui para que atraiam outras vítimas. Não nos permite isso dizer que o
talento supremo do diabo, qualquer que seja a forma como o concebamos, é nos
levar a negar sua existência?
O que é a Nova
Era?
As
falsificações pseudotradicionais, às quais pertencem todas as desnaturações das
ideias de tradição… tomam sua forma mais perigosa na “pseudoiniciação”,
primeiro porque nela se traduzem em ação efetiva em vez de permanecer na forma
de concepções mais ou menos vagas, e em segundo lugar porque atacam a tradição
pelo interior, naquilo que é seu próprio espírito, a saber, o domínio esotérico
e iniciático.
RENÉ GUÉNON, The
Reign of Quantity and the Signs of the Times
O erro central
da Nova Era é a crença de que a Verdade espiritual possa ser nova. Certamente a
informação bruta pode ser nova. O conhecimento do mundo material muda
necessariamente o tempo todo, mas a Verdade em si não pode mudar. Ela nada tem
a ver com o mundo material, regido por acontecimentos, nem com o mundo
psíquico, regido por crenças. Ela é a Rocha dos Séculos, o Sempre Assim.
Se você
acredita que o mundo como um todo possa evoluir ou progredir espiritualmente,
precisa acreditar que a Verdade possa ser nova. Toda a metafísica tradicional,
porém, nega isso. O Sempre Assim é revelado num único relâmpago; esta é a
Palavra, o Logos, o Princípio eterno. Quaisquer reflexos desse Princípio que
tenham entrado em matéria, energia, espaço e tempo — e, ao fazê-lo, os criado —
já começaram a morrer. “Toda matéria está sujeita à entropia”, diz a Segunda
Lei da Termodinâmica. “Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda. “Tudo
perece”, diz o Alcorão Sagrado, “exceto Sua Face”.
As doutrinas
da Nova Era são, em certo nível, uma tentativa de conectar uma metafísica
tradicional mal compreendida com ideias progressistas e evolucionistas que lhes
são totalmente incompatíveis. Por esse motivo, não podem funcionar como um
Caminho espiritual completo. Toda a sinceridade, auto-sacrifício, sensibilidade
psíquica e ambição espiritual do mundo não podem transformar a falsidade, ou a
meia-verdade, no Sempre Assim.
Os proponentes
das ideias Nova Era pensaram estar descobrindo, ou reinventando, as Verdades
dos Séculos. Estavam apenas distorcendo-as. A Verdade sempre foi conhecida pelo
gênero humano, no núcleo consciente da raça se não na mente de cada indivíduo,
porque a Forma Humana é o espelho dessa Verdade neste mundo. E desde que a
unidade primeira da humanidade envelheceu, os canais mais profundos dessa
Verdade têm sido as grandes religiões reveladas por Deus. No nível dos
primeiros princípios, que cada religião guarda em sua linguagem única e
providencial, nada precisa ser inventado, nem reconstruído, nem aperfeiçoado. E
nada pode sê-lo. Certamente as verdades dos séculos devem ser expressas de modo
diferente em tempos e lugares diferentes, mas tais mudanças de expressão não
passam de traduções. Não são, e não podem ser, revisões.
I. Uma breve
história da “revolução espiritual” e do movimento Nova Era
Aqueles de nós
que se lembram da “revolução espiritual” dos anos 60 e do movimento Nova Era
que tomou o seu lugar, em algum momento nos anos 70, depois que aquela
revolução morreu, terão ou testemunhado passivamente ou participado ativamente
de um surto de idealismo. Psicodélicos, meditação, religiões orientais e
conhecimento psíquico ou oculto haviam transformado tão profundamente aqueles
que foram atraídos por eles — para o bem e para o mal, como veio a provar — que
tudo o que precisávamos fazer, pensávamos, era difundi-los mais. Assim como o
início e meados do século XX pediram educação e cultura para as massas, nós
pedíamos iluminação em massa. O que parecia bom para nós no mundo interior de
nossas almas, acreditávamos, tinha de ser bom para a sociedade como um todo. O
legado do antigo reavivalismo americano de repente encontrou as drogas
psicodélicas, religiões exóticas, ideias do século XX sobre evolução e
progresso, e o choque da guerra do Vietnã para produzir uma atitude de “tudo ou
nada”: “dê-me a Iluminação ou dê-me a Morte; Apocalipse Now”.
À medida que a
mania dos anos 60 se atenuou na introversão dos anos 70, o espírito do
reavivalismo populista americano foi substituído pelo igualmente americano
espírito do charlatanismo religioso, psicológico e psíquico. A estranha mistura
sessentista de misticismo tradicional e religião oriental com magia, ocultismo,
mediunidade, poderes psíquicos, política de esquerda e os primeiros germes de
um cientificismo mágico sofreu uma virada; o espírito empreendedor da pequena
burguesia tinha entrado na arena das espiritualidades “alternativas”. E com
essa mudança de ênfase, aquilo que passou a ser chamado de Nova Era substituiu
(em parte) o ethos “hippie”.
Inúmeras novas
abordagens à espiritualidade, à psicoterapia e ao desenvolvimento psíquico
tomaram lugar ao lado dos sobreviventes de um mundo mais antigo de
espiritualismo e Teosofia, Rosacrucianismo e ocultismo literário, que assim
ganharam uma sobrevida.
A Nova Era
ainda prestava homenagem ao misticismo, à autotranscendência e à ideia oriental
de iluminação ou libertação. No entanto, o verdadeiro centro havia se deslocado
para a tentativa de satisfazer os velhos e comprovados desejos de segurança,
prazer e poder por meios sutis ou mágicos — desenvolvimento inevitável, uma vez
que o ethos dos anos 60 só conseguiu popularizar o misticismo em nível de massa
ao associá-lo, por meio das drogas psicodélicas, à autoindulgência desenfreada.
Seja como neopaganismo, como impulso de desenvolver poderes psíquicos segundo o
modelo Nova Era, como atração pelo xamanismo ou como atração infinitamente mais
sombria pelas práticas satânicas, a magia havia efetivamente substituído a
iluminação como paradigma dominante do mundo das espiritualidades alternativas
no início da década de 1980.
Infelizmente,
tanto na mente do público quanto, em certa medida, na própria realidade, as
práticas psíquicas e mágicas, por um lado, e o misticismo e a metafísica
tradicionais, por outro, foram jogadas no mesmo saco. Chegou a hora de
separá-las. Até agora a Nova Era tem sido criticada principalmente por
materialistas — céticos desmascaradores — e por cristãos conservadores, que dão
a impressão (para o desinformado) de agir simplesmente por interesse próprio
ameaçado, como um candidato que joga lama no adversário. A crítica presente
está entre as raríssimas que se baseiam não em exclusivismo religioso
militante, nem na defesa modernista da “realidade comum”, mas na religião
comparada e na metafísica tradicional.
A “Nova Era”
não poderia existir como movimento sem antecipar uma transformação espiritual e
cultural de massa num futuro (perpetuamente) imediato; tal antecipação, porém,
já existe há bastante tempo. Então, quando começou a Nova Era, enquanto
movimento? O gurdjieffiano A.R. Orage editou antes da Primeira Guerra Mundial
uma revista muito influente chamada The New Age; Swedenborg falou de
uma nova era nascente, e ideias semelhantes remontam ao menos a Joaquim de
Fiore, na cristandade medieval, e incluem grupos como os Illuminati, que
floresceram à época da Revolução Francesa, bem como os maçons e rosacrucianos.
Há boas razões, entretanto, para rastrear suas raízes principais até o
Renascimento, quando o renascimento dos estudos clássicos gerou uma massa de
especulação “esotérica”. (Certa vez ouvi Peter Caddy [de Findhorn] afirmar,
numa palestra, que a Nova Era começou com o filósofo inglês do fim do
Renascimento, Francis Bacon.) Embora parte dessa especulação fosse
tradicionalmente válida e a maior parte ao menos nominalmente cristã, ela não
pôde ser inteiramente contida dentro da ortodoxia católica. Isso foi sem
dúvida, em parte, uma compensação para a solidificação da mente cristã sob o
escolasticismo, e para a traição completa da metafísica cristã pelo nominalismo
escolástico. Os nominalistas acreditavam que todas as distinções entre as
coisas são apenas linguísticas, e negavam que algo acima da experiência
sensorial pudesse ser conhecido pela mente, fazendo do nominalismo o verdadeiro
primeiro ancestral tanto do naturalismo modernista quanto do relativismo
pós-moderno.
Os Estados
Unidos sempre tiveram um setor Nova Era. Muitos dos pais fundadores eram
maçons, razão pela qual temos uma pirâmide encimada por um olho radiante no
verso das cédulas de dólar. Os transcendentalistas da Nova Inglaterra e seus
afins foram, em muitos aspectos, os ancestrais diretos tanto das comunas
hippies dos anos 60 quanto da Nova Era de hoje. E os Shakers, produto puramente
americano embora fundados por uma inglesa, começaram como espécie de ordem
monástica leiga dentro do protestantismo, tornaram-se pioneiros em “tecnologia
apropriada”, passaram a canalizar entidades espirituais e acabaram advogando um
Governo Mundial único na época de Teddy Roosevelt.
Um estudo
completo sequer das raízes americanas do movimento Nova Era ocuparia um livro
inteiro; por mim, só posso falar com alguma autoridade do período que vai da
“revolução espiritual” dos anos 60 até cerca de 1988. E ainda que eu estivesse,
em muitos sentidos, no olho do furacão aqui no condado de Marin, Califórnia, o
leitor deve entender que qualquer número de outras perspectivas sobre esse
período, e outras listas de leitura, podem ser tão precisas quanto, se não
mais.
Uma boa visão
histórica do paradigma psíquico em que a Nova Era se baseia em larga medida é The Occult, de Colin Wilson
(Vintage Books, 1973). Escrito em estilo jornalístico ágil, cobre uma enorme
extensão de terreno. Embora inclua material de todos os períodos históricos,
sua história básica abrange o ocultismo do século XVIII até Blavatsky e
Gurdjieff (e ele certamente não se furta a relatar escândalos associados a
essas duas figuras, já que rendem “boa matéria”), mas também traz algumas de
suas linhas de investigação até as décadas de 1950 e 60, tocando, entre outras
coisas, o fenômeno dos UFOs. E é valioso por mostrar muitas das conexões entre
o ocultismo e tanto o xamanismo primitivo quanto a ciência moderna.
Outro livro
importante foi The
Morning of the Magicians (Avon Books, 1968; título inglês anterior The Dawn of Magic), de Louis Pauwels e
Jacques Bergier, que trata longamente do ocultismo entre os nazistas (que os
autores, é claro, deploram, mas também parecem invejar) e anuncia a vinda da
futura Tecno-Magocracia mundial. Bergier é um guénoniano renegado que se tornou
adepto do futurismo tecnocrático. Outro livro importante sobre a interface
entre tecnologia e poderes psíquicos foi Psychic Discoveries Behind the Iron
Curtain,
de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, publicado nos anos 70; os “visionários à
distância” (remote
viewers)
que vieram a público em 1997, aparentemente participantes de um programa
patrocinado pelo governo americano para treinar videntes para espionagem, foram
sem dúvida parte da “corrida armamentista psíquica” anunciada nesse livro.
Uma das
principais diferenças entre o ocultismo pós-guerra e o pré-guerra é o fenômeno
UFO, prevalente desde o fim dos anos 40. O mito UFO fez parte do ethos da Era
Psicodélica — muitos hippies falavam da “Nave-Mãe” que se supunha estar
pairando sobre a Terra — mas de modo algum era dominante. A experiência
psicodélica foi o paradigma principal de, digamos, 1965 até talvez 1972 ou 74;
os principais defensores da espiritualidade psicodélica foram Ralph Metzner,
Timothy Leary, Richard Alpert (Ram Dass), R. E. L. Masters & Jean Houston (The Varieties of the
Psychedelic Experience) e John Lilly (The Center of the Cyclone, que apresenta uma
abordagem psicodélica a “guias espirituais”). Leary foi o homem de relações
públicas do movimento, e um verdadeiro excêntrico; dois livros representativos
são The
Psychedelic Experience, em que aplica o paradigma do Livro Tibetano dos
Mortos
à experiência com LSD, e The Politics of Ecstasy.
A figura mais
genuína entre todos foi — e é — Ram Dass. Ele pode ser chamado o mais recente,
senão o último, na linhagem dos perenialistas semi- ou não-tradicionais, que
passa por Aldous Huxley e Alan Watts. Introduziu grande quantidade de material
tradicional das religiões do mundo no universo hippie; sem ele, talvez eu
jamais tivesse encontrado Schuon e a Escola Tradicionalista. Seus livros
incluem Be
Here Now,
Grist
for the Mill,
The
Only Dance There Is
e, em época posterior, livros sobre serviço social como karma-yoga, como How Can I Help? Seus livros “de
consciência” misturam metafísica tradicional, experiência psíquica e
psicodélica e hinduísmo mais ou menos tradicional (hinduísmo para o Ocidente,
isto é, que ignora o requisito tradicional de nascimento em uma das varnas, as castas). Foi em
grande parte através dele que a doutrina tradicional de que a busca de poderes
psíquicos bloqueia o desenvolvimento espiritual penetrou no mundo hippie e se
tornou, ao menos por breve tempo, um clichê. Ele também tem a disposição de
admitir que os gurus indianos que vieram ao Ocidente em sua maioria não
representavam o que havia de melhor no hinduísmo. E, se há algo que separa Ram
Dass da Nova Era como tal, é o fato de que ele não é evolucionista, espiritual
ou de qualquer outro tipo.
À medida que o
ethos psicodélico começou a declinar em meados dos anos 70, o paradigma Nova
Era assumiu, baseado na canalização de “entidades”, no desenvolvimento de
poderes psíquicos segundo o modelo do “potencial humano” (emanando em parte do Esalen
Institute e incluindo o movimento da Psicologia Transpessoal, com figuras como
Stanislas Grof, que também tem um histórico em pesquisa psicodélica), na crença
em UFOs e na ideia de que a evolução da Terra está prestes a dar um “salto
quântico”, conduzindo-nos através de uma mudança de paradigma que devemos
ajudar por meio de um alinhamento coletivo de consciências.
A obra de Ram
Dass e Timothy Leary estende-se até a primeira era Nova Era pós-anos 60. Ram
Dass envolveu-se com canalização ao patrocinar os livros Emmanuel [de Pat Rodegast], e
Leary, acompanhando os tempos, começou a captar o paradigma tecnocrático/UFO. A
“canalização” está no centro da Nova Era, mas, antes de tratá-la, preciso
mencionar outra figura seminal no movimento psicodélico, Carlos Castaneda, que
quase sozinho reconectou a experiência psicodélica com o paradigma do xamanismo
— ao menos no plano literário; inúmeros hippies se espalhavam pelo mundo em
busca de novos psicodélicos, procurando homens-medicina no sudoeste americano e
nas selvas da África e da América Latina, e trazendo à nossa atenção agentes
como sementes de glória-da-manhã, o cacto San Pedro, cogumelos mágicos, yagé ou
ayahuasca (todos da América Latina, sendo que a descoberta do yagé pela
contracultura norte-americana havia sido pioneiramente realizada pelos
escritores da Geração Beat William Burroughs e Allen Ginsberg em suas viagens à
Amazônia), e ibogaina (da África). O peiote, por meio da Native American Church
e de The
Doors of Perception,
de Aldous Huxley, provavelmente era conhecido um pouco antes, assim como o
óxido nitroso via The
Varieties of the Religious Experience, de William James; o poeta da Geração Beat
Michael McClure, entre outros, escreveu sobre suas experiências com peiote. Mas
foi Castaneda quem reuniu grande parte desse interesse e o conectou ao
xamanismo e especialmente à feitiçaria. Seus livros são relatos
pseudo-documentais bem escritos de suas interações com o feiticeiro yaqui Dom
Juan Matus, seus colegas e aprendizes, no México. Entre
eles estão The Teachings of Don Juan; A Separate Reality;
Journey to Ixtlan;
Tales of Power;
The Second Ring of Power;
The Eagle’s Gift;
The Fire from Within;
The Power of Silence;
The Art of Dreaming;
Magical Passes;
e The Wheel of Time.
A outra grande
influência nativo-americana sobre o movimento hippie foi o belo e profundamente
espiritual Black
Elk Speaks,
de John G. Neihardt, mas a influência de Castaneda foi maior e não apenas
desviou o interesse hippie pelos nativo-americanos da piedade religiosa em
direção à magia, como também criou um “mercado”, entre brancos, para todo tipo
de homem- ou mulher-medicina indígena americana, do genuíno ao sinistro
passando pelo completo charlatão — produzindo, por exemplo, derivados
caucasianos superficiais como Lynn Andrews.
Uma das
divergências mais nítidas no mundo das espiritualidades “alternativas” é aquela
entre a New Age e o Neopaganismo. Os neopagãos que derivaram da era hippie
foram conduzidos pela experiência psicodélica e pelo espírito da época na
direção da Wicca gardneriana e de outras formas de Wicca, ou do romantismo
céltico, ou de várias formas de culto à Deusa (especialmente aquele promovido
por Robert Graves), ou ainda em direção a influências — ao menos literárias —
emanadas da Ordem da Aurora Dourada (Order of the Golden Dawn). Eu mesmo fui
profundamente tocado pelos poderosos ecos do Renascimento Celta que se
enredaram como um fio mágico pela revolução espiritual dos anos 60. Eles
prometiam um “reencantamento do mundo” diante de nosso deserto tecnológico, uma
redescoberta coletiva do caráter sagrado da natureza. E pareciam ter o poder de
lançar um brilho mágico sobre o reino do amor heterossexual, lembrando-nos de
sua profundidade trans-pessoal e nobreza. Infelizmente, porém, o paradigma
mágico sobre o qual esse renascimento neopagão se baseava tinha afinidades
secretas com aquela outra forma de magia, a tecnologia humana; esta foi uma das
mais profundas e dolorosas ironias da luta desesperada da minha geração para
recuperar o sagrado. Não por acaso “Fantasia (neopagã) e Ficção Científica”
constitui um único gênero literário.
Numa
extremidade do espectro, encontramos neopagãos na companhia de ocultistas
literários bem-educados, como muitos dos que publicavam na revista Gnosis, por exemplo, mas eles
também incluem, em suas fileiras, consumidores de drogas psicodélicas que
“brincam” com magia, bem como praticantes “sérios” da arte, na outra
extremidade. O nome do mago negro Aleister Crowley é bem conhecido nesse meio,
mesmo quando não é respeitado.
Neopaganismo,
xamanismo pop e culto à Deusa tendem a formar uma única subcultura, e todos os
três geralmente compartilham um interesse de fundo em mitologia e mitopoesia,
muitas vezes mediado pelas teorias psicológicas de Carl Jung. O aspecto mais
“mainstream” desse ethos é, ou era, representado por Joseph Campbell; outro
afluente foi a comunidade experimental de Findhorn, na Escócia, apresentada nos
livros de Peter e Eileen Caddy (The Magic of Findhorn) e outros, onde a
interação humana com espíritos elementais aparentemente produziu manifestações
aparentemente impossíveis de fertilidade vegetal. Para minha sensibilidade, as
experiências de Findhorn transmitem uma sensação feérica semelhante à que cerca
outros “magos da horticultura”, como George Washington Carver e Luther Burbank
(cuja obra ainda emana uma aura perceptível em sua casa em Santa Rosa), senão
Rudolf Steiner. Na década de 1970, o ocultismo da horticultura, que inclui
tanto magia quanto tecnologia “de fronteira”, foi catalogado num livro
intitulado The
Secret Life of Plants (A Vida Secreta das Plantas), de Peter Tompkins. A magia
horticultural como um todo deve muito ao movimento da Naturphilosophie alemã, no qual Goethe
— influência seminal tanto sobre Jung quanto sobre Steiner — foi figura
central.
Por meio de
figuras como o ex-padre católico Matthew Fox e sua colega, a bruxa Starhawk, o
Neopaganismo (e isso vale em dobro para o junguianismo) fez vastas incursões no
cristianismo norte-americano, particularmente por meio de seminários liberais
como o Union Theological Seminary e o GTU. Em contraste com os neopagãos, os
praticantes da New Age tendem a ser mais fascinados por tecnologia avançada,
mais voltados ao “canalização” (channeling) e, em geral, menos
literários, embora muitas vezes mais bem-sucedidos profissionalmente ou mais
“yuppies” que os neopagãos. Ainda assim, existe um grande cruzamento entre os
dois grupos. José Argüelles, por exemplo, que criou, através de seu livro The Mayan Factor, um dos primeiros
eventos religiosos populares internacionais, o Harmonic Convergence, em 16–17
de agosto de 1987 (apresentado como data-chave para a mudança de paradigma da
Nova Era, supostamente baseada no calendário maia), representa (ou representou)
uma ponte entre essas duas tendências.
Quem quer que
acompanhe a história da canalização encontrará boa parte da história da New Age
desde os anos 60. O espiritualismo e a canalização New Age concentram-se na
recepção de novas filosofias, que muitas vezes não passam de versões populares
de ciência mal compreendida, particularmente da física einsteiniana e
pós-einsteiniana e da genética moderna, na aquisição de poderes psíquicos,
incluindo cura, e na tentativa de rasgar o véu do futuro. Allan Kardec e
Stainton Moses, por exemplo — como Swedenborg antes deles — canalizaram filosofias
inteiras do Mundo Espiritual no início do século XX, e Madame Blavatsky
certamente foi profundamente influenciada pelo lado “filosófico”, assim como
pelo lado mágico, do espiritualismo. O espiritualismo anterior talvez se
concentrasse mais do que a canalização atual na tentativa de provar que a
personalidade humana sobrevive à morte e em estabelecer contato com entes
queridos falecidos em favor dos vivos, em grande parte devido ao efeito
traumático da Primeira Guerra Mundial; mas tais preocupações certamente não
desapareceram.
A figura-ponte
mais importante entre essas duas ondas de espiritualismo provavelmente é o
médico-médium em transe, clarividente histórico e prognosticador Edgar Cayce
(1877–1945), cuja organização, a Association for Research and
Enlightenment,
ainda hoje é bastante ativa em Virginia Beach, Virgínia. Seu histórico como
curador é assombroso, mas seu outro trabalho — incluindo uma série de
tentativas fracassadas de encontrar petróleo ou tesouros enterrados por meios
psíquicos — não esteve à altura. Seu ministério limitava-se à clarividência
médica, dom que recebeu através de uma visão aos treze anos de idade, até
cruzar o caminho do teosofista Arthur Lammers; depois disso, suas “leituras”
começaram a tratar de assuntos ocultos como astrologia, Atlântida, reencarnação
etc., aparentemente sob a influência das perguntas que Lammers lhe fazia em
estado de transe. Como cristão devoto, Cayce ficou perturbado ao perceber que
vinha canalizando ideias que pareciam contradizer a Bíblia, mas acabou por
aceitá-las. (Lembra-se aqui a crença de Guénon de que magos e ocultistas
costumam influenciar deliberadamente médiuns por sugestão, telepática ou não,
para fazer parecer que suas próprias doutrinas também são ensinadas pelos
“espíritos”.) Uma biografia autorizada de Cayce, There Is a River, de Thomas Sugrue, foi
publicada em 1973.
Os dois
conjuntos de material canalizado mais influentes por trás de grande parte da
mitologia New Age são o material “Seth”, canalizado por Jane Roberts (The Seth Material; Seth Speaks; The Nature of Personal
Reality
e outros), e A
Course in Miracles
(Um
Curso em Milagres),
em que o orador é supostamente Jesus. Outro livro central é Opening to Channel, de Roman e Packer,
escrito sobre a suposição de que todos podem — e devem — canalizar entidades
psíquicas. Desde então, o número de canalizadores e de entidades canalizadas
tornou-se tão vasto que quase impossível acompanhá-lo. Há a entidade Ramtha,
canalizada por J. Z. Knight; e, desde os anos 70, diversas novas entidades surgiram,
como Michael ou Hilarion, que podem ser canalizadas por mais de um médium. A
origem desse desenvolvimento pode ser o desejo de certos escritores ou líderes
de workshops de pegar carona no sucesso de outros mais conhecidos, mas o
resultado foi algo como “fã-clubes psíquicos” em torno deste ou daquele
espírito — possivelmente seitas religiosas em estado embrionário.
Um dos
desenvolvimentos mais recentes e perturbadores na canalização New Age é a
“canalização” de alienígenas, ou melhor, a quase completa confusão, na mente do
público, entre entidades psíquicas e astronautas alienígenas tecnologicamente
avançados. “Alienígenas” podem atravessar paredes, aparecer e desaparecer à
vontade, estimular experiências fora do corpo e até manter relações sexuais conosco
em sonhos — e ainda assim são vistos como seres de outros planetas que possuem
tecnologias suficientemente avançadas para lhes permitir fazer essas coisas,
embora essa identificação rígida de alienígenas com astronautas comece a mudar.
É aqui que os escritos do padre Seraphim Rose sobre OVNIs são de importância
central, como também a previsão de Guénon, em O Reino da Quantidade, de que o mundo, sob a
influência do materialismo, chegaria a tal nadir de solidificação que a “grande
muralha” entre os planos material e sutil começaria a rachar, permitindo a
entrada de forças “infra-psíquicas”, o que ajuda a explicar por que tantos
crentes devem interpretar manifestações obviamente psíquicas (com alguns
efeitos físicos reais) em termos estritamente materiais. Os grupos
contemporâneos seguidores de Barbara Hand Clow, que canalizam os Pleidianos
(alienígenas das Plêiades), podem ser tomados como representativos desse
desenvolvimento.
Talvez o
anúncio inicial mais importante das esperanças e objetivos do movimento New Age
tenha sido The
Aquarian Conspiracy,
de Marilyn Ferguson. Um ataque influente à New Age, a partir de um ponto de
vista cristão evangélico, é The Hidden Dangers of the Rainbow, de Constance Cumby.
Os livros de David Spangler (The Call; Everyday Miracles; Re-Imagining the World) e The Global Brain, de Peter Russell,
também foram extremamente influentes.
Outros cinco
fios no tecido da New Age merecem menção. O primeiro é o trabalho com sonhos (dream-work), que constitui uma
ponte da psicologia junguiana e transpessoal para o mundo do oculto, em grande
parte por meio do ensino de várias técnicas de controle dos sonhos e da
equiparação entre experiências fora do corpo (o nome central aqui é Robert
Monroe, que escreveu Journeys
Out of Body
e outros livros, e fundou diversas escolas para ensinar o homem comum a
projetar-se astralmente) e o sonho lúcido — a experiência de despertar para o
fato de que se está sonhando enquanto ainda se sonha. O sonho lúcido é elemento
central na feitiçaria xamânica de Castaneda. O estudo científico desse fenômeno
está associado ao Dr. Stanley Krippner, do Saybrook Institute, e ao Dr. Stephen
LeBerge, em Stanford, como relatado em seu livro Lucid Dreaming; ambos conduziram
pesquisas bem coordenadas e financiadas sobre sonho lúcido e controle dos
sonhos. O trabalho com sonhos também é fortemente influenciado, senão em grande
parte inspirado, pelo material canalizado de Seth.
O segundo fio
é o interesse contemporâneo em anjos, que produziu vários livros. Ele pode
representar, até certo ponto, uma forma de canalização de espíritos mais
aceitável para alguns cristãos, por ser menos ameaçadora que uma conexão com
“entidades psíquicas”; mas também é sinal de que o senso de transcendência
sobre o qual se baseia o monoteísmo está desvanecendo do psiquismo ocidental,
como ocorreu há muito tempo com grande parte das religiões africanas, deixando
uma multiplicidade de “entidades” sutis para preencher o crescente vazio, as
quais começam a parecer mais plausíveis, para muitas pessoas, do que um
Pai-Deus distante. As interações contemporâneas com anjos incluem tanto
intervenções não solicitadas quanto tentativas humanas deliberadas de
comunicação.
Para mim, essa
atração por anjos transmite aquela espécie de sensação leve e aérea que associo
à Unity Church, e parece ligada, de forma vaga, às aparições contemporâneas da
Virgem Maria, que vão desde as que provavelmente são verídicas, passando por
várias manifestações parciais e suspeitas ou “canalizações” dentro de um quadro
católico, até canalizações 100% New Age da “Mother Mary”, nome dado à Virgem
por Paul McCartney, dos Beatles! As manifestações católicas incluem as de
Scottsdale, Arizona, e Emmitsburg, Pensilvânia, ambas mediadas por uma mulher
que (se entendi bem a história) foi “inspirada” por um padre ao retorno deste
de Medjugorje, e então começou a receber mensagens da Virgem, primeiro no
Arizona e depois na Pensilvânia. Muitas paróquias católicas aparentemente têm
“clubes de Medjugorje”, iniciados por pessoas que viajaram para lá, incluindo
uma em San Bruno, ao sul de San Francisco, onde crianças supostamente foram
interpeladas por Maria; isso levou a uma moda altamente duvidosa, embora ainda
possivelmente válida, de mensagens marianas.
O terceiro fio
é o estudo das experiências de quase-morte (near-death experiences) como forma de tentar
compreender a vida após a morte; os nomes principais nesse campo são Elizabeth
Kübler-Ross (On
Death and Dying
e outros) e Raymond A. Moody (Life after Life). O livro de Moody e
suas continuações, por ele próprio e por outros, atuaram no sentido de
“padronizar” a concepção popular da experiência pós-morte até o ponto de se
tornar um clichê midiático: o túnel escuro com uma luz ao final, o encontro com
parentes falecidos etc. O padre Seraphim Rose, em The Soul After Death, faz uma boa crítica
dessa visão despreocupada e “não-julgadora” da vida após a morte.
O quarto fio
é, como mencionei acima, o treinamento gerencial. Um amigo meu — ou melhor,
ex-amigo, já que sua vida se envolveu tanto com a escuridão espiritual que já
não posso relacionar-me com ele — é consultor de treinamento gerencial de
classe mundial, tendo trabalhado com grandes corporações multinacionais, tanto
nos EUA quanto na orla do Pacífico. Por meio dele, fiquei sabendo que, como
costumo dizer, “todo treinador gerencial precisa fundar sua própria religião
antes de poder vender seus serviços”.
As verdades
esotéricas dos séculos, bem como diversas práticas psíquicas, estão sendo
digeridas e empacotadas como “paradigmas de treinamento” para a alta e média
gerência das maiores corporações do mundo, muitas vezes em conexão com artes
marciais chinesas e japonesas — ou ao menos isso acontecia quando invejávamos a
economia japonesa e queríamos imitar o estilo gerencial japonês! Alguns anos
atrás houve até um escândalo na Pacific Telephone quando consultores de
treinamento gerencial que empregavam técnicas de Gurdjieff foram um pouco longe
demais e pareciam estar recrutando adeptos (o que provavelmente faziam). Uma
manifestação mais recente dessa tendência foi a tempestade em copo d’água em
torno do trabalho de Jean Houston com o presidente e a primeira-dama Clinton,
quando ela os conduzia em “visualizações guiadas” para que imaginassem estar
conversando com figuras como Lincoln e FDR (Jean Houston, lembre-se, foi uma
das pesquisadoras originais do LSD). A mídia estava pronta para estourar a
manchete “Sessões espíritas na Casa Branca!” — mas então, sem dúvida, alguns
começaram a lembrar que tinham feito algo muito semelhante no seminário de
treinamento da semana anterior, e perceberam que tais “técnicas intuitivas de
solução de problemas”, como as de Houston, agora são comuns em grandes
corporações. Elas são as sucessoras das técnicas de Dale Carnegie e Norman
Vincent Peale. Eis o quão mainstream a New Age se tornou.
O quinto fio é
a mídia mainstream, entre a qual mencionarei apenas os muitos programas de TV
baseados em realidade não ordinária, como The X-Files, e as “linhas
telefônicas psíquicas”, nas quais, por alguns dólares por minuto, você pode
falar com um “verdadeiro médium” que resolverá todos os seus problemas e lhe
dirá como conduzir a vida. Surgiram reclamações de que essas linhas são
viciantes, algo parecido com jogo compulsivo, com o perigo adicional de
possessão demoníaca. Uma delas foi anunciada na TV por Nichelle Nichols, atriz
que atuou na série e nos filmes originais de Star Trek, cujo irmão, membro da
seita ufológica Heaven’s Gate, morreu no suicídio coletivo do grupo em março de
1997.
A cultura New
Age incorpora certos elementos tradicionais ou semi-tradicionais. Muitos lamas
tibetanos, por exemplo (incluindo o Dalai Lama), divulgam seus ensinamentos em
círculos New Age e são ali respeitados, embora eu tenha ouvido dizer que outros
lamas deploram esse desenvolvimento. Outros budistas tradicionais, como Thich
Nhat Hanh, e aqueles ao menos com formação tradicional, como Jack Kornfield
(embora o budismo que ele prega muitas vezes se pareça mais com psicoterapia de
grupo do que com busca da Iluminação Total Perfeita), também se sentem em casa
nesse mundo. Até recentemente, o sufismo era representado no universo New Age,
pelo menos na Califórnia, sobretudo pelos seguidores de Samuel Lewis (“Sufi
Sam”) e de Pir Vilayat Khan, da ordem Chishti, e por Jellaluddin Loras (filho
de Suleiman Dede), dos mevlevis, que ensina a “gira” mevlevi a americanos.
Samuel Lewis, que cresceu em Fairfax, Califórnia, perto de minha cidade natal,
San Rafael, e faleceu em 1971, embora não tradicional e eclético, era um
verdadeiro iniciado sufi, criador das “danças sufis” que, por muito tempo,
passaram por sufismo na mente da maioria na Califórnia.
Tanto Pir
Vilayat Khan quanto Samuel Lewis, e também Jellaluddin Loras, representam uma
tentativa de tornar o sufismo “universal” separando-o, em maior ou menor grau,
do Islã. Embora ordens mais tradicionais, como os naqshbandis e os
helveti-jerrahis, estejam ativas há décadas, foram os chishtis e mevlevis
“hippie-universalistas” que representaram a principal expressão pública de
“sufismo” na região da baía de São Francisco até alguns anos atrás, quando Ali
Kianfar, um iraniano “uwaysi” ou “discípulo de Khidr”, e sua esposa Nahid Angha
começaram a se destacar, organizando grandes conferências de sufismo no estilo
de workshops New Age e manifestando um “ecumenismo sufi” ao incluir psicólogos,
alguns membros de outras tradições religiosas etc. Mesmo alguns dos velhos
sufis hippies, entretanto, vêm se tornando lentamente mais islâmicos, talvez em
reação aos excessos da New Age; o mesmo distanciamento gradual desse mundo
parece ocorrer com certos mestres hindus.
O hinduísmo
semi-tradicional (se é que tal coisa existe) foi representado na contracultura
dos anos 60 e 70, e em parte ainda o é, por Ram Dass, Swami Satchidananda, Sri
Chinmoy, Swami Muktananda, Da Free John, pelos seguidores de Paramhansa
Yogananda e outros, incluindo um fluxo contínuo de “Santas Mães” radicadas na
Índia; o sikhismo, por Yogi Bhajan, Kirpal Singh, seu filho Sant Darshan Singh,
e atualmente por seu discípulo Sant Thakar Singh; e um cristianismo mais ou
menos tradicional pelo interesse persistente em Thomas Merton, cujo lugar
cultural foi, em certo sentido, herdado pelo monge beneditino Irmão David
Steindl-Rast. Contudo, como essas figuras e seus sucessores são justapostos, na
mente dos adeptos da New Age, à canalização, ao xamanismo, ao neopaganismo e ao
culto ecofeminista da Deusa, quaisquer doutrinas tradicionais que ensinem
tendem a se dissolver numa mentalidade anti-tradicional que as nega em todos os
pontos, sem que seus estudantes — e talvez nem eles próprios — percebam. Jack
Kornfield, por exemplo, fez um estudo da altíssima porcentagem de mestres
hindus e budistas que se envolveram em escapadas sexuais com alunos depois de
chegarem ao Ocidente; mas isso o levou a concluir não que seus problemas se
baseiam numa traição ou diluição de suas respectivas tradições — como o
afrouxamento dos votos monásticos budistas tradicionais, por exemplo —, e sim
que as próprias tradições são deficientes em discernimento psicológico e,
portanto, precisam ser suplementadas por métodos psicológicos ocidentais.
Essa mistura
de doutrinas tradicionais com as ciências sociais ocidentais, e com elementos
que poderíamos chamar de “New Age”, é bem representada pelo Naropa Institute,
em Boulder, Colorado, fundado por Chögyam Trungpa, um tulku (reencarnação
reconhecida de um mestre anterior) e detentor da linhagem Kargyüpa, que remonta
a Naropa, Marpa e Milarepa — um exemplar plenamente autorizado da tradição e
brilhante escritor sobre budismo tibetano, escolhido como mestre pela elite
intelectual de duas gerações da contracultura norte-americana (Beat e Hippie),
quando a festa desenfreada dos anos 60 descia à profunda depressão espiritual
dos anos 70; que ocidentalizou e modernizou a tradição, rompendo radicalmente
com a prática da maioria de seus correligionários; que afrouxou os votos
monásticos tradicionais; e que morreu, perseguido por escândalos, de alcoolismo
agudo em 1987.
Aqui,
felizmente, termina minha experiência com o mundo das “espiritualidades
alternativas”. Só quero acrescentar que o comentarista de rádio de alcance
nacional Hank Hanegraaff, do evangélico Christian Research Institute, abriu meus olhos para
o quão profundamente as ideias New Age e as práticas psíquicas já penetraram o
cristianismo protestante, particularmente por meio do movimento carismático.
Sem metafísica
tradicional, a teologia declina. Sem teologia, religião e espiritualidade
passam a ser julgadas apenas por seu poder de produzir experiência. Quando a
experiência é o único critério de espiritualidade, a intensidade torna-se sua
única medida. Quando apenas a intensidade passa a ser o objetivo, amor e
verdade são excluídos — e a escuridão ocupa o lugar vazio.
II. Os perigos
do ocultismo
O que é “o
oculto”?
A criação de
Deus é hierárquica, e a divisão mais simples dessa hierarquia é em três níveis:
material, psíquico e espiritual. Cada nível é mais sutil e mais vivo que o
nível abaixo de si, e contém tudo o que está abaixo dele, embora em forma mais
elevada.
O plano
psíquico é o “ambiente” natural da psique humana, assim como a terra e o
universo material são o ambiente do corpo humano. Ele não é puramente mau, como
acreditam alguns cristãos, mas certamente é perigoso, pois, se o acessamos quer
acidentalmente, quer por iniciativa própria, perdemos a proteção do plano material
antes de necessariamente termos adquirido a proteção do plano espiritual, e
ficamos, portanto, extremamente vulneráveis não apenas à dispersão de nossa
energia psíquica e vital, mas à obsessão ou possessão pelos poderes do mal.
Não obstante,
o plano psíquico não é exclusivamente demoníaco; caso contrário, não poderíamos
receber orientação divina em sonhos, nem milagres físicos poderiam ocorrer, já
que toda influência vinda do plano espiritual deve atravessar o plano psíquico
antes de chegar à realidade material. Mas, justamente por isso, é muito difícil
discernir se uma manifestação psíquica ou um fenômeno físico anômalo se origina
no plano psíquico ou no plano espiritual. Não obstante, há uma diferença
profunda de nível entre um ato de magia (quer com finalidade de cura, quer de
dano) que emana do plano psíquico e um milagre que se origina no plano
espiritual. Práticas psíquicas, mágicas ou xamânicas são “tecnologias”,
instâncias de intervenção voluntária por parte de seres humanos ou entidades psíquicas.
Milagres são manifestações do Espírito, da verdade eterna e do amor de Deus,
nos níveis psíquico e material. Eles realizam muitas coisas diferentes ao mesmo
tempo, sem esforço, por meio do “desvelamento” de uma pequena parte da Verdade
e do Amor infinitos de Deus.
O plano
psíquico é um mundo múltiplo composto de muitos “pontos de vista” subjetivos. O
plano espiritual é a irradiação da Realidade Divina objetiva; eles não são a
mesma coisa, razão pela qual podemos encontrar pessoas extremamente psíquicas
que não são espirituais de modo algum. No nível material, parecemos ser produto
de nosso ambiente material, por meio da bioquímica, das influências culturais,
da história e da evolução. No nível psíquico, nosso ambiente parece ser produto
de nosso estado de consciência, já que, à medida que “sintonizamos” realidades
diferentes, o ambiente muda. No nível espiritual, sabemos que somos
absolutamente dependentes, criados por, e também de certo modo símbolos, da
Realidade Divina de Deus. Somente na medida em que estamos abertos ao Espírito
podemos saber quem realmente somos e o que é eternamente verdadeiro; somente
pela realização do nível espiritual nos tornamos quem realmente somos. Nossa
humanidade foi desenhada por Deus para essa realização. Se falhamos em
atingi-la (dizem os sufis), então ainda não somos, ou somos apenas
virtualmente, seres humanos.
O conhecimento
psíquico é apenas mais um tipo de conhecimento; não há nada de necessariamente
demoníaco nele, nem de necessariamente espiritual. Ainda assim, um pouco de
conhecimento é algo perigoso, e o conhecimento psíquico é sem dúvida muito
“pouco” quando comparado à sabedoria espiritual.
Os poderes
psíquicos podem chegar até nós de cinco maneiras diferentes: (1) pelo
nascimento; (2) por acidente, doença ou outro trauma; (3) como dom inesperado;
(4) pela busca direta; e (5) como subproduto do desenvolvimento espiritual. As
duas primeiras, ao menos inicialmente, são moralmente neutras. Se alguém nasce
com capacidades psíquicas ou as adquire depois de um choque traumático ou
lesão, é imprudente e injusto presumir que tal indivíduo se encontra possuído
por demônios, assim como é injustificado supor que sua sensibilidade psíquica
seja sinal de sabedoria espiritual. Por outro lado, se alguém dotado de
capacidades psíquicas permanece ignorante das realidades espirituais, mas
fundamenta sua visão de mundo apenas em informações psíquicas, essa pessoa está
iludida e, portanto, potencialmente — mas não necessariamente — aberta à
influência de demônios enganadores.
No caso de um
“dom” de poderes psíquicos, sua irrupção não solicitada a partir de alguma
fonte invisível, é nosso dever questionar a natureza dessa fonte, consultando
alguém ligado a uma espiritualidade tradicional que seja conhecedor desses
assuntos — supondo que possamos encontrar tal pessoa — e, em todo caso, pela
oração. É necessário, em outras palavras, descobrir se esse dom representa uma
tarefa que Deus nos impôs ou uma maldição sedutora que os poderes das trevas
lançaram sobre nós.
Se alguém
busca ativamente e obtém poderes psíquicos, a situação é mais séria, embora
este seja um princípio difícil de compreender para muitas pessoas. Afinal, os
poderes psíquicos não seriam simplesmente parte de nosso “potencial humano”? E
não seria natural explorar e desenvolver nossos talentos dados por Deus?
Aprendemos a andar, a falar, a dirigir, a fazer amor, a ganhar a vida, a nadar,
a jogar basquete, a cantar, a escrever, a adquirir certo grau de insight
psicológico sobre nós mesmos e sobre os outros, até a compreender filosofia e
metafísica sem necessariamente nos tornarmos possuídos por demônios. Por que as
capacidades psíquicas deveriam ser diferentes?
Existe, no
entanto, um limite além do qual o desenvolvimento voluntarioso de nosso
potencial humano passa a invadir um terreno onde nosso direito de fazer o que
quisermos com nossos talentos já não é garantido. Transgredimos esse mesmo
limite todos os dias, de uma forma ou de outra, por meio de nosso “progresso”
tecnológico. O que há de errado com a tecnologia? Simplesmente o fato de que,
se a desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos a terra e
a forma humana. O que há de errado com os poderes psíquicos? Simplesmente o
fato de que, se os desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos
nossas almas.
Ocultismo é a
prática de entrar em contato com o plano psíquico por iniciativa própria, ou em
resposta a um convite vindo desse plano apenas. Nosso objetivo pode ser
“acessar” o Espírito por meio da psique, mas mais frequentemente será apenas a
tentativa de ampliar a área de nosso próprio ego, de perseguir, em mundos mais
sutis, os objetivos básicos do ego em matéria de segurança, prazer e poder.
Isto parece ser — e até certo ponto realmente é — uma simples extensão de nossa
autocompreensão psicológica, uma espécie de exploração adolescente de nosso
potencial psíquico. Mas, a menos que percebamos que é o Espírito de Deus que
está realmente nos convocando a essa exploração, e que nosso verdadeiro
objetivo deve ser entrar em relação consciente com o Espírito, em conhecimento
e amor, e submeter-nos à Sua orientação, nossa exploração do plano psíquico
rapidamente se tornará adoração de nosso próprio ego e atrairá aqueles poderes
do mal cujo objetivo é nos separar eternamente de nosso Criador. É por isso que
buscar poderes psíquicos com a finalidade de aumentar nossa segurança, prazer e
poder, ou mesmo de “tomar o céu de assalto” — de “alcançar” Deus pela força de
nossa própria vontade — é um caminho profundamente destrutivo.
Se poderes
psíquicos aparecem como resultado de nossa submissão à Vontade de Deus, então
eles são expressão dessa Vontade em nossas vidas; consequentemente, não
atribuiremos sua operação a nós mesmos, mas ao nosso Criador. Mesmo assim,
podem ser um “teste” enviado por Deus, para ver se amamos mais os Seus dons do
que a Ele próprio.
Desde os anos
60, como apontei antes, o paradigma dominante no mundo da espiritualidade
“alternativa” deslocou-se do misticismo para a magia. O motivo mágico sempre
esteve presente; ainda assim, a crença de que a busca por poderes psíquicos
pode interferir no desenvolvimento espiritual fazia parte da sabedoria recebida
na época. Mas hoje em dia, excetuando-se os círculos religiosos conservadores e
os Tradicionalistas, é algo raramente ouvido. Com técnicos esportivos ensinando
técnicas psíquicas e mágicas a seus times, e consultores de treinamento
gerencial transmitindo-as a executivos corporativos, a ideia de usar poderes
psíquicos de um tipo ou de outro para expandir o “potencial humano” tornou-se
mainstream, fato refletido no conteúdo de uma alta porcentagem dos programas de
TV contemporâneos, em que poderes psíquicos e eventos mágicos se tornam
elementos corriqueiros mesmo em enredos baseados ostensivamente na “realidade
ordinária e cotidiana”, para não falar de programas
psíquico-ficcional-científicos como The X-Files.
Não podemos
simplesmente dizer que qualquer pessoa envolvida com o plano psíquico está
destruindo gravemente sua psique ou está destinada à condenação. Alguns médiuns
naturais, ou mesmo altamente treinados, praticam conscientemente sua arte a
serviço da humanidade e para maior glória de Deus. Entretanto, toda a tendência
do interesse contemporâneo por realidades psíquicas é profundamente sinistra,
pois, quanto mais cresce o paradigma de “expandir seu potencial humano na busca
de segurança, prazer e poder”, mais ele tende a suplantar o paradigma de
“seguir a Vontade de Deus, mesmo que você tenha que sacrificar segurança,
prazer e poder para fazê-lo”. Assim, a magia substitui a religião, e a visão
mágica de mundo é tão abismalmente inferior às sublimes concepções de Realidade
Divina e de destino humano preservadas pelas grandes religiões mundiais que
simplesmente não há comparação.
Além disso,
num mundo de magia, aqueles que não possuem algum tipo de pretensão a poder
psíquico começam a sentir-se excluídos e vulneráveis. Lembro-me da história
contada por um antropólogo que perguntou a um xamã nativo-americano por que ele
se interessara pelo xamanismo. A resposta foi: “porque eu tinha medo dos
xamãs”. Se a maioria das pessoas em seu ambiente carrega armas ou pertence a
gangues, você se sentirá tentado a fazer o mesmo apenas para se proteger. Com a
magia é a mesma coisa.
Mais uma vez,
isso não significa negar a existência de médiuns orientados ao serviço e “magos
brancos”, dispostos a sofrer pessoalmente para servir a Deus e à comunidade.
Mas, a menos que pratiquem suas artes dentro da segurança de uma tradição
espiritual viável, com longa experiência de seus usos e perigos, estarão
inevitavelmente expostos àquelas forças que fazem tudo o que podem para provar
que “o caminho do inferno é pavimentado com boas intenções”.
Isso nos traz
novamente à questão do xamanismo, uma forma religiosa arcaica ainda praticada
por centenas de milhões de pessoas na África, na Ásia, nas ilhas do Pacífico,
nas Américas e em outros lugares, em que religião e magia parecem formar um
todo único. Qualquer tradição capaz de produzir homens realmente santos, como o
lakota Black Elk, não pode ser simplesmente descartada como paganismo ou
feitiçaria; contudo, as práticas que caem sob o termo geral “xamanismo” podem
se estender desde a mais elevada teurgia mística até a mais venenosa bruxaria e
o puro charlatanismo.
René Guénon
via o xamanismo como detentor de “uma cosmologia altamente desenvolvida… que
poderia sugerir concordâncias com outras tradições sob muitos aspectos”,
incluindo “ritos comparáveis a alguns que pertencem a tradições da mais alta
ordem”. Por outro lado, a ênfase xamânica em “ciências tradicionais inferiores,
como magia e adivinhação” significa que “é preciso suspeitar de uma
degenerescência muito real, que às vezes pode chegar a uma verdadeira
desviação, como facilmente pode acontecer a tais ciências quando se tornam
excessivamente desenvolvidas” (The Reign of Quantity and the Signs of
the Times,
pp. 217–218). Michael F. Steltenkamp, em Black Elk, Holy Man of the Oglalla Sioux (University of
Oklahoma Press, 1993), repete algumas das críticas do próprio Black Elk ao
xamanismo, feitas depois de sua conversão ao catolicismo. Ele não rejeitou
inteiramente o xamanismo tradicional, permitindo que um de seus amigos
homens-medicina conduzisse um ritual de cura para ele, com algum sucesso,
quando sofria de paralisia na velhice, mas exigiu que objetos rituais católicos,
como santinhos, fossem substituídos pelos fetiches oglala. E reconheceu
claramente, na humildade cristã, uma virtude superior à arrogância de muitos
xamãs.
Além disso, há
um abismo entre a função de um xamã em um ambiente tribal — onde ele ou ela
representa uma grande parte da “tecnologia de sobrevivência” da tribo,
incluindo a capacidade de encontrar e atrair caça, prover chuva para a
agricultura, curar doenças, fazer psicoterapia, conduzir investigações
criminais e realizar inteligência militar — e o papel desses mesmos poderes na
sociedade atual, onde há mais espaço do que nunca para degeneração e
autoengrandecimento. (Como evidência de que povos mais “primitivos” veem o
xamanismo mais ou menos como nós vemos a tecnologia, Jean Cocteau repete uma
história contada por um viajante no Haiti, onde árvores são aparentemente
usadas às vezes como suporte para a telepatia. Quando uma mulher quer que o
marido distante traga algo da cidade, por exemplo, ela fala com uma árvore que,
de algum modo, retransmite a mensagem. Quando perguntaram a uma mulher por que
seu povo falava com árvores, ela respondeu: “Porque somos pobres. Se fôssemos
ricos, teríamos telefone.”)
A ampla
difusão de técnicas xamânicas separadas de seu contexto tradicional, como as
que podem ser aprendidas em um seminário de fim de semana, é claramente
destrutiva enquanto tendência geral, não importando o quão “úteis” essas
práticas possam ser numa situação particular. Quando se pode entrar em qualquer
livraria generalista, mesmo no cinturão bíblico, e encontrar livros que
incluem, em seu amontoado de “tecnologias” psíquicas, receitas de como lançar
feitiços e maldições, fica bem claro que as coisas saíram de controle. Se
lamentamos a fácil acessibilidade de armas de fogo e de informações sobre como
fabricar bombas, inclusive nucleares, por que não adotamos a mesma atitude com
relação à magia negra? Talvez porque temamos, com razão, a erosão de nossas
salvaguardas constitucionais à liberdade religiosa, assim como os opositores do
controle de armas temem a destruição de seu direito constitucional de “manter e
portar armas”. Mas pode ser também devido ao fato de nutrirmos uma espécie de
“incredulidade seletiva” quanto aos poderes do mal.
Lembro-me de
um anúncio que vi em um jornal gratuito local, em que se podia pagar para que
alguém lançasse uma maldição sobre outra pessoa. Telefonei para o jornal e
argumentei que, se eles não acreditavam em maldições, estavam participando de
propaganda enganosa, ao passo que, se acreditavam, estavam conspirando para
cometer agressão. Naturalmente, não me ouviram; e a impressão que tive foi que,
confrontados com a possibilidade de estarem ajudando a causar dano real a
pessoas, reprimiram qualquer remorso negando a si mesmos que a magia negra seja
real, e depois rebateram minha acusação de propaganda enganosa dizendo a si
mesmos que, na verdade, ela é real — tudo isso de forma inconsciente, num
piscar de olhos. Este é precisamente o tipo de ginástica mental que George
Orwell analisou em 1984 como “duplipensar” (doublethink) — a capacidade de
manter duas crenças contraditórias ao mesmo tempo sem qualquer ansiedade. Somos
crentes lunáticos e/ou cínicos desmistificadores sempre que isso convém à nossa
necessidade de evitar o confronto com a verdade objetiva.
Como disse C.
S. Lewis em Cartas
de um Diabo a seu Aprendiz (The Screwtape Letters), p. 32, pela boca de seu demônio Screwtape:
“Quando os
humanos não acreditam em nossa existência, perdemos todos os agradáveis
resultados do terrorismo direto, e não conseguimos fazer mágicos. Por outro
lado, quando acreditam em nós, não podemos torná-los materialistas e céticos.
Ao menos ainda não. Tenho grandes esperanças de que aprenderemos, no devido
tempo, a emocionalizar e mitologizar sua ciência a tal ponto que aquilo que, na
prática, é uma crença em nós (embora não sob esse nome) se infiltrará… se
conseguirmos produzir nossa obra-prima — o Mago Materialista… então o fim da
guerra estará à vista.”
Mas, é claro,
o Mago Materialista já está entre nós há algum tempo; ele é a nota dominante do
período histórico presente. A idolatria da tecnologia avançada, real ou
imaginada, é nossa superstição contemporânea dominante. Basta lembrar que a
palavra que hoje usamos para aquilo que sempre foi chamado “demônios” é
“alienígenas”. Alienígenas nos abduzem, transportam pelo ar, nos examinam, têm
relações sexuais conosco, atravessam paredes para entrar em nossas casas e
aparecem em nossos sonhos. Mais de um milhão de norte-americanos afirmam ter
tido essas experiências, tantos que grupos de apoio e até grandes conferências
de “abduzidos” já formam uma indústria independente. Não conseguimos nos
obrigar a chamá-los de “demônios”, por medo de nos tornarmos “fanáticos
religiosos” e assim perdermos nossa filiação à sociedade
materialista-tecnocrática. Mas temos que acreditar em toda história que ouvimos
sobre eles, incluindo a propaganda grosseiramente orquestrada sobre a
recuperação de cadáveres alienígenas em Roswell, Novo México (relato que
permanece pouco convincente para o conhecido pesquisador de OVNIs Jacques
Vallée), e admitir que possuem todos os poderes físicos e psíquicos comuns ao
reino de Satanás; caso contrário, poderíamos passar por “céticos estreitos de
mente”, velhos racionalistas enfadonhos sem nada interessante a dizer em
reuniões sociais. Estamos sob o jugo do duplipensar.
Todos esses
desenvolvimentos foram previstos, em seus contornos principais, se não em
detalhe, por René Guénon em O Reino da Quantidade e os Sinais dos
Tempos,
publicado em 1945. Segundo Guénon, ao longo dos últimos séculos, o mundo passou
a ser definido menos pelas qualidades das coisas e mais pela pura quantidade,
de modo que o “sucesso” de uma nação (por exemplo) não é medido pela
profundidade da cultura, pela altura da compreensão espiritual ou pela
qualidade de vida, mas pelo produto interno bruto. A “cultura da informação” é
apenas a encarnação mais recente dessa tendência a quantificar tudo.
Mas o “reino
da quantidade”, embora continue a ganhar poder, em certo sentido atingiu o auge
no fim do século XIX e início do XX, quando o materialismo, como forma de ver o
mundo, estava no ápice, na época em que ainda era possível crer de modo
complacente em algo chamado “vida ordinária”. Como já apontei, tal materialismo
resultou, segundo Guénon, em uma espécie de “solidificação do mundo”.
Antigamente, digamos, nos anos 1950, relatos de ocorrências sobrenaturais, ou a
crença de que tais coisas fossem possíveis, eram frequentemente recebidos com
um “Como é possível você acreditar nisso? Estamos no século XX!”. Hoje, no
início do século XXI, o estranho parece normal, senão inevitável. Em termos dos
sons, imagens e crenças produzidos pela cultura de massa popular, vivemos numa
espécie de Halloween permanente.
Como você
talvez se recorde, a explicação de Guénon para isso é a seguinte: à medida que
o materialismo solidificou o mundo, a noção da realidade das coisas espirituais
— de um mundo mais alto que o psíquico, o Reino Divino, o Reino de Deus —
tornou-se cada vez mais difícil de sustentar. É como se uma espécie de neblina
psíquica se espalhasse pelo mundo, apagando a luz das estrelas. Mas já em 1945
(depois da detonação das primeiras armas nucleares, embora Guénon não mencione
isso), essa materialidade pesada e sólida — a desolação, digamos, do stalinismo
ou do capitalismo burguês — começava a rachar. Tornara-se tão dura que começava
a ficar “frágil”, assim como os átomos dos elementos urânio e plutônio, ainda
mais pesados do que o chumbo, são instáveis e radioativos.
Só que essas
rachaduras não se abriam na direção superior, para receber a descida da graça
divina; abriam-se para baixo, na interface entre este mundo e o reino
“infra-psíquico” ou demoníaco. E quem quer que seja capaz de olhar objetiva e
desapaixonadamente para nossa atual cultura da informação, para as imagens
lúgubres, sedutoramente glamorosas e sinistras predominantes na televisão, nos
videogames e na internet, será forçado a concordar.
Segundo
Guénon, o único desfecho possível dessa evolução é a dissolução do mundo
presente. Ele e a maioria dos Tradicionalistas concordam com cristãos
conservadores em que vivemos nos últimos dias, o Tempo do Fim. Esse “Fim” pode
implicar a destruição de toda a vida na Terra — ou não. Em qualquer caso, não
pode ser visto exclusivamente em termos terrenos, já que o Fim do Mundo é um
Apocalipse, uma “revelação” da Realidade Eterna de Deus, bem como o início do
próximo ciclo de existência, o “Novo Céu” e a “Nova Terra”.
Assim, Guénon
e outros Tradicionalistas, notadamente Martin Lings em seu livro The Eleventh Hour, são deliberadamente
ambíguos nesse ponto, como quando Guénon diz que o mundo atual se dissolverá,
mas isso não significa o fim da existência terrestre, ou que estamos diante do
fim do Tempo, mas não do fim do Espaço. O significado exato dessas afirmações
oraculares deve permanecer questão para nossa faculdade de intuição espiritual,
e as verdades que essa faculdade descobre jamais poderão ser plenamente
traduzidas em termos de espaço, tempo, matéria e história.
Mas quase
todas as religiões mundiais, incluindo hinduísmo, budismo, judaísmo,
cristianismo, Islã e certas tradições nativas americanas, falam do fim do mundo
ou do ciclo presente. E o cristianismo e o islã, em particular, enfatizam que,
na véspera desse fim, todos os poderes psíquicos e tendências psicossociais que
queiram negar a realidade de Deus e a dignidade da humanidade se condensarão
naquilo que essas duas tradições chamam de reinado do Anticristo, que, seja ou
não um indivíduo, será certamente o princípio subjacente à pior desumanidade
que o gênero humano consiga conceber para impor a si mesmo e à Terra.
Os
Tradicionalistas tendem a dizer que tal desenvolvimento não pode ser detido por
nenhum tipo de ação social esclarecida; por outro lado, evocam o mito da
batalha final entre o bem e o mal no fim do ciclo, chamada Armagedom na Bíblia,
e que, na doutrina islâmica, é anunciada pelo Mahdi e concluída pela segunda
vinda de Jesus, a quem muçulmanos e cristãos reconhecem como o Messias, que
matará o Anticristo na batalha final. E o décimo avatar de Vishnu no hinduísmo,
o avatara Kalki, também é descrito como guerreiro empunhando uma espada e
montado em um cavalo branco, como o Verbo de Deus no capítulo 19 do Apocalipse.
Mas Armagedom
não pode ser simplesmente algo como uma guerra termonuclear total, porque é uma
batalha em que todos os inimigos da restauração da Ordem Divina sobre a terra
são destruídos. Como tal, ela é manifestação da batalha que se trava na alma de
cada um de nós, refletida nos “eventos reais” do mundo exterior. Mas, como
Jesus disse, “não sabeis nem o dia nem a hora”; por isso quero,
deliberadamente, afastar-me de qualquer prognóstico histórico e concentrar-me
nessa “guerra invisível” dentro da alma humana.
Como já disse,
é dever inato de todo ser humano realizar a verdade de Deus, da Realidade
Absoluta, tanto quanto sua capacidade permita, e colocar-se sem reservas sob a
orientação e direção do Único. Uma vez reconhecido e abraçado esse dever,
porém, todos os poderes do plano psíquico que negam o Absoluto entram em ação.
A guerra contra essas forças inferiores da alma é chamada, no Islã, de “o maior
jihad”, a maior guerra santa; é um dever humano mais universal, mais
formidável, e de cujo resultado depende muito mais, do que qualquer guerra
travada em campos de batalha materiais.
Segundo uma
possível perspectiva, Armagedom é uma guerra entre o amor e o poder tendo, como
prêmio, o conhecimento. Até Carl Jung (a quem os Tradicionalistas detestam, com
boa dose de razão) disse certa vez que, onde quer que o complexo de poder
esteja, o amor se torna impossível. E, de fato, toda a questão dos perigos do
ocultismo se reduz a isto: o nosso conhecimento espiritual tomará o amor como
noiva — ou o poder? O amor é um grande poder em si mesmo, mas, em qualquer
lugar onde o conhecimento sutil se una ao poder para violar o amor, estamos
diante da religião do Anticristo.
Sabedoria,
moralidade e técnica
Nos anos 60,
parecia a muitos de minha geração que a “religião organizada”, por meio da qual
entendíamos o judaísmo e o cristianismo eclesial, se limitava à moralidade — e
que a moralidade era completamente arbitrária. Nada mais era do que um conjunto
de “deves” (oughts) — ainda uma palavra
malvista em certos meios — imposto pela “sociedade”, pelo “establishment” ou
pela “hierarquia eclesiástica”, sem motivo válido. Por outro lado, havia algo
como insight penetrante e sabedoria espiritual; sentíamos isso
“instintivamente”. A religião parecia ter alguma relação com essa sabedoria
desconhecida — certamente a Bíblia estava cheia de alusões místicas, se ao
menos alguém fosse capaz de entendê-las —, mas nossos padres e pastores não
pareciam possuir a chave. Tudo o que nos diziam, ou tudo o que ouvíamos, era:
“seja bom porque Deus mandou”. E, quando perguntávamos “por que ser bom, o que
isso significa, o que está por trás de tudo isso?”, tudo o que recebíamos deles
era um corte seco.
A impressão
nítida era que realmente havia algo a ser conhecido ali, mas nossos mestres já
não o conheciam. Por isso fomos buscá-lo em outro lugar: nas religiões
orientais, na espiritualidade indígena americana, no espiritualismo e no
ocultismo ocidentais. Como escreveu o poeta Allen Ginsberg, referindo-se à
experiência semelhante da Geração Beat, que era velha o suficiente para ser a
de nossos pais, em seu famoso poema Howl, éramos aqueles “que estudaram Plotino,
Poe, São João da Cruz, telepatia e bop cabala porque o cosmo instintivamente
vibrava a seus pés no Kansas”. Nesse processo descobrimos que realmente existia
algo como Sabedoria — embora a forma exata e as implicações dela continuassem a
escapar-nos — e que não era apenas algo em que se pudesse crer, mas algo que
podia ser realizado. Você podia de fato experimentá-la; ela era real. Não
apenas que, mas sempre existiram técnicas espirituais, como yoga, meditação,
xamanismo ou teurgia, que podiam transformar conhecimento teórico ou vagas
intuições espirituais em experiência concreta e real. Claro que era muito mais
fácil simplesmente tomar LSD, peiote ou cogumelos mágicos e ser brindado com
visões e insights espantosos, que iam do horrível ao ridículo até o sublime.
Mas os espíritos mais sérios entre nós logo perceberam que não se podia tomar
psicodélicos para sempre, que tinha de haver um caminho mais estável e
responsável de buscar a iluminação. Este caminho, pensávamos, seria fornecido
por formas mais tradicionais de sadhana (prática espiritual),
como a meditação, ou por tipos mais “avançados” de ginástica psíquica, como os
que estavam sendo desenvolvidos no Esalen Institute — incluindo encounter groups, privação sensorial,
biofeedback e sabe Deus mais o quê.
E assim, em
reação à superficialidade que percebíamos nas tradições cristã ou judaica em
que havíamos sido criados, que nada podiam nos dar além de regras morais sem
qualquer justificativa convincente, e que eram ou incapazes ou relutantes em
nos oferecer explicações profundas sobre o sentido da vida que ansiávamos, ou
em nos dar acesso às práticas espirituais concretas que sentíamos precisar para
realizar esse sentido em profundidade, criamos para nós um ethos religioso em
que a sabedoria era buscada e a técnica espiritual empregada à custa da
moralidade. Ninguém nos disse que as verdades místicas e o sentido profundo de
que precisávamos estavam no coração do cristianismo e do judaísmo; que técnicas
sempre haviam existido dentro dessas tradições — como a Oração de Jesus no
cristianismo oriental — para servir à realização dessas verdades; e que uma das
técnicas místicas fundamentais, sem a qual nenhum sentido profundo pode ser
compreendido nem sabedoria espiritual pode ser realizada, era a própria
moralidade.
Tínhamos lido,
e acreditávamos, que a compreensão mística vinha da transcendência do ego; o
que nunca nos foi dito é que a moralidade é elemento necessário na ciência
dessa transcendência. Então tentamos explodir nossos egos com doses maciças de
drogas psicodélicas, que julgávamos tornar desnecessário o trabalho tedioso de
vencer o simples egoísmo em nossas vidas diárias. Achávamos que era o melhor
dos dois mundos: iluminação mística graças à graça barata dos psicodélicos ou
de exercícios respiratórios ou luzes estroboscópicas ajustadas ao ritmo alfa do
cérebro, e, no resto do tempo, total autoindulgência. Acreditávamos poder ficar
com o bolo e comê-lo também… mas, em vez disso, foi o bolo que nos devorou.
Se o nosso
judaísmo tivesse sido capaz de produzir verdadeiros tzaddikim, mestres da cabala ou
do misticismo da merkabah, juntamente com uma
exegese profunda da Torá; se o nosso catolicismo tivesse sido capaz de
responder às nossas aspirações místicas e filosóficas mergulhando nos profundos
ensinamentos místicos dos Padres da Igreja, e se tivesse existido algo como uma
terceira ordem monástica à disposição dos jovens, que pudesse ter-nos dado uma
orientação mística e uma prática espiritual diária; se o nosso protestantismo
tivesse sido capaz de nos alimentar no poço místico dos “espirituais” como
Franz von Baader e Jakob Böhme, então as coisas poderiam ter sido muito
diferentes.
Mas, para que
esse “se” tivesse sido realizado, o judaico-cristianismo teria de estar em
condição muito diversa: fiel à profundidade de suas tradições, disposto e apto
a resistir a qualquer compromisso com o secularismo, confiante em sua ortodoxia
teológica, em sua compreensão filosófica e em sua sabedoria mística. Em vez de
convidar os que estavam pelas estradas e encruzilhadas para o banquete de
casamento, a porta foi fechada por aqueles “guias cegos que impedem os outros
de entrar, mas não entram eles mesmos”. Então organizamos nosso próprio
banquete de casamento nas estradas e encruzilhadas, que degenerou em orgia e,
por fim, em motim.
Não obstante,
desse motim surgiram verdadeiras intuições sobre “as profundezas de Deus” — que
não tínhamos meio confiável de distinguir das trevas espirituais que as
cercavam —, juntamente com elementos válidos de esoterismo e metafísica
tradicionais escondidos em meio ao restante dos destroços, que conduziram uma
minoria de nós, afinal, a misticismos estáveis e vivos enraizados nas
ortodoxias tradicionais. Talvez a memória do número muito maior dos que foram
destruídos para que nós poucos pudéssemos chegar, meio mortos, à porta da
religião revelada, seja parte da motivação deste livro. O nome disso é “culpa
do sobrevivente”.
Estados
alterados de consciência: graça ou manipulação?
Para muitos
cristãos evangélicos, os termos “misticismo” e “estados alterados de
consciência” só podem designar uma perigosa ilusão. Segundo o conhecido mestre
de rádio Hank Hanegraaff, cuja insistência na sã doutrina me é profundamente
alentadora, e cujas denúncias das falsas doutrinas e práticas perigosas que
hoje proliferam no protestantismo “carismático” deveriam ser ouvidas por todos,
tais realidades, se é que são realidades, não têm lugar no cristianismo. Na
melhor das hipóteses, seriam autoilusões ou produto de sugestão hipnótica; na
pior, enganos demoníacos.
Será isso realmente
verdade? Vejamos.
Antes de tudo,
a palavra “misticismo” precisa ser definida. Em toda tradição há uma classe de
santos, os santos contemplativos, chamados por Deus àquele tipo de experiência
direta d’Ele que a maioria dos salvos conhecerá apenas após a morte. Santos
católicos como João da Cruz ou Teresa de Ávila dedicaram boa parte de sua vida
espiritual a cultivar uma prontidão para tal União com Deus, que no caso da
maioria dos místicos é rara e breve (embora, num outro sentido, eterna), um
arrebatamento pelo Espírito em que todo senso da existência da alma como algo
separado de Deus é apagado.
O cristianismo
ortodoxo oriental vai além até desse sentido de União ao descrever o êxito da
vida espiritual normal como theosis, ou divinização, que
não é simplesmente uma experiência rara e isolada, mas uma realização
permanente de nossa Divindade interior, segundo a doutrina de que “Deus se faz
homem para que o homem se faça Deus”. O sufismo fala igualmente de fanā’, aniquilação do eu
humano em sua separatividade, na medida em que nos definimos por nós mesmos e
por isso acreditamos implicitamente ser autocriados, e de baqā’, subsistência eterna
na Natureza de Deus. O hinduísmo fala do jīvanmukta, a alma perfeitamente
libertada nesta vida, e o budismo daquele que alcançou a Iluminação Total
Perfeita, e assim se tornou um Buda, um “Desperto”, que reconhece que todos os
seres, em sua natureza original — se ao menos o soubessem — já estão Despertos.
Misticismo,
então, pode ser definido ou como a experiência temporária de União com Deus, um
“estado alterado de consciência” buscado ou não, produzido pela ação direta de
Deus (chamado no sufismo de hāl e, no cristianismo, de “contemplação
infusa”), ou como o despertar permanente para a realidade de Deus, como no caso
de um santo iluminado. É o misticismo em sua primeira definição, a de uma
experiência rara ou incomum de Deus, um “estado alterado” em que o eu
individual é posto de lado na contemplação do Divino, que parece incomodar
muitos cristãos evangélicos.
O Novo
Testamento, é claro, está repleto de histórias de “estados alterados de
consciência”: a Transfiguração de Cristo; a descida do Espírito Santo sobre os
apóstolos e a Virgem Maria em Pentecostes; a experiência de São Paulo no
caminho de Damasco. “Mas espere!”, diz o cristão evangélico. “Esses não eram
‘estados alterados de consciência’, porque não eram experiências subjetivas.
Foram produzidos pela ação da graça de Deus, operando de fora sobre os
discípulos de Jesus. Não ocorreram simplesmente na mente daqueles que os
vivenciaram; foram objetivamente reais.” Concedo isso plenamente. Mas dizer que
a ação objetiva da graça de Deus não alterou profundamente a consciência dos
que a receberam é absurdo.
A verdadeira
questão é: acreditamos que os estados alterados em questão foram encontros com
Deus iniciados por Sua ação na alma humana, ou acreditamos que esses encontros
foram produzidos pelos próprios estados alterados, que por sua vez teriam sido
criados voluntariamente pelas pessoas que os vivenciaram? Deus pode e de fato
altera a consciência humana para torná-la mais receptiva a Ele, mas nenhuma
quantidade de alteração autoinduzida da consciência pode “alcançar” Deus.
Quanto a saber se eventos como a Transfiguração foram objetivos no sentido de
que poderiam ter sido fotografados por satélites, por exemplo, suspendo o
juízo. Quero apenas ressaltar que, só porque algo é visão, isso não significa que
não seja real. Algumas visões são fantasias ou enganos demoníacos; outras são
testemunhos de realidades objetivas mais altas e mais reais do que o mundo
material.
Segundo a
doutrina sufista, estados espirituais são dádivas de Deus, não aquisições. Não
podemos produzi-los de forma alguma, nem sequer deveríamos rezar por eles.
Nosso negócio é, simplesmente, lembrar de Deus e esquecer de nós mesmos. Por
outro lado, se passamos todas as horas de vigília lembrando de Deus — e, por
fim, cada hora de sono também —, estados espirituais ou místicos bem podem
chegar. Buscá-los é ganância espiritual; rejeitá-los quando ocorrem pode ser
ingratidão espiritual. Exigir presentes de nosso Benfeitor, ou rejeitá-los
quando são oferecidos, são ambos atentados à cortesia; e, nas palavras de um
provérbio sufista, “o sufismo é pura cortesia”.
A recepção de
tais estados nada diz de forma definitiva sobre o grau de avanço espiritual do
recipiente, já que, segundo o Alcorão, “Deus guia a quem quer, e extravia a
quem quer”. Em outras palavras, Deus pode às vezes punir a ganância egotista de
alguém por experiência e autoridade espirituais enviando-lhe estados
pseudo-místicos — ou melhor, permitindo que forças demoníacas o façam — cujas
consequências finais lhe mostrarão o próprio orgulho espiritual, se ele estiver
disposto a ouvir. Doutrina semelhante é sugerida pelas palavras do Pai-nosso
“não nos deixes cair em tentação”, que têm sido tão embaraçosas para alguns
cristãos que estes as alteraram para “não nos ponhas à prova” — como se Deus já
não nos pusesse à prova a cada momento de nossas vidas, de um modo ou de outro.
Além disso,
segundo tanto a doutrina sufista quanto a hindu, estados místicos são enviados
não por causa de nosso avanço espiritual, mas por causa de nossas impurezas. Imagine
os raios do sol focados por uma lente sobre uma laje de mármore branco. Se
houver serragem sobre o mármore, ela pegará fogo; se o mármore estiver limpo,
haverá apenas iluminação. A serragem é a nossa massa de impurezas espirituais;
as chamas são os estados espirituais que as queimam; a iluminação da pedra
limpa é a Sabedoria; a luz é o Intelecto Divino.
Mas o que
dizer de sistemas de desenvolvimento espiritual como a yoga, praticados por
hindus e budistas vajrayanas, em que, longe de esperar que Deus conceda
livremente um estado espiritual ao iogue, este o persegue ativamente por meio
de sofisticada manipulação do sistema nervoso psicofísico, baseada em posturas
corporais (āsanas), controle da
respiração (prāṇāyāma), invocação verbal (mantra), meditação sobre
diagramas simbólicos (maṇḍalas ou yantras) e gestos simbólicos (mudras)? Aqui a questão se
torna mais complicada, e não há dúvida em minha mente de que qualquer prática
espiritual fortemente carregada de técnica corre sempre o risco de
transformar-se numa luta prometeica para “tomar o céu de assalto”, já que o
iogue pode experimentar-se a si mesmo como praticando o método não em resposta
obediente à graça divina, mas por iniciativa própria, como ego independente e
autodirigido — e nenhum ego independente e autodirigido, exercendo técnicas
psicofísicas sofisticadas por iniciativa própria, chegará a qualquer lugar
senão às portas do inferno.
Ainda assim, a
busca de estados espirituais, se realizada no contexto de uma tradição que a
defina em termos de obediência à Vontade de Deus e de trabalho em Seu serviço,
pode ser espiritualmente eficaz e, por fim, produzir santos. “Buscai e
achareis; pedi e vos será dado; batei e vos será aberto.”
Tranquilidade,
vigilância, confiança em Deus, amor de Deus, amor ao próximo, consciência da
Presença de Deus são “estados alterados de consciência”: a tranquilidade é um
estado de espírito diferente da agitação, a alegria agradecida é diferente da
mesquinhez rabugenta, a vigilância é diferente da sonolência, a confiança é
diferente da ansiedade, o amor é diferente do ódio, a consciência da Presença
de Deus é diferente da visão da absurdidade existencial ou do tédio cotidiano.
E, se não podemos simplesmente produzir esses estados alterados por força de
vontade, por outro lado a sua vinda exige de nossa parte uma atitude
responsável — “apta a responder”.
Se alguém está
palestrando, você não fica simplesmente esperando em condição de tédio embotado
e sonolento até que o orador diga algo tão avassalador que sua mente turva seja
tomada à força — não. Você se endireita e presta atenção. E jamais “ouvirá” o
que Deus lhe diz enquanto não estiver disposto a escutar. Escutar é um estado
“alterado” de consciência; é algo diferente da desatenção. Isso não significa
que Deus não seja uma Realidade objetiva; ao contrário. A própria existência
dessa Realidade objetiva exige que nosso estado de consciência seja alterado,
de forma a chegar a uma compreensão dEla adequada — não à Realidade infinita de
Deus, mas ao menos à plenitude de nossa capacidade humana, dada por Deus, de
conhecê-Lo. E aquilo que essa Realidade exige, Ela mesma torna possível.
Além disso, se
essa Realidade por vezes sobrepuja nossa mente, de modo que entremos em
“estados alterados” de embriaguez espiritual ou êxtase, isso não é impróprio, a
menos que tentemos deliberadamente produzir tais estados para nos comprazermos
neles. Estados assim nos ensinam, em termos de experiência concreta, que a mente
humana não pode abarcar Deus e, ao mesmo tempo, “alargam as fronteiras de nossa
tenda”, queimando impurezas espirituais e ampliando nossa capacidade de
compreender e obedecer a uma Realidade Divina que nunca poderemos abarcar
totalmente. E, em algum ponto de nossa luta para compreender Deus — ou de
renunciar a tentar compreendê-Lo — podemos, de repente, chegar à percepção de
que somos compreendidos. Como disse o Profeta Maomé (que a paz esteja com ele):
“Ora a Deus como se O visses, pois, mesmo que não O vejas, Ele te vê.” A
perfeita compreensão que Deus tem de nós é o Ser Divino, o atman em nós, que é o
sentido das palavras de Maomé: “Quem conhece a si mesmo conhece o seu Senhor.”
E esse Ser Divino em nós é tão objetivo, tão “absolutamente outro” em relação a
tudo o que posso experimentar como meu pequeno eu individual, quanto qualquer
Pai Todo-Poderoso entronizado no céu.
Se vemos o
Absoluto como o Númeno por trás de todos os fenômenos, ou como o Self dentro de
nossa subjetividade psíquica, a Realidade é a mesma: dentro do sujeito, ou
dentro do objeto percebido subjetivamente — e, ainda assim, infinitamente além
de ambos —, está a Única Verdade.
Lembrar-se de
que se está na presença de Deus é a prática espiritual central no hesicasmo
cristão ortodoxo oriental (a Oração de Jesus, ou oração do coração), no sufismo
islâmico (dhikr), e também é
importante no hinduísmo (como japa). Todas essas três tradições continuam
a produzir santos, que são a prova viva de qualquer religião. A maioria dos
santos ortodoxos, muçulmanos e hindus praticou esse tipo de lembrança. Não que
esta, ou qualquer outra prática espiritual, possa transformar alguém em santo,
ou mesmo salvar sua alma. Mas, se pela graça de Deus a presença do Único se
torna profundamente real para uma pessoa, ela será naturalmente movida, em
simples gratidão, a trabalhar para remover tudo quanto impeça esse senso de
presença, assim como é natural que alguém preste profunda atenção à pessoa que
ama, ou não queira agir tolamente ou aparecer desleixado diante do Rei.
Meditação não
é feitiçaria; é simplesmente atenção. Silêncio profundo não é magia; é
simplesmente respeito pelo Único de quem esperamos ouvir — o Único que já nos
fala agora, se ao menos fôssemos silenciosos o bastante para ouvi-Lo.
Quanto a
práticas espirituais mais complexas, como posturas, visualizações, exercícios
respiratórios etc., seu objetivo não é diferente da simples lembrança: remover
todos os impedimentos a um sentido mais profundo da presença de Deus. E, embora
sua natureza mais elaborada possa torná-las suscetíveis de perversão pelo
querer prometeico, que sempre quer acreditar poder alcançar Deus por seu
próprio esforço, no clima de graça que é uma tradição espiritual intacta tais
práticas raramente degenerarão em magia, mas preservarão a essência da pura
adoração.
III. Doutrinas
New Age refutadas
A New Age
contém muitos buscadores sinceros e, pelo que sei, possivelmente até alguns
santos ocultos (mas Deus sabe melhor). Deus evidentemente tem tanto o poder
quanto o direito de recompensar com o dom de Sua graça — expressa em termos de
amor, conhecimento e poder — aqueles que O buscam sinceramente, apesar da
insuficiência e até do perigo das doutrinas que tais buscadores possam
sustentar. Mas esse fato não torna tais doutrinas mais adequadas ou menos
perigosas. Da mesma forma, a aceitação da doutrina revelada ortodoxa não afasta
os perigos da hipocrisia, do orgulho espiritual e de outros vícios; tal
doutrina, contudo, não é menos proteção eficaz nem menos apoio à vida
espiritual, nem menos intrinsecamente verdadeira, só porque alguns dos que se
identificam com ela são corruptos.
Não pretendo
que esta refutação de doutrinas New Age seja, de modo algum, um juízo sobre a
sinceridade ou as conquistas espirituais dos que nelas creem; como o estado da
alma de alguém é questão entre o indivíduo e Deus, não tenho nem o direito nem
o poder de sondá-lo. A parábola do Bom Samaritano não foi destinada a invalidar
a ortodoxia doutrinal, já que “não vim abolir a lei, mas levá-la à perfeição”.
Mas foi destinada a apresentar o estado e o destino da alma humana, antes de
tudo, em termos de “pelos seus frutos os conhecereis”.
Canalização
de “entidades”
O mundo das
espiritualidades alternativas, e em muitos aspectos a nossa sociedade como um
todo, entrou num período em que o paradigma da magia — que inclui tanto a magia
tecnológica quanto as formas “tradicionais” de magia — está substituindo o da
religião, tanto exotérica quanto esotérica. Gente demais na New Age, herdeira
do populismo espiritual hippie, ensina hoje que “todo mundo pode ser xamã, todo
mundo pode canalizar ‘entidades’”. Certamente nem todos os seres no plano
psíquico, ou no mundo dos jinn, são maus ou iludidos — segundo a doutrina
islâmica, alguns jinn são muçulmanos e outros, não —, mas isso não significa
que uma abertura frívola para aquele mundo não esteja expondo a sociedade ao
perigo de possessão demoníaca em massa, e confirmando integralmente a previsão
de Guénon de que a vida humana, nos dias finais do ciclo, estaria sujeita a
incursões do “infra-psíquico”.
A canalização
de “guias espirituais” é, talvez, a manifestação mais central das
espiritualidades New Age. É uma prática que, embora nem sempre seja
estritamente má, é profundamente perigosa; a maioria dessas “entidades”, quando
não são simples criações da imaginação individual, é no mínimo ambígua e, em
muitos casos, são demônios propriamente ditos, cuja natureza demoníaca se torna
mais clara a cada ano que passa. E não é de forma alguma o aspecto menos
destrutivo dessa canalização o fato de ela representar não uma simples ilusão,
mas uma contrafação da doutrina tradicional.
O daimōn de Sócrates, o genius ou juno dos romanos,
possivelmente certos aspectos da teurgia neoplatônica, o anjo da guarda no
cristianismo, o fravashi no zoroastrismo, os espíritos
dos profetas com os quais Ibn al-‘Arabī mantinha contato no Islã, o yidam ou divindade tutelar
no budismo tibetano — tudo isso representa, em forma estritamente tradicional,
a realidade de que a canalização de espíritos é, em grande medida, a imitação
fraudulenta. Talvez a abordagem mais segura seja simplesmente chamar de
demoníaco todo o “plano intermediário” ou ‘ālam al-mithāl, como muitos cristãos
fizeram. Mas, se “não há direito superior ao da verdade”, então alguém precisa
admitir que o plano intermediário não é estritamente demoníaco, mas sim
perigoso e ambíguo. Nem todo peixe do mar é tubarão — mas cuidado com os
tubarões.
Frithjof
Schuon e Seyyed Hossein Nasr falam, por exemplo, da magia como uma ciência
tradicional, e Schuon admite que exista algo como magia branca, isto é, a
interação com “aqueles jinn que são muçulmanos” para fazer o bem, embora também
advirta contra envolver-se com ela. Mas devo confessar que dizer essa verdade
me deixa profundamente nervoso, porque pode tentar os frívolos a dizer: “muito
bem, então praticarei apenas magia branca e ficarei longe da negra” — algo
infinitamente mais fácil de dizer do que de fazer.
Práticas
tradicionais como o exorcismo mostram, de fato, certas afinidades com a magia
branca. O verdadeiro exorcismo, porém, aplica o poder espiritual ao plano
psíquico, ao passo que a magia branca opõe poderes psíquicos benéficos a
poderes malignos — algo que jamais deveria ser tentado fora de um contexto
tradicional, como o de um xamanismo verídico, supondo que algum de nós possua
critérios pelos quais distinguir o verdadeiro xamanismo de seus rivais
degenerados ou falsificados.
Lembro-me de
uma conversa telefônica que tive com um “curador espiritual” autodidata, que
realizava exorcismos em parte por visualização. “Eu simplesmente explico à
entidade obsessora que ela não precisa agir de modo tão perverso, que tem
outras opções abertas para o progresso espiritual. Isso geralmente a
despotencializa e lhe permite passar a planos mais elevados.” Quisera eu
ter-lhe respondido: “Impressionante! Se até anjos decaídos são tão fáceis para
você converter, por que não tenta trabalhar com assassinos em série? Estes
deveriam ser brincadeira de criança.”
No plano dos
princípios metafísicos, o que separa o daimōn de Sócrates de uma “entidade” como
Ramtha? Como distinguir um anjo da guarda de um demônio enganador? Creio que a
resposta não se encontra apenas no dom do discernimento de espíritos — que, é
claro, é inestimável —, mas também na orientação básica da pessoa. Na medida em
que alguém se relaciona com tais seres em termos de vontade, procurando-os,
coagindo-os ou exigindo conhecimento deles, então eles não passam de espíritos
familiares. Na medida em que se relaciona com eles em termos do Intelecto, não
os buscando, mas aceitando-os quando se apresentam como dons de sabedoria, de
conselho e de conhecimento, e não de poder, então é mais provável que sejam
anjos. Ainda assim, espíritos enganadores podem aproximar-se até dos sinceros e
podem ter interesse especial em perverter a vida espiritual daqueles que
realmente progridem em amor e conhecimento.
Anjos são
“mensageiros”. São enviados por Deus. Portanto, se alguém concentra-se em Deus,
e não no mensageiro (e essa concentração só pode manter-se estável dentro dos
limites de uma tradição revelada, embora Deus sempre possa fazer exceções), o
mensageiro tenderá a ser angélico; ao passo que, se alguém se concentra no
mensageiro em vez de Deus, então o mensageiro provavelmente é, ou se tornará,
demoníaco.
Quando o
carteiro traz uma carta do Amado, você não vai para a cama com o carteiro, nem
faz amor com a carta; você se lembra dAquele a quem ama e aguarda o encontro
com Ele em pessoa. Quando os habitantes de Sodoma quiseram possuir os anjos de
Deus — sendo a luxúria sexual apenas uma forma dessa cobiça, que simboliza
implicitamente todas as demais, especialmente a ganância espiritual —, foi
exatamente isso o que fizeram. E é isso que me torna desconfiado da atual moda
dos “anjos”; ela parece ser sinal de que o Deus Transcendente está se tornando
menos real para muitas pessoas. O senso de uma comunhão viva e contínua com
Deus é parte da piedade normal. A aparição de um anjo é, em regra, um
acontecimento raro. Mas quando visões de anjos se tornam mais comuns do que o
senso da realidade de Deus, então a situação é obviamente anormal, e Deus está
a caminho de tornar-se, na mente coletiva, um deus otiosus, como o Deus
Altíssimo em muitas (não em todas) tribos africanas. A religião
norte-americana, nesse sentido, está na verdade tornando-se mais parecida com
as religiões não cristãs e não muçulmanas da África tropical; embora ainda se
admita a existência do Deus Altíssimo que criou o mundo, Ele já não é
acessível, enquanto várias entidades psíquicas, longe de serem inacessíveis,
estão se tornando cada vez mais difíceis de evitar.
Falando em termos das religiões tradicionais
africanas e chinesas, e do xintoísmo japonês, essas entidades podem representar
os Antepassados Deificados que, por sua vez, simbolizam os arquétipos
espirituais permanentes, ou hipóstases divinas, ou Nomes de Deus; podem também
ser fantasmas e demônios. E à medida que o senso do Deus Transcendente
enfraquece, é muito mais provável que encontremos fantasmas e demônios do que
arcanjos.
Assim, no que diz respeito à canalização de espíritos
— que em sua forma popular deve claramente ser rejeitada — creio que a atitude
correta é admitir a existência de anjos assim como de demônios, reconhecer que
influências angélicas estão no domínio do possível, mas enfatizar que, embora
Deus possa enviar seus anjos para se comunicarem conosco, o desejo de encontrar
um anjo é quase sempre destrutivo. “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua
justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” — incluindo os anjos, se
Deus assim o quiser, embora a experiência consciente do plano angélico não seja
absolutamente necessária à vida espiritual.
Creio que é melhor admitir a possibilidade de
intervenção angélica, porque, se dissermos que é possível e até provável
encontrarmos demônios, mas extremamente improvável, senão efetivamente
impossível, encontrarmos anjos, podemos acabar pregando a rejeição dos
mensageiros de Deus, dando assim mais ajuda e conforto às potências das trevas.
Não devemos supor, porém, que só porque demônios e
anjos são reais, as figuras “canalizadas” sejam sempre entidades psíquicas.
Durante minha excursão de dois anos pelo universo New Age, ouvi uma história
sobre canalização que nada tinha a ver com o sobrenatural, mas muito a ver com
psicologia. Uma mulher criada por pais adotivos vinha canalizando uma
“entidade” enquanto, ao mesmo tempo, buscava seus pais biológicos. Eis que,
quando os encontrou, descobriu que seu nome de batismo original, de que não
tinha nenhuma lembrança consciente, era o nome de sua “entidade”!
Também naquele período formei a impressão de que
certa canalização tem a ver tanto com o colapso da autoridade social
tradicional quanto com uma profunda falta de autoconfiança intelectual por
parte dos envolvidos. Se alguém não possui uma sabedoria socialmente aceita para
aplicar a diferentes circunstâncias, e não confia na própria capacidade de dar
sentido às coisas, pode fabricar psicologicamente uma “entidade” infalível para
desempenhar essas funções. É como se, quando a sociedade não sustenta uma
identificação das faculdades de pensamento racional e de bom juízo com a
personalidade consciente, essas faculdades pudessem tornar-se “complexos
autônomos”. Se você não consegue acreditar em sua própria capacidade de pensar,
sempre pode atribuir essa capacidade ao seu espírito familiar, que não
necessariamente será capaz de pensar, mas ao menos representará um gesto
pateticamente esperançoso nessa direção.
Equívocos neopagãos
O mundo New Age/neopagão acredita fervorosamente
que seu conhecimento é esotérico. Mas, como quase nunca se faz ali a distinção
entre psique e Espírito — distinção que, anos atrás, ouvi ser chamada de
“patriarcal” por membros de um “coletivo de espiritualidade feminista” —, o
termo “esoterismo” não pode legitimamente ser-lhe aplicado. Crê-se, em muitos
círculos neopagãos, que imaginar um nível de realidade mais alto que o psíquico
é apoiar a tirania política, cooperar com a opressão das mulheres, destruir o
meio ambiente natural e Deus sabe o que mais. Consequentemente, o conhecimento
entre os neopagãos permanece, em sua maior parte, no nível psíquico — que, como
já dissemos, é um nível real de ser, sobre o qual nos faria bem saber alguma
coisa, especialmente porque, em nossos tempos, as experiências psíquicas estão
se tornando mais difíceis do que nunca de evitar. Mas, a menos que a psique
seja guiada e protegida pelo Espírito, tal conhecimento rapidamente se torna
ilusório e, muitas vezes, demoníaco.
Muita gente (e não apenas os neopagãos), graças a
escritores como Sir James Frazer, Robert Graves e seus sucessores, acredita
hoje que o núcleo secreto e esotérico da tradição judaico-cristã-islâmica é na
realidade o paganismo. Esse equívoco está em plano inteiramente diverso do
“ecumenismo esotérico” (termo de Schuon) que nos permite ver verdadeiras
afinidades entre as religiões abraâmicas e certos “paganismos altos”, como o
orfismo ou o neoplatonismo.
Escritores com formação em psicologia junguiana, ou
interessados em mitógrafos como Joseph Campbell, tentarão rotineiramente traçar
toda e qualquer passagem bíblica ou doutrina judaico-cristã a sua suposta raiz
“pagã” — cegamente, automaticamente, e sem trégua. Paralelos certamente
existem, mas a ideia, raramente questionada em meios mitopoéticos e neopagãos,
de que o judaísmo e o cristianismo são na verdade paganismo disfarçado, é
simplesmente falsa.
Ela ignora séculos, senão milênios, de perseguição
dirigida contra os judeus pelas mais poderosas nações pagãs do Oriente Próximo;
ignora a perseguição da religião judaica levada adiante pelos gregos selêucidas
pagãos; ignora a perseguição tanto de judeus quanto de cristãos pelo paganismo
greco-romano sob o Império Romano; ignora a posterior contra-perseguição, pelos
cristãos, do paganismo greco-romano; ignora a destruição muçulmana de cultos
pagãos; ignora séculos de polêmica teológica de judeus contra pagãos, pagãos
contra cristãos e judeus, e cristãos e muçulmanos contra pagãos.
Essas perseguições e contra-perseguições não foram
apenas políticas; representavam também reais divergências doutrinais. As
religiões abraâmicas, quaisquer diferenças que tivessem entre si, e quaisquer
recaídas em direção ao paganismo em que possam ter incorrido, partilharam uma
oposição clara e deliberada a ele, assim como os pagãos, em geral, se opuseram
às religiões abraâmicas. Os dois campos diferentes criam em coisas diferentes,
sabiam disso e o diziam. Por outro lado, as religiões abraâmicas partilham com
a religião egípcia, e com as raízes órfico-pitagóricas arcaicas do paganismo
clássico, uma relação com aquilo que Guénon e os tradicionalistas chamam de
Tradição Primordial.
Mas essa Tradição não deve ser estritamente
identificada nem com o paganismo nem com o monoteísmo abraâmico, embora as
religiões abraâmicas a tenham preservado em forma mais pura do que o paganismo
degenerado da Antiguidade tardia. Em todo caso, o paganismo de que Frazer e
Graves trataram pouco se assemelha à verdadeira Tradição Primordial, ainda que
qualquer um que compreenda essa Tradição possa sempre reconhecer, mais ou
menos, restos degenerados dela no material apresentado por ambos os escritores,
bem como na religião teutônica, no druidismo celta, na religião babilônica e
nos mitos gregos e romanos.
Materialismo sutil
Como lhe falta uma doutrina sólida e bem articulada
da transcendência, a New Age tende a um materialismo sutil. O Divino e o
meramente cósmico são frequentemente confundidos. Deus é concebido como uma
forma de energia útil que pode ser captada e manipulada pelos seres humanos,
algo na linha da “Força” dos filmes Star Wars.
A Divindade transpessoal, de que o Deus pessoal é a
primeira manifestação formal, é imaginada antes como uma fonte impessoal de
energia ou um conjunto de leis naturais, na linha da gravitação ou da energia
nuclear. A pessoa humana é sutilmente desvalorizada; o reconhecimento do valor
eterno e qualitativo da pessoalidade, já que é falsamente identificado com um
egoísmo “humano-demais”, é substituído por um culto quantitativo da energia. Os
segredos dos mundos celestes devem ser encontrados na estrutura do DNA humano.
O senso da Eternidade é substituído pelos paradoxos espaço-temporais da física
pós-einsteiniana.
As palavras “Deus” e “universo” são usadas de modo
intercambiável; para Deepak Chopra, por exemplo, Deus é o “computador cósmico”.
E, para José Argüelles, como antes para Timothy Leary, o Centro do Ser já não
está virtualmente em toda parte — e, portanto, a ser encontrado, do ponto de
vista humano, nas profundezas transcendentais do Coração espiritual —, mas
passa a ser identificado com o centro da galáxia. É claro que todo o conceito
de Ser, em comparação com o da metafísica tradicional ou mesmo da teologia
exotérica, sofreu um rebaixamento quântico.
Um dos sinais de tal materialismo na New Age é a
idolatria dos cristais. Conheci adeptos New Age que agiam como se possuíssem,
em cristais de quartzo, fluorita ou ametista, verdadeiros pedaços de Deus. Essa
cristalolatria, em nossa cultura pós-cristã, provavelmente se baseia em uma
compreensão decadente da Encarnação de Cristo — ou talvez numa intuição da
forma final “cristalizada” que será assumida por este ciclo de manifestação (a
Jerusalém Celeste do Apocalipse), mal-interpretada de modo literalista. Segundo
o simbolismo tradicional, as joias de que a Jerusalém Celeste é composta são
sabedorias celestes.
O uso de joias, cristais e minerais coloridos como
ferramentas mágicas — ao menos fora do xamanismo tradicional — indica,
portanto, uma degeneração em nossa compreensão coletiva da própria Sabedoria.
Sophia já não é venerada como raio da Natureza Divina; a matéria em si, espelho
de Sophia, é que é adorada. A matéria, como Einstein provou, libera enorme
poder — mas apenas em seu ponto de dissolução. Assim, nosso culto da matéria é
essencialmente um culto de poder autodestrutivo e contraditório.
O lado mais luminoso da New Age: cura psíquica e
holística
A New Age, em um nível, representa a redescoberta
ou reinvenção de muitas ciências cosmológicas tradicionais, embora fora de um
contexto religioso e metafísico que pudesse orientá-las com segurança para o
Absoluto. Por exemplo, muitos praticantes New Age possuem um conhecimento
prático sofisticado de energias sutis, que, até certo ponto, pode legitimamente
ser usado com finalidade terapêutica. Mas onde, exatamente, se encontra esse
limite?
Deveria ser óbvio que é um exagero chamar de
demoníacas certas terapias físicas vagamente New Age, como a integração
estrutural (“Rolfing”), como alguns cristãos conservadores tendem a fazer, que
poderiam proibir um cristão de praticar, por exemplo, a postura invertida do hatha-yoga
como terapia para sinusite crônica ou para melhorar o suprimento de sangue ao
cérebro, sob o argumento de que isso não é cristão e, portanto, é anticristão
e, logo, satânico. O fato é que ficar de cabeça para baixo às vezes cura
sinusite, e que o trabalho corporal profundo pode melhorar a postura e eliminar
dores crônicas.
E proibir, digamos, a prática ecologicamente
correta da agricultura biodinâmica só porque foi desenvolvida pelo “ocultista
cristão” Rudolf Steiner seria igualmente tolo.
A prática é uma coisa, o paradigma que lhe deu
origem é outra. Poder-se-ia, com igual ou maior razão, recusar a implantação
cirúrgica de uma válvula cardíaca artificial, ou de uma lente intraocular, ou
de uma prótese de quadril, porque tais intervenções se baseiam no paradigma que
vê o corpo humano como máquina biológica, e não como “imagem e semelhança de
Deus”.
Por outro lado, o paradigma necessariamente
influencia a prática, de maneiras nem sempre óbvias; é preciso certo grau de
discernimento espiritual para ver onde termina a prática e começa o sistema de
crenças daqueles que a desenvolveram. Ida Rolf, por exemplo, explicava a
integração estrutural em termos influenciados pela teosofia moderna, que é
essencialmente um ocultismo anticristão.
Mas o fato é que a teosofia apresenta, em forma
distorcida, material roubado de ensinamentos tradicionais válidos, como a
doutrina hindu dos kośas, as várias “vestes” do Ser Divino em nós —
intelecto, mente, corpo etc. —, doutrina estritamente análoga a ensinamentos
dos Padres cristãos sobre a natureza trina do homem — espírito, alma e corpo —
e sobre as várias faculdades da alma.
Se um membro de família foi raptado e violado, não
o rejeitamos quando nos é devolvido, mas trabalhamos para curá-lo e
reintegrá-lo à família. O mesmo é — ou deveria ser — verdadeiro quanto a
doutrinas tradicionais esquecidas que foram tomadas em forma distorcida pelo ocultismo.
Ainda assim, se você não consegue substituir seu quadril sem pensar em si mesmo
como um robô sem alma, ou passar por uma sessão de Rolfing sem aderir a ideias
ocultistas distorcidas, então é melhor não o fazer.
Nutrição, herbologia, várias formas de trabalho
corporal, acupuntura… tudo isso pode ser aplicado, por praticantes bem
treinados, com bons resultados. Minha esposa e eu nos beneficiamos muito da
integração estrutural, que, no caso dela, eliminou problemas posturais de que
sofrera a maior parte da vida.
Tipos de cura que utilizam exercícios
respiratórios, como o Rebirthing, são mais ambíguos, já que ativar à
força os sistemas sutis de energia do corpo pode ser perigoso física e
psicologicamente, sobretudo quando praticado fora de formas tradicionais, como
o prāṇāyāma ióguico, que exige dieta e estilo de vida específicos, a orientação de
um mestre e até um quadro doutrinal tradicional para ser praticado com
segurança. O Rebirthing foi muito útil para mim em épocas de grande
estresse, mas o paradigma em que se baseia, que inclui em alguns casos a
fantasia da imortalidade física, é um claro inconveniente que precisa ser
filtrado.
Quando a forma de cura em questão lida com energias
psicofísicas ainda mais sutis que as ativadas pelo controle da respiração, ela
se torna mais ambígua. E quando tais energias são concebidas como modificadas
ou intensificadas pela intervenção de “entidades curadoras” do plano psíquico,
como é tradicionalmente comum no xamanismo, a situação torna-se ainda menos
certa e mais exposta a perigos ocultos.
Eu mesmo experimentei benefícios de algumas dessas
práticas. Por exemplo, a energia canalizada por uma igreja japonesa New Age, a
Joh-rei Fellowship — que parece ter origem em nível muito elevado do plano
psíquico —, parece inteiramente benigna. O motivo por que deixei de
frequentá-la, depois de muitos anos de experiência positiva, teve mais a ver
com a divergência entre a visão de mundo da metafísica tradicional, que se
tornara central para mim, e a de uma nova religião japonesa devotada a trazer o
paraíso à terra, embora sua doutrina da futura “purificação” do mundo não seja
totalmente diversa das escatologias tradicionais, ainda que com um viés New
Age.
O Joh-rei incorpora muitos elementos tradicionais
budistas, xintoístas e (em última análise) taoístas/xamânicos; ainda assim, a
“graça barata” da experiência talvez estivesse interferindo de modo sutil com
minha disposição de confiar em minhas próprias práticas espirituais mais
tradicionais e em minha fé em Deus.
O Joh-rei parece relativamente seguro, na medida em
que não parece abrir o corpo etérico ou de energia sutil. Várias outras formas
de cura psíquica, contudo, que de fato intervêm com força no nível da energia
sutil, podem, sem querer, abrir a pessoa a outras influências, que estão longe
de ser saudáveis.
Os curadores mais poderosos dessa categoria são os
cirurgiões psíquicos das Filipinas. Experimentei esse poder em várias ocasiões,
tanto nas Filipinas quanto aqui nos Estados Unidos. Embora haja alguns
charlatães, os que conheci são genuínos. Estou convencido disso, tendo
observado várias operações e tendo sido operado por eles. Como não há como eu
provar isso, o leitor terá de limitar-se a acreditar que eu acredito.
Esses curadores têm o poder de abrir partes do
corpo humano com as mãos nuas para remover matéria estranha e tecido doente,
virtualmente desmaterializando áreas específicas, que em seguida se recompõem
imediatamente, como água em uma bacia que não deixa buraco quando se retira
dela um objeto. Há pouca ou nenhuma dor, e nenhum período de convalescença,
exceto um processo de “voltar ao normal” em nível de energia sutil, que pode
levar um ou dois dias.
Embora os cirurgiões psíquicos possam abordar a
cura de condições graves ou apenas incômodas de formas impossíveis à ciência
moderna, sua taxa de sucesso, segundo suas próprias estatísticas, é comparável:
um terço curado, um terço melhorado e um terço inalterado. Eu geralmente estava
no segundo terço.
Embora a maioria dos cirurgiões psíquicos sejam
cristãos e atribuam seu poder ao Espírito Santo — o que não há razão para,
necessariamente, duvidar —, é claro que utilizam uma técnica xamânica antiga.
Poderes similares foram atribuídos a xamãs em muitas partes do mundo, embora a
maioria dos primeiros exploradores costumeiramente as explicasse como truques
de prestidigitação, outra antiga prática “espiritual” ainda usada por
charlatães hoje.
Creio que os cirurgiões psíquicos trabalham através
do mundo dos devas ou dos jinn, seres residentes no plano
psíquico que podem interagir com o plano material em certas circunstâncias.
Alguns desses seres são claramente benéficos e podem de fato estar operando sob
a bênção do Espírito Santo. Ainda assim, a cirurgia psíquica não é miraculosa.
Dá a impressão de ser uma tecnologia psíquica antiga e sofisticada,
desenvolvida por culturas que eram tão avançadas nesse campo quanto nós o somos
em nossa própria marca de magia de alta tecnologia. É uma intervenção
bem-intencionada de indivíduos altamente treinados e orientados para o serviço.
Não é um ato direto de Deus.
Os cirurgiões psíquicos genuínos que conheci são
poderosos e benevolentes. Ajudaram muita gente. Contudo, é verdade que tal
cirurgia, e outras formas de cura psíquica que lidam com o corpo de energia
sutil, trazem perigos ocultos. Um perigo é que possamos nos viciar em
presenciar prodígios e comecemos a perder a fé, já que estamos agora tentando
fundamentá-la na demonstração: “prova” não é fé. “Porque me viste, Tomé,
creste; bem-aventurados os que não viram e creram.”
E, se a cirurgia física expõe ao risco de infecção
pós-operatória, o mesmo pode ser verdadeiro para a cirurgia psíquica em nível
mais sutil. Se o paradigma de “livrar-se do mal” não for subordinado ao
paradigma de “abrir-se à verdade e ao amor de Deus”, essa purificação meramente
negativa pode resultar na condição descrita na parábola de Jesus, em que o
demônio expulso vagueia por lugares áridos, lembra-se de sua antiga “casa”,
volta e a encontra “varrida e adornada”, como que pronta para recebê-lo, e traz
consigo sete demônios piores do que ele. (A ex-terapeuta New Age Clare
McGrath-Merkle escreve com grande lucidez sobre essa possibilidade, a partir de
dura experiência pessoal, bem como sobre os perigos psíquicos, psicológicos e
físicos do trabalho com energias sutis e da “magia branca” em geral.)
Quanto a mim, só posso compartilhar dois fenômenos
interessantes. Tendo recebido ajuda clara dos cirurgiões para um problema de
saúde preocupante, adquiri o hábito de visitá-los sempre que vinham à minha
região. Então notei algo curioso: se num primeiro momento eram úteis, nas duas
últimas vezes em que os procurei meu problema voltava, em pequena escala, pouco
antes de sua chegada, como se precisasse estar ali só para que eles o pudessem
curar. Seria a própria presença deles a atrair mais impurezas à superfície? Ou
eu havia entrado em uma zona de retornos decrescentes e de apegos sutis?
Felizmente, meu dilema foi resolvido por meu diretor espiritual que, com
gentileza mas firmeza, pediu que eu parasse de vê-los.
O segundo fenômeno — comparável, em termos
emocionais, a ver um muro de tijolos desabar sobre um trecho de calçada por
onde se vinha caminhando — foi que, após minha última visita aos cirurgiões
psíquicos, sonhei com o Anticristo. Não tomo isso necessariamente como significando
que os cirurgiões sejam de fato seus servos — embora Deus saiba melhor. Mas
permanece o fato de que a “religião psíquica” que se apoia em sinais e
prodígios estará entre os primeiros territórios a serem conquistados e ocupados
pelo Anticristo quando ele vier… e, quando as embarcações de desembarque forem
lançadas e o bombardeio naval começar, não é boa ideia ficar na praia.
Nove princípios da New Age
O Dr. Rama Coomaraswamy, em um artigo intitulado “A
dessacralização do hinduísmo para consumo ocidental”, enumera nove princípios
New Age, que ele toma de um livro da Dra. Catheryn Ridall, Ph.D., e que
representam a essência dos “ensinamentos espirituais” canalizados hoje. Abaixo
segue um resumo deles, em que tento separar os elementos de verdade espiritual
da matriz de erro que é a doutrina New Age.
Uma falsificação é pior do que um simples erro.
Esses nove princípios estão cheios de equívocos que, no entanto, são
precisamente concebidos para obscurecer verdades metafísicas específicas. E o
efeito de tais contrafações é que “se você faz, está condenado; se não faz,
também”. O Diabo adora empregar falsificações, porque aceitá-las é ser levado
ao erro, ao passo que rejeitá-las sem expô-las — isto é, sem trazer à luz o
verdadeiro princípio que a falsificação foi concebida para esconder — é ser
manobrado a rejeitar a verdade que está sendo imitada.
Tentarei desconstruir os “princípios” que se
seguem, expor as falsificações de que são feitos e apresentar os princípios
tradicionais que elas velam:
1. Evolução universal da consciência rumo a maior amor e compaixão.
Isto é certamente falso se aplicado à coletividade
humana ou ao universo material. A receptividade da consciência encarnada e
condicionada pelo tempo à Realidade Divina cresce e decresce de modo cíclico, e
a receptividade humana a Deus, no plano coletivo, encontra-se hoje em queda
acentuada e irreversível. A verdade encoberta aqui é que o destino da alma
individual no caminho espiritual é “evoluir” no sentido de “desenrolar o que
foi enrolado”, dissolvendo o núcleo duro de egotismo e de vontade própria.
Essa “evolução” inclui certamente o desenvolvimento
da compaixão — em termos do budismo mahayana, “a realização do vazio (não-ego)
é idêntica à compaixão” —, mas (e aqui o princípio é enganoso por ser incompleto)
essa “evolução” resulta também no desenvolvimento de um verdadeiro conhecimento
objetivo.
2. No contexto da evolução universal da consciência, podemos ser guiados
tanto por seres mais ‘evoluídos’ do que nós quanto por partes superiores de nós
mesmos que também estão evoluindo.
É certamente verdade que pessoas mais sábias do que
nós, seja porque nasceram mais sábias, seja porque percorreram mais do caminho
espiritual, podem às vezes ser designadas por Deus para nos guiar, se
preenchermos as condições necessárias — desde que nós e elas compreendamos que,
em última análise, Deus é o único guia.
E, em casos raros — como o do guia sufi Khidr,
considerado um profeta imortal, desencarnado, ou melhor, habitando um corpo
sutil como o Cristo glorificado —, seres mais “avançados” do que nós podem
legitimamente nos guiar de modo ao qual possamos responder conscientemente. Mas
crer que essa possibilidade rara torna desnecessário conectarmo-nos a uma
tradição revelada e colocarmo-nos (se Deus quiser) sob a orientação de um
representante humano plenamente autorizado dessa tradição, supondo que exista
um, é falso.
E crer que o
contato consciente e contínuo com um “guia” desencarnado seja normal — para
qualquer um que não seja um feiticeiro, isto é, alguém em comunhão com seu
espírito familiar - e que tal contato não é uma porta aberta para a possessão
demoníaca é uma ilusão profundamente enganosa. Além disso, dizer que podemos
ser guiados pelo nosso “eu superior”, que também está evoluindo, é falso;
tentar orientar-se espiritualmente para algo que ainda está no reino do devir é
reduzir o significado de “orientação espiritual” a zero.
Se há algum
sentido para o termo “eu superior”, ele só pode referir-se, não a jiva (a alma individual),
mas ao atman, o nível de Espírito
em nós que Eckhart indicou quando disse: “há algo dentro da alma que é incriado
e incriável”. O atman não nos guia no
sentido de que possamos travar com ele uma conversação, mas porque, como “o
Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente” (Schuon), Deus no modo de
Testemunha, ele representa a moksha virtual (termo hindu para a Libertação
final), no sentido em que o Buda falava ao dizer que “todos os seres são
iluminados desde o princípio”, embora soubesse muito bem que nem todos os
seres, dentro de um determinado período de tempo, viriam a realizar essa
iluminação.
Reflexos
psíquicos do atman, sugestivos dele
embora não devam ser identificados com ele, certamente podem aparecer em sonhos
ou visões. Esses reflexos serão enganosos, ambíguos ou veículo da Graça de
Deus, dependendo da vontade de Deus para aquela pessoa e de seu estado
espiritual. The
Psychology of Sufism,
do Dr. Javad Nurbakhsh, por exemplo, contém um catálogo de símbolos oníricos do
Coração espiritual, que Jung chamaria de símbolos do arquétipo do Self. Mas
tais símbolos só funcionam como marcos psíquicos confiáveis dentro do contexto
do próprio sufismo, assim como os símbolos da Cabala só funcionam para
cabalistas iniciados e praticantes, etc.
3,4. A terra
está em um ponto crítico de seu desenvolvimento; estamos testemunhando uma
grande mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual; estamos
caminhando rumo a maior maturidade espiritual; a terra passará por uma
purificação de valores e da organização social; haverá mudanças terrestres como
terremotos.
É verdade que
a terra está em um ponto crítico, mas a mudança de valores, estilos de vida,
orientação espiritual e organização social não é rumo a maior maturidade
espiritual, mas rumo ao caos e à dissolução. É verdade que haverá, e já há,
mudanças terrestres, como foram preditas por Jesus para o fim do século, e
verdade que haverá uma purificação. Mas essa purificação será apocalíptica, não
progressiva, e representará o fim da humanidade atual. O “novo céu e a nova
terra” serão para “outra” humanidade.
5.
Guias
estão agora aparecendo para nos ajudar através dessa transição para uma era de
paz; novas energias de frequência mais elevada causarão distúrbios menores no
comportamento.
É falso que
estejamos em transição para um tempo de paz, a não ser que se trate de uma paz
falsa e temporária; portanto os “guias” que afirmam estar nos ajudando através
dessa transição são enganosos. Nem os distúrbios atuais de comportamento são
“menores”, para dizer o mínimo. É verdade, de certo modo, que estamos encontrando
“energias superiores”, mas isso se dá porque nosso próprio nível de integração
está caindo a tal ponto que a Graça sempre presente de Deus só pode ser
experimentada, no plano coletivo, como ira, já que não somos receptivos a ela.
O “nível de energia”, ou nível ontológico, da parousia ultrapassa de tal
maneira aquilo que o mundo pode receber que o despedaçará, abrindo caminho para
“um novo céu e uma nova terra”.
6.
O
ser humano é uma parte de uma alma ou eu-divino multidimensional; somos muito
mais do que pensamos ser.
Verdadeiro e
falso. Como disse Jesus, “vós sois deuses, e todos filhos do Altíssimo”. Mas
ele equilibrou isto dizendo: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só,
que é Deus”. É verdade que a humanidade existe simultaneamente em mundos mais
altos do que o material, a saber, o psíquico e o Espiritual. Não ascendemos
simplesmente a esses mundos, nem neles ingressamos pela primeira vez quando
morremos, porque a “Grande Cadeia do Ser” representa o “raio” mediante o qual
Deus nos criou e mantém na existência, instante após instante.
Se, porém, nos
voltamos contra esses mundos superiores — dando nossa fidelidade ao ego em
lugar de dá-la a Deus —, então eles se tornarão nosso Inferno: a psique, um
caos angustiado; o Espírito em nós, uma Luz cortante e cegante que nos força a
afastar-nos do Centro radiante do Ser, como as legiões de Miguel expulsando o
Demônio e seus anjos para o abismo. A questão central é esta: esses aspectos
mais elevados de nosso ser são reivindicados pelo ego, como se fôssemos
autocriados, ou são vistos como dom de Deus, de nosso próprio ser, que não
podemos reivindicar como nosso nem mesmo em termos materiais?
Os adeptos da
New Age gostam da ideia de que existimos simultaneamente em mundos superiores;
com o que têm maior dificuldade é com o fato de que “aquele que quiser salvar
sua vida a perderá, mas aquele que perder sua vida por amor de Mim a
encontrará”. Isto porque querem reivindicar esses mundos superiores para o ego;
ensinam que podemos entrar e “explorar” esses mundos como espécie de atividade
de lazer, por uma simples expansão incremental de nosso “potencial humano”, sem
piedade, sem sacrifício, sem temor de Deus. Sua doutrina é essencialmente
prometeica; escolhem esquecer que “quem nasce duas vezes precisa morrer uma
vez”.
7.
Criamos
nossa própria experiência em todos os níveis; não há vítimas; criamos nosso
próprio sofrimento como experiência de aprendizado.
É falso dizer
que criamos nossa própria experiência se o “nós” em questão é a psique
individual, porque a psique não se cria a si mesma, sendo totalmente
contingente em relação ao Espírito de Deus, e porque outras psiques individuais
existem; o solipsismo aqui implícito é assim refutado tanto “vertical” quanto
“horizontalmente”. Há, entretanto, um sentido em que isso é verdadeiro, mas
apenas em sentido negativo, já que certamente criamos algumas de nossas
próprias limitações perceptivas. Em vez de “criamos nossa própria realidade”,
seria melhor dizer “criamos nossas próprias ilusões, que então se tornam nossa
‘realidade’”.
A psicologia
da percepção demonstrou até que ponto nossa visão do mundo é um padrão
aprendido, determinado tanto pela cultura quanto pela experiência pessoal,
senão por uma série de escolhas baseadas no medo e no desejo. Isso significa
que, na medida em que tomamos o mundo que percebemos como algo absoluto,
estamos aprisionados em um padrão subjetivo, ao passo que, se percebemos que
esse padrão subjetivo de experiência é relativo, que, em face da Realidade
objetiva, ele não passa de uma privação, então começamos a libertar-nos dele,
já que passamos a intuir a Matriz Absoluta da qual tal padrão é apenas uma
versão editada.
Assim, quando
os crentes da New Age dizem “criamos nossa própria realidade”, minha resposta é
“Sim e não. Nossa mente e nossos sentidos não projetam essa ‘realidade’ sobre o
nada, mas a abstraem a partir do Infinito, que é a verdadeira Realidade; a
‘realidade’ que criamos é uma limitação imposta ao Infinito”.
Dizer “não há
vítimas” é verdade se com isso queremos dizer que tudo, em sentido último, é um
ato de Deus, e Deus é justo — como diz Schuon, mesmo o sofrimento do inocente é
justificado do ponto de vista que vê a própria existência cósmica, embora em
certo sentido necessária, como um desequilíbrio diante do Absoluto. Nas palavras
de Rabi’a: “a tua existência é um pecado com o qual nenhum outro pecado pode
ser comparado”.
A ideia de que
não há vítimas é uma interpretação da lei do karma — mas, se se dá a entender
nessa interpretação que a caridade para com os que sofrem não é obrigatória
para nós, já que “isso é apenas o karma deles”, ou que podemos tornar-nos
libertos simplesmente criando ilusões para nós mesmos e depois vendo através
delas, então ela é falsa. O karma não é um sistema autoexaurível; sem dharma, a verdade operante
que eleva alguém acima do nível de causa e efeito kármico ao afirmar a
realidade da autotranscendência, o karma nunca pode ser “vivido até o fim”; sem
a Misericórdia da Verdade de Deus, livremente dada e livremente aceita,
juntamente com sua “cruz”, a ilusão nunca pode ser dissipada. A danação é a
prova de que nem todo sofrimento tem o poder de iluminar.
8.
A
matéria segue o pensamento; nossa realidade física é criada, e pode ser mudada,
por nossas crenças.
A matéria
segue o pensamento de Deus, não o nosso; sugerir o contrário, dizer que somos
cocriadores por direito próprio, é falso. É verdade que nossa experiência pode
ser mudada ao mudarmos nossas crenças, mas essa mudança não pode ser soberana
nem arbitrária. Não podemos simplesmente acreditar no que quisermos e pensar
que estamos assim controlando o mundo, porque realmente há uma realidade
objetiva, tanto em nós quanto fora de nós, algo que é exatamente o que é, não
importa o que aconteça de acreditarmos.
E é também
provável que tenhamos tão pouco controle sobre nossos desejos, sobre aquilo em
que queremos crer, quanto sobre o mundo exterior. Acreditar que podemos mudar o
que é mudando o que cremos a respeito do que é é a fantasia de onipotência do
ego infantil expandida em falso princípio metafísico.
Uma mudança de
crença pode alterar nossa experiência de duas maneiras apenas: se conformarmos
nossas crenças à Verdade espiritual objetiva, veremos o universo como ele
realmente é, ao mesmo tempo contingente em relação a essa Verdade e
manifestação dela; se nossas crenças forem determinadas pelo ego, que
interpreta o mundo ao seu redor apenas com base nos próprios medos e desejos,
nada perceberemos e produziremos senão caos.
Agora, em
sentido mais limitado, é verdade que uma pessoa profundamente deprimida, por
exemplo, acreditará que menos coisas são possíveis em relação ao seu entorno
físico, enquanto alguém em estado maníaco pode temporariamente ser capaz de
responder a possibilidades físicas e psicológicas reais que o deprimido não
consegue ver — mas não sem consequências graves, já que ele não percebe as
limitações inerentes a tais possibilidades, que estão objetivamente lá,
independentemente da crença.
É certamente
verdade que um santo pode ser veículo de milagres físicos, mas isso nada tem a
ver com manipulação de crença, sendo operação direta de Deus tornada possível
pela fé. Um mago também pode ser capaz de produzir mudanças na matéria física
ou em situações, e poder-se-ia dizer que consegue fazê-lo porque acredita que
consegue, mas as manifestações reais são produzidas por forças psíquicas que
existem quer ele creia nelas, quer não. O mago branco necessariamente
compreenderá que é veículo de forças de um plano mais sutil, mas o mago negro
frequentemente acredita, falsamente, que comanda tais forças; ele aplica o
ingênuo credo cotidiano de que “sou capitão do meu destino, senhor da minha
alma” a planos mais sutis, não querendo entender que quem quer que creia que,
com seu ego limitado, comanda as forças de um reino mais sutil, está na verdade
escravizado por elas.
A prática da
magia é como emitir cheques sobre uma conta no vermelho: embora você talvez
possa “descontá-los” e assim produzir “fenômenos”, eles serão fenômenos de
dívida, não de valor. “E não sairá dali enquanto não tiver pago o último
centavo.” O ego não pode produzir nada além de privação; todo poder e todo
valor pertencem a Deus.
É verdade que,
se todos conformássemos perfeitamente nossa consciência à Realidade espiritual
objetiva, o mundo material se dissolveria e seria transformado em Paraíso. Mas
isso está tão distante quanto possível da ideia de que nossas crenças criam a
realidade a partir do nada, visto que tal conformação perfeita — que,
obviamente, é impossível em termos práticos — não poderia ser função de crença,
que vê “como por espelho, em enigma”, mas apenas de verdadeiro conhecimento
objetivo. Como ressaltei acima, o ego não cria; ele apenas edita.
9.
Embora
nossa expressão individual demonstre grande diversidade, somos todos, em última
análise, um.
Verdade. A
única questão é: em que sentido somos um? Se isto se entende horizontalmente,
no plano social ou em termos de participação nos mesmos motivos subconscientes,
então o melhor que se pode dizer é que, para o bem ou para o mal, estamos
relacionados, ou apenas “relativamente unos”. Nossa verdadeira unidade é
vertical, em virtude do atman
ou Self Divino em nós; somos todos criações, ou manifestações simbólicas, do
único Self Divino. Em virtude desse atman somos, no mais profundo nível do nosso
ser, ao mesmo tempo únicos e universais.
O Self em nós
é Ser puro, transpessoal, universal, sem atributos; em outro sentido, está até
além do Ser. Mas, como Deus é único bem como universal, o Self é também o
princípio de nossa integridade humana única, segundo a qual não somos
simplesmente a humanidade em abstrato, mas seres humanos efetivos, ordenados
por Deus a ser precisamente nós mesmos, nem mais, nem menos, nem outros.
E, contudo,
essa singularidade é também universal, já que é partilhada por todos os seres
humanos e, de fato, por todas as coisas. O Self como princípio de unicidade não
é outro que o Self como princípio do Ser puro, como quando Deus, falando a
Moisés no Êxodo, nomeia-se a Si mesmo “Eu Sou o que Sou”, isto é: “Minha
Essência única não é outra que Meu Ser puro; é Minha Essência única ser o Ser
puro”. E o que Deus pode dizer de Si mesmo, podemos igualmente dizer, pelo
menos virtualmente, de Deus, o atman em nós.
E mais dois
A esses nove
princípios, gostaria de acrescentar outros dois que creio serem igualmente
integrantes da crença New Age:
10.
Que
psique e Espírito são idênticos.
11.
Que
a espiritualidade é uma conquista pessoal, um feito, um tour-de-force.
Como demonstro
em muitos lugares ao longo deste livro, ambos esses princípios são inteiramente
falsos.
Os cristãos
não estão sozinhos
Como a New Age
é em grande parte um fenômeno “pós-cristão” e, com frequência, abertamente
anticristão, a maioria das críticas a ela (se deixarmos de lado os humanistas
seculares, que tendem a ver todas as religiões mais ou menos como seitas) veio
do campo cristão. A maioria, mas não todas.
Em The Desacralization of
Hinduism for Western Consumption, o Dr. Rama Coomaraswamy, um católico
tradicional que viveu por muitos anos, na juventude, como hindu ortodoxo, traça
as carreiras de Sri Aurobindo, Maharishi Mahesh Yogi e Bagwan Shree Rajneesh,
apresentando-os como exemplos de mestres hindus espúrios cuja influência sobre
a New Age foi profunda e ampla; tais mestres de modo algum representam o
hinduísmo normal. Escreve Coomaraswamy: “Que pensam os expoentes ortodoxos do
hinduísmo sobre Mahesh Yogi? A pergunta foi feita a Sua Santidade Sri
Chandraskharendra Sarasvati, Sri Shankaracharyaswami de Kamakoti Peetha, 68º
Acharya na linha de Kamakoti Peetha e uma das mais altas autoridades dentro da
tradição hindu. Sua resposta foi que o homem era um impostor!”
Um segundo
grupo que tem sido crítico da New Age, por ter sido diretamente vitimado por
ela, são os anciãos espirituais tradicionais nativo-americanos. Os trechos
seguintes, de um artigo de Gary Knack na edição da primavera de 1997 do jornal
indígena Akwesasne
Notes,
mostram como os problemas com “New Age med men” são semelhantes aos escândalos
mais conhecidos envolvendo mestres hindus e budistas ocidentalizados, pastores
protestantes e padres católicos.
Há por aqui
vários chamados “homens-medicina”, de ascendência nativa,
que se perverteram e lançaram uma doença sobre o povo. Um deles,
como muitos sabem, usou sua posição respeitada para molestar sexualmente
crianças. Ao se descobrir esse fato, a palavra foi dada para ficar quieto,
pois isso poderia prejudicar o movimento. Muitos de seus seguidores,
em sua maioria brancos, permaneceram ao lado dele e continuaram
trabalhando nas comunidades brancas ignorantes no sul da Califórnia.
… Um chamado “homem-medicina”, de ascendência lakota, foi promovido
localmente [em Ashland, Oregon] por um professor universitário, seu
agente. Tornou-se bem conhecido, e ainda é, por seus livros e excursões
New Age… fomos informados por uma das mulheres brancas, que iam
regularmente suar conosco, de que esse “med man” tinha um histórico
local de sondar sexualmente mulheres nas cabanas de suor… alguns do
grupo de Los Angeles e seguidores do molestador de crianças
aproximaram-se do “med man” New Age com dinheiro na mão e
quiseram iniciar uma sundance multirracial nos
arredores de Ashland.
Feito. Começou em 1988. Recusamos aproximar-nos disso. Passamos a
ver a confusão derivada à medida que o “med man” a dirigiu por vários
anos. Inflou egos já inchados; famílias se desintegraram; um dos auxiliares
nativos cometeu suicídio em Dakota do Sul; outro supostamente cometeu
assassinato; houve confrontos armados por causa de drogas; a “cerimônia”
foi alterada para adequar-se às sensibilidades brancas, e por aí vai.
Alguém mais assumiu depois que o “med man” acabou se afastando,
mas o estrago já estava feito e a doença se espalhando. Os que queriam
ser passaram a ser “homens e mulheres-medicina”. Já estão vendendo
fitas de vídeo sobre o cachimbo sagrado e outras práticas cerimoniais.
As práticas
espirituais nativo-americanas, tradicionais e não tradicionais, tornaram-se
altamente comercializadas em círculos New Age. Mas, como escreve Don R. em um
editorial intitulado Are
Non-Native Americans Meddling in American Indian Ways? (New Perspectives, A
Journal of Conscious Living, 8 de julho de 1994):
Vender ou
trocar objetos sagrados como penas de águia ou cachimbos sagrados
é contrário a todos os Ensinamentos Espirituais Nativo-Americanos
e à lei federal. Eles só podem ser dados, sem apego, para Cerimônia.
Quebrar esse modo seguirá você pela eternidade no Pós-vida.
Nenhum dinheiro ou supostos “Dons de Medicina” será aceito por ensinamentos,
especialmente por Cerimônia. Nossos Modos sagrados são um dom
dos Avôs e do Criador, e você não barganha com o Criador.
Autoridades
da New Age: uma casa dividida
Certamente se
encontram verdades em todos os filósofos, e sobretudo meiasverdades,
mas essas verdades são ladeadas por erros e incoerências, e, além disso,
não são necessárias. … Verdades embutidas em erros estão carregadas, de forma
indireta,
com o veneno de seu contexto errôneo. …
FRITHJOF SCHUON, “Letter on Existentialism”, The
Essential Writings of Frithjof Schuon
I. A falácia
do absoluto psíquico:
verdade e engano em The
Seth Material
O professor
Huston Smith, em Beyond
the Post-Modern Mind,
traçou o desenvolvimento da visão de mundo pós-moderna dentro da disciplina
formal da filosofia, e da academia em geral. Mas, enquanto os acadêmicos se
afastavam do modernismo — que, embora franzisse o cenho para a metafísica,
ainda acreditava em uma realidade objetiva comum baseada na ciência, na
história e na psicologia — rumo à atual negação pós-moderna de qualquer
“paradigma abrangente” que pudesse transpor os distintos mundos culturais com
que todos temos de lidar nesta era de pluralismo e globalismo, a mente popular,
tão opaca à academia quanto a academia o era para ela, seguia um curso
paralelo, provando que, embora possa não haver realidade objetiva — doutrina
que nego com entusiasmo —, certamente há um zeitgeist comum.
Enquanto professores
desconstruíam o modernismo em seus departamentos de literatura e filosofia, uma
dona de casa do norte do estado de Nova York fazia o mesmo para a mente de
massa, ou ao menos para aquele segmento dela aberto a ideias “New Age”.
A filosofia
“canalizada” mais sofisticada e influente do movimento New Age do pós-Segunda
Guerra, à parte A
Course in Miracles,
é sem dúvida o material de Seth, ditado por meio de Jane Roberts. Os livros
representativos são provavelmente The Seth Material (Prentice-Hall, 1970;
citações da edição Bantam Books, 1970), Seth Speaks: The Eternal Validity of the
Soul
(Prentice-Hall, 1972) e The Nature of Personal Reality: A Seth Book (Prentice-Hall, 1974).
Mrs. Roberts,
que morreu em 1983, era uma ex-católica semiboêmia que escrevia ficção
científica antes de começar a canalizar Seth, a quem primeiro contatou através
do tabuleiro ouija e depois canalizou em estado de transe. Os livros acima, e
outros, incluindo suas obras de ficção, praticamente sozinhos atualizaram o
espiritualismo para um público pós-guerra mais “sofisticado”, iniciaram a atual
onda de “canalização” e exerceram poderosa influência sobre o “trabalho com
sonhos” contemporâneo, incluindo o “sonho lúcido”.
O material de
Seth é, em certos aspectos, uma releitura do espiritualismo à luz da física
einsteiniana e pós-einsteiniana, da teoria quântica e da psicologia junguiana.
Eu mesmo, enquanto buscador não tradicional, interessei-me bastante por ele em
certa época.
“Seth” é muito
mais sofisticado, espirituoso e aparentemente mais inteligente do que os
açucarados “guias espirituais” de outros tempos. Ele apresenta uma visão de
mundo em que cada um de nós vive muitas vidas “reencarnacionais”, exceto que —
de seu ponto de vista desencarnado — elas são simultâneas, não sucessivas, e
todas são facetas de uma única “entidade” consciente, que por sua vez é apenas
um aspecto de uma “entidade” maior, e assim por diante, numa hierarquia
ascendente, até “All That Is” ou “o Deus Multidimensional”.
Seth também
fala, como muitos físicos modernos, de “realidades prováveis”, e ensina que,
sempre que escolhemos um curso de ação entre vários, outros “eus prováveis”
escolhem atualizá-los, de modo que toda possibilidade de experiência é vivida,
num mundo provável ou noutro. Nossos diversos eus prováveis também são capazes,
em certas condições, de comunicar uns com os outros, permitindo-nos escolher
futuros prováveis diferentes e mais positivos. E, assim como vivemos
simultaneamente muitas vidas prováveis, Deus Se atualiza em muitos universos prováveis,
ou versões prováveis de Si mesmo, razão pela qual é chamado de
“Multidimensional God”.
Traços de
doutrinas esotéricas válidas podem ser encontrados nos ensinamentos de Seth. A
ideia da multidimensionalidade de Deus lembra o termo de Frithjof Schuon maya-in-divinis, a doutrina de que
todo o mundo da manifestação existe como multiplicidade potencial dentro da
natureza essencialmente unitária de Deus, ou o conceito sufi da multiplicidade
dos Nomes Divinos — análogos às “Energias Divinas” de São Gregório Palamas —,
cada um dos quais contém todos os outros.
E uma doutrina
semelhante à de Ibn al-‘Arabi, sobre o anseio primordial dos “arquétipos
permanentes” (ayan
al-thabita)
de serem atualizados cosmicamente pelo Hálito do Misericordioso (nafas al-Rahman), por meio daquele
aspecto pungente e nostálgico da criatividade divina que Henry Corbin, em Creative Imagination in
the Sufism of Ibn Arabi, chama de “teopático”, pode ser encontrada em The Seth Material.
Seth ensina
que o mundo material é recriado momento a momento, doutrina chamada no Islã de
“ocasionalismo” — um escorregão irônico da língua, já que ele classifica o Islã
como religião de segunda categoria, muito inferior ao cristianismo, ainda que
ambos sejam inferiores ao budismo. E o conceito de Ibn al-‘Arabi de nosso
“Senhor” como a face pessoal do Absoluto transpessoal, voltada para nós
somente, é ecoado na afirmação de Seth de que “[a] parte de All That Is que
está consciente de si mesma como você… pode ser invocada para auxílio quando
necessário. … Essa parte que se conhece como você, e como mais do que você, é o
Deus pessoal, veja” (The
Seth Material,
p. 270).
Mas tudo é
transposto para um nível psíquico em que o paradigma dominante é “a exploração
aventureira do Ser através do desenvolvimento de nossos poderes psíquicos”, e é
salpicado de erros graves, como a ideia (em The Seth Material, p. 267) de que, se
All That Is não tivesse resolvido o problema de como entidades finitas poderiam
ser atualizadas no contexto do Absoluto e do Infinito (questão respondida de
forma adequada na Cabala pela doutrina do Tsim-Tsum, a retração criadora
de Deus em Sua própria Essência para “dar espaço” aos seres criados), então
todo o universo teria sido insano, ou de que All That Is está eternamente
buscando um Deus maior do que Ele mesmo, A respeito de Quem Ele não tem certeza
de que exista.
Esse último ensinamento nada mais é que um
mal-entendido da doutrina tradicional sobre a relação entre Deus e Deidade, Saguna
Brahman e Nirguna Brahman, Ser e Além-do-Ser, doutrina que afirma
(na formulação de René Guénon) que o Ser, longe de buscar o Além-do-Ser, é
precisamente a afirmação do Além-do-Ser. É verdade que certos escritores
muçulmanos falam da nostalgia do Ser por Aquilo que o transcende, derivando a
palavra Allah de uma raiz que denota “nostalgia”. A nostalgia do Ser
pelo Além-do-Ser é, porém, o eterno mergulho do Deus pessoal de volta em Sua
própria Essência; não é uma incerteza inquieta de Sua parte quanto a saber se
essa Essência existe. Aqui podemos ver como o material de Seth se alimenta e ao
mesmo tempo distorce um estrato muito mais profundo de ensinamento esotérico do
que aquele a que os antigos guias espirituais, ou mesmo os teosofistas e
ocultistas, conseguiram ter acesso.
Não obstante, o conceito que Seth apresenta de
Deus, pelo menos em certos textos, é esclarecedor em muitos aspectos. Na página
241 de Seth Speaks, ele diz:
o termo “ser supremo” é em si mesmo distorcivo,
pois vocês naturalmente projetam sobre ele as qualidades da natureza humana. Se
eu lhes dissesse que Deus é uma ideia, vocês não entenderiam o que quero dizer,
pois não compreendem as dimensões nas quais uma ideia tem sua realidade, ou a
energia que ela pode originar e pôr em movimento. Vocês não creem em ideias da
mesma forma que creem em objetos físicos, de modo que, se eu disser que Deus é
uma ideia, vocês interpretarão mal isto como se significasse que Deus é menos
que real — nebuloso, sem realidade, sem propósito e sem ação motivada.
Foi em parte graças a passagens como essa, no
material de Seth, que cheguei a compreender que as Ideias objetivas não são
abstrações, mas realidades densamente compactadas e conscientes, em relação às
quais os planos psíquico e material são relativamente abstratos — razão pela
qual a teosofia islâmica, como a de Suhrawardi, por exemplo, pode representar
as Ideias platônicas como anjos. Sou grato a “Seth” por me ter ajudado a
vislumbrar essa percepção; não sou grato pela associação de tais verdades a
falsidades enganosas. Se eu não tivesse rompido essa associação, jamais teria
chegado ao limiar da ortodoxia. E a própria passagem acima é distorcida de
várias maneiras.
Em primeiro lugar, Deus em Sua Realidade mais
profunda é “superessencial”, além mesmo do nível “arcoangélico” das Ideias
eternas, inteligíveis, vivas, conscientes e poderosas. Em segundo lugar,
divorciar as Ideias da Pessoalidade, como Seth faz quando reclama do termo “ser
supremo”, é empurrar essas Ideias em direção a uma abstração. A pessoalidade,
como tantos hoje parecem pensar, não é o reino do ego e de sua banalidade; a
consciência do ego, como versão editada da Pessoalidade condicionada por
atitudes psíquicas coletivas, está mais próxima da abstração impessoal do que
da verdade das pessoas vivas. Assim como o mistério das Ideias ou dos símbolos
está no fato de que são entidades vivas e conscientes, o mistério das pessoas
está no fato de que elas também são Ideias, símbolos, Energias Divinas, Nomes
de Deus. Separar a natureza simbólica da natureza pessoal da Realidade é
banalizar as pessoas e tornar abstratos os símbolos.
Ainda mais exata do que a passagem citada é esta
descrição da Natureza divina em Seth Speaks, pp. 245–246:
Deus é mais do que a soma de todos os sistemas
prováveis de realidade que Ele criou, e ainda assim Ele está dentro de cada um
deles, sem exceção. Ele está, portanto, dentro de cada homem e mulher. Ele está
também dentro de cada aranha, sombra e sapo, e é isso que o homem não gosta de
admitir. (…) Por outro lado, Ele é humano, na medida em que é uma porção de
cada indivíduo; e, dentro da vastidão de Sua experiência, Ele mantém uma
“forma-ideia” de Si mesmo enquanto humano, à qual vocês podem se relacionar.
Ele literalmente Se fez carne para habitar entre vocês, pois Ele forma a carne
de vocês, na medida em que é responsável pela energia que dá vitalidade e
validade ao seu eu privado multidimensional, que por sua vez forma sua imagem
de acordo com as suas próprias ideias.
É em passagens como esta que Jane/Seth se aproxima
do nível da metafísica tradicional, como a de Ibn al-‘Arabi. A doutrina
tradicional da Transcendência e da Imanência é claramente expressa, assim como
o conceito esotérico do Arquétipo do Homem in divinis. Não obstante, a
descrição de Deus como uma “porção” do indivíduo é incorreta; e há também o
perigo de que a centralidade da forma humana na existência terrestre — que
inclui, como símbolo encarnado dessa centralidade, a unicidade da Encarnação de
Cristo — possa ser obscurecida pela descrição, inegavelmente verdadeira, que
Seth oferece da Imanência de Deus como uma Encarnação cósmica.
Mas o material de Seth nem sempre emana de um nível
de compreensão tão elevado e, quando fica aquém desse nível, cai muito baixo,
como veremos. (Por exemplo, na p. 280 de The Nature of Personal Reality,
Seth — como Madame Blavatsky — fala de épocas em que “as linhas entre espécies
não estavam completamente traçadas”, quando “homens e animais se misturavam”.)
Em The Nature of Personal Reality, p. 480,
Seth afirma que, pelo menos em relação aos indivíduos, “a perfeição não é um
ser, pois todo ser está em estado de devir. Isso não significa que todo ser
está em estado de tornar-se perfeito, mas em estado de tornar-se mais ele
mesmo”. Trata-se da reformulação, por Seth, da ideia junguiana de
“individuação”, muito provavelmente pescada no inconsciente de Jane, a qual,
quando aplicada ao indivíduo humano, tende a cavar um fosso entre
autorrealização e autotranscendência.
A meu ver, seria melhor dizer que me torno mais eu
mesmo ao realizar mais profundamente o Self em mim, ao aprender melhor a ver minha
subjetividade contingente e o universo dimensional que ela habita a partir
dessa perspectiva Absoluta. E, em termos ontológicos (como na teologia do
processo e em todos os outros erros modernos que subordinam o ser ao devir), a
frase nega a Perfeição de Deus no nível do Ser puro.
A perfeição de Deus, Sua “autorrealização”, na
medida em que Ele é “ato puro”, corre aqui o risco de ser definida apenas em
termos de Sua criatividade — como quando, na p. 241 de Seth Speaks, se
diz que “Deus… é, antes de tudo, um criador…”. Mas Ele não é, antes de tudo, um
criador. Antes de tudo, Ele é Ele mesmo, Um sem segundo, que em nada necessita
“exteriorizar-Se” enquanto universo. No nível do Ser puro, Ele é a única
Realidade, além de “interior” e “exterior”; a criação, ainda que virtual dentro
d’Ele, está perfeitamente unida à Sua Natureza essencial. Deus não precisa
“provar-Se” por meio da criatividade. Ele emana o universo simplesmente porque
não há barreira em Sua Natureza que impeça que isso aconteça.
Não obstante, no nível em que Ele existe enquanto
Criador em relação a este universo, Ele quer conscientemente criar, embora não
como decisão arbitrária. Como disse Einstein, “Deus não joga dados com o
universo”. Como Deus é Ato, não há fronteira n’Ele entre aquilo que Ele é e
aquilo que Ele escolhe.
A tendência a exaltar o devir em detrimento do ser,
assim como a necessidade de multiplicar entidades, universos prováveis e
dimensões espaço-temporais, baseia-se em parte na incapacidade de conceber a
Eternidade da Natureza divina como algo diferente de uma espécie de
petrificação ou estagnação, uma condição estática e morta que invalida e
congela todo movimento criador — ao passo que, na realidade, a Eternidade está
viva em sua própria quietude, libertando eternamente todas as possibilidades na
existência dimensional simplesmente por transcender a todas elas. Em termos
taoístas, Ela realiza tudo precisamente por não fazer nada.
A devoção de Seth/Jane ao devir e à criatividade,
em detrimento da límpida paz e da irradiação do Ser puro, parece fundar-se,
como o é com a maioria das pessoas, num medo da perda ou da invalidação do eu.
Na p. 182 de Seth Speaks, Seth adverte:
Não há nada mais mortal do que o nirvana. Pelo
menos seus conceitos cristãos
lhes dão alguma esperança crepuscular de um paraíso sufocante e entediante,
onde sua individualidade ao menos pode se expressar, e o nirvana não
lhes estende tal conforto. Em vez disso, oferece-lhes a aniquilação de sua
personalidade, numa bem-aventurança que destrói a integridade do seu ser.
Fujam de tal bem-aventurança!
À parte a deturpação do nirvana como aniquilação
literal do eu — a doutrina budista considera tanto a crença na autoaniquilação
do Buda no Nirvana quanto a crença em sua permanência individual como extremos
desequilibrados e, portanto, erros —, e a imagem de um paraíso cristão que só
alguém morto para todos os valores poéticos poderia levar a sério, dada a
trovejante, joalhada, multidimensional e viva resplandecência da Jerusalém
Celeste nos capítulos 21 e 22 do Apocalipse, comparável à revelação visionária
da Forma Universal de Krishna na Bhagavad-Gita, esse mau conselho
espiritual denota simplesmente um medo de “morrer” para um nível mais baixo e
estreito de ser, a fim de renascer num nível mais alto e amplo.
Sem dúvida é por isso que Jane, sob a tutela de
Seth, se empenha tanto em esticar, expandir, transformar e multiplicar seu eu
psíquico: é o mesmo medo humano primordial inato de morrer para a psique
subjetiva, a fim de renascer no, e como, Espírito Objetivo Absoluto. Melhor
reencarnação, simultânea ou não, e cem universos prováveis, do que essa única
morte para uma Vida maior. Como Seth/Jane diz na p. 282 de Seth Speaks,
“o desenvolvimento se desdobra em todas as direções. A alma não está subindo
uma série de degraus, cada um representando um novo e mais alto ponto de
desenvolvimento”.
Isso é literalmente verdadeiro em relação à alma,
mas não é verdadeiro quanto à metanoia pela qual a alma é transcendida e
o Espírito realizado. Pode aplicar-se à criatividade, portanto, mas não à
contemplação.
Nas pp. 481–482 de The Nature of Personal
Reality, Seth expõe a contradição e o dilema:
Não há nada mais pomposo do que a falsa humildade.
Muitas pessoas que se
consideram buscadoras da verdade e espirituais estão cheias dela. Com frequência
usam termos religiosos para se expressar. Dirão: “Eu não sou nada, mas o
espírito de Deus
move-se através de mim, e, se faço algum bem, é por causa do Espírito de Deus e
não por causa de mim mesmo”, ou: “Eu não tenho habilidade alguma em mim.
Somente o poder de Deus tem qualquer habilidade.”
Agora: Nesses termos, vocês são o poder de Deus
manifestado. Vocês não são
impotentes. Ao contrário. Através do seu ser, o poder de Deus é fortalecido,
pois vocês são uma porção daquilo que Ele é. Vocês não são simplesmente um
insignificante e inócuo pedaço de barro através do qual Ele decide
manifestar-Se.
Trata-se de uma passagem altamente significativa,
tanto pela verdade que expressa quanto pelo erro que revela. Se alguém quiser
saber como um mal-entendido do cristianismo, assim como das religiões
orientais, deu origem à New Age, está tudo aí.
Certamente existem pessoas como as que Seth
descreve; é possível usar a verdade de que todo poder e bondade são atribuíveis
apenas a Deus como meio de negar o orgulho espiritual — uma vez que
secretamente se identifica o próprio ego com esse Ser todo-bom e todo-poderoso
—, bem como de apegar-se à própria impotência e condição de vítima, como se se
fosse esperar por um milagre divino de levitação, em vez de simplesmente levantar
da cama de manhã. Mas, como deveria ser óbvio, não foi isso que Cristo quis
dizer quando afirmou: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um só, que é
Deus” (Lc 18,19).
Essa forma de “humildade” é apenas sombra da
verdade — e definir uma verdade em função de sua sombra é tão injusto e
impreciso quanto definir um ser humano amoroso, inteligente e corajoso em
função, digamos, de uma pequena gagueira ou de um tique facial. É um golpe
baixo.
Como Seth diz, eu sou o poder de Deus manifestado.
Se, porém, atribuo esse poder à parte limitada, egoica, de mim mesmo, perco o
ponto: o ego pode ser o recipiente — ou talvez o ladrão —, mas Deus é a Fonte.
Colocar o ego no lugar de Deus é bloquear a corrente da vitalidade divina e
entrar no mundo das sombras.
Mas, se atribuo toda bondade, verdade e poder a
Deus, ao mesmo tempo em que reconheço que nada sou em mim mesmo senão uma
manifestação d’Ele, a “resistência” a essa corrente é superada. Se nada sou em
mim mesmo, então sou todo Deus. Se, porém, me vejo como uma parte de Deus por
meio de cuja existência “o poder de Deus é fortalecido”, como se eu, em minha
minúscula condição de criatura, pudesse de algum modo acrescentar algo ao
Infinito, então sou apenas parcial.
E, quando as consequências dessa parcialidade
chegarem, quando minha “cocriatividade” se revelar como usurpação, por mim, de
algo que não me pertence, pareço então um “insignificante pedaço de barro”, uma
retraída e carrancuda falta de resposta à graça e ao poder de Deus. A
identificação do ego com Deus é resistência a Deus; a arrogância prometeica é a
face oculta da falsa humildade. Nas palavras de William Blake, “a vergonha é o
manto do orgulho”.
Mas, se de fato nada sou diante da Glória de Deus,
então o insignificante pedaço de barro que pensa poder resistir a essa Glória é
dissolvido.
A dissolução do ego, contudo, não é negação,
repressão nem invalidação da pessoa humana. Em minha pessoalidade, sou uma face
viva de Deus; o ego é simplesmente tudo quanto se interpõe entre mim e esse
conhecimento. Minha nada reconhecida é apenas minha libertação do fardo
ilusório da minha autocriação. Em termos sufis, o outro lado da minha
aniquilação em Deus — fanā — é minha subsistência em Deus — baqā.
Subsistindo n’Ele, conheço-me completamente
contingente n’Ele; vejo como eu, em minha singular pessoalidade, sou exatamente
aquilo que Deus quer que eu seja. Deus reconhece um certo aspecto de Si mesmo
em mim somente; nenhuma outra pessoa, objeto ou entidade pode ocupar esse
lugar. E a raiz de minha singularidade é a minha aniquilação. É sob a luz desse
princípio que a bela passagem de Seth Speaks, p. 384, deve ser
compreendida: “(…) cada homem sabe em seu íntimo que sua vida consciente
depende de uma dimensão maior de atualidade. Essa dimensão maior não pode ser
atualizada num sistema tridimensional; ainda assim, o conhecimento dessa
dimensão maior jorra do âmago mais íntimo do ser, transformando tudo o que
toca”.
Diz-se que Seth tem o poder de perscrutar todo o
espaço e tempo, bem como reinos que os transcendem. Ele fala sobre civilizações
perdidas, condições sociais e espirituais no tempo de Cristo, e possíveis
desenvolvimentos futuros na sociedade e na psique humana. No entanto, o seu
conhecimento do cristianismo e das religiões orientais — algo que pode ser
verificado por meio de textos reais e do saber de mestres vivos — se assemelha
muito mais ao de uma dona de casa New Age autodidata, interessada em religião e
espiritualidade.
Na p. 273 de The Nature of Personal Reality,
Seth afirma que “muitas (…) escolas orientais também enfatizam — assim como
numerosas escolas espiritualistas — a importância dos ‘níveis inconscientes do
eu’ e ensinam vocês a desconfiar da mente consciente”. Isso pode ou não ser
verdadeiro em relação ao espiritualismo, especialmente sob influência da
psicologia junguiana, mas não é de fato característico das “escolas orientais”
com as quais estou familiarizado.
O Vedānta sublinha a necessidade de tomarmos
consciência de nossa identidade com o Absoluto interior; ele não nos ensina a
confiar nesse Absoluto apenas como um substrato inconsciente. A palavra buddha
significa desperto, não adormecido; a prática central do budismo theravāda é a
atenção plena, não a inconsciência. Seth, por outro lado, muitas vezes falava
através de Jane Roberts quando ela estava tão inconsciente que não tinha a
menor ideia do que ela (ou Seth) dizia até sair do transe. Parece evidente que
certo grau de “projeção” está atuando aqui.
Na p. 400 de Seth Speaks, o “deus hebreu” é
destacado como símbolo do ego humano em emergência a partir de uma identidade
arcaica com a natureza (refletindo conceitos de antropólogos como Lévy-Bruhl,
que foi importante influência para Carl Jung e seu discípulo Erich Neumann,
autor de The Origin and History of Consciousness); “Deus torna-se aliado
do homem contra a natureza”.
Essa religião hebraica de um “deus superintendente
(…) irado e justo e às vezes cruel” é contraposta aos antigos politeísmos que
reconheciam a sacralidade da natureza via o conceito de um Deus Supremo
onipresente, do qual os vários deuses são expressões. Parece que Seth está se
referindo às religiões pagãs de fertilidade da África e do Oriente Próximo.
Entretanto, o deus babilônico Marduk é um símbolo
muito mais claro do ego emergente do que Yahweh, uma vez que ele mata heroicamente
o monstro marinho arcaico feminino Tiamat e cria as ordens celeste e terrestre
a partir dos fragmentos de seu corpo estraçalhado — embora haja algumas
indicações, no Antigo Testamento, de que um mito de criação semelhante possa
ter sido atribuído a Yahweh em outra época.
E não seria o deus pagão Moloch, a quem se
sacrificavam crianças queimando-as vivas, um símbolo melhor da crueldade do
ego, já que Yahweh é também amoroso e misericordioso? Talvez; mas, como o Zeitgeist,
então e agora, favorece a reabilitação do paganismo e a deturpação do
judaico-cristianismo, esses fatos precisam ser ignorados.
Na p. 401, a religião anti-natural dos hebreus é
contraposta às religiões anteriores em que os homens aprendiam por meio da
comunicação com uma natureza viva. O que, então, fazer do rico simbolismo
natural do Livro de Jó, ou da história veterotestamentária do profeta Elias
sendo alimentado por corvos? E como interpretar a seguinte passagem do Livro da
Sabedoria hebraico?
É ele [Yahweh] que me deu o conhecimento infalível
daquilo que existe, para conhecer
a estrutura do mundo e a atividade dos elementos, o começo e o fim dos tempos,
a alternância dos solstícios e a mudança das estações, o ciclo do ano e as
constelações das estrelas, a natureza dos animais e o temperamento das feras, o
poder dos espíritos e os pensamentos dos homens, a variedade das plantas e as
virtudes das raízes;
aprendi tanto o que está oculto quanto o que se manifesta.
SABEDORIA 7,17–21
Seth/Jane parece ser um bom psicólogo e saber muito
sobre como a realidade material emerge do domínio psíquico. Não tenho dúvida de
que parte do que ele/ela ensina nesse nível é exata e útil. Ele/ela também se
mostrou um(a) clarividente altamente hábil.
Mas, dado que sua compreensão daquilo que
transcende a dimensão psíquica é radicalmente incompleta e, em alguns casos,
distorcida, é difícil separar o trigo do joio.
Um dos princípios centrais do ensino de Seth, e de
muitas outras filosofias New Age, é que a crença cria a realidade: “Você faz a
sua própria realidade”, diz ele; “não há outra regra. Saber disso é o segredo
da criatividade” (The Nature of Personal Reality, p. 16).
Mas o que exatamente é uma crença? Ela não pode
existir no vácuo; tem de ser crença em algo, convicção de que algo é de
fato o caso. Contudo, se toda realidade é criada pela crença, então nada existe
objetivamente para que a crença diga respeito. E, se nos tornamos conscientes
de que a realidade é criada pela crença, em vez de a crença conformar-se a algo
que a transcende — a saber, a realidade —, então a crença, enquanto convicção
de que algo é de fato o caso, não pode existir. Dizer que a crença cria a
realidade, em vez de dizer que a realidade está lá, e que a crença ou a espelha
ou dela se afasta, é tornar a crença efetivamente impossível.
Na p. 20 de The Nature of Personal Reality,
Seth declara: “Vocês tomam suas crenças sobre a realidade como verdade…”. E, na
p. 26:
Vocês precisam perceber que qualquer ideia que
aceitem como verdade é uma crença que sustentam.
Precisam, então, dar o passo seguinte e dizer: “Ela não é necessariamente
verdadeira, ainda que eu acredite nela”.
Vocês irão, assim espero, aprender a descartar todas as crenças que impliquem
limitações básicas.
Ele está ensinando, em outras palavras, que crenças
devem ser distinguidas da realidade e que a realidade, em essência, é
ilimitada. Não tenho nenhuma objeção a isso. Mas, na p. 24, ele sustenta, como
princípio fundamental, que “Você cria a sua própria realidade” — por meio da
crença.
Em vez de distinguir realidade de crença para que a
crença possa conformar-se mais diretamente à realidade, Seth parece querer
distingui-las de maneira que possamos mudar a realidade para servir às nossas
necessidades. Ele sugere que, se cremos em algo porque é verdade, estamos
simplesmente sendo estreitos de mente, especialmente quando essa crença limita
nossas opções.
Ensinar ao mesmo tempo que a realidade está além da
crença e que é criada pela crença é uma contradição clara. A contradição surge
porque, segundo Seth, a “realidade” não é nem um mundo material objetivo nem
uma ordem metafísica objetiva, mas o “eu”; de acordo com outro de seus
princípios fundamentais (também p. 24), “o Eu não é limitado”.
Mas, é claro, nossos egos contingentes e subjetivos
são limitados por definição; o único Eu ilimitado é o atman interior,
Deus enquanto Sujeito Absoluto. Será esse o “Eu” a que Seth se refere? Vejamos.
Na p. 16, logo após afirmar que “Você faz a sua
própria realidade”, Seth qualifica sua afirmação:
Falei de “vocês”, mas isto não deve ser confundido com
o “vocês” que vocês costumam julgar ser — apenas o ego, pois o ego é apenas uma
parte de Vocês; é aquela parte de vocês que lida diretamente com o conteúdo de
sua mente consciente, e está mais diretamente preocupada com as porções
materiais de sua experiência.
Está sendo implícito, portanto, um Eu maior, com E
maiúsculo (You), virtualmente idêntico a Deus. Mas Seth também ensina
que cada um de nós cria, via crença, um mundo pessoal único. Como Deus cria
todos os mundos, esse Vocês maior, do qual o ego consciente é apenas uma parte,
não pode ser Deus. Temos aqui, como em boa parte da doutrina New Age, uma
confusão entre os eus contingente e Absoluto.
“Cada um de vocês”, diz Seth, “independentemente de
posição, status, circunstância ou condição física, tem controle sobre a sua
própria experiência pessoal” (p. xxii). Na realidade, porém, só Deus tem
controle absoluto, mesmo sobre uma área limitada de existência como uma vida
individual. Minha identidade limitada e condicionada, ainda que transcenda meu
ego cotidiano, não pode usurpar esse poder, como talvez tenha ficado evidente
quando Jane Roberts morreu relativamente jovem de uma doença incapacitante.
Somente se eu realizei o atman é que o “eu”
pode reivindicar esse poder, porque, nesse ponto, é Deus — não eu — quem diz
“Eu Sou” em mim.
Aqui encontramos o erro inevitável das filosofias
psíquicas que negam (ou, como nas doutrinas de Seth, hesitam em afirmar) a
existência de uma ordem metafísica objetiva, e ainda assim se esforçam para
transcender o materialismo: elas são obrigadas a ver o mundo como criação da
psique subjetiva. A crença subjetiva precisa determinar as condições materiais,
porque a única alternativa seria que as condições materiais determinassem a
crença, fazendo da consciência um epifenômeno da matéria, como no materialismo
marxista.
Mas, assim como a consciência não pode ser reduzida
à matéria porque, nas palavras de C. S. Lewis, “o conhecimento de uma coisa não
é uma das partes dessa coisa”, ela tampouco pode ser definida como produto de
uma crença arbitrária operando no vácuo, como projeção voluntária de uma
entidade encarnada ou desencarnada, ou de uma massa delas.
Crença não é ato soberano de criação, mas imagem
mais ou menos exata de algo que já está lá, antes de crermos nele. Na medida em
que a crença se conforma à realidade, ela liberta. Na medida em que dela se
afasta, aprisiona.
E uma crença não deve ser considerada verdadeira
apenas quando nega as limitações do eu individual, e falsa quando as afirma.
Algumas limitações individuais são produto de crenças falsas e desnecessárias;
outras representam os limites necessários de toda existência contingente. A
crença se conforma à realidade não negando as limitações do eu individual, mas
apresentando-nos uma visão do Eu Absoluto, para além e dentro de todas as
individualidades contingentes.
Nenhuma quantidade de refinamento de nossas
habilidades criativas ou expansão e multiplicação de nossas percepções
psíquicas pode somar-se à realização desse Eu.
Em The
Nature of Personal Reality, p. xxii, Seth declara: “O mundo tal como vocês
o conhecem é um quadro de suas expectativas. O mundo tal como o gênero humano o
conhece é uma materialização em massa de suas expectativas individuais.” De
certo modo isso é verdadeiro, embora não se estivermos entendendo que um
indivíduo ou uma raça possam ter um controle total e consciente sobre os
acontecimentos. Essa “materialização”, porém, não é um ato de criação, mas um
ato de atenção. Nossa experiência individual e coletiva baseia-se em parte nos
aspectos da criação eterna de Deus aos quais escolhemos prestar atenção; mas
esse campo de escolhas perceptivas também é limitado — limitado de modo
providencial — pela forma humana na qual Deus nos criou.
Essa forma nos situa entre um modo de percepção
singularmente plástico, virtualmente capaz de perceber qualquer coisa na
experiência terrestre, bem como em planos superiores da realidade que
constituem o “caule” vivo dessa experiência, e nossa capacidade de contemplar o
Absoluto. Nossa tarefa delegada, pela qual realizamos no espaço e no tempo, bem
como em planos psíquicos e espirituais superiores, nossa forma eterna na mente
de Deus, não é perseguir todas as possibilidades inerentes a esse modo plástico
de percepção — fazê-lo seria dissolver-nos no ilimitado e perder a forma humana
—, mas sim subordinar esse modo de percepção, em contemplação, ao Absoluto, até
o ponto em que cheguemos a ver, como universo, precisamente aquilo que Deus vê
em nós, já que passamos a ver com o olho de Deus.
Não gostamos de ser lembrados do truísmo de que
nossa crença só nos liberta se se conforma à realidade, porque a palavra
“realidade” denota hoje em grande parte “realidade material”, e nos rebelamos
contra o reducionismo implicado por nossa própria definição falsa. Sentimos,
com razão, que deve haver algo além das condições materiais grosseiras, mas não
vemos aonde voltar-nos em busca disso senão à nossa própria subjetividade. E,
como parecemos ter mais poder para controlar nossas fantasias do que para
afetar a realidade material, queremos acreditar que de algum modo podemos
controlar a realidade material por meio de nossas fantasias. Afinal, não é
exatamente isso que todo inventor bem-sucedido faz? A fantasia do voo produziu
o avião; a fantasia da visão remota produziu a televisão. Esquecemos que o
inventor, para ser bem-sucedido, precisou conformar suas ideias às normas da
realidade objetiva material de forma mais estrita do que nós provavelmente
faremos em toda a nossa vida.
E, no entanto, existe algo como criatividade.
Existe a atualização de possibilidades. Tais possibilidades não são meras
crenças arbitrárias tornadas atuais no espaço e no tempo, mas realidades
objetivas que existem em um plano mais elevado da Grande Cadeia do Ser do que a
psique subjetiva; é por isso que a criatividade pode, sob certas condições,
fazer parte da contemplação — ou, melhor dizendo, por que a contemplação deve
estar na base de toda criatividade verdadeira, se ela não há de nos conduzir à
escuridão espiritual.
Além da psique subjetiva, com suas crenças, há o plano
psíquico objetivo, com seus reflexos vivos dos arquétipos eternos; além desses
reflexos estão os próprios arquétipos, tal como se revelam na contemplação,
transcendente por completo ao plano psíquico. É verdade que o plano material
como um todo é manifestação parcial do plano psíquico, que é manifestação
parcial do plano celeste ou arquetípico, que é manifestação parcial do Logos,
que é manifestação parcial de Deus. Mas isso não significa, como afirma Seth,
que os seres conscientes do universo criam o plano material como uma
materialização em massa de crenças. Quem cria o universo é Deus, não nós.
Visto que a psique é superior à matéria e,
portanto, funciona como causa próxima desta, podemos dizer que Deus cria o
plano material através de nós, mas somente depois de nos criar primeiro. O
papel de nossas crenças é ou conduzir-nos mais profundamente à realidade
material e às experiências que ela proporciona, ou conformar-nos mais
estreitamente ao arquétipo espiritual através do qual Deus nos criou, e, por fim,
ao próprio Criador. Porém, quer nossas crenças nos levem a elaborar mais
amplamente os planos de manifestação psíquica e material — por meio da arte e
da tecnologia, por exemplo — quer nos conduzam a vislumbrar, contemplar e
unir-nos ao nosso arquétipo espiritual, elas jamais criam algo novo. Crenças
alteram, sem dúvida, a experiência; no nível mais fundamental — um nível tão
profundo que transcende todas as vicissitudes da vida condicionada —, elas são
as únicas coisas que podem fazê-lo.
Se seremos salvos ou perdidos, iludidos ou
iluminados, depende em grande medida, num certo estágio do caminho, da crença.
Mas elas não podem criar; só podem condicionar, limitar, modular. Somente se a
realidade fosse experiência individual, como afirmam as filosofias psíquicas, é
que as crenças poderiam criar, e somente se não houvesse nada ontologicamente
superior ao plano psíquico é que seríamos obrigados a definir a realidade como
experiência individual, em vez de definir a experiência individual como visão
mais ou menos exata da realidade.
Podemos ser “sub-criadores”, então, mas não
cocriadores. Só Deus é Rabb al-‘ālamīn, Senhor dos mundos. Podemos
construir e desconstruir; só Deus cria.
Quanto à doutrina de Seth sobre multiplicidade de
vidas reencarnacionais experimentadas simultaneamente do ponto de vista de um
“eu interior”, estou perfeitamente disposto a aceitar a premissa de que Charles
Upton é uma face de uma “entidade” maior, cujas outras faces existem em outros
lugares e tempos, passados, presentes e futuros — uma entidade que, por sua
vez, é face de uma consciência viva ainda maior. (Seth chama indivíduos que
habitam meu próprio tempo e estão ligados a mim por um arquétipo comum de
“contrapartes”.)
Isso está mais ou menos em linha com a imagem
tradicional da Grande Cadeia do Ser como uma árvore invertida (cf. a Árvore da
Vida no Gênesis), cujas raízes se ocultam no “céu”, no Absoluto informe. No meu
caso, tais faces podem incluir o poeta William Blake, o cabalista Isaac Luria
(ou seu discípulo Hayyim Vital) e uma mulher chamada Teodosia, que parece ter
sido filósofa cristã platônica vivendo na região do Mediterrâneo oriental,
talvez no século III. Assim como a congregação de uma igreja partilha o mesmo
santo padroeiro, sem dúvida compartilho com muitas pessoas que jamais
encontrarei o mesmo “arquétipo padroeiro”. (Segundo a doutrina de Ibn ‘Arabī,
todo “amigo de Deus” no Islã pertence à família de um certo profeta. Maomé é o
“tronco” da Árvore da Vida para todos os muçulmanos, ao passo que o “ramo”
particular de Ibn ‘Arabī, no qual ele era, por assim dizer, uma “folha”, é o
profeta Jesus.)
Estou também disposto a aceitar que todas as
“vidas” unidas por uma entidade comum são percebidas por essa entidade como
simultâneas; essa “eternidade relativa” é chamada, na teologia cristã ortodoxa,
de “tempo eônico”. O que não aceito é que isso seja descrição de reencarnação.
Charles Upton não é reencarnação de Isaac Luria ou William Blake, assim como o
galho de uma árvore não é, de fato, um ramo menor num outro galho separado.
Estamos unidos não horizontalmente, de galho a galho, como se estivéssemos
ligados por uma trepadeira parasita, mas verticalmente, em virtude do fato de
brotarmos do mesmo tronco.
Portanto, o único meio vivo pelo qual posso entrar
em contato com as demais almas eternas que brotam do mesmo arquétipo ou Nome de
Deus que eu é através desse próprio arquétipo. Tentar contatá-las
horizontalmente, como se fossem vidas passadas (ou futuras) de Charles Upton, é
aprisioná-las solipsisticamente na casca do meu ego, violar a integridade delas
e usurpar o terreno de suas relações pessoais únicas com nosso arquétipo comum.
É relacionar-me a elas não como almas humanas completas, mas apenas como
fantasmas. E, uma vez que eu realize plenamente o nosso arquétipo, tais excursões
horizontais pelo tempo multidimensional, na tentativa de contatar as faces
perdidas do “meu” ser, tornam-se desnecessárias.
Essas excursões podem, em alguns casos, representar
fases iniciais da irrupção desse arquétipo; talvez tenham representado assim
para mim. Mas, se eu nunca tivesse transcendido o paradigma reencarnacionista,
se jamais tivesse entendido que unidade é ontologicamente superior à
multidimensionalidade, teria sido disperso aos quatro ventos.
Em Beyond the Postmodern Mind, pp. 39–40, Huston
Smith observa que, quando o pós-modernismo nega qualquer realidade objetiva
fora daquela “construída” por uma dada cultura, isso é logicamente equivalente
à negação de qualquer realidade fora daquela construída pelo indivíduo (e, em
última análise, eu acrescentaria, pelos complexos, subpersonalidades e momentos
aleatórios e desconexos de percepção dentro desse indivíduo). “Subjetividades
sócio-culturais, linguísticas, enclausuradas em si mesmas” não são senão
“solipsismos sociais ou coletivos”.
É aqui que a mitologia de Seth se revela como forma
popular da ideologia pós-moderna. Se todo ponto de vista subjetivo é absoluto,
então não pode haver relação entre eles. E, se não pode haver relação, todas as
experiências, todos os objetos e todas as outras pessoas são apenas aspectos de
“mim”. Assim, se eu preciso relacionar-me com “outros” — e qual de nós não
precisa? —, a única abordagem possível é relacionar-me a outros “eus”: vidas
passadas, vidas futuras, versões prováveis e contrapartes presentes de Charles
Upton.
Esse narcisismo pós-moderno, ou solipsismo,
inseparável da negação da realidade objetiva, é facilmente discernível na
epistemologia de Seth. Na p. 127 de The Seth Material, ele usa uma taça
de vinho nas mãos de Jane, visível a duas outras pessoas na sala, para
sustentar que
Nenhum de vocês vê o copo que o outro vê. (…) Cada
um de vocês três cria o seu próprio copo, em sua perspectiva pessoal. Portanto,
vocês têm aqui três copos físicos diferentes. (…) Cada indivíduo cria, de fato,
um objeto inteiramente distinto…
Immanuel Kant negava, na prática, que as três
pessoas nessa sala pudessem jamais experimentar a taça de vinho enquanto “coisa
em si”; tudo que poderiam perceber seriam três conjuntos irredutíveis de
“fenômenos”. Ainda assim, o copo-em-si, o númeno, era real. Coube à filosofia
pós-moderna — e a Seth — negar a realidade do próprio númeno.
(Quando a frustração diante de tal degeneração
filosófica me toma, às vezes alivio-me imaginando que estou no saguão de um
hotel onde acontece um congresso de pós-modernismo. Uma mulher que assiste ao
congresso aproxima-se e me pede indicações para a garagem. “Isso depende de
você”, respondo. “Sua garagem está onde você decidir construí-la. Além disso,
não posso ajudá-la; estou estacionado em outra garagem.”)
E, se alguém objetar que a absolutização, por Seth,
dos pontos de vista individuais não é propriamente solipsismo, já que ele
concede o mesmo estatuto “absoluto” à percepção de cada indivíduo, não apenas à
de Jane Roberts ou Charles Upton, peço que considere a seguinte afirmação de The
Nature of Personal Reality, p. 4:
Vocês projetam seus pensamentos, sentimentos e
expectativas para fora, depois os percebem como realidade externa. Quando
parece a vocês que outros os estão observando, são vocês que estão se
observando do ponto de vista de suas próprias projeções.
Em outras palavras, eu jamais posso ser experiência
válida para os outros, nem eles para mim. O conhecimento objetivo de outros
enquanto pessoas — em outras palavras, o amor humano — está filosoficamente
descartado. Talvez a única saída do “o inferno são os outros”, de Sartre, pelo
menos para o solipsista pós-moderno integral, seja: “mas, felizmente, não há
outros”.
Todavia, para fazer justiça a Seth/Jane, devo citar
também um exemplo da concepção oposta:
O mundo interior de cada homem e mulher está ligado
ao mundo interior da terra. O espírito se faz carne. Parte da alma de cada
indivíduo, então, está intimamente ligada ao que vocês chamam de alma do mundo,
ou alma da terra.
A menor brizna de erva, ou flor, tem consciência
dessa ligação, e sem raciocinar compreende sua própria posição, sua
singularidade e sua fonte de vitalidade. Os átomos e moléculas que compõem
todos os objetos, quer seja o corpo de uma pessoa, uma mesa, uma pedra ou um
sapo, conhecem o grande impulso passivo da criatividade que jaz por baixo da
sua própria existência, e sobre o qual flutua sua individualidade, clara,
distinta e inatacável.
THE
NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 4.
O que está longe de ser certo aqui é se Seth/Jane
percebe que essa visão, inegavelmente bela em seu próprio nível e verdadeira
nesse mesmo nível, contradiz a visão solipsista anterior. Se todos os objetos
são sencientes, como três pessoas observando “uma” taça de vinho podem criar
três taças físicas diferentes? A própria taça não “sabe” que é taça, uma coisa
em si, mesmo se ninguém a estiver olhando?
E, se três observadores criam três taças, por que
esses mesmos três não poderiam criar três Charles Uptons, já que tanto eu
quanto a taça somos seres sencientes? Se o observador cria a coisa observada,
como pode ser verdadeiro dizer que “quando parece a vocês que outros os estão
observando, são vocês que estão se observando do ponto de vista de suas
próprias projeções”?
Nesse ponto estamos claramente presos num círculo
vicioso de paradoxos, que Frithjof Schuon resolve de modo decisivo em seu
ensaio “The Enigma of Diversified Subjectivity”:
Falar de uma subjetividade diversificada, portanto
múltipla, é sem dúvida inevitável, uma vez que o mundo é o que é, mas não deixa,
ainda assim, de ser contradição em termos, porque, logicamente, subjetividade e
pluralidade se excluem.
De fato, o sujeito cognoscente é único frente a uma multidão indefinida de
objetos conhecidos ou a conhecer, e essa irremovível — ainda que ilusória —
unicidade tem em si algo de absoluto, sob sua própria perspectiva, precisamente
a da consciência: nenhum indivíduo pode deixar de ser “eu”, e, empiricamente,
não há outro “eu” senão o dele próprio.
O problema só pode ser resolvido numa realidade
metafísica, cuja imanência invisível elimina a aparente absurdidade de um
sujeito que é, por um lado, único por definição e, por outro, tão numeroso
quanto os objetos; o sujeito paradoxalmente se torna objeto por sua vez (…)
[diante de] um Sujeito absoluto que projeta sujeitos contingentes de maneira
misteriosamente contraditória, mas necessariamente homogênea.
ROOTS OF
THE HUMAN CONDITION, pp. 46–47.
Em outras palavras, assim que minha subjetividade
contingente, pela autotranscendência que dá início ao Caminho espiritual, se
torna apenas mais um objeto do Testemunho divino, para Quem todas as demais
subjetividades são igualmente objetos, o paradoxo da pluralidade inegável da
subjetividade versus sua inegável unicidade também é transcendido.
É precisamente esse Sujeito absoluto que venho
chamando de “realidade objetiva”, já que ele transcende nossas subjetividades
contingentes individuais e, nas palavras de Schuon (p. 46), “Para o homem, até
o Sujeito divino é objeto, exceto no ápice da união mística”. O Sujeito divino
— “objetivo” porque Absoluto — é o Conhecedor imanente de tudo quanto há para
ser conhecido.
As coisas podem, portanto, ser coisas-em-si, porque
Deus as conhece como são e, ao conhecê-las, cria-as. Nós testemunhamos os
fenômenos; Ele contempla, por assim dizer, o númeno, precisamente porque
testemunha todas as coisas como a Si mesmo. E podemos participar
misteriosamente desse testemunho, não por meio de nossas subjetividades
contingentes, mas em virtude do Sujeito Absoluto, o Testemunho divino em nós.
Assim, a taça de vinho é de fato uma taça de vinho
— não porque, como sustenta Seth, as três pessoas que a observam estejam
ajustando telepaticamente suas percepções subjetivas umas às outras, instante a
instante, mas porque qualquer objeto material que possa ser conhecido,
validamente ainda que não de modo idêntico, por mais de um sujeito contingente
é, por isso mesmo, sinal do Sujeito absoluto presente em todo conhecedor.
A matéria, portanto, situa-se abaixo das
subjetividades contingentes do plano psíquico como espelho e testemunho das
realidades celestes que se erguem acima dela. A convergência imperfeita, mas
inexorável, de nossas visões fenomenais subjetivas do mundo material atesta a
realidade transcendente do númeno, que é, ao mesmo tempo, a Essência oculta dos
fenômenos e o Testemunho oculto que realiza a “vacuidades” dos fenômenos no ato
de contemplar essa Essência como a Si mesmo.
E é precisamente por isso que o universo é sagrado
e, por extensão, por que o ciberespaço é profano (ciberespaço: um modo de ser
do mundo que não está no mundo).
Quando minha subjetividade contingente se torna
objetiva para o Testemunho Absoluto, torna-se virtualmente disponível um número
infinito de pontos de vista perceptivos — digo virtualmente, porque, quando
minha subjetividade contingente retorna na tentativa de acessar esses pontos de
vista para deles tirar proveito, eles se dissipam.
O surgimento de visões de vidas passadas pode ser
sinal da dissolução do ego, como quando o Buda, ao alcançar a iluminação, se
lembrou de todas as suas existências anteriores. O mesmo vale para a visão de
“eus prováveis”. O mesmo vale para as contrapartes presentes: quando “perco a
minha vida para encontrá-la”, então “amo o próximo como a mim mesmo” porque o
vejo como a mim mesmo — ou melhor, vejo que ambos partilhamos o mesmo Eu
divino.
Se sei que “já não sou eu que vivo, mas é Cristo
que vive em mim”, então compreendo precisamente como “sois deuses, e todos
filhos do Altíssimo”.
O número de vidas passadas e futuras, contrapartes
presentes e eus prováveis é infinito, já que, em última análise, inclui todos
os seres sencientes e todas as formas manifestas. Mas, na medida em que essas
vidas passadas, contrapartes e eus prováveis são vistos como “meus”, o ego
ainda não foi transcendido.
Considerá-los como ampliação da minha área de
identidade, como enriquecimento do meu estoque de conhecimento, vitalidade e
criatividade é recuar na soleira da autotranscendência. É trocar mística por
magia.
Nas doutrinas de Seth, a criatividade toma o lugar
da salvação, da autotranscendência ou da iluminação. É verdade que a
criatividade pode ajudar-nos a ir além de muitas das crenças limitantes que
compõem nossas identidades egóicas habituais, simplesmente porque a entrega ao
mundo manifestado de uma concepção maior do que qualquer que tenhamos até então
acolhido exige que o façamos.
Se, por preguiça, covardia ou autoavaliação
equivocada, “enterrarmos nosso talento”, recusando-nos a engajar-nos na luta
criativa exigida por nossa natureza — exigida, em outras palavras, pelo Deus em
nós —, jamais alcançaremos a Libertação.
Mas a criatividade, em si, não basta para nos
libertar. Sua energia ou shakti dirige-se para longe da Fonte, em
direção à manifestação desta, ao passo que o Caminho espiritual requer que a shakti
seja dirigida para longe da manifestação e de volta à Fonte. Em outras
palavras, a contemplação é superior à criatividade.
E uma das coisas que a contemplação nos ensina é
que só Deus cria. A contemplação, ao dissolver pele após pele do nosso ego,
pode liberar torrentes de criatividade (nem toda ela, e certamente não suas
formas mais elevadas, em moldes que possamos hoje entender), pois cada véu
removido do rosto de Deus permite que mais do Seu Infinito Esplendor Criador se
manifeste.
Mas a contemplação da Verdade é eternamente
superior à expressão da Verdade. A contemplação pode existir sem expressão; a
expressão não pode existir sem contemplação.
Segundo Seth, não há tal coisa como mal. “[U]ma
crença no bem sem uma crença no mal pode parecer-lhes altamente irrealista.
Esta crença, porém, é o melhor tipo de seguro que vocês podem ter, tanto
durante a vida física como depois dela” (Seth Speaks, p. 192).
Embora isso possa parecer o mais absoluto
“Pollyanna”, não existe mal em termos básicos.
Isso não significa que vocês não encontrem efeitos que pareçam maus, mas (…)
todas as aparentes oposições são outros rostos do único impulso supremo em
direção à criatividade.
THE NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 283.
Em certo nível isso é, sem dúvida, verdadeiro. A
metafísica tradicional ensina que Deus é ao mesmo tempo a única Realidade e o
Bem soberano, enquanto o mal é privatio boni, privação ou diminuição
nesse Bem e nessa Realidade, uma queda na direção de uma irrealidade que, em
seus efeitos funestos, é dolorosamente real.
Mas algumas das conclusões que Seth tira desse
princípio estão longe de ser consistentes. Na p. 166 de The Nature of
Personal Reality, por exemplo, ele afirma:
Demônios de qualquer espécie são o resultado de
suas crenças.
Nascem de uma crença em culpa “antinatural”.
Vocês podem personificá-los. Podem até encontrá-los em sua experiência,
mas, se o fizerem, continuarão sendo produto de sua imensurável criatividade,
embora formados por sua culpa e pela crença nessa culpa.
É como dizer: “não há molestadores de crianças ou
assassinos em série; estes são apenas resultados de sua crença”. No nível de
consciência em que Deus é reconhecido como única Realidade, não há demônios,
nem anjos, nem outras pessoas, nem “eu”, pelo menos como realidades
independentes; há apenas os rostos infinitos do Deus único, rostos de
Misericórdia e Beleza, de Rigor e Majestade.
Mas, se há um “eu”, um ser consciente dotado de
livre-arbítrio, supostamente capaz de criar realidades (como demônios) por meio
da crença, então existem outros seres, físicos e psíquicos, que também possuem
livre-arbítrio e são igualmente capazes de escolher. Demônios são simplesmente
seres em planos mais sutis de manifestação que escolheram rebelar-se contra o
Criador, assim como molestadores de crianças são pessoas no plano físico que
escolheram rebelar-se contra a imagem de Deus neles.
Seth, porém, não admite essa possibilidade:
Enquanto vocês acreditarem num diabo (…) criarão um
que será real o bastante para vocês e para outros que continuem a criá-lo. Por
causa da energia que lhe é conferida por tais pessoas, ele terá certo grau de
consciência própria, mas esse pseudo-diabo não tem poder nem realidade para
aqueles que não acreditam em sua existência, nem lhe conferem energia através
de sua crença. Ele é, em outras palavras, uma alucinação superlativa.
SETH SPEAKS, pp. 282–283.
Isso é absurdo. Certamente se poderia dizer que,
sob certo aspecto, o povo alemão “criou” Hitler por meio de suas crenças — mas
isso significaria que, uma vez “criado”, ele não tinha realidade objetiva nem
poder de ferir aqueles que não lhe conferiam “energia”?
Se adeptos tibetanos têm de fato a capacidade de
criar tulpas, imagens mentais visualizadas que se tornam visíveis e
sólidas no plano material, então não há nada que me impeça de levar uma
bordoada na cabeça causada pela “alucinação” de outra pessoa.
E Seth não se contenta em negar a realidade de
Satanás; ele também procura reabilitá-lo:
Satanás representa — em termos da história [da
queda, dos anjos rebeldes] —
a parte de All That Is, ou Deus, que “saiu de Si mesmo”, por assim dizer,
e se tornou ligado à terra com suas criaturas, oferecendo-lhes livre-arbítrio e
escolha
que “antes” não estavam disponíveis.
Daí os elementos majestosos atribuídos a Satanás, e o poder.
As características terrenas aparecem muitas vezes conforme ele é representado
em forma animal,
pois ele estava também, é claro, ligado aos atributos intuitivos terrestres
dos quais brotaria a nova consciência humana.
THE NATURE OF PERSONAL REALITY, pp. 270–271.
O Satanás aqui descrito parece ser um composto do
Satanás de Milton (elementos majestosos), do Pã grego (características animais
e terrenas) e da versão gnóstica da serpente do Éden como libertadora e
portadora de consciência, bem como uma imagem alternativa de Adão como primeiro
ancestral humano e, até certo ponto, de Cristo, essa “porção” de Deus que
encarna e oferece liberdade espiritual ao homem.
Cada uma dessas atribuições pode ou não ter alguma
validade simbólica em seus próprios contextos bastante distintos — mas não em
termos da história, que é a história judaico-cristã. Em termos dessa história,
Satanás representa a verdade de que o orgulho e a rebeldia têm raízes em nível
extremamente elevado da Hierarquia do Ser, o plano em que a consciência
sujeito/objeto começa a despontar. Foi aí que a escolha entre reconhecer ou
desviar-se da Fonte divina se apresentou pela primeira vez aos seres
espirituais mais elevados, e alguns deles optaram por voltar-se contra Ela.
Mas por que motivo Seth escolhe descartar justamente
essa história, e só ela, sobretudo tendo em vista que é a versão judaico-cristã
que ele está parodiando, não a gnóstica, nem a pagã grega, nem a miltoniana?
Por que é este
o único significado da figura de Satanás, dentre muitos possíveis significados,
que ele se empenha em esconder?
Ao longo dos livros de Jane Roberts, Seth se esforça para convencer Jane de que
ele é real, de que não é simplesmente um produto de sua imaginação — o que,
naturalmente, não seria o caso se, como ele afirma, nossa experiência fosse
criada inteiramente por nossas crenças. Nas pp. 15–16 de Seth Speaks ele diz:
“Parte da minha energia é... projetada através de Ruburt [o nome masculino de
Seth para Jane], e a energia dele e a minha ativam sua forma física durante
nossas sessões... Não sou, portanto, um produto do subconsciente de Ruburt,
mais do que ele é um produto do meu subconsciente. Tampouco sou uma
personalidade secundária, tentando astutamente minar um ego precário.”
Mas se, como Seth ensina, criamos nossa própria experiência, então por que a
experiência de Jane com demônios ou Satanás é “uma alucinação superlativa”, e
sua experiência com Seth é uma realidade sóbria e objetiva? Será que essa
contradição gritante talvez se baseie na suposição de que nada no plano
psíquico pode ser mau, no sentido em que um serial killer é mau, porque o plano
psíquico é moral e espiritualmente mais elevado que o físico? Se for assim,
então estamos diante de um dos erros mais comuns — e mais perigosos — do
pensamento Nova Era: que tudo o que é invisível deve ser espiritual, e portanto
bom. Esquecemos que é a psique invisível do assassino em série que é autora de
seu mal, não seu corpo físico.
Tudo o que podemos afirmar com absoluta certeza é que há engano operando aqui.
Outra inconsistência aparece nas pp. 284–285 de The Nature of Personal
Reality:
“Suas ideias de bem e mal aplicadas à saúde e à doença são extremamente
importantes... se você considera a doença um tipo de estigma moral, então
simplesmente acrescentará uma qualidade desnecessária ao mau estado de saúde.
Tais julgamentos são extremamente simplistas e ignoram a vasta gama de
motivação e experiência humanas. Se você está decidido a acreditar que ‘DEUS’
(em maiúsculas e aspas) cria apenas o ‘bem’, então qualquer deficiência física,
doença ou deformidade se torna uma afronta à sua crença, ameaça-a e o deixa
zangado e ressentido. Se você ficar doente, pode odiar a si mesmo por não ser o
que deveria ser — uma imagem física perfeita feita à semelhança de um Deus
perfeito.”
Isto, novamente, é uma boa crítica psicológica, digna de ser aplicada, digamos,
à Ciência Cristã ou mesmo a Um Curso em Milagres. Mas contradiz o
ensinamento de Seth na p. 283 do mesmo livro, de que apenas o bem é real.
Talvez Seth esteja realmente dizendo que nossas ideias de bem são estreitas
demais, que o verdadeiro bem de Deus não deve ser identificado com nosso senso
habitual do que seria agradável ou desejável. Se for assim, então não tenho
qualquer disputa com ele. Ainda assim, sua relutância inconsistente e ilógica
em admitir a realidade, em seu próprio plano, do mal demoníaco torna difícil
confiar inteiramente em seus motivos. Poderia ele, por exemplo, estar tentando
usar o fato de que a realidade física é necessariamente imperfeita — apesar de
seu ensinamento de que “cada um de vocês... controla sua própria experiência
pessoal” — para negar a verdade espiritual de que o homem é criado à imagem e
semelhança de Deus?
Seth é confuso quanto ao conceito de hierarquia. Frequentemente o emprega, mas,
alinhado ao preconceito contemporâneo contra o conceito, também o nega. Ao
mesmo tempo em que afirma, na p. 282 de Seth Speaks, que “A alma não está
subindo uma série de degraus, cada um representando um novo e mais elevado
ponto de desenvolvimento”, em outros trechos admite a validade da hierarquia,
como em seu conceito de “gestalts piramidais”, segundo o qual cada entidade
consciente é uma faceta ou aspecto de uma entidade maior, até Tudo Aquilo Que É
(All
That Is).
E nas pp. 321–328 de Seth
Speaks
ele elabora sua própria hierarquia, composta de estados de consciência: estado
A-1-a, semelhante ao estado alfa, onde a matéria começa a se tornar
transparente à consciência; A-1-b, relacionado a “presentes de grupo...
probabilidades de massa, questões raciais, o movimento da civilização”; A-1-c,
uma extensão do anterior, onde há maior participação nos eventos; A-2, onde
passados reencarnacionais dentro da linha presente de probabilidade podem ser
investigados; e A-3, relacionado à história biológica, geológica e planetária.
Observe, porém, que todos esses níveis de consciência representam uma
penetração mais profunda na realidade manifestada, terrena.
As representações tradicionais da Hierarquia do Ser, por outro lado, estão
orientadas para a Realidade Absoluta; cobrem um território muito mais vasto.
Por exemplo, as cinco hadhrat “presenças” do sufismo, em uma apresentação, são jism (o “corpo”), khayal (a “imaginação”, o
domínio psíquico), ‘aql (“intelecto”, o mundo
angélico), Wahidiyah (“Unidade”, ou Ser) e Ahadiyah (“Unicidade”, ou Além-Ser).
Em termos desta versão da Hierarquia do Ser, todos os níveis listados por Seth
dizem respeito exclusivamente a jism visto do ponto de vista de khayal. A hierarquia de Seth,
sendo em grande parte psíquica e relacionada à manifestação criativa, desce a
níveis ontológicos inferiores à medida que se espalha pela existência
dimensional. A Hierarquia tradicional do Ser, por outro lado — sendo, em certo
sentido, uma imagem da autotranscendência do indivíduo no Caminho espiritual —
eleva-se a níveis superiores, reúne e sintetiza o que estava disperso e
finalmente retorna à sua Fonte Divina.
O material de Seth, como Um Curso em Milagres, também nega a realidade da culpa:
“Não há carma a ser pago como punição a menos que você acredite que existem
crimes pelos quais deve pagar... Em termos mais amplos, não há causa e efeito,
embora estes sejam suposições fundamentais em sua realidade.”
THE
NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 179
Seth parece estar usando o conceito de tempo simultâneo aqui como uma forma de
contornar a ideia de retribuição, já que um crime passado (poder-se-ia pensar)
só pode ser punido em um tempo futuro. A mesma necessidade de negar o
significado e a validade da culpa está, sem dúvida, por trás da rejeição de
Seth/Jane da causalidade — negação que é ela própria negada pelo peso inteiro
do material de Seth, que continuamente martela no leitor a ideia de que crença
(causa) cria realidade (efeito).
A negação por parte de Seth da realidade objetiva da transgressão é ainda
contradita por toda a sua moralidade da “culpa natural” (The Nature of Personal
Reality,
pp. 167–168), onde “não ir à igreja no domingo” e “ter pensamentos agressivos
normais” são definidos como “não violações”, enquanto “fazer violência ao seu
corpo, ou ao de outro” ou “fazer violência ao espírito de outro” são chamadas
“violações”. E tais atos não são violações simplesmente porque acreditamos que
sejam, já que “matar enquanto protege seu próprio corpo da morte pelas mãos de
outro através de contato imediato é uma violação”, mesmo que “você acredite que
a autodefesa física seja a única maneira de enfrentar tal situação”. Talvez
Seth esteja realmente apenas negando que a culpa possa ser superada por meio de
punição. Ainda assim, onde há violação, e portanto culpa, haverá eventualmente
uma correção — o que é precisamente o que constitui punição justa. Se fugirmos
da correção natural e imediata proporcionada pela “culpa natural” — que parece
ser o termo de Seth para “consciência”, embora também se aplique aos animais —
então a correção deve assumir formas cada vez mais insistentes até que
finalmente estejamos dispostos a ouvi-la: isto é a “retribuição kármica”.
Como tantos outros ensinadores da Nova Era, Jane Roberts e seu Seth eram
abertamente intolerantes do Cristianismo tradicional. Segundo Seth, a “entidade
Cristo” encarnou em três indivíduos humanos diferentes: João Batista, Jesus de
Nazaré e São Paulo. Essa ideia, que parece ser uma leitura literalista da
doutrina da Trindade (representada iconicamente na tradição ortodoxa oriental
pelos três viajantes, identificados como anjos, que visitaram Abraão), tem o
efeito de erodir a doutrina central do Cristianismo, a Encarnação, tornando-a
quantitativa e literalista, já que segundo Seth a entidade Cristo era “grande
demais para caber” em apenas um veículo humano. Além disso, segundo Seth,
quando Cristo retornar será largamente desconhecido — uma inversão direta da
doutrina tradicional segundo a qual, embora Cristo em sua primeira vinda tenha
sido humilde e obscuro, ao menos durante sua vida terrena, sua segunda vinda
não será em sofrimento e sacrifício, mas em poder e glória.
Seth nos diverte com histórias vulgares de sua vida anterior como um papa
degenerado, com uma amante e filhos ilegítimos, que começou a perder a fé na
Igreja quando não conseguia explicar a si mesmo por que Deus escolheria um
degenerado como ele para ser Seu representante na terra. Ele afirma, com
afetação, que um dos Evangelhos, “não o de Marcos nem o de João”, é uma
“falsificação” na qual “eventos [foram] distorcidos para fazer parecer que
alguns deles ocorreram em um contexto completamente diferente...” (The Nature of Personal
Reality,
pp. 486–487), após o que Jane “intuitivamente” determina que é o Evangelho
segundo Mateus — história improvável, já que Mateus paralela tão proximamente
Marcos e Lucas que os três são chamados “sinóticos”. O melhor que podemos dizer
sobre essa falsificação do Cristianismo é que uma doutrina espiritual mais
elevada está sendo erodida por suas próprias reflexões psíquicas inferiores. A
pior interpretação, que parece muito mais provável em alguns casos, é que
influências demoníacas estão deliberadamente atacando a fé cristã. De qualquer
forma, o resultado é subversivo, pois uma doutrina mais completa e integrada
está sendo substituída por algo menos adulto em natureza, mais dissipado e
infantil.
Seth/Jane faz grandes esforços para minar as doutrinas centrais do Cristianismo
e, no processo, revela uma profunda veia de inconsistência e engano. Os doze
discípulos não nasceram como homens, mas foram criados como materializações das
energias combinadas de Jesus, João Batista e São Paulo — tulpus do Cristo (Seth Speaks, p. 244). Mais
significativamente, como em certas heresias gnósticas, Cristo não foi
fisicamente crucificado, tornando sua ressurreição sem sentido: sem morte, não
há triunfo sobre a morte. Um substituto humano iludido foi crucificado em seu
lugar. Segundo Seth
Speaks,
pp. 435–436:
“Havia uma conspiração na qual Judas desempenhou um papel, numa tentativa de
fazer um mártir de Cristo. O homem escolhido foi drogado — daí a necessidade de
ajudá-lo a carregar a cruz (veja Lucas 23) — e disseram-lhe que ele era o
Cristo... Maria veio porque estava cheia de tristeza pelo homem que acreditava
ser seu filho... O grupo responsável queria fazer parecer que uma determinada
fração dos judeus havia crucificado Cristo... O túmulo estava vazio porque [os
conspiradores] carregaram o corpo embora. Maria Madalena viu Cristo,
entretanto, imediatamente depois (veja Mateus 28). Cristo era um grande
psíquico. Ele fez as feridas aparecerem então em seu próprio corpo, e apareceu
tanto fisicamente quanto em estados fora do corpo a seus seguidores. Ele
tentou, contudo, explicar o que havia acontecido e sua posição, mas aqueles que
não estavam na conspiração não entenderiam, e interpretaram mal suas
declarações. Pedro negou o Senhor três vezes (Mateus 26), dizendo que não o
conhecia, porque reconheceu que aquele homem não era Cristo. A súplica, ‘Pedro,
por que me abandonaste?’ veio do homem que acreditava ser Cristo — a versão
drogada. Judas apontou aquele homem. Ele sabia da conspiração e temia que o
verdadeiro Cristo fosse capturado. Portanto, ele entregou às autoridades um
homem conhecido por ser um Messias autoproclamado — para salvar, não destruir,
a vida do Cristo histórico.”
Providencialmente, essa enganação subversiva se desfaz tanto em termos de fato
quanto de lógica. O fato é que Jesus não disse “Pedro, por que me
abandonaste?”, mas “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos
15:34). E se Jesus quisesse “explicar o que havia acontecido e sua posição” —
que Ele nunca havia sido crucificado — por que faria feridas aparecerem em seu
corpo? E se Ele escolheu aceitar a conspiração depois do fato por razões de
imagem pública, então Seth o acusa de participar, ou ao menos lucrar, com o
sequestro, dopagem e assassinato de um homem inocente — como seria implicado,
se a versão de Seth fosse verdadeira, por João 13:27 (o Evangelho de João é
aceito por Seth como um dos “verdadeiros”), onde Jesus diz a Judas na última ceia:
“O que você faz, faze-o depressa” — declaração muito melhor interpretada
simplesmente como prova de que Jesus não foi preso contra sua vontade, já que
conhecia os planos de Judas. Além disso, na p. 284, Seth contradiz toda essa
história dizendo que “A Crucificação... surgiu no mundo da realidade física
[ênfase minha] a partir da realidade interior da qual suas intuições e
percepções mais profundas também brotam”. Assim estamos diante de engano,
corrupção intelectual e blasfêmia — embora, quando “comprei” o material de
Seth, eu mesmo não conseguia ver esse fato óbvio. Tal é o abismo entre a
iluminação da fé e “a suspensão voluntária da descrença”.
Não se limitando ao Cristianismo, Seth também ataca o Islã:
“O maometanismo ficou muito aquém. Neste caso, as projeções eram de violência
predominante. O amor e o parentesco eram secundários ao que realmente equivalia
ao batismo e comunhão por meio da violência e do sangue.”
SETH
SPEAKS,
p. 400
Embora eu não desculpe todos os excessos dos guerreiros muçulmanos — ou dos
cruzados cristãos, ou dos samurais budistas — é meu dever repetir que os “cinco
pilares do Islã” são: (1) o testemunho de fé, de que “não há deus senão Deus, e
Muhammad é o profeta de Deus”; (2) a oração diária; (3) o pagamento da taxa
para sustento dos pobres; (4) o jejum durante o Ramadã; e (5) a peregrinação a
Meca (se os recursos permitirem). Jihad, ou “lutar no caminho de Deus”, para
proteger as fronteiras do Islã ou para a justiça social dentro delas, é
opcional — embora a luta contra as próprias paixões, o “maior jihad”, não o
seja. O Islã nasceu como um drama épico em que mais da metade do mundo
conhecido foi conquistado em tempo surpreendentemente curto, e parte dessa
qualidade permaneceu impressa nele, assim como a qualidade de longanimidade (que
Seth também despreza, incidentalmente) foi impressa no Cristianismo durante
seus trezentos anos de opressão antes que Constantino levantasse a proibição. É
em parte essa história que permitiu ao Islã medieval elevar a guerra a um nível
de honra e cavalheirismo que frequentemente colocava os cruzados cristãos em
vergonha.
E qualquer pessoa que pense que os santos, místicos, filósofos, poetas e
arquitetos do Islã ficaram aquém de seus equivalentes cristãos ou budistas é
profundamente ignorante. As artes espirituais são evidência da profundidade e
da verdade de qualquer religião, assim como seus santos e sábios são sua prova.
Por esses critérios, o Islã não é inferior a nenhum. A filosofia cristã da
Idade Média foi em grande parte influenciada e criada em resposta à filosofia
islâmica, que alguns intelectuais cristãos admitiam abertamente ser superior à
da Europa cristã. O grande sábio sufi Ibn al-‘Arabi, cujos conceitos aparecem
frequentemente neste livro, foi um dos talvez cinco maiores filósofos místicos de
todos os tempos, senão o maior de todos, embora muitos outros sufis rivalizem
com ele. Rumi foi, discutivelmente, o maior poeta místico... mas quem pode
esquecer Jami, Nizami e o incomparável Hafiz? E santos místicos gigantes como
Junayd, Bayazid e al-Hallaj, além de tantos outros que não cabem todos os nomes
deles neste mundo, brilham como estrelas no céu negro de Deus.
Contra essa riqueza, tudo o que Seth/Jane consegue apresentar é um preconceito
filisteu da classe média americana, que é simplesmente desinformado: Islã,
fraco em parentesco? E quem, senão os mamelucos egípcios — guerreiros
muçulmanos — salvaram a cristandade em 1260 da destruição pelos tártaros sob
Hulagu Khan? Se não tivesse sido pel a vitória mameluca sob Baybars em Ayn
Jalut, talvez não tivesse restado cristandade alguma para Seth falsificar. A
espada, tanto física quanto intelectual, tem seus usos — sendo o mundo o que é.
Seth/Jane, então, não é apenas contrário ao
Cristianismo, mas a todas as religiões tradicionais, como tantos líderes da
Nova Era que seguiram em seus passos. Na p. 241 de Seth Speaks, ele diz:
“Em uma realidade inconcebivelmente multidimensional, os antigos conceitos de
Deus são relativamente sem sentido.” Dizer isso, porém, é negar que as “coisas
profundas de Deus” sempre foram conhecidas, que elas são de fato primordiais. É
verdade que conceitos de Deus nascem, vivem e morrem com as religiões às quais
são integrais; mas isso não significa que o conhecimento das coisas Divinas
possa avançar, progredir, evoluir ou melhorar. Ele não pode fazê-lo porque seu
objeto é eterno. A única mudança possível está na receptividade ou resistência
a esse conhecimento por parte dos seres humanos; o conhecimento em si é
imutável. Além disso, as diferenças básicas entre vários conceitos de Deus não
são diferenças de moda, mas diferenças de nível.
Sempre haverá uma ideia de um Absoluto Informal, e de um Deus Pessoal, e dos
raios ou sabedorias ou energias pelas quais esse Deus se manifesta. Sempre
haverá uma ideia da transcendência de Deus, bem como de Sua imanência, com a
ênfase tendendo a se deslocar de uma para a outra. O Divino será sempre ao
mesmo tempo iluminado e velado por sua identificação com conceitos abstratos;
será sempre ao mesmo tempo concretamente encontrado e rebaixado ao nível da
magia pela sua identificação com o poder miraculoso. Será sempre visto como ao
mesmo tempo Unitário e múltiplo, e sua Unidade será sempre entendida ou como
abraçando seus aspectos múltiplos como seu Princípio essencial, ou como negando
tal multiplicidade, caindo assim ao nível de uma abstração e abrindo a porta
para a reinterpretação da Unidade como uma sombra fraca e desvanecente
escondida sob o tumulto dessa multiplicidade.
A Unidade Divina estará sempre em perigo de ser interpretada de forma panteísta,
ou de afundar na direção do politeísmo, erros que ambos terminam numa queda no
materialismo. Nenhuma mudança de moda nas imagens de Deus pode alterar os
princípios básicos da metafísica, nem os modos perenes pelos quais esses
princípios são expressos, discutidos e mal compreendidos.
Dada sua oposição profundamente arraigada às
religiões tradicionais, não é surpreendente que a versão de Seth/Jane sobre a
Segunda Vinda de Cristo apresente muitas semelhanças com a imagem tradicional
do Anticristo (ver Capítulo Nove). Segundo Seth, o Cristo da Segunda Vinda será
sobretudo uma encarnação da porção paulina da entidade Cristo:
“Ele não virá para recompensar os justos e enviar
os malfeitores à perdição eterna. Ele irá, contudo, iniciar um novo drama
religioso... Como aconteceu uma vez antes, porém, Ele não será geralmente
conhecido por quem Ele é. Não haverá proclamação gloriosa diante da qual o
mundo inteiro se curvará. Ele retornará para colocar o Cristianismo em ordem,
que estará em frangalhos na época de sua chegada, e para estabelecer um novo
sistema de pensamento quando o mundo estiver em extrema necessidade de um. ...
Até lá, todas as religiões estarão em grave crise.
Ele minará a organização religiosa — não as unirá. Sua mensagem será a do
indivíduo em relação a Tudo Aquilo Que É (All That Is). ... Em 2075,
tudo isso já terá sido realizado.
Você pode notar aqui que Nostradamus viu a dissolução da Igreja Católica Romana
como o fim do mundo. Ele não podia imaginar a civilização sem ela, por isso
muitas de suas previsões posteriores devem ser lidas tendo isso em mente.
A terceira personalidade de Cristo será conhecida como um grande psíquico, pois
será Ele quem ensinará à humanidade o uso daqueles sentidos internos que,
somente eles, tornam possível a verdadeira espiritualidade. Assassinos e
vítimas trocarão de papéis à medida que memórias reencarnacionais vierem à
superfície da consciência. Por meio do desenvolvimento dessas capacidades, a
sacralidade da vida será intimamente reconhecida e apreciada.”
SETH SPEAKS, pp. 389–390
“[A] qualidade militante no homem mudará
completamente de natureza, e será descartada tal como vocês a conhecem, quando
a próxima personalidade de Cristo surgir... No próximo século, a natureza
interior do homem, com esses desenvolvimentos, se libertará de muitas
restrições que a prendiam. Uma nova era começará — não, agora, um céu na terra,
mas um mundo muito mais são e justo...”
SETH SPEAKS, pp. 393–394
“A metamorfose... terá tal força e poder que
convocará da humanidade as mesmas qualidades de dentro dela... Elas finalmente
romperão os véus da percepção física, estendendo essa percepção de novas
maneiras.
Agora, falta à humanidade tal foco. A terceira personalidade representará esse
foco... Essa personalidade... não será orientada em termos de um sexo, uma cor,
uma raça.
Pela primeira vez, portanto, ela romperá os conceitos terrenos de
personalidade. Terá a capacidade de mostrar esses efeitos diversos à medida que
escolher.”
SETH SPEAKS, p. 397
Assim, esse ser “colocará o Cristianismo em ordem”
minando todas as organizações religiosas e destruindo a Igreja Católica,
objetivo declarado de muitas organizações da Nova Era, incluindo — ao menos
historicamente — a Sociedade Teosófica. E dizer “Assassinos e vítimas trocarão
de papéis” só pode significar, neste contexto, que as forças reprimidas pelo
Cristianismo e pelas demais religiões tradicionais se levantarão e tomarão sua
vingança, como de fato já está claramente acontecendo. Como, então, a “natureza
militante do homem” será “descartada”? E se não haverá “proclamação gloriosa”
desse “Cristo”, como então ele se tornará um “foco” para toda a humanidade?
Um ser de nenhum sexo, raça ou cor particular é um
monstro. A erosão das diferenças sexuais — culturalmente, por meio de operações
de mudança de sexo, e possivelmente agora pela engenharia genética, que talvez
também possa alterar características raciais — é o maior e mais desumanizador
mal no mundo hoje. Se esse ser introduz tal alteração caótica e destruição da
forma humana, então ele, ela ou isso é o Anticristo. Os “véus da percepção
física” não são transcendidos pela distorção caótica da forma física, mas pela
realização do Informal (Formless), e depois pela compreensão de como o
Informal se manifesta simbolicamente como formas particulares. Entre as mais
centrais de tais formas simbólicas está o gênero, que é um dos emblemas mais
profundos da realidade e das dinâmicas interiores da Natureza Divina.
Se percebemos a “transparência metafísica dos fenômenos” (na expressão de
Schuon), temos os véus da percepção física transcendidos sem alterá-los, razão
pela qual as formas físicas — especialmente as da natureza e do corpo humano —
podem atuar como símbolos de seu Princípio informe. Se, em vez disso, tentamos
ir além delas através de sua distorção caótica, tornamo-las opacas. Esta é a
contrafação psíquica da transcendência espiritual. Tal distorção da forma pela
qual tentamos nos libertar das condições espaço-temporais da existência física,
da matéria considerada apenas como véu sobre realidades superiores, em vez de
também como manifestação delas, baseia-se num modo de engano demoníaco que é
muito comum nestes últimos dias; pode de fato ser a tentação satânica central
dos tempos apocalípticos (ver Capítulo Sete). Se nada na humanidade terrena é
sagrado para esse ser, essa “terceira personalidade” tão esperada, então ele já
está entre os perdedores.
Em The Further Education of Oversoul Seven
(Prentice-Hall, 1974), um de seus livros de ficção baseados nos ensinamentos de
Seth, Jane Roberts dá rédea solta ao seu desprezo pelas religiões tradicionais.
No Capítulo Dezessete, intitulado “Ram-Ram the Godologist and Case History
9871: J. Christ”, encontramos o seguinte:
“Cristo jazia sobre um sofá dourado, coberto com
mantos de veludo real, os olhos fechados, seus longos cachos
marrom-acinzentados em desordem em torno do rosto, as mãos cruzadas sobre o
peito e uma colcha puxada até onde sua camisola hospitalar terminava. Ele
parecia estar dormindo ou sonhando... Seven pulou para trás quando um Lúcifer
gigantesco apareceu na projeção do céu...
‘O bicho-papão original’, disse Ram-Ram, com grande satisfação. ‘Bastante
eficaz, não acha? Pode-se dizer que Lúcifer era a sombra de Cristo, e
representava todas as porções de sua personalidade que ele teve de negar: o
amor ao poder, a sede de conhecimento e a pura vitalidade automática, ou os
aspectos masculinos em terminologia terrena. A gentileza de Cristo, sua
compreensão e assim por diante enfatizaram o feminino — “Os mansos herdarão a
terra” e tudo isso...’”
(O texto, naturalmente, ignora Cristo e os
cambistas, bem como sua denúncia dos fariseus hipócritas como “sepulcros
caiados”).
“Seven recuou cada vez mais enquanto o Lúcifer
gigantesco se transformava em um Jeová aos gritos, ameaçando os israelitas e
exigindo sacrifícios... entregando as tábuas com os Dez Mandamentos a Moisés.
Mas até Moisés parecia insano, pensou Seven, infeliz... havia fogo, enxofre,
fumaça; prédios desabando, tendas esmagadas, cavalos e pessoas emitindo sons
agonizantes, um burro com a cabeça recém-cortada por destroços voadores...
‘Você pensaria que Lúcifer fez tudo isso’, disse Ram-Ram. ‘Mas foi Jeová.
Entende? Com memórias pré-natais assim, e um pai que exterminava populações
inteiras se o irritavam — bem, até um filho divino estaria fadado a ter
problemas. Some a isso o fato de que Cristo teve uma mãe humana, não divina.
Jeová não tinha uma esposa divina; era irritadiço demais. Nenhuma deusa o
suportaria. Então, de certo modo, Cristo era meio órfão, divinamente falando.
Ele era o filho de um pai que era basicamente impotente — daí o anjo ter
aparecido a Maria — um pai que descarregava suas frustrações na terra’, e,
acrescentou Ram-Ram triunfantemente, ‘em seu filho.’ Por que mais ele o enviou
para ser crucificado?...”
(Para uma resposta a isso, ver a seção sobre Um
Curso em Milagres, abaixo.)
“A relação entre os doze homens também era
interessante. Especialmente a de Cristo com João — a ternura que deveria ter
ido para as mulheres...” Ram-Ram ergueu significativamente suas espessas
sobrancelhas brancas...
“Mas, basicamente, Jeová e Lúcifer são ambos projeções da mente de Cristo”,
disse Ram-Ram.
Jane Roberts se revela, em passagens como esta, uma
espécie de Salman Rushdie para o Cristianismo, um dentre muitos em excesso nos
últimos cento e cinquenta anos, incluindo Nietzsche, George Bernard Shaw e os
roteiristas e produtores de Jesus Christ Superstar. Se ela estivesse
viva hoje, eu não clamaria por sua morte. Eu simplesmente lhe apontaria sua
infantilidade destrutiva e lhe diria para crescer. (Eu diria o mesmo — eu digo
o mesmo — ao sr. Rushdie.)
No Capítulo Dezoito, “Seven’s Disquieting Interview
with Christ, a Multidimensional Happening Turns into an Insane Vision, and
Jeffy-boy Becomes a Character in a Book” [A perturbadora entrevista de Seven
com Cristo, um acontecimento multidimensional se torna uma visão insana, e
Jeffy-boy se torna um personagem de um livro], a Sra. Roberts apresenta Cristo
e Zeus como deuses envelhecidos e esgotados vivendo juntos em um asilo de outro
mundo:
“Agora o poder de Cristo parecia estar diminuindo a
um ponto em que Seven quase se sentia envergonhado por ele. Cristo estava
beliscando o carneiro, por exemplo: comendo sem faca ou garfo — ele e Zeus
ambos tomando bocadas muito grandes, com Cristo tendo dificuldade com as partes
mais duras... Zeus colocou o pedaço de carne de volta sobre a mesinha de centro
e disse pensativo: ‘Sabe, Cristo, você podia ter dito aquela citação “Dai a
César” e esquecido. Em uma vida, uma pessoa, até um deus, pronuncia tantas
palavras...’ Os olhos de Cristo brilharam perigosamente. Ele cuspiu um pedaço
de carne no guardanapo e disse, muito enfaticamente e deliberadamente: ‘Eu não
disse aquelas palavras. E também não amaldiçoei a pobre figueira. Ser mal
citado é uma das piores coisas que podem acontecer à mensagem de um deus...’”
Ela prossegue:
“Zeus e Cristo, todos os internos da instituição e
todos os deuses no asilo se fundiram em um superdeus selvagem e incoerente, mas
tão antigo, tão grandemente senil, tão docemente insano que até as gramíneas
tremiam ao mero pensamento de sua aproximação... Seven estava apavorado... viu
pombos assustados voarem para esconderijos. Sentiu o hálito do deus sacudir o
mundo em pedaços em outonos sem fim; folhas cometendo suicídio exultante... A
insanidade do deus sussurrava tortuosamente pelos cromossomos dos homens,
manchando-os com falhas sem número. O deus senil bradava sua verdade incoerente
às multidões, que por sua vez matavam seus vizinhos e cavalgavam em triunfo
amargo por guerras selvagens sem fim. Maomé louco brandia sua espada eterna;
Jeová, em ataques de tremores sagrados, enviava suas pragas e dilúvios; Júpiter
e Thor arremessavam seus raios enquanto Buda contemplava seu divino umbigo...
Seven gritou: ‘Parem!’”
Por fim, no Capítulo Dezenove, tendo tratado de
Jeová, Cristo e Maomé, ela volta sua atenção para a Virgem Maria. Sua “Maria”
diz:
“Nunca consegui me dispor a discutir... coisas da
carne com meu filho... Eu lhe disse, meu filho, que ele viera de Deus... sem a
agência do homem. Foi apenas o engano inocente de uma mãe... Meu filho
acreditou em mim’, Maria clamou em voz angustiada. ‘Ele se tornou
verdadeiramente iludido... Foi tão ruim que Jesus finalmente tentou suicídio.
Tiraram todas as facas e garfos e todos os talheres dele no asilo...’”
Depois, por último mas não menos importante, o
Buda:
“Will prostrou-se no chão e disse: ‘Aqui estou,
Mestre. Não tenho mais ego. Terminei com o desejo... por favor, considere-me
seu servo... Estou acabado com vontades e luxúrias.’ O Buda levantou suas belas
sobrancelhas gelatinosas e disse a Oversoul Seven: ‘Do que ele está falando?’
‘Com licença’, interrompeu Lydia hesitante. ‘O senhor é um deus indiano? Se
for, tenho algumas perguntas.’ ‘Sou, se isso agrada sua fantasia’, disse o
Buda. ‘Agora, o que aquele pobre sujeito está dizendo?’... ‘Om, om, om’, Will
entoava, e Buda estalou: ‘Quer calar a boca?’ tão alto que Will saltou em pé.
‘E o que é toda essa tolice de abandonar o desejo?’, exigiu Buda.”
Neste ponto, o
leitor provavelmente está se perguntando por que estou perdendo tempo repetindo
esse tipo de material. Há três razões. Primeiro, porque os ensinamentos de Seth
foram imensamente influentes. Segundo, porque essas passagens fornecem um
exemplo cegantemente claro do preconceito Nova Era extremamente comum dirigido
não apenas contra o Cristianismo, mas cada vez mais agora contra todas as
religiões do mundo. E terceiro, elas demonstram uma verdade sobre a cultura
americana contemporânea: acreditamos que tudo o que possa ser satirizado deve
ser satirizado, em nome da liberdade da personalidade; que ninguém, exceto um
estraga-prazeres pomposo, poderia criticar alguém por rir de algo que é sagrado
para milhões; que o riso é inerentemente libertador; que é incapaz de ser
destrutivo. Somos viciados em uma leviandade cruel, desintegradora e infantil,
mesmo que nossas piadas não sejam mais engraçadas, mesmo que a piada agora seja
conosco.
Como Salman Rushdie, somos possuídos pelo arquétipo do trickster destrutivo,
bem personificado pelo deus Loki, titã do caos, destinado na mitologia nórdica
a trazer o fim do mundo, o Crepúsculo dos Deuses. E assim como Loki foi o
nêmesis D O herói solar nórdico Baldur, assim como o deus egípcio Seth, ou a
Serpente Apófis, era o nêmesis do Sol. Segundo Ananda Coomaraswamy, “não pode
haver dúvida de que, para os egípcios, o conflito do Sol com Apófis-Seth era um
conflito de luz contra trevas, do bem contra o mal” (The Door in the Sky,
Coomaraswamy on Myth and Meaning, ed. Rama Coomaraswamy, p. 111). Poderia
esse Seth-Apófis, talvez, ser o mesmo Seth que falou através de Jane Roberts?
É precisamente um crepúsculo ou senilidade dos
deuses que a Sra. Roberts descreve em The Further Education of Oversoul
Seven. Ela não faz isso necessariamente por maldade consciente; em outros
livros, Seth atribui posição muito elevada a Cristo e ao Buda. Como tantos
boêmios americanos, ela simplesmente identifica o sentido tradicional do
sagrado com pomposidade, e uma deflação tipo trickster desse sentido com
libertação individual.
(Para me permitir uma digressão: a atitude de Jane
Roberts aqui se assemelha à daquele tipo de budistas americanos contemporâneos
que conseguem zombar de sua própria tradição, completamente sem vergonha.
Afinal, que mal pode vir do riso? Se nada é sagrado, nada pode ser profanado. E
não dizem os zen-budistas: “Se você vir o Buda, mate-o”? Esses neobudistas
esquecem que tal frase foi proferida sobre o pano de fundo de uma seriedade
profunda e corajosa em matéria religiosa — um desejo desesperado e total de
libertação da Roda da Existência, que levou até um buscador a decepação do
próprio braço apenas para obter a atenção de seu Mestre. A atitude deles se
aproxima mais de “é melhor você matar o Buda agora, ou algum dia pode ser que
você o veja.” E, para esse assassinato da santa seriedade, para essa destruição
de todo senso do sagrado, que arma melhor e mais irrepreensível poderia existir
que o riso? Não quero dizer que um desejo desesperado e total de libertação
seja sempre propício ao esclarecimento, mas apenas que uma atitude leviana jamais
o é. O riso saudável, certamente, pode ajudar a dissolver apegos egóicos, mas a
leviandade egocêntrica não é senão um modo de evitar o compromisso adulto, a
profundidade de alma e a lealdade à verdade.)
Para ser justo com a Sra. Roberts, devo acrescentar
que ela não pretende essas passagens como um ataque “sério” às religiões do
mundo, mas sim como sátira à forma pela qual nossas imagens do divino se
degeneraram. Mas, como muitas sátiras, elas próprias são um exemplo perfeito
das atitudes que tentam esvaziar.
“Antes que você diga qualquer coisa [diz o
personagem Oversoul Seven mais adiante no Capítulo Dezenove], estou
terrivelmente desapontado. Eu achava que os deuses teriam mais juízo...” “Eu
tomei como certo [diz o personagem Cyprus] que você estivesse percebendo as
versões de Lydia e Will dos deuses... Os deuses, tal como entendidos pelos
mortais, são sempre personificações convencionais. São como estátuas
psicológicas religiosas... Superestrelas animadas; talvez essa expressão seja a
melhor de todas.” “Mas a realidade dos deuses é outra coisa inteiramente”,
exclamou Seven. “Como foi que se produziu um mal-entendido desses? E se existem
deuses reais por trás dos deuses que encontrei, então como encontrá-los? Se
eles estão sempre camuflados pelas crenças que as pessoas têm sobre eles, como
alguém pode encontrá-los?”
Eis uma boa pergunta. Se não há verdade objetiva
por trás de nossas criações subjetivas, se não existe taça de vinho realmente
real no aposento, apenas três taças fantasmáticas em três mundos separados,
então com certeza não há Deus objetivamente real por trás de nossas imagens
d’Ele. Nem a sátira destrutiva dirigida contra imagens do sagrado ajuda, em
qualquer medida, essas realidades-camuflagem a tornarem-se mais transparentes à
Realidade que foram concebidas para representar — muito pelo contrário. Porque
a jangada não é ela mesma a Outra Margem, Jane Roberts (como tantas pessoas
hoje em dia) sente-se justificada em queimar a jangada.
Deus, em Sua Misericórdia intrínseca, simplesmente
por ser a Essência de todas as coisas, estende-Se a Si mesmo dentro de nossas
concepções d’Ele; isto, porém, é algo de que a Sra. Roberts está muito longe de
se mostrar segura. Se ela realmente soubesse, como Oversoul Seven afirma, que
“Tudo Aquilo Que É (All That Is) está escondido em nós, e em tudo o mais
também”, sua imaginação não teria produzido imagens de Deus tão vigorosamente
degeneradas, tão opacas à realidade de Deus, sem compensá-las com imagens de
Majestade e Beleza transparentes a essa Realidade. Ainda aqui, como alhures, a
Justiça Divina é ao mesmo tempo intrínseca e imediata: satirize Cristo, Maomé,
Jeová, Buda e a Virgem Maria, e tudo o que lhe restará será Seth. Onde quer que
a alma de Jane Roberts esteja agora, desejo-lhe boa viagem, nas asas dessa
concepção, rumo a qualquer meta última em direção à qual ele possa estar se
dirigindo.
II. O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda
Os muitos livros de Carlos Castaneda introduziram,
quase sozinhos, a feitiçaria no próprio mainstream da sociedade americana.
Foram elogiados e comentados por antropólogos, psicólogos e expoentes do
“potencial humano”. Influenciaram a arte, o entretenimento e outras áreas da
cultura. Alteraram profundamente a maneira como os brancos veem os nativos
americanos. Permaneceram como uma nota constante e grave na caótica sinfonia
das “espiritualidades alternativas” por mais de trinta anos.
Richard De Mille, filho do famoso produtor de
cinema Cecil B. De Mille, escreveu um livro em 1976 intitulado Castaneda’s
Journey, em parte desmistificando os livros de Don Juan. Ele repete a
opinião do psiquiatra Dr. Arnold Mandell de que o “informante” Don Juan Matus
representa uma travessura de coiote pregada por Castaneda em Dr. Harold
Garfinkle, seu orientador de doutorado na UCLA. Como Garfinkle, sendo um bom
pós-modernista, sustentava que todos os dados antropológicos são fabricados por
antropólogos, Castaneda simplesmente fabricou Don Juan para ultrapassar
Garfinkle em sua própria tese. De Mille rastreia muitos dos supostos
ensinamentos do feiticeiro yaqui e de seus colegas, bem como os dramáticos
acontecimentos mágicos relatados nos livros de Castaneda, até influências
ocultistas e literárias específicas que nada têm a ver com a cultura nativa
americana. (Eu mesmo identifiquei uma delas: o “guardião” que aparece em A
Separate Reality, um monstro babando, voador, com trinta metros de altura,
porteiro de outra dimensão, que acaba se revelando um minúsculo mosquito, vem
diretamente do conto “The Sphinx”, de Edgar Allan Poe.) Mas, embora se possa
mostrar com bastante clareza que os livros de Castaneda são ao menos
parcialmente ficcionais — nos últimos ele próprio chega perto de abandonar a
máscara de “reportagem” — isso apenas invalida Castaneda como antropólogo; não
o invalida como feiticeiro.
Carlos Castaneda é, em minha opinião, praticante de
alguma forma de feitiçaria nativo-americana, talvez eclética, talvez de origem
tolteca como ele afirma em certo ponto, talvez não mexicana: um “neo-xamã” que
conheci sustentava que “Don Juan” e seu irmão feiticeiro “Don Genaro” eram na
verdade índios navajos; chegou até a nos revelar seus nomes. Sei que Castaneda
não é um charlatão perfeito no que diz respeito à feitiçaria porque, seguindo
algumas de suas técnicas — e nem sempre com o auxílio de drogas psicodélicas —
cheguei à soleira do mundo que ele propõe e aprendi, nesse processo, que a
magia é muito triste.
Os livros de Castaneda são muitas vezes escritos em
estilo marcante e vigoroso, que, contudo, pode tornar-se cansativo depois que o
fascínio inicial se dissipa. Suas descrições de estados de “realidade
não-ordinária” são precisas, vívidas, coloridas e às vezes deliberadamente
paradoxais e desconcertantes. Ele é hábil em construí-las para que apelam a
muitos sentidos de uma vez, inclusive o visceral, do qual é um poeta raro e
sutil. Na figura de “Carlos, o Aventureiro”, que é criação literária tanto
quanto seu Don Juan, encontram-se as qualidades do aprendiz de feiticeiro
confuso e aterrorizado, do acadêmico pedante manietado por seu excesso de intelectualismo,
do pesquisador dedicado relatando estados de “realidade não-ordinária”, do
trickster travesso — embora outros personagens em seus livros assumam mais
frequentemente esse papel, proporcionando um eficiente disfarce para o autor —
e do “homem de carne e osso” que enfrenta estoicamente um mundo fascinante,
hostil e imprevisível, armado unicamente de seu machismo, de sua “honra como
homem”. Seus livros são, sem dúvida, poéticos, razão pela qual — exceto em
alguns pontos em que ele invade o terreno da religião e por isso precisa ser
refutado dentro do contexto daquele universo de discurso — minha resposta a ele
também será poética; mais poética, ao menos, que as outras seções deste
capítulo.
Seja real, mito ou outra coisa totalmente diversa,
o Nagual Juan Matus é a imagem de um homem deixado sozinho com suas vitórias.
De seu poleiro à beira do mundo humano, ele contempla a vida dos homens e nada
vê senão a passagem de fantasmas.
Juan é um homem que sobreviveu à destruição total
de sua cultura — aquilo que, na terminologia da feitiçaria, ele chama de
destruição do tonal de seu povo — primeiro pela Conquista, depois pelas Guerras
Yaquis. Sobreviveu aprendendo a viver no mundo do Poder, o mundo do nagual, que
é o mundo em que todo feiticeiro entra no exercício de seu ofício, tenha ou não
uma tribo para onde voltar.
Juan não tem tribo para onde voltar. A única tribo
que aparece em seus livros, fora o próprio colégio de feiticeiros, é composta
de oito índios bêbados de tequila numa cabana. E a única relação de Juan com
eles é a do ladrão de almas, que, se puder, roubará aqui e ali uma alma,
arrancando-a de sua vida mesquinha e sórdida, e mergulhando com ela no mundo do
Poder. Juan Matus é, assim, a imagem do indivíduo atômico, tornado estranho
pela morte de uma cultura, à espera talvez do nascimento de outra, e enquanto
isso vivendo como viajante espacial anônimo nos desertos do norte do México. E
a relevância de Juan reside nisto: cada cultura neste planeta, da mais
primitiva à mais industrialmente desenvolvida, está agora perdendo sua razão de
ser; todo tonal está sendo despedaçado.
Mas, como Juan diz, quando o tonal morre, o homem
morre. Então como Juan sobrevive? Ele sobrevive pelo tonal do feiticeiro, o
“consenso especial”, para cuja validação precisa de pelo menos mais um — no
caso de Juan, Genaro. “O mundo só é real quando estou com este aqui”, diz Juan.
Então nem mesmo Don Juan Matus é autossuficiente. Até o Nagual Juan Matus, para
sobreviver, precisa de Homem: isto é, precisa de Amor.
Vitória sobre o medo, sobre a clareza, sobre o
poder, sobre a velhice (os Quatro Inimigos de um Homem de Conhecimento, de The
Teachings of Don Juan) não são o bastante.
Além disso, Juan precisa de Carlos. A velhice se
aproxima; Genaro também é velho. Quando Genaro morre, o mundo já não é real.
Juan, apesar de todas as suas vitórias, caminha então no mundo dos fantasmas,
que são os mortos. Assim o velho homem convoca seu último aliado: o jovem que o
ajudará a continuar validando seu mundo, que o auxiliará em sua batalha contra
o último inimigo de um homem de conhecimento.
Juan Matus é o retrato de um homem deixado sozinho
com suas vitórias, isto é, um homem que fracassou: ver os outros homens como
fantasmas é ser um fantasma. Seu fracasso, contudo, não é inteiramente seu. É o
fracasso de uma cultura; é o fracasso da teia de relações humanas que constitui
a verdade da vida humana; é o fracasso do amor.
Os livros de Carlos Castaneda são, de certo modo,
um tipo de mito chicano. O coiote com quem Carlos fala em Journey to Ixtlan
é um coiote chicano, como aqueles atravessadores do desespero humano que vivem
na região de fronteira entre os Estados Unidos e o México. O próprio livro é
uma de suas muitas artimanhas. Pode ser que Coiote tenha hoje pelo menos tanto
lugar entre chicanos, refugiados e trabalhadores migrantes quanto entre nativos
americanos, já que seus traços de humor, crueldade e disfarce são
particularmente úteis a uma população que precisa levar vidas duplas.
O folclore retrata Castaneda sentado num café em
Los Angeles dizendo a um de seus amigos: “Na verdade, estou no México agora.”
Nesse caso, Carlos, que nasceu em vários países da América do Sul, fala como
deslocado. Ele está sentado calmamente num café e está em trânsito veloz, como
todos nós no mundo pós-moderno. Ele tem dez máscaras, ou cinquenta, o bastante
para levá-lo até o pôr-do-sol.
Uma das principais conquistas do feiticeiro é a
capacidade de criar um “duplo”, por meio do “sonhar”. O que quer que seja isso
no plano sutil (histórias aparentemente válidas de bilocação foram contadas
sobre santos), em certo sentido esse duplo é um mito do imigrante ilegal ou do
revolucionário terrorista clandestino: que modo melhor de confundir o FBI ou o
Serviço de Imigração e Naturalização do que estar em dois lugares ao mesmo tempo?
E o riso! O riso é a habilidade de salto do peixe
no rio das ambiguidades; impede que a identidade se solidifique e assim se
torne alvo, tanto para o ódio quanto para o amor.
“Você deve apagar sua história pessoal, deve criar
uma névoa em torno de suas ações”, diz Juan a Carlos; bom conselho para quem
precisa manter sua identidade inacessível à polícia. “Sim! Você é um feixe”,
diz Juan, depois que ele e Genaro acabam de reduzir Carlos a estilhaços. Um
feixe: isto é, uma múltipla personificação, por um ser alienígena, da cultura,
da solidariedade humana, de cada amor separado que perdeu. “E eles me pareciam
fantasmas.”
O centro operativo do mundo da feitiçaria é o
Poder. O feiticeiro empunha o Poder, e no entanto é escravo dele. Os encontros
com ele, concebidos como lutas ou batalhas, permitem-lhe armazenar Poder em seu
corpo — ou então o matam. Uma vez tendo acumulado Poder suficiente, ele pode
usá-lo para romper e entrar no mundo do nagual. O que acontece depois disso é
mera hipótese, já que só o próprio Poder pode dizer que uso deve ser feito do
Poder. Se o temperamento do feiticeiro é bondoso, será um feiticeiro bondoso;
se cruel, será cruel. Não se faz qualquer tentativa de moldar o caráter; se o
feiticeiro acaba bondoso ou cruel é considerado irrelevante. A chave de acesso
e controle do Poder é a Vontade, definida como um ou mais cordões de energia
que brotam do plexo solar, ou de um ponto abaixo do umbigo.
Dizer que só o Poder pode lhe dizer para que o
Poder deve ser usado soa um pouco como o princípio de que níveis mais elevados
de realidade possuem significado intrínseco, razão pela qual não podem ser
utilizados para empoderar agendas de nível inferior. Contudo, o Poder, pura
agência, jamais pode ser o dono do sentido, mas só pode existir como servo ou
expressão dele — ou então é expressão de ausência de sentido, servo de
dissipação e caos, instrumento do mal. Dizer que o Poder pode conferir sentido
a si mesmo é uma contrafação satânica da submissão à Vontade de Deus: Deus não
é apenas Poder, mas também Bondade e Verdade.
O mundo em
geral se tornou muito mais parecido com o mundo de Castaneda desde que ele
começou a publicar, em 1968. Com o colapso, por toda parte, do consenso quanto
ao significado da vida humana — devido à tecnologia desencadeada e ao choque de
culturas em uma era de pluralismo globalista — existe grande impulso a confiar
apenas na vontade própria, a simplesmente tomar o poder — pessoal, cultural ou
político — e deixá-lo dizer-nos o que fazer de nossas vidas, já que nada mais
parece capaz de preencher essa função de modo convincente. Mas tudo o que o
poder pode nos dizer é: “obtenha mais poder”. Sem valores estabelecidos,
baseados em moralidade estável, que por sua vez se enraíza em princípios
metafísicos eternos, o poder é desprovido de sentido. É puramente niilista.
Certamente termos como Vontade e Poder possuem seus significados especializados
no contexto da feitiçaria de Castaneda; ainda assim, tanto seus usos seculares
quanto os mágicos apontam para uma perda comum: a perda de nossa capacidade de
conceber a Realidade Absoluta como Bem. De Nietzsche a Castaneda, o ethos
pós-moderno considera tal identificação, comum a todas as religiões
tradicionais bem como o platonismo, como algo constrangedoramente sentimental e
obviamente não verdadeiro, já que a “vida real” é dura e impiedosa. Mas a vida
era igualmente dura nos tempos de Maomé, de Jesus, de Sócrates e de Lao Tsé;
por que eles não chegaram a conclusão semelhante? Simplesmente porque estavam
em um nível mais elevado do que tanto o secularismo cínico quanto a magia
cínica: eles conheciam a Deus.
Mas, embora apenas o Poder possa definir os usos do
Poder, torna-se progressivamente mais claro, de livro em livro, que o objetivo
real da feitiçaria de Carlos Castaneda é simplesmente evitar a morte física.
Sua meta última, ao que parece, é poder caminhar vivo para o outro mundo:
imitar, via magia — dom de alguns poucos santos raros, como o budista Milarepa,
e de profetas como Enoque e Elias, sem falar em Jesus Cristo, que não deixaram
corpo algum para trás quando “morreram”.
Ainda assim, dadas as peripécias nada santas de
Castaneda e seus colegas, o verdadeiro objetivo pareceria ser transferir a
consciência para o sutil “duplo etérico” no momento da morte — tornar-se um
fantasma vivo, um espectro consciente, habitando uma dimensão não menos
apinhada de fantasmas do que as ruas e casas deste mundo.
Alguns antropólogos dividem magos ou xamãs em
quatro categorias: o Curador, o Feiticeiro, o Mago e a Bruxa. O Curador é o
bem-conhecido xamã tribal que representa a perícia médica e psicoterapêutica de
seu povo, que pode localizar e atrair caça, prever ou controlar o clima,
realizar investigações criminais, conduzir a inteligência militar, equilibrar a
psique da tribo e, em geral, proteger seu povo de perigos psíquicos e às vezes
físicos.
O Feiticeiro é aquele que busca poder pessoal por
razões pessoais. Ele não se interessa em ajudar nem em dominar outras pessoas,
sendo o solitário por excelência, o aventureiro psíquico autodirigido.
O Mago usa seu poder para dominar os outros. É o
tirano espiritual, o arquiteto e agente de uma agenda consciente que ele se
esforça por impor à comunidade. A figura de Clingschor, no romance Parzival,
era um Mago, não um Feiticeiro.
A Bruxa, apesar de todo o seu aparente poder, é o
peão possuído e indefeso do caos, aquele que espalha veneno e mal sem motivo
consciente algum além da pura perversidade.
Segundo esse esquema, Carlos seria, como ele mesmo
diz, um Feiticeiro. Ora, a feitiçaria é proibida por todas as grandes religiões
porque é definida como magia negra, ou comércio com demônios. Podem tais coisas
ser atribuídas a Castaneda? Certamente sua feitiçaria está repleta de muitos
elementos geralmente associados às artes negras: adivinhação, espíritos
familiares, ataques psíquicos devastadores e contra-ataques (embora, ao que
parece, com a finalidade de ensinar e aprender), animais fantasmais grotescos e
figuras humanoides horripilantes que brilham no escuro... mas, deixando isso de
lado, não seria o pequeno Carlos simplesmente um aventureiro inocente, sem
vontade de fazer mal, apenas desejoso de explorar, de alargar a área da própria
consciência? Ouça:
“‘O que exatamente você quer que eu faça?’,
perguntei num tom firme e intimidador. ‘Já te disse!’, gritou ela. ‘Você e eu
somos iguais.’ Pedi que ela explicasse o que queria dizer... Ela se levantou
abruptamente e deixou a saia cair no chão. ‘É isso que eu quero dizer!’,
gritou, acariciando sua região púbica... Fiquei atônito. Doña Soledad, a velha
índia, mãe de meu amigo Pablito, estava de fato meio nua, a poucos passos de
mim, mostrando-me seus genitais... seu corpo não era o de uma velha. Tinha
coxas belamente musculosas, escuras e sem pelos... ‘Você sabe o que fazer’,
disse, apontando para o púbis. ‘Nós somos um aqui.’ Ela descobriu os seios
robustos. ‘Doña Soledad, eu imploro!’, exclamei. ‘O que deu em você? Você é a
mãe do Pablito.’ ‘Não, não sou!’, retrucou. ‘Não sou mãe de ninguém.’” (The
Second Ring of Power, p. 21).
“Seus dentes estavam cerrados. Seus olhos fixos nos
meus. Pareciam duros e maus. De repente, ela avançou em minha direção. Bateu
com o pé direito no chão, como um esgrimista, e estendeu as mãos em garra para
me agarrar pela cintura, soltando o grito mais arrepiante... Corri para o
carro, mas, com agilidade inconcebível, ela rolou até meus pés e me fez
tropeçar nela. Caí de bruços e ela me agarrou pelo pé esquerdo. Encolhi a perna
direita e teria dado um pontapé em seu rosto com a sola do sapato se ela não
tivesse me largado e rolado. Senti uma dor aguda na panturrilha direita. Ela
havia me agarrado pela perna... tinha prensado ambas as minhas pernas contra o
capô. Puxou-me para si e caí sobre ela... Mal conseguia me mexer sob a pressão
gigantesca de seu corpo... De repente ouvi um rosnado e o enorme cão pulou sobre
as costas dela e a afastou de mim... Eu podia ouvir o rosnado furioso do cão e
os gritos desumanos da mulher. Então, de repente, os latidos e rosnados do cão
se transformaram em ganidos e uivos, como se estivesse ferido ou como se algo o
estivesse assustando. Senti um solavanco no fundo do estômago. Meus ouvidos
começaram a zumbir” (ibid., p. 25).
“‘O Nagual não é humano’, ela disse. ‘O que a faz
dizer isso?’ ‘O Nagual é um demônio de sabe-se lá que tempo.’ Suas palavras me
gelaram. Senti meu coração disparar. Certamente ela não poderia ter encontrado
plateia melhor... Supliquei que explicasse o que queria dizer com isso. ‘O
toque dele mudou as pessoas’, disse ela. ‘Ele entrou no seu corpo velho. Ele
colocou algo dentro dele. Fez o mesmo comigo. Deixou algo em mim e algo tomou
conta. Só um demônio pode fazer isso. Agora eu sou o vento norte e não temo
nada nem ninguém. Antes de ele me mudar, eu era uma velha fraca e feia que
desmaiaria só de ouvir mencionar o nome dele’” (ibid., p. 37).
Carlos talvez ainda seja, no fundo, inocente, mas
certamente anda em má companhia. Teme-se que as pessoas com quem se relacionou
não tenham tido o melhor efeito sobre seu caráter.
Se Castaneda não tivesse invadido o terreno do
Absoluto, mas se limitasse a falar sobre como adquirir poderes psíquicos, eu
provavelmente o teria deixado em paz. Mas ele não resistiu a colocar certas
concepções derivadas da feitiçaria, sejam tradicionais, sejam independentes, no
lugar da compreensão tradicional e ortodoxa da natureza de Deus. E Deus
certamente está por trás dessas concepções — o que não quer dizer muito, já que
toda concepção de qualquer coisa, por mais limitada ou distorcida, é em última
análise uma ideia d’Ele. A questão é: essas concepções se abrem para a
plenitude de Sua Realidade, ou nos fixam numa visão limitada dela que, na
medida em que se ergue como resistência a essa plenitude, deve suportar os
golpes daquela Realidade?
Eis o “Deus” que Castaneda nos apresenta em The
Second Ring of Power:
“Don Juan... explicou que... o molde do homem era
definitivamente uma entidade... Descreveu o molde como sendo a fonte, a origem
do homem, já que, sem o molde para agrupar a força da vida, não haveria maneira
de essa força se reunir na forma humana. [La Gorda disse:] ‘O molde humano
brilha e sempre é encontrado em poços de água e ravinas estreitas... Ele se
alimenta de água. Sem água não há molde... O Nagual disse que, às vezes, se
temos poder pessoal suficiente, podemos chegar a entrever o molde, mesmo sem
sermos feiticeiros; quando isso acontece, dizemos que vimos Deus. Ele disse
que, se o chamarmos de Deus, é a verdade. O molde é Deus.’” (pp. 154–155).
Talvez isso seja uma imagem do arquétipo do Homem in
divinis, tal como visto por certas escolas de feiticeiros nativo-americanos
— mas duvido, já que o trocadilho com mold como molde e também como mofo
— “sem água não há mofo” — é torcido e demoníaco.
Em The Eagle’s Gift, pp. 176–177, Deus é
apresentado como a Águia:
“O poder que governa o destino de todos os seres
vivos é chamado de Águia... A Águia devora a consciência de todas as criaturas
que, vivas na terra um instante antes e agora mortas, flutuaram até o bico da
Águia, como um enxame incessante de vagalumes, para encontrar seu dono, sua
razão de terem tido vida... a consciência é o alimento da Águia. A Águia, o
poder que governa os destinos de todos os seres vivos, reflete de modo igual e
simultâneo todas essas criaturas vivas. Não há, portanto, modo algum de o homem
rezar para a Águia, de pedir favores, de esperar graça. A parte humana da Águia
é insignificante demais para mover o Todo. A Águia, embora não seja movida
pelas circunstâncias de ser vivo algum, concedeu um dom a cada uma dessas
criaturas. A seu modo e direito, qualquer uma delas, se assim o desejar, tem o
poder de manter a chama da consciência, o poder de desobedecer à convocação
para morrer e ser consumida... de buscar uma abertura para a liberdade e
atravessá-la... A Águia concedeu esse dom a fim de perpetuar a consciência.”
É sempre interessante ouvir as ideias que as pessoas
têm sobre o que a Realidade Absoluta e Infinita é incapaz de fazer. Segundo
Frithjof Schuon (ele próprio uma Águia, segundo seus amigos e mestres
nativo-americanos), Deus, na medida em que “governa os destinos de todos os
seres vivos” — o Deus Pessoal, ou Ser puro — possui todo poder sobre o universo
que é Seu reflexo, exceto o poder de alterar a natureza essencial desse
universo como imagem expansiva e, por isso, progressivamente atenuada d’Ele.
Ele pode abolir qualquer mal particular, por exemplo, mas não o mal enquanto
tal, já que o que chamamos de mal é precisamente consequência dessa atenuação,
aspecto inseparável da manifestação cósmica na medida em que esta ao mesmo
tempo revela e vela seu Princípio. Castaneda, porém, nega a Deus, como Águia, o
poder de conceder ajuda. Ele “governa o destino de todos os seres vivos”, e
ainda assim teria menos poder concreto para nos ajudar do que um policial na
ronda ou um operador de informações telefônicas. Belo governador.
A razão que Castaneda dá para essa deplorável
incapacidade é que Ele “reflete de modo igual e simultâneo todos... os seres
vivos” e que, consequentemente, “a parte humana da Águia é insignificante
demais para mover o Todo”. Mas quem disse que é preciso mover o Todo? O Sol
inteiro precisa entrar pela minha janela para que eu receba um raio seu? Deus
precisa perturbar toda a ordem cósmica só para cuidar do meu pequeno problema?
Apenas se essa ordem não for senão uma máquina composta de leis fixas — ao
invés de o Ato dinâmico e eterno de um Criador Divino, que é o que ela
realmente é.
A Águia de Castaneda acaba se revelando bastante
deísta aqui. E sim, de certo modo, a consciência das criaturas é alimento de
Deus, assim como o Ser de Deus é alimento das criaturas. Ainda assim, Deus pode
viver sem Suas criaturas, embora não como “governador de todos os destinos”.
Nem Deus “devora nossa consciência” apenas no momento da morte; Ele enxerga
através de nossos olhos agora mesmo, em cada instante de nossas vidas
simultaneamente, porque Ele está na Eternidade. Nós podemos esperá-Lo; Ele não
precisa esperar por nós.
O dom da Águia, segundo Castaneda, é a chance de
desobedecê-La, de escapar de suas garras. Isto, evidentemente, é uma distorção
satânica da doutrina do livre-arbítrio, como se o uso correto da vontade
humana, o único caminho para a liberdade, fosse a desobediência ao Princípio da
Vida. Tal como entre os gnósticos, esse governador de destinos é uma espécie de
Demiurgo, um Arconte que se deve contornar ou transcender, embora Ele seja mais
generoso que seu equivalente gnóstico, já que foi Ele próprio quem nos deu os
meios para isso.
Tudo isso é absurdo. Um nível de ser não é
transcendido por um voo rápido através de um buraco nele antes que ele nos
agarre, mas sim tornando-se esse nível. A consciência transcende níveis
inferiores precisamente ao ser “devorada” por níveis superiores. Aquele que é
devorado pela Águia não é dissolvido nos sucos gástricos da Águia; quem é
devorado pela Águia torna-se Águia. Toda a cosmologia do feiticeiro segundo
Castaneda revela-se aqui como função do simples medo da perda de identidade, o
medo primordial da morte. O feiticeiro, como em Tales of Power, pode
saltar de um alto penhasco e não morrer. Nem mesmo a Águia, nem mesmo Deus pode
destruir sua consciência individual separada, seu ego. Para garantir que isso
jamais aconteça, ele sacrificará até sua humanidade àquela pequena chama
lúgubre. O estado real das coisas, contudo, é outro: “Quem procura preservar a
própria vida irá perdê-la; mas quem perder a própria vida, por Minha causa, a
encontrará.”
Em Tales of Power, Castaneda nos apresenta
aquilo que poderia ser interpretado como outra versão do Absoluto, em sua
doutrina do tonal e do nagual. O tonal e o nagual são as duas partes do ser
humano, bem como os dois aspectos do próprio ser. O tonal é tudo o que é
cognoscível e inteligível; o tonal do indivíduo é tudo o que se pode dizer ou
saber sobre ele. Em certo sentido, o tonal é o eu social — “pessoa” no sentido
de “máscara” — mas é igualmente a totalidade do que é cognoscível sobre o mundo
em torno de nós — o qual, segundo Don Juan, é de fato criado, ou arranjado de
modo a constituir uma ordem compreensível, por esse eu social. A realidade é um
padrão aprendido de percepção, um padrão que pode ser alterado.
O nagual, por outro lado, é aquilo que está além da
definição e do conhecimento ordenado. É pura agência, puro poder. Quando o
tonal é tensionado quase até o ponto de morte, seja pelas técnicas da
feitiçaria, seja pelos golpes da vida, o nagual emerge. Apenas o feiticeiro,
porém, pode sobreviver a essa emergência, já que ele aprendeu tanto a
desconstruir o tonal quanto a usar o poder do próprio nagual para
reconstruí-lo.
Este é um conceito bastante sofisticado. O tonal —
e posso perfeitamente estar enganado aqui — pareceria corresponder,
aproximadamente, à Shakti do hinduísmo, o poder que cria a aparência-mundo, e o
nagual a Shiva, o Absoluto Informal, ou pelo menos às extensões psíquicas de
ambos, já que se diz que o tonal começa no nascimento e termina na morte.
Don Juan compara o tonal a uma ilha. Em Tales of
Power, ele usa uma mesa de café para ilustrar sua natureza. Carlos pergunta
o que é o nagual. O nagual é mente? É pensamento, alma, graça, céu? É Deus? Em
cada ocasião, Juan aponta para algum objeto sobre a mesa — os talheres, ou o
molho de pimenta. Tudo o que atribuímos ao nagual, tudo o que usamos para
descrevê-lo, é apenas outro aspecto do tonal. Deus ele compara à toalha de mesa
e diz:
“Eu disse que o nagual não era Deus porque Deus é
um item do nosso tonal pessoal e do tonal de nossa época. O tonal é, como já
disse, tudo aquilo de que pensamos que o mundo é composto, incluindo Deus, é
claro. Deus não tem mais importância do que ser parte do tonal de nosso tempo.
‘No meu entendimento, Don Juan, Deus é tudo. Não estamos falando da mesma
coisa?’ ‘Não. Deus é apenas tudo aquilo que você pode pensar; logo,
propriamente falando, é apenas mais um item na ilha. Deus não pode ser
testemunhado à vontade, só se pode falar sobre Ele. O nagual, por outro lado,
está a serviço do guerreiro. Ele pode ser testemunhado, mas não se pode falar
dele.’” (p. 127).
Está tudo aí:
Deus como conceito sem realidade por trás; Deus como subordinado à história e à
sociologia; Deus como fantasma impotente, tema para discussão interminável e
infrutífera. Na minha opinião, Castaneda não aprendeu tudo isso com algum
misterioso homem de conhecimento em um café na Cidade do México; aprendeu com
seus professores na UCLA. Isso faz parte integrante da academia pós-moderna.
Deus não pode ser testemunhado? Muito bem. Seus efeitos, porém, podem — e, em
rigor, não há nada além desses efeitos em todo o reino da testemunha. E Ele
também, até certo ponto, pode ser objeto de discurso — exatamente como o
nagual, que Don Juan de que acabara de falar longamente. Tampouco Deus é
simplesmente “tudo de que você pode pensar”: em Sua Essência, segundo os sufis
e muitos outros, Ele é a única “coisa” de que você não pode pensar. Castaneda
pode conhecer o tonal e o nagual, mas nada sabe do que teólogos e metafísicos
querem dizer por “Deus”.
O que o nagual de fato seja segundo a metafísica
tradicional não posso dizer com certeza, já que Castaneda o apresenta em termos
de experiência, não de conceitos, e é uma experiência que não tive. Se fosse o
Si mesmo do hinduísmo, o Absoluto Informal — às vezes personificado por Shiva
como destruidor da ilusão-mundo — isso explicaria muita coisa, permitindo
traçar paralelos entre a feitiçaria nativo-americana de Castaneda (se é isso
mesmo que ela é) e o hinduísmo tântrico. O mestre budista vajrayana Chögyam
Trungpa, porém, disse certa vez que esperava encontrar uma espécie de Tantra
nativo-americano nos livros de Castaneda, mas desistira da busca. E nas pp.
140–141 de Tales of Power, o próprio Castaneda ergue obstáculos a tal
identificação:
“[Eu] argumentei que, no pensamento europeu, já
havíamos dado conta do que ele chamava de ‘nagual’. Introduzi o conceito de Ego
Transcendental, ou do observador não observado presente em todos os nossos
pensamentos, percepções e sentimentos. Expliquei a Don Juan que o indivíduo
podia perceber-se ou intuir-se a si mesmo, como um eu, por meio do Ego
Transcendental, porque ele era a única coisa capaz de juízo, capaz de revelar a
realidade dentro do âmbito de sua consciência. Don Juan permaneceu
imperturbável. Riu.
‘Revelar a realidade’, disse ele, imitando-me. ‘Isso é o tonal.’
Argumentei que o ‘tonal’ poderia ser chamado de Ego Empírico encontrado no
fluxo passageiro de consciência ou experiência, enquanto o Ego Transcendental
se encontrava por trás desse fluxo.
‘Observando, suponho’, disse ele zombeteiro.
‘Exato. Observando a si mesmo’, eu disse.
‘Ouço você falar’, disse ele, ‘mas você não está dizendo nada. O nagual não é
experiência, nem intuição, nem consciência. Esses termos e tudo o mais que você
queira dizer são apenas itens na ilha do tonal.’”
Ainda na p. 131, porém, Carlos pergunta: “O nagual
tem consciência? Está ciente das coisas?” E Don Juan responde: “Claro. Ele está
ciente de tudo.” Mas, se ele está ciente de tudo, nada mais é senão o Ego
Transcendental — melhor chamado, em terminologia hindu, de atman, o Si
mesmo. E embora o nagual, se o identificarmos com o Si mesmo, não seja uma
experiência — ainda que seja certamente uma realização, que transcende
totalmente, porém, a subjetividade limitada do ego empírico — é sem dúvida
apresentado como experiência em outras passagens de Tales of Power. Na
p. 265, falando do nagual, Don Juan diz: “O nagual é indizível. Todos os
sentimentos possíveis e seres e eus flutuam nele como chatas, pacíficos,
inalterados, para sempre.” Como reservatório eterno de todas as formas,
corresponderia ao “mundo inteligível” do filósofo neoplatônico Jâmblico,
definido por Frithjof Schuon como “o Ser enquanto contém as Qualidades Divinas
das quais são derivadas as essências angélicas e os arquétipos existenciais” (Dimensions
of Islam, p. 148), ou possivelmente ao nível de ser que os sufis chamam de Wahidiyah,
“Unidade”, definido por Schuon como “o mundo das possibilidades ontológicas”
(p. 150). Esse mundo inteligível supremo é transcendido pela Ahadiyah ou
Dhat dos sufis (Além-Ser ou Essência), o Atman dos hindus. O
tonal corresponderia então ao ‘aql, ou “intelecto”, dos sufis (que é um
nível de ser mais baixo do que o que Schuon chama de Intelecto com “I”
maiúsculo, correspondente ao ‘Ilm sufi), e a tudo o que está abaixo
dele, em relação ao qual se ergue como princípio ordenador, incluindo khayal,
a imaginação ou plano psíquico, e jism, o corpo. Mas, nas descrições que
Castaneda faz de nagual e tonal como experiências, tudo acaba inevitavelmente
apresentado em termos muito mais subjetivos ou psíquicos.
No mundo do nagual, Carlos tem a sensação de cair
pelo ar, o corpo se desfazendo e dissolvendo, até restar apenas a cabeça:
“Tudo o que restava de ‘mim’ era um centímetro
quadrado, uma pepita, um minúsculo resíduo semelhante a seixo. Todo o meu
sentir estava concentrado ali; então a pepita pareceu explodir e eu estava em
mil pedaços. Eu sabia, ou algo em algum lugar sabia, que eu estava ciente dos
mil pedaços ao mesmo tempo. Eu era a própria consciência.” (p. 261).
Depois, no mundo do tonal:
“Então alguma parte daquela consciência começou a
agitar-se; ela ergueu-se, cresceu. Tornou-se localizada. E, pouco a pouco,
recuperei o senso de limites, consciência ou seja o que for, e de repente o ‘eu’
que eu conhecia e com o qual estava familiarizado irrompeu na mais espetacular
visão de todas as combinações imagináveis de cenas ‘belas’; era como se eu
estivesse olhando milhares de imagens do mundo, de pessoas, de coisas.” (pp.
261–262).
De novo, nagual:
“Explodi. Desintegrei-me. Algo em mim cedeu;
liberou algo que eu mantivera trancado toda a minha vida. Eu estava totalmente
ciente de que meu reservatório secreto fora tocado e jorrava sem restrições. Já
não havia a doce unidade que chamo de ‘eu’. Não havia nada, e ainda assim esse
nada estava cheio. Não era luz nem escuridão, nem quente nem frio, nem
agradável nem desagradável. Não era que eu me movesse, flutuasse ou estivesse
imóvel, nem tampouco era uma unidade única, um eu, como estou acostumado a ser.
Eu era uma miríade de eus que eram todos ‘eu’, uma colônia de unidades
separadas que tinham uma lealdade especial umas para com as outras e que se
uniam inevitavelmente para formar uma única consciência, minha consciência
humana. Não era que eu ‘soubesse’ além da sombra de dúvida, porque não havia
nada com que eu pudesse ter ‘sabido’, mas todas as minhas consciências
singulares ‘sabiam’ que o ‘eu’, o ‘mim’ do meu mundo familiar era uma colônia,
um conglomerado de sentimentos separados e independentes que possuem uma
solidariedade inflexível uns com os outros. A solidariedade inflexível de
minhas incontáveis consciências, a lealdade que essas partes tinham umas pelas
outras era minha força vital.” (p. 262).
E, de novo, tonal:
“Esses nódulos de consciência estavam dispersos...
Então algo os agitava, e eles se uniam e emergiam em uma área onde todos tinham
de ser reunidos em um só bloco, o ‘eu’ que conheço. Como ‘eu’, ‘eu mesmo’ então
eu testemunhava uma cena coerente de atividade mundana, ou uma cena que pertencia
a outros mundos e que eu achava que devia ser pura imaginação, ou uma cena que
pertencia ao ‘pensar puro’, isto é, eu tinha visões de sistemas intelectuais,
ou de ideias encadeadas como verbalizações. Em algumas cenas eu conversava
comigo mesmo à vontade.” (p. 263).
No mundo do nagual, Carlos chega mais perto do que
em qualquer outra passagem de seus livros da experiência mística clássica, como
no tonal ele sacia a sede de experiências mentais e imaginativas. E, no entanto
— que narcisismo invencível. Sua identidade é lançada pelos ares, mas todos os
fragmentos dispersos ainda são fragmentos de Carlos. Em nenhum desses mundos
inimagináveis ele encontra alguém mais — apenas Carlos, Carlos, Carlos. Que
ilustração mais clara se poderia desejar da verdade de que, sem relação, sem
amor, não há saída do ego, unificado ou pulverizado que seja: “Ninguém vem ao
Pai senão por Mim.” Até que o Si mesmo, o Absoluto Informal, seja realizado,
esse Si mesmo é o Senhor acima, o Absolutamente Outro, a Própria Pessoa, Aquele
que nos conhece e nos ama perfeitamente, exatamente como somos. Como Castaneda
demonstra de modo convincente, na ausência de uma relação consciente e
voluntária com esse Deus Pessoal, a porta para o Absoluto Informal está fechada
para nós; “perdemos” o ego apenas para entrar no mundo da “força vital”, o
espectro do ego. Tornamo-nos aquele herói pós-moderno, o Homem Múltiplo, o
homem das alternativas. É verdade, no plano psíquico, que somos de fato
múltiplos. É também verdade que nascemos da Unidade e a ela somos destinados,
porque somos conhecidos pelo Um, como Um só. Como remédio para o estado de
Castaneda, que ele partilha com tantos viajantes pós-modernos por incontáveis
mundos alternativos, só posso receitar o hadith de Maomé (sobre ele, paz): “Ora
a Deus como se O visses — porque, mesmo que tu não O vejas, Ele te vê.”
Conhece-te como conhecido, señor Castaneda, e fica em paz.
Fui apresentado, brevemente, a Carlos Castaneda em
1968 por meu mentor poético, o poeta da Geração Beat Lew Welch, em uma de suas
“Festas da Lua Cheia com Mexilhão” em Muir Beach, Califórnia. Em meio aos
hippies nus e em transe, Castaneda se destacava: um pequeno e bem-apessoado
cavalheiro latino, de terno escuro, camisa branca e gravata. Não tendo lido
nenhum de seus livros na época, ele não me interessou; espero fervorosamente
que eu lhe tenha sido de tão pouco interesse quanto ele me foi. (Anos mais
tarde percebi que Lew pretendia isso como uma espécie de iniciação para mim:
não à toa ele me apresentou tanto a Castaneda quanto ao meu primeiro verdadeiro
mestre sufi. De certo modo, este livro é uma resposta à escolha que ele colocou
diante de mim, há trinta anos, na pessoa desses dois homens.)
Na seção introdutória de I, Leo, o romance
inacabado de Lew Welch, ele conta uma visão que teve certa vez na cidade de
Nova York. (Outra versão aparece em seus poemas reunidos, Ring of Bone,
em “Din Poem”.) Era como se tivesse recebido de um mago uma droga estranha que
lhe permitiria tornar-se membro da raça humana. Idêntico aos habitantes da
terra, ele seria capaz de compreendê-los como se fosse um deles, como um
antropólogo que vive por anos com a tribo que estuda; o relato que prometera
apresentar seria, portanto, completamente exato. Lew percebeu isso porque a
droga começava a perder o efeito — e, à medida que isso acontecia, percebeu
também que todos na terra haviam recebido a mesma droga e a mesma missão, e
que, mais rapidamente em alguns casos, mais lentamente em outros, ela ia
perdendo o poder sobre todos. Ele diz:
“Notei que a angústia, em mim, foi ficando cada vez
mais tênue, mais tênue, mais tênue. Enquanto, o tempo todo, eu continuava vendo
as coisas cada vez mais claras, mais claras, mais claras. E notei também que,
quanto mais claramente se veem as coisas, mais medo se sente... Vi que todos
esses corredores assustados do metrô estavam, assim como eu, sofrendo cada vez
menos a angústia real (drogada) — e que seu medo presente não era senão um
sintoma de abstinência. Principalmente eles iam percebendo que o ‘amor’ (uma
das angústias causadas pela droga) já não era possível para eles. É isso que os
apavorava. Pois todos têm medo. Eu tenho medo. No entanto, acho que tenho menos
medo do que eles. Acho que o que está acontecendo é natural e bom, e eles,
talvez por se lembrarem menos claramente do mago do que eu, não acham que seja
natural e bom. Por isso estão muito apavorados. E então, de repente, percebi
que essa visão é a visão de todos os livros e homens que valem a pena. No
budismo ela é chamada de vazio. No cristianismo, ‘a noite escura da alma’...
Hart Crane mergulhou nela. Li Po a abraçou em seu rio embriagado...”
I, LEO, pp. 7–8
Errado. A razão pela qual eles, e ele, ficaram
apavorados é que, quando o amor morre, o inferno se abre. A impossibilidade do
amor não é o “vazio” do budismo; os budistas ensinam que vacuidade e compaixão
são duas faces de uma só coisa. E não é a “noite escura da alma” de São João da
Cruz, porque, no cristianismo, Deus é amor. Por outro lado, pode muito bem ter
sido o que Hart Crane e Li Po experimentaram, dois poetas alcoólatras que se
suicidaram por afogamento, assim como Lew Welch, outro poeta alcoólatra, se
suicidou estourando os miolos em algum lugar da Serra — o que constitui a
refutação definitiva de seu argumento.
Creio que a passagem acima mostra tanto a deriva da
alma coletiva humana rumo ao frio demoníaco dos últimos dias quanto a zona
dessa alma em que Lew Welch e Carlos Castaneda estavam de acordo: este, jurado
a sobreviver à morte do amor e seguir em frente; aquele, por fim, incapaz de
fazer tal juramento.
E o que o próprio Carlos tem a dizer sobre o amor?
Ouça as palavras da feiticeira doña Soledad:
“Pablito não é meu inimigo porque seus olhos
estavam fixos em direção oposta, mas porque ele é meu filho... Tenho de entrar
naquele outro mundo. Onde o Nagual está agora. Onde Genaro e Eligio estão
agora. Mesmo que eu tenha de destruir Pablito para fazer isso.”
THE SECOND RING OF POWER, pp. 64–65
Doce senhora. Corajosa também! E a feiticeira la
Gorda, sua colega, é igualmente doce:
“para entrar no outro mundo é preciso ser completo.
Para ser feiticeiro é preciso ter toda a própria luminosidade: sem buracos, sem
remendos e com toda a borda do espírito...”
“‘Mas como você recuperou sua completude?’, perguntei. ‘... Tive de recusar
aquelas duas meninas [as filhas dela]’, disse... ‘o nagual... guiou-me a fazer
isso, e a primeira coisa que me fez fazer foi recusar meu amor por aquelas duas
crianças... Tive de afagar-lhes a cabeça de leve e deixar meu lado esquerdo
arrancar a borda delas.’
‘O que aconteceu com elas?’
‘Nada. Elas nunca sentiram coisa alguma. Voltaram para casa e agora são como
duas pessoas adultas. Vazias, como a maioria das pessoas ao redor delas. Não
gostam da companhia de crianças porque não têm uso para elas. Eu diria que
estão até melhor assim.’” (ibid., pp. 132–133).
Portanto, a destruição do amor faz parte do
programa de um feiticeiro. Não é feita por maldade; crer nisso seria
insuportavelmente burguês. É apenas uma exigência técnica.
“Pegue Soledad... Ela é a melhor bruxa que se pode encontrar
e é incompleta. Teve dois filhos. Um deles era menina. Felizmente para Soledad,
a filha morreu... a borda do espírito de uma pessoa que morre volta aos
doadores, o que significa que essa borda volta aos pais... A filha de Soledad
morreu sem deixar filhos e Soledad recebeu um impulso que fechou metade do
buraco dela [o buraco em seu espírito]. Agora, a única esperança que tem de
fechá-lo completamente é Pablito morrer. E, pelo mesmo raciocínio, a grande
esperança de Pablito por um impulso é Soledad morrer.
Eu lhe disse em termos bem fortes que o que dizia era repugnante e horripilante
para mim... Expliquei que eu gostava de crianças, que tinha o mais profundo
respeito por elas... que não conseguia conceber ferir uma criança em qualquer
sentido, por qualquer motivo.
‘O Nagual não fez a regra’, disse ela. ‘A regra é feita em algum lugar lá fora,
e não por um homem... Eu era uma mulher religiosa. Podia lhe dizer o que
costumava repetir sem saber o que significava. Eu queria que minha alma
entrasse no reino dos céus. Ainda quero isso, só que estou em outro caminho. O
mundo do nagual é o reino dos céus.’” (ibid., pp. 234–235).
Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras: a
regra desse “outro caminho” não foi feita por homem algum, mas por um “anjo de
luz”. Carlos reage:
“Objetei, por princípio, à conotação religiosa que
ela dava. Eu havia me acostumado, com Don Juan, a nunca me deter nesse assunto.
Ela explicou muito calmamente que não via diferença em termos de estilo de vida
entre nós e as verdadeiras freiras e padres. Observou que não só as verdadeiras
freiras e padres são, em geral, completos, como também não se enfraquecem com
atos sexuais.
‘Eu sempre torcerei pelas freiras e padres. Somos iguais. Nós abandonamos o
mundo e, no entanto, estamos no meio dele. Padres e freiras seriam grandes
feiticeiros voadores se alguém lhes dissesse que podem fazer isso.’” (ibid., p.
235).
Que mente
aberta, la Gorda; ela admite que freiras e padres talvez sejam bons o bastante
para serem magos negros! E quão pós-moderno é o conjunto inteiro A coisa é: a
crença de que o amor não pode ser senão uma terrível e exaustiva codependência,
a ameaça máxima à própria sobrevivência.
Carlos Castaneda tem muito a dizer sobre o
guerreiro e sua impecabilidade. Para ser um verdadeiro feiticeiro, é preciso
ser um guerreiro. Do meu ponto de vista, porém, um guerreiro — ainda que ele
seja incapaz de viver no centro do amor — precisa empenhar sua vida em defender
o amor lá na fronteira, no perímetro guardado do coração. Se falha nisso, se termina
destruindo o amor em vez de defendê-lo, então não é guerreiro, mas apenas
bandido.
É claro que Castaneda e eu empregamos o termo
“guerreiro” em dois sentidos diferentes. Mas o que estou dizendo? Castaneda não
é destituído de amor; sua amada é a própria Terra, como descobrimos nas pp.
284–285 de Tales of Power:
“‘O amor de Genaro é o mundo’ [diz Don Juan]. ‘Ele
estava agora mesmo abraçando esta enorme terra, mas como é tão pequeno tudo o
que pode fazer é nadar nela...’
Don Juan agachou-se à nossa frente. Acariciou delicadamente o chão. ‘Esta é a
predileção de dois guerreiros’, disse. ‘Esta terra, este mundo. Para um
guerreiro não pode haver amor maior... Só se alguém ama a terra com paixão
inflexível pode libertar sua tristeza... A tristeza pertence somente àqueles
que odeiam a própria coisa que dá abrigo ao seu ser.’ Don Juan novamente
acariciou o chão com ternura. ‘Este ser adorável, que está vivo até seus
últimos recantos e compreende todo sentimento, acalmou-me, curou-me das minhas
dores e, finalmente, quando compreendi plenamente meu amor por ele, ensinou-me
a liberdade.’”
Mate sua mãe, mate seus filhos, e depois dê todo o
seu amor à Terra? O que ela quer com o “amor” de psicopatas e poluidores? É um
concerto muito bonito o que Don Juan toca aqui, no violino do sentimentalismo
de adoração da natureza; contudo, como diz Rumi, o mundo pode ser tão belo
quanto uma noiva, mas ninguém pode desposar essa fascinante criatura. Com toda
certeza, esta adorável Terra merece muitas serenatas — mas só porque sua beleza
e majestade, seus vales suaves e floridos e seus vulcões em erupção, seu
Quetzal e seu Jaguar, são letras traçadas com a Pena do Amado. Quanto a ela
mesma, considerada separadamente d’Ele, não é senão um planeta, um arranjo de
estruturas e forças materiais. Ai daqueles que tentam nadar nesse coração de
pedra, como eu fiz, como se fosse o colo de uma mãe amorosa! Tais tolos se
encontrarão face a face com a Medusa. Transformar-se-ão em pedra como todas
essas pedras à nossa volta, que um dia foram homens.
O xamanismo é profundamente ambíguo no mundo de
hoje; ainda assim, não é pura magia negra. Produziu homens santos como Lame
Deer e Black Elk, e xamãs na categoria dos Curadores, como os cirurgiões
psíquicos das Filipinas, ainda estão ativos. A história a seguir, sobre uma
“boa feiticeira”, foi-me contada por Joan, uma ex-freira católica que atuava
nos movimentos populares de libertação da América Latina na década de 1980:
Uma certa região do México estava sendo
aterrorizada por brujos (feiticeiros), que formavam uma espécie de
máfia. Eles eram os únicos “médicos” da área e usavam seu monopólio sobre os
cuidados médicos para oprimir a população. Joan trabalhava junto a uma bruja
local que se opunha aos feiticeiros; elas formavam jovens catequistas católicos
como médicos herbalistas, para quebrar o monopólio dos brujos. Joan
relata uma reunião com a bruja em que os olhos desta se voltaram
totalmente para os lados, o direito para a direita e o esquerdo para a
esquerda, após o que ela recitou clarividentemente toda a história da vida de
Joan. Ela ofereceu-se para fazer de Joan sua aprendiz e disse: “Vou te ensinar
sobre os poderes da Flor de Alho, da Espada de Prata e da Cruz; mas o maior
poder é o Amor.” Joan, porém, decidiu seguir para a América do Sul, para estudar
teologia da libertação.
Portanto, ainda existem bons xamãs, verdadeiros
Curadores, que certamente discordariam de Carlos Castaneda quanto ao amor.
Contudo, o fato de católicos terem achado necessário trabalhar com feiticeiros,
por mais benevolentes que fossem, revela uma perda da dimensão teúrgica dentro
da Igreja Ocidental, de poderes que ainda estão ativos na Ortodoxia Oriental,
que possui ícones milagrosos e continua a produzir santos taumaturgos como São
Serafim de Sarov e São João Maximovitch de Xangai e São Francisco, até os
tempos contemporâneos.
E a atração de Joan pela teologia da libertação
revela outra perda, pois mostra como o catolicismo não tem conseguido conservar
o entendimento das obras corporais de misericórdia como instâncias da misericórdia
eterna de Deus, e por conseguinte sentiu a necessidade de identificá-las com um
progressismo secular espúrio e com uma falsa esperança histórica.
Espero que me seja permitido contar mais uma
história xamânica: quando São Inocêncio, apóstolo russo-ortodoxo da América,
viajou para as Ilhas Aleutas em 1828, encontrou um xamã aleúta. O xamã não se
surpreendeu ao vê-lo; dissera aos outros ilhéus que um padre chegaria naquele
dia. O xamã fora batizado por missionários ortodoxos algum tempo antes, que, porém,
não tiveram tempo de catequizar os nativos. Mas São Inocêncio, para seu
espanto, descobriu que o xamã possuía uma compreensão abrangente da doutrina
cristã. Quando o santo lhe perguntou como isso era possível para uma pessoa
analfabeta como ele, uma pessoa sem mestres, respondeu que “dois companheiros”
tinham vindo ensinar-lhe tudo. Segundo sua descrição, um deles era o arcanjo
Gabriel, tal como representado nos ícones ortodoxos. Em outras palavras, havia
sido catequizado por anjos. Ele se ofereceu para deixar São Inocêncio ver esses
catequistas celestes, mas o santo acabou recusando a oferta, já que o desejo de
testemunhar prodígios pode levar ao orgulho espiritual.
Uma pessoa como eu, que não é feiticeira, não pode
presumir comentar a validade ou a falsidade de uma arte na qual não foi
iniciada. Isso é questão técnica que só pode ser tratada competentemente pelos
próprios mestres e artífices dessa arte. Da mesma forma, não sendo espadachim,
nem mesmo apreciador das artes marciais, nada tenho a dizer sobre como um
mestre de kendo pratica sua profissão — no plano técnico. Posso, sim, e
tenho algo a dizer sobre o valor do que ele faz. Tenho pleno direito de dizer
mesmo ao maior dos espadachins: não oprimas; não mates o inocente; não te
alugues a tiranos; não te deleites na crueldade; não pratiques tua esgrima de
modo que a sociedade se aproxime um pouco mais de se transformar numa massa de
gangues em guerra. Isso tenho o direito de dizer. Do mesmo modo, tenho o
direito de dizer a qualquer feiticeiro: não viole a integridade de teus
semelhantes; não manipules os outros; não causes dano; não seduzas nem enganes;
não assumas para com as forças sutis da natureza a mesma atitude que uma
madeireira tem para com um bosque de sequoias antigas; não percas tua humanidade
em tuas excursões para outros mundos, a ponto de te tornares uma ferida aberta
por onde a corrupção psíquica possa entrar e espalhar-se pelo mundo humano; não
retrates a Fonte eterna de todas as coisas — Verdade Absoluta, Consciência
Absoluta e Beatitude Absoluta — como uma fonte de poder sem amor, a ser
explorada por saqueadores psíquicos, tal como a indústria nuclear explora o
urânio nas Black Hills; não ajas de modo que contribuas para matar o amor entre
os seres humanos, e o amor de Deus, mais depressa do que teria sido morto se
nunca tivesses nascido; não te tornes como Carlos Castaneda, que possui
conhecimento, poder, sensibilidade, sentimento e nostalgia, mas não amor.
O amor parece uma palavra tão fraca, descolorida de
certo modo, diante das maravilhas e terrores da feitiçaria. Contudo, a magia,
quando investigada diretamente, revela-se triste, porque o seu terror e a sua
maravilha envolvem a perda da forma humana. Em The Eagle’s Gift, p. 308,
Don Juan diz a Carlos: “‘... guerreiros não têm vida própria. A partir do
momento em que compreendem a natureza da consciência, deixam de ser pessoas e a
condição humana já não faz parte de sua visão’.” É verdade que o profeta Maomé
(sobre ele, paz) disse “morre antes de morreres”. Mas essa morte é a morte do
ego, não da pessoa, sendo esta última apenas a contrafação satânica da
autotranscendência. A forma humana foi criada por Deus para ser Seu
representante neste mundo; como não fomos nós que criamos essa forma, não temos
direito de destruí-la. A realização de que nossa vida não nos pertence não é
destruição da forma humana, mas precisamente o princípio dela.
Muitos hoje, porém, não lamentam a perda
progressiva dessa forma; chegam mesmo a depositar suas esperanças nessa perda.
Se ao menos o amor finalmente morresse, finalmente parasse de bater à porta da
nossa consciência, bloqueando nossas percepções, interferindo em nossa
eficiência; se ao menos a lembrança assombrosa da confiança ferida, dos
relacionamentos traídos, da inocência envenenada, nos abandonasse de uma vez
por todas. Sem esse lastro a nos manter no chão, talvez pudéssemos saltar, com
abandono soberbo e impecável controle, para o mundo do poder! A noite
fervilhante poderia fechar-se sobre nós. Desfalecendo de medo, e da expectativa
das coisas que estão por vir, poderíamos fazer desse terror nosso aliado.
Poderíamos encará-lo e saudá-lo com a honra de um guerreiro. Na luta de vida ou
morte com aquele adversário, o conhecimento poderia ser tomado como troféu e
manejado, girando a chave mestra deste mundo e abrindo sua porta. Nosso voo
poderia conduzir-nos a incontáveis outros mundos, universos de exaltação,
estranheza abismal e deslumbrante maravilha. O triunfo do guerreiro que faz do
terror seu amigo poderia mesmo florescer além do túmulo, permitindo-nos
caminhar sozinhos rumo a esse mistério último, essa noite luminosa, com nossa
virilidade intacta. Tudo isso poderia ser nosso, se apenas o amor repousasse em
paz em seu túmulo. Cavamos esse túmulo com nossas próprias mãos, com toda a
astúcia e estoicismo de que fomos capazes. Se ao menos nossas asas poderosas
pudessem levar-nos ao fim do mundo, onde um vento uivante abafasse seus
sussurros; se ao menos pudéssemos encontrar uma laje de pedra pesada o bastante
para esmagá-lo e sufocá-lo. Os sussurros do amor, esse fantasma tênue e
persistente, são como água sobre a pedra. O que o gotejar constante pode fazer
à pedra sólida? Que poder a água tem, doce ou salgada, para mudar a face dela?
Ainda assim, as eras passam velozes sob a colina seca e coberta de grama
daquele outro mundo; as asas da águia, seus batimentos constantes, sob aquele
céu separado, abanam os séculos para longe — até que cheguemos como esqueletos,
calvos e trêmulos, diante da carne plena de nossa negação. Esta é a voz dessa
negação, os próprios acentos dela, captados e registrados por minha esposa,
Jennifer Doane Upton:
Virgem de Guadalupe, Kali do nosso continente,
Quando eu te pedir que me mostres a
Cabeça espetada do meu amado, não a escondas,
Porque eu já o vi
Em teu rosto.
Tiraste dele o reconhecimento de mim
E, no lugar do meu amor,
Ele sente apenas uma dor tremenda.
E mesmo quando sorris para ele
Ele não se aproxima de ti,
Porque não sabe que alguma vez se afastou de ti.
Virgem de Guadalupe,
Não me sorrias
Dessa maneira
No dia da minha morte.
Quão fácil é satirizar Carlos Castaneda,
descarregar toda a minha ironia retórica contra um alvo digno e vulnerável no
lado escuro das coisas. Mas, lembrem-se, eu também estive lá. Mexi com as artes
negras — acreditando o tempo todo, é claro, que não havia nada de negro nelas,
que eu podia amar e servir a Deus enquanto brincava de “feiticeiro lírico”...
expressão muito adequada de Castaneda, dado que poetas, especialmente poetas
fracassados, adoram pensar-se como magos. Passei três dias e duas noites na
cabana de uma bruxa local, uma mulher para quem os homens eram atraídos quando
já haviam decidido suicidar-se — três mortes de que certamente sei. Sentei ali
comendo as drogas dela como forma de fazer penitência, suponho, por uma
infância superprotegida, como tantos da minha geração, porque sentia que
precisava familiarizar-me com o lado escuro das coisas. Pois bem, consegui, e
absorvi uma boa dose de amargura no processo, parte da qual veio à tona depois
na forma deste livro, à medida que a luz e o calor do Caminho espiritual a
cozinhavam para fora dos meus ossos.
Não há nada, nessas críticas, sátiras e denúncias,
que não estivesse primeiro em mim. De onde mais teria vindo toda essa tinta
negra? A escuridão em que mergulhei refletiu-se de volta para mim no espelho do
mundo... esse espelho que tem a peculiaridade única de realmente conter porções
de tudo o que nele se reflete, verdade ou falsidade, luz ou trevas. No espelho
de Mahamaya nada é pura ilusão, mas nada é o que parece. (Agora afasta-te desse
espelho escuro e fumegante, e volta-te para a Luz.)
III. Transcendência sem imanência: o
neo-gnosticismo de A Course in Miracles
(NOTA: Como A Course in Miracles é bastante
extenso, baseei a maior parte desta crítica em dois livros mais curtos: The
Most Commonly Asked Questions about A Course in Miracles, de Gloria e
Kenneth Wapnick (1995), e A Course in Miracles and Christianity: A Dialogue,
de Kenneth Wapnick e Pe. W. Norris Clarke, S.J. (1989), ambos publicados pela
The Foundation for a Course in Miracles. As citações do primeiro aparecem sob a
abreviatura MCQCM, e as do segundo sob CMCD. Citações designadas como “texto”,
“workbook” e “manual” vêm dos três volumes originais do Course
propriamente dito.)
A produção mais sofisticada de toda a cultura Nova
Era é A Course in Miracles. Em muitos aspectos representa o auge
intelectual do movimento, e encontra-se claramente num nível superior às
fantasias de médiuns e espiritualistas, sendo uma tentativa real de metafísica.
Infelizmente, está construída sobre um erro fundamental, do qual muitos outros
erros decorrem.
Há uma grande quantidade de verdade profunda em A
Course in Miracles: o sentido intransigente de Deus como Verdade e Amor
absolutos; uma percepção profunda dos jogos intrincados que o ego joga para
escapar dessa Verdade e desse Amor; a compreensão de que o modo de consciência
sujeito/objeto não pode testemunhar diretamente a Verdade Absoluta; a doutrina
de uma única escolha, e apenas uma, que é completamente livre, a escolha entre
Verdade e ilusão; a primazia concedida ao perdão no processo de metanoia,
aquela mudança total de mente pela qual a Verdade é escolhida e a ilusão
rejeitada; a doutrina — inteiramente verdadeira em certo sentido — de que a
humanidade jamais caiu realmente no pecado, jamais entrou de fato na ilusão da
separação de Deus. Essas verdades, que o Course partilha de um modo ou
de outro com toda metafísica tradicional, podem até ser suficientes, pela graça
de Deus, para fazer dele um verdadeiro passo no Caminho espiritual, pelo menos
para alguns. Ainda assim, o erro fundamental permanece. Alguns, ao trilhar o
caminho do Course, podem superar esse erro; mas o Course em si
não pode ajudá-los a fazê-lo. E, se esse erro não for superado, o caminho do Course
permanece como uma ponte construída pela metade. A Verdade da Outra Margem pode
ser vista, mas não alcançada.
Segundo a metafísica tradicional de todos os povos,
o Princípio Supremo é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O movimento Nova
Era como um todo, dada sua fascinação pelo plano psíquico e sua tendência
cientificista a glamourizar a matéria, é claramente inclinado na direção da
imanência, tendendo a ver qualquer Deus que transcenda este mundo como tirânico
ou ineficaz. A Course in Miracles, porém, pende para o lado oposto, como
se um extremo de erro precisasse ser “equilibrado” com o extremo oposto. O Deus
do Course é estritamente transcendente. Ele não criou o mundo, que não
passa de uma ilusão do ego. Como conhece apenas a Verdade, nem sequer está
ciente de que esse mundo ilusório “existe”.
A Course in Miracles é uma produção mediúnica de Helen Schucman e de seu parceiro Bill
Thetford que, como Jane Roberts e seu marido Rob, produtores do material Seth,
constituem um exemplo do clássico “triângulo” mediúnico: uma médium mulher que canaliza
uma entidade masculina com a ajuda de um amanuense masculino — a entidade,
nesse caso, sendo o próprio “Cristo”.
Segundo Journey Without Distance, The Story
Behind A Course in Miracles, de Robert Skutch (Berkeley, Celestial Arts,
1984), o Dr. William N. Thetford, Professor de Psicologia Médica na Columbia
University, conheceu Helen Schucman em meados dos anos 1960, quando ambos
trabalhavam no Departamento de Psicologia do Presbyterian Hospital, do qual o
Dr. Thetford era diretor. Quando criança e também mais tarde na vida, Helen foi
atraída pelo catolicismo, que via como possível fonte de milagres. Quando tais
milagres não se concretizavam ou, quando eventos possivelmente miraculosos
ocorriam mas podiam ser explicados racionalmente, ela se enfurecia com a Igreja
e se tornava uma ateia militante. E Bill Thetford, curiosamente, trabalhou na
Universidade de Chicago durante a Segunda Guerra Mundial no Projeto Manhattan,
que desenvolveu a primeira bomba atômica. Pouco antes de Helen começar a
canalizar o Course, teve uma série de sonhos e visões em que se via como
uma poderosa sacerdotisa, às vezes benéfica, às vezes violenta e destrutiva.
Pode-se especular que seu ódio pela Igreja e seu desejo reprimido de autoridade
espiritual tenham se combinado com a culpa de Bill Thetford por ter ajudado a
criar armas nucleares, produzindo uma atmosfera psíquica propícia ao nascimento
do Course, repleto de ensinamentos novos e miraculosos capazes de salvar
o mundo — embora, segundo esses ensinamentos, o mundo não seja real, crença que
certamente absolveria os criadores da Bomba da possível culpa de destruí-lo.
Uma das coisas mais intrigantes sobre Helen
Schucman é que A Course in Miracles aparentemente não “funcionou” para
ela. “Não tendo crença em Deus”, é citada dizendo,
“Eu ressentia o material que estava anotando e
sentia-me fortemente impelida a atacá-lo e prová-lo errado. Por outro lado,
passava um tempo considerável não apenas anotando-o, mas também ditando-o a
Bill, de modo que era evidente que eu também o levava bastante a sério... Eu
estava na posição impossível de não acreditar na obra da minha própria vida.”
JOURNEY WITHOUT DISTANCE, p. 134
Como Willis Harman escreveu no prefácio do mesmo
livro:
“Perguntei-lhe certa vez como era possível que esse
documento extraordinário pelo qual fora responsável tivesse trazido sabedoria e
paz a tantos e, ainda assim, fosse aparentemente ineficaz para ela. Nunca
esquecerei sua resposta. ‘Eu sei que o Course é verdadeiro, Bill’, ela
disse — e então, após uma pausa: ‘mas eu não acredito nele.’”
JOURNEY WITHOUT DISTANCE, p. iv
É claro que a canalizadora de A Course in
Miracles era radicalmente dividida. Isso, porém, não era apenas uma ironia
psicológica: a alma da médium do Course necessariamente estava dividida
porque a metafísica do próprio Course é radicalmente dualista.
Contudo, é precisamente isso que o Course
nega. Enquanto outras espiritualidades, especialmente o cristianismo bíblico,
são rotuladas como dualistas (cf. CMCD, p. 23), o Course é considerado
puramente unitário. A Course in Miracles ensina que Deus não criou o
mundo e nada sabe dele. O mundo, incluindo nossos corpos, foi criado pelo ego
como um ataque a Deus; é ilusão, sonho. Esse sonho, porém, tem grande poder: o
poder de determinar cada item da nossa experiência, até o momento em que nossa
crença nele seja superada. Assim, temos essencialmente dois deuses diferentes:
um Deus totalmente transcendente que ignora o cosmos — semelhante ao “Deus
Estranho” dos gnósticos sectários — e o Ego que (embora não exista realmente) é
o criador de todo o universo, e portanto análogo ao Demiurgo gnóstico iludido,
que cria a prisão do cosmos físico e psíquico a partir da falsa crença de ser o
verdadeiro Deus. Em termos simples, se a quase totalidade da nossa experiência
é diferente de Deus e oposta a Ele, então é, na prática, um segundo Deus.
Podemos alegar que tudo é ilusão; não podemos ignorar seus efeitos.
O Princípio Supremo é tanto transcendente quanto
imanente. Em certo sentido é totalmente outro em relação ao mundo manifesto; em
outro, é a Essência desse mundo. Portanto, segundo a doutrina unânime da
metafísica tradicional, o mundo é ao mesmo tempo um véu que oculta Deus e uma
projeção simbólica que O manifesta. Se fosse apenas manifestação de Deus,
toma-lo-íamos como Deus, como fazem os panteístas, e assim jamais ascenderíamos
à visão e à União com o próprio Deus. E, se fosse apenas véu, o conhecimento
mesmo da existência de Deus seria impossível para nós, já que até Sua
autorrevelação deliberada, incluindo o próprio papel e a tinta de A Course
in Miracles, assim que entrasse neste mundo, tornar-se-ia parte do véu,
parte do “ataque a Deus”. E, então, nossa relação com esse Course não
poderia ser senão (na terminologia do livro) um “relacionamento especial”, uma
identificação do ego mascarando-se de amor a Deus e de dedicação à iluminação
espiritual. Se o universo não é manifestação de Deus, assim como véu que O
esconde, então todas as nossas ideias de Deus, incluindo as apresentadas pelo Course,
são ídolos sem sentido. (Segundo o Dr. Wapnick, em CMCD, p. 54, o Course
ensina que Deus não é nem transcendente nem imanente, já que não pode estar nem
em nem além de algo que não existe. Mas o Course certamente ensina que
Ele está além, não dentro, deste “ilusão” tão insistente.) O Dr. Wapnick
identifica a doutrina do Course de que o mundo é literalmente ilusão com
a doutrina de maya do Vedanta hindu, bem como com “o mais alto
ensinamento do budismo”, e relata que alguns envolvidos com o Course o
chamaram de “Vedanta cristão” (CMCD, p. 30). Mas nem hindus, nem budistas
ensinam que o mundo literalmente não é real. Segundo o Vedanta, maya não
significa “ilusão”; significa “aparição”. A maya do Princípio Supremo,
ou Brahman, não é uma irrealidade literal, mas uma espécie de imagem mágica do
Divino que é real em certo sentido e irreal em outro. O impulso do Vedanta não
é ensinar que o mundo é literalmente ilusório, mas superar o literalismo em si.
Segundo a doutrina de maya, o mundo não é literalmente uma ilusão, mas,
se o tomarmos como objeto literalmente real, coisa-em-si, então estamos
iludidos. Não é uma coisa-em-si: é a auto-manifestação mágica de Deus para — e
como — suas criaturas.
Inerente a toda aparição, porém, está a tendência
de ser tomada como literalmente real; os vedantinos chamam a esse poder de
manifestação, na medida em que vela seu Princípio, de avidya-maya.
Aqueles sob o poder de avidya-maya precisam da doutrina de uma Realidade
Absoluta transcendente — tal como A Course in Miracles ensina — que
esteja totalmente além deste mundo manifesto, diferente dele e maior do que
ele. Mas assim que esse Absoluto transcendente é realizado, então é conhecido
não só como Absoluto, mas também como Infinito. Como pura Transcendência, Ele
exclui como irreal tudo o que Lhe é outro; como Absoluto unido à Infinidade (em
termos do tantra hindu, Shiva unido à sua Shakti), Ele abraça todas as coisas
como Si mesmo, já que, se não o fizesse, seria menos do que Infinito e,
portanto, não realmente Absoluto.
O reconhecimento de que as formas visíveis e inteligíveis,
que velam Deus se as tomamos literalmente, na verdade O manifestam se deixamos
de cometer esse erro e até formam um Caminho de retorno à plena realização
d’Ele, os vedantinos chamam de vidya-maya, o poder fascinante e
iluminador da Verdade Absoluta. Usando a terminologia do Course, toda
vez que largamos um “relacionamento especial” baseado na identificação do ego,
o objeto que soltamos imediatamente se torna manifestação da Verdade, com a
qual entramos em “relacionamento santo”. E isso não seria possível se o mundo,
como o Course afirma, fosse literalmente e absolutamente uma ilusão.
Os budistas concordam com isso. A dialética
budista, depois de postular um Nirvana completamente transcendente e indizível,
que “não é nem terra, nem ar, nem fogo, nem água, nem o plano do éter infinito,
nem o plano do espaço infinito, nem o plano da consciência infinita” etc.,
etc., chega finalmente (no Lankavatara Sutra) a: “Mas este próprio sangsara,
este mundo ilusório criado pelo desejo e pela ânsia, é ele mesmo o Nirvana” — o
argumento sendo que, se houvesse literalmente um mundo de ilusão sangsárica
fora e oposto ao Nirvana, então o próprio Nirvana seria apenas realidade
relativa, não o Absoluto. Os budistas, pelo menos os do Mahayana, concordam com
o Course quanto a não haver, em realidade, um “mundo” independente
fundado em desejo e ignorância, já que “todos os seres são iluminados desde o
princípio”, se apenas soubessem disso. Mas, se não há mundo, são obrigados a
perguntar: o que então é este mundo? Respondem dizendo, não que o mundo seja
literalmente uma ilusão, mas que é “vazio de natureza própria”; não tem
existência literal, não tem ego; por isso aplicam a todos os fenômenos o termo shunyata,
“vacuidez”. Mas essa vacuidade, por não ser literal, não pode ser interpretada
como negação literal da realidade do mundo; tal negação seria um extremo falso,
assim como a crença na realidade literal de um mundo de fenômenos que possuem
natureza própria é outro extremo falso. E assim o budismo emparelha shunyata
com um princípio complementar, tathata ou “talidade”. Precisamente
porque todas as coisas são vazias de natureza própria (shunyata), todas
as coisas, exatamente como são (em sua tathata), manifestam o Princípio
Supremo; a natureza-Buda; Nirvana; Iluminação.
Certamente o Course inclui ensinamentos que
contêm elementos de imanência; se não o fizesse, se Deus fosse absolutamente
transcendente em todos os sentidos, não haveria Course e nem alunos para
cursá-lo. Ele ensina que, dentro deste mundo onírico falso, pela ação
misericordiosa de Cristo e do Espírito Santo, surge um sonho de bondade e
perdão. Esse sonho não é real, mas pode conduzir à Realidade se o seguirmos. O
que o Course nega é que todo o Universo seja, em certo sentido, esse
sonho libertador e salvador. Cada manifestação, se nos relacionamos com ela sem
ego, é uma porta para o Absoluto, porque — como o próprio Course ensina,
mas não compreende plenamente — em certo sentido jamais deixou o Absoluto; é a
doutrina de maya-in-divinis de Frithjof Schuon. (O Course também
fala de uma criação perfeita e eterna dentro da Natureza Divina — análoga aos
éons do pleroma gnóstico — mas essa criação não contém os arquétipos da
manifestação cósmica.) Em termos de cosmogonia, isso significa não só que este
universo ilusório, este “ataque a Deus”, pode de algum modo tornar-se
hospedeiro dos ensinamentos pelos quais o ataque pode ser desfeito — segundo o Course,
ao percebermos que, na Realidade, o ataque jamais ocorreu — mas também que a
manifestação inicial de um mundo aparentemente separado de Deus foi não apenas
um velamento da Realidade Absoluta que pareceu criar um universo de sofrimento,
como também uma manifestação jubilosa e libertadora dessa Realidade. A criação
do Universo foi, em si, uma libertação da prisão, uma salvação da ilusão, um
ato de Misericórdia Divina. No hadith qudsi de Maomé (sobre ele, paz),
Deus diz: “Eu era um Tesouro Escondido e ansiava por ser conhecido, então criei
o mundo para que Eu fosse conhecido.” Do mesmo modo, a resposta à segunda
pergunta “Por que Deus nos fez?”, no antigo Baltimore Catechism, é:
“Deus nos fez para manifestar Sua bondade e para partilhar conosco Sua
felicidade eterna no céu.” Compreender que o mundo fenomenal é prisão de
sofrimento exige pouca perspicácia; perceber que ele é também, junto com o seu
Gêngis Khan, seu Auschwitz e sua bomba de hidrogênio, um ato de Misericórdia
Divina, é uma verdade profundamente esotérica — a qual aprendi na escola
primária católica.
No Islã há duas Misericórdias divinas, ar-Rahman
e ar-Rahim, mencionadas no início da maior parte das suratas do Alcorão.
Rahman é a Misericórdia universal de Deus, pela qual Ele diz Sim a todas
as coisas, criando assim o Universo; Rahim é Sua Misericórdia
particular, dirigida àqueles que se voltam para Ele em busca de salvação, que
diz Sim a algumas coisas — as que ajudam a purificar a alma e a recordá-la de
Sua Realidade — e Não a outras, as que velam Sua Imagem no coração humano. Rahim
é a Misericórdia da redenção; Rahman é a Misericórdia da criação. Antes
da criação, nas profundezas da Natureza Divina, é como se todos os seres
possíveis, que viriam a formar o universo, clamassem por ser separados de Deus
para que pudessem conhecê-Lo de fato — algo que começamos a entender quando
lembramos que a proximidade cotidiana de nosso amado humano às vezes o oculta
de nós; “a ausência faz o coração ficar mais afetuoso”. E Deus atendeu ao
clamor. Ele suspirou um suspiro chamado nafas ar-Rahman, o “sopro do
misericordioso”, pelo qual todas as coisas passaram a ser. Quando a Bíblia diz
que “os céus narram a glória de Deus”, quando o devoto nativo-americano
reconhece o mundo natural, com toda sua violência e derramamento de sangue,
como sua catedral, e todas as formas vivas e não vivas à sua volta como sinais
espirituais de Wakan Tanka, eles se relacionam com Deus segundo Sua
teofania primordial, segundo Rahman. Nas palavras do Gênesis, Deus
contemplou o mundo que fizera e chamou-o bom. E, na medida em que O deixamos
olhar por nossos olhos esse mundo, nós também podemos chamá-lo assim. Mas a
existência de seres sencientes separados que compõem um universo não foi apenas
uma manifestação misericordiosa de Deus para seus olhos vivos; foi também
necessariamente um velamento da plenitude da Natureza Divina. E, à medida que o
ciclo da manifestação avançava, esse velamento tornou-se fonte de sofrimento.
Foi então que as miríades de seres sencientes, perdidos na ilusão de separação
de Deus, clamaram a Ele por salvação; novamente, Deus atendeu ao clamor. Enviou
profetas, salvadores e avatares para nos recordar Sua Realidade e estabelecer
Caminhos de retorno à plenitude dessa Realidade. Portanto, tudo o que Deus
realmente faz é atender a nossos desejos — aos mais profundos, isto é; aqueles
desejos mais rasos que Ele frequentemente não concede, ao menos nas formas
limitadas em que os concebemos, são aspectos parciais, ou traduções pobres, de
nosso Desejo mais profundo, aquele que Deus deseja para nós na Eternidade: que
sejamos exatamente o que somos em nossa verdade mais íntima; que nos relacionemos
com Ele exatamente como só nós podemos.
Esta é a fábula da criação de todas as coisas por
Allah e do retorno de todas as coisas a Ele. É estritamente análoga ao “expirar
e inspirar de Brahman” no hinduísmo, e à Criação, Queda, Redenção e Restauração
no cristianismo. E, se compreendermos que isso de fato não se dá no tempo, mas
na Eternidade, que esses quatro movimentos são na realidade simultâneos, então
deixa de ser fábula; torna-se um certo nível de gnose.
A Course in Miracles fica aquém dessa gnose. E o principal efeito desse déficit, baseado em
sua metafísica unilateral, é que a relação entre o relativo e o Absoluto é mal
compreendida. A verdade de que o Ser relativo é subconjunto necessário do Ser
Absoluto não é apreendida; a Grande Cadeia do Ser que une todas as coisas à sua
Fonte transcendente, em virtude da imanência dessa Fonte nelas, fica assim
rompida. E os ensinamentos práticos do Course, por mais úteis que possam
ser em certo estágio ou para certas pessoas, não bastam para restaurá-la.
Em termos
metafísicos, então, o erro de A Course in Miracles é ver o mundo como avidya-maya
mas não como vidya-maya, entender Deus como transcendente, mas não
imanente, ver os fenômenos em termos de shunyata mas não em termos de tathata.
Quais são os efeitos desse erro?
Para começar, o papel do ego é mal compreendido.
Concede-se-lhe pleno poder para criar o universo — embora ele e o universo
sejam ambos irreais — como se fosse a partir do nada. Mas, na realidade, o ego
não cria. Ele nem sequer cria a ilusão. Tudo o que faz é editar. O universo não
é uma ilusão criada a partir do nada, e sim uma Realidade vista através de um
espelho distorcido. Assim como os sentidos não relatam tudo o que existe, nem
mesmo no nível material, mas apenas aquilo para que foram projetados, também o
ego escolhe apenas aqueles aspectos de Deus com os quais ele se identifica, e
chama a isso de universo. Pode acreditar inconscientemente que criou esse
Universo, mas — como o Course ensina — isso não passa de delírio. O que
de fato fez — e isso o Course nega — foi perceber Deus segundo suas
próprias limitações. O que mais poderia perceber, já que Deus é a única
Realidade? Mas se ele fabrica um universo encadeando percepções limitadas e
fragmentadas do próprio Deus, então esse universo não pode, literal e
exclusivamente, ser um “ataque a Deus”. Do ponto de vista do ego subjetivo,
embora não em sua Essência tal como conhecida por Deus, ele precisa ser uma
tentativa ambígua tanto de negar Deus quanto de compreendê-Lo. Na medida em que
é negação, deve — como o Course ensina — ser negado. Na medida em que é
percepção parcial da Realidade Absoluta, deve — como o Course nega — ser
afirmado.
O Dr. Wapnick, em CMCD, pp. 61–62, cita a seguinte
“afirmação” do Course:
Sou responsável pelo que vejo.
Escolho os sentimentos que experimento, e decido qual meta desejo alcançar.
E tudo o que parece acontecer comigo eu peço, e recebo como pedi.
(TEXT, p. 418)
Tal como está, isso não é verdade. O “eu” que vê
isto e não aquilo, que experimenta sentimentos, decide metas e a quem as coisas
acontecem, é o ego — e o ego não é onipotente. Ele não é Deus. O ego busca a
autonomia e, ao fazê-lo, torna-se escravo de condições que não pode nem
escolher nem controlar. Só no sentido irônico é que “conseguiu o que pediu”. Wapnick
prossegue dizendo que “essa escolha se simplifica na decisão entre o ego ou o
Espírito Santo como nosso guia de comportamento”. Aqui estou inteiramente de
acordo: não escolhemos nossas experiências específicas; escolhemos se as
vivenciaremos a partir do ponto de vista do ego, de “vítima onipotente”, ou no
contexto do Espírito Santo, em que todos os eventos são atos de Misericórdia
Divina e manifestações da Verdade Divina. O Course, contudo, nega que
Deus envie experiências — meia verdade, pois enquanto Deus em Sua Essência está
além de dizer Sim a isto e Não àquilo, em relação a nós, e dependendo do nosso
estado, Ele é realmente experimentado como impondo mandamentos e proibições,
enviando recompensas e provas. Se o ego pensa que controla sua própria experiência,
está profundamente iludido. Se acredita que um Deus externo controla
arbitrariamente sua experiência, ainda está parcialmente iludido. Mas se
pudermos esquecer o ego na submissão à Vontade de Deus, operando através de
eventos aparentemente externos, começaremos a perceber que essa Vontade não é
imposta arbitrariamente, mas é inseparável do estado de seu sujeito. Em termos
sufis, é assim que o taslīm (submissão) conduz à compreensão de que, nas
palavras de Ibn al-‘Arabī, “o determinado (a criatura) determina o Determinador
(o Senhor)”.
Em CMCD, p. 63, o Dr. Wapnick diz que “simplesmente
mudar ou controlar o próprio comportamento — como é o objetivo de qualquer
código de moral — não basta, já que a causa raiz, que é a culpa da mente, ainda
estará lá”. Concordo. Mas, na p. 64, ele continua: “As pessoas acreditam
equivocadamente que, controlando seu comportamento, podem realmente mudar seus
pensamentos. E o que acontece então é que a culpa e o ódio subjacentes, que não
mudaram em nada, passam a ser projetados sob a forma de julgamento ou
perseguição, enquanto a pessoa permanece totalmente inconsciente da verdadeira
natureza de suas ações, porque o pensamento subjacente permaneceu
inconsciente.” Concordo que é exatamente isso o que pode acontecer, e com
demasiada frequência aconteceu. Ainda assim, na ascese cristã tradicional —
como representada pela Filocalia, por exemplo — a mudança de
comportamento não é considerada objetivo final, como os Wapnick parecem supor.
Entende-se perfeitamente que as paixões que causam o comportamento pecaminoso
residem não no corpo, mas na mente; por isso a luta contra elas é às vezes
chamada de “guerra invisível”. É verdade que mudar nosso comportamento não
pode, em si, mudar nossos pensamentos. O que pode fazer, porém, quando
praticado em contexto tradicional em que as leis da askesis são
compreendidas, é trazer esses pensamentos à superfície. Pensamentos que se
expressam automaticamente em ações jamais podem tornar-se conscientes, mas,
quando sua expressão exterior é interrompida, aparecem em sua forma verdadeira
— se, isto é, formos ensinados a vigiá-los.
A incapacidade do Course de afirmar a
realidade da existência manifesta ao mesmo tempo que a nega gera vários erros
óbvios e perigosos. Para começar, do ponto de vista cristão, ele cai em três
heresias: gnosticismo, arianismo e docetismo. (A palavra “heresia” sugere à
mente moderna nada além de um ato de rebelião contra um dogma arbitrariamente
imposto por autoridades religiosas para fins políticos. Mas, na realidade, é um
erro, um equívoco metafísico, geralmente baseado num elemento de verdade
retirado de seu contexto pleno e suficiente.) A negação gnóstica de que Deus criou
o mundo situa necessariamente, mas de modo falso, o ato de criação — que é um
conceito inevitável, já que é verdadeiro — dentro da própria Natureza Divina:
Jesus é criado, não gerado (arianismo); o Espírito Santo também é criado. O
arquétipo da manifestação cósmica de Deus, Deus Filho, já não é considerado
divino; por consequência, o cosmos já não é real. (O Course fala do
Filho e do Espírito Santo como “criatos” na eternidade, não no tempo, e como
permanecendo inseparáveis do Pai, o que sugere, de certo modo, a “geração” do
Filho e a “processão” do Espírito na doutrina católica; mas a palavra usada
ainda é “criação”.) E quando o Course, em conformidade com sua negação
absoluta da realidade do mundo, afirma que Jesus nunca nasceu, nunca morreu e
nunca sofreu, trata-se do erro do docetismo.
Se o cosmos é irreal, então quaisquer distinções de
nível dentro dele são sem sentido. Nas palavras do Course, “uma
hierarquia de ilusões é a primeira lei do caos” (TEXT, p. 455). Em
MCQCM, p. 24, os Wapnick desenvolvem essa doutrina do seguinte modo:
“‘A beleza está nos olhos de quem vê’ ... é ...
aplicável aqui, já que o que alguém considera belo outro pode achar
esteticamente desagradável...
De modo semelhante, o que uma sociedade julga bom, outra pode julgar mau e contrário
ao bem comum. Isso pode ser evidenciado por um estudo cuidadoso da história,
sociologia e antropologia cultural... nada do que o mundo considera belo é
real, e por isso não pode ter sido criado por Deus... tanto a beleza quanto a
bondade são conceitos relativos e, portanto, ilusórios...”
Mas será realmente verdade que bondade e moralidade
são inteiramente relativas? Ouçamos o que C. S. Lewis tem a dizer em seu ensaio
“The Poison of Subjectivism” (Christian Reflections, 1967, pp. 78–79):
“E quanto à objeção moderna — de que os padrões
éticos de diferentes culturas divergem tanto que não há tradição comum alguma?
A resposta é que isso é uma mentira — uma boa, sólida, retumbante mentira. Se
um homem entrar numa biblioteca e passar alguns dias com a Encyclopedia of
Religion and Ethics, logo descobrirá a maciça unanimidade da razão prática
no homem. Do hino babilônico a Samos, das Leis de Manu, do Livro dos
Mortos [egípcio], dos Analectos, dos estóicos, dos platônicos, dos
aborígenes australianos e dos peles-vermelhas, ele recolherá as mesmas
denunciações triunfantemente monótonas da
opressão, do assassinato, da traição e da falsidade, as mesmas injunções de bondade para com os idosos, os jovens e os fracos, de esmola,
imparcialidade e honestidade. Há, é claro, diferenças. Há até cegueiras em culturas particulares — assim
como há selvagens que não sabem contar até vinte. Mas a pretensão de que somos
apresentados a um mero caos — [de que] nenhum contorno de valores
universalmente aceitos se insinua — é simplesmente falsa e deveria ser
contradita em tempo e fora de tempo sempre que for encontrada. Longe de
encontrarmos um caos, encontramos exatamente o que esperaríamos se o bem fosse
de fato algo objetivo e a razão o órgão pelo qual é apreendido...
Se admitirmos uma vez que aquilo que Deus entende por ‘bondade’ é simplesmente
diferente do que julgamos ser bom, não resta qualquer diferença entre a
religião pura e o culto ao demônio.”
Talvez não se possa dizer o mesmo com igual
segurança no campo do gosto estético. Ainda assim, em toda cultura humana,
flores são consideradas belas; se algum dia você encontrar alguém repelido por
elas (alergias à parte), pode estar certo de que essa pessoa está
emocionalmente enferma. Pode ser que não haja explicação completa para o gosto,
devido ao elemento subjetivo. Porém, um gosto são ainda se baseia em princípios
objetivos. O gosto estético é como o paladar para alimentos; pode ser saudável
ou doentio. Alguém que considera atraentes alimentos saudáveis tem um sentido
de gosto saudável. Mas uma pessoa que gosta de comida lixo ou estragada tem o
paladar que chamamos de “viciado”. Tal pessoa pode sentir prazer real em comer
alimentos nocivos, mas isso não impedirá que a deixem doente.
A negação da realidade do mundo tende a reforçar o
narcisismo. O mundo, incluindo outras pessoas, é irreal segundo o Course
— mas, como eu sei disso, eu mesmo devo ser real. O mundo é meu sonho; não pode
ser o sonho de Deus, já que Ele nem sequer sabe dele. Essa é uma das
contradições ocultas de A Course in Miracles, que mina sua meta
declarada de superar a crença do ego de que é autônomo e auto-criado. Nas
palavras dos Wapnick:
“Nosso mundo e nossas vidas são nossos sonhos,
assim como nossos sonhos de sono — com todas as suas figuras e eventos — estão
presentes em nossas mentes adormecidas que, em certo sentido, também não passam
de alucinações... já que o conteúdo do sonho do ego é medo, ódio, vitimização e
falta de perdão, todas as figuras oníricas terão os temas acima roteirizados ao
longo do sonho que chamamos de ‘vida’... não há ninguém a ser perdoado porque,
mais uma vez, todas as pessoas em nossas vidas são simplesmente figuras
inventadas em nossos sonhos. Quem precisa de perdão somos nós mesmos — por
termos sonhado, em primeiro lugar, em vez de nos lembrarmos de nossa identidade
como Cristo, desperto em Deus... Nossa função de ‘libertar nossos irmãos’ por
meio do perdão refere-se a uma função e processo que, na verdade, ocorrem
apenas dentro de nossas mentes...”
(MCQCM, pp. 78–79)
Tomando os Wapnick ao pé da letra, com base apenas
nessa passagem, poderíamos concluir que subscrevem à máxima de Jean-Paul Sartre
de que “o inferno são os outros”. Claramente não posso perdoar os outros se não
acredito que sejam reais, assim como não posso amá-los, respeitá-los ou
fazer-lhes justiça. Eles são simplesmente minhas criações ilusórias; mas, ao
contrário de Deus no Gênesis, não posso contemplá-los e chamá-los bons.
Trata-se de solipsismo mascarado de iluminação; alegar que as outras pessoas
não existem é uma forma de homicídio. Na p. 79, os Wapnick dizem que “ao
escolher Jesus como nosso mestre em vez do ego... nos tornamos lembretes para
nossos irmãos de que eles podem fazer a mesma escolha que nós fizemos...” Mas,
infelizmente, “figuras inventadas em nossos sonhos” não têm poder de escolha.
Admite-se, nas pp. 78–79, que minha mente onírica também é uma alucinação, mas
isso não a impede de ser mais real do que suas próprias criações, já que é
capaz de perceber que esses fantasmas são de fato fantasmas. E, se ela mesma é
uma alucinação, então quem está alucinando? O Course nega que Deus possa
estar sonhando comigo, de modo que a única alternativa é que devo estar
sonhando a mim mesmo. Se Deus está inconsciente de mim tal como me experimento
neste mundo, se Ele não me criou nesta dimensão, então devo ter me criado. Se
sou minha própria alucinação, então o ego é de fato auto-criado, portanto
equivalente a Deus. O Course ensina que uma porção do Filho, da criação
total e perfeita de Deus na eternidade, distraiu-se por um instante e pareceu
cair no sono, permitindo assim que a “pequena ideia louca” de que poderíamos
ser separados de Deus projetasse todo o universo ilusório. Mas essa porção
adormecida, ou aparentemente adormecida, do Filho é precisamente o ego sutil.
A única saída para a falsa crença do ego de que é
auto-criado é que o centro de minha consciência se desloque do ego para o ātman,
a Testemunha divina — uma metanoia expressa por São Paulo quando disse:
“já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim”. Se nos conhecemos como
conhecidos por Deus, então o ego se dissolve. Mas se Deus jamais pode
testemunhar esse ego — como ilusão — ele jamais pode ser dissolvido. Permanece
preso no sonho ilusório de sua própria auto-criação. Jesus, segundo o Course,
compreende a ilusão na qual caímos; Deus, identificado estritamente com o Pai,
não; o Espírito Santo é nossa “mente correta”, o pensamento de Deus que corrige
as falsas crenças do ego. Mas, a menos que nos conheçamos como vistos e
compreendidos pelo próprio Absoluto, jamais poderemos realizar esse Absoluto
como o verdadeiro Eu, o verdadeiro Vidente em nós. Nos termos do Course,
continuamos presos à ilusão de que é simplesmente nossa própria compreensão da
Verdade que torna essa Verdade aquilo que é (cf. TEXT, p. 356). Nas
palavras do Dr. Wapnick (MCQCM, p. 32):
“Se os estudantes, com o amor de Jesus a seu lado,
podem olhar sem julgamento e sem culpa para seus egos em ação, então, quem está
olhando? Não pode ser o próprio ego, mas a mente...”
Isso é exato, até certo ponto. Mas essa Testemunha
interior, que Wapnick chama de “a mente”, precisa ser, em última instância, o
próprio Absoluto, já que, se for algo menos, o “sonho de separação” não é
transcendido; um modo sutil de percepção sujeito/objeto não foi superado; a semente
do ego permanece. A negação de que a mente, em seu nível mais profundo, seja o
próprio Absoluto, a Testemunha divina, é ela mesma uma ilusão do ego.
Além disso, negar que o universo tenha ao menos uma
realidade relativa é colocar um abismo intransponível entre Deus e nossa
experiência, abismo que o Course então tenta transpor. Mas, se não há
relação intrínseca entre Deus e o universo, a Hierarquia do Ser — a única ponte
concebível entre eles — é inválida. Assim como a negação da transcendência faz
essa Hierarquia desabar, porque coloca tudo no mesmo nível ontológico (em
última instância, material), também a negação da imanência faz o mesmo, já que
não há nada, nem mesmo relativamente real, fora de Deus, com o que Ele pudesse
ter uma relação hierárquica. Nas palavras dos Wapnick:
“Os chamados reinos animal, vegetal e mineral são
todos tanto quanto parte da Filiação [a criação eterna de Deus] quanto o é o homo
sapiens. Distinções entre o que é animado e o que é inanimado foram
introduzidas arbitrariamente pelo homo sapiens, seguindo os ensinamentos
do ego, a fim de poder categorizar e controlar um mundo ilusório e ter ‘domínio
sobre todo ser vivente’ (Gn 1:26,28). Crença desse tipo é o que A Course in
Miracles chama de primeira lei do caos, que existe uma ‘hierarquia de
ilusões’ (TEXT, p. 455), em que alguns aspectos da ilusão são
considerados mais altos, mais evoluídos ou mais inclinados espiritualmente do
que outros, como quando os cientistas falam de uma ‘cadeia de seres’, por
exemplo, em que, por implicação, há uma escala de vida e de não-vida. Na
realidade, porém, todas as formas de ‘vida’ são as mesmas, porque são todas
iguais em ser projeções do pensamento do ego de vida-separada-de-Deus.”
(MCQCM, p. 34)
Esta é uma meia-verdade poderosamente destrutiva,
que não pode ser levada a sério sem certa dose de autoengano, como se vê pelo
fato de que o Course ele mesmo postula uma hierarquia espiritual quando
fala de “professores de Deus” (teachers of God) e dos “professores de
professores”, que são mais espiritualmente esclarecidos do que eles; e sua
regra de achatamento da hierarquia — “não há ordem de dificuldade em milagres”
— isto é, nas ações do Espírito Santo para corrigir as falsas ideias do ego, é
desmentida por afirmações como: “a última coisa que pode ajudar os que não
estão em sua mente correta, ou os doentes, é um aumento de medo (...). Se forem
expostos prematuramente a um milagre, podem ser precipitados em pânico” (TEXT,
p. 20).
A hierarquia é uma realidade. Se essa, ou qualquer
realidade, não for aceita, ela voltará pela porta dos fundos, aparecendo como
contradição enganosa em vez de verdade conscientemente admitida. Isso não quer
dizer que a hierarquia deva ser absolutizada; ela continua sendo uma verdade
relativa, de certo modo, já que diz respeito à relação entre o ser relativo e o
Ser Absoluto. Mas, em virtude de sua relação com o Absoluto, ela participa
dessa Absolutidade; numa expressão usada por Frithjof Schuon em outros
contextos, ela é “relativamente absoluta”. Segundo a metafísica tradicional, o
Absoluto não apenas nega a relatividade, mas também a abrange. Nos termos de
Ibn al-ʿArabī, o Absoluto é absolutamente não-delimitado, já que não é delimitado pela sua própria não-delimitação. Os limites, possuindo sua própria realidade relativa, podem aparecer dentro da Realidade sem que essa
Realidade seja limitada por eles; Deus não precisa refugiar-se na Sua própria
Ilimitação para evitar cair sob a limitação. Ele pode derramar-Se
imprudentemente na existência relativa sem, de forma alguma, perder Sua
Absolutidade — razão pela qual a existência relativa pode “retornar” ao
Absoluto, mediante a compreensão de que suas próprias limitações experimentadas
de modo algum limitam Deus, mas sim O exprimem.
A hierarquia, então, embora relativa, é também necessária.
A Realidade, não sendo exclusivamente transcendente, manifesta-se
necessariamente em, e como, ser relativo — simplesmente porque, sendo Infinita,
nada a impede de fazê-lo. Se a hierarquia fosse estritamente absoluta, a
imanência seria negada. Seria impossível conhecer a Essência divina como
essência de todas as coisas. Deus ficaria fixo a uma distância infinita de Suas
criaturas, que seriam obrigadas ou a desesperar de jamais realizá-Lo, ou a
tentar “tomar o céu de assalto”, subindo os degraus fixos dessa hierarquia
absoluta, em direção àquele Deus distante, pela pura auto-vontade prometeica.
Inversamente, se não houvesse hierarquia, não poderia haver Caminho espiritual,
nenhum modo de crescer em amor e conhecimento. Toda experiência seria definida literalmente
ou como ilusão total, ou como a própria Essência divina. Enquanto ilusão,
estaria sem qualquer esperança de atingir o Ser; enquanto Essência divina em
sentido literal, estaria sem esperança de outro modo, por não ter possibilidade
de confrontar as próprias ilusões e sofrimentos limitantes. Se somos todos
literalmente Deus e ainda assim algo está radicalmente errado, então a que Deus
podemos recorrer em busca de auxílio?
A hierarquia, corretamente compreendida, não é
opressão; é misericórdia, cujo servo é a justiça. Sendo verdadeira, é tratada
de um modo ou de outro em qualquer doutrina metafísica autêntica. Sempre que é
excluída, aparece em formas ilusórias. E o mesmo vale para a imanência. A
Course in Miracles, como era de se esperar, também tem uma doutrina de
imanência espalhada em seu interior, mas essa doutrina não é colocada na
relação correta com o transcendentalismo dominante do Course. Ela salta
aos olhos como contradição desconcertante, sendo uma introdução sentimental e
ilógica do amor pelas criaturas, para compensar a definição do universo, pelo Course,
como um ataque a Deus:
“Quão santo é o menor grão de areia, quando se
percebe que ele é parte do quadro completo do Filho de Deus! As formas que os
pedaços quebrados parecem assumir nada significam. Pois o todo está em cada um.
E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que qualquer outra parte.”
(TEXT, p. 557)
Aqui, portanto, em contradição com a definição de
“ataque a Deus”, o universo criado parece ser definido como bom, santo, e como
parte ao menos do “quadro” do Filho de Deus, que é a criação perfeita e eterna
de Deus. Mas, como essa doutrina de imanência não é emparelhada com o
transcendentalismo do Course desde o início, ela é sutilmente
distorcida. Em linha com a negação da hierarquia, o Course afirma, com
razão, que “o todo [do Filho de Deus] está em cada um”, em cada “pedaço
quebrado” dele. Esta é a perspectiva da imanência. Mas dizer que, porque o todo
está em cada forma, então todas as formas são iguais, é um erro. Deus não é
apenas o Universal; Ele é também o Único. Em termos de maya-in-divinis,
cuja expressão exterior é a manifestação cósmica, essa Unicidade aparece em
cada forma pela qual Deus se manifesta. Porque Deus é Universal, o todo d’Ele
aparece em cada parte de Sua manifestação, embora somente em Essência, não em
forma. Porque Deus é Único, essa Unicidade também aparece em cada parte; não há
duas formas, dois grãos de areia ou dois indivíduos humanos idênticos. Se isso
não fosse verdade, o amor não seria possível, já que, se o todo está presente
em mim do mesmo modo que está nos outros, em vez de estar em mim de maneira
única, tal como sua manifestação nos outros é única, então para que eu
precisaria dos outros? Se “as formas que os pedaços quebrados parecem assumir
nada significam”, então as pessoas, em sua alteridade em relação a mim, são
formas vazias, destituídas de sentido. De que me servem? Se somos apenas
únicos, somos mutuamente exclusivos, e o amor é negado; se a unicidade é
suprimida em nome da doutrina de que o todo está em cada um, o amor é novamente
negado. Uma mulher é praticamente igual a qualquer outra; se você viu uma
sequoia, viu todas. Mas a verdade é que estamos relacionados uns aos outros
justamente por nossa alteridade; somos aparentados por nossa unicidade comum,
que é expressão da Unicidade Absoluta de Deus. Para que o amor exista, a
verdadeira relação entre Deus e o cosmos precisa ser conhecida. Para
conhecê-la, precisamos aceitar e compreender a Grande Cadeia do Ser, na qual o
fato de que Deus é a Essência tanto de mim quanto de uma pedra não suprime de
modo absurdo a verdade de que sou superior a uma pedra, já que posso saber
disso.
Quando o Gênesis fala de Deus dando à humanidade
“domínio sobre todos os seres vivos”, trata-se de um domínio do Intelecto, e só
secundariamente de um domínio da vontade. A ideia de que isso nos dá carta
branca para usar, alterar, distorcer e destruir tudo o que vemos não passa de
interpretação errônea, pelo ego, da missão que Deus nos confiou. Em termos islâmicos,
o homem é o khalīfa de Deus, ou vice-gerente, na criação material,
porque só nós podemos contemplar conscientemente essa criação como composta de
sinais de Deus (āyāt), e assim agir como o conduto entre ela e o
Espírito que lhe dá vida. Este é o significado da lenda, tanto bíblica quanto
corânica, de que Adão nomeou os animais: ele, como só ele podia, reconheceu-os
como nomes ou sinais de Deus.
Em CMCD, p. 29, o Dr. Wapnick fala da
natureza e da unicidade de Deus:
“Deus não é um indivíduo, com identidade ou eu
pessoal; isto é, Ele não tem forma que O distinga de Sua criação. Ele é
totalmente impessoal, como o Um de Plotino. Assim, Sua unicidade não é definida
comparando-O com outro, mas Deus é único porque não há outro.”
Isso está menos de um milímetro fora do centro — mas
um erro pequeno vale tanto quanto um enorme. De fato, Deus é único; e, com
efeito, em essência não há outra Realidade. Mas nenhuma unicidade, incluindo a
unicidade da pessoa humana, é definida pela comparação com outra coisa; tudo
aquilo que é único é, por definição, incomparável. A unicidade de Deus,
portanto, não pode ser usada como argumento em favor de Sua estrita
impessoalidade. Segundo a metafísica tradicional, Deus é ao mesmo tempo pessoal
e impessoal — em termos hindus, tanto Saguna Brahman quanto Nirguna
Brahman.
Deus é impessoal no sentido de que não é limitado
por forma. É pessoal no sentido de que essa ausência de limite necessariamente
nos aparece, na medida em que somos pessoas, como a própria Personalidade. De
um lado, Ele transcende todos os atributos da personalidade; se não o fizesse,
poderíamos abarcá-Lo; Ele estaria encerrado dentro dos limites de nossas mentes
finitas. Mas, de outro lado, Ele é a única Pessoa da qual se pode predicar a
Realidade em sentido pleno — a única Realidade concreta e singular de que todas
as demais formas e seres são “versões” relativamente abstratas. De um ponto de
vista, podemos dizer que o Deus impessoal, a “Divindade” (Godhead) de
Mestre Eckhart, é hierarquicamente superior ao Deus pessoal, que age e é apenas
em relação à Sua manifestação divina e cósmica. Ainda assim, se a Divindade
fosse estritamente impessoal no sentido de carecer da personalidade, o Deus
pessoal não poderia ser Sua primeira hipóstase inteligível. Talvez seja melhor,
então, chamar Deus, em Sua Essência divina, não de impessoal, mas de
transpessoal. Afinal, o que é uma pessoa? Está ela limitada ao que sei dela, à
minha imagem de sua personalidade? Não é ela tão misteriosa, em suas
profundezas últimas, quanto o próprio Deus, já que essas profundezas, na
verdade, se abrem para o próprio Deus? Uma pessoa não é abstração impessoal
pelo simples fato de haver nela mais do que eu jamais possa conhecer. As
profundezas da Personalidade nos levam muito além de tudo quanto podemos saber
das pessoas; e, no entanto, o pronome pelo qual nos referimos a esse mistério
ainda não é “o quê”, mas “Quem”. E esse Quem, embora não limitado por forma,
não é, por isso, estritamente informe, já que “Ele não é delimitado pela Sua
própria não-delimitação”. As palavras do Tao Te Ching são pertinentes
aqui, ainda que se aproximem do Absoluto por meio da metáfora da natureza, e
não do homem:
“O Tao é esquivo e intangível.
Oh, é intangível e esquivo, e no entanto nele há imagem.
Oh, é intangível e esquivo, e no entanto nele há forma.
Oh, é obscuro e escuro, e no entanto nele há essência.
Essa essência é muito real, e nisto reside a fé.”
O Ser está disposto em graus ontológicos; se não
estivesse, eu não poderia olhar para cima, em direção à Verdade, e pedir que
ela me ilumine, nem poderia ser generoso e protetor com os seres vivos abaixo
de mim na hierarquia. Eu não poderia aceitar meu próprio estatuto ontológico de
criatura como necessariamente exaltado em certos aspectos e limitado em outros
— recusando isso, eu me sujeitaria à arrogância e ao desespero luciferinos —
nem poderia aspirar a atingir conscientemente esse estatuto, se por egotismo eu
tivesse caído abaixo dele, como todos nós caímos, de uma forma ou de outra. E,
se a hierarquia é achatada, então a igualdade também sofre. A perspectiva que
me permite ver como sou ontologicamente inferior a algumas coisas e superior a
outras, embora compartilhe com elas a mesma Essência divina, também me permite
ver como sou diferente e ao mesmo tempo relacionado a indivíduos no mesmo plano
de ser que eu. Onde a hierarquia é esmagada, a unidade só pode aparecer como
uniformidade abstrata, e a uniformidade destrói tanto a piedade, que reconhece
o mais alto e o mais baixo, quanto o afeto que existe entre iguais
singularmente diferentes e, por isso mesmo, singularmente relacionados. O
universo de nossa experiência torna-se planície árida e ilusória do ego
narcísico: um ataque contra Deus.
Nem A Course in Miracles consegue dispensar
a hierarquia que “oficialmente” nega. Em MCQCM, p. 90, o Dr. Wapnick
diz:
“O estudante não é convidado a passar diretamente
dos pesadelos ilusórios dos relacionamentos especiais para a realidade do único
relacionamento com Deus, mas, com Jesus como guia, eles passam primeiro pelos
sonhos ilusórios do perdão (...); primeiro aprendem que Deus é um Pai amoroso,
e não odioso, e que o Espírito Santo é um companheiro consolador no mundo, e
não seu inimigo. Só então podem aprender que, na verdade, não há mundo algum em
que eles possam nos consolar. A metáfora cumpriu o seu papel.”
Trata-se, precisamente, de uma “hierarquia de
ilusões”. O que se nega, ao que parece, é que essa hierarquia seja ontológica.
É uma hierarquia de experiências, não de realidades. Mas, segundo a metafísica
tradicional, a epistemologia e a ontologia — conhecer e ser — formam um todo
indivisível: experiências mais elevadas são experiências reais de mundos mais
elevados. Se não fosse assim, todo nosso “conhecimento” seria ilusório,
trancado no círculo do ego narcísico. Os sufis também falam da existência
manifesta como metáfora, mas não lhe negam toda realidade; apenas atribuem sua
realidade unicamente a Deus, a quem a existência metafórica simultaneamente
manifesta e vela. Qualquer experiência, portanto, é em certa medida uma
experiência da Realidade; se fosse possível a uma experiência carecer de toda
realidade, não poderíamos experimentá-la. Certamente podemos interpretar
erroneamente o que vemos, como quando os hindus comparam maya a
“confundir uma corda com uma cobra”. Mas é impossível ver algo que não está lá,
ao menos em algum nível. O Dr. Wapnick fala de despertar da crença na realidade
do mundo como acordar de um sonho (CMCD, p. 19). Mas quem disse que
sonhos não são reais? Eles podem nos dar intuições válidas, afetar nossa saúde,
até predizer o futuro. São um nível de realidade; a vida desperta é outro. E
Deus é a própria Realidade, além de dormindo e acordado, além de níveis; todo
dormir e acordar, todos os níveis ontológicos são aspectos d’Ele.
A transcendência exclusiva de A Course in
Miracles tem ainda uma consequência adicional e arrepiante: Deus não ouve
nossas orações. Como poderia, se está totalmente inconsciente deste universo
ilusório de que fazemos parte? Nas palavras do workbook, p. 335: “Não
penses que Ele ouve as pequenas preces dos que O invocam com nomes de ídolos
caros ao mundo. Eles não podem alcançá-Lo assim.” E, nas pp. 69–70, o TEXT
diz:
“Deus não guia, porque só pode compartilhar
conhecimento perfeito.
A orientação é avaliativa, porque implica que há um caminho certo e um caminho
errado (...). O Espírito Santo, por sua vez, guia e oferece escolha...”
É como dizer: “A Estrela Polar não pode guiar
marinheiros porque não se move; somente o astrolábio pode guiar.” Mas a
imobilidade da Estrela, assim como a perfeição do Divino, é orientação. Se a
“perfeição” não pode guiar, então está longe de ser perfeita.
A doutrina de que Deus não ouve nem responde às
orações é um erro. Segundo Ibn al-ʿArabī, nossa imagem de Deus, o “Deus criado na crença”, é auto-criada e, portanto, menos
do que Deus. Ainda assim, Deus, em Sua Misericórdia intrínseca, aceita as preces que Lhe
dirigimos, já que, mesmo que a forma não seja Ele, Ele permanece a Essência
dela. Nossa capacidade de compreender Sua resposta pode ser limitada pela forma
sob a qual O concebemos, mas nenhuma forma adorada como Deus está totalmente
separada d’Ele. Os Wapnick, em MCQCM, p. 120, mencionam vários trechos
do Course em que somos orientados a rezar a Deus como se Ele nos
ouvisse, sobretudo pedindo perdão, mas isso é explicado como espécie de
reeducação de si mesmo, dentro do contexto do sonho ilusório do ego, sob a
tutela de um Espírito Santo — criado, não divino — que é como a memória, pelo
ego, da Realidade de Deus.
A razão pela
qual o Course nega que Deus possa ouvir e responder às nossas orações é,
ao que parece, enfatizar que a Expiação (Atonement) já está completa na
Eternidade. Mas, como o aspecto de nós que ora a Deus na esperança de Sua
resposta existe no tempo, nós necessariamente, e legitimamente, experienciamos
a Expiação como processo — embora, se não intuímos também a realidade eterna da
Expiação como subjacente a esse processo, o processo jamais termine. Mas A
Course in Miracles, como o ego humano, parece incapaz de imaginar que “o
tempo é a imagem móvel da Eternidade”, que aquilo que é eterno e infinito para
Deus é vivido pela mente egoica como temporal e limitado, sem que exista entre
ambos qualquer barreira real fora da má percepção do ego. Quando o Course
diz que Deus não ouve nossas orações, ou que ignora o universo, essa é sua
maneira de tentar salvaguardar a Absolutidade e a Perfeição divinas. No
entanto, ao seguir tal via, vê-se forçado a negar Sua Infinitude. Falha em
compreender que Deus, ao contrário de nós, pode olhar para Esta é uma
meia-verdade poderosamente destrutiva, que não pode ser levada a sério sem
certo grau de autoengano, como fica ilustrado pelo fato de que o próprio Course
postula uma hierarquia espiritual quando fala de “mestres de Deus” (teachers
of God) e dos “mestres de mestres” (teachers of teachers), que são
mais espiritualmente iluminados do que eles; e sua regra de achatamento da
hierarquia, segundo a qual “não há grau de dificuldade em milagres” — nas ações
do Espírito Santo para corrigir as falsas ideias do ego — é desmentida por
afirmações como: “a última coisa que pode ajudar os não-retos de mente, ou os
doentes, é um aumento de medo. (…) Se forem expostos prematuramente a um
milagre, podem ser precipitados em pânico” (TEXT, p.20).
A hierarquia é uma realidade. Se essa, ou qualquer
realidade, não for aceita, ela entrará pela porta dos fundos, aparecendo como
uma contradição enganosa em vez de uma verdade conscientemente aceita. Isso não
quer dizer que a hierarquia deva ser absolutizada; ela permanece uma verdade
relativa, de certo modo, já que diz respeito à relação entre o ser relativo e o
Ser Absoluto. Mas, em virtude de sua relação com o Absoluto, ela participa
dessa Absolutidade; numa frase usada por Frithjof Schuon em outros contextos,
ela é “relativamente absoluta”. Segundo a metafísica tradicional, o Absoluto
não apenas nega a relatividade, mas também a abrange. Em termos de Ibn
al-‘Arabi, o Absoluto é absolutamente não-delimitado, já que não é delimitado
pela própria não-delimitação. Limites, possuindo sua própria realidade
relativa, podem aparecer dentro da Realidade sem que essa Realidade seja
limitada por eles; Deus não precisa refugiar-se em sua própria Ilimitação para
evitar cair sob limitação. Ele pode derramar-Se temerariamente na existência
relativa sem, de modo algum, perder Sua Absolutidade — razão pela qual a
existência relativa pode “retornar” ao Absoluto através da compreensão de que
suas próprias limitações experimentadas de forma alguma limitam Deus, mas antes
O expressam.
A hierarquia, então, embora seja relativa, também é
necessária. A Realidade, por não ser exclusivamente transcendente, necessariamente
Se manifesta na, e como, existência relativa — simplesmente porque, sendo
Infinita, nada a impede de fazê-lo. Se a hierarquia fosse estritamente
absoluta, a imanência seria negada. Seria impossível conhecer a Essência Divina
como essência de todas as coisas. Deus ficaria fixado a uma distância infinita
de suas criaturas, que seriam forçadas ou a desesperar de jamais realizá-Lo, ou
a tentar “tomar o céu de assalto” escalando, apenas pela vontade prometeica, os
degraus fixos dessa hierarquia absoluta, rumo a esse Deus distante.
Inversamente, se não houvesse hierarquia, não poderia haver Caminho espiritual,
nenhum modo de crescer em amor e conhecimento. Toda experiência seria definida,
literalmente, ou como ilusão total, ou como Essência Divina. Como ilusão,
estaria sem qualquer esperança de alcançar o Ser; como Essência Divina em
sentido literal, estaria sem esperança de outro modo, não tendo qualquer
possibilidade de confrontar suas próprias ilusões e sofrimentos limitantes. Se
somos todos literalmente Deus, e ainda assim algo está radicalmente errado,
então a que Deus podemos recorrer em busca de ajuda?
A hierarquia, corretamente entendida, não é
opressão; é misericórdia, cujo servo é a justiça. Sendo verdadeira, é tratada
de uma forma ou de outra por qualquer doutrina metafísica autêntica. Sempre que
é excluída, aparece em formas ilusórias. O mesmo vale para a imanência. A
Course in Miracles, sem surpresa, também tem uma doutrina de imanência
pairando dentro dele, mas essa doutrina não é colocada na relação correta com o
transcendentalismo dominante do Course. Ela sobressai como uma
contradição intrigante, sendo uma introdução sentimental e ilógica do amor
pelas criaturas, para compensar a definição do universo, dada pelo Course,
como um ataque a Deus:
Quão santo é o menor grão de areia, quando se
percebe que ele é parte do quadro completo do Filho de Deus! As formas que os
fragmentos partidos parecem tomar nada significam. Pois o todo está em cada um.
E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que cada outra parte.
TEXT, p.557
Assim, aqui, em contradição com a definição de
“ataque a Deus”, o universo criado parece ser definido como bom, santo, e parte
ao menos do “quadro” do Filho de Deus, que é a criação perfeita e eterna de
Deus. Mas como essa doutrina de imanência não é desde o início emparelhada com
o transcendentalismo do Course, ela é sutilmente distorcida. Em linha
com a negação da hierarquia, o Course afirma, corretamente, que “o todo
(do Filho de Deus) está em cada um”, cada “fragmento partido” dele. Esta é a
perspectiva da imanência. Mas dizer que, porque o todo está em cada forma,
então todas as formas são iguais, é um erro. Deus não é só o Universal; Ele é
também o Único. Em termos de maya-in-divinis, cuja expressão exterior é
a manifestação cósmica, essa Unicidade aparece em cada forma através da qual
Deus se manifesta. Porque Deus é Universal, o todo d’Ele aparece em cada parte
de Sua manifestação, embora apenas em Essência, não na forma. Porque Deus é
Único, essa Unicidade também aparece em cada parte; nenhuma forma, nenhum grão
de areia ou indivíduo humano é idêntico a outro. Se isso não fosse verdade, o
amor não seria possível, já que, se o todo está presente em mim da mesma
maneira que está nos outros — em vez de estar em mim de modo único, assim como
sua manifestação nos outros é única — então para que eu precisaria dos outros?
Se “as formas que os fragmentos partidos parecem tomar nada significam”, então
as pessoas em sua alteridade em relação a mim são formas vazias, destituídas de
significado. De quem eu preciso? Se somos apenas únicos, somos mutuamente
exclusivos, e o amor é negado; se a unicidade é suprimida em nome da doutrina
de que o todo está em cada um, o amor é negado de novo. Uma mulher é muito
parecida com qualquer outra; se você viu uma sequoia, viu todas. Mas a verdade
é que nos relacionamos uns aos outros por nossa própria alteridade, somos
aparentados por nossa unicidade comum, que é expressão da Unicidade Absoluta de
Deus. Para que o amor exista, a verdadeira relação entre Deus e o cosmos
precisa ser conhecida. E, para que isso seja conhecido, devemos aceitar e
compreender a Grande Cadeia do Ser, onde o fato de que Deus é a Essência tanto
de mim quanto de uma rocha de modo algum suprime a verdade de que eu sou superior
a uma rocha, já que posso saber disso.
Quando o Gênesis fala de Deus dando à humanidade
“domínio sobre todos os seres vivos”, este é um domínio do Intelecto, e só
secundariamente um domínio da vontade. A ideia de que isso nos dá carta branca
para usar, alterar, distorcer e destruir tudo o que vemos não passa de uma má
interpretação egóica da missão que Deus nos confiou. Em termos islâmicos, o
homem é o khalifa de Deus, ou vice-gerente, na criação material, porque
só nós podemos contemplar conscientemente essa criação como composta pelos
sinais de Deus (ayat), e assim agir como conduto entre ela e o Espírito
que lhe dá vida. Esse é o sentido da lenda, tanto bíblica quanto corânica,
segundo a qual Adão nomeou os animais: ele, como só ele podia, reconheceu-os
como nomes ou sinais de Deus.
Em CMCD, p.29, o Dr. Wapnick fala da natureza e da
unicidade de Deus:
Deus não é um indivíduo, com identidade ou eu
pessoal; isto é, Ele não tem forma que o distinga de sua criação. Ele é
totalmente impessoal, como o Um de Plotino. Assim, Sua unicidade não é definida
comparando-O com outro, mas antes Deus é único porque não há outro.
Isto está menos de um milímetro fora do centro —
mas um erro é tão bom quanto um quilômetro. De fato Deus é único; e de fato, em
essência, não há outra Realidade. Mas nenhuma unicidade, incluindo a unicidade
da pessoa humana, é definida comparando-a com outra coisa; aquilo que é único,
por definição, é incomparável. A unicidade de Deus, então, não pode ser usada
como argumento em favor de Sua estrita impessoalidade. Segundo a metafísica
tradicional, Deus é ao mesmo tempo pessoal e impessoal — em terminologia hindu,
tanto Saguna Brahman quanto Nirguna Brahman.
Deus é impessoal no sentido de que não é limitado
por forma. Ele é pessoal no sentido de que essa ausência de limite
necessariamente nos aparece, enquanto somos pessoas, como a própria
Personalidade. De um modo, Ele transcende todos os atributos de personalidade;
se não o fizesse, poderíamos circunscrevê-Lo; Ele estaria selado, afastado do Infinito,
dentro dos limites de nossas mentes limitadas. Mas de outro modo, Ele é a única
Pessoa da qual a Realidade pode ser predicada — a única Realidade concreta e
singular de que todas as outras formas e seres são “versões” relativamente
abstratas. Sob um certo ponto de vista, podemos dizer que o Deus impessoal, a
“Divindade” de Meister Eckhart, é hierarquicamente superior ao Deus pessoal,
que age e é apenas em relação à Sua manifestação divina e cósmica. Contudo, se
a Divindade fosse estritamente impessoal, no sentido de carecer ou faltar-lhe a
pessoalidade, o Deus pessoal não poderia ser sua primeira hipóstase
inteligível. Portanto, é provavelmente melhor chamar Deus, em Sua Essência
divina, não de impessoal, mas de transpessoal. Afinal, o que é uma pessoa? Está
ela limitada ao que eu sei dela, à minha imagem de sua personalidade? Não é ela
tão misteriosa em suas profundezas últimas quanto o próprio Deus, já que tais
profundezas, de fato, se abrem em Deus? Uma pessoa não é uma abstração
impessoal simplesmente porque há nela mais do que eu jamais posso conhecer. As
profundezas da Personalidade nos levam muito além de tudo o que podemos saber
das pessoas, mas o pronome pelo qual nos referimos a esse mistério ainda não é
“o que”, mas “Quem”. E esse Quem, embora não seja limitado por forma, tampouco
é, por isso, estritamente sem forma, já que “Ele não é delimitado pela Sua
própria não-delimitação”. As palavras do Tao Te Ching são relevantes
aqui, embora ele tenda a abordar o Absoluto pela metáfora da natureza, mais do
que pela do homem:
O Tao é evasivo e intangível.
Oh, ele é intangível e evasivo, ainda assim dentro dele há imagem.
Oh, ele é intangível e evasivo, ainda assim dentro dele há forma.
Oh, ele é obscuro e escuro, ainda assim dentro dele há essência.
Essa essência é muito real, e aí reside a fé.
O ser é disposto em graus ontológicos; se assim não
fosse, eu não poderia erguer os olhos para a Verdade e pedir que ela me
iluminasse, nem poderia eu ser generoso e protetor com seres vivos colocados
abaixo de mim na hierarquia. Eu não poderia aceitar meu próprio estatuto
ontológico de criatura como sendo necessariamente exaltado em alguns aspectos e
limitado em outros — sujeitando-me, por essa recusa, à arrogância luciferina e
ao desespero — nem poderia aspirar a realizar conscientemente esse estatuto, se
por egoísmo eu tivesse caído abaixo dele, como todos nós o fizemos de um jeito
ou de outro. E, se a hierarquia é esmagada, então a própria igualdade sofre. A
perspectiva que me permite ver como sou ontologicamente inferior a algumas
coisas e superior a outras, embora compartilhe com elas a mesma Essência
Divina, também me deixa ver como sou diferente mas relacionado a indivíduos no
mesmo plano de ser que eu. Onde a hierarquia é achatada, a unidade só pode aparecer
como uniformidade abstrata, e a uniformidade destrói tanto a piedade — que
reconhece superior e inferior — quanto o afeto, que existe entre iguais
diferentemente únicos e, portanto, singularmente relacionados. O universo da
nossa experiência torna-se uma ilusão plana e estéril do ego narcísico: um
ataque a Deus.
Nem A Course in Miracles consegue
dispensar-se de postular a hierarquia que, “oficialmente”, nega. Em MCQCM,
p.90, o Dr. Wapnick diz:
O estudante não é convidado a passar diretamente
dos pesadelos ilusórios dos relacionamentos especiais para a realidade da única
relação com Deus, mas, com Jesus como seu guia, primeiro passa pelos sonhos
ilusórios do perdão (…) primeiro aprendem que Deus é um Pai amoroso, e não
odioso, e que o Espírito Santo é um companheiro consolador no mundo, e não seu
inimigo. Só então podem aprender que, de fato, não há mundo no qual eles possam
consolar-nos. A metáfora cumpriu seu propósito.
Isto é, precisamente, uma “hierarquia de ilusões”.
O que se nega, aparentemente, é que esta hierarquia seja ontológica. É uma
hierarquia de experiências, não de realidades. Mas, segundo a metafísica
tradicional, epistemologia e ontologia, conhecimento e ser, formam um todo
indivisível: experiências superiores são experiências reais de mundos
superiores. Se não fosse assim, todo o nosso “saber” seria ilusório, trancado
no círculo do ego narcísico. Sufis também falam da existência manifesta como
metáfora, mas não lhe negam toda realidade; simplesmente atribuem sua realidade
apenas a Deus, a Quem a existência metafórica tanto manifesta quanto vela.
Qualquer experiência, portanto, é, em certo grau, uma experiência da Realidade;
se fosse possível que uma experiência carecesse de toda realidade, não
poderíamos experimentá-la. Certamente podemos interpretar mal aquilo que vemos,
como quando os hindus comparam maya com “tomar uma corda por uma cobra”.
Mas é impossível ver algo que não esteja lá — ao menos em algum nível.
O Dr. Wapnick fala do despertar da crença na
realidade do mundo como semelhante a acordar de um sonho (CMCD, p.19). Mas quem
disse que os sonhos não são reais? Eles podem nos dar intuições válidas, afetar
nossa saúde, até prever o futuro. São um nível de realidade; a vida de vigília
é outro. E Deus é a própria Realidade, além de dormir e vigiar, além de níveis;
todos os dormir e vigiar, todos os níveis ontológicos, são aspectos d’Ele.
O transcendentalismo exclusivo de A Course in
Miracles tem ainda uma consequência final, arrepiante: Deus não escuta
nossas orações. Como poderia, se Ele está totalmente inconsciente deste
universo ilusório do qual fazemos parte? Nas palavras do workbook,
p.335: “Não penses que Ele ouve as pequenas orações daqueles que O invocam com
nomes de ídolos acarinhados pelo mundo. Elas não podem alcançá-Lo assim.” E nas
pp. 69–70, o TEXT diz:
Deus não guia, porque Ele só pode compartilhar o
conhecimento perfeito. A orientação é avaliativa, porque implica que há um
caminho certo e um caminho errado (…) o Espírito Santo, porém, guia, e oferece
escolha. (…)
Isto é como dizer: “a Estrela Polar não pode guiar
marinheiros porque não se move; só o astrolábio pode guiar”. Mas a imobilidade
da Estrela, como a perfeição do Divino, é orientação. Se a “perfeição” não pode
guiar, então ela está muito longe de ser perfeita.
A doutrina de que Deus não ouve e não responde às
orações é um erro. Segundo Ibn al-‘Arabi, nossa imagem de Deus, o “Deus criado
na crença”, é auto-criada e, portanto, menos do que Deus. Ainda assim, Deus, em
Sua Misericórdia intrínseca, aceita as orações que dirigimos a essa imagem, já
que, embora a forma não seja Ele, Ele permanece a Essência dela. Nossa
capacidade de compreender Sua resposta pode ser limitada pela forma sob a qual
O concebemos, mas nenhuma forma adorada como Deus está totalmente separada d’Ele.
Os Wapnicks, em MCQCM, p.120, mencionam vários trechos do Course em que
somos orientados a rezar a Deus como se Ele nos escutasse, especialmente
pedindo perdão, mas isso é explicado como uma espécie de “re-treinamento” de si
mesmo, dentro do contexto do sonho ilusório do ego, sob a tutela de um Espírito
Santo — criado, não Divino — que é como a memória, pelo ego, da Realidade de
Deus.
A razão pela qual o Course nega que Deus
possa ouvir e responder nossas orações é, ao que parece, enfatizar que a
Expiação já está completa na Eternidade. Mas como o aspecto de nós que reza a
Deus na esperança de Sua resposta existe no tempo, necessariamente e
legitimamente experimentamos a Expiação como um processo — embora, se não
intuímos também a realidade eterna da Expiação como subjacente a esse processo,
o processo nunca termine. A Course in Miracles, porém, como o ego
humano, parece incapaz de imaginar que “o tempo é a imagem móvel da
Eternidade”, que aquilo que é eterno e infinito para Deus é experimentado pela
mente egoica como temporal e limitado, sem qualquer barreira real existindo
entre ambos, fora da má percepção do ego. Quando o Course diz que Deus
não escuta nossas orações, ou que Ele desconhece o universo, este é o modo que
encontra de tentar salvaguardar Sua Absolutidade e Perfeição. Contudo, ao
seguir essa rota, é forçado a negar Sua Infinitude. Ele não consegue entender
que Deus, ao contrário de nós, pode olhar para a limitação e não ser limitado
por ela, assim como pode responder às nossas orações sem se definir em termos
de nossas necessidades; Ele não é “codependente”.
Sua capacidade de fazer isso é uma das coisas que O
tornam Deus. Deus vê todas as nossas necessidades e limitações, mas as vê
apenas como Sua Perfeição. Como poderia testemunhar apenas Sua própria
Perfeição e ainda responder às nossas necessidades, ser ainda mais
profundamente consciente do que nós das ilusões sob as quais labutamos e dos
sofrimentos que experimentamos, e ainda assim nada ser senão Seu próprio Ser,
Consciência e Bem-aventurança, não pode ser entendido pela mente literalista do
Course; é por isso que ele deve cair na heresia do gnosticismo para
explicar o aparentemente inexplicável. Para a metafísica tradicional, porém —
como também para a alma da simples piedade, tão rara nestes tempos — a relação
entre o Absoluto e o relativo, Deus e o universo, eu e meu Senhor, não é
enigmática, mas transparente.
O texto de A Course in Miracles, como a
maior parte do material canalizado, é extremamente irregular. Uma psicologia
sofisticada do ego em fuga de Deus, e uma metafísica sutil embora unilateral,
se misturam com devoção melosa, afirmações simplistas de “pensamento positivo”
reminiscentes da Ciência Cristã — como a declaração tola na p.42 do TEXT de que
“quando te sentes cansado é porque julgaste a ti mesmo capaz de te cansar” —,
jogos de palavras enganosos e afirmações que contradizem os princípios
principais do Course, ao menos tal como apresentados pelo Dr. Wapnick.
Por exemplo, o seguinte trecho aparece na p.77: “Tudo o que aceitas na tua
mente tem realidade para ti. É a tua aceitação que o torna real para ti (…); a
mente é capaz de criar realidade e fazer ilusão…” Certamente, tudo o que
aceitas como real é real para ti. Mas a mente não cria a realidade; ela a
percebe. Realidade, por definição, é o que é objetivamente verdadeiro e
realmente está lá, quer eu a perceba ou compreenda, quer não. Em outros pontos,
o Course ensina precisamente isso, como quando define como erro a crença
de “que o teu entendimento é uma poderosa contribuição para a verdade e a torna
o que é” (TEXT, p.356). Dizer que a mente pode criar realidade, mas depois
negar que o ato de entender uma verdade a cria, é uma contradição direta, uma
dentre muitas que permeiam o Course.
Um paradoxo é uma tentativa de colocar em palavras
uma verdade que as palavras só podem sugerir, mas não definir. Uma contradição
é, simplesmente, um erro. O Course explica suas próprias contradições
óbvias como paradoxos de ensino que apontam para verdades inefáveis. Porém, ao
menos algumas delas são simplesmente contradições, que apontam para a escuridão
intelectual e o caos. Por exemplo, quando o TEXT, p.55, afirma que “Nenhuma
força, exceto a tua própria vontade, é forte o bastante ou digna o bastante
para guiar-te. Nisso és tão livre quanto Deus”, isso contradiz a doutrina do Course
de que, embora a vontade seja livre no Céu por estar alinhada à vontade de
Deus, no reino da ilusão, o mundo da “mente dividida” — o único lugar em que o
conceito de “orientação” tem qualquer significado —, a vontade nada pode fazer
senão escolher entre dois guias, o ego e o Espírito Santo; e Deus não precisa
escolher quem ou o que O guiará. Nas palavras dos Wapnicks: “Dentro do sonho
(…), o conceito de livre arbítrio torna-se extremamente importante, pois é o
mecanismo da salvação” (MCQCM, p.70). Segundo o manual (p.75), “Neste
mundo a única liberdade restante é a liberdade de escolha; sempre entre duas
escolhas ou duas vozes. A vontade [no Céu] não está envolvida em [percepção
limitada, sujeito-objeto] em nenhum nível, e nada tem a ver com escolha.” Mas
se a vontade celestial está além da escolha, além da “percepção”, além do
sonho, então — nos termos do Course — ela deveria ser demasiado perfeita
para guiar-nos. É por isso que — nos termos do Course — Jesus e o Espírito
Santo devem aparecer, dentro do sonho, como guias. A vontade no nível do sonho,
dentro do reino da ilusão em que a orientação é necessária e possível, só pode
escolher (e aqui concordo totalmente com o Course) entre dois senhores:
ego ou Espírito. Portanto, dizer que “Nenhuma força, exceto a tua própria
vontade, é forte o bastante ou digna o bastante para guiar-te” é falso, tanto
na realidade quanto segundo outros princípios do próprio Course. Tal
como está, é um apelo à vontade própria luciferina, porque a vontade humana não
foi feita para guiar, mas para seguir uma orientação. É o Intelecto, a mente de
Deus em nós, que guia; o poder sozinho é impotente para estabelecer a Verdade,
e é destituído de sentido sem ela.
Em relação à nossa vontade, o Intelecto Divino
aparece sem dúvida como Vontade de Deus, já que exige a obediência de nossa
vontade. Fá-lo, porém, não porque nos domine pela força, mas porque nos obriga
pela Verdade. Uma vez que algo é conhecido como verdadeiro, torna-se senhor de
nós; só podemos parecer escapar à regra da Verdade mentindo para nós mesmos.
Mas uma verdade conhecida, coberta por uma mentira voluntária, é uma casa
construída sobre areia; “se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os
que a constroem”.
O Course, porém, nega que o Intelecto seja o
Guia da vontade; nas palavras de seu “Jesus”: “Enfatizamos que não precisas
compreender nada” (TEXT, p.356). Como desculpa para a mensagem confusa de A
Course in Miracles, essas palavras podem ter alguma razão de ser. Como
conselho espiritual, são veneno. Reduzem o significado de “orientação” a zero.
Submeter voluntariamente a verdade — espiritual ou não — antes de compreendê-la
plenamente é a única porta para um entendimento maior; sem essa submissão,
nenhum ensinamento pode ter lugar. Mas é preciso compreender algo dessa verdade
desde o início para saber que tal submissão é requerida. E, depois disso, cada
nova submissão, cada sacrifício da vontade própria diante de um ensinamento que
é objetivamente verdadeiro, resulta em um aprofundamento desse entendimento. Se
isso não acontece, estamos trabalhando sob um engano.
Outra contradição gritante no Course é a
seguinte: Na p.30 do TEXT, “Jesus” diz que o fim coletivo do sonho cósmico se
dará ao longo de milhões de anos. (Doutrina semelhante encontra-se,
curiosamente, nos ensinamentos do gnóstico Valentim.) Mas a doutrina de que o
universo é um ataque ilusório contra Deus é incompatível com a doutrina da
evolução espiritual do macrocosmo. Se, nos termos do Course, a má
percepção do ego é corrigida num “instante santo” que está fora do tempo, se o
tempo em si é ilusão, então o cosmos não pode ser redimido ao longo do tempo,
seja em um dia, seja em um trilhão de anos. É verdade, como o Alcorão repete
inúmeras vezes, que todas as coisas retornam a Deus — mas não através do tempo.
A porta para Deus não está no espaço ou na duração, mas na profundidade do
momento presente. Certamente, o Caminho espiritual de um indivíduo passa por
estágios sucessivos e parece levar tempo. Porém, como o Caminho não é uma linha
traçada no tempo, mas uma que se estende do tempo à Eternidade, esses estágios
estão inscritos na face da própria Eternidade. Em termos sufis, os passos do
Caminho não conduzem a Deus, mas se dão em Deus.
Como o próprio Course ensina, nossa escolha
de sermos guiados pelo Espírito em vez do ego é uma decisão de sair do tempo.
Talvez, poder-se-ia argumentar, se todos os seres sencientes que compõem o
universo viessem a fazer essa escolha, o sonho do universo terminaria. Mas,
para que isso ocorra, o ambiente cósmico teria de tornar-se virtualmente
perfeito — um destino extremamente improvável para um ataque ilusório contra
Deus. Seres sencientes teriam de parar de nascer, para que todos pudessem fazer
essa escolha juntos, já que a constante produção de bebês ignorantes
continuaria renovando o sonho. E, para garantir que todos escolhessem
corretamente, precisariam de um tempo infinito para fazê-lo; teriam de parar de
morrer. O sonho do universo, porém, é um sonho de tempo; dentro desse sonho, o tempo
não pode terminar. E a escolha de ser guiado pelo Espírito em vez do ego, a
escolha de sair do tempo, é algo que apenas indivíduos podem fazer. Um
“universo” não pode escolher.
Ainda mais perturbador e revelador do que as
contradições do Course é seu jogo de palavras maliciosamente enganoso.
Na p.71 do TEXT, por exemplo, a passagem evangélica em que Jesus diz “meu jugo
é suave e meu fardo é leve” é reinterpretada para significar “unamo-nos, pois a
minha mensagem é luz (light)”. Esta “exegese” é tão absurda e de tão mau
gosto que sugere uma vontade demoníaca agindo para distorcer o sentido da
Escritura. “Light”, é claro, só significa tanto “leve” quanto “luz” em inglês,
não em aramaico. Quanto a “burden”, pode ser entendido como denotando uma
“mensagem”, já que dois de seus significados, segundo o American Heritage
Dictionary, são “uma ideia principal ou recorrente; um tema” e “o refrão ou
estribilho de uma composição [musical]”. Esse “burden”, porém, deriva do latim burda,
“flauta”, enquanto o “burden” mais familiar, significando algo difícil de
carregar, vem do inglês antigo byrthen. São duas palavras diferentes.
Joguinhos tão infantis ou travessos são claramente indignos de Jesus Cristo,
embora não do “Jesus” do Course, que parece carecer da maturidade e da
humanidade, do sal, de seu homônimo — nada surpreendente, já que nunca nasceu
como homem.
Um dos aspectos mais interessantes de A Course
in Miracles é sua “ego-psicologia transcendental”, sua narrativa de como o
ego se esconde da Verdade Divina. Este “mito da queda” é mais ou menos o
seguinte: uma porção da Filiação, criação eterna e perfeita de Deus, adormeceu
— ou pareceu fazê-lo. No sonho que parecia estar tendo, imaginou a
possibilidade de separação de Deus — algo que, de fato, é impossível. Esse sonho
resultou numa falsa percepção fundamental, um ataque a Deus que nunca ocorreu
na realidade, já que nenhum ataque desse tipo pode ocorrer. Mas a crença de que
tal ataque ocorreu resultou na ilusão de um universo físico composto de vastas
quantidades de matéria e energia, vastidões de espaço e tempo. O ego acreditou
ter roubado de Deus o poder de criar esse universo e, assim, temeu a
retribuição divina. Consequentemente, interpretou a crucifixão de Jesus não
como ato de amor da parte de Deus, mas como punição do Pai imposta ao Filho,
como ego, pelo pecado de tentar existir separado d’Ele e, desse modo, criar o
universo. Em medo dessa punição, o ego projetou sobre Cristo aquilo que temia
que acontecesse consigo mesmo. A expiação vicária por nossos pecados, através
do sofrimento de Cristo, não é portanto eficaz; não passa de um modo de o ego
negar o próprio medo da punição por um pecado que de fato não cometeu. O ego
teme encontrar Cristo por causa do perigo de perceber que nenhum pecado jamais
ocorreu. Como o ego vive de medo e culpa, a percepção de que o pecado
fundamental de separação de Deus nunca aconteceu seria “fatal” para ele —
enquanto ilusão. E, porque nenhum pecado foi cometido, nossa culpa é
injustificada; de certo modo, a própria culpa é o “pecado”.
Como “sombra” do Cristianismo, esta é uma história
muito interessante. Sem dúvida, muitas pessoas, em tempos em que a plenitude da
doutrina cristã raramente é ensinada, experimentam o Cristianismo precisamente
dessa maneira, Helen Schucman entre elas. Se for assim, esta variação sobre o
tema cristão pode ser útil como forma de entender como a doutrina cristã pode
ser distorcida por crenças inconscientes do ego. A versão do Cristianismo dada
pelo Course poderia mesmo ser chamada de “Cristianismo segundo o ego”.
Nesta versão-sombra, a verdade de que só Deus cria o universo fica escondida
sob o erro que vê o ego como um rival, ainda que ilusório, criador. O Course
acerta quando aponta o erro — a ideia de que o ego poderia ter o poder de criar
um universo real, o que, na realidade, não tem — mas erra quanto à verdade do
caso — que o verdadeiro Criador do universo é Deus. (Essa é a natureza do
saber-sombra; ele pode criticar o erro, mas não consegue positivar a Verdade.)
Da mesma forma, quando o Course critica a
expiação vicária, o dogma de que Cristo pagou a dívida do nosso pecado por meio
de Seu sofrimento e morte, acerta quanto à interpretação errônea que definiria
“vicariato” como uma espécie de função de bode expiatório pela qual nossos
pecados são “levados embora” para um deserto onde nossa responsabilidade
termina. Mas erra quanto à verdade do assunto: que pecadores redimidos por
Cristo devem morrer com Ele para ressuscitar com Ele, que devem “tomar sua
cruz” e segui-Lo, apenas para descobrir que Seu “jugo é suave” e Seu “fardo
leve”. Isso não é punição por parte de um Deus irado; é vitória sobre a morte.
O Course afirma que os discípulos de Jesus acreditaram que a crucifixão
foi a punição do Pai imposta ao Filho pelo pecado do homem. Isso não passa de
uma calúnia tola, já que outra doutrina mais elevada foi ensinada abertamente
desde o início: que a morte do Filho foi a oferta livre que o Pai fez de Si
mesmo, como Deus, na pessoa de Seu Filho — já que Pai e Filho são “uma só
substância” — para pagar a dívida do homem. E essa dívida não poderia ter sido
a “honra ferida” do Pai que precisava ser satisfeita, como Anselmo sustentou —
o Course parece depender fortemente da teologia anselmiana como seu
espantalho principal frente à redenção —, porque a oferta do Filho pelo Pai foi
sacrifício, não exigência.
O Course entende corretamente que a
crucifixão e a ressurreição de Jesus tinham por fim demonstrar que nenhum
ataque eficaz pode realmente ser feito contra Deus, e que Seu Perdão continua
disponível para nós, apesar da nossa culpa, se estivermos apenas dispostos a
aceitá-Lo; do contrário, não seria perdão. O que não entende é que Deus abraça
nosso sofrimento e o faz Seu, sem incorrer, por isso, em qualquer dano ou
diminuição. Esse é um escândalo para o gnosticismo literalista de A Course
in Miracles; por isso precisa negar que Jesus tenha nascido, sofrido ou
morrido. Mas se Ele não fez nada disso, então a ressurreição foi um teatrinho
insignificante e nada provou. Que Deus pudesse sofrer e ainda assim não sofrer;
que Cristo pudesse realmente nascer, realmente sangrar, realmente morrer e, no
entanto, estar além de tudo isso, como a ressurreição provou — esse é o
paradoxo místico que o Course não consegue aceitar. O Cristianismo
normativo, ortodoxo, é demasiado esotérico para a mente que produziu A
Course in Miracles.
Se Deus é a única Realidade, como ensinam tanto os
sufis quanto A Course in Miracles — embora em sentidos radicalmente
diferentes — então Ele deve ser minha Essência oculta — verdade expressa por
Jesus quando disse: “Eu estou no Pai, e o Pai em mim” (Jo 14,11), e “Eu [estou]
neles e Tu [Pai] em mim, para que sejam aperfeiçoados…” (Jo 17,23). A
implicação aqui é que todo o meu sofrer tão real é, em Essência, nenhum
sofrimento. Quando o santo hindu Ramakrishna estava morrendo de câncer na
garganta, muito sofrimento ocorreu. Não podemos dizer que, porque Ramakrishna
era um santo — ou, segundo alguns, um pequeno avatar — ele, por isso, não
poderia ter nascido na carne, contraído câncer na garganta e morrido disso. O
fato é simplesmente que, na medida em que Ele era um ser plenamente realizado,
um jivanmukta, não havia ego ali para sofrer aquele sofrimento. Não é
que o sofrimento nunca tenha acontecido; acreditar nisso seria superstição
literalista. É só que o sofrimento era, em Essência, nenhum sofrimento, porque
Deus, enquanto Essência interior de Ramakrishna, e tua, e minha, não sofre — e
é precisamente por isso que Ele pode, e de fato, toma sobre Si todo o
sofrimento do universo.
A Course in
Miracles,
como Sigmund Freud, afirma que não o pecado, mas a culpa é a fonte de nossos
problemas. Já que o “pecado original” nunca teve lugar, a culpa é pura ilusão,
que a psicanálise e/ou o Course existem para dissipar. Não somos
perdoados por nossos pecados; somos perdoados por acreditar que pecamos em
primeiro lugar. Mas o que poderia ser mais produtor de culpa do que definir o
universo como ilusão criada pelo ego como ataque a Deus? Como egos, segundo
esta doutrina, somos culpados do crime cósmico mais horrível imaginável. Claro
que esse crime nunca realmente aconteceu — exceto que cada item da nossa
experiência, Se acreditamos no Course, ela nos grita que sim. Assim,
nossa própria experiência torna-se o inimigo, o Deus irado que nos persegue; de
acordo com os princípios do Course, ao menos tal como eu os leio, a
experiência é culpa — exceto pelo fato de que nada está realmente acontecendo.
Nossa experiência é irreal.
Como, se nossa vontade é livre para escolher entre
ego e Espírito, pode a escolha do ego em vez do Espírito não ser um pecado? E
como podemos ser perdoados por um pecado que nunca cometemos? Como podemos
escapar de uma prisão que experimentamos como inegavelmente real se essa prisão
não existe? O Course, ao mesmo tempo em que nega a realidade do
universo, toma esse universo como uma espécie de absoluto negativo, uma
situação desesperadora que não contém nada de bom, razão exata pela qual
precisa defini-lo como ilusão. Mas se o universo é absolutamente irreal — ou
absolutamente real — jamais encontraremos Deus, seja porque não conseguiremos
imaginá-Lo como uma Realidade que transcende nossa experiência, seja porque
tomaremos todas as nossas experiências imaginárias d’Ele como ilusões sem
significado. Do mesmo modo, o Course, enquanto nega a realidade da
culpa, transforma a culpa em um monstro com poder infinito para nos atormentar,
invalidar e aprisionar, o que é precisamente a razão pela qual precisa chamá-la
de irreal. Mas, se a culpa é ilusão total — ou realidade total —, nunca
conheceremos o perdão, porque jamais o buscaremos; ou não veremos necessidade
dele, ou desesperaremos dele. E, afinal, o que há de tão terrível na culpa, se
existe algo como perdão? A culpa, se dela nos tornamos plenamente conscientes
pelo poder da graça de Deus, conduz àquela grande bem-aventurança conhecida
como remorso, que é parte do êxtase do amor. Deveríamos todos ter tanta sorte.
Além disso, A Course in Miracles não apenas
“reinterpreta” o Cristianismo; também o ataca. Na p.4 de MCQCM, o Dr.
Wapnick descreve “o Deus bíblico” como “muito claramente uma pessoa que vê o
pecado como real”, e caracteriza o Seu relacionamento com um povo escolhido e o
Seu aspecto irado e punitivo como um “amor especial (…) e ódio especial (…) que
estão associados ao sistema de pensamento do ego (…) [a seção do Course
intitulada] ‘As Leis do Caos’ contém um retrato vívido desse Deus bíblico, que
tornou o pecado real e assim revelou suas origens egoicas, ou melhor, os egos
dos escritores dos livros da Bíblia.” Em CMCD, p.23, a Bíblia é descrita
como ensinando uma espiritualidade “dualista”; em MCQCM, p.99, os
Wapnicks falam de “outras espiritualidades (não cristãs)” como sendo aquelas
cujos “nomes são legião”, usando a expressão pela qual os demônios possessores
se designam a si mesmos em Lucas 8,30. Colocando-se deliberadamente em um plano
mais elevado que a Bíblia com suas “origens egoicas”, o Course
caracteriza a si mesmo nos seguintes termos: “De todas as mensagens que
recebeste e não compreendeste, somente este curso está aberto ao teu
entendimento e pode ser compreendido. Esta é a tua linguagem” (TEXT, p.437);
nega, em outras palavras, que quaisquer outros textos ou escrituras espirituais
sejam sequer inteligíveis, ao mesmo tempo em que afirma que “não precisas
compreender nada”.
Poderia aqui estar operando um certo tipo de
projeção psicológica? Esta é certamente uma explicação possível para as
contradições do Course, à luz das quais podemos talvez entender por que
os Wapnicks, na p.129 de MCQCM, acabam chegando a caracterizar “a forte
influência do Cristianismo” sob a qual o mundo ocidental cresceu como “uma
influência [junto com a psicanálise] que não tem sido muito cristã nem
espiritual” — como se a doutrina cristã pudesse ser mostrada como fundada em um
mal-entendido da própria doutrina cristã.
Como está amplamente claro a partir dessas
citações, A Course in Miracles é considerado, em certo sentido, como a
verdade exclusiva; o judaísmo bíblico e o Cristianismo são vistos como ilusões
do ego. Essa intolerância, fundada numa disposição “sem culpa” — especialmente
no caso do Cristianismo — de reescrever doutrinas tradicionais até que
satisfaçam os critérios de falsidade do Course, parece ser um bom
exemplo da tendência que os próprios Wapnicks, em outro lugar, procuram cortar
pela raiz, quando afirmam que, se os estudantes do Course tentassem
proselitizar, “sentir-se-iam impelidos a criticar, julgar ou atacar outros
caminhos espirituais” (MCQCM, p.114).
A caracterização que o Course faz do
Cristianismo como dualista é imprecisa porque unilateral. Ele desconhece, por
exemplo, que, segundo a Bíblia, o Deus que vê o pecado como real também o
conhece como irreal: “Tu és de olhos tão puros, que não podes ver o mal” (Hab
1,13). Nem Ele é necessariamente símbolo do ego por exibir um aspecto irado e
punitivo; Sua ira é simplesmente o modo como o ego precisa experimentá-Lo, até
que esse ego seja sacrificado e libertado. Segundo a Bíblia, o sacrifício
aceitável a Deus não é o do corpo em si, mas o do ego — não “a gordura dos
carneiros”, mas “um coração contrito”. A ira divina é misericórdia divina
distorcida pelo ego, mas também dirigida ao ego; a única coisa capaz de
despertar um ego profundamente autoidolátrico da ilusão de sua própria
autocriação é a tremenda majestade de Deus. Certamente, se o nível do pecado e
do arrependimento nunca é transcendido, se a misericórdia e o perdão de Deus
jamais são intuídos por trás da face da Sua justiça, o ego deve permanecer
selado em seu próprio narcisismo, onde usará o auto-tormento masoquista como
argumento em sua tentativa constante de provar que é autogerado. É por isso que
os sufis falam da necessidade, em certo ponto, de “arrepender-se do
arrependimento”. Mas, se o nível do pecado e do arrependimento nunca é
alcançado em primeiro lugar, jamais poderá ser transcendido, já que o ego que
se treinou para obedecer a seus próprios impulsos como se fossem a vontade de
Deus — em termos sufis, o “eu que ordena” — interpreta toda manifestação de
perdão simplesmente como licença para matar.
O Course não aceita nada disso. Na p.137 do
TEXT, afirma, corretamente, que quando escolhemos ser guiados pelo Espírito, o
ego, “percebendo a derrota e zangado com ela (…) considera-se rejeitado e
torna-se retaliador”. Este é precisamente o sentido da crucifixão, exceto que
Jesus, uma vez que era sua vontade dar a vida por todos nós, suportou a
retaliação não apenas do seu ego individual, mas também do ego coletivo da
humanidade. Contudo, A Course in Miracles, por ser deliberadamente
anticristão, não consegue ver na crucifixão uma ilustração óbvia de sua própria
doutrina, retratando-a em vez disso como um drama falso em que o ego acredita
que deve sofrer tormentos para apaziguar um Deus irado — meia-verdade
distorcida, já que a crucifixão nada mais é do que o sacrifício de tudo o que
se interpõe entre o Filho e o amor do Pai: o próprio ego. E é verdade, de certo
modo, que a Bíblia apresenta a relação de Deus com o Seu universo sob uma luz
dualista; que outra coisa pode a linguagem mitopoética fazer, se quer contar
uma história? Mas o aspecto advaita da Bíblia também está lá, não muito
abaixo da superfície: “Eu e o Pai somos um”; “antes que Abraão fosse, Eu sou”;
“já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim”; “o Reino de Deus está dentro
de vós”. Infelizmente, a mente que produziu A Course in Miracles é literalista
demais para reconhecer isso. E, finalmente, quem poderia seriamente acreditar
que a Bíblia foi distorcida pelos egos de seus escribas, muitos dos quais deram
a vida em testemunho da sua verdade, e ao mesmo tempo não admitir que o Course
teria sido, com a mesma probabilidade, distorcido pelo ego de Helen Schucman —
uma senhora zangada com a Igreja Católica, que nem sequer tinha certeza se
acreditava em Deus?
Um dos aspectos mais estranhos de A Course in
Miracles, ao menos da minha perspectiva, é que ele contém uma versão
distorcida da doutrina de Frithjof Schuon sobre a Unidade Transcendente das
Religiões. Em sua forma autêntica, essa doutrina afirma que Deus revelou mais
de um caminho capaz de conduzir a alma humana de volta a Ele; esses caminhos se
encontram nas grandes religiões mundiais, assim como em certas espiritualidades
“primordiais”. Cada caminho é único, e uma pessoa não pode trilhar mais de um
ao mesmo tempo. Por outro lado, as doutrinas metafísicas superiores das
religiões reveladas são unânimes, embora com muitas diferenças de ênfase, em
expressar certos princípios espirituais universais. Mas o único acesso prático,
“operativo”, de uma pessoa a essas verdades permanece sendo sua fidelidade a
uma tradição religiosa, tanto no nível da prática espiritual quanto no das
doutrinas específicas e únicas que fornecem o contexto necessário para essa
prática.
Segundo o Course, “uma teologia universal é
impossível, mas uma experiência universal não só é possível como necessária”
(manual, p.73); e em MCQCM, p.113, o Dr. Wapnick adverte os estudantes
do Course a serem “cautelosos (…) quanto a tentar misturar teologias e
abordagens espirituais que, em última análise, não se combinam”. Isso parece
inteiramente em linha com o ensinamento de Schuon.
No entanto, na p.111, o Dr. Wapnick revela a
verdadeira razão para essa cautela, criticando a prática comum de incluir A
Course in Miracles naquilo que Aldous Huxley chamou de
“a filosofia perene”, expressão guarda-chuva usada
para abarcar as principais tradições místicas do mundo (…): isso presta ao Course
um profundo desserviço, porque obscurece a contribuição distintiva que ele dá
às espiritualidades do mundo: a ideia de que não apenas o universo físico é uma
ilusão que Deus não criou, mas que também foi ‘feito como um ataque’ a Ele. (…)
Este princípio psicológico profundo e sofisticado, integrado a uma metafísica
puramente não-dual, é o que torna A Course in Miracles único entre os
sistemas espirituais e religiosos de pensamento no mundo.
Portanto, o Course deve ser mantido à parte
de outras doutrinas metafísicas não porque todos os caminhos válidos sejam
discretos, mas porque os outros caminhos são menos válidos. Isto nada menos é
do que um exclusivismo exotérico, ou literalismo, que se disfarça de esoterismo.
É correto, num certo nível, dizer que “uma teologia universal não é possível”,
mas a razão pela qual o Course afirma essa verdade é para obscurecer
outra, que o coloca em má posição: a de que todas as teologias, em suas
profundezas metafísicas, serão encontradas apontando, a partir de suas
perspectivas necessariamente únicas, para uma única Verdade que transcende
essas perspectivas, e ainda assim se manifesta por meio delas. A unidade das
religiões, em outras palavras, não é sincrética ou eclética, mas transcendente.
O Course, porém, negaria completamente essa unidade em nome de sua
própria transcendência exclusiva. E isso é um erro.
Nem o Course é realmente único como
pretende. Certamente se afasta, em pontos centrais, da doutrina unânime das
tradições sapienciais do mundo, especialmente em sua negação da imanência; mas
tem muito em comum com doutrinas que tais tradições consideram, com toda razão,
heréticas — mais obviamente com as heresias cristãs do gnosticismo, do
arianismo e do docetismo, já que o Course é moldado em termos quase
cristãos, mas também, em certos aspectos, com doutrinas consideradas heréticas
em relação ao budismo, como aquelas que afirmam a irrealidade literal dos
fenômenos ou a existência eterna literal do Buda. E já vimos como sua doutrina
da inexistência literal do universo se choca com a doutrina hindu de maya.
Levando em conta as diferenças entre linguagem
filosófica e linguagem mitopoética, a doutrina de que o universo foi criado
pelo ego como ataque a Deus é substancialmente a mesma do Demiurgo iludido no
gnosticismo, ou da gnóstica Sofia que, como o ego que ela simboliza, cria a
ilusão da matéria a partir de seu próprio auto-erotismo, sem o concurso de um
consorte — sendo isto uma representação mítica (verdadeira em certo sentido, se
não tomada ao pé da letra) da crença ilusória do ego em sua própria
autocriação. A cosmogonia de A Course in Miracles, portanto, é
substancialmente a da heresia gnóstica; mas o “Jesus” do Course parece
ignorar essas afinidades.
A Course in Miracles parece ser um tipo de supercompensação para o materialismo do mundo
moderno (o mesmo talvez seja verdadeiro do gnosticismo em relação ao paganismo
clássico tardio). A pesada crença literalista na realidade material projeta,
como sombra, a doutrina de que o mundo é pura ilusão e Deus, exclusivamente
transcendente. Assim como a fissão nuclear demonstrou experimentalmente que o
limite de nossa crença na realidade da matéria havia sido alcançado, A
Course in Miracles demonstra metafisicamente a mesma coisa. O surgimento da
doutrina da transcendência exclusiva, embora seja um erro, é, por isso, um
sinal escatológico. Só quando o mundo manifesto está quase completamente morto
para nós, só quando se torna tão opaco à nossa percepção espiritual encolhida
que já não pode ser percebido como “sinal” de Deus, é que uma negação total,
mesmo da realidade relativa desse mundo, começa a parecer o único caminho de
saída.
Na minha opinião, a heresia conhecida como A
Course in Miracles é consequência inevitável da supressão contemporânea da
metafísica tradicional dentro do Cristianismo, particularmente na Igreja
Católica. Em MCQCM, p.123, Helen Schucman é citada dizendo, a respeito
do Course: “Finalmente, há um sistema espiritual para intelectuais.” A
fome de profundidade metafísica e iluminação intelectual está aí; é parte
inescapável da qualidade do nosso tempo. Mas, se a Igreja já não consegue
satisfazê-la, então ai da Igreja! É aqui que a rejeição católica contemporânea
da metafísica tradicional, e a recorrente desconfiança cristã de sua própria
dimensão sapiencial, até mesmo dentro da Ortodoxia, voltam para assombrá-la.
Como se Clemente de Alexandria, Dionísio Areopagita, Máximo o Confessor, Mestre
Eckhart, Scotus Eriugena — para mencionar apenas alguns — não estivessem entre
os maiores intelectuais espirituais da raça humana. Mas, é claro, a maioria dos
cristãos jamais os leu, e é uma das razões pelas quais Helen Schucman, uma
potencial intelectual pneumática educada por freiras católicas, pôde trazer à
luz suas doutrinas heréticas, que desde então lançaram raízes dentro da própria
Igreja. A doutrina abomina o vácuo; somente a verdadeira metafísica cristã
tradicional pode impedir que esse vácuo, na Igreja, seja preenchido com meias
verdades perigosas como as da Sra. Schucman. A Course in Miracles não
foi uma produção má, de certo ponto de vista, para uma “freelancer” não
tradicional. Mas não foi suficiente, e, no reino da Verdade, insuficiência não
é neutra; é subversiva. Um pouco de metafísica é coisa perigosa, porque, uma
vez que ideias desequilibradas tenham criado raízes em um nível intelectual
elevado, como o que o Course tenta ocupar, a doutrina metafísica plena —
que só ela é plenamente eficaz, para aqueles que têm capacidade para isso — tem
poucas chances de ser reconhecida. Talvez o verdadeiro propósito de A Course
in Miracles seja atrair, e neutralizar espiritualmente, aqueles com
capacidade para compreender e lucrar com a Verdade metafísica. Se assim for,
quem é então o seu autor?
IV. A Profecia Celestina:
Uma Cultura Pré-Colombiana de Solteiros
Uma das mitologias New Age inventadas mais
populares dos últimos anos encontra-se em A Profecia Celestina e em suas
continuações, de James Redfield. O livro é claramente ficcional, mas os
leitores do Sr. Redfield geralmente concordam em ignorar esse fato para poderem
deixar-se cair sob o feitiço de uma fascinante aventura espiritual!
O livro é o relato da descoberta de um misterioso
manuscrito aramaico em um sítio arqueológico peruano, as Ruínas Celestinas. O
manuscrito, datado de 600 a.C., prediz que, justamente nestas décadas, a raça
humana passará por uma transformação cultural e espiritual em massa, baseada na
compreensão das Nove Visões (Nine Insights) contidas nesse manuscrito. O
único problema é que as autoridades peruanas, instigadas pelo bispo católico
conservador, o cardeal Sebastián, estão tentando suprimir o manuscrito pela
força militar. Mas uma intrépida rede de cientistas e acadêmicos de todo o
mundo, atraídos ao Peru por seu interesse no manuscrito, luta ao lado de padres
católicos locais progressistas para preservá-lo das forças da reação.
A doutrina de A Profecia Celestina é a
seguinte: uma vez que um número cada vez maior de nós admita que eventos
sincrônicos misteriosamente significativos continuam acontecendo (Primeira
Visão) e, em seguida, desenvolva um senso de perspectiva histórica que nos
mostre (1) que a Idade Média cristã foi espiritual de certo modo, exceto pelo
fato de ter sido controlada por eclesiásticos de mente estreita que sufocaram a
evolução, e (2) que as explorações e os avanços científicos do segundo milênio,
especialmente desde o Renascimento, foram uma tentativa de descobrir o
propósito da vida terrena depois que a Idade Média tacanha se desfez, mas que
(3) desistimos de esperar que a resposta chegasse e nos contentamos com o
conforto material (em conjunto, a Segunda Visão), então poderemos aprender a
ver as auras de energia em torno de plantas, rochas e outras pessoas, e
torná-las mais fortes (Terceira Visão).
Uma vez que possamos canalizar energia para as
plantas e uns para os outros, seremos capazes de parar de competir uns com os
outros por energia vital (Quarta Visão) e ter experiências místicas cósmicas
(Quinta Visão), que nos ajudarão a ir além das quatro formas diferentes de
lutar por atenção e poder que aprendemos na infância (Sexta Visão), após o que
seremos capazes de ver como todos os eventos, mesmo os negativos, fazem parte
do fluxo da evolução espiritual e ligar-nos a ele (Sétima Visão). Depois disso,
poderemos educar nossos filhos de modo diferente, fazendo com que sempre haja
um adulto dando atenção total a uma criança, e também superar a co-dependência
nos relacionamentos românticos e em outros relacionamentos (em conjunto, a
Oitava Visão), o que nos permitirá criar uma nova cultura planetária, em que a
população será controlada, a energia será barata e abundante, vastas florestas
primevas serão deixadas para crescer, as cidades serão autossuficientes,
totalmente automatizadas e geridas por inteligência artificial, e em que nossas
vibrações energéticas atingirão um nível tão elevado que nos
desmaterializaremos, um por um, e entraremos no Céu sem morrer!
The Celestine Prophecy revela-se aqui como uma colcha de retalhos de ideias psicológicas e
pseudo-esotéricas contemporâneas, caoticamente costuradas pelo fio de uma
fantasia literária. A ideia de profecias misteriosas descobertas na América
Latina, em um sítio maia/inca, e que dizem respeito às últimas décadas do
segundo milênio e às primeiras do terceiro, deriva muito provavelmente das pretensões
de José Argüelles quanto ao valor macropreditivo do calendário maia.
Sincronicidade (Primeira Visão) vem de Carl Jung; perspectiva histórica
(Segunda Visão), de uma ignorância de história; auras (Terceira Visão), da
pesquisa psíquica e de relatos de clarividentes; lutas de poder em torno de
energia (Quarta Visão), da psicologia contemporânea, de ensinamentos psíquicos
modernos e da experiência comum de pessoas que tentam se relacionar quando, na
verdade, não se amam; uma ideia falsa de “experiência mística” (Quinta Visão),
da teoria da evolução; a análise dos diferentes estilos de manipulação
interpessoal (Sexta Visão), da psicologia popular, ou de sistemas como o
eneagrama (na versão de Helen Palmer, não na forma tradicional usada pelos
sufis naqshbandis) ou da observação direta; evolução espiritual (Sétima Visão),
da teoria darwiniana mal aplicada; uma nova ética interpessoal (Oitava Visão),
da psicologia popular; uma nova cultura planetária (Nona Visão), de projeções
futuristas comuns; o estilo da escrita em si, de Carlos Castaneda. As Visões
Um, Três, Quatro e Seis são válidas em seus níveis próprios, amplamente
separados, mas não se alinham para produzir nada que se aproxime de um todo
orgânico. Até a Oitava Visão tem algo a seu favor, se não for usada para
justificar distância afetiva e falta de compromisso nos relacionamentos — como
costuma acontecer.
Toda essa mistura não é nem integrada nem antiga,
contudo — mas isso aparentemente não é problema, porque Redfield não faz
nenhuma reivindicação rígida quanto à autenticidade do manuscrito em que seu
sistema supostamente se baseia; e o manuscrito inexistente foi destruído pelas
forças da reação no final do livro mesmo, de modo que ficamos apenas com as
fantasias que projetamos naquele vazio. As fantasias que somos orientados a
projetar.
The Celestine Prophecy baseia-se nos costumes da cultura global de solteiros New Age,
ampliados a proporções cósmicas. Todos os protagonistas são solteiros, ou
porque fazem parte da cultura New Age de solteiros, ou porque são padres.
Também não há peruanos casados entre as forças do bem. Os filhos da luz são
advertidos a não entrar em relacionamentos comprometidos antes de estarem
altamente evoluídos, e a única situação familiar apresentada aparece entre os
“nativos” não iluminados, oferecida como ilustração dos problemas interpessoais
que podem ser superados pela Quarta Visão. A única criança entre as forças do
progresso espiritual aparentemente vive com uma mãe solteira.
A Igreja Católica é o inimigo. A hierarquia não iluminada
teme o manuscrito porque ele minará seu poder se as pessoas aprenderem a
“evoluir” sem a permissão dela. Eles acreditam que, se as pessoas transcenderem
a necessidade de autoridade espiritual, sairão em desatino.
Os padres progressistas perseguidos, integrantes
das forças do bem, são todos teilhardianos. Em vez de salvação, creem em um
progresso espiritual linear coletivo rumo ao Ponto Ômega. Não esperam nenhum
apocalipse. Acreditam que o manuscrito celestino finalmente iluminará o
verdadeiro sentido da tradição católica, embora a negue em todos os seus
aspectos.
De que lado você se identifica? Com os velhos
rançosos da Igreja, com sua ênfase repressiva em autoridade e sofrimento, ou
com a cultura New Age de solteiros, que promete uma terra renovada e
paradisíaca, onde tudo o que você tem a fazer é aprender a notar
sincronicidades, ver auras em torno de plantas, prestar atenção às crianças e
evitar relacionamentos co-dependentes — e então poderá dissolver-se em pura
luz? A escolha é simples — e é sua!
Talvez o leitor esteja se perguntando por que estou
gastando tempo criticando aquilo que é obviamente uma fantasia. Há várias
razões.
Primeiro, A Profecia Celestina representa
parte da ideologia “tender-minded” (ou cabeça-mole) da futura civilização global.
Seus inimigos são: (1) a Igreja Católica, que representa um possível
internacionalismo rival, bem como uma força que procura preservar costumes
tradicionais que atrapalham o globalismo; e (2) o governo peruano, um
nacionalismo “atrasado” que o globalismo — representado aqui pela Rede
Internacional dos Acadêmicos Ladrões de Arte das Forças da Luz, que tenta
roubar o manuscrito — procura varrer para longe em toda parte. Segundo, esses
livros são — ou foram até bem recentemente — extremamente populares. E terceiro,
como tentativa de deturpar, subverter e, em última instância, substituir a
doutrina cristã, eles representam um dos muitos prenúncios New Age do regime do
Anticristo.
Comecemos com alguns erros factuais:
(1) Na p. 8, o aramaico é apresentado como o idioma
em que boa parte do Antigo Testamento foi escrita. Mas quase todo o Antigo
Testamento está na verdade escrito em hebraico. Apenas partes dos livros de
Esdras e Daniel, e frases isoladas, estão em aramaico.
(2) Na p. 22, pinta-se o seguinte quadro da Idade
Média cristã:
“Você se encontra na classe social de seu pai —
essencialmente camponês ou aristocrata — e sabe que estará sempre confinado a
essa classe. Mas, qualquer que seja a classe em que esteja (…), logo percebe
que a posição social é secundária em relação à realidade espiritual da vida,
tal como definida pelos eclesiásticos. (…) Se você seguir as instruções deles,
fica assegurado de que terá uma vida futura recompensadora. Mas se não seguir o
curso que prescrevem, então, bem… há a excomunhão e a danação certa.”
A implicação é que a Igreja impunha a imobilidade
social enquanto dirigia toda a atenção da pessoa para o além. Mas, na
realidade, a Igreja era, em termos práticos, o único caminho de ascensão social
disponível na Idade Média. Por meio de uma carreira clerical, um camponês podia
até se tornar Papa. E dizer que os que seguiam “as instruções dos
eclesiásticos” seriam salvos e os que não o fizessem seriam condenados via
excomunhão fornece um quadro muito distorcido. As “instruções dos eclesiásticos”
não eram decretos arbitrários impostos por uma espécie de exército de ocupação
— claramente sugerido pela imagem de um cardeal peruano dirigindo secretamente
um regime de terror militar —, mas expressão da doutrina cristã ortodoxa, que,
com algumas exceções gritantes, era aceita como natural por todos os setores da
sociedade. No plano político, você até poderia não gostar das ações do bispo
local ou mesmo do Papa, mas tomaria a doutrina que ensinavam, bem como seu
direito de ensiná-la, como algo dado, em comum com a maior parte das pessoas,
nos mais diversos lugares e épocas do mundo medieval. E os pecadores não eram
rotineiramente condenados via excomunhão; eles eram — e são — tornados
incapazes, por seu próprio egoísmo, de suportar a luz direta do Amor de Deus
após a morte, experimentando-a, devido à resistência a ela, como fogo do
inferno. Deus, não o homem, julga os pecadores, e só os julga conforme sua
própria intenção. A excomunhão não era punição pelo pecado em si, mas era
reservada àqueles que desafiavam abertamente a autoridade doutrinária da
Igreja.
(3) Na p. 29 lemos que,
“no fim do milênio (…) uma obsessão de quatrocentos
anos se completara. Havíamos criado os meios para a segurança material e agora
parecíamos prontos — na verdade, em posição — para descobrir por que havíamos
feito isso.”
A única coisa errada nessa afirmação é que ela não
se aplica à maioria das pessoas na Terra.
(4) Na p. 42, lê-se:
“Experimentos [em física quântica] revelaram que,
quando você fragmenta pequenos aspectos dessa energia, o que chamamos de
partículas elementares, e tenta observar como operam, o próprio ato de
observação altera os resultados — como se essas partículas elementares fossem
influenciadas pelo que o experimentador espera. (…) Em outras palavras, a
matéria básica do universo, em seu núcleo, parece ser uma espécie de energia
pura maleável à intenção humana.”
Isto é uma total deturpação da física quântica. O
fato de a observação afetar resultados experimentais no nível quântico nada tem
a ver com as expectativas do experimentador. Trata-se, antes, de um “princípio
de exclusão” que define os limites absolutos de precisão na medição. As
expectativas do experimentador afetam os resultados na medida em que determinam
a hipótese de trabalho sobre a qual o experimento é construído — assim como as
perguntas específicas que eu lhe fizer a respeito de sua vida influenciarão as
respostas que você me der. Mas a forma particular da sua vida está realmente
lá, quer eu a investigue, quer não. Da mesma maneira, a estrutura da natureza
não é determinada pelas perguntas que fazemos a ela. Se fosse assim, a
experimentação científica não teria sentido.
O propósito “didático” da doutrina segundo a qual a
própria realidade, e não apenas a experiência, é afetada pela expectativa é
justificar a aceitação da fantasia como real — especialmente da fantasia
dirigida ou sugerida, já que é tudo o que nos resta se não houver critério de
realidade, nenhum manuscrito existente. Sem qualquer modo de avaliar a
realidade objetiva de uma afirmação, nem motivação para fazê-lo, nem — em
última análise, e aí A Profecia Celestina é puramente pós-moderna —
qualquer crença de que exista algo como realidade objetiva, aquele que tem chutzpah
e impulso de poder pessoal para definir arbitrariamente a realidade, o mágico
de palco que diz à sua plateia desorientada “imaginemos isto juntos”, é Deus —
ao menos temporariamente. Este é o lado negativo das “visualizações guiadas”
tão comuns em oficinas New Age: funcionam como sessões de treinamento em sugestionabilidade
acrítica.
(5) Na p. 59: “A antiga ideia newtoniana é que tudo
acontece por acaso (…) que todo evento tem uma linha de causalidade
independente de nossa atitude.” Mas, é claro, dizer que tudo acontece por acaso
é negar que linhas independentes de causalidade possam existir. Newton não
disse que tudo acontece por acaso; disse que tudo acontece por linhas de
causalidade independentes. O pensamento de Redfield está tão confuso aqui, para
além de sua simples ignorância dos fatos, que sou levado a concluir que sua
negação de linhas independentes de causalidade o levou a negar também a
validade do raciocínio lógico, motivo pelo qual esqueceu como raciocinar. Mas,
se a realidade objetiva é influenciada pela atitude de alguém, para além das
simples consequências de suas ações, então talvez, se Redfield adotar a atitude
de que Newton realmente afirmou que tudo depende do acaso — ainda que, na
verdade, não o tenha dito —, então, de certo modo, ele realmente o disse — se,
isto é, acreditarmos que ele o disse. Vi o mágico serrar a mulher ao meio com
meus próprios olhos; logo, ele realmente a serrou, porque ver é crer. Ou
melhor, como Redfield e outros mágicos de palco sabem, crer é ver. Chama-se
“desvio de atenção”.
(6) Na p. 235: “As ruínas onde a Nona [Visão] foi
encontrada se chamam Templos Celestinos, os Templos Celestes.” A palavra
“Celestino”, contudo, refere-se na verdade à Ordem Celestina de monges
católicos, fundada pelo Papa Celestino V por volta de 1260. Os mosteiros
celestinos foram destruídos durante e após a Revolução Francesa;
consequentemente, grande parte da Europa Ocidental abrigava várias “ruínas
Celestinas”. De tão obsessivamente que Redfield deseja suplantar a Igreja
Católica, ele acaba apropriando até o nome de uma de suas ordens monásticas.
(7) Na p. 237, o cardeal conservador Sebastián é
retratado como vivendo na expectativa do “arrebatamento”. Mas católicos
conservadores e tradicionais não creem no arrebatamento; trata-se de uma
doutrina do cristianismo evangélico de origem relativamente recente.
Dos erros factuais, passemos agora à deturpação do
amor.
Na p. 116, a personagem “Padre Sánchez”, como o
Deepak Chopra de As Sete Leis Espirituais do Sucesso e em consonância
com os costumes da cultura internacional de solteiros, prega contra a ideia de
que o amor exija algum tipo de sacrifício. Quão comum é essa crença, ao menos
nas nações ocidentais desenvolvidas. “Eu achei que seria maravilhoso”, dizemos,
“e por um tempo foi maravilhoso, mas então começou a ser terrível, por isso fui
embora.” Nossa pregação — muitas vezes justificada — contra a “co-dependência”
é usada com frequência demais para encobrir o fato de que tendemos a considerar
que nossos relacionamentos, como o restante das coisas em que investimos,
existem simplesmente para satisfazer nossas expectativas. Se aquilo que
desejávamos do relacionamento não se realiza imediatamente, devolvemos o
“produto” como faríamos com uma mercadoria defeituosa. “Se não funciona, por
que ficar com isso?”, dizemos a nós mesmos. “Por que deveriam esperar que eu
gastasse meus próprios recursos para consertar algo que deveria ter sido melhor
feito desde o início? Não é minha função arrumá-lo; o que quero é um
substituto.” Nas palavras de “Padre Sánchez”:
“O papel do amor tem sido mal compreendido há muito
tempo. O amor não é algo que devamos fazer para sermos bons ou para tornar o
mundo um lugar melhor por algum tipo de responsabilidade moral abstrata, ou
porque devemos abrir mão do nosso hedonismo. Conectar-se com a energia se sente
primeiro como excitação, depois como euforia e, então, como amor. Encontrar
energia suficiente para manter esse estado de amor certamente ajuda o mundo,
mas ajuda mais diretamente a nós mesmos. É a coisa mais hedonista que podemos
fazer.”
O amor, em
outras palavras, é um “barato”. Nada tem a ver com serviço compassivo (agape),
muito menos com apreço e devoção à unicidade da pessoa do outro (amor);
é uma forma ou nível de energia. Aqui vemos de novo a tendência panteísta de
acreditar que a energia está em um nível de ser mais elevado do que a
pessoalidade. É verdade que, se o fluxo de energia vital se esgota, a nossa
própria pessoalidade e a dos outros fica abafada. Mas isso se dá porque a
energia vital é a expressão-campo da pessoalidade, a shakti dela, não um
substituto para ela. Em termos hindus, não há Prakriti (matéria/energia
primordial) sem Purusha (o “Pessoa” divina interior); e a nossa própria
pessoalidade única, bem como a dos outros, é a manifestação mais direta do
Divino em nós. Substituir a energia de “se sentir bem” por uma pessoalidade
desenvolvida, bem como por autossacrifício, formação de caráter, empatia e
todas as demais coisas que servem a essa pessoalidade — e que, só elas, tornam
possível o mundo do amor humano maduro e dos relacionamentos adultos — é chegar
perigosamente perto de reduzir o amor humano à atração sexual, ou a outras
formas mais sutis de atração, igualmente impessoais e efêmeras.
A co-dependência não é “relacionamento demais”, mas
uma falha em se relacionar com o outro como pessoa real. Meu ego vê o outro
como parte de mim, e o outro faz o mesmo, produzindo uma confusão de
identidades. Não há relação nem polaridade, porque não há definição pessoal,
apenas um campo impessoal de energia psíquica, cheio de expectativas e desejos
semi-conscientes. Tal campo às vezes pode parecer “espiritual”, porque a falta
de definição pessoal amacia a aresta dura do ego. Mas o ego continua ali, tanto
mais perigoso por estar menos focado e menos visível.
Segundo A Profecia Celestina, a
co-dependência é universal; como diz a personagem “Karla” (p. 195): “Todos
somos co-dependentes, e todos estamos saindo disso agora.” Ela descreve o
relacionamento “comum” entre homem e mulher como “uma luta de poder”. “Sempre
nos perguntamos”, diz ela, “o que faz o êxtase e a euforia do amor acabarem, de
repente se transformarem em conflito, e agora” — graças ao misterioso
Manuscrito descoberto nas selvas peruanas — “nós sabemos.” Ela continua:
“Quando começamos a evoluir, passamos
automaticamente a receber nossa energia de sexo oposto (…) do (…) universo. Mas
(…) se aparece outra pessoa que oferece essa energia diretamente, podemos nos
cortar da fonte verdadeira (…) e regredir (…). Até aprendermos a evitar essa
situação, andamos por aí como um círculo meio completo. Sabe, parecemos a letra
C. Ficamos muito suscetíveis a uma pessoa do sexo oposto, outro círculo meio
completo, aparecer e juntar-se a nós — completando o círculo dessa maneira — e
nos dar uma explosão de euforia e energia que parece a plenitude produzida por
uma conexão plena com o universo. Na realidade, só nos juntamos com outra
pessoa que também anda procurando sua outra metade do lado de fora.
“Veja, o problema com essa pessoa completa, esse O,
que ambos pensam ter alcançado, é que foram precisas duas pessoas para fazer
essa pessoa inteira, uma fornecendo a energia feminina e a outra, a masculina.
Essa pessoa inteira, por conseguinte, tem duas cabeças, ou egos. Os dois querem
comandar a pessoa inteira que criaram e, assim, como na infância, os dois
querem mandar no outro como se o outro fosse eles mesmos. Esse tipo de ilusão
de completude sempre desaba em luta de poder. No fim, cada pessoa tem de
considerar a outra como garantida e até invalidá-la para poder conduzir esse eu
inteiro na direção que quer seguir. Mas, é claro, isso não funciona, pelo menos
não mais. Talvez no passado um dos parceiros estivesse disposto a submeter-se
ao outro — normalmente a mulher, às vezes o homem. Mas estamos despertando
agora. Ninguém quer mais ser subserviente a ninguém.”
“(…) Adeus romance”, eu disse.
“Ah, ainda podemos ter romance”, respondeu Karla.
“Mas primeiro temos de completar o círculo por conta própria. Temos de
estabilizar nosso canal com o universo. Isso leva tempo, mas depois (…) podemos
ter o que o Manuscrito chama de relacionamento superior. Quando então nos
conectamos romanticamente com outra pessoa inteira, criamos uma superpessoa
(…). Mas isso nunca nos desvia do caminho da nossa evolução individual.” (pp.
193–195)
Há muita verdade nesse quadro da co-dependência,
que é uma das doenças psicológicas particulares do nosso tempo, em que todo o
sistema do Mundo conspira contra qualquer coisa que lembre formação de caráter.
Há verdade no diagnóstico, até certo ponto, mas tenho sérios problemas com o
tratamento.
Para começar, o “universo” através do qual
recebemos nossa “energia de sexo oposto” está cheio de outras pessoas, que
mediam essa energia para nós. A criança criada por lobos não conseguirá
relacionar-se muito bem com outros seres humanos, sejam ou não do sexo oposto.
A única forma de aprender a se relacionar é relacionando-se.
Ver o “universo” como fonte primordial da relação
sexual, e as pessoas concretas do sexo oposto como secundárias, é outro dos
muitos efeitos devastadores do panteísmo, do culto à natureza e da idolatria da
energia. Outra vez: não existe campo de “energia sexual” sem pessoas realmente
sexuadas. Separar outras pessoas, tanto enquanto indivíduos quanto enquanto
representantes de seu gênero, de seus arquétipos transpessoais na mente de Deus
é transformá-las em ídolos do próprio ego; isso Redfield entende. Mas
relacionar-se com “energias” transpessoais em vez de com pessoas reais também é
idolatria — não de indivíduos, mas dos arquétipos. A primeira idolatria produz
uma condição contraída, estagnada, “humana demais”, de energia esgotada; a
segunda produz uma condição “divina demais” de inflação do ego, uma dispersão
explosiva da alma.
“Karla” descreve o relacionamento co-dependente
como “uma pessoa inteira” com “duas cabeças”. Mas, é claro, não se trata de uma
pessoa inteira, mas de uma massa de ilusões, identificações, projeções e
autocontradições. E saber se tal relacionamento poderá amadurecer com o tempo,
ou se é melhor, em última instância, que os parceiros o dissolvam e entrem em
outras relações depois de terem crescido um pouco, só pode ser respondido caso
a caso; não há regra geral. Mas, se algo é certo, é que uma pessoa não pode
“completar o círculo” que lhe permita relacionar-se com os outros “sozinha”.
Relação só se aprende relacionando-se.
As pessoas podem esperar a vida inteira até estarem
“completas” o bastante para ter um relacionamento significativo e nunca chegar
lá, porque estão tentando tornar-se egos narcisistas perfeitos, hermeticamente
selados, sem necessidades humanas — e quem quer relacionar-se com alguém assim?
Uma pessoa desse tipo também será incapaz de submeter-se ao outro com
dignidade, assim como de aceitar a submissão do outro com justiça e graça,
porque o ego narcisista fraco nunca se submete: apenas se identifica e
manipula. Certamente a pessoa irremediavelmente co-dependente faria bem em
tirar um sabático de relacionamentos íntimos, interromper o ciclo de
identificação, autodestruição e manipulação, e aprender que há mais na vida do
que um parceiro sexual. Mas se o co-dependente tentar esperar até tornar-se
totalmente autossuficiente — em outras palavras, até seu ego tornar-se Deus —
antes de entrar em um relacionamento de amor, então que espere muito.
Como seres humanos encarnados, vivemos num mundo
relativo, o que significa que, como criaturas — ainda que não como Nomes de
Deus — somos fundamentalmente incompletos. Precisamos uns dos outros, e assim
deve ser. Sem essa necessidade, a sociedade humana seria impossível. Só uma
arrogância luciferina desejaria negar os limites inerentes da nossa condição de
criatura. Essa arrogância, no entanto, é um traço comum da psique coletiva
destes últimos tempos, porque, na medida em que Deus deixa de ser real para
nós, devemos projetar a perfeição que pertence só a Ele ou sobre o universo (no
culto materialista da natureza), ou sobre os relacionamentos humanos (na
co-dependência), ou sobre a pseudossuficiência (no narcisismo).
Quando Jesus disse: “Sede perfeitos como vosso Pai
celestial é perfeito”, não nos estava mandando tentar alcançar perfeição no plano
psíquico, mas reconhecer que a verdadeira perfeição é “celeste” ou celestial,
que é uma realidade espiritual, não psíquica, pois “quem de vós, com todas as
suas preocupações, pode acrescentar um côvado à sua estatura?”. Ao reconhecer
os limites inerentes da psique, somos conduzidos a reconhecer o “Pai interior”
que a transcende, a perfeição de Deus que, embora seja outra que tudo aquilo
com que nos definimos, é entretanto o nosso verdadeiro Ser: “Já não sou eu que
vivo, mas Cristo é que vive em mim.” E, se percebemos que a completude está
somente em Deus, não colocaremos nossos relacionamentos humanos sob o estresse
impossível de exigir que sejam completos, mas os entenderemos como incompletos
por natureza e, portanto, como oportunidades de desenvolver as virtudes da
paciência, da compaixão, da bondade amorosa, da cortesia, da coragem e do
autorrespeito, como canais para a expressão do Amor Divino no mundo humano.
Pelas virtudes, a psique humana atinge o mais alto nível de desenvolvimento, e
assim se conforma, até o limite de sua capacidade, à sua Fonte espiritual.
Existe algo como o “relacionamento superior”;
Redfield está certo quanto a isso. Não há alquimia espiritual maior do que um
matrimônio amoroso vivido conscientemente como parte do caminho espiritual. Mas
esse romance superior, ou matrimônio espiritual, não é uma união perfeita de
dois indivíduos perfeitamente autossuficientes, e sim uma relação forjada nas
chamas da subserviência mútua — em oposição a um padrão fixo de
domínio-e-submissão — em que cada parceiro, muitas vezes superando grande
resistência, adora a Deus na pessoa do outro. Só que, como “Karla” diz,
“ninguém quer mais ser subserviente a ninguém”, e é por isso que conflitos
instáveis de ego substituíram, como “norma” na sociedade contemporânea, os
matrimônios estáveis.
O romance espiritual é a veneração mútua do outro
como símbolo vivo do Eu Divino — e não, como na co-dependência, a idolatria
recíproca do ego na pessoa do outro. Não é algum tipo de fantasia sexual
glamourosa e arquetípica para dois, como em grande parte do que veio a ser
chamado de “movimento da sexualidade sagrada”, mas o reconhecimento dos
arquétipos transpessoais de gênero em si mesmo e no outro. E, como esses
arquétipos de gênero não são algo que o ego possa possuir, não podem ser
corporificados mediante a inflação da personalidade até o nível arquetípico,
mas somente mediante uma humilde submissão àquilo que transcende a
personalidade por completo.
Deixando de lado as deturpações do amor, passemos
agora a examinar as deturpações estreitamente relacionadas da religião e da
espiritualidade.
Na p. 106, Redfield deixa claro que concebe Deus —
ou, melhor, aquilo em que acredita em vez de Deus — como “energia de outra
fonte — uma fonte que, um dia, aprenderemos a captar à vontade”. Como Deepak
Chopra, James Redfield vê o Divino como uma energia passiva e quase
inconsciente que pode ser “captada” como qualquer outro recurso natural. E sou
sempre eu, sempre o ego individual, quem faz essa captação. Qualquer ideia de
que essa “energia”, em relação a nós, possa possuir uma intenção consciente
própria é vista como superstição cristã primitiva. Que Ela pudesse decidir
captar a nós, em vez de sermos nós a captá-La, jamais lhe passa pela cabeça.
Afinal, diz a mente da Nova Era, ninguém quer mais ser subserviente a ninguém —
e, se a subserviência voluntária a outro ser humano já é problema, imagine quão
terrível e antinatural seria ser subserviente ao próprio Absoluto!
No quinto capítulo de A Profecia Celestina,
o narrador tem aquilo que identifica como uma experiência mística. Trata-se,
porém, de uma experiência que quase nada tem em comum com o relato universal
dos místicos e contemplativos das religiões e tradições sapienciais do mundo ao
longo da história. Estimulado pelo medo de ser capturado ou morto por soldados
perseguidores que tentam suprimir o Manuscrito, ele experimenta (1) que a Terra
é realmente uma esfera, que o espaço sideral existe abaixo de seus pés tanto
quanto acima de sua cabeça; (2) uma identificação do mundo natural como parte
de seu corpo; (3) o panorama da evolução cósmica e biológica, do Big Bang até o
homem; e (4) a percepção de que a evolução continua na consciência dos seres
humanos e tem algo a ver com coincidências sincrônicas.
A autêntica experiência mística é atemporal.
Baseia-se num profundo senso de relação com — ou absorção em — uma ordem
superior de Realidade. Em sua forma introvertida, transcende inteiramente o
mundo material, ao passo que, em sua forma extrovertida, transfigura esse
mundo, produzindo uma visão da dimensão material como manifestação simbólica de
uma Realidade superior que transcende espaço, tempo, matéria e energia. A visão
do narrador, porém, é simplesmente a de um horizonte mais amplo de espaço,
tempo, matéria e energia; não é, de forma alguma, mística. Além disso, ver os
seres humanos como flor de um processo evolutivo e vanguarda de um
desenvolvimento evolutivo futuro é identificar o indivíduo como o nível mais
elevado de ser; mas, se nada é considerado mais alto do que o indivíduo, esse
indivíduo não pode relacionar-se com uma Realidade superior nem ser nela
absorvido. Outra vez, portanto, a experiência do narrador não pode ser chamada
de mística.
É certamente verdade, segundo a filosofia
esotérica, que a ordem criada retorna à sua Fonte divina por meio do
desabrochar espiritual consciente dos seres sencientes individuais. Mas essa
“evolução”, esse desdobramento do indivíduo por meio da transcendência do ego
auto-identificado, não é continuação do processo cosmogônico, e sim uma reversão
desse processo. Em vez de uma maior elaboração de formas criadas, é uma
dissolução progressiva dessas formas, conduzindo à sua reintegração em seus
respectivos protótipos em níveis cada vez mais elevados de ser. A palavra
“evolução” significa um “desenrolar”, um “virar para fora” daquilo que foi
enrodilhado ou voltado para dentro de si mesmo para produzir a consciência
centrada no ego e o mundo das formas materiais. Visto do ponto de vista da
manifestação, a criação é uma “involução”, um processo de auto-envolvimento,
enquanto a “evolução” é o processo contrário, pelo qual a criação é
desenrolada, dissolvida, e a Unidade original desvelada. Em vez de “levar
adiante a evolução do universo rumo a níveis cada vez mais altos de
complexidade vibracional” (p. 117), na verdade estamos ou conduzindo-o a níveis
cada vez mais elevados de simplicidade, ou ajudando-o a degenerar em
complexidade e auto-envolvimento cada vez maiores.
O homem é a forma de vida mais complexa da terra,
porque é, em certo sentido, a síntese e o epítome de todas as outras formas.
Se, como nos dizem a Bíblia e o Alcorão, Adão nomeou os animais, isso se deve
ao fato de ele conter em si mesmo todos os nomes de Deus dos quais as formas
naturais do universo são projeções. Ele pôde nomeá-los porque, sendo Homem, já
conhecia seus nomes. Assim, do ponto de vista esotérico, o propósito da
complexidade humana é tornar possível que retornemos, em nome de todas as
coisas, à simplicidade da nossa Origem. Depois de cruzada certa linha, a
complexificação ulterior da vida humana começa a destruir essa própria vida e o
mundo natural ao seu redor; é óbvio que cruzamos essa linha há algum tempo.
Quando a
criação da vida chega ao ser senciente autoconsciente, o retorno à Fonte já
começou; como se lê no Alcorão, “a Ele [Allah] retorna toda a questão”. Mas,
embora esse retorno seja em última análise inevitável, o ser senciente
autoconsciente pode regressar à sua Fonte por uma de duas vias: a via da
simplificação ou “recordação”, que conduz à salvação da alma e à sua
reintegração em seu protótipo, ou a via da complexificação ulterior ou “dispersão”,
levando à fragmentação da alma, à destruição da vida e ao retorno final à
Fonte, após um éon de sofrimento, pela via do fogo penitencial. Todo o
propósito da religião, enquanto projeção da Misericórdia de Deus neste mundo, é
definir esses caminhos, mostrando-nos como escolher o primeiro e evitar o
segundo.
O hábito de ver a complexificação sempre crescente
como uma ascensão a níveis ontológicos mais altos — erro sobre o qual se baseia
todo o sistema de Teilhard de Chardin, de onde Redfield provavelmente o tomou —
é inseparável da visão de mundo do materialismo. Visto do ponto de vista da
matéria, maior complexificação é ser mais elevado. Visto do ponto de vista da
consciência, o ser mais elevado é alcançado por meio da simplificação, da
recordação, do recolhimento do que se dispersou. É isso que a meditação busca.
A mente que retorna à simplicidade, ao que os taoístas chamam de “bloco não
talhado”, é suficientemente calma para testemunhar vastidões de complexidade
cósmica; a mente agitada só consegue testemunhar algumas obsessões emaranhadas
e repetitivas. Mas a paz que permite à mente recolhida testemunhar a
complexidade das coisas também lhe permite conhecê-las em sua simplicidade
primordial, como faces do Uno. É assim que todas as coisas retornam à sua
Fonte: por meio da purificação da consciência.
Na p. 176, Redfield ergue, como espantalho
representando a posição religiosa tradicional, um “Padre Costous”, que
apresenta as razões da Igreja para se opor ao Manuscrito:
— “Você acha que o Manuscrito está minando sua religião?”, perguntei
gentilmente a Costous. Ele me olhou com desdém. “Não apenas a nossa religião; a
religião de todos. Você acha que não há um plano para este mundo? Deus está no
controle. Ele nos atribui o destino. Nosso trabalho é obedecer às leis
estabelecidas por Deus.
A evolução é um mito. Deus cria o futuro do jeito que quer. Dizer que os
humanos podem fazer a si mesmos evoluir tira a vontade de Deus do cenário. Isso
permite que as pessoas sejam egoístas e separadas. Elas pensarão que sua
evolução é a coisa importante, não o plano de Deus. Tratarão umas às outras
ainda pior do que fazem agora.”
Dizer “Deus (…) nos atribui o destino (…); Deus
cria o futuro do jeito que quer (…)" é, essencialmente, negar o
livre-arbítrio. Mas a Igreja Católica ensina que a vontade humana é livre. Nas
palavras de Santo Agostinho em A Cidade de Deus: “Afirmamos tanto que
Deus conhece todas as coisas antes que aconteçam quanto que nós, por nosso
livre-arbítrio, fazemos tudo aquilo que sentimos e sabemos que não aconteceria
sem a nossa deliberação.” Assim, Redfield se engana aqui.
Além disso, quando faz seu “Padre Costous” opor “os
humanos fazerem a si mesmos evoluir” à “vontade de Deus”, está deixando a
“evolução” pessoal representar aquilo que a teologia católica tradicional chama
de “boas obras”, e a “vontade de Deus” representar a Graça divina — como se o
catolicismo ensinasse que a alma é salva somente pela graça, ou pela fé como dom
da graça. Mas o catolicismo de fato ensina que a alma é salva pela fé e pelas
obras, que labutar por nossa própria “evolução” espiritual — leia-se
“santificação” — com base na fé concedida por Deus e sob a influência da Graça
divina não é apenas possibilidade, mas dever. Por outro lado, o “Padre Costous”
está inteiramente certo ao dizer que, se acreditarmos poder “fazer” a nós
mesmos desenvolver espiritualmente fora do contexto da vontade e do plano de
Deus, nos tornaremos egoístas e separados. Isto acontece ser uma das “leis de
Deus”, que não são decretos arbitrários de algum tirano cósmico, como Redfield
parece pensar, mas simplesmente a natureza das coisas. A “cultura do
narcisismo”, para usar o nome de Christopher Lasch, é uma consequência da
ignorância de massa dessa lei em particular.
Nas pp. 235–236, o sacerdote progressista e
pró-Manuscrito “Padre Sanchez” tem a seguinte troca com o conservador “Cardeal
Sebastian”:
[Sebastian]: “Nós sabemos o que é espiritualidade, Padre Sanchez.”
“Sabemos? Acho que não. Passamos séculos falando sobre isso, visualizando isso,
professando nossa crença nisso. Mas sempre caracterizamos essa conexão como
algo que o indivíduo deve fazer para evitar que algo ruim aconteça, em vez de
adquirir algo bom e tremendo. O Manuscrito descreve a inspiração que surge
quando estamos verdadeiramente amando os outros e evoluindo nossas vidas
adiante.”
James Redfield aparentemente acredita, a julgar por
esta passagem, que o cristianismo não produziu santos, místicos, sábios, que
tudo não passou de um exercício acadêmico ou fantasia de desejo, embora durando
dois milênios. Mas é claro que o cristianismo ensinou desde o início que o amor
é a mais alta virtude; produziu tanto paradigmas de amor humano, como São
Francisco ou Madre Teresa, quanto derramou mais sangue, suor e tesouro em obras
concretas de misericórdia do que a Nova Era jamais fará, mesmo que tornasse o
serviço aos pobres, doentes e desabrigados sua primeira prioridade — o que dá
poucos sinais de fazer. E dizer que o cristianismo não tinha a mínima noção de
que a espiritualidade poderia ser algo “bom e tremendo” até que este Manuscrito
fictício aparecesse é, obviamente, absurdo. Todo o testemunho da Escritura, de
santos, místicos e gigantes espirituais do cristianismo o desmente plenamente.
Na p. 236, “Sanchez” e “Sebastian” discutem sobre
evolução espiritual:
[Sanchez]: “O Manuscrito descreve o progresso das gerações sucessivas
como uma evolução da compreensão, uma evolução rumo a espiritualidade e
vibração mais elevadas. Cada geração incorpora mais energia e acumula mais
verdade e então passa esse status às pessoas da próxima geração, que o estendem
ainda mais.”
“Isso é absurdo”, disse Sebastian. “Só há um caminho para se tornar mais
espiritual, e é seguindo os exemplos nas Escrituras.” “Exatamente!”, disse
Sanchez. “Mas, de novo, quais são os exemplos? Não é a história das Escrituras
a história de pessoas aprendendo a receber a energia e a vontade de Deus
interiormente?
Não foi isso que os primeiros profetas levaram o povo a fazer no Antigo
Testamento? E não é essa receptividade à energia de Deus interior o que
culminou na vida do filho de um carpinteiro, a ponto de dizermos que o próprio
Deus desceu à Terra?
“Não é a história do Novo Testamento”, ele continuou, “a história de um grupo
de pessoas sendo preenchidas com algum tipo de energia que as transformou? O
próprio Jesus não disse que o que ele fez nós poderíamos fazer também, e mais?
Nunca levamos essa ideia a sério — até agora. Só agora estamos apreendendo do
que Jesus falava, para onde ele nos conduzia. O Manuscrito identificou o que
ele quis dizer! Como fazer!”
Em outras palavras, sempre tivemos a teoria; o que
faltava era o manual de instruções. (Como mais poderia uma sociedade
tecnológica ver a espiritualidade, senão como um processo de superar
dificuldades técnicas?) Mas devemos crer que, onde milhares de vidas heroicas e
santas dedicadas à oração, meditação e serviço fracassaram, a superação da
co-dependência, a apreciação de coincidências e a visão de auras ao redor de plantas
terão sucesso? Devido à ignorância cultural generalizada sobre a verdadeira
espiritualidade — para não falar das nossas próprias tradições históricas —,
muitos aparentemente creem que sim. E certamente a história das Escrituras tem
a ver, em um nível, com receber a energia e a vontade de Deus interiormente.
Mas a ideia de progresso espiritual coletivo através das gerações não faz parte
dessa história, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Do Éden à história humana
houve uma queda. Do governo do povo escolhido por profetas e juízes ao governo
por reis, outra. E o Novo Testamento também, mesmo deixando de lado o Apocalipse
e em comum com todas as demais Escrituras tradicionais, prediz não evolução,
mas degeneração:
Surgirão falsos Cristos e falsos profetas, e farão
grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os
escolhidos.
Mt 24,24
Sabe, porém, isto: nos últimos dias sobrevirão
tempos difíceis.
Os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, soberbos, blasfemos,
desobedientes aos pais, ingratos, ímpios,
sem afeição natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis,
inimigos dos bons,
traidores, atrevidos, orgulhosos, amigos dos prazeres mais que amigos de Deus;
tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela…
2Tm 3,1–5
Quanto à previsão de Jesus de que seus seguidores
fariam obras ainda maiores do que ele, o fato de que um pequeno grupo de
devotos proscritos de um mestre executado viria a fundar uma religião que
suplantaria o império mais poderoso da Terra cumpre claramente essa previsão. E
qualquer um que tenha alcançado a santificação, como Jesus, venceu a morte.
Apesar de tentar criar um panorama espiritual
“alternativo”, A Profecia Celestina não é tanto um livro de ensinamentos
espirituais quanto uma ideologia espiritualizada concebida, consciente ou
inconscientemente, para justificar e glamurizar a economia global emergente.
Nas pp. 225–227, a personagem “Dobson” diz:
“A próxima mudança cultural será a automação da produção de bens (…) liberando
o tempo de todos para que possamos perseguir outros empreendimentos (…) nossos
dons (…) devem ir para as pessoas que nos deram verdade espiritual. Quando
pessoas entram em nossas vidas no momento certo para nos dar as respostas de
que precisamos, devemos lhes dar dinheiro. É assim que começaremos a
complementar nossas rendas e a sair das ocupações que nos limitam. À medida que
mais pessoas se engajarem nessa economia espiritual, iniciaremos uma verdadeira
mudança para a cultura do próximo milênio. (…) Pagar aos outros por seus
insights iniciará a transformação e, então, à medida que partes cada vez
maiores da economia forem automatizadas, a moeda desaparecerá.”
Assim, a era da informação é identificada com uma
nova espiritualidade milenar. Não importa que a globalização continue a alargar
o fosso entre ricos e pobres, ou que muitos empregados pela economia global da
informação presentemente estejam trabalhando 60 horas por semana ou mais, ou
que agora sejam necessários dois salários para manter um padrão de vida de
classe média, “libertando”, assim, nossos filhos para serem criados pela
televisão e socializados por gangues. E não importa que milhões, cujo tempo foi
“liberado” pela automação, agora estejam sem teto. (A taxa de desemprego,
lembremos, é a porcentagem de trabalhadores recentemente empregados que estão
presentemente sem emprego; ela nada diz sobre o número crescente de
não-trabalhadores que não têm um emprego há anos.) E como pagar às pessoas por
verdade espiritual é fundamentalmente diferente da venda de indulgências no
catolicismo pré-reforma? Se você paga por um dom, ele deixa de ser dom e vira
produto. Nas palavras de Jesus, “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”. A
forma correta de gratidão por um insight espiritual é retribuir ao doador com
um insight seu, ou transmitir o insight original a outro que seja digno dele,
quando o lugar, o tempo e as circunstâncias forem adequados. E a forma mais
elevada de gratidão é reconhecer que todo insight vem de Deus e, então,
trabalhar para realizar esse dom de insight na própria vida.
Aqui vemos como a cultura dos workshops Nova
Era — o comércio de “serviços espirituais”, do qual A Profecia Celestina,
com suas fitas, grupos, redes e oficinas complementares, é exemplo primário — é
simplesmente um setor da economia de serviços baseada em informação nas nações
desenvolvidas. Talvez seja só isso que a Nova Era é. Mas, se for verdade, qual
é o significado disso?
René Guénon, no capítulo 16 de O Reino da
Quantidade, intitulado “A Degenerescência da Moeda”, mostra como o dinheiro
perdeu progressivamente seu conteúdo qualitativo ou simbólico, degenerando na
direção da quantidade pura — fato apenas mais confirmado pelo atual sistema
eletrônico de transferência de fundos, em que “dinheiro” já não é nem moeda nem
papel, mas simplesmente um número registrado. Com base nessa tendência, e no
princípio metafísico de que algo como uma “quantidade pura” absolutamente não
pode existir, ele prediz, como “Dobson”, que o dinheiro desaparecerá. Mas, no
capítulo 39, “A Grande Paródia ou a Espiritualidade Invertida”, onde
caracteriza o reino do Anticristo como “uma falsa ‘restauração espiritual’ (…)
uma espécie de reintrodução da qualidade em todas as coisas” (p. 326), ele
prossegue dizendo (p. 359, n. 2):
“O próprio dinheiro, ou aquilo que tomar o seu lugar, voltará a possuir um
caráter qualitativo desse tipo, pois está dito que ‘ninguém poderá comprar nem
vender senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu
nome’ (Ap 13,17), e isso implica o uso efetivo, em ligação com o dinheiro, dos
símbolos invertidos da ‘contratradição’ (…)”.
Não é, por certo, pecado — embora possa ser ocasião
de pecado — vender livros que se escreveu ou objetos de arte que se produziu
para transmitir ideias espirituais. Mas a quantificação monetária direta do
próprio insight, tal como propõe James Redfield, prenuncia o desenvolvimento
que René Guénon prevê, sobretudo porque Redfield também fala do desaparecimento
da moeda. Insight espiritual é puramente qualitativo, literalmente “impagável”.
Além disso, segundo os ensinamentos tradicionais, o
conhecimento espiritual pode ser dado, mas não pode ser adquirido. A tentativa
de comprar coisas sagradas e, assim, torná-las quantitativas — baseada no erro
intelectual de que é possível comprar coisas sagradas — é conhecida no
cristianismo como o pecado da “simonia”, nomeado a partir do mago e heresiarca
gnóstico Simão Mago, que ofereceu comprar o poder milagroso do Espírito Santo
de Simão Pedro em Atos 8,9–24, como se fosse uma espécie de segredo profissional
ou técnico. Na medida em que a cultura da informação tenta quantificar o
insight espiritual com base monetária, ela incorre precisamente em simonia. E,
sendo o insight essencialmente qualitativo, não quantitativo — fato que a
cultura da informação parece ter sido criada justamente para negar —, seu uso
como forma de moeda confirma a previsão de Guénon de que “o dinheiro (…) ou o
que vier a ocupar seu lugar, voltará a possuir [um] caráter qualitativo
[invertido]” sob o regime do Anticristo.
Ao caracterizar A Profecia Celestina como um
precursor desse regime, não estou afirmando que James Redfield seja (ou não) o
promotor consciente de uma agenda espiritualmente subversiva, mas apenas que
ele é vítima — e também beneficiário — de uma falsa esperança.
V. Ter vs. Comer:
O Hinduísmo Empreendedor de Deepak Chopra
Na idade de Kali, só a riqueza será o critério de
linhagem, moralidade e mérito (…) a falta de riquezas será o único teste de
impiedade.
Bhagavata Purana
Deepak Chopra,
médico holístico, outrora seguidor de Maharishi Mahesh Yogi e CEO do Chopra
Center for Well-being, é talvez o professor de maior sucesso no mundo
ocidental, e além dele, entre aqueles que não tanto pregam princípios
metafísicos falsos, mas aplicam princípios verdadeiros a objetos falsos — no
caso do Dr. Chopra, o sucesso mundano. Não disputo sua perícia como médico, nem
o truísmo comum da Nova Era de que uma cura da alma às vezes pode curar também
o corpo, até certo ponto. O que contesto é a identificação estrita da salvação
ou iluminação com o bem-estar físico ou mesmo emocional. A onipotência de Deus
Lhe dá o poder de curar qualquer doença. Também Lhe dá o direito de exigir de
nós tudo quanto possuímos, incluindo a saúde física, requerer que não
coloquemos “deuses” diante d’Ele, mas O escolhamos somente. Jesus curou lepra e
cegueira congênita; chegou a ressuscitar mortos. Mas também convocou seus
seguidores a enfrentarem o martírio, a sacrificarem o apego ao bem-estar em
nome de algo infinitamente mais alto, a “tomar a sua cruz e segui-Lo”.
Em As
sete leis espirituais do sucesso, o Dr. Chopra faz a seguinte afirmação para o
seu método:
“Quando esse conhecimento é incorporado à sua consciência, ele lhe dará a
capacidade de criar riqueza ilimitada com facilidade sem esforço e de
experimentar sucesso em todo empreendimento. (…) Sucesso é a capacidade de
realizar seus desejos com facilidade sem esforço. (…) A abundância material, em
todas as suas expressões, é uma daquelas coisas que tornam a viagem mais
agradável. Mas sucesso também inclui boa saúde, energia e entusiasmo pela vida,
relacionamentos gratificantes, liberdade criativa, estabilidade emocional e
psicológica, um senso de bem-estar e paz de espírito.” Em outras palavras, o
Dr. Chopra identifica estritamente a realização de Deus com o bem-estar
material. Mas isso, é claro, é idolatria. Quando o grande santo indiano
Ramakrishna estava morrendo de câncer de garganta, seus discípulos imploraram
que ele se curasse com o seu poder de ioga. Sua resposta foi: “Mas é isso que a
Mãe quer. Como posso eu querer outra coisa?”
Tratemos, uma
por uma, das sete leis de Deepak Chopra:
1.
A Lei do Potencial Puro
“A fonte de toda a criação é a pura consciência. (…) Pura potencialidade
buscando expressão do não-manifesto para o manifesto. E quando percebemos que
nosso verdadeiro Si mesmo é de pura potencialidade, alinhamo-nos com o poder
que manifesta tudo no universo.”
A primeira lei, em sua maior parte, é verdadeira como está formulada. Contudo,
o Dr. Chopra prossegue dizendo que “quando você descobre sua natureza essencial
e sabe quem realmente é, nesse próprio saber está a capacidade de realizar
qualquer sonho que tenha, porque você é a possibilidade eterna, a
potencialidade imensurável de tudo o que foi, é e será” (p. 10). Isso só pode
significar que Deus, que é seu verdadeiro Si, tem a capacidade de realizar
qualquer sonho que Deus tenha. Para ver a verdade disso, basta apontar para o
universo. Mas assim que a palavra “você” é definida por seus desejos, como
aquele que carece e, portanto, deseja abundância material, boa saúde, energia e
entusiasmo pela vida, relacionamentos gratificantes, liberdade criativa,
estabilidade emocional e psicológica, um senso de bem-estar e paz de espírito,
então já não estamos falando de Deus, mas de um ser limitado por matéria,
energia, espaço, tempo e personalidade — tudo partes daquele Véu sobre o rosto
de Deus criado pelo próprio desejo. Estamos na presença de um ente contingente
que poderia nunca ter nascido, nasceu e inevitavelmente morrerá. Esse ente não
possui potencialidade ilimitada, assim como o Oceano não pode ser contido numa
xícara. É apenas uma expressão, selecionada dentre a potencialidade infinita,
do poder criativo de Deus.
O Dr. Chopra
reivindica para esse poder baseado no conhecimento do Si que “ele atrai pessoas
até você, e também atrai as coisas que você quer. Ele magnetiza pessoas,
situações e circunstâncias para apoiar seus desejos. Isso também é chamado de
apoio das leis da natureza. É o apoio da divindade; é o apoio que vem de estar
em estado de graça” (p. 13). Ora, é certamente verdade que o Si atrai todas as
coisas para si; como ensina o Alcorão, todas as coisas retornam a Allah. Uma
vez criado um vazio no campo do egotismo, que em termos subjetivos é o
autoconceito e em termos objetivos o mundo da “realidade ordinária”, a energia
corre para preencher esse vazio e unir-se ao radiante atman, o Si Divino nele. Se,
usando a terminologia tântrica, chamarmos esse Si Divino de “Shiva”, então a
energia atraída por Ele, que é o campo universal de Sua própria autoexpressão,
é Sua “Shakti”. Shakti é a energia do desejo
universal, desejo no nível do Divino, como no hadith em que Allah diz: “Eu
era um tesouro oculto e desejei ser conhecido, então criei o universo para que
Eu fosse conhecido.” Mas a única maneira de acessar o nível do desejo de Deus é
transcender os próprios desejos; nas palavras de Jesus: “Não se faça a minha
vontade, mas a Tua.” A Shakti divina, em outras palavras, não sustenta os seus
desejos pessoais, mas é manifestação do “desejo” do próprio Deus, Seu esplendor
infinito auto-manifestante. Por outro lado, nossos desejos mais verdadeiros
fazem parte do que Deus deseja para nós, pois são aspectos da forma única na
qual Ele quis nos criar. É esse nível de desejo que se cumpre quando entramos
no campo do esplendor auto-manifestante de Deus. Mas o único modo de acessar
esse nível de desejo é renunciar a tudo o que podemos imaginar desejar para nós
mesmos e repousar no que o próprio Deus deseja para nós. Não podemos usar o
Infinito para satisfazer as demandas do finito; não podemos ter o bolo e
comê-lo. Se tentarmos assim mesmo, e parecer estar funcionando, estamos na
verdade no processo de “gastar o nosso bom karma”, trocando nosso potencial de
união libertadora com Deus pelos bens materiais e psicológicos deste mundo.
Nosso ego não foi transcendido, apenas se tornou mais sutil — e as
consequências para qualquer ego que acredita poder usar o Absoluto para
satisfazer seus próprios desejos minúsculos são que ele passa a ver a si mesmo
como o Absoluto, ponto em que o rosto do Absoluto se vela. Quando isso
acontece, a energia da abundância divina é cortada. Em termos judaico-cristãos,
isso é conhecido como “a queda de Lúcifer”. Segundo a doutrina budista, aquelas
almas que, tendo acumulado grande montante de mérito espiritual, decidem
gastá-lo na realização “bem-sucedida” do desejo em vez da libertação final do
desejo, que desperdiçam seu bom karma em farras intelectuais, emocionais e
materiais aparentemente não seguidas — até muito depois — por qualquer ressaca séria,
dizem-se estar no Deva-loka, o reino dos deuses
longevivos que habitam em ignorância bem-aventurada. Mas mesmo que possam
existir por milhares de éons nesse estado, ele finalmente chega ao fim; os
mundos infernais abrem suas mandíbulas. E essas almas, tendo passado
incontáveis éons deixando atrofiar suas faculdades espirituais sem o desafio de
um karma difícil, não têm poder para escapar dessas mandíbulas — até muito,
muito mais tarde. Nas palavras de Jesus, “não sairão daí até pagarem o último
centavo.”
2.
A Lei da Doação
“O universo opera por meio da troca dinâmica. (…) Dar e receber são aspectos
diferentes do fluxo de energia no universo. E, em nossa disposição de dar
aquilo que buscamos, mantemos a abundância do universo circulando em nossas
vidas.”
Essa lei também é mais ou menos verdadeira. Egotismo, de fato, pode ser
definido como aquilo que obstrui o fluxo da energia vital. O Dr. Chopra
prossegue: “Quanto mais você dá, mais você receberá, porque manterá a
abundância do universo circulando em sua vida” (pp. 29–30); “Se, através do ato
de dar, você sente que perdeu algo, então o dom não foi realmente dado e não
causará aumento” (p. 30); “Se você quer alegria, dê alegria aos outros; se quer
amor, aprenda a dar amor; se quer atenção e apreciação, aprenda a dar atenção e
apreciação; se quer afluência material, ajude outros a tornarem-se afluentes
materialmente” (pp. 30–31). Tudo isso é verdadeiro e vale ser repetido.
Contudo, deixa muito por dizer. Para começar, o Dr. Chopra, embora recomende
com acerto que cada ato de dar seja acompanhado de uma oração pela felicidade
do recebedor, tende a manter tudo no nível da felicidade material. Esse nível,
porém, não pode ser sustentado. Nosso dar e receber deve ou crescer na direção
de ver que somente Deus é o Doador, e daí para a estação de nada desejar de
Deus senão o próprio Deus, e finalmente para o conhecimento de que Deus, além
de ser o único Doador, é também o único Recebedor; ou então decairá, na direção
do apego a benefícios estritamente materiais, e terminará por reduzir o ato de
dar a uma espécie de feitiço mágico para forçar o universo a entregar.
O que falta
aqui é o sentido de que se é chamado a dar não apenas bens materiais, atenção,
amor e felicidade, mas também todo o senso de identidade. Isto é outra maneira
de dizer que é preciso aprender a dar não com garantia de retorno, mas
completamente sem esperança de retorno. Só isso é doação verdadeira; todo o
resto é compra e venda. Dar sem esperança de retorno é doar uma parte da
própria identidade, incondicionalmente e para sempre. Mas nosso senso de
identidade, que não quer morrer, raramente se rende sem luta, o que significa
que muitas vezes se tem de passar pelo sentimento de ter “perdido algo” ao
fazer um dom; é isso o que se entende por sacrifício. Jesus Cristo deu sua vida
livremente, mas não sem sofrimento: “Se possível, afaste-se de mim este cálice;
contudo, não se faça a minha vontade, mas a Tua.” Ainda assim perdoou seus
algozes; não guardou rancor, mas concluiu seu sacrifício e o entregou. Somente
se esse sentimento de perda-de-identidade não é sacrificado por sua vez, mas
retido como queixa contra o destino, é que o dom em questão “não foi realmente
dado”.
O Dr. Chopra
sustenta que “o dinheiro é realmente um símbolo da energia vital que trocamos e
da energia vital que usamos como resultado do serviço que prestamos ao
universo” (p. 28). “Como um rio, o dinheiro deve manter-se fluindo; caso
contrário, começa a congestionar, a sufocar e estrangular a sua própria força
vital” (p. 30). Isso é verdadeiro no plano dos ideais e é uma maneira expansiva
e edificante de encarar o dinheiro. Mas todos sabemos quão imperfeitamente isso
se aplica no plano dos fatos. Há exceções suficientes a essa regra neste mundo,
mesmo deixando de lado os esquemas de marketing em pirâmide, para me fazer
pensar duas vezes antes de contratar o Dr. Chopra como meu consultor
financeiro. O universo pode, em certo sentido, ser uma economia de livre
mercado, mas não está isento de boom e colapso. Justiça perfeita não é possível
no plano da manifestação porque a própria manifestação é produto de um
desequilíbrio primordial. Uma das consequências desse desequilíbrio é que até
mesmo a intenção de saldar as dívidas kármicas gera mais karma. Só em Deus a
justiça é perfeita e, por isso, desnecessária. Tomar menos do que Ele é
permanecer em dívida; vender tudo o que se tem e comprar a Ele é cancelar tanto
a dívida quanto o devedor. “Quem busca guardar a sua vida a perderá; mas quem
perder a sua vida por minha causa, a encontrará.”
A doutrina do Dr.
Chopra de que o dinheiro deve manter-se em fluxo é baseada no conceito hindu de
vasor
dhara,
a “Corrente de Riqueza”, cuja continuidade é um dos resultados do Sacrifício
védico. Essa Corrente, porém, não circula horizontalmente, de pessoa a pessoa,
mas verticalmente, subindo do mundo humano ao mundo dos deuses na fumaça do
Sacrifício, e retornando do mundo dos deuses ao mundo humano na forma de chuva,
que simboliza todos os bens da vida concebidos como uma “chuva de bênçãos”.
Para Deepak Chopra, passar coisas adiante claramente substituiu abrir mão das
coisas. Essa tendência de interpretar horizontal e quantitativamente doutrinas
sagradas originalmente concebidas em termos verticais e qualitativos é
inseparável das mentalidades moderna e pós-moderna; é a origem, por exemplo, da
doutrina da evolução, que substitui a hierarquia ontológica pelo
desenvolvimento histórico.
O Sacrifício
védico é de fato oferecido tanto pelo bem material quanto pelo espiritual do
sacrificante, tanto neste mundo quanto no outro. O fruto material do sacrifício
é que nem o sacrificante nem o seu povo morram de penúria; o fruto espiritual é
o conhecimento direto de Deus. Mas, segundo Ananda Coomaraswamy,
“Essas distinções entre bens temporais e eternos correspondem àquela que é
traçada com nitidez nos Brahmanas entre um mero patrocínio ou desempenho dos ritos e uma
compreensão deles; o mero participante assegura apenas o imediato, e o
Compreensor (…) ambos os fins da operação.”
Ele assinala ainda que, de acordo com os Brahmanas, “a vítima é
representante do próprio sacrificante, ou, como dizem os textos, é o próprio
sacrificante.” O Sacrifício védico é, portanto, chamado ātmayajña, “auto-sacrifício”. É
incerto se Deepak Chopra realmente entende isso.
3.
A Lei do “Karma” ou de Causa e Efeito
“Toda ação gera uma força de energia que retorna a nós em igual espécie. (…) O
que semeamos é o que colhemos. E quando escolhemos ações que trazem felicidade
e sucesso aos outros, o fruto do nosso karma é felicidade e sucesso.”
Verdadeiro — desde que nos lembremos de que nem todos os frutos kármicos são
colhidos nesta vida, e de que a definição de “bom karma” para uma pessoa
dedicada à busca da felicidade é uma, e para outra dedicada à busca da
libertação, outra. A qualidade do primeiro é a desejabilidade; a qualidade do
segundo é tudo quanto conduza à libertação, seja dor ou prazer, boa saúde ou má
saúde, afluência ou pobreza. O fruto do primeiro é a felicidade intermitente e
temporária. O fruto do segundo é Deus, cuja bem-aventurança está além de toda
limitação; não pode ser definida em termos do experienciador, do objeto
experienciado ou mesmo da experiência. Chama-se “Bem-aventurança” não porque
seja uma experiência, mas porque o direito, conquistado e concedido, de
repousar em sua proximidade é o Paraíso.
Na p. 40, o
Dr. Chopra diz:
“Somos fazedores de escolhas infinitas. A cada momento da existência, estamos
naquele campo de todas as possibilidades onde temos acesso a uma infinidade de
escolhas (…) a melhor maneira de maximizar o uso da lei kármica é tornar-se
conscientemente ciente das escolhas que fazemos em cada momento.”
Há várias coisas erradas nessa afirmação. Para começar, o que há de tão
maravilhoso em ter acesso a escolhas infinitas a cada momento? Três ou quatro
alternativas já não são difíceis o bastante sem sermos confrontados com
milhões?
Escolha
infinita não é o mesmo que possibilidade infinita. O divulgador sufi Idries
Shah observou certa vez que, em vez de liberdade de escolha, deveríamos aspirar
à liberdade de escolha. Em vez de
aplicar centenas de critérios da psicologia, sociologia, política, economia,
biologia, filosofia, teologia etc. a cada nova escolha, não seria melhor se
fôssemos tão certos da única coisa certa a fazer em qualquer momento que a
escolha já não nos atormentasse? Estar “no Tao” não significa entrar num campo
de escolhas infinitas; é antes a ação correta espontânea brotando da
“consciência sem escolha”.
A ideia de
“uma infinidade de escolhas” é essencialmente sem sentido e nasce de uma
confusão entre a vontade humana e a Vontade de Deus. O infinito pertence
somente a Deus, que está além de toda escolha, pois quer a atualização
simultânea de toda possibilidade nas profundezas de Sua própria natureza, por
Seu ato eterno de Auto-compreensão — embora não, é claro, dentro de um conjunto
limitado de circunstâncias contingentes, como uma vida humana, uma era
histórica ou um universo material. Deus não escolhe entre alternativas, Ele
quer o que é — embora, do nosso ponto de vista condicionado e limitado, devamos
experimentá-Lo dizendo sim a algumas coisas e não a outras. Como seres
conscientes porém limitados, somos nós que somos confrontados com alternativas
e, portanto, com escolhas. Nosso ponto de contato com o Infinito não está no
mundo das alternativas, mas no mundo da Unidade. Há apenas uma escolha infinita
que nossa vontade pode fazer: negar a si mesma e submeter-se à Vontade de Deus
— permitir que Aquele, que está totalmente além da escolha, escolha por nós.
No caminho da
submissão à Vontade de Deus, escolhas precisam, por certo, ser feitas.
Permanece nossa responsabilidade escolher aquelas circunstâncias no mundo
relativo que melhor sustentem essa Submissão, e aquelas ações que melhor
expressem o que Deus nos ordena realizar nesse mesmo mundo relativo. Essas
escolhas, contudo, não são infinitas, mas limitadas e, portanto, relativas —
necessariamente, pois a relatividade é a essência da escolha. São os ecos da
Unidade da Vontade de Deus no reino contingente e múltiplo de nossa vontade
pessoal. Sem A submissão, sem a Única Escolha Infinita, não passa de
impedimento.
Nas pp. 43–44, o Dr. Chopra fornece o critério segundo o qual as escolhas devem
ser feitas:
“No momento em que você conscientemente faz uma escolha, preste atenção ao seu
corpo e pergunte ao seu corpo: ‘Se eu fizer essa escolha, o que acontece?’ Se o
seu corpo lhe enviar uma mensagem de conforto, essa é a escolha certa. Se o seu
corpo enviar uma mensagem de desconforto, essa não é a escolha apropriada. (…)
Para algumas pessoas, a mensagem de conforto e desconforto está na região do
plexo solar, mas para a maioria das pessoas está na região do coração. (…) Só o
coração conhece a resposta correta. A maioria das pessoas pensa que o coração é
meloso e sentimental. Mas não é. O coração é intuitivo; é holístico, acessa o
computador cósmico.”
Aqui temos uma
enorme confusão de níveis. O que o “corpo”, o “plexo solar”, o “coração” nos
dizem pode ser a verdadeira voz da consciência, do Intelecto Divino em nós.
Também pode ser a voz do ego inconsciente, o “eu que ordena”. O Dr. Chopra
pressupõe em seus leitores um nível de desenvolvimento espiritual que lhes
permitiria distinguir uma coisa da outra. Mas tal “discernimento dos espíritos”
é, na verdade, bastante raro, ao menos quando se trata de alguma certeza real.
O “não” que muitas vezes sentimos no plexo solar pode ser a voz da vontade de
Deus; esse chakra, entretanto, é notoriamente vulnerável aos ditames do eu que
ordena, já que se relaciona com questões de poder pessoal, em particular com a
resposta de luta-ou-fuga. E o “coração” intuitivo e holístico ao qual o Dr.
Chopra nos pede que recorramos não está confiavelmente disponível à consciência
da maioria das pessoas, embora possa desvelar-se em momentos imprevisíveis,
apenas para ocultar-se de novo em seguida. Em suas camadas externas, o “chakra
do coração” é o lugar de nossos sentimentos “mamíferos”: afeto, orgulho,
coragem, tristeza. Só no nível mais profundo, ao qual se chega apenas por meio
de uma Submissão radical, o verdadeiro “Coração espiritual” nos é acessível. E
esse Coração está em um plano de ser vastamente superior à nossa capacidade,
sempre imperfeita, de manipular leis cósmicas.
À primeira
vista, o Dr. Chopra parece estar dizendo: “se é gostoso, faça.” Sua ideia do
que é “gostoso” é obviamente muito mais sutil que a de um alcoólatra ou
toxicômano; é mais verdadeiramente epicurista (no sentido original do termo),
pois reconhece que a busca bem-sucedida da alegria e do bem-estar requer certo
grau de sabedoria. Mas afirmar que qualquer sensação de desconforto físico ao
contemplar um curso de ação significa que você deve rejeitá-lo é profundamente
errado. Para o Dr. Chopra, não há “escolhas difíceis”; o que é certo é sempre o
que é fácil. Isso só é verdadeiro, em qualquer sentido, para aqueles que amam a
vontade de Deus acima de tudo, mais do que poder, sucesso, riqueza material ou
saúde física, que estão dispostos a sacrificar todos os bens da vida mortal
para seguir a Verdade. E, mesmo para eles, escolher o Verdadeiro em vez do
desejável nem sempre é fácil. Jesus teve sua agonia no jardim. Gandhi sofreu
pessoal e fisicamente, bem como emocionalmente, em seus jejuns e prisões para
libertar sua nação; se tivesse cedido diante dessas “mensagens de desconforto”,
a Índia poderia ainda ser colônia britânica. E estou certo de que Dietrich
Bonhoeffer, que arriscou e afinal perdeu a vida ao opor-se aos nazistas, não
embarcou em sua jornada heroica sem muitos calafrios de medo no plexo solar.
O clássico
espiritual hindu Bhagavad-Gītā, ambientado no grande
conflito entre os clãs aparentados dos Pāṇḍavas e dos Kauravas,
começa com um diálogo entre Arjuna, herói
dos Pāṇḍavas, e seu cocheiro
Krishna, que é o próprio Deus. A cena é o
campo de batalha de Kurukṣetra; o momento é
imediatamente antes do combate. Diz Arjuna:
“Krishna,
Krishna,
agora que contemplo
estes meus parentes
dispostos à luta,
minhas pernas fraquejam,
minha boca resseca,
meu corpo treme,
meus cabelos se eriçam,
minha pele parece arder,
o arco Gāṇḍīva
cai de minha mão,
minha mente gira
sem cessar,
já não me sustento.
Krishna, eu vejo
presságios funestos!
Que esperança pode vir
deste matar os meus?”
Tendo assim
falado, Arjuna lançou no chão flechas e arco, em meio ao campo. Sentou-se no
assento do carro, e seu coração foi subjugado pela tristeza. “Arjuna,” —
replica Krishna — “é esta hora de batalha momento para escrúpulos e fantasias?
São eles dignos de ti, que buscas a iluminação? Qualquer homem valente, que
apenas aspire à fama ou ao céu, os desprezaria… afasta esta covardia, Arjuna.
Levanta-te.”
Arjuna é um
dos maiores heróis de seu tempo, física e espiritualmente. Ainda assim, quase
foi esmagado pelo pensamento da guerra fratricida prestes a iniciar-se. Seu
corpo recusou-se a ficar de pé; a tristeza obscureceu-lhe o coração. Se tivesse
ouvido a “sabedoria” do corpo naquele instante, teria traído seu destino. Só
Krishna, a voz da Verdade Absoluta dentro dele, pôde ergue-lo. Aqueles que,
como Arjuna, possuem ao mesmo tempo a capacidade de escutar profundamente o
interior e a coragem de seguir a Voz interior para onde quer que ela conduza,
podem aceitar o conselho do Dr. Chopra. Todos os demais correm o risco de serem
extraviados por apelos tão fáceis à “sabedoria do corpo”. Por isso a maioria
das tradições fala da necessidade de um Mestre espiritual vivo, ou de uma
comunidade espiritualmente viável baseada numa verdadeira religião revelada,
que possa ser essa Voz para nós até que possamos realmente ouvi-la — e
obedecê-la sem hesitação — sem auxílio externo.
4.
A Lei do Mínimo Esforço
“A inteligência da natureza funciona com facilidade sem esforço… Com
despreocupação, harmonia e amor. E quando aproveitamos as forças da harmonia,
da alegria e do amor, criamos sucesso e boa fortuna com facilidade sem
esforço.”
Sim — mas o Amor não se deixa arrear. Alegria arreada não é livre de cuidado.
Harmonia, posta no arreio, começa a virar discórdia. E a natureza também abriga
o tigre, o vírus, o terremoto. A ação de Deus, do Tao, é sem esforço. Na medida
em que tornamos essa facilidade nossa, já não nos apegamos a sucesso ou boa
fortuna. Tudo quanto Deus envia, saúde ou doença, alegria ou sofrimento,
riqueza ou pobreza, é boa fortuna, porque é Sua vontade. Repousar na vontade de
Deus, fluir com o Tao, certamente dissolve muitos problemas por nós mesmos
criados. Tensão e luta estreitam nosso foco e drenam nossa energia vital. Mas
quem acredita que Deus “lhe deve” prosperidade material porque confiou n’Ele
pode deparar-se com a lição de Jó, e começar a aprender algo sobre a confiança
real. “Ainda que Ele me mate, n’Ele confiarei.” O Amor jamais se submeterá a
ser arreado, porque o Amor é o Condutor. Que Ele nos atrele ao Seu carro; que
nos conceda tal honra. Como diz o Dr. Chopra nas pp. 58–59:
“Responsabilidade significa não culpar pessoa ou coisa alguma por sua situação,
inclusive a si mesmo. Tendo aceitado esta circunstância, este evento, este
problema, responsabilidade significa então a capacidade de dar uma resposta
criativa à situação tal como é agora. Todo problema contém a semente da
oportunidade, e essa percepção permite-lhe tomar o momento e transformá-lo em
uma situação ou coisa melhor. Uma vez que você faça isso, toda situação
perturbadora tornar-se-á oportunidade de criação de algo novo e belo, e todo
suposto algoz ou tirano tornar-se-á seu mestre. A realidade é uma
interpretação.”
Tudo isso é
verdadeiro — exceto que é realmente Deus quem toma o momento e o transforma,
não eu. Minha tarefa, minha responsabilidade precisa e contínua, é simplesmente
sair do caminho d’Ele. E não é a Realidade que “é uma interpretação”, mas
apenas a experiência subjetiva. A Realidade, o Que É, está além de toda
interpretação. Nas palavras de Lew Welch, é “o que acontece quer eu olhe, quer
não”.
5.
A Lei da Intenção e do Desejo
“Em toda intenção e desejo está inerente a mecânica de seu cumprimento… A
intenção e o desejo, no campo da pura potencialidade, têm poder organizador
infinito. E quando introduzimos uma intenção no solo fértil da pura potencialidade,
colocamos esse poder organizador infinito para trabalhar a nosso favor.”
Mais uma vez, o finito não pode usar o Infinito para capacitar suas agendas. É
verdade que um desejo que surja do campo da pura potencialidade possui imenso
poder organizador. O primeiro desses “desejos”, o de máximo poder organizador
possível, é o Logos, o Primeiro Intelecto,
a semente da manifestação universal. Mas nem mesmo seu poder é infinito, porque
todo desejo, inclusive o desejo de Deus de ser conhecido por Suas criaturas, é
um limite estabelecido dentro do campo da pura potencialidade. E dado que esse
campo é o próprio Infinito, de que ponto “fora” dele um desejo poderia ser
introduzido? O Infinito não tem “fora”.
Deepak Chopra,
e tantos outros, invertem rotineiramente a relação entre criatura e Criador
porque veem Deus como totalmente passivo; uma espécie de recurso natural
infinito, à nossa disposição para explorarmos quando e como quisermos, para
obtermos o que queremos. “No nível do campo quântico,” diz o Dr. Chopra (p.
67), “não há nada além de energia e informação. O campo quântico é apenas outro
nome para o campo da pura consciência ou pura potencialidade.” Assim, Deus,
para Chopra, não passa de uma energia material sutil como ondas de rádio ou
magnetismo. Este é o erro do panteísmo — que, como vemos com clareza aqui, é
apenas outro nome para materialismo sutil.
O panteísmo
surge quando o Nirguṇa
Brahman,
o Absoluto Impessoal, “o Divino sem qualificações”, é mal-compreendido, levando
à negação do Saguṇa
Brahman,
“o Divino com qualificações”, o Deus pessoal. Saguṇa
Brahman
é o Ser; Nirguṇa
Brahman
é o Além-Ser, ou o Não-Ser. Mas, como disse Guénon, “o Ser é a afirmação do
Não-Ser.” O Deus Pessoal é a concepção mais alta possível que as criaturas
podem ter do Absoluto Impessoal. Esse Absoluto não é “impessoal” por carecer de
Pessoalidade — se o fosse, o Deus Pessoal não seria Seu símbolo supremo nem Sua
manifestação mais concreta —, mas por estar absolutamente além de concepção. Se
não estivesse, as criaturas poderiam compreender, abarcar e possuir Deus — que,
por esse fato, deixaria de ser Deus.
A tendência de
usar o Absoluto Impessoal para negar o Deus Pessoal, tão comum entre muitos
curiosos da mística e da metafísica, é apenas outra forma do desejo do ego de
ser Deus. Mas sem o Deus Pessoal ocupando seu degrau próprio na hierarquia, o Nirguṇa
Brahman
é sutilmente falsificado. Nosso senso de Sua Transcendência Absoluta começa a
esvair-se. Passa a ser conhecido não como realmente é, como Essência Divina
totalmente além da concepção, mas como potencialidade universal, poder Divino, Mahāśakti. Eis o sentido da
doutrina tradicional de que Adão caiu por aspirar ao conhecimento direto da
incognoscível Divindade, bem como da afirmação de Jesus de que “ninguém vem ao
Pai senão por mim”, indicando que ninguém que negue ou tente contornar o Saguṇa
Brahman
pode chegar ao Nirguṇa
Brahman.
E quando a incognoscível e transcendente Divindade é confundida com Seu poder,
Sua Śakti, então o Śaktimān, o detentor do poder,
o Ato transcendente e imóvel que fecunda essa potencialidade dinâmica, fica
obscurecido. Já não é Śiva, já não é Deus quem cumpre esse papel — sou eu. Sem
um Puruṣa (“Pessoa”), um Īśvara (“Senhor”), um Saguṇa
Brahman
que complemente a Prakṛti da pura potencialidade
concebida como matéria/energia primordial, sem um Deus pessoal consciente,
volitivo e atuante, infinitamente maior do que eu (ainda que Seu Ato essencial
seja simplesmente Ser), quem mais pode ocupar esse lugar? Eu, o pequeno ego,
passo a ser aquele cujos desejos a Mahāśakti, a Grande Mãe, está aí
para cumprir. E Ela os cumprirá, até certo ponto. Quem intui Sua realidade é
livre para haurir Seu poder — mas não sem consequências. A consequência kármica
de crermos que estamos capacitados e autorizados a aproveitar Sua energia para
realizar nossos desejos pessoais é simplesmente sermos libertos dessa ilusão —
por Kālī, a Negra, a Mãe Terrível. Depois de mamar no seio da Beleza, seremos
lenta ou subitamente transferidos ao seio do Rigor. Este, de fato, é um modo de
ver todo o ciclo da manifestação de Deus — seja individual, planetário ou
cósmico, ou até um único momento de esquecimento espiritual —, que começa na
presença de Deus, cai até o ponto em que cremos que o ego é Deus, e termina no
sacrifício desse ego diante do rosto de Deus. Isso também explica por que a
última das Quatro Eras na cosmologia hindu se chama Kali Yuga.
Magos são
aqueles que tratam com a Grande Mãe como indivíduos, pessoas com desejos
próprios, não como veículos do Absoluto. A receita mágica de Deepak, o Mago,
para usar Deus a fim de obter o que você quer tem cinco partes:
(1) Unir-se ao Ser essencial. (2) Lançar suas intenções e desejos no útero
desse Ser. (3) Manter seu contato com o Ser essencial; proteger a semente de
sua intenção dos olhos do mundo. (4) Renunciar ao apego ao resultado. (5)
Deixar o universo cuidar dos detalhes.
Há muita
sabedoria nessa receita. Ela é mais sensata do que o mero “poder do pensamento
positivo” e quase desenha a oração de petição. Além disso, eleva a concepção da
petição acima de simplesmente implorar ajuda a Deus, como se tentássemos
manipulá-Lo despertando pena de nós. Falta-lhe apenas uma coisa: o entendimento
de que nossos desejos mais profundos não vêm de nós; vêm de Deus. E todo desejo
que vem de Deus é, no fundo, desejo por Ele. Nas palavras de uma oração do
mestre sufi Bāyazīd Bistāmī: “Ó Deus, Tu sabes o que eu quero.”
Os desejos
pessoais não são senão versões editadas daquilo que o próprio Deus deseja para
nós. Queremos que Ele nos dê um carro, uma casa, um amante, uma carreira
bem-sucedida. Ele quer dar-nos a Si mesmo. “Lançar suas intenções e desejos no
útero do Ser” (n.º 2) e “renunciar ao apego ao resultado” (n.º 4) são, na
verdade, maneiras de dizer a Deus: “Isto é o que eu penso querer para mim, mas
agora sacrifico esse desejo em favor do que Tu queres para mim. Não se faça a
minha vontade, mas a Tua.” Diz-se que “o extremo do homem é a oportunidade de
Deus.” Onde nossa capacidade acaba, começa a de Deus. E nossos desejos mais
profundos são uma via para esse extremo. Se nunca admitirmos o que mais
profundamente queremos nesta vida, seja porque parece “pouco espiritual” ter
desejos, seja porque secretamente desesperamos de vê-los algum dia cumpridos (e
essas duas coisas são, muitas vezes, duas faces de uma mesma moeda), jamais
chegaremos àquela profundeza da alma onde os nossos desejos cessam e os de Deus
começam. Mas, se nunca sacrificarmos a Deus esses desejos mais profundos quando
a eles chegarmos, jamais veremos sua forma verdadeira, jamais os conheceremos
como reflexos mais ou menos fiéis dos desejos específicos de Deus para nós.
A
Lei do Desapego
“No desapego reside a sabedoria da incerteza… Na sabedoria da incerteza reside
a liberdade do nosso passado, do conhecido, que é a prisão do condicionamento
pretérito. E, na disposição de dar um passo para o desconhecido, o campo de
todas as possibilidades, nós nos rendemos à mente criadora que orquestra a
dança do universo.”
Mais uma vez, o Dr. Chopra nos diz que “para adquirir qualquer coisa no plano
físico universo, você tem de renunciar ao seu apego a ele” (p. 83). Mas
renunciar ao apego a algo para adquiri-lo não é renunciar ao apego. Você não
pode ficar com o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Jesus disse: “Buscai primeiro o
Reino dos Céus e a sua justiça, e todas essas coisas [isto é, as necessidades
básicas da vida] vos serão acrescentadas.” Ele não disse: “Se você quer todas
essas coisas, simplesmente busque o Reino dos Céus e você as obterá.” A
diferença entre Deepak Chopra e Jesus pode ser sutil, mas é imensa. Como disse
um amigo meu: “Deus não pode ser usado como meio para um fim, porque Ele é o
Fim.” Quando Jesus prometeu que “todas essas coisas vos serão acrescentadas”,
estava nos ensinando a não permitir que a preocupação com a manutenção da vida
nos distraísse de colocar Deus em primeiro lugar; ele não estava nos dando um
modo de operar o que o Dr. Chopra gosta de chamar de “o computador cósmico”.
Como vimos, o Dr. Chopra sustenta que “esse conhecimento lhe dará a capacidade
de criar riqueza ilimitada… e experimentar sucesso em todo empreendimento”. Lao
Tsé, porém, está muito mais próximo da verdade quando diz que “sucesso demais
não é vantagem” e que “quem sabe que o bastante é bastante, sempre terá o
bastante”.
“Tudo o que você quiser pode ser adquirido por meio
do desapego, porque o desapego se baseia na crença inquestionável em seu
verdadeiro Self” (p. 84). Seria injusto, a esta altura, perguntar por que o Dr.
Chopra aparentemente não está disposto a pôr fim à fome no mundo, à guerra e à
destruição ambiental? Ele realmente não quer essas coisas? Mas, indo ao ponto:
o erro central de Deepak Chopra parece ser a crença de que seu verdadeiro Self
é uma espécie de Deepak Chopra infinito, embora ele seja cortês o bastante para
conceder que, no meu caso, será uma espécie de Charles Upton infinito. Os
sábios védicos da Índia ensinaram a doutrina Tat tvam asi, “Tu és Isso”.
Mas Tat tvam asi não significa que “você” (o ego) “é Isso” (o Self);
significa que “Isso” (o Self) “é o verdadeiro você”, como na doutrina de Śaṅkarācārya de que nosso sentimento de
sermos nós mesmos é um sinal do Self Absoluto e Transcendente em nós. “Isso” não é uma extensão de “mim”; “eu” sou uma extensão de “Isso”.
E, certamente, há sabedoria na incerteza.
Certamente, como diz o Dr. Chopra, superar nosso apego à segurança, que é na
verdade apego ao passado conhecido, nos ajudará a experimentar “empolgação,
aventura, mistério… a diversão da vida… a magia, a celebração, a exultação e o
júbilo do próprio espírito” (p. 87) — além de todos os sustos e tombos que vêm
junto. Mas, quando ele diz “O que é o conhecido? O conhecido é o nosso passado”
(p. 86), limita “o conhecido” ao conhecimento acumulado, esquecendo que também
existe jñāna, o conhecimento eterno, a realização do Self. E esse Self
se expressa, em certo nível, por meio dos princípios metafísicos eternos
subjacentes a todas as religiões válidas, princípios que têm o poder de abrir
nossa consciência para a realidade desse Self. A sabedoria não se alcança
abrindo mão do conhecimento, mas apenas do apego ao conhecimento. O
conhecimento deve ser transcendido, mas somente na direção de sua Fonte, não na
direção do caos e da ignorância. A sabedoria da incerteza é obtida substituindo
uma certeza ilusória no plano dos fenômenos por uma verdadeira certeza da
realidade de Deus. E, dada a adoração contemporânea do caos e da ignorância,
que quase alcançou estatura de crença religiosa nestes últimos dias, esse ponto
precisa ser enfatizado repetidas vezes.
A lista do Dr. Chopra de coisas que precisamos
transcender, para nos abrirmos à sabedoria da incerteza, inclui “impotência,
desesperança, necessidades mundanas, preocupações triviais, silenciosa
desesperação e seriedade” (p. 85). Concordo plenamente que todas essas coisas
nos aprisionam — exceto a “seriedade”. A seriedade é uma das coisas mais belas
que existem, na terra ou no Paraíso.
7. A Lei do “Dharma” ou Propósito de Vida
Todo mundo tem um propósito na vida… Um dom único ou talento especial a
oferecer aos outros. E quando combinamos esse talento único com o serviço aos
outros, experimentamos o êxtase e a exultação do nosso próprio espírito, que é
a meta última de todas as metas.
O Dr. Chopra divide a Lei do Dharma em três
componentes: descobrir o verdadeiro Self; descobrir, nutrir e expressar os
talentos específicos dados por Deus; dedicar esses talentos ao serviço dos
outros. Isso é inteiramente admirável. Contudo, questiono se o paradigma “você
pode obter o que quiser” levará a esse resultado, na ausência de um senso de
hierarquia no reino do desejo, um entendimento de que alguns desejos são mais
elevados e menos egocêntricos do que outros.
O Prof. Huston Smith, em The World’s Religions,
faz a seguinte afirmação: “Se fôssemos caracterizar o hinduísmo como um todo —
sua vasta literatura, rituais complicados, costumes populares espalhados, arte
opulenta — e comprimi-lo em uma única afirmação, encontraríamos algo dizendo:
Você pode ter o que quer.” Ele prossegue apresentando a hierarquia ascendente
de desejos do hinduísmo como prazer; sucesso; serviço; e Libertação. O prazer,
como desejo indiscutivelmente natural, pode ser legitimamente buscado, segundo
a crença hindu — até que chegue o momento em que comecemos a experimentar suas
limitações, compreendendo que o prazer é fundamentalmente inseparável da dor.
Nesse ponto, provavelmente sentiremos a atração do sucesso mundano, outra meta
humana legítima. Mas aqueles que buscam sucesso acabarão por aprender que,
assim como o prazer é inseparável da dor, sucesso e ganho são inseparáveis de
fracasso e perda. Mesmo que ainda retenhamos poder e posses, podemos perder a
sensação de que eles dão sentido à vida. E, é claro, “você não leva nada
consigo”. Aqueles que sentem o vazio do sucesso mundano serão então atraídos
por uma vida de dever e serviço. O que poderiam significar poder, riqueza ou
fama para alguém como Madre Teresa, senão na medida em que isso pudesse servir
ao seu objetivo de serviço à humanidade? Mas até o dever e o serviço não são, em
última análise, satisfatórios. “Os pobres sempre os tereis convosco” conduz à
percepção de que “meu reino não é deste mundo”. E, no coração daqueles que se
sentem constritos até pelo horizonte do serviço universal, nascerá o anseio por
moksha, união com Deus, Libertação.
Há, então, uma progressão natural do
autoenvolvimento do prazer, passando pela autoafirmação do poder e pelo
autosacrifício do serviço, até a autotranscendência da Libertação. E “mais
alto” também significa “mais amplo”: cada encarnação do desejo habita um
universo mais vasto. O mundo do prazer é o corpo. O mundo do poder é a família,
a propriedade, a empresa — também o partido, a classe, a igreja, a nação. O
serviço também habita partido, classe, igreja e nação, mas os vê com olhos mais
amplos, como oportunidades de autosacrifício em vez de acumulação de poder
pessoal. Em última análise, abarca o mundo inteiro — e o outro mundo também,
pois os frutos do autosacrifício nesta vida serão desfrutados na próxima. E,
por fim, o campo da Libertação é o próprio Deus. Poucos, é claro, viverão para
experimentar plenamente os quatro mundos do desejo, mas isso não é problema em
última instância, já que, se o percurso não se completa nesta vida, pode ser
concluído nas vidas vindouras.
Deepak Chopra parece carecer desse senso de
desenvolvimento e refinamento do desejo, que conduz à sua transcendência
última. Ele mantém fé implícita na absolutidade e universalidade das aspirações
humanas comuns à saúde e à riqueza e ao bem-estar; concede até lugar ao serviço,
desde que não exija autosacrifício. Mas a cobiça humana média permanece seu
dado, seu primeiro princípio. É a única coisa que ele jamais questiona.
Contudo, como disse Peter O’Toole, no papel-título de Lawrence da Arábia,
“Você pode fazer o que quiser, mas não pode querer o que quiser.” O desejo não
é apenas algo a ser satisfeito; é também algo a ser alterado, purificado e, às
vezes, renunciado. Se há um princípio de senso comum espiritual que a Nova Era
não quer ouvir, é este. “Você pode ter saúde perfeita e riqueza ilimitada” não
soa nada mal. “Você pode ter mulheres ilimitadas e poder ilimitado”, porém, soa
bem diferente, enquanto “você pode ter um suprimento ilimitado de drogas,
álcool e pornografia” também cai na rubrica de “obter o que quiser”, se é isso
que você quer.
Nenhuma quantidade de serviço aos outros, por si
só, purificará desejos inferiores. Pode fazê-lo, se a forma de serviço que você
oferece for parte de seu dharma dado por Deus. Mas também pode ser um
modo de esconder-se do trabalho que precisa fazer em si mesmo, ou de compensar
o mau karma que você está gerando em outras partes da vida para poder continuar
a gerá-lo. É certamente verdade que todos nós somos convocados, pelo mandato
humano, a servir aos outros. A essência desse serviço, no entanto, não consiste
em resolver os problemas das pessoas, mas em amá-las. Aqueles incapazes de amar
os outros a menos que possam de algum modo ajudá-los concretamente não sabem o
que é amor. Mais próximo da solução de problemas, no caminho do amor verdadeiro
e do serviço, está a empatia. A solução de problemas baseada numa empatia
sincera, objetiva e desprendida é menos propensa, do que a abordagem
quantitativa e clínica, a criar mais problemas do que resolve.
Empatia, ou compaixão, frequentemente requer
sofrimento. A verdadeira compaixão é um “sofrer-com” desapegado aquele que está
em dor. Ela não recolhe a dor do sofredor para então devolvê-la a ele —
condição a que chamamos “piedade”. Tampouco envenena o ajudante com a dor que
ele tenta aliviar, tornando-o fonte de mais dor para os que o cercam, e um peso
para o próprio sofredor. Na compaixão espiritual, a capacidade de sentar-se com
a dor do outro e a capacidade de liberar essa dor na presença de Deus são a
mesma coisa.
O sofrimento, porém, é um escândalo para a Nova
Era, uma obsessão medieval mórbida, uma derrota vergonhosa de todo o programa
de êxtase, afirmação positiva e sucesso ilimitado, sem falar num sinal a seus
competidores social-darwinistas de que você provavelmente não está apto a
sobreviver por ser insuficientemente “evoluído”. Se nossa capacidade de sofrer
— de permanecer numa relação difícil, por exemplo, ou em outra luta da vida, em
nome de um princípio mais alto — é hoje tão menor que a de nossos avós, isso
pode ser porque eliminamos o amor como propósito aceitável de vida e o
substituímos por uma combinação de servir aos outros e obter o que queremos.
Quantos casais contemporâneos, por exemplo, pensam sua relação como uma espécie
de acordo negociado em que serviço e egoísmo se equilibram contratualmente para
que ambos consigam o que desejam? A única coisa que as pessoas realmente
querem, todavia, é amor, e o amor é uma Realidade que já as possui — verdade
que o ego mágico e autogratificante, e o mundo por ele definido, jamais
aceitarão.
Adendo
Em seu livro posterior, The Path to Love, Deepak Chopra parece um pouco
mais maduro e realista em algumas áreas — admitindo, por exemplo, que dinheiro
e poder são coisas pelas quais devemos lutar. Ele também diz duas coisas muito
importantes com as quais concordo inteiramente: primeiro, que somos ensinados,
nesta cultura, que o amor romântico nada tem a ver com espiritualidade;
segundo, que o amor romântico pode fazer parte do Caminho espiritual, porque
por meio desse amor podemos sentir a presença da Eternidade. (A Divina
Comédia e La Vita Nuova, de Dante, provam isso além de qualquer
dúvida.) A sociedade contemporânea não vê o amor romântico como prenúncio da
Eternidade, mas como rendição ao tempo e ao caos; somente o ego é para sempre.
E não apenas somos ensinados que o amor romântico não pode ser espiritual;
somos também ensinados que estamos sendo ensinados de que ele é espiritual. Os
niilistas cínicos que odeiam o amor romântico gostam de fingir que ainda
estamos oprimidos — e em rebelião — contra os costumes vitorianos, quando na
verdade estamos oprimidos pelos costumes niilistas, e a rebelião já passou da
hora.
Parte Dois:
Guerra Espiritual
As Sombras de Deus
Se deuses se unem contra o Homem
Instalando seu domínio acima
Da Forma Humana Divina,
Lançados de sua alta Estação
Nos céus eternos da
Imaginação Humana: sepultados abaixo
Em escura obliteração com dores incessantes séculos a fio
Em Inimizade e guerra — primeiro enfraquecidos, depois em severo arrependimento
—
Devem renovar seu brilho & suas funções desorganizadas
Reorganizar novamente até assumirem a imagem do humano
Cooperando na bem-aventurança do Homem obedecendo à sua Vontade
Servos do Infinito e Eterno da forma Humana
— WILLIAM BLAKE, de The Four Zoas
Nas conhecidas palavras de São Paulo, na Epístola
aos Efésios, “não é contra carne e sangue que temos de lutar, mas contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade, nas regiões celestes”. Esses
principados e potestades, a meu ver, podem ser legitimamente vistos como
elementos do sistema do Anticristo, um sistema que se “constela” apenas no fim
do éon, mas que está virtualmente presente ao longo de toda a história humana
“decadida”, como quando Paulo fala do “deus deste mundo [que] cegou o
entendimento dos incrédulos” (2Cor 4:4). O “deus deste mundo” é obviamente
Satanás, mas Satanás em seu aspecto particular de patrono da “mundanidade”, do
sistema social organizado e psicológico de massa criado pelo ego humano em
rebelião contra Deus. O Anticristo, per se, representa o estabelecimento
desse sistema em sua forma terminal para este éon por meio da irrupção de
forças sub-humanas, “infrapsíquicas”, na história humana, assim como Cristo — e
Maomé, e o Buda, e os Avatares hindus — representam a irrupção da Sabedoria e
do Amor Divinos.
Para muitos dos primeiros cristãos, o Império
Romano representava, por razões óbvias, o sistema do Anticristo. O imperador
romano foi adorado como um deus em certo tempo, ao menos nas províncias, e o
Número da Besta, 666, é frequentemente resolvido como referência numerológica
ao imperador Nero. A queixa central dos Zelotes judeus, os guerrilheiros
antirromanos do tempo de Jesus, era que exigir que os judeus pagassem tributos
a Roma era um ato de culto ao imperador e, portanto, uma blasfêmia contra Deus,
especialmente porque o denário romano em que o tributo devia ser pago portava a
imagem do imperador e, assim, era tecnicamente um ídolo aos olhos de muitos
judeus, que, como os muçulmanos em séculos posteriores, proibiam fazer qualquer
imagem de Yahweh e consideravam todo deus representável visualmente como
inerentemente falso. Que Jesus, em certo nível, fosse simpático aos Zelotes,
embora certamente não fosse um revolucionário político — mais do que fosse um
colaborador de Roma — é mostrado pelo fato de ter criticado todas as seitas
judaicas conhecidas de seu tempo — fariseus, saduceus, escribas e herodianos —
exceto os zelotes e os essênios, e de ter contado entre seus discípulos um
Simão, o Zelote, ainda que não possamos ter certeza se “Zelote” se refere à
filiação de Simão ou apenas ao seu caráter.
No Apocalipse, o símbolo central do
Anticristo é a Besta, que age como agente do Dragão (Satanás). Sobre a Besta
cavalga a Meretriz, cujo nome é Mistério, Babilônia, a Grande. As sete cabeças
da Besta, que são sete reis, são também sete montes sobre os quais ela está
assentada, como os sete montes de Roma. E assim, em um nível, a Besta é o
Império Romano, comparado pelo autor do livro ao cativeiro babilônico dos
judeus. Essa identificação da Besta com Roma levou certas seitas protestantes a
vê-la como símbolo da Igreja Católica Romana — uma atribuição que só seria
parcialmente justificada no caso de completa apostasia do catolicismo, o que,
em minha opinião, não pode ser considerado comprovado nem agora.
O Dragão do Apocalipse,
identificado com Satanás, representa uma ordem espiritual pervertida. Baseada
nessa ordem satânica está a ordem social
pervertida da Besta. E a Meretriz da Babilônia, que cavalga a Besta — isto
é, que ao mesmo tempo a guia e por ela é carregada — é a ordem psíquica
pervertida dos últimos dias. As sete cabeças da Besta, que são sete reis com os
quais Babilônia se deita e sete montes sobre os quais ela reina, simbolizam —
entre outras coisas — as sete faculdades principais da alma, que na Antiguidade
eram representadas pelos sete planetas: a Lua, fertilidade e emoção
subconsciente; Mercúrio, pensamento, astúcia e a capacidade de lidar com
informação; Vênus, amor, sexualidade e relacionalidade; o Sol, intelecto, o
centro espiritual da alma e fonte de sua vida; Marte, vontade e agressão;
Júpiter, capacidade de liderança e inteligência filosófica; Saturno, capacidade
de planejamento de longo prazo, conhecimento místico e a sabedoria da velhice.
Se a Besta e a Meretriz “ocupam” as sete províncias da alma, isso indica que o
regime do Anticristo conquistou e perverteu todos esses aspectos da vida
humana, tanto social quanto psicologicamente, perversão que é representada na
teologia católica pelos sete pecados capitais. Segundo Martin Lings, em seu
artigo “Os sete pecados capitais à luz do simbolismo do número”, superbia
(soberba) relaciona-se ao Sol, avaritia (avareza) a Saturno, luxuria
(luxúria) a Vênus, invidia (inveja) a Mercúrio, gula (gula) a
Júpiter, ira (ira) a Marte, e accidia (acídia) à Lua. O poder da
Besta sobre a alma humana é simbolizado pela “marca da Besta” — que, neste
caso, é de fato, segundo o Apocalipse, uma segunda Besta, serva da
primeira, identificada como o Falso Profeta —, colocada ou sobre a mão direita
ou sobre a testa. A marca sobre a mão direita simboliza o poder sobre a
vontade, e a sobre a testa, o poder sobre a inteligência: quando a inteligência
é obscurecida, a vontade também é subjugada, pois agora deve seguir o erro em
vez da Verdade.
O regime do Anticristo, então, opera em três
níveis, que são os três níveis ontológicos do ser humano: o nível material,
incluindo tanto o âmbito sócio-histórico quanto o corpo humano; o nível
psíquico, abrangendo a mente consciente e a subconsciente; e o nível
espiritual, que, embora não possa ser pervertido em última instância, por ser
Divino, pode ser obscurecido pelos poderes das trevas e igualmente falsificado,
de acordo com o princípio de que “Satanás é o macaco de Deus”.
A Besta, que é o Anticristo, é assim o contraface
de Cristo, uma versão perversa e distorcida da imagem de Deus em nós. Sob seu
regime, todas as potências e qualidades da forma humana, considerada como o ato
central de Autorrevelação de Deus neste mundo (“quem me vê, vê o Pai”, disse
Jesus, falando como o Arquétipo Divino da Humanidade) são imitadas por forças
demoníacas: sabedoria, amor, milagres de cura e controle sobre as forças
naturais, e até a ressurreição do corpo — tudo será encenado em contrafação,
“de modo a seduzir, se possível, até os eleitos”.
Cristãos evangélicos tendem a se concentrar em
predições relativas a como o sistema do Anticristo aparecerá na história e na
sociedade futuras. Este é um nível válido e importante para se ver a questão, embora
devamos tomar cuidado para não interpretar a Escritura estreitamente demais,
pois um acontecimento relatado num texto densamente simbólico como o Apocalipse
pode surgir na história como vários eventos distintos, ou tendências, ocorrendo
em diferentes momentos. Minha intenção, contudo, é concentrar-me mais nos
aspectos psíquicos e metafísicos das “trevas deste mundo”, incluindo aquele
nível em que a mente inconsciente interage com a sociedade, o domínio onde os
poderes das trevas aparecem como sistemas de crença inconscientes e costumes
sociais.
Uma sociedade espiritualmente degenerada governa
seus membros não apenas por táticas de estado policial, ou influenciando-os a
acreditar conscientemente em doutrinas falsas, mas também doutrinando-os a
adotar certas crenças inconscientemente — crenças que terão tanto mais poder
sobre eles justamente por essa inconscientização, já que jamais são trazidas à
luz do dia, onde poderiam ser avaliadas criticamente. Uma sociedade má
inculcará essas crenças deliberadamente, por meio de vários tipos de
propaganda, doutrinação e controle mental. Por outro lado, os governantes dessa
sociedade, em alguns aspectos, serão tão inconscientes quanto a população que
doutrinam. Embora possam mentir conscientemente ao povo sobre questões de fato,
ainda assim tomam absolutamente por garantidas as crenças fundamentais que
disseminam, sendo, portanto, inconscientes delas. As mentiras mais profundas —
os costumes sociais inconscientes e as falsas concepções de Deus sobre as quais
se baseiam — aparecem aos nossos governantes simplesmente como a natureza das
coisas. Porque nelas creem implicitamente, nunca precisam se tornar conscientes
delas como crenças. Se você quer iludir os outros, é melhor começar iludindo a
si mesmo; assim, ninguém poderá questionar sua “sinceridade”.
Essas crenças agem como demônios possuidores,
controlando a psique por dentro e punindo qualquer movimento de pensamento,
sentimento ou intuição que contrarie sua visão da realidade, muito
frequentemente por meio de sentimentos de vergonha, medo, ira incontrolável,
orgulho gélido ou profunda depressão — tudo o que constituirá tentações ao
mesmo pecado fundamental, o pecado do desespero. (Isto não quer dizer que todos
esses sentimentos sejam ataques demoníacos. Há também uma vergonha saudável que
nos protege de atos vergonhosos; um medo saudável que nos defende de perigos
físicos e espirituais; uma ira saudável diante do mal ou da injustiça; um
“orgulho” saudável que assume a forma de amor-próprio ou veneração do que é
digno; e uma tristeza saudável que aparece como compaixão, ou remorso.) Além
disso, o que é uma crença falsa inconsciente no nível psicológico é
precisamente um demônio no plano psíquico ou espiritual. Na parábola do
exorcismo, por Jesus, do endemoninhado solitário, os demônios que o possuíam
dão seu nome como “legião”, referência óbvia não apenas à ocupação militar
romana da Judeia, mas também à possessão da alma judaica, por meio da “opressão
internalizada”, pelos costumes sociais inconscientes do imperium romano.
Os demônios que “administram” os sistemas de crença
falsos em questão não devem ser comparados àqueles que nos tentam à
autocomplacência pessoal — à luxúria, por exemplo, ou à acídia, ou à ira. São
mais da ordem dos querubins caídos, grandes inteligências espirituais que se
voltaram contra Deus. São demônios do intelecto, não demônios da vontade.
Quando São Paulo fala de “principados e potestades” que são “os príncipes das
trevas deste mundo”, é a esses seres que ele se refere.
Em certo nível, esses querubins caídos constituem
um sistema articulado de erro, um contrafactual direto do pleroma divino
ou celeste que aparece no Apocalipse como o Trono do Cordeiro cercado
pelos quatro Animais Viventes, as sete Lâmpadas, os vinte e quatro Anciãos,
etc. O significado simbólico dessas figuras talvez jamais seja conhecido com
precisão (embora claramente o tenha sido em algum tempo); basta dizer, neste
contexto, que representam a primeira criação de Deus, espiritual, prévia ao
universo material — ainda que sejam “prévios” mais no sentido espiritual do que
no temporal, visto que a primeira criação é eterna em relação à nossa criação
material temporal, não simplesmente “anterior” a ela no tempo.
Depois de meditar por muitos anos sobre esses
temas, creio ter alcançado certa medida de insight sobre aquilo que C. S.
Lewis, em tom jocoso, chamou, em suas Cartas do Inferno (Screwtape
Letters), de “Baixararquia” — o sistema de dominação infernal da sociedade
humana coletiva, não apenas de indivíduos —, e mais particularmente sobre o
nível representado pelo número quatro, que pareceria ser o contraface satânico
dos Quatro Animais Viventes. Fui profundamente influenciado nessas meditações
pelos “livros proféticos” de William Blake — The Four Zoas, Milton
e Jerusalem —, eles próprios influenciados pela Cabala hebraica, onde,
numa linguagem visionária obscura e flamejante, ele analisa a Queda e a
Redenção do Homem em termos da queda das quatro faculdades centrais da alma
humana, as Quatro Zoas ou Animais Viventes, e sua redenção por Cristo, que é o
Intelecto espiritual eterno. Minha intenção aqui não é, certamente, criar uma
teologia alternativa, mas lançar uma luz poética e metafórica sobre certas
consequências psíquicas da queda do homem, que, segundo autoridades
tradicionais, bem como o sentido bastante óbvio do livro do Gênesis,
inclui tanto a perversão da vontade quanto o obscurecimento do Intelecto.
A queda do homem, vista em termos intelectuais,
começa como um mal-entendido primordial da verdadeira natureza de Deus. Tudo o
mais decorre disso, pois a incapacidade de compreender Quem Deus realmente é
distorce nossa imagem de toda outra coisa, pessoa, situação ou nível do ser.
Onde o intelecto é obscurecido pela ignorância espiritual, ele só pode
revelar-nos sombras da Verdade, objetos falsos aos quais a vontade se sente
atraída por causa de sua semelhança parcial com a Verdade que ocultam — no
curso do que se torna enfraquecida e distorcida, até que não mais consiga
querer o Bem, mesmo que, pela Graça de Deus, a treva do Intelecto fosse, por um
momento, suspensa, e esse Bem revelado.
Uma sombra requer três coisas: uma fonte de luz, um
objeto opaco e um campo onde a sombra cai. Se a luz é Deus, o objeto opaco, o
ego, e o campo onde a sombra cai, o universo, então as sombras do ego,
projetadas pela Luz de Deus, são crenças falsas, que aparecem a esse ego não
como suas próprias sombras, nem sequer como crenças, mas como a natureza
literal da realidade: as sombras de Deus.
O ego, por definição, não se conhece. Tenta nos
convencer de que podemos nos tornar únicos e originais se nos submetermos à sua
magia. Esquece que o egotismo, na verdade, nos estereotipa, torna-nos
tediosamente previsíveis, porque os egos humanos, no fundo, são muito
parecidos. Nossos medos e desejos mais profundos, de que o ego é composto, são
muito poucos e muito comuns.
Deus é a única Realidade, o único objeto — e
sujeito — de todo conhecimento. Mas, quando o medo e o desejo primordiais, que
são a forma-semente do ego, separam sujeito de objeto, de tal modo que o sujeito
cognoscente já não é aparentemente Deus — como na Realidade sempre o é, visto
que só Deus, em última análise, é Testemunha de Sua própria manifestação —,
então nascem visões limitadas e condicionadas da Realidade, mantidas nas mentes
de sujeitos limitados e condicionados. De um ponto de vista, essas visões
limitadas, e os sujeitos limitados que as percebem, são a manifestação criativa
de Deus no espaço e no tempo; de outro, são as sombras de Deus, Seus véus.
Quando essas sombras se tornam espessas e sua escuridão intensa, parece como se
Deus estivesse ausente de Sua criação. É para esses lugares e tempos da
aparente “morte de Deus” que Ele envia os profetas, salvadores e avatares que
fundam e renovam as grandes tradições de sabedoria.
Vistos de certo modo, as crenças falsas não passam
de ilusões; levá-las a sério demais é conceder-lhes mais realidade do que
merecem. Mas, na medida em que crenças falsas são de fato cridas, especialmente
no nível coletivo, produzem efeitos reais, não apenas no plano psíquico, mas
também nos planos social, fisiológico e ambiental. A ilusão — cujo nome moral é
mal — é essencialmente uma privação, uma falta. Nunca se pode fazer completo
sentido dela porque, sendo um “buraco” na realidade, e não uma realidade por
direito próprio, é fundamentalmente absurda. No entanto, uma condição como a
fome também é uma “mera” falta — falta de alimento —, mas suas consequências
estão longe de ser ilusórias. Do mesmo modo, as crenças falsas, e os poderes
demoníacos que as administram, têm efeitos reais — que ignoramos por nosso
próprio risco. Os “principados e potestades”, assim, podem ser considerados
como falsas percepções fundamentais da natureza de Deus pelos estratos mais
profundos e ocultos do ego humano — o qual, de outra perspectiva, é
inteiramente composto por essas falsas concepções. Em outras palavras, são
ídolos — falsos deuses como o Bezerro de Ouro destruído por Moisés, ou os
ídolos pagãos varridos da Caaba pelo Profeta Maomé (sobre ele a paz).
Conceba os ídolos mais fundamentais e universais,
as sombras primordiais de Deus, como quatro: a idolatria da Lei, a idolatria do
Destino, a idolatria do Caos e a idolatria do Eu. São os elementais primordiais
do ego humano, a análise da ordem obscurecida da percepção criada pela queda do
homem — os “príncipes das trevas deste mundo”. À percepção obscurecida do ego
autoidolátrico, aparecem como potências por direito próprio e também — já que
estão em perpétuo conflito — como alternativas reais. Mas, na realidade, estão
em perpétua colusão para impedir-nos de ver qualquer luz de Verdade além das
alternativas trágicas e irônicas que propõem. E, longe de serem potências
independentes e autoexistentes, não são, na raiz, senão emblemas de nosso recuo
fundamental diante do Esplendor incandescente de Deus, projetados, como as
sombras na caverna de Platão, na paisagem da psique e, daí, na natureza e na
sociedade. Todavia, de outra perspectiva, são, precisamente, demônios —
potências espirituais em rebelião contra Deus. Podemos resolver esse aparente paradoxo
se percebermos que é somente o estado de alienação do ego em relação a Deus que
o abre à influência de tais forças demoníacas, que se encontram em estado
semelhante de alienação, e que a origem dessa alienação, em ambos os casos, é a
ignorância ou ilusão. O ego iludido adora a si mesmo em vez de Deus — seja na
arrogância, seja no desespero —, e as formas que essa auto-adoração assume são
as formas das potências demoníacas. Praticamente falando, devemos admitir tanto
que essas potências estão em oposição deliberada e ativa a Deus e à vida
espiritual, quanto que elas próprias se encontram iludidas, mesmo enquanto
tentam, com astúcia infernal, iludir-nos. Em outras palavras, seu poder é
inteiramente negativo, baseado somente na ignorância — razão por que são
chamadas “potestades das trevas”. E embora será sempre necessário, dada nossa
condição decaída, lutar contra elas vontade contra vontade, é apenas a
dispersão das sombras da ignorância, à luz do Intelecto Divino, que finalmente
quebra seu poder.
Idolatria da Lei
Deus é legislador. A Torá, as Leis de Manu, a sharī‘a islâmica foram
dadas à humanidade não como imposição arbitrária de regras tirânicas, mas como
misericórdia — razão pela qual os antigos viam reis e sábios legisladores entre
os supremos benfeitores da raça. Dado que a humanidade caiu do Éden, da percepção
direta da Realidade Divina, a lei tornou-se necessidade. Uma lei sagrada é
expressão da verdadeira forma da cultura humana — e, em última instância, da
Forma Humana — à qual essa lei se aplica. Pelo ato divino de legislar, Deus
cria determinada cultura no espaço e no tempo: não por decreto arbitrário, mas
por Sua visão dessa cultura como uma faceta eterna da Humanidade Divina dentro
de Sua própria natureza. Ordenar “não matarás, não furtarás, não cometerás
adultério, não te esquecerás de reconhecer a Fonte Divina da tua vida” é como
nos ordenar que não cortemos nossos braços nem arranquemos nossos olhos. Como
salvaguarda de nossa humanidade integral, a lei sagrada é devedora dessa
humanidade. É talhada para nos servir; não somos nós que, como no mito do leito
de Procusto, somos mutilados para caber nela. Como disse Jesus, “o sábado foi
feito para o homem, e não o homem para o sábado”. A lei revelada é necessária
porque nos encontramos no tempo e, assim, precisamos de um veículo pelo qual
princípios eternos possam ser aplicados a situações mutáveis.
A própria
sacralidade da lei revelada, porém, torna-a vulnerável ao crescimento da
idolatria. Esquecemos que ela nos foi dada para nos proteger e começamos a
usá-la como ferramenta a serviço do ego coletivo, uma arma contra a Imagem de
Deus em nós. Deus é Absoluto, e os princípios eternos são absolutos
relativamente a manifestação cósmica; porém, quando nosso senso de absolutidade
é deslocado por ser identificado com situações contingentes, nasce a idolatria.
E a essência da idolatria da Lei é aplicá-la cegamente, mecanicamente, sem
levar em conta a forma real das situações que ela foi criada para regular, nem
a verdadeira natureza das pessoas que ela foi escrita para proteger. Toda lei
verdadeiramente sagrada não é apenas um conjunto de deveres e proibições, mas a
expressão, no domínio moral, de princípios eternos e metafísicos. “Guardar o
Dia do Senhor santo”, por exemplo, refere-se, num nível esotérico, ao Presente
Eterno como lugar de repouso de Deus; e “Não cobiçarás a mulher do próximo” ao
que os hindus chamam svadharma, o dever e destino espiritual únicos de
cada um — simbolizados pela esposa do homem, imagem de sua alma —, que não
podem ser trocados e que ninguém mais pode cumprir: “Melhor o próprio dharma,
mesmo mal executado, do que o dharma de outrem, por melhor que seja.”
Esses princípios eternos não existem apenas “por trás” da letra da lei, mas
igualmente “por trás” do rosto da situação humana que a lei deve confrontar e
regular. Mas quando isso é esquecido, quando a lei é aplicada
indiscriminadamente em vez de imparcialmente, ela se transforma num ídolo
sanguinário, exigindo, como o deus pagão Moloque do Antigo Testamento, o
sacrifício de nossos filhos (esotericamente, nossa criatividade) e, como o deus
guerreiro asteca Huitzilopochtli, nossos corações ainda pulsantes (a Imagem de
Deus em nós). Prescrever o mesmo remédio para todos parece imparcial; contudo
nada é mais destrutivo — exatamente como se um médico receitasse penicilina ou
insulina a todos os pacientes indiscriminadamente, para evitar o trabalho do
diagnóstico e a humilde constatação de que não conhece de antemão a natureza
precisa da doença. Como disse Blake: “Uma só lei para o Leão e o Boi é
opressão.” Quando a certeza derivada da compreensão de princípios eternos é
usada como desculpa para não nos engajarmos com pessoas reais e situações
concretas na obra do discernimento, a idolatria da Lei está em plena força.
A falsa religião da Lei é melhor representada pelo
legalismo das religiões abraâmicas quando ele se expande além de seus limites
legítimos e nega a Misericórdia. Grande parte do ministério de Jesus foi
dirigida contra essa idolatria, representada nos Evangelhos por Escribas e
Fariseus. A idolatria da Lei inclui ou a falsa doutrina de que a lei de Deus é
maior que o próprio Deus — que Ele é seu escravo e não seu Autor —, ou o erro
correlato — sustentado pelos asharitas mais extremos no Islã — de que Sua
Vontade é arbitrária e, assim, tem precedência até sobre Sua Natureza, como se
Deus pudesse querer ser o que quer que fosse, até algo distinto de Deus. Este
segundo erro, porém, talvez se descreva melhor como uma síntese da idolatria da
Lei com a idolatria do Eu (ver abaixo), pois vê Deus como uma espécie de
rebelde — um rebelde contra Si mesmo. Quando esse espírito de legalismo se
expressa socialmente, torna-se um Estado policial tirânico, muito provavelmente
(ao menos hoje) protetor de um monopólio econômico que empobrece as massas e as
exclui da participação na vida da nação e/ou do mundo, e que resguarda o
próprio poder por várias formas de propaganda, controle mental e terror de
Estado. Expressa psicologicamente, torna-se o caráter rígido e autoritário,
cheio de orgulho gélido, que reprime e domina seus próprios pensamentos, sentimentos,
sensações e percepções tão brutalmente quanto qualquer ditador domina a
população infeliz.
Idolatria do Destino
Deus é a natureza das coisas. O reconhecimento da natureza das coisas — que os
chineses chamam Tao, os hindus ṛta, e os antigos egípcios maat —, a manifestação do Ser necessário
na ordem cósmica, é a base da espiritualidade contemplativa. O modo como as
coisas naturalmente são — o reino da lei natural — manifesta-se como adequação,
beleza e inevitabilidade; por meio dele podemos contemplar os Nomes Divinos ou
as Ideias platônicas, os arquétipos eternos na mente de Deus.
A contemplação é como o espaço: vazia em si,
mostra-nos o desenho pelo qual as coisas se relacionam fora do tempo, sub
specie aeternitatis. A Lei entra no tempo, e por isso se manifesta como
fala e Escritura pronunciada; a contemplação, por ser da natureza do espaço, é
melhor simbolizada pelo maṇḍala hindu, pela caligrafia sagrada do Alcorão ou pelo ícone da Ortodoxia
oriental. Mas quando a contemplação pura se obscurece, quando a receptividade
primordial da alma se perde, então nasce o Destino. Já não podemos contemplar o
padrão eterno das coisas; em consequência, o Sempre-Assim transforma-se no
fatídico, no irremediavelmente inevitável. A superfície imóvel do lago
contemplativo é perturbada pelo tempo — não o tempo criativo da lei sagrada,
mas o tempo condicionado pelo medo do que possa acontecer no futuro, já que
deixamos de ver a forma do que sempre é. Sob o regime do Destino, a causalidade
vertical — o senso de que tudo acontece por virtude da vontade eterna de Deus
para este momento particular — é velada e substituída pela causalidade horizontal.
As causas passadas agora são vistas como a origem dos eventos futuros; mas,
como as raízes do passado estão ocultas, a forma do futuro também o está. Os
eventos tornam-se imprevisíveis porque suas causas estão veladas em mistério;
pelo mesmo motivo, parecem inevitáveis.
Heráclito disse: “o caráter é o destino”, um
oráculo que pode ser tomado de dois modos. Nas palavras do Profeta Maomé (sobre
ele a paz): “quem conhece a si mesmo conhece seu Senhor.” Isto significa que,
se alguém pode ver a si mesmo com a objetividade perfeita do Self Divino — a
Testemunha — dentro da alma, verá aquele pequeno “eu” lá fora como projeção, no
espaço e no tempo, de um arquétipo específico na mente de Deus — e então o
destino não guarda surpresas. Todos os acontecimentos se mostram perfeitamente
adequados à forma do si a que acontecem; a vontade de Deus para um indivíduo,
num instante particular, é indistinguível da vontade desse indivíduo por si
mesmo, pois ambas são uma. Por outro lado, se o caráter é inconsciente — e normalmente
é, não importa quanta introspecção psicológica façamos ou quanta devolutiva
recebamos, já que só quem somos realmente pode ser conhecido à luz objetiva de
Deus —, então ele se projeta no mundo dos eventos como um destino misterioso do
qual não escapamos, façamos o que fizermos. As mesmas coisas continuam a
acontecer, repetidas vezes, e todas as tentativas de escaparmos apenas parecem
acelerar-lhes o passo. As tragédias gregas, com seu senso da “falha fatal”,
ilustram da melhor forma esse lado sombrio do dito de Heráclito.
Esses eventos obsessivamente repetitivos persistem
por um tipo de esquecimento fundamental que os gregos chamavam amnesia e
os muçulmanos, ghaflah — o esquecimento da Testemunha Divina em nós, que
leva a uma incapacidade geral de atenção e ao desconhecimento de nosso caráter
essencial e de nossas reais necessidades. Continuamos pedindo coisas,
esquecemos que pedimos e então reagimos com choque quando desejos inconscientes
se cumprem. Se estivéssemos conscientes dos desejos ocultos em nós,
distinguiríamos entre caráter essencial e imposto, entre desejos acidentais,
implantados pelas circunstâncias ou pelos projetos de outros, e desejos
essenciais, inseparáveis de quem somos na mente de Deus. O primeiro tipo jamais
pode ser realmente satisfeito; o segundo já está satisfeito, num mundo mais
alto — um mundo que, paradoxalmente, só nos é desvelado por nossa luta para
encontrar e cumprir nossos verdadeiros desejos neste mundo imperfeito, onde tal
cumprimento nunca pode ser completo ou, mesmo quando parece sê-lo por um
instante, jamais perdura.
Até despertarmos da amnésia, estamos sob o regime
do Destino. Toda vez que algo “fatal” acontece, horrorizamo-nos ao perceber que
ainda não escapamos da maldição. E, à medida que cada volta do destino, surgida
do futuro misterioso, passa ao passado oculto, ela acrescenta-se ao estoque de
carma aparente pelo qual o “passado” misterioso parece ser a origem do “futuro”
oculto. Assim como o corpo pode viciar-se em certas drogas, nosso destino pode
viciar-se em certos eventos. Quando um arquétipo eterno — um caráter na mente
de Deus — é velado pelo obscurecimento da mente individual, ou da sociedade
como um todo, ele se torna o centro de um ciclo kármico, um “círculo vicioso”:
aquilo que Blake chamou de “círculo do destino”. Quando os estóicos tentaram
absolutizar ciclos naturais na doutrina do “retorno eterno” — segundo a qual
todos os eventos retornam sem fim do mesmo modo às mesmas pessoas por ciclos
vastos e intermináveis —, ergueram o “círculo do destino” à condição de ídolo,
como as Moiras gregas ou a deusa romana Fortuna, cuja adoração girava,
literalmente, a conhecida “roda da fortuna”. Faziam-no reagindo a uma alienação
do senso de eternidade prevalente na Antiguidade clássica. Santo Agostinho, na Cidade
de Deus, critica essa doutrina, dando a entender que a crença no círculo do
destino funda-se, na verdade, num argumento circular, pois (eu acrescentaria)
se as premissas sobre as quais um argumento se baseia não são vistas como
axiomáticas — e assim eternas em relação ao movimento do argumento —, esse
movimento se torna circular. Os que se lembram de Deus, na eternidade, conhecem
todos os eventos como eternamente presentes. Os que se esquecem de Deus
tornam-se como “pontos brancos em movimento” (Blake) entre um passado
esquecido, dominado pela nostalgia, e um futuro misterioso, governado pelo
medo. Vivem num mundo onde o esquecimento do passado é obrigatório, e onde
todos os que se esquecem do passado estão condenados a repeti-lo.
A falsa religião do Destino manifesta-se ou como
culto dos ciclos da natureza — como nos aspectos negativos e mecanicistas do
astro-culto mesopotâmico de que provém a astrologia (que nem sempre é
fatalista, pois por vezes se aproxima de uma visão dos arquétipos eternos) — ou
como a negação calvinista do livre-arbítrio baseada numa doutrina errônea da
predestinação, que vê a vontade eterna de Deus para o indivíduo como algo
distinto da soma total de suas próprias decisões; ao passo que, na realidade, a
“presciência” de Deus quanto às nossas decisões não as causa, mas é
simplesmente Sua visão delas sub specie aeternitatis. Expressa
psicologicamente e socialmente, essa adoração do Destino torna-se um “zodíaco”
largamente inconsciente de tipologia social — de caráter imposto, não essencial
—, onde os costumes sociais inconscientes determinam o destino do indivíduo por
meio das expectativas da sociedade para com ele, expectativas que
progressivamente se tornam as dele para consigo mesmo. Se o pecado da idolatria
da Lei é o orgulho, o da idolatria do Destino é o medo. [NOTA: a melhor análise
concentrada do Ídolo Destino que já encontrei é o conto “A Loteria na
Babilônia”, de Jorge Luis Borges.]
Idolatria do Caos
Deus é vida infinita. A vasta profusão das “dez mil coisas” transborda eternamente
na manifestação a partir da Infinidade Divina. Deus envia leis sagradas, mas é
maior do que elas. Manifesta-se como a ordem cósmica, mas não por ela se
limita. Em Deus não há barreiras à irradiação infinita do Seu Ser — e essa é
Sua perfeita liberdade, liberdade que não começa a esgotar-se por universo após
universo, pululantes de vida.
Mas nós não podemos agir como Deus age. Somos
contingentes; Ele é Absoluto. Ele está além da forma; nós estamos adstritos às
formas em que Ele nos criou. Ele nos transcende absolutamente. Quando isso é
esquecido — quando Sua transcendência é velada e vemos apenas Sua imanência no
mundo acessível aos sentidos, e então nos identificamos com ela —, começamos a
crer que o caminho da liberdade passa pela informeidade e pela dissipação. Como
perdemos a visão de como a forma emana do que está acima da forma, buscamos a
Infinidade divina no que está abaixo da forma: numa intoxicação dionisíaca que
termina como terminou com o rei Penteu, nas Bacantes de Eurípides.
Penteu, rei de Tebas, despreza o novo culto de Dioniso (Baco, deus do vinho,
talvez também do cogumelo amanita muscaria) que invadiu a Grécia e foi
abraçado por mulheres — as bacantes — que dançam em êxtase e, no frenesi,
dilaceram animais vivos. Dioniso assume a aparência de um tipo sombrio do
submundo, é preso e levado ao palácio. Ali, oferece dizer a Penteu onde ele
pode ver as bacantes em seu santuário secreto na floresta. Penteu,
voyeuristicamente fascinado, aceita, vai espiar e é despedaçado por sua própria
mãe, Ágave, que no delírio o toma por um animal. Eurípides diz que buscar a
vida divina no que está abaixo da forma — idealizando e adorando a natureza
animal — é ser feito em pedaços por nossa mãe, que é a natureza material; mater
= matéria. Esta é a idolatria do Caos.
A falsa religião do Caos é a dionisíaca: inclui
vários tipos de anarquismo político, social e moral; aquelas formas de falsa
mística que identificam Deus com a informeidade em vez da Essência
supra-formal, e “consciência superior”, de modo simplista, com intoxicação; e
aquelas psicoterapias que fazem da liberação da constrição, da inibição e da
“armadura de caráter” o fator central. Quem, como Penteu, é “civilizado” de
modo tacanho — e não realmente culto, de modo amplo — buscará muitas vezes esse
tipo de liberação num retorno à simplicidade da Natureza, concebida como
paraíso materno de segurança, auto-indulgência, facilidade e irresponsabilidade
— esquecendo que, por exemplo, nenhum bosquímano africano ou aborígene
australiano sobreviveria um dia sequer sem grau de resistência, coragem e
vigilância maior do que a maioria dos habitantes da cidade jamais possuirá. Se
a emoção dominante do Destino é o medo, a do Caos é a vergonha.
Idolatria do Eu
Deus é o Sujeito Absoluto, o ātman, o Self transcendente e imanente, a imago
Dei em cada um. Em virtude desse ātman, somos, no nível mais
profundo do nosso ser, ao mesmo tempo únicos e universais. O Self em nós é Ser
puro, impessoal e universal, sem atributos; segundo alguns metafísicos — entre
eles Frithjof Schuon —, prefere-se descrevê-lo como “além-do-Ser”, dado que
jamais pode ser objeto de consciência sujeito a definição, pois “o olho não
pode ver a si mesmo”. Mas, porque Deus é único tanto quanto universal, esse
Self é também o princípio de nossa integridade humana singular: a maneira pela
qual não somos mera “humanidade” em abstrato, mas seres humanos concretos,
comandados por Deus a ser precisamente nós mesmos — nem maiores, nem menores,
nem outros. E, no entanto, essa unicidade é também universal, pois é partilhada
por todos os seres humanos — na verdade, por todas as coisas. O Self como
princípio de unicidade não é outro que o Self como princípio do Ser puro, como
quando Deus, falando a Moisés no Êxodo, nomeia-Se: “Eu Sou o que Sou”:
Minha Essência única não é outra senão Meu Ser puro; é Minha Essência única ser
Ser puro.
E o que Deus pode dizer de Si, podemos dizê-lo
também — certamente não de nossas personalidades humanas limitadas, mas de
Deus, o ātman, em nós. Nas palavras de São Paulo: “Já não sou eu quem
vive; é Cristo que vive em mim.”
Mas quando a
unicidade se separa do ser, perde sua universalidade. É exatamente o que ocorre
quando atribuimos unicidade só a nós e a negamos aos outros. Esta é a idolatria
do Eu. Quando adoramos nossa própria individualidade separada como se fosse
Deus, começamos a crer que isolamento voluntarioso é o caminho da integridade e
que, nas palavras de Sartre, “o inferno são os outros”. Consequentemente, só
conseguimos nos relacionar confortavelmente com os demais se os vemos como
subordinados — isto é, como partes menores de nós mesmos. Eis a ironia da
auto-adoração: buscando unidade e inteireza por meio do isolamento e da
dominância, acabamos Gradualmente tornamo-nos cheios dos fantasmas de todas as
relações que negamos e traímos. Nossa busca pela individualidade (“indivisão”)
a todo custo resulta apenas em fragmentação. Nós mesmos nos tornamos “a
multidão solitária”.
A falsa religião da Individualidade é o Prometeísmo, que inclui todas as formas
de hybris: a crença solipsista e Nova Era de que “eu crio minha própria
realidade” (quando a verdade é algo mais como “eu crio minha própria ilusão”);
a ideia de que o desenvolvimento espiritual é uma espécie de façanha ou realização
heroica a ser glorificada; a noção de que o indivíduo só pode obter integridade
e significado rompendo a lei e rebelando-se contra os costumes; e a vontade
dominante da sociedade ocidental — e agora global — de conquistar a natureza,
negar a Deus e remodelar a vida humana de acordo com o mais demente “idealismo”
imaginável, mesmo ao risco de destruir tanto a humanidade quanto a Terra.
Se a Lei é governada pelo orgulho, o Destino pelo medo e o Caos pela vergonha,
a Individualidade é governada pela ira.
Esses quatro ídolos — Lei, Destino, Caos e
Individualidade — são uma análise da ordem decaída da percepção conhecida, na
teologia cristã, como “este mundo”. Eles não operam de forma isolada. A Lei
tirânica e mecanicista assume o aspecto do misterioso Destino. Dizem-nos que a
ignorância da lei não é desculpa; contudo, quem pode jamais conhecer essa lei
em sua totalidade? E o Destino, na realidade, não é a operação do ser-em-si,
mas de uma ordem estabelecida — embora oculta — das coisas, um sistema artificial,
uma Lei idólatra.
A Lei tirânica imposta ao indivíduo produz o rebelde voluntarioso, e assim a
Lei reforça a Individualidade. Imposta à sociedade ou à natureza, ela produz o
Caos. E tanto a Rebelião quanto o Caos tornam necessária uma Lei cada vez mais
tirânica, cega e mecanicista. Em nome da guerra às drogas, destruímos os
direitos civis. Em nome da administração das áreas selvagens, queimamos o
Parque Nacional de Yellowstone. Mas quanto mais cegamente tentamos impor ordem
sobre a natureza e a sociedade, mais caos e rebelião criamos.
O Destino imposto ao indivíduo promove a
Individualidade, já que ser voluntarioso e sofrer as consequências parece
inevitável, enquanto o único modo de possuir integridade individual parece ser
submeter-se ao próprio Destino: “um homem tem de fazer o que um homem tem de
fazer”, mesmo — ou especialmente — se os resultados forem fatais. E o Destino
imposto à sociedade produz o Caos.
Se toda uma geração de adolescentes acredita estar fadada ao fracasso, o uso de
drogas e a dissipação parecem a única saída, e a sociedade se dissolve. Assim,
tanto o indivíduo voluntarioso fadado a morrer — como o herói irlandês
Cuchulainn, que foi escolhido, empoderado, exaltado e condenado pela deusa
Morrigan — quanto o indivíduo caótico destinado à degradação e à loucura são
servos do Destino.
O indivíduo caótico é suscetível à vergonha diante daqueles indivíduos mais
afortunados sobre os quais o Destino parece sorrir; e esses filhos e filhas
afortunados devem manter sua alta posição na corte do Destino lançando vergonha
sobre aqueles vulneráveis a ela, numa tentativa de evitar um destino adverso
forçando outros a vivê-lo em seu lugar.
Assim, enquanto a Lei se manifesta como regras explícitas, o Destino
frequentemente usa a máscara da moralidade social inconsciente. Se somos o
“tipo certo de pessoa”, a sociedade nos acolhe; se somos o “tipo errado”, mesmo
que nossas ações sejam impecáveis, perdemos.
E se tentamos libertar-nos dessa tipologia moral imposta, as únicas
alternativas parecem ser rebelar-se violentamente ou abraçar a própria vergonha
que a sociedade nos impõe — e superar seu estigma deleitando-nos nela. Mas
deleitar-se na vergonha é apenas descer ao Caos, enquanto rebelar-se contra o
Destino é sacrificar-se a ele.
Cuchulainn lutou contra a Deusa à qual devia seu poder, e foi destruído:
rebelou-se contra seu destino, e, portanto, o encontrou.
Assim, podemos ver que tanto a submissão quanto a
rebelião contra esses ídolos apenas lhes concedem uma realidade que de fato não
possuem, aumentando, assim, seu poder. Submeter-se à falsa Lei é, em última
instância, ser forçado a cometer os próprios crimes que essa Lei pune, assim
como adorar uma falsa retidão moral é colocar-se sob uma falsa vergonha.
Nas palavras de Blake, “Prisões são construídas com pedras de [falsa] Lei /
Prostíbulos com tijolos de [falsa] Religião.”
E rebelar-se contra a Lei é finalmente tornar-se ela mesma, como no conhecido
destino do revolucionário bem-sucedido que substitui uma tirania por outra.
Além disso, tornar-se Lei é, em última análise, cair sob o poder do Destino,
como quando o sistema estabelecido cresce além do controle daqueles que o
administram e desce ao Caos.
Submeter-se ao Caos, numa busca ilusória de paz — como no caso do alcoolismo ou
da dependência de drogas — é cair tanto sob a vergonha do Destino quanto sob a
punição da Lei, e expor-se aos impulsos voluntariosos dos fragmentos separados
ou “complexos” da própria alma, que fazem parte da Individualidade, tornando
essa alma vulnerável também às vontades violentas e voluntariosas das
Individualidades alheias.
Uma pessoa violentamente fora de controle atrai a violência de outras pessoas;
uma mulher drogada corre o risco de ser violada.
E quando a alma toma essa vontade como sua, na esperança de se defender — quando
se afirma agressivamente na tentativa de superar o Caos, ou de se defender da
agressão dos outros — a Lei está sempre ali para sentenciar.
Do mesmo modo, aqueles que se rebelam contra a vergonha do Caos tentando ser
“as pessoas certas” aos olhos de uma sociedade degenerada, que buscam a bênção
moral do sistema de “este mundo” na tentativa de colocar o Destino a seu favor,
acabarão encontrando-se vergonhosamente comprometidos.
Passando do Destino à Lei, tornam-se agentes do próprio sistema de opressão que
antes buscavam combater — daquele estabelecimento tirânico cuja Lei cega e
mecanicista criou o Caos em primeiro lugar.
Deveria ser óbvio, então, que “este mundo” não
oferece saída, porque nenhum ídolo terreno isolado pode nos dar abrigo contra,
ou poder sobre, os outros. Eles estão em conluio, e sua função é impedir-nos de
vislumbrar qualquer Realidade fora dos termos desesperançosos que impõem.
Mas por que os ídolos primordiais são quatro em
número? Seria isso apenas um modo conveniente de ver as coisas, ou há uma
estrutura mais profunda subjacente a essa quaternidade? De certo modo, ambas as
afirmações são verdadeiras. Os mistérios da Natureza Divina, de Sua relação com
Sua manifestação criativa e de Sua distorção pelo ego humano, nunca podem ser
perfeitamente definidos ou sistematizados — matematicamente ou de qualquer
outro modo.
E, no entanto, no processo de contemplar esses mistérios, certas formas surgem,
mais sugestivas das “coisas profundas de Deus” do que qualquer coisa que nossa
consciência material ou psíquica possa perceber ou criar. De tradição em
tradição, de momento em momento de insight espiritual, as formas que aparecem
são sempre semelhantes, mas nunca idênticas, demonstrando assim tanto que Deus
é perfeitamente concreto, infinitamente real e absolutamente único, quanto que
Sua Essência última está completamente além da concepção.
Veja assim: o modo sujeito/objeto de percepção em
que nos encontramos imersos, onde “eu” sou um sujeito humano e “aquilo lá fora”
é um mundo, é uma projeção, em nível inferior, da auto-compreensão especular de
Deus nas profundezas de Sua própria natureza. Oculto dentro da minha
subjetividade humana perceptiva está o Sujeito Divino — Deus como a Testemunha
eterna de todos os mundos. Oculto por trás do “mundo lá fora” está o Objeto
Divino — o rosto de Deus eternamente presente por trás das formas e eventos de
nossas vidas.
Assim, a díade “Deus e Seu Autoconhecimento” é o arquétipo da díade “eu e meu
mundo” — fazendo quatro no total.
Quando o Sujeito Divino é velado, seu Objeto Divino
é transformado de um reflexo perfeito daquela Testemunha em um mundo misterioso
com “vontade própria” — o mundo do Destino. Simultaneamente, o Sujeito torna-se
condicionado por sua tentativa de compreender esse mundo misterioso — em outras
palavras, de impor-lhe a Lei a partir de fora, em vez de ver o padrão
harmonioso dentro dele — e acaba por ser obscurecido. Tudo o que resta é o
ídolo da Individualidade, uma subjetividade humana egóica e autoidentificada,
tentando impor sua própria vontade sobre um “mundo lá fora” que, sendo
condicionado e obscurecido por essa mesma subjetividade decaída, deve aparecer
como um Caos sem sentido — como na visão de Heisenberg da indeterminação
aleatória como princípio fundamental do mundo material.
Em outras palavras, à medida que a consciência cai do nível da Auto-compreensão
Divina ao nível do egotismo humano, ídolos são gerados, preenchendo o vazio
deixado pela (aparente) retirada da Presença de Deus.
Sob uma perspectiva, esses quatro ídolos são
contrafações satânicas — as distorções egóicas — daquilo que, na Cabala
hebraica, são chamados de “os quatro mundos”, que estão relacionados aos Quatro
Seres Viventes (hayoth, em hebraico) que aparecem tanto na visão de
Ezequiel quanto no Apocalipse de São João.
Do ponto de vista dos quatro mundos, a descida do Sujeito Divino ao ego humano
não é uma “queda”, mas uma manifestação progressiva de Deus que jamais se
aparta fundamentalmente da Natureza Divina.
Leo Schaya, em O Significado Universal da Cabala, descreve esses mundos
nos seguintes termos, como a “anatomia esotérica” do Homem considerado como
“imagem e semelhança de Deus”:
“A luz reveladora, criadora e redentora do Ser
divino é, por assim dizer, ‘refratada’ através do prisma causal de seus
aspectos, as Sefirot, na multiplicidade indefinida e variedade da manifestação
universal. A imensa hierarquia de graus onto-cosmológicos, com tudo o que
contêm, é estabelecida por essa ‘refração’ da luz divina; esses graus são
recapitulados nos quatro ‘mundos’ (olamim), a saber: olam ha’atsiluth,
o transcendente ‘mundo da emanação’, que é o das Sefirot; olam haberiyah,
o ‘mundo da criação’ ideal ou espiritual, preenchido unicamente pela imanência
divina (Shekinah); olam ha’yetsirah, o sutil ‘mundo da formação’,
habitado por anjos, gênios e almas; e olam ha’asiyah, o sensório e
corpóreo ‘mundo feito de fato’.” (p. 26)
“O homem é a imagem mais perfeita da realidade
universal em toda a criação; ele é a recapitulação ‘encarnada’ de todos os
graus cósmicos e de seus arquétipos divinos... representa o símbolo mais
evidente das dez Sefirot, e sua personalidade integral abrange todos os mundos:
seu ser puro e incriado identifica-se com o sefirotico ‘mundo da emanação’...
seu espírito, com o prototípico ‘mundo da criação’... sua alma, com o sutil
‘mundo da formação’... seu corpo, com o sensório ‘mundo de fato’.” (p. 70)
O “mundo da emanação” está relacionado ao Sujeito
Divino; é o arquétipo da lei sagrada — as dez Sefirot sendo os protótipos dos
Dez Mandamentos.
O “mundo da criação” relaciona-se ao Objeto Divino; é o arquétipo da sabedoria
e da contemplação.
O “mundo da formação” relaciona-se à forma sutil do cosmos como objeto do
sujeito humano individual; é o arquétipo da energia vital universal, do mundo
percebido considerado como shakti — ou energia radiante e
auto-manifestante — desse sujeito, em virtude do Sujeito Divino oculto dentro
dele.
O “mundo de fato” relaciona-se à unicidade da pessoa humana; é o arquétipo do
próprio sujeito humano, representado pelo corpo, o fato mais concreto de nossa
experiência.
A idolatria da Lei é, assim, a contrafação do mundo da emanação; a idolatria do
Destino, a do mundo da criação; a idolatria do Caos, a do mundo da formação; e
a idolatria da Individualidade, a do mundo de fato.
Mas qual é a saída desse sistema do mundo decaído?
A resposta verdadeira e suficiente a essa questão é: sondar a profundidade e
cumprir as condições de qualquer uma das grandes religiões ou tradições de
sabedoria, que foram enviadas por Deus para nos salvar de nossa condição humana
decaída, esquecida ou ignorante.
E a resposta especificamente intelectual — ou jñânica — dentro do
contexto de uma dessas tradições, sinceramente abraçada e plenamente vivida, é:
não lutar com as formas da ilusão idólatra, não rebelar-se contra, nem buscar
poder nas sombras de Deus, mas simplesmente vê-las — e, assim, vê-las através.
Por trás do Destino está a pura contemplação, cujos
símbolos incluem a Prajnaparamita budista, a Mulher-Búfalo-Branco dos
Lakota e a Santa Sabedoria judaico-cristã.
Por trás da Lei está a função profética que Blake chamou de Imaginação — pela
qual os princípios eternos renovam para sempre sua aliança com os momentos
únicos de nossas vidas.
Por trás do Caos está a shakti, o poder universal do Absoluto — o
“Espírito de Deus” que “se movia sobre a face das águas” — e que, em seu modo
redentor, é a atração cósmica de todas as coisas de volta à sua única Fonte
transcendente.
E por trás da Individualidade está o Vidente invisível — o Único Eu de Todos,
dentro do coração humano.
À medida que despertamos para esses quatro aspectos do Divino, essas “quatro
criaturas viventes” — pela graça de Deus e por nossa plena e voluntária
cooperação com ela — o ego abstrato e separado se dissolve na luz da Única
Realidade.
Mas, retornando ao nosso tema principal: como esse
sistema de idolatria, e o mundo decaído fundado sobre ele, relaciona-se ao
Anticristo?
Se tomarmos o Anticristo como um indivíduo, podemos ver os quatro ídolos
primordiais como uma espécie de análise de seu caráter. Em outras palavras,
podemos esperar que o Anticristo — e o sistema que ele administra — seja
simultaneamente o mais autoritário, o mais rebelde, o mais caótico e o mais
fatalista imaginável.
(Até o grau em que o Anticristo é o “símio de Cristo”, contudo, seu caráter como
quintessência da idolatria será oculto do povo. Seu fatalismo parecerá a eles
certeza e segurança; seu caos parecerá liberdade e espontaneidade; sua rebeldia
parecerá coragem e integridade; e seu autoritarismo, a aura do direito divino.)
Todos esses quatro elementos, em algum grau,
aparecem no caráter de Adolf Hitler, que pode certamente ser descrito como um
precursor do Anticristo.
Seu autoritarismo é óbvio, pois ele criou um estado policial de ferro sobre a
maior parte da Europa.
Mas ele também foi um rebelde — um revolucionário “socialista” — que derrubou o
poder hereditário da nobreza alemã e dos junkers proprietários de
terras.
Seu apelo à geração de seu tempo foi um chamado à “rebelião” contra a
autoridade real ou imaginada: o Tratado de Versalhes, a República de Weimar, os
judeus.
E, no entanto, sua linguagem e, em última instância, suas ações eram
fatalistas.
Em Mein Kampf, ele apelou a “deuses” como “natureza” e “destino” para
sustentar a afirmação de que seu Reich estava destinado a durar mil anos —
fazendo dele, incidentalmente, uma contrafação satânica do milênio cristão.
Ele depositava grande confiança em astrólogos e outros prognosticadores.
E, tardiamente na guerra, com a Alemanha em plena
retirada, quando poderia ter reduzido suas perdas — militar e politicamente —
de muitas maneiras, escolheu ver a derrota da Alemanha em termos fatalistas.
Em vez de reconhecê-la como um revés sério, mas não terminal, para a nação,
viu-a como um Götterdämmerung — uma catástrofe apocalíptica inevitável.
Longe de tentar evitar esse destino, demonstrou a profundidade de seu culto ao
destino ao, em última análise, aliar-se a ele — fazendo tudo o que pôde para
torná-lo o mais destrutivo possível.
Ordenou que os depósitos vitais de alimentos e as fábricas restantes da
Alemanha fossem destruídos, e até inundou o metrô de Berlim, matando milhares
de cidadãos alemães que haviam se refugiado ali contra o Exército Vermelho
invasor.
E, além do caos criado por seu autoritarismo,
rebeldia e fatalismo, ele também incorporou a autocomplacência caótica ao seu
programa partidário — como no movimento “Força pela Alegria” dentro da
Juventude Hitlerista, onde a promiscuidade sexual tornava-se quase obrigatória.
Além disso, sua tomada de decisões errática, especialmente nos últimos tempos
da guerra — para citar apenas um entre muitos exemplos — demonstrou o caos
fundamental de seu caráter.
Mas nem sempre
precisamos recorrer a Hitler para compreender o sistema do Anticristo, embora
ele seja sempre um exemplo de caso altamente valioso.
E quanto à sociedade global atual? Regimes ditatoriais, terrorismo religioso e
étnico, uma ordem econômica multinacional que enriquece poucos e empobrece as
massas, cartéis criminosos multinacionais que lucram enormemente com esse
estado de coisas, uma degeneração moral generalizada que chama à existência
códigos e atitudes morais repressivos, o ambiente natural descendo ao caos,
ameaçando nosso suprimento de alimento e oxigênio, gerando novas doenças;
várias propostas para transformar o corpo humano — por meio da engenharia
genética, da biônica, da psicofarmacologia e do controle eletrônico da mente —
em um robô biotecnológico a fim de controlar esse caos social e biológico,
senão a fantasia final de “carregar” a consciência humana em computadores
sofisticados e assim dispensar inteiramente o corpo — este é o estado do mundo
em que vivemos.
E assim,
aqueles que desejam identificar o exato ano e mês em que o Anticristo aparecerá
talvez estejam perdendo o ponto: em certo sentido, ele já está aqui.
E mesmo que esteja destinado a manifestar-se em algum momento como um único
indivíduo — como preveem os cristãos evangélicos, os muçulmanos tradicionais e
os escritores tradicionalistas (notavelmente René Guénon e Martin Lings) —
ainda assim não podemos isolá-lo convenientemente dentro dessa forma individual
e desse período histórico.
Ele está em toda parte e em todos os tempos na ordem decaída da história
humana, porque, em essência, ele nada mais é do que o ego humano em rebelião
contra Deus.
Ele tem estado virtualmente presente na alma humana — e em sua expressão social
— desde que Adão e Eva comeram a maçã.
Sophión —
prossigo com o segundo bloco (a partir de “In the ’60s it was generally true…”)?
Você
disse:
sim
O
ChatGPT disse:
Nos anos 1960,
era geralmente verdade que aqueles com formação liberal ou de esquerda tendiam
a ver a tirania política ou econômica (Lei) e a moralidade repressiva e
compulsiva (Destino) como os males supremos; enquanto pessoas de formação
conservadora ou de direita eram mais propensas a considerar como absolutos os
males da revolução violenta e/ou da atividade criminosa (Individualidade) e da
degeneração moral (Caos).
Essa avaliação ainda é, em grande medida, precisa. Contudo, tem sido igualmente
verdadeiro, pelo menos desde o final dos anos 1970 — se não desde os 1930 — que
os liberais “politicamente corretos” se identificam com certas políticas
governamentais estabelecidas que os conservadores veem como tirânicas; e agora
que a tocha radical antigovernamental passou dos revolucionários de esquerda
para as milícias secessionistas de direita, muitos conservadores, tanto
radicais quanto moderados, percebem o governo como os escolhendo para
perseguição.
Mas, em
qualquer caso, não posso enfatizar o suficiente que essas visões parciais — por
mais verdadeiras que possam ser em seu próprio domínio — são totalmente
insuficientes para definir a manifestação social do mal espiritual que aqui
chamamos de Anticristo.
O mal infernal pode utilizar qualquer conjunto de costumes sociais e qualquer
sistema político ou econômico para construir seu poder, já que uma de suas
estratégias é criar conflitos insolúveis baseados em alternativas falsamente
definidas.
Em outras palavras, ele traça as linhas do conflito de modo errado; de forma
que, por exemplo, “liberais” que acreditam defender a santidade da vida como um
absoluto — opondo-se a toda guerra e defendendo até o pior assassino em massa
contra a pena de morte — acabarão apoiando o suicídio assistido por médicos,
surdos a todos os relatos de seus abusos (bem como ao entendimento de que ele
é, em si, um abuso); enquanto “conservadores” que se opõem veementemente ao uso
de drogas ilegais tomam alguém como Ollie North por herói, ignorando todas as
evidências de que ele possa ter participado do contrabando de cocaína para
ajudar a financiar a guerra secreta dos Contras.
E uma vez que
o conflito entre o bem e o mal é falsamente definido, toda a coragem e
idealismo do mundo só servem para fortalecer o mal e erodir o bem.
As forças infernais colocam direita contra esquerda, judeus contra muçulmanos,
mulheres contra homens — de tal forma que suas posições respectivas tornam-se
tão estreitamente concebidas que o dano é feito e a escuridão se espalha, não
importa de que lado se tome — uma situação que levou W. B. Yeats, em seu poema The Second Coming, que profetiza o
advento do Anticristo, a descrever os últimos dias como um tempo em que “os
melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de
intensidade apaixonada.”
Isto não quer
dizer, é claro, que alguns sistemas sociais não sejam melhores do que outros,
nem que não sejamos às vezes chamados a tomar partido em conflitos sociais.
Nem todas as oposições percebidas são ilusões demoníacas; crer nisso seria, por
si só, uma ilusão.
Mas, a menos que tenhamos uma visão suficientemente ampla da natureza do mal
coletivo — que nada mais é do que a expressão exterior do poder do ego humano,
e das forças infernais que esse ego invoca para perverter e apropriar-se de
tudo o que possa imaginar —, jamais compreenderemos o sistema do Anticristo, e
poderemos, consequentemente, encontrar-nos involuntariamente prestando-lhe
tributo, mesmo (ou especialmente!) no próprio ato de combatê-lo.
É verdade que Jesus disse: “Não vim trazer a paz, mas a espada” — mas também
disse: “Não resistais ao mal” e “Senta-te à minha direita, até que eu ponha
teus inimigos por escabelo de teus pés.”
A Escola Tradicionalista não é senão conservadora,
pois sua teoria da história baseia-se na degeneração “entrópica” do homem e da
sociedade a partir de uma Idade de Ouro original.
Mas eu próprio alcancei seu limiar movendo-me através — e, espero, além — da
contracultura liberal e do mundo da política esquerdista, e certamente não
repudiei todos os valores que aprendi naquele campo ambíguo.
Ainda assim, como Christopher Lasch em The True and Only Heaven,
precisei (ao menos) separar os valores da “democracia” daqueles do “progresso”.
Segundo o relato exposto na República de
Platão sobre a degeneração da sociedade humana ao longo do éon, primeiro vem a
“aristocracia”, que Martin Lings identifica com a teocracia; é o governo dos
“melhores”, os intelectuais espirituais — em termos hindus, a casta dos
brâmanes.
Em seguida surge a “timocracia”, o governo dos que têm caráter nobre, o rei e
seus cortesãos — a casta dos kshatriyas.
Depois vem a “oligarquia”, o governo por uma classe indefinida de indivíduos
poderosos — talvez os ricos, já que outro nome dado por Platão à oligarquia é
“plutocracia”.
Após a oligarquia vem a “democracia”, o governo pelo povo.
E, por fim, vem a “tirania”, o governo por ditadores e demagogos.
Portanto, segundo essa visão, ainda que lamentemos
não sermos mais governados por reis e filósofos sábios (na medida em que um dia
o fomos) — lembrando que o próprio “trono” podia ser algo bom em tempos em que
a instituição estava espiritualmente viva, mesmo que um rei em particular
abusasse de sua autoridade e, por isso, fosse justamente deposto —, o fato de
estarmos agora na fase da democracia significa que devemos manter nossa posição
aqui o máximo possível, quaisquer que sejam as falhas da democracia, pois a
única alternativa, segundo Platão, é a tirania.
E essa tirania — autoritária, rebelde, caótica e
fatalista — será a expressão sociopolítica (a Besta) da disposição
cultural e psíquica de massa dos tempos finais (a Meretriz), que é o
reflexo de uma ordem espiritual contrafeita e, portanto, satânica (o Dragão).
Esta é uma possível formulação — e acredito que útil — do sistema do
Anticristo.
Mas devemos
ter cuidado para nunca supor que aquilo que mais nos repele e nos parece mais
maligno deva necessariamente ser o regime do Anticristo.
Em termos mundanos — e “o mundo” lançou raízes profundas na alma da maioria de
nós —, o Anticristo parecerá uma boa proposta. Ele nos atrairá fazendo um apelo
pervertido ao que há de melhor em nós.
Ele não apenas tomará o poder; também se apropriará dos valores.
No relato
muçulmano xiita, o Mahdi — o “messias”
islâmico, às vezes identificado com Elias, que aparecerá antes da Segunda Vinda
de Jesus — usará um turbante amarelo, e os servos do Anticristo, turbantes
verdes.
Isto é curioso, pois a cor amarela, no Islã, costuma simbolizar fraqueza, assim
como, no simbolismo popular ocidental, representa covardia ou doença
contagiosa.
Mas o verde é a cor do Paraíso — especificamente, em alguns sistemas, do
Paraíso da perfeição da Imanência Divina, que vem após a negritude da Essência
Divina transcendente e incognoscível, e assim representa o mais alto grau de
realização.
Portanto, no regime do Anticristo — como previu René Guénon — o significado do
simbolismo espiritual será invertido.
Como está escrito em 2 Coríntios 11:14: “O próprio Satanás se transfigura em
anjo de luz.”
A
Guerra Contra o Amor
O mundo
moderno não apenas perverte nossas crenças e nossas ações; ele também devasta
nossos sentimentos — testemunha disso é a violação, por quase todos os setores
da sociedade contemporânea — religiosa, secular e “esotérica” —, do domínio do
amor romântico.
Costumávamos dizer: “O amor tudo conquista”; mas, como nada nos resta agora da
palavra “amor” senão uma sentimentalidade muda e a reação automática ao
estímulo sexual, esquecemos o poder incomparável daquele Conquistador —
esquecemos que somente o Amor pode colocar todas as faculdades humanas,
incluindo coragem, autossacrifício e inteligência estratégica, a Seu serviço.
O amor
romântico tem sido um alicerce oculto — e às vezes um pilar reconhecido — da
civilização europeia por quase mil anos.
Alcançou sua expressão literária mais alta no Parzival, de Wolfram von
Eschenbach, e na Divina
Comédia
de Dante — o maior compêndio único de conhecimento espiritual da cristandade
ocidental — onde a tradição dos trovadores foi plenamente reunida à tradição
cristã, culminando na figura de Beatriz Portinari como encarnação da Santa
Sabedoria.
E, sendo eu — se minha genealogia familiar é precisa — o vigésimo nono
descendente direto (embora muitas vezes pela linha feminina) de Leonor da
Aquitânia, que presidiu os famosos Tribunais do Amor, e portanto o trigésimo
primeiro na linhagem de seu avô Guilherme de Poitiers, o primeiro trovador,
meus ancestrais agora me impelam a falar novamente em nome do Amor, diante das
trevas dos últimos dias, e a refutar a calúnia do “Mundo” de que o Amor é cego.
Ao contrário, é a paixão que é cega; mas a visão do Amor penetra como uma
flecha na profundeza do Coração espiritual.
O Anticristo
será a concha perfeita.
Ele será política, cultural, religiosa e até metafisicamente “correto”.
Tudo o que fizer, segundo todos os critérios explícitos, parecerá, a princípio,
certo.
Aqueles que o reconhecerem e se opuserem a ele não parecerão espirituais aos
olhos do mundo — talvez nem mesmo aos próprios olhos.
Parecerão desequilibrados, arrogantes, reacionários, mesquinhos.
Diante da imensa vacuidade da Besta, somente uma natureza emocional sã — que
tenha suportado a vergonha do Amor, cujos sentimentos estejam enraizados no
próprio Amor — terá poder para sentir o cheiro da corrupção, dos “ossos de
homens mortos e de toda imundícia”, ocultos naquele sepulcro caiado.
O
Amor de Muitos se Esfriará
O sistema do
Anticristo será — e já é — um regime articulado e estabelecido de frieza
emocional.
Ao criticar tendências sociais corruptas ou ideias metafísicas falsas, nunca
devemos esquecer que a mente não pode ser obscurecida, nem a sociedade humana
tornar-se verdadeiramente monstruosa, a menos que os afetos também estejam
poluídos por falso brilho, entorpecidos e petrificados pela arrogância e pelo
auto-desprezo, envenenados pela dor não vivida e pelo medo reprimido.
A praga da
frieza emocional, agora pandêmica no mundo, nos afeta sem que o percebamos.
Atrocidades grotescas podem, por instantes, despertar-nos para nossa condição
coletiva, mas também nos entorpecem.
Uma vez erodida nossa confiança fundamental em Deus — supondo que algum dia a
tenhamos possuído —, buscamos segurança emocional na sociedade humana, num tipo
de calor mamífero coletivo que esperamos nos proteja da ansiedade metafísica
que sentimos.
E, quando a sociedade se torna insegura, tentamos recuar ainda mais — até o
próprio instinto.
Assim como o sentimentalismo humanista substitui a fé em Deus, também a
dependência da energia, do fascínio e da ferocidade das reações emocionais
sub-humanas substitui o sentimento.
Mas, como o comportamento humano coletivo começa a demonstrar, há ainda menos
segurança no instinto do que na sociedade, pois, para que a sociedade humana
exista, é necessário que se exerça certa medida de responsabilidade humana —
alguém tem de “cuidar da loja”.
Em 2 Timóteo
3:3, São Paulo diz que, à medida que a era se aproxima de seu fim, as pessoas
serão “sem afeto natural”.
E a cultura americana contemporânea — limitando minha crítica ao que conheço em
primeira mão — mostra todas as evidências disso.
É comum que pais abusem dos filhos, e não é desconhecido que filhos matem os
pais.
Uma falta de amor onipresente levou a um achatamento emocional geral e a um
enfraquecimento da textura da alma — como se, em nossa ânsia por segurança,
aspirássemos inconscientemente a transformar-nos em algo semelhante a imagens
geradas por computador: tais imagens não podem sofrer angústia existencial, e
há pouco a lamentar se acabam sendo “apagadas”.
Esse achatamento emocional manifesta-se, em termos grosseiros, como uma praga
de violência psicótica — como se os perpetradores de crimes monstruosos
tentassem, de algum modo, chocar-se de volta à realidade tridimensional (embora
apenas se entorpeçam ainda mais) — e, de modo mais sutil, como uma falta
disseminada do que antes se chamava “cortesia comum”, aparentemente baseada num
medo profundo — eu quase diria supersticioso — do sentimento.
E esses dois polos não são alheios entre si, pois uma insensibilidade coletiva
aos sentimentos dos outros significa que todos estão sempre sendo ofendidos — e
pessoas ofendidas estão sempre ficando furiosas.
Os efeitos
desse congelamento da alma humana são mais evidentes no mundo das relações
heterossexuais.
Entre suas consequências estão a promiscuidade, a monogamia serial insípida e o
que chamo de “casamento paralelo”, derivado dos costumes da cultura dos solteiros
e sustentado pela estrutura da família de dupla carreira, em que o cônjuge é
apenas uma espécie de colega de quarto, onde o ato prático de enfrentar o mundo
substituiu quase completamente o ato emocional de enfrentar um ao outro.
O sociólogo
Herbert Hendin, escrevendo em 1975, quando o atual regime de frieza emocional
estava sendo estabelecido no rescaldo das convulsões psíquicas e sociais dos
anos 1960, registrou esta impressão dos estudantes universitários que estudou:
“As mulheres…
para se protegerem da raiva masculina… tentam criar uma vida que parece
expressamente concebida para eliminar a possibilidade de serem afetadas por um
homem. O medo do envolvimento é profundo, difuso… um medo de ser totalmente
aniquilada, ou de perder a luta pela autoafirmação… a maioria das jovens evita
a verdadeira intimidade com um homem, sentindo que o próprio ato de se importar
é autodestrutivo… para ambos os sexos na sociedade, importar-se profundamente
com alguém está se tornando sinônimo de perder… Numa cultura que
institucionaliza a falta de compromisso, é muito difícil ser comprometido; numa
nação que parece determinada a despojar o sexo de romance e ternura, é muito
difícil ser um amante terno e fiel.”
Essas palavras
ecoam, de muitas maneiras, as do poeta alemão medieval Gottfried von Strassburg
— apenas para nos lembrar que o Amor tem estado sob ataque neste mundo desde
que a humanidade buscou, pela primeira vez, o fruto de um “conhecimento” que o
Amor não pode dar:
“Lamento o
amor com todo o meu coração; pois embora quase todos hoje o abracem e se
apeguem a ele, ninguém lhe concede o que lhe é devido.
Todos queremos nosso prazer dele, e conviver com ele.
Mas não! O amor não é o que nós, com nossos enganos, estamos agora fazendo dele
uns para os outros…
É realmente verdade o que dizem: ‘O Amor é perseguido e caçado até os confins
da terra.’
Tudo o que possuímos dele é a palavra — o nome apenas nos resta; e isso, também,
já o desgastamos tão maltratado, mal-usado e vulgarizado, que a pobre criatura
se envergonha de seu próprio nome, enojada até com o som dele.
Quando o coração de uma pessoa se torna frio, ela
já perdeu a faculdade pela qual essa frieza poderia ser discernida — assim como
alguém cuja consciência morreu já não pode sentir a própria falta de consciência,
ou alguém cujo paladar se tornou embotado já não pode “provar” o próprio mau
gosto.
Há muitos entre nós — oremos para que não estejamos entre eles — cujos corações
já estão mortos, deixando suas mentes racionais relativamente intactas, e até
mais capazes, em certos aspectos, de operar com eficiência numa sociedade
baseada na “maldade espiritual nos lugares elevados”, numa frieza psicopática
que caminha para tornar-se a norma.
Como disse Jesus, quando seus discípulos lhe perguntaram quais seriam os sinais
de sua vinda ao fim do mundo presente: “E por se multiplicar a iniquidade, o
amor de muitos esfriará” (Mateus 24:12).
A história desse congelamento inconsciente das
emoções é contada por Hans Christian Andersen em seu conto “A Rainha da Neve”:
Um demônio — que é também um professor, ou mestre-escola — inventa um espelho
no qual tudo o que é mau cresce até proporções monstruosas, enquanto as coisas
boas aparecem distorcidas e diminuídas.
Ele e seus alunos viajam pelo mundo inteiro com o espelho, zombando de tudo o
que é bom.
Tentam até voar até o céu para zombar dos anjos, mas quanto mais alto sobem,
mais pesado o espelho se torna, até que escorrega de suas mãos e despedaça-se
em um milhão de fragmentos.
Alguns pedaços do espelho são usados para fazer janelas, através das quais o
mundo parece feio e distorcido.
Minúsculos estilhaços penetram nos olhos das pessoas, destruindo-lhes a
capacidade de ver o bem em qualquer coisa, enquanto outros se alojam em seus
corações — que então se congelam em blocos de gelo.
Esses acontecimentos anunciam a vinda da Rainha da
Neve, que habita um palácio de gelo além do Círculo Polar Ártico e sobrevoa o
mundo com a nevasca, destruindo o calor e o amor onde quer que os encontre.
O jovem herói do conto é sequestrado e levado ao seu palácio, onde é ensinado a
jogar um tipo de jogo de tabuleiro chamado “as imagens de gelo da razão”. Ele é
finalmente resgatado por sua amiga de infância, que deve empreender uma longa e
perigosa busca para encontrá-lo e restaurar-lhe a alma.
“A Rainha da Neve” é, sem dúvida, uma alegoria
inconsciente da queda do “Paraíso Hiperbóreo”, mencionado por René Guénon como
a terra original da Tradição Primordial — cujo último vestígio folclórico, por
estranho que pareça, é o mito do Papai Noel.
A Rainha da Neve é uma espécie de “Anti-Papai Noel”, que substitui o calor e a
generosidade por uma possessividade gélida.
O mesmo tipo de frieza pode afetar aqueles que tentam compreender as ideias
metafísicas apenas com a mente.
Em muitos contos de fadas — como o espanhol “O Papagaio Branco” ou o persa “O
Teixo do Banho” — qualquer um que se aproxime do Centro sagrado com a atitude
errada (por exemplo, curiosidade ou fome de poder) é transformado, não em gelo,
mas em pedra.
“A Rainha da Neve” é a história da ocupação do “polo”
— o centro espiritual da consciência humana — pelo regime do racionalismo
materialista, articulado nas altas academias e difundido às massas por meio do
sistema público de ensino, velando a percepção direta de Deus e destruindo a fé
pela qual tal percepção poderia ser restaurada.
O “ponto imóvel do mundo girante”, simbolizado pela Estrela Polar — o ponto
onde a Eternidade intercepta o tempo —, é transformado no regime do Destino:
nas constelações que giram inexoravelmente, como no Relógio do Mundo.
Esse regime expressa-se, em termos da ciência do século XIX, como determinismo
mecanicista; e, em teologia, pelo erro conhecido como Deísmo, que negava a
imanência de Deus em Sua criação, reduzindo-a a um mecanismo sem alma.
Se, como diz Schuon, o Renascimento foi a vingança
do Paganismo clássico sobre a Cristandade, podemos ver a figura da Rainha da
Neve — que, no final do conto, é vencida pelo amor cristão — como uma união
simbólica do Neopaganismo com o cientificismo (ambos oriundos, em última
análise, do Renascimento), algo semelhante à Deusa da Razão adorada nas
catedrais dessacralizadas da França durante a Revolução.
A maneira de Andersen opor-se à frieza do
materialismo racionalista foi através da sentimentalidade — que, como observa
Guénon, não passa da expressão afetiva do próprio materialismo.
Uma vez que o materialismo nega a existência das realidades superiores
acessíveis à Intelectualidade, a emoção deve agora enraizar-se não na Verdade
eterna, mas no mundo da natureza e dos sentidos — um mundo sujeito ao tempo e à
decadência.
Essa orientação invertida transforma inevitavelmente a emoção humana sã e
inteligente em sentimentalismo, nostalgia e atração pela morte — como nos
poetas românticos ingleses e alemães que adoravam a natureza em vez de Deus.
Para aqueles que possuem um senso de
transcendência, o mundo da natureza — como a forma humana, de que é a shakti
viva — é o locus da manifestação de todos os Nomes e Energias de Deus.
Para os que carecem desse senso, é um campo de batalha sem coração, um mecanismo
biotecnológico e, em última análise, um cemitério — quer consigam ou não lançar
sobre ele um manto temporário de fascinação lírica.
Quando Guénon escrevia, o regime do sentimentalismo
burguês estava em plena força; basta lembrarmos a veneração vulgar e açucarada
pela “Pequena Flor”, Santa Teresa de Lisieux, para percebermos contra o que ele
lutava como expositor da metafísica pura — embora devamos lembrar, como observa
Thomas Merton, que Santa Teresa era uma santa verdadeira.
O próprio Schuon tinha grande respeito por ela e até acreditava que alguns de
seus escritos continham elementos de verdadeira gnose.
Essa batalha contra um emocionalismo degenerado
explica em parte por que Guénon escrevia com sua peculiar marca de sang-froid,
o que levou alguns a descrevê-lo como “um olho sem corpo”.
Para defender-se — e defender sua missão — contra sentimentalidades e
entusiasmos falsos de toda espécie, ele escrevia sem fervor, protegido apenas
pelo espinho de uma ironia distante e medida.
O sentimentalismo, contudo, já não é o nosso
problema.
Se há um único sinal da transição do crepúsculo da era moderna para a aurora do
pós-modernismo, é a fúria tanto da cultura popular quanto da acadêmica em
derrubar todos os ídolos do sentimento — ídolos bem estabelecidos desde o fim
dos anos 1950 e início dos 1960.
Se as emoções oficialmente consagradas da era vitoriana eram o triunfalismo e o
sentimentalismo, nosso status quo pós-moderno, por sua vez, impõe a
vulgaridade, o entorpecimento emocional, o terror, o fascínio sinistro, o
desgosto e o desespero.
Que o pós-modernismo, enquanto regime cultural,
possa presumir “estabelecer-se” sobre tal fundação de areia é uma perfeita
ilustração do princípio de “uma casa dividida contra si mesma”.
Ela não permanecerá.
Como
a Negação do Amor Pode Perverter a Metafísica
Nestes tempos,
em que todas as relações humanas primordiais estão sendo sistematicamente
devastadas — pela mecanização da reprodução, por exemplo —, muitos de nós temos
tentado refugiar-nos em Deus diante da destruição do amor humano, tanto por
meio da identidade de grupo oferecida pela religião exotérica quanto através
dos mistérios e lutas do Caminho espiritual.
Mas, como o próprio estado de decadência cultural que levou o amor humano à
beira da extinção também removeu os apoios exotéricos normais do Caminho
esotérico — por exemplo, o apoio de uma moralidade social fundada
espiritualmente, que tanto nutre quanto protege e vela a Realidade interior —,
o empreendimento esotérico em si está agora mais exposto à mundanidade e ao
“materialismo espiritual” talvez mais do que em qualquer outro momento de sua
história.
O Caminho
espiritual está sendo cada vez mais concebido não como a coroa da vida humana,
mas como um substituto dela; esquecemos que “ninguém vem ao Pai” — à transcendência
de Deus — “senão por Mim” — pela humanidade de Deus.
Como escreveu
Schuon:
“No caso de
algumas pessoas, a intenção de amar a Deus traz consigo a incapacidade de amar
os homens; ora, esta segunda destrói a primeira. Numa alma vulgar, o zelo pelo amor
espiritual e pela mortificação pode trazer consigo um egocentrismo gelado...”
Lamentavelmente, o mesmo pode ser dito de um
Caminho espiritual que enfatiza a Intelectualidade em detrimento da devoção
sentimental — não porque essa ênfase não seja plenamente justificada no caso do
temperamento espiritual jñânico, mas porque uma certa proporção daqueles
atraídos pela metafísica e pela ideia de Intelectualidade inevitavelmente
interpretará isso como significando que o apego ao conhecimento espiritual
justifica, ou mesmo exige, o abandono do amor espiritual e humano.
Mas, como Schuon nos adverte em Spiritual
Perspectives and Human Facts:
“Um culto à inteligência e à paixão mental afasta o
homem da verdade.
A inteligência retira-se tão logo o homem confia apenas nela.
A paixão mental que persegue a intuição intelectual é como o vento que apaga a
luz de uma vela.”
Minha esposa, Jennifer Doane Upton, em seu ensaio “A
Visão de Dante sobre o Amor Espiritual”, trata desse erro:
“Costuma-se assumir, no mundo de hoje, que o
sentimento é estritamente subjetivo.
Mas é mais exato dizer que alguns sentimentos são objetivamente verdadeiros e
outros objetivamente falsos.
Se você ama um demônio, por exemplo, seus sentimentos não são verdadeiros.
O mundo moderno deleita-se nas paixões, mas, de muitos modos, tenta matar a
‘voz mansa e delicada’ do sentimento objetivo.
O sentimento verdadeiro pode muitas vezes parecer pequeno e sem importância,
como flores alpinas, ainda que essas plantas aparentemente insignificantes
possuam o poder de suportar grande frio.”
Muitas pessoas hoje que têm interesse pela
metafísica tendem a acreditar que os sentimentos são meros “acidentes”.
No entanto, alguém pode perder a alma por meio de um sentimento falso, enquanto
o sentimento verdadeiro pode salvá-la — e nada que diga respeito à salvação ou
à danação pode ser apenas acidental.
Em Paraíso 26:59–63 (tradução de Allen
Mandelbaum), Dante diz:
“A Morte que Ele sofreu, para que eu vivesse,
E a esperança à qual os fiéis, como eu, se apegam,
Juntamente com esse conhecimento vivo [isto é, as ‘mordidas’ do Amor Divino em
união com o amor humano] asseguraram
Que, do mar do amor errado, eu fosse trazido
À praia do amor correto, e ali permaneço firme.”
Dado o conceito prevalente nos círculos metafísicos
de que os afetos são acidentais, alguns concluem que, sendo a alma o domínio
dos afetos, ela é, portanto, o princípio das paixões e dos vícios, incluindo o
orgulho.
Mas o sentimento certamente não é mais inerentemente orgulhoso do que o
pensamento.
O sentimento verdadeiro relaciona-se aos aspectos mais espirituais da alma;
apenas o sentimento falso está envolvido com as paixões.
E o Amor, que é de origem divina, pertence a mais do que a alma sensível.
Mas, embora o Amor seja mais do que sentimento, ele nunca exclui o sentimento;
se o Amor está presente, o sentimento está presente.
O sentimento pode estar ali de modo oblíquo; às vezes alguém pode ser mais
objetivamente amoroso ao agir contra certos sentimentos.
Ainda assim, o Amor é sempre a coroa do sentimento verdadeiro — o que significa
sentimento objetivo.
Em Paraíso 26:28–39, lê-se:
“O bem, assim que é percebido como bem,
Acende o amor e o faz mais viver,
Quanto mais de bem puder incluir em si.
Portanto, à Essência, cuja prerrogativa
É que o bem conhecido fora dela
Não é senão a luz que seus raios dão,
Mais do que a outro lugar deve, em amor,
Tender a mente de quem vê a verdade
Em que o fundamento da prova repousa.”
Essa verdade — continua Dante — é tornada clara ao
intelecto
Por Aquele que dá testemunho daquele Amor primordial
Que todas as substâncias eternas mantêm.
Segundo Frithjof Schuon, “há bhakti sem jñana,
mas não há jñana sem bhakti”; embora o conhecimento seja mais
alto que o amor, o amor é mais fundamental que o conhecimento.
Por outro lado, o seguidor de Schuon, Martin Lings
— cuja obra e presença são tão admiráveis que hesito em criticá-lo — fala, em The
Eleventh Hour, de uma perspectiva do conhecimento, e não do amor, como a
mais adequada ao nosso tempo.
Em minha opinião, isso já é, no mínimo, um estreitamento radical do ensinamento
de Schuon.
Se, como Schuon nunca se cansa de repetir, não há
direito superior à verdade, então deve-se admitir — porque é verdade — que é
quase impossível dizer a muitos ocidentais contemporâneos que o conhecimento é,
de certo modo, superior ao amor (embora, de outro modo, o amor seja mais
fundamental que o conhecimento) sem que ouçam isso como se significasse que a
compaixão deva, portanto, ser desvalorizada, os sentimentos desconfiados e o
esforço de desenvolver a inteligência emocional abandonado.
Uma razão para isso é que muitas pessoas atraídas
pela intelectualidade — tanto espiritual quanto secular — estão simplesmente
fugindo da dor emocional.
Sua tentativa de pacificar e harmonizar a emoção por meio da disciplina mental
torna-se, assim, uma luta para reprimir o sentimento e uma negação da qualidade
especial de percepção que apenas o sentimento pode oferecer.
Afinal, num mundo de sofrimento em massa e
desumanização, é infinitamente mais fácil — ao menos de início — desesperar da
compaixão, reprimir a emoção e encerrar-se em uma concha de gelo contra o
terror externo… e então (é claro) passar a reproduzir esse mesmo terror, de
forma mais concentrada, mais íntima e mais destrutiva para a alma, dentro dessa
própria concha — tomá-lo por mestre e acabar tornando-se seu agente.
Para combater esse mal-entendido aparentemente
inevitável, não posso fazer nada melhor do que citar a doutrina de Schuon, em Survey
of Metaphysics and Esoterism, sobre o lugar da emoção na vida espiritual:
“Não ser ‘emocional’: isto parece, hoje em dia, ser
a própria condição da ‘objetividade’; enquanto, na realidade, a objetividade é
independente da presença ou ausência do elemento emocional...
A emotividade manifesta e permite perceber aqueles aspectos de um bem ou de um
mal que a mera definição lógica não poderia manifestar direta e
concretamente...
Se a dignidade natural exige certa impassibilidade — manifestando, assim, o
‘motor imóvel’ e o sentido do sagrado —, ela, contudo, não exclui os impulsos
naturais da alma, como é mostrado pelas vidas dos sábios e dos santos, e
sobretudo pela experiência cotidiana...
Num homem espiritual há continuidade entre sua impassibilidade interior —
resultante de sua consciência do Imutável — e sua emoção...
Na emoção do homem espiritual, o ‘motor imóvel’ permanece sempre presente e
acessível.
Como sua emoção está ligada ao conhecimento, a verdade jamais é traída...
Fundamentalmente, diríamos que, onde há Verdade, há também Amor.
Cada Deva possui sua Shakti; no microcosmo humano, a alma
sensível une-se ao intelecto discernidor, assim como, na Ordem Divina, a
Misericórdia une-se à Onisciência; e, em última análise, a Infinitude é
consubstancial ao Absoluto.”
Essa relação entre o sentimento e a visão
espiritual é desenvolvida mais adiante por Jennifer Doane Upton:
“Há, na sociedade contemporânea, uma profunda
ignorância acerca do verdadeiro sentimento, o que conduz a uma frieza emocional
que abre a alma ao mundanismo — mesmo quando a compreensão doutrinal, em seu
próprio domínio, conseguiu excluir esse mundo.
O sentimento desenvolvido é refinado e sutil. Longe
de ser meramente sentimental ou demonstrativo, ele frequentemente contém sua
própria demonstração, quando tal manifestação destruiria o contexto em que
aparece; é isso que explica por que, enquanto está no Inferno, Dante nunca
pronuncia o nome de Beatriz.
O sentimento deve ser cultivado — tanto pelo bem da
plenitude da vida humana quanto porque ele próprio pode ser um veículo perfeito
de união com Deus, não apenas pela energia psíquica que libera, mas também
pelas percepções particulares que somente o sentimento desenvolvido pode
oferecer; isto não é bhakti no sentido usual do termo.
Há certas vias para o Intelecto transcendente que só se abrem por meio do
sentimento.”
E então ela cita Paraíso 28:1–12:
“Quando aquela que tornou meu espírito paraíso
Desnudou a verdade, e seus contrários,
Na vida presente do mísero gênero humano,
Assim como aquele que, olhando no espelho, vê
Uma chama de tocha acesa atrás de si,
Antes que a veja ou a pense,
E volta-se para ver se o vidro oposto
Disse-lhe a verdade, e encontra que concorda com ela,
Tão precisamente como nota e medida correspondem —
Assim está registrado em minha memória
Que me voltei, olhando para aqueles olhos de luz,
De onde o amor me lançara o laço para capturar-me...”
E conclui:
“Voltemos àquela antiga e melodiosa expressão ‘amor
verdadeiro’.
Agora ela nos soa meramente sentimental.
Mas ‘verdadeiro’ significa ‘objetivo’; o amor verdadeiro é amor objetivo.
Muitas vezes uma pessoa alcançou a Verdade partindo da função do pensamento,
apenas para vê-la destruída em sua vida por meio de um sentimento falso.
O sentimento verdadeiro, ao contrário, pode ser uma faculdade de ‘retorno ao
lar’, atraindo-nos para o Centro quase mais rapidamente do que poderíamos
viajar por iniciativa própria.”
E então ela cita São Bernardo — símbolo da
contemplação divina — dirigindo-se a Dante em Paraíso 32:149–150:
“E tu, com teu sentimento (l’affezione),
Segue minhas palavras, para que teu coração se una a elas.”
Segundo Dante, o Amor é o Supremo Fim da vida
espiritual, não apenas a energia que a move.
Esse Amor supremo e objetivo é outro nome para o Intelecto transcendente.
Em Paraíso 32:142–144, São Bernardo diz:
“E voltemos nossos olhos ao Amor Primordial,
Para que, ainda fitando-O, possas penetrar
Em Seu esplendor, tanto quanto em ti couber.”
E em Paraíso 33:85–92, Dante declara:
“Eu vi folhas dentro do fogo sem fundo
Presas num só volume pelo amor, o mesmo
Que o universo sustém espalhado em seu labirinto.
Substância e acidentes, e seus modos, tornaram-se
Como que fundidos em um todo, de tal maneira
Que o que falo é uma única chama simples.
Em verdade, creio que vi com meus próprios olhos
A forma que une o mundo inteiro...”
Em Spiritual Perspectives
and Human Facts, Schuon diz:
“Aquilo que é ‘amor’ no início [do Caminho
espiritual] aparecerá como ‘Conhecimento’ no resultado, e o que é
‘conhecimento’ no início aparecerá no resultado como ‘Amor’.
O amor do homem afetivo é que ele ama a Deus.
O amor do homem intelectual é que Deus o ama — isto é, ele compreende
intelectualmente — mas não apenas de modo teórico — que Deus é Amor.”
Dante concorda com essa visão. Em Paraíso
28:109–111, ele coloca o conhecimento firmemente acima do amor:
“A bem-aventurança celeste
Funda-se no ato que vê a Deus,
Não naquele que O ama, o qual vem depois deste.”
Ao longo de todo o Paraíso, contudo, ele
nunca se cansa de repetir que Deus é Amor — chamando-O, por exemplo, de “aquele
Amor Primordial” (32:142).
O que tanto Dante quanto Schuon dizem, em outras palavras, não é que Deus seja
Verdade em vez de Amor, mas que o conhecimento pleno e sereno de Deus como Amor
(e, portanto, também como Verdade) é maior do que a resposta emocional a Ele —
por mais intensa, devota e necessária que essa resposta seja para a purificação
da alma.
O Diabo adora criar falsas antíteses, de modo que,
qualquer lado que se escolha, o dano é feito e a escuridão se espalha.
E talvez sua favorita de todas seja a que opõe amor e conhecimento.
Que poderia melhor servir a seus propósitos do que perverter o afeto até que
ele obscureça o intelecto, identificando o amor com a insensatez no imaginário
popular, de modo que os mais amorosos entre nós sejam continuamente feridos até
que seus afetos congelem?
E o que melhor revelaria a qualidade do orgulho satânico do que fazer com que o
conhecimento seja identificado com frieza emocional, a gnose com
prestígio social, e a inteligência com astúcia — até que a dureza de coração em
si seja vista como virtude, pois, se os inteligentes são frios, então tornar-se
frio deve significar tornar-se inteligente?
No contexto da “guerra invisível” entre a ordem da
Realidade Divina e a subversão infernal dessa Ordem, alguns dos mais poderosos
e inteligentes dos “querubins caídos” parecem ocupar justamente a fenda entre o
amor e o conhecimento, guerreando contra todos os que tentam aproximá-los ou
intuir sua unidade intrínseca.
(Lembra-se aqui dos “gigantes de gelo” nórdicos, espíritos de frio abissal, ou
do nono círculo congelado do Inferno de Dante, reservado aos traidores
do amor.)
Em vez de sermos “sábios como as serpentes e simples como as pombas”, essas
forças preferem ver-nos “inofensivos como serpentes” — brutalmente astutos — e
“sábios como pombas” — ingênuos.
E, deixando de lado toda a metafísica, a
complementaridade entre amor e conhecimento é, ou deveria ser, simples bom
senso.
Se a mente coletiva não estivesse tão enevoada pela corrupção dos tempos, seria
fácil ver que tudo o que realmente serve ao amor serve igualmente ao conhecimento,
enquanto tudo o que fere o amor obscurece também o intelecto.
Se nos acomodamos na estupidez, perderemos nossa capacidade de amar a Deus e ao
próximo — pois não se pode amar o que não se quer conhecer; e se nos
acostumamos com a falta de amor, inevitavelmente cairemos na estupidez — pois
não se pode conhecer algo enquanto se trabalha para evitar todo contato íntimo
com ele.
O que poderia ser mais óbvio?
E se nunca aprendemos a amar os outros conhecendo-os, e a conhecê-los
amando-os, então não teremos êxito no reino Divino depois de termos falhado no
humano.
A
Terra Devastada
O conhecimento
tem dois caminhos abertos diante de si: o caminho do Amor e o caminho do Poder.
Se o Conhecimento se une ao Amor, subordinando assim o Poder (que é transformado
em servo dessa união), define-se o estado do Paraíso.
Se mantém um caso adúltero com o Poder, e com isso subordina o Amor (fazendo
dele a vítima dessa ligação), define-se o estado do Inferno.
No ícone
cristão ortodoxo de São Jorge, o santo é representado como um cavaleiro montado
em um cavalo branco, no ato de resgatar uma princesa de um dragão, perfurando-o
com sua lança.
Se São Jorge é o Conhecimento, então a princesa é o Amor, e o dragão é o Poder.
No mundo exterior, o dragão manifesta-se como tirania, opressão, vício coletivo
e o regime estabelecido da insensibilidade; no mundo interior, ele é o nafs al-ammara — a alma passional, o
domínio da concupiscência sobre o coração humano.
O dragão, em outras palavras, é Satanás, o arquétipo espiritual do Anticristo.
E a princesa é a energia de Eros, que é ou escrava do motivo do poder — como a
Meretriz da Babilônia, “com quem os reis da terra se prostituíram” (Apocalipse
17:2) — ou esposa do Conhecimento, o corpo vivo da Verdade, como no caso da
Jerusalém Celestial, descrita em Apocalipse 21:2 como “descendo do céu, de
Deus, preparada como uma esposa adornada para seu marido”.
A história do
Amor escravizado ao Poder devido à imaturidade do Conhecimento é contada no
romance do Graal Parzival, de Wolfram von Eschenbach.
O Rei do Graal, Anfortas, ainda adolescente, é ferido nos testículos durante um
torneio, como punição por orgulho insensato no amor.
Sua ferida nunca cicatriza, embora a presença do Graal — de que ele é guardião
— o mantenha vivo.
Seu reino definha.
Ao mesmo tempo, o mago castrado Clingschor, em aliança com o rei tirano
Gramoflanz, lança seu feitiço maligno sobre todos os amantes e envenena o amor
deles.
(Clingschor foi castrado pelo rei da Sicília, que o apanhou em adultério com
sua esposa, a rainha Iblis — “Iblis” ou “Eblis” sendo o nome muçulmano para
Satanás.)
Gawain e
Parzival, cavaleiros da Távola Redonda de Artur, em busca de aventura, penetram
no campo de energia dessa Terra Devastada, onde o amor é escravizado e
destruído pelo orgulho e pelo poder.
Gawain suporta as provações do Castelo das Maravilhas, cheio de muitas mulheres
presas sob o feitiço de Clingschor, liberta-as e une-se à sua amada, Lady
Orgeleuse.
E Parzival, lutando com sua própria imaturidade espiritual e emocional,
finalmente redime e cura Anfortas, o Rei do Graal, simplesmente perguntando o
que o aflige, sendo em seguida reunido a sua esposa Condwiramurs — cujo nome,
derivado do francês conduire-amours, significa “guiar o
amor”.
O próprio Parzival torna-se o novo guardião do Graal.
O regime de Clingschor/Gramoflanz — espiritualidade pervertida aliada ao poder
político — é uma forma, ou prenúncio, do regime do Anticristo.
Tudo o que amaldiçoa o amor, tudo o que distorce ou destrói a sexualidade —
como a engenharia genética humana — conduz diretamente àquela Terra Devastada
terminal, governada por um mago castrado, onde a Besta é montada pela Meretriz
(a Rainha Iblis do romance Parzival), que compra e vende todos os bens e tesouros da terra,
inclusive as almas dos homens (Apocalipse 18:13).
O
Amor Humano como Misericórdia de Deus
A tradição
romântica ocidental, de onde essa história é tirada, tem funcionado como um
contrapeso ao ascetismo extramundano da cristandade ocidental por quase um
milênio.
E, apesar de sua associação inicial com heresias como o catarismo, acabou por
tornar-se parte integrante da cultura cristã da Europa Ocidental, como provam
abundantemente as obras de Dante e Shakespeare, que mergulham profundamente na
tradição romântica.
O valor
central celebrado nessa tradição é a união do amor espiritual (agape) e do desejo
apaixonado (eros), conhecida como amor.
No ensaio “High
Romance and the Spiritual Path”, Jennifer Doane
Upton escreve:
“O amor
humano, de certo modo, encontra sua morte no nascimento do amor divino.
Mas, de outro modo, vive novamente por meio dessa mesma morte, tornando-se
símbolo desse amor superior.
Na Alta
Romance, o espírito desce e preenche o nível humano.
Muitas vezes,
por causa da intensidade de emoção que isso produz, sentimo-nos envergonhados
ao nos aproximar de um material romântico.
Todo esse amar o amor, e ter de viver sem o amor mesmo enquanto amamos — fere
nosso amor-próprio.
Quando negamos
os estados românticos, distorcemos as próprias formas que o espírito tenta
enobrecer.
O espírito paira acima de nós, sem modo de alcançar nossa humanidade.
Nós o deixamos à deriva.”
Em Amor, a pessoalidade do
amado é central — assim como, na realização espiritual verdadeira, Deus não é
uma abstração ou um espectro insubstancial, mas a Realidade mais concreta
imaginável.
Do ponto de vista mundano, isso é visto como sentimentalismo vulgar; e, de uma
perspectiva manchada de arrogância espiritual, o amor por um ser humano é visto
apenas como idolatria — a adoração do próprio ego na pessoa de outro.
Diante de tal
cinismo mundano — e de um idealismo espiritual igualmente cínico —,
envergonhamo-nos do amor romântico, esquecendo que, como Schuon recorda em Understanding Islam,
“os mundos
‘românticos’ são precisamente aqueles nos quais Deus ainda é provável.”
Assim como os
vitorianos se entregavam à fantasia do amor sentimental mas envergonhavam-se da
sexualidade, nós nos entregamos a toda forma de exibicionismo sexual, mas nos
envergonhamos do amor.
A paixão, a ternura e a coragem do verdadeiro amor romântico — em contraste com
o mero romantismo sentimental — estão entre as poucas virtudes capazes de
humanizar as relações entre homem e mulher.
Pode-se até dizer que essa profundidade de amor é quase a única força capaz de
estender a graça espiritual do sacramento cristão do matrimônio às dimensões
psíquicas e interpessoais.
Como em todas
as reflexões da Unidade divina no reino da multiplicidade, há sempre o perigo
da dissipação e da queda — e, como sempre, esse perigo só pode ser superado de
um modo: pelo sacrifício.
Como diz Schuon:
“É necessário
cavar fundo no solo da alma, através de camadas de aridez e amargura, para
encontrar o amor e viver dele.”
A tradição
romântica ocidental, com sua exaltação de uma forma de adultério ritual, na
qual a fidelidade estrita (da parte do homem), o risco da própria vida e um
elemento de rigor ascético eram as virtudes operantes, começou como uma
rebelião contra a convenção sem coração do casamento aristocrático, onde todos
os valores pessoais e afetivos eram sacrificados à busca do poder político.
A convenção sem coração dos tempos atuais, porém, não é o matrimônio, mas uma
ausência de amor cruel em todas as áreas da vida, aliada ao apego às formas
mais venenosas de autoindulgência sexual.
O resultado final desse apego é a devastação da sexualidade e o achatamento
geral da alma, tornando-a vulnerável ao orgulho mundano e à sedução pelas
várias formas de irrealidade sub-humana propostas pela sociedade tecnocrática.
Consequentemente,
no campo das relações humanas, o ato central de rebelião libertadora contra os
costumes sociais degenerados já não é o adultério perigoso e ritualizado
cantado pelos trovadores, mas o matrimônio amoroso — onde o poder empregado por
Deus para criar o universo, o poder da polaridade, atinge seu ponto de máxima
concentração.
Em Esoterism as Principle
and as Way,
Schuon formula o princípio do amor humano pessoal como caminho e expressão da
união com Deus:
“Uma condição
indispensável para a experiência inocente e natural da felicidade terrena é a
capacidade espiritual de encontrar a felicidade em Deus, e a incapacidade de
desfrutar das coisas fora d’Ele.
Não podemos amar validamente e de modo duradouro uma criatura sem carregá-la
dentro de nós em virtude de nosso apego ao Criador; não que essa posse interior
deva ser perfeita, mas deve estar ao menos presente como intenção que nos
permita aperfeiçoá-la.
Estar em paz
com Deus é buscar e encontrar nossa felicidade n’Ele; a criatura que Ele uniu a
nós pode e deve ajudar-nos a alcançar isso com maior facilidade ou menor
dificuldade, segundo nossos dons e segundo a graça, merecida ou imerecida.
Ao dizer isso,
evocamos o paradoxo — ou antes, o mistério — do apego com vista ao desapego, da
exterioridade com vista à interioridade, ou ainda, da forma com vista à
essência.
O verdadeiro amor nos liga a uma forma sacramental enquanto nos separa do
mundo, e assim reencontra o mistério da revelação exteriorizada com vista à
interiorização da Salvação.”
(The
Essential Writings of Frithjof Schuon, pp. 419–420)
Amar o que é
passageiro, efêmero e destinado ao túmulo — amá-lo com um amor que, como todo
amor, é eterno em seu núcleo — é provar a plenitude pungente da existência em
meio à “poeira vermelha deste mundo”.
E ver, finalmente, o objeto humano do próprio amor como transparente ao próprio
Amor é, nas palavras de Yeats, “quebrar os dentes do tempo”.
Por meio de um profundo sacrifício do apego, que conduz a uma transmutação
alquímica dos afetos, transforma-se a nostalgia do passado, que é corrupção, em
nostalgia da Eternidade, que é bem-aventurança.
Viver na consciência íntima da morte inevitável do próprio amado é,
paradoxalmente, vê-lo sub specie aeternitatis: não mais como objeto de amor, mas como visão
do próprio Amor, na qual a separação entre este mundo e o próximo é superada.
Amar
romanticamente em meio à frieza dos últimos dias, sem idolatria pessoal e em
nome do “Amor que move o Sol e as outras estrelas”, é arriscar tudo — poder,
prestígio, segurança, até a própria vida —, todo o espectro dos valores
mundanos e egóicos, pelo bem desse Amor.
O Mundo — o Sistema do Anticristo, o regime estabelecido da arrogância e do
desespero coletivos — sente-se profundamente ameaçado por essa união de
sexualidade, espiritualidade e amor pessoal que chamei Amor, e a subverte sempre
que pode: ora pelo puritanismo, ora pelo libertinismo, e muitas vezes por uma
mistura profana dos dois, como em grande parte do que se passa por “tantra” ou
“sexualidade sagrada” no mundo da Nova Era, onde a impessoalidade se disfarça
de desapego, e a sensação física refinada substitui tanto o êxtase místico
quanto o amor humano.
Esse senso de ameaça, por parte do reino do Anticristo, é um sinal seguro de
que há algo na essência do Amor
que, se purificado da idolatria e consagrado a Deus — ao próprio Amor —, possui
o poder de cortar esse reino pela raiz.
UFOs
e a Metafísica Tradicional:
Uma
Demonologia Pós-Moderna
Quando foi
perguntado a William James como definir “realidade”, ele deu a seguinte
resposta:
“Qualquer
coisa é real se nos vemos obrigados a levá-la em conta de algum modo.”
Segundo essa
definição ampla (embora nada profunda), os OVNIs são certamente reais.
A crença de massa neles exerceu um efeito imenso e incalculável sobre nossa
sociedade.
E essa crença não surgiu simplesmente do nada; há método por trás dessa loucura
social, psíquica e empiricamente documentada.
Friedrich
Nietzsche advertiu:
“Cuidado:
enquanto olhas para o abismo, o abismo olha para ti.”
É por isso que
aconselho o leitor a não abrir esta seção em estado de depressão, ansiedade ou
curiosidade mórbida.
Quem já sabe o quão maléficos são os OVNIs, e não tem dever que o obrigue a
investigá-los, deve pular este capítulo.
Mas aqueles que acreditam que possa haver algo “espiritual” neles — e não temem
ser seriamente desiludidos —, leiam adiante.
O
Lugar do Mito dos OVNIs na Cultura Contemporânea
O fenômeno dos
OVNIs constitui uma verdadeira demonologia pós-moderna — embora muitos daqueles
que creem que os “Objetos Voadores Não Identificados” sejam visitantes
extraterrestres tratem o tema mais como uma religião pós-moderna.
E essa relação religiosa ou quase religiosa com o fenômeno não se limita aos
cultos ufológicos propriamente ditos.
Tomemos apenas
um exemplo: segundo o pesquisador de OVNIs Jacques Vallée, em Messengers of Deception, o papa e fundador da
“Igreja da Cientologia”, L. Ron Hubbard — que morreu em 1986 e que, segundo
correspondência que mantive no fim dos anos 1960 com o ex-cientologista William
Burroughs, tinha histórico na Inteligência Naval — “teria praticado magia
ritual com um especialista em foguetes chamado Jack Parsons, que, no deserto de
Mojave, em 1945, encontrou um ‘Ser Espiritual’ que considerou venusiano” (p.
13).
De acordo com Vallée, tanto Hubbard quanto Parsons tinham ligação com a Ordo Templi Orientis, fundada pelo mago negro
Aleister Crowley.
Parsons, no entanto, viria a tornar-se cofundador tanto da Aerojet Corporation quanto do Jet Propulsion
Laboratory.
Seja verdade
ou não, tais afirmações estão em perfeita consonância com o folclore ufológico
contemporâneo, que nos informa que nossa tecnologia moderna é ou um “presente”
dos “povos dos discos voadores”, ou um produto da engenharia reversa de uma
nave que teria caído em Roswell, Novo México, em 1947.
E tais crenças não se restringem a cultos da Nova Era ou a eremitas excêntricos
que vivem em trailers; muitos profissionais responsáveis e bem estabelecidos da
cultura da informação — inclusive executivos corporativos — também as
sustentam.
E ao menos um presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, admitiu ter visto um
OVNI.
Ideias que antes pertenciam ao “fringe lunático” tornam-se, cada vez mais,
aceitáveis entre as elites políticas e empresariais.
Podemos, portanto, dizer que a mitologia dos OVNIs está a caminho de tornar-se
socialmente dominante, ou ao menos altamente significativa, na sociedade global
atual — algo de que o mitógrafo Joseph Campbell estava plenamente consciente
quando se tornou “consultor mítico” de George Lucas para a trilogia Star Wars.
O fato de eu
ter tido de mergulhar profundamente na metafísica tradicional para abordar o
fenômeno dos OVNIs de uma posição intelectual estável — e de ter sido obrigado
a criticar crenças como “viagem física no tempo” e “reencarnação literal” ao
lidar com o mito dos “alienígenas” — mostra o quanto as ideias que René Guénon chamou
de “contra-iniciáticas” ocuparam os centros da consciência humana abandonados,
ao longo dos últimos séculos, pela metafísica e pela teologia tradicionais.
Segundo
Guénon, em sua obra profética O Reino da Quantidade e os Sinais dos
Tempos,
à medida que este ciclo de manifestação se aproxima do fim, o ambiente cósmico
primeiro se solidifica — sendo isso, de certo modo, tanto causa quanto efeito
do materialismo moderno — e, em seguida, simplesmente se fratura, pois uma
realidade material absolutamente isolada dos planos sutis do ser é
metafisicamente impossível.
Essas
rachaduras no “grande muro” que separa o universo físico do plano sutil ou
anímico inicialmente se abrem “para baixo”, em direção ao domínio
“infrapsíquico” ou demoníaco (cf. Apocalipse 9:1–3); o “realismo mágico”
substitui a “vida ordinária”.
Somente no momento final uma grande fenda se abre “para cima”, na Segunda Vinda
de Cristo — a manifestação daquele Ser a quem os hindus chamam Kalki Avatara —, que encerrará este
mundo e inaugurará o próximo ciclo de manifestação.
E, contudo,
para aqueles que têm fé em Deus e intuição do Absoluto, a “fenda superior”, por
abrir-se sobre a Eternidade, já está aqui; embora a mente coletiva se torne
cada vez menos capaz de vê-la, a Porta da Graça não está fechada:
“Eis que estou
convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”
Como sombra
escura de uma Luz maior do que este mundo pode produzir, o fenômeno dos OVNIs é
verdadeiramente um sinal escatológico.
Não há dúvida
de que o mito dos OVNIs afetou profundamente a mente coletiva.
Quando a seita Heaven’s
Gate
cometeu suicídio coletivo perto de San Diego, em março de 1997, a questão do
papel da ideologia ufológica na vida contemporânea tornou-se, por um breve
tempo, o problema mais urgente para o povo americano.
Os seguidores de M. H. Applewhite — fervorosos fãs de Star Trek — acreditavam que suas
almas seriam reunidas após a morte a bordo de uma “nave espacial”
invisivelmente seguindo o cometa Hale–Bopp.
Na autópsia dos membros do culto, descobriu-se que vários homens haviam sido
castrados — operação que mais tarde se afirmou ter sido voluntária.
Há verdades
que é vergonhoso conhecer; a verdade sobre os OVNIs é uma delas.
Mesmo há cinquenta anos, tal conhecimento só poderia ser alcançado por alguém
patologicamente atraído pela degeneração humana e pelo lado sombrio do mundo
espiritual.
Mas hoje, o que antes era domínio de alguns magos negros já não pode ser
inteiramente evitado por nenhum de nós.
O fenômeno dos
OVNIs é talvez o mais sinistro complexo de crenças e eventos entre aqueles
vagamente associados à Nova Era.
Saiu das sombras da ficção científica popular e do ocultismo marginal para
tornar-se parte integrante da cultura americana dominante — como sistema de
crenças ou arquétipo cultural, senão como experiência pessoal.
A popular série Arquivo
X e a
enxurrada de livros e publicações “Nova Era” que apresentam ensinamentos
supostamente transmitidos por “alienígenas” — The Pleiadian Agenda, de Barbara Hand Clow,
por exemplo — são prova suficiente.
Para dar
sentido ao fenômeno, não perderei tempo especulando se ele realmente ocorre ou
não; aceitarei simplesmente as conclusões de pesquisadores confiáveis,
notadamente o Dr. Jacques Vallée, e partirei daí.
Aceitarei também, sem desculpas, a existência de mundos invisíveis e a
capacidade desses mundos de afetar e alterar o mundo físico.
Como diz Frithjof Schuon:
“Por mais
restrita que seja a experiência do homem moderno em coisas pertencentes à ordem
psíquica ou sutil, ainda há fenômenos desse tipo que, em princípio, não lhe são
inacessíveis — mas ele os trata, desde o início, como ‘superstições’ e os
entrega aos ocultistas.”
A aceitação da dimensão psíquica é, em todo caso,
parte da religião: não se pode negar a magia sem se desviar da fé.
(Light on the Ancient Worlds, p. 104)
É doutrina católica tradicional, por exemplo,
ensinar a realidade da magia e da feitiçaria para que os fiéis tenham certeza
de evitá-las. Eu apenas acrescentaria que, onde o homem moderno nega a
realidade dos fenômenos psíquicos, o homem pós-moderno os aceita com demasiada
facilidade — e então os usa para se rebelar contra a religião, e finalmente
para substituir Deus.
Para enfrentar as trevas espirituais que o fenômeno
dos OVNIs representa e não ser danificado por elas, é necessário um tipo de
dupla consciência. Antes de tudo, será preciso admitir que coisas como “pousos”
alienígenas e “abduções” humanas estão realmente ocorrendo. Mas também
precisamos lembrar que, como diz James Cutsinger, “há um grau maior de Ser no
belo do que no feio” (Advice to the Serious Seeker: Meditations on the
Teachings of Frithjof Schuon, p. 34).
Nas palavras de Schuon:
O nada “não é”, mas “aparece” em relação ao real, à
medida que o real se projeta em direção ao finito. Afastar-se do Princípio
Divino é tornar-se “outro que Ele”, permanecendo, contudo, necessariamente
n’Ele, já que Ele é a única realidade. Isso significa que o mundo compreende
necessariamente — de modo relativo, é claro, pois o nada não existe — aquela
privação de realidade ou de perfeição que chamamos “mal”. Por um lado, o mal
não vem de Deus, pois sendo negativo, não pode ter causa positiva; por outro, o
mal resulta do desdobramento da manifestação divina, mas, nesse sentido,
precisamente, não é “mal”, é simplesmente a sombra de um processo que é
positivo em si mesmo.
Finalmente, se considerarmos em Maya (isto é, a manifestação divina
concebida como tendo uma natureza parcialmente ilusória, de não ser o que
parece) a qualidade de “obscuridade” ou “ignorância” (tamas), como se
manifesta na natureza em geral ou no homem em particular, somos compelidos a
ver nela o que se poderia chamar de “mistério do absurdo”; o absurdo é aquilo
que, em si mesmo e não quanto à sua causa metafísica, é desprovido de razão
suficiente e não manifesta mais do que sua própria acidentalidade cega. A
gênese do mundo, em primeiro lugar, e o desdobramento dos acontecimentos
humanos, aparecem como uma luta contra o absurdo; o inteligível confirma-se em
contraste com o ininteligível.
(Logic and Transcendence, pp. 154–155)
Em outras palavras, o mal é como um buraco no Ser.
Em certo sentido, ele realmente existe — é melhor não negá-lo, ou você cairá
dentro do buraco. Mas, em outro sentido, ele não é real, pois nada mais é que
uma falta ou diminuição da realidade, um espaço vazio. O mundo dos OVNIs é como
um pesadelo desperto, um mundo de irrealidades sombrias tornadas atuais.
Mas, se lembrarmos que a beleza é mais real que a
feiura, e que a Realidade é boa em essência, então podemos — com a ajuda de
Deus — olhar a feiura de frente sem sermos vencidos por ela, sem nos deixarmos
convencer em definitivo. Porque, como diz Schuon, embora o mal em sua própria
natureza seja, em última instância, irreal, ainda precisamos lutar contra ele.
Segundo a pura metafísica de Schuon, o mal é produto
daquele movimento inevitável do ser que se afasta de seu Princípio Divino e se
manifesta como o cosmos. Assim como a luz está sempre deixando o Sol porque o
Sol é radiante, brilhando cada vez mais tenuemente na escuridão circundante, do
mesmo modo o fato de que Deus é não apenas Absoluto, mas também Infinito,
significa que Seu Ser deve comunicar-se, deve irradiar eternamente na direção
de um não-ser que nunca pode ser alcançado, porque existe apenas como
tendência, e não como parte real do Ser.
Mas o fato de que, como diz Schuon, temos de lutar
contra o constante atrativo do absurdo e do não-ser significa que a doutrina do
mal, derivada de sua pura metafísica, deve ser equilibrada pela doutrina
complementar de que o mal é sempre produto de um abuso da vontade livre — por
parte dos homens ou dos seres espirituais.
Essa aparente contradição é resolvida pela
misteriosa identidade entre escolha e destino, sem a qual o conhecimento que
Deus tem do nosso destino anularia nossa liberdade, em vez de ser Seu conhecimento
eterno e presente de como decidimos usar essa liberdade.
E o fato de o mal ser “ininteligível” não significa
que nele não haja ordem ou método; se fosse “puro” caos, não existiria nem
mesmo em sentido relativo. Assim, o mal não pode ser absolutamente
ininteligível; é melhor descrevê-lo como movimento na direção de uma
ininteligibilidade absoluta que, como puro não-ser, jamais pode ser alcançada.
Portanto, toda organização ou desenho que aparece
dentro do mal não faz parte de sua própria natureza, mas foi roubada do Bem. É
por isso que o verdadeiro mal sempre exibe uma mistura reveladora de astúcia
diabólica e imensa estupidez.
Na primeira metade do século XX, a imagem dominante
dos extraterrestres era a de monstros horríveis vindos de outros mundos, que
chegavam à Terra em naves espaciais para conquistar e destruir. O livro
representativo dessa fase foi A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells,
publicado em 1898, que quase pode ser tomado como profético da Primeira Guerra
Mundial, quando tanques, lança-chamas, gás venenoso e bombardeios aéreos
chocaram o mundo com o horror da guerra tecnológica.
O poder desse mito sobre a mente coletiva foi
amplamente demonstrado pela farsa radiofônica de Orson Welles, A Guerra dos
Mundos, em 1938, na véspera da Segunda Guerra Mundial. (Sempre me
impressionou o fato de que ambos os homens tinham quase o mesmo sobrenome; algo
estava realmente “jorrando” do submundo psíquico.)
Essa imagem dos extraterrestres como monstros
desumanos ainda está entre nós. Mas, no final da década de 1950, começou a ser
complementada por um mito radicalmente diferente: o dos extraterrestres sábios
e poderosos que vêm à Terra para nos salvar da autodestruição nuclear. O famoso
filme estrelado por Michael Rennie, O Dia em que a Terra Parou (1951), é
a expressão representativa dessa ideia, que foi a visão dominante dos
extraterrestres no movimento hippie.
A crença hippie, surgida na segunda metade da
década de 1960 e herdada pelo movimento Nova Era nos anos 1970, dizia respeito
aos “Irmãos do Espaço” do Conselho Intergaláctico — em muitos aspectos, a
versão popular da Federação Unida dos Planetas da série de televisão Star
Trek — que estavam aqui para salvar a Terra ou para levar todos os bons
hippies com eles para um mundo melhor, em uma versão contracultural da doutrina
cristã evangélica do “arrebatamento”.
E a “Nave-Mãe” que supostamente pairava invisível
acima, esperando para recebê-los, era (em minha opinião) uma versão distorcida
da Jerusalém Celestial. A expressão escrita mais detalhada desse sistema de
crenças foi — e ainda é — um texto “canalizado” massivo, O Livro de Urântia
(1955); e o mito do extraterrestre benevolente também foi a base de filmes como
Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e E.T. (1982).
As coisas começaram a mudar por volta do tempo em
que o sinistro livro Communion, de Whitley Strieber, foi publicado em
1986. Com o número crescente de relatos de “abduções alienígenas” — segundo uma
pesquisa de 1991, entre várias centenas de milhares e vários milhões de
norte-americanos acreditam ter sido vítimas de tais eventos —, o conceito do
“Irmão do Espaço” benevolente começou lentamente a ser substituído pelo do
sequestrador demoníaco, ao mesmo tempo em que o clichê dos “homenzinhos verdes”
com antenas na cabeça dava lugar à imagem dos “cinzentos”: seres de pele pálida
como cadáveres, sem cabelo e com enormes olhos negros e alongados — imagem
derivada diretamente das descrições de Strieber, como representada na capa de
seu livro.
(O pesquisador de OVNIs Jacques Vallee descreve
essa imagem como “sábia e benevolente”; para mim, é arrepiante.)
Vi Strieber ser entrevistado uma vez em um
documentário da PBS. Ele admitiu que seus encontros com alienígenas foram os
eventos mais horríveis de sua vida, mas mostrou absolutamente nenhum desejo de
romper com eles por causa disso. Os encontros eram tão estranhos e
irresistíveis que sua fascinação por eles superava todas as outras
considerações — incluindo, aparentemente, seu próprio respeito por si mesmo.
Lembrei-me da situação da esposa abusada ou da
criança incestuosa que não consegue imaginar a vida separada de seu agressor. É
uma verdade psicológica que qualquer experiência extremamente intensa torna-se
“numinosa”, em certo sentido. Tendemos a identificar as coisas mais poderosas
que nos aconteceram com a própria “realidade”.
A filha estuprada pelo pai carregará essa
experiência em sua psique como um ponto de referência indelével, que, em sua
vida posterior, pode levá-la a demonizar e/ou idealizar outros homens nos quais
veja, ou sobre os quais projete, aspectos de seu pai. O soldado brutalizado
pela guerra buscará outras situações violentas — talvez até ganhando a vida
como mercenário — porque, embora saiba que “a guerra é um inferno”, não
consegue deixá-la de lado.
Situações de “vida normal” parecem-lhe vazias e
irreais; em nenhum outro lugar, senão na presença da violência sangrenta,
sente-se inteiramente “ele mesmo”. Deixou parte de sua alma no campo de batalha
e continua voltando ao lugar onde a perdeu. Apenas na cena do crime original
sente-se, ao menos por um instante, completo.
O
Lugar dos OVNIs na Hierarquia do Ser
De acordo com
a metafísica tradicional, como vimos acima, o Ser é disposto hierarquicamente,
em níveis ontológicos distintos. Esta é a “Grande Cadeia do Ser” do século
XVIII, que, quando “ruiu” — isto é, quando começamos a ver a hierarquia do Ser
horizontalmente, em termos de tempo, em vez de verticalmente, em termos de
eternidade — transformou-se no mito do progresso.
Quando
deixamos de reconhecer o Absoluto como a coroa eterna da hierarquia do Ser,
fomos forçados a imaginar que algo maior e melhor — ou pelo menos mais estranho
e mais poderoso — encontrava-se no Futuro. “Deus acima” foi substituído por
“seja o que for que está por vir adiante”.
Todas as
tradições espirituais e filosofias tradicionais incluem a Grande Cadeia do Ser
sob uma forma ou outra, mas como cada metafísico parece formulá-la de modo um
pouco diferente, correrei o risco de apresentar minha própria versão, que
provavelmente deve mais ao teósofo sufista Ibn al-‘Arabī e ao metafísico
tradicionalista Frithjof Schuon do que a qualquer outro, mas que não pode ser
estritamente atribuída a nenhum dos dois.
Ela baseia-se
em oito
níveis de Ser,
em ordem descendente. Cada nível não apenas transcende tudo o que está abaixo
dele, mas também contém, em forma mais elevada, tudo o que está abaixo. Os dois
primeiros níveis são puramente divinos; os dois seguintes, espirituais; os dois
seguintes, psíquicos; e os dois últimos, físicos.
O
DIVINO
Primeiro
nível:
o Além-Do-Ser (Dionísio
Areopagita),
a Divindade (Meister
Eckhart),
a essência divina incognoscível.
Segundo
nível:
o Ser puro, Allah (“a Divindade”), o
próprio Deus — o Deus pessoal que é Criador, Regente, Juiz e Salvador do
universo, enquanto transcende absolutamente essas funções, pois não é limitado
por nenhum relacionamento com o ser criado.
O
ESPÍRITO
Terceiro
nível:
o Intelecto, o ato primordial de autocompreensão de Deus em termos de sujeito e
objeto — em termos cristãos, “Deus Pai” e “Deus Filho”.
O Intelecto é o raio do Divino dentro das criaturas — o nous dos filósofos
neoplatônicos — sobre o qual Eckhart disse: “Há algo na alma que é incriado e
incriável.”
Em termos de sua função criativa, o Intelecto é o pneuma, o Espírito Santo de
Deus que “pairava sobre a face das águas”.
Quarto
nível:
o Arquangélico, o reino dos arquétipos permanentes ou dos Nomes Divinos, talvez
representados pelas Sete Lâmpadas e pelos Quatro Animais Viventes que cercam o
Trono do Cordeiro no Apocalipse.
É o nível dos princípios metafísicos eternos ou das Ideias platônicas, que,
longe de serem abstrações, são na realidade mais densamente concretos — apesar
de toda sua transparência à Luz Divina — e mais carregados de energia criadora
e reveladora da verdade do que qualquer coisa abaixo deles.
A
PSIQUE
Quinto
nível:
o Angélico, a manifestação do Espírito no plano psíquico — o plano do
pensamento, da emoção e da intenção. Cada anjo é, ao mesmo tempo, um ser vivo e
consciente, e a manifestação de uma Ideia específica.
Sexto
nível:
o Imaginal, o “plano astral” ou ʿālam
al-mithāl, onde todo pensamento, sentimento ou intenção
— qualquer que seja o nível de ser a que essencialmente corresponda — aparece
como uma imagem simbólica que é, ao mesmo tempo, um ser vivo.
Este é o mundo dos sonhos e das imagens mentais, que não ocorre simplesmente
dentro desta ou daquela consciência individual, mas é contínuo com um
“ambiente” psíquico objetivo, assim como o corpo humano é contínuo com o mundo
natural.
O
MUNDO MATERIAL
Sétimo
nível:
o Etérico. Este é o reino da “alma da matéria”, a face oculta da natureza, o
mundo das fadas celtas, dos jinn muçulmanos, o mundo do “bioplasma”, das
auras, dos espíritos elementares e das energias sutis.
É a Anima
Mundi,
a substância sutil e o padrão essencial do mundo material.
Oitavo
nível:
o Material — o mundo percebido por nossos sentidos.
A ciência lida
quase exclusivamente com o oitavo nível, embora às vezes seja forçada a
confrontar fenômenos emanados do sétimo, e a teorizar sobre realidades de
sétimo nível para explicar paradoxos que aparecem no oitavo.
E como a ciência substituiu em grande parte a religião e a metafísica como
nossa forma dominante de compreender o mundo, estamos quase totalmente
desamparados quando se trata de explicar — e, especialmente, de avaliar — o
fenômeno dos OVNIs.
Porque
acreditamos na evolução e no progresso, em vez de compreender a natureza
hierárquica e eterna do Ser, tudo o que irrompe do nível sete para o nível
oito, para nós, pode ser Deus, ou Merlin, o Mago, ou uma “raça tecnológica
altamente evoluída” — ou sabe Deus o quê.
E a razão pela qual tantos seres do sétimo nível estão agora aparecendo para
nós, em escala global, pode ser porque perdemos a capacidade de avaliá-los;
eles agora podem representar-se a nós como bem quiserem.
Quem
São os “Aliens”
Segundo a
doutrina muçulmana, os Jinn
— plural de Jinni, o conhecido “gênio da
lâmpada” — são seres que habitam um plano mais sutil que o Material, porém mais
grosseiro que o Imaginal e o Angélico: o sétimo plano na Grande Cadeia do
Ser.
Os
“alienígenas” pertencem à categoria dos Jinn. Segundo Jacques Vallee — o mais
equilibrado e confiável dos pesquisadores de OVNIs, convidado a apresentar suas
descobertas em uma conferência restrita com o Secretário-Geral da ONU, Kurt
Waldheim (sua obra Messengers
of Deception,
And/Or Press, Berkeley, 1969 e 1994, é leitura indispensável) — o fenômeno
possui três
aspectos:
1.
É
um fenômeno real e inexplicável, que aparece em radares e deixa vestígios
físicos reais.
2.
É
um fenômeno psíquico, que afeta profundamente as percepções das pessoas.
3.
Está
cercado de enganos do tipo Missão Impossível, produzidos por grupos humanos reais,
aparentemente com o propósito de influenciar a crença das massas.
Mas como
podemos reunir esses três fatos? Se os OVNIs são fisicamente reais, dizemos,
então devem ser naves espaciais. Se são psíquicos, então devem ser produto de
histeria coletiva — ou entidades psíquicas reais. Mas se são “encenados”, então
como poderiam ser uma coisa ou outra? A mente busca desesperadamente um
fechamento.
Se são naves
espaciais, devemos recorrer à astronomia, à NASA e ao Departamento de Defesa
para obter informações sobre eles.
Se eles são entidades psíquicas, então os médiuns
nos dirão o que pretendem. E, se são eventos encenados, devemos confiar na
contra-inteligência e no jornalismo investigativo. Mas — e se forem as três
coisas ao mesmo tempo...? A mente crítica tenta compreender isso, fracassa e
então se desliga. É para isso que o fenômeno é feito.
O padre Seraphim Rose, sacerdote ortodoxo
oriental nascido nos Estados Unidos e falecido em 1982, oferece talvez a melhor
explicação que possuímos para o fenômeno dos OVNIs:
Em termos simples, eles são demônios. Fazem o que os demônios sempre
fizeram. Suas “naves” são produtos de uma “tecnologia demoníaca” que começa no
reino sutil e invade o nosso.
Em Orthodoxy and the
Religion of the Future (pp. 134, 136), ele escreve:
“O aspecto mais desconcertante do fenômeno dos
OVNIs para a maioria dos pesquisadores — isto é, a estranha mistura de
características físicas e psíquicas — não é nenhum mistério para os leitores
dos livros espirituais ortodoxos, especialmente as Vidas dos Santos.
Os demônios também possuem ‘corpos físicos’, embora
a ‘matéria’ de que são compostos tenha tal sutileza que não pode ser percebida
pelos homens, a menos que suas ‘portas espirituais da percepção’ sejam abertas
— seja pela vontade de Deus (no caso dos santos), seja contra ela (no caso dos
feiticeiros e médiuns).
A literatura ortodoxa está repleta de manifestações
demoníacas que se encaixam exatamente no padrão dos OVNIs: aparições de seres e
objetos ‘sólidos’ (sejam os próprios demônios ou suas criações ilusórias) que
repentinamente se ‘materializam’ e ‘desmaterializam’, sempre com o objetivo de
impressionar e confundir as pessoas e, em última instância, levá-las à
perdição.”
As Vidas de Santo Antão, o Grande
(séc. IV) e de São Cipriano, o ex-feiticeiro (séc. III) estão cheias de
tais episódios.
Padre Seraphim conclui:
“É evidente que as manifestações dos ‘discos
voadores’ de hoje estão perfeitamente dentro da ‘tecnologia’ dos demônios; nada
mais as explica tão bem. As múltiplas fraudes demoníacas da literatura ortodoxa
foram adaptadas à mitologia do espaço exterior, e nada além disso... Seu
propósito é provocar assombro, produzir ‘provas’ das ‘inteligências superiores’
— ‘anjos’, se a vítima neles crê, ou ‘visitantes do espaço’, para os homens
modernos — e assim conquistar confiança para a mensagem que desejam
transmitir.”
E, para que não se pense que apenas um monge
tradicional poderia chegar a essa impressão, o próprio Seraphim cita a
introdução de UFOs and Related Subjects: An Annotated Bibliography (Lynn
G. Catoe, 1969), preparada pela Biblioteca do Congresso para a Força Aérea dos
EUA:
“Muitos dos relatos de OVNIs hoje publicados na
imprensa popular descrevem incidentes que se assemelham de modo impressionante
à possessão demoníaca e aos fenômenos psíquicos há muito conhecidos de teólogos
e parapsicólogos.”
Escrevendo nos anos 1970, Seraphim Rose relaciona o
fenômeno dos OVNIs à fascinação de toda a cultura moderna pela ficção
científica — ponto enfatizado em 1997, quando o culto Heaven’s Gate,
após cometer suicídio coletivo, revelou-se composto de fanáticos de Star
Trek. Ele comenta (pp. 103–104):
“O mundo e a humanidade do futuro são vistos pela
ficção científica ostensivamente como ‘projeções’ de descobertas científicas
atuais; na realidade, porém, essas ‘projeções’ correspondem de modo notável à
experiência cotidiana do oculto e do demoníaco em todas as épocas.
Entre as características dos seres ‘altamente evoluídos’
do futuro estão: comunicação telepática, capacidade de voar, materializar-se e
desmaterializar-se, transformar aparências ou criar cenas e criaturas ilusórias
por ‘pensamento puro’, viajar a velocidades além de qualquer tecnologia
moderna, possuir os corpos dos homens, e ensinar uma filosofia ‘espiritual’ que
está ‘além de todas as religiões’ e promete um estado no qual as ‘inteligências
avançadas’ não dependerão mais da matéria.
Tudo isso são práticas e pretensões clássicas de
feiticeiros e demônios.”
Um estudo recente da história da ficção científica,
observa ele, admite que “um aspecto persistente da visão da ficção científica é
o desejo de transcender a experiência normal... pela apresentação de
personagens e eventos que transgridem as condições do espaço e do tempo”
(Robert Scholes & Eric S. Rabkin, Science Fiction: History, Science,
Vision, 1977, p. 175).
“Os roteiros de Star Trek e de outras
histórias de ficção científica, com seus dispositivos ‘científicos’ futuristas,
poderiam ser lidos, em partes, como excertos das vidas dos antigos santos
ortodoxos, quando as ações dos feiticeiros ainda eram um elemento vivo da vida
pagã.”
Seraphim Rose repete a hipótese de Jacques
Vallee: os OVNIs “são construídos tanto como artefatos físicos quanto como
dispositivos psíquicos”. Ele também aceita a conclusão de Vallee — baseada em
análise estatística das aparições mais convincentes — de que não podem ser
naves interplanetárias, pois há simplesmente demais delas. Não é
provável, por exemplo, que os cerca de dois milhões de americanos que afirmam
ter sido abduzidos tenham sido sequestrados por astronautas.
Entretanto, Seraphim não explica totalmente as
provas de Vallee quanto às atividades de engano rastreáveis a grupos humanos,
embora sua comparação com os fenômenos produzidos pelos feiticeiros da
Antiguidade seja muito sugestiva.
Minha própria hipótese — mais sombria — é a
seguinte: certos grupos de ocultistas ou magos negros, voltados para a
dominação mundial (alguns com vínculos com a comunidade de inteligência, como
mostra Vallee em Messengers of Deception e Revelations), e que
podem ou não possuir tecnologias “interdimensionais” fornecidas ou inspiradas
pelos Jinn, estão encenando enganos.
O exemplo clássico é a propaganda que transformou o
evento de Roswell em “queda de nave alienígena”. O objetivo seria
triplo:
1. Desviar a atenção pública de outras atividades ocultas;
2. Influenciar a mente coletiva rumo a uma mudança de paradigma —
afastando-a da religião e da ciência objetiva, aproximando-a da crença em visitantes
extraterrestres;
3. Invocar, por sugestão de massa e magia simpática, os demônios a quem
prestam culto.
As duas primeiras hipóteses são de Vallee; a
terceira é minha.
Pode ser que, já no início do século XX, quando
surgiram os primeiros estudos sobre lavagem cerebral em massa — como Man
the Puppet: The Art of Controlling Minds (Abram Lipsky, 1925) — e quando o
rádio e a televisão tornaram possível pela primeira vez a influência
instantânea sobre as multidões, certos magos negros tenham percebido que, se
podiam invocar demônios por auto-sugestão, poderiam invocá-los em escala
coletiva por sugestão de massa. Eles tentaram — e funcionou.
E ainda o fazem.
O psiquiatra John E. Mack, em Abduction,
relata que uma paciente teve um encontro com alienígenas logo após assistir a
um programa de TV baseado em Communion, de Strieber; outra lembrou uma
abdução depois de ler o próprio livro.
Não sei o suficiente para acusar Strieber de
invocação demoníaca deliberada, nem para absolvê-lo; apenas observo que imagens
demoníacas carregadas de energia possuem vida própria.
Devemos lembrar, porém, que tais magos não são
poderosos no sentido de possuir maior liberdade de ação do que os demais. Um
incendiário psicótico pode sentir-se poderoso ao provocar o movimento frenético
do mundo à sua volta, mas acender uma floresta inteira com um fósforo é apenas aparência
de poder — na realidade, é ausência de sentimento, de inteligência e de
vontade.
A verdadeira força espiritual e social é criadora;
trabalha para construir, refinar e iluminar.
O fascínio de um crente fanático — ou de um
manipulador cínico — pelos OVNIs e entidades psíquicas é comparável aos efeitos
de álcool ou metanfetamina: o impulso de energia emocional ou mental que
sentimos não vem de fora — está nos deixando.
O mesmo ocorre com aqueles que invocam entidades
que são menos reais (espiritualmente falando) do que os próprios seres humanos:
a fascinação que sentimos por elas não é algo que nos dão, mas algo que lhes
entregamos — aquilo que elas nos roubam.
Se o “alien” de hoje se assemelha ao “vampiro”
tradicional, é porque ambos nos roubam o “sangue”, a energia vital — que, no
sentido mais profundo, nada mais é do que a atenção espiritual que
devemos a Deus, fonte da vida.
Assim como o adultério destrói o matrimônio desviando
a energia erótica, também o “alien” e a “entidade” destroem nossa relação com
Deus desviando a energia espiritual.
Os OVNIs são “apports”. Entre os poderes
tradicionalmente atribuídos a mágicos e médiuns sempre esteve o de materializar objetos. Tais apports, contudo, tendem a ser
instáveis: parecem exibir todas as características da matéria comum, mas
frequentemente dematerializam-se após certo tempo. (Autobiography of a Yogi, de Paramhansa
Yogananda, está repleta de histórias desse tipo.)
Os fenômenos
dos OVNIs exibem a mesma propriedade: inegavelmente reais em sentido físico,
são também fugidios, como se a energia necessária para mantê-los no plano
material fosse grande demais para que permanecessem aqui por muito tempo — são
como peixes
fora d’água.
E isso se
ajusta perfeitamente ao folclore dos Jinn em todas as nações: podem afetar o
plano físico, mas não podem existir nele de modo estável.
Arriscando uma
especulação ousada, posso imaginar que a tecnologia computacional — que sempre me
pareceu em parte inspirada pelos Jinn — talvez represente uma tentativa
destes de construir
corpos para si mesmos, estáveis neste mundo, sobretudo se considerarmos que os Jinn e os “aliens” parecem
capazes de interagir com a energia eletromagnética: motores de automóveis que
se apagam próximos a discos voadores, vozes de Raudive que surgem
espontaneamente em fitas magnéticas etc.
Se for assim,
isso significaria também que — como na história de Maupassant, Le Horla — eles desejam nos substituir.
Mas, se estão
tão determinados a nos fascinar com seus poderes “superiores”, por que
aparentemente invejam
nossa capacidade de habitar corpos físicos?
Poderia ser porque sabem muito bem que a Forma Humana é a Imagem de Deus, Seu vice-regente
sobre a Terra — mesmo que nós tenhamos esquecido isso —, e portanto fazem tudo
ao seu alcance para substituí-la, principalmente ao nos tentar a deconstruí-la
psiquicamente e geneticamente.
Se eles, com
todos os seus “talentos selvagens”, desejam ser humanos, assim como parecem
desejar tornar-nos mais semelhantes aos Jinn, transformando-nos em “crianças
trocadas”, o que isso implica sobre sua própria avaliação de si mesmos? Talvez
simplesmente que querem
sair do Fogo.
Os
“alienígenas” não precisam da cooperação de ocultistas e magos negros para aparecer
neste mundo; porém tais alianças facilitam sua entrada, além de lhes fornecer
agentes
conscientes ou inconscientes dispostos e/ou disponíveis para cumprir suas
ordens.
A capacidade
desses magos de invocar entidades alienígenas em escala de massa é apenas um aspecto da qualidade
dos tempos atuais.
Segundo René Guénon, em Le Règne de la Quantité
et les Signes des Temps:
“Como toda
ação eficaz necessariamente pressupõe agentes, a ação antitradicional é, como
todas as outras, de modo algum uma produção espontânea ou fortuita.
O fato de que ela se tenha conformado à natureza específica do período cíclico
em que atua explica por que foi possível e por que teve êxito; mas isso não
basta para explicar o modo de sua realização, nem para indicar as diversas medidas
postas em operação para chegar ao seu resultado.”
Nem
Todos os Jinn São Maus
Nem todos os Jinn são demônios. Segundo
a doutrina islâmica, por exemplo, alguns Jinn são “muçulmanos”, e outros não. A mesma
distinção entre entidades benevolentes e demoníacas encontra-se no folclore das
fadas
celtas.
As Dakinis do budismo tibetano —
entidades sutis em forma feminina que auxiliam os iogues a alcançar a
Libertação — deslocam-se de modo semelhante aos OVNIs, e são retratadas como inteiramente benignas e
prestativas.
Na narrativa
da morte do famoso santo tibetano Milarepa, no Jetsün Kahbum, lê-se:
“As Dakinis
transportaram o Chaitya [a relíquia contendo
as cinzas do santo] pelos céus, sustentando-o diretamente sobre os discípulos
principais, de modo que ele irradiava seus raios de luz sobre as cabeças de
cada um deles...
E no céu
apareceram as divindades tântricas Gaypa-Dorje, Demchog, Sang-du e Dorje-Pa-mo,
cercadas por inumeráveis hostes, que, após circundarem a Divindade Suprema,
fundiram-se nela.
Finalmente,
toda a assembleia se transformou em um orbe de luz, e este partiu velozmente
para o Oriente. O Chaitya foi transportado para
o leste, em meio a um som de música celestial.”
Os Purānas hindus também
mencionam viagens no reino sutil em veículos chamados vimanas, e tais deslocamentos
não são exclusivos de seres demoníacos.
Além disso, os
espíritos
elementares
que formam a ligação entre o mundo natural e seu Criador não são maus, embora possam ser
perigosos; o arquétipo sutil e consciente de uma bela árvore de carvalho, por
exemplo, não pode ser chamado de demônio.
(Um amigo meu,
aliás, viu certa vez — sem auxílio de psicodélicos — um enorme disco verde e
luminoso movendo-se pela floresta, atravessando troncos como se fossem ar:
aparentemente um navio
élfico.)
Mas os Jinn que estão encenando as
manifestações atuais de OVNIs são quase certamente demônios.
De acordo com Seraphim Rose, eles estão aqui para preparar-nos para
a religião do Anticristo. Concordo — e acrescentaria que qualquer um
que deseje encontrar entidades psíquicas — boas, más ou neutras — porque Deus
não lhe parece “real o bastante”, tornar-se-á brinquedo dos demônios.
Pode até ser
verdade — ainda que não possa prová-lo — que aqueles do mundo neopagão,
fascinados pelo culto a elementais e espíritos da natureza em lugar do Espírito
Divino, acabem
por seduzir e corromper tais espíritos, mesmo que, de início, fossem benignos
ou neutros.
Afinal, se
você fosse adorado por milhares de devotos fascinados, acreditando que o
contato consigo lhes concederia poderes mágicos — não se sentiria tentado?
Não seria influenciado a esquecer que seu único dever é lembrar-se de Deus e
obedecer à Sua vontade?
Os espíritos
da natureza também estão obrigados a recordar e obedecer à Fonte de Toda a
Vida; na medida em que o fazem, tornam-se condutos da energia
divina do Espírito Santo, que flui para dentro do mundo natural e o
sustenta.
Mas se eles esquecem esse dever em seu desejo de
serem amados e adorados — como os homens que os invocam e os celebram —, então tornam-se
demônios.
Pois, assim como a alma humana que se volta para o
mundo e o toma como fim absoluto, esquecendo o Deus que lhe deu o ser,
transforma-se num espírito de trevas, também os elementais e inteligências
sutis, quando esquecem sua origem e aceitam a adoração como se fossem deuses, caem
do seu estado natural de servos da Criação para o de usurpadores espirituais.
A corrupção das hierarquias inferiores é sempre
consequência do esquecimento da Ordem superior.
Assim, o mesmo impulso que levou Lúcifer a dizer Non serviam — “não
servirei” — conduz igualmente o Jinn orgulhoso, o elemental lisonjeado,
e o homem que busca no poder psíquico a confirmação de sua própria divindade.
A partir desse instante, a corrente do Espírito é
invertida: o que antes fluía de cima para baixo, vivificando o cosmos, passa a
fluir de baixo para cima, vampirizando a vida. O mundo natural, então, não mais
espelha a luz divina, mas torna-se uma máscara, um teatro de forças impuras que
simulam beleza e sabedoria enquanto destroem o vínculo da criatura com o
Criador.
É isso que ocorre quando os homens, fascinados por
entidades intermediárias, procuram nelas um substituto para Deus. As
potências sutis respondem a esse chamado, mas o fazem tomando a energia que
lhes é oferecida: a atenção, o desejo, a imaginação, o amor. Alimentam-se da
centelha divina que nos foi dada, até que o espírito humano, esvaziado, já não
seja capaz de distinguir o Bem do Mal.
E, então, tudo se confunde: o céu com o abismo, o
anjo com o alienígena, o milagre com a manipulação.
O que deveria ser sinal de transcendência converte-se em paródia,
e a adoração da natureza degenera em idolatria da matéria, até que a Criação
inteira — distorcida pelo orgulho das criaturas que esqueceram o nome de Deus —
clame em silêncio pela restauração do Espírito que a gerou.
Pois, quando o homem abandona o amor a Deus, até os
seres que antes o serviam aprendem com ele o mesmo esquecimento, e a ordem da
Criação começa a se desagregar a partir do centro: o coração humano.
Assim, pode ser verdade que adorar o mundo natural,
em vez de contemplar Deus por meio dele, é na realidade algo destrutivo para
ele; que uma fascinação egotista pelos espíritos da natureza pode, de fato, ser
o arquétipo em plano sutil da destruição do mundo natural pela ganância humana
e pela tecnologia. Viagem no Tempo e Reencarnação — Relacionadas e Refutadas
Os mitos contemporâneos de “ficção científica” sobre viagem no tempo e espaço
multidimensional, derivados de especulações imaginativas sobre a física
einsteiniana e pós-einsteiniana, e frequentemente aplicados ao fenômeno dos
OVNIs, estão de certo modo substituindo a visão de mundo das religiões
reveladas, já que parecem transcender o materialismo e fornecer as
possibilidades “milagrosas” sempre associadas à fé religiosa e à experiência
espiritual. Para Deus todas as coisas são possíveis — mas se todas as coisas,
ou muitas coisas estranhas, são possíveis aos OVNIs, e serão possíveis à
ciência humana no futuro, então quem precisa de Deus? Se o espaço, o tempo, a
matéria e até certos processos mentais podem ser manipulados por várias
energias sutis materiais, então quem precisa da graça? Se a viagem no tempo é
possível, quem precisa da eternidade? É isso o que creem, e às vezes declaram
abertamente, aqueles que adoram as energias elementares por meio do culto da
ciência arcana. Mas, na realidade, o mito da viagem no tempo, baseado em sua
maior parte na crença de que talvez seja possível reverter localmente o fluxo
do tempo e viajar “para trás”, representa na verdade a morte do mito do
progresso. Eis a evidência de que, se todos os sistemas coerentes de crença
estão sendo desconstruídos pelo pós-modernismo, nem mesmo o cientificismo está
imune ao processo.
Ninguém menos que um aventureiro especulativo como
Stephen Hawking admitiu sua crença de que a viagem no tempo é possível. Mas há
contradições lógicas irredutíveis inerentes a ela, ou ao menos ao nosso modo
usual de concebê-la. Imaginamos que possa ser possível viajar em muitas
direções no tempo, em vez de numa só, assim como podemos viajar em muitas
direções no espaço. Mas, se a viagem no tempo se tornará possível no futuro,
então — por definição — ela já aconteceu. E se já aconteceu, onde estão todos
os viajantes do futuro, todos os historiadores, os arqueólogos e os turistas?
Eles estão se ocultando, dizemos, porque sua aparição aberta seria chocante
demais para nós e alteraria a história futura. Mas, se eles estão viajando de
“então” para “agora”, já alteraram a história futura, apareçam abertamente ou
não. E se a história futura foi alterada por sua viagem no tempo, então ela foi
“sempre” alterada. E se foi “sempre” alterada, então nenhuma “alteração” de
fato ocorreu.
Mas outros sustentam que eles se mostraram, que os
“alienígenas” que agora aparecem são na verdade viajantes para o “agora” vindos
do nosso próprio tempo futuro. Por que voltaram? Talvez com o propósito mesmo
de alterar a história, de salvar a raça humana da autodestruição. Mas, se
fracassarem nessa tentativa, então não haverá história humana futura de onde tenham
viajado de volta; e, se estão destinados a ter sucesso, então já tiveram
sucesso, de modo que nunca precisaram fazer a viagem em primeiro lugar. Eles, e
nós, podemos relaxar.
Alguns tentam resolver o paradoxo da viagem no
tempo alegando que é possível viajar a um passado alternativo ou provável,
embora não ao passado que lembramos. Mas “viajar” a um universo “paralelo” não
é a mesma coisa que viajar ao próprio passado. Pode ser ou não ser possível
separar, por meio de tecnologia arcana, o corpo humano de sua situação própria
no tempo. Mas, e então? Esse corpo então entraria no caos de todas as
realidades prováveis, sem modo de “sintonizar” qualquer uma delas, já que sua
única forma de se “ajustar” a uma realidade particular se basearia em toda a
sua estrutura, a qual é própria de apenas uma região ou qualidade do
espaço-tempo. Nós e nossas vidas não somos duas coisas separadas — uma verdade
que a cultura pós-moderna faz tudo ao seu alcance para nos levar a esquecer.
Quer se trate de um yuppie que jogou a própria casa fora para perseguir a vida
de um globalista itinerante, quer de um refugiado expulso de sua casa pelas
forças desse mesmo globalismo, o ser humano pós-moderno é levado a experimentar
seu ego como uma mônada autoinclusa, sem relação orgânica com o entorno. E, à
medida que mudamos de ambiente com frequência cada vez maior e aleatoriedade
emocional, passamos a acreditar que podemos mudar de identidades do mesmo modo,
que podemos ser quem quer que “encenemos” ser, num dado dia ou num dado momento.
E então nossa identidade ou se dissolve num repertório esquizofrênico ao estilo
Robin Williams de “posturas” ou “rotinas”, ou encolhe até um pequeno núcleo
duro de individualidade impessoal e genérica, que acreditamos poder ser
inserida indiferentemente em qualquer situação porque nenhuma situação lhe é
realmente nativa. Porque nossas psíquês são caóticas e fragmentadas, a viagem
no tempo começa a nos parecer possível, até natural, porque já não
experimentamos nossas próprias vidas como parte integral de nós mesmos.
Se vamos aplicar a metáfora de viajar no espaço a
viajar no tempo, teremos de levá-la às últimas consequências. E, se o fizermos,
seremos forçados a admitir que, se é impossível viajar no espaço de São
Francisco a Nova York se não há uma Nova York lá para onde ir, então seria
igualmente impossível para mim viajar do agora de volta à Idade Média a menos
que houvesse um “eu” lá, na Idade Média, para eu ser.
Mas talvez houvesse, dizemos. Talvez eu tenha de
fato vivido uma vida passada na Idade Média, e talvez eu consiga voltar a ela
de algum modo. Aqui podemos ver como a especulação sobre a possibilidade da
viagem no tempo torna necessário, em certo ponto, postular a teoria da
reencarnação. Se a física pós-einsteiniana se torna nossa religião, então a
crença na reencarnação deve, em certo ponto, tornar-se um dogma dessa religião.
Ora, se eu conseguir viajar de volta fisicamente à Idade Média, então já deve
existir, em potência, um registro do fato de eu tê-lo feito, de que o “eu de
então” apareceu do nada, ou de que um “segundo eu” apareceu e encontrou o “eu
de então”. Mas, se eu viesse a descobrir esse registro, e mais tarde decidisse
não viajar de volta no tempo, então de onde veio o registro? De onde mais senão
de um tempo futuro em que eu mudei de ideia e decidi ir afinal? Isso significa
que, se eu sei que há um “eu” lá atrás para eu ir até ele, então não posso
decidir não ir até ele. E outra maneira de dizer “não posso decidir não ir até
ele” é dizer “eu sou ele”. E, se eu sou ele, então o conceito de “viagem”
torna-se sem sentido. Por outro lado, obviamente eu não sou ele. Eu sou eu
mesmo. Este eu aqui e agora não pode ser sobreposto àquele eu lá e então,
porque todos os eus, todas as formas, todos os momentos, são únicos, e são de
fato a manifestação, no mundo relativo, da Unicidade Absoluta de Deus. E,
assim, perguntar se a viagem no tempo é fisicamente possível não é como
perguntar “é possível eu viajar da Espanha à Alemanha?”; é muito mais como
perguntar “é possível a própria Espanha viajar para a Alemanha?” Quem somos
fisicamente é inseparável do tempo em que vivemos, porque tempos distintos têm
qualidades intrínsecas distintas. Segundo Guénon em O Reino da Quantidade,
É evidente que os períodos de tempo são
qualitativamente diferenciados pelos eventos que neles se desenrolam… a
situação de um corpo no espaço pode variar mediante a ocorrência do movimento,
ao passo que a de um evento no tempo é rigidamente determinada e estritamente
“única”, de modo que a natureza essencial dos eventos parece estar muito mais
rigidamente ligada ao tempo do que a dos corpos ao espaço.
Se eu existo num tempo diferente, devo existir num
estado diferente. Meu estado como um recém-nascido é inseparável do ano de
1948; meu estado como um homem de 48 anos é inseparável do ano de 1997. A única
maneira de eu “viajar” a 1127 é assumir um dos estados — isto é, um dos
indivíduos — disponíveis em 1127. Assim, no mínimo, a viagem no tempo não pode
ser física.
Mas pode ser psíquica? Pode ser reencarnacional?
Pode uma encarnação anterior de mim mesmo conhecer-me, por antecipação
clarividente? Posso eu conhecê-la, por memória clarividente? Podemos
comunicar-nos um com o outro através dos mares do tempo multidimensional?
Sim e não. Aquele homem na Idade Média não sou eu,
nem eu sou ele. Como diz Guénon em O Erro Espírita, “duas coisas idênticas são
inconcebíveis, porque, se são realmente idênticas, não são duas coisas, mas uma
e a mesma coisa; Leibniz tem toda razão neste ponto.” Ainda assim, podemos ter
uma afinidade eterna um pelo outro, porque somos membros da mesma “família
espiritual”, emanações do mesmo arquétipo espiritual ou Nome de Deus. Isso,
porém, não significa que a informação — e, por implicação, a causalidade —
possa viajar de volta no tempo de mim para ele. Na realidade, eu simplesmente
herdo dele certo “material” psíquico, assim como herdaria os bens de um parente
falecido: traços psíquicos, problemas não resolvidos, até memórias. É isso que
se chama “metempsicose”, que não é a mesma coisa que reencarnação. Quando memórias
herdadas aparecem em minha vida, o que pode acontecer a qualquer momento do meu
nascimento até minha morte, necessariamente me parecerá como se eu tivesse, ao
menos em sentido limitado, voltado no tempo, já que estou revivendo
experiências passadas de outro. Mas, na realidade, essas experiências vieram
adiante no tempo ao meu encontro, com base numa afinidade — não numa identidade
— entre aquele ser humano passado e eu mesmo, uma afinidade que, em essência, é
eterna, não temporal. E ele também pode intuir minha realidade com base na
mesma afinidade eterna, embora, nesse caso, a metempsicose, ou herança
psíquica, não opere; se operasse, memórias de vidas “futuras” seriam tão comuns
quanto memórias de “passadas”. Ele e eu podemos descobrir nossa afinidade interior
ao longo de nossas vidas, por um processo aparentemente temporal — eu pela
memória, ele pela antecipação — mas a afinidade em si é eterna na mente de
Deus; ela existe para além do plano do ser onde o tempo, multidimensional ou
não, tem qualquer significado. Assim, a única conclusão possível é que o mito
da viagem no tempo, bem como a doutrina da reencarnação como um deslocamento
horizontal da alma individual idêntica através do tempo de um corpo físico a
outro, baseia-se numa incapacidade de conceber a verdadeira natureza da
eternidade. Portanto, aqueles que se tornam obcecados por esses mitos estão se
tornando disponíveis a forças satânicas cujo objetivo é ocultar de nós a
realidade da eternidade por meio de uma falsificação, deslumbrar-nos de tal modo
com espaços multidimensionais e viagens no tempo multidirecionais que percamos
a capacidade de imaginar contemplativamente como Deus pode ver todas as coisas,
passadas, presentes e futuras, bem como todas as realidades prováveis, num
momento presente eterno, como a “Segunda Pessoa da Santíssima Trindade”, a
forma total e integral de Sua Auto-manifestação — em essência, não outra senão
Ele mesmo — que, quando refratada pela matriz espaço-temporal, percebemos por
meio de nossos sentidos físicos e chamamos de “o universo”.
Os Tradicionalistas, pelo menos Ananda
Coomaraswamy, René Guénon e Whitall Perry, negam a doutrina da reencarnação e
afirmam que, embora seja aceita como verdadeira por muitos hindus, e algo que a
ela se assemelha por praticamente todos os budistas, não é ensino ortodoxo.
Eles explicam aparentes referências a cadeias de existências reencarnacionais
como um mal-entendido, ou má aplicação, de duas doutrinas distintas: a
metempsicose — o ensino de que material psíquico assim como físico liberado
pelos mortos (inclusive memórias) pode ser herdado pelos vivos — e a
transmigração — o ensino de que a individualidade eterna passa por muitos
estados de existência viajando verticalmente (ou, para sermos estritamente
exatos, em uma espiral ascendente ou descendente) na Grande Cadeia do Ser,
jamais passando duas vezes por qualquer estado, incluindo o nosso humano
encarnado. Segundo Guénon em O Erro Espírita,
a transmigração… é uma questão da passagem do ser a
outros estados de existência, os quais são determinados… por condições
inteiramente diferentes daquelas a que a personalidade humana está sujeita…
Isto é o que todas as doutrinas tradicionais do Oriente ensinam… a verdadeira
doutrina da transmigração, entendida no sentido que lhe confere a pura metafísica,
a qual permite de uma vez por todas refutar a ideia de reencarnação.
Os Tradicionalistas sustentam que nem mesmo o
hinduísmo ensinou originalmente a doutrina da reencarnação tal como é
atualmente entendida. Whitall Perry, em “Reincarnation: New Flesh on Old Bones” [Studies in
Comparative Religion, vol. 13, ns. 3 e 4, p. 153], escreve:
a alma empenhada no pitri-yāna (“Caminho dos
ancestrais”) não “desliza horizontalmente” por uma série indeterminada de vidas
e mortes, uma vez tendo sido “lançada” no saṃsāra, mas antes é “referida de volta” ao término de cada vida à sua Fonte;
há uma dimensão vertical
(simbolizada nos Upanishads como um retorno à “Esfera da Lua” — equiparável a
Hiranyagarbha) que significa um confronto direto (ainda que não identidade) com
seu ponto primevo de Origem. Cada “vida” pode, portanto, ser considerada
original, como uma entrada fresca na existência ou “descida”, seja para um
domínio esplêndido, seja terrível, e como uma experiência cíclica única com um
retorno que culmina numa teofania ou “Juízo”, no qual momento toda alma de fato
— e com clareza devastadora — recorda sua “vida anterior”. Todo o tempo a porta
da Libertação para o deva-yāna (“Caminho dos deuses”) permanece acessível aos
“Conhecedores da Verdade”, uma vez dadas as respostas corretas que permitem a
passagem para fora do saṃsāra e a união com estados supraformais de ser.
Em outras palavras, eu não sou uma “reencarnação” daquele
homem na Idade Média; na realidade, ambos somos “encarnações” únicas, ou
facetas, do mesmo Arquétipo eterno ou “Nome de Deus”. Resta alguma incerteza
quanto a se “alma” na passagem acima se refere à individualidade humana única
ou ao Arquétipo comum de toda uma “família” de tais individualidades, mas isso
não passa de um reflexo da ambiguidade primordial, ou antes, do paradoxo, da
doutrina hindu tradicional da transmigração: que Brahman, o próprio Absoluto, é
“o único e verdadeiro Transmigrante” — afirmação paradoxal porque o Absoluto,
estando além de toda relatividade, é, noutra acepção, a única Realidade que não
poderia possivelmente transmigrar. Esse paradoxo é resolvido pela doutrina de
māyā: que o saṃsāra, embora inegavelmente real do
ponto de vista dos seres relativos que o experimentam, é ilusão do ponto de
vista do Absoluto. Deus conhece o saṃsāra como não tendo realidade separada em si;
Ele o vê não como as alegrias e dores, as lutas e escolhas de inumeráveis seres sencientes — embora
saiba muito bem que esses seres sencientes de fato o experienciam assim, e o
saiba ainda mais profundamente do que eles mesmos — mas como a irradiação
infinita, auto-manifestante, somente de Si Mesmo. Em outras palavras, quando eu
realizo plenamente a verdade de que “Deus é o único e verdadeiro
transmigrante”, a transmigração cessa. Além disso, sabe-se também — porque Deus
o sabe — que, na Realidade, ela nunca começou.
A falha em
perceber que a transmigração nunca começou porque “o único e verdadeiro
Transmigrante” é o Absoluto produz a experiência ambígua da transmigração, que,
como um modo de māyā, é “tanto real quanto irreal”. A falha em entender que
cada existência transmigracional é uma criação nova — como no conceito islâmico
de “ocasionalismo”, a doutrina de que Deus recria todo o universo e a alma
humana a cada novo instante — produz a crença na reencarnação; o Ato Divino,
vertical e soberano, torna-se horizontal, e contingente, de causa e efeito. A
crença na reencarnação da mesma individualidade humana numa série de vidas
diferentes — doutrina que, aliás, não é ensinada pelos budistas, já que estes
não postulam uma individualidade humana única em primeiro lugar — separa a alma
humana de sua Fonte transcendente, exceto na origem primeira e no fim último de
cada ‘cadeia de vidas’ indeterminada. Ela resulta num universo mecanicista e
deísta onde Deus não pode ter relação misericordiosa, iluminadora, perdoadora e
redentora com os mundos e as almas que Ele criou — um universo onde, por não
poder haver dharma, nem intervenção salvífica divina, nem dispensações
religiosas, o karma é absoluto. Num tal universo, eu não posso me arrepender,
nem Deus pode perdoar. Foi essa absolutização do karma que levou Mme Blavatsky
(que, como veremos, de fato aceitou a reencarnação em sua obra final, A
Doutrina Secreta, apesar das negativas de alguns de seus seguidores) a odiar e
rejeitar a doutrina cristã do perdão dos pecados como violação da lei do karma,
e até a definir a oração e o sacrifício, concebidos como tentativas de alterar
ou contornar o karma, como atos de magia negra. Mas tomar o karma como absoluto
é absurdo e autocontraditório. O karma, enquanto cadeia de ações e reações
causais no mundo relativo do samsara, é relativo em essência; jamais pode ser
absoluto. Toda condição de inevitabilidade causal no plano horizontal pode ser
compensada pela operação da liberdade humana, e da Misericórdia Divina, no
plano vertical.
A doutrina da reencarnação está organicamente
relacionada à crença na possibilidade de viagem no tempo. A mente do
materialismo, presa ao espaço e ao tempo, confronta a Eternidade, mas não pode
realizá-la nem compreendê-la; o materialismo só consegue ver “outro modo de
existência” como “outra ocasião de existência material”. A mente incapaz de
transcender o tempo só pode conceber tal transcendência como uma capacidade
enormemente ampliada de viajar para trás, ou lateralmente, por dimensões
horizontais indefinidas, para outras realidades materiais. O senso do que os
sufis chamam de waqt, a Presença divina eterna manifestada neste momento
particular, ameaça seus pressupostos mais fundamentais e, assim, sua própria
existência. Em fuga dessa Presença, ela busca refúgio em espaços
multidimensionais e tempos paralelos e cadeias de vidas reencarnacionais. Tais
teorias complexas e arcanas nos atraem porque, simplesmente, temos medo de
encontrar Deus. Relutamos em admitir que este momento único está eternamente
salvo ou eternamente perdido segundo a qualidade presente do nosso amor,
sabedoria e vigilância, ou, ao contrário, do nosso ódio, delírio e caos mental.
Queremos uma segunda chance, ou um número infinito de segundas chances, para
sermos quem somos aos olhos de Deus. Mas, se estamos em fuga de nossa
identidade integral sub specie aeternitatis, então todas essas segundas
chances, todas essas vidas futuras ou viagens de volta ao passado para
consertar nossas falhas, são apenas tantas novas chances de ir para o Inferno.
O tempo é a Misericórdia da Eternidade, disse Blake. Ele nos é dado como um dom
precioso, como parte de nossa liberdade humana dada por Deus. Se o
desperdiçamos, não há segunda chance. O desejo de viajar no tempo para escapar
ou alterar as consequências de nossas ações é idêntico ao desejo de não estar
aqui agora, de não ser quem realmente somos, de não pagar nossas dívidas
kármicas deixando de tentar fugir de nossos credores, de não nos sentarmos no
Espírito e permitir que nossas dívidas sejam perdoadas pela Misericórdia de
Deus, de não permanecermos na presença de Deus. É, portanto, puramente
satânico. Sentar em contemplação é entregar o passado a Deus e receber d’Ele o
futuro; “viajar no tempo” é rejeitar o que Deus quer nos dar e agarrar o que
Ele quer tirar de nós. Nas palavras do xeique sufi Ibn Abbad de Ronda, “O tolo
é aquele que se esforça por obter, a cada instante, algum resultado que Allah
não quis.”
Ora, é verdade que, no plano psíquico, já existimos
num espaço-tempo mais multidimensional do que no plano físico. Se isso não
fosse verdade, visões de realidades passadas e futuras, ou de várias realidades
“paralelas”, não seriam possíveis, como claramente são. Mas não podemos
“viajar” por essas realidades sem transcender o arcabouço perceptivo necessário
para a realidade física, que inclui o tempo linear e unidirecional; e
transcender o tempo é transcender a própria “viagem”, e entrar na
simultaneidade. Afirmar que podemos transcender o tempo a fim de melhorá-lo,
que podemos viajar ao passado para criar um futuro melhor, é como afirmar que
podemos melhorar as condições dentro de nossa cela de prisão sendo libertos
dela. Mas quem sustentaria que o melhor uso da liberdade, ou mesmo um uso
possível dela, é melhorar a escravidão? Quem além de um mago iludido, que
acredita poder tocar um nível superior do ser para reforçar as agendas de um
nível inferior, que pode usar a Verdade para manipular suas ilusões, o Desapego
para cumprir seus desejos, a Ausência de Desejo para ampliar seu poder pessoal?
Se realizamos conscientemente aquele aspecto de nós que transcende os limites
espaço-temporais da realidade física, então todo o campo do espaço-tempo físico
torna-se virtualmente disponível para nós. Mas não se torna disponível para
aquela parte de nós que ainda está limitada ao espaço-tempo. O nível material
do nosso ser que, enquanto vivemos, está sempre ali, e que sempre retém o
potencial de recuperar o controle de todo o nosso campo perceptivo, se
permitirmos — a parte que está sempre dizendo “tenho medo de envelhecer, tenho
medo de morrer, tenho medo do fim do mundo, tenho que sair daqui, não quero
reconhecer meus limites, não quero encarar meu fim, por que alguém não pode me
congelar para que eu seja reanimado no futuro? por que alguém não pode inventar
a viagem no tempo para eu fugir para o passado?” — essa parte de nós não pode
manipular realidades trans-materiais e multidimensionais. Ela jamais pode
entrar em contato com elas porque, precisamente, está em fuga delas. A única
maneira de contatá-las seria morrer para si mesma, e isso é exatamente o que
ela está tentando estabelecer contato com elas para impedir. Este é o círculo
vicioso do materialismo tentando acessar e controlar o Espírito para fins
materialistas, a contradição inerente à visão de mundo mágica, a idolatria
autoderrotante de forças e dimensões sutis materiais disfarçadas como a
liberdade do Espírito dada por Deus.
Os Jinn não transcendem o espaço e o tempo, mas
existem em uma qualidade de espaço e tempo diferente da nossa em nossas vidas
materiais do dia a dia. Como essa relação mais multidimensional com a matriz
espaço-temporal lhes permite louvar a Deus de modos únicos talvez jamais nos
seja dado conhecer. Mas é claro que aqueles Jinn que “não são muçulmanos”
percebem que, se puderem nos fascinar e/ou aterrorizar com sua própria
realidade multidimensional, que nunca poderemos tornar plenamente nossa nesta
vida, isso nos distrairá poderosamente de nossa própria relação adequada com o
espaço-tempo, e assim das responsabilidades únicas e especificamente humanas
que Deus nos deu como vias para conhecê-Lo: nascer; crescer “em sabedoria,
idade e graça”; na vida adulta, lutar com as limitações da existência encarnada
para proteger e dar continuidade à vida; na velhice, adquirir sabedoria; na
morte, encontrar nosso Criador. Quem não quer jogar segundo essas regras não
quer mais ser um ser humano; nas palavras de um discurso de 1975, registrado
por Jacques Vallée em Mensageiros da Decepção, por um membro do Culto Heaven’s
Gate (ou Metamorfose Individual Humana, como então se chamava), “muita gente
está cansada de jogar o jogo humano”. Mas o jogo humano e a forma humana são o
único modo pelo qual podemos nos relacionar com a Fonte Divina de nossas vidas;
todos os poderes dos Jinn não podem mudar este simples fato. Mas podem
ocultá-lo de nós, e é exatamente isso que estão tentando fazer no presente. É
verdade que, no nível psíquico do nosso ser, somos tão multidimensionais quanto
os Jinn. Mas também é verdade que estamos aqui na vida física por um propósito,
que fomos desenhados por Deus para a experiência física assim como para o
conhecimento psíquico e a compreensão espiritual, e que a finalidade da vida
física e do tempo unidirecional é nos apresentar continuamente uma escolha
eterna: escapar do momento presente, e assim entrar no que as religiões da
Índia chamam de “samsara” e as abraâmicas de “Inferno”, ou permanecer
plenamente dentro dele, e assim ascender, pela via vertical que nos tira do
tempo que passa, ao “Céu”, a estados mais elevados de realidade. Se a atividade
presente dos Jinn para nos distrair dessa escolha humana última é melhor
entendida como subversão do lado deles ou como abdicação do mandato humano do
nosso, não precisa nos preocupar. Mas a escolha eterna que nos confronta neste
momento presente deve nos preocupar. É a “uma coisa necessária”. A religião não
tem outro propósito senão nos lembrar disso. Todo o resto é “as trevas
exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes”. Não passa de distração —
talvez fatal. Em Mensageiros da Decepção, Jacques Vallée cita um membro de um
culto de OVNIs chamado A Ordem de Melquisedeque dizendo-lhe: “precisamos
enfatizar o fato de que estamos recebendo um novo programa! Não temos de passar
pelo antigo programa do Armagedom.” Mas Armagedom é precisamente a batalha
final entre a verdade e a falsidade, concebida como confrontando toda a raça
humana no mesmo momento crucial. Evitar essa batalha — o que as forças do mal
adorariam nos fazer acreditar que de algum modo é possível — não é “transcender
a verdade e a falsidade” (como se misturar igualmente realidade e ilusão fosse
sinal de “equilíbrio” e “objetividade”), mas simplesmente abraçar a falsidade,
e assim nos encontrar, nas palavras do Alcorão, “entre os perdedores”. E a
tentativa de contornar o juízo de Deus, de impedir que as consequências da ação
humana neste mundo sejam plenamente confrontadas e penetradas pela Verdade
Divina, é uma agenda central da Nova Era. Pensar que podemos evitar a batalha
de Armagedom é, no entanto, acabar do lado perdedor.
Culto aos OVNIs como Contra-Iniciação
O interesse na figura de Melquisedeque no mundo dos cultos de OVNIs, documentado
por Vallée em Mensageiros da Decepção, é altamente significativo. Melquisedeque
não teve pai nem mãe, de modo que ele é, em certo sentido, imortal: não
nascido, portanto jamais morrerá. Isso o colocaria na mesma categoria que os
“profetas imortais” Enoque, Elias e o sufi Khidr, que muitas vezes é
identificado com Elias. (Assim como Melquisedeque foi o mestre de Abraão no
Antigo Testamento, Khidr ou Khezr é o nome dado pelos sufis ao mestre
encontrado por Moisés no Alcorão.) Segundo Guénon em seu livro O Rei do Mundo,
Melquisedeque representa a Tradição Primordial, o conhecimento original e
perene da Verdade eterna da humanidade, o tronco daquela árvore cujos ramos são
as grandes religiões históricas. Enoque também é muito citado no mundo dos
OVNIs, já que ele — como Elias, e como o Profeta Muhammad, sobre ele a paz —
viajou ao outro mundo sem passar pela morte física. Tal “ascensão” é um dom de
Deus para um punhado raro de seus santos e profetas; os cultistas de OVNIs,
porém, gostam de se identificar com seus próprios “raptos” demoníacos. O
contatado Jim Hurtak, por exemplo, recebeu um texto de seus mestres alienígenas
que publicou como As Chaves de Enoque. Crentes em OVNIs também reinterpretam
regularmente o “carro de fogo” de Elias como um OVNI.
Em O Reino da Quantidade, René Guénon falou da
“contra-iniciação” — a tentativa de forças demoníacas de subverter não apenas a
religião revelada, mas também as espiritualidades mais esotéricas, como a
Cabala dentro do Judaísmo, o Sufismo dentro do Islã ou o Hesicasmo dentro do
Cristianismo Ortodoxo — todas as quais, em suas formas legítimas, são
estritamente tradicionais e ortodoxas, apesar das distorções heterodoxas
produzidas por pessoas como Gurdjieff e Dion Fortune. Em minha opinião, o
fenômeno dos OVNIs representa a manifestação mais concentrada e disseminada
dessa contra-iniciação já surgida, e a de maior sucesso em nível de massa. Em A
Tesouraria da Sabedoria Tradicional, de Whitall Perry, encontramos a seguinte
pista para o interesse dos cultistas de OVNIs em Enoque, fornecida pela mística
alemã do século XIII Mechthild de Magdeburgo:
Agradou ao Anticristo
Descobrir toda a sabedoria que Enoque aprendera de Deus,
Para que o Anticristo pudesse declará-la abertamente
Junto com seu próprio ensino falso:
Pois se ao menos ele pudesse atrair Enoque para si
Todo o mundo e grande honra seriam seus.
Segundo a doutrina tradicional da Unidade
Transcendente das Religiões, todas as verdadeiras religiões reveladas são
versões da única Tradição Primordial que é tão antiga quanto a humanidade. Essa
Tradição, porém, não pode ser acessada diretamente, mas deve ser abordada por
meio de uma das grandes religiões do mundo — do contrário, provavelmente se
topará com uma das muitas tentativas de uma espécie de metafísica “genérica”,
que colhe fragmentos de muitas tradições, algum sistema que se apresenta como
universal mas permanece cortado da Sabedoria e da Graça de Deus, o único poder
que pode fazer de alguém um sábio ou um santo. Embora a Verdade seja Una, e os
centros esotéricos ou místicos de todas as verdadeiras religiões apontem
diretamente para essa mesma Verdade Divina, o “primordialismo” não pode ser uma
forma viável em si; o fruto que nutre cresce nos ramos da árvore, não no
tronco. E, sendo a porta humana para a Realidade Divina, a Tradição Primordial
só pode ser plenamente realizada no mistério da união da alma com Deus. Parece,
portanto, que a prevalência da figura de Melquisedeque no folclore de OVNIs e
Espíritas é evidência de uma perversão satânica da Unidade Transcendente das
Religiões. Se a doutrina da Unidade da Verdade puder ser falsamente usada para
negar a eficácia providencial das revelações divinas particulares que Deus nos
deu, a fim de promover um sincretismo religioso “Nova Era” — como de fato está
acontecendo diante de nossos olhos — então grande dano será feito às formas
sagradas que o Divino estabeleceu como caminhos para nosso retorno Àquele que
nos criou. E se as largas vias de volta a Deus forem bloqueadas (um bloqueio
que, na misericórdia de Deus, jamais pode ser absoluto), então as Potestades do
Ar, as nações dos jinn káfir, terão carta branca para apresentar falsamente o
plano sutil, psíquico, como o Reino dos Céus, para substituir a sabedoria pela
clarividência e a santidade por poderes mágicos e psíquicos na mente das
massas.
Melquisedeque não teve pai nem mãe. Como tal,
simboliza a Unidade primordial do Ser, ontologicamente anterior aos pares de
opostos que determinam a existência manifesta. A falsificação satânica dessa
transcendência da polaridade, porém, é a negação da polaridade. A Humanidade
primordial, antes da queda no tempo e no espaço, era andrógina, como o era Adão
antes de Eva ser separada. Mas a falsificação satânica do andrógino, como
apontou William Blake, é o que ele chamou de hermafrodita. No sistema de Blake,
Satanás é um hermafrodita em quem todos os estados possíveis são caoticamente
misturados — uma contrafação perfeita da Unidade do Ser, onde todas as
possibilidades são abraçadas e sintetizadas por Aquilo que as transcende. O que
cai abaixo da polaridade imita o que a transcende. A figura de Melquisedeque,
tal como interpretada pelos adoradores de OVNIs, é, assim, uma falsificação
satânica da Unidade principial, simbolizando, entre outras coisas, a destruição
da sexualidade, que a genética moderna agora tornou possível. A auto-castração
dos membros do culto de OVNIs Heaven’s Gate foi um ato de culto satânico:
destruir a sexualidade é separar a humanidade de seu arquétipo e pôr fim à sua
vice-gerência.
Religião,
Evolução e OVNIs
Jacques Vallée, em seu livro Dimensões (Contemporary Books, 1988) —
possivelmente sob a influência funesta de Whitley Strieber — fala do fenômeno
dos OVNIs, inexplicável e numinoso, como a provável origem de religiões
passadas e talvez até futuras. Mas, ao fazer essa alegação, ele revela o que só
posso chamar de uma chocante, embora muito comum, falta de senso de proporção,
já que ele coloca na mesma categoria obsessão demoníaca, aparições de fadas,
encontros com OVNIs e a aparição da Virgem Maria em Fátima! Isso é como dizer
que quem ou o que quer que saia do mesmo hotel — um santo, um enxame de moscas,
um automóvel, um cão-guia, um traficante ou uma lata de lixo — deve ser da
mesma natureza ou ter a mesma intenção. Ele está tão hipnotizado pelo fato
elementar, aceito até bem recentemente pela vasta maioria da humanidade, de que
manifestações físicas mensuráveis podem emergir do invisível, que a qualidade
do que emerge lhe escapa completamente, em grande parte porque o mecanismo
dessa emergência não pode ser explicado em termos científicos atuais — como se
os milagres divinos que são as civilizações cristã, muçulmana ou budista,
durando séculos e milênios e representando os cumes do espírito humano, cada
uma transbordando de arte requintada, filosofia profunda, costumes sociais
nobres e dignos, heroísmo corajoso e autossacrifício, e que continuam a
produzir esses espelhos de Deus em forma humana, nossos santos iluminados,
pudessem ter sido lançados às pressas por alguns fantasmas fazendo acrobacias
aéreas, raptando e brutalizando transeuntes inocentes e violentando algumas
mulheres!
Tenho o maior respeito pelo Dr. Vallée como
investigador objetivo, científico e em grande parte imparcial do fenômeno OVNI,
alguém que não se furta a expor seu frequente horror e repulsa a certas de suas
manifestações; em Confrontations (Ballantine, 1990), por exemplo, ele
dedica um capítulo às doenças e mortes misteriosas frequentemente associadas ao
contato com OVNIs. No entanto, parece sentir que, em nome da “objetividade”,
deve tomar cuidado para não tirar conclusões de sua própria repulsa. Mas, se o
nojo normal diante de carne podre representa a “sabedoria orgânica” do corpo,
que nos diz que, se comermos carne podre, adoeceremos, por que ele não pode
reconhecer sua repulsa emocional ao fenômeno OVNI como expressão de uma
sabedoria similar, de ordem psíquica ou espiritual?
É aqui que se tornam evidentes os limites da
perspectiva científica de Vallée, ou melhor, de sua ideologia científica — seu
cientificismo. Porque, segundo a ideologia do cientificismo — o “Reino da
Quantidade” de Guénon — não é permitido fazer perguntas qualitativas, nem
basear conclusões em considerações qualitativas, inclusive morais. Na medida em
que o Dr. Vallée é um bom humanista e, portanto, possui uma consciência e um
senso de honra herdados da cristandade, embora não creditados a ela, ele é um
homem de cultura. Mas só se pode lamentar a completa ausência de cultura, e até
de simples humanidade, mostrada por aqueles indivíduos — e por aquela parte do
próprio Dr. Vallée — que nada conseguem ver ou investigar além do mecanismo das
coisas.
Tal pessoa deve reduzir uma doutrina religiosa
exaltada e a civilização incomparável produzida por ela a um “revestimento
cultural” sobre um fenômeno basicamente material. Moisés viu um vulcão e fundou
o judaísmo; os discípulos de Jesus viram um OVNI e construíram a cristandade.
Mas, para quem tenha o menor entendimento do que é uma religião, os truques
vulgares e sem gosto produzidos pelos “alienígenas” de hoje — cujo nível espiritual
parece, em muitos casos, pouco superior ao de um molestador de crianças —
quando comparados com as manifestações profundamente sábias, boas e belas que
são as religiões e tradições sapienciais do mundo — tão imponentes em aspecto
quanto sublimes em concepção — necessariamente aparecerão como excremento. E só
porque um pedaço de excremento é tirado de um chapéu como um coelho, não passa
a ter cheiro mais doce.
Costuma-se dizer que “gosto não se discute”.
Discordo. Um gosto são deve basear-se em certa apreciação do verdadeiro, do bom
e do belo, que são, em última instância, nada mais do que a manifestação de
Deus neste mundo, do qual Ele é o único princípio. Já o gosto degenerado
denuncia uma alma ferida — traumatizada, e portanto necessitada de cura, ou
deliberadamente pervertida, e portanto a caminho da ira divina. Só peço que
minha própria decisão de escrever sobre o tema dos OVNIs não indique o início
de uma depravação semelhante em mim.
Ainda assim, o Dr. Vallée nos prestou um serviço ao
observar que muitos dos fenômenos psicofísicos que cercaram a aparição da
Virgem em Fátima também são comumente relatados como parte de encontros com
OVNIs: uma percepção de queda de temperatura, paralisia temporária, fragrâncias
doces, sons musicais, luzes em arco-íris, o fenômeno aéreo ambíguo conhecido
como “cabelos de anjo” ou “chuva de flores” (os quatro últimos sendo
características comuns das aparições de devas ou dakinis no budismo vajrayana),
o movimento de descida do objeto — no caso de Fátima, o sol — com um balanço
oscilante, etc.
Tais semelhanças o levaram a concluir que as
manifestações de OVNIs e as aparições da Virgem, ou mesmo os milagres e o
nascimento virginal de Jesus — visto que gestações assexuadas inexplicadas (que
são, muito provavelmente, enganos demoníacos) são às vezes relatadas em relação
a contatos “alienígenas”, segundo o próprio Vallée em Dimensions —
representam a mesma ordem de fenômenos. Mas qualquer um que espere uma
renovação espiritual e cultural mundial como a trazida por Jesus de Nazaré
surgir de um “O Bebê de Rosemary” está profundamente iludido.
E a verdade é que nossas expectativas reais em
relação a tais fenômenos estão longe de ser esperançosas, quer tenhamos coragem
de admiti-lo ou não. Em algum lugar de nossas almas todos sabemos a diferença
entre o Filho de Deus e o fruto de um íncubo demoníaco; nossos filmes de
horror, se nada mais, o comprovam.
Quanto aos fenômenos psicofísicos que cercam
aparições tanto angélicas quanto demoníacas, estes devem ser entendidos como
simples reações materiais ou quase materiais à passagem de uma manifestação —
qualquer manifestação — do plano psíquico para o físico, através da fronteira
energética chamada por alguns de “parede etérica”, que, vista da perspectiva
material, parece estar de algum modo relacionada ao espectro eletromagnético,
se não a definirmos simplesmente como a própria matriz espaço-temporal.
Pode ser admissível, neste contexto, pelo menos
provisoriamente, redefinir os “quatro elementos” clássicos — tradicionalmente
vistos como o lar dos “espíritos elementais” sutis, os gnomos, ondinas, silfos
e salamandras — como matéria (Terra, o que estabiliza a manifestação física);
energia (Água, o que revela as ondas em movimento); espaço (Ar, o que
representa o ambiente sutil de todos os seres vivos); e tempo (Fogo, o que
germina, transforma e, por fim, consome todas as coisas).
Seja como for, a verdade é que não podemos avaliar
plenamente uma aparição verídica, em termos de sua fonte original ou de suas
consequências últimas, simplesmente catalogando as reverberações psicofísicas
imediatas de sua irrupção em nosso mundo. Tais manifestações podem ser
milagres, no sentido de que têm sua origem no mundo do Espírito; podem ser
fenômenos mágicos, tendo origem apenas no plano psíquico; e, se mágicos, podem
ser benignos ou demoníacos.
Nas palavras de Schuon (Light on the Ancient
Worlds, p. 104): “no que diz respeito aos milagres, suas causas ultrapassam
o plano psíquico, embora seus efeitos passem por ele” — o que significa que
todas as aparições, embora possam vir de pontos de origem distintos, devem
entrar em nosso mundo pela mesma porta; se não fosse assim, “o discernimento
dos espíritos” não seria um dos dons de Deus, nem Jesus teria de nos lembrar
que “pelos seus frutos os conhecereis.”
O cientificismo do Dr. Vallée aparece no capítulo
final de Dimensions. A introdução é escrita por Whitley Strieber; Vallée
o ecoa (a menos que Strieber esteja de fato ecoando Vallée) quando, na página
291, afirma: “Eles [os alienígenas dos OVNIs] são... parte do sistema de
controle da evolução humana.” É triste perceber que um pesquisador dedicado,
que valoriza acima de tudo a objetividade, e que por isso foi capaz de
questionar o mito dominante de que os OVNIs são naves espaciais, e de
reconhecer não só sua inexplicável realidade física, mas também seus efeitos
psíquicos inegáveis e as evidências concretas de engano humano que os cercam —
sem usar uma verdade para ocultar as outras — perde completamente essa
admirável objetividade quando se trata do grande ídolo do cientificismo: a
evolução.
Não vou aqui recontar as muitas discrepâncias e
contradições na doutrina de Darwin, e em outras variações dessa crença, que um
número crescente de cientistas de várias áreas considera tornarem a teoria
insustentável, nem citarei os trabalhos dos metafísicos tradicionalistas, como
Frithjof Schuon, Martin Lings, Seyyed Hossein Nasr e Huston Smith, que explicam
por que tal conclusão é filosoficamente necessária. Limitarei-me a perguntar ao
Dr. Vallée: o que os raptos, os estranhos experimentos médicos, as mutilações
humanas e animais (que ele relata em Messengers of Deception), as
acrobacias aéreas projetadas para assustar e confundir, as molestações sexuais
e o uso de forças sutis, psíquicas ou psicotecnológicas, que paralisam o corpo
e obscurecem a mente, têm a ver com evolução?
Se aceitamos a teoria da evolução biológica, não a
compreendemos como baseada em processos físicos que não precisam de OVNIs para
prosseguir? E, se falamos de evolução social ou espiritual, o que o terror, a
violação e o engano têm a ver com isso? Pode-se forçar um macaco a evoluir em
homem torturando-o ou hipnotizando-o? Pode-se melhorar uma sociedade
confundindo-a e aterrorizando-a? Pode-se forçar um homem a evoluir em anjo
raptando-o e molestando-o sexualmente?
Não há “prova material” de que o fenômeno OVNI
represente um conflito entre forças Divinas e forças infra-psíquicas pela
atenção da mente humana e pela lealdade da alma humana — um conflito que pode
muito bem ser o próprio chamado “Armagedom” no Livro do Apocalipse —, nem tal
prova jamais será obtida. Mas afirmo que, a quem observar o fenômeno com toda a
amplitude de suas faculdades humanas, a hipótese da “guerra invisível” deve
parecer uma explicação infinitamente superior à “evolucionista”.
Controle Mental e Roswell: A Agenda Spielberg?
As atividades de engano e controle mental que se agrupam em torno do fenômeno
OVNI são discerníveis não apenas em manifestações encenadas de supostos pousos
extraterrestres ou eventos sobrenaturais, mas também em certas produções
midiáticas, especialmente filmes como Contatos Imediatos do Terceiro Grau.
Quem estiver realmente interessado nessa hipótese
deve alugar Contatos Imediatos, a trilogia Star Wars (1977; 1980;
1983), E.T., A Fire in the Sky (1993) e Roswell. A Fire
in the Sky, a história de um suposto sequestro alienígena real, é um relato
bastante inocente e direto de um evento intensamente traumático. Star Wars,
embora não isenta de elementos sombrios comuns a toda ficção científica, é uma
velha “ópera espacial”.
A moral que apresenta pode se opor em muitos pontos
à doutrina espiritual tradicional, mas ainda assim, apesar do uso de temas
mitológicos fornecidos pelo “consultor mítico” Joseph Campbell, é
essencialmente uma história de aventura contada para fins de entretenimento;
não é propaganda deliberada.
E.T. é
extremamente suspeito, especialmente por apresentar uma paródia da imagem de
Michelangelo na Capela Sistina de Deus criando Adão ao tocar-lhe o dedo —
produziu regularmente uma espécie de reação pseudo-religiosa sentimental em
pessoas para quem todas as emoções religiosas normais eram aparentemente
estranhas — mas não há nada nisso que não possa ser explicado pelo
anticlericalismo e satanismo estético geralmente endêmicos à cultura de
Hollywood.
Contatos Imediatos do Terceiro Grau, por outro lado, com sua exaltação da tendência psicopática, tão
prevalente na cultura contemporânea, de romper todos os laços econômicos e
emocionais na perseguição de algum ideal fantástico e vazio, é outra coisa;
desde seu lançamento, sempre o considerei um trabalho de controle mental.
É nada menos que uma falsificação satânica do
“arrebatamento”: em vez de uma doutrina sã e fé religiosa, no contexto das
intensas energias psíquicas e espirituais liberadas no fim apocalíptico do
aeon, levando à experiência extática da presença de Deus, ele apresenta o
niilismo emocional, o vazio espiritual e a ausência de qualquer quadro de
referência estável como pré-requisitos para uma rendição voluntária a forças
inumanas — e apresenta esse desfecho como “positivo”.
O “herói” do filme abandona completamente sua vida
para perseguir a origem do som em sua cabeça — algumas notas musicais — e a
imagem mental de uma rocha desértica estéril — experiências que várias formas
de hipnose e controle mental podem muito bem produzir com facilidade — e é
recompensado sendo levado de bom grado por uma nave alienígena.
Que muitos espectadores tenham encarado Contatos
Imediatos como algo mais que mero entretenimento ficou claro para mim no
fim dos anos 1980, quando participei de uma festa na casa da musicista New Age
Constance Demby. Algumas notas musicais haviam aparecido misteriosamente em uma
de suas fitas! Nossa anfitriã alegre e entusiasta as tocou para nós e as
interpretou, não surpreendentemente, como uma mensagem pessoal dos “Irmãos do
Espaço”, à semelhança das notas musicais de Contatos Imediatos.
Dispensa dizer que ninguém na sala a contradisse;
um dos métodos mais eficazes de controle mental autoinduzido, como todos
sabemos, baseia-se no medo da gafe social!
[NOTA: não sendo cinéfilo, só depois de terminar
este capítulo percebi que as três produções que mais me pareceram controle
mental — Contatos Imediatos, E.T. e Roswell — foram todas
produzidas por Steven Spielberg! É claro que ninguém deve tirar conclusões
rígidas disso; pode ser que o Sr. Spielberg simplesmente tenha um estilo de
produção cinematográfica semelhante ao controle mental.]
O “docudrama” televisivo Roswell (1994),
estrelado por Martin Sheen, sobre a suposta queda de uma nave alienígena no
Novo México em 1947 e a recuperação tanto de corpos alienígenas quanto de
sobreviventes que mais tarde morreram, serve como exemplo ainda melhor. Jacques
Vallée, em Revelations, explica por que acredita ser improvável que o
incidente de Roswell tenha sido o acidente de uma nave extraterrestre. Ele
também nos fornece uma informação interessante que contradiz a versão
televisiva do evento.
Segundo Vallée, as primeiras pessoas a chegar ao
suposto local do acidente encontraram outro grupo já lá, que se descrevia como
“arqueólogos”. Vallée especula que sua verdadeira função pode ter sido plantar
o material misterioso que mais tarde foi alegado ser os destroços da nave — um
material que, segundo ele, poderia facilmente ter sido produzido pela
tecnologia humana existente em 1947.
Em Roswell, porém, afirma-se que o objeto
não poderia ser uma aeronave experimental acidentada porque “eles estariam
procurando por ela” se fosse, mas ninguém apareceu; o local, quando abordado
pela primeira vez após o incidente, estava deserto. Obviamente, essas duas
afirmações não batem.
Entre as técnicas mais comuns de controle mental —
úteis a qualquer um que deseje usá-las e consiga atrair atenção suficiente pela
mídia ou pela internet — está a estratégia da ocultação governamental: se
alguém afirmar que um dado fato é verdadeiro, mas que o governo o está
encobrindo, uma certa parcela do público acreditará automaticamente —
especialmente se for possível pressionar o governo a ponto de este começar a
emitir negativas. É uma ferramenta barata e confiável; até o próprio governo
pode usá-la. Roswell baseia-se nessa estratégia, assim como vários
outros “documentários” e “vazamentos” ainda mais propagandísticos relativos ao
incidente de Roswell que apareceram posteriormente.
Mas Roswell também é um bom espécime de duas
técnicas de controle mental muito mais sofisticadas, que devem ser
classificadas como satânicas, pois representam perversões de princípios
metafísicos específicos. Dei a essas técnicas os nomes de contradição
subliminar e fechamento adiado.
Nas palavras de Jacques Vallee,
é possível fazer grandes parcelas de qualquer
população acreditar na existência de raças sobrenaturais, na possibilidade de
máquinas voadoras, na pluralidade de mundos habitados, expondo-as a algumas
poucas cenas cuidadosamente produzidas, cujos detalhes são adaptados à cultura
e às superstições de um tempo e lugar particulares
PASSPORT TO MAGONIA [Henry Regnery Co., 1969] pp. 150–1
Seraphim Rose comenta que
uma pista importante para o significado dessas
“cenas produzidas” pode ser vista na observação frequentemente feita por
observadores cuidadosos dos fenômenos de OVNIs, especialmente os CE-III
[“contatos imediatos de terceiro grau”, isto é, avistamentos de “alienígenas”
sencientes] e casos de “contatados”: que são profundamente “absurdos”, ou
contêm pelo menos tanta absurdidade quanto realidade. Contatos imediatos
individuais possuem detalhes absurdos, como as quatro panquecas dadas por um
ocupante de OVNI a um criador de galinhas de Wisconsin em 1961; mais significativamente,
os próprios encontros são estranhamente sem propósito, sem objetivo ou
significado claro. Um psiquiatra da Pensilvânia sugeriu que a absurdidade
presente em quase todos os casos de OVNIs é na verdade uma técnica hipnótica.
“Quando a pessoa é perturbada pelo absurdo ou pelo contraditório, e sua mente
está buscando significado, ela fica extremamente aberta à transferência de
pensamento, a receber cura psíquica etc.” ([Vallee] The Invisible College
[E.P. Dutton], p. 115).
Exatamente. Na técnica da contradição subliminar,
duas informações mutuamente incompatíveis são projetadas simultaneamente na
percepção da vítima sem que a contradição seja apontada ou explicada. Na
técnica do fechamento adiado, dados inexplicáveis são continuamente
alimentados à vítima ou vítimas ao longo de um período de tempo, dados que
sempre sugerem a possibilidade de uma explicação racional, mas nunca a permitem
de fato. E, uma vez que a mente humana é feita para buscar e produzir tanto
fechamento perceptivo quanto racional, a mente submetida ao fechamento adiado
reagirá à frustração continuada de uma de suas necessidades mais básicas
afundando em exaustão atônita, ou produzindo uma forma paranoide e delirante de
fechamento. A esquizofrenia apresenta à mente uma torrente de dados que
sobrecarrega os processos normais de fechamento emocional, racional e
perceptivo; a esquizofrenia paranoide representa uma tentativa mais ou menos
bem-sucedida de alcançar fechamento relativo por meios anormais. O fechamento
adiado, então, pode ser definido como um método experimental para produzir
esquizofrenia paranoide (para um relato ficcional dessa técnica, remeto o
leitor a That Hideous Strength, de C. S. Lewis, pp. 297–298).
Contudo, contradição subliminar e fechamento
adiado não são apenas técnicas de controle mental; são também elementos
essenciais da “filosofia” pós-moderna, que acredita que enunciados
contraditórios não são necessariamente mutuamente exclusivos, e que qualquer
fechamento quanto à verdadeira natureza das coisas, qualquer “paradigma
abrangente”, é impossível. O pós-modernismo, tanto como filosofia quanto como
nome de nossa cultura contemporânea, emprega a contradição subliminar e o
fechamento adiado simplesmente porque não consegue imaginar outra coisa; ele já
não crê na existência da verdade objetiva. (Isto, por si, basta para explicar a
“Agenda Spielberg”, embora não para refutar absolutamente a existência de uma
tentativa mais deliberada de “engenharia social”.) Em Messengers of
Deception somos apresentados ao contatado de OVNIs Rael (Claude Vorilhon,
cujo patronímico posteriormente apareceu na série de ficção científica de TV Babylon
5 como o nome de uma raça alienígena, os Vorilhons), um falso profeta de
barba e vestes, que usa um medalhão baseado em um desenho supostamente mostrado
a ele pelos alienígenas. O desenho — uma combinação entre uma suástica e a
estrela de Davi — é um exemplo de contradição subliminar. E, como a
contradição é dirigida ao “cérebro direito” na forma de uma imagem, em vez de
ao “cérebro esquerdo” na forma de um enunciado, é mais provável que seja aceita
sem crítica, já que o papel do hemisfério cerebral direito é sintetizar dados,
não analisá-los. Assim que uma contradição subliminar é aceita no campo da
percepção sem resistência inicial, a faculdade crítica fica atordoada, e a
mente se torna receptiva à sugestão.
Pergunto-me se alguém além de mim já percebeu a
manobra da contradição subliminar tal como opera em situações sociais normais.
Se uma pessoa que deseja influenciá-lo consegue estabelecer uma imagem clara em
sua mente de quem ela é e do que se deve esperar dela, e então, rápida e
despreocupadamente, diz ou faz algo que contradiz totalmente essa imagem, sem
exibir a malícia normal ou a ansiedade social que tal mudança geralmente
acarreta, você pode aceitar simultânea e subliminarmente tanto sua imagem dela
quanto o contrário dessa imagem. Se aceitar, ela o atordoou a um estado em que
pode ser facilmente manipulado. Uma contradição subliminar entre fala e
linguagem corporal pode ter o mesmo efeito.
O fenômeno OVNI como um todo, e também o fenômeno
dos agroglifos, é um caso da técnica do fechamento adiado. Os OVNIs são
naves espaciais? Entidades psíquicas? Fraudes humanas? São filósofos sábios
vindos para nos ajudar, ou invasores sinistros aqui para nos destruir? A
ambiguidade do fenômeno, em si, produz um estado de fechamento adiado, mas é
claro, pelas pesquisas do Dr. Vallee, que essa ambiguidade também está sendo
deliberadamente explorada por grupos humanos. Se você colocar uma pessoa numa cela,
junto com uma marreta, uma boneca Barbie, uma lata de azeitonas e um novelo de
fio de cobre, e disser que a libertará assim que ela inventar um sistema
filosófico baseado nesses quatro “princípios”, ela pode surpreendê-lo com sua
capacidade de fazer “fechamento” sobre os significados intrínsecos e as
inter-relações entre elementos que, em qualquer sentido objetivo, não o
permitem. Seu “sistema” dirá muito mais sobre seus próprios anseios, medos,
crenças e pressupostos enraizados do que sobre os dados fornecidos. E, uma vez
que você saiba qual é o “sistema” dela, poderá estressá-la ainda mais
alimentando-a com dados que novamente o contradigam, arruinando seu padrão
meticulosamente construído. Melhor ainda, pode alimentá-la com dados que o
confirmem triunfantemente — e aos quais estejam enxertados outros itens de
informação que você deseja que ela aceite como implicitamente verdadeiros. E
ela os aceitará, porque os experimentará não como crenças alheias que lhe estão
sendo impostas contra a vontade, mas como partes de um padrão que ela própria
criou, por seu próprio trabalho, imaginação, sacrifício e busca da verdade.
Roswell está
repleto de contradições subliminares, e o enredo inteiro é um exemplo de
fechamento adiado. É a história de Jesse Marcel, um oficial da Força
Aérea que visita o local da queda e recolhe parte do material misterioso de que
supostamente era feita a nave — e que depois, no curso de um encobrimento
governamental do incidente, é forçado a mentir sobre sua experiência. Jesse é o
arquétipo do paranoico incompreendido, com quem muitos americanos podem se
identificar — mas nós, observadores oniscientes, sabemos que ele está dizendo a
verdade. Vemo-lo anos depois, em uma reunião de sua antiga unidade, morrendo de
enfisema. Ele ainda está decidido a expor o encobrimento e chegar ao fundo do
que realmente aconteceu. Encontra alguns outros que tiveram algo a ver com o
incidente e ouve a história sobre a recuperação de corpos alienígenas e de um
ocupante vivo. À medida que as histórias são contadas, vemos flashbacks
a 1947, alguns supostamente autênticos, outros apenas dramatizações de boatos.
Não há resolução. Por fim, o misterioso pesquisador de OVNIs e/ou agente
governamental e/ou antigovernamental, Townsend (o personagem de Martin Sheen),
aborda Jesse e lhe conta mais sobre as bizarras minúcias do fenômeno OVNI do
que ele jamais soube — referindo-se, no processo, a Contatos Imediatos do
Terceiro Grau, o único outro filme de OVNIs, exceto talvez E.T., que
destaquei como experimento de controle mental —, mas o deixa tão oprimido e
perplexo quanto antes. Townsend também não tem conclusões finais, mas permanece
misteriosamente conhecedor e intimidante; após encontrá-lo, Jesse afunda em
desespero.
Sempre que o incidente é descrito, relatos
contraditórios são apresentados. As peles dos alienígenas são lisas/não, são
escamosas; suas cabeças são ovais/não, são em forma de pera; o objeto caído é
plano e em forma de crescente (vemos um relance rápido)/não, é ovóide (vemos um
relance contraditório); o nome do agente funerário contatado pela Força Aérea é
Paul Davis/não, David Paulus. Os corpos são cinco ou seis/não, três ou quatro;
os corpos são humanoides/não, infantis (como se crianças não fossem
humanas)/não, fetais; a nave é cilíndrica/não, redonda/não, ovóide/não, em
forma de cúpula: o discurso desorientador continua sem parar. Em certo ponto,
vemos a manchete de jornal do Roswell Daily Record relatando a
desmistificação oficial do incidente como um balão meteorológico caído: “Gen.
Ramey esvazia disco de Roswell.” À primeira vista, isso não significa muito ou
nada, a menos que seja um trocadilho infeliz com o ato de despejar chá
derramado. Subliminarmente, significa duas coisas diferentes e contraditórias:
que o general “esvazia” o incidente de significado — isto é, o declara irreal —
e que ele descarrega o disco em si, indicando que é um objeto real do qual
coisas reais podem ser retiradas, presumivelmente os corpos alienígenas. Como
aparentemente esta é uma manchete real da época, não podemos atribuir a contradição
subliminar que ela contém a Steven Spielberg. Como explicá-la, então? Deixando
de lado teorias conspiratórias elaboradas — como o envolvimento da comunidade
de inteligência em todos os aspectos do incidente de Roswell desde o primeiro
dia —, talvez alguém da equipe do Roswell Daily Record que acreditava na
queda tenha construído a manchete de modo a desmoralizar os desmistificadores
oficiais. Ou pode simplesmente representar — e isso não invalida de modo algum
as explicações acima — a reação intuitiva da mente humana, em nível
profundamente inconsciente, à “ideia arquetípica” do OVNI como um “mensageiro
de engano”.
A ação é repetidamente intercalada com imagens
religiosas. Quando Jesse mostra pela primeira vez o material misterioso do
disco à sua família, ele aparece abaixo de um quadro de Jesus na parede de sua
casa. Quando Townsend faz suas revelações misteriosas e desconcertantes a
Jesse, a cena começa com um padre celebrando um serviço memorial para aviadores
falecidos do lado de fora de um hangar; Townsend leva Jesse para dentro do
hangar, conta os segredos dos OVNIs e vai embora. No final, voltamos ao serviço
memorial e ao padre. A cena foi concebida para dar a impressão nítida, embora
subliminar, de que o serviço católico é a forma externa ou exotérica, e a lore
dos OVNIs o significado interno ou esotérico. Os temas do temenos
sagrado, templo ou caverna de mistério, e da experiência iniciática como uma
morte espiritual (o serviço memorial) também são explorados — mas não uma morte
e renascimento, já que Jesse permanece dentro do hangar e não retorna, nessa
cena, à luz do sol. A sugestão é que o fenômeno OVNI é equivalente à, e
substituirá a, religião revelada — sugestão tornada mais explícita na cena em
que os oficiais da Força Aérea encarregados de investigar o incidente repetem a
crença de que “alienígenas” manipularam a genética humana e inspiraram líderes
religiosos ao longo da história, e são advertidos por seu superior: “Pensem nas
nossas instituições religiosas — se tudo isso viesse à tona, no que as pessoas
iriam acreditar?”; e na cena em que o filho de Jesse diz ao pai moribundo, que
crê estar perto de descobrir a verdade: “Você está perto de nada. Encare, pai,
você nunca vai achar o que procura, você só quer uma resposta como se houvesse
alguma prova por aí de Deus, ou de uma vida após a morte, OVNIs, é tudo a mesma
coisa, algo para se agarrar quando nada faz sentido, isso é fantasia, para te
fazer sentir melhor à noite.” Assim, diante da morte, desse “nada”, dessa
“noite”, nenhuma fé é permitida; bata, e porta nenhuma se abrirá.
Mas o verdadeiro objetivo de Roswell e de
outras propagandas relacionadas a OVNIs é revelado na cena em que um oficial
participante da investigação é mostrado em uma galeria, olhando (brevemente,
para instaurar uma “sugestão em vigília”) para talvez um retrato do século
XVIII ou XIX de um “santo” aureolado, que olha para cima e à sua direita para
um feixe de luz sugestivo da glória de Deus — ou de um feixe de um OVNI —, mas
segurando na mão esquerda um objeto vermelho emitindo chamas brancas, chamas
que na verdade incendeiam sua auréola; o objeto parece ser a cabeça de um
demônio. O oficial pergunta: “Sob que agência estaremos operando?” Seu colega
lhe responde: “Nenhuma, teremos controle completo.” Aqui começamos a ver o
significado da tradição de que Satanás tem santos e contemplativos próprios,
que não respondem nem a Deus nem aos homens. Por outro lado, o santo está sob o
feixe de luz na pintura, assim como o oficial está sob a própria pintura;
palavra e imagem são diretamente contraditórias em nível subliminar. E o fato
de o santo segurar na mão a cabeça flamejante do demônio — se é isso que é —
mostra que ele a controla, ou acredita controlá-la, tal como o mago cerimonial
da Renascença invocaria o poder de Deus, ou de um de Seus anjos, para dar-lhe
controle sobre o demônio que desejava escravizar. Aqui, o desejo de autonomia
espiritual prometeica é usado para negar a verdade de que o feiticeiro, embora
adore claramente sua própria vontade como se fosse Deus, está de fato
entregando essa vontade ao controle de uma vontade infernal por meio desse
mesmo culto. Esta é a “negação” — e também a “codependência” — que afeta todos
os magos: autodeterminação é escravidão, mas todo adorador da autodeterminação
deve negar isso, até que seja tarde demais.
Roswell também faz o que pode
para confundir e neutralizar as descobertas de pesquisadores honestos como
Vallee. Quando os figurões militares discutem como encobrir a queda de Roswell,
um pergunta “e se as pessoas acharem que não estamos no controle dos céus?” e
outro responde “elas estariam certas” — instaurando, assim, outra contradição
subliminar em relação a “temos controle completo”. Em seguida, propõem que se
realizem “fraudes” e que informações verdadeiras sejam vazadas por meio de
fontes pouco confiáveis e suspeitas como parte do encobrimento. Mas por quê
fraudes? Como uma aparição de OVNI encenada de modo convincente pode convencer
as pessoas de que não existem OVNIs? Só pode fazê-lo se mais tarde for provada
como fraude — mas isso é justamente o que quase nunca é absolutamente provável
quando se alegam enganos de OVNIs. Tudo o que Vallee conseguiu obter são pistas
tentadoras de que uma manifestação particular poderia ter sido uma
fraude, e evidências suficientemente convincentes para sugerir que o fenômeno
como um todo inclui atividades de engano por grupos humanos. Mas, se algo é
claro nesse mundo turvo, é que quaisquer enganos em curso destinam-se a ser acreditados,
não desmascarados. Quanto ao vazamento de informações verdadeiras por fontes
não confiáveis, isso está sendo feito, a fim de estabelecer um “circuito de
feedback” entre malucos lunáticos e céticos cínicos. Mas o propósito de tal
circuito, segundo Vallee em Messengers of Deception, é desencorajar a
investigação objetiva do fenômeno, não convencer as pessoas de que não existem
OVNIs. Se esse fosse seu propósito, ter-se-ia de concluir que não é uma
estratégia muito eficaz, dado que, toda vez que alguém que investigou os dados
reais, ou que ele próprio experimentou o fenômeno, o ouve ser desdenhosamente
desacreditado pelas “autoridades”, acadêmicas ou militares, tais autoridades
perdem mais credibilidade aos olhos dele — e toda vez que essa pessoa, ou
alguém como ele manifeste suas legítimas sensações de que as autoridades estão
ou iludidas ou desonestas em relação ao fenômeno, os oficiais em questão
tornam-se ainda mais cínicos e autodefensivos, perdendo assim ainda mais
autoridade sobre aqueles cuja confiança sustentava seu poder. E, nesse vácuo de
autoridade social e cultural, entram — os OVNIs.
Jacques Vallee acredita que esse método de
desencorajar a investigação objetiva tem em grande parte o propósito de ocultar
as atividades de grupos humanos, permitindo-lhes talvez testar novas armas
de alta tecnologia ou dispositivos “psicotrônicos” para manipulação da
consciência humana sem interferência pública ou política. Concordo. Mas há
outras razões.
Esse rebaixamento da consciência coletiva e
o enfraquecimento do senso de realidade estão sendo deliberadamente
engenheirados com dois propósitos: primeiro, tornar o público mais
sugestionável e aberto à crença nos OVNIs; segundo, embalar-nos em um falso
senso de “segurança” — na verdade, um torpor psíquico baseado no medo
reprimido — de modo que não percebamos que os OVNIs representam uma invasão
psíquica em massa da mais alarmante natureza, exigindo resposta imediata e
militante no plano da guerra espiritual.
Esse abaissement de niveau mental é servido
por vários instrumentos, entre eles a tendência de retratar os alienígenas de
modo cômico, completando assim a tríade Medo / Adoração / Complacência,
que também se observa diante de outras possibilidades horrendas — a clonagem
humana, por exemplo. Primeiro os tememos; depois rimos deles para negar o medo;
e, uma vez reprimido o medo, nós os aceitamos.
Essa irrealidade fabricada é simbolizada em Roswell
pela névoa alcoólica em que as histórias da queda do OVNI são trocadas durante
a reunião da Força Aérea; um dos informantes, lento e obeso, aparece flutuando
de costas numa piscina, com um copo equilibrado na barriga. Não é uma imagem
feita para promover nem a lucidez crítica nem a vigilância espiritual.
A intenção central dos roteiristas e produtores de Roswell
emerge na cena em que Townsend “educa” Jesse Marcel dentro do hangar. Segue um
trecho do diálogo:
Townsend: É preciso
proceder com cautela aqui, em guarda contra o desejo de querer que seja verdade
ou de querer que não seja verdade. É preciso ser, tanto quanto possível,
neutro.
Jesse Marcel: Bem, como se pode ser neutro? Uma coisa é verdadeira ou
não é — não há meio-termo.
T: Certo, certo... então nada disso é verdade.
J: Nada?
T: Bem, talvez parte...
J: Não, não, você está brincando comigo — por que está brincando comigo?
T: Porque talvez você nem soubesse o que é verdade, mesmo se tivesse
visto tudo com seus próprios olhos. Que tal essa resposta?
J: Então o que foi que vi naquele campo?
T: Aquilo?... ora, foi um balão meteorológico.
J: Não, não foi, eu sei o que vi, e aquilo não era deste mundo.
T: Você não entende, Jesse — você não tem nada, apenas um monte de
velhas lembranças e recordações de segunda mão. Ninguém vai levá-lo a sério,
sem prova, sem evidência concreta.
O que se prega aqui é nada menos que a
impossibilidade de alcançar a verdade objetiva, e, em última instância, a
irrealidade da própria verdade objetiva. Restam-nos apenas subjetividades
irredutíveis, sem paradigma abrangente que as una numa visão integrada da
realidade. Este é o programa inteiro da era e da agenda pós-modernas em resumo
— e, já que a Verdade objetiva é, em última análise, Deus, o que se prega aqui
é também uma negação de Deus, e sua substituição por principados e
potestades demoníacas.
Mas sem fundamento na objetividade divina do Ser,
até mesmo nossa capacidade de tirar conclusões racionais dos dados empíricos se
erode, pois a racionalidade é nada menos que um eco mental distante da Intelectio,
ou Gnose divina.
Nas palavras de C. S. Lewis, em That Hideous
Strength (1946), seu romance de ficção científica sobre a invasão da Terra
pelas forças do Anticristo (que o autor tradicionalista James Cutsinger
descreveu como “O Reino da Quantidade em forma de ficção”):
As ciências físicas, boas e inocentes em si mesmas,
já haviam... começado a se distorcer, manobradas sutilmente em certa direção. O
desespero quanto à verdade objetiva vinha sendo insinuado nos cientistas; a
indiferença a ela e a concentração no mero poder foram o resultado. Balbúcios
sobre o élan vital e flertes com o panpsiquismo prometiam restaurar a Anima
Mundi dos magos... As próprias experiências da sala de dissecação e do
laboratório patológico estavam gerando a convicção de que sufocar todas as
repugnâncias profundas era a primeira condição do progresso.
O cerne da questão — que aparece nas duas primeiras
falas do diálogo acima — é um ataque deliberado e planejado ao conceito de
verdade objetiva; o desconstrucionismo pós-moderno da academia não
passa do vapor sufocante que sobe de um caldeirão muito mais profundo e escuro.
Quando Townsend diz que devemos nos guardar de
desejar que a hipótese extraterrestre seja verdadeira ou falsa, ele formula
corretamente um dos pré-requisitos da objetividade real — mas, em vez de usar a
palavra objetiva, ele usa neutra. Ora, neutralidade não é
objetividade; pode significar tanto niilismo quanto indiferença. E Jesse
percebe esse niilismo — o que o leva a rejeitar a postura “neutra” e a
protestar: “Uma coisa é verdadeira ou não é; não há meio-termo.”
Mas, da forma como Townsend armou a situação, Jesse
derrota a si mesmo com esse protesto, pois é levado a defender a
objetividade atacando os próprios critérios de objetividade, falsamente
associados a uma neutralidade niilista — uma neutralidade que, nesse contexto,
é apenas outro nome para sugestionabilidade.
Quão engenhosos, quão astutos foram (e são) os
roteiristas e o produtor (Steven Spielberg) de Roswell. Mas, se
são tão inteligentes — pergunta-se —, por que não podem ser sábios? Porque isso
não está nos interesses das forças que conscientemente ou inconscientemente
servem; toda inteligência verdadeira é de Deus.
Uma metafísica invertida e satânica está na
origem de Roswell.
A contradição subliminar é o contrafator satânico do princípio
metafísico segundo o qual o Absoluto está além das “symplegades”, os pares de
opostos.
O fechamento adiado é o contrafator satânico do princípio metafísico de
que o Infinito, por definição, não pode ser contido em nenhum sistema de
pensamento ou percepção.
Absolutidade e Infinidade, como vimos na metafísica de Frithjof Schuon, descrevem
propriamente a Essência divina de Deus — e nada mais. Aplicá-las a qualquer
coisa relativa e contingente, a qualquer coisa no domínio da manifestação
cósmica, é a mais alta forma de idolatria, talvez melhor caracterizada como uma
decepção de Iblis — o nome muçulmano de Satanás, ou o princípio satânico
em seu modo mais sutil de operação metafísica.
O Absoluto, ou o Ser Necessário, não é realizado
pela fusão ou confusão dos opostos, mas pela transcendência deles,
após a qual se vê exatamente como o Absoluto se manifesta por meio deles.
E o Infinito, ou Ser Possível, não é realizado pela tentativa fadada de
reduzir a Possibilidade Infinita da Natureza divina a um sistema fechado,
mas simplesmente aceitando o que vem e deixando ir o que deve ir, sabendo que todas
as coisas são manifestação da vontade de Deus — seja em termos do que Ele
quer positivamente (o Ser, o bem), seja do que Ele permite negativamente (a
privação do Ser, o mal) — considerando que o universo, embora O manifeste, não
é Ele mesmo, e é, portanto, necessariamente imperfeito.
A submissão à vontade de Deus manifestada
nos eventos de nossas vidas — submissão que não exclui, mas exige nossa
resposta criativa, pois nosso desejo inato de viver vidas plenas e
significativas é também parte da vontade divina — conduz à gnose de todos os
eventos como atos de Deus, o que se abre para a gnose mais profunda de todas
as formas manifestas como possibilidades arquetípicas eternas dentro do
abraço da Infinidade divina.
A realização de Deus como Infinito não é o
desejo por um fechamento filosófico ou experiencial final, mas o sacrifício
desse desejo diante da Imanência divina; a realização de Deus como Absoluto
não é a confusão horizontal ou neutralização das polaridades, mas a intuição
vertical de seu Princípio comum à luz da Transcendência divina.
Na cena final, vemos Jesse Marcel vagueando sem
esperança pelo local da queda, na relva seca do outono, procurando “provas
concretas” — fragmentos dos destroços do OVNI, todos recolhidos trinta anos
antes. Ele busca a certeza não onde ela realmente pode ser encontrada, no Fundamento
objetivo do Ser, mas justamente onde jamais poderá encontrá-la: na
memória. Jesse, sua esposa e seu filho se reúnem novamente como família em
torno de um sentimento de futilidade melancólica: “Jamais poderemos conhecer a
verdade”, diz o filme, “mas pelo menos podemos nos encolher juntos,
emocionalmente, sobre a base de um desespero comum quanto a conhecê-la.”
Assim, Roswell termina com mais um contrafator
satânico: o da humildade.
Em vez de uma reverência piedosa diante do que transcende a forma, somos
deixados com uma atonia hipnótica e desesperançada diante do que jamais
a alcançou, ou caiu abaixo dela.
Contudo, como diz Rumi, as moedas falsas só
existem porque existe o ouro verdadeiro; ou, nas palavras de Meister
Eckhart, “Quanto mais ele blasfema, mais louva a Deus.”
Assim, a prática espiritual aqui não é lutar com
as sombras da contradição e da incerteza, mas voltar-se 180 graus para
longe delas.
É deixar que o falso lembre o verdadeiro: fazer da contradição sem esperança uma
forma de lembrar a Verdade divina absoluta que eternamente possui o poder de
resolvê-la; e da incerteza sem fim uma forma de lembrar a Vida divina infinita
que irradia do núcleo dessa Verdade — pela qual podemos, nas palavras famosas
de Blake,
“Ver o mundo num grão de areia
E o Céu numa flor selvagem,
Ter o Infinito na palma da mão
E a Eternidade numa hora.”
A falsa humildade diante do que é menos real que
você o torna arrogante e destrói sua dignidade humana. A verdadeira
humildade diante do que é infinitamente maior que você o abençoa e eleva —
razão pela qual os muçulmanos dizem que o homem, porque é servo de Deus, é por
isso mesmo Seu vicegerente, Seu representante plenamente autorizado
neste mundo.
Abdução: A Agenda Ontológica
O contato alienígena representa uma irrupção no
plano material de forças sub-humanas provenientes do domínio sutil, cujo
objetivo é a dissolução de nosso mundo. Mas, embora a dissolução seja o
fim natural de qualquer ciclo de manifestação, não somos obrigados a
capitular às forças que a produzem, pois há em nós uma centelha da Natureza
divina que está além da manifestação, que não foi velada pelo começo nem
corrompida pela queda, e não será alterada pelo fim.
Mas, se esquecermos isso — se desviarmos nossa
atenção espiritual do Espírito de Deus para as forças do caos e da subversão
que são Sua sombra —, então nosso retorno a Ele, que, segundo o Alcorão, é o
destino de todos os seres, será indefinidamente retardado, e acabará
ocorrendo pela via sombria do tormento infernal, e não pelo caminho
da Misericórdia divina, o caminho do Amor e da Sabedoria de Deus.
Segundo Guénon, como recordarás, a adoção de
crenças materialistas pela massa da humanidade resultou em uma “solidificação
do mundo”.
Mas o materialismo já ultrapassou seu ápice — uma verdade que Guénon já via em
1945 e que hoje é muito mais evidente.
No final do século XIX, quando a ideologia
materialista estava em seu auge, religião e “superstição” foram
desmascaradas.
Mas hoje, à medida que essa ideologia perde poder — sendo a queda da União
Soviética um dos sinais mais claros disso —, e à medida que a crença em seres
sutis e mundos invisíveis se torna mais aceitável, essa aceitação não assume
a forma de um retorno à religião e à metafísica, que continuam a ser
erodidas, mas sim de uma fascinação coletiva por possibilidades misteriosas
e sinistras, exatamente como Guénon previu.
A “transcendência” pós-moderna do paradigma
modernista, do qual o materialismo era parte integral — Marx e Darwin sendo
dois de seus pilares centrais — resultou não em um renascimento da teologia
tradicional, mas em uma adoração niilista da fragmentação e do caos sob
o nome de “celebração da diversidade”.
O pós-modernismo revela-se um caldeirão tóxico
no qual ciência oculta, material cultural desintegrado e forças
“infrapsíquicas” se misturam em proporções quase iguais.
Nas palavras do próprio Guénon:
A concepção materialista, uma vez formada e
difundida de um modo ou de outro, só pode servir para reforçar a própria
“solidificação” do mundo que, em primeiro lugar, a tornou possível... a
“solidificação” nunca pode ser completa, e há limites além dos quais não pode
ir... quanto mais a “solidificação” avança, mais precária se torna, pois o grau
mais baixo é também o menos estável; a crescente rapidez das mudanças que
ocorrem no mundo de hoje é um testemunho eloquente demais dessa verdade...
embora o domínio do materialismo esteja enfraquecendo, não há motivo para
alegrar-se, pois a manifestação cíclica ainda não está completa, e as
“fissuras” só podem ser produzidas de baixo; em outras palavras, o que
“interfere” com o mundo sensível através dessas fissuras só pode ser um
“psiquismo cósmico inferior”, em suas formas mais destrutivas e
desorganizadoras — e é claro que influências desse tipo são as únicas realmente
adequadas a uma ação que tenha a dissolução como objetivo... tudo o que tende a
favorecer e ampliar essas “interferências” corresponde, consciente ou
inconscientemente, a uma nova fase da desviação de que o materialismo
representou, na realidade, um estágio menos “avançado”... Na tradição islâmica,
essas “fissuras” são aquelas pelas quais, no fim do ciclo, as hordas
devastadoras de Gogue e Magogue forçarão sua entrada, pois não cessam de
tentar invadir este mundo; essas “entidades” representam as influências
inferiores em questão.
(O Reino da Quantidade, pp. 145, 147, 202, 206)
Nenhuma exposição mais clara da “agenda
ontológica” dos “alienígenas” atuais nos é disponível do que o livro Abduction:
Human Encounters with Aliens, do autor ganhador do Prêmio Pulitzer e
psiquiatra de Harvard John E. Mack.
Baseado em quase cem casos de “abdução alienígena”,
o Dr. Mack (como Jacques Vallee, cuja preeminência como ufólogo ele reconhece)
conclui que tais abduções são reais e realizadas por entidades de planos mais
sutis do ser, que têm poder de tocar fisicamente este plano.
Ele mergulha mais fundo que Vallee na análise do “pacto
psicológico e psicofísico” frequentemente estabelecido entre os alienígenas
e seus abduzidos, mas ignora, por alguma razão, as descobertas de Vallee sobre
o envolvimento de grupos humanos praticando engano e controle mental.
Segundo Mack, a abdução alienígena tende a
ocorrer em famílias.
Muitos abduzidos tiveram pais alcoólatras ou emocionalmente frios, vieram de
lares desfeitos ou sofreram abuso sexual infantil. Mack menciona um
estudo em que a experiência de abdução é relacionada a abusos rituais por
cultos satânicos.
A interação com os “alienígenas” pode começar já
aos 2 ou 3 anos de idade.
Na infância, eles geralmente aparecem como relativamente benignos; mas, quando
o abduzido atinge a puberdade, suas ações se tornam mais sinistras.
Os abduzidos às vezes transferem aos alienígenas sentimentos de amor não
correspondidos no ambiente familiar — e experimentam ser amados em troca.
Muitos abduzidos, na estimativa de Mack, parecem
particularmente psíquicos ou intuitivos; muitos experimentam o desenvolvimento
de poderes psíquicos como resultado da própria abdução.
Os “alienígenas” exibem características comumente encontradas no xamanismo;
eles, ou suas naves, às vezes aparecem como animais. Também guardam uma
semelhança óbvia com os tradicionais “deuses, espíritos, anjos, fadas,
demônios, goules, vampiros e monstros marinhos” — embora pareça que Mack é
incapaz de diferenciar entre os vários tipos de seres sutis, ou não queira
fazê-lo. E embora avistamentos de OVNIs ocorram no mundo todo, a maioria das
abduções é relatada no hemisfério ocidental, com os Estados Unidos liderando a
lista. (A correlação entre atividade de OVNIs e frieza emocional tem um detalhe
interessante: o psicanalista freudiano dissidente Wilhelm Reich, pai de grande
parte do “trabalho corporal” de hoje, tentava, no fim da vida — quando muitos
creem que se havia desequilibrado mentalmente —, manipular e aumentar uma sutil
“energia vital” que chamou de “orgone”, como parte de sua luta contra a “praga
emocional”. Este era o seu nome para um congelamento em massa da emoção humana,
muitas vezes expresso nos termos do que chamava de “couraça de caráter”, bem
como por meio de movimentos sociais como o nazismo. Segundo Reich, os OVNIs,
como fonte de “energia orgônica mortífera”, eram em parte responsáveis por essa
praga.)
Os sequestradores alienígenas submetem suas vítimas
a procedimentos “de aspecto médico” aterrorizantes e humilhantes. Também as
observam voyeuristicamente enquanto praticam relações sexuais, ou eles próprios
mantêm relações com elas. Uma das principais agendas dos alienígenas parece ser
extrair esperma e óvulos de seus abduzidos para engenheirar geneticamente uma
raça “híbrida” humano/alienígena. Abduzidas do sexo feminino experimentam esses
fetos híbridos sendo colocados em seus ventres e, depois, de algum modo
removidos alguns meses mais tarde, para continuar seu crescimento a bordo das
“naves” alienígenas.
Suas “mães” às vezes são reabduzidas e então
orientadas a mostrar amor materno a esses seres híbridos, que parecem
“apáticos”. Não há evidência de gravidezes físicas reais. Após a abdução,
muitas vítimas passam a se perceber como possuindo agora, ou como sempre tendo
possuído, uma identidade dupla “humana/alienígena”; às vezes se veem realizando
os mesmos “procedimentos” ou “experimentos” sobre novos abduzidos que foram
originalmente realizados nelas.
O Dr. Mack apresenta, em seus relatos de caso,
algumas das histórias mais horripilantes de ataque e possessão demoníaca que já
encontrei, embora ele não as reconheça como tais. Ele admite (p. 13) que “os
abduzidos... carregam cicatrizes físicas e psicológicas de sua experiência.
Elas vão de pesadelos e ansiedade a agitação nervosa crônica, depressão,
chegando mesmo à psicose, até cicatrizes físicas — marcas de perfuração e
incisão, escoriações, queimaduras e feridas”. Fala de casamentos desfeitos e
alienação de afeto entre pais e filhos entre os efeitos posteriores mais
comuns, e diz que efeitos físicos e psicológicos negativos persistem mesmo em
casos em que ocorre cura espontânea de doenças crônicas ou incuráveis.
Naturalmente se suporia, portanto, que sua abordagem terapêutica incluiria uma
tentativa de proteger seus pacientes de influências alienígenas contínuas e
ajudá-los a romper quaisquer laços psicológicos remanescentes. Mas não é esse o
caso, porque Mack, de modo chocante, acredita que a influência dos alienígenas,
em geral, é boa! Ele vê seu papel como o de ajudar seus clientes a lembrar as
experiências de abdução, muitas vezes por meio de hipnose (que, aliás, tem-se
mostrado tão pouco confiável como ferramenta para acessar “memórias
recuperadas” que os tribunais recentemente desautorizaram depoimentos baseados
nela) — e então ajudá-los a lidar com as emoções violentas e horríveis que tais
memórias implicam — e então ajudá-los a aceitar que sua experiência é (de algum
modo) em última análise “positiva”, “transformadora” ou “espiritual”. Ele se vê
apoiando-os mais contra terapeutas céticos e membros da família do que contra
os próprios sequestradores alienígenas. “Em meu trabalho com abduzidos”, diz,
“estou plenamente envolvido, experienciando e revivendo com eles [sic] o mundo
que eles estão trazendo à tona a partir do inconsciente.” Tem-se a nítida
impressão de que a sessão terapêutica com o Dr. Mack é, na verdade, a segunda
metade ausente da própria experiência de abdução, que inclui tanto um evento
original profundamente traumático, ou série de eventos, quanto a aceitação final
da experiência, em contradição com os sentimentos mais profundos do paciente,
como uma “mensagem” ou “missão” dos alienígenas, no enquadramento terapêutico
“permissivo”, “de apoio”, “não ameaçador”, “não julgador”, “acolhedor”
fornecido pelo Dr. Mack. Seria interessante, contudo, ver como alguns dos
pacientes de Mack reagiriam em um ambiente diferente — o de um exorcismo
tradicional, por exemplo. Seus sentimentos deliberadamente reprimidos de terem
sido profundamente violados reemergiriam em tal contexto? A aceitação plena
desses sentimentos levaria a uma conclusão radicalmente diferente acerca da
verdadeira agenda dos alienígenas? O próprio Mack parece ver sua interação com
seus clientes como parte da “composição” da experiência de abdução. Ele a descreve
como um processo “cocriativo”, “o produto de um entrelaçamento ou confluência
da consciência de duas (ou mais) pessoas na sala. Algo pode ser trazido à tona
que não estava lá antes exatamente na mesma forma” (p. 391). Precisamente.
Ler Mack é como observar, através de um espelho
unidirecional, as manobras de um médico confuso que está tão fascinado com a
tarefa de diagnosticar uma doença que se esqueceu de que seu dever é curar o
paciente. Talvez ele simplesmente não saiba por onde começar a tratar a doença
que o confronta. Mas só se pode concluir de seu livro — já que ele o afirma
abertamente — que ele aceita a agenda alienígena relatada por seus pacientes
atormentados e traumatizados, porque eles mesmos a aceitam. Seria esta a forma
final da “terapia centrada no cliente” de Carl Rogers? A ideia de que, já que o
paciente escolheu a esquizofrenia, ou a possessão demoníaca, o papel do
psiquiatra é apoiá-lo nessa escolha e ajudá-lo a enlouquecer? É claro que o
cliente “aceita” o programa alienígena: ele está possuído por ele — exatamente
como uma célula humana invadida por um vírus, que utiliza a própria estrutura
genética da célula para criar réplicas de si, está possuída pelo vírus. Mas só
porque o sistema imunológico de uma pessoa falha em superar o ataque de um
micróbio, devemos então sufragar esse “escolha”? Isso é boa prática médica?
(Não por acaso C. S. Lewis, em That Hideous Strength, chamou os seres
espaciais demoníacos e/ou anjos caídos empenhados em conquistar a Terra de “macrobes”.)
Mack vasculha fragmentos dispersos de saberes espirituais e ocultos para
explicar o que seus pacientes estão passando e nada encontra além de evidências
de que tais coisas sempre ocorreram, somadas a especulações baseadas nas
declarações feitas pelos próprios alienígenas! Mas, se alguém me sequestra e
tortura, isso é alguma indicação de que eu deva acreditar no que ele diz? Tal
atitude é de algum modo racional, para não dizer sã no nível do sentimento
humano normal? E o fato de coisas semelhantes terem ocorrido ao longo da
história é algo puramente elementar. O poder de realidades de dimensões
invisíveis de incidir sobre nosso mundo sempre fez parte do conhecimento
humano, não obstante sua supressão pelo materialismo reducionista nos últimos
dois séculos. Mack constrói seu argumento para aceitar a agenda alienígena no
fato de que a mera presença deles derruba o paradigma materialista. Mas, se é
assim, por que não pode ele aceitar o consenso comum dos milênios
pré-materialistas, quando era bem entendido — como ainda o é por muitos hoje —
que manifestações como as que ele relata indicam a presença de demônios, e que
os demônios são, em todos os casos em que isso serve a seus fins — e às vezes
porque simplesmente não conseguem evitar —, mentirosos deliberados? Ele lucra
jubilosamente com a negação, por parte do materialismo, da validade da religião
e de qualquer senso de ordem moral no universo; é precisamente isso que lhe
permite aceitar uma realidade puramente demoníaca de natureza sutil — acoplada
a uma filosofia sinistra e autocontraditória — e então apresentá-la como a
arauta de uma grande mudança de paradigma porque transcende o materialismo.
Isto é exatamente o que Guénon quis dizer quando afirmou que o materialismo
primeiro “solidifica” a mentalidade humana e depois produz “fissuras” que se
abrem não para o “celestial”, mas para o “infrapsíquico”.
A prática correta, quando confrontados com
manifestações como a abdução alienígena, para as quais as evidências duras
continuam a se acumular, é simplesmente admitir o óbvio — que tais
manifestações existem — e então passar a fazer as perguntas que ocorrerão
imediatamente a qualquer ser humano normal e religiosamente instruído: (1) A
manifestação em questão é boa, neutra ou má? (2) Se é boa, o que nos pede? (3)
Se é neutra, é útil ou perda de tempo? (4) Se é má, como podemos evitá-la e/ou
combatê-la? Alguém que não consegue formular sequer essas perguntas mais
elementares e inevitáveis não é, de modo algum, médico de almas. E,
infelizmente, Mack cai nessa categoria. Ele parece acreditar que formular
questões morais sobre o que aparenta ser ações deliberadas de seres conscientes
é de algum modo anticientífico, e repete o clichê niilista comum, derivado de
uma metafísica contrafeita, de que seres de planos mais sutis estão de algum modo
além do bem e do mal. Ele atribui ignorantemente essa metafísica contrafeita ao
budismo tibetano e opõe-a à do judaico-cristianismo:
“Para a percepção polarizante do dualismo cristão, esses seres de olhos escuros
parecem ser os companheiros do Diabo (Downing, 1990). Tradições religiosas
orientais, como o budismo tibetano, que sempre reconheceram a vasta gama de
entidades espirituais no cosmos, parecem ter menos dificuldade em aceitar a
realidade do fenômeno de abdução por OVNIs do que os monoteísmos mais
dualistas, que oferecem poderosa resistência à aceitação” (p. 412).
Em relação à crença de que realidades superiores
são moralmente neutras, o ensinamento de Frithjof Schuon sobre o assunto é o
seguinte: Deus pode estar “além do bem e do mal” porque transcende toda a
relatividade, mas isso não significa que Ele esteja “além do bem”, ou
moralmente neutro em sua relação conosco, ou de algum modo meio bom e meio mau.
Ele é o Soberano Bem, além de qualquer relação concebível com a
manifestação fragmentária e privativa que chamamos de “mal”. Sua bondade
transcende a definição como “o oposto do mal” não porque esteja, de algum modo,
envolvida com o mal, mas porque é Absoluta e, consequentemente, não tem
oposto.
Quando Mack usa a palavra “aceitação” no trecho acima,
ele quer dizer “aceitação como real” ou “aceitação como boa e/ou inevitável”,
como quando ajuda seus clientes, no ambiente terapêutico, a superar sua
resistência natural e aceitar a agenda alienígena? Ele parece dizer que o
budismo tibetano, com sua compreensão da “vasta gama de entidades espirituais
no cosmos”, as aceita como reais, ao passo que a tradição cristã não o faz. Mas
o cristianismo, ao ver os alienígenas como “companheiros do Diabo”, obviamente
os aceita como reais, pela própria admissão de Mack. Mack torna a
palavra “aceitação” deliberadamente ambígua para insinuar que, enquanto o
cristianismo estreitamente os rejeita como maus, o budismo tibetano, de visão
ampla, os aceita como parte natural do cosmo; mas tudo o que ele realmente
conseguiu afirmar de modo factual é que os budistas tibetanos creem que são
reais — o que, é claro, também é verdadeiro para os cristãos. Sua intenção
óbvia é criar uma cunha entre cristianismo e budismo, e insinuar que os
tibetanos, ao aceitarem os alienígenas como reais, necessariamente os aceitam
como bons, como se o budismo tibetano não possuísse doutrina do demoníaco.
Não é o caso, evidentemente. Tanto o cristianismo quanto o vajrayana reconhecem
a existência de entidades demoníacas — a diferença é que os cristãos creem que
são eternamente condenadas, ao passo que os budistas sustentam que, pagos seus
débitos kármicos, podem passar a modos de existência relativamente menos
infernais, e que grandes santos podem, em ocasiões, até mesmo convertê-las ao
budismo! Mas seus efeitos profundamente destrutivos, e a necessidade de
combatê-las vigorosamente no plano espiritual, são plenamente reconhecidos
por ambas as tradições; insinuar o contrário é ou culposamente ignorante ou
efetivamente calunioso para com o budismo tibetano. E só porque os demônios são
entendidos esotericamente no vajrayana como aparições concebidas na própria
mente, que simbolizam apegos e paixões obscurecedores, isso em nada os torna
menos reais; afinal, a forma humana também é uma aparição concebida na própria
mente — que é, em última análise, a mente do Buda —, simbólica neste caso do
“estado humano difícil de alcançar”, o único estado a partir do qual o
potencial para a Iluminação Total Perfeita pode ser realizado.
Padma-sambhava, o grande adepto do vajrayana que
levou o budismo ao Tibete, passou muito de seu tempo combatendo e subjugando
demônios. As passagens seguintes são de The Tibetan Book of the Great
Liberation, de W. Y. Evans-Wentz:
“Então Padma pensou: ‘Não posso muito bem difundir a Doutrina e ajudar os seres
sencientes até que eu destrua o mal’... subjugou todos... os demônios e
espíritos malignos, matou-os e levou seus corações e sangue à sua boca. Seus
princípios-de-consciência ele transmutou na sílaba Hum e fez o Hum
desaparecer nos mundos celestes... Transformando-se no Rei das Deidades
Irascíveis, Padma, sentado em meditação, subjugou os Gnomos... Padma realizou
danças mágicas na superfície de um lago venenoso em ebulição, e todos os nagas
malignos e demoníacos que habitavam o lago se submeteram a ele... subjugou
vários tipos de demônios, como os que causam epidemias, doenças, obstáculos,
granizo e fome... Padma trouxe todos os deuses que habitam os céus presididos
por Brahma sob seu controle... E, sob outros disfarces, Padma venceu todos os
mais furiosos e temíveis espíritos malignos e 21.000 demônios, machos e
fêmeas... as deusas Remati e Ekadzati apareceram diante de Padma e o louvaram
por ter conquistado todos os males e todas as divindades” (pp. 139–142).
Em linha com
as constatações de Mack, os alienígenas deveriam obviamente ser classificados
entre os “demônios que causam doenças e obstáculos” — mas, se ele tem tanto
respeito pelo budismo tibetano, por que não os vê como forças a serem
subjugadas? Presumo que seja porque ele não é mais um budista vajrayana do que
é um cristão, embora não se envergonhe de tirar doutrinas de ambas as
tradições de seus contextos e usá-las para seus próprios fins. “Não pode
haver muito lugar”, diz ele, “especialmente dentro da tradição judaico-cristã,
para uma variedade de pequenos, porém poderosos, seres domésticos que
administram uma mistura estranha de trauma e transcendência sem aparente
respeito por qualquer hierarquia ou doutrina religiosa estabelecida” (p. 412).
Mas, como acabamos de ver, o judaico-cristianismo tem um lugar perfeito para
eles: as regiões infernais. Sua falta de “respeito” por qualquer
“hierarquia ou doutrina religiosa estabelecida” claramente não representa uma
incapacidade das religiões reveladas de lhes dar sentido, mas sim uma vontade,
por parte dos alienígenas, de descreditar as religiões reveladas — uma
agenda que Mack, como demonstrado no trecho acima, apoia. E não há maneira
melhor de minar a religião revelada do que associar a ideia de “transcendência”
à ideia de “violação traumática”, separando assim o Verdadeiro do Bom na mente
das vítimas, e associando a Verdade, não à Bondade, mas ao mal e ao poder nu.
Segundo a metafísica tradicional, o Ser puro é em si o Sumo Bem a quem chamamos
Deus; consequentemente, quanto mais real algo é, melhor ele é, e quanto melhor
algo é, mais real ele é. É meta do Anticristo separar a Verdade da Bondade e do
Amor, e uni-la em vez disso ao poder implacável, para assim varrer da terra a
Bondade e o Amor.
Mack responde repetidas vezes aos críticos que
atribuem a aceitação, pelos abduzidos, da agenda dos alienígenas à “Síndrome de
Estocolmo”, a tendência psicológica documentada de vítimas se identificarem com
seus algozes, como Patty Hearst fez com os terroristas que a sequestraram. Ele
diz (p. 339):
Em contraste com os propósitos estreitos e interesseiros de abusadores humanos
e sequestradores políticos, os seres revelam um propósito compartilhado e
oferecem a possibilidade de abertura para uma cosmovisão inclusiva e mais
ampla, que é poderosamente internalizada por muitos abduzidos.
Mas Patty Hearst também foi aberta a um “propósito
compartilhado” baseado numa “cosmovisão inclusiva e mais ampla” — a da luta de
classes global, em oposição à vida protegida de uma moça rica e mimada — pela
Exército Simbionês de Libertação; e qualquer criança cuja primeira experiência
sexual seja com um sequestrador ou molestador certamente teve sua cosmovisão
ampliada, embora de maneira terrivelmente destrutiva. Não há contradição
necessária entre um “propósito interesseiro” e uma “cosmovisão mais ampla”.
Hitler, que não só era interesseiro como fez do ato de servi-lo uma
pseudorreligião, abriu vistas extremamente amplas ao povo alemão. Infelizmente
para eles, e para o resto do mundo, eram vistas do mal.
Na p. 407, o Dr. Mack tenta defender abusos
humilhantes e desumanizadores como experiência positiva e transformadora. Ele
diz:
Costumam me perguntar como experiências tão traumáticas, e até cruéis às vezes,
podem também ser espiritualmente transformadoras. Para mim não há inconsistência
aqui, a menos que alguém reserve a espiritualidade para esferas livres de dor e
luta. Às vezes nosso aprendizado espiritual mais útil vem às mãos de mestres
ásperos, que têm pouca consideração por nossas presunções, defesas psicológicas
ou pontos de vista estabelecidos.
Qualquer que seja sua intenção, uma afirmação tão
abrangente poderia ser interpretada como defesa não apenas do “direito” de
alienígenas nos sequestrarem, mas do “direito” de gurus megalomaníacos e
psiquiatras antiéticos abusarem psicologicamente e sexualmente de seus devotos
e clientes. É verdade que a experiência dos campos de extermínio nazistas foi
poderosamente transformadora, em sentido espiritual, para alguns judeus; Elie
Wiesel e Viktor Frankl vêm imediatamente à mente. Mas isso significa que os
nazistas foram uma força espiritual para o bem no mundo? Mais uma vez, devo
citar as palavras de Jesus: “É necessário que venha o escândalo, mas ai daquele
por quem o escândalo vem.” Creia alguém em OVNIs e abdução alienígena ou não,
os graves perigos da abordagem de Mack deveriam ser óbvios.
Incrivelmente, Mack vê a experiência de abdução
como paradigma de “crescimento pessoal e transformação”. Ele a apresenta em
termos de oito elementos, ou estágios (pp. 48–49): (1) “Atravessar” a morte do
ego rumo à aceitação; (2) reconhecer os alienígenas como intermediários entre o
estado humano e uma consciência cósmica impessoal; (3) experimentar
extaticamente um retorno ao “Lar” dessa consciência; (4) recordar vidas
passadas; (5) obter uma consciência ampliada que transcende o nível material e
inclui grandes ciclos de manifestação reencarnacional; (6) identificação da
própria consciência com uma vasta gama de outras formas de consciência,
incluindo as de espíritos elementais e dinossauros; (7) experiência de
identidade dual humano/alienígena; (8) alcance de uma consciência
multidimensional que parece transcender a matriz espaço-temporal. Trate-mos
desses itens um por um.
(1) A falsidade aqui é identificar a rendição
voluntária do próprio ego com a quebra forçada da própria vontade. Deus não é
hipnotizador nem terrorista. Uma relação profunda e fecunda com a Fonte de Toda
Vida não pode ser produto de lavagem cerebral e controle mental. Portanto,
quaisquer forças que empreguem tais técnicas se opõem a Deus. Como escreve C.
S. Lewis em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, falando pela boca de seu
demônio Fitapixa (pp. 37–38):
Para nós, um ser humano é primordialmente alimento; nossa meta é a absorção de
sua vontade na nossa, o aumento de nossa própria área de individualidade às
custas dele. Mas a obediência que o Inimigo exige dos homens é coisa bem
diferente. [...] O serviço d’Ele [é] perfeita liberdade. [...] Queremos gado
que afinal possa virar alimento; Ele quer servos que afinal possam virar filhos.
Nas palavras de Maomé (sobre quem haja paz), “não há compulsão na religião”.
(2) Os jinn são, em certo sentido, intermediários
entre o estado humano e níveis mais altos de consciência, simplesmente porque
habitam um plano mais sutil da Grande Cadeia do Ser — mas crer que possam ser
intermediários para nós é uma falsidade: eles não estão no “tronco
humano”. E se os jinn que encontramos forem, por acaso, o que os cristãos
chamam de “anjos caídos” — seres do plano sutil que se voltaram contra a Fonte
da Vida por uso pervertido do livre-arbítrio —, então só podem agir como
intermediários eficazes entre nós e a nossa própria destruição espiritual.
Quando Jesus disse, “ninguém vem ao Pai senão por mim”, uma das coisas que quis
dizer é que nenhum ser humano pode unir-se a Deus por qualquer outra via que
não a Humanidade de Deus. Como dizem os muçulmanos, os seres humanos
relacionam-se com Deus em virtude de nossa fitrah, nossa natureza humana
primordial criada por Deus. Consequentemente, a imagem de Deus como uma
“consciência cósmica impessoal” é outra falsidade. No primeiro nível da Grande
Cadeia do Ser, Deus está Além-do-Ser, a Essência divina incognoscível, a
“Deidade” dos místicos; mas não temos acesso a essa Deidade senão por meio do
segundo nível, por meio do Deus pessoal. E esse Deus não é um Ser separado, mas
é de uma só Essência com a Deidade. A Deidade não é impessoal, em outras
palavras, mas transpessoal; se a Personalidade divina não fosse um potencial
dentro da Deidade transpessoal, essa Personalidade jamais poderia aparecer.
Crer o contrário é identificar autotranscendência e União mística com alienação
e desumanização. E esta é uma imagem contrafeita, demasiadamente comum, do
Caminho espiritual na mente de muitos, que os alienígenas — como autênticos
“espíritos de alienação” — estão aqui para explorar.
(3) A experiência extática de um retorno ao “Lar” —
um nome para o ponto de origem dos alienígenas tomado diretamente do filme E.T.,
a propósito — só pode, dado o contexto horrífico, ser uma falsidade demoníaca.
Porque os alienígenas têm acesso ao plano psíquico, podem, é claro, produzir
intensas experiências psíquicas, como Mack demonstra repetidamente; tais
experiências, como bem sabemos, podem até ser iniciadas por substâncias
químicas. E dado o rescaldo do materialismo que ainda nos aflige, é mais fácil
do que nunca para eles fazerem passar experiências psíquicas por realizações
espirituais, já que quase ninguém hoje em dia é ensinado sequer à necessidade
do “discernimento de espíritos”, quanto menos aos critérios necessários, e já
que qualquer coisa de qualidade mais sutil do que o nível material morto da
ambiência atual provavelmente parecerá “numinosa”.
Segundo o Dr. Mack, a maioria (mas não todas) das
abduções por OVNIs parecem ser “experiências fora do corpo”. Serafim Rose, em A
Alma após a Morte (St Herman of Alaska Brotherhood, Platina, Califórnia,
1980), pp. 115–116, diz o seguinte sobre tais experiências:
Pode-se perguntar: e quanto aos sentimentos de “paz” e “agradabilidade” que
parecem ser quase universais no estado “fora do corpo”? E quanto à visão de
“luz” que tantos veem? [...] Essas experiências são “naturais” à alma quando
separada do corpo. [...] Nesse sentido, a “paz” e a “agradabilidade” da
experiência fora do corpo podem ser consideradas reais e não um engano. O
engano entra, contudo, no instante em que alguém começa a interpretar esses
sentimentos “naturais” como algo “espiritual” — como se essa paz fosse a
verdadeira paz da reconciliação com Deus, e a “agradabilidade” fosse o verdadeiro
deleite espiritual do céu.
(4; 5) Mais uma vez, a transcendência da
consciência corpórea grosseira não é prova de desenvolvimento espiritual, nem
sequer de experiência espiritual válida. E a recordação de vidas passadas, como
já vimos, é uma falsidade se tomada literalmente. Ademais, por permanecer no
plano meramente psíquico, o plano da “metempsicose”, não é de modo algum
espiritual.
(6) A identificação da própria consciência com uma
vasta gama de outros tipos de consciência é marca de dissolução psíquica, não
de desenvolvimento espiritual. O mandato humano é primeiro reconhecer a total
dependência de Deus e, por fim, ver-se com os olhos de Deus, tornando-se assim
identificado com o Arquétipo eterno da Humanidade dentro da Natureza divina, o
“Adão primordial”. Pelos olhos dessa Humanidade divina, podemos contemplar e
obter insight sobre outras formas de consciência — orgânicas, psíquicas e
espirituais; esse é o sentido do mito, presente tanto no Alcorão quanto no
Gênesis, de que “Adão nomeou os animais”: ele viu suas naturezas essenciais, os
Nomes de Deus que eram e são seus arquétipos eternos. Mas permitir que a
própria consciência flua horizontalmente para outras formas não humanas e
subumanas por meio do abandono da forma humana chama-se “loucura” no plano
psíquico e “condenação” no plano espiritual. Segundo o Alcorão, depois que
Allah criou Adão, ordenou aos anjos que a ele se prostrassem. Todo anjo
obedeceu — exceto Iblis, o Satanás muçulmano. Abrir a psique às variações
intermináveis da manifestação cósmica sem manter fidelidade à própria forma
humana, tal como ela existe na mente de Deus, é prostrar-se a Iblis e entrar
“nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes”.
(7) A experiência de identidade dual
humano/alienígena é transtorno de personalidade múltipla no plano psíquico e
possessão demoníaca no plano espiritual. Assim como os vampiros do folclore
transformam suas vítimas em vampiros, os sequestradores alienígenas
“transformam suas vítimas em alienígenas” ao “roubar-lhes a alma” — destruindo
sua identificação com a própria humanidade.
(8) A marca da verdadeira consciência superior é a
Unidade: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é Um.” O caleidoscópio
multidimensional do mundo dos jinn é destrutivo à Unidade, a menos que seja
visto com olhos de Unidade: e só a identificação contemplativa com o que está
acima de nós na Grande Cadeia do Ser — não com dinossauros, que estão abaixo de
nós (sem falar que estão extintos!), nem com espíritos elementais que, embora
mais sutis do que nós, não são centrais como nós (sendo algo como fagulhas ou
reverberações do Adão Primordial no plano sutil-material) — pode dar-nos esses
olhos.
Os alienígenas são mentirosos. Como o próprio Mack
admite, na p. 415, “eu não diria que os alienígenas nunca recorrem a enganos
para ocultar seus propósitos”. E uma de suas mentiras é que a razão pela qual
suprimem deliberadamente as memórias da experiência de abdução é “proteger”
suas vítimas. (O objetivo real, em minha opinião, é permitir que a semente do controle
psíquico amadureça sem ser perturbada.) Mack, por outro lado, afirma que não
viu evidência de que a rememoração cause qualquer dano. Isso por si só não
deveria alertá-lo para a presença de engano? Mas, é claro, como ele admite, o
engano não lhe apresenta problemas, e certamente não o levou a questionar os
motivos dos sequestradores. Tal ingenuidade, em qualquer outra situação,
destruiria a credibilidade de quem a exibe como pesquisador objetivo. Aqui,
destrói.
O desejo de Mack de ser enganado parece ter
destruído completamente suas faculdades críticas, razão pela qual ele consegue
fazer a seguinte afirmação absurda e contraditória com, presume-se, a maior
seriedade:
Por meio da [dos alienígenas] interação com os abduzidos, eles os aproximam (e
a todos nós, potencialmente) de nossas raízes cósmicas espirituais,
devolvem-nos à luz divina ou ao “Lar”, um “lugar” (na verdade, um estado de
ser) onde o segredo, o ciúme, a ganância e a destrutividade não têm propósito.
Os alienígenas, por outro lado, anseiam experimentar a intensa emocionalidade
que vem com nossa plena corporificação. Eles se fascinam por nossa
sensualidade, nosso calor, nossa capacidade de erotismo e profundo afeto
parental, e parecem responder ao amor de coração aberto. Em certos momentos agem
como crianças carentes de amor. Deleitam-se em ver humanos em todo tipo de atos
de amor, que podem até encenar enquanto ficam ao redor assistindo e tagarelando
enquanto os abduzidos os realizam (pp. 415–416).
Neste ponto, parece quase injusto aproveitar-se da
vulnerabilidade do Dr. Mack apontando as vertiginosas inconsistências do trecho
acima — mas o dever chama: se os alienígenas vêm de um “Lar” onde o segredo não
tem propósito, por que tantas vezes mantêm suas abduções em segredo apagando
toda memória delas da mente de suas vítimas? Se a destrutividade não tem
propósito lá, por que são tão destrutivos, física, social e psicologicamente,
para os infelizes que os encontram? Se se deleitam com nosso afeto parental,
por que a alienação de afeto entre pais e filhos é amiúde um dos efeitos
posteriores da abdução (p. 30)? E o que observar voyeuristicamente — para não
dizer encenar pornograficamente — atos de relação sexual humana tem a ver com
amor?
“A própria relação humano/alienígena evolui para um
vínculo poderoso”, diz Mack.
Apesar do ressentimento e da terrorização, os abduzidos podem sentir profundo
amor pelos seres alienígenas, especialmente pelas figuras líderes, o que
experimentam como reciprocado, a despeito do modo frio e profissional com que
as próprias abduções são conduzidas. Os alienígenas podem ser percebidos como
verdadeira família, tendo protegido os experienciadores das depredações,
doenças e perdas humanas.
Mas o próprio Mack, no mesmo livro, documentou como
os alienígenas comumente produzem doença e perda! Mais uma vez, vemos, com
nauseante clareza, como a negação é virtude apenas para o verdadeiro crente.
O “vínculo
poderoso” que alguns abduzidos desenvolvem com seus algozes é, é claro, nenhuma
prova de que a relação seja saudável, porque — como todos sabemos — o mal
seduz. C. S. Lewis, em Essa Força Medonha (That Hideous Strength,
pp. 268–269), oferece esta descrição arrepiantemente precisa da tentação
demoníaca de seu herói pelas forças do Anticristo:
De repente, como algo que lhe saltasse através de distâncias infinitas com a
velocidade da luz, o desejo (salgado, negro, voraz, inexorável) agarrou-o pela
garganta. A mera dica bastará para transmitir, àqueles que a sentiram, a
qualidade da emoção que agora o sacudia, como um cão sacudindo um rato; para
outros, nenhuma descrição talvez baste. Muitos escritores falam disso em termos
de luxúria: descrição admiravelmente esclarecedora por dentro, totalmente
enganosa por fora. [...] Tudo o mais que Mark jamais sentira — amor, ambição,
fome, a própria luxúria — parecia ter sido mera água com açúcar, brinquedos de
criança, não valendo um latejo dos nervos. A atração infinita daquela coisa
escura sugava para si todas as outras paixões: o resto do mundo aparecia
esbranquiçado, etiolado, insípido, um mundo de casamentos brancos e brancas pratos
sem sal, jogando por fichas... Mas era como a luxúria também sob outro aspecto.
É inútil apontar ao homem pervertido o horror de sua perversão: enquanto o
ataque feroz o domina, o horror é o próprio tempero de seu desejo. É a feiura
em si que se torna, ao fim, o objetivo de sua lascívia; a beleza há muito tempo
se tornou estimulante fraco demais. E assim era aqui. As criaturas... sopravam
morte sobre a raça humana e sobre toda alegria. Não apesar, mas por causa disso,
a terrível gravitação o sugava e o atraía, fascinando-o em direção a elas.
Significativamente, Mack descobre que “praticamente
todo abduzido recebe informações sobre a destruição do ecossistema terrestre e
sente-se compelido a fazer algo a respeito” (p. 413). Os alienígenas às vezes
perguntam aos abduzidos por que são tão destrutivos; por alguma razão, os
abduzidos geralmente não pensam em fazer-lhes a mesma pergunta. Frequentemente,
os abduzidos são mostrados a imagens horrendas de futura devastação ecológica e
até mesmo da divisão e desintegração real do globo, e emergem mais “sensíveis
ao meio ambiente” do que eram antes.
O “programa de hibridização humano/alienígena” é
apresentado pelos alienígenas como uma resposta ao estado do meio ambiente.
Segundo Mack:
“Tanto homens quanto mulheres passam a sentir, apesar da raiva [por terem sido
abduzidos], que estão participando — até que escolheram participar — de um
processo que é criador e doador de vida. Além disso, para a maioria dos
abduzidos, a hibridização ocorreu simultaneamente com uma iluminação
transmitida pelos seres alienígenas que lhes trouxe, de modo forçado, a
consciência do fracasso do experimento humano em sua forma atual. Os
experienciadores de abdução passam a sentir profundamente que a morte dos seres
humanos e de inúmeras outras espécies ocorrerá em vasta escala se continuarmos
em nosso curso atual e que algum tipo de nova forma de vida deve evoluir se a
essência biológica e espiritual humana há de ser preservada. Geralmente, eles
não questionam por que a manutenção da vida humana deve assumir forma tão
estranha” (pp. 414–415, itálicos do autor).
Mas, é claro, uma hibridização que parece ocorrer
no plano sutil não é biológica, nem a essência dos híbridos humano/alienígenas
é realmente humana, mais do que a do macaco humanizado recentemente produzido
na Itália, no qual foram combinados DNA humano e de macaco. Em ambos os casos,
o resultado é uma traição direta à essência humana, não sua preservação. (Aqui
temos boa evidência, aliás, de que as forças demoníacas conhecidas como
“alienígenas” podem, de fato, estar fornecendo a inspiração para a ciência da
engenharia genética — especialmente quando aplicada a seres humanos. É como se
os geneticistas, praticamente todos os quais creem que o homem evoluiu de
ancestrais semelhantes a macacos, estivessem sendo forçados a provar, na
prática, as doutrinas de seus oponentes tradicionalistas, que afirmam — como o
livro maia Popol Vuh, entre outros textos e tradições antigas — que os
macacos são na verdade homens degenerados.)
E as imagens da Terra se partindo em duas,
fornecidas pelos alienígenas, são curiosas. Nenhuma quantidade de devastação
ambiental produzida pelos homens poderia ter esse efeito. Além de ser uma
possível imagem das “fendas para baixo” na “grande muralha” de que fala Guénon,
uma conclusão lógica seria que tais imagens estão sendo usadas para nos
aterrorizar a ponto de sacrificarmos nossa sexualidade — e nossa própria
humanidade — aos terroristas alienígenas que no-las mostram; a automutilação
dos membros da seita Heaven’s Gate pode ter o mesmo significado.
Eles parecem usar nosso medo legítimo da destruição
ambiental e do fim do mundo para nos confrontar com uma tentação que pode ser
resumida assim:
A natureza é mais importante do que a forma humana — portanto, abandone tua
humanidade, trai o arquétipo humano que está diretamente acima de ti na
Natureza divina e adora, em vez disso, o que está abaixo de ti. Não retornes a
sexualidade ao seu arquétipo em Deus, por meio do amor humano normal e da
reprodução; entrega tuas energias eróticas, emocionais e reprodutivas ao
demoníaco e ao infra-humano. Se fizeres isso, poderás evitar o juízo de Deus;
poderás evitar o confronto com o arquétipo divino de tua Humanidade e não ter
de ver como te afastaste e o traíste; poderás evitar a morte — ou ao menos a
morte da espécie; a forma humana ainda poderá viver (diz a mentira) em forma
sub-humana, como um híbrido demoníaco/humano. Se queres evitar ser enviado ao
Inferno, simplesmente vai para o Inferno por vontade própria.
Estão impondo essa tentação por meio das mais
profundas e intensas emoções humanas: a paixão sexual criadora de vida e o medo
da morte universal. Como qualquer bom lavador de cérebros sabe, o terror é uma
das duas ferramentas mais eficazes para quebrar a vontade do sujeito; o alívio
é a outra. E quando o terror é intenso, às vezes o desejo sexual é o único
refúgio contra ele. Sabendo disso, os alienígenas produzem o maior medo de que
são capazes e depois oferecem o desejo sexual como saída. Por esse método,
apropriam-se da sexualidade de suas vítimas e ganham um grau de poder sobre
elas extremamente difícil de combater, pois, se uma tentativa de libertação é
proposta, a vítima teme que o terror retorne.
“Os alienígenas enfatizam o aspecto evolutivo do
processo de união das espécies, a repopulação da Terra subsequente a um colapso
ambiental total”, diz Mack (p. 417). Mas então o que se faz da “sensibilidade
ambiental” que os alienígenas supostamente produzem em suas vítimas? Que
utilidade tem a sensibilidade ambiental num mundo morto? E como alguém pode
amar a Terra e desejar preservá-la se seu “amor pela Terra” é produto de
abdução, terror e violação de sua integridade humana? Que experiência poderia
ser melhor projetada para nos fazer odiar a Terra e desesperar de salvá-la? Que
maneira melhor de tornar o ambientalismo repugnante aos crentes religiosos do
que associá-lo, em suas mentes, à atividade demoníaca? E que meio mais eficaz
de subverter o próprio ambientalismo do que criar uma falsa oposição entre
humanidade e natureza, afirmando que a única maneira de a vida orgânica —
incluindo a humana — sobreviver é se abandonarmos nossa humanidade?
Se o “experimento humano” falhou em sua forma
atual, se o colapso ambiental total é inevitável, quem se sentirá motivado a
preservar o mundo natural? E como confiar que a ação para preservar o mundo
natural será ambientalmente sã se conduzida por alguém com um sistema de
crenças tão negativo? Contrataríamos alguém para reorganizar nossa empresa que
nos dissesse, de antemão, estar convencido de que fracassaremos? Diante desse
amontoado de enganos projetados para mascarar seus motivos, só posso concluir
que o verdadeiro objetivo dos “alienígenas” é usar nosso medo do fim do mundo —
e nossa culpa por destruí-lo — como oportunidade para nos atrair à nossa
perdição.
Eis, pois, a tripla tentação demoníaca dos últimos
tempos: (1) Adorar o mundo natural em si, em vez de adorar a Deus por meio
dele; (2) Desviar nossas forças sexuais em direção sub-humana; e (3) Trair diretamente
a forma humana. E as três estão intimamente relacionadas, já que desviar nossos
poderes reprodutivos — e as profundas emoções humanas que naturalmente os
acompanham — numa direção não humana é talvez o modo mais eficaz de trair nossa
humanidade; e trair nossa humanidade é o modo mais eficaz de destruir a Terra,
pois nossa abdicação da responsabilidade concedida por Deus de agir como Seu
vice-regente no mundo material está na base de nossa adoração de ideologias
subumanas, incluindo o materialismo; e o materialismo é a visão de mundo da
qual brotaram as tecnologias subumanas que estão destruindo nosso planeta.
“Onde o homem não está, a natureza é estéril”, disse William Blake — ao que os
alienígenas respondem, de fato: “Se a desumanização está destruindo a Terra,
talvez a desumanização total possa salvá-la” — enquanto desviam nossa atenção,
por um momento ao menos, do fato de que já nos disseram que ela não pode ser
salva: contradição subliminar em sua forma mais terminal.
Felizmente, por todos os indícios, os “visitantes”
alienígenas não são dignos de crédito. Não são mestres confiáveis — para dizer
o mínimo. E às vezes os próprios alienígenas admitem isso. Num relato de
Jacques Vallée (The Invisible College, pp. 17, 21), alienígenas
humanoides disseram a um abduzido que contatam as pessoas por acaso, que
“querem confundir as pessoas” e ordenaram-lhe “não falar sabiamente sobre esta
noite”. Se o Dr. Mack tivesse sido o abduzido, tenho certeza de que teria
ficado mais do que contente em obedecer a essa ordem.
Uma Segunda Vinda Contrafeita
O mito do OVNI exerce grande poder sobre a mente
contemporânea; é um verdadeiro sinal de nossos tempos. Isso se deve ao fato de
que, apesar de todas as suas implicações sinistras, há por trás dele uma
realidade arquetípica. Para dar um exemplo: embora os OVNIs apareçam sob muitas
formas diferentes — Jacques Vallée, em UFO Chronicles of the Soviet Union
[Ballantine, 1992], diz que os ufólogos russos estão mais dispostos do que seus
equivalentes ocidentais a admitir que o fenômeno é “polivalente” —, o disco
luminoso conhecido como “prato voador” exerceu mais influência sobre a
imaginação popular do que qualquer outro. Por quê?
Carl Jung, em Flying Saucers: A Modern Myth of
Things Seen in the Sky (1959), viu em sua forma circular um símbolo de seu
“Arquétipo do Si Mesmo” e acreditava que o fenômeno representava um anseio
coletivo pela Segunda Vinda de Cristo — anseio que, em minha opinião, está
sendo cooptado pelos jinn que servem ao Anticristo e desviado, por meio da
fascinação coletiva, em direção a uma contrafação satânica da parúsia.
Muitos ufólogos, entre eles Erich von Däniken,
interpretaram a visão do Trono de Deus no primeiro capítulo de Ezequiel como
uma manifestação de OVNI, baseando-se no brilho e rapidez dos “quatro seres
vivos” (hayoth) que sustentavam o Trono, e na associação dos seres com
“rodas” e “aros cheios de olhos” e “uma roda dentro de outra roda”. Mas a visão
de Ezequiel não foi uma visão sensorial de acrobacias aéreas paradoxais e sem
sentido produzidas pelos jinn, e sim uma visão intelectual do poder criativo de
Deus manifestando-se no e como o universo. Se o Trono apareceu a seus olhos
físicos, foi apenas porque o significado do Trono já havia despontado em seu
coração.
Leo Schaya, em O Significado Universal da Cabala
(p. 84), dá o sentido simbólico da visão de Ezequiel, o que deveria bastar para
que qualquer pessoa com o mínimo de intuição espiritual veja a imensa diferença
de nível entre o fenômeno dos OVNIs e uma verdadeira teofania:
“O ‘trono’, em sua plenitude, é a primeira e espiritual cristalização de todas
as possibilidades criaturais antes que sejam postas em movimento no meio do
cosmos. Quando o ‘trono’ assume seu aspecto dinâmico e a manifestação cósmica
começa a mover-se, chama-se então de ‘carro’ (merkabah); então os quatro hayoth,
ou eixos periféricos da criação, brotam do ‘trono’ tornado ‘carro’, como
‘relâmpagos disparando em todas as direções’, medindo todas as dimensões e
todos os planos da existência manifestada. Sob o aspecto de ‘tochas’, ‘luzes
brilhantes’ ou relâmpagos espirituais, os hayoth também são chamados kerubim
[querubins], ‘aqueles que estão próximos’ do Deus vivo, isto é, que emanam
diretamente de Deus em ação. Enquanto os eixos hayóthicos viajam em todas as
direções do cosmos, deles saem as ‘rodas’ (ofanim), ou poderes
angélicos, que participam da atualização das formas esféricas e dos movimentos
cíclicos do criado; suas vibrações em espiral — por assim dizer, ‘uma roda
dentro de outra roda’ — são chamadas ‘redemoinhos’ (galgalim).”
Assim como o Anticristo imita o Cristo, os OVNIs
imitam o Trono de Deus, que, na metafísica muçulmana e hebraica, representa o
ápice da ordem criada e, em termos cristãos, aparece como o “Trono do Cordeiro”
no centro da Jerusalém Celeste.
Os alienígenas estão aqui para imitar realidades
espirituais no nível psicofísico e assim preparar o caminho para o Anticristo.
Como diz São Simeão, o Novo Teólogo, na Philokalia (p. 11):
“Os homens não entenderão que os milagres do Anticristo não têm propósito bom
ou racional, nenhum significado definido, que são alheios à verdade, cheios de
mentiras, que são uma encenação monstruosa, maliciosa e sem sentido, que
aumenta a fim de maravilhar, reduzir à perplexidade e ao esquecimento, enganar,
seduzir, atrair pela fascinação de um efeito pomposo, vazio e estúpido.”
Assim como nosso gosto em arte, arquitetura, formas
sociais e relações humanas se tornou embotado nestes últimos dias, também o é
nosso gosto em milagres. Segundo Serafim Rose:
“Cientistas sérios na [antiga] União Soviética [...] especulam que Jesus Cristo
pode ter sido um ‘cosmonauta’, e que ‘hoje podemos estar à beira de uma
‘segunda vinda’ de seres inteligentes do espaço exterior’. (Sheila Ostrander e Lynn Schroeder,
Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain, Bantam Books, 1977, pp.
98–99.) [...] Talvez nunca, desde o início da era cristã,
os demônios tenham aparecido tão abertamente e extensivamente como hoje. A
teoria dos ‘visitantes do espaço exterior’ é apenas um dos muitos pretextos que
estão usando para obter aceitação da ideia de que ‘seres superiores’ agora
devem assumir o destino da humanidade [...] A ‘mensagem’ dos OVNIs é:
preparem-se para o Anticristo; o ‘salvador’ do mundo apóstata está vindo para
governá-lo. Talvez ele mesmo venha pelo ar, a fim de completar sua imitação do
Cristo (Mt 24:30; At 1:2); talvez apenas os ‘visitantes do espaço exterior’
desçam publicamente para oferecer ‘adoração cósmica’ a seu mestre; talvez o
‘fogo do céu’ (Ap 13:13) seja apenas parte dos grandes espetáculos demoníacos
dos últimos tempos. De qualquer modo, a mensagem à humanidade contemporânea é:
esperai a salvação, não da revelação cristã e da fé em um Deus invisível, mas
de veículos no céu.”
(Orthodoxy and the Religion of the Future, pp. 102, 140–142)
Para não sermos arrastados ao campo do Anticristo,
devemos superar, com a ajuda de Deus, a tripla tentação apresentada acima.
Devemos lembrar que as formas da natureza não são para ser adoradas, mas que
somos chamados a adorar o Deus invisível e transcendente por meio delas,
reconhecendo-as como manifestações simbólicas de realidades eternas ocultas na
Natureza divina. Como diz São Paulo:
“Porque as coisas invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, são vistas,
sendo compreendidas pelas coisas que são feitas, tanto o seu eterno poder como
a sua divindade.” (Rm 1:20).
Devemos
lembrar a sacralidade e profundidade simbólica de nossas forças e naturezas
sexuais. Nas palavras de James Cutsinger:
“O que [C. S. Lewis chama de] essa ‘real polaridade’ [de gênero] encontra-se,
não apenas, como sugere Lewis, nas criaturas — por mais sobre-humanas que sejam
—, mas até o próprio topo da Realidade Divina [...] que é a Fonte última de
tudo o mais, e que, por essa razão, é a fonte e paradigma de todas as
distinções. Em sua absolutidade e transcendência, o Divino é o arquétipo de
tudo o que é masculino, enquanto sua infinidade e capacidade de imanência
manifestam-se em todos os níveis do feminino [...] As qualidades polares
reveladas a nós como sexo são, de fato, objetivamente reais em todos os planos
da hierarquia ontológica. [...] Como escreveu Seyyed Hossein Nasr, ‘a diferença
entre os dois sexos não pode ser apenas biológica e física, porque, na
perspectiva tradicional, o nível corpóreo da existência tem seu princípio no
estado sutil, o sutil no espiritual, e o espiritual no o Próprio Ser divino.
“Femininidade, Hierarquia e Deus”, em RELIGION OF THE HEART, org. Seyyed
Hossein Nasr e William Stoddart, p. 115
O gênero é, de fato, tão integral à nossa
humanidade que o modo como o vivemos, ou o sublimamos, ou o consagramos, é um
dos elementos que determinam se permanecemos ou não unidos ao nosso arquétipo
humano. Entregar nossa sexualidade ao poder de forças não-humanas é afastar-se
da forma humana. Dedicá-la a um amor plenamente humano, ou diretamente a Deus
como na vocação monástica, é adorar a Deus por meio da forma humana.
Por fim, devemos lembrar o que a forma humana
realmente é. Alá, nos ahadith qudsi (as tradições em que o próprio Deus fala),
declara que “os céus e a terra não Me podem conter, mas o coração do Meu servo
crente pode conter-Me”. E nas palavras de São Gregório de Nissa:
“Reconhece até que ponto o Criador te honrou acima
de todo o restante da criação. O céu não é imagem de Deus, nem a lua, nem o
sol, nem a beleza dos astros, nem nada do que pode ser visto na criação. Tu
somente foste feito à imagem da Realidade que transcende toda compreensão, à
semelhança da beleza imperecível, ao cunho da verdadeira divindade, ao
destinatário da bem-aventurança, ao selo da verdadeira luz. Quando a Ele te
voltas, tornas-te aquilo que Ele mesmo é. […] Não há nada tão grande entre os
seres que possa comparar-se à tua grandeza. Deus é capaz de medir todo o céu
com o palmo. A terra e o mar estão encerrados no côncavo de Sua mão. E embora Ele
seja tão grande e tenha toda a criação na palma da mão, tu és capaz de
contê-Lo; Ele habita em ti e move-Se em ti sem constrangimento. […]”
SEGUNDA HOMILIA SOBRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS (PG 44, 765); itálicos meus
Segundo ensinamentos esotéricos de muitas
tradições, claramente refletidos nas passagens acima, a humanidade é o “tronco”
que liga a terra a Deus. Deus sustenta a terra e tudo quanto há nela apenas por
meio do homem — doutrina provada negativamente pelo fato de que só o homem tem
o poder de destruir a terra: quando já não tomamos Deus como nosso centro, e
assim nos afastamos de nossa própria humanidade, a terra começa a morrer. É
essa verdade, acima de tudo, que os alienígenas fazem tudo ao seu alcance para
impedir que nos lembremos.
Nada acontece que não seja vontade de Deus. Não
obstante, segundo o metafísico sufista Ibn al-‘Arabi, embora tudo o que
acontece seja querido por Deus — porque, se algo contrário à Sua vontade
pudesse ocorrer, Ele não seria Deus — nem tudo faz parte do desejo de Deus. É
por isso que Ele nos envia leis sagradas, que nos dizem o que fazer e o que
evitar se quisermos aproximar-nos d’Ele. O mal não é bom em si; é contrário ao
desejo de Deus. Mas Ele o quer — ou, em termos cristãos, permite-o — como parte
de um bem maior. Não amaldiçoamos os vermes que devoram um cadáver; e, sob
certo ponto de vista, os “alienígenas” não passam de vermes, cujo trabalho é
devorar o que já está morto no psiquismo coletivo humano. Mas isso não
significa que seja boa ideia passar o tempo socializando com cadáveres; se o
fizeres, adoecerás. A experiência da doença é um mal natural, e a abdução, a
tortura e o estupro são males morais — que, para a vítima, são, contudo,
moralmente indistinguíveis de desastres naturais. Ainda assim, tais males, se os
enfrentarmos com fé bastante profunda em nosso Criador, podem aguçar nossa
vigilância espiritual e, por fim, despertar-nos para uma Misericórdia mais
profunda. Assim como as mentiras testemunham a Verdade — não porque sejam
verdadeiras, mas porque a capacidade de reconhecer sua falsidade é sinal da
presença da Verdade —, assim também a desgraça e a catástrofe testemunham a
Misericórdia. Até os piores sofrimentos podem ser conhecidos, querendo Deus,
como parte de uma Misericórdia tão grande que até isto — até a guerra, até o
câncer, até a abdução alienígena — é nela engolido. Como dizem os ahadith
qudsi, “Minha Misericórdia precede Minha Ira”; e no Alcorão: “Não há refúgio
contra Deus senão n’Ele”.
Vigília na Hora Onze:
Uma Refutação de The Only Tradition
Este capítulo é um exemplo de guerra intelectual no
contexto dos últimos dias. É característico do fim do ciclo que tanto conflitos
quanto alianças assumam formas ambíguas e autocontraditórias, e que toda
oposição que não se baseie na polaridade última, que é também a decisão última
— a que separa “ovelhas” de “bodes” —, tenda a transformar-se em seu oposto com
rapidez atordoante. Para os fins desta batalha, escolho como arma as doutrinas
da Escola Tradicionalista, fundadas na metafísica tradicional e no esoterismo,
tomando-as como mais próximas da Verdade Absoluta do que as doutrinas
apresentadas por William W. Quinn Jr., fundadas na sociologia acadêmica, na
religião comparada segundo Mircea Eliade e nos ensinamentos da Sociedade
Teosófica, as quais estão relativamente mais próximas da falsidade “absoluta”
de al-Dajjal, o nome muçulmano do Anticristo — aquela Sombra inevitável da
Verdade que está sempre lá em potência, mas que só “se constela” plenamente no
fim do éon. Isso não significa que o Sr. Quinn não possa emergir amanhã como um
campeão da verdade, ou que não esteja neste momento mais próximo de Deus do que
eu, ou que as próprias doutrinas tradicionalistas não possam, sob certas
circunstâncias, também ser úteis a al-Dajjal. Contudo, quando a batalha se engaja,
tais questões devem ser deixadas para depois. As doutrinas da Escola
Tradicionalista e os princípios da metafísica tradicional estão sendo
gravemente deturpados; é, portanto, hora de traçar, nas palavras de Blake, “a
linha dura e aramada da retidão e da certeza”.
The Only Tradition, de
William W. Quinn, Jr. (SUNY, 1997), deveria ter sido resenhado por Huston
Smith e por mim num esforço colaborativo, até que o Dr. Smith pressentiu o que
havia ali e decidiu que suas energias estariam melhor direcionadas em outro
lugar. O livro de Quinn iluminou para mim, como um relâmpago em noite escura,
áreas inteiras da paisagem Tradicionalista, suas forças, suas fraquezas e os
pontos específicos de potencial ruptura inimiga onde reforços são requeridos
sem demora.
William Quinn é membro da Sociedade Teosófica,
fundada por Helena Petrovna Blavatsky; no início dos anos 1970, foi editor de
uma de suas revistas, The American Theosophist. A Sociedade permanece entre as
tramas mais tenazes que correm sob o tecido da Nova Era. Seu ramo americano
mostrou uns poucos sinais de interesse por uma metafísica mais tradicional,
tendo publicado livros de Frithjof Schuon, Huston Smith e meus. E posso
agradecê-los por minha primeira introdução ao conceito de Hierarquia do Ser,
bem como notar que meu editor na Theosophical Publishing House era estudante do
Vajrayāna — budismo esotérico autêntico, isto é, não a espúria concoção
homônima de Madame Blavatsky.
Mas, sem surpresa, a Sociedade não demonstra desejo
algum de repudiar as doutrinas de seus fundadores, e aí está o nó. Ao longo do
tempo geraram dissidências como Elizabeth Claire Prophet, cujo grupo comprou
armas e entrincheirou-se em Montana há alguns anos com base numa previsão dela
sobre o fim do mundo (que, em minha opinião, não pode ser rechaçado com armas),
e Benjamin Creme, que, em nome de seu protegido, o “instrutor do mundo”
Maitreya, anda ocupado preparando o terreno para a Segunda Vinda de “Cristo”
(ou, como é mais provável, do Anticristo), tal como Annie Besant e seus colegas
fizeram com Jiddu Krishnamurti em anos anteriores — embora Krishnamurti tenha
sido honrado o bastante para recusar desempenhar o falso Messias segundo o
roteiro da Sociedade. E o nome e/ou a mitologia deles continuam a surgir em
muitos lugares inesperados. Embora seus livros não sejam muito populares nos
círculos da Nova Era, sua capacidade de persistência lhes dá uma influência
muito desproporcional à popularidade — ou à falta dela. Uma resenha de The
Hidden Dangers of the Rainbow na revista Gnosis, anos atrás, escarneceu da
autora cristã evangélica Constance Cumby por ser paranoica o suficiente para
acreditar que a Sociedade Teosófica era a força motriz por trás do movimento
Nova Era. No entanto, ninguém menos que Jocelyn Godwin (a quem sempre considerei
uma espécie de Tradicionalista, até olhar mais de perto sua obra), em The
Theosophical Enlightenment (SUNY, 1994, p. 379), afirma que “os teosofistas
forneceram quase todos os alicerces do movimento ‘Nova Era’, seu reflexo
exotérico [...]” [itálicos meus]; ele declara explicitamente aqui que a
Sociedade Teosófica não é simplesmente a origem histórica, mas o centro
“esotérico” contínuo da Nova Era. Claro que nem Constance Cumby nem Godwin
estão necessariamente certos sobre a Sociedade; a primeira pode falar por medo
e o segundo por desejo, além de tentar lançar uma profecia autorrealizável. E é
claro que outros grupos — os Cientologistas, por exemplo, ou a Igreja da
Unificação — competem com a Sociedade pelo mesmo prêmio. Ainda assim, é assim
que a Sociedade tende a ver a si mesma: como um potencial, se não atual,
“comitê gestor” da Nova Era, o centro efetivo do que René Guénon chamou de
“ação antitradicional” que conduz, em última análise, à “contrainiciação”. Como
disse Guénon em O Reinado da Quantidade, pp. 317–318,
“É provável que se estabeleçam centros aos quais as
organizações pertencentes à ‘contrainiciação’ estarão ligadas [...] não há
motivo para surpresa se esses próprios centros, e não apenas algumas das
organizações que lhes são mais ou menos diretamente subordinadas, forem
encontrados engajados em lutas uns com os outros, pois o domínio em que se
situam é o mais próximo de todos do domínio da dissolução ‘caótica’.”
O próprio Godwin parece, em muitos aspectos,
identificado com os objetivos da Sociedade. Na mesma página da citação acima, a
última do livro, ele diz: “Nenhuma civilização anterior jamais teve o
interesse, os recursos ou a necessidade interior [...] de abraçar
intelectualmente o mundo inteiro; de dar o passo aterrador de renunciar, até blasfemar,
sua própria tradição religiosa na busca de uma visão mais aberta e
racionalista; de publicar livremente aqueles segredos que antigamente estavam
sob o selo da iniciação; e, em suma, de lançar a humanidade no alambique
espiritual em que nos encontramos hoje” [todos os itálicos meus]. Assim, a
destruição do Cristianismo — e, claro, de todas as demais religiões
tradicionais, se se interpuserem — é uma “necessidade interior” de uma
sociedade num “alambique” que sofre uma transmutação alquímica rumo a uma
“visão mais aberta e racionalista”; essa liquidação da tradição cristã,
concebida como necessidade espiritual, foi um dos objetivos de vida de
Blavatsky. O passo é “aterrorizante”, porém necessário e até heróico: em outras
palavras, prometeico. O próprio Nietzsche não o teria dito melhor.
Os parágrafos seguintes são minha resenha (não
editada) de The Only Tradition para a revista Gnosis, que pode servir de
introdução à resenha mais longa, ou refutação, que segue:
A escola “Tradicionalista” — René Guénon, Ananda
Coomaraswamy, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Frithjof Schuon, Martin Lings,
Seyyed Hossein Nasr, etc. — está, lenta mas seguramente, tornando-se mais
conhecida, tanto entre acadêmicos quanto no “público metafísico geral”. Em The
Only Tradition, William Quinn tenta situar a escola em contexto mais amplo ao
mostrar suas afinidades com Mircea Eliade, H. P. Blavatsky e outros; tanto sua
exposição das doutrinas e da história dos Tradicionalistas quanto seu estudo de
culturas tradicionais “primitivas” e “desenvolvidas” são interessantes. Mas
Eliade não era Tradicionalista; em No Souvenirs, caracterizou-os como
compositores de “mitos úteis” artísticos, sem validade “científica” (objetiva).
E quando Quinn tenta provar que Blavatsky ensinou a mesma doutrina que
Coomaraswamy e Guénon, tropeça feio. Trata o livro de Guénon atacando a
Sociedade Teosófica (Teosofia: História de uma Pseudorreligião) como um lapso
inexplicável, ainda que admitindo que Eliade o elogiou, e atribui a
discordância dos Tradicionalistas com Blavatsky à ignorância deles de A
Doutrina Secreta. Ciente de que Coomaraswamy e Guénon negavam a reencarnação
física humana em favor da “transmigração” a planos superiores (ou inferiores),
ele afirma que
“O ponto central do mal-entendido diz respeito à
percepção dos autores Tradicionais de que o elemento divino [...] juntamente
com a ‘personalidade’ sobrevivente (um agregado de emoções, mente e memórias
pessoais) seria, segundo os Teosofistas, encarnado em sucessivas formas
corpóreas — noção que Blavatsky não promulgou.”
Mas ela promulgou:
“Os átomos melhor impregnados pelo princípio vital
(um fator independente, eterno, consciente) são [...] atraídos novamente uns
pelos outros e tornam-se o princípio animador do novo corpo em cada nova
encarnação [...] assim como a Alma individual é sempre a mesma, assim também os
átomos dos princípios inferiores (corpo, seu duplo vital astral, etc.) são
atraídos [...] sempre para a mesma individualidade em uma série de vários
corpos.”
A DOUTRINA SECRETA [doravante, DS] II, 671–72
Quinn lamenta que “por alguma razão desconhecida”
os Teosofistas sejam tidos como favoráveis ao Darwinismo, anátema para os
Tradicionalistas. Mas Blavatsky às vezes o foi: “Os brâmanes-pandits e os
tannaim [...] especularam sobre a criação do mundo de modo bastante darwiniano”
(DS I, 202); “O dia pode chegar [...] em que a ‘seleção natural’, como ensinada
por Darwin [...] formará apenas uma parte [...] de nossa doutrina oriental da
Evolução” (DS I, 600). Que ela negue a seleção natural em outros trechos de A
Doutrina Secreta apenas mostra quão confusa era. Ao menos os Tradicionalistas
produziram um corpo sério de trabalho, próprio para adultos — mas, para saber
que toda oração é magia negra, ou que certas tribos primitivas são produto de
cruzamento entre humanos e animais, ou que a cruz de Cristo é um pênis, leia
Blavatsky.
HPB via a manifestação, cósmica e histórica, como
descendendo de planos superiores (aí os Tradicionalistas concordam), “tocando o
fundo” (mais ou menos agora) e então evoluindo automaticamente de volta à sua
Origem. Os Tradicionalistas negam qualquer reascensão exceto a da consciência
individual; a manifestação se dissolverá, e uma nova descida divina inaugurará
um novo ciclo. Quinn, seguindo Blavatsky, substitui evolução por apocalipse e
ignora a revelação.
Ele aceita a gnose; possivelmente acredita que ela
nos permite investigar Deus experimentalmente. Mas Deus nos livre de que Ele
nos conheça melhor do que nós O conhecemos, ou intervenha ativamente nos
assuntos humanos, ou nos exija algo. Blavatsky, também, odiava a religião
revelada, algo que Quinn tenta negar. Consequentemente, após uma contundente
crítica “Tradicionalista” da modernidade, ele subitamente abraça o que acaba de
denunciar, prevendo uma “Idade de Ouro” pós-cataclísmica repovoada por “grupos
reprodutores” governamentais, onde a “planetização” destruiu todas as religiões
reveladas em nome de uma “cultura de um mundo”, uma sociedade estritamente
hierárquica governada por “cientistas/metafísicos”. Mas que ele imagine a
ideologia desse mundo infernal (aceitável, porque inevitável) como incluindo
doutrinas dos Tradicionalistas — que não admitem acesso à verdade espiritual
fora da revelação — é uma deturpação, sobretudo porque os Tradicionalistas veem
a Idade de Ouro de qualquer ciclo como igualitária por estar “acima de casta”.
(Cf. Martin Lings, Crenças Antigas e Superstições Modernas, p. 49; ver também
Guénon, O Reinado da Quantidade, p. 326, sobre “contrahierarquia”.)
Quinn admite
que sua tentativa de confluir Coomaraswamy, Guénon e Blavatsky levará os
Tradicionalistas a descartá-la como “sem mérito e confusa”. Isso não é
surpreendente, particularmente à luz da própria avaliação que Madame Blavatsky
faz de si como alguém que não merece nossa confiança. Cito de The Spiritualists,
de Ruth Brandon, Alfred A. Knopf, 1983, p. 13:
O que se deve fazer quando, para governar os
homens, é preciso enganá-los, quando, a fim de capturá-los e fazê-los perseguir
seja lá o que for, é necessário prometer-lhes e mostrar-lhes brinquedos? Suponha
que meus livros e The Theosophist fossem mil vezes mais interessantes e
sérios; você acha que eu teria onde viver e algum grau de sucesso se, por trás
de tudo isso, não houvesse “fenômenos”? Eu não teria conseguido absolutamente
nada e já há muito teria batido as botas de fome.
Na p. 25 de The Only Tradition, Quinn
confunde a equação tradicional entre ser e conhecer com a doutrina niilista da
Nova Era de que a realidade é criada, não pelo conhecimento objetivo, mas
simplesmente pela crença. Depois de citar Coomaraswamy no sentido de que “ser e
conhecer são o mesmo… a recordação é a própria vida, e o esquecimento, uma
beberagem letal”, ele comenta: “Não podemos separar, em outras palavras, o que
somos e o que sabemos, mais do que podemos separar o que somos e o que cremos,
já que nossas crenças ajudam a definir nosso ser e vice-versa.” Mas
“recordação” aqui significa recordação do que realmente somos, não do que
pensamos ser; a recordação daquilo que já somos em potência é a essência da
“autoatualização”, de “tornar-nos aquilo que somos”. Crenças não nos colocam
necessariamente em relação com o conhecimento; só o fazem se forem verdadeiras.
Tomar crença como sinônimo de conhecimento é negar a objetividade e, portanto,
adorar o esquecimento. A função da revelação, juntamente com sua expressão
tradicional, é prover-nos de crenças dogmáticas suficientemente sábias para
impedir-nos, no plano moral, de nos desviarmos gravemente, e dotadas de
suficiente verdade objetiva, no plano intelectual, para conduzir-nos ao
conhecimento e à certeza. “Creio para que possa compreender” só funciona no
contexto da tradição revelada; em outros contextos — os da propaganda política
ou da fraude criminosa, por exemplo — a crença obviamente não é concebida para
servir à compreensão; muito pelo contrário. Crenças que não são verdadeiras
“definem o nosso ser” apenas no sentido de que o distorcem, ao passo que o
nosso ser define nossas crenças em dois sentidos distintos: na medida em que o
nosso ser é, em sua essência mais profunda, o próprio Ser, ele gera todas as
crenças possíveis, segundo a ação da Infinidade divina; sob essa perspectiva, a
perspectiva da māyā-in-divinis, “tudo o que pode ser crido”, nas
palavras de Blake, “é uma imagem da verdade”. Por outro lado, do ponto de vista
de nossa individualidade humana, em que algumas crenças são “verdadeiras”
porque conduzem à Verdade, e outras “falsas” porque levam à perdição, nosso ser
define nossas crenças apenas no sentido de que um intelecto obscurecido produz
apenas erro, e uma vontade concupiscente busca o erro para justificar suas
ações.
Um dos principais propósitos de Quinn é
reconciliar, de algum modo, a Teosofia de H. P. Blavatsky com o Tradicionalismo
de René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon. Mas, já que eles ensinaram
doutrinas radicalmente diferentes e dado que os Tradicionalistas consideram os
Teosofistas não apenas errados, mas ativamente subversivos da verdade, por que
ele desejaria fazê-lo? Para responder a essa pergunta, precisamos examinar sua
tentativa de ocultar a subversão vitalícia de Blavatsky à Tradição e seu ódio à
religião revelada.
Na p. 118, Quinn descreve os “primeiros princípios”
que está prestes a apresentar como “uma destilação… de todos aqueles expressos
nas perspectivas de Coomaraswamy, Guénon, Blavatsky…”. Poder-se-ia fazer o
mesmo, por exemplo, com as visões de Marx, Nietzsche e Oscar Wilde, e obter
muitos paralelos, mas o exercício seria destituído de sentido sem uma análise
de suas diferenças. E, dado que as divergências e mesmo a oposição violenta
entre Blavatsky e os Tradicionalistas são tantas e tão profundas que Guénon
escreveu um livro inteiro sobre elas — uma tarefa ingrata que me alegra não
recair sobre mim —, alguns exemplos não serão descabidos. Na p. 119, Quinn cita
Coomaraswamy falando da “significação do sacrifício” como um dos elementos que
o Cristianismo tem em comum com “todos os outros dialetos da tradição
primordial”, depois de nos informar que seu catálogo de princípios será um
pouco diferente do de Coomaraswamy. Isso não surpreende, já que Blavatsky (SD
I, p. 416) afirma o seguinte: “Todo ‘sacrifício’ ou oração a Deus não é melhor
do que um ato de magia negra.”
Na p. 121, Quinn trata da distinção tradicional
entre o Absoluto informe e o Deus pessoal — o “Deus” e a “Deidade” de Mestre
Eckhart, o Saguna Brahman e o Nirguna Brahman do Vedānta — e cita
as palavras quintessenciais de Frithjof Schuon sobre o tema: “É verdade que
Deus enquanto criador, revelador e salvador não se identifica com o Absoluto
enquanto tal; é igualmente verdade que Deus enquanto tal, na plena profundidade
de Sua Realidade, não pode ser reduzido à Sua função criadora.” A Deidade
manifesta-Se como Deus, mas a essência de Deus é a Deidade; Deus e Sua Essência
“não são dois”. Quinn emparelha essa citação com uma de Blavatsky: “Parabrahman
[isto é, Nirguna Brahman] não é ‘Deus’ porque não é um Deus.” Mas nem
Schuon, nem Eckhart, nem o Vedānta negam o Deus pessoal (nem o fez Guénon,
embora talvez se possa censurá-lo por subenfatizá-Lo, exceto pelo fato de que, ao
concentrar-se no Absoluto informe, cumpria sua função específica). Blavatsky,
porém, O nega. Em SD II, p. 194, ela diz: “Não obstante, seja qual for a
alegoria [da separação dos sexos no Gênesis] que signifique, mesmo seu sentido
exotérico exige um Construtor divino do homem — um ‘Progenitor’. Acreditamos,
então, em tais seres ‘sobrenaturais’? Dizemos: não. O Ocultismo jamais
acreditou em nada, quer animado, quer inanimado, fora da natureza.” E em SD II,
p. 475: “Nossa querela presente é exclusivamente com a teologia. A igreja impõe
a crença em um Deus pessoal e um diabo pessoal, enquanto o ocultismo mostra a
falácia de tal crença.”
Por fim, Quinn tenta ocultar os sentimentos
anticristãos de Blavatsky extraindo de Theosophy: History of a
Pseudo-Religion, de Guénon, uma citação da teosofista Annie Besant que
afirma a necessidade “acima de tudo de combater Roma e seus padres, lutar onde
quer que seja contra o Cristianismo e expulsar Deus dos céus”, e então
revelando que ela fez essa declaração dez anos antes de conhecer Mme. Blavatsky
— como se HPB não mantivesse ideias semelhantes até o dia em que morreu, como
as duas citações acima indicam claramente: contender com a teologia para negar
a existência de um Deus pessoal é tanto “combater Roma” quanto “expulsar Deus
dos céus”. E qualquer um com ânimo — ou temeridade — para ler toda A
Doutrina Secreta encontrará muitas outras declarações com o mesmo
propósito. Por exemplo, doutrinas como “o Logos e Satanás são um” (SD II, p.
515) são precisamente anticristãs, pois, para o Cristianismo, o Logos é Cristo;
e a negação de Deus pela Teosofia (quão irônico é esse termo, já que “teosofia”
significa literalmente “sabedoria de Deus”) parece emanar também das
“entidades” da Sociedade. Segundo Jocelyn Godwin (The Theosophical
Enlightenment, p. 329), “Koot Hoomi”, numa das “cartas dos mahatmas”
endereçadas a A. O. Hume, fez a seguinte declaração: “Negamos Deus tanto como
filósofos quanto como budistas. Sabemos que há vidas espirituais planetárias e
outras, e sabemos que no nosso sistema não existe tal coisa como Deus, seja
pessoal ou impessoal.” Mas, é claro, o sr. Hoomi está em erro aqui, já que os
budistas têm uma série de nomes para o Princípio Absoluto: Nirvāṇa; o Dharmakāya; o Ādi-Buddha; Śūnyatā; a Natureza de Buda; a Luz Clara
do Vazio.
Godwin, em The Theosophical Enlightenment,
caracteriza assim a atitude de Blavatsky (p. 292): “Uma teologia absurda,
sustentando um sacerdócio corrupto e uma bibliolatria sem inteligência; foi
isso que Blavatsky viu — e detestou — ao examinar a história do Cristianismo.”
Ele fala dos “Irmãos de Luxor” (bête noire de Guénon), organização com a qual
Blavatsky esteve associada em seus primeiros anos, como incluindo em seu
programa, às ocultas para a base — embora provavelmente não para Blavatsky —,
“a abolição do Cristianismo em favor de um humanismo livre-pensador”, e na p.
305 descreve seu Isis Unveiled em termos entusiásticos como “um clarim
conclamando a humanidade a despertar do sono encantado em que fora mergulhada
pelos embustes do Cristianismo e da ciência”. E como se tudo isso não bastasse,
posso coroá-lo com as próprias palavras de Quinn. Quando lhe telefonei em seu
escritório de advocacia em Phoenix, Arizona, e o confrontei com o objetivo
declarado de Blavatsky de destruir o Cristianismo, sua resposta foi: “Não o
Cristianismo per se; apenas as Igrejas.” Isso, é claro, equivale a
dizer: “Não quero assassiná-lo; quero apenas assassinar seu corpo.” Nem as
atenções subversivas de Blavatsky se dirigiam apenas ao Cristianismo. Chamar
seu cozido de doutrinas ocultistas de “budismo esotérico” era subverter o
Budismo; reduzir o Judaísmo a falicismo e culto aos astros era subverter o
Judaísmo; e canalizar “mahatmas” espúrios era subverter o Hinduísmo (ou
novamente o Budismo, na medida em que eram apresentados como “tibetanos”),
tarefa que a Sociedade tentou concluir com afinco após sua morte — e abrir
caminho para o reinado do Anticristo no processo — apresentando Krishnamurti
como “Avatāra” e “Messias”. À luz de tudo isso, a seguinte passagem de René
Guénon, de O Reino da Quantidade, pp. 293–294, não parece mais do que
uma descrição factual do estado das coisas:
a “contra-iniciação” trabalha no sentido de
introduzir seus agentes em organizações “pseudo-iniciáticas”, usando-os para
“inspirar” tais organizações, sem que isso seja percebido pelos membros comuns
e, geralmente, também pelos chefes ostensivos… tais agentes são de fato
introduzidos, de modo semelhante e sempre que possível, em todos os
“movimentos” mais exteriores do mundo contemporâneo, políticos ou de outra
natureza, e mesmo… em organizações autêntica e iniciáticas ou religiosas, mas
somente quando seu espírito tradicional está tão enfraquecido que já não podem
resistir a uma penetração tão insidiosa… este último caso… é a aplicação mais
direta possível da atividade de dissolução.
Nos capítulos 6 e 7, Quinn transforma em confusão
os termos “tradição”, philosophia perennis e “teosofia”, manejando com
destreza várias definições acadêmicas incompletas de “tradição” e philosophia
perennis para obscurecer o fato de que, segundo a Escola Tradicionalista
(ou Perene), eles são essencialmente dois nomes para a mesma coisa, ainda que
com uma diferença de matiz relacionada à distinção-sem-oposição entre revelação
primordial e histórica. Ao mesmo tempo, relativiza o conceito
Tradicionalista/Perene de “Tradição”, o que é justificável de um ponto de vista
sociológico, mas não se essa relativização for usada para negar que por
“Tradição” os Tradicionalistas entendem “acesso ao Absoluto por meio de Sua
própria Auto-revelação, uma revelação que opera no tempo ao mesmo tempo que, em
essência, o transcende”. Quanto à “teosofia”, ele começa traçando uma distinção
ampla demais entre ela e Tradição/philosophia perennis, das quais é
parte integrante, se não propriamente a mesma coisa sob outro nome. Em seguida,
após admitir duas definições para teosofia, uma genérica e tradicional, outra
denotando a Sociedade Teosófica, ele arma um espantalho (um entre muitos ao
longo do livro) fingindo escandalizar-se (p. 95) porque “até Seyyed Hossein
Nasr” usa o termo theosophy para denotar a “filosofia tradicional” (ḥikmah) — como se “teosofia” ali significasse “a
Sociedade Teosófica”, que os Tradicionalistas detestam, e não, como é óbvio
pelo contexto, teosofia no sentido tradicional e genérico. Ele cita o Prof. J.
J. Poortman, da Universidade de Leiden (p. 97), identificando a “teosofia
histórica mais antiga” — que Poortman distingue expressamente da “teosofia
moderna” — com figuras de porte como Böhme e Plotino, e então joga com os
termos “mais antiga” e “moderna” para retratar a distinção de Poortman como
puramente “temporal”. Por fim, já que o “moderno” vem depois do “antigo”, ele
termina por reivindicar a Sociedade Teosófica de Blavatsky como sucessora
histórica direta da teosofia no sentido tradicional e genérico, valendo-se do texto
de Poortman ao mesmo tempo que contradiz diretamente a distinção que Poortman
acaba de fazer. Esse jogo de mãos pode ser útil ao sustentar uma causa em
juízo, mas é indigno de um “teósofo” — a menos, é claro, que pretendamos
empregar o termo em seu sentido moderno! A Doutrina Secreta está repleta
disso.
Então por que Quinn se esforça tanto em reconciliar
com a Tradição o ódio virulento de Blavatsky à Tradição? Por que não pode
simplesmente descartá-la, ou opor-se abertamente à Tradição em seu nome? A resposta,
em uma palavra, é “subversão”, no sentido de Guénon em O Reino da Quantidade
e os Sinais dos Tempos. Pode ser ou não verdade que um quadro de ocultistas
antitradicionais que se identificam com a teosofia moderna esteja agora
deliberadamente movendo-se para subverter as doutrinas da Escola
Tradicionalista, particularmente à vista do ataque de Guénon em 1921 à Teosofia
em Theosophy: History of a Pseudo-Religion, que Quinn tenta contrapor em
The Only Tradition. Talvez, em vista de certas vulnerabilidades que ora
aparecem no Tradicionalismo, não sendo a menor delas sua exposição pública
crescente, considerem que chegou a hora do troco. Como Guénon ressalta em O
Reino da Quantidade, pp. 229–230,
é de primeira importância não esquecer que, já que
toda ação efetiva pressupõe necessariamente agentes, a ação antitradicional é
como todas as outras espécies de ação, de modo que não pode ser uma espécie de
produção espontânea ou “fortuita” e, uma vez que se exerce particularmente no
domínio humano, deve necessariamente envolver a intervenção de agentes humanos…
a iniciação… é aquilo que realmente encarna o “espírito” de uma tradição…
portanto, a iniciação é o que deve ser combatido… pela ação antitradicional… o
termo “contra-iniciação” é, portanto, o melhor para descrever aquilo ao qual
pertencem os agentes humanos pelos quais a ação antitradicional é realizada.
Mas, ainda que grupos humanos efetivos, conhecidos
e desconhecidos, possam ou não estar movendo-se contra a Escola Tradicionalista
de modo mais ou menos deliberado, não precisamos explicar cada ataque
específico como planejado e executado por esta ou aquela organização. A
verdadeira “agenda” emana de um plano mais sutil das coisas, cuja expressão
exterior é simplesmente o zeitgeist. Um zeitgeist antitradicional,
porém, é em parte oportunidade estratégica para — e em parte o próprio
resultado da — ação de forças espirituais subversivas. E a maior parte dos
servidores de tais forças, embora certamente não todos, são inconscientes de
quem servem. Nas famosas palavras de São Paulo, “não é contra a carne e o
sangue que temos de lutar, mas contra os principados, contra as potestades,
contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da
maldade nas regiões celestes” (Ef 6,12). Precisamos compreender que o
Tradicionalismo estará necessariamente sob ataque num mundo como este, e que
grande parte desse ataque se travará no campo da “guerra invisível”.
Ironicamente,
porque Quinn descarta a religião revelada, em linha com a negação blavatskiana
de um Deus pessoal, e concentra-se na intelectividade, acaba por não
compreender o que é a intelectividade. Na p. 79 ele cita a definição de
Manzanedo da philosophia perennis como “a colação de verdades de ordem
natural comumente reconhecidas pelo homem”, e afirma que “essa descrição
sucinta e bastante representativa provavelmente teria poucos críticos… na
esfera da filosofia Tradicional.” Mas, se Manzanedo entende por “ordem natural”
o que esta expressão significou no contexto das religiões abraâmicas (e não,
por exemplo, no de certas correntes da filosofia grega) — isto é, o nível
externo e sensorial da realidade, acessível aos “nascidos uma vez”, ao “homem
natural” — então de modo algum corresponde à intelecção e, portanto, não seria
aceitável para a “filosofia Tradicional”. Na p. 85, Quinn afirma corretamente
que “a filosofia moderna, e mesmo o seu ramo metafísico, é essencialmente
secular: por conseguinte, percebe a philosophia perennis como
primariamente categorial e secular”. Mas, na p. 84, ele acaba de dizer:
O símbolo analógico mais útil… para ilustrar a
diferença entre as concepções da filosofia moderna e a perspectiva Tradicional…
é a Escada de Jacó. … Os degraus inferiores representam os princípios
rudimentares e relativamente poucos de consenso sobre os quais os filósofos
modernos se uniriam; os degraus superiores representam os princípios
relativamente desenvolvidos e mais numerosos sobre os quais os autores
Tradicionais tendem a concentrar-se em suas discussões da philosophia
perennis. Independentemente da metodologia e da etiologia, que de fato
indicam dissimilaridades genuínas entre as duas concepções, não se deve perder
de vista que a escada em si é uma só, que o seu “topo” depende da sua “base”.
Mas, se os degraus inferiores modernos da escada e
os degraus superiores Tradicionais têm etiologias distintas, então, por lógica
simples, o segundo não pode derivar do primeiro. E é claramente falso que os
princípios Tradicionais da philosophia perennis dependam “dos princípios
relativamente poucos de consenso sobre os quais os filósofos modernos se
uniriam”, já que a filosofia moderna nega unanimemente os princípios
tradicionais. Eles dependem, antes, da Intelecção, da percepção direta da
Verdade pelo Intelecto, que é um raio dessa Verdade. E, como a Intelecção —
seja inspirada pelas grandes revelações históricas, seja concedida pela
Auto-revelação primordial de Deus que é o cosmos — é a fonte de toda Verdade,
os princípios mantidos em comum pelos filósofos modernos dependem da
Intelecção, e não o contrário, uma vez que o erro não pode existir sem uma
verdade a perverter — embora, infelizmente, eles já não o vejam, dado que suas
concepções são em grande parte autocontraditórias e cheias de obscuridade
intelectual.
Na p. 294, Quinn apresenta falsamente, como
Tradicional, a teoria mecanicista dos ciclos cósmicos e históricos de William
I. Thompson:
à medida que a entropia atinge o seu limite no
caos, dá-se uma reversão no ciclo, uma forma cósmica é gerada a partir do único
fundo suficientemente vasto para ela, a saber, o caos. O caos cria a decadência
fértil na qual as sementes remanescentes da idade anterior dos deuses irrompem
em vida. …
Mas ninguém que creia que o caos possa ser o
criador da forma ou da ordem entende a Intelecção — ou, já agora, crê em Deus.
A teoria do caos criador é a base da teoria da evolução “instrucional” (em vez
de “descritiva”, nos termos de E. F. Schumacher), a ideia de que o menor pode
dar origem ao maior; ela também justifica várias formas de niilismo anárquico,
que operam com a crença de que, se varrermos limpo os antigos valores e formas
sociais, algo brilhante e novo automaticamente tomará o seu lugar. Mas a
verdade é que a entropia nunca se inverte “por si só”; como descrição da
natureza essencial de toda manifestação material, a Segunda Lei da
Termodinâmica está correta. A dissolução do cosmos no fim do ciclo de fato
resulta num “caos fértil” potencial, onde as sementes — ou, para sermos
estritamente precisos, os ovos — do novo ciclo jazem em latência. Mas ele é
fértil apenas em potência; para que o novo ciclo emerja à atualidade, precisa
ser fecundado. O “Espírito de Deus” deve “pairar sobre a face dessas águas”. A prima
materia informe deve ser impregnada pela forma do Logos. E essa impregnação
é um ato soberano de Deus. Ela não depende dos ciclos históricos e cósmicos
porque vem de fora deles. São os ciclos, antes, que dependem Dela. E o fato de
o Ato criador de Deus ser eterno em relação a todos os ciclos temporais não
significa que seja mecanicamente inevitável no plano desses ciclos. É um dom
gratuito de Forma àquilo que só pode ansiar por Forma; as trevas, por mais
potencialmente férteis, não podem dizer “faça-se a luz”. E a receptividade da
alma humana purificada guarda, no microcosmo, a mesma relação com a Intelecção
que a prima materia cósmica guarda com o Logos, no macrocosmo. A visão
intelectual “in-forma-nos”, “forma-nos por dentro” — mas não pode fazê-lo
enquanto lutarmos por definir e manter nossa própria identidade, e “morrermos
antes de morrer”.
Segundo a lei da entropia, tudo quanto entrou em
manifestação cósmica já começou a morrer. É a isso que o Buda se referia em seu
“Sermão do Fogo”, quando declarou que o universo, os sentidos, a mente — tudo o
que entrou no reino do nome e da forma — está em chamas. O Ato criador de Deus,
porém, é eterno. E assim, no momento em que a manifestação perde a capacidade
de haurir mais vida do Ato divino de Auto-revelação que a criou, ela se
dissolve, retorna às “águas” — ponto em que sua luta por manter a existência
separada já não obscurece esse Ato eterno, radiante e revelatório, que volta a
atingir, de novo, o espelho imóvel dessas águas e faz aflorarem, à forma
manifesta, as potencialidades ocultas em suas profundezas, fora do caos e para
dentro do cosmos. “Quem procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a
sua vida, por minha causa, salvá-la-á.”
A negação da revelação conduz a uma falsa imagem da
intelecção como espécie de “empirismo superior”. Aqueles “esoteristas” que
buscam uma metafísica sem religião, um esoterismo sem a plenitude da Tradição,
serão tentados a ver “as coisas profundas de Deus” como seu preserve privado,
como mistérios arcanos a serem sondados, quase-cientificamente, por um
“intelecto” convertido em escravo da paixão mental, e não como sabedoria e poder
do Deus Vivo, que tem vontade e a exerce, que intervém ativamente nos assuntos
humanos e que, longe de ser um mero espécime para suas pesquisas ocultas, exige
algo deles. O que C. S. Lewis diz do Deus do panteísmo, em Milagres (ed.
Macmillan, pp. 93–94), é igualmente verdadeiro do Deus da falsa intelecção:
O Deus do panteísta nada faz, nada exige. Ele está
ali se você O desejar, como um livro numa estante. Ele não o perseguirá. Não há
perigo de que, em algum momento, o céu e a terra fujam ao Seu olhar. Se Ele
fosse a verdade, então poderíamos realmente dizer que todas as imagens cristãs
de realeza foram um acidente histórico do qual nossa religião deveria ser
purgada. É com um choque que descobrimos que são indispensáveis. Você já teve
esse choque antes, em conexão com coisas menores — quando a linha puxa sua mão,
quando algo respira ao seu lado na escuridão. Assim aqui; o choque vem no
momento exato em que o arrepio de vida nos é comunicado ao longo da pista que
vínhamos seguindo. É sempre chocante encontrar a vida onde pensávamos estar
sós. “Cuidado!”, clamamos, “está vivo”.
Mas, como o Deus de Quinn não é “vivo” nesse
sentido, ele fala habitualmente da intelecção em termos prometeicos e
voluntaristas: de “usar a ‘intuição intelectual’” (p. 22), da “conscrição da
intuição intelectual… para transpassar os princípios mais altos e sutis da
doutrina” (p. 88) e da “barreira… que impede os filósofos modernos de
transpassar… as verdades perenes que aguardam resolução por cada indivíduo” (p.
75). Ele nega implicitamente que possamos receber verdades por meio da
revelação e da Tradição (embora devamos, claro, realizá-las por nós mesmos) e
identifica a intelecção com um individualismo prometeico no domínio filosófico.
Vale repetir a doutrina de Frithjof Schuon:
Um culto da inteligência e da paixão mental afasta
o homem ainda mais da verdade. A inteligência se retira assim que o homem
deposita a confiança somente nela. A paixão mental que persegue a intuição
intelectual é como o vento que apaga a luz de uma vela.
Tal identificação com a intelecção, acoplada à
negação consciente ou implícita da revelação, é uma das coisas que definem os
esotéricos interesseiros em conflito com as autoridades exotéricas. Conforme
leio a posição de Ibn al-‘Arabī em suas Futūḥāt al-Makkīyah, a capacidade de aceitar normas exotéricas depois de atingir a
compreensão do significado das realidades interiores — estados, estações,
testemunhos e desvelamentos — é a marca dos esotéricos acabados, “o Povo da
Censura”, em contraste com os esotéricos unilateralistas ou bāṭinis (os “sufis”) e os simples crentes exotéricos.
Seyyed Hossein Nasr, em Islamic Spirituality II, define “o Povo da
Censura” como os esotéricos autoidentificados que se destacam da multidão, os
censurados pelos ‘ulamā’ exotéricos por pensarem — ou agirem como se —
não estivessem vinculados à sharī‘ah; ao passo que, para Ibn al-‘Arabī,
“o Povo da Censura” são os que transcenderam a dicotomia esotérico/exotérico e,
por isso, são censurados pelos sufis por, ao que lhes parece, abandonarem a via
interior e tornarem-se de novo crentes exotéricos normais e desinteressantes.
(Kierkegaard, na figura do “Cavaleiro da Fé”, define a estação idêntica.) O
princípio metafísico sobre o qual essa divisão tripartida se baseia é, na
linguagem do Vedānta, “Brahman está além tanto da forma quanto da ausência de
forma” e, nas palavras de Ibn al-‘Arabī (em minha paráfrase), “Deus é
não-delimitado em sentido absoluto, isto é, Ele não é delimitado nem pela sua
própria não-delimitação”. Aqueles que concebem Deus como delimitado, como
possuindo forma, são os simples crentes; os que O concebem como informe e
não-delimitado são os esotéricos unilateralistas, os bāṭinis, os “sufis”; os que O concebem como além tanto da
ausência de forma quanto da forma, como não delimitado por Sua própria
não-delimitação, são os esotéricos acabados, o Povo da Censura. Se Deus está
além tanto da forma quanto da ausência de forma, então as formas exotéricas das
religiões reveladas são teofanias, não véus — o mesmo valendo para qualquer
forma particular que seja. Nas palavras de Ibn al-‘Arabī (William C. Chittick, The Sufi Path of
Knowledge, p. 260),
A Realidade é a situação efetiva do Ser. … A Sharī‘ah
é idêntica à Realidade. … Quando os sufis viram que tanto os eleitos quanto o
povo praticavam a Sharī‘ah e que apenas os eleitos conheciam a
Realidade, distinguiram entre a Sharī‘ah e a Realidade. Fizeram a Sharī‘ah
pertencer às propriedades e disposições da Realidade que são manifestas, e
fizeram a Realidade pertencer às suas propriedades e disposições que são não-manifestas.
Além disso, se cada religião revelada é, em
essência — se não em suas manifestações contingentes —, uma teofania completa,
então não há necessidade de somar uma à outra, mais do que eu precisaria somar
outra pessoa a mim, ou duas, ou cinco, para me manter como manifestação do Si
mesmo dentro de todo si. Assim que percebo que “o que está aqui está alhures, e
o que não está aqui não está em parte alguma”, termina a minha cobiça
espiritual.
A negação, por Quinn, da doutrina tradicional do
apocalipse — que, para os cristãos, necessariamente inclui a segunda vinda de
Cristo; para os muçulmanos, a “segunda vinda” do Profeta Jesus (cuja vinda,
segundo alguns, será anunciada pelo Mahdī); para os judeus, o advento do
Messias; para os budistas, a chegada do Buda Maitreya; e, para os hindus, a
aparição do Avatāra Kalki — relaciona-se intimamente com sua negação da
revelação: se Deus não pode intervir ativamente nos assuntos humanos — ou se
seria inconveniente para nós que Ele o fizesse —, então Ele não pode mais
encerrar um ciclo de manifestação humana e inaugurar um novo do que pode fundar
uma religião revelada; o ciclo de manifestação é, por conseguinte, mecanicista,
inevitável, expressão de uma lei “científica”, como a órbita da Terra em torno
do Sol, e não a forma assumida no espaço-tempo pelo Ato eterno de
Auto-revelação de Deus. E assim crê Quinn (p. 293), mais ou menos em linha com
Blavatsky, que
a evolução espiritual move-se em espiral cíclica e
helicoidal por meio do entrejogo de polaridades opostas, e essa visão
Tradicional é a perspectiva da dinâmica temporal (histórica) de que a dialética
histórica hegeliana é uma aproximação grosseira. Fundidos indissoluvelmente com
essa abordagem helicoidal-cíclica da evolução estão os dois processos de enantiodromia
e da teoria da compensação (que Guénon chama “reintegração”), que operam em
tandem; isto é, o germe ou semente da díade “tese” está presente na díade
“antítese”, para usar os termos de Hegel, e, enquanto uma díade está em
manifestação, sua parceira começa a crescer depois que o nadir de sua rotação
cíclica é alcançado e acabará por igualá-la e então superá-la até atingir o seu
zênite (ponto em que sua parceira está no nadir), e assim por diante…; à luz
disso, podemos dizer que a visão Tradicional da periodicidade provavelmente
exclui a aniquilação total da humanidade na terra.
Mas, deixando
de lado o fato de que “enantiodromia e teoria da compensação” não são
Tradicionais, mas junguianas, Quinn deturpa a teoria de “reintegração” de
Guénon, que não substitui a dissolução da manifestação no fim do ciclo, mas
ocorre imediatamente antes dela (cf. O Reino da Quantidade, pp.
328–329). E ele deveria saber que a versão do ciclo de manifestação que
apresenta não é de modo algum a Tradicionalista, como afirma, e que “a
aniquilação total da humanidade na terra” é sim uma possibilidade distinta,
dependendo da magnitude do ciclo atualmente em encerramento, visto que ele
próprio cita Coomaraswamy (p. 130) no sentido de que, após o mahāpralaya
— a grande dissolução — “as sementes, ideias ou imagens da futura manifestação
persistem durante o intervalo de inter-Tempo da resolução, num plano mais alto
de existência, incólumes à destruição das formas manifestadas”, não em
“repositórios especiais” de estoque humano reprodutor, nem em pequenos e
remotos enclaves de sobrevivencialistas esotéricos. Dito isso, quero deixar
claro que não creio necessariamente que todo ser humano perecerá da terra num
futuro relativamente próximo, nem deposito qualquer esperança na continuidade
da história e da vida humanas. Minha fé em Deus e meu senso do significado da
vida terrena não dependem nem de uma coisa nem de outra. A esperança
escatológica é esperança vertical; ela não requer nem a destruição da terra nem
a sua preservação para realizar-se, pois diz respeito a “um novo céu e uma nova
terra”. E, no entanto, esse novo céu e essa nova terra relacionam-se
intimamente com este céu e esta terra — paradoxo aparente que explica as
afirmações oraculares de Guénon em O Reino da Quantidade: que o fim do
ciclo é o fim de “uma” humanidade; que é o fim do tempo, mas não o fim do
espaço; que é a completa dissolução da manifestação, mas não o fim da
existência terrestre. Fixar as esperanças na destruição da terra é desespero:
“é necessário que venham os escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo
vem”. Mas fixá-las na continuidade futura da história humana é falsa esperança:
a verdadeira esperança não pode fundar-se na projeção de nossos medos e desejos
presentes num futuro quando, por meios incertos, aquilo que esperamos triunfará
sobre o que tememos. A verdadeira esperança é vertical — isto é, contemplativa
e escatológica. Do mesmo modo que a contemplação nos desapega da esperança e do
temor relativos a eventos futuros ao substituir a esperança temporal pela
esperança na Misericórdia presente de Deus, e o temor temporal pelo temor da
Sua Grandeza presente — a altura e a profundidade do axis mundi —, assim
também a esperança escatológica é vertical exatamente nesse mesmo sentido, e a
esperança vertical é além da questão de saber se toda a vida, ou toda a vida
humana, perecerá da Terra em um futuro previsível — embora fingir que a
destruição da Terra é um assunto indiferente para nós seja outro extremo, já
que o amor pela Terra de Deus faz parte do amor a Deus, e seríamos insanamente
arrogantes e emocionalmente mortos se afirmássemos que o fim de toda a vida
terrestre simplesmente não nos tocaria: até Cristo chorou sobre Jerusalém. O
que sabemos é que este ciclo, esta “humanidade”, está prestes a terminar, e que
este fim será — ou melhor, é — a ocasião de uma irrupção radical da eternidade
no tempo. Nisso está a nossa esperança.
Nas palavras de Thomas
Merton, em “The Time of the End is the Time of No Room” (Raids on
the Unspeakable, pp. 65–75):
No sentido bíblico, a expressão “o Fim” não
significa necessariamente apenas “o fim violento, súbito e mau”. A escatologia
bíblica não deve ser confundida com a vaga e ansiosa escatologia das apreensões
humanas. Vivemos numa era de duas escatologias sobrepostas: a das ansiedades e
esperanças seculares, e a da realização revelada. Às vezes a primeira é
simplesmente confundida com a segunda; às vezes resulta da completa negação e
desespero diante da segunda. De fato, o medo patológico do fim violento — que,
quando suficientemente despertado, torna-se uma esperança veladamente
disfarçada por esse mesmo fim — fornece algo do clima de confusão e desespero
em que as esperanças mais profundas da escatologia bíblica se realizam. … Pois
a escatologia não é término e castigo, encerramento de contas e fechamento de
livros: é o início final, o nascimento definitivo em uma nova criação. Não é o
último suspiro das possibilidades exauridas, mas o primeiro gosto de tudo o que
está além de ser concebido como atual.
Essa alternativa aparentemente inescapável, mas na
verdade ilusória, entre desespero histórico e esperança histórica — que é, na
realidade, apenas outra forma de desespero — entre, isto é, o medo da morte e o
desejo de morrer, intimamente relacionados de tantos modos — é na verdade a
projeção de uma falsa dicotomia metafísica. Em certo sentido, tem a ver com
nossa crença na evolução e nossa adoração do progresso, que foram, para tantos
(inclusive para mim até bem recentemente), não apenas os pressupostos básicos
que dão sentido às nossas lutas vitais, mas também o fundamento filosófico de
nossa solidariedade com a humanidade e com a Terra — conceitos fundamentais que
ampliam nossos horizontes, conferem significado às nossas ações além de nossos
mesquinhos interesses pessoais e nos movem rumo à compaixão e à
autotranscendência. Em outras palavras, são esses dogmas modernistas que
substituíram especificamente a caridade cristã e a esperança na Providência
Divina.
Mas agora que os mitos do progresso biológico e
social estão profundamente ameaçados pela devolução e regressão que vemos ao
nosso redor, muitos de nós perdemos nossa raison d’être, nossa razão de
viver além de nossos desejos egoístas. “Para que tudo isso?”, perguntamos. A
história e a evolução precisam estar indo a algum lugar; precisam ter um
objetivo. Se não estão indo a lugar algum, se “falham”, então toda a luta
humana é sem sentido. E se não conseguimos ver como a evolução e o progresso
poderiam “triunfar” no mundo material, seremos tentados a postular uma evolução
superior, mais sutil, que possa triunfar, de algum modo, em mundos mais
elevados. E esse triunfo da luta espiritual humana deve ter um significado além
da simples libertação do cativeiro da vida encarnada. A vida encarnada, o seu
cativeiro e a nossa fuga desse cativeiro precisam significar algo. E o que mais
poderiam logicamente significar, perguntamos — e, ao fazê-lo, colocamo-nos na companhia
de H. P. Blavatsky, Rudolf Steiner e Teilhard de Chardin — senão que a
manifestação e a reintegração do Universo devem, de fato, acrescentar algo novo
à natureza de Deus?
Porque, caso contrário, dizemos a nós mesmos, os
gnósticos têm razão: o universo, incluindo a existência humana encarnada, é um
erro — seja da nossa parte, seja da própria Divindade; tudo o que podemos fazer
diante disso é dar meia-volta, admitir que tudo foi uma má proposta e retornar
à, e assim restaurar, a Divindade ferida.
A falsa dicotomia metafísica é esta: ou Deus também
está evoluindo, ou Ele decaiu e deve ser restaurado. Mas, do ponto de vista da gnosis,
que é o único campo no qual essa falsa dicotomia pode ser resolvida, vemos que
tanto a ideia de que a evolução e a história humana têm um significado último
dentro do tempo — como no “Ponto Ômega” de Chardin — quanto, como nos
gnósticos, a ideia de que evolução e história são destituídas de sentido porque
o próprio tempo é um erro, ambas dependem de uma negação de que Deus é
Absoluto, Infinito, Perfeito e suficiente em Si mesmo.
Uma vez compreendida essa verdade de Deus, contudo,
chegamos então à visão do tempo como um aspecto da Infinidade de Deus, assim
como os princípios imutáveis são aspectos de Sua Absolutidade; e do tempo como
algo que não “vai” a parte alguma senão de volta a Deus — um movimento que não
pode ocorrer no futuro, sob pena de cairmos num tipo de “deísmo pós-eterno”,
complemento e oposto do mais familiar deísmo pré-eterno — mas que está
realmente ocorrendo agora, na Eternidade. O passado eterno, o passado como
Agora, sub specie aeternitatis, é Criação; o futuro eterno, o futuro
como Agora, sub specie aeternitatis, é Apocatástase. E o
significado do tempo é: ele é abrangido por, e existe como manifestação de, a
Eternidade, onde todo sentido reside.
Na p. 269, Quinn afirma corretamente que “Na visão
Tradicional… o cosmos não encontra seu significado no indivíduo; o indivíduo
encontra seu significado no cosmos, assim como a parte encontra o seu
significado no todo.” Mas, nas pp. 272–273, ele sustenta que Carl Jung estava
“de certo modo próximo da perspectiva Tradicional” e apoia isso com a afirmação
de que “Para Jung, a neurose da modernidade está em buscar respostas
massificadas, externas e quantitativas para um problema cuja única solução se
encontra por meios individuais, internos e qualitativos ou psicodinâmicos.”
Talvez essas posições possam ser conciliadas — deixando de lado a identificação
implícita entre metafísica e psicologia profunda, que é o mais errôneo possível
— ao afirmar que é responsabilidade exclusiva do indivíduo encontrar seu
significado no cosmos e, assim, no Princípio de que o cosmos é manifestação,
ainda que só possa realizar isso com o “auxílio” do próprio cosmos, concebido
como apoio divinamente concedido para a contemplação da Natureza divina, algo
que pode ocorrer (na maioria dos casos) apenas no contexto da doutrina
revelada. Mas não é imediatamente evidente que Quinn compreenda isso.
Se Carl Jung está, de certo modo, “próximo” da
perspectiva Tradicionalista, é essa situação de estar “tão perto e ainda assim
tão longe” que impediu, mais do que qualquer outro fator, a Escola
Tradicionalista de ressuscitar uma psicologia verdadeiramente tradicional e
principiológica — sem mencionar o efeito profundamente subversivo de Jung sobre
o Cristianismo, especialmente o Catolicismo Romano. É como se o racionalismo
moderno tivesse separado a proficiência doutrinal da compreensão da eficácia e
do significado simbólico das imagens no mundo católico, resultando que os
católicos, possuindo uma profunda sensibilidade simbólica “no sangue”, sentiram
a necessidade de recuperar tal compreensão, mas a buscaram no junguianismo em
vez de na plenitude de sua própria tradição — com resultados desastrosos. Se ao
menos Titus Burckhardt e outros de perspectiva Tradicional tivessem chegado à
alquimia tempo suficiente antes de Jung, de modo a permitir-lhes explicitar
todo o seu alcance de significados e aplicações psicológicas — e não apenas a
sua simbologia metafísica — sem receio de serem identificados com o
junguianismo!
Jung e sua escola não estão desprovidos de
intuições psicológicas penetrantes e úteis, e algumas de suas doutrinas são
como sombras projetadas por uma perspectiva metafísica válida. O “arquétipo do
Si”, por exemplo, está próximo do que os sufis entendem por Coração —
isto é, o “ponto central” da psique, onde ela é atravessada por um raio do
Espírito — e a “hierarquia descendente” de camadas psíquicas de Jung — a
Sombra, a Sízygia (“anima” e “animus”) e o Si — poderia ser vista como
os reflexos psíquicos do corpo, da própria psique (baseada, como é, num modo
sujeito–objeto de percepção) e do Espírito, segundo o princípio de que “o que é
mais alto em princípio é o mais baixo na manifestação”. Mas, como observa
Burckhardt em seu capítulo sobre “Psicologia Moderna” em Mirror of the
Intellect, a relutância de Jung em postular uma dimensão metafísica
objetiva e sua derivação explícita do “inconsciente coletivo” a partir da
estrutura do cérebro humano — que ele vê como elo com o nosso passado animal
por via da evolução — tornam sua doutrina não apenas insuficiente, mas
ativamente subversiva da metafísica tradicional.
O papel de Jung na modernidade, e sua afinidade com
as novas elites globais antitradicionais, é evidenciado por Christopher
Lasch em The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy
(Nova York e Londres, W. W. Norton & Company, 1995, pp. 236–239):
A beleza do sistema de Jung, para aqueles ameaçados
pela “falta de sentido”, como ele gostava de chamá-la, era que oferecia
“sentido” sem voltar as costas à modernidade. Jung assegurava a seus
seguidores, de fato, que poderiam permanecer plenamente modernos sem sacrificar
o consolo emocional outrora proporcionado pela religião ortodoxa. … Era ao
indivíduo dotado, aquele que aceitava o fardo da maturidade, que Jung se
dirigia nos ensaios reunidos em 1933 sob o título inevitável Modern Man in
Search of a Soul. Ao superar a tradição, o indivíduo plenamente moderno
ganhava uma perspectiva mais ampla, mas inevitavelmente se afastava de seus
semelhantes mais conservadores. Uma “consciência mais plena do presente o
remove… da imersão na consciência comum”, da “massa de homens que vivem
inteiramente dentro dos limites da tradição”. É por isso que a solução do “problema
espiritual moderno”, como Jung o chamava, não poderia residir num retorno às
“formas obsoletas de religião”, tanto quanto não poderia residir numa visão
puramente secular do mundo. … O homem moderno, tendo “ouvido o bastante sobre
culpa e pecado”, era com razão desconfiado de “ideias fixas sobre o que é
certo”, desconfiado de conselheiros espirituais que “fingiam saber o que é
certo e o que não é”. O julgamento moral, de todo modo, “tirava algo da riqueza
da experiência”.
[A versão junguiana da psicanálise era] o meio pelo
qual libertar a imaginação religiosa de seu cativeiro em credos moribundos. Ao
proporcionar acesso não apenas à vida inconsciente dos indivíduos, mas também
ao “inconsciente coletivo” da raça humana, a psicanálise junguiana escavava a
estrutura permanente da mitologia religiosa — o material bruto a partir do qual
o mundo moderno poderia construir novas formas de vida religiosa apropriadas às
suas necessidades. Jung convidava seus pacientes e leitores a percorrer toda a
gama de mitologias e técnicas espirituais — todas igualmente disponíveis para
inspeção, graças à expansão da consciência histórica no mundo moderno — e a
experimentar uma variedade de combinações até encontrarem aquela mais adequada
às suas exigências individuais. … As classes instruídas, incapazes de escapar
ao fardo da sofisticação, podiam invejar as fés ingênuas do passado; podiam até
invejar as classes que continuavam inconscientemente a observar as fés
tradicionais no século XX, ainda não expostas aos ventos gélidos do pensamento
crítico moderno. Contudo, não podiam trocar de lugar com as massas não
iluminadas, tanto quanto não podiam retornar ao passado. Uma vez assimilado o
hábito crítico da mente, ninguém que entendesse suas implicações poderia
encontrar refúgio ou descanso nos sistemas pré-modernos de pensamento e crença.
Era essa experiência de desilusão, mais do que qualquer outra coisa, que se
acreditava distinguir o artista e o intelectual das criaturas irrefletidas da
convenção, que desconfiavam dos artistas e intelectuais precisamente porque não
suportavam ouvir as más notícias.
[Nota: Para uma exposição reveladora do
Anticristianismo explícito e do Neopaganismo de Jung, ver The Jung Cult
(Princeton University Press, 1994) e The Aryan Christ (Random House, 1997),
ambos de Richard Noll.]
Todo grupo centrado em um conjunto de crenças e
valores — em outras palavras, todo grupo — possui uma visão de sociedade. E
isso é certamente verdadeiro para os Tradicionalistas, cuja “crítica do mundo
moderno” é um aspecto integral, embora não essencial, de seu ensinamento. Mas o
próprio hábito de contemplar princípios eternos pode tornar alguns deles (ou
melhor, de nós) lentos para reconhecer mudanças sociais profundas. Escritores
tradicionalistas ainda nos advertem contra o igualitarismo e o socialismo,
enquanto o verdadeiro sinal dos nossos tempos, no plano socioeconômico, é a
queda do comunismo e a enorme e crescente disparidade global entre ricos e
pobres.
Nem os Estados Unidos estão isentos dessas
tendências, como qualquer um disposto a olhar pode ver. Lester Thurlow,
em sua orelha para The Winner-Take-All Society (1995), de Robert H.
Frank e Philip J. Cook, escreve: “A história verá a mudança na
distribuição americana de rendimentos desde a década de 1970 como a maior que qualquer
sociedade já teve sem uma revolução ou uma derrota militar e subsequente
ocupação.” E, na p. 229 desse livro, os autores citam o jornalista Mickey
Kraus:
Sempre tivemos ricos e pobres. Mas o dinheiro é
cada vez mais algo que permite aos ricos, ou mesmo aos meramente prósperos,
viver uma vida à parte dos pobres. E os ricos e semi-ricos parecem cada vez
mais querer viver uma vida à parte. …
Ou, nas palavras de Christopher Lasch, em The
Revolt of the Elites (p. 29):
O curso geral da história recente já não favorece o
nivelamento das distinções sociais, mas caminha cada vez mais na direção de uma
sociedade de duas classes, na qual os poucos favorecidos monopolizam as
vantagens do dinheiro, da educação e do poder.
De muitos modos, a “sociologia Tradicionalista” é
semelhante à de Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas (salvo
por certos pressupostos progressistas que os Tradicionalistas negam), que
lamentava o surgimento das massas desenraizadas e secularizadas, sem senso de
tradição, e o desaparecimento das antigas aristocracias que haviam sido os
repositórios dos valores culturais e espirituais. Mas é a tese de Lasch,
em The Revolt of the Elites, que o jogo agora se inverteu: são as novas
“elites” globais que representam o progressismo e o secularismo, enquanto as
“massas” de hoje são comparativamente conservadoras e tradicionais.
Como coloca o sociólogo da religião Peter Berger,
em uma frase frequentemente citada por Huston Smith:
Se os indianos orientais são o povo mais religioso
da Terra e os suecos o menos religioso, então a América (e, eu acrescentaria, a
Nova Ordem Mundial) é como uma nação de indianos governada por suecos.
Segundo Lasch (p. 215):
Entre as elites, [a religião] é tida em baixa
estima — algo útil para casamentos e funerais, mas de resto dispensável. Um
estado mental cético e iconoclástico é uma das características distintivas das
classes do conhecimento. Seu compromisso com a cultura da crítica é entendido
como excludente de compromissos religiosos. A atitude das elites para com a
religião varia da indiferença à hostilidade ativa. Ela repousa sobre uma
caricatura do fundamentalismo religioso como um movimento reacionário empenhado
em reverter todas as conquistas progressistas obtidas nas últimas três décadas.
A distinção de Lasch entre a “revolta das
massas” de Ortega y Gasset e a atual “revolta das elites” merece ser
citada amplamente.
Ortega e outros críticos descreviam a cultura de
massa como uma combinação de “ingratidão radical” com uma crença inquestionada
em possibilidades ilimitadas. O homem-massa, segundo Ortega, tomava como dadas
as benesses conferidas pela civilização e as exigia “peremptoriamente, como se
fossem direitos naturais”. Herdeiro de todas as eras, estava beatificamente
inconsciente de sua dívida para com o passado. Embora desfrutasse de vantagens
trazidas pela “elevação do nível histórico” em geral, não sentia obrigação nem
para com seus progenitores nem para com sua prole. Não reconhecia nenhuma
autoridade fora de si mesmo, conduzindo-se como se fosse “senhor de sua própria
existência”. Sua “incrível ignorância da história” tornava possível pensar o
momento presente como muito superior às civilizações do passado e esquecer,
além disso, que a própria civilização contemporânea era produto de séculos de
desenvolvimento histórico, não a conquista singular de uma era que teria
descoberto o segredo do progresso ao virar as costas ao passado.
Esses modos de pensar, ao que parece, associam-se
com mais precisão ao surgimento da meritocracia do que à “revolta das massas”.
O próprio Ortega admitia que o “protótipo do homem-massa” era “o homem de
ciência” — o “técnico”, o especialista, o “douto ignorante” cuja maestria em
seu “cantinho do universo” só era igualada por sua ignorância do resto. Mas o
processo em questão não deriva simplesmente da substituição do antiquado homem
de letras pelo especialista, como a análise de Ortega sugere; deriva da
estrutura intrínseca da própria meritocracia. A meritocracia é uma paródia da
democracia [e aqui Quinn é mais honesto do que alguns, não tendo apreço algum
pela democracia]. Ela oferece oportunidades de ascensão, ao menos em teoria, a
qualquer um com talento para aproveitá-las, mas “oportunidades de subir”, como
aponta R. H. Tawney em Equality, “não substituem a difusão geral dos
meios da civilização”, da “dignidade e cultura” de que todos precisam “ascendam
ou não”. A mobilidade social não mina a influência das elites; se algo faz, é
solidificá-la ao sustentar a ilusão de que repousa unicamente no mérito. (pp.
40–41)
O mercado em que as novas elites operam é agora
internacional em alcance. Suas fortunas estão atreladas a empreendimentos que
atuam através de fronteiras nacionais. Preocupam-se mais com o funcionamento
suave do sistema como um todo do que com qualquer uma de suas partes. Suas lealdades
— se o termo não for anacrônico nesse contexto — são internacionais, e não
regionais, nacionais ou locais. Têm mais em comum com seus pares em Bruxelas ou
Hong Kong do que com as massas de americanos ainda não plugados à rede de
comunicações globais. (p. 34)
Curiosamente, é Robert Reich, apesar de sua
admiração pela nova classe dos “analistas simbólicos”, quem fornece um dos
relatos mais penetrantes do “lado mais sombrio do cosmopolitismo”. Sem vínculos
nacionais — lembra ele — as pessoas têm pouca inclinação para fazer sacrifícios
ou aceitar responsabilidade por seus atos. “Aprendemos a sentir-nos
responsáveis pelos outros porque partilhamos com eles uma história comum, … uma
cultura comum, … um destino comum.” A desnacionalização da empresa tende a produzir
uma classe de cosmopolitas que se veem como “cidadãos do mundo, mas sem aceitar
… quaisquer das obrigações que a cidadania, normalmente, implica”. Porém o
cosmopolitismo dos poucos favorecidos, por ser desinformado pela prática da
cidadania, revela-se uma forma mais elevada de paroquialismo. Em vez de
apoiarem serviços públicos, as novas elites colocam seu dinheiro na melhoria de
seus próprios enclaves autocercados. (pp. 46–47)
As “zonas” e “redes” admiradas por Reich pouco se
assemelham a comunidades em qualquer sentido tradicional do termo. Povoada por
transeuntes, falta-lhes a continuidade que deriva do senso de lugar e de
padrões de conduta conscientemente cultivados e transmitidos de geração em
geração. (p. 40)
Quinn às vezes dá a impressão de que concordaria
com a crítica acima, ainda que desde uma perspectiva especificamente
Tradicionalista. Nas pp. 284–285, citando liberalmente Guénon e Coomaraswamy,
Quinn lamenta de modo convincente a poluição “cultural” (e/ou culturocídio),
na qual, por conquista militar, dominação econômica ou qualquer outra forma de
hegemonia imposta, as culturas industriais quantitativas do Ocidente moderno
corromperam ou destruíram culturas Tradicionais. Trata-se de algo mais do que a
passagem da sociedade tradicional: é, mais propriamente, uma campanha ativa que
procede “subjugando um povo; tirando-lhe o que tem de mais precioso, a saber, a
sua própria cultura; coagindo-o a adotar costumes e instituições de um povo
estrangeiro; forçando-o ao trabalho mais odioso para que adquira coisas que
para ele são perfeitamente inúteis” [citação de A Crise do Mundo Moderno,
de Guénon].
Primeiro por um processo de colonização e dominação
forçadas, depois por atrito, uma a uma as várias culturas indígenas com que o
Ocidente moderno entrou em contato desde o Renascimento foram gradualmente se
desintegrando, no sentido estrito da palavra. Repetidas vezes, “o fato de
termos destruído os fundamentos vocacionais e artísticos de quaisquer culturas
tradicionais que nosso toque tenha infectado”, como escreveu Coomaraswamy certa
vez, deixou o planeta com cada vez menos culturas Tradicionais pristinas e
coerentes. Ou foram forçadas a renunciar, ou gradualmente abandonaram seus
modos Tradicionais, baseados numa cosmovisão mitológica ou metafísica qualitativa,
e literalmente “compraram” a ilusão do progresso material. …
Para esses países, essas culturas, a poluição é
dupla e quase instantânea. A poluição visível das novas autoestradas e fábricas
— construídas, respectivamente, para agilizar o trânsito de alta entropia
crucial ao industrialismo e para explorar mão de obra local barata — é o sinal
exterior de uma poluição de tipo mais devastador na visão Tradicional: a troca
de sentido, valor, inteireza, sacralidade e qualidade de vida por falta de sentido,
relativismo, fragmentação, secularismo e quantidade.
Concordo integralmente com essa avaliação. Mas, no
capítulo seguinte, no que é provavelmente o momento mais sinistro de todo o
livro de Quinn, por meio de uma impressionante manifestação do que George
Orwell chamou de “duplipensar”, ele dá meia-volta completa e toma como sua
esperança e seu ideal aquilo que acabara de lamentar como um desastre sem
mitigação. Na p. 301, fala em termos elogiosos da nova globalização: “ …
quando, na história do mundo, já houve tanto esforço despendido na planetização
do pensamento; na cooperação internacional, como exemplificada pelas Nações
Unidas; na unanimidade e conformidade trazidas pelo comércio mundial, pela
ciência, pela tecnologia; em redes de coleta de dados via satélite e
telecomunicações; e em intercâmbios educacionais e artísticos como agora?
Organizações internacionais cujo único propósito é a promulgação da consciência
planetária existem hoje, e comunidades espirituais internacionalmente
constituídas proliferam.” Mas o que é uma “planetização do pensamento” baseada
numa “unanimidade e conformidade trazidas pelo comércio mundial, ciência,
tecnologia” senão uma “hegemonia imposta” originada nas “culturas industriais
quantitativas do Ocidente moderno”, que continua a destruir sociedades
Tradicionais “tirando-lhes o que têm de mais precioso, a saber, a sua própria
cultura”?
Logo, Quinn não é crítico das elites insurgentes de
Lasch, mas em muitos pontos membro delas — embora mais arguto do que a maioria,
por admitir abertamente que as coisas não podem prosseguir como estão, que o
mundo presente caminha para a catástrofe. E, como é comum entre as novas elites
globais, fala muito bem das culturas primitivas como repositórios de metafísica
tradicional (cap. 9), ao mesmo tempo em que reconhece a existência de
“etnocentrismo e xenofobia pandêmicos, paroquialismo, tribalismo e solipsismo
de grupo” (p. 300), embora atribua uma preocupação excessiva com essas
tendências apenas aos céticos da planetização — quando, na realidade, a
planetização vai bem e avança sem entraves. Contudo, até certo ponto, ambas as
atitudes são justificadas. E não é esse “etnocentrismo, xenofobia,
paroquialismo e tribalismo” muitas vezes a expressão mesma da luta pela
sobrevivência das culturas mais Tradicionais, cujo desaparecimento Quinn finge
lamentar? É frequente que membros da elite global apreciem culturas primitivas
como se fossem uma espécie de vida selvagem — daí o uso, de resto justificável,
do termo “culturas ameaçadas” — enquanto veem separatistas étnicos, sejam
bascos, tâmeis, sérvios ou (como se torna cada vez mais adequado mencionar)
anglo-saxões norte-americanos local ou nacionalmente identificados, como
entraves ao progresso a serem removidos. Em outras palavras: um grupo cultural
ou étnico não globalmente identificado e sem poder político é considerado
representar um primitivismo pristino digno de preservação, ao passo que o mesmo
grupo, dotado de certo poder, constitui inimigo da “planetização”; (é por isso,
de passagem, que Quinn cita O Reino da Quantidade (p. 217) para o efeito
de que “o xamanismo se mostrará incluir ritos comparáveis a certos outros da
mais alta ordem” e ignora a afirmação de Guénon na página seguinte de que “uma
degenerescência muito real deve ser suspeitada” no xamanismo, “a ponto de por
vezes equivaler a uma verdadeira desviação”).
E, de fato, ao mesmo tempo em que a planetização se
move para destruir todas as culturas pré-industriais, as estantes — pelo menos
do setor americano das elites globais — estão abarrotadas de livros sobre as
espiritualidades dessas culturas, enquanto suas paredes se cobrem de seus
artefatos, desde entalhes tribais africanos comprados de cooperativas
artesanais nativas até estatuetas maias contrabandeadas pela fronteira mexicana
por “coletivos” de ladrões de arte. E embora o mecenato dessas elites a
artistas “primitivos” possa ajudar, em alguma medida, tais culturas em luta —
ou tais bandos em luta —, o dinheiro usado para comprar os objetos em questão
provém da economia global que destrói sistematicamente as culturas que os
produzem, e que inclui também o comércio global de artesanato, legal ou ilegal.
É aqui que a caracterização, em grande parte justa, de Lasch das elites globais
como essencialmente seculares precisa ser matizada.
Seculares podem ser, vistas desde uma perspectiva
tradicional, mas isso não quer dizer que algumas delas não se interessem
profundamente por religiões; tudo o que rejeitam é a fé religiosa. Consideram
as tradições religiosas do mundo — inclusive seus esoterismos — como um recurso
cultural a explorar, assim como exploram recursos naturais e mão de obra
barata, para preencher o vazio deixado em suas almas por seu secularismo
impenitente. A “religião” característica de alguns (não todos) setores da elite
global é uma espécie de “espiritualidade fusion mundial” — que, porém, é
essencialmente psíquica, não espiritual — composta de textos, música, objetos
rituais, práticas iogues e mágicas, e até iniciações xamânicas coletadas pelo
mundo afora. Isso se torna mais fácil de entender se lembrarmos que certos
membros da comunidade de negócios sempre flertaram com a ideia de filiação a
sociedades secretas. Maçons, Elks, Oddfellows, Shriners e Druidas representam
uma longa tradição de envolvimento burguês em organizações pseudo-iniciáticas,
algumas das quais — particularmente a Maçonaria — dão sinais de possível
descendência de verdadeiras sociedades iniciáticas no passado remoto. Guénon
via os maçons como a progênie degenerada de uma linhagem iniciática válida,
cujo simbolismo esotérico, se não a sua barakah, conservou elementos
tradicionais reais. E as pretensões iniciáticas da Maçonaria, bem como suas
conexões com o mundo dos negócios, sobrevivem até hoje. Muitos desses “clubes
masculinos” são internacionais em escopo, e certos de seus símbolos e práticas
— quer estritamente para entretenimento, quer por razões muito mais sérias —
permanecem secretos; isso indubitavelmente tornou alguns deles úteis a
corporações multinacionais no processo de expandir seu alcance.
Se somarmos a isso a vertente do “misticismo
motivacional” representada por Dale Carnegie e Norman Vincent Peale, bem como a
massa de ideias e técnicas mágicas e quase mágicas introduzidas no mundo dos
negócios pelos ex-hippies da geração baby boom, a “religiosidade esotérica”
das elites globalistas deixa de soar tão inverossímil. O diplomata vaticano,
autor e exorcista de renome internacional Pe. Malachi Martin sustentava
que a liderança maçônica — que, segundo ele, subverteu com sucesso a Igreja
Católica — provinha dessas elites, e que a maioria dos “luciferianos” que
encontrou em seu trabalho eram membros de alto escalão das comunidades
empresarial, profissional e eclesiástica — embora eu me apresse em acrescentar
que as práticas Nova Era que se possam encontrar no mundo corporativo
certamente não têm todas origem ou intenção satanista. Mas, dado que a
burguesia sempre teve suas sociedades secretas — como a aristocracia teve sua
“ordem esotérica” de cavalaria —, a ideia popular de que todas as ideias
psíquicas ou mágicas são fenômenos “marginais” simplesmente não é precisa. E,
se há um paradigma “espiritual” característico nesse mundo de consultoria
corporativa — pelo menos no setor dele que experimentei diretamente —, é o
xamanismo; ou então outra coisa que leva o mesmo nome. Segundo a mitologia Nova
Era e/ou da Nova Classe, o xamanismo, por poder ser definido como — ou reduzido
a — um conjunto de “técnicas arcaicas do êxtase” (para citar o subtítulo da
obra famosa de Mircea Eliade sobre o tema), é a mais transportável de todas as
espiritualidades, perfeitamente ajustada à classe dos “transientes de elite”
descrita por Lasch.
Por ser técnica, e não culturalmente fundada, não
estaria tão profundamente vinculada a culturas locais como a Ortodoxia russa,
por exemplo, ou o Islã — ou assim diz a história; e, enquanto conjunto de
“técnicas” antes que “dogmas”, é altamente atraente para uma classe que
valoriza “habilidade” — sobretudo mental ou psíquica — acima da lealdade a
valores tradicionais ou da fé em Deus. Supostamente a mais individualista de
todas as espiritualidades, é também a mais potencialmente prometeica, pois — ao
menos conforme a mitologia Nova Era em questão — se baseia em façanhas mágicas,
e não no sacrifício do ego, e numa “insight” visto não como fruto de ascese
contemplativa ou dom de Deus, mas como resultado de uma espécie de “incursão
aos mistérios”, segundo um paradigma mais próximo da espionagem do que da
religião. As “comunidades espirituais internacionalmente constituídas” de Quinn
são, em parte, redes psíquicas e “neoxamânicas” para as elites.
Na p. 303, Quinn admite que,
embora suas ênfases divergissem, Coomaraswamy e Guénon insistiam ambos na
participação e na iniciação regular numa Tradição viva para compreender e
assimilar os primeiros princípios e os ensinamentos esotéricos concomitantes.
Do mesmo modo, ambos rejeitavam a noção de um “esperanto religioso” eclético,
emprestado … dos diversos sistemas Tradicionais.
“Contudo”, prossegue ele,
ambos morreram antes que se pudesse afirmar inequivocamente que, sobre a face
da Terra, já não se encontram culturas plenamente Tradicionais, que tudo o que
resta das antigas sobrevive em bolsões isolados de áreas remotas e rurais.
Mas o que é
verdade para “culturas” Tradicionais não é verdade para Tradições, que podem e
de fato sobrevivem. Meu sufismo islâmico — com seus ensinamentos e práticas
tradicionais, seus mestres vivos, seus estados e estações espirituais — e a
ortodoxia oriental de minha esposa — com sua liturgia tradicional, seus
ensinamentos patrísticos, sua comunhão dos santos e seus milagres — estão mais
vivos do que Quinn jamais saberá — e isso no coração da “planetização” e do
“esperanto religioso”, a área da Baía de São Francisco.
E então, aparentemente sem qualquer escrúpulo de consciência, Quinn subverte
todo o trabalho de vida de Guénon e Coomaraswamy, bem diante de nossos olhos —
homens que ele afirma respeitar. Na página 302, referindo-se às objeções de
Guénon e Coomaraswamy a “uma fé sincrética universalmente aceitável, incorporando
tudo o que há de ‘melhor em cada fé’”, ele diz:
Mas, porque a base de uma cultura planetária — se esta deve ser uma nova
cultura Tradicional — deve ser uma consciência planetária espiritualmente
orientada, e porque esta última deve conter princípios sagrados inerentes,
comuns e representativos das principais religiões do mundo, a conclusão
inevitável é que os primeiros princípios da metafísica natural, que sozinhos
satisfazem esses pré-requisitos, devem desempenhar um papel primário que, à
primeira vista, pode parecer ser tal “fé sincrética universalmente aceitável”.
E nas páginas 303–304, ele afirma que, se o
derramamento sem precedentes da philosophia perennis ou theosophia
— a Tradição — nos séculos XIX e XX foi o progenitor de uma nova Tradição viva
planetária ortodoxa... então, com base nas obras de suas vidas, Guénon e
Coomaraswamy teriam sido contribuintes-chave de qualquer futura cultura
Tradicional planetária — uma ironia sutil à luz de sua posição sobre o
“esperanto religioso”.
E então:
A planetização já começou — tanto tecnológica quanto conceitualmente — como
vimos. Mas a visão de uma cultura planetária baseada nos preceitos da cultura
Tradicional, conforme delineada por Guénon e Coomaraswamy, é uma nova entrada
no campo do futurismo.
É também uma nova entrada no campo da mendacidade:
Tradição sem Tradições seria como humanidade sem seres humanos. Quão certo
estava Walter Benjamin quando disse: “Os mortos não estão seguros”!
Nas páginas 304–305, Quinn revela seu verdadeiro
objeto de adoração:
Por definição, a estrutura social da cultura planetária Tradicional deve ser
hierárquica, e desta Tradição se refere apenas a uma elite espiritual
determinada unicamente pela virtude da capacidade, cuja função será transmitir,
por assim dizer, os princípios metafísicos superiores e a doutrina que deles se
desdobra... Presumivelmente, este será o papel de cientistas/metafísicos
avançados... e/ou religiosos e estudantes de filosofia — como Guénon, por
exemplo — que se concentram nesses assuntos.
Mas uma hierarquia de castas tradicional e uma
meritocracia, tal como Quinn imagina — e falsamente equipara à Tradição — são
duas coisas muito diferentes. Brâmanes e Kshatriyas são o produto de nascimento
meritório, não de competição meritocrática impiedosa. Na página 39 de The
Revolt of the Elites, Christopher Lasch fala da “arrogância do poder”, à
qual os “melhores e mais brilhantes” são congenitamente viciados, e diz:
Essa arrogância não deve ser confundida com o orgulho característico das
classes aristocráticas, que repousa sobre a herança de uma linhagem antiga e
sobre a obrigação de defender sua honra. Nem o valor e a cavalaria, nem o
código do amor cortês e romântico, com os quais esses valores estão intimamente
aliados [isto é, os valores dos “Kshatriyas” ocidentais], têm lugar na visão de
mundo dos melhores e mais brilhantes. Uma meritocracia não tem mais uso para a
cavalaria do que uma aristocracia hereditária tem para o intelecto. Embora
vantagens hereditárias desempenhem um papel importante na conquista de status
profissional ou gerencial, a nova classe deve manter a ficção de que seu poder
repousa exclusivamente na inteligência. Por conseguinte, tem pouco senso de
gratidão ancestral ou de obrigação de corresponder às responsabilidades
herdadas do passado. Considera-se uma elite autoconstruída, devendo seus
privilégios exclusivamente a seus próprios esforços.
E, na página 44:
Uma aristocracia do talento — ideal superficialmente atraente, que parece
distinguir as democracias das sociedades baseadas em privilégios hereditários —
revela-se uma contradição em termos: os talentosos retêm muitos dos vícios da
aristocracia sem suas virtudes. Seu esnobismo carece de qualquer reconhecimento
de obrigações recíprocas entre os poucos favorecidos e a multidão. Embora estejam
cheios de “compaixão” pelos pobres, não se pode dizer que subscrevam à teoria
da noblesse oblige, que implicaria uma disposição de fazer uma
contribuição direta e pessoal ao bem público.
Quando Quinn diz que “a estrutura social da cultura
planetária Tradicional deve ser hierárquica”, ele se refere necessariamente a
um desenvolvimento futuro no ciclo presente ou à Idade de Ouro do próximo
ciclo; nas páginas 303–304 ele diz que não tem certeza se os sinais da
planetização apontam para o advento de um novo avatara (isto é, um novo
ciclo), ou para o desenvolvimento das doutrinas de Blavatsky e dos
Tradicionalistas em uma nova cultura Tradicional planetária. Mas, segundo os
Tradicionalistas, a Idade de Ouro de qualquer novo ciclo é não-hierárquica. Nas
palavras de Martin Lings (Ancient Beliefs and Modern Superstitions, p.
49): “A Idade de Ouro é, por definição, a era em que todos os homens estão
‘acima da casta’.” Assim, Quinn está errado nisso.
E se ele está falando de um desenvolvimento futuro
de uma cultura Tradicional planetária hierárquica dentro deste ciclo, então ele
é universalmente contradito pela Tradição, que vê o sistema de castas como uma
forma de prolongar a glória da Idade de Ouro em períodos posteriores, mas
reconhece que a hierarquia tradicional de castas deve tornar-se cada vez mais
impossível à medida que o Kali-yuga progride, visto que a maioria dos
homens caiu agora “abaixo da casta”, assim como na Idade de Ouro estavam
“acima” dela.
E a “restauração” predita por Guénon, a ocorrer
diretamente antes da dissolução do ciclo, é um breve anúncio do ciclo por vir,
não um “milênio” terreno dos últimos dias — crença que, segundo as autoridades
cristãs ortodoxas, constitui a heresia do “quiliastismo”. Assim, Quinn está
errado também aí.
Portanto, a única coisa à qual ele possivelmente
pode estar se referindo é ao que René Guénon chama de “contra-hierarquia”: o
reino do Anticristo. Nas páginas 325–326 de The Reign of Quantity and the
Signs of the Times, Guénon escreve:
Já se pode ver esboçada, em várias produções de origem ou inspiração
indubitavelmente “contra-iniciática”, a ideia de uma organização que seria como
o contraparte — mas, pelo mesmo motivo, também a falsificação — de uma
concepção tradicional como a do “Sacro Império”, e uma tal organização deve
tornar-se a expressão da “contra-tradição” na ordem social; e por razões
semelhantes o Anticristo deve aparecer como algo que poderia ser chamado,
usando a linguagem da tradição hindu, de um Chakravarti invertido... Seu
tempo certamente não será mais o “reino da quantidade”... ao contrário, será
marcado, sob o pretexto de uma falsa “restauração espiritual”, por uma espécie
de reintrodução da qualidade em todas as coisas, mas de uma qualidade invertida
em relação ao seu significado normal e legítimo. Após o “igualitarismo” de
nossos tempos, haverá novamente uma hierarquia visivelmente estabelecida, mas
uma hierarquia invertida, de fato uma verdadeira “contra-hierarquia”, cujo cume
será ocupado pelo ser que estará, na realidade, situado mais próximo do que
qualquer outro do próprio fundo do “poço do Inferno”.
Tentando colocar o fluxo contemporâneo das forças
sociais em uma sentença, cheguei a: “A globalização da elite leva à
balcanização das massas.” Nas palavras de Christopher Lasch (pp. 47–48):
O mundo do final do século XX apresenta um espetáculo curioso. Por um lado,
está agora unido, por meio da agência do mercado, como nunca esteve antes.
Capital e trabalho fluem livremente através de fronteiras políticas que parecem
cada vez mais artificiais e inexequíveis. A cultura popular segue em seu
rastro. Por outro lado, lealdades tribais raramente foram promovidas de modo
tão agressivo. Guerras religiosas e étnicas irrompem em um país após o outro:
na Índia e no Sri Lanka; em grandes partes da África; na antiga União Soviética
e na antiga Iugoslávia.
E, eu acrescentaria, em Oklahoma City, onde as
milícias secessionistas dos estados das planícies e das montanhas, em grande
parte cristãs e supremacistas brancas, flexionaram seus músculos. Aquilo que
Quinn caracteriza como “etnocentrismo e xenofobia pandêmicos, paroquialismo,
tribalismo e solipsismo de grupo”, que tão facilmente pode ser retratado como
uma resistência puramente negativa e reacionária às maravilhas da planetização,
é na verdade inseparável dela. Dada a verdade metafísica de que a manifestação,
considerada em sua forma e não em sua essência, não é o Princípio, ela deve
revelar a Unidade Divina em modo múltiplo; uma multiplicidade de culturas e de
revelações religiosas, assim como uma multiplicidade de indivíduos humanos, é
metafisicamente necessária. Portanto, toda tentativa de homogeneizar
artificialmente a cultura e a religião mundiais deve ser compensada por
fragmentação e conflito; quando uma multiplicidade orgânica é suprimida, o
princípio sobre o qual ela se baseia precisa reafirmar-se, mas em uma forma
negativa. Em outras palavras, é impossível que a planetização triunfe em seus
próprios termos. No momento em que parecer ter triunfado, sua instabilidade
terá atingido massa crítica, e ela simplesmente se dissolverá. Assim, quando
Quinn, na p. 305, diz que
uma futura cultura Tradicional planetária... deve ser unânime — aceita e
participada por todos — pois sem essa unanimidade não poderia ser considerada
Tradicional,
ele não apenas inverte completamente o significado da palavra “Tradicional”, e
desmente sua ampla lamentação, na p. 284, sobre
“poluição” cultural (e/ou culturicídio) ... por conquista militar, dominação
econômica, (“neocolonialismo”, ou qualquer outra forma de hegemonia ou
imperialismo impostos),
como também deposita sua fé em algo que, felizmente, não acontecerá.
Além disso, na mesma página, ele fundamenta a
capacidade de cada indivíduo, em tal “cultura Tradicional planetária”, de “ver
a unidade, a sacralidade, a unicidade da vida” em “sua aceitação universal como
um fato científico” [itálico meu]. Isto, é claro, é uma inversão direta do
significado de Tradição. A visão da unidade e da sacralidade da vida só pode
ser estabelecida pela Intelectuação e pela Revelação, não por experimento
científico. Há gerações sabemos que o oxigênio que respiramos é produzido pelas
florestas da terra; isso nos impediu de derrubá-las?
Quando li pela primeira vez a versão extremamente
plausível de William Quinn Jr. sobre o futuro, embora estivesse horrorizado,
senti-me tentado. Fui tentado, primeiro, ao desespero, pois, segundo Quinn,
tudo o que amo é estéril e morrerá, enquanto tudo o que odeio é demasiadamente
fértil e inevitavelmente triunfará. Meu Islã, meu Sufismo, morrerão, assim como
a Ortodoxia russa e o hesicasmo de minha esposa. O futuro pertence à
planetização, às elites globais, a uma “espiritualidade” genérica e
mundialmente híbrida de técnicos psíquicos, aos nossos mestres Nova Era
inteligentes e competentes — não aos pobres excêntricos desequilibrados e
supersticiosos cuja única função foi destruir todas as tradições sagradas para
que aqueles Homens Superiores pudessem assumir o controle. E então — por um
instante — senti a segunda tentação: se você não pode vencê-los, junte-se a
eles. Se o fizer, talvez seus escritos terão alguma pequena influência sobre o
futuro cinzento e terrível adiante. Você pode não ser salvo, mas ao menos será
— lembrado.
Pela graça de Deus, venci essa tentação. Que eu e
minhas esperanças mundanas sejamos esmagados, eu disse; ao menos terei
permanecido fiel à Verdade conforme Deus me deu luz para vê-la, porque essa
Verdade é eterna. Aconteça o que acontecer no terreno da história humana,
Aquele Uno permanecerá inviolado, Senhor dos mundos, dono do Dia do Juízo. Tudo
perece, exceto Seu Rosto.
E então algo interessante aconteceu. Assim que me
resignei, e às minhas tradições, à destruição inevitável, vi que essa
destruição está longe de ser inevitável. Se o Cristianismo pôde sobreviver ao
Império Romano; se o Judaísmo pôde sobreviver ao Faraó, ao cativeiro
babilônico, ao terror nazista; se a religião dos Lakota pôde sobreviver ao
“destino manifesto” da raça anglo-saxã, então o Islã e o Sufismo também podem
sobreviver. E o Cristianismo Ortodoxo. E talvez até o Budismo Tibetano. Não,
talvez, como princípios regentes de civilizações inteiras, mas como “caules”
ocultos que conectam o mundo da manifestação ao seu Princípio.
É claro que a Verdade revelada e as Tradições que a
transmitem durarão até o fim dos tempos, pela mesma razão que o sopro da vida
deve durar até a morte do corpo — porque sem isso, a vida não pode continuar.
Se, segundo o Sufismo e o Hassidismo, o mundo é mantido na existência por seus
santos ocultos, talvez o mesmo possa ser dito de suas tradições ocultas. Se o
Cristianismo deve retornar às catacumbas; se, como disse o Profeta (sobre ele a
paz), “o Islã começou no exílio e terminará no exílio: bem-aventurados os que
estão no exílio!”, então que assim seja. E se a batalha conhecida como Armagedom
está destinada a ser travada no campo da história, como com toda certeza está
sendo travada agora na linha divisória que atravessa diretamente cada alma
humana, então, quando o chamado vier — não o chamado desta ou daquela agenda
sociopolítica, mas o relâmpago que sai do Oriente e brilha até o Ocidente — e
se eu viver para vê-lo, então estarei pronto. Ya Mahdi! Ya ‘Isa!
Sobre a Guerra Invisível
A Escola Tradicionalista, e seu campo circundante de influência onde cresce
continuamente o interesse pela “filosofia perene”, não estão isentos da pressão
das forças que, no presente, atuam para destruir e/ou perverter todas as
expressões da verdadeira espiritualidade. Antes, se é exato dizer que o
Tradicionalismo — quer o identifiquemos exclusivamente ou não com a Escola
Tradicionalista tal como hoje constituída — representa a plenitude da verdade
metafísica, é de se esperar que as forças tendentes a perverter a doutrina
sejam mais ativas no mundo Tradicionalista do que em qualquer outro lugar. A
“guerra invisível” em que as espiritualidades tradicionais se encontram
atualmente empenhadas não é apenas contra as paixões da alma inferior, mas
também contra forças psíquicas objetivas — os Jinn, digamos, ou ao menos
aqueles dentre eles que se opõem ativamente a Deus — que exploram essas
paixões. Isso, é claro, sempre foi verdade. Mas o esforço global e concertado
daquilo que Guénon chamou de “infra-psíquico” para perverter todas as
organizações religiosas e espirituais válidas mediante a inversão do simbolismo
religioso teve de esperar até “a undécima hora” para aparecer em sua forma
verdadeira, inegável e terminal.
São Paulo disse o melhor: “não temos que lutar
contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades,
contra os dominadores das trevas deste mundo, contra as maldades espirituais
nos lugares celestiais” (Ef 6,12). Precisamos compreender que o Tradicionalismo
estará necessariamente sob ataque num mundo como este, e que grande parte desse
ataque ocorrerá no âmbito sutil. Mas admitir a realidade desse nível das coisas
requer grande equilíbrio. A paranoia, e o fanatismo resultante, são fruto de:
(1) situar a “agenda” percebida no nível ontológico errado; e (2) esquecer que
tudo isso é uma manifestação legítima dos últimos tempos, e que, em última
análise, nada acontece que não seja a vontade de Deus. Se atribuirmos a seres
humanos o que são na realidade ações dos Jinn kafir, e aos Jinn o que é
melhor entendido como ações de Deus, então estamos paranoicos. Contudo, se
usamos a verdade de que todos os eventos são vontade de Deus para negar as
ações dos Jinn, e a verdade de que alguns Jinn estão em guerra com a religião
para negar as ações de grupos humanos reais — os “agentes da contra-iniciação”
de Guénon — então estamos perigosamente complacentes. Tal complacência pode não
passar de um modo de negar o medo que sentimos diante das forças psíquicas
soltas no mundo nestes derradeiros dias, forças que nos tentarão ou a buscar a
bênção dos “principados e potestades”, sejam materiais, sociais ou psíquicos —
pois a vida fora dos termos por eles definidos será feita para parecer
desesperançada, improdutiva ou tola, senão completamente impossível — ou a
desafiar os “dominadores das trevas deste mundo” de maneira simplista, ingênua
e/ou orgulhosa, tornando-nos assim seus agentes no próprio ato de os combater.
É importante lembrar aqui que somos chamados a ser “sábios como as serpentes”
tanto quanto “simples como as pombas”, e que enfrentar astúcia diabólica apenas
com inocência, nobreza e coragem é cortejar a destruição.
Em tempos como estes, uma análise crítica das
forças sociais e psicológicas coletivas, bem como (na medida do possível) das
“agendas” que emanam do âmbito psíquico sutil, pode ser simplesmente outra
forma de exame de consciência. Onde o mal do mundo, onde o regime vindouro do
Anticristo, estabeleceu o seu ponto de apoio em mim? A expressão da Verdade
principial não é, e nunca pode ser, caso de propaganda; não é um ato
sociopolítico, mas litúrgico. O “valor de face” desse trabalho está depositado
em outro mundo — misteriosamente presente no Centro deste — onde a traça e a
ferrugem não corroem, nem os ladrões arrombam e roubam.
Escatologia Comparada
A ESCATOLOGIA é a ciência de quatro “últimas coisas”: a morte individual; o
destino individual no além; o fim deste mundo ou ciclo de manifestação; a
renovação da vida e da existência após esse fim. Este ensaio trata das duas
últimas — do apocalipse, da reabsorção das formas por seus arquétipos celestes,
e da remanifestação dessas formas na “Idade de Ouro” do ciclo por vir. Neste
capítulo comparo o saber escatológico de oito tradições: o zoroastrismo, o
hinduísmo, o budismo, o judaísmo, o cristianismo, o islã, os Hopi e os Lakota.
Vistas sinopticamente, as profecias dessas oito tradições aparecem como raios,
ou facetas, de uma única Forma.
Segundo um hadith de Muslim, conforme
parafraseado por William Chittick,
Deus aparecerá na ressurreição em uma multidão de formas, mas Suas criaturas O
negarão até que Ele apareça numa forma que corresponda à sua própria crença.
Somente os homens perfeitos, cujos corações abarcam todos os Nomes Divinos em
perfeito equilíbrio, reconhecerão Deus em qualquer forma que Ele manifeste.
Saoshyant vs. Angra Mainyu:
Eschatologia Zoroastriana
As profecias dos “fins dos tempos” de muitas tradições predizem uma degeneração
da espiritualidade, da civilização e do meio ambiente conduzindo a um conflito
apocalíptico. Mas parece provável que Zarathushtra (Zaratustra) tenha sido o
primeiro a condensar todas as forças contrárias à religião e à vida humana em
uma única figura: Angra Mainyu (posteriormente chamado Ahriman). Muitos deuses
antigos tinham seus antagonistas sombrios; Set, por exemplo, era o irmão e
inimigo do Osíris egípcio. Mas a maioria desses antagonismos era vista em termos
do ciclo anual das estações, ou dos feitos heroicos de um salvador sustentador
do mundo, como o Krishna subjugador de demônios. Zaratustra, porém, concebeu a
luta da luz contra as trevas em termos de todo o ciclo da manifestação,
vislumbrando uma vitória definitiva das forças da luz no fim do tempo, durante
o evento apocalíptico chamado em persa antigo Frashegird. Assim, muitos
estudiosos veem o zoroastrismo como o ancestral original da escatologia
judaico-cristã, e Angra Mainyu como o protótipo tanto de Satanás quanto do
Anticristo. O vindouro salvador escatológico, Saoshyant, é o equivalente
zoroastriano do Kalki Avatara hindu, do Messias judaico, do Cristo da
segunda vinda, do Mahdi muçulmano, e semelhante em muitos aspectos ao Buda
futuro, Maitreya.
A teofania central no zoroastrismo é o fogo, que é
também o agente primordial do Juízo Final. No relato do Frashegird no Bundahish,
um grande meteoro atingirá a terra [cf. Ap 8,10–11; 9,1 ss.] e acenderá o fogo
escatológico. Rios de metal derretido fluirão. Aos justos, parecerão leite
morno; aos ímpios, metal fundido. Os sábios experimentam a chama de Ahura Mazda
(“Senhor da Sabedoria”) como luz — isto é, iluminação; os falsos, como fogo
punitivo. De acordo com as escrituras zoroastrianas chamadas Yashts,
algumas das quais se crê remontarem a c. 2000 a.C.:
Para que os mortos se levantem, Aquilo que Vive, o Indestrutível, virá, e o
mundo será feito maravilhoso segundo o seu querer... Quando Astvatereta
[Saoshyant] sair do Lago Kansaoya, mensageiro de Mazda Ahura, filho de
Vispa-tauvairi [sua mãe virgem], brandindo a arma vitoriosa... então expulsará
a Drug [“Engano”, epíteto de Angra Mainyu] do mundo de Asha [Lei
Divina]. Ele contemplará com sabedoria, ele verá toda a criação... ele
contemplará com olhos de sacrifício todo o mundo material, e atentamente
tornará todo o mundo material imperecível... Angra Mainyu, de obras más,
fugirá, despojado de poder. YASHT 19
Pergunta-se se o pahlavi drug ou druj
está relacionado à palavra siríaca daggal, que também denota “engano”, e
da qual dajjal, o nome árabe para o Anticristo, é derivado.
Profetizar que Saoshyant imortalizará o mundo
material por meio da vigilância, e fitando-o com sabedoria e com olhos de
sacrifício, é dizer que o mundo será transformado, via o sacrifício do ego
humano, de um objeto material literal em teofania, uma visão dos Nomes eternos
de Deus; ele será novamente visto como Adão o viu no Éden. Nas palavras de
Blake, de The Marriage of Heaven and Hell:
A antiga tradição de que o mundo será consumido pelo fogo no fim de seis mil
anos é verdadeira... Pois o querubim com sua espada flamejante é por este meio
ordenado a deixar sua guarda da árvore da vida, e quando o fizer, toda a
criação será consumida, e aparecerá infinita e santa, ao passo que agora aparece
finita e corrupta. Isso se cumprirá por um aprimoramento do gozo sensível.
A função do
Homem é agir como o olho de Deus sobre o mundo criado, unindo-o ao seu
Arquétipo por meio da contemplação divina, e só secundariamente trabalhar, em
linha com essa visão contemplativa, com as forças e condições naturais. À
medida que a consciência humana é purificada no fogo espiritual e escatológico,
o mundo perderá sua “materialidade” literalista (que, como negação pura, não é
em si capaz de ser salva) e se tornará aquilo que sempre foi, um paraíso
imortal. Esta restauração apocalíptica do mundo natural é muito próxima da
ideia da redenção do cosmos no Cristianismo Ortodoxo oriental, onde o
sacramento da Eucaristia — pelo qual a Encarnação e a Redenção de Cristo são propagadas
por todo o espaço e tempo — é às vezes identificado com a transfiguração do
universo. Nas palavras do teólogo ortodoxo Olivier Clément:
O mundo foi criado como um ato de celebração, para que pudesse compartilhar da
graça e tornar-se Eucaristia por meio das oferendas dos seres humanos. E é
precisamente isso que Cristo, o último Adão, realizou. Por sua morte O tikkun
messiânico, por exemplo, é pós-milenarista; na Cabala luriânica, o Messias vem
quando tivermos nos purificado suficientemente por meio de nossas próprias
ações; ele é um reflexo automático dessa pureza. Por outro lado, os movimentos
messiânicos de Bar Kochba e de Sabbatai Zevi — o primeiro político e militar, o
segundo místico e espiritual — eram necessariamente pré-milenaristas. Essas concepções,
assim como as do ab-rogamento versus a observância perfeita da Torá, parecem
totalmente opostas. Mais uma vez, porém, é o Zohar que indica, embora de
modo velado, a identidade oculta entre elas.
Seguindo a Aggadá, o Zohar vê o
advento messiânico como gradual, embora não como produto de um desenvolvimento
histórico. A vinda do Messias não é uma realização humana, mas um milagre
divino. Segundo o Zohar, os gentios (chamados “Esaú” ou “Edom”)
receberam sua iluminação de um só golpe, após o qual começaram lentamente a
perdê-la. Israel, ao contrário, recebeu sua iluminação gradualmente. À medida
que a perda de força e de luz entre os gentios continua, Israel crescerá em
poder e conhecimento, até o ponto em que poderá superá-los e destruí-los.
Depois disso, a luz divina crescerá em Israel até que todas as coisas sejam
restauradas. A separação entre criatura e Criador será transcendida. O mundo
retornará ao estado de Éden, e todo homem e mulher contemplará a Shekinah
“olho a olho”.
Minha exegese dessa doutrina é a seguinte: os
gentios, ou “Esaú”, são o mundo exterior da criação; são a própria história.
“Israel”, por outro lado, é o mundo interior da alma. Segundo a doutrina hindu
e greco-romana, o ciclo cósmico de manifestação começa com uma Idade de Ouro dada
por Deus e depois degenera; as “nações” recebem sua iluminação de uma só vez e
então a perdem progressivamente.
Essa “entropia histórica” está relacionada à
entropia líquida de todos os processos físicos. A própria existência de um
mundo sensível “fora” do sujeito que percebe é, de fato, uma expressão dessa
entropia: se o Sol e as estrelas não estivessem se consumindo, nada veríamos;
se a matéria não estivesse se desintegrando, vaporizando, erodindo e
dissolvendo, nada ouviríamos, cheiraríamos, sentiríamos ou provaríamos. A
matéria é entropia. O universo em expansão representa a dissipação inerente a
tudo que é material, bem como o destino final de todos aqueles para quem a
matéria é a realidade central.
Na dimensão interior da alma, porém, ocorre o movimento
oposto. À medida que o senso de realidade se retira do mundo sensível e se
coloca na escada ascendente do Ser, que é “interior” em relação àquele mundo, a
atração dos sentidos e o peso literal da realidade histórica perdem força, até
que a contemplação das realidades espirituais conquista e supera a força
opressiva das contingências materiais; este é o retorno do “cativeiro” e do
“exílio” e a entrada na “Terra Prometida”. Primeiro, elevamo-nos à compreensão
do mundo sensível e material como experiência psíquica e subjetiva; em seguida,
o Testemunho espiritual último dessa experiência psíquica do mundo material é
progressivamente revelado. Assim como o mundo exterior está sempre se
expandindo e dissipando, o mundo interior, na medida em que nele colocamos
nossa atenção, está sempre sendo “recolhido”, sempre convergindo a um ponto.
(Em termos sufis, o mundo exterior é o domínio da tafraqa, dispersão, e
o interior é o domínio do jamʿ, reunião ou
concentração.)
Esse movimento simultâneo e duplo pode ser representado
por dois triângulos sobrepostos, em que o vértice do triângulo inferior (a
manifestação de YHVH por meio da criação) é o ponto central da base do
triângulo superior (o retorno a YHVH pela contemplação espiritual), e
vice-versa. Esse diagrama é uma forma do Escudo ou Estrela de Davi (o Selo de
Salomão), que é um dos emblemas do Adam Kadmon (outro sendo a Árvore da
Vida cabalística das dez sephiroth), que, na dimensão escatológica, é
também o Messias: a “Forma Humana Divina”, criada à “imagem e semelhança de
Deus”, sendo a forma secreta de YHVH, que transcende e, portanto, abarca tanto
Sua criação do cosmos quanto o tikkun universal do cosmos até sua raiz
n’Ele.
Quando a “geração” do mundo exterior for totalmente
culpada e corrupta — quando estiver completamente morta para nós, pois teremos
morrido para ela —, então a “geração” do mundo interior será totalmente
inocente, pois conhece apenas a Deus, “cujos olhos são puros demais para ver a
iniquidade”. É precisamente nesse sentido que o Messias virá em uma “geração”
totalmente inocente em um aspecto e totalmente corrupta em outro.
Mas o Messias, como Adão, não representa
exclusivamente o triunfo da recordação interior sobre a manifestação exterior,
material e histórica, mas abarca ambas as dimensões. A esperança judaica de um
reino terrestre restaurado não é, portanto, simplesmente abandonada ou
superada, mas totalmente transformada. Como no Apocalipse cristão, o reino
messiânico — a Nova Jerusalém, esposa do Messias — representa tanto um novo céu
quanto uma nova terra.
Segundo o Zohar, o Messias não virá até que
as lágrimas de Esaú se esgotem. Trata-se da mesma história contada de outro
modo. Jacó é “Israel”, o nome que recebeu após sua luta com o anjo em Peniel,
na qual superou a corrente “descendente” da manifestação e entrou na corrente
“ascendente” do tikkun, sendo estas as duas direções em que os anjos se
moviam em seu sonho da Escada, tipo da Árvore da Vida cabalística. No contexto
deste mundo, ele saiu da luta manco; no contexto do próximo, obteve a bênção de
Deus.
O irmão de Jacó, Esaú, portanto, representa o apego
à corrente descendente da criação — tão fresca e infantil no Éden —, que leva
finalmente à dissipação na visão materialista das coisas, que sempre venderá
seu direito de primogenitura invisível, sua parte no mundo vindouro, por “um
prato de lentilhas”, os bens materiais visíveis deste mundo. (O fato de que
Jacó só pôde obter a bênção patriarcal de seu pai cego, Isaac, por meio do
engano representa que o caminho do tikkun é interior e esotérico. O fato
de uma parte desse engano ter exigido que Jacó se vestisse com uma pele de
animal para que Isaac acreditasse estar abençoando seu filho peludo, Esaú,
representa a transfiguração da natureza inferior, material ou animal do homem
no caminho de seu retorno ao Criador.)
A cor de Esaú, primogênito de Isaac, e também do
guisado pelo qual vendeu seu direito de primogenitura, é o vermelho. O vermelho
simboliza a criação, a energia vital primordial; Esaú compartilha esse
simbolismo com Adão, o primeiro homem criado, cujo nome significa “barro
vermelho”. Mas o vermelho dessa vitalidade primordial é também o vermelho da
violência, a queda do polo da forma em direção ao polo da matéria,
que termina em descida ao materialismo; por isso foi adotado pelos “vermelhos”,
os marxistas. E não é o primogênito Esaú — o impulso criativo original de Deus
— quem recebe a bênção, mas seu irmão mais novo, Jacó, símbolo do tikkun,
a reversão do processo cosmogônico, também conhecido como o Caminho espiritual.
O esgotamento das lágrimas de Esaú representa o
esgotamento do materialismo, a cessação do impulso de correr atrás do Paraíso
perdido no deserto da matéria, energia, espaço e tempo. Em termos metafísicos,
é o esgotamento da corrente de manifestação criadora neste ciclo.
O rabino Israel de Rizhin disse: nos dias do
Messias o homem não mais lutará com seu próximo, mas consigo mesmo. A luta com
o mundo exterior será substituída pela luta para conquistar o mundo interior;
em termos muçulmanos, a Jihad Menor dará lugar à Maior. (W. B.
Yeats também, em A Vision, previu que a era vindoura seria “antitética”,
assim como a que está passando é “primária”. O caráter primário, ou a
humanidade nas idades primárias, luta contra as condições; o caráter
antitético, ou o homem nas idades antitéticas, luta consigo mesmo.)
O rabino Israel disse também que o mundo messiânico
será um mundo sem imagens, “no qual a imagem e o seu objeto não poderão mais
ser relacionados”. Em termos negativos — os da “geração totalmente corrupta” —,
isso indica o nadir solipsista do pós-modernismo, onde todas as experiências
são consideradas sem referente objetivo — meras imagens. Em termos positivos —
os da “geração totalmente inocente” —, refere-se ao tikkun ou reabsorção
de todas as coisas em seus princípios invisíveis e transcendentais.
Se imagem e objeto, ou fenômeno e númeno, ou
manifestação cósmica e sua Fonte divina, não podem mais ser “relacionados” como
dois termos separados, significa que estão ou totalmente divorciados ou
totalmente unidos. O primeiro estado é o Inferno; o segundo, o Paraíso; a
separação final entre a condição divorciada e a condição nupcial é o Juízo
Final.
Maitreya: Escatologia Budista
Na maioria das escolas do budismo, o futuro Buda —
seja o último Buda deste ciclo de manifestação, seja simplesmente o próximo a
aparecer — chamar-se-á Maitreya, palavra que significa “luz do luar”. (Pode ser
ou não significativo que o profeta Maomé, considerado perfeitamente receptivo à
luz de Alá, também seja comparado à lua.)
Em Maitreya, The Future
Buddha [ed. Alan Sponberg e Helen Hardacre, Cambridge
University Press, 1988], minha principal fonte para esta exposição, o
colaborador Jan Nattier chama Maitreya de o “ungido” herdeiro de Shakyamuni, a
figura histórica que conhecemos como “o Buda”. Ele seria, portanto, ao menos no
sentido etimológico estrito, um messias ou christos, que em hebraico e
grego significam, respectivamente, “ungido” — embora Nattier possa estar usando
a palavra de modo genérico.
Seu nome pode relacioná-lo ao salvador zoroastriano
Mithra; Joseph M. Kitagawa, na mesma obra, traça paralelos entre Maitreya e o
Saoshyant zoroastriano. A doutrina budista do tempo cíclico é notoriamente
a-histórica, gerando previsões como “daqui a alguns milhares de anos a vida
humana durará 80 mil anos”, afirmação que só pode ter sentido simbólico ou
mitológico.
E enquanto a doutrina hindu dos ciclos, geralmente
aceita pelos tradicionalistas via Coomaraswamy e Guénon, começa com uma Idade
de Ouro, desce pelas idades de Prata, Bronze e Ferro e termina com uma
dissolução apocalíptica — após a qual uma nova Idade de Ouro desce, já formada,
dos mundos celestes —, os budistas veem o tempo cíclico de modo mais
horizontal, como um subir e descer de vastas ondas eônicas: o ambiente cósmico
vai gradualmente perdendo a capacidade de receber a verdade e depois a
recupera.
A doutrina hindu dos ciclos é substancialmente a
mesma que a dos gregos clássicos e, em linhas gerais, coincide com a
escatologia cristã e muçulmana; a budista é partilhada pelos jainistas e foi,
mais ou menos, a adotada pela Sociedade Teosófica — com a diferença de que os
budistas situam a próxima Idade de Ouro a milhares de anos no futuro (cerca de
2 500 anos segundo algumas escolas, embora certos mestres tendam hoje a reduzir
esse número a 500, dada a decadência dos tempos), ao passo que H. P. Blavatsky,
em A Doutrina Secreta, a via como iminente.
Seja como for, a maioria dos budistas concorda com
os cristãos, muçulmanos e hindus tradicionais que a nossa era atual está em
declínio. Estamos nos “últimos 500 anos do dharma”, o período final do
ciclo, ao fim do qual o budismo desaparecerá ou sobreviverá apenas como sombra
vazia de si mesmo. A era terminará em guerra antes da aparição de Maitreya,
assim como, na escatologia cristã, o Armagedom precederá a Segunda Vinda de
Cristo.
Muitos, como Martin Lings, identificam Maitreya com
o Kalki hindu, o décimo e último avatar de Vishnu, que virá ao fim do
degenerado Kali-yuga para encerrar este ciclo e inaugurar outro —
sobretudo porque a escritura hindu Bhāgavata Purāna identifica o nono avatar
de Vishnu com o Buda histórico.
Os theravadins veem Maitreya como o último dos
cinco Budas do presente período, o qual, embora termine com a degeneração do
budismo, é considerado o “eon favorável”, em oposição à concepção hindu de
nossa era como o Kali-yuga, Idade do Ferro.
Já os mahayanistas costumam atribuir Maitreya à
longínqua Idade de Ouro do próximo ciclo, quando o mundo tiver finalmente se
recuperado da degeneração e do fim apocalíptico deste; ele não inaugura o
ciclo, mas entra nele quando o tempo está maduro. Essa versão mahayanista de
Maitreya pode, portanto, ser chamada “pós-milenarista”, embora não no sentido
progressista ou reformista, já que o budismo vê seus ciclos de florescimento e
decadência espiritual mais como as estações de um padrão pré-estabelecido do
que como produto da ação ou omissão humanas.
Os frutos do karma amadurecem mais para o
avanço ou atraso espiritual do indivíduo do que para o agravamento ou melhora
do mundo. Alguns budistas mahayanistas, porém, especialmente na China e no
Sudeste Asiático, imaginaram Maitreya destinado a aparecer nestes mesmos
“últimos 500 anos do dharma”, talvez até nesta geração, vendo-o como
figura revolucionária/apocalíptica semelhante a Cristo, ao Mahdi ou ao
Messias judaico — um conjunto de crenças que, como nas doutrinas análogas das
religiões abraâmicas, tende a gerar lutas dinásticas ou movimentos populares de
libertação liderados por “pretendentes” quase religiosos que afirmam ser o
esperado Salvador budista.
Maitreya surgirá durante o reinado de um monarca
mundial, um chakravartin, “aquele que gira a roda”. Jan Nattier repete a
profecia de que ele será anunciado por Kāśyapa, discípulo de Shakyamuni que
teria permanecido em animação suspensa através das eras, até emergir como
arauto de Maitreya. (Nattier reconhece em “Kāśyapa” o nome persa “Keresaspa”, o
arauto designado do salvador zoroastriano Saoshyant. Keresaspa também sairá de
sua “ocultação” ou animação suspensa para cumprir seu papel.)
Segundo a escola Tendai, ele será um rei cingalês
chamado Dhutta-Gamani, irmão de Maitreya e também seu primeiro discípulo.
Outros dão ao rei o nome de Shanka. Segundo uma história, ele renunciará ao
trono para seguir Maitreya. Como Shanka pertencerá necessariamente à casta
guerreira, kshatriya, Maitreya pertencerá à mais alta casta sacerdotal, brāhmana.
Tal conjunção entre um Buda e um chakravartin
ocorre muito raramente; segundo o folclore mahayanista relatado por Padmanabh
S. Jaini, em seu capítulo “As etapas na carreira bodhisattva do Tathāgata
Maitreya”, isso acontece “no início de cada nova ascensão dentro de um eon
intermediário (antarkalpa) em um dado ciclo temporal (mahakalpa)”.
Estamos agora “no final de um antarkalpa,
que se move rapidamente em direção a um pequeno apocalipse”. Assim, Maitreya
encarnará num futuro longínquo, numa nova civilização sustentada por “duas
rodas da lei”: a roda do mérito que conduz ao Paraíso, movida por um chakravartin,
e a roda da renúncia que conduz ao Nirvana, movida por ele mesmo como Buda.
Isto pareceria ser a versão budista da satyayuga
ou Idade de Ouro hindu, quando abundância mundana e bem-aventurança
transcendente não são oponentes da Libertação final, como frequentemente o são
para nós nesta Idade do Ferro, mas seus discípulos e servos.
A Parusia: Escatologia Cristã
Há tanta
literatura cristã contemporânea relativa aos últimos dias e ao Apocalipse —
especialmente da ala evangélica da Igreja — que, em vez de tentar ordenar essa
profusão, limitarei-me a recorrer ao que caiu naturalmente em minhas mãos. A
conversão de minha esposa à ortodoxia russa Adicionou muitos livros novos às
nossas estantes, entre os quais The Apocalypse of St John: An Orthodox
Commentary, do arcebispo Averky de Jordanville, baseado em muitas fontes
patrísticas (notadamente o Commentary on the Apocalypse de São André,
arcebispo de Cesareia, c. séc. V), e Ultimate Things: An Orthodox Christian
Perspective on the End Times, de Dennis E. Engleman, que nos foi
recomendado por Rama Coomaraswamy. Ambos os livros têm a vantagem de se
basearem em grande parte nas fontes cristãs mais antigas e ambos caminham na
linha tênue entre uma interpretação excessivamente literal e uma excessivamente
alegórica da Escritura. São perfeitamente oportunos, mas não tão ligados às
notícias diárias a ponto de correrem o risco de serem atropelados pelo curso
dos acontecimentos. Grande parte desta seção baseia-se nos dois livros acima,
suplementados por The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de
Guénon.
A interpretação ortodoxa do Apocalipse e sua
doutrina da escatologia em geral diverge de muitas interpretações evangélicas
em dois pontos principais. Primeiro, é firmemente amilenarista. Cristo não virá
estabelecer um reinado terreno de mil anos após a tribulação, como no
pré-milenarismo, nem descerá para coroar um governo de mil anos da cristandade
estabelecido por seus seguidores, como no pós-milenarismo. Tal milenarismo foi
condenado, como a heresia do “quiliastismo”, pelo Segundo Concílio Ecumênico.
Para a maioria dos ortodoxos, assim como para Santo Agostinho e a maioria dos
católicos tradicionais, o “milênio” descrito em Ap 20,1–10, quando Satanás
estará acorrentado, é a própria era da Igreja, e em grande parte já passou.
Em minha própria opinião, a colocação do milênio
após o combate escatológico — o que levou muitos a interpretá-lo como um
império cristão mundano do futuro — tem a ver com a correspondência secreta
entre a Igreja Militante e a Igreja Triunfante. Se o reino de Cristo “não é
deste mundo”, e se a pertença a ele se baseia em morrer com Cristo e assim participar
de sua ressurreição, então os cristãos estão, em certo sentido, além do
Apocalipse já agora, habitando um “milênio” celeste que não terá fim.
A segunda principal divergência em relação à
escatologia evangélica diz respeito à interpretação materialista do
“arrebatamento”, noção baseada, segundo Engleman, nas visões de uma escocesa,
Margaret Macdonald, em 1830. Os partidários dessa doutrina citam Ap 3,10 —
“também eu te guardarei da hora da provação que há de vir sobre o mundo
inteiro” —, assim como 1Ts 4,15–17, segundo a qual os vivos em Cristo serão
arrebatados… “nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares”, e Mt 24,29–31,
quando os anjos reunirão os eleitos “dos quatro ventos, de uma extremidade dos
céus à outra”.
Segundo Engleman, isso nada tem a ver com uma
levitação ou desmaterialização dos cristãos para que escapem da tribulação, mas
com uma “transformação espiritual instantânea”. Em apoio a isso, cita Jo 17,15:
“Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno.”
Em minha própria opinião, já que em 1
Tessalonicenses os vivos serão arrebatados após a ressurreição dos mortos, para
encontrá-los no ar, isso pode simplesmente referir-se à entrada dos salvos no
céu após a morte. Em qualquer caso, nada tem a ver com uma dispensação especial
aos cristãos permitindo-lhes escapar da grande tribulação, já que acontecerá
depois que a tribulação tiver terminado. Engleman e outros cristãos ortodoxos
creem que a expectativa evangélica de um milênio terreno, e a crença de que os
cristãos escaparão da tribulação, são precisamente as doutrinas errôneas que
levarão muitos deles a confundir o Anticristo e seu governo terreno com Cristo
e seu Reino. E, eu acrescentaria, a doutrina do arrebatamento é em parte
responsável pela fascinação contemporânea com “abduções alienígenas”. (A versão
hippie do arrebatamento era que todos os bons hippies seriam levados para um
novo mundo na “nave-mãe” alienígena.)
Engleman cita o resumo de Santo Agostinho sobre a
escatologia cristã em A Cidade de Deus:
“Elias, o tesbita, virá; os judeus crerão; o Anticristo perseguirá; Cristo
julgará; os mortos ressuscitarão; os bons e os maus serão separados; o mundo
será queimado e renovado.”
E, embora aceite o Apocalipse como um evento tanto
espiritual quanto histórico futuro, Agostinho adverte contra tomar seus
símbolos literalmente demais, e especialmente contra marcar datas, já que
“daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas somente o meu Pai”
(Mt 24,36).
As quatro feras do Livro de Daniel que sobem do
mar, Engleman as interpreta como quatro impérios mundiais. A última fera, com
dez chifres, três dos quais são arrancados para dar lugar a um pequeno chifre
“que proferia palavras pomposas”, é interpretada como Roma, ampliada para
abranger os vários impérios mundiais que surgiram da cristandade ocidental,
incluindo a vindoura Nova Ordem Mundial. Segundo São Hipólito, o “pequeno
chifre” é o Anticristo. A quarta fera é análoga à Besta do Apocalipse, que tem
sete cabeças e dez chifres, que muitos veem como sete reinos sucessivos e dez
reis contemporâneos. O mar de onde emergem as quatro feras em Daniel e a Besta
do Apocalipse é interpretado como o mar tempestuoso da humanidade coletiva.
(Tendo eu a vê-lo mais como o “inconsciente coletivo”, a condição psicológica
de massa da alma humana decaída, o que dá no mesmo, essencialmente. Assim como
o “mar” é a psicologia de massa, o “ar” é o plano psíquico em si, habitado por
aqueles seres sutis chamados na Bíblia de “potestades do ar”, geralmente considerados
demoníacos.)
O império global da quarta fera em Daniel será a
base de operações do Anticristo. Os judeus voltarão à sua pátria. O Templo será
restaurado. Nele o Anticristo será reconhecido pelos judeus como seu Messias e,
depois, como Deus. A maior parte da cristandade abandonará suas doutrinas para
segui-lo.
Os tempos finais serão tempos de apostasia em massa
e de engano demoníaco. Tal apostasia não pode ser detida; o melhor que se pode
fazer é evitar ser influenciado por ela — o que, por si, será uma espécie de
luta de vida ou morte. Quando o Anticristo surgir, será hora de retornar à
Igreja das catacumbas, já que a Igreja “à vista”, até mesmo a própria
Ortodoxia, em sua maior parte o adorará.
Se Satanás é o macaco de Deus, o Anticristo pode
ser chamado o macaco de Cristo. Ele falsificará as experiências de vida e os
milagres de Cristo — inclusive, na medida do possível, a ressurreição. Como
Cristo, será um mestre. Será um rei deste mundo, enquanto Cristo é monarca de
um reino que não é deste mundo; será sumo sacerdote de todas as religiões,
exigindo que todos os homens o adorem como Deus. Começará seu reinado com uma
demonstração de mansidão, que rapidamente se tornará um reinado de terror.
Enganará muitos — inclusive a si mesmo, segundo alguns, pois não saberá que é
realmente o Anticristo.
O símbolo tanto de Cristo quanto do Anticristo,
segundo São Hipólito, é o leão. (É um fato interessante que o deus Legba, o
“Cristo” da religião do vodu, também seja simbolizado pelo leão.) Como diz
Guénon em O Reino da Quantidade,
“o Anticristo pode adotar os próprios símbolos do Messias, usando-os, é claro,
em sentido invertido… Do mesmo modo, pode e deve haver uma estranha semelhança
entre as designações do Messias (al-Masīḥa, em árabe) e do Anticristo (al-Masīkh). … Masīkh
pode ser tomado como uma deformação de Masīḥa, por mera adição de um ponto à letra final; ao
mesmo tempo, a primeira palavra significa ‘deformado’, o que expressa
corretamente o caráter do Anticristo” (pp. 326–327; n. 173).
No início do século XIX, São Nilo revelou que o
Anticristo nasceria “sem a semente do homem” — por inseminação artificial ou
manipulação genética, presume-se — do ventre de uma mulher má; seu surgimento
será, assim, uma falsificação satânica do nascimento virginal de Jesus. Nas
palavras de Guénon (The Reign of Quantity, p. 328),
“o falso é necessariamente também o ‘artificial’, e, a esse respeito, a
‘contratradição’ não pode deixar, apesar de suas outras características, de
reter o caráter ‘mecânico’ que convém a todas as produções do mundo moderno, do
qual ela própria será a última.”
Segundo São Hipólito, a mãe do Anticristo virá da
tribo de Dã, a única tribo de Israel não mencionada no Apocalipse, e que é
chamada (em Gn 49,17) de “serpente à beira do caminho, víbora pela vereda”. (O
deus-serpente do vodu, Danbhala, talvez se relacione com a tribo de Dã,
especialmente porque um dos muitos afluentes do sincretismo mágico do vodu foi
uma forma heterodoxa de judaísmo etíope. O lugar de Dã, entre as regiões na
Palestina atribuídas às tribos de Israel, fica no Norte, o que pode indicar que
ele, como a serpente no Éden, tenha algo a ver com a queda do Paraíso
hiperbóreo.)
O número da Besta, 666 (Ap 13,18), é interpretado (Ultimate
Things, p. 140) da seguinte maneira: enquanto 7 é o número de Deus, que
transcende a manifestação, 6 é o número da manifestação completa. Portanto, 666
refere-se ao “reino do homem e da natureza sem Deus” estendido aos domínios do
corpo, da mente e da alma. (Guénon, em The Reign of Quantity [cap. 39,
n. 7], diz que “o número da Besta” é também um número solar — mais um exemplo
do princípio do “macaco de Cristo”, já que Cristo é o “Sol da Justiça”.) A
Imagem da Besta em Ap 13, que a segunda besta — o Falso Profeta — faz erguer e
ser adorada por todos os homens, é identificada com a imagem de cabeça de ouro,
peito de prata, ventre de bronze, pernas de ferro e pés de ferro misturado com
barro sonhada pelo rei Nabucodonosor (Dn 2,31–44), que cai depois de ter os pés
quebrados pela “pedra não talhada por mãos” — o Reino de Deus —, e identificada
ainda com o ídolo de ouro erguido pelo rei para ser adorado por todos os homens
em Daniel 3. Os diferentes metais representam quatro impérios mundiais, de
Babilônia a Roma; a Imagem da Besta é, assim, a totalidade do reino do homem
erguido contra o reino de Deus. (Os autores tradicionalistas identificam a
imagem em Daniel com as quatro idades do mundo nas tradições greco-romana e
hindu. O fato de os pés da imagem serem parcialmente de barro refere-se à
instabilidade ontológica do fim dos tempos. O destino final do materialismo,
simbolizado pelo ferro que parece tão forte e permanente, é a dissolução, pois
a matéria é a mais instável e efêmera de todas as coisas. O abandono do
conceito de matéria sólida pela física moderna e a fragmentação de nossa imagem
do mundo material pelos meios eletrônicos são sinais claros dessa dissolução.)
O Anticristo, segundo o Apocalipse, governará por
“sete dias”, que são na verdade sete anos, embora nem mesmo esse período deva
ser tomado literalmente demais.
Segundo Engleman, ele ascenderá ao poder num mundo
politicamente unificado. Sua capital será Jerusalém, e seu trono, um Templo
judaico renovado. (Judeus conservadores em Israel estão já agora preparados
para reconstruir o Templo, e acreditam que aquele que os conduzir a
reconstruí-lo será o Messias.)
Os profetas Henoc e Elias, as “duas testemunhas” de
Ap 11,3–5, então retornarão e denunciarão o Anticristo. (Segundo o Antigo
Testamento, nem Henoc nem Elias experimentaram a morte, razão pela qual os
sufis identificam Elias com Khidr, o “profeta imortal”.) Eles serão
martirizados pelo Anticristo, ressuscitarão após três dias e meio e ascenderão
ao céu. Por causa de seu ministério, um remanescente dos judeus se converterá a
Cristo.
Após o martírio das testemunhas, começará a
Tribulação. A Besta colocará sua marca sobre todos os que a ela se submetem,
sem a qual ninguém poderá comprar ou vender. O mundo será escravizado.
Sobrevirão as grandes pragas do fim dos tempos. O Templo será desolado. E
cristãos em toda parte serão perseguidos.
Segundo o Apocalipse e Zacarias, a batalha final
será travada no vale do Armagedom, perto de Jerusalém. Satanás enganará as
nações, Gog e Magog (Ap 20,7–9), e as reunirá para a batalha, onde serão
destruídas por fogo do céu. O maior terremoto da história da Terra ocorrerá. O
rio Eufrates secará. O arcanjo Miguel guerreará com o dragão (Satanás) “no
céu”, derrotá-lo-á e o lançará fora (Ap 12,7–9).
Então Cristo, o Verbo de Deus, descerá do céu. Com
seus exércitos angélicos, fará guerra contra a Besta, o Falso Profeta e seus
exércitos, triunfará sobre eles e os lançará no lago de fogo (Ap 19,11–21). A
Jerusalém Celeste descerá. Os mortos ressuscitarão e serão julgados. Haverá um
novo céu e uma nova terra.
O Apocalipse contém um episódio fascinante sobre o
qual nunca ouvi ninguém comentar. Ap 17,16–17 diz o seguinte:
“E os dez chifres que viste na besta, esses odiarão a meretriz, e a deixarão
desolada e nua, e comerão as suas carnes e a queimarão no fogo.
Porque Deus pôs em seus corações que cumpram o seu intento, e tenham uma mesma
ideia, e deem o seu reino à besta, até que se cumpram as palavras de Deus.”
À primeira vista, parece dizer que o próprio
Anticristo, ou os dez chifres sobre sua cabeça — que são seus servos, os dez
reis —, destruirão a Meretriz da Babilônia. Primeiro a Meretriz é vista montada
sobre a besta (Ap 17,3); mas então os dez reis a matam, após o que — segundo a
vontade de Deus — entregam seus reinos à besta. O que devemos pensar disso?
Talvez se refira a um tempo de luxo e excesso que
cede lugar a um tempo de dureza, e que, por sua própria decadência, parece
justificar essa dureza — como a decadência da República de Weimar deu
credibilidade às medidas draconianas de Hitler. Pode também descrever uma
economia mundial unificada cujo colapso, devido a contradições internas,
nacionalismos ressurgentes ou outros fatores, introduz o reinado do Anticristo,
que sozinho parece capaz de restaurar a ordem.
O Imam Maomé e o Profeta Jesus: Escatologia
Muçulmana
(Minha principal fonte para
esta seção é Islamic Messianism: The Idea of the Mahdi in Twelver Shi’ism,
de Abdulaziz Abdulhussein Sachedina, State University of New York Press, 1981. As fontes primárias de Sachedina são Muhammad ibn ʿAlī al-Bāqir e Jaʿfar al-Ṣādiq, o 5º e o 6º imames xiitas.)
Os sinais da
Hora do Julgamento na tradição islâmica são muitos. A lua será fendida em duas,
simbolizando a ruptura do istmo psíquico entre este mundo material “sublunar” e
o próximo mundo, a barreira entre tempo e eternidade. (O desaparecimento do mar
na vinda do novo céu e da nova terra em Ap 21,1 sem dúvida tem o mesmo
significado; o mar é instável e sempre mutável como a psique, e a lua governa o
mar.) Segundo um hadith do Profeta, os edifícios alcançarão o céu à
medida que o fim se aproxima, e os homens se vestirão como mulheres.
(Curiosamente, São Nilo do Monte Atos, no século XIX, também mencionou o
travestismo como sinal apocalíptico; e eu acrescentaria que, como a polaridade
é o princípio de toda manifestação cósmica, a erosão das diferenças sexuais é
um sinal claro da dissolução da humanidade terrena.) Entre outros sinais, o
Alcorão prevê um grande terremoto (Surata “O Terremoto”), como o descrito em Ap
16,18. A surata 21 (“Os Profetas”) fala de um tempo em que “Gog e Magog serão
soltos e se precipitarão de toda encosta, e o verdadeiro anúncio estará
próximo”; a mesma surata faz referência a uma “besta” que sairá “da terra” nos
últimos dias e falará aos homens “quando a Palavra cair sobre eles”. Segundo um
hadith, que soa como uma versão da moderna ideia evangélica cristã do
Arrebatamento, “Deus enviará um vento frio “da direção da Síria” — o Norte —, e
ninguém que tenha no coração sequer um único grão de bondade permanecerá na
terra sem ser levado.” (Compare Mt 24,40–44 e 1Ts 4,17; ver também “O Cerco de
Shambhala”, abaixo.) A escatologia islâmica partilha com o cristianismo a
crença de que Jesus retornará no fim dos tempos. Os muçulmanos, porém, que
chamam Jesus de “o Espírito de Deus” e aceitam até a doutrina do nascimento
virginal, ainda o veem como um grande profeta, mas não como o Filho de Deus, já
que, segundo o Alcorão, Deus “nem gera nem foi gerado”.
Junto com a segunda vinda de Jesus, os muçulmanos
também esperam o advento do Mahdi, o “bem-guiado”, que os xiitas identificam
com Muhammad al-Mahdi, o Décimo Segundo Imame oculto. A doutrina do Mahdi é
muito mais desenvolvida no xiismo, onde alcançou status dogmático, do que no
islã sunita; alguns sunitas, em reação contra a concepção xiita, chegam a
repetir a tradição de que “não há Mahdi senão Jesus, o Filho de Maria”. Não
obstante, segundo o grande historiador muçulmano Ibn Khaldun, em sua Muqaddima:
“Tem sido bem conhecido (e geralmente aceito) por todos os muçulmanos em toda
época que, no fim dos tempos, um homem da família (do Profeta) sem falta
aparecerá, alguém que fortalecerá o islã e fará triunfar a justiça. Os
muçulmanos o seguirão, e ele ganhará domínio sobre o mundo muçulmano. Ele será
chamado o Mahdi. Após ele, o Anticristo aparecerá, juntamente com todos os
sinais subsequentes da Hora.” (Islamic Messianism, p. 14)
O Mahdi aparecerá “depois que os corações se
endureçam e a terra se encha de perversidade” (cf. Mt 24,10–12). Segundo o hadith
de Maomé, “ninguém se assemelhará mais a mim do que al-Mahdi”. Ele “encherá a
terra de equidade e justiça, assim como ela foi cheia de iniquidade, injustiça
e tirania”. Ele surgirá nos tempos finais, quando o sol nascer no Ocidente.
Outro sinal de seu advento será um eclipse do sol no meio do Ramadã e da lua no
fim — uma impossibilidade astronômica. Ele virá durante as fitan
(“provas”), sedição e conflito civil, a tribulação dos últimos dias. A descida
de Jesus durante o governo de al-Mahdi será o sinal da Hora.
Segundo fontes sunitas, Jesus matará o Anticristo:
“Ele descerá à Terra Santa num lugar chamado Afiq, com uma lança na mão; com
ela matará al-Dajjal e irá a Jerusalém na hora da oração da manhã. O imame
buscará ceder-lhe o lugar, mas Jesus recusará e adorará atrás dele segundo a Sharia
de Maomé. Depois disso ele matará o porco, quebrará a cruz e matará todos os
cristãos que não acreditarem nele. Uma vez que al-Dajjal seja morto, os Povos
do Livro crerão nele e formarão uma única umma dos que se submetem à
vontade de Deus. Jesus estabelecerá o governo da justiça e permanecerá por
quarenta anos, depois do que morrerá. Seu funeral ocorrerá em Medina, onde será
sepultado ao lado de Maomé, num lugar entre Abu Bakr e ‘Umar’.” (Islamic
Messianism, pp. 171–172)
Como o Cristo do Apocalipse, al-Qāʾim al-Mahdi — “aquele que se levanta, o
bem-guiado” — encarnará o princípio da justiça inflexível, em vez da qualidade
de severidade temperada por diplomacia e misericórdia exibida pelo Profeta
Maomé (sobre ele a paz). Segundo fontes xiitas, ele herdará a cota de malha do
Profeta, sua lança curta e sua espada, Dhu al-Fiqar (significando “de
duas pontas” ou “duplamente perfurante”), que ele deu a Ali ibn abi-Talib. Na
versão xiita, é al-Mahdi, não Jesus, quem matará o Anticristo.
Segundo uma tradição de Ali, o surgimento do
Anticristo, ou al-Dajjal, será precedido por um tempo de grande dureza, uma
“tribulação”. Em sua testa estará escrito “Este é o kafir (‘não
crente’)”, o que todos, letrados ou iletrados, poderão ler. Como Jesus, ele
cavalgará um jumento. Fará soar um chamado que será ouvido de uma extremidade
da terra à outra. Alegará ser Deus. No dia de seu surgimento, seus seguidores
usarão algo verde na cabeça. Em um lugar chamado Afiq (assim como no relato
sunita), na Síria, numa sexta-feira, três horas antes do pôr do sol, Deus fará
com que ele e seus seguidores sejam mortos por “aquele atrás de quem Jesus
adorará” — o Décimo Segundo Imame, o Mahdi. Esse será o início da grande
revolução do Imame — aquela falsificada em 1979 pelo aiatolá Khomeini —, após a
qual nenhum arrependimento será aceito (pp. 172–173).
Segundo um hadith de Jaʿfar al-Ṣādiq, o Mahdi entrará em Meca com
um turbante amarelo na cabeça e
conduzindo um rebanho de cabras. Usará as sandálias remendadas do Profeta e
carregará seu cajado. Aparecerá como um jovem. Irá à Caaba, onde será
encontrado durante a noite por Miguel, Gabriel e uma hoste de anjos.
Postar-se-á entre as colinas Rukn e Maqam, anunciar-se-á e exigirá lealdade. O
povo se reunirá. Então Deus fará erguer quatro pilares de luz até os céus;
todos na terra os verão e saberão que al-Qāʾim surgiu. O imame al-Hussein
(neto do Profeta, o Segundo Imame), usando um turbante preto, e 12 000 xiitas
de Ali ressuscitarão; (quem fizer obediência a al-Hussein antes da ascensão de al-Qāʾim é infiel). Al-Qāʾim al-Mahdi apoiará as costas na parede da Caaba e estenderá a mão, da qual uma luz irradiará. O primeiro de muitos a prestar-lhe obediência será Gabriel, seguido pelos fiéis entre os jinn, os nobres de Meca e outros.
Tudo isso acontecerá ao nascer do sol. Depois que o
sol subir mais alto, uma voz do Oriente anunciará que o Mahdi chegou. A terra
inteira a ouvirá. Mas, ao pôr do sol, uma segunda voz clamará do Ocidente,
anunciando a vinda de um “anti-Mahdi” omíada. Muitos serão desencaminhados por
esse chamado.
O Mahdi revelará o verdadeiro texto das escrituras
de Adão e Sete, Noé e Abraão, bem como da Torá, dos Salmos e do Evangelho. Os
seguidores dessas escrituras reconhecerão que ele as restaurou à sua verdadeira
forma, como eram antes de os textos serem deturpados. Em seguida, ele lerá o
Alcorão, e seus seguidores reconhecerão que nada, absolutamente nada, fora
deturpado no texto do Livro. Ele derrubará a Caaba e a reconstruirá como era no
tempo de Adão. Combaterá os descrentes e os matará. Matará al-Sufyan, o falso
messias omíada (que pode ou não ser a mesma figura que o anterior a quem chamei
de “anti-Mahdi”). Ali retornará dos mortos para habitar numa enorme tenda,
grande como um país inteiro, sustentada sobre quatro pilares. Céu e terra serão
iluminados. Todos os segredos serão revelados (pp. 161–166).
William C. Chittick, em Islamic Spirituality I,
apresenta um comentário esotérico do sufi Al-Jili, de seu Al-Insān al-kāmil,
tratando de algumas das passagens escriturísticas e tradições relativas à Hora
do Juízo:
“Al-Jili interpreta os eventos que ocorrem no fim dos tempos em termos da morte
voluntária ou Grande ressurreição experimentada pelo viajante espiritual.
Segundo um hadith, Gog e Magog aparecerão na terra, comendo seus frutos
e bebendo seus mares; uma vez mortos, a terra reviverá. Do mesmo modo, a
agitação do ego e os pensamentos corruptos tomam posse da terra do coração de
um homem, comem seus frutos e bebem seus mares, de modo que nenhum traço de
conhecimento espiritual pode aparecer. Então os anjos de Deus aniquilam esses
sussurros satânicos com ciências de Deus: a terra é revivida e dá colheita
abundante. Isso é um sinal de o homem ganhar proximidade de Deus. Quanto à
besta da terra, ela virá contar aos habitantes da terra as verdades das
promessas concernentes à ressurreição. Do mesmo modo, o viajante alcança um
estágio de desvelamento em que vem a compreender os mistérios interiores da
religião; isso é um favor de Deus, para que ‘as tropas de sua fé não recuem
diante dos exércitos do véu contínuo’. Assim como o povo não se convencerá da
vinda da Hora até o aparecimento da besta, assim o gnóstico não compreenderá
todos os requisitos da Divindade até que o espírito apareça de dentro da terra
de sua natureza corporal.
O conflito entre al-Dajjal e Jesus refere-se à batalha entre o ego e o
espírito, enquanto a aparição do Mahdi alude a o homem tornar-se ‘o Possuidor
do Equilíbrio no ápice de toda perfeição’. Por fim, o nascer do sol no Ocidente
marca a realização da perfeição humana última” (p. 401).
Várias suratas do Alcorão tratam da Hora do Juízo,
entre elas “O Derrubamento” (81), “A Fenda” (82), “A Fissão” (84), “O
Terremoto” (99) e “A Calamidade” (101). Eis algumas passagens relevantes que,
como a maior parte do Alcorão, podem ser interpretadas tanto em termos de
eventos exteriores quanto de transformação espiritual interior:
De “A Fenda”:
Em nome de Alá, o Benéfico, o Misericordioso.
Quando o céu for fendido,
Quando os planetas forem dispersos,
Quando o mar for derramado,
E os sepulcros forem revolvidos,
Uma alma saberá o que mandou adiante e o que deixou para trás…
De “O Derrubamento”:
Quando o Sol for derrubado,
E quando as estrelas caírem,
E quando as colinas forem movidas,
E quando as camelas prenhes forem abandonadas,
E quando as feras forem ajuntadas,
E quando os mares subirem,
E quando as almas forem reunidas,
E quando a menina enterrada viva for inquirida
Por qual pecado foi morta,
E quando as páginas forem abertas,
E quando o céu for rasgado,
E quando o inferno for aceso,
E quando o jardim for trazido perto,
(Então) toda alma saberá o que ela preparou…
De “A Fissão”:
Quando o céu for fendido,
E atento ao seu Senhor em temor,
Quando a terra for estendida
E tiver lançado fora tudo o que nela havia, e estiver vazia,
E atenta ao seu Senhor em temor!
Tu, por certo, ó homem, trabalhas rumo ao teu Senhor um trabalho que O
encontrarás (em Sua presença)…
… Eu juro pelo arrebol do pôr do sol,
E pela noite e tudo o que ela envolve,
E pela lua quando está plena,
Que viajareis de plano em plano.
Que têm eles, então, que não creem?
Eschatologia cristã e muçulmana comparadas
Como já vimos, há muitos paralelos entre o saber
escatológico muçulmano e cristão. Martin Lings, em The Eleventh Hour,
cita a tradição sunita do Profeta, segundo a qual
“Um grupo do meu povo não deixará de lutar pela verdade até a manifestação do
Anticristo… Quando estiverem prestes a combater, mesmo enquanto alinham suas
fileiras para a oração quando ela é chamada, Jesus, o filho de Maria, descerá e
os conduzirá na oração. E o inimigo de Deus, quando vir Jesus, derreter-se-á
como sal que se derrete na água. Se fosse deixado, ele se derreteria em
perecimento; mas Deus o matará pela mão de Jesus, que lhes mostrará seu sangue
sobre sua lança.”
Dada a diferença inegável de níveis, a matança do
Anticristo por Jesus obviamente faz paralelo com a história contada em muitos
ícones ortodoxos de São Miguel, onde o arcanjo é mostrado no ato de matar o
Anticristo — com uma lança. Ademais, quando o Mahdi se manifesta na Caaba,
segundo a tradição xiita de Jaʿfar al-Ṣādiq, o Sexto
Imame (ver acima), ele recebe obediência não apenas dos fiéis, mas dos anjos e dos jinn; assim, al-Mahdi, como São Miguel, é
também o líder do “exército celestial”. (Jaʿfar relata outra tradição segundo
a qual o falso messias omíada será também morto por um arcanjo — não por
Miguel, contudo, mas por Gabriel.) Nas tradições xiitas, como vimos, não é
papel de Jesus, mas do Mahdi, matar o Anticristo, também com uma lança. O
título do Mahdi, sāhib al-sayf, “mestre da espada”, liga-o ao Kalki
Avatāra (ver abaixo no Bhāgavata Purāṇa) e também ao Cristo de Ap 19,12; 21, que diz de si
nos Evangelhos: “Não vim trazer paz, mas espada.” A “espada de dois gumes” de
Jesus Cristo no Apocalipse relaciona-se com Dhu’l Fiqar, a espada de
duas pontas manejada tanto pelo Profeta Maomé quanto pelo Imame Ali?
Os ícones ortodoxos de São Jorge e São Miguel
parecem apresentar Miguel como o arquétipo angélico de Jorge, que é seu agente
ativo neste mundo. Ambos empunham a lança. Assim como Miguel mata o Anticristo,
Jorge mata o Dragão que, no Apocalipse, simboliza Satanás, a quem o Anticristo
serve. Os muçulmanos veneram São Jorge como idêntico ao profeta imortal sufi
Khidr, a quem os sufis também identificam com Elias. Segundo o livro de
Malaquias, bem como os Evangelhos, Elias deve vir para restaurar todas as
coisas antes do grande e terrível Dia do Senhor. Leo Schaya identifica Elias
com o Mahdi.
Lings relata o hadith de que o Anticristo
será “um homem cego do olho direito, no qual toda luz está extinta, como se
fosse uma uva”. Numa tradição de Ali, o olho único do Anticristo está “no
centro da testa, brilhando como uma estrela” — o que encontra paralelo numa
visão apocalíptica de São João de Kronstadt, em que ele foi conduzido em
espírito por São Serafim de Sarov através de cenas da vinda do Anticristo. Numa
cena, o Anticristo está entronizado sobre o altar em Jerusalém, presumivelmente
na Igreja do Santo Sepulcro — embora o Domo da Rocha ou um Templo judaico restaurado
sejam também interpretações possíveis —, usando “uma coroa de ouro com uma
estrela”. (Divine Ascent, A Journal of Orthodox Faith, vol. 1, n. 1.)
O fato de o
Anticristo ter visão apenas no olho esquerdo significa, segundo o sufi Najm
al-Dīn Rāzī, que ele é materialista, ciente deste mundo, mas cego para o
próximo. Sua percepção está cortada dos mundos espirituais superiores; ele não
reconhece nada além do mundo dos sentidos. (Uma verdade semelhante é expressa
nos ícones da Ortodoxia oriental, onde Satanás é sempre mostrado de perfil, com
apenas um olho visível: o pecado envolve falta de perspectiva.) Mas a tradição
de que o olho único do Anticristo está no centro da testa, brilhando como uma
estrela, tem um significado diferente. A estrela na testa é uma representação
do ājñā-chakra, o “terceiro olho”, que é o órgão da percepção sutil ou
espiritual. Isso significa que o Anticristo será capaz, até certo ponto, de
cooptar e perverter as faculdades de percepção superior — possivelmente apenas
no nível sutil de “visão remota” e semelhantes, mas possivelmente também no
nível de uma compreensão mental da verdade metafísica, ou mesmo no de uma
indiferença gélida fazendo o papel de um alto desapego espiritual — uma
contemplação fria e sem coração da “nudez existencial” das coisas disfarçada de
profunda contemplação do Ser puro. Pode ser, em última análise, que o único
nível de consciência totalmente imune à perversão seja a consciência “cardíaca”
que os sufis, e os hindus, e os cristãos ortodoxos orientais chamam de
“Coração”, o nível da Imagem de Deus em nós, cujo núcleo interior — o “olho do
Coração” — é a Testemunha divina, o ātman. O “arrebatamento” que protege
os eleitos de Deus da tribulação trazida pelo Anticristo pode, em um nível de
significado, ser uma absorção no “paraíso do Coração” quando todo o resto na
sociedade e na alma humana tiver sido invadido pelas trevas. Santo Agostinho,
em A Cidade de Deus, define o mal demoníaco como conhecimento sem amor —
o que nunca pode ser a forma mais alta de conhecimento, o conhecimento dos logoi,
os protótipos de todas as coisas como existem na mente de Deus; esse grau de
conhecimento, ele implica, não pode existir sem amor. Quando a falta demoníaca
de amor invade a cabeça, o único refúgio é o Coração — o que não significa que
a única proteção contra o pensamento é emoção intensa. O Anticristo é
igualmente capaz de perverter a emoção, o que talvez seja um dos significados
simbólicos da Meretriz da Babilônia. A estratégia não é abandonar a cabeça e
esconder-se no Coração, mas “decapitar” — o que, em símbolo sufi, significa
superar o ego obstinado — e colocá-la, por assim dizer, dentro do Coração. Em
outras palavras, o conhecimento deve aprofundar-se, até que deixe de ser minha
pequena tentativa individual de compreender o mundo e o Deus que o criou, para
tornar-se o ato criador eterno de auto-testemunho de Deus dentro de mim e,
através de mim, dentro do espelho do mundo, pois é, em última instância, esse
Ato Divino de Auto-Testemunho que cria tanto o eu quanto o mundo.
O Anticristo coroado de estrela é um falso Cristo,
cuja nascente foi anunciada por uma estrela; é mais um exemplo do paralelismo
simbólico entre Cristo e Anticristo. Ap 2,28 diz: “E dar-lhe-ei [ao que vencer]
a estrela da manhã.” Segundo o arcebispo Averky, em The Apocalypse of St.
John: An Orthodox Commentary, isso significa ou que ele receberá Cristo —
que em 2Pe 1,19 é chamado “a estrela da manhã” que brilha nos corações dos
homens — ou que receberá domínio sobre Satanás, que em Is 14,12 é identificado
com Lúcifer, a estrela da manhã.
A natureza de um só olho do Anticristo representa
uma falsificação da Unidade Divina. Quando Jesus disse: “Se o teu olho for
simples, todo o teu corpo será cheio de luz”, referia-se ao Olho do Coração,
que testemunha a Unidade de Deus e transmite a luz dessa Unidade à psique
individual, da psique ao corpo, e do corpo ao universo, que assim é restaurado
ao seu estado edênico, no qual o mundo apresentado pelos sentidos é
experimentado como o espelho primordial dos Nomes ou Energias de Deus. Mas o
olho único do Anticristo só pode ver e adorar o universo como se ele fosse
literalmente Deus, misticando e glorificando a matéria para negar a
Transcendência Divina — à maneira dos materialistas antirreligiosos como Carl
Sagan. Aqueles que buscam unidade e estabilidade através da adoração da matéria
encontrar-se-ão, no entanto, adorando o caos. Nas palavras dos Evangelhos, são
os que edificam “a casa sobre a areia”: sobre o enxame de partículas
subatômicas regidas pela indeterminação aleatória, bem como sobre o caos do
“individualismo atômico de massa”, que é a expressão social dessa visão das
coisas. A única fonte de estabilidade, a única “rocha”, é a Natureza Divina,
onde as formas eternas e radiantes — os logoi de todas as coisas —
repousam na mente de Deus.
Segundo a tradição xiita, o Décimo Segundo Imame,
Muhammad al-Mahdi, foi “ocultado” (escondido) na infância para impedir seu
assassinato, lembrando Ap 12,1–5, onde “a mulher vestida de sol” dá à luz um
“filho varão” destinado a “reger todas as nações com vara de ferro”, mas que
foi “arrebatado para Deus e para o seu trono” para evitar ser devorado por “um
grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres”. O caos mundial estará
entre os sinais de seu retorno iminente. Quando ele vier, as mães que amamentam
seus filhos os abandonarão de medo; cf. Mt 24,19: “Ai das que estiverem
grávidas e das que amamentarem naqueles dias!” É ilícito mencionar (ou revelar)
o nome de al-Mahdi, perguntar onde está ou fixar o tempo de seu advento, embora
muitas tradições afirmem que será num “futuro próximo”. Compare Ap 19,11–12,
onde o cavaleiro no cavalo branco, chamado Fiel e Verdadeiro, “tinha um nome
escrito que ninguém conhecia, senão Ele mesmo”, e Mt 24,26: “Se vos disserem:
Eis que ele está no deserto, não saiais; eis que está nos aposentos interiores,
não creiais”; bem como Mt 24,36: “Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os
anjos do céu, senão somente o meu Pai.” Compare também Ap 22,7: “Eis que venho
em breve”, e Ap 3,12–13: “Escreverei sobre [o que vencer] o meu novo nome.”
O Mahdi trará também um novo Livro; compare Ap
5,1–2: “E vi na destra do que estava assentado no trono um livro escrito por
dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte, que proclamava
com grande voz: Quem é digno de abrir o livro e de romper os seus selos?”
Compare também o Sepher ha-Yasher ou Livro da Justiça, que, segundo a
tradição judaica, será trazido por Elias nos últimos dias (ver adiante). E
assim como somos advertidos em Mt 24,24–27 a não correr atrás de falsos Cristos
e falsos profetas “porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e se mostra
até o Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem”, também a maior
autoridade do islã xiita, o Sexto Imame Jaʿfar al-Ṣādiq, declara: “Cuidado com os que afirmam [que o
Mahdi já veio] antes da ascensão de al-Sufyani [o falso messias omíada,
semelhante ao Anticristo] e da voz do céu; são mentirosos.”
Um paralelo interessante — que é também uma clara
divergência — entre o Alcorão e o Apocalipse diz respeito a uma besta que
surgirá da terra nos últimos dias. Na tradição islâmica, o Anticristo emerge da
terra; na tradição cristã, do mar. (Algumas versões islâmicas, contudo, também
falam do Anticristo como um demônio marinho.) Na versão cristã, assim como a
Besta que é o Anticristo sobe do mar, uma segunda besta (Ap 13,11),
identificada com o Falso Profeta, sai da terra e faz com que os homens recebam
a marca da Besta (presumivelmente a primeira) nas testas ou nas mãos direitas.
Do mesmo modo, segundo a Surata 27,82: “Quando a Palavra cair sobre eles,
traremos para eles, de dentro da terra, uma besta que lhes falará.” Segundo o
comentário de Ali ibn abi-Talib sobre esta passagem:
“Quando a besta aparecer, ela trará o selo de Salomão e o cajado de Moisés.
Colocará o selo sobre o rosto de cada crente, deixando as palavras: ‘Este é um
verdadeiro crente’; e sobre o rosto do infiel, deixando as palavras: ‘Este é um
verdadeiro infiel’... Então a besta levantará a cabeça, e todos, do Oriente ao
Ocidente, a verão, depois que o sol tiver nascido no Ocidente. Quando levantar
a cabeça, o arrependimento não mais será aceito.”
A besta do Alcorão não é claramente nem o
Anticristo nem o Falso Profeta do Apocalipse. Contudo, tanto a besta do Alcorão
quanto o Falso Profeta surgem de sob a terra, da morada dos mortos, que em
muitas tradições representa tudo o que foi reprimido e esquecido na alma humana
individual ou coletiva. O Falso Profeta talvez simbolize o mal humano oculto
nessa alma, assim como a primeira besta — o Anticristo —, que emerge não da
terra do mundo humano, mas do mar do “inconsciente coletivo”, simboliza a parte
dessa alma aberta a, e controlada por, um mal trans-humano e satânico: o
Dragão.
Mas a besta do Alcorão parece representar a
totalidade da alma humana coletiva, o bem oculto tanto quanto o mal oculto — o nafs
em todos os níveis, seja mandante, acusador ou pacificado —, agora pronunciando
toda a verdade de sua natureza sob a compulsão do Espírito. Assim também ocorre
no Caminho espiritual, onde os viajantes “morrem antes de serem feitos morrer”:
a descida da Palavra ou do Espírito faz com que tudo o que estava oculto na
alma venha à plena luz; e, quando esse processo se completa, a possibilidade de
ação individual — e, portanto, de arrependimento individual — termina, seja
pela morte física, seja pela aniquilação em Deus. À luz da Palavra, são as
obras dos homens, medidas pelo cajado de Moisés (que representa a lei), e suas
disposições psíquicas, discernidas pelo selo de Salomão (que representa seu poder
sobre os jinn, isto é, o domínio da psique), que testemunham de modo
definitivo quem está destinado ao Jardim e quem ao Fogo. Os rostos de ambos os
grupos são selados pelo anel de Salomão porque, segundo a doutrina islâmica,
“os atos são julgados por suas intenções.”
Eschatologia hindu: Kalki e Cristo comparados
As escrituras hindus conhecidas como Purāṇas são tidas por alguns como compostas entre os
séculos IV e XVI d.C. As autoridades tradicionais hindus, porém, atribuem-nas
ao antigo sábio Vyāsa — também considerado autor do Mahābhārata — e as
veem como versões escritas de tradições orais muito mais antigas, uma vez que
são mencionadas nos Upaniṣads (c. 600–300 a.C.) e até nos Brāhmaṇas (c. 800–600 a.C.). A palavra purāṇa em si significa “antigo”, ou talvez “antigo-novo”,
para expressar a perenidade e a atualidade sempre renovada da sabedoria
primordial. Existem dezoito purāṇas principais: seis dedicadas a Brahmā, seis a Viṣṇu e seis a Śiva.
As purāṇas vaiṣṇavas contêm a doutrina hindu dos ciclos cósmicos, bem como a história dos avatāras de Viṣṇu, dos quais
Krishna é provavelmente o mais conhecido.
Os paralelos entre certas seções das Purāṇas e o Livro do Apocalipse — especialmente partes do Viṣṇu Purāṇa (datado do século VI por Joseph Campbell) e do Bhāgavata Purāṇa (século X) — são numerosos e notáveis. Essas
escrituras, bem como o Bhāṣa Bhārata e o Agni Purāṇa (que é śaivita, não vaiṣṇava), contêm predições da vinda do Kalki Avatāra,
o décimo avatāra de Viṣṇu no último período do ciclo, sendo os nove
anteriores já passados.
Alguns estudiosos explicam essa semelhança pela
influência cristã primitiva sobre o hinduísmo. Mas é igualmente provável que
ambas as representações do Salvador destinado a aparecer no fim dos tempos
sejam variações de uma única tradição, relacionada à doutrina do ciclo cósmico
ou Grande Ano, comum aos antigos mesopotâmios, hindus, gregos, nórdicos e até
aos lakotas — e provavelmente baseada na precessão astronômica dos equinócios.
Joseph Campbell remonta essa tradição a cerca de 300 a.C. na Mesopotâmia,
embora as listas de reis antediluvianos numerologicamente ligadas ao Grande Ano
sejam muito mais antigas, e o sistema numérico que empregam, baseado no número
60, remonte a cerca de 3200 a.C.
As listas de reis sumérios e babilônios geralmente
nomeiam dez reis — o mesmo número de patriarcas de Adão a Noé —, o que leva a
pensar se a doutrina hindu dos dez grandes avatāras de Viṣṇu, sendo
Kalki o último deste ciclo, não seria uma versão posterior da mesma constelação de ideias, sobretudo porque Noé veio ao fim de uma era e inaugurou outra. O número dez relaciona-se ao ciclo cósmico hindu, o manvantara, por sua divisão em quatro yugas:
a Satyayuga, a Tretāyuga, a Dvāparayuga e a Kaliyuga.
A Tretāyuga é três quartos da duração da Satyayuga, a Dvāparayuga
metade, e a Kaliyuga um quarto, produzindo os números 4, 3, 2 e 1, cuja
soma é dez.
Segundo o Viṣṇu Purāṇa:
“Quando as práticas ensinadas pelos Vedas e pelos institutos da lei cessarem, e
o fim da era de Kali estiver próximo, uma porção daquele Ser divino que existe
de sua própria natureza espiritual no caráter de Brahmā, e que é o princípio e
o fim, e que tudo abrange, descerá à terra: nascerá na família de Viṣṇuyaśas, um eminente brâmane da aldeia de Śambhala, como Kalki, dotado das oito faculdades sobre-humanas. Por seu
poder sobre-humano destruirá todos os mlecchas
[bárbaros estrangeiros] e ladrões, e todos cujas mentes estiverem devotadas à
iniquidade. Então restabelecerá a retidão na terra; e as mentes dos que viverem
no fim da era de Kali serão translúcidas como cristal. Os homens assim
transformados pela virtude desse tempo serão como a semente dos seres humanos e
darão origem a uma raça que seguirá as leis da era de Kṛta, ou era da pureza [outro nome da Satyayuga].”
Kalki, como “porção daquele Ser divino que
existe... como Brahmā [o Criador]”, é evidentemente análogo — embora não
teologicamente idêntico — a Cristo, o Filho de Deus Pai. Ele é chamado “o
princípio e o fim”, o que é precisamente como Cristo se descreve em Ap 1,8. Sua
restauração da justiça na terra assemelha-se ao novo céu e à nova terra do
capítulo 21 desse livro, e as mentes “claras como cristal” daqueles que o virem
evocam a Jerusalém Celeste, cuja “luz era como a de uma pedra preciosíssima,
como jaspe, cristalina” (Ap 21,11).
A altura da muralha que cerca a Jerusalém Celeste,
medida pelo anjo em Ap 21,17, é dada como “cento e quarenta e quatro côvados,
medida de homem, isto é, de anjo”. É uma referência direta aos “144 mil
redimidos da terra” (Ap 14,3) e indica que a Jerusalém Celeste é a projeção da
essência “angélica” da forma humana na mente de Deus; os 144 mil redimidos são,
por assim dizer, os tijolos vivos dessa Cidade. Os 144 mil, assim como os “24
anciãos” de Ap 4,4.10, sugerem não tanto uma soma numérica de indivíduos quanto
uma disposição, em diferentes planos de manifestação, do arquétipo humano, a
semente do Homem. (Em Mc 4,16, os indivíduos humanos são comparados a
sementes.)
“Os homens assim transformados pela virtude desse
tempo”, que “serão a semente dos seres humanos”, são, portanto, análogos aos 24
anciãos e aos 144 mil redimidos, se entendermos “semente” como o protótipo no
plano sutil da humanidade do próximo eão — o novo céu e a nova terra —, e não
como os sobreviventes dispersos de uma catástrofe material. E a ideia de que os
homens serão “transformados” ecoa claramente 1Cor 15,51–52: “Seremos todos
transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última
trombeta.”
Segue o relato de Kalki segundo o Bhāgavata Purāṇa:
“Quando a era de Kali, cuja trajetória é tão dura para os homens, estiver quase
no fim, o Senhor aparecerá em sua forma divina (composta apenas de sattva).
[…] O Senhor Viṣṇu, adorado por toda a criação animada e inanimada, e a Alma do universo, aparecerá (neste mundo da matéria) para proteger a virtude dos justos e eliminar
(toda a soma do) seu karma (libertando-os assim). O Senhor aparecerá sob
o nome de Kalki na casa do nobre Viṣṇuyaśa — o mais eminente brâmane da aldeia de Śambhala. Montado num veloz cavalo
chamado Devadatta […] e capaz de subjugar os ímpios, o Senhor do universo,
empunhando […] os oito poderes divinos […] e dotado de [infinitas] virtudes e
esplendor incomparável, percorrerá o globo sobre aquele cavalo veloz e
exterminará com sua espada, aos milhões, ladrões que ostentam insígnias de
realeza. Quando todos os ladrões tiverem sido exterminados, as mentes do povo
das cidades e do campo tornar-se-ão puras, por respirarem as brisas impregnadas
da fragrância sagrada dos pigmentos sobre o corpo do Senhor Vasudeva [Kalki].
Com o Senhor Vasudeva, encarnação da força, em seus corações, sua descendência
crescerá em extremo vigor. […] Quando o Senhor Śrī Hari, o Protetor do Dharma,
aparecer como Kalki, a Satyayuga [a Idade de Ouro] prevalecerá novamente.”
Martin Lings,
em The Eleventh Hour, identifica Kalki com Maitreya Buda e com o Cristo:
“Assim como o cristianismo, [o hinduísmo] depende do Avatāra, isto é, da
descida da Divindade a este mundo; e para a manutenção da tradição há uma
sucessão de nada menos que dez Avatāras. Quanto aos tempos históricos, o
sétimo e o oitavo destes, Rāma e Krishna, são os mais importantes para o
próprio hinduísmo. O nono, especificamente não hindu (literalmente
‘estrangeiro’), é geralmente considerado o Buda; e o décimo, Kalki “o cavaleiro
do cavalo branco” terá a função universal de encerrar este ciclo do tempo e
inaugurar o próximo, o que identificou sua descida com a segunda vinda de
Cristo.
O “cavaleiro do cavalo branco” aparece com o mesmo
papel que Kalki no capítulo 19 do Apocalipse:
“E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele
chama-se Fiel e Verdadeiro, e julga e peleja com justiça.
E os seus olhos eram como chama de fogo; e sobre a sua cabeça havia muitos
diademas; e tinha um nome escrito que ninguém sabia senão ele mesmo.”
(19,11–12)
“E da sua boca saía uma espada afiada, para ferir com ela as nações; e ele as
regerá com vara de ferro; e ele pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus
Todo-Poderoso.” (19,15)
“E vi a besta, e os reis da terra, e os seus exércitos [isto é, os ‘dezenas de
milhões de ladrões ostentando insígnias de realeza’] reunidos para fazerem
guerra àquele que estava assentado sobre o cavalo e ao seu exército. E a besta
foi presa, e com ela o falso profeta que, diante dela, fizera os sinais com que
enganou os que receberam o sinal da besta e os que adoraram a sua imagem. Os
dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.
E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado
sobre o cavalo; e todas as aves se fartaram das suas carnes.” (19,19–21)
Nos ícones da Ortodoxia oriental, tanto São Miguel
quanto São Jorge são mostrados montando cavalos brancos, combatendo
respectivamente o Anticristo e o Dragão. As semelhanças impressionantes entre a
escatologia hindu e a cristã podem ser explicadas, suponho, por uma difusão de
motivos. Contudo, como observou um amigo meu, nenhuma tradição integral aceita
mitos ou doutrinas de fora de suas fronteiras, a menos que sejam intrinsecamente
compatíveis com sua visão central. Hinduísmo e cristianismo, quando olham para
o fim do Éon, fitam profundamente a mesma realidade objetiva. Nem essa
revelação visionária dos arquétipos espirituais é incompatível com qualquer
corrente particular de influência histórica, porque a história é providencial;
o mundo eterno e espiritual é a fonte última do mundo histórico: “o tempo é a
imagem móvel da Eternidade.”
Eschatologia hindu, judaico-cristã, lakota e hopi
comparadas
Como já apontei, um dos maiores erros da Nova Era —
que também infiltrou o cristianismo liberal — é identificar as religiões
primordiais com seu próprio anti-transcendentalismo, negar implicitamente a
natureza como teofania do Grande Espírito e tomá-la em vez disso como um objeto
material — a “Nave Terra” — a ser adorada em si e por si. No entanto, aquelas
das religiões primordiais que preservaram relativamente intacta a Tradição
Primordial têm uma afinidade muito maior com as grandes religiões reveladas do
que com o neopaganismo contemporâneo ou a ideologia da Nova Era. Evidência
dessa afinidade pode ser vista em muitas áreas do mito e da doutrina, e uma
delas é a escatologia. Tanto as tradições lakota quanto a hindu, por exemplo,
partilham a doutrina de um ciclo contínuo de manifestação, cada ciclo dividido
em quatro idades. Cito o
autor tradicionalista Joseph Epes Brown, de seu livro The Sacred Pipe: Black
Elk’s Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux, p. 9, n. 15:
“Segundo a mitologia siouana [lakota], acredita-se
que, no início do ciclo, um búfalo foi colocado no Oeste para conter as águas.
Todo ano esse búfalo perde um pelo, e a cada idade ele perde uma perna. Quando
todos os seus pelos e as quatro pernas tiverem desaparecido, então as águas
novamente irrompem, e o ciclo chega ao fim.
Um paralelo impressionante a esse mito encontra-se
na tradição hindu, onde é o touro Dharma (a lei divina) quem tem quatro pernas,
cada uma representando uma idade do ciclo total. Ao longo dessas quatro idades
(yugas), a verdadeira espiritualidade torna-se cada vez mais
obscurecida, até que o ciclo (manvantara) se encerra com uma catástrofe,
após a qual a espiritualidade primordial é restaurada, e o ciclo tem início
novamente.
Tanto o índio americano quanto o hindu creem que,
no presente, o búfalo ou o touro está sobre sua última perna, e está quase
completamente calvo. Crenças correspondentes poderiam ser citadas de muitas
outras tradições. Ver René Guénon, A Crise do Mundo Moderno. [Ver também Frithjof Schuon, The Feathered
Sun, Bloomington, World Wisdom Books, 1990, pp. 113–114.]”
Quanto a paralelos com a escatologia
judaico-cristã, talvez o mais claro seja a doutrina lakota dos “dias sagrados
vermelho e azul”. “Esses”, segundo Joseph Epes Brown, “são os dias no fim do
mundo em que a lua se tornará vermelha e o sol se tornará azul. Mas, como para
o homem tradicional tudo no macrocosmo tem seu correspondente no microcosmo,
pode haver um fim do mundo para o indivíduo aqui e agora, sempre que ele recebe
iluminação de Wakan-Tanka, de modo que seu ego ou ignorância morre, e então ele
vive continuamente no Espírito.”
Segundo o profeta Joel (cap. 2, v. 31; ecoado em Mt
24,29 e Mc 13,24), “o sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que
venha o grande e terrível dia do Senhor”. Ambas as tradições afirmam que a lua
se tornará vermelha, e o sol certamente “escurece” se se torna azul. Ademais, o
azul-escuro é identificado com, ou substituído por, o preto no simbolismo de
cores de muitas nações. O Krishna de pele azul é às vezes chamado Kāla,
“o negro”, e no comentário de Richard Wilhelm à sua tradução do I Ching
afirma-se que “o preto, ou antes o azul-escuro, é a cor do céu”. Segundo Epes
Brown, o azul (sem surpresa) é também “a cor dos céus” no simbolismo lakota.
O sol escurecido e a lua vermelha relacionam-se
claramente a eclipses solar e lunar; uma lua em eclipse frequentemente mostra
uma cor vermelho-opaca. Mas poucos parecem saber que a cor real do sol ao
meio-dia, a olho nu — como provei a mim mesmo na infância, olhando para ele por
curtos períodos —, é um azul-negro cintilante. Quanto aos significados
simbólicos dessas cores atribuídas ao sol e à lua, podem ser tomados em pelo
menos dois níveis. Do ponto de vista do “ego ou ignorância” quando morre, o
escurecimento do sol representa o velamento do Intelecto, como quando Jesus na
cruz clamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, e o avermelhamento
da lua, a irrupção das paixões. Quando o Intelecto é velado, as paixões se
desmandam; tais são as condições universalmente previstas para o fim da Kaliyuga.
A lua é símbolo universal do mundo da psique, que se volta tanto para os ciclos
“sublunares” da natureza, como sua causa próxima, quanto para o Sol do
Intelecto, sua Fonte última. A segunda orientação é o sentido simbólico da lua
no islã, representando não tanto a psique em si quanto o centro transcendente
da psique, o “Coração” — o nível de ser do qual a Virgem Maria falava em Lc
1,46 ao dizer: “Minha alma engrandece o Senhor.” A primeira orientação é
representada pelas várias deusas lunares pagãs que regem os ciclos da
fertilidade.
Do ponto de vista dos arquétipos eternos, porém,
sol azul e lua vermelha têm outro significado. Como vimos, René Guénon em O
Reino da Quantidade apresenta o curso de qualquer ciclo de manifestação
como uma descida do polo da Essência, cujo símbolo é o sol, ao polo da
Substância, simbolizada pela lua. Mas Essência e Substância, como arquétipos,
jamais entram elas mesmas na manifestação — a primeira por sua exaltação, a
segunda por sua simplicidade. Assim como a Essência está acima da forma, e
portanto é inconcebível, assim a Substância está abaixo da forma, e
consequentemente é incapaz de ser descoberta ou possuída (e é por isso,
incidentalmente, que a busca da física por uma “partícula última”, ou
equivalente, nunca terá fim).
Na medida em que Essência e Substância se refletem
no mundo manifesto, a Essência aparece (em termos aristotélicos) como forma
ou protótipo, aquilo que confere forma, e a Substância como matriz ou matéria,
aquilo que recebe a forma. À medida que o ciclo desce, porém, forma
vai-se obscurecendo por trás dos véus da matéria, enquanto matéria
adota progressivamente as prerrogativas da forma, embora apenas num
sentido ilusório; à medida que as formas eternas pelas quais Deus cria o mundo
material ficam ocultas, começa a parecer como se a matéria de algum modo
tivesse o poder de se criar a si mesma. O azul celeste da forma
escurece, enquanto a matéria assume o matiz vermelho irado do
materialismo autoafirmativo; nas palavras de Charles Péguy (que condensam, em
certo sentido, a doutrina das idades do mundo de A República de Platão):
“tudo começa em mística e termina em política.” Forma e matéria
acabam por confundir-se a tal ponto que a polaridade sustentadora do mundo
entre elas desmorona, e o ciclo termina em caos. Mas quando o sol se torna azul
e a lua, vermelha, isso indica uma repolarização purificadora de forma e
matéria, que as devolve aos arquétipos originais. O sol azul é símbolo
da Essência, ou qualidade pura, manifestando-se como ordem celeste, o princípio
do Pai; a lua vermelha é símbolo da Substância, ou receptividade pura,
manifestando-se como energia vital, o poder de atrair essências ou qualidades à
manifestação, o princípio da Mãe. A forma já não está agora onerada
pelas cascas escuras da matéria, mas revela diretamente a Essência,
enquanto a matéria já não se arroga o poder de conferir forma, mas
manifesta diretamente a virgindade receptiva da Substância. Assim, prepara-se o
cenário para as núpcias do Pai divino e da Mãe divina, o “banquete do Cordeiro”,
a geração de “um novo céu e uma nova terra”.
Joseph Epes Brown apresenta a doutrina lakota de forma
vs. Essência e matéria vs. Substância da seguinte maneira:
“Assim como se faz a distinção dentro de Wakan-Tanka entre Pai e Avô, assim a
Terra é considerada sob dois aspectos, o de Mãe e o de Avó. O primeiro é a
terra considerada como produtora de todas as formas em crescimento, em ato; ao
passo que Avó refere-se ao chão ou substrato de todas as coisas em crescimento
— potencialidade. Esta distinção é a mesma feita pelos escolásticos cristãos
entre natura naturans e natura naturata.” (p. 6, n. 7)
Mãe Terra, então, é matéria, e Avó Terra é
Substância; Espírito Pai e Espírito Avô são forma e Essência; ou, numa
oitava superior, Ser e Além-do-ser. Segundo Epes Brown:
“Wakan-Tanka como Avô é o Grande Espírito independente da manifestação, não
qualificado, ilimitado, idêntico à Divindade cristã, ou ao hindu Brahma-Nirguna.
Wakan-Tanka como Pai é o Grande Espírito considerado em relação à Sua
manifestação, seja como Criador, Preservador ou Destruidor, idêntico ao Deus
cristão, ou ao hindu Brahma-Saguna.” (p. 5, n. 6)
Os hopi também têm uma tradição de quatro mundos
sucessivos, que são ao mesmo tempo idades temporais e níveis ontológicos.
Segundo The Book of the Hopi, de Frank Waters, o primeiro mundo é Tokpela,
Espaço Infinito. Num nível, Tokpela é o mundo do Além-do-Ser, onde
Tiowa, o Absoluto informe, existe em solidão, antes da criação; noutro, é o
mundo da primeira criação. (À medida que as quatro idades avançam, tornam-se
menos como níveis ontológicos e mais como períodos históricos; movemo-nos do
polo da forma qualitativa para o da matéria quantitativa.) Nessa
feição — como está associado ao mineral sikyasvu, o ouro — é
evidentemente a Idade de Ouro. Em Tokpela — talvez identificável com o
paleolítico — as pessoas vivem em paz com os animais e entre si. É destruído em
parte pelos enganos de Kato’ya, o formoso, descrito como “uma cobra de grande
cabeça”, claramente análogo à serpente do Gênesis. (Isto é interessante, dado
que os hopi estão entre as tribos menos influenciadas pelo cristianismo.)
Quando o primeiro mundo começa a degenerar, os escolhidos dentre o povo iniciam
sua migração; seguem uma nuvem de dia e uma estrela de noite, assim como o povo
escolhido em Êxodo segue uma coluna de nuvem e uma de fogo. À medida que Tokpela
é destruído pelo fogo, refugiam-se no subsolo com o Povo Formiga, análogo aos
primordiais homens-formiga nascidos da terra do mito grego, os mirmidões.
Em seguida, o povo emerge do mundo subterrâneo das
formigas e entra no segundo mundo, Tokpa, Meia-Noite Escura, cujo
mineral é qochasiva, prata. Esta é a Idade de Prata, aparentemente o
neolítico, quando artes manuais e vida aldeã se desenvolvem. O segundo mundo é
destruído por água e gelo quando os gêmeos Poqanghoya e Palongawhoya, guardiões
dos polos, deixam suas estações e a terra vira duas vezes. O povo novamente se
refugia no subsolo com as formigas e depois emerge no terceiro mundo.
O terceiro mundo, Kuskurza, relaciona-se ao
mineral palasiva, cobre — componente principal do bronze. Estamos, pois,
na Idade do Bronze. Em Kuskurza, o povo superpovoa e usa seu poder
reprodutivo para o mal — o cobre sendo identificado, no simbolismo tradicional,
com Vênus, o princípio erótico. Desenvolvem alta tecnologia, vivem em cidades e
voam sobre escudos cobertos de couro chamados patuwvotas —
surpreendentemente semelhantes aos vimanas voadores descritos nas purāṇas hindus —, que usam como máquinas de guerra. Kuskurza,
como Atlântida, é destruído pela água; continentes inteiros submergem.
Quando o terceiro mundo está prestes a terminar, a
Mulher Aranha — figura algo como a shekhinah de Sotuknang, o demiurgo, o
primeiro ser criado, que por sua vez é a energia ativa de Tiowa, o Criador —
diz ao povo que entre em juncos ocos para escapar do dilúvio. Depois instrui-os
a fazer desses juncos barcos. Conduz-lhes numa migração sobre as águas, à
procura do quarto mundo. (Os barcos de junco lembram a embarcação egípcia de
junco que Thor Heyerdahl usou para cruzar o Atlântico em sua Expedição Ra,
provando assim que os egípcios — ou atlantes — poderiam ter povoado o Novo
Mundo, embora a direção de sua jornada, Leste e um pouco ao Norte, sugira uma
origem no Sudeste Asiático.) Durante essa migração, enviam aves em busca de
terra, como Noé em Gênesis, mas nenhuma terra é encontrada.
Depois de parar num continente que não era seu
destino verdadeiro, chegam ao quarto mundo, chamado Tuwaqachi, o Mundo
Completo, onde a vida é dura. Este é o mundo que atualmente ocupamos. O mineral
associado ao quarto mundo é o “mineral misto” sikyapala, análogo ao
ferro misturado com barro que compõe os pés da estátua sonhada pelo rei
Nabucodonosor no Livro de Daniel; assim, Tuwaqachi parece ser a Idade do
Ferro. O guardião espiritual de Tuwaqachi é Masaw, que também foi o
governante de Kuskurza, o terceiro mundo, e que o levou ao fim por meio
de sua corrupção. Ele está aqui porque Tiowa decidiu dar-lhe uma segunda chance
— que parece ter desperdiçado. O mito hopi indica claramente que este mundo
também será destruído pelo abuso do poder reprodutivo e da alta tecnologia.
Vemos aqui novamente, pela convergência de hinduísmo, judaico-cristianismo,
Aristóteles e os ensinamentos hopi e lakota, como a metafísica tradicional, a
ciência dos princípios eternos, é ao mesmo tempo primordial e universal.
Escatologia budista tibetana
A escatologia budista tibetana, notadamente a tradição que aparece no Kalachakra
Tantra, difere em aspectos importantes das outras formas de budismo. Em Tibet
de Thubten Jigme Norbu (Simon & Schuster, 1968), um tulku da
linhagem Gelugpa e irmão mais velho do Dalai Lama, dá-se o relato seguinte, que
tem afinidades claras com as escatologias de muitas outras tradições. O Shambhala
Smonlam diz:
Intrépido, no meio do teu exército de deuses,
Entre tuas doze divisões,
Montas a cavalo.
Apontas tua lança para o peito de Hanumanda,
Ministro das forças do mal alinhadas
Contra Shambhala.
Assim será destruído o mal.
Shambhala é o nome de uma cidade e de um país “ao
Norte” onde se crê terem se originado alguns dos ensinamentos originais do
Tantrismo tibetano. No período final do ciclo, quando a religião e a moralidade
tiverem degenerado e a terra se tiver tornado mais fria, a cidade de Shambhala
será o único lugar na terra onde os ensinamentos do Buda serão preservados.
Assim que a corrupção invasora do mundo ao redor atingir os muros da cidade, o
rei-deus de Shambhala sairá cavalgando contra o líder das forças do mal e o
matará.
Lhasa estará coberta de água nesse tempo. Depois
que o mal for destruído, Tsong Khapa se erguerá de seu túmulo no Mosteiro de
Ganden e o budismo será renovado por mil anos. Então virá o fim do mundo, que
será consumado primeiro pelo fogo, depois pelo vento, depois pela água.
Pouquíssimos seres humanos sobreviverão, no topo das árvores e em cavernas
(falando esotericamente, por virtude de altura intelectual e profundidade
espiritual). Os deuses virão do Paraíso de Ganden e levarão essas pessoas
consigo; elas receberão ensinamentos espirituais e se tornarão imortais.
Finalmente, quando o vento novamente revolver o oceano leitoso e o mundo for
recriado, aqueles iluminados dos dias finais, salvos do ciclo anterior de
manifestação, serão as estrelas no céu. (Compare Dn 12,3, segundo o qual, no
fim do tempo, “os que forem sábios resplandecerão como o fulgor do firmamento;
e os que a muitos tiverem ensinado a justiça, como as estrelas por toda a
eternidade”.)
Hanumanda pareceria ser algo como um Anticristo
tibetano. (Alhures seu nome é dado como Krinmati, um senhor bárbaro.) As doze
divisões de seu adversário, o rei-deus, são paralelas às “[mais de] doze
legiões de anjos” prontas para defender Jesus em Mt 26,53, bem como aos 12.000
seguidores de Ali que ressuscitam por ocasião da vinda do Mahdi na escatologia
muçulmana, e aos 12.000 eleitos selados de cada uma das 12 tribos de Israel em
Ap 7,4–8. (O número 12 sugere obviamente o Zodíaco, o que identificaria os diversos
exércitos escatológicos com o que no Antigo Testamento se chama de “exército do
céu” — as estrelas: “As estrelas em seus cursos combatem do lado dos justos.”)
O cerco de Shambhala claramente sugere a batalha do Armagedom, quando Jerusalém
será cercada por exércitos. “Reunirei todas as nações contra Jerusalém para a
batalha; e a cidade será tomada…” (Zc 14,2–3). O motivo do “arrebatamento”
também aparece, como se encontra tanto na tradição cristã quanto na islâmica,
juntamente com o mito do milênio — a escatologia budista tibetana, segundo a
presente versão, é “pré-milenarista” —, assim como a profecia de que o herói
escatológico montado matará uma figura semelhante ao Anticristo com uma lança.
Segundo o relato dado por John Newman, coautor de The
Wheel of Time: Kalachakra in Context (Madison: Deer Park Books, 1985), a
figura “messias” e rei de Shambhala que derrota as forças do mal é Raudra
Charki — que, curiosamente, é nomeado como o último dos “Kalkis”, uma linhagem
de governantes de Shambhala fundada pelo primeiro Kalki, o grande Yashas, cuja
rainha era Tara. Assim, ele pareceria ser pelo menos parcialmente identificável
com o Avatara Kalki dos Purāṇas hindus. O neto de Raudra Charki, futuro governante de Shambhala, será
Kashyapa, nome dado ao arauto de Maitreya na profecia mahayana acima referida.
O fato de que a terra estará mais fria durante o
Cerco de Shambhala sugere o Fimbulwinter nórdico, bem como elementos no
mito zoroastriano do Var de Yima (ver abaixo), do qual a lenda de
Shambhala parece ser uma versão tibetana. Tanto Shambhala quanto o Var
de Yima situam-se “no Norte”, fazendo delas variações sobre o tema do Paraíso
Hiperbóreo.
Segundo alguns relatos tibetanos, a cidade de
Shambhala fica perto do rio Oxus, na Ásia Central. Isso pareceria confirmar a
tradição repetida pelo seguidor de Gurdjieff J. G. Bennett de que a palavra
Shambhala, ao menos segundo uma etimologia popular, é na verdade o árabe Shams-i-Balkh,
“Sol de Balkh”, nome do templo do Fogo zoroastriano na antiga cidade de Balkh,
no vale do Oxus. Em um relato alternativo e possivelmente mais confiável dado
por John Newman, porém, Shambhala está localizada na bacia do Tarim,
diretamente ao norte do Tibete, a leste e um pouco ao norte de Balkh. Newman
identifica o rio Sita mencionado nas escrituras do Kalachakra com o Tarim. Já
no Vishnu Purana, Shambhala é a pequena aldeia na Índia onde nascerá o
Avatara Kalki. Mas, esteja onde estiver a Shambhala quasi-geográfica, o
verdadeiro sítio dessa cidade-estado milagrosa é no “Oitavo Clima”, o ‘ālam
al-mithāl, o Plano Imaginal. Seu rei-deus, o Kalki, é — como o Rei Artur,
os profetas imortais Khidr e Elias, o zoroastriano Yima e o ocultado Décimo
Segundo Imame — mais uma versão do “Rei do Mundo” de Guénon, o arquétipo do
Homem para o éon presente, entronizado no plano sutil e cercado pelo Paraíso
Terrestre, que é sua emanação, sua shakti.
A tradição escatológica de muitas tradições
reflete-se no espelho dessa “lenda do fim” tibetana.
Benjamin Creme, profeta do Anticristo teosófico
(Todas as citações são tiradas de The Emergence Quarterly, número de
informações de base, publicação gratuita do Movimento Maitreya)
Como contraponto a essas escatologias tradicionais,
devemos dedicar algum tempo a uma das mais claras escatologias invertidas
contemporâneas, a de Benjamin Creme, cujos ensinamentos se baseiam nas
doutrinas da Sociedade Teosófica, particularmente nas de Alice Bailey, autora
de The Reappearance of Christ (1948). Creme está tão obviamente
desempenhando o papel de Falso Profeta para sua figura “Maitreya” ocultada como
Anticristo, que se suspeita que o faça deliberadamente. Seu “Anticristo” é
provavelmente um falso Messias literal demais para ser o verdadeiro Anticristo;
ainda assim, o ministério de Creme demonstra como os papéis de “Anticristo” e
“Falso Profeta” estão no ar neste momento.
Creme afirma estar em contato telepático constante
com o “Mestre Maitreya”, que é aquele esperado pelos cristãos como Jesus, pelos
judeus como o Messias, pelos muçulmanos como o Mahdi etc. “Maitreya” desceu de seu
retiro montanhês nos Himalaias em 1977 para se tornar um indiano ou paquistanês
vivendo em Londres. Ele não vem como líder religioso, mas como guia para os de
todas as religiões, bem como para ateus. “Um verdadeiro discípulo”, diz ele, “é
aquele que respeitará as tradições. Respeite suas próprias religiões, suas
próprias ideologias — em suma, sua própria forma-pensamento, e vocês
experimentarão o Mestre.” Claramente, a verdade da religião, ou das ideologias
seculares, não o preocupa. Nem sequer importa se você crê ou não em Deus.
“Maitreya” presta homenagem à unidade transcendente das doutrinas religiosas
tradicionais; seus ensinamentos, porém, contradizem repetidamente essas
doutrinas. O Mestre está aparentemente “acima” de questões de verdade, e é por isso
que não acredito no que ele diz. Sob a influência de sua energia, diz Creme,
“cada vez mais pessoas se revoltarão, porque hábitos antigos, códigos seculares
impostos à mente, devem ser quebrados. As pessoas não aceitarão soluções
impostas.” Isso não me soa muito como respeito por todas as tradições e
ideologias.
A comercialização e o reinado das forças de mercado
são um flagelo, diz “Maitreya”. Concordo. “A nova política não será mais
moldada pelos ‘ismos’ do capitalismo ou do socialismo, mas criada a partir do
autorrespeito em indivíduos e nações. Liberdade, autonomia e salvação serão os
objetivos de todos”, escreve Creme, “e são todos a mesma coisa. A realidade da
interdependência global tornar-se-á um fato estabelecido em nossa consciência.”
Bem, tornou-se. Mas o novo senso de interdependência global de hoje, que se
torna cada vez mais pesado e ansioso, é precisamente produto da comercialização
e das forças de mercado. E, se as duras lições da história e um entendimento
elementar de psicologia ainda não nos ensinaram que liberdade e salvação nem
sempre são a mesma coisa, pouco posso acrescentar. A liberdade externa às vezes
serve à salvação e às vezes a mina, mas quem não estiver disposto, se
necessário, a sacrificar a ação autodeterminada para salvar a alma, ainda não
aprendeu a diferença entre a escravidão do libertinismo e a Libertação que só
pode vir da obediência estrita à Fonte do amor e da verdade. Tal obediência é,
porém, estranha a Creme. “Os políticos somente, diz Maitreya, são culpados pelo
desespero dos viciados em drogas. ‘Se as pessoas estão tão pressionadas na vida
que não podem nem se alimentar direito… levarão vidas desesperadas.’” Trata-se
de uma meia-verdade, obviamente: não existem viciados ricos?
Creme aposta em um colapso econômico mundial
começando no Japão para nos trazer à razão, despertar-nos para valores mais
altos e dar a “Maitreya” a chance de assumir. Ele aparentemente espera por uma
revolução mundial teosófica dos anos 2000 nos moldes da ascensão comunista
durante a Grande Depressão dos anos 1930.
Foi “Maitreya” quem decretou a queda da União
Soviética e pôs fim ao Apartheid na África do Sul. É ele quem está produzindo,
atualmente, de algum lugar nos subúrbios de Londres, todas as aparições de
anjos, da Virgem Maria, do Buda e de Cristo pelo mundo, poços de cura
miraculosos, estátuas que bebem leite na Índia, caroneiros que desaparecem
prevendo a Segunda Vinda e misteriosas cruzes de luz aparecendo em janelas por
todo o mundo, começando no sul da Califórnia. Seu “programa” é simples: A
unidade da humanidade; uma nova civilização baseada em partilha, justiça
econômica e social e cooperação global; alimentação, vestuário, moradia e
cuidados médicos adequados; a regeneração do meio ambiente; e o fim da fome
mundial, juntamente com iluminação espiritual em massa: um Buda em cada panela.
Como escreve Dennis Engleman em Ultimate Things (pp. 179–180),
“O Anticristo desenvolverá a reputação de solucionador fenomenal de problemas.
Sua habilidade desconcertante de antecipar resultados e propor soluções
parecerá profética e visionária a um mundo alheio a suas manipulações secretas.
Guerra, perturbação econômica, injustiça social, instabilidade política,
intolerância religiosa — nenhuma dificuldade escapará a seu toque suavizador.”
Quem pode discordar dessas metas elevadas? Quem,
senão os supersticiosos, os retrógrados, os corruptos ou os insanos, poderia
opor-se a elas? Quem, senão degenerados, dizia Hitler, poderia opor-se ao pleno
emprego, a uma cultura mais espiritual que dá esperança e direção aos jovens, e
ao fim das disposições vergonhosas e opressivas do Tratado de Versalhes? Quem,
senão reacionários burgueses, dizia Marx, poderia opor-se a uma sociedade sem
classes, baseada no princípio “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo
suas necessidades”, onde ninguém se excede e ninguém passa fome? O que
“Maitreya” propõe é bom — mas o bem, como é óbvio, pode ser cooptado. E o que
se pode esperar de alguém que afirma estar engenheirando mudanças mundiais
maciças, assim como uma manifestação global de caroneiros que desaparecem, a
partir de algum lugar dos subúrbios de Londres? Ou de pessoas desequilibradas o
bastante para acreditar nele?
Um tema recorrente nos ensinamentos de “Maitreya”,
como nos do fundador do EST, o falecido Werner Erhard, é o fim da fome mundial.
O que poderia ser mais compassivo, mais irrepreensível? Contudo, segundo
Sachedina em Islamic Messianism, p. 173,
“O papel de Al-Dajjal [o Anticristo] no Fim dos Tempos é quase idêntico ao de
Satanás, como explicado em fontes tradicionais, porque ele tentará as pessoas
trazendo comida e água, que serão escassas naquele tempo.”
Creme aguarda com expectativa o dia em que
“Maitreya” se manifestará ao mundo:
“No momento mais cedo possível, Maitreya demonstrará Sua verdadeira identidade.
No Dia da Declaração, as redes internacionais de televisão estarão
interligadas. Por convite da mídia, veremos o rosto de Maitreya na televisão,
mas Ele não falará. Em vez disso, cada um de nós ouvirá suas palavras
telepaticamente em nossa própria língua, ao mesmo tempo em que ele impressiona
as mentes de toda a humanidade. Mesmo os que não o estiverem assistindo na
televisão terão essa experiência. Ao mesmo tempo, centenas de milhares de curas
espontâneas ocorrerão pelo mundo. Assim saberemos que esse homem é de fato o
Instrutor do Mundo para toda a humanidade.”
Portanto, Creme e seus amigos teosóficos esperam
encenar um evento de sugestão global em massa. Segundo Ultimate Things
(pp. 134–135),
“Uma humanidade acostumada a shows de laser, televisão de alta definição e
outros espetáculos ficará extasiada com o Anticristo. A mídia o amará; figuras
públicas de todos os tipos se apresentarão em seu apoio. Contudo, o entusiasmo
terá origens sinistras. São Inácio Brianchaninov adverte: ‘Os espíritos falsos,
enviados por toda a terra, incitarão nos homens uma opinião geralmente elevada
sobre o anticristo, um êxtase universal, uma atração irresistível por ele.’
Como João Batista, ‘o Precursor’, preparou o caminho para o ministério público
de Jesus, um homem singularmente astuto preparará o palco para o advento do
Anticristo. Essa pessoa, referida na Escritura como ‘o falso profeta’,
encantará o mundo por meio de espetáculos astutamente encenados… Uma humanidade
ensinada pela ciência de que tudo o que quer pode ter, e por Hollywood a crer
que tudo o que vê é verdade, será enfeitiçada e mistificada pelas maravilhas do
falso profeta. Suas apresentações mágicas atiçarão, e ao mesmo tempo
entorpecerão, a ânsia em suas almas por verdadeiras visões celestes.” (pp.
182–183)
Nas palavras de Martin Lings (The Eleventh Hour,
pp. 97–98), “Como no cristianismo, acredita-se no islã que [o Anticristo]
causará corrupção, e que por seu poder de operar prodígios ganhará muitos para
o seu lado.”
Segundo Creme, “Maitreya” vem surgindo gradualmente
para a vista pública “a fim de não infringir o livre-arbítrio da humanidade”.
Mas, segundo Engleman (p. 254),
“Diferentemente do Anticristo, que terá de enganar a humanidade e usar toda a
tecnologia moderna disponível para avançar sua causa, a Segunda Vinda de Cristo
causará um choque espiritual imediato em todo o mundo. ‘Não será necessário nem
possível que pessoas comuniquem a notícia da vinda do Filho de Deus’, escreveu
São Inácio Brianchaninov. ‘Ele aparecerá subitamente… a todos os homens e a
toda a terra ao mesmo tempo.’”
Não entrarei em detalhes na “filosofia esotérica”
de Creme, já que é basicamente a da Sociedade Teosófica. Citarei, porém, três
passagens. A primeira é atribuída ao mestre Djwhal Khul, conforme canalizado
por Alice Bailey: “Toda atividade que impulsiona o ser humano rumo a alguma
forma de desenvolvimento — físico, emocional, intuitivo, social — se está
adiante de seu estado presente, é essencialmente espiritual por natureza.” Mas
“adiante” rumo a quê? O bandido que malha para ser um bandido mais forte, o
ladrão que aguça seus sentidos e destreza manual para ser um ladrão melhor, o
espião que desenvolve sua intuição para ser um espião melhor — são essas
atividades espirituais? (Segundo o modo como minha própria intuição se
desenvolveu, ouço no nome “Djwhal Khul” as palavras árabes Dajjāl,
“Anticristo”, e qul, “recita”.)
A segunda passagem tenta definir a natureza de
Deus: “O esoterismo postula que Deus é a soma total de todas as leis, e todas
as energias governadas por essas leis, que compõem tudo no universo manifestado
e não manifestado — tudo o que vemos e não vemos.” Contudo, isso não é
esoterismo, e sim cientificismo, o familiar culto supersticioso das leis naturais
e energias invisíveis que sempre aparece quando a teologia é influenciada pela
ciência, ou quando a ciência popularizada é transformada em religião. O
verdadeiro esoterismo, por outro lado, conhece Deus como Essência Absoluta,
Perfeita e Infinita que é igualmente Pessoa, uma Realidade que em Si mesma não
pode ser apreendida ou abarcada em termos de qualquer forma concebível. Deus é
inconcebível não porque careça de pessoalidade, mas porque, em vez de ser esta
ou aquela pessoa, Ele é a própria Pessoalidade — não como uma categoria
abstrata, porém como uma Essência única. Para o “esoterismo” vulgar e confuso
de Benjamin Creme, por sua vez, Deus não passa de um amontoado de tudo, um
conglomerado infinito de todo isto e todo aquilo.
A terceira passagem é de interesse mais imediato:
“Segundo a Sabedoria Sem Idade, o antiCristo não é um indivíduo que vive em
certo ponto do tempo, mas uma energia liberada antes do advento do Cristo. Ela
vem preparar o caminho para as forças construtivas do Cristo destruindo os velhos
modos cristalizados que bloqueiam o crescimento da sociedade. Embora o
antiCristo seja uma energia, ele se manifesta por meio de indivíduos e assim
tem feito em diferentes momentos da história, mais notavelmente por meio do
imperador Nero na época romana e, mais recentemente, por meio de Hitler e
alguns de seus colaboradores mais próximos. Com a derrota das potências do Eixo
durante a Segunda Guerra Mundial, a obra da energia do antiCristo ficou
concluída para esta era e não se manifestará novamente por mais de 3.000 anos.”
Então, se Benjamin Creme deve ser acreditado — como
claramente quer ser, e com razão —, o “Mestre Maitreya” não pode ser o
Anticristo! Mas Hitler, preparar o caminho para o Cristo? Hitler como João
Batista, como Elias? Não me parece. Nas palavras do arcebispo ortodoxo Averky
de Jordanville, tal como relatado em Ultimate Things,
“A tarefa fundamental dos servos do vindouro Anticristo é destruir o velho
mundo com todos os seus antigos conceitos e ‘preconceitos’ para edificar em seu
lugar um novo mundo adequado para receber seu ‘novo dono’ que se aproxima, o
qual tomará o lugar de Cristo para as pessoas e lhes dará na terra aquilo que
Cristo não lhes deu.”
Jamais devemos esquecer que o que parece ridículo à
superfície pode ser profundamente sinistro nas profundezas; como o próprio
“Mestre Maitreya” nos diz, a complacência está entre os piores vícios. O Dr.
Rama Coomaraswamy, em seu ensaio “The Desacralization of Hinduism for Western
Consumption”, diz o seguinte a respeito de Alice Bailey, que sucedeu Annie
Besant à frente da Sociedade Teosófica, e seus planos para uma nova religião
mundial:
“É interessante olhar as instruções de Bailey sobre as religiões ortodoxas do
mundo. Inicialmente, os Novos Ageanos hão de pleitear liberdade religiosa em
seus comunicados públicos. Só mais tarde insistirão na nova religião mundial
obrigatória com que seus livros conclamam, uma religião rompendo completamente
com o conceito de Jesus Cristo e de Deus Pai. Os que não a seguirem serão
eliminados por meio de violência — a que ela chama ‘uma ação de limpeza’.
Estamos claramente a caminho do ponto Ômega e do reinado do anticristo.”
Motivo do arauto: a vontade e o Intelecto
Na maioria das tradições escatológicas, o Messias
ou Avatara vindouro é precedido por um arauto, como Jesus por João Batista. Na
escatologia judaica, o Messias deve ser anunciado por Elias, um dos dois
profetas do Antigo Testamento que nunca sofreram a morte, razão pela qual os
contemporâneos de Jesus se perguntavam se João Batista não seria Elias de
volta. A segunda vinda de Jesus deve ser anunciada pelas “duas testemunhas” do
Apocalipse, identificadas com Elias e Enoque, o segundo dos dois profetas
imortais do Antigo Testamento. O advento do Buda Maitreya será anunciado pelo
discípulo de Shakyamuni, Kashyapa, que também permaneceu em alguma forma de
“ocultação” ou animação suspensa, e o de Saoshyant por Keresaspa, que
igualmente permanecerá imortal no plano de manifestação sutil até chegar sua
hora. A descida do Profeta Jesus na escatologia islâmica será anunciada pelo
Mahdi, que sobreviveu através das eras em animação suspensa ou “ocultação”,
assim como o próprio Mahdi, na versão xiita, é anunciado pela “voz do oriente
após o nascer do sol”. E, embora o Avatara Kalki não seja anunciado por uma figura
específica, ele é “acolhido” por Vishnuyasa, o brâmane, em cuja casa nasce,
assim como Maitreya nasce na mesma casa que o rei Dhutta-Gamani, seu irmão, ou
durante o reinado do rei Shanka. (A ressurreição do grande mestre tibetano
Tsong Khapa, cujo nome certamente soa como “Kashyapa” e “Keresaspa”, é um
motivo semelhante, embora Tsong Khapa não seja um arauto.)
Assim, o Salvador escatológico quase sempre tem um
parceiro, que geralmente chega antes dele para anunciar sua vinda. O anunciador
permaneceu em animação suspensa ao longo das longas eras, enquanto o Salvador,
embora de certo modo represente o reaparecimento de um Salvador anterior,
também traz o sabor de um advento inteiramente novo, uma descida da Eternidade
ao tempo, uma re-manifestação da Verdade salvífica, fresca dos mundos celestes.
(No relato zoroastriano é Yima, o primeiro profeta, quem permanece em animação
suspensa, para voltar no advento de Saoshyant.)
A relação entre o Salvador e seu arauto é também a
de uma manifestação parcial e uma completa da mesma realidade. João Batista foi
um profeta militante, Jesus um sacerdote e rei. O mesmo é verdadeiro de Elias
vis-à-vis o Messias, ou do Messias filho de José derrotado vs. o Messias filho
de Davi triunfante. No islã, o Mahdi é o arauto do profeta Jesus, pois vem
antes dele. Contudo, Jesus rezará atrás de al-Mahdi, que atuará como Imame (no
sentido de condutor da oração), embora isso talvez deva ser entendido como um
ato de cortesia suprema, já que al-Mahdi inicialmente buscará ceder seu lugar a
Jesus. E segundo o relato de al-Jili, Jesus é o militante, pois abate o
Anticristo, enquanto o Mahdi que desponta após a batalha personifica o
equilíbrio restaurado. O Buda Maitreya, que é um brâmane, em alguns relatos é
anunciado por seu irmão e primeiro discípulo, o rei Dhutta-Gamani, e não por
Kashyapa, assim como o arauto e primeiro discípulo de Jesus foi seu primo, João
Batista; segundo outras versões, Maitreya está destinado a aparecer e atuar com
o monarca universal Shanka. Na tradição escatológica hindu, o militante Avatara
Kalki nasce na casa do brâmane Vishnuyasa.
Em todos os casos, então, temos uma parceria
escatológica entre uma figura militante e uma “espiritual” ou pneumática. A
polarização do Messias judeu em versões sacerdotal e régia (para tomar apenas
um exemplo) é, portanto, um motivo universal. Isso pode ser explicado
historicamente como produto da tensão entre o repetido fracasso das esperanças
messiânicas em sua expressão política e a esperança eterna de renovação
espiritual; a derrota política sempre força os derrotados a perguntar como sua
intenção poderia ter sido mais pura e sua dedicação mais profunda, e tal
questionamento muitas vezes leva à ideia de que só depois que o povo se
purificar espiritualmente virá a salvação. É por isso que o messianismo
revolucionário é frequentemente pré-milenarista, e o messianismo espiritual (na
medida em que nasce da derrota revolucionária) pós-milenarista. Mas, como a
própria história é a expressão fluida no tempo de princípios metafísicos eternos,
as raízes da polarização entre figuras escatológicas militantes e pneumáticas
devem ser buscadas em planos mais altos do ser.
Em alguns casos, o militante é o arauto e o
pneumático o Salvador; em outros, é o inverso. O Cristo do primeiro advento
(anunciado por João), o Buda Maitreya (anunciado por Dhutta-Gamani) e o Mahdi
vis-à-vis Jesus (ao menos no relato de al-Jili) são espirituais anunciados ou
precedidos por militantes. Por outro lado, o Messias judeu (anunciado por
Elias), o Avatara Kalki do hinduísmo (pareado com Vishnuyasa) e o Verbo de Deus
no Apocalipse, o Cristo da Segunda Vinda (anunciado por Enoque e Elias) são
militantes anunciados ou hospedados por espirituais. Essa caracterização está
longe de ser perfeita, obviamente, já que o Elias que anuncia o Messias foi
certamente um profeta militante durante sua vida terrena, razão pela qual
muitos dos judeus reconheceram a mesma qualidade no militante Batista. E, nos
vários relatos muçulmanos, Jesus às vezes é o militante matador do Anticristo e
al-Mahdi o restaurador do equilíbrio após a batalha, enquanto às vezes é ele
quem, depois que o próprio Mahdi é vencido pelo Anticristo, o vence por sua vez
e assim restaura a ordem. Mas a polarização entre militância e transcendência,
por mais que se resolva numa tradição ou relato particular, permanece
nitidamente em relevo.
A meu ver, o significado desse par é o seguinte: As
figuras militantes representam a vontade, as espirituais o Intelecto. Vontade
afirmada, vontade derrotada e Intelecto desvelado são tese, antítese e síntese;
a vontade, ao menos no nível humano, deve tanto fazer sua melhor obra quanto
admitir sua impotência última antes que o Intelecto aurore. No início do
Caminho espiritual, o viajante quer seguir a Deus, assume plena
responsabilidade pessoal. Então o nafs dominante se aglomera, mostrando
à vontade individual sua impotência última; por fim Deus (se Ele assim o
quiser) toma o campo e abate o nafs. Moisés mata o capataz, foge ao
deserto e vê Deus na sarça ardente. Cristo ministra, é crucificado e
ressuscita. Maomé recebe sua missão, é exilado para Medina, retorna a Meca em
triunfo. O Messias filho de José é derrotado pelo Anticristo, que por sua vez é
vencido pelo Messias filho de Davi. O Décimo Segundo Imame aparece, é ocultado,
retorna no Último Dia.
Como no Caminho espiritual, assim no cenário
escatológico: sob uma perspectiva, o esforço individual de uma pessoa para
crescer no Espírito precede o pleno alvorecer desse Espírito; sob outra, é a
dádiva livre inicial desse Espírito que só ele torna possível tal esforço. Que
Moisés mate o capataz egípcio e fuja para o deserto, após o que Deus lhe fala,
indica em termos esotéricos que a luta da vontade humana contra o eu inferior —
ainda que tal vontade não possa triunfar em seus próprios termos (Moisés não ganhou
poder pessoal ao matar o capataz, mas tornou-se um fugitivo sem lar) — deve
ainda preceder o alvorecer do Intelecto Transcendente, ao qual finalmente
presta obediência. A mesma verdade é simbolizada no islã pela conquista do
Anticristo pelo Profeta Jesus (isto é, a superação da vontade do eu inferior
pela vontade obediente a Deus e por Ele capacitada), e a subsequente
restauração do equilíbrio pelo Mahdi (o alvorecer do Intelecto Divino depois
que a vontade, em vitória e derrota, é pacificada), e na tradição judaica pelo
Messias filho de José que vai à batalha com o Anticristo e é morto, para então
ser seguido pelo Messias filho de Davi, que derrota e mata o Anticristo. Na
tradição budista, o fato de o rei Shanka, da casta kshatriya ou
guerreira, renunciar ao trono para seguir o brâmane Maitreya reflete a mesma
doutrina. Nas palavras de Schuon (Stations of Wisdom, p. 157),
“O que separa o homem da Realidade Divina é a mais tênue das barreiras. Deus
está infinitamente próximo do homem, mas o homem está infinitamente longe de
Deus. Essa barreira, para o homem, é uma montanha… que ele deve remover com as
próprias mãos. Ele cava a terra, mas em vão, a montanha permanece; o homem,
porém, continua cavando em Nome de Deus. E a montanha desaparece. Ela nunca esteve
lá.”
Noutro sentido, porém, a Verdade Divina, que o
Intelecto tanto vê quanto é, não pode ser realizada a menos que a vontade lhe
preste obediência. Assim, enquanto o Intelecto permanece num plano mais alto do
que a vontade, a plena ativação da vontade a serviço do Intelecto representa a
encarnação completa, ou realização, daquilo que no plano do Intelecto é apenas
virtual em relação ao homem, embora completo e plenamente realizado em relação
a Deus. Ademais, nada há de mais militante e rigoroso em seus efeitos do que o
alvorecer da Verdade objetiva. A objetividade absoluta, a espada do Intelecto
discriminante, é juízo perfeito e perdão perfeito, sem a mínima distinção entre
ambos. Deus nada testemunha senão a Si mesmo — este é o Seu rigor — e conhece todas
as coisas como a Si mesmo — esta é a Sua misericórdia.
Quando o arauto imortal e ocultado é uma figura
militante, isso possivelmente representa a manutenção de uma tradição
espiritual apenas no nível legalista, pareada com uma suspensão do pleno poder
da obediência humana até que o conhecimento direto de Deus seja novamente
desvelado. Quando o arauto oculto é uma figura pneumática, isso pode simbolizar
uma guarda do saber esotérico por escolas marginalizadas ou clandestinas, ou
tal saber preservado, sem o saber de seus guardiões, nas formas da religião
exotérica, até que tais potenciais espirituais interiores possam novamente
manifestar-se exteriormente na plenitude da vida humana.
O “breve milênio”
Os autores da escola tradicionalista que tratam
mais diretamente de escatologia — René Guénon, Martin Lings e Leo Schaya — não
antecipam um milênio terrestre dos derradeiros dias. Não são milenaristas. Eles
veem, porém, uma “restauração” breve antes do fim do ciclo. Em Perspectives
on Initiation (p. 254), René Guénon diz o seguinte sobre o advento do
Mahdi:
“Além disso, essa [retificação messiânica total] terá de ser preparada, mesmo
visivelmente, antes do fim do ciclo presente; mas isso só pode ser feito por
alguém que, unindo em si os poderes do Céu e da Terra, do Oriente e do
Ocidente, manifestará exteriormente, tanto no domínio do conhecimento quanto no
da ação, o duplo poder sacerdotal e real que foi preservado através das eras na
integridade de seu princípio único pelos guardiães ocultos da tradição primordial.”
E Martin
Lings, em The Eleventh Hour, diz o seguinte sobre a “restauração” ou
“breve milênio”:
“Após ‘uma devastação iminente em escala mundial, não total, mas ainda assim de
proporções cataclísmicas, e não final, porque é ‘antes do fim’, embora haja
motivos para a convicção de que ‘o fim’ em si não possa estar distante, há
razão para antecipar uma ‘correção antes do fechamento do ciclo’, baseada em
parte na profecia em Mt 24 referente à ‘grande tribulação como nunca houve
desde o princípio do mundo’, especialmente à luz do versículo 22: ‘E se aqueles
dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria; mas “Por causa dos eleitos, aqueles dias
serão abreviados.”
Poder-se-ia
pensar que o relato muçulmano xiita da vinda, das batalhas, do triunfo final e
do governo justo do Mahdi seria puramente milenarista, já que o xiismo — talvez
mais do que qualquer outra tradição, exceto a judaica — concebe o evento
escatológico como uma revolução contra a tirania (embora tal revolução também
esteja claramente subentendida no Apocalipse cristão). E, de muitos modos, a
atribuição de milenarismo ao islã xiita é justificada.
Segundo
um relato, por exemplo, o Mahdi — ou seu sucessor — governará por 309 anos.
Contudo, 309 é também o número de anos que os lendários Sete Dormentes de Éfeso
permaneceram em sua caverna em estado de animação suspensa, o que me leva a
suspeitar que esse período de tempo possa ser uma referência velada a um estado
póstumo. Outro relato dá à sua regência a duração de 19 anos; uma fonte sunita diz
5, 7 ou 9 anos. Ele morrerá quarenta dias antes da ressurreição dos mortos e do
Dia do Juízo. (Uma tradição correlata do “breve milênio” afirma que, em sua
segunda vinda, Jesus reinará por quarenta anos após matar o Anticristo, e então
morrerá.)
Também é possível interpretar o “milênio” xiita — assim
como o cristão (Ap 20:1–10) — como um “reino” não deste mundo. Jafar al-Sadiq é
citado dizendo, segundo uma fonte, que o Mahdi governará por sete anos; e
segundo outra, que o governo de al-Mahdi durará enquanto o céu e a terra
existirem, e todos os seus súditos estarão no céu ou no inferno — uma
referência velada, embora clara, a um estado póstumo. A mesma fonte o cita
dizendo que, após o governo do Mahdi, virá o dia da ressurreição. Mas se o seu
governo é póstumo, então essa “ressurreição” deve referir-se ao mahapralaya, a reabsorção até
mesmo dos mais altos paraísos formais em seu Princípio Absoluto.
O conceito de um breve milênio talvez também possa ser
discernido no livro de Joel:
“E os celeiros se encherão de trigo, e os lagares
transbordarão de vinho e de azeite. E restituir-vos-ei os anos que foram
consumidos pelo gafanhoto... (2:24–25)
E acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; e vossos
filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão sonhos, vossos
jovens terão visões:
E também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu
Espírito.
E mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça.
O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e
terrível dia do Senhor.
E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo...”
(2:28–32)
Mas qual é, se existe, a relação orgânica entre a ideia de
um florescimento milenar breve imediatamente antes do fim do ciclo — lembrando
o breve e terminal vigor que um moribundo às vezes demonstra — e um “reino”
póstumo que não terá fim?
A resposta será evidente a qualquer um que já tenha experimentado a atmosfera
de libertação jubilosa e de possibilidades infinitas que acompanha um
renascimento cultural após um longo período de repressão imaginativa, ou os
sinais ascendentes e os primeiros tiros de uma verdadeira revolução social
justa — por mais destrutivos que esses movimentos venham a se tornar, décadas
ou séculos adiante.
Tal experiência é precisamente o rompimento da Eternidade dentro do tempo
transitório. Os dias da Távola Redonda são sempre breves, mas o Trono de Artur,
em Avalon, permanece.
Neste mundo, um momento passa num instante; no outro mundo — que está dentro
deste em Essência, assim como à frente dele no tempo — esse momento não tem
fim.
O Fim e o Princípio Estão nas Mãos de Deus
As pessoas do movimento Nova Era, assim como muitos que são
simplesmente secularistas, frequentemente acreditam que qualquer um que
sustente a doutrina de que este mundo deve acabar na verdade deseja que ele
acabe. Pensam na escatologia tradicional como uma profecia negativa
autorrealizável que impede a humanidade de enfrentar e resolver seus problemas
globais, e veem os crentes religiosos como maníacos rancorosos que querem que
tudo seja destruído apenas para provarem que estavam certos. Em alguns casos
isso pode ser verdade.
Mas, ainda assim, tudo o que tem um começo no tempo também tem um fim. É sinal
de doença mental admitir isso? Toda pessoa que reconhece, por exemplo, que
todos os que nascem devem morrer é necessariamente deprimida ou suicida?
No capítulo dez de Ultimate
Things,
“Por que o diabo odeia uma multidão”, Dennis Engleman refuta o problema da
superpopulação como “propaganda de uma terra inchada” e sustenta que
“eufemismos como ‘controle de natalidade’ e ‘serviços reprodutivos’ significam,
principalmente, aborto”. Ele repete a tradição — comum, embora não dogmática —
de que “somente quando houver crentes suficientes para preencher os lugares no
Céu deixados pelos anjos caídos é que Cristo retornará”.
Embora seu livro seja excelente — eu o recomendaria a
qualquer pessoa interessada na tradição dos últimos dias — não posso concordar
inteiramente com ele aqui. O problema da superpopulação é muito real. E embora
a mesma mentalidade geral pareça estar por trás tanto do controle de natalidade
quanto do aborto, de outro modo eles são diametralmente opostos: quanto menos
disponível e eficaz for o controle de natalidade, mais gravidezes indesejadas
haverá, e quanto mais gravidezes indesejadas, mais abortos.
O aborto é claramente um grande mal, que Engleman
corretamente compara ao sacrifício humano. Embora, em minha opinião, ele possa
ser justificado em alguns casos — como estupro incestuoso, deformação maciça do
feto ou certeza virtual da morte da mãe — ainda assim me causa desconforto.
Mesmo Ken Kesey, dos Merry Pranksters, chegou a dizer, em um
dos Whole Earth Catalogues por volta de 1970, que
o maior ponto falho de todo o programa liberal/contracultural era o aborto.
Quanto à lenda de que Cristo retornará quando o número de
crentes igualar o dos anjos caídos, isso me parece representar uma verdade
espiritual sutil que foi rebaixada ao nível literal. Poderia, por exemplo, ser
usada para justificar a poligamia cristã, já que isso aumentaria a taxa de
natalidade entre os cristãos. E se Cristo só retornará quando nascerem cristãos
suficientes, por que então São Paulo ensinou que “é melhor não casar”?
Segundo a escatologia cristã ortodoxa e a muçulmana, o
Anticristo cooptará a prática das boas obras. Isso significa que realizar boas
obras sob o regime do Anticristo é, em última análise, fazer o mal?
O Anticristo, ou seu sistema, tentará estabelecer o
seguinte dilema — que, em muitos aspectos, já se manifesta: “Quem faz o bem
necessariamente me serve, porque todo bem é minha propriedade; portanto, quem
me resiste não tem escolha senão fazer ou permitir o mal.”
Evitar a superpopulação é um bem evidente. Mas se a solução macro para o
problema populacional resultar em graves abusos dos direitos humanos, como
aparentemente ocorreu na China, então esse bem torna-se tributário do mal.
Proteger o meio ambiente é um bem evidente. A humanidade, em Gênesis, é ordenada
por Deus a “replencher a terra”, e, segundo Ap 11:18, Deus, nos últimos dias,
recompensará Seus “servos os profetas”, mas “destruirá os que destroem a
terra”.
Contudo, se a proteção ambiental for conduzida segundo um
paradigma opressivo, materialista ou cientificista que negue a natureza
teomórfica do homem, então esse bem também servirá a um fim mau.
Nem todo modo de fazer o bem, portanto, serve ao Bem. Se um bom fim não
justifica meios maus, tampouco bons meios justificam um fim que é, em última instância,
mau.
A morte é certamente um mal, mas a perda da alma imortal é
um destino pior do que a morte.
Qualquer grande esforço coletivo — como a proteção
do meio ambiente ou a prevenção da superpopulação — inevitavelmente gerará
aproveitadores e atrairá aqueles que buscam poder político e vantagem
econômica. E o parasita final de todos os bons esforços deste ciclo será o
sistema do Anticristo.
Mas sempre será possível realizar o bem material de
modo que ele sirva ao bem espiritual. Todo esforço voltado à melhoria das
condições materiais, se for baseado na verdadeira compaixão e numa apreciação
espiritual da forma humana e do mundo natural como sinais da presença de Deus e
manifestações simbólicas de Sua Natureza, é uma forma de adoração.
Não precisamos — e não devemos — permitir que o
sistema do Anticristo co-opte todo o bem, a ponto de, em reação a ele,
tornarmo-nos exemplos de crueldade ou indiferença que esse mesmo sistema possa
usar para provar sua própria necessidade e legitimidade. Todo bem concreto que
possa ser feito com base diferente da do Anticristo minará seu poder e
retardará sua vinda, dando a mais almas tempo para rejeitar o erro, discernir e
escolher a Verdade.
A questão perene é: em que momento tais esforços
deixam de ser expressões diretas do bem e passam a se tornar tentativas de
tomar o poder em nome do bem, com o resultado de que o bem é destronado e o
poder é idolatrado? E até que ponto um grupo ou indivíduo, em determinado lugar
e tempo, pode exercer poder em nome do bem sem começar a suprimir o próprio bem
em nome do poder? Somente um discernimento espiritual profundo, baseado numa
submissão radical à vontade de Deus, pode responder a essa questão.
Talvez a maior área de conflito e polarização entre
as escatologias seculares e as tradicionais seja o ambientalismo. Muitos
cristãos tradicionais veem um “socialismo verde” neopagão que adora o cosmos
material em lugar do Deus transcendente e nega a natureza teomórfica do homem
como o preço para salvar o meio ambiente — e não estão dispostos a pagá-lo.
E muitos ambientalistas, especialmente os de
tendências neopagãs, acreditam que a própria ideia de transcendência, tal como
sustentada pelas religiões tradicionais, está na raiz da destruição ambiental.
Esquecem-se de que são a ciência e a tecnologia — e não a religião — que
destroem o meio ambiente, e que as raízes do atual regime
científico-tecnológico estão no renascimento neopagão do saber clássico durante
o Renascimento, e não no transcendentalismo da Idade Média cristã.
É precisamente a crença de que este mundo é tudo o
que existe que inflama o desejo de “ter tudo agora” e nos obriga a devastar a
terra no processo de obtê-lo.
Entretanto, é possível trabalhar pela proteção do
meio ambiente, em pequena escala, sem recorrer a macro-soluções desumanizantes
e antiespirituais. Segundo Evágrio do Ponto:
“Quanto àqueles que estão longe de Deus... Deus
tornou possível que se aproximem do conhecimento d’Ele e de Seu amor por meio
das criaturas. Ele as produziu, por assim dizer, como as letras do alfabeto,
pelo Seu poder e sabedoria.”
Do mesmo modo ensina o Alcorão:
“Na vossa criação e em todas as bestas espalhadas
sobre a terra há sinais para os que têm fé verdadeira.
Na alternância da noite e do dia, e no sustento que Allah faz descer dos céus,
com o qual vivifica a terra depois de morta, e na distribuição dos ventos, há
sinais para os que são inteligentes.”
(Alcorão 45:4–6)
Com base em doutrinas como essas, é possível
realizar o serviço ambiental como um ato litúrgico ou contemplativo, sem
exaltar a sobrevivência material coletiva acima da salvação da alma humana.
Mas se a terra está condenada, muitos perguntam,
por que cuidar do meio ambiente? Isso equivale a dizer: “por que manter a
própria saúde, se de todo modo vai-se morrer? Por que continuar a cuidar de uma
mãe idosa se ela não tem muito tempo de vida?”
Se algo ou alguém necessita de cuidado, e temos
poder para oferecê-lo, então cuidamos. Assim como no caminho do karma-yoga
do Bhagavad-Gītā, realizamos a ação por ela mesma — isto é, por amor a
Deus — e dedicamos a Ele os frutos da ação.
No Apocalipse 19:17–18, no dia do combate
escatológico, “as aves que voam pelo meio do céu” são convidadas a
banquetearem-se “com a carne dos reis, dos capitães e dos poderosos... e com a
carne de todos os homens”.
E segundo 2 Pedro 3:10, “os céus passarão
com grande estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; a terra, e as obras
que nela há, serão descobertas [ou consumidas]”.
Mas Dennis Engleman (Ultimate Things, p.
258) repete a doutrina de que:
“O ‘fim deste mundo’ não produz aniquilação (exceto
do mal), mas sim restauração e renovação. ‘Pois este mundo passará por
transmutação, não por destruição absoluta’, escreveu o bem-aventurado
Agostinho, ‘e por isso o apóstolo diz: “A figura deste mundo passa” (1 Cor.
7:31). A figura, portanto, passa; não a natureza.’”
Segundo Santo Irineu, citado por São
André de Cesareia, “nem a essência nem o ser da criação perecerão”.
E conforme René Guénon em O Reino da
Quantidade (pp. 330–331, 336):
“O fim aqui considerado é inegavelmente de importância
consideravelmente maior que muitos outros, pois é o fim de todo um Manvantara,
e portanto da existência temporal do que pode com razão ser chamado uma
humanidade; mas isso, deve-se repetir, de modo algum implica o fim do mundo
terrestre em si, porque, pela ‘reintegração’ que ocorre no instante final, esse
fim se tornará imediatamente o começo de outro Manvantara... Pode-se
dizer com toda a verdade que ‘o fim de uma humanidade’ nunca é, nem pode ser,
senão o fim de uma ilusão.”
Não parece, portanto, doutrinariamente necessário
que toda a vida — ou mesmo toda a vida humana — seja destruída (ou preservada)
no fim deste ciclo. Do ponto de vista material, algumas espécies ou alguns
indivíduos humanos podem sobreviver, por meio dos quais a vida poderia recomeçar.
Do ponto de vista espiritual, tudo será destruído e
consumido, após o que o Criador renovará todas as coisas.
Mas para salvar nossas almas — o único motivo de
estarmos na terra — devemos adotar o ponto de vista espiritual e deixar que o
nível material (subconjunto e subordinado ao espiritual) cuide de si conforme o
desígnio divino.
Estar disposto a enfrentar o evento escatológico
como o fim deste ciclo de manifestação — pronto para permitir que a si mesmo e
a todos os seres vivos morram e renasçam ao toque do Todo-Poderoso — é a porta
para o Novo Céu e a Nova Terra.
Mas planejar a própria sobrevivência física além do
Apocalipse, ou imaginar como a raça poderia persistir em termos materiais —
mediante o armazenamento de material genético humano controlado por
computadores em cavernas subterrâneas secretas, ou outras fantasias
desumanizantes de alta tecnologia — é tornar-se servo do Anticristo.
Deus salvará, destruirá e recriará a vida como Lhe
aprouver; quem coloca sua esperança em algo além dessa Vontade reservou seu
lugar no Fogo.
Enfrentando o Apocalipse
“E vi um novo céu e uma nova terra, porque o
primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.
E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu da parte de
Deus, adornada como uma esposa para o seu esposo.
E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis o tabernáculo de Deus com os
homens, e Ele habitará com eles, e eles serão o Seu povo, e o próprio Deus
estará com eles e será o seu Deus.
E Deus enxugará toda lágrima dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem
pranto, nem clamor, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram.”
(Apocalipse 21:1–4)
Se
aderirmos a uma espiritualidade que seria invalidada pelo fim do mundo, então
essa espiritualidade não é verdadeira.
Mas o mesmo pode ser dito de uma espiritualidade que exija o fim do mundo para
se validar.
O
propósito da meditação sobre o fim das coisas é duplo. Primeiro, porque a
possibilidade do fim da existência humana no plano material é parte inescapável
da qualidade de nosso tempo; portanto, precisamos de modos doutrinalmente
ortodoxos e espiritualmente frutíferos de nos relacionar com ela. Segundo, o
fim das coisas está sempre presente, independentemente do período histórico em
que vivamos. Todas as coisas são impermanentes; a morte chega a todos. O fim
das coisas é um lembrete constante de que devemos colocar as mãos no arado e
realizar nossa salvação enquanto ainda podemos, pois o tempo é sempre curto. É
também uma metáfora perene para a verdadeira morte — a morte do ego — e para a
verdadeira imortalidade — a eternidade da Rocha dos Séculos, impenetrável às
ondas do tempo, aos ciclos de criação e dissolução que se quebram contra ela.
Segundo os tradicionalistas, os últimos dias não estão
isentos de suas próprias bênçãos e oportunidades espirituais, que não poderiam
existir em nenhum outro ponto do ciclo.
A primeira é a facilidade comparativa do desapego
espiritual, para aqueles inclinados nesse sentido. Nas palavras
de Martin Lings:
“O desapego é uma característica essencial do sábio, e essa
virtude, que em tempos melhores só podia ser adquirida através de grandes
esforços espirituais, pode tornar-se mais espontânea pela visão do próprio
mundo em ruínas caóticas.”
A segunda bênção é a do conhecimento enciclopédico.
Como afirma Schuon:
“Se as sociedades humanas se degeneram por um lado com o
passar do tempo, acumulam por outro experiências em virtude da velhice, por
mais misturadas a erros que estejam.”
O conhecimento das grandes tradições espirituais do mundo —
como o que tornou possível a redação deste livro — era muito mais difícil de
acessar há poucas décadas.
A terceira bênção, nesta extrema velhice do macrocosmo, é a
possibilidade
ampliada de serenidade e discernimento espiritual. Em The
Eleventh Hour,
Martin Lings escreve:
“Há... um aspecto da velhice normal, o mais positivo de
todos... em virtude do qual nossos tempos são únicos. Costuma-se dizer de
homens e mulheres espirituais, ao final de suas vidas, que têm ‘um pé já no
Paraíso’. Isso não nega que a morte seja uma ruptura súbita, uma quebra de
continuidade — e não pode deixar de sê-lo, pois precisa transformar a velhice
mortal em juventude imortal.
Contudo, a hagiografia ensina que os últimos dias das almas santificadas podem
ser notavelmente luminosos e transparentes. Tampouco é incomum que a iminência
da morte traga consigo graças especiais, como visões, em antegosto do que está
por vir. O amadurecimento da espiritualidade, que é o aspecto mais elevado da própria
velhice, é assim coroado com uma iluminação que pertence mais à juventude do
que à idade... No macrocosmo, a proximidade da nova Idade de Ouro não pode
deixar de se fazer sentir misteriosamente antes do fim do velho ciclo.” (p. 66)
A Unidade Transcendente das Religiões como
Prática Espiritual
A Unidade Transcendente
das Religiões
não é apenas uma doutrina; é também uma prática. É importante compreender isso,
pois, se nossa relação com ela permanecer limitada à doutrina, ela decairá ao
nível da abstração e perderá sua dimensão transcendente. Tornar-se-á mero
ecumenismo exotérico, ou religião comparada, ou uma busca puramente mental
pelos princípios metafísicos comuns a todas as tradições.
Frithjof Schuon e outros
tradicionalistas costumam explicar a Unidade Transcendente das Religiões por
meio do que chamo de “teia tradicionalista” —
símbolo também encontrado, por exemplo, em Plotino.
Quando jovem, Schuon encontrou em sua
cidade natal, Basileia (Suíça), um venerável marabuto negro que viera do
Senegal. Durante a conversa, o velho desenhou um círculo no chão com raios
conectando a circunferência ao centro.
Disse: “Deus
é o centro; todos os caminhos levam a Ele.”
Isso pode ter sido a origem da imagem da teia na mente de
Schuon. O símbolo completo, porém — tanto em Schuon quanto em Plotino — inclui
diversos círculos concêntricos que representam diferentes planos de
realidade, aquilo que em outro ponto deste livro chamei de Grande
Cadeia do Ser.
Os círculos indicam, como na Divina
Comédia,
a proximidade
ou distância relativa de um plano de Ser em relação ao
Princípio central, enquanto os raios indicam as quididades
incomparáveis — os “o-que-é” — que são precisamente elas mesmas
e nada mais, independentemente do nível de Ser em que apareçam. Assim como o
aroma de uma rosa é exatamente aquele aroma e nenhum outro, quer o sintamos
apenas como um leve sopro no ar, quer estejamos imersos em um lago de água de
rosas.
Em termos aristotélicos, os raios simbolizam a essência,
e os círculos concêntricos, a existência; os pontos de
intersecção entre ambos representam as coisas concretamente existentes — onde
essência (“o que é”) e existência (“o ser”) se unem. Uma pedra, por exemplo,
não pode ser pedra se lhe faltar a qualidade de “pedrosidade” ou a qualidade de
efetivamente existir.
Nas coisas existentes — pedras, galáxias, seres humanos,
espíritos, anjos — essência e existência estão unidas apenas relativamente,
pois é possível distinguir um raio ou um círculo de outro. Somente no Centro,
somente em Deus mesmo, essência e existência estão unidas de modo absoluto:
“Eu sou Aquele que Sou.”
No contexto da Unidade Transcendente das Religiões, cada
raio é uma tradição religiosa integral e revelada.
O fato de irradiar do Centro indica que foi revelada por Deus; o fato de todos
os raios se encontrarem apenas no Centro indica que a unidade das
religiões não é ecumênica (isto é, mundana), mas transcendente.
As religiões, portanto, não se unem por meio de sua
comparabilidade relativa, mas com base em sua incomparável
singularidade. O campo da religião comparada — o nível em que
dizemos “o Islã é parecido com o Cristianismo nisto, mas diferente naquilo; o
Hinduísmo é semelhante ao Budismo ou ao Cristianismo nestes aspectos, mas
distinto naqueles” — não é o da Unidade Transcendente das Religiões.
A teia tradicionalista pode também ser vista como um “Stonehenge
espiritual”: um círculo de portas separadas e discretas, cada
uma oferecendo uma visão única do mesmo Centro, onde, digamos, brilha uma
grande Luz.
Só é possível olhar por uma porta de cada vez.
Posso olhar de lado, da minha porta muçulmana, e ver minha esposa Jenny
ajoelhada à luz que entra por sua porta cristã; mas essa luz será sempre, para
mim, uma luz refletida.
Para ela, Jesus é o Cristo, o Filho unigênito de Deus.
Para mim, como muçulmano, Ele é um grande profeta, o Espírito e Verbo de Deus,
nascido de uma virgem e destinado a retornar no fim dos tempos para derrotar o
Anticristo; mas não é o Filho de Deus, pois, segundo o Alcorão, “Ele
[Alá] não gera nem é gerado.”
Então, discordamos sobre a natureza de Jesus?
Se passássemos nosso tempo olhando “de lado” nas religiões, teríamos de
discordar.
Jesus teria de ser ou um grande profeta ou o Filho de Deus — não poderia ser
ambos.
Mas a essência
da religião, que é o Caminho espiritual, não se move
lateralmente; ela se move do ponto em que estamos na
circunferência, rumo ao Centro, isto é, rumo ao Deus Único.
E esse Deus é tão grande, tão abrangente de todas as
concepções d’Ele, e ao mesmo tempo tão fundamentalmente independente de todas
elas, que cada
visão d’Ele, se realmente dirigida ao Centro por um raio
ininterrupto que d’Ele emana, produz uma visão única e incomparável da
Realidade divina, a qual, longe de ser relativa às outras, é abençoada
e confirmada pelo Absoluto, participando de Sua própria
natureza.
Essa é a doutrina de Schuon do “relativamente absoluto”.
Cada visão de Deus — seja de uma religião revelada, seja de
um indivíduo dentro dela, ou de um momento na vida desse indivíduo — é única
e incomparável, pois é uma visão de Deus, o Incomparável, o
Único.
Enquanto contemplo esse Deus, não tenho tempo nem perspectiva
para comparar minha doutrina com a de outro; enquanto comparo e contrasto
doutrinas, não contemplo Deus.
Deus, contudo, não é apenas incomparável — no
sentido de transcendente —, mas também comparável — no sentido de imanente.
Se Deus não estivesse absolutamente além de toda concepção, não seria Único;
seria comparável, relativo, definível por algo outro ou inferior a Si mesmo, e,
portanto, não seria Deus. Mas, se Deus não fosse também, de algum modo,
comparável às coisas criadas, não poderíamos formar nenhuma concepção d’Ele, e,
assim, não teríamos meio algum de conhecê-Lo.
E, visto que as coisas criadas são, em essência,
nada além de concepções d’Ele, manifestações simbólicas de Seus Atributos,
Energias ou Nomes, segue-se que, se Deus fosse apenas
incomparável, sem possuir também um aspecto de comparabilidade, não haveria
universo.
Uma vez compreendida a Unicidade de Deus, compreendemos também que todas
as coisas criadas são únicas em si mesmas, precisamente porque refletem
essa Unicidade.
Além disso, se temos o poder de ver as coisas como
realmente são em si, temos também o poder secundário de compará-las não com
sua Fonte comum, mas entre si, discernindo em que são semelhantes e em que
diferem. É aqui, porém, que devemos atender ao aviso de Shakespeare: “As
comparações são odiosas.”
O poder de comparar as coisas existentes entre si,
em vez de com sua Fonte transcendente, é a origem da abstração.
E o perigo da abstração — por mais útil e até necessária que seja à nossa vida
e ao modo de funcionamento da mente humana — é que possamos começar a pensar
que a categoria abstrata é a origem dos particulares únicos que a
compõem, quando, na verdade, é o inverso.
A nação, em certo sentido, produz o cidadão;
mas é muito mais verdadeiro — e em conformidade com uma ordem superior de
realidade — dizer que o cidadão (ou melhor, o ser humano, muito mais que sua
mera cidadania) é quem produz a nação.
À medida que nos afastamos do centro da teia, a tendência
à abstração aumenta.
As essências, simbolizadas pelos raios, permanecem absolutamente únicas; mas
essa verdade torna-se cada vez mais obscurecida à medida que descemos pelos
círculos concêntricos em direção aos níveis inferiores do ser.
Os níveis superiores revelam a unicidade das essências; os inferiores a
obscurecem.
Consequentemente, no plano material ou
sócio-histórico, a abstração começa a confundir indivíduos, culturas e
religiões.
Uma religião, nesse nível, passa a ser definida sobretudo por como se
assemelha ou difere das demais.
Uma cultura torna-se um conjunto de parâmetros quantitativos — uma
população, uma massa de recursos, um sistema de leis e instituições, um produto
nacional bruto.
Um indivíduo torna-se um mônada estatístico, mero número nas tábuas
atuariais de uma companhia de seguros — um código.
Nos termos de Guénon, o movimento em direção
ao Centro é movimento rumo à Essência (ou qualidade); o movimento
em direção à periferia é movimento rumo à Substância (ou
quantidade).
(“Substância”, aqui, oposta à “Essência”, e não aos
“acidentes”; pois o termo filosófico ousia — Substância, em
oposição a seus acidentes — começa ele próprio a assumir o significado de
“Essência”. Já em Guénon, “Substância” é usada num sentido próximo à materia
aristotélico-tomista, em oposição à forma, que é quase sinônima de
“Essência”).
As Ideias platônicas ou Nomes de Deus
são muitas vezes tidos como categorias abstratas, em parte porque, no
plano da linguagem, as imagens mais particulares são necessariamente as mais
sensuais.
A linguagem ancora nossa percepção do particular ao nível sensorial; as
palavras de que precisamos para descrever realidades superiores ao sensível
tornam-se cada vez mais abstratas à medida que ascendemos na Grande Cadeia
do Ser.
Contudo, isso não é verdadeiro das próprias realidades.
Uma Ideia platônica não é uma categoria
abstrata, mas um nível mais elevado de particularidade.
Muitos homens podem ser a origem da categoria abstrata “homem”, mas a Ideia
concreta “Homem” é a origem e o criador de muitos homens.
Uma Ideia platônica não é o denominador comum
abstrato de muitos particulares, mas o “denominador superior comum” — o
concreto, abrangente — dos indivíduos que a compõem, os quais, em relação a
ela, são abstrações relativas.
A Ideia platônica “Homem” não contém apenas o que é
comum a todos os seres humanos — o que, porque há dois sexos, excluiria os
órgãos genitais, e, porque há amputados e cegos, excluiria também braços,
pernas e olhos —, mas tudo o que “Homem”, em todas as suas variações,
poderia manifestar, e tudo isso em uma única forma.
Por isso, o homem original no Timeu
de Platão é um andrógino, e também uma esfera: a forma esférica
representa, nesse caso, a realização simultânea e sintética de todas as
possibilidades humanas.
E porque as Ideias não são pálidas abstrações, mas ordens
superiores de particularidade, realidades mais concretas do que a própria
matéria, os filósofos místicos persas — como Suhrawardi —, seguindo seus
irmãos judeus, cristãos e zoroastrianos, chegaram à visão das Ideias
platônicas como seres vastos, poderosos e conscientes: em outras palavras, anjos.
De acordo com a angelologia judaico-cristã,
por exemplo, o arcanjo Miguel não é um símbolo abstrato da guerra espiritual;
ele é um ser pessoal e consciente, de vastíssima sabedoria e poder, o
comandante dessa guerra — não por aquilo que é, mas por quem é.
Mesmo assim, ele permanece a própria essência e
Ideia da guerra espiritual, “encarnada” no plano arcanjólico.
Não há, em última análise, contradição entre as
ordens pessoal e arquetípica da realidade, já que ambas são
tentativas de expressar a qualidade das essências, e estas são
incomparáveis — incapazes de serem plenamente definidas em termos outros que
não elas mesmas.
(Eu disse acima que, quanto mais concretas são as
realidades acima do sensível, mais abstratas precisam se tornar as palavras que
as descrevem. A exceção é quando as palavras são usadas não como descrições,
mas como nomes.
“Guerra espiritual” é um conceito abstrato; “São Miguel” é uma pessoa concreta.
Consequentemente, as palavras mais concretas e carregadas de realidade
existentes são os Nomes de Deus, usados nas diversas tradições para
invocar — ou seja, reconhecer — Sua presença.
Seus Nomes não são, primordialmente, nossas descrições d’Ele, mas Seus
próprios atos de auto-manifestação a nós.)
A abstração, contudo, também tem uma função
ascendente, pela qual pode servir à visão da Unidade Transcendente das
Religiões.
A religião comparada, quando conduzida de forma profunda e rigorosa,
revela duas coisas:
1. Que as doutrinas das diferentes religiões aproximam-se à medida
que nos acercamos dos centros místicos dessas religiões;
2. Que, mesmo assim, nunca se alcança unanimidade perfeita no plano
doutrinal.
O sufi Ibn al-‘Arabi e o sábio cristão
Mestre Eckhart estão muito mais próximos um do outro do que, por exemplo,
os concílios eclesiásticos do Cristianismo e os ulemas do Islã;
contudo, Eckhart permanece plenamente cristão e Ibn al-‘Arabi
essencialmente muçulmano.
A religião
comparada serve à visão da Unidade Transcendente das Religiões não ao
propor um universalismo horizontal, em que as doutrinas são misturadas
até perderem a forma e se dissolverem no indiferenciado, mas ao revelar — por
contraste — a unidade vertical, isto é, o ponto de origem comum que
sustenta todas as revelações autênticas.
Essa unidade não é o resultado de uma síntese feita
pelo homem, mas a constatação de uma hierarquia ontológica: à medida que
o olhar do espírito sobe do plano das formas externas (ritos, dogmas, línguas,
teologias) ao plano do Espírito puro, as diferenças se tornam cada vez menos
divisórias, até que, no cume, elas desaparecem — não porque se anulem, mas
porque são transfiguradas em sua fonte única.
Nesse sentido, o conhecimento comparativo — quando
iluminado pela contemplação — não destrói as formas; ele as purifica. Ele
reconhece que cada tradição é uma janela para o Absoluto, e que olhar por uma
não implica quebrar as outras.
A Unidade Transcendente não é, portanto, uma
fusão, mas uma coincidência.
Cada religião autêntica mantém a sua própria forma, sua linguagem sagrada e seu
eixo revelado; mas todas se encontram no ponto em que o humano toca o Divino,
onde os nomes distintos — Brahman, Allah, Deus, Tao — são modos de um mesmo
Silêncio.
É nesse ponto que a prática da Unidade
Transcendente se distingue do mero sincretismo. O sincretismo tenta juntar
fragmentos dispersos para criar uma totalidade artificial; a visão
transcendente, ao contrário, vê a totalidade já presente em cada fragmento,
pois o Todo está implicado em cada símbolo verdadeiro.
Por isso, o sábio tradicionalista não é um
colecionador de doutrinas, mas um contemplativo: ele lê em cada forma o reflexo
de uma mesma Luz, e, ao aprofundar-se na sua própria via — não ao abandoná-la
—, reconhece o coração universal que pulsa nas demais.
A verdadeira comparação entre religiões, portanto,
é uma comparação vertical: não entre as doutrinas em si, mas entre seus
graus de participação no Real. O que se compara não é “o que dizem”, mas o
quanto do Inefável deixam transparecer.
E assim, a Unidade Transcendente das Religiões,
entendida não apenas como doutrina mas como via espiritual, culmina na
contemplação de um Centro eterno, no qual todos os nomes, formas e
tempos cessam — e onde permanece apenas o Uno, que é o mesmo para todos os
santos, profetas e sábios, seja qual for o idioma de sua revelação.
todo caráter, mas “triangulando”, por assim dizer,
um ponto comum de Origem — um ato que requer, geometricamente, ao menos dois
pontos-de-vista inteiramente únicos e separados. O fato de que as doutrinas de
todas as religiões se tornam cada vez mais semelhantes à medida que seus
respectivos centros místicos são abordados prova que essa Origem está realmente
ali e tem um caráter real. O fato de que as doutrinas das religiões, embora se
aproximem cada vez mais, nunca de fato se encontram deste lado do Absoluto,
prova que essa Origem é verdadeiramente transcendente e inteiramente além da
concepção. O Verbo, o Logos divino, é Um; não deixa, contudo, de ser o primeiro
princípio da criação e da divisão. Os Caminhos apenas se encontram no Silêncio
virginal e materno antes de quem, e de quem, o Verbo é proferido.
A Unidade Transcendente das Religiões não é
simplesmente uma doutrina, como eu disse; é também uma prática. E, se a prática
não é mantida viva, a doutrina degenera. Ouvi Martin Lings, numa palestra
gravada, debatendo-se diante de uma audiência de exoteristas religiosos,
incapaz de contrapor-se à afirmação de que “Segundo o princípio lógico de
não-contradição, Jesus Cristo não pode ao mesmo tempo ser e não ser a
encarnação única de Deus; se o Cristianismo, baseado nessa crença, é
verdadeiro, então outras religiões, que a negam, devem ser falsas.” Lings
tentou responder a essa objeção à Unidade Transcendente das Religiões
comparando Cristo aos avatares de Vishnu, como Krishna, que fizeram a mesma
reivindicação de Divindade que ele. Mas Cristo não é um entre os dez avatares
de Vishnu; ele é, da perspectiva cristã, o avatar único, o Filho unigênito de
Deus. Apenas o entendimento de que toda visão do Absoluto possui uma dimensão
de incomparabilidade, de que é abençoada pelo Absoluto com a própria
Absolutidade de Deus e é, assim, “relativamente Absoluta”, poderia ter
respondido à objeção do perguntador — talvez não para a sua satisfação, mas
ainda assim para a plena satisfação da Verdade. A doutrina da Unidade Transcendente
das Religiões convoca imensas forças sociais e psicológicas, que atuam no
sentido de forçar uma cunha entre o termo “transcendente” e o termo “unidade”.
Aqueles que inconscientemente começam a errar na direção da unidade, em
oposição à transcendência, serão impelidos para um universalismo horizontal;
esta é a análise de Schuon, em seu livro Perspectivas Espirituais e Fatos
Humanos, sobre o destino da Ordem de Ramakrishna sob Vivekananda e seus
sucessores. Ramakrishna, como um santo do mais alto grau, foi capaz de ver e
encarnar a unidade das religiões a partir de uma perspectiva transcendente, uma
que não destruiu, mas antes cumpriu seu hinduísmo quintessential. A Ordem de
Ramakrishna, por outro lado — ao menos segundo Schuon — começou a afastar-se do
Hinduísmo ortodoxo na direção de um universalismo raso, acusação que,
ironicamente, tem sido dirigida ao próprio Schuon em termos do Islã. No extremo
oposto, aqueles que, sem perceber, começam a errar na direção da
transcendência, em oposição à unidade, adentrarão o campo em que o inefável e
Transcendente Absoluto exige uma forma no mundo relativo por meio da qual possa
ser expresso, e serão consequentemente tentados a absolutizar os aspectos
essencialmente relativos de sua tradição religiosa, vendo sua absolutidade
através da lente distorcida de sua relatividade em vez de através da porta
aberta de sua transcendência; esta é a sombra idólatra e literalista da
doutrina de Schuon do “relativamente Absoluto”. Assim, a Unidade Transcendente
das Religiões, dada a tardança dos tempos bem como as simples limitações da
natureza humana, inevitavelmente gerará suas duas “feras guardiãs” que se
erguem de ambos os lados de seu umbral para desviar o curso de todos os que
realmente não a entendem: À esquerda, o Gog do universalismo; à direita, o
Magog do exclusivismo, cujas expressões sócio-históricas são o modernismo ou o
pós-modernismo, de um lado (o princípio por trás do globalismo político e
econômico), e o fundamentalismo reacionário, de outro (o princípio por trás das
reações “tribalistas” contra a hegemonia globalista).
Praticar a Unidade Transcendente das Religiões é
caminhar no fio da navalha que atravessa um dos mais formidáveis “pares de
opostos” metafísicos. É imensamente exigente, psicologicamente, filosoficamente
e contemplativamente, porque a doutrina da Unidade Transcendente em última
análise emana talvez do mais alto nível inteligível de princípio metafísico.
Segundo Schuon, Deus é ao mesmo tempo Absoluto e Infinito. A absolutidade de
Deus é a fonte de Sua transcendência e a origem da unicidade de cada forma
religiosa dada por Deus. A infinidade de Deus é a fonte de Sua imanência, a
origem da unidade subjacente de todas as religiões verdadeiras. Estes são o
Shiva e a Shakti de Sua autorrevelação no âmbito religioso. Aderir apenas à
absolutidade de Deus e rejeitar Sua infinidade é cair no autoritarismo
religioso; aderir à Sua infinidade e rejeitar Sua absolutidade é deslizar para
a promiscuidade religiosa.
Em termos concretos, a prática da Unidade
Transcendente das Religiões se reduz a seis tipos diferentes de trabalho árduo:
Primeiro, aceitar uma das religiões reveladas e permanecer fiel a ela, tanto em
termos de prática exterior quanto de verdade interior. Segundo, do ponto de
vista da religião herdada ou adotada, contemplar as visões da Verdade
fornecidas pelas outras religiões e intuir sua unidade intrínseca. Terceiro,
sempre que alguém se perceber identificando estritamente sua forma religiosa
com Deus, de modo a estar de fato adorando a forma em vez da Divindade, parar e
lembrar-se de Deus. Quarto, sempre que alguém se perceber olhando de lado para
outras religiões, orgulhosamente ou com ansiedade, perguntando-se se essas
formas são melhores ou piores do que a própria, parar e lembrar-se de Deus.
Quinto, sempre que a “mente-macaco” de alguém começar a costurar um ídolo de
retalhos feito de fragmentos de muitas tradições religiosas, parar e lembrar-se
de Deus. Sexto, sempre que alguém se perceber tomando orgulho espiritual em sua
compreensão de princípios metafísicos abstratos, olhando lá de cima — desta
falsa elevação — para as tradições reveladas como remansos de literalismo,
superstição provinciana e mera humanidade, parar e lembrar-se de Deus.
A lealdade a uma única religião, depois que já se
percebeu que outras religiões são dadas por Deus e eficazes, é como a lealdade
ao próprio cônjuge. Minha esposa é minha amada, minha única, não porque seja
melhor que todas as outras mulheres segundo este ou aquele conjunto de
critérios, mas porque é incomparável. E não preciso denegrir outras mulheres
para prová-lo: “comparações são odiosas”. Ela é o meu “melhor” não porque seja
melhor do que outras mulheres, mas porque, livremente escolhida, é o dom de
Deus somente para mim. Se outros homens amam suas esposas, isso deveria
levar-me a questionar se devo amar a minha? Se ela for insultada, eu a
defenderei, mas não insultarei as esposas de outros homens por algum sentimento
equivocado de que, assim fazendo, estou lhe prestando honra.
O mesmo se dá com a religião. A religião de uma
pessoa é a esposa do Espírito dessa pessoa, assim como o marido ou a esposa de
alguém é o cônjuge do corpo e da alma dessa pessoa. Onde há amor verdadeiro, a
comparação não pode entrar. Nas palavras do poeta bengali Vidyapati (de Em
Louvor de Krishna: Canções do Bengali, trad. por E. C. Dinock e D. Leverton),
falando como Radha, a amada de Krishna:
como a asa para o pássaro
como a asa para o pássaro
água para o peixe,
vida para o vivente — assim tu para mim.
Mas dize-me,
Madhava, amado,
quem és tu?
Quem és tu de verdade?
diz Vidyapati, eles são um ao outro.
A Unidade
Transcendente das Religiões vs. O Sistema do Anticristo
Segundo Apoc. 20:7–8,
Quando se completarem os mil anos [o milênio durante o qual o diabo está
acorrentado, identificado pelos teólogos ortodoxos como a era da Igreja],
Satanás será solto de sua prisão, e sairá para enganar as nações que estão nos
quatro cantos da terra, Gog e Magog, a fim de ajuntá-las para a batalha; o
número delas é como a areia do mar.
Segundo O Apocalipse de São João: Um Comentário Ortodoxo do Arcebispo
Averkios de Jordanville, o significado de Gog em hebraico é “uma
reunião” ou “aquele que reúne”, e o de Magog, “uma exaltação” ou “aquele
que exalta”. “Exaltação” sugere-me a ideia de transcendência em oposição à
unidade, e “reunião”, a ideia de unidade em oposição à transcendência. A
implicação, aqui, é que um dos enganos mais profundos do Anticristo, nos
últimos dias do ciclo, será colocar esses dois aspectos integrais do Absoluto
em oposição um ao outro na mente coletiva, e em escala global, nos “quatro
cantos da terra”.
Quanto à expressão econômica e política dessa
estéril polaridade satânica, a falsa coesão da tirania de esquerda, bem como o
capitalismo global atual, cairiam sob Gog, enquanto tanto o falso hierarquismo
da tirania de direita quanto o absolutismo violento dos vários movimentos
separatistas “tribais” opostos ao globalismo — tanto étnicos quanto religiosos
— se enquadrariam sob Magog. Em termos religiosos, aquelas teologias
liberais, historicistas, evolucionistas, quase materialistas e cripto-pagãs que
enfatizam a imanência de Deus em oposição à Sua transcendência fazem parte de Gog;
enquanto aquelas teologias reacionárias que exaltam a transcendência sobre a
imanência, veem o mundo material como um vale de lágrimas, denigrem o corpo
humano e encaram a destruição da natureza com indiferença, senão com aprovação
secreta — uma vez que o melhor que podemos esperar é terminar logo com tudo —
fazem parte de Magog.
O conflito entre ambos é precisamente a
falsificação satânica do verdadeiro conflito escatológico descrito em Ap
19:11–20, entre o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores e a Besta com seu falso
profeta. Aqueles que podem ser atraídos a lutar numa guerra falsificada entre
elementos que deveriam ser reconciliados — porque são essencialmente partes da
mesma realidade, vistas num espelho distorcido — perderão seu chamado a lutar
na verdadeira guerra entre forças que não devem, nem podem, ser reconciliadas:
as da Verdade e as da Mentira. (Nota: o globalismo, na medida em que
prepara o palco para o surgimento da “hierarquia invertida” de Guénon, contém
também a semente de Magog, enquanto o tribalismo, como herança comum de
todos os excluídos da elite global, guarda a semente de Gog; nos últimos
tempos, nenhum partido, classe ou setor consegue manter por muito tempo sua
estabilidade ideológica — a “taxa de contradição” aproxima-se da velocidade da
luz.)
Num mundo profundamente polarizado entre o Gog
do globalismo sincretista e o Magog do “tribalismo” exclusivista —
palavra que começa a designar o que antes se chamava “nacionalismo” ou
“patriotismo” ou “lealdade à própria religião” —, a Unidade Transcendente das
Religiões representa claramente um caminho do meio, ou uma terceira força, ao
menos no campo religioso. Ela se opõe igualmente ao universalismo das elites
globais e à violenta afirmação de si das “tribos” fundamentalistas oprimidas e
marginalizadas por essas elites. Talvez esta seja uma das razões pelas quais
grupos e indivíduos que aderem a essa doutrina têm sido submetidos a imensa
pressão psíquica, algo que observadores na periferia da Escola Tradicionalista,
como eu, não podem deixar de notar. É razoável supor que o Anticristo desejaria
nada mais do que subverter e desacreditar os Tradicionalistas, visto que a
Unidade Transcendente das Religiões é uma das poucas visões de mundo que
poderiam se interpor ao estéril e terminal conflito entre globalismo e
tribalismo, que é a nota central de seu “sistema” na arena social.
Se todas as alternativas possíveis à luta entre
globalismo e tribalismo desaparecerem da mente coletiva, então o Anticristo
terá vencido. Ele pode usar o globalismo econômico e político e o universalismo
de uma “espiritualidade de fusão mundial” para subverter e oprimir todas as
religiões e culturas religiosas integrais, forçando-as a estreitar seu foco e a
violar a plenitude de suas próprias tradições em reação contra isso. Pode
levá-las a excessos fanáticos e terroristas que as farão parecer bárbaras e
ultrapassadas aos olhos daqueles que vacilam entre uma identificação global ou
tribal — e ainda colocá-las umas contra as outras. Unir para oprimir; dividir
para conquistar.
À luz disso, podemos ver que o exclusivismo do
cristianismo tradicional — e, com certas reservas, também do judaísmo e do islã
— é ao mesmo tempo sua maior força e sua maior fraqueza. O exclusivismo dessas
religiões abraâmicas lhes permite fortificar-se conscientemente contra o
Sistema do Anticristo — o cristianismo por meio de seu “espírito de catacumba”,
sua capacidade, derivada em última instância do monaquismo, de construir
fortalezas espirituais contra o mundo; e o islã pelo fato de que o dar
al-Islam permanece o maior bloco da humanidade que, em parte, ainda se
organiza social e politicamente em torno de uma Revelação Divina — embora em
graus muito variados — como ocorria na Europa Medieval e no Império Bizantino.
Por outro lado, o próprio exclusivismo impediu que essas religiões, salvo raras
exceções, se unissem em causa comum contra o universalismo e o secularismo globalistas.
Permanecem vulneráveis às táticas de “dividir e conquistar” do sistema do
Anticristo — fase que pode muito bem ser o prelúdio, se acreditarmos nas
especulações escatológicas tradicionais como as apresentadas em Ultimate
Things, de Dennis E. Engleman, a uma fase posterior de “unir para oprimir”
— uma capitulação dos exclusivistas exaustos, ansiando pelo fim do conflito
interminável, ao universalismo satânico do próprio Anticristo.
Segundo Ultimate Things, o Anticristo se
revelará em Jerusalém e se proclamará Rei dos Judeus; a nação judaica, bem como
muitos cristãos, o aceitarão. Do ponto de vista islâmico, contudo, qualquer
governante mundial que comece como Rei dos Judeus e seja posteriormente
reconhecido pelos cristãos seria imediatamente e universalmente identificado
como o próprio Anticristo. É inconcebível — a menos que o islã tradicional e
mesmo fundamentalista praticamente desapareça — que tal figura pudesse tentar
os muçulmanos a aceitá-lo como o Mahdi ou o Jesus escatológico. Assim, se as
previsões relatadas por Engleman forem de alguma forma precisas, ele apresenta
de fato, como cenário escatológico mais provável, uma apostasia em massa de
judeus e cristãos que deixaria apenas os muçulmanos conscientes de quem o
Anticristo realmente é, e prontos para combatê-lo.
Como então poderia o Anticristo emergir como um
verdadeiro monarca global, ainda que satânico? Talvez a oposição militante de
um islã desacreditado aos olhos do restante do mundo contra um “salvador” quase
universalmente admirado seja precisamente o que consolidará seu poder.
Apresso-me a dizer que isto não é de modo algum uma previsão — Deus me livre.
Estou apenas permitindo-me imaginar vários cenários baseados na qualidade de
ironia e autocontradição última que é a nota de todos os movimentos históricos
nestes últimos dias. E uma das voltas dessa ironia é o fato de que muitos
muçulmanos semissecularizados — Dodi al-Fayed, por exemplo — parecem muito mais
afinados com os costumes da cultura globalista pós-moderna do que qualquer cristão
que eu possa citar.
Se a maior força e a maior fraqueza do cristianismo
tradicional residem em seu exclusivismo, a força e fraqueza comparáveis do
budismo — especialmente no Ocidente — estão em sua capacidade de “adaptar-se”.
O mesmo vale para o hinduísmo heterodoxo ocidentalizado e para várias
influências oriundas do Extremo Oriente, como o Feng Shui, a meditação taoísta
e as artes marciais sino-japonesas. Em seu melhor aspecto, isso representa um
desapego radical às normas “do mundo”, permitindo-lhe evitar todo tipo de
literalismo dogmático e fundamentalismo — e a marginalização que tal postura
frequentemente acarreta. Em seu pior, indica uma capitulação ao egotismo
coletivo desse mesmo “mundo”.
Nos Estados Unidos, pelo menos, o budismo tornou-se
parte aceitável da deriva cultural neopagã geral que, embora possa não se
identificar com o globalismo, muitas vezes acaba por servi-lo. O mesmo ocorre
com certas vertentes do sufismo americano, especialmente aquelas que tentam
separar a tradição sufi do islã. Como religião que reconhece uma queda (na
ignorância) e propõe um fim de salvação (pela iluminação), ela possui
“naturalmente” uma afinidade muito maior com as religiões abraâmicas do que com
um paganismo que aceita o status ontológico do mundo e apenas busca tirar
proveito dele. Mas não foi assim que as coisas se desenrolaram
sociologicamente.
O budismo americano, sendo uma religião não teísta
(ainda que certamente não ateísta, pois possui uma doutrina do Absoluto), tem
atraído muitas pessoas — especialmente, como se viu, muitos judeus americanos —
que fogem de suas próprias ideias estreitas e supersticiosas de Deus. Um
conhecido meu, católico tradicional que estudou por anos sob os anciãos hopis,
conta a história de uma “festa budista de Halloween”, na qual um conhecido
mestre budista americano, vestido de “sufi”, declarou que o budismo é melhor
que as religiões abraâmicas porque, assim como os nativos americanos, os
budistas não acreditam em Deus — afirmação que meu amigo sabia, por longa
experiência pessoal com a espiritualidade indígena americana, ser totalmente
falsa. Ainda assim, era uma ideia que “caía bem” entre o público liberal, Nova
Era e neopagão de onde esse mestre obtinha seus alunos — o tipo de gente cujo
apreço pelos índios americanos é até mais destrutivo para a espiritualidade
indígena do que sua atração pelo budismo é para o próprio budismo.
O falso ecumenismo da cultura neopagã e Nova Era é
o canteiro de sementes daquela “espiritualidade de fusão mundial” na qual
fragmentos de todas as tradições espirituais são lançados promiscuamente, para
sua corrupção mútua. O verdadeiro ecumenismo, por outro lado — expressão
exterior do “ecumenismo esotérico” da Unidade Transcendente das Religiões, que
compreende a própria singularidade e particularidade das tradições religiosas
autênticas como o fundamento transcendente de sua unidade — não é uma amálgama
sincretista ou um disfarce diplomático das diferenças doutrinais, mas uma
frente unida contra um inimigo comum: aquela aliança profana de cientificismo,
materialismo mágico, idolatria da psique e niilismo pós-moderno que avança, com
toda a pressa deliberada, em direção ao sistema do Anticristo.
Leo Schaya, escrevendo principalmente do ponto de
vista do esoterismo judaico, vê a missão escatológica de Elias como uma
restauração da “tradição unânime” em preparação para a vinda do Messias. Antes
do evento conhecido no Gênesis como a “confusão das línguas”, que seguiu-se à
queda da Torre de Babel, a humanidade falava uma única língua religiosa. Depois
desse tempo, porém, a autorrevelação de Deus ao homem tomou a forma de
tradições religiosas distintas, cada uma autônoma e autossuficiente. A Árvore
da Vida, que fora um único tronco, dividiu-se agora em vários ramos.
Segundo Schaya, entretanto, a unanimidade primordial
está destinada a ser restabelecida antes do fim do ciclo:
Segundo a tradição judaica, toda a Torá de Moisés
equivale a uma única linha do Sepher ha-Yasher [o “Livro da Justiça” que
Elias deve trazer consigo], o que significa que esse Livro, por não ser
“escritural” mas de natureza “operativa”, será a verdadeira realização final da
Escritura, a “realização” que, por definição, vai incomensuravelmente além da
“letra”. Ao mesmo tempo, o judaísmo coloca tacitamente as demais “linhas” desse
“Livro” à disposição de todas as revelações divinas, quaisquer que sejam, cada
uma formulando ou anunciando à sua maneira a mesma Verdade Eterna e o mesmo
Destino do homem e do mundo. O “Livro” de Elias é a Sabedoria integral da
Tradição unânime e a Manifestação escatológica do único e mesmo Princípio.
Para os judeus, Elias representa a transição da exclusividade tradicional à
universalidade que também possuem, pois afirmam que o Tesbita elevará sua voz
tão alto para anunciar a paz espiritual que será ouvida de uma extremidade à
outra da terra; e os Doutores da Lei ensinam que “os justos de todas as nações
têm parte na vida futura” ou ainda que “todos os homens que não são idólatras
podem ser considerados israelitas.”
Elias deve restabelecer todas as coisas em nome e por causa dessa “paz”
espiritual que o Messias trará de uma vez por todas: ela será cristalizada para
sempre na Nova Jerusalém “fundada por — ou para — a paz”, segundo a etimologia
de Yerushalem ou Yerushalaim. Elias desceu, e tem descido por
séculos, ao mundo inferior para preparar, com a cooperação daqueles que
inspira, esse estado final da humanidade. Ele revela, pouco a pouco e de modo
mais intenso e geral à medida que o fim se aproxima, a essência espiritual e
universal, a unidade transcendente de todas as religiões autênticas. É como se
a cidade radiante fosse construída pacientemente, colocando-se uma pedra
luminosa após outra em seu lugar. O poder motivador dessa tarefa pode ser
chamado de “corrente elíaca”, ao menos na órbita da tradição judaico-cristã,
enquanto outras tradições usarão seus próprios termos para descrever esse mesmo
fluxo universal. Segundo a terminologia do esoterismo judaico, esse fluxo
pertence ao “rio do Éden supremo”, o “rio de Yobel” ou “grande Jubileu”, que é
a Libertação final. O Apocalipse o chama de “o rio da água da vida, claro como
cristal” (Ap 22:1); ele será cristalizado nas “pedras preciosas”, as luzes
inextinguíveis da Nova Jerusalém.
(“A Missão de Elias”, Studies in
Comparative Religion, vol. 14, n. 3–4, pp. 165–166.*)
A doutrina do “Livro de Elias” encontra paralelo
direto na doutrina muçulmana xiita de que, quando o al-Mahdi emergir de
sua ocultação, trará um novo Livro. Que esse Livro representa a Tradição
Primordial em si — a qual transcende as tradições reveladas sem as negar — é
indicado pela tradição segundo a qual o Mahdi “governará o povo da Torá
conforme a Torá, o povo do Evangelho conforme o Evangelho, e o povo do Alcorão
conforme o Alcorão.” (Nasir al-Din Tusi, Ghayba). Que o Mahdi restaurará
as escrituras de Adão e Sete, e derrubará a Caaba para reconstruí-la como era
no tempo de Adão, também se refere à Tradição Primordial.
A mesma ordem de verdade é talvez simbolizada em Ap
7:4–8 pelos “144.000 selados”, extraídos (12.000 de cada vez, como os 12.000
seguidores de Ali que ressuscitarão para seguir o Mahdi) de cada uma das doze
tribos de Israel — que, nesse contexto, não podem ser estritamente
identificadas com os judeus, mas devem representar doze facetas distintas da
forma humana —, e também pelo fato de que a Jerusalém Celeste não conterá
templo algum, “pois o Senhor Deus Todo-Poderoso e o Cordeiro são o templo dela”
(Ap 21:22–23). Nas palavras de Jesus: “Tenho ainda outras ovelhas.”
A profecia de
que a unidade primordial da verdade religiosa será restabelecida antes do fim
também pode ser encontrada na tradição zoroastriana. Segundo o Vendidad
(2), Yima, o primeiro homem, o Adão zoroastriano, foi o ser humano a quem Ahura
Mazda primeiro pregou a religião ahúrica ou zoroastriana; do mesmo modo, judeus
e muçulmanos, no mesmo plano de entendimento, veem Adão não apenas como o
primeiro homem, mas também como o primeiro profeta. Depois de expandir,
cultivar e governar o mundo da manifestação por (como leio) 1.800 anos Yima foi
convocado por Ahura Mazda, que previu que invernos rigorosos viriam ao mundo
material, um dos quais seria especialmente destrutivo. (Esta é substancialmente
a mesma doutrina que o Fimbulwinter escatológico da mitologia nórdica; o nome
Yima também está relacionado ao nórdico Ymir, o gigante original que foi
abatido para criar o mundo material, cujos ossos se tornaram as montanhas, cujo
sangue os rios etc.). Então Ahura Mazda ordenou a Yima que construísse um var
(“recinto”) com planta quadrada, o abastecesse com feno dourado e reunisse nele
a semente das melhores plantas, os melhores animais, os melhores seres humanos
— 1.800 pessoas ao todo —, bem como o sol, a lua e as estrelas, que, no var,
podem ser vistas se pondo e nascendo apenas uma vez por ano. Contudo, para os
habitantes do var, cada dia será como um ano. (1.800 × 80 = 144.000, o
número dos eleitos na Nova Jerusalém.) Deve haver um rio irrigando o var,
que conterá também prados, casas — o mundo manifesto inteiro em microcosmo.
O Var de Yima, então, é o equivalente
zoroastriano da arca de Noé, embora a catástrofe que destrói o mundo seja vista
como um congelamento, e não como um dilúvio. Ele também é semelhante, de certos
modos, à Nova Jerusalém, que também é quadrangular e irrigada por um rio. O Var
de Yima, porém, parece estar subterrâneo; é um recinto, uma caverna, e também
um antigo reino subterrâneo, como o domínio céltico das “fadas”, cujos
habitantes residem em “colinas das fadas” — os túmulos-túmulos que pontilham a
paisagem da Europa Ocidental; como tal, é análogo à kiva do Povo Formiga
do mito hopi. (O local de nascimento de Cristo num estábulo ou caverna cercado
por animais, seu berço uma manjedoura cheia de feno, e sua visita por três
“magos” que geralmente são considerados Magos zoroastrianos tenderiam a
identificá-lo com Yima, ao menos aos olhos dos zoroastrianos, mas talvez também
aos daqueles judeus, como os essênios, que podem ter mantido conexões
zoroastrianas contínuas.)
Segundo a história, o Var de Yima foi
concebido para ajudar a humanidade e a natureza a sobreviver a uma série de
invernos rigorosos; ainda assim, também se diz que o Var de Yima só será
aberto no Frashegird, o fim dos tempos. Torna-se claro, portanto, que os
“invernos rigorosos” na verdade representam o congelamento e a contração do
ambiente cósmico, incluindo a percepção humana, que devem piorar à medida que o
ciclo se desenrola. Assim como Blake identificou o dilúvio de Noé como uma
submersão da Idade de Ouro atlante pelo “Mar do Espaço e do Tempo”, os “maus
invernos” do mito zoroastriano representam, de certos modos, o crescente
materialismo da sociedade humana e a consequente relegação da visão da
Eternidade a um reino mitológico subterrâneo. “Subterrâneo” equivale a
“reprimido”; o que outrora foi uma visão sensorial imediata do mundo natural sub
specie aeternitatis agora está oculto, para segurança, na “caverna do
Coração”.
Em 1927, Guénon publicou um livro intitulado Le
Roi du Monde (“O Rei do Mundo”). Tratava do mito do Centro sagrado em
várias religiões (Meca, Jerusalém, Olimpo etc.) e postulava a existência de um
Centro Primordial, um Paraíso Hiperbóreo original, do qual todos os outros
derivam — afirmação que levou alguns a criticá-lo por se entregar, como
Gurdjieff e Idries Shah, a um romantismo geográfico ocultista do tipo
“Shangri-La” — sendo o próprio Shangri-La, é claro, uma versão literária tardia
do mesmo mito de Hiperbórea, a terra da eterna primavera que jaz no extremo
Norte, “atrás do Vento Norte”. Esse Centro original é a fonte da Tradição
Primordial, cujo representante, em termos das religiões abraâmicas, é
Melquisedeque. No livro do Gênesis, Melquisedeque, Rei de Salém e Sacerdote do
Deus Altíssimo, abençoa Abraão, no que Guénon identifica como uma cerimônia de
iniciação. Melquisedeque também é mencionado no Sl 110:4: “O Senhor jurou e não
se arrependerá: tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.”
Jesus comenta esse salmo em Marcos e Lucas, assim como Pedro em seu sermão de
Pentecostes, conforme narrado em Atos. Guénon compara Melquisedeque ao hindu
Manu e a outros sacerdotes e legisladores originais.
É bastante claro que o zoroastriano Yima é outra
versão desse “Rei do Mundo”. Os sufis também possuem um conceito do “Polo da
Era” — obviamente um símbolo hiperbóreo — que é semelhante, em muitos aspectos,
à doutrina xiita do Mahdi, o Décimo Segundo Imã oculto; o esoterismo xiita, de
fato, identifica o Mahdi com Melquisedeque. A linhagem desse Polo desconhecido,
ou Qutb, pareceria, portanto, ser a versão sufi do sacerdócio primordial
de Melquisedeque, que, por não ter pai nem mãe, é, em certo sentido, imortal:
não nascido, logo jamais morrerá. Isso o coloca na mesma categoria que os
“profetas imortais” Enoque, Elias e o sufi Khidr, “o Verde”, identificado pelos
muçulmanos tanto com Elias quanto com São Jorge. Assim como Melquisedeque foi
mestre de Abraão no Antigo Testamento, Khidr é o nome dado pelos sufis ao
mestre encontrado por Moisés no Alcorão. O Rei do Mundo também tem afinidades
óbvias com figuras como Artur e todos os outros “reis de outrora e porvir” da
mitologia mundial. O cavaleiro de Artur, Owain, no romance “Owain e a Condessa
da Fonte”, torna-se senhor da Fonte da Vida; o mesmo se dá com muitos dos reis
sagrados mencionados em O Ramo Dourado de Frazer, e também com Khidr,
que guarda a Fonte da Vida situada “entre os dois mares”, no barzakh
(ístmo) entre este mundo e o próximo — em certo sentido o reino sutil ou
feérico, em outro o Coração, situado entre as águas amargas da multiplicidade
material e as águas doces da Unidade espiritual. A Jerusalém Celeste também
encerra a Fonte da Vida.
O Var de Yima é identificado como o Paraíso
Hiperbóreo pelo fato de conter sol, lua e estrelas, que uma vez por ano (ou uma
vez por dia) podem ser vistos se pondo e nascendo. Voltado para o sul no
Hemisfério Norte (isto é, olhando a partir do Norte), está-se em posição de ver
os pontos onde o sol e a lua nascem e se põem; voltado para o norte, podem-se
ver as estrelas nascendo e se pondo simultaneamente. O aspecto celeste do Var
de Yima revela-se, assim, nas constelações da Ursa Maior e Menor, o Castelo
Revolvente ou caer sidi dos celtas britônicos, onde reis falecidos
convivem com a Deusa Branca, em movimento incessante ao redor da Estrela Polar
(o Qutb), aquele “ponto imóvel do mundo que gira”, que é o pivô visível
da Eternidade na ordem criada, a porta que conduz além dos ciclos de nascimento
e morte. (Guénon, em A Ciência dos Símbolos Sagrados, afirma que var
e bear são a mesma palavra.) O fato de o Var conter as sementes
de todos os seres vivos, incluindo os céus circulantes, indica que ele não é
apenas um Templo, mas também um Éon: um ciclo inteiro de manifestação
testemunhado simultaneamente como uma forma única. A Árvore da Vida, na Nova
Jerusalém, que dá doze espécies de frutos, um a cada mês — referência óbvia ao
zodíaco — tem o mesmo significado: um ciclo completo de tempo concebido num
único instante.
Os lakotas chamam o sul de “a direção para a qual
sempre estamos voltados” e, ao fazê-lo, identificam-se como hiperbóreos, cujo
assento está no Norte, além dos ciclos do tempo, de onde olham para o Sul, para
este mundo material. Eles identificam ainda o eixo norte–sul como “a boa
estrada vermelha” e a linha leste–oeste da trilha do Sol como “a estrada negra
(ou azul) da dificuldade”. O xamanismo em geral pode ser descrito como uma
espiritualidade hiperbórea. Não apenas sua pátria está no extremo Norte
(Sibéria), mas a estrutura “axial” do xamanismo siberiano, segundo a qual o
xamã ascende e/ou desce a Árvore do Mundo, subindo através de muitos paraísos
ou descendo por muitos submundos, como os anjos que sobem e descem a escada no
sonho de Jacó, revela-o como manifestação Polar. (Às vezes o xamã usa uma
escada real durante o transe.) Um poema da tradição altaica, adaptado de Shamanism:
Archaic Techniques of Ecstasy de Mircea Eliade, fala de uma jornada
xamânica a um “Príncipe Ulgan” que vive no céu, descrito como aquele “para quem
as estrelas e o céu/estão girando mil vezes/girando mil vezes de novo” — uma
versão siberiana do Deus transcendente como “o Rei do Mundo” em seu var
celeste. No mesmo poema, o xamã é mostrado escalando o céu na forma de um
ganso. Gansos migratórios, que na mitologia céltica são identificados com as
almas dos mortos (e, sem dúvida, dos não nascidos), seguem o caminho hiperbóreo
norte–sul, a Boa Estrada Vermelha, que é uma projeção no plano horizontal do axis
mundi, o caminho vertical que une Céu e Terra. Esse caminho é identificado,
entre outras coisas, com a coluna vertebral humana: em terminologia iogue, a sushumna
nadi com seus sete chakras. Paramhamsa, ou “ganso exaltado”,
é também um epíteto de iogues hindus.
Essa orientação Norte–Sul coloca a espiritualidade
hiperbórea em um plano ontológico mais elevado do que aquelas religiões cujo
ponto sagrado de “orientação” é o Leste. Voltados para o Leste, testemunhamos
todas as formas e eventos ao entrarem no ciclo da manifestação a partir do
Invisível; voltados para o Oeste, observamos quando dele se retiram. Mas, se
nos voltamos para o Norte, orientamo-nos para aquele Centro Eterno que está
além da manifestação inteiramente; é como se, em vez de girarmos dentro dos
ciclos de nascimento e morte, esses ciclos girassem dentro de nós. A religião
hiperbórea é, assim, edênica e primordial. Quando Adão e Eva foram expulsos do
Paraíso, viajaram para o “Oriente do Éden”; isso, a meu ver, representa uma
queda de uma espiritualidade aeônica e hiperbórea, voltada para o Norte, a uma
espiritualidade cíclica e Solar, voltada para o Leste — em termos lakotas, uma
partida da Boa Estrada Vermelha para trilhar a Estrada Negra da Dificuldade
(cf. Gn 3:19: “No suor do teu rosto comerás o teu pão”). E o fato de que, em
tantas tradições antigas, forças demoníacas sejam figuradas como vindo do Norte
indica tanto o rigor da Transcendência quanto o fato de que o caminho de volta
a Hiperbórea, neste ciclo, está fechado; as portas do Éden são bloqueadas pelos
Querubins e pela espada flamejante que se revolve por todos os lados (Gn 3:24).
A sede da tribo de Dã, por exemplo, de quem se supõe que o Anticristo proceda,
está no extremo norte de Israel. Em outras palavras, não podemos ignorar o
tempo; devemos conformar nossa espiritualidade às necessidades do ponto
particular do ciclo em que nos encontramos, sob pena de invocar energias
demoníacas. E isso significa, entre outras coisas, que o xamanismo não é mais o
que foi. Praticá-lo tão tarde no ciclo, especialmente se não se nasce numa das
religiões primordiais, é encontrar perigos espirituais que não existiam quando
o ciclo era jovem. Sem dúvida algumas tradições primordiais ainda abrigam xamãs
poderosos e equilibrados, dedicados ao esclarecimento espiritual e ao serviço
humano — e Deus é quem melhor o sabe.
Segundo Guénon, Melquisedeque representa a Tradição
Primordial para as religiões abraâmicas; mas provavelmente é mais simples e
esclarecedor dizer que o Rei do Mundo é Adão, em linha com a doutrina muçulmana
de que o homem não é apenas abd, servo de Deus, mas também Seu khalifa,
vice-regente. O princípio metafísico, aqui, é que, como toda queda é de um
plano de ser relativamente mais real e mais eterno para um relativamente menos
real e mais temporal, há sempre um sentido em que a queda em questão nunca
ocorreu; uma queda na ilusão é sempre, de certo modo, ilusória. (O romance de
Hermann Hesse Viagem ao Oriente trata exatamente disso.) Como dizem os
budistas, “todos os seres são iluminados desde o princípio.” Assim, o Adão que
nunca caiu, o arquétipo do Homem no plano sutil-material — que é Yima, o Manu
hindu e Melquisedeque — está, de certo modo, ainda nos governando. Se ele não
estivesse ainda lá, no plano sutil, nós não estaríamos mais aqui, no plano
material, pois ele é parte de nosso “caule”, nossa conexão viva e contínua com
o Criador por meio do Mundo Invisível. A questão é: podemos voltar-nos para ele
como um “Polo” em algum sentido real e espiritualmente eficaz? Muita água já
passou debaixo da ponte desde a Idade de Ouro, e continua a passar cada vez
mais depressa. Espiritualidades primordiais ainda podem olhar para aquele a
quem os mandeus do Iraque chamam de “Adão Secreto”, mas o homem histórico não é
agora primordial, exceto em essência. O ciclo seguiu adiante; entramos no mundo
da queda e da redenção, e portanto devemos recorrer a salvadores, em vez disso
— profetas como Abraão, Moisés e Maomé; avatares como Rama, ou Krishna,
ou Jesus. Certamente ainda existem religiões que voltam-se para o Ancestral
Primordial em vez do Salvador — já vindo ou por vir — como seu foco espiritual;
isso é verdadeiro para muitas religiões africanas e para o totemismo em geral,
como o era para o antigo culto chinês ao Imperador Amarelo. Mas praticamente
todas essas religiões mostram sinais de séria degeneração. E a avançada da hora
reflete-se ainda, de um modo que considero normativo, no fato de que o culto de
Brahma, o Criador, essencialmente se extinguiu no hinduísmo; os devotos hindus
agora olham ou para Vishnu, o Preservador, ou para Shiva, o Destruidor. Além
disso, a história avançou tanto em direção ao fim do éon que o esperado advento
de Kalki, ou Maitreya, ou al-Mahdi, ou o Cristo escatológico começa a
exercer sua atração magnética e tornar-se nosso novo Centro espiritual. Em
termos cíclicos, isso deixa o Adão primordial bem para trás.
E, no entanto, a eternidade nunca está “para trás”.
A verdade de que Adão, em um sentido específico, jamais caiu de fato, sempre
estará presente no pano de fundo deste mundo caído. Ela está, de certo modo,
mais próxima no islã do que no cristianismo — ao menos no cristianismo
ocidental —, já que os muçulmanos não reconhecem uma queda total do homem, uma
corrupção da própria substância humana, mas apenas ghaflah,
“desatenção”, a amnésia platônica — embora as consequências dessa desatenção
sejam tão graves quanto as de qualquer pecado original. No islã, um ser humano
ainda pode permanecer diante de Deus como Adão, em sua natureza original não
caída, sua fitrah. Mas, como Blake mostra por meio de sua figura de
Albion, o Homem Antigo, o Rei do Mundo é, em sentido muito real, caído ou
deposto. Dentro do universo cristão, ele precisa de Cristo para redimi-lo; isto
é o que se entende pelo “despojo do inferno”, que se segue à crucifixão e
precede a ressurreição. (Yima, também, está caído de um modo, não caído e
eterno de outro.) Como em Jerusalém de Blake, Jesus deve despertar
Albion/Adão de seu sono semelhante à morte sobre a Rocha dos Séculos, onde jaz
submerso, como a Atlântida perdida, sob o Mar do Espaço e do Tempo.
Guénon, em O Reino da Quantidade, diz que o
Anticristo será uma espécie de Chakravartin invertido, um falso Rei do Mundo.
Portanto, a pergunta surge inevitavelmente: O que esse falso Rei tem a ver com
o verdadeiro Rei do Mundo, supostamente ainda reinando em
Shambhala/Belovódia/Avalon? Estão eles em guerra nesse outro mundo? Se o Rei do
Mundo é, em certo sentido, não caído e ainda reinante, e em outro sentido
deposto, e se o Anticristo está destinado a aparecer como um falso Rei do
Mundo, então qual é exatamente o papel escatológico de le Roi du Monde?
Em That
Hideous Strength (Aquele Forte Abominável), de C. S. Lewis, trava-se
uma guerra entre os poderes da Luz e das Trevas para ver se a antiga magia pagã
representada por Merlin — que não teve pai humano e que nunca morreu (como
Elias, Enoque, Khidr e o Décimo Segundo Imã), mas foi “ocultado” — cairá sob o
poder das forças da Verdade ou sob o das do Anticristo. Se tomarmos Merlin como
representante da Tradição Primordial, ao menos para Lewis (que, além disso,
relaciona Merlin ao sacerdócio de Melquisedeque), podemos apoiá-lo em sua
intuição de que os remanescentes de certas espiritualidades arcaicas podem e
irão apoiar as forças da Luz no combate escatológico: Segundo a doutrina
zoroastriana pertinente, durante o Frashegird o Var de Yima será aberto;
seus habitantes emergirão e unir-se à luta cósmica até o triunfo final do bem.
Assim, a primordialidade une forças com a escatologia, do mesmo modo que a
natureza original do homem, criada por Deus, une-se à redenção e à Graça
divina; Yima apoia Saoshyant — o primeiro “salvador” luta ao lado do último. Da
mesma maneira, a escatologia xiita prevê o retorno dos mais justos, assim como
dos mais ímpios dos mortos, antes da ressurreição geral, dando aos justos a
oportunidade de finalmente triunfarem sobre seus opressores. O epíteto mais
comum do Mahdi xiita, al-Qā’im — “aquele que se levanta” — denota
tanto a ressurreição dos mortos quanto a “insurreição” contra a tirania. Quando
João Batista, vestido com peles de animais e alimentando-se de frutos
silvestres em vez de cultivados, anunciou a vinda de Jesus Cristo, creio que
ele estava conscientemente encenando o papel do Adão primordial (possivelmente
em sua versão essênia ou mandeana), como arauto e aliado do Salvador.
Como
o evento escatológico é uma irrupção da Eternidade no tempo, ele deve incluir
todas as manifestações da Verdade Divina compreendidas no ciclo que chega ao
fim; deve ser uma recapitulação, bem como uma morte e renascimento. A ênfase
dos escritores tradicionalistas sobre a Tradição Primordial e a Unidade
Transcendente das Religiões é, portanto, uma expressão necessária e
providencial da verdade espiritual para estes últimos dias.
A sombra sempre presente da primordialidade, entretanto, é
o atavismo. O retorno das espiritualidades arcaicas, em forma degenerada, para
o fim do ciclo, inevitavelmente exerce um efeito destrutivo sobre as religiões
reveladas. Somente a teofania messiânica tem o poder de libertar a
primordialidade de sua casca atávica. E a distinção entre a Unidade
Transcendente das Religiões, de um lado, e aquela “espiritualidade de fusão
mundial” sincretista, marca registrada do Anticristo, de outro — uma coleção de
fragmentos inteiramente pós-moderna em seu niilismo — é simplesmente sutil
demais para ser compreendida por todos os atraídos mesmo pela metafísica
tradicional. (O próprio Schuon parece ter suspeitado disso em A
Unidade Transcendente das Religiões, seu segundo livro, quando
caracterizou sua revelação aberta das doutrinas esotéricas como uma resposta
anormal exigida por uma situação anormal, e expressou sua crença de que “o mal
que poderia, em princípio, sobrevir a certas pessoas pelo contato com as
verdades em questão é compensado pelas vantagens que outros obterão das mesmas
verdades.”)
A sombra satânica da Unidade Transcendente das Religiões,
em outras palavras, é precisamente o pseudo-esoterismo do Anticristo. Se o
patrono simbólico da espiritualidade primordial é Adão, então podemos dizer, em
terminologia cristã, que, embora ele tenha sido redimido pelo sacrifício de
Cristo, as consequências de seu pecado não foram, por isso, apagadas. Desde a Redenção,
ele — e a raça humana — tem estado num estado purgatorial. Sua alma está no
Paraíso, mas seus descendentes — que são, em certo sentido, o seu corpo —
embora virtualmente redimidos (“está consumado”), ainda não estão plenamente
santificados (“toma tua cruz e segue-Me”). Somente no apocalipse, somente na
ressurreição do corpo, quando os mortos ressuscitam e os vivos são
transformados, as consequências da ação humana — virtuosa e pecaminosa — são
finalmente colhidas no nível macrocosmico. Só então o bom grão é recolhido e o
joio lançado ao fogo. Portanto, invocar a espiritualidade primordial nos
últimos dias do ciclo, antes que a segunda vinda de Cristo a invoque de forma
definitiva, é servir tanto à agenda do bem quanto à do mal, tanto de Cristo quanto
do Anticristo. É tornar virtualmente presente, junto com a primordialidade do
estado edênico, a totalidade do carma humano deste ciclo — e, assim fazendo,
servir à polarização final, àquela separação das ovelhas e dos bodes que
culminará na batalha do Armagedom.
Em Lógica e Transcendência,
Frithjof Schuon articula claramente o que espera (ainda que dificilmente espere
alcançar) ao promulgar sua doutrina da Unidade Transcendente das Religiões:
“No período cíclico em que vivemos, a situação do mundo é
tal que o dogmatismo exclusivo (ainda que não o dogmatismo em si, uma vez que
os dogmas são necessários como fundamentos imutáveis e possuem dimensões
internas e inclusivas) tem dificuldade em sustentar-se; queira ou não, precisa
de certos elementos esotéricos, sem os quais corre o risco de expor-se a erros
de tipo muito mais questionável que a gnose [que, para Schuon, não é um erro,
ainda que certamente o seja para alguns dogmáticos]. Infelizmente, escolhe-se o
caminho errado; busca-se a saída de certos impasses, não com a ajuda do
esoterismo, mas recorrendo às mais falsas e perniciosas ideologias filosóficas
e científicas, e, pela universalidade do espírito — cuja realidade é
confusamente percebida —, substitui-se um chamado ‘ecumenismo’ que consiste em
nada mais que banalidades e sentimentalismos e que aceita tudo sem
discriminação.
A atitude oposta, da crença literal estreita, ainda é espiritualmente viável
dentro de um sistema fechado que nada conhece de outros mundos tradicionais,
mas a longo prazo é insustentável e perigosa num universo onde tudo se encontra
e se interpenetra... Tornou-se impossível defender efetivamente uma única
religião contra todas as outras declarando as demais anátema sem exceção;
persistir nisso (a menos que se viva em uma sociedade ainda medieval, caso em
que a questão não se coloca) é um pouco como tentar manter o sistema ptolomaico
contra a evidência dos fatos astronômicos verificados e verificáveis.
Mesmo assim, não acreditamos que a solidariedade espiritual assim imposta deva
ou possa implicar um entendimento mútuo completo; ela pode deter-se pela
metade, ao menos para o homem comum, especialmente porque é sempre possível
colocar entre parênteses as questões que não se pode ou não se deseja resolver.
O que temos em mente — insistamos mais uma vez — não é a ideia, autodestrutiva
na prática, de uma compreensão metafísica e quintessencial generalizada, mas
simplesmente a possibilidade de uma compreensão adequada que sirva, por um
lado, para salvaguardar a herança religiosa contra os avanços da mentalidade
cientificista onipresente e, por outro, para suscitar uma solidariedade
perfeitamente lógica e dessentimentalizada entre aqueles que tradicionalmente
reconhecem a transcendência e a imortalidade.” (pp. 4–5)
Schuon parece ter previsto o possível dano que poderia
advir aos indivíduos pela revelação aberta das verdades esotéricas, bem como a
inevitável tendência de confundir a Unidade Transcendente das Religiões com o
sincretismo. Mas, ao descartar uma “compreensão metafísica e quintessencial
generalizada” — o que eu chamaria de uma metafísica genérica extra-tradicional
— como algo “autodestrutivo na prática”, parece não ter percebido completamente
o perigo desse desenvolvimento, perigo que, com a clareza da retrospectiva,
demonstrei no Capítulo Nove e em outras partes deste livro. Autodestrutivo,
pode ser, em termos espirituais; em termos sociais e psicológicos, porém, é
autopropagante. Como diz Guénon em O Reino da Quantidade (pp.
293–294):
“A ‘contra-iniciação’ trabalha com o objetivo de introduzir
seus agentes... até mesmo... em organizações autenticamente iniciáticas... mas
apenas quando seu espírito tradicional está tão enfraquecido que já não pode
resistir a uma penetração tão insidiosa... este último caso... é a aplicação
mais direta possível da atividade dissolutiva.”
E, eu acrescentaria, esses “agentes” não são
necessariamente indivíduos; podem ser igualmente crenças e suposições
inconscientes, carregadas de elevada energia psíquica coletiva.
O perigo de uma abordagem primordial à espiritualidade é
que ela pode levar seus devotos a imaginar que a Idade de Ouro realmente
retornou. Mas, mesmo que as fronteiras do presente ciclo se tornem tão
translúcidas, devido à sua extrema velhice, que os contornos do ciclo por vir
possam ser claramente vistos através de sua pele, ainda assim não podemos
chegar lá a partir daqui. E acreditar que podemos fazê-lo, sem o incômodo do
juízo apocalíptico — ou simplesmente sem a própria morte — é talvez o erro
central da Nova Era.
A forma da Tradição Primordial deve brilhar através das
paredes adelgaçadas da realidade material ao final do ciclo; a luz que ela
emite tem a função crucial de preparar-nos, como nada mais poderia, para a ira
vindoura — e para a maior Misericórdia pela qual essa ira será finalmente
vencida, quando a morte for tragada na vitória. Mas aqueles que seguem essa luz
de modo literal, como se pudessem possuí-la, são conduzidos à tentação
profunda: o que poderia ser mais espiritualmente enganoso do que crer que uma
inocência edênica primordial pode manifestar-se abertamente nestes tempos
humanos mais degenerados, sem lançar nossas pérolas mais preciosas diante dos
piores porcos do ciclo? Nós, hippies, tentamos isso — e aprendemos, da forma
mais dura, que não funciona. Se quisermos ser mansos como as pombas, é melhor
que sejamos também astutos como as serpentes.
Foi a missão de Frithjof Schuon (ainda que não apenas dele)
desdobrar a Maya
do Intelecto Transcendente para o período final deste ciclo e projetar suas
formulações doutrinais incomparáveis sobre a vasta tela do mundo. Maya,
contudo, é ilimitada, incontrolável, espalhando impiedosamente as sementes de
todas as coisas — boas e más, velhas e novas, sábias e ilusas. Como aspecto da
Infinidade Divina, não pode ser contida por limites morais nem doutrinais.
Diante dessa Maya,
tudo o que se pode fazer é submeter-se à vontade de Deus e implorar Sua graça,
sacrificando toda tentativa autocentrada de alcançar encerramento pragmático ou
conceitual. Este é o caminho para o Paraíso — assim como a persistência em
tentar derivar imperativos estratégicos ou um sentido sistemático do mistério
da Auto-revelação infinita de Deus é o caminho para o Inferno. É precisamente
para este propósito, ao que parece, que a Maya do Intelecto
Transcendente é desdobrada nos tempos escatológicos: para separar as ovelhas
dos bodes.
Lutando com a Tradição
Eu disse acima que a primeira coisa necessária a quem
deseja praticar a Unidade Transcendente das Religiões é simplesmente aceitar
uma das tradições religiosas reveladas e permanecer fiel a ela, tanto em termos
de prática exterior quanto de verdade interior. Mas quão simples é isso, de
fato? A verdade é que não é simples — especialmente hoje.
Tantos aspectos da vida que, em tempos mais estáveis, eram
o direito de nascença de quase todos — uma família, uma comunidade, um
matrimônio, um ofício ou profissão, uma religião — agora precisam ser
alcançados por meio de um autêntico tour de force. Nem todos,
com o grau normal de talento e desenvolvimento humano, são necessariamente
capazes de encontrar ou construir aquela matriz de sentido e valor que outrora
era dada — ou, como os progressistas gostam de dizer, “imposta” — pelos padrões
e instituições sociais tradicionais. E não é menor, entre as “guerras de
orientação” que devemos travar nestes tempos, a luta para chegar a um acordo
com um universo religioso tradicional.
Essa luta tem vários aspectos. O primeiro é superar, com
honestidade, nossas próprias suposições modernistas, pós-modernas,
materialistas ou ocultistas — sem simplesmente suprimi-las ou negá-las — por
meio do Intelecto, e não apenas pela vontade. Cada suposição deve ser
claramente identificada, confrontada com a doutrina tradicional que ela foi
inventada para ocultar, e derrotada em combate intelectual consciente — um
combate que leve em conta toda a gama de nossos sentimentos tanto quanto de
nossas ideias, pois os sentimentos são muitas vezes apenas ideias que ainda não
estão claras, assim como as ideias, quando plenamente realizadas, não
contradizem nossos sentimentos mais verdadeiros, mas são, em certo sentido, as
formas objetivas ou “cristalizadas” assumidas por esses sentimentos.
Adotar meramente um conjunto de valores tradicionais do
mesmo modo como se adquiriu os valores modernistas — por identificação
inconsciente do ego — nunca será suficiente. Isso pode transformar alguém num
reacionário ou num “purista”, mas jamais num verdadeiro tradicionalista. Por
outro lado, esperar até que todas as objeções emocionais e intelectuais sejam
respondidas antes de fazer um compromisso tradicional é, na maioria dos casos,
esperar demais. Assim que o Intelecto — o centro espiritual — se sente atraído
por uma forma tradicional (atração que se manifestará em termos de pensamento e
sentimento, ainda que, dependendo do tipo psicológico, tenhamos consciência
mais de um do que do outro), então a vontade deve responder. Se não o fizer, se
tentarmos reter nossa vontade de nos comprometer até que a compreensão
intelectual seja perfeita, talvez já tenhamos perdido o barco.
Cada aprofundamento da compreensão deve ser acompanhado por
um movimento da vontade, caso contrário desperdiçaremos nossas vidas
construindo castelos acadêmicos no ar, sem jamais dar o primeiro passo real.
Como disse o centurião romano a Jesus: “Creio, Senhor; ajuda a minha
incredulidade.”
Quando alguém vive sua vida espiritual como um caos de
incertezas e atrações conflitantes, uma forma religiosa tradicional pode
parecer um ponto de estabilidade absoluta — um porto seguro contra as
tempestades do mundo exterior e da alma fragmentada. Infelizmente, nem sempre é
assim. A estabilidade está realmente ali, mas frequentemente vem acompanhada de
um nível de instabilidade e conflito maior do que aquele que o mundo exterior
sozinho pode produzir. Igrejas, sinagogas, ashrams, zawiyas,
mesquitas e zendos
são instituições humanas, cheias de fraquezas humanas. E o próprio fato de que
sua razão de existir é colocar-nos em contato com o Absoluto, a “Rocha dos
Séculos”, frequentemente amplia essas fraquezas desproporcionalmente.
Faltas éticas que pareceriam insignificantes num advogado,
por exemplo, tornam-se escandalosas num ministro ou mestre espiritual. E, de
certo modo, essa reação é justificada: quanto mais nos aproximamos da Luz, mais
agudo e escuro se torna o Sombra. A instabilidade do “eu comandante” e os
ataques do Mundo e do Diabo nunca são tão intensos quanto na proximidade
imediata daquela estabilidade absoluta que é a Verdade Divina.
As queimaduras infligidas à alma pelas falhas de um líder
espiritual são muitas vezes mais profundas do que as causadas por um médico ou
advogado antiéticos — especialmente se a sinceridade do discípulo é maior do
que sua sabedoria; isso vale em dobro, naturalmente, para o Caminho espiritual
esotérico.
Neste ponto, é necessário aplicar a verdade metafísica de
que tudo o que acontece, pareça bom ou mau para nós, é uma manifestação do
Divino. Nem todas as coisas são sábias ou boas como escolhas, mas todas são
verdadeiras como atos e palavras de Deus. O ego humano, ainda praticando sua astúcia
e impondo suas agendas em proximidade com a sabedoria e o poder de Deus, é uma
das melhores definições possíveis de Satanás.
E quando Satanás aparentemente assume uma igreja ou grupo
espiritual, muitas vezes a única coisa que se pode fazer — dado que não somos
santos — é sair o mais rápido possível antes que a alma sofra dano permanente.
Como dizem na Jamaica: “Às vezes, ausência de corpo é melhor do que presença de
mente.”
Mas o fato permanece: as acrobacias do ego — individual ou
coletivo — diante do Absoluto constituem não apenas a forma mais perigosa de
ilusão espiritual, mas também a mais poderosa forma de purgação espiritual.
Quanto mais profunda a ilusão, mais profunda a lição — para aqueles que têm
olhos para ver, resistência para suportar e permissão de Deus para correr o
risco.
Outro aspecto da luta com a tradição é o fato de que todas
as tradições estão sob ataque nestes últimos dias — pelas forças do globalismo
pós-moderno, de um lado, e pelas reações separatistas e reacionárias ao
globalismo, de outro A luta contra o eu dominante, que se
desenrola no contexto do drama normal das relações humanas — intensificado pela
proximidade com o Espírito —, é hoje agravada pela incerteza quanto às próprias
doutrinas e práticas. O que constitui uma ruptura herética com a tradição, e o
que é simplesmente uma adaptação sábia às condições do tempo? O que é, na
realidade, uma defesa heroica da Tradição — de um veículo único e
insubstituível da relação entre o Absoluto e a vida terrena — e o que é apenas
uma defesa violenta, fanática ou estupidamente petrificada de aspectos
acidentais, ainda que de antiga linhagem, que nada têm a ver com a vida
espiritual?
A
luta para compreender e reconciliar-se com a Tradição, combinada à luta
paralela para avaliar a saúde ou doença da forma tradicional à qual se é
atraído, pode impor um fardo esmagador à relação da alma com Deus. Muitas
pessoas hoje, despertando para esse fardo, simplesmente o descartam, concluindo
— com a ajuda entusiástica do mundo contemporâneo — que não vale o esforço. É
muito mais fácil, diante de um mundo cada vez mais dividido entre o pluralismo
cultural pós-moderno e a reação fundamentalista, dizer apenas “uma praga sobre
ambas as casas”, optar por uma espiritualidade “individualista” autodirigida ou,
simplesmente, afundar em uma apatia cínica e entorpecida.
Devemos lembrar também que o esforço de estabilizar a
própria filiação religiosa, embora necessário, não é suficiente para definir o
caminho espiritual. Não estamos aqui para nos identificar com formas
religiosas, mas para nos lembrarmos de Deus. Nossa busca por formas dotadas de
profundidade, estabilidade e ortodoxia deve sempre ser vista à luz dessa Meta
superior e central.
Lutar ou não lutar
O iminente Governo Mundial Único apresenta muitos sinais de
ser o regime predito do Anticristo. Mas, como já observei, não é tão simples
assim, pois as forças “tribais” que reagem contra o globalismo são, em última
análise, parte do mesmo sistema. Segundo um dos muitos cenários possíveis, as
forças satânicas que operam no fim do Éon poderiam muito bem estabelecer um
Governo Mundial apenas para preparar o palco para o surgimento do Anticristo
como grande líder de uma revolução mundial contra esse governo — revolução que,
se triunfasse, seria o verdadeiro Governo Mundial.
Ou o martírio do Anticristo, às mãos de tal governo,
poderia ser um sacrifício deliberado — ou mesmo encenado —, imitando falsamente
a morte de Cristo e conduzindo a uma ressurreição igualmente falsa. Não afirmo
que isso acontecerá; não faço prognósticos. Quero apenas indicar que o
Anticristo, enquanto manifestação espúria da universalidade divina, terá a
capacidade de usar todos os lados de qualquer conflito, inclusive um conflito
global, para consolidar seu poder — com exceção do Conflito Messiânico final,
chamado Armagedom no Apocalipse, o qual é iniciado e concluído pelo
próprio Deus.
O “discernimento dos espíritos” nos tempos apocalípticos
talvez possa ser reduzido à capacidade de responder, em muitas circunstâncias
diferentes, a uma única pergunta: qual é a verdadeira
guerra?
Se o Anticristo conseguir nos tentar a lutar antes da hora, ou em um campo
demasiado estreito — ou, inversamente, se conseguir nos levar a adiar a escolha
por tempo demais —, então já terá vencido.
Eis o perigo do método que adotei: o de multiplicar os
critérios pelos quais o futuro Avatāra pode ser distinguido
do Anticristo. O risco é cairmos num tipo de regressão paranoica infinita, como
no mundo da espionagem, onde todo agente duplo é, na verdade, triplo, e nada é
o que parece. Porque, em outro sentido, as coisas são sempre o que parecem — para
os puros de coração.
Se conheces o teu próprio ego, conheces o Anticristo; se
conheces o Deus dentro de ti, conheces o próprio Deus. Os critérios pelos quais
se reconhece o Anticristo são os mesmos pelos quais se reconhece o pecado: se
compreendemos o que é a Sabedoria Divina, reconheceremos o que lhe é contrário;
se conhecemos o que é o Amor Divino, perceberemos o que o viola.
Os sinais do fim nas diversas escatologias tradicionais não
podem ser aplicados diretamente à história sem antes serem aplicados ao estado
da própria alma. Só depois que o “discernimento dos espíritos” estiver
estabelecido em nosso intelecto, vontade e afetos é que poderemos voltar-nos e
ver as forças atuantes nestes últimos dias da história mundial à luz da verdade
objetiva. Se sabemos como o ego opera — sobretudo quando tenta apropriar-se de
nossa luta contra a tentação para reivindicar santidade para si, ou forçar sua
entrada nos mistérios de Deus para reivindicar sabedoria —, não seremos
enganados pelos movimentos análogos do Anticristo no campo da história.
A capacidade do Anticristo de lutar simultaneamente em
todos os lados de uma guerra — espalhando ilusão, paranoia e conflito
autoperpetuante —, que é uma paródia satânica da presença oculta de Deus por
trás de cada máscara humana, talvez não encontre ilustração melhor do que a
situação contemporânea de Israel.
Cada ato de opressão e/ou legítima defesa do governo israelense;
cada ato de terrorismo e/ou autoproteção legítima dos “extremistas” palestinos;
cada gesto contraditório de “moderação” da OLP; cada ato de intervenção e/ou
negligência do Irã, Rússia, Egito, Síria, Líbano, Jordânia, Estados Unidos,
Europa Ocidental ou ONU — todos, passados certos limites, produzem o mesmo
efeito: o endurecimento das linhas, a escalada do conflito.
Isso não significa que umas ações sejam tão boas ou más
quanto outras, mas que a própria situação adquire vida própria e impõe o seu
tributo sobre todas as formas concebíveis de se relacionar com ela.
É espantoso perceber que, sob uma determinada ótica, os
mesmos “lugares sociopolíticos” existentes na Palestina de hoje já existiam no
tempo de Jesus, há dois mil anos — apenas ocupados por forças diferentes. O
governo de Israel ocupa o lugar dos escribas e fariseus. Os palestinos
militantes estão onde estavam os zelotes. Os Estados Unidos e/ou a ONU assumem
o papel do Império Romano. E a posição singular de Jesus — no centro, onde
todas as forças sociais convergiam — seria hoje ocupada por Yasser Arafat,
crucificado como está nos chifres de cada contradição... mas, evidentemente,
Arafat não é Jesus; ele não transcende as condições que ocupa, é apenas o
fantoche delas.
Jesus de Nazaré estava profundamente consciente das forças
políticas de seu tempo — e, no plano humano, precisava estar. Isso não quer
dizer, claro, que fosse algum tipo de revolucionário político; talvez
necessitasse apenas de certa sagacidade política para evitar ser forçado a tomar
partido — a favor ou contra o partido do Templo em sua acomodação com Roma, ou
a favor ou contra os Zelotes — num mundo em que todos aparentemente tinham de
escolher um lado, e em que tudo caminhava inexoravelmente para a Revolta
Judaica de 66 d.C.
Quando seus oponentes o desafiaram publicamente a responder
se era lícito pagar o tributo romano, acreditaram tê-lo encurralado. Se
dissesse “sim”, perderia o apoio dos Zelotes, que viam o tributo como um ato de
adoração ao imperador — uma blasfêmia contra Javé —, já que a moeda do imposto
trazia a efígie de César, um “ídolo”. Também perderia sua autoridade moral para
criticar os escribas e fariseus, que haviam se acomodado ao poder romano.
Se dissesse “não”, seria identificado com os Zelotes e
poderia ser preso por sedição, sua morte se tornando indistinta da de tantos
outros rebeldes “unidimensionais” como Barrabás.
Seu modo de atravessar as symplegades
— os rochedos estreitos dessa contradição sociopolítica — foi uma obra-prima de
sublimação, e talvez nos dê uma pista de como evitar ser arrastados para
conflitos falsos ou estreitamente definidos, trilhando, em vez disso, o caminho
que conduz à guerra verdadeira.
Primeiro, pediu a alguém que lhe mostrasse a moeda do
tributo, demonstrando assim que não possuía dinheiro — era um dos “pobres” aos
quais viera anunciar a Boa Nova (fuqarā’, plural de faqīr,
sinônimo de “sufi”) — e também que a moeda “idólatra” estava em livre
circulação.
Depois, ao perguntar “de quem é esta imagem?” e ouvir “de
César”, distanciou-se dos Zelotes, mostrando que a moeda não poderia ser um
ídolo, pois César não era Deus; por isso, devolver a César o que era de César
não era blasfêmia.
Ao mesmo tempo, afirmava implicitamente que devolver a
imagem do pequeno falso deus a ele mesmo podia até ser visto como
condescendência dos judeus, que conheciam e adoravam o Deus vivo; seu estatuto
de povo escolhido permanecia intacto, e não seria violado por satisfazer o
narcisismo desses pequenos césares autoproclamados.
Sem essa combinação de sabedoria política e discernimento
espiritual, Jesus teria sido arrastado a um conflito político e sua missão
teria fracassado — humanamente falando, pois, do ponto de vista divino, sua
missão era ordenada por Deus e não poderia falhar.
Essa lição prática sobre como não ser tragado por conflitos
políticos prematuros e estreitos — que comprometem a percepção espiritual e a
prontidão para escutar o verdadeiro chamado divino — tem também um lado
esotérico: é uma “parábola em ação” de como ultrapassar os pares de opostos e
realizar o Absoluto.
Os cristãos ortodoxos orientais interpretam “o que é de
César” como o peso de ouro da moeda, e “o que é de Deus” como a forma humana
nela gravada, feita à imagem e semelhança de Deus. A matéria de nossas vidas
pertence a este mundo; nossas riquezas passarão a outros, nossos corpos à
terra. Mas a forma — o selo da imagem divina — pertence a Deus por toda a
eternidade. Por isso, na ressurreição, ela pode ser novamente “encarnada” em
substância gloriosa e incorruptível.
A lição é esta: não
é a matéria de nossas vidas que devemos proteger do Anticristo — como pensam
certos sobrevivencialistas —, mas a forma. Nos últimos dias, como
sempre, a verdadeira luta não é por conservar os bens, nem mesmo a vida, mas
por não perder a alma. Em última instância, isso é tudo o que nos é exigido.
Num mundo definido por falsos conflitos de toda espécie,
qual é a guerra verdadeira?
A resposta muçulmana é: o Maior Jihad, a guerra
contra tudo em si mesmo que se opõe a Deus.
Mas o Maior e o Menor Jihad — este último sendo a luta no
mundo exterior contra o que ataca ou corrompe a religião — não são
independentes. Tudo o que podemos esperar nos tempos finais — e é realmente a
maior esperança que a humanidade pode ter — é permanecer fiéis à Verdade.
Porém, às vezes, para não sermos afastados dela pelo medo
ou seduzidos por tentações satânicas, é necessário defendê-la ativamente no
mundo exterior — por palavra ou ação.
Se não estivermos dispostos a arriscar reputação, sustento
ou vida quando as circunstâncias o exigirem, como poderemos garantir que nossa
fidelidade interior a Deus é algo mais que orgulho espiritual?
Por outro lado, se realmente tivéssemos vencido a Besta
interior — o “eu dominante” —, o terror e a sedução do mundo não teriam poder
sobre nós.
Assim, o Menor Jihad, por mais necessário que seja, é
sempre, em certo sentido, uma projeção do Maior
Jihad
no palco do mundo; é a guerra contra o nafs al-ammāra, o eu
imperioso, travada em alegoria e por procuração.
Talvez a melhor resposta à pergunta “lutar ou não lutar?”
seja: aprende a lidar apenas com o inimigo,
interior ou exterior, que está diretamente em teu caminho.
Se tentares lutar a batalha de outro, Deus não te apoiará.
E se abandonares teu caminho verdadeiro por fome de conflito, ou impaciência
para ver tudo resolvido, já foste derrotado.
Por isso é tão importante conhecer o próprio caminho como
ele realmente é — para distinguir entre os talentos concedidos por Deus, que
não devem ser enterrados, e as agendas autoimpostas, que precisam ser
sacrificadas.
O mínimo que se pode dizer, em termos concretos, é que uma
denúncia do regime do Anticristo — como a dos “duas testemunhas” do Apocalipse
— será apropriada em muitas circunstâncias (embora claramente não em todas, já
que o disfarce e o silêncio prudente podem ser necessários para autoproteção ou
proteção dos outros).
Mas devemos lembrar sempre que a guerra contra o Anticristo
— no mundo exterior e, ainda mais, no interior — é também terreno fértil para o
crescimento do orgulho espiritual. Que poderia ser mais embriagante do que
acreditar ser parte de um “resto eleito”, chamado por Deus a desafiar a Besta?
Já vimos muitos fanáticos políticos e religiosos possuídos por essa ideia — e
veremos muitos mais.
Felizmente, a vitória em termos mundanos é, nos últimos
dias, impossível aos fiéis, embora pequenas vitórias ainda possam ser
conquistadas.
O melhor que podemos esperar é que todos nós — vindos de
qualquer religião verdadeira e inspirada por Deus — um dia nos encontremos com
as costas contra a mesma parede.
Ó, bem-aventurada
parede!
Ali todas as esperanças se cumprirão, para aqueles que, pela graça de Deus, não
conservaram outra esperança senão Ele.
Segundo alguns sufis, o Anticristo é precisamente o nafs
al-ammāra, o “eu mandante” ou “ego exigente”; o conflito entre
globalismo e tribalismo é o reflexo do conflito aparente, no nafs,
entre o orgulho complacente e a rebeldia violenta.
O seguinte trecho é retirado de Marmūzāt-i Asadī,
de Najm ad-Dīn Rāzī, com citações do Alcorão:
“Quanto à verdade sobre Jesus e o Anticristo e o contraste
e semelhança entre eles, pode-se dizer que a semelhança é superficial e o
contraste fundamental.
Sob o aspecto da aparência, ambos são chamados ‘Messias’, ambos têm um jumento,
ambos estão vivos e ambos fazem os mortos viver.
Ora, Jesus é chamado ‘Messias’ por viajar pelos céus, enquanto o Anticristo é
chamado ‘Messias’ por viajar pela terra de oriente a ocidente.
Jesus é celeste e o Anticristo é terreno.
Jesus tem visão e confere visão aos outros — vidente porque, em sua infância,
disse: ‘Em verdade sou servo de Deus’ (Maria, 30), e conferindo
visão ao curar ‘o cego e o leproso’ (A Família de Imran, 49; A
Mesa Servida, 110) —, enquanto o Anticristo é cego e cega os
outros, pois apresenta a Verdade como falsidade e a falsidade como Verdade.
Jesus traz os mortos à vida como milagre, para dar fundamento à fé; o
Anticristo reanima os mortos como demonstração de poder, para induzir à negação
da fé.
E o surgimento do Anticristo a partir da terra serve para instaurar um reino de
opressão e corrupção, enquanto a descida de Jesus do céu é para instaurar um
reino de equidade e justiça.”
Esteja ciente
de que tudo no reino da forma é um reflexo daquilo que está no reino do
espírito, e tudo quanto há nos reinos da forma e do espírito está representado
no homem. Assim, o “jesuicismo” em ti é o teu espírito, pois acerca de Jesus se
disse: “Sopramos do Nosso Espírito nele [ventre de Maria]” (“O Banimento”, 12),
ao passo que acerca de ti se disse: “Soprei nele [Adão] do Meu Espírito”
(“Al-Hijr”, 29). Jesus dá vida aos mortos, assim como o espírito dá vida ao
corpo morto. Jesus teve mãe, ao passo que o Sopro Divino lhe fez as vezes de
pai; do mesmo modo, o espírito (de cada pessoa) é gerado pela mãe dos elementos
e pelo pai do Sopro. Jesus é sublime e o espírito é sublime; Jesus é a Palavra
e o espírito é a Palavra, conforme indica a expressão de que o “espírito é por
ordem do meu Senhor” (“A Ascensão Noturna”, 85). Jesus montou um jumento, assim
como o espírito cavalga o corpo.
E
o Anticristo é representado em ti pelo teu “ego exigente”. O Anticristo é
caolho, tal como o teu ego, que vê somente o mundo e é cego para o além. Tudo
quanto o Anticristo apresenta como paraíso é, na realidade, inferno; e o que
apresenta como inferno é, na verdade, paraíso. Do mesmo modo, o ego apresenta
as paixões e prazeres carnais como paradisíacos, quando na verdade são
infernais, e apresenta a devoção e o culto espiritual como infernais, quando na
realidade são celestiais por natureza.
O Anticristo monta um jumento, e o teu ego possui
qualidades bestiais. O mistério de tudo isso é que, embora Jesus estivesse no
mundo, assim como o Anticristo, Jesus foi levado ao céu por algum tempo,
enquanto o Anticristo foi encerrado nas entranhas da terra. Então, primeiro o
Anticristo será trazido à luz para devastar a terra, criar desordem e perpetrar
corrupção, reclamando para si a divindade. Em seguida, Jesus será trazido de
cima e receberá o domínio, afirmando ser o servo de Deus. Ele logrará matar o
Anticristo e então instaurará um reino de prosperidade, justiça e equidade.
Depois de algum tempo, passará deste mundo, e o Dia do Juízo estará às portas.
Do mesmo modo, espírito e ego são reunidos no mundo da
humanidade. Contudo, o espírito é elevado ao céu do coração, ao passo que o
Anticristo do ego é confinado à terra do estado humano. Leva vários anos para a
humanidade desenvolver todo o seu potencial e para os constituintes do corpo amadurecerem
adequadamente. Primeiro, o Anticristo do ego emerge dos limites da infância,
montado no asno das qualidades animais, lançando-se em seu programa de devastar
o mundo, reclamando divindade ao modo de “Viste aquele que toma o desejo por
seu deus...?” (“Os que se Ajoelham”, 23), e exortando para o inferno da cobiça
e da luxúria como se fosse a meta celeste, ao mesmo tempo que difama o céu da
devoção e do culto como se fosse inferno. Ele mata os crentes das qualidades
louváveis e angélicas com as mãos descrentes das qualidades satânicas e
condenáveis, ressuscitando as potências mortas na natureza humana, até que, de
súbito, a graça inimaginável traz do Alto o Jesus da espiritualidade, montado
nas asas régias do Gabriel da Lei, tomando voo do excelso céu do coração para
descer ao mundo da humanidade.
A Razão, deixada atrás, fita o seu estribo em partida,
Enquanto o Amor avança à frente, montado ao seu lado.
Jesus mata o Anticristo do ego, decepando-lhe a cabeça da
natureza material, e estabelece o domínio da justiça e da equidade da
espiritualidade no mundo da humanidade, destruindo o porco da avidez, quebrando
a cruz da natureza carnal e cortando os grilhões da paixão.
JESUS AOS OLHOS DOS
SUFIS,
Dr. Javad Nurbakhsh, pp. 61–64
Quando o Anticristo se ergue, o Cristo está próximo. Quando
o ego vem a lume de modo evidente, o Intelecto espiritual, por ver a sua
estrutura inteira, já não fica velado por ele; o Olho do Coração está aberto.
Quando aquilo que supúnhamos ser um objeto sólido é visto como sombra, então,
como toda sombra, dá testemunho da Luz.
O mal, como todas as coisas, está aqui para nos ensinar. No
início, ensina-nos a sua própria realidade maciça como uma parede que nos
separa de Deus, um poder a ser combatido sem quartel. No fim, ensina-nos a sua
própria vacuidade, a sua irrealidade fundamental. Mas até conhecermos a sua
realidade, jamais conheceremos a sua vacuidade. Até sabermos que a luta contra
o mal cabe inteiramente a nós, e que a batalha nunca terminará, jamais saberemos
que, na realidade, a luta contra ele é só assunto de Deus, e que a batalha já
terminou. Nunca foi necessária. Nunca começou. Quando, como está predito nas
escrituras hindus para o fim do ciclo, “cem sóis surgem de uma vez no céu”, não
se encontra nenhuma nulidade; não aparece sombra alguma. Quando o próprio Deus
entra no campo de batalha, não encontra resistência: porque somente Deus é.
Devemos iniciar a guerra contra a alma passional — quer
vista no palco do mundo, quer reconhecida no íntimo — em estado de santa
seriedade, plenamente cientes do caráter formidável do mal a combater, que a
princípio parece cobrir todas as coisas. Mas como podemos conhecer o mal como
mal, se o mal é tudo quanto há? Com o que o comparamos para emitir tal juízo? O
que e onde está a Luz pela qual podemos dizer “isto é luz, e isto é trevas”?
Fazer esta pergunta é a primeira etapa da jornada da ilusão autocentrada à
Realidade Divina. Esta jornada pode ser mapeada em 7 estágios:
(1) Aceitamos as condições com o nosso ego, por
identificação. O mal não é real, ou no máximo se identifica com a minha
experiência de sofrimento, um infortúnio sem sentido a ser evitado — mesmo que,
para isso, eu tenha de tornar-me irreal —, como se a irrealidade fosse uma
espécie de segurança e não o nome do inferno.
(2) O mal é real e externo, embora basicamente material.
Não é apenas o meu sofrimento, mas o sofrimento dos outros também. Devemos
combatê-lo.
(3) O mal é real, interno e psicológico. É expressão do
“instinto de rebanho”, da subjetividade de massa que governa nossos
sentimentos, pensamentos e ações por meio do “inconsciente coletivo”.
Combate-se mediante uma compreensão psicológica de nossas crenças e motivações,
conduzindo a uma desidentificação com os costumes inconscientes da sociedade —
o processo de “individuação” de Jung.
(4) O mal é real, externo e espiritual. Devemos testemunhar
contra ele para não sermos seduzidos por ele, mas não podemos vencê-lo; somente
o representante de Deus no campo da história, somente o Messias, pode derrotar
o Anticristo.
(5) O mal é real, espiritual e transpessoal. É produto de
entidades espirituais conscientes em rebelião contra Deus. Combate-se pelo
poder espiritual da oração e do exorcismo.
(6) O mal é real, interno, espiritual e assunto apenas meu;
é a atividade do eu dominante. Supera-se por meio do ato de esquecer-se de si e
lembrar-se de Deus.
(7) Visto que todo o mal do mundo é apenas o meu próprio,
ele é, em última análise, irreal. Só Deus é real; não há deus senão Deus, não
há realidade senão a Realidade. O Buda vê apenas Budas. Aquilo que, em níveis
inferiores, ainda devemos chamar de mal revela-se necessário à manifestação de
Deus, expressão de Sua Majestade e de Sua Justiça.
Mas o fato de que todos os eventos são, em última
instância, atos de Deus, que é o Sumo Bem, não nos absolve da responsabilidade
moral pessoal; não temos o direito de dizer “foi Deus quem me fez fazê-lo”. “É
necessário que haja escândalos”, disse Jesus, “mas ai daqueles por quem vêm os
escândalos.” Tampouco devemos usar a responsabilidade moral pessoal como
pretexto para negar a realidade da influência demoníaca, assim como não devemos
usar o reconhecimento de tal influência para ocultar os modos pelos quais somos
afetados pelas emoções e sistemas de crença da sociedade coletiva. Nossa
concentração nessas emoções e sistemas de crença não deve cegar-nos para os
eventos apocalípticos ao nosso redor, nem o reconhecimento dos sinais
apocalípticos deve impedir-nos de fazer o pouco que podemos, em termos
concretos, quando surge a oportunidade de serviço.
Cada nível mais alto de nossa compreensão do mal não nega
os níveis abaixo, mas os abarca. O nível superior é o verdadeiro “contexto
informante” do inferior, que revela tanto os seus limites necessários quanto o
seu papel preciso no conjunto. Portanto, o contexto último, mesmo para o
serviço concreto e a ação política, é o entendimento de que todos os eventos
são atos de Deus; o modo “litúrgico” de agir à luz desse conhecimento é
simplesmente desempenhar o papel que Deus nos atribuiu, pressupondo que Ele
também nos deu a luz necessária para reconhecê-lo.
O Apocalipse Esotérico
No plano material, os acontecimentos são interpretados
conforme sustentem ou ameacem o nosso senso de identidade, que é psíquico.
Quando a consciência começa a ser retirada do plano psíquico para o plano do
Espírito — que, como Testemunha pura e Conhecimento puro, necessariamente
transcende a experiência —, então todas as experiências, inclusive as
sensoriais, são compreendidas como emanando do nível psíquico e conhecidas,
simultaneamente, tanto como possíveis tentações quanto como manifestações
efetivas de Deus. Na medida em que tais experiências têm o potencial de seduzir
a consciência de volta à identificação com o nível psíquico — reforçando o
senso de um experienciador limitado e subjetivo —, são tentações. Na medida em
que são resistidas, os eventos em questão já não podem ser chamados
experiências, mas revelam-se aspectos, ou instâncias, da Auto-manifestação do
Absoluto.
No nível psíquico, o mundo que experimentamos é
necessariamente interpretado em termos de bem e mal. E, como a consciência
fixada no nível psíquico não pode testemunhar tal nível, os conteúdos da psique
devem aparecer em forma “projetada” como os eventos de nossas vidas. (Apesar de
seus erros metafísicos, Carl Jung sabia disso, ensinando que “o que é reprimido
é necessariamente projetado”.) Mas quando a consciência inicia sua peregrinação
do nível da psique ao nível do Espírito, a psique emerge daquela inconsciência;
fica desvelada ante o rosto da Testemunha espiritual. E quando, por virtude
dessa Testemunha, todos os eventos — inclusive os materiais — são conhecidos
como emanando do plano psíquico, assim como o plano psíquico, como um todo, é
conhecido como dramatização das verdades que residem eternamente no plano
espiritual, então as projeções psíquicas sobre o plano material são retiradas.
O mundo deixa de ser um objeto experimentado por um sujeito individual e
transforma-se em uma aparição visionária contemplada pela Testemunha divina — ou,
em termos budistas, por ninguém.
À medida que a consciência continua a mover-se da psique ao
Espírito, os eventos passam a ser vistos não como influências boas ou más, mas
como forças que, de fato, ou nos puxam, ou não nos puxam, a identificarmo-nos
com elas, levando-nos a abandonar o nível espiritual e retornar ao psíquico. É
isto o que os sufis querem dizer quando afirmam que “o pecado do crente é a
concupiscência; o pecado do gnóstico é a desatenção”. Eventos aparentemente
bons podem tentar à desatenção, assim como eventos aparentemente maus podem
sustentar a vigilância e a lembrança espiritual.
Em termos de guerra intelectual — a luta por superar o erro
e abraçar a Verdade —, a passagem da psique ao Espírito faz com que os erros
que reconhecemos, em nós ou nos outros, se manifestem diretamente. Quando
começamos a testemunhá-los, em vez de simplesmente criticá-los ou lutar contra
eles, eles se apresentam diante de nós; encarnam-se concretamente e se realizam
por inteiro. Em outras palavras, tornam-se lições — desde que resistamos à
tentação de nos identificarmos com eles —, e um erro que é realmente uma lição
deixa de ser forma de falsidade para ser forma de Verdade. Quando o erro é
plenamente encarnado como Verdade por nossas próprias ações, o resultado é um
remorso profundo e espontâneo. Quando o erro é plenamente encarnado como
Verdade pelas ações de outros, o resultado é uma gratidão profunda e
espontânea.
O movimento da consciência da psique ao Espírito, durante o
qual erros latentes surgem formados e encenados por inteiro até revelarem-se
como formas de Verdade, é o significado esotérico do apocalipse — que quer
dizer “revelação”. A morte física é símbolo da morte do ego — da crença de que
a psique humana é autônoma e autoengendrada. O fim do mundo é símbolo da
“recolha” produzida pela morte do ego — o ajuntamento dos fragmentos dispersos
da psique, mediante a retirada das projeções dessa psique no deserto abstrato
da matéria, energia, espaço e tempo.
A experiência é inseparável da sensação de que existe
alguém capaz de ter experiências. No fim último do ciclo da manifestação — que
é o mundo —, no fim último do ciclo da experiência — que é o ego —, esse
“alguém” é confrontado por Kali, a Negra. Ela é Māyā, ela é Mahāśakti — ao
mesmo tempo a Essência Divina incognoscível e todo véu que simultaneamente
oculta e revela essa Essência, sem distinção alguma entre ambas. Na medida em
que tentamos apegar-nos à vida diante de Kali, ela nos toma a vida. Na medida
em que deixamos a vida ir, diante de Kali, ela é essa vida.
A experiência é Māyā, é Śakti. Se nos identificamos com
ela, torna-se parte da Avidyā-māyā, a corrente da manifestação cósmica de Deus,
cujo termo último é a “morte de Deus”. Se quebramos a identificação com ela,
torna-se parte da Vidyā-māyā, a corrente da misericórdia redentora e
reintegradora de Deus, cujo termo último é a Libertação final dos grilhões da
existência contingente.
A Função Apocalíptica do Anticristo
O Anticristo é o grande bode expiatório, que extrai da alma
tudo o que é sub-humano, abortivo e exausto, deixando a substância humana
puramente receptiva à luz de Deus. Ele não é o bode expiatório compassivo, como
Cristo, que carrega voluntariamente as nossas impurezas e, assim, demonstra que
a nossa fuga mais profunda de Deus acontece, na realidade, em Deus — se ao
menos o soubéssemos. Como prefigurado na figura de Judas, ele é apenas o
veículo que transporta tudo quanto falhou em atingir forma integral para os
fogos da aniquilação, porque se recusou a submeter-se à vontade de Deus, recusou-se
a ser plenamente criado por Ele e, por isso, jamais O conheceu.
Eis talvez o logro mais profundo de que o Anticristo é
capaz: retratar o sofrimento sombrio, sem sentido e estéril do ego — que não
quer desapegar-se de si — como se fosse o sofrimento autosacrificial daquele
Amor divino que “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Diante do
Anticristo — do seu fascínio e do seu horror, do seu desespero e da sua
cegueira, e do seu tédio indizível —, tudo o que é preciso fazer é escolher o
Real e rejeitar o que jamais poderia ser real: simplesmente, a qualquer custo,
como Cristo, quando venceu Satanás no deserto; como o Buda, quando resistiu a
Mara, o Tentador, sob a Árvore do Iluminamento, no ponto adamantino.
Dizem os budistas tibetanos: “arremessa todas as culpas num
só.” No processo, os crimes de um destino cruel e misterioso tornam-se frutos
do carma — as consequências das ações deliberadas dos seres sencientes. O carma
de todos os seres sencientes torna-se o meu próprio carma, a estrutura do meu
ego. E, por fim, os crimes e sofrimentos do meu ego convertem-se na forma
inevitável do EGO, vazio de toda substância perante o Absoluto. Todos são
perdoados porque ninguém é culpado senão ele — e “ele” não é ninguém.
O sentido esotérico do
Anticristo é: existe um só ego. O meu ego é O ego; o Deus que habita em meu
Coração é O Deus. Quando o meu ego é aniquilado, todo ego é aniquilado, porque
não há outro ego. Quando o Deus em meu Coração é desvelado, Ele é desvelado
para todos, para todos os seres, porque há um só Coração. Quando um santo
clama: “Sou o pior dos pecadores!”, o sentido interno é: eu
sou o ÚNICO pecador. Eu sou Adão comendo o fruto proibido; pelo
mesmo sinal, eu sou Cristo sofrendo as consequências desse ato, triunfando sobre
eles, e erguendo-me das suas ruínas. Eu sou o Buda alcançando a iluminação para
si mesmo — e, por isso mesmo, para todos os seres sencientes —, porque, aos
olhos do Buda iluminado, não existem tais coisas como “incontáveis seres a
serem iluminados” nem “o Buda que faz o voto de iluminá-los”. A iluminação é
Una. Deus é Um. Não há deus senão Deus.
Quando
vi pela primeira vez o Anticristo, minha resposta foi: “Isto significa que já
não tenho um único inimigo sobre a terra. Que todos os seres estejam bem; que
todos os seres sejam felizes.” Quando o Anticristo viveu comigo em minha
própria casa, ele perverteu minha visão do universo de Deus, sussurrou
acusações contra esta ou aquela pessoa, contra este ou aquele grupo; afirmava
que eram seguidores do Anticristo. Mas quando deixou minha casa para ir ao
mundo e espalhar devastação, quando o vi erguer-se como uma sombra sobre toda a
terra, não restava em meu coração um fio de ódio. Ele já nada tinha a me
ensinar, salvo sua própria vacuidade, sua natureza de sombra. Ao revelar-se
como pura sombra, deu testemunho da Luz — a grande luz penetrante, sondadora,
desveladora, desmanchadora e curativa de Deus, agora irrompendo sobre o mundo.
O romper dessa Luz é eterno. Está no âmago de cada momento.
O fim do mundo jaz oculto em cada instante. A terminação do ciclo, a dissolução
de todas as coisas, o passar do céu e da terra, o nascer do novo céu e da nova
terra — tudo está sempre ali, no tempo presente grávido de tempo futuro, onde
toda a criação geme para ser libertada — até agora. “Quando o homem rejeita o
erro e abraça a verdade”, disse William Blake, “um julgamento final passa sobre
esse homem.”
O uso próprio, a prática espiritual específica dos tempos
apocalípticos é: deixar que tudo nos seja tirado, exceto a Verdade. Quando
Blake clamou: “Tudo o que puder ser destruído, que seja destruído!”, foi isso
que quis dizer. Quem puder — com o auxílio do Céu — não reverter, mas
simplesmente resistir às tremendas forças centrífugas, dispersivas,
enfraquecedoras e descendentes ativas no fim do Éon, verá que toda a escória de
sua alma, todo o pecado, todo o peso espiritual e toda a escuridão intelectual
dos últimos dias lhe foram roubados pelo Anticristo. Que fique com eles.
Por uma catarse radical análoga àquela tentada pelos
dramaturgos gregos — encenada não no palco ateniense, mas no do mundo, e da
alma humana —, o Deus Todo-Poderoso, por meio do Anticristo, se o reconhecermos
e o resistirmos interiormente, literalmente nos “expulsará o inferno de
dentro”. Ele queimará a tristeza com tristeza e o medo com medo, pois somente
na presença da Misericórdia de Deus podemos enfrentar toda a profundidade da
dor e do terror que todos sentimos no fim do ciclo, e testemunhar sua vacuidade
essencial.
Se pudermos resistir ao desespero em todas as suas formas —
inclusive o pânico violento, a frieza do coração e a falsa esperança luciferina
—, então, depois que todos os resíduos kármicos de todo o ciclo tiverem sido
arrancados de nós, lá estaremos, nus, em absoluta simplicidade, diante do rosto
de Deus.
Este é o sentido de “por causa dos eleitos, aqueles dias
serão abreviados”, e de “os mansos herdarão a terra”. Tudo o que em nós
“cristalizar”, para usar um dos termos favoritos de Schuon, na presença da
Verdade Absoluta, será “recolhido aos celeiros” onde se armazenam as potências
férteis — o “grão de semente” para o próximo Éon. “Aquele que perseverar até o
fim será salvo”: será preservado.
Tudo o que resiste ao fim do tempo permanece no início do
tempo. Tudo o que está além do tempo resiste ao seu fim. Se “o tempo é a imagem
móvel da eternidade”, então aquilo em nós que permanece intocado pelo tempo é
parte Daquilo de que essa imagem foi feita.
A “Nova Era” crê que certos seres humanos “altamente
evoluídos” podem sobreviver na terra para se tornarem os líderes espirituais —
e até temporais — da próxima Idade de Ouro; mas isso é apenas o simulacro
literalista da verdadeira doutrina. A verdade é simplesmente que tudo o que em
nós resiste à tentação de fugir de Deus, buscando refúgio na dissolução caótica
— de esconder-se da destruição da matéria, ou do medo dessa destruição, na
própria matéria (um dos significados de “orarão para que as montanhas caiam
sobre eles”) —, mas morre, ao contrário, uma morte vigilante e obediente diante
do rosto da Única Realidade, entrará no banquete dos Pirs, dos Sheikhs, dos
Tzaddikim, dos Antepassados deificados que são os pais e protótipos de todos os
ciclos da manifestação — aqueles que são chamados, no livro do Apocalipse, “os
vinte e quatro Anciãos diante do Trono do Cordeiro”.
Como foi no fim, assim é no princípio.
A Prática do Apocalipse
Em minha humilde opinião, o gesto espiritual central para
os tempos apocalípticos é o seguinte:
Quando te encontrares em estado de medo ou pesar diante do
mal do mundo, da degeneração da humanidade e da ruína da terra, sabe que esse
mal, ruína e degeneração nada mais são que a resistência coletiva do mundo à
iminente vinda do Mahdi, do Décimo Avatar, do Messias — e que o medo ou a
tristeza que agora experimentas são a tua maneira de participar dessa
resistência.
Sabendo disso, simplesmente deixa de resistir-Lhe e permite
que o Messias venha. Cessa de tentar manter o mundo em existência pelo poder do
teu ego; deixa-o ir. Deixa que termine. Deixa teu ego terminar. Tens combatido
o Messias; cessa as hostilidades agora, “não resistas ao mal” (que é como teu
ego O percebe), depõe as armas e permite que Ele atravesse “as nuvens do céu” —
as nuvens do egotismo individual e coletivo que têm separado a terra de sua
Fonte divina desde a queda do homem.
Pedi ao meu orientador espiritual que comentasse o
parágrafo acima, já que aconselhar um público desconhecido sobre questões de
prática espiritual não é algo que eu tenha o direito ou a capacidade de fazer
por minha própria e escassa autoridade. Sua resposta foi: “Lembra-te, porém: o
mundo é perfeito.”
Em outras palavras: o Messias já está aqui. Sempre esteve
aqui. Em cada momento espiritual, o mundo sai fresco das mãos do Criador. Assim
como Deus é perfeito, Sua expressão é perfeita — se, isto é, formos capazes de
testemunhá-la, com todas as suas maravilhas e horrores, como Sua manifestação
imediata. Esta é a verdadeira Revelação: “Eis que faço novas todas as coisas”
(Ap 21,5). Que Deus, pela graça do meu Mestre, me conceda a capacidade e a
humildade de saber isto não apenas com a mente, mas com todo o Coração.
Encerrará este livro, como é apropriado, com as palavras de
Frithjof Schuon, em Light on the Ancient
Worlds,
p. 49:
“Mesmo os crentes são, em sua maioria, demasiado
indiferentes para sentir concretamente que Deus não está apenas ‘acima’ de nós,
no ‘Céu’, mas também ‘adiante’ de nós, no fim do mundo — ou simplesmente no fim
de nossas vidas; que somos atraídos através da vida por uma força inexorável, e
que, ao final do curso, Deus nos aguarda; que o mundo será um dia submergido e
tragado por uma irrupção inimaginável do puramente miraculoso — inimaginável
porque ultrapassa toda experiência e medida humana. O homem não pode, de modo
algum, apoiar-se em seu passado para dar testemunho de algo assim, não mais do
que uma efêmera poderia discorrer sobre a alternância das estações; o nascer do
sol não pode de modo algum penetrar nas sensações habituais de uma criatura
nascida à meia-noite, cuja vida dura apenas um dia; a súbita aparição do orbe
solar, impossível de prever por qualquer fenômeno análogo ocorrido durante as
longas horas de treva, pareceria um prodígio apocalíptico inaudito.
E é assim que Deus virá.
Não haverá senão este advento único, esta única Presença — e por ela o mundo
das experiências será despedaçado.”

Nenhum comentário:
Postar um comentário