domingo, 23 de novembro de 2025

O SISTEMA DO ANTICRISTO.

 


O SISTEMA DO ANTICRISTO.


CONTEÚDO

Preface
Prefácio

Introduction
Introdução

Part One: Tradition vs. the New Age
Parte Um: Tradição vs. a Nova Era

Foreword
Prefácio

1 Postmodernism, Globalism, and the New Age
1 Pós-modernismo, Globalismo e a Nova Era

2 Who are the Traditionalists?
2 Quem são os Tradicionalistas?

3 What is the New Age?
3 O que é a Nova Era?

I A Short History of the ‘Spiritual Revolution’ and the New Age Movement
I Uma Breve História da “Revolução Espiritual” e do Movimento Nova Era

II The Dangers of the Occult
II Os Perigos do Oculto

III New Age Doctrines Refuted
III Doutrinas da Nova Era Refutadas

4 New Age Authorities: A Divided House
4 Autoridades da Nova Era: Uma Casa Dividida

I The Fallacy of the Psychic Absolute: Truth and Deception in The Seth Material
I A Falácia do Absoluto Psíquico: Verdade e Engano em The Seth Material

II The Postmodern Traveler: Don Carlos Castaneda
II O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda

III Transcendence without Immanence: The Neo-Gnosticism of A Course in Miracles
III Transcendência sem Imanência: O Neognosticismo de Um Curso em Milagres

IV The Celestine Prophecy: a Pre-Columbian Singles Culture
IV A Profecia Celestina: Uma Cultura de Solteiros Pré-colombiana

V Having It vs. Eating It: The Entrepreneurial Hinduism of Deepak Chopra
V Ter vs. Consumir: O Hinduísmo Empresarial de Deepak Chopra

Part Two: Spiritual Warfare
Parte Dois: Guerra Espiritual

5 The Shadows of God
5 As Sombras de Deus

6 The War Against Love
6 A Guerra Contra o Amor

7 UFOs and Traditional Metaphysics: A Postmodern Demonology
7 OVNIs e a Metafísica Tradicional: Uma Demonologia Pós-moderna

8 Vigilance at the Eleventh Hour: A Refutation of The Only Tradition
8 Vigilância na Décima Primeira Hora: Uma Refutação de The Only Tradition

9 Comparative Eschatology
9 Escatologia Comparada

10 Facing Apocalypse
10 Encarando o Apocalipse

Index
Índice


Nasir [Xerife de Medina] virou-se de costas, com meus óculos, e começou a estudar as estrelas, contando em voz alta primeiro um grupo e depois outro; gritando de surpresa ao descobrir pequenas luzes que não percebia a olho nu. Auda nos levou a falar de telescópios — dos grandes — e de como o homem, em trezentos anos, avançara tanto desde seu primeiro ensaio que agora construía lentes tão longas quanto uma tenda, através das quais contava milhares de estrelas desconhecidas. Passamos a falar de sóis além de sóis, de tamanhos e distâncias além da inteligência.

“E o que acontecerá agora com esse conhecimento?”, perguntou Mohammed.

“Nós prosseguiremos, e muitos homens eruditos e alguns inteligentes juntos farão lentes mais poderosas do que as nossas, assim como as nossas são mais poderosas que as de Galileu; e ainda mais centenas de astrônomos distinguirão e contarão mais milhares de estrelas agora invisíveis, mapeando-as e dando a cada uma seu nome. Quando as virmos todas, não haverá noite no céu.”

“Por que os ocidentais sempre querem tudo?”, disse Auda provocando. “Atrás das nossas poucas estrelas conseguimos ver Deus, que não está atrás de seus milhões.”

“Queremos o fim do mundo, Auda.”

“Mas isso pertence a Deus”, reclamou Zaal…

T. E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom


Um grupo do meu povo não deixará de lutar pela verdade até a vinda do Anticristo… mas Deus o matará pela mão de Jesus, que lhes mostrará seu sangue sobre a lança.
Hadith


Prefácio

Neste livro tentarei realizar dez coisas:

Tomar sondagens da cena religiosa e cultural atual do ponto de vista da metafísica tradicional.

Introduzir a um público leitor mais amplo as doutrinas da “Escola Tradicionalista”: René Guénon, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon, Martin Lings, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr, Huston Smith et al., e, no processo, dar ao leitor um vislumbre da cidade do Tradicionalismo e do campo de batalha espiritual que a rodeia.

Com base na metafísica tradicional, criticar as doutrinas das espiritualidades da Nova Era dentro do contexto do pós-modernismo, do qual são uma expressão.

Demonstrar, durante essa crítica, que metafísica, misticismo e esoterismo são fundamentalmente diferentes e muitas vezes radicalmente opostos às práticas mágicas, à busca de poderes psíquicos e à canalização de “entidades espirituais”.

Demonstrar aos meus amigos cristãos que não são apenas eles que veem, no Neopaganismo e na Nova Era, um declínio na compreensão cultural tanto de Deus quanto do homem.

Apresentar tradições e profecias relativas aos “últimos dias” do ciclo presente sob o ponto de vista da religião comparada, recorrendo a doutrinas relevantes do Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo, Islã, Zoroastrismo e povos nativo-americanos.

Publicar os sinais e especular sobre a natureza social, psíquica e espiritual daquele ser conhecido pelo Cristianismo, Judaísmo e Islã como o Anticristo; apresentá-lo como indivíduo e como sistema; alertar aqueles dispostos a serem alertados contra a sedução espiritual e o terror que ele representa, e contra o regime que será — e é — a expressão social dessa sedução e desse terror.

Rastrear as raízes do Anticristo na natureza esquecida e/ou caída do homem.

Começar a definir a qualidade particular da espiritualidade própria aos tempos apocalípticos, os perigos que enfrenta e as oportunidades únicas que se abrem a ela.

Traçar meu próprio percurso desde a “revolução espiritual” dos anos 1960, passando pelo mundo das espiritualidades da Nova Era, até o limiar do esoterismo e da metafísica tradicionais.


O paradigma modernista-materialista, segundo o qual dinâmicas históricas e intervenções sobrenaturais não podem ambas ser aceitas como explicações para as notícias diárias, ainda possui força. E o pós-modernismo, agora claramente a visão dominante, embora possa estar mais próximo de validar ambas essas realidades, só as admite como mundos fechados de significado unidos por nenhum “paradigma abrangente”.

Consequentemente, fui forçado — não contra a minha vontade, mas de acordo com meu deleite — a retornar à metafísica tradicional (que, embora profundamente consistente, não pode ser um sistema fechado, já que se abre para o Infinito) como a única visão de mundo que pode dar sentido unificado à experiência pós-moderna, como a ideologia pós-moderna claramente e abertamente não pode fazer.

Às vezes escrevo como erudito, às vezes como teósofo especulativo, às vezes como popularizador de princípios metafísicos básicos para o leitor geral, às vezes como crítico social, às vezes como autobiográfico, às vezes como poeta. Cruzo essas fronteiras proibidas deliberadamente. Tão reduzida e fragmentada é a consciência da humanidade dos “últimos dias” — em parte como reflexo automático da qualidade do tempo, em parte como resultado de um programa deliberado de hipnose social em massa — que somente o choque de encontro com uma amplitude e profundidade de significação proibidas socialmente pode despertá-la, agora que choques repetidos e a subsequente anestesia a deixaram entorpecida.

O remédio específico para o choque do desespero é o choque mais profundo do significado. Onde o tempo e a história nos esmagaram sob sua “insuportável leveza”, nada além do peso da eternidade, rompendo a fina e frágil casca do céu pós-moderno, pode nos colocar de pé. Esse é um dos vários significados da palavra “apocalipse”.


Introdução

No início do terceiro milênio, a raça humana está no processo de esquecer o que significa ser humano. Não sabemos quem ou o que somos; não sabemos o que deveríamos estar fazendo aqui, em um cosmos que rapidamente se torna nada além de uma tela para a projeção de fantasias aleatórias e cada vez mais demoníacas.

A vida humana já não é sentida como valiosa diante da eternidade simplesmente porque é criação de Deus, nem nos é tão fácil quanto antes ver o empreendimento humano como valioso devido às nossas realizações coletivas ou ao impulso histórico que as produziu, já que, sem uma escala de valores enraizada na eternidade, a realização não pode ser medida, e sem uma meta eterna para a qual o tempo necessariamente tenda (no sentido espiritual, não material, dado que a eternidade não pode estar no fim de um movimento linear acelerado que é precisamente fuga de tudo que é eterno), a história é uma estrada que leva a lugar nenhum.

Chamamos esse estado de coisas de “pós-modernismo”.

Todos nós, de alguma forma, sabemos disso. Sentimos isso nos ossos. Mas não conseguimos abarcar; não conseguimos definir a escala do que enfrentamos ou do que perdemos, porque já não possuímos a verdadeira escala do que somos. Assumimos o nome de pós-modernos, mas seria mais próximo da verdade dizer que somos pós-humanos — não em essência, mas em efeito, já que qualquer conceito de natureza humana adequado à essência humana foi descartado como ultrapassado.

O humanismo não é suficiente para nos dizer o que significa ser humano. A ciência é ainda menos capaz de suportar esse fardo, razão pela qual desistiu de tentar. Somente a religião, entendida em seu sentido mais profundo, pode fazer essa pergunta e respondê-la. E somente uma compreensão completa das forças sociais e psíquicas que escondem o rosto da Realidade Absoluta e Infinita que chamamos “Deus” pode nos mostrar a escala verdadeira do que ameaça a forma humana nestes “últimos dias”, quando o ciclo presente do tempo biológico e humano aproxima-se de seu fim.

Se o nome “Deus” denota a verdade eterna das coisas, e o nome “Homem” o espelho central dessa Verdade no espaço e tempo terrestres, então o nome dessas forças de obscuridade e negação que são opostas ao “Homem”, em sua forma plenamente revelada e terminal, é “Anticristo”.


Os Últimos Dias

É comum hoje imaginar que o universo, de acordo com ideias progressistas e evolucionistas, deve de alguma forma estar avançando espiritualmente. Se concluirmos que a evolução espiritual do macrocosmo não é possível, podemos até nos perguntar qual é o valor ou proveito da existência material. Para que serve? Para que existe? Com medo de nos tornarmos “gnósticos”, que negam o valor da vida terrestre, acabamos negando o significado eterno desta própria vida.

O problema com o conceito de que o universo evolui para níveis superiores de organização, conceito básico nas doutrinas de Teilhard de Chardin, Rudolf Steiner e muitos outros mestres da Nova Era (bem como na tentativa dentro do Judaísmo de aplicar a Cabala Luriânica — e no Ismaelismo, a ideia de uma “desvelação” em massa das realidades espirituais — à evolução histórica), é a Segunda Lei da Termodinâmica.

Essa lei afirma que, por meio da entropia, a ordem geral da matéria/energia no universo está sempre diminuindo — uma diminuição inseparável, em princípio, da expansão do universo iniciada no Big Bang.

Em certo momento, cientistas postularam grandes quantidades de “matéria escura” que permitiriam ao universo contrair-se novamente, via gravitação, quando o impulso do Big Bang se esgotasse. Entretanto, no momento em que este texto foi escrito, a opinião científica tende a afastar-se dessa hipótese. Assim, parece que o universo material deve continuar expandindo-se e aumentando sua desordem para sempre.

Isso está de acordo com a metafísica tradicional.
“Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda.
“Tudo perece, exceto Seu Rosto”, diz o Alcorão.

A criação, segundo a visão tradicional, é um sucessivo rebaixamento de ordens superiores de realidade para ordens inferiores. Deus, que em Sua Essência está totalmente além de forma, número, matéria, energia, espaço e tempo, deve — como Frithjof Schuon nunca se cansou de afirmar — “transbordar” nessas dimensões da existência porque Ele é Infinito; não existe em Sua Natureza qualquer barreira que impeça a irradiação de Seu Ser superabundante.

As escatologias tradicionais, em grande parte, concordam com a Segunda Lei da Termodinâmica. Em vez de progresso — mito que não tem mais que três ou quatro séculos em sua forma moderna — elas postulam uma entropia espiritual, social e cultural.

Isso é particularmente verdadeiro no Hinduísmo e na mitologia greco-romana clássica, com sua ideia de que um ciclo de manifestação emerge completamente formado do Criador sob a forma da Idade de Ouro, seguida pela Idade de Prata, de Bronze e, finalmente, pela Idade de Ferro, que termina em um cataclismo escatológico, um Dia de Purificação, após o qual a Idade de Ouro do próximo ciclo começa.

Esse esquema é mais ou menos aceito, através de diferentes linguagens mitológicas, por judeus tradicionais, cristãos, hindus, e até pelos índios Lakota (Sioux) e outros povos primordiais. (Os budistas, embora sua doutrina de ciclos tenda a negar a possibilidade de uma renovação abrupta, também aceitam que a era presente terminará em cataclismo.)

As doutrinas dentro das religiões reveladas tradicionais que parecem falar de progresso espiritual do mundo manifestado — como o conceito na Cabala Luriânica do tikkun, ou restauração universal — são:

Uma aplicação equivocada ao coletivo de doutrinas que pertencem ao desenvolvimento espiritual individual;

Ou a ideia de que Deus continuamente cria e sustenta o mundo manifestado, podendo conceder a um indivíduo, dispensação religiosa ou nação um papel especial na renovação da Imagem Divina para uma época, dentro do contexto mais amplo da degeneração geral;

Ou a referência ao retorno escatológico de toda manifestação a Deus no fim dos tempos.

O que é criado deve deixar a Casa do Criador para existir; e aquilo que entrou na manifestação cósmica já começou a morrer.

Os crentes periodicamente prevêem o triunfo final (embora temporário) do mal nos últimos dias, o fim do mundo e a vinda do Messias. Os não-crentes zombam quando tais previsões parecem não se cumprir. Eles poderão continuar zombando até o momento em que o mundo realmente terminar, depois do qual nem crentes nem descrentes terão, em termos mundanos, oportunidade ou impulso de dizer “eu não disse?”.

Nesse último instante de verdade, encontrar-se-ão face a face com uma Realidade tão profunda e tão rigorosamente exigente que suas opiniões — certas ou erradas — e as razões psicológicas para sustentá-las desaparecerão na insignificância. Apenas o motivo essencial pelo qual se apegaram à Verdade ou caíram no erro lhes restará, como sinal de seu destino eterno diante do rosto de Deus.

Os não-crentes dizem:
“Em todas as gerações houve pessoas que pensaram viver nos tempos mais sombrios; essa lamúria sobre degeneração humana nos ‘últimos dias’ não é novidade.”

E os crentes — ao menos os tradicionais — concordam. Segundo um hadith do Profeta Muhammad (que a paz esteja sobre ele):
“Não virá sobre vós uma geração que não seja seguida por outra pior.”

A história não desce de forma uniforme — há picos e vales, reavivamentos religiosos, retificações, renovações parciais de tradições espirituais, pequenas e breves idades de ouro, lutas heroicas para restabilizar a sociedade em níveis mais baixos, renascimentos impulsivos baseados no desejo de dissipar o capital cultural e espiritual herdado — mas a direção é sempre da ordem para o caos.

A capacidade humana de ver, compreender e nutrir-se das realidades espirituais superiores se reduz inevitavelmente. À medida que se afasta do Sol espiritual, a luz da Verdade diminui; o calor da Vida desvanece.

O resultado final desse processo é o fim de um mundo ou de uma idade.
Esse mundo pode nunca terminar nos calendários dos simplórios que tomam literalmente as previsões, mas ele terá de terminar algum dia.

E considerando que hoje possuímos mais meios de autodestruição do que qualquer geração anterior, a distância entre nós e as condições finais não parece infinita.

Se considerarmos seriamente a possibilidade de estar vivendo nos últimos dias, enfrentamos dois problemas:

Definir o que “últimos dias” significa;
E decidir se há evidências além de sentimentos sombrios que justifiquem essa conclusão.

Meu argumento não é que vivemos nos últimos dias absolutos da criação — pois ninguém sabe quando virão — mas nos últimos dias de um ciclo de existência humana, marcado por degradação gradual espiritual, social e cultural, conduzindo a uma ruptura.

Estamos, como nunca antes na história humana, com meios concretos de pôr fim ao mundo: seja por guerra nuclear, química ou biológica, seja pela degradação ambiental — ou ainda pela desconstrução da própria forma humana por meio de engenharia genética movida por forças econômicas cegas, pelos caprichos de tolos emocionalmente desequilibrados ou inspirados demoníacamente, e certamente pelo medo e pelo desejo humanos primordiais, não temperados nem pela sombra da sabedoria. Uma meditação sobre os Tempos Finais é, no mínimo, oportuna.

E, na verdade, ela é sempre oportuna. Todos os dias uma nova geração passa para o esquecimento. É sempre o pior dos tempos: um dia mais distante do Jardim do Éden, quando o mundo, recém-saído das mãos do Criador, era jovem — e sempre o melhor dos tempos: um dia mais próximo do Momento inevitável em que a contingência e a ilusão precisam ruir, e a Realidade Absoluta deve amanhecer, de forma definitiva, sobre este mundo que morre, esta imagem móvel da Eternidade.


O Anticristo

A degeneração espiritual da humanidade não pode continuar indefinidamente; ela deve atingir um ponto terminal, além do qual a própria forma humana, ao menos em sua encarnação terrena, já não poderia sobreviver. E, em consonância com o princípio corruptio optimi pessima — “a corrupção do melhor é a pior” — o ponto mais baixo da receptividade espiritual humana deve, segundo muitas tradições espirituais, manifestar-se não apenas como o desaparecimento da espiritualidade, mas como a sua falsificação satânica.

É daí que vem o mito do Anticristo — mito que, poucos percebem, é tão importante no Islã quanto no Cristianismo, já que os muçulmanos acreditam que o profeta Jesus retornará à terra no fim dos tempos para enfrentar esse Adversário e matá-lo em batalha.

Assim como o ego é a sombra do Eu Divino em nós, o Anticristo é a sombra do Messias — do salvador escatológico que representa o desvelamento completo do Eu Divino no fim do ciclo. Muitas vezes, o ego chega a um clímax de desespero, delírio e violência justamente quando um avanço espiritual é iminente; da mesma forma, o Anticristo reunirá em si todas as forças sociais e psíquicas que escolheram resistir a Deus exatamente no momento em que o Rosto do Absoluto estiver prestes a amanhecer sobre o mundo. As palavras de Mestre Eckhart poderiam muito bem ter sido ditas sobre o Anticristo, assim como foram certamente ditas sobre o ego humano: “Quanto mais ele blasfema, mais ele louva a Deus.”


O Messias

Ao longo da história, religiões que esperam por um Messias sempre tenderam a concretizá-lo. De tempos em tempos surge um Mahdi no Islã, apenas para ser cooptado ou derrotado. Sabbatai Zevi, falso messias do século XVII, comoveu profundamente o mundo judaico, apenas para depois converter-se ao Islã sob ameaça de morte imposta pelo sultão turco. E o Cristianismo certamente não está livre de seus falsos Cristos e falsos profetas. Então quem é o verdadeiro Messias? Como reconhecê-lo?

O verdadeiro Messias está eternamente chegando ao mundo, eternamente rompendo suas dimensões espaço-temporais e eternamente atraindo seus seguidores para a comunhão de Seu reino. Na medida em que os “falsos” messias são receptivos a essa verdade, são, de certo modo, messias parciais — reflexos imperfeitos do próprio Messias. Mas, na medida em que se identificam com o papel messiânico no nível do ego, alimentando assim o ego coletivo dos seus seguidores — e é o que sempre fazem — tornam-se anticristos.

A humanidade, afundada no materialismo, não pode ser despertada do “pesadelo da história” sem algum tipo de esperança histórica. Mas essa esperança é sempre frustrada. A revolução é cooptada. A renascença se desfaz. A renovação espiritual torna-se alimento para a literalização da doutrina e o enrijecimento das linhas sociais e culturais. O Espírito está sempre dando vida; a letra está sempre arrastando essa vida para o túmulo da contingência, para o tempo e para a história.

Aqueles que, respondendo à esperança messiânica, passam do turbilhão do tempo para a visão da Eternidade encontraram o verdadeiro Messias. Aqueles que não rompem seu pacto com o tempo — porque esperam algo do destino e da contingência, ou porque acreditam tola e arrogantemente que podem manipulá-los — caíram na armadilha do Anticristo.

Quando, então, virá o verdadeiro Messias? A resposta é sempre dupla: Ele virá Agora; Ele virá no Fim. Se habitamos o Agora, estamos à Sua espera; se não ocupamos o Agora, perderemos Sua vinda. Já O perdemos inúmeras vezes. Mas quando o Agora e o Fim coincidirem — o fim deste ego, o fim deste mundo — então estaremos na presença do Messias.

A história sempre nos leva para longe do dia da vinda messiânica, longe da porta do Agora — e, no entanto, a história um dia terá de terminar; esta partida infinita deverá, num instante misterioso, transformar-se em chegada. O que recebemos no segredo do coração e o que surge nos “horizontes” da realidade exterior devem um dia convergir. Como diz o Alcorão: “Eu lhes mostrarei Meus sinais nos horizontes e em si mesmos, até que saibam que isto é a Verdade. Não vos basta isso, visto que Eu sou Testemunha de todas as coisas?”


A Profecia de René Guénon

Minha abordagem fundamental neste livro segue a metafísica tradicional, tal como apresentada pelos autores da Escola Tradicionalista. Para a metafísica “pura”, segui sobretudo Frithjof Schuon. Para a própria escatologia — a ciência das “últimas coisas” — apoiei-me em Martin Lings, especialmente em seu livro The Eleventh Hour, e ainda mais no fundador dos Tradicionalistas, René Guénon, cujo livro profético O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, publicado em 1945, torna-se mais relevante a cada ano que passa.

Mas, embora tenham sido os Tradicionalistas que me apontaram os caminhos para as escrituras das religiões do mundo, para os escritos dos grandes sábios e para as lendas dos povos primordiais, não me limitei estritamente às doutrinas deles; em muitos casos consultei diretamente os documentos primários. Parafraseando Blake, olhei através dos olhos deles, e não com eles.

Em O Reino da Quantidade, Guénon via a história segundo o conceito hindu de manvantara — o ciclo de manifestação composto de Idades de Ouro, Prata, Bronze e Ferro. Ele via esse ciclo como uma descida inevitável do polo da Essência, ou forma — o Purusha hindu — para o polo da Substância, ou matéria — a Prakriti hindu. A Essência é qualitativa, embora transcenda a própria qualidade. A Substância é quantitativa, embora, em realidade, esteja abaixo da própria quantidade.

À medida que o ciclo progride — ou melhor, desce — a própria natureza do tempo e do espaço se transforma. Nas idades antigas, o espaço domina; as formas das coisas são mais importantes, mais reais, do que as mudanças que sofrem; o tempo é “relativamente eterno”. Porém, conforme o ciclo avança, o tempo começa a dominar, derretendo o espaço e as formas nele contidas, até que tudo se torna um fluxo acelerado de mudança.

Talvez compreendamos melhor o que Guénon quis dizer se lembrarmos que, quando estamos em profundo silêncio e calma, o espaço parece mais real que o tempo; quando estamos agitados, o tempo parece mais real que o espaço. E não é difícil perceber como modos de viagem mais rápidos e, sobretudo, os meios eletrônicos — que agitam e perturbam a consciência — também aniquilam o espaço; o ciberespaço, em particular, é a aniquilação de toda dimensão espacial. Nos últimos dias, nada mantém uma forma estável. Tudo se move cada vez mais rápido, até que toda forma — incluindo a Forma Humana — torna-se um borrão disforme.

Mas essa aceleração constante do tempo não pode continuar para sempre. Em algum ponto, ela terá de cessar. “O tempo devorador”, cita Guénon, “acaba por devorar a si mesmo.” No fim do tempo, o tempo será instantaneamente transformado novamente em espaço. Esse ponto supremo e atemporal é simultaneamente o fim deste ciclo de manifestação e o início do “próximo”.

Mas antes dessa transformação última, nos últimos dias do ciclo atual, certos desenvolvimentos finais devem ocorrer. Como a quantidade tem relação particular com a matéria, o “reino da quantidade” deve também ser o reino do materialismo — e onde ideias materialistas dominam, o próprio ambiente cósmico torna-se, de certo modo, mais material. A “era dos milagres” cessa; o mundo torna-se menos permeável às influências dos planos superiores de realidade; a própria crença nesses planos — bem como num Deus eterno e transcendente — torna-se mais difícil de sustentar.

A própria densidade do materialismo, contudo, acaba produzindo uma espécie de “fragilidade”. O ambiente cósmico, tendo perdido boa parte da flexibilidade que lhe permitia ser movido pelo Espírito Divino, começa a rachar, como uma árvore velha que já não pode curvar-se ao vento, e termina por ser arrancada pela tempestade. Mas essas fissuras no ambiente cósmico — na “Grande Muralha” que separa o mundo material do mundo das energias sutis — ocorrem primeiro no sentido descendente, e não ascendente, permitindo a entrada de uma inundação de forças “infra-psíquicas”, ora neutras, ora demoníacas.

Na volatilização geral do mundo sensível produzida pela mídia eletrônica e por nossa “cultura da informação”; talvez também pelo predomínio da poluição eletromagnética e pela liberação de energia nuclear; pelo interesse contemporâneo em drogas psicodélicas, magia e poderes psíquicos; e mais claramente pelo chamado “fenômeno OVNI”, que teve um efeito incalculável sobre nossa visão comum da realidade — podemos ver os efeitos diretos dessas forças sobre a qualidade da nossa consciência, sobre a estrutura da nossa sociedade, sobre nossas formas culturais e sobre nossas prioridades econômicas.

E essas forças infra-psíquicas não operam sozinhas. Tendências culturais formam-se ao redor do zeitgeist infra-psíquico, e, dentro desse contexto, grupos organizados surgem em resposta às forças que lhes deram origem. Em alguns casos, esses grupos consistem apenas de pessoas que adotam os mitos modernistas ou pós-modernistas do “espírito do tempo”. Em outros casos, entretanto, tais grupos adoram abertamente as forças que os inspiraram, sem compreender que se colocaram contra a sabedoria perene, contra as verdades metafísicas das eras. A estes Guénon chama de “anti-tradicionais” ou “pseudo-iniciáticos”. A maior parte das organizações Nova Era se encaixaria nessa definição. E, por fim, existem grupos cujo objetivo é minar deliberadamente a religião revelada e a metafísica tradicional, para instaurar o reino do Anticristo; estes, segundo Guénon, são os agentes da “contra-tradição” e da “contra-iniciação”: “os contemplativos de Satanás”, cuja função é subverter não apenas a religião exotérica, mas também a espiritualidade esotérica.

Por mais deprimente que isso possa soar, tais desenvolvimentos são totalmente legítimos, dadas as condições finais do ciclo. As possibilidades mais baixas da manifestação também precisam ter seu dia; e, felizmente, como são inerentemente instáveis — baseando-se não na Verdade, mas apenas no poder — esse dia será breve. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” E existem certas possibilidades espirituais da mais alta ordem que nunca poderiam ser realizadas senão diante desse desafio demoníaco extremo à integridade do espírito humano.


Meus Dignos Oponentes

Neste livro, tentarei, entre outras coisas, expor os erros do pós-modernismo criticando algumas das doutrinas centrais daquilo que passou a ser chamado de “espiritualidade da Nova Era”, o nome contemporâneo de uma vertente do ocultismo extra-cristão — e às vezes anti-cristão — que pode ser rastreada ao menos até a Renascença. Se o pós-modernismo é a negação filosófica final da metafísica, então uma análise da falsa metafísica da Nova Era é uma via pela qual o pós-modernismo pode ser criticado — não necessariamente a melhor, mas sem dúvida a que estou mais apto a trilhar, dada minha formação.

Seja dito claramente, antes de prosseguir:

Primeiro: o mundo das espiritualidades da Nova Era não é, em si, o sistema do Anticristo. Toda espiritualidade na Terra acabará contribuindo com algo para esse regime — as falsas espiritualidades por sua própria existência; as verdadeiras, segundo o princípio corruptio optimi pessima, porque “a corrupção do melhor é a pior”. É por isso que, por exemplo, os muçulmanos acreditam que o Anticristo será muçulmano, e os cristãos ortodoxos acreditam que ele surgirá da Ortodoxia Oriental.

Segundo: nem todos os envolvidos com espiritualidades da Nova Era são necessariamente almas perdidas. Alguns — Deus o sabe — podem até ser santos. Apesar do comercialismo que permeia a Nova Era, muitos de seus praticantes são sinceros. E, já que o Espírito de Deus “sopra onde quer”, alguns deles estão inevitavelmente na longa e espinhosa estrada para a plenitude da Verdade divina, embora eu jamais indicasse tal estrada a quem busca a Verdade. Isso não significa que a sinceridade seja suficiente para proteger alguém dos danos intelectuais e espirituais causados por doutrinas objetivamente falsas; significa apenas que o sincero é capaz de arrepender-se de seu erro quando confrontado com a Verdade objetiva, ao passo que o hipócrita não o é.

Terceiro: não pretendo atribuir a todos os mestres da Nova Era ou ideólogos pós-modernistas os mesmos erros. A maioria dos meus adversários deplora muitos dos males modernos que eu também deploro. Não estou dizendo que fazem parte de uma vasta conspiração unificada. Apenas os tomo como marcos nos diversos afluentes que correm para o centro da escuridão contemporânea.

Quarto: nem todas as práticas da Nova Era são necessariamente destrutivas. Algumas, especialmente várias formas de cura holística, são simplesmente boas. Eu mesmo usufruí benefícios reais delas.

Dito isso, porém, preciso deixar absolutamente claro que, em minha opinião informada, o movimento geral da crença Nova Era caminha em direção a um ponto extremamente sinistro e perigoso da bússola espiritual. Além disso, tomarei como axioma neste livro que, sempre que a doutrina Nova Era contradiz o que se convencionou chamar de “filosofia perene” — os princípios metafísicos centrais compartilhados por todas as grandes religiões e tradições sapienciais — a Nova Era está em erro, e não a sabedoria das eras.


Minha História

Fui criado católico — mais ou menos tradicional — já que a maior parte da minha vida católica, até por volta dos dezesseis anos, deu-se numa Igreja essencialmente pré-Vaticano II. Costumo dizer que pertenço à última geração católica (os Baby Boomers) que podia se identificar plenamente com Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce.

Sendo um Baby Boomer vivendo na área da baía de São Francisco, passei pela contracultura hippie, protestei contra a Guerra do Vietnã — estive nas ruas na Convenção Democrata de Chicago em 1968 — experimentei drogas psicodélicas, senti atração pelo Hinduísmo e pelo Budismo, e passei por um flerte autodidata com xamanismo e kundalini yoga. Também fui poeta (secretamente ainda sou) e pupilo do poeta da Geração Beat Lew Welch, que me apresentou ao meu primeiro verdadeiro iniciado sufista, Samuel Lewis (conhecido carinhosamente, no estilo hippie, como Sufi Sam), bem como a Carlos Castaneda — escritor e praticante de alguma forma de feitiçaria indígena norte-americana — antes que ele se tornasse famoso demais para arriscar aparecer nas praias hippies.

festas com participação do Grateful Dead. (“Ponho diante de ti a morte e a vida: escolhe, pois, a vida.”)

Na primeira metade dos anos 80 passei por um segundo período de ativismo político, em oposição à intervenção norte-americana na Nicarágua e em El Salvador, quando minha esposa e eu nos juntamos a uma igreja presbiteriana local para participar do movimento Santuário para refugiados centro-americanos, e para adorar a Deus (possivelmente nessa ordem). Nesse período estivemos imersos na cosmovisão da Teologia da Libertação, que hoje descrevo como o modo mais generoso e compassivo ainda aberto à tradição cristã, caso ela deseje destruir a si mesma. Ainda assim, continuo convencido de que, se não fossem os esforços das igrejas norte-americanas, teríamos enfrentado um segundo Vietnã na América Central e no sul do México, vastamente mais destrutivo para a cultura dos Estados Unidos e para sua estabilidade política do que uma guerra distante na Ásia.

Na segunda metade dos anos 80 fiz uma passagem pela Nova Era, não porque sentisse qualquer identificação profunda com ela — embora, a despeito da minha atitude de “grão de sal”, em algum lugar eu devesse acreditar nela — mas porque queria ver se ainda restava algo da “revolução espiritual” dos anos 60, e porque conviver com pessoas menos responsáveis do que eu me fazia parecer muito mais sábio e maduro aos meus próprios olhos. Encontrei alguns poucos “yuppies” em ascensão liderando uma massa maior de semi-hippies ou ex-hippies em decadência, rumo a uma esperada “mudança de paradigma” vagamente messiânica, que acabou se revelando, a meu ver, nada mais do que a vanguarda de sensibilidade terna do atual globalismo econômico de mentalidade dura. Os Novaeristas dos anos 80 eram hábeis em articulação global, incluindo a “diplomacia cidadã” com a União Soviética, mesmo antes do nascimento da World Wide Web, embora também houvesse muitos pioneiros da informática pessoal entre eles. Através da Global Family e de outras redes, organizamos vários Dias de Oração pela Paz Mundial, culminando, em agosto de 1987, na Convergência Harmônica, criação do artista visionário e manipulador de símbolos José Argüelles. A Convergência Harmônica foi o primeiro — e possivelmente o último — verdadeiro evento popular internacional. Baseando-se na interpretação de Argüelles do calendário maia, 16 e 17 de agosto de 1987 deveriam anunciar uma grande mudança no equilíbrio energético da Terra e na qualidade da consciência global.

A Convergência reuniu como nunca antes Novaeristas, cristãos liberais, hindus, budistas e povos primordiais de todo o mundo. Índios americanos dos dois hemisférios, wiccanos britânicos e até aborígenes australianos participaram, encenando rituais simultâneos de iluminação e cura da Terra, de natureza extremamente variada e ambígua.

De uma forma modesta, fui um dos organizadores da Convergência. Conduzi um retiro no Monte Tamalpais, no condado de Marin, Califórnia. Recolhi sonhos do mundo inteiro, sonhados na Convergência ou próximos a ela, e os encadernei em um manuscrito que chamei de The Harmonic Convergence Book of Dreams. Antes e depois da Convergência, explorei e pratiquei várias formas de “sonho xamânico” — pelo menos era assim que eu chamava.

Então, acabou. Ou nada aconteceu, ou algo aconteceu. O que me aconteceu foi que percebi, bem no centro do meu ser, que eu estava indo longe demais, em direções demais, sem orientação nem mapas. O caos se avizinhava. E se não salvássemos a Terra? E se a revolução espiritual não se desenrolasse como planejado? E se a maior parte — ou tudo — do que fazíamos não passasse de fantasia infantil, ou talvez das primeiras notas de alguma sinfonia ascendente de trevas?

Pela graça de Deus, dei meia-volta, cento e oitenta graus, e busquei orientação numa fonte tradicional: o esoterismo islâmico. Doze anos depois, posso olhar para trás e ver quão por pouco escapei da destruição.

Minha Confissão

Eu adoraria poder escrever este livro no estilo da maioria dos autores da Escola Tradicionalista, simplesmente deixando a Verdade falar por si mesma, sem intromissões autobiográficas ou confessionais da parte do autor. Mas não posso fazê-lo. Este livro é autobiográfico e confessional porque, sendo um livro sobre o Anticristo, o assunto sou eu, é o meu ego. Se eu não admitisse esse fato, The System of Antichrist induziria meus leitores ao erro; seria um ato de desonestidade.

Muitos mestres espirituais dizem que, seja qual for o mal que você veja no mundo, saiba que você é a fonte última dele. Tudo o que acontece é vontade de Deus, e Deus só quer o bem; a visão do mal não passa da visão do próprio ego; o Anticristo é, precisamente, o ego. A nota dominante do meu ego é “medo da matéria” ou “medo do mundo” — fato que explica, aliás, minha antiga atração pelo gnosticismo, que teceu um universo inteiro de heresia, ainda que muito plausível, em torno desse mesmo medo. Esse é o meu trauma essencial, meu grande ponto cego, meu apego central. Cheguei até a inventar uma piada: “Você soube da novidade? Os cientistas descobriram que a própria matéria é tóxica.” O interessante é que, quando conto essa piada, cerca de sete em cada dez ouvintes não veem graça nenhuma: “Sério? Descobriram mesmo?” Tomo isso como sinal de que o meu estilo de ego, embora seja inteiramente de minha responsabilidade e certamente não seja culpa de mais ninguém, é na verdade bastante comum no nosso tempo — fato que não deveria surpreender, dado o estado atual do mundo. E assim a história do meu ego, refletida não no espelho de sua própria subjetividade, mas tanto quanto possível na Objetividade Divina, o Espelho de Deus, pode — se Deus quiser — ser de alguma ajuda para outros que estejam vivendo estes mesmos últimos dias do ciclo presente.

Dizer que “todo mal está no ego” não é, contudo, negar a experiência humana universal de um mundo que, muitas vezes, está cheio de ilusão e sofrimento; qualquer outra coisa violaria a virtude da compaixão. A Manifestação Divina transmite em todos os canais; o pecado do ego é simplesmente manter a atenção sintonizada em faixas cada vez mais estreitas. O ego não cria, em outras palavras; ele apenas edita. O mal que ele vê é uma versão editada de uma situação objetiva real que, em última instância, é o próprio Deus. Meu ego não inventou os males e falsidades revelados neste livro; ele apenas prestou atenção a eles. Mas, se algo é percebido apenas pelo ego, cai no ponto cego do ego (que, claro, é tudo o que o ego realmente é); desaparece de vista. Tudo aquilo com que o ego se ocupa ele passa a identificar consigo mesmo — e, com o que se identifica, já não consegue enxergar.

No processo inverso, de purificação espiritual ou catarse, aquilo que o ego manteve oculto começa a aparecer, primeiro como uma série de males a serem combatidos, depois como um conjunto de pecados dos quais é preciso arrepender-se, em seguida como um espectro de ilusões a serem desmascaradas e, por fim, como uma constelação de atos de Deus, perfeitos em essência — quer expressem o deleite misericordioso do Divino, que acompanha a conformidade voluntária à lei da forma humana tal como Deus a criou, quer expressem a justiça severa do Divino, que compensa e, em última análise, cura nossas violações dessa forma.

O ego inconsciente, feliz em sua própria cegueira e em sua crença ingênua em seus próprios desejos, é o que o sufismo chama de “eu que ordena”, o eu que incita ao mal. O ego que combate o mal é o “eu acusador”, descrito como “mau” (porque testemunha o mal), “mas não incitador do mal”. (Como escreveu certo correspondente de guerra no Vietnã: “Aprendi que você é tão responsável pelo que vê quanto pelo que faz.”) A guerra travada pelo eu acusador embrionário contra os males externos é o “menor jihad”, geralmente traduzido como “guerra santa”; e a luta travada pelo eu acusador amadurecido contra seus próprios pecados é o “maior jihad”. A psique purificada do egocentrismo, que vê todos os acontecimentos como atos perfeitos de Deus, sem por isso tornar-se cega ou insensível ao sofrimento alheio, é chamada de “eu em paz”.

O clássico da Ortodoxia cristã, a Filocalia, comenta assim o momento de transição do “eu que ordena” para o “eu acusador”, que defini como “o menor jihad”:

“O conhecimento espiritual nos ensina que, no início, a alma em busca da teologia [que, na Ortodoxia oriental, significa realização espiritual, não mera teoria] é perturbada por muitas paixões, sobretudo pela ira e pelo ódio. Isso não acontece tanto porque os demônios estejam atiçando essas paixões, mas porque ela está progredindo. Enquanto a alma é mundana, permanece imóvel e imperturbável, por mais que veja as pessoas pisoteando a justiça. Absorvida em seus próprios desejos, não presta atenção nenhuma à justiça de Deus. Quando, porém, por desprezo deste mundo e amor a Deus, ela começa a elevar-se acima de suas paixões, não consegue suportar, nem mesmo em sonhos, contemplar a justiça sendo desprezada. Enfurece-se contra os malfeitores e permanece irada até ver os violadores da justiça obrigados a reparar o que fizeram.

É por isso que ela odeia o injusto e ama o justo. O olho da alma não pode ser desviado quando o seu véu — quero dizer, o corpo — é refinado até tornar-se quase transparente pela prática da autodominação. Ainda assim, é muito melhor lamentar a insensibilidade dos injustos do que odiá-los; pois, mesmo que mereçam nosso ódio, é insensato que uma alma que ama a Deus seja perturbada pelo ódio, já que, quando o ódio está presente na alma, o conhecimento espiritual fica paralisado.”

Sem uma passagem pelo deserto do combate espiritual — exterior e interior — não há chegada à Morada da Paz. Alguns, porém, permanecem tempo demais nesse deserto, lutando para se arrepender, mas incapazes de “arrepender-se do arrependimento”. Nas palavras de Omar Khayyam:

“Vem, enche a Taça e, no Fogo da Primavera,
Lança fora o Manto de Inverno do Arrependimento;
A Ave do Tempo tem tão pouco caminho a voar —
E eis que a Ave já está em pleno voo.”

Este livro é, em parte, uma Jeremiada, uma denúncia dos males e falsidades do mundo pós-moderno e do reino das espiritualidades da Nova Era. Essa dimensão de The System of Antichrist nasce dos primeiros movimentos do eu acusador, que precisa ser temperado no campo do menor jihad, o mundo da luta social. Mas, no decorrer da escrita, comecei a perceber que todo erro que eu via e denunciava nos outros, eu mesmo já acreditara nele — muitas vezes, até bem pouco tempo atrás. Em alguns casos, o próprio ato de escrever esbarrou em resíduos vivos de erros que eu ainda não queria abandonar, e acabou expulsando-os. Essa dimensão do livro constitui uma espécie de “Confissões”; é escrita a partir do eu acusador propriamente dito, cujo campo é o maior jihad, onde o que antes era ataque e defesa agora é autoexame e arrependimento. E que outro tipo de abordagem, senão uma abordagem ao menos parcialmente confessional, poderia me dar o direito de denunciar males e expor erros alheios, cometidos por pessoas que, por tudo o que sei, podem estar mais próximas de Deus do que eu?

O neopaganismo (em sua vertente céltica), a feitiçaria e as ideias da Nova Era já foram, um dia, realidades vivas para mim. Tomei o material de Seth — a divinização da dimensão psíquica — como Evangelho, durante anos, e até experimentei com canalização. Como em A Course in Miracles, eu ansiava por negar as limitações do mundo contingente em que vivemos, fingindo que as condições da realidade desencarnada poderiam ser realizadas aqui e agora, sem sacrifício ou sofrimento. Brinquei com feitiçaria à maneira de Carlos Castaneda, usando alguns de seus métodos e outros que intuí ou inventei, durante um período sombrio e traumatizado da minha vida. Cheguei à beira do mundo que ele propunha, caracterizado por acontecimentos inexplicáveis de estranha profundidade e por alguns episódios de verdadeira “ação à distância” (ação de quem, hoje me pergunto), mas não avancei mais por essa estrada simplesmente porque não via por que fazê-lo. (Agradeço a Deus por ter enviado um anjo, invisível para mim na época, que me barrou o caminho.) Como Deepak Chopra, eu esperava que uma compreensão técnica e um uso operativo da Verdade espiritual produzissem automaticamente bem-estar físico e material. Como em A Profecia Celestina, imaginei-me membro de uma vanguarda espiritual iluminada, capaz de mudar o rumo descendente da história apenas confiando e agindo sobre nossas intuições, sem nenhuma orientação de uma tradição revelada ou de um Mestre espiritual. Como John Mack, permiti que minha mente se detivesse em realidades sinistras, e as chamei de boas. Como William Quinn, esperei que minha compreensão da metafísica me colocasse entre os pioneiros de uma Nova Ordem Mundial, concedendo-me pertencimento a um grupo cuja influência sobreviveria ao holocausto que se aproximava. Por meio de um poema épico de inspiração blakiana/gnóstica, cheguei até a desejar, como Benjamin Creme, anunciar um Messias desenhado em grande parte por mim mesmo, e forçar magicamente sua aparição para salvar o mundo. Consequentemente, hoje sou compelido a “mascar pregos” enquanto escrevo sobre o Anticristo — porque, outrora, sem saber, ou pelo menos sem admitir, estive entre seus servidores.

Cada uma dessas experiências, desses falsos começos, dessas excursões sem guia ou mal orientadas, deixou sua marca em minha alma; por isso, o Caminho espiritual, para mim, às vezes se pareceu ao trabalho de desembaraçar um fardo de arame farpado enferrujado. Com base nos meus próprios erros, hoje sou capaz de alertar outros. Espero que, ao fazê-lo, acabe se revelando que meus erros não foram inteiramente em vão, e que William Blake não estivesse apenas arranjando desculpas ao dizer: “Se o Tolo persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio.”

Minha Apologia

Este livro representa, para mim, uma luta entre duas concepções aparentemente opostas sobre a natureza da existência e da vida espiritual. Essas concepções rivais tomam o campo como campeãs de dois lados da minha alma — ou talvez as “duas almas” que “habitam em meu peito, apartadas”, segundo as palavras de Goethe, sejam, na verdade, as campeãs dessas concepções. Aceito pela fé — que, nas palavras de São Paulo, é “a prova das coisas que não se veem” — que essas duas visões da realidade não são, em última instância, opostas, porque o Ser é Um. Como no combate cavalheiresco entre Balin e Balan, em Morte d’Arthur, de Malory, os irmãos lutam apenas porque não se reconhecem; seus rostos estão mascarados. Mas o nível em que a oposição aparente entre eles se resolve é tão profundo na própria natureza de Deus, que só o vislumbrei raramente, e mal comecei a aprender a vivê-lo.

Por um lado, minha tradição e meu Mestre espiritual me ensinam que, se vejo algo de errado na criação de Deus, esse erro está em mim; que todos os acontecimentos são atos de Deus, e que tudo o que Deus faz é bom. Creio profundamente que isso é verdade; às vezes até o soube, de fato. Por outro lado, Deus impôs a mim, como parte essencial do meu caráter, a necessidade de dizer Não ao “Mundo”, de recusar, no núcleo da minha vontade espiritual, “comprar” o que esse Mundo oferece e o que afirma ser verdadeiro. O imperativo dessa recusa está presente em toda tradição espiritual, em que o conhecimento de que o mundo relatado pelos sentidos é, na realidade, uma manifestação velada da Verdade Absoluta é sempre equilibrado pelo mandamento de rejeitar, ao menos para si, as crenças e agendas daqueles que não percebem isso.

“O Mundo” é a concepção coletiva das coisas fundada no ego humano. Aquilo que é bom do ponto de vista espiritual, o “Mundo” chama de mal ou loucura; aquilo que é fundamentalmente destrutivo para qualquer possibilidade de libertação espiritual e autotranscendência, o “Mundo” chama de sábio e bom. Meu sufismo me ensina que esse “Mundo” é, em essência, nada mais do que o meu ego, e que a melhor maneira de superar esse ego é esforçar-me por ver como todas as coisas são atos, ou faces, ou palavras de Deus.

— exceto eu. Nas palavras de Lao Tsé: “todas as coisas são claras; só eu estou turvo.” E isso é profundamente verdadeiro: nada vela o rosto de Deus em todas as coisas além desse pequeno “eu”, fundamentalmente inexistente. Mas a prática espiritual de ver todas as coisas, exceto o “eu”, como manifestações de Deus, como qualquer outra prática espiritual, pode dar errado. E o ponto em que uma prática baseada numa verdade espiritual profunda se retorce e se desvia é, inevitavelmente, o terreno fértil de um erro espiritual profundo.

O Islã é considerado uma religião militante. Não é, em teoria, mais militante do que o Hinduísmo, com sua concepção de combate divinamente ordenado no Bhagavad-Gita, nem, na prática, mais do que o Cristianismo com suas Cruzadas. Até mesmo o Budismo, a religião mais comprometida com a não violência, absorveu o credo Samurai e apoiou o esforço de guerra japonês na Segunda Guerra Mundial. Porém o Islã, como o Judaísmo em certos aspectos, cresceu em meio à guerra; poucos anos depois da morte do Profeta, o dār al-Islām era um império mundial construído pela espada. Essa militância, os sufis em grande parte sublimaram, seguindo o conhecido hadith do Profeta, segundo o qual, quando retornava com seus seguidores de uma campanha militar, disse-lhes: “Agora retornamos do jihad menor ao maior.” “E o que é o jihad maior?” “A guerra contra a alma [passional]” — o eu que ordena. (A palavra russa podvig, da tradição ortodoxa oriental, frequentemente traduzida como “feito ascético”, exprime uma ideia semelhante.) Isso não significa, porém, que os sufis tenham rejeitado totalmente o jihad menor. Muitos sufis, como alguns santos cristãos, participaram de guerras. Ali ibn Abi Talib foi ao mesmo tempo o grande herói militar da primeira geração do Islã e o primeiro mestre espiritual, depois do próprio Profeta, reivindicado pela maioria das ordens sufis vivas. Tanto a cavalaria cristã quanto a muçulmana reconheceram que a agonia, a exaltação e o auto-sacrifício da batalha podiam ser dedicados a um fim espiritual; o jihad menor podia, se Deus quisesse, ser colocado a serviço do maior.

Mas jihad não significa simplesmente “guerra santa”; é melhor traduzido como “esforço no caminho de Deus”. Esse esforço pode ser pela justiça social, pelo alívio do sofrimento humano ou pela preservação de uma tradição espiritual. É claro que não há dúvida de que tal luta pode, às vezes, aumentar o egocentrismo em vez de superá-lo — sobretudo o egocentrismo coletivo. Adorar a própria nação, ou mesmo a própria religião, no lugar de Deus é uma das piores formas de idolatria, e a mais difícil de reconhecer, porque alguém pode demonstrar enorme auto-sacrifício em favor de ídolos nacionais ou religiosos, até a morte. No entanto, também se pode sacrificar a própria vida por um ídolo como o álcool; e há perigo de idolatria também no jihad maior, pois orgulhar-se das próprias “conquistas espirituais” é entregar todo o próprio tesouro a Iblis (o Satanás muçulmano), que é perito em disfarçar orgulho espiritual como a mais profunda humildade e auto-sacrifício.

Este livro foi concebido como uma luta, um jihad contra os erros espirituais do pós-modernismo e da Nova Era. Esses erros existem no Mundo; são tão objetivamente reais — e ainda mais destrutivos espiritualmente — do que qualquer exército material de bárbaros, totalitários ou terroristas. São como uma quinta coluna: destroem a religião a partir de dentro, corrompem a alma humana. Como ídolos, deixam sua marca na alma de todos os que os adoram. E como eu próprio adorei esses ídolos, devo agora assumir parte da responsabilidade por derrubá-los. E da mesma forma que posso apontar doutrinas espirituais bem definidas — começando pela poesia de William Blake e, neste momento, incluindo os escritos de Frithjof Schuon, dos demais autores da Escola Tradicionalista e de meu próprio Mestre espiritual — que literalmente salvaram minha vida espiritual (ainda que, no caso do meu Mestre, eu tenha sido salvo não tanto por seus escritos quanto por sua Presença), agora espero, se Deus quiser, estender essa ajuda espiritual — não em meu nome, mas em nome de meus mestres — a todos os que sejam capazes de dela se beneficiar.

Mas, ao fazer isso, preciso contradizer e criticar as palavras de outras pessoas. Espero ser capaz de fazê-lo cavalheirescamente, sem ferir desnecessariamente os sentimentos ou manchar o caráter de meus oponentes. Mas este é um ideal que, na prática, não pode ser alcançado por completo. É claro que sentimentos serão feridos. Assim como ninguém pode empunhar a espada material sem dar e receber ferimentos, também não se pode brandir a espada intelectual sem isso acontecer. Meu Mestre me diz que não é próprio de um sufi criticar as crenças religiosas alheias. E sempre foi meu costume estender de bom grado, não apenas tolerância, mas verdadeira veneração e apoio a todas as fés autênticas, costume que em geral está em consonância com o ensinamento do Alcorão. Todavia, Muhammad expulsou os ídolos pagãos da Caaba. Ele foi, então, inimigo da religião? Não, porque aqueles ídolos não representavam a religião, mas a corrupção dela. Os autores que critico nominalmente neste livro são todos ou abertamente contrários às religiões tradicionais — quase sempre ao Cristianismo — ou então publicaram deturpações, abertas ou veladas, das doutrinas dessas religiões. Ao criticá-los, portanto, estou defendendo tudo o que, tradicionalmente, se chamou “religião”.

Mas os propagadores de doutrinas Nova Era e neopagãs não têm “direito” de adorar como bem entenderem? Quem sou eu para negar os direitos dos outros? E que direito tem qualquer religião de reivindicar superioridade em relação a outra? Isso não é o caminho para o fanatismo, para a Inquisição, para a “guerra santa” em seu sentido mais pervertido? Certamente pode ser. Por outro lado, se tomarmos a liberdade religiosa como absoluta, então devemos permitir, por exemplo, a prática do sacrifício humano, que foi parte integrante de certas religiões pagãs da Antiguidade. Assim, a liberdade religiosa, por mais preciosa que seja, não pode ser absoluta. Como Frithjof Schuon repete, citando os rishis hindus: “não há direito superior ao da Verdade.” A cultura pós-moderna, é claro, não acredita na Verdade. Não admite absolutos, porque vê questões de verdade apenas em termos de poder. O que historicamente se chama de verdade é visto como nada mais do que o triunfo deste ou daquele bloco de poder. Se “não há deus senão Deus”, isso se dá porque o Islã triunfou política e militarmente sobre o paganismo na península Arábica; certamente não porque a Verdade seja Una, porque o Ser, de fato, seja uma Unidade transcendente. Mas, se esta afirmação sobre a natureza do Ser não é intrinsecamente verdadeira, então nenhuma doutrina religiosa ou afirmação metafísica é verdadeira. E, se nenhuma doutrina religiosa é verdadeira, todas as religiões acabam negadas e, em última análise, destruídas. É essa, então, a tal “liberdade religiosa”?

Pessoalmente, oponho-me de forma fundamental à coerção física em matéria religiosa. Nas palavras do Profeta: “não há compulsão na religião.” É verdade que, numa sociedade islâmica — ou outra sociedade tradicional baseada numa lei religiosa divinamente instituída — a coesão social se funda em sustentar e obedecer a essa lei. E ninguém que negligencie uma via de salvação universalmente acessível, como a sharī‘a muçulmana, pode ser considerado verdadeiramente dedicado a essa salvação. Mas, numa sociedade pluralista como a nossa, em que a separação entre Igreja e Estado é fundamental, qualquer tentativa de legislar doutrina ou prática religiosa é destrutiva, salvo quando a “religião” em questão viola de maneira aberta e profunda os costumes e a moral, como no caso do sacrifício humano mencionado acima. (Apresso-me a acrescentar que, embora esse tipo de sacrifício sem dúvida tenha ocorrido em grupos satanistas, é vigorosamente repudiado e combatido pelo movimento neopagão em geral.) Por outro lado, sempre me senti justificado em criticar o erro espiritual. Na medida em que a espada material do jihad menor me é negada — e com razão —, empunhei a espada do jihad menor intelectual. Onde há liberdade religiosa, há necessariamente também liberdade de expressão em matéria religiosa.

Mas, em meio a toda essa crítica tão bem justificada das ideias alheias, onde fica o entendimento de que todas as coisas, todas as pessoas e até todas as ideias são manifestações de Deus, de que a única coisa que não O manifesta é este “eu” fechado, crispado e rabugento, que está sempre encontrando defeitos na criação de Deus? Não aconselhou Jesus seus seguidores a tirar primeiro a trave dos próprios olhos, antes de tentar remover o cisco do olho do próximo? Não ensinou Ibn al-‘Arabī que Deus aceita toda concepção que se tenha d’Ele, por mais limitada que seja, como forma válida de adoração? Não censurou ele até o profeta Noé, até certo ponto, por denunciar o paganismo de sua época, já que todos os ídolos pagãos — se seus adoradores o soubessem, e se Noé o soubesse — eram na verdade formas do Deus Único? E, no entanto, Deus salvou Noé, o transcendentalista, e varreu os idólatras no dilúvio, ao mesmo tempo em que o próprio Ibn al-‘Arabī aconselhou o governante de Konya a proibir o culto público dos cristãos — assim como a Cristandade medieval fazia em relação às religiões não cristãs —, porque a unidade e o caráter islâmico do dār al-Islām precisavam ser preservados.

Conta Rumi que, certa vez, Moisés encontrou um pastor cuja ideia de adorar a Deus era pentear-Lhe o cabelo, lavar-Lhe os pés e dar-Lhe leite para beber. O profeta trovejou contra o pastor por rebaixar Deus ao nível humano: “Longe d’Ele precisar que Lhe penteiem o cabelo! Deus é Senhor dos Mundos; Ele está infinitamente acima da tua concepção mesquinha de Sua Majestade. Corrige, então, a tua prática. Adora-O em Espírito, não em forma.” Mas, enquanto Moisés seguia viagem, Deus veio a ele numa visão e o repreendeu: “Meu servo, o pastor, adorava-Me segundo a concepção que tinha de Mim — assim como tu. Julgaste-o mal; sua sinceridade é perfeita aos Meus olhos.” Desesperado e arrependido, Moisés correu de volta para pedir perdão ao pastor. “Peço-te desculpas, pastor; Deus revelou-me que eu te julguei seriamente mal. Por favor, continua a adorá-Lo como te parecer correto.” “Mas eu estava prestes a agradecer-te pela tua correção!”, respondeu o pastor. “O choque que me deste abriu meus olhos para uma concepção de Deus incomparavelmente mais ampla do que a que eu tinha antes. Depois do que vi, jamais poderei voltar à prática anterior.” Assim, tanto Moisés quanto o pastor aprenderam algo. Uma vez que Moisés julgou em nome de Deus, o julgamento esclarecedor de Deus caiu sobre todos os envolvidos, incluindo o próprio Moisés. O pastor superou seu apego à forma, baseado no orgulho de sua ignorância, enquanto Moisés superou seu apego à transcendência, baseado no orgulho de seu conhecimento.

Segundo William Blake, a única maneira de perdoar o inimigo é separar o indivíduo de seu estado. Isso é relativamente fácil para mim, exceto quando me parece que o adversário está sendo ardiloso e desonesto; nesse momento, a ira justa (ou pseudojusta) torna-se uma tentação. E, para alguém como eu, que crê na Verdade objetiva, a maioria das manifestações da mentalidade pós-moderna tenderá a parecer desonestidade — o que não é necessariamente o mesmo que falta de sinceridade, preciso lembrar, mas antes uma desonestidade objetiva imposta pelas condições intelectuais vigentes, tal como a criminalidade é imposta (se é que o é) aos jovens dos grandes centros urbanos que não encontram outro modo de sobreviver. O uso correto dessa ira — o modo específico que, se Deus quiser, a tornará justa em vez de autojusta — não é fixar o adversário no erro, para julgá-lo como condenado (porque o estado da alma alheia diante de Deus está além do meu alcance e não é da minha conta), mas separá-lo de seu erro, como com um maçarico, na minha consciência, e, se possível, na dele também, e voltar a chama contra o erro apenas.

É nesse ponto que tenho a chance de ver que o erro em questão é também meu, que ele faz parte desse pequeno “eu” que vela o rosto de Deus, pois, se não tivesse guarida na minha natureza, eu nunca teria cruzado espadas com ele.

Dado que há criação, necessariamente haverá erro; e, dado que há erro, necessariamente haverá monstros. Quando monstros ameaçam a vida humana, devemos ir à guerra contra eles — porém o monstro verdadeiro está em nós, em “mim”. A monstruosidade do erro também faz parte da vontade de Deus, já que não existe nada que não faça. Mas qual é a função do erro? Como aquilo que nega Deus pode ser, em certo sentido, parte d’Ele? Nas palavras do Tao Te Ching: “O discípulo tolo ouve falar do Tao e ri às gargalhadas. Se não houvesse riso, o Tao não seria o que é.” Como disse Rumi, “as coisas são definidas pelos seus opostos.” Se não soubéssemos o que evitar, não poderíamos ver claramente o que abraçar. A vontade humana é livre, e o campo dessa liberdade é a escolha entre a Verdade que aniquila o eu, apresentada pelo Intelecto espiritual, e o erro que serve ao eu, apresentado pelo ego. Sem essa escolha, o amor a Deus — arquétipo de todo amor — seria impossível. Portanto, o erro, embora seja manifestação da ira de Deus, é, em último e mais profundo nível, manifestação de Sua Misericórdia, pois “Minha misericórdia precede Minha ira”; nas palavras de William Blake, “estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus”. Entramos no campo dessa Misericórdia, num certo plano, ao expor um dado erro, invocando assim a Verdade escondida atrás dele — mas eu poderia expor o erro espiritual até o Dia do Juízo e nunca chegar a saber, na medula dos ossos, que Deus sustenta o universo na palma da mão, que todos os atos são atos de Deus, e que tudo o que Deus faz é bom. Só se eu fizer de cada crítica às ideias de outrem uma ocasião de morte para o meu próprio eu poderei avançar em direção a esse conhecimento.

Mas como é possível que marcar pontos sobre o adversário com a espada do intelecto discursivo seja uma morte para o eu? Se eu venço, sinto-me bem comigo mesmo; sinto-me poderoso; meu ego engorda e fica lustroso. A única forma que conheço de dedicar o jihad intelectual ao Caminho espiritual é admitir que criticar as ideias dos outros causa dor tanto a mim quanto a eles; e, em seguida, sentir essa dor completamente; e, por fim, deixar que ela queime, até o fim, aqueles lugares da alma onde os erros em questão — e, portanto, a necessidade de criticá-los — criaram raízes. É interpretar esotericamente, e em consonância com as regras do jihad maior, a doutrina de Jesus segundo a qual “quem vive pela espada morrerá pela espada.”

Talvez algumas pessoas sejam capazes, desde o início, de evitar completamente criticar o que quer que apareça no ser manifestado. Outras podem ser “isentas” de criticar o mal simplesmente porque não possuem talento para isso. E há também aqueles que realmente aceitam as manifestações mais horrendas — não apenas de sofrimento, mas de falsidade e ilusão — como vontade perfeita de Deus, porque alcançaram a estação espiritual em que nada lhes aparece, no campo dos acontecimentos, senão a ação direta de Deus. Essas pessoas estão mais próximas de Deus do que eu; seu nível de entrega, de Islã, está além de minha capacidade atual. Sua estação é a de Rabi‘a quando disse: “Eu amo a Deus; não me sobra tempo para odiar o diabo.”

São aqueles que despertaram do sonho do mal. Mas há outros — muitos outros — que ainda não despertaram plenamente para o sonho do mal. Sua consciência moral está adormecida ou meio adormecida. Muitos temem o mal ao redor porque veem como ele destrói a humanidade e arruína a terra. No entanto, não conseguem rejeitar moral e espiritualmente as coisas que odeiam e temem, porque não veem nenhum fundamento objetivo do bem sobre o qual se apoiar para poder chamar essas coisas de “mal”. Acabam aceitando, com resignação, forças e condições que destroem suas almas. E muitos outros, seja por aceitação ingênua do anormal, seja por desespero profundamente reprimido, aceitam sem crítica como boas — ou ao menos como inevitáveis e, portanto, “boas” de fato — as mais satânicas distorções da vida humana. Eles não dizem: “Se eu morrer depois de comer alimento envenenado, serei grato, porque essa é a vontade de Deus”; dizem, em vez disso: “Este alimento não está realmente envenenado; se…”.

Se eu o comer, ficarei saudável e forte, e se eu o der a outras pessoas estarei lhes prestando um serviço.” Assim, se eu lhes digo: “Evitem aquele prato, ele está cheio de veneno”, isso é um ato de amizade — desde que, é claro, eu possa sinceramente oferecer esse aviso em espírito de amizade. Se castigo o Mundo, é apenas para lançar uma corda àqueles que estão se afogando nesse Mundo, cujas consciências foram sistematicamente pervertidas, a tal ponto que, se começam a suspeitar que uma certa ação ou crença possa ferir gravemente suas almas e violar sua integridade humana, não têm como apresentar essa intuição a si mesmos, não dispõem de linguagem para dizê-lo. Pessoas nessa condição — e são muitas — habitualmente sentem culpa diante do juízo do Mundo pelo crime de querer fazer o bem; envergonham-se de seus impulsos mais altos e nobres; envergonham-se de Deus. Foram ensinadas a aceitar tudo, com uma complacência indistinguível do desespero total, não como vontade de Deus, mas como decreto do Mundo, cujo objetivo é esmagar qualquer coisa em suas almas que possa lembrá-las de que Deus é real. Em vez de transcender o mal, ainda não chegaram ao ponto em que a palavra “mal” signifique qualquer coisa para elas além do próprio desconforto pessoal. É assim que o niilismo se disfarça de desapego espiritual. E, se eu mesmo não fosse tentado pelo mesmo niilismo, não teria sido compelido a lutar com ele, e este livro jamais teria sido escrito.

Talvez apenas os psicopatas — há muitos psicopatas perfeitamente “bem ajustados” na sociedade atual — sejam completamente tomados pelo niilismo do Mundo. Mas o Mundo e seu niilismo têm pelo menos um pé fincado em cada um de nós, a menos que sejamos realmente santos; e esse ponto de apoio está se tornando mais tóxico e virulento a cada hora. Nas palavras de Rabi‘a:

Para onde vai uma parte de ti
O resto seguirá — dado o tempo.
O resto seguirá — dado o tempo.
Chamas a ti mesmo de mestre:
Portanto, aprende.

Se um judeu aceita o holocausto porque foi vontade de Deus, isso é verdadeira piedade, verdadeiro Islã. Se outro judeu o aceita porque foi vontade de Hitler e passa a invejar Hitler em segredo, isso é idolatria e blasfêmia. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” Aqueles que investiram suas esperanças e temores, seu senso fundamental de realidade, no mundo precisam desesperadamente de ajuda vinda de uma Realidade que transcende esse mundo. Este livro foi escrito para lembrá-los de que tal ajuda existe. Por outro lado, a essência de “investir” em algo é o ato de prestar atenção a isso. Se eu não visse nenhum mundo, mas apenas Deus, seria uma fonte de luz e ajuda para todos os que se estivessem afogando no mar do mundo; mas isso está além do meu poder — embora não além do poder de Deus. Minha estação se assemelha mais à dos “amigos santos” de Rabi‘a, no seguinte poema:

Um dia Rabi‘a estava doente,
E seus santos amigos vieram visitá-la, sentaram-se ao lado de sua cama
E começaram a falar mal do mundo.
“Vocês devem estar bem interessados nesse ‘mundo’”, disse Rabi‘a,
“Do contrário não falariam tanto dele:
Quem quebra a mercadoria
É porque já a comprou antes.”

É fácil ver Deus nas pétalas da rosa ou na forma de uma bela mulher. É mais difícil vê-Lo, não apenas em Sua Majestade e Ira, mas até em Sua Beleza e Sua Misericórdia, nos horrores do mundo atual. Mas, se Deus pode ser visto ali, então nenhum traço de reprovação contra Sua criação ou Seus decretos soberanos pode permanecer no Coração. E isso é o eu em paz.

Minha Esperança

O Anticristo pode ou não ser um indivíduo, embora muitas autoridades tradicionais, exotéricas e esotéricas, incluindo muçulmanos e cristãos ortodoxos e escritores como Martin Lings e René Guénon, afirmem que será, e eu me inclino a concordar. (1 João 2,18 fala de vários anticristos.) Mas, seja ele ou não um único indivíduo, já é um sistema. É por isso que não me interessa especular qual personagem, em minha própria galeria de vilões ou na de outros, poderia ser secretamente o Anticristo, assim como não considero útil ou possível (ao menos para mim) datar sua ascensão. A relação entre a simbologia apocalíptica e o tempo histórico é oblíqua, não direta. Se o Anticristo é conhecido como princípio, contudo, então as crenças, tendências e indivíduos no mundo exterior que manifestam esse princípio, em maior ou menor grau, podem ser reconhecidos. Mas, a menos que o sistema mais amplo daquele princípio seja compreendido — tanto quanto a própria absurdidade inerente do mal o permita —, se e quando aparecer o indivíduo em quem esse sistema estiver destinado a assumir sua forma mais plena e terminal, talvez nos descubramos incapazes de reconhecê-lo. Espero, neste livro, ajudar o leitor a extrair sentido do caos e da escuridão destes últimos dias, evitar a participação inconsciente em um mal destruidor de almas e intuir a Misericórdia Divina que está sempre presente, escondida até nas condições mais críticas, como sinal claro daquela Realidade superior misteriosamente presente por detrás da máscara desta, onde Verdade é sinônimo de Bondade, e o mal não passa de outro nome para a ilusão: “Tudo perece”, diz o Alcorão, “exceto Seu Rosto.”

Parte Um:
Tradição vs. Nova Era

Prefácio

Atualmente há uma confusão considerável entre “religião” e “sistemas de crenças”. De fato, certos acadêmicos tentam reduzir todas as religiões a “sistemas de crenças” que, de algum modo, “pegaram”. Mas há uma distinção a ser feita entre eles, pois as religiões genuínas se fundamentam na Revelação, que lhes fornece um credo, um código e um culto fixos, independentes de qualquer pensamento ou sentimento individual, enquanto os sistemas de crenças não baseados na Revelação estão inevitavelmente sujeitos à opinião humana. É claro que muitos fundadores de seitas se apoiam parcialmente na Revelação — aceitando o que lhes agrada e rejeitando o que não lhes agrada — e a maioria dessas seitas reivindica inspiração pelo Espírito Santo. Mas o fato permanece: todas se baseiam, ao menos em parte, no pensar e no sentir que residem na psique e estão sujeitos à ilusão, problema que só pode ser evitado pela adesão a uma fonte externa fixa. Infelizmente, muitos representantes religiosos atualmente atacam o fundamento revelado de suas fés na tentativa de acomodá-las aos valores do mundo moderno, o que, na prática, as reduz ao mesmo nível que os demais sistemas de crenças.

Uma vez reconhecido que a maioria de nossos sistemas de crenças se baseia em sentimentos e pensamentos — todos eles propriedades que se situam no âmbito da psique —, segue-se que se torna impossível criticar qualquer sistema de crenças específico. Todas as religiões e sistemas de crenças são equivalentes porque a verdade ou as crenças de cada um — desde que não causem problemas a outros — têm igual valor. Dizer que um culto ou religião é falso é considerado um ato de presunção que ninguém ousa cometer. Além disso, acredita-se que é justamente esse tipo de visão exclusiva que levou a conflitos e guerras — tudo em nome de Deus — e, portanto, tais atitudes devem ser evitadas. (Observe-se, porém, que, como disse São Paulo, “são as nossas cobiças e os nossos desejos” a raiz dos conflitos.) Na ordem prática, tudo o que “funciona” para o indivíduo é considerado aceitável. E, de fato, os psiquiatras estão começando a reconhecer que a “religião” tem sua utilidade, pois ajuda as pessoas a enfrentar os problemas da vida, e a crença em uma vida após a morte torna a morte mais fácil de suportar.

A maior parte da religião moderna está enraizada e centrada na psique, de modo que, pela própria natureza das coisas, as pessoas podem afirmar que aquilo que é verdadeiro para elas é verdadeiro. A psique não conhece absolutos e, portanto, o indivíduo não tem compromissos reais. Mais perigoso ainda é o fato de que, ao tentar encontrar alguma medida de verdade nesse reino nebuloso, abre-se a alma a influências de natureza possivelmente nefasta. Muitos, como o próprio Jung, deixaram “guias espirituais” instruí-los sobre como viver e agir, guias que se descrevem como “anjos”, o que, de fato, são — pois, como acreditava uma época anterior, existem espíritos em circulação que são “anjos caídos”, ansiosos para invadir nossas psiques quando a oportunidade se apresenta. E assim é que o “canalizar” (channeling) se tornou moda, com uma multidão de “guias”, de Ramtha a Seth, supostamente nos dando acesso a uma forma de superconsciência ou “consciência divina”, que seria o resultado evolutivo de nascimentos repetidos dentro da moldura deste universo. É apenas um pequeno passo, a partir daí, para o envolvimento com o ocultismo. As sociedades tradicionais sempre proibiram o contato com tais espíritos, não só pelos perigos espirituais envolvidos, mas também porque tais contatos podem levar a desvios psiquiátricos, como está bem ilustrado na história bíblica de Saul.

O movimento Nova Era foi bem caracterizado como a secularização da religião e a espiritualização da psicologia. Aqueles que veem com facilidade a insipidez do materialismo buscam algo “espiritual” para satisfazer os anseios de seus corações. Limitados pela visão cartesiana, que nega a verdadeira natureza espiritual do homem, fazem ídolos da música e das artes, do amor e da natureza — sempre dentro dos limites de suas ramificações psíquicas. Isso os leva, bem como a muitos na vida religiosa, a voltar-se para a psique em busca de realização.

Aqueles “aprisionados” na psique, que centralizam a vida em sentimentos ou na convicção de que seus pensamentos privados e individuais são absolutos, são descritos pelos autores medievais como estando “apaixonados por si mesmos”. Esse “amor a si”, em oposição ao “Amor de Si” (isto é, do verdadeiro Self), é visto como um defeito a ser corrigido. Imediatamente ouvimos o protesto dos que declaram que ninguém lhes dirá como pensar ou agir. Insistem na liberdade de decidir essas coisas por si mesmos. E isso é plenamente compreensível em alguém cuja visão de mundo se baseia no princípio cartesiano segundo o qual somos exclusivamente corpo e mente. Se é só isso que somos, então, de fato, têm direito a tal posição, pois sua mente e seu corpo não têm mais autoridade do que os meus. Reconhecer, porém, a natureza tripartite do homem — o que de modo algum nega a psique — orienta-nos para restabelecer uma hierarquia de ordem em que o Espírito dirija a psique, assim como a psique dirige, ou deveria dirigir, o corpo.

Mas o Espírito não está apenas em nós; está também acima e fora de nós. E, em última instância, Ele somos nós: nossas faculdades têm raiz no Senhor e “na Sua Luz vemos a Luz”.

O livro de Charles Upton é uma exposição notável do que resulta da aceitação do dualismo cartesiano, a ideia de que nossa totalidade se compõe apenas de corpo e mente. Em certo sentido, mostra as inúmeras formas que os cultos pseudorreligiosos podem assumir quando fundamentam a verdade em sentimentos e opiniões privadas, em vez de na revelação. E, talvez mais importante ainda, mostra como todas essas seitas são fundamentalmente semelhantes, tanto em sua origem quanto em sua visão de mundo. Para quem busca a verdade, este livro oferece um excelente guia através do labirinto das “ofertas” religiosas modernas.

RAMA P. COOMARASWAMY, MD, FACS, Professor Assistente Clínico de Psiquiatria,
Albert Einstein College of Medicine, Nova York

Pós-modernismo, Globalismo e Nova Era

No início do Terceiro Milênio, nosso espaço é dominado pela globalização da Terra, pelo “caldeirão” de todas as culturas nacionais, tribais e religiosas; e nosso tempo, pelo “pós-modernismo”, em que parecemos aproximar-nos de uma condição impossível na qual todas as eras do passado, em virtude da cultura da informação, são igualmente disponíveis, igualmente válidas, igualmente falsificadas e igualmente corruptas. Esta era, a terminal para o presente ciclo de manifestação, nos apresenta perigos espirituais sem precedentes, bem como oportunidades espirituais únicas. Neste capítulo são explorados muitos dos perigos — e algumas das oportunidades — sociais, filosóficos, religiosas e metafísicas que se situam sob o signo do Fim.

O que é Pós-modernismo?

O tempo em que vivemos tem sido chamado de “pós-moderno”. O que exatamente isso significa? O que poderia possivelmente vir depois de estar “atualizado”? E, se algo realmente vier depois, como poderíamos ser contemporâneos disso? “Pós-moderno” significa “depois da história”? Poderia ter algo a ver, talvez, com o “fim do tempo”?

Pós-modernismo, ou pós-modernidade, é um nome para a qualidade geral do nosso tempo. Mas também se refere a certas correntes da filosofia, da arte e da crítica literária. O que se segue é uma breve visão geral da filosofia pós-moderna; depois de tornar alguns de seus conceitos básicos o mais claros possível, farei o que puder para mostrar como esses conceitos — ou suposições, ou preconceitos — se aplicam a outras áreas da vida contemporânea.

Segundo Huston Smith, em Beyond the Post-Modern Mind, o “modernismo” baseou-se (e se baseia) na crença de que “(a) nada que careça de um componente material existe e (b) naquilo que existe, o componente físico tem a palavra final”. Assim, o modernismo é essencialmente naturalismo ou materialismo. Esse naturalismo assumiu o comando, a partir do Renascimento e com aceleração durante a revolução científica do século XVII, à medida que a metafísica e a religião revelada começaram a ser marginalizadas. A visão de mundo unificada apresentada pela teologia foi substituída por uma nova unidade — ou, melhor dizendo, por uma nova crença de que a unidade poderia finalmente ser alcançada — fundada no estudo da natureza e da história humana. Quanto mais fatos descobríssemos nessas áreas, mais material teríamos disponível para a construção do Grande Desenho.

Mas, segundo o pós-modernismo, não existe Grande Desenho. A verdade é plural e, em última instância, subjetiva. A realidade é apenas aquilo que é configurado: por um período histórico, uma sociedade, uma linguagem ou um indivíduo dados. Não há nada realmente “lá fora” além de uma massa de potencial caótico à espera de ser moldado em alguma forma arbitrária. Huston Smith cita Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein e o desconstrucionista Jacques Derrida entre os arquitetos conscientes ou inconscientes desse movimento, que começou a suplantar o modernismo, ao menos nas sociedades ocidentais, na primeira metade do século XX.

Kant ensinou que o ser humano jamais pode experimentar a Verdade transcendente, ou a realidade objetiva (númeno) de coisa alguma, mas apenas o mundo dos fenômenos tal como nos é apresentado por nossos esquemas inatos e fixos de percepção. E Nietzsche, com sua “morte de Deus”, anunciou o fim da metafísica — um desenvolvimento aterrador, mas historicamente inevitável —, ao mesmo tempo que fazia tudo o que podia para promovê-lo, atacando o Cristianismo e substituindo a noção metafísica de princípios eternos e imutáveis na mente de Deus pela doutrina estóica do retorno circular e interminável de todas as coisas. (O que poderia ser mais niilista do que trabalhar pela realização de algo que se julga terrível, simplesmente porque se acredita que é inevitável?) Segundo o Prof. Smith, Kierkegaard também teve seu papel, com a ideia de que a verdade objetiva desumaniza. Essa crença é sustentada hoje por milhões de pessoas, que a aplicam não à filosofia hegeliana, como ele fazia, mas à ciência. Depois veio Heidegger, que afirmou não haver verdade objetiva além da que um período histórico específico define como real; Wittgenstein, que sustentou não haver verdade objetiva além da definida pelas culturas e mediada pela linguagem; e Derrida, que nos diz que qualquer tentativa de definir uma verdade objetiva deve necessariamente excluir e, portanto, marginalizar e oprimir outras versões possíveis do que seja verdadeiro. A diversidade cultural e filosófica deve ser celebrada porque a unidade tiraniza. Acreditar que uma sociedade, ou uma linguagem, ou mesmo um texto, tenha alguma estrutura inerente é opressivas. Consequentemente, qualquer pessoa que pense ter apreendido o verdadeiro significado de um texto — inclusive quem o escreveu — está enganada… exceto, ao que parece, Derrida e os desconstrucionistas. Jacques Derrida poderia ter tido uma carreira brilhante como devastador satirista do pós-modernismo, não fosse o fato de que o humor só pode existir na fronteira entre o real e o absurdo, e os desconstrucionistas, tão sem humor quanto são, eliminaram o primeiro desses dois termos de consideração.

Eis o pós-modernismo em poucas palavras: (1) não existe verdade objetiva, portanto (2) a realidade não é percebida, mas construída — pelos padrões inatos de percepção, ou pela história, ou pela sociedade e pela linguagem, ou pelo indivíduo — de modo que (3) todas as tentativas de criar visões de mundo abrangentes que transcendam a história, a sociedade ou até (em última instância) o indivíduo são opressivas; logo (4) todas essas visões de mundo arbitrariamente construídas devem ser desconstruídas para que se celebre a diversidade e se preservem os direitos das construções de realidade de minorias marginalizadas (as quais, evidentemente, sendo também construções, precisam igualmente ser desconstruídas; tanto faz, portanto, a preservação dos direitos das minorias). Assim, o pós-modernismo termina no desconstrucionismo, e o desconstrucionismo termina (ou assim esperamos) na desconstrução do próprio desconstrucionismo: se a visão construída pela maioria oprime as minorias, também as visões minoritárias oprimem os indivíduos… e as visões individuais (por que não?) oprimem as visões das subpersonalidades dentro do indivíduo, enquanto essas subpersonalidades oprimem a experiência de frações de segundo de consciência, etc., etc., etc. Ninguém reconhece aqui a qualidade familiar de nossa vida diária, a pulverização progressiva da realidade? É como se os desconstrucionistas fossem criaturas absolutas da mídia eletrônica, pessoas que consideram criminoso possuir capacidade de atenção, porque isso imporia forma arbitrária e opressiva sobre a experiência “pura”; pelo menos é para essa fase terminal que parecem caminhar. Se os levamos a sério, teremos que concluir que existir é, necessariamente, oprimir e ser oprimido? Que o fim da opressão deve ser o fim da existência? Que o objetivo final do niilismo pós-moderno é, e deveria ser, a aniquilação? Talvez a palavra “pós-modernismo” de fato se refira à terminação da história, ao fim do tempo. É óbvio que se trata de uma casa construída sobre a areia.

Modernismo e pós-modernismo são perfeitamente capazes de atuar em conjunto na mente contemporânea, inclusive na mente de um único indivíduo, para neutralizar a visão tradicional ou metafísica da realidade. Para tomarmos apenas um exemplo: se eu mostrar a tal indivíduo que certas tendências sociais se encaixam precisamente na definição tradicional de demonismo, e têm consequências que ninguém em perfeito juízo buscaria deliberadamente, seu lado pós-moderno caótico validará essas tendências como parte da “celebração universal da diversidade”, enquanto seu lado moderno materialista negará que algo como demonismo possa existir. Ao fazer isso, ele obviamente nega parte da diversidade que acaba de validar; mas, como esses dois lados de sua consciência nunca se encontram, a contradição entre eles “não é problema” — e continuaria a “não ser problema” mesmo que se encontrassem, já que o pós-modernismo vê a inconsistência como uma espécie de “riqueza” e a consistência, até a consistência lógica, como forma de opressão. Aí podemos ver como o pós-modernismo é de fato a visão dominante, da qual o modernismo se tornou nada mais que um subconjunto, apenas mais um item desconectado no espectro pós-moderno da “diversidade”. E tanto a celebração pós-moderna quanto a negação moderna agem em conjunto para sustentar, e não para se opor, às tendências em questão — tendências que o mesmo indivíduo, com outra faceta igualmente desconectada de sua consciência fragmentada, pode sinceramente deplorar.

A Verdade Escondida no Pós-modernismo

Mas existe algo de bom no pós-modernismo? Huston Smith menciona o útil alerta dos desconstrucionistas de que pretensões absolutistas, inclusive as metafísicas, podem se tornar tirânicas, bem como seu louvável empenho em defender o Outro, tanto em termos de minorias excluídas quanto de ideias marginalizadas. Se o pós-modernismo vê todas as visões de mundo como construídas — ou seja, como função do poder, e não da verdade —, então o desconstrucionismo precisa surgir como defensor das muitas visões diversas que detêm menos poder do que a visão dominante em determinado tempo e lugar. Ele nos adverte, contudo, contra a absolutização dessa mesma diversidade, já que “não honraríamos a alteridade do Outro se não reconhecêssemos também a sua identidade conosco”.

Smith vê o desconstrucionismo, a mais radical das correntes pós-modernas, como uma espécie de Teorema de Gödel no campo da filosofia. O matemático Kurt Gödel provou que nenhum sistema pode ser ao mesmo tempo completo e consistente. Para ser consistente, deve deixar coisas de fora; para ser completo, precisa incluir contradições. “Como não pode haver sistema que seja completo e consistente”, lembra Smith, “é impossível que um único sistema possua toda a verdade. Outras vozes devem ser ouvidas.” É igualmente impossível, porém, que toda a verdade possa ser conhecida somando-se sistema a sistema. Informação, verdade quantitativa, pode ser acumulada; a Verdade transcendente e espiritual, não.

Mas o que exatamente é um sistema? A própria existência, em seu próprio nível, é completa, embora nunca possamos experimentar tudo o que ela contém. Ela é também misteriosamente consistente, impressionando aqueles que a contemplam em profundidade como um universo, um cosmo ordenado, uma expressão do Tao. No entanto, jamais é perfeitamente previsível. Um sistema, então, é uma tentativa de sintetizar, por meio de uma construção da mente humana, a completude e a consistência que só podemos intuir na existência primordial em si.

Em qualquer sociedade tradicional baseada numa revelação religiosa, pouca dissonância — se é que alguma — é visível, para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, entre o sistema sagrado de mito, teologia e ritual e a própria existência. Só nesta era de pluralismo forçado, em que todas as revelações religiosas sobreviventes, os “universos” mitológicos de muitas tribos primitivas, diversos sistemas filosóficos e distintos universos artísticos de sensibilidade, a historicidade e o naturalismo da visão de mundo modernista, os paradigmas da ciência e do cientificismo e a anti-visão-de-mundo que é o pós-modernismo se chocam de frente, é que um “Teorema de Gödel” sociológico se tornou necessário.

Em tempos antigos, como na Antiguidade tardia, ou em boa parte da história da Índia, quando muitas religiões e filosofias se encontravam e se fecundavam mutuamente, o sincretismo, para o bem ou para o mal, ainda era possível. Restava o suficiente do sentido primordial da unidade da existência para que os filósofos traçassem um quadro mais ou menos unificado do cosmos que abraçasse a pluralidade das formas religiosas, e para que o povo aceitasse o pluralismo religioso como algo mais ou menos natural, parte da “ecologia” do espírito — embora esse sincretismo estivesse sempre num nível mais baixo do que qualquer forma tradicional isolada e frequentemente fosse hostil ao sentido mais alto do sagrado mediado por essas formas. Mas hoje perdemos em grande medida até esse vago, intuitivo senso de unidade. As visões de mundo da ciência e da revelação, do materialismo e do transcendentalismo, são demasiado radicalmente opostas para serem reconciliadas. Isso não quer dizer que não haja sincretismo em nosso tempo; de certo modo, este é o “tempo de ouro” do sincretismo. O fato é que o sincretismo não tem mais poder para superar, nem mesmo de forma parcial e relativa (que era tudo o que jamais pôde fazer), nossa ansiedade existencial e nossa fragmentação cognitiva. Quando tentamos abraçar a completude, hoje, deparamos de imediato com contradições agonizantes. Quando optamos pela consistência, ficamos com algo isolante, constritor e radicalmente incompleto.

Os termos “completo” e “consistente” são, em certo sentido, ambos horizontais. Se o tampo de uma mesa tem extensão infinita, ele inclui “tudo” — tudo no plano da mesa, isto é —, mas a pequena parte visível não fará sentido. Se a mesa é finita, pequena o bastante para ser abarcada com um olhar, será consistente, porém deixará muita coisa de fora; se olharmos além de suas bordas, veremos muitas outras mesas. Nenhuma das palavras “completo” ou “consistente”, entretanto, pode carregar todo o peso dos termos metafísicos Realidade e Verdade, ambos nomes de Deus. Só Deus, digamos assim, é totalmente completo e perfeitamente consistente — e Deus não é um sistema. Sua completude não pode ser abrangida nem esgotada porque é Infinita; Sua consistência não pode ser definida nem racionalizada porque é Absoluta. O Teorema de Gödel, então, é a expressão matemática da transcendência de Deus em relação ao cosmos, da pobreza relativa do cosmos quando considerado à parte de Deus. Mas, uma vez que perdemos em grande parte o senso imediato de mundos superiores invisíveis — mais reais do que este — e de um Absoluto Divino e Transcendente, o Teorema de Gödel se torna apenas irônico, expressão matemática do desespero pós-moderno quanto à verdade objetiva.

Quando o norte está congelado, o oeste inundado, o sul em chamas e o leste bloqueado por um deslizamento de terra, a única saída é para Cima. Um sistema filosófico não precisa ser absolutamente consistente ou absolutamente completo para cumprir sua função. Não tem de ser Deus, assim como um elevador não precisa ter o tamanho de todo o prédio. Isso é assim porque Deus já é Deus; consistência e completude já estão garantidas. Tudo o que uma filosofia (ou, para sermos estritamente exatos, uma teosofia) precisa de fato é estar aberta, na dimensão vertical, à Verdade transcendente, ao sentido do Absoluto, e conformar suas formulações, tão imperfeitas quanto forem, a esse sentido. E, desde que percebamos que a religião, diferentemente da filosofia, dirige-se ao ser humano inteiro, não apenas à sua mente, o mesmo se pode dizer de qualquer forma religiosa viável. Ela não precisa ser absolutamente consistente ou completa; só Deus pode sê-lo. Basta que preserve, operativamente intacto, em seus dogmas, rituais, moral e prática contemplativa, o raio vivo de Deus por meio do qual entrou no mundo, e ao longo do qual as almas humanas nela contidas podem retornar à Fonte que a enviou.

Entender isso é superar a idolatria doutrinal, que podemos definir como a adoração de um sistema de crenças — heterodoxo ou ortodoxo — no lugar de Deus. Não me interpretem mal: a ortodoxia doutrinária é necessária se quisermos manter uma relação viva com o Absoluto. Está o mais longe possível de qualquer utilitarismo ou pragmatismo. Não é arbitrária, mas integral e necessária à revelação que expressa. Nos termos de Frithjof Schuon, é “relativamente absoluta”. As doutrinas religiosas que possuem verdadeira ortodoxia são providenciais. Sua eficácia operativa não se deve ao fato de serem complexas, ou simples, ou fascinantes o suficiente para nos motivar espiritualmente, mas ao fato de serem objetivamente verdadeiras: não totalmente completas e consistentes, mas ainda assim as mais altas expressões possíveis (ainda que nem sempre as únicas) da Realidade de Deus e de Sua relação com a criação, dentro de determinado universo religioso. São como elevadores que vão até o Último Andar. Outros elevadores podem levar parte do caminho, mas, se o objetivo é o Último Andar, será preciso descer novamente ao térreo para tomar o elevador certo. E, embora mais de um elevador — mais de uma tradição revelada — possa subir ao Último Andar, não é possível tomar dois ao mesmo tempo.

A idolatria doutrinária é uma forma da idolatria mais universal das visões, a tendência humana inevitável de confundir a própria visão da realidade com a própria realidade. O pós-modernismo, em seu melhor aspecto, ao negar a completude e a consistência de qualquer visão única das coisas, poderia trabalhar contra essa idolatria das visões e dar a seus adeptos algum senso da incomparabilidade transcendente das “formas de vida” singulares — bem como de indivíduos e momentos singulares —, nível de compreensão atingido de modo permanente apenas pelos grandes místicos, como o sufi Ibn al-‘Arabī, que veem todos os acontecimentos como atos ou aspectos simbólicos de Deus — “Ele (Allah) está a cada dia em uma nova obra”, diz o Alcorão —, por aqueles que transcenderam com limpidez o dogma sistemático sem, de forma alguma, negá-lo. Como ensina William Blake, a singularidade concreta dos “minutos particulares” está mais próxima da verdadeira revelação de Deus do que a ideia abstrata de transcendência. Na prática, porém, o pós-modernismo parece produzir o efeito oposto. Embora o Prof. Smith fale do respeito relutante e intermitente de Jacques Derrida pela metafísica, e de certas intuições metafísicas em Heidegger, na maior parte das vezes o pós-modernismo é ainda mais anti-metafísico do que o modernismo. E, sem a dimensão vertical, sem um senso concreto do Absoluto, a celebração da diversidade, em oposição à unidade, só pode ser um comentário irônico sobre a impossibilidade de chegar à verdade objetiva, acompanhado de uma negação niilista de que tal verdade seja sequer desejável.

Nossas visões não são a realidade; contudo, são visões da realidade, embora variem amplamente em capacidade e exatidão. Até o paranoico constrói seu delírio sobre algum traço ou aspecto de verdade. Mas, se negamos que exista qualquer verdade objetiva além de nossas visões, isso nos impede de idolatrá-las, já que entendemos que não são “reais”? Ou nos força a idolatrá-las, precisamente porque agora elas são a única “realidade” que existe? E um mundo habitado por solipsistas — mundo que o pós-modernismo, por meio da mídia eletrônica, está em vias de criar — é realmente um mundo tolerante? Se eu o aceito apenas porque você é parte de mim (em vez de eu ser parte de você, o que seria uma blasfêmia contra o solipsismo), terei realmente aceitado você?

De certo modo, a prática contemplativa pode ser definida como o trabalho de superar a idolatria das visões. A concentração no Absoluto implica a realização progressiva, momento a momento, de que nossas visões da Realidade de Deus não são Deus. À medida que passamos a entender, e a aceitar, que nenhuma concepção nossa pode conter o Absoluto, aprendemos a deixar nossas concepções ir. Na terminologia técnica do misticismo, isso é a contemplação “apofática” da transcendência de Deus.

Mas isso é apenas metade do quadro. Ao soltarmos nossas concepções, concepções maiores nascem, que também precisamos soltar, abrindo espaço para concepções maiores ainda. E, à medida que o processo continua, passamos a perceber que essas concepções não são tentativas frágeis de compreender Deus, mas generosas e misericordiosas auto-revelações de Deus para nós. Como somos finitos, jamais podemos conter Sua auto-revelação total, a não ser pela aniquilação de nossa existência separada e autodefinida, aniquilação que, em última instância, renasce como uma das infinitas auto-revelações de Deus contidas em Sua existência maior. Porém podemos aceitar as auto-revelações de Deus como dons gratuitos pelos quais aspectos de Sua Essência inconcebível se tornam conhecidos de nós, segundo nossa capacidade. Esta é a contemplação “catofática” da imanência de Deus.

Tal como a prática contemplativa, a filosofia pós-moderna trabalha contra o “realismo ingênuo”, que nos faz acreditar que a realidade objetiva se limita ao que vemos, que as coisas são simplesmente o que parecem. Mas também nos ensina, paradoxalmente, que as coisas são apenas o que vemos, que nada, ou nada inteligível, existe de fato “lá fora”. E, em vez de colocar essas duas verdades em relação, como faz a metafísica tradicional, ela as volta uma contra a outra. Em vez de postular uma Realidade que transcenda todas as nossas visões, nega que tal Realidade possa existir; no lugar do Vazio Divino além de toda concepção, ficamos com um vazio literal, uma falta morta. E, em vez de considerar nossas concepções das coisas como auto-manifestações daquela Realidade Inconcebível, vê-as como produções, em última análise arbitrárias, de um substrato material cego e destituído de unidade, produções formadas e mediadas, quase inteiramente, por inconscientemente, apenas pelos “egos” da história, da sociedade, da linguagem e do indivíduo isolado. Em lugar, portanto, da Inacessibilidade unida à Manifestação, temos a inadequação de toda concepção unida à sua proliferação cega e interminável. O niilismo pós-moderno é, assim, uma espécie de misticismo falsificado, uma sombra distorcida do próprio Absoluto. E, quando a sombra do Absoluto — aquela que os muçulmanos chamam de “Iblis” — se torna o princípio orientador de toda uma época histórica, somos obrigados a concluir que o fim do ciclo está próximo.

Pós-modernismo e Nova Era

As espiritualidades da Nova Era parecem opor-se em muitos aspectos ao pós-modernismo. Acreditam na verdade objetiva de realidades transcendentais. Não se interessam em limitar essa verdade àquilo que pode ser visto através da lente desta ou daquela linguagem, sociedade ou época histórica. Em vez de desconstruir escrituras e mitologias, examinam as escrituras e mitologias do mundo inteiro e de toda a história humana em busca de pistas para alguma verdade oculta. Acreditam em “estrutura profunda”. O segredo da metafísica e da profecia está oculto nas dimensões da Grande Pirâmide; o “Livro de Dzyan” de Madame Blavatsky seria a escritura mais antiga do mundo e a chave de todas as outras; os ensinamentos de Seth, ou de A Course in Miracles, ou de A Profecia Celestina revelam a forma destinada da história humana e a estrutura objetiva e real do universo. Podem ser heterodoxas do ponto de vista das ortodoxias tradicionais, mas não seriam pós-modernas.

Ou seriam? A primeira semelhança entre a Nova Era e o pós-modernismo é que ambos são pluralistas; ambos gostam de “celebrar a diversidade”. A Nova Era pode ter herdado o resíduo da crença da cristandade em uma verdade metafísica objetiva; ainda assim, a palavra “objetividade” não é simpática aos adeptos da Nova Era. Para eles, como para pós-modernos em geral, tende a ser sinônimo de “ortodoxia”, “dogmatismo” e “hierarquia”, que, por sua vez, são sinônimos de “opressão”.

A pluralidade de espiritualidades Nova Era não é divisiva; não é sectária. A transcendência é buscada, mas é essencialmente uma transcendência subjetiva — o que é uma contradição em termos, já que é precisamente nossa subjetividade, nosso ponto de vista egocêntrico e limitado, que precisa ser transcendido. E, uma vez que transcendência e subjetividade são simultaneamente abraçadas como valores, a autoridade espiritual é ao mesmo tempo buscada e desconfiada. Gurus reúnem seguidores, mas acredita-se ao mesmo tempo, até por muitos desses seguidores, que “você é o seu próprio guru”. Cada vez mais adeptos da Nova Era canalizam entidades psíquicas na tentativa de contornar a autoridade espiritual de mentores humanos, válidos ou não; mas em seguida dão a essa “entidade” autoridade absoluta sobre sua visão da realidade — autoridade que, porém, pode ser “massageada” quando necessário, já que nada é mais fácil do que operar a própria “entidade” como um boneco de ventríloquo para que ela diga o que queremos ouvir. A Nova Era compartilha com o pós-modernismo uma desconfiança em relação à autoridade, enquanto ao mesmo tempo possui suas próprias autoridades, assim como o pós-modernismo possui as suas.

É prática comum, para muitos adeptos da Nova Era, não permanecer fiel a um único mestre ou a uma única visão, mas multiplicá-los deliberadamente. Quanto mais mestres e ensinamentos se consegue colecionar — e, no extremo neopagão do espectro, quanto mais deuses e deusas —, mais ampla se supõe ser a área de consciência do indivíduo. Essa tendência poderia ser definida como “o reino da quantidade” na esfera religiosa, e é indistinguível do pluralismo pós-moderno, pois, se não existe realidade objetiva, a “expansão da consciência” só pode ser horizontal e quantitativa. Do mesmo modo, a crença de que cada um é seu próprio guru, ou pode canalizar sua própria entidade, ou deve construir o próprio “mito pessoal”, nada mais é do que uma versão popular da doutrina da filosofia pós-moderna segundo a qual “a realidade é apenas como é configurada”.

A pluralidade e a diversidade da doutrina Nova Era garantem que ela jamais possa transcender o nível psíquico. O domínio do Espírito é objetivo e unitário; o da psique é necessariamente múltiplo, por se basear nos pontos de vista subjetivos de seus muitos habitantes, humanos e outros. A Verdade espiritual objetiva, arquetípica, pode refletir-se aí, mas também se refrata e se quebra, como a imagem do Sol numa baía revolta. Nenhum fragmento isolado da imagem do Sol nas ondas em movimento é o Sol inteiro; nesse ponto, a advertência pós-moderna contra a absolutização de visões subjetivas é bem-vinda. Mas tampouco se pode ver o Sol inteiro somando-se fragmento a fragmento; um milhão de fotografias do Sol cintilando sobre a água nunca produzirão a imagem do Sol inteiro. E somente uma tal imagem unitária pode demonstrar que existe algo como o próprio Sol, uma realidade em si, situada em plano mais elevado do que o de seus reflexos.

O subjetivismo religioso da Nova Era é, em essência, uma tentativa de encontrar refúgio na psique subjetiva contra o terror do mundo, contra o materialismo e o cientificismo, entendendo a psique como, de certo modo, transcendente às condições materiais, mas ignorando o fato de que, se a psique não está enraizada no Espírito, em algo superior a si mesma, torna-se mero apêndice das condições materiais — como Karl Marx demonstrou com tanta clareza. Uma transcendência subjetiva é uma transcendência fragmentada, e uma transcendência fragmentada não pode ser verdadeiramente transcendente.

Globalismo e Anticristo

O globalismo e o Governo Mundial Único, a meu ver, não são o sistema do Anticristo, embora estejam entre os fatores que tornarão possível esse regime.

Creio que o sistema do Anticristo surgirá — está, de fato, surgindo — do conflito entre a Nova Ordem Mundial e o espectro de reações militantes contra ela.

No tempo de Jesus, o Governo Mundial Único era o Império Romano. Os zelotes eram os revolucionários e/ou milicianos anti-romanos. Jesus tomou o cuidado de não deixar-se arrastar a declarações que comprometessem a causa zelote e o fizessem parecer um colaborador de Roma. Porém também se relacionou com oficiais militares romanos e com serviçais de Roma, como os cobradores de impostos judeus, de maneiras que escandalizavam muitos patriotas nacionalistas judeus. Ele emergiu do povo comum, oprimido tanto por Roma quanto pelas classes dirigentes judaicas coloniais que faziam o “trabalho sujo” do Império; denunciou aqueles setores da elite — escribas, fariseus, saduceus e herodianos — que se aliavam ao Império, sem pronunciar palavra contra zelotes e essênios, que não o faziam. Mas não se identificou com a “vanguarda” violenta que agia em nome do povo. Podemos dizer, portanto, que, se Cristo se esforçou por não ser identificado nem com o Império Romano nem com seus opositores militantes, por essa mesma razão devemos tomar cuidado para não identificar estritamente o Anticristo nem com o Governo Mundial Único nem com o terrorismo antiglobalista. Juntos, eles fornecerão o meio de onde ele surgirá; mas, assim como Cristo evitou ser reivindicado por qualquer das partes porque sua missão era redimir não apenas os judeus, mas toda a humanidade, o Anticristo “jogará dos dois lados” nos últimos dias para construir seu poder sobre todos os aspectos da alma humana. O Anticristo não é principalmente inimigo da democracia ou da autonomia nacional, em outras palavras, mas da própria Humanidade, considerada como feita à imagem e semelhança de Deus. Em sua essência mais profunda, a batalha entre Cristo e Anticristo não é entre liberdade e tirania (embora, onde haja verdadeira liberdade, o Anticristo não possa vir), nem entre corpos religiosos tradicionais e sociedade secular (ainda que o campo desse conflito possa, ao menos em alguns casos, estar mais próximo da verdadeira guerra), mas entre a presença sagrada de Deus no coração humano e a violação sacrílega dessa presença: “Quando, pois, virdes a Abominação da Desolação de que falou o profeta Daniel, erguida no lugar santo (quem lê, entenda), então os que estiverem na Judeia fujam para os montes” (Mt 24,15–16).

O globalismo está em processo de destruir todas as culturas tradicionais e nacionais, minando e comprometendo todas as formas religiosas tradicionais. Mas simplesmente opor-se a todo planejamento e ação em escala global também é problemático. A verdade irônica é que, dado o globalismo, precisamos de globalismo. Se os negócios são internacionais, os sindicatos também precisam ser internacionais, ou os salários poderão, em última análise, cair abaixo do nível de subsistência em toda parte. Se as epidemias são globais, os esforços de saúde pública devem ultrapassar as fronteiras nacionais. Se a poluição é global, os esforços para limitá-la precisam ser globais. Se o crime é global, a polícia também deve ser. Se nações “emergentes” e bandos terroristas desenvolvem armas de destruição em massa, esforços devem ser feitos para limitar sua disseminação. Não temos escolha senão tentar administrar a Terra em nível planetário. Mas a luta para realizar isso produz, por sua vez, resultados ambíguos. Se os poderes constituídos podem usar o ambientalismo, os esforços de saúde pública, as ações de imposição armada da paz e a guerra contra o crime internacional, o terrorismo e o tráfico de drogas para consolidar ainda mais seu poder, eles o farão. Ou melhor, já o fazem. Quem se opõe a esforços para salvar o meio ambiente, combater o tráfico internacional de drogas ou limitar a possibilidade de terrorismo nuclear age contra os melhores interesses da humanidade e da Terra. Mas quem se identifica com esses esforços ou deposita neles sua esperança está iludido. A Terra não pode ser administrada em nível planetário porque as forças do globalismo que aspiram gerir esse processo — negócios e finanças globais, em outras palavras, seguidos, e não liderados, pela tendência à unificação política — são as mesmas que estão criando esses problemas em primeiro lugar. A expansão global da indústria e da exploração de recursos — iniciada e até hoje impulsionada, apesar do interlúdio comunista, pelo capitalismo transnacional — está na origem da degradação ambiental. Ao destruir economias tradicionais de subsistência e proletarizar o trabalho — assistida, em grande medida, pela brutal coletivização da agricultura, à custa de dezenas de milhões de vidas, na Rússia e na China comunistas —, ao explorar mão de obra barata e ameaçar identidades culturais nacionais e religiosas, as forças do capitalismo global criaram elas próprias o comércio subterrâneo global de drogas, armas, espécies animais em risco, escravos… todos monumentos ao espírito empreendedor. Só um Governo Mundial Único poderia limitar o poder destrutivo dessas forças econômicas internacionais. Mas, se e quando tal governo emergir, ainda que possa exercer alguma influência mitigadora sobre desastres globais, será agente dessas forças, não seu adversário.

A política é a arte do efêmero. Tudo o que tem valor humano e é obtido pela ação política é temporário, ambíguo e corruptível. Essa é a natureza do tempo e da história — da própria matéria. A ação pela justiça social, a ação para salvar o meio ambiente são louváveis. Cada pessoa que consegue evitar ser esmagada pelas circunstâncias sem se tornar exploradora e opressora de outros é uma bênção para a raça. Cada espécie que pode ser salva da extinção permanece como um espelho incomparável de um aspecto único da natureza divina e pode (ou não) acrescentar à biodiversidade disponível no próximo ciclo de manifestação terrestre, já que não podemos saber com absoluta certeza se o fim deste eão precisa implicar a destruição total de toda a vida na Terra, ou mesmo de toda a vida humana; tudo o que sabemos é que será o fim para “nós”.

Mas a batalha contra o Anticristo está em outro nível. Embora para alguns possa ter uma expressão política, é essencialmente espiritual. “O meu Reino não é deste mundo.” É uma luta para salvar não o mundo, mas a alma humana — começando, e terminando se preciso for, pela própria.

Vetores do Anticristo nos Três “Estados” Religiosos

Huston Smith divide todas as manifestações religiosas em três níveis básicos: religião de igreja, religião popular e religião mística. Há grande interpenetração entre esses domínios, mas a divisão permanece, em essência, correta. Muito se esclarece quando percebemos que nem tudo o que passa por “religião” tem a mesma orientação, o mesmo campo de atividade, o mesmo objetivo último.

Tal como vejo as coisas, o objetivo principal da religião de igreja é a salvação do indivíduo em um estado após a morte. O objetivo principal da religião popular é o atendimento do desejo humano e a proteção da vida humana contra o dano. O objetivo principal da religião mística é a realização de Deus, a libertação final da existência contingente, já nesta vida. A religião popular, portanto, pode ser designada como a religião deste mundo; a religião de igreja, do outro mundo; e a religião mística, do Absoluto, além tanto deste mundo quanto do outro. Esse esquema está longe de ser perfeito, mas, apesar das muitas exceções, ainda me parece um modo útil de dar sentido às tendências diversas abrangidas pela palavra “religião”.

Sem dúvida, a religião de igreja tem, entre seus objetivos secundários, a proteção do indivíduo e da comunidade contra o mal e a obtenção de metas moralmente aceitáveis nesta vida. E toda religião baseada na revelação possui pelo menos uma porta em seu interior — largamente reconhecida ou meio esquecida — que se abre para o Caminho místico. Também a religião popular não é totalmente destituída de elementos que dizem respeito ao destino da alma no além — como, por exemplo, a veneração dos antepassados — e muitas religiões populares conservam restos de doutrinas místicas expressas em termos de mito e folclore. Além disso, embora a religião mística renuncie ao apego ao sucesso e à segurança mundanos, e considere a imortalidade pessoal em um além bem-aventurado como meta severamente limitada (“o paraíso é a prisão dos gnósticos”) ou como metáfora velada da própria União mística, a bênção de um santo ou sábio realizado sempre foi reconhecida como auxílio à salvação da alma, fonte de proteção e até, em alguns casos, talismã de sucesso terreno, dependendo da intenção e da capacidade do beneficiário. Não obstante, os três objetivos de poder (via magia), salvação (via obediência) e libertação (via realização) caracterizam, respectivamente, a essência da religião popular, da religião de igreja e da religião mística.

O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã são religiões de igreja que contêm elementos místicos — a Cabala, a hesicastia e o sufismo — e incorporam também certa dose de religião popular. O Budismo é primordialmente uma religião mística, embora em suas formas Terra Pura ou Amidista tenda a tornar-se religião de salvação, ainda que continue vendo a obtenção de um além bem-aventurado como apenas o primeiro passo rumo à Iluminação final. Na China e em outros lugares, o Budismo absorveu inúmeros elementos populares, e a seita Nichiren Shoshu, e outras semelhantes, com sua ênfase no sucesso mundano, embora ainda orientadas para a Iluminação final, partilham do objetivo fundamental da religião popular.

O Confucionismo, ao evitar (sem negar) o sobrenaturalismo, é mais um sistema de sabedoria social e moral — profundo e providencial, é verdade — do que aquilo que costumamos chamar de religião. O Taoismo, a outra grande tradição chinesa, assume três formas, segundo Huston Smith: taoismo filosófico, taoismo higiênico-iogue e taoismo eclesiástico instituído. O taoismo filosófico e o higiênico-iogue são essencialmente místicos, correspondendo aproximadamente ao jñāna-yoga e ao rāja-yoga no Hinduísmo (embora o taoismo higiênico-iogue, com sua ênfase em saúde e longevidade, incorpore elementos populares), ao passo que o taoismo eclesiástico pode ser descrito como uma religião popular mágica que se converteu em igreja organizada. O Taoismo compartilha com o xamanismo, um de seus ancestrais longínquos, uma união mais estreita entre magia e mística do que foi o caso nas As religiões abraâmicas, o budismo (fora das seitas Vajrayana) e talvez até o hinduísmo preservaram, em maior ou menor grau, a separação entre magia e mística; apesar disso, essas duas tendências permanecem distintas.

Quanto ao hinduísmo, ele abrange os três elementos: toda forma imaginável de religião popular mágica e/ou politeísta; um “politeísmo eclesial” superior, baseado nos cultos dos grandes deuses e deusas; e uma rica espiritualidade mística, amplamente derivada dos ensinamentos transcendentes do Vedānta, incluindo os cultos de Kali, Shiva e os avatares de Vishnu reinterpretados como formas do Absoluto unitário.

A forma dominante na Europa e nos Estados Unidos tem sido tradicionalmente a religião de igreja; e, como o cristianismo norte-americano foi predominantemente protestante, tanto as espiritualidades místicas quanto as populares foram amplamente excluídas — embora algumas vertentes do protestantismo carismático tenham preenchido parcialmente essa lacuna, não incorporando a religião popular, mas quase transformando o cristianismo, elas mesmas, em uma religião popular mágica. Não era bem assim no catolicismo tradicional da América Latina, que abraçava muitos mais elementos populares e preservava, em certa medida, a dimensão mística, ao menos no contexto do monaquismo. A mística também sobreviveu no catolicismo norte-americano — como testemunham figuras como Thomas Merton —, mas um protestantismo eclesial estreito, embora muitas vezes profundamente enraizado, e um catolicismo eclesial igualmente estreito continuaram sendo, até talvez o fim dos anos 1960, a realidade denotada pela palavra “religião” na mente da maioria dos americanos.

A supressão tanto da religião popular quanto da religião mística no contexto norte-americano tornou possível um erro fundamental que ganhou grande força cultural nos anos 1960 e 1970 e continua a se espalhar até hoje: a saber, que a religião popular é, na verdade, mística. Como tantas vezes ocorreu ao longo da história, na política e na religião, ideias essencialmente incompatíveis tornaram-se associadas no imaginário popular por terem sido ambas excluídas da visão oficial da realidade. Embora a busca da segurança e do sucesso mundano, própria da religião popular, esteja no pólo oposto da meta de renúncia e libertação própria da religião mística, a dinâmica histórica predominante assegurou que muitas pessoas que professavam interesse pelo misticismo também se interessassem pela magia; a necessidade sentida de “abandonar” a religiosidade eclesial estreita significava que se estava muito propenso a “adentrar” tudo o que essa religião de igreja havia deixado de fora — fosse algo elevado, simplesmente vulgar, ou ativamente sinistro.

O protestantismo evangélico continua, sem surpresa, a propagar o erro de que metafísica e misticismo (num extremo) e magia e fenômenos psíquicos (no outro) são, na verdade, a mesma coisa; enquanto o protestantismo liberal e o catolicismo caíram no mesmo erro pela direção oposta: muitos liberais acreditam que a dimensão mística perdida do cristianismo — ou de seu cristianismo — pode ser ressuscitada pela inclusão de mais elementos populares, por meio do interesse em mitologia universal, religiões pagãs, xamanismo e até bruxaria. E o protestantismo carismático (e também o catolicismo carismático) fez o possível para transformar o cristianismo em uma religião mágica ou popular.

A supressão da religião mística no cristianismo norte-americano levou até mesmo contemplativos como Thomas Merton a buscar a dimensão mística perdida em tradições não cristãs. Isso produziu o efeito ambíguo de despertar o cristianismo para seus próprios aspectos místicos ao preço de contaminá-lo com elementos heterogêneos que, embora sem dúvida de profunda verdade e eficácia espiritual em seus próprios contextos tradicionais, tendem a lançar uma sombra distorcida sobre a filosofia metafísica cristã tradicional e sua espiritualidade mística. E a incapacidade do protestantismo americano de santificar, na medida do possível, a dimensão popular — algo que tanto o catolicismo quanto a ortodoxia russa foram mais capazes de fazer, embora não sem tolerar, de tempos em tempos, certos elementos ambíguos —, somada à apostasia rastejante do próprio catolicismo romano, abriu o cristianismo americano para subversões tanto pelo neopaganismo, seja sob a forma de religiões afro-americanas como a Santería, seja sob a de renascimentos “pagãos” comercializados em massa, como a Wicca de Starhawk, quanto por várias ideias da Nova Era e/ou neoespiritualistas. Tampouco se pode ignorar a grande e destrutiva influência do junguianismo — uma psicologia que possui muitos insights válidos no seu próprio nível, mas que assumiu a forma infeliz de uma pseudomística incorporando muitos elementos populares — especialmente dentro do protestantismo liberal e da Igreja Católica.

Dado que a religião mística é o núcleo, intrínseco ou reconhecido, de toda verdadeira espiritualidade, e que o elemento mágico — o desejo de alcançar sucesso mundano e evitar o dano mundano por meios sutis — sempre se apresentará à porta de nossa vida religiosa exigindo reconhecimento, devemos levar ambos em conta. Se falharmos nisso, o resultado será pseudomisticismo de um lado, e feitiçaria do outro. O perigo da feitiçaria só é superado incorporando uma oração peticionária poderosa e espiritualmente eficaz em nossa vida religiosa, e reconhecendo ao mesmo tempo que devemos “buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, que “não é deste mundo”; à medida que o poder miraculoso da teurgia se retira da vida espiritual — ao menos dentro de um contexto cristão —, o poder subversivo da magia tomará o seu lugar. E o perigo do pseudomisticismo só pode ser superado mediante o verdadeiro misticismo, cujos aspectos metafísicos e operativos, no contexto do cristianismo, estão plenamente apresentados na tradição patrística e nos escritos dos santos místicos das Igrejas do Oriente e do Ocidente. Sem uma compreensão abrangente e uma prática viva de sua própria tradição mística, as igrejas cristãs permanecem abertas à invasão por uma metafísica falsa e por uma prática contemplativa falsa — a religião do Anticristo.

Certos aspectos da religião popular estão claramente posicionados para prestar tributo ao regime do Anticristo, não porque a religião popular (no contexto norte-americano contemporâneo, principalmente o neopaganismo) seja sempre má em si — ela é capaz, no seu melhor, de proporcionar às pessoas uma forma viável de lidar umas com as outras e com o mundo ao redor, e despertá-las, ao menos até certo ponto, para o significado sagrado do mundo natural —, mas porque forças satânicas podem usá-la para subverter tanto a religião eclesial quanto a religião mística. E a religião mística pode servir fielmente ao Anticristo por si só, se começar a se ver como rival da religião de igreja e, assim, como uma “igreja” alternativa, em vez de profundidade mística de uma dada tradição, cuja “igreja” é sua forma externa necessária e providencial. Se tomar esse caminho, acabará tanto por minar essa “igreja” quanto por trair sua própria essência. E a religião de igreja, se degenerar em um legalismo estreito de um lado, ou em um fideísmo anti-intelectual de outro, abrirá necessariamente sua porta às duplas subversões do pseudomisticismo e da feitiçaria.

No mundo da Nova Era, feitiçaria e pseudomisticismo juntaram-se. Contudo, a espiritualidade da Nova Era não pode realmente ser chamada de “religião popular”, pois está sendo comercializada em massa, de maneira muito sofisticada, para uma “massa” que já não é realmente um “povo”. E ela se apoia tanto, por exemplo, em pesquisas avançadas sobre o cérebro e especulações da física pós-einsteiniana quanto em tradições antigas como o xamanismo. A libertação espiritual é pregada, e técnicas místicas que afirmam ser capazes de produzi-la são ensinadas. Contudo, a Nova Era não pode ser caracterizada como religião mística, já que a libertação em questão é abordada ou por meio de uma metafísica falsa, ou por meio de verdadeiros princípios metafísicos retirados de contexto, ou por meios puramente psíquicos — meios que são, por definição, insuficientes para a libertação espiritual, uma vez que é justamente da dominação da psique — o universo, sutil ou grosseiro, definido pelo ego humano — que o Caminho espiritual existe para nos libertar. E a libertação espiritual é apresentada pela Nova Era não como fruto da renúncia ao mundo, mas como plenamente compatível com a busca mágica de metas mundanas, se não como a mais poderosa magia de todas. O princípio central da Nova Era parece ser: “você pode servir a Deus e a Mamom.”

Além disso, as técnicas amplamente disseminadas são fantasias sem sentido, ferramentas psicológicas úteis mas não espirituais, técnicas mágicas perigosas ou, novamente, práticas místicas verdadeiras que só podem ser eficazes de modo confiável dentro de uma tradição espiritual viva, possuidora de doutrina ortodoxa e de uma compreensão prática de como a espiritualidade contemplativa deve ser exercida, tanto no contexto doutrinal quanto no moral. Mas, se algo caracteriza a espiritualidade Nova Era, é a redução da compreensão doutrinal ou metafísica do universo, de sua relação com seu Princípio divino e da natureza essencial desse Princípio a um conjunto de regras técnicas, juntamente com a tendência de retirar métodos de prática contemplativa, ióguica ou mágica de qualquer contexto moral, bem como de um contexto doutrinal suficiente. Se não é exigido compromisso moral para operar um computador pessoal, tampouco é exigido para a operação mágica do sistema nervoso humano e da manipulação das forças sutis às quais esse sistema pode, sob certas circunstâncias, ter acesso. Para qualquer pessoa com entendimento de verdadeira espiritualidade, seja devocional ou contemplativa, o resultado inevitável de tal abordagem é dolorosamente óbvio. Não é tão óbvio, infelizmente, para os praticantes da Nova Era, que acreditam que sua experimentação perigosa e caótica com a consciência humana é espiritualidade mística, e foram cuidadosamente treinados para rotular como “preconceito” qualquer advertência ou expressão de preocupação daqueles que sabem mais do que eles. Porém a falta de ouvintes em nada absolve os mais bem informados de seu dever de falar.

Em livros como Theosophy: History of a Pseudo-Religion, The Spiritist Fallacy e The Reign of Quantity and the Signs of the Times, o filósofo metafísico René Guénon pregou não contra a religião popular mágica em si — a menos que o espiritismo seja considerado uma forma atípica de religião popular moderna —, mas especificamente contra certos movimentos mais sofisticados da era moderna — a teosofia, o ocultismo e outros — que vão além das práticas populares “tradicionais”. Esses movimentos representavam para ele não meras religiões “mundanas” do povo, sejam efetivamente mágicas ou simplesmente supersticiosas, mas, em alguns casos pelo menos, tentativas deliberadas e conscientes de subverter tanto a religião de igreja quanto a espiritualidade mística por meio de uma mistura caótica de elementos populares, espiritualidades místicas mal compreendidas ou distorcidas, doutrinas heréticas e até formas de satanismo explícito. Ele considerava o crescimento de tais movimentos como um dos primeiros sinais claros da vinda do Anticristo e, portanto, como arautos do fim apocalíptico do presente ciclo, após o qual um novo ciclo seria inaugurado por um novo avatāra — evento chamado, em termos cristãos, de parousia, a segunda vinda de Cristo.

A World Wide Web

Uma das expressões mais claras do pós-modernismo é a “cultura da informação”, cujo “corpo místico” é a internet. Não há dúvida de que a World Wide Web é útil. Facilita enormemente a pesquisa de imensos volumes de dados e possibilita formas de comunicação criativa que jamais foram possíveis antes. O preço dessa inegável amostra de “progresso” é, contudo, mais alto do que pode ser compensado pelo melhor uso que dela se faça. (Como um amigo meu disse uma vez, quando lhe perguntei para que servem os computadores: “Eles servem para lidar com a explosão de informação criada pelos próprios computadores.”) Não é sempre um pecado usar a internet, mas é sempre um perigo espiritual, cujo alcance e profundidade não podem ser definidos apenas em termos do tipo de informação que escolhemos acessar por meio dela. (Segundo um estudo recente, o uso da internet produz sintomas de depressão e solidão. Um leve, porém estatisticamente significativo aumento nesses sintomas pode surgir com apenas uma hora por semana online.)

A internet é o símbolo sociotecnológico perfeito do pós-modernismo. Não há “paradigma abrangente” que dê ordem e coerência à visão de realidade que ela apresenta. A “realidade” é simplesmente aquilo que o indivíduo configura de acordo com suas necessidades, seus interesses, seus medos e seus desejos. Como o “inconsciente coletivo” de Jung, a Web representa não uma realidade objetiva, material ou metafísica, mas uma subjetividade massiva com consequências objetivas. Poder-se-ia caracterizá-la como forma de treinamento coletivo em solipsismo ou introversão autística, donde a proverbial inabilidade social do “nerd de computador”. Nada existe senão o “eu” e seus tentáculos globais. Eu sou o pensador; você é meu pensamento. O mundo é meu sistema nervoso.

A megalomania potencialmente gerada pela fantasia — induzida pela Web — de que estou falando ao “mundo inteiro” por trás de uma tela de anonimato eletrônico, aliada à ausência de qualquer referência à realidade objetiva que possa reduzir essa megalomania, garante que as visões menos objetivas e portanto mais extremas e desequilibradas da “realidade” oferecidas na internet ganhem um poder desproporcional ao seu valor intrínseco, especialmente dada a extrema passividade que, lado a lado com a inflação do ego, é consequência inevitável da supressão de qualquer senso de realidade fora do “eu”. A experiência, sem uma relação viva com a verdade objetiva que a reabasteça, entra em um estado de entropia acelerada. Tal entropia começou no Ocidente com a marginalização da religião e a morte da metafísica, e agora parece caminhar, por analogia com a segunda lei da termodinâmica, rumo a uma espécie de “morte térmica” do significado, onde até mesmo a relativa objetividade representada por um mundo comum de experiência sensível é marginalizada pelo domínio dos meios eletrônicos. Se o fim teórico de um universo em expansão é a estagnação de uma temperatura uniforme, o fim correspondente da explosão de informação parece destinado a ser uma espécie de “temperatura uniforme do significado”, onde boatos são elevados ao estatuto de fatos e fatos degradados ao nível de opiniões arbitrárias, onde nenhum dado é mais significativo ou mais significativo do que qualquer outro. Mas felizmente — ou infelizmente — tal limite teórico de falta absoluta de significado não pode, de fato, ser alcançado. Nas palavras de René Guénon em The Reign of Quantity and the Signs of the Times: “Depois do igualitarismo da nossa época” — a cultura da informação sendo uma espécie de igualitarismo do significado — “voltará a haver uma hierarquia visível e estabelecida, mas uma hierarquia invertida, na verdade uma autêntica ‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que estará, de fato, mais próximo que qualquer outro do fundo do ‘poço do Inferno’.”

A internet, no nível metafísico, é em certos aspectos uma inversão satânica da imanência de Deus. Nicolau de Cusa, numa tentativa de representar essa imanência, caracterizou Deus como “uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em lugar nenhum”. Esta é uma descrição adequada da internet. É a primeira utilidade aparentemente administrada por ninguém — ou por todo mundo. (Aparentemente, porque, embora ninguém a administre, pessoas como Bill Gates, que têm o poder econômico e técnico para explorá-la, estão usando nossa experiência online — de que a “intenção configura a realidade” — para ocultar o fato de que estão nos alimentando, como se fosse a própria natureza primordial, com os termos, métodos e sistemas pelos quais somos “livres” para configurá-la.)

O populismo espiritual — que foi uma grande influência, via Peter Russell (The Global Brain), Barbara Marx Hubbard e outros, no desenvolvimento da internet — sustenta que cada um de nós, no plano da manifestação, é igualmente divino. A forma como a realidade é configurada por mim não é, portanto, mais nem menos válida do que a forma como é configurada por você. Acreditávamos que, se a verdade de que “o centro está em toda parte” pudesse ser efetivamente realizada em escala global, então Deus seria encarnado em nível massivo e a Terra seria salva. Mas, quando Nicolau de Cusa disse que “o centro está em toda parte”, ele não quis dizer que a visão de mundo de um pedófilo ou de um esquizofrênico paranoide tivesse o mesmo valor que a de um crítico social dedicado como Noam Chomsky ou um filósofo espiritual como Huston Smith. Ele quis dizer que o atman, a Testemunha Divina, é imanente em todos os seres, incluindo todos os seres humanos. Embora o grau em que essa Testemunha é realizada ou traída difira radicalmente de caso a caso, ela continua sendo o núcleo transcendente de cada pessoa. A Testemunha Divina não é a subjetividade de cada um de nós, mas precisamente aquilo que transcende essa subjetividade e, ao fazê-lo, nos apresenta as coisas como são. Como Sujeito Absoluto, o atman não é este ou aquele ego subjetivo com sua configuração excêntrica da experiência; ele é Aquilo que nada testemunha senão a Verdade Objetiva Absoluta. Só a “configuração” de realidade de Deus — aquela Essência sem forma que é a Forma de toda forma — é absolutamente verdadeira. O ato d’Ele de configurar abrange todos os nossos, do criminoso ao santo; o santo é santo precisamente porque sua configuração se aproxima mais da de Deus, o criminoso é criminoso porque dela se afasta o mais radicalmente possível.

Colocar a verdade de que “o centro está em toda parte” no plano das condições manifestas, e não no plano de uma Realidade Absoluta transcendente que, no entanto, é imanente em todas as coisas, é transformar a visão de Deus em todas as coisas em uma “absolutização do relativo”, uma divinização da ilusão. É adorar avidyā-māyā, o universo das condições na medida em que vela, em vez de revelar, o Absoluto. E um dos símbolos universais dessa maya, em muitas culturas e tradições, é a teia de aranha. Assim, a World Wide Web, em sua tendência principal — embora não em seus usos inegavelmente valiosos — é uma expressão de avidyā-māyā, o poder da ignorância. E, como Marshall McLuhan nos ensinou, é a tendência principal que conta: “o meio é a mensagem”. A forma essencial de um meio — ou de uma tecnologia, como a energia nuclear ou a engenharia genética — tem efeito global sobre a consciência e a sociedade maior do que aquilo que decidimos fazer com ela. A forma essencial da World Wide Web, com seu dilúvio de informação configurada subjetivamente (muito dela indistinguível de simples mentira), sua negação da objetividade e a consequente supressão tanto do desprendimento quanto do alcance intelectual, é bem expressa na declaração de Nietzsche: “Nada é verdadeiro; tudo é permitido” — o grito de guerra do pós-modernismo em seis palavras.

Na Idade de Ouro, a percepção se conforma, na medida do possível, à Realidade. Na Idade de Kali, a percepção se afasta da Realidade, na medida do possível, e acaba entrando em guerra com ela — guerra essa que a Bíblia chama de “Armagedom”. Quando a percepção tornada ilusão virtual entra em guerra com a Verdade, a Verdade deve assumir a forma irada de Kali, cuja essência não manifesta é Shiva: a Realidade Absoluta como destruidora da ilusão do mundo.

Antes dessa batalha última, porém, a objetividade reprimida, agora degradada do nível da inteligência ao nível exclusivo do poder, retornará em forma negativa e falsa. Onde nada é verdadeiro e tudo é permitido, aqueles que tomam o poder podem configurar a realidade como se fossem o próprio Deus — mas configurá-la segundo o quê? Com a verdade objetiva suprimida e o poder absolutizado, que realidade podem os poderosos tomar como modelo segundo o qual esse poder possa ser exercido? Nenhuma realidade além do próprio poder, o que significa: nenhuma verdade senão o caos. Portanto, depois que os poderosos terminarem de tomar o poder, o Anticristo tomará posse deles. O Anticristo, essa instabilidade colossal, esse centro de subjetividade massiva erguendo-se contra a verdade objetiva apenas por meio do poder, será a expressão universal, devastadora e final do pós-modernismo. E a Web será sua Prostituta. O que é uma prostituta, afinal, senão uma expressão do desejo humano de que a realidade objetiva se conforme à fantasia subjetiva? E o que nos ensina a experiência de frequentar prostitutas — se a objetividade algum dia nos libertar dessa experiência para que possamos aprender com ela — senão que aqueles que desejam ter poder sobre suas fantasias estão simplesmente entregando a suas fantasias poder sobre eles?

Isto é a Web: observe e aprenda.

Pós-modernismo e Globalismo

O pós-modernismo é a ideologia religiosa, filosófica e cultural do globalismo. Mas como isso é possível? Como uma unificação econômica e política do mundo pode surgir de uma visão de mundo — ou de uma anti-visão de mundo — que exalta a diversidade e define toda unidade, inclusive a unidade política, como opressão?

A resposta irônica é que a Unidade, que o pós-modernismo nega, é implicada em cada declaração que ele faz, pelo simples fato de que toda afirmação de que o conjunto da realidade é de tal ou qual modo — inclusive a afirmação de que ela é múltipla, diversa e sem referente objetivo — é um exemplo dessa unidade. A doutrina de que não há paradigma abrangente é, ela mesma, um paradigma abrangente. Assim, embora a Unidade seja negada, é perpetuamente invocada; mas invocar algo que é intelectualmente negado e emocionalmente temido é garantir que isso se apresente em sua face mais negativa.

A Unidade é. Se não a reconhecermos, ela não se expressará em termos de conhecimento, mas de poder. Em outras palavras, a negação de todas as unidades, da qual a Unidade metafísica é o princípio radical, garante que nenhuma visão possa subsistir como rival da “unidade” do poder nu. O pós-modernismo derrete as religiões tradicionais, as culturas e as formas de vida, e o poder assume o controle. Assim, o pós-modernismo pavimenta o caminho para o globalismo, primeiro destruindo qualquer visão que possa rivalizar com ele, e, em segundo lugar, criando um nível de caos que clama por medidas repressivas — na crença equivocada de que o caos é liberdade (ver Capítulo Seis). A Unidade é uma verdade metafísica. Se for negada, reaparecerá não tanto contra quanto por meio dessa negação: e esse é o sistema do Anticristo. Nos termos de René Guénon em O Reino da Quantidade, do Reinado da Quantidade moderno-materialista, cujo fase terminal é o pós-modernismo, nasce, em última instância, o Reinado da Qualidade Invertida, em que o igualitarismo democrático é destruído não em nome da aristocracia, mas do caos, em benefício daqueles magos socioeconômicos globalistas para os quais o caos cultural é algo natural e o caminho mais direto para o poder. A diversidade, para eles, implica aceitar a existência de uma classe dirigente global multiétnica, já que ninguém que não consiga trabalhar com “ingleses, franceses, beduínos, japoneses, asiáticos e negros” pode ser cosmopolita de forma eficaz segundo o modelo atual. Como o bom comunista, o bom globalista aprende que raça não importa, que cultura é um empecilho que pode e deve ser superado, e que tudo o que realmente conta é a classe. Além disso, ninguém é mais útil na legitimação desses costumes de “classe mundial” do que os supremacistas brancos (ou negros) e os terroristas/ separatistas étnicos que representam sua imagem especular invertida.

A fusão cultural mundial é também uma maneira de a elite dirigente globalizar mercados, padronizar tanto consumidores quanto força de trabalho e hipnotizar permanentemente as massas, não apenas lançando um manto temporário de segredo sobre suas ações, mas destruindo até o desejo humano normal de saber o que realmente está acontecendo, por meio de uma ideologia que prega que, de fato, nada está acontecendo fora das fantasias subjetivas do indivíduo isolado. E os horrores do caos social, das armas de destruição em massa e da degradação ambiental tornam tal ideologia insana muito atraente como fuga — para aqueles, isto é, que ainda não optaram pelo suicídio assistido que Jack Kevorkian, esse satanista pós-moderno perfeitamente contemporâneo e altamente relevante, se dispõe de bom grado a lhes fornecer, com a bênção cada vez mais aberta do mundo tal como é, e como está destinado a tornar-se.

Um dos “profetas” dessa demência solipsista baseada no medo e na negação, curiosamente, foi o pioneiro do LSD Timothy Leary. Perto do fim de sua vida, quando morria de câncer, fez declarações como as seguintes: já que a Terra está morrendo, nosso melhor recurso é viajar em massa para o ciberespaço, para a realidade virtual, e deixar a Terra para trás; esta é a “nova fronteira” tecnológica e cultural. Ele esqueceu apenas um detalhe: a realidade virtual ainda exige tanto o sistema nervoso humano para experienciá-la quanto uma fonte de energia para alimentar nossos computadores. Alimentos, água, abrigo e ar continuarão sendo necessários, juntamente com usinas de energia e um “contrato de manutenção estendido” para o caso de nossos computadores quebrarem.

Outras mentes “menos desequilibradas”, no entanto, aparentemente imaginaram um meio de contornar essas limitações: simplesmente faremos o upload de nossa consciência diretamente em computadores que serão mantidos por robôs que não precisam de comida, água, abrigo e ar.

Pois bem… a cada um o seu. Mas voltemos ao pós-modernismo em um nível um pouco mais humano: em toda essa “celebração da diversidade”, quem é que, de fato, está realizando a verdadeira celebração? Não são os “locais” desclassificados atolados em visões de mundo marginalizadas que um dia foram culturas, religiões, civilizações. Não são os modernistas obsoletos celebrando unificações “literárias” defuntas. Somente aqueles que são herdeiros dessas visões podem realmente celebrar a diversidade: a elite global. Certamente uma espécie de diversidade faz necessariamente parte da cultura de massa pós-moderna, uma diversidade retratada como “riqueza” — mas a atenção estreitada e a visão em túnel que a qualidade de descontinuidade supersônica e recortada dessa cultura cria na maioria das pessoas impedem que se alcance o nível de “visão de conjunto” em que essa “diversidade” possa sequer ser percebida, quanto mais “celebrada”. E a multiplicação quantitativa dessa “diversidade”, em detrimento dos elementos qualitativos sem os quais o próprio conceito de diversidade fica sem sentido, torna a experiência pós-moderna, apesar de sua “riqueza” caleidoscópica, estranhamente uniforme e morta. A consciência das massas tende a ficar presa, cada vez mais irremediavelmente, no milésimo de segundo da reação ao estímulo, desprovida tanto de um passado sabiamente contemplado quanto de um futuro razoavelmente projetado — um modo de “consciência” que é precisamente a versão do ego, a falsificação satânica, daquele Presente Eterno pelo qual Deus, como Testemunha Absoluta em nós, contempla o mundo.

Apenas aqueles que dispõem de poder cultural, econômico e tecnológico suficiente para comandar a presença simultânea de muitas visões de realidade podem colocar uma porcentagem significativa de toda a diversidade pós-moderna sobre a mesma mesa de banquete ao mesmo tempo — mas nunca toda ela, e nunca por muito tempo: porque a mudança desencadeada pela tecnologia global da informação é caótica e rápida demais para que alguém consiga realmente acompanhar; porque a taxa de desgaste e de substituição daqueles que administram o mercado global também se acelera; e porque a destruição pós-moderna da consciência humana terá de afetar, por fim, aqueles que esperam lucrar com ela — talvez mais rapidamente, e certamente mais profundamente, do que afeta seus fantoches mais dóceis e seus títeres mais vulneráveis. Aqueles que envenenam o poço acabarão, inevitavelmente, obrigados a beber dele.

Uma multiplicidade de visões só pode ser percebida a partir do ponto de vista de uma Unidade abrangente. Mas a capacidade de perceber qualquer visão que não seja a própria também é negada — implicitamente, se não abertamente — pelas formas mais extremas de pós-modernismo, conforme a doutrina de que não há percepção de uma realidade objetiva, mas apenas construção dela. Se a realidade se baseia apenas em visões construídas, o mesmo vale para qualquer visão que tenhamos da visão de outro — e como podemos celebrar a diversidade de visões se negamos nossa capacidade de perceber objetivamente qualquer visão que não seja a nossa?

O pós-modernismo toma da fenomenologia o imperativo de ver com os olhos dos outros, de andar um quilômetro nos sapatos deles. Mas também toma a negação de uma única verdade objetiva, o que leva à absolutização do subjetivo, implicando necessariamente a absolutização da minha subjetividade, o que, por sua vez, torna impossível ver com os olhos alheios. O pós-modernismo é, então, o gesto desesperado de um solipsista (eu, é claro) na direção de outros solipsistas conjecturais cuja existência ele precisa negar justamente enquanto lhes sinaliza por meio da fumaça.

Mas nem isso é o fundo do pântano pós-moderno. Sem a presença libertadora e estabilizadora de uma realidade objetiva fora do “eu”, onde todos os pontos de vista subjetivos possam convergir, tudo é ego — e o ego não é definido pela verdade, mas pelo poder. Esse ego, no entanto, por não possuir realidade intrínseca, é de fato a mais fraca de todas as pseudo-realidades imagináveis. Como tal, seu solipsismo está destinado a ser devorado por um solipsismo maior, uma irrealidade maior, uma fraqueza mais poderosa — pelo regime daqueles que, em nome do poder, esvaziaram-se mais completamente de realidade, a serviço daquela maior irrealidade, daquela fraqueza mais poderosa de todas — o Anticristo. Nas palavras de Guénon:

“O Anticristo deve evidentemente estar tão próximo quanto possível da ‘desintegração’, de forma que se poderia dizer que sua individualidade, ao mesmo tempo em que se desenvolve de modo monstruoso, está quase aniquilada, realizando assim o inverso do apagamento do ‘ego’ diante do ‘Si-mesmo’, ou, em outras palavras, realizando a confusão no ‘caos’ em oposição à fusão na Unidade principial...” (The Reign of Quantity, p. 327).

A irrealidade deliberadamente buscada e meticulosamente engenhada do mundo pós-moderno é também, de forma análoga, uma falsificação satânica da doutrina budista da “vacuidadão” dos fenômenos. Para os budistas, o mundo fenomenal em sua realidade essencial — aos olhos de quem está plenamente desperto — é vazio de natureza própria, vazio de qualquer limitação relativa ou contingente. A vacuidadão das coisas é uma só com sua “talidade”, o que equivale a dizer que as coisas estão livres de todas as definições limitadoras porque são, em essência, incomparáveis. Todas as formas são manifestações de seu Princípio absoluto, que não é, porém, um objeto cognitivo separado; o sasāra é ele mesmo o Nirvana. Para o pós-modernista, em contrapartida, as formas são “absolutamente” relativas. Nada existe nelas além de sua natureza própria, relativa e indefinível como é, e é essa sua “vacuidadão”. Em sua limitação impermanente e contingente, “como tal”, são tudo quanto existe; são opacas e nada manifestam; não há Nirvana, nenhuma natureza búdica nelas, apenas um sasāra que jamais pode ser visto como é — isto é, como um mundo de ilusão baseado no desejo e na ignorância — porque não existe Verdade libertadora além dele à luz da qual sua natureza ilusória possa ser apreendida. Não há saída.

Pós-modernismo e Paranóia

Michael Kelley, num artigo intitulado “The Road to Paranoia” (The New Yorker, 19 de junho de 1995), cunhou o termo “paranoia de fusão” (fusion paranoia) para descrever a convergência das franjas lunáticas tanto da esquerda quanto da direita, somadas aos porta-vozes de paranoias especializadas de todos os quadrantes, num caldo geral antigoverno e antiglobalista temperado com bastante racismo e incipiente terrorismo doméstico. Ele também aponta como a paranoia se tornou muito mais aceitável no “mainstream” da vida política americana. “Numa era de paranoia de fusão”, escreve Kelley, “já não se faz qualquer distinção entre acusações críveis e calúnias totalmente infundadas. Qualquer sugestão de mal conspiratório contra um político de destaque, por mais extrema que seja a acusação ou por mais escassa que seja a evidência, desliza das margens da política até o centro, em uma espécie de esteira rolante que o transporta dos delírios de grupelhos marginais da direita e da esquerda para a zona respeitável do discurso público”.

Essa paranoia institucionalizada é parte integrante do ethos pós-moderno. Se não há verdade objetiva, não há como distinguir entre acusações plausíveis e boatos delirantes. Se não há verdade objetiva, qualquer visão estabelecida da realidade é automaticamente suspeita; só pode ser entendida como uma conspiração dos poderosos contra os fracos (o que, evidentemente, às vezes é o caso). Se não há verdade objetiva, qualquer um que consiga lançar um boato que não possa ser definitivamente desmentido — processo que a internet parece ter sido especificamente desenhada para facilitar — pode sentir que, como o próprio Deus Todo-Poderoso, criou uma “realidade” a partir do nada.

O que exatamente é paranoia? É a tentativa da mente humana de alcançar um fechamento cognitivo em uma situação que não o permite, seja porque há informação de menos para justificá-lo, seja porque — como no caso do esquizofrênico paranoide — há informação demais para fazer sentido, a não ser por meio do delírio.

Nossa cultura de informação pós-moderna é perfeitamente desenhada para criar paranoia. Ela nos obriga a processar informação demais; e esse “demais” é, em outro sentido, também “de menos”, já que, à medida que a quantidade de fatos (ou conjecturas, ou fantasias) aumenta, nossa certeza a respeito da verdade de qualquer fato isolado diminui. Como tentativa de alcançar o fechamento cognitivo, porém, a paranoia não é mais do que uma faculdade humana normal e necessária que assumiu forma distorcida e patológica: a capacidade de criar um ponto de vista estável, uma visão de mundo coerente e unificada. Em um mundo que nega a existência de algo como verdade objetiva, essa faculdade normal é forçada a trabalhar até atingir um estado de insanidade, como as filhas de Dánao no inferno tentando tirar água com uma peneira.

A prevalência da paranoia em nossa cultura é a prova de que não estamos à vontade com o pós-modernismo, de que a disposição de adiar permanentemente o fechamento cognitivo, exigida pelo pós-modernismo, vai contra a natureza humana. É uma forte evidência de que jamais ficaremos realmente confortáveis com a ideia de que não existe verdade objetiva. E é aí que reside o maior perigo do pós-modernismo: em sua compreensível tentativa de evitar ideologias totalitárias, ele acumula no inconsciente coletivo, por meio de seu próprio “relativismo totalitário”, um desejo profundo pela Unidade perdida que antes era proporcionada pela religião, pela metafísica e pela intuição intelectual de Deus. Quando nosso cansaço com o caos e o relativismo chegar ao ponto de ruptura — que será também o ponto em que nossa capacidade de reconhecer a verdadeira Unidade objetiva e metafísica estará mais profundamente erodida — então nosso desejo inconsciente por essa Unidade irromperá explosivamente. E aquele que conseguir melhor satisfazer esse desejo, em escala global — por mais irreais que sejam suas promessas, já que nosso senso coletivo de realidade estará então em seu nível mais baixo — assumirá o papel de Anticristo.

As Religiões Globalistas

É lógico supor que, em algum lugar dos conselhos dos grandes, ideias e propostas como as seguintes estejam sendo seriamente discutidas:

“Todas as civilizações estáveis conhecidas da história se basearam, de uma forma ou de outra, na religião. As religiões tradicionais são divisivas, causam guerras e instabilidade social, porque nenhuma delas está destinada a triunfar, em definitivo, em escala global; estarão sempre em conflito. A Nova Ordem Mundial global, portanto, precisa de uma religião própria.

“Nenhuma religião vem realmente de ‘Deus’; todas são criações da mente humana. Essencialmente, são expressões de nosso potencial humano. Os maiores engenheiros sociais da história foram os sacerdotes, que, por meio de um árduo processo de tentativa e erro, descobriram as leis que regem o estabelecimento da estabilidade social e a orientação de todos os recursos humanos de uma determinada civilização rumo aos objetivos centrais dessa civilização. Quando a civilização global da Nova Ordem Mundial se tornar uma realidade, haverá um perigo real de que seja destruída, entre outros fatores, por guerras entre religiões. Por isso, devemos criar uma nova religião que supere todas as outras, tomando de cada uma o que tem de melhor, mas deixando para trás sua tendência à divisão e sua oposição ao progresso. Devemos à paz e à segurança do mundo o estabelecimento de tal religião.

“Essa nova religião deve combinar os arquétipos míticos mais profundos do passado humano com uma exaltação da tecnologia e da unidade mundial. A forma exata que assumirá ainda não é conhecida; ainda estamos na fase de pesquisa e desenvolvimento. Daremos nosso patrocínio a várias religiões experimentais, observaremos como funcionam e analisaremos seus efeitos sobre as sociedades nacionais e globais, bem como suas interações com as religiões tradicionais. O que fracassar, descartaremos; o que funcionar, incorporaremos.

Diversas “novas religiões” já captaram, ao menos em linhas gerais, nossos planos nesse sentido. Estão começando a bater à nossa porta, solicitando nosso patrocínio. Algumas serão rejeitadas, outras adotadas como programas piloto. Assim, cresce um intercâmbio frutífero entre as tendências religiosas que surgem na base das massas e os resultados de nossas próprias experiências de propaganda e de engenharia social. A Igreja da Cientologia, o culto do ‘Maitreya’ de Benjamin Creme, o EST e seus sucessores, os seminários de treinamento Avatar, os vários cultos ufológicos, a Igreja da Unificação de Sun Myung Moon... todos têm algo a nos ensinar. Tomaremos de cada um o que pareça útil e descartaremos o que não se mostrar eficaz no campo.”

Quem exatamente é esse “nós”, nesse cenário, não está claro. Os planejadores da religião global são um único “comitê gestor”, a espécie de ideia simplista que atrai imediatamente paranóicos de todos os cantos? Representam apenas a “cultura” semiconsciente das corporações multinacionais? Ou a verdade está em algum ponto intermediário?

No “Millennium Summit” de Ted Turner, em 2000, ouviu-se um estrondoso apelo para sufocar o proselitismo religioso; sentimentos semelhantes foram expressos em outros setores do ecumenismo liberal. Parece que as elites globais querem usar a legítima preocupação com os excessos de missionários ocidentais no Oriente para restringir o direito de todas as religiões de fazer conversões. Se todas as religiões apontam para a mesma Realidade, segundo a argumentação, então as diferenças religiosas são meras disputas de território. As religiões não passam de “expressões culturais” mediadas ou pelos acidentes de nascimento ou por “escolhas de estilo de vida”; afirmar que uma religião é verdadeira em qualquer sentido é como afirmar que apenas uma marca de sabão ou um modelo de automóvel é válido. Que fiquem restritas a seus próprios territórios, como atrações turísticas pitorescas. E que não reivindiquem propriedade sobre esse território; todo o solo pertence às elites. Sob o globalismo, a religião deve ser “federal”, com direitos religiosos severamente limitados, tal como os direitos dos estados foram limitados após a Guerra Civil americana.

George Bush, ex-presidente dos Estados Unidos e ex-diretor da CIA, discursou no fim dos anos 90 em uma convenção da Igreja da Unificação, que então planejava criar uma comunidade de “fusão mundial”, possivelmente no Brasil, na forma de um agrupamento de pequenas comunidades, cada uma representando um país-membro da ONU. Por que um “estadista” da estatura de Bush se interessaria pelos moonies, que na opinião pública não passam de uma seita desacreditada de vendedores de flores lavados cerebralmente?

O Parlamento Mundial das Religiões, que continua a se reunir regularmente, representa uma tentativa inicial desse tipo de ecumenismo quase político. Na data em que escrevo, a United Religions Initiative — que, em parte, cresceu a partir do Parlamento — esforça-se para organizar as religiões do mundo em um conselho permanente nos moldes da ONU; possui sólido apoio financeiro e já está organizada em 58 países. E certamente veremos muitas tentativas semelhantes no futuro. Essas incursões no ecumenismo global foram, até agora, em grande parte, domínio de idealistas impraticáveis, distantes dos centros reais de poder internacional. A emergência de uma “Nova Ordem Mundial” global, contudo, pode ter mudado tudo. Dado que o imperialismo econômico e cultural global reacendeu movimentos separatistas “tribais” em todo o mundo, muitos dos quais motivados religiosamente — a Revolução Iraniana sendo apenas o maior e mais óbvio exemplo —, o impulso para homogeneizar as religiões do mundo em nome da estabilidade política e econômica sobe cada vez mais na pauta das elites globalistas.

A ideia de que a antiga sabedoria espiritual e as novas “tecnologias” religiosas (no jargão da cultura corporativa) despertam grande interesse nas elites globais só é estranha para quem jamais investigou essa possibilidade. Recordo um dia, nos anos 80, em que me sentei, na condição de amigo de um amigo, nos jardins de um palacete em uma colina de Hillsboro, Califórnia, com executivos da Hewlett-Packard e seus consultores de treinamento espiritual — Nova Era em tudo, exceto no nome. Dependendo da visão de realidade que o leitor adote, eu estava ou diante de uma sombria conspiração yuppie, ou privilegiado por acompanhar uma convocação de idealistas puros. E idealistas eles eram. Desejavam sinceramente trabalhadores saudáveis e felizes, intercâmbio criativo entre empregados e administração, proteção do meio ambiente (dentro dos limites do lucro), uma visão do papel social do setor corporativo pautada pelos mais elevados princípios espirituais, tal como os entendiam — uma situação win/win para todos. Sem dúvida, estavam inventando uma nova religião global à medida que avançavam; e o que haveria de errado nisso? Eram a vanguarda do progresso global, da nova cultura de informação que transformava o mundo. Que lugar melhor para valores espirituais e ideais éticos elevados?

O único problema era que eles não acreditavam em Deus — ao menos não em um Deus que, em relação a nós, se não em Sua própria Essência, fosse capaz de intenção consciente e ação independente. A espiritualidade era seu experimento, seu produto, sua propriedade. Obediência a normas transpessoais, estabelecidas pelo Criador por meio da revelação de Sua Vontade a avatares, santos e profetas, não fazia parte de seu vocabulário de ideias. Lembro-me de ter brincado com o amigo que me convidara para aquele encontro, imaginando um anúncio de revista que dizia:

INFORMAÇÃO.
O SUMO BEM.

“Claro”, respondeu ele. “O que tem de engraçado nisso?”

Ecumenismo Liberal vs. Ecumenismo de Frente Unida

Os cristãos conservadores tendem a se ver como os únicos que percebem qualquer perigo no pós-modernismo e na Nova Era. E amontoam as espiritualidades New Age junto com todas as religiões orientais e as espiritualidades nativo-americanas como parte do que o Pe. Seraphim Rose chamou de “a religião do futuro” — o regime do Anticristo. Infelizmente, eles têm razões reais para enxergar as coisas dessa maneira.

Hinduísmo e budismo penetraram na cultura norte-americana em grande parte por meio da contracultura dos anos 60 (e antes), que também abraçou — ou apropriou de maneira deturpada — ideias religiosas nativo-americanas. (Black Elk Speaks e, naturalmente, O Livro Tibetano dos Mortos eram presença comum nas estantes hippies.) Muitos mestres budistas tibetanos neste país parecem ainda manter laços com a contracultura; uma cultura “alternativa” de tonalidade geralmente neopagã acolhe com entusiasmo os lamas, muitos dos quais não veem motivo para se diferenciar dela. (Nem todos os mestres tibetanos, porém, compartilham desse espírito; dizem-me que o irmão do Dalai Lama, o Dr. Thubten Jigme Norbu, tem sérias reservas quanto à Nova Era.) Assim, a “espiritualidade de fusão mundial”, que inclui um cristianismo ultra-liberal, o budismo ocidental, o hinduísmo ocidentalizado, várias espiritualidades nativo-americanas comercializadas (da semitradicional à totalmente espúria), o neopaganismo, a New Age e certas vertentes do chamado sufismo, é uma realidade neste país. Sua existência parece confirmar a visão dos cristãos conservadores de que apenas o cristianismo pode opor-se ao “mundo”, ao pós-modernismo, aos “falsos profetas” da Nova Era que anunciam a vinda do Anticristo.

As doutrinas da Escola Tradicionalista, porém, demonstram que as grandes religiões reveladas do mundo — hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo — possuem entre si uma afinidade intrínseca muito maior, infinitamente maior, do que qualquer uma delas possui com o neopaganismo ou a Nova Era — tendências sociais mais ou menos irônicas à parte. Um ecumenismo liberal que ignore ou comprometa a doutrina é apenas destrutivo para a causa da religião. Um ecumenismo de frente unida, que busque um entendimento comum, entre as religiões reveladas, das forças espirituais, culturais e intelectuais que ameaçam todas elas — entre as quais não se incluem apenas o pós-modernismo, o globalismo, o separatismo étnico e religioso militante, mas também as doutrinas neopagãs e de Nova Era —, e que o faça sem confraternização vazia nem concessão doutrinária frouxa, é uma possibilidade bem mais frutuosa.

Tal entendimento inter-religioso incluiria não apenas respeito pelas diferenças teológicas, mas também uma vontade mútua de acentuar as particularidades doutrinárias: que os judeus sejam mais judeus, os cristãos mais cristãos, os hindus mais hindus, os budistas mais budistas, os muçulmanos mais muçulmanos, no reconhecimento de que a Única Verdade só pode ser abordada através das formas particulares da revelação divina, não por meio de algum denominador comum ético ou doutrinário mínimo em que todas as religiões possam concordar — nem através de qualquer “comitê de supervisão” quase político que possa emergir, via United Religions Initiative ou tentativa similar, em seu nome.

A base de tal entendimento seria o princípio que Frithjof Schuon chamou de A Unidade Transcendente das Religiões, segundo o qual os caminhos representados pelas diversas revelações ortodoxas só podem finalmente convergir no plano do Transcendente, em Deus mesmo.

Essa doutrina, infelizmente, é altamente suscetível de má interpretação, o que constitui um de seus aspectos escatológicos: ela deve ser anunciada e deve — pelo menos por alguns — ser mal interpretada. Para dar apenas um exemplo, William E. Swing, bispo episcopal da Califórnia, que apresenta uma versão da Unidade Transcendente das Religiões em The Coming United Religions — manual da United Religions Initiative — baseado numa leitura imprecisa da introdução de Huston Smith à The Transcendent Unity of Religions de Schuon, afirma que “a distinção importante não é entre as religiões, mas entre as pessoas dentro de cada religião” — os exotéricos e os esotéricos. Os esotéricos “intuem que, em última análise, estão em unidade com pessoas de outras religiões porque todos se reúnem no ápice, no Divino”, enquanto os exotéricos “pretenderiam vincular a forma de fé ao conteúdo ou à verdade final de sua própria fé” (p. 59). Os exotéricos são, portanto, exclusivistas, ao passo que os esotéricos são universalistas.

Segundo Schuon, porém, o fato de que mais de uma religião é necessária neste mundo manifestado é também uma verdade esotérica, razão pela qual ele caracteriza as diversas revelações divinas como “relativamente Absolutas”. Em Christianity/Islam: Essays in Esoteric Ecumenism, ele diz:

“Toda religião, por definição, quer ser a melhor, e ‘deve querer’ ser a melhor, como um todo e também no que diz respeito a seus elementos constitutivos; isto é simplesmente natural, por assim dizer, ou melhor, ‘sobrenaturalmente natural’... As oposições religiosas não podem deixar de existir, não apenas porque as formas se excluem umas às outras... mas porque, no caso das religiões, cada forma veicula um elemento de absolutidade que constitui a justificativa de sua existência; ora, o absoluto não tolera alteridade, nem, com muito mais razão, pluralidade. ... Dizer forma é dizer exclusão de possibilidades, donde a necessidade de que as possibilidades excluídas venham a se realizar em outras formas...” (p. 151)

O objetivo primordial de um ecumenismo de frente unida seria opor-se tanto ao sincretismo globalista quanto ao separatismo étnico/religioso militante, não necessariamente por meio de modo algum de forma ostensiva — a menos que Deus queira o contrário, e quem pode dizer que não quererá? — mas para ajudar as religiões tradicionais a purificar suas doutrinas da influência dessas forças. Talvez pouco se possa fazer para reverter a degeneração da religião em nível coletivo, mas ainda é possível, e certamente vale a pena, definir com mais clareza a verdadeira encruzilhada entre a Unidade Transcendente das Religiões e um sincretismo globalista que de modo algum é expressão da unidade-na-multiplicidade da autorrevelação de Deus, mas apenas a sua caricatura — um falso imitado pela esperteza da mente humana que tenta operar para além dos limites dessa revelação, nas trevas exteriores.

Quem são os Tradicionalistas?

NESTE capítulo apresento um breve panorama das doutrinas da Escola Tradicionalista, com base nas obras do fundador da escola, René Guénon, e ainda mais nas do recentemente falecido mestre da escola, Frithjof Schuon, aplicando-as às condições sociais atuais e contrastando-as com as ideias falsas e autodestrutivas sobre as quais o mundo pós-moderno se apoia. As doutrinas metafísicas centrais eu extraio sobretudo de Schuon; a crítica profética do mundo moderno, em maior medida de Guénon.

As verdadeiras ideias são coisas vivas. Cada mente que as acolhe e cada situação a que as aplicamos faz surgir novos aspectos de seu sentido uno e imutável. Quem são os Tradicionalistas?

Os escritores tradicionalistas tratam principalmente da metafísica tradicional, que nada ou quase nada tem a ver com a maior parte do que se encontra na seção de “metafísica” da livraria do seu bairro: livros sobre magia, poderes psíquicos e encontros com OVNIs.
Metafísica é teologia e/ou filosofia mística; tem mais a ver com Platão e Santo Agostinho do que com Aleister Crowley ou Terry Cole-Whitaker.

A maioria das pessoas que hoje investiga religião e espiritualidade tende a ficar com a impressão de que há apenas duas escolhas básicas: a Direita cristã fundamentalista, ou o mundo que inclui o judaico-cristianismo liberal, as religiões orientais, o neopaganismo e a Nova Era. Trata-se, obviamente, de uma simplificação grosseira, já que há muitos cristãos liberais e membros de religiões orientais que não se identificam com a Nova Era, bem como formas não cristãs de “fundamentalismo”, como as de alguns muçulmanos (embora de modo algum todos), judeus, ou mesmo hindus. Mas, em linhas gerais, a pessoa interessada em religião, mas ainda sem compromisso sólido, tende a ser puxada numa dessas duas direções. E, se ela não consegue se identificar com nenhuma delas, a perspectiva de um compromisso religioso sério parecerá bastante sombria, e o cinismo em matéria de religião parecerá a única resposta madura.

É aí que entram os Tradicionalistas. Como alguns liberais, eles reconhecem a validade de todas as grandes religiões do mundo; mas, ao passo que os Liberais costumam prestar mero tributo verbal à mística, retirando-a de seu verdadeiro contexto, os Tradicionalistas reconhecem na mística e na metafísica o verdadeiro centro e profundidade de toda tradição religiosa, a profundidade em que podemos dizer, com propriedade, que cada religião, a partir de sua perspectiva necessariamente única, fala da mesma Realidade divina.

Por outro lado, como os cristãos conservadores, eles entendem que uma tradição religiosa é algo sagrado, que não pode ser alterado ao sabor da moda sem ser destruído, e que misturar caoticamente elementos de diferentes religiões, na tentativa de criar algum tipo de salada ecumênica, é profanar a própria religião, já que é tão necessário que Deus Se revele em formas religiosas diferentes e únicas quanto é necessário que existam seres humanos diferentes e únicos. Os liberais se enganam ao pensar que o único tipo válido de ecumenismo é o sincretismo, a mistura de religiões. E os conservadores também estão errados, não apenas porque não conseguem ver o Divino operando em outras religiões além da sua, mas também porque não sabem distinguir as alturas da mística e da filosofia metafísica da busca mais frívola e perigosa por poderes mágicos e psíquicos, e, consequentemente, tendem a extirpar vastas áreas de sua própria tradição. Os Padres da Igreja que foram grandes metafísicos, como Clemente de Alexandria ou Gregório de Nissa, não podem ser comparados a L. Ron Hubbard; os grandes místicos cristãos, como Mestre Eckhart ou São João da Cruz, não devem ser confundidos com Carlos Castaneda. Pelo que posso perceber, somente os Tradicionalistas realmente compreendem esses princípios. Como não são nem liberais caóticos nem conservadores exclusivistas, representam uma autêntica “terceira força” na religião de hoje.

Quem é o Sábio?

Todos temos alguma ideia do que seja um “santo”. Quando ouvimos a palavra, pensamos em alguém como Madre Teresa, ou em uma figura quase mítica, como São Pedro ou São Francisco, que viveu há muito tempo. Mas o que é um “sábio”? Se o santo é um exemplo de santidade, de uma bondade profunda e muitas vezes heroicamente autossacrificial, que qualidade o sábio exemplifica?

A qualidade em questão é o “conhecimento”. Hoje somos condicionados socialmente a pensar o conhecimento como informação, e a informação quase exclusivamente em termos de “dados duros”: informação técnica e fatos bem estabelecidos. Como disse o poeta T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que se perdeu no conhecimento? Onde está o conhecimento que se perdeu na informação?” Definimos um amontoado de pequenos pontos factuais digitalizados como “informação”, esquecendo que a palavra originalmente significava “aquilo que nos forma por dentro”. Essa crença, de que apenas o conhecimento factual ou técnico é objetivamente válido, é tão penetrante que não me choquei tanto quanto deveria ao ouvir recentemente uma mulher, numa estação de rádio cristã, dizer que “não é preciso ser cientista de foguetes” para entender determinada doutrina — insinuando, para mim, a ideia de que talvez haja doutrinas mais difíceis que apenas um cientista de foguetes poderia compreender, de que a sabedoria metafísica é apenas uma espécie de competência técnica.

Por outro lado, um dos escritores tradicionalistas, Wolfgang Smith, é cientista de foguetes; foi ele quem desenvolveu as equações que permitem às espaçonaves reentrar na atmosfera terrestre sem se incinerarem. Assim, a objetividade do grande cientista e a do sábio metafísico não são inteiramente alheias uma à outra. Ainda assim, permanece verdadeiro que acreditamos falsamente que todo conhecimento objetivo deve ser científico ou técnico por natureza; a ideia de que poderia existir um nível superior de objetividade, que trate das coisas espirituais, é completamente estranha a nós.

A mente contemporânea está dividida em dois compartimentos principais: o conhecimento científico ou prático é considerado “objetivo”, ao passo que o conhecimento “espiritual”, na medida em que admitimos que exista algo assim, é visto como “subjetivo”, o que significa que tendemos a tomar nossas impressões das coisas como absolutas nesse domínio; já que o conhecimento espiritual é subjetivo por definição, que outro indivíduo, credo dogmático ou autoridade tradicional tem o direito de questionar minhas impressões? Que fiquem satisfeitos com as próprias impressões — esse é o “direito” deles — e me deixem com as minhas, visto que qualquer tentativa da parte deles de converter-me ao seu modo de pensar, usando o argumento impossível e injusto de que suas crenças são de algum modo “objetivamente verdadeiras”, nada mais é do que uma tentativa vampírica de me transformar neles.

É assim que a maioria de nós reage hoje quando confrontada com doutrinas religiosas e ideias filosóficas, e esta é uma das razões pelas quais, ao menos em meios “liberais”, a psicologia está substituindo a teologia. Desde que Descartes operou a cisão radical entre corpo e mente, “objetivo” passou progressivamente a significar material, e “subjetivo”, psicológico; por conseguinte, a noção de que existe um campo objetivo de verdade espiritual foi gradualmente desaparecendo, com o resultado de que tudo o que é espiritual, por ser considerado essencialmente subjetivo, foi reduzido ao psicológico, às produções da mente individual isolada alimentando-se das próprias impressões. E o conceito junguiano de uma subjetividade massiva — o “inconsciente coletivo” —, embora verdadeiro e útil em seu próprio nível, de modo algum restaurou a visão de uma ordem espiritual objetiva; apenas a substituiu por uma paródia da verdade, ao menos na mente daqueles que confundem psicologia com metafísica, tornando muito mais difícil que a verdadeira verdade metafísica venha a ser compreendida.

É este estado de coisas que Frithjof Schuon passou a vida tentando remediar; e esta é uma obra que apenas um sábio pode realizar. Cabe aos santos superar o orgulho, o vício e o egoísmo, primeiro em si mesmos e depois, na medida do possível, na sociedade ao seu redor. Cabe ao sábio, ao contrário, superar a ilusão e a falsidade, primeiro na própria alma e, em seguida, na sociedade que ele ou ela enfrenta. Devemos lembrar, porém — e Schuon nos recorda isso continuamente — que santidade e sabedoria estão intimamente ligadas. Ninguém com alma viciosa pode atingir um conhecimento profundo e estável de Deus e de Sua relação com o universo que é Sua manifestação; inteligência, tal como a entendemos normalmente, combinada a um interesse por ideias metafísicas, somada ao acesso aos escritos dos grandes metafísicos da história, não basta para fazer um sábio.

O outro requisito é a pureza de coração, pois é preciso ser pura, ou digamos “virginalmente”, receptivo à Verdade divina para que essa Verdade se torne uma “realização” e não simplesmente um objeto intelectual que possuímos como possuímos uma casa ou um automóvel. Não se exige perfeição; tanto santos quanto sábios são tentados e às vezes caem. O que se exige é uma ausência de resistência fundamental à perfeição que Deus reserva para nós — uma essência aberta ao Conhecimento por meio da Bondade, já que sabe que a Verdade Absoluta é também o Sumo Bem.

Poucos ouviram falar de Frithjof Schuon, embora o pequeno número dos que o ouviram em profundidade inclua pessoas da estatura do poeta T. S. Eliot, que disse de seu primeiro grande livro, The Transcendent Unity of Religions: “não encontrei obra mais impressionante no estudo comparativo da religião oriental e ocidental”; e do professor Huston Smith, que escreveu sobre Schuon: “Em profundidade e amplitude, um paradigma de nosso tempo. Não conheço pensador vivo que comece a rivalizar com ele.”

E essa tendência de falar aos poucos, e de encontrar poucos caminhos de acesso à mente popular ou mesmo ao mundo acadêmico, se não é exatamente como deveria ser, é, contudo, como tem de ser. “O segredo protege a si mesmo.” E, num mundo contemporâneo inundado de ilusões venenosas, uma voz que não compartilha nenhuma das suposições sobre as quais se baseia toda a mentalidade moderna, e que fala sem compromissos a partir do ponto de vista da verdade objetiva, necessariamente cairá, em sua maior parte, em ouvidos moucos. Como na parábola evangélica, ainda que a semente seja fértil, se cai em solo pedregoso nada brota. E, no entanto, também é verdade — especialmente em nossos tempos, mas em certa medida em todos os tempos — que é difícil prever onde solo fértil pode aparecer.

Os verdadeiros intelectuais metafísicos têm grande dificuldade hoje em se encontrar. Por um lado, o mundo acadêmico perdeu em grande medida o amor pela sabedoria enquanto tal, e os “intelectuais” favorecidos pela sociedade são essencialmente propagandistas a soldo das grandes empresas e dos grandes governos. Por outro lado, o mundo do ocultismo, da psicologia, das religiões “alternativas” e da espiritualidade “Nova Era” não se interessa mais por metafísica tradicional do que a “intelligentsia”. Embora possa prestar tributo verbal a algumas das grandes figuras da história da metafísica e da mística, retira-as de seu contexto tradicional e ou as esvazia de todo sentido, ou as perverte a ponto de fazê-las representar ideias diametralmente opostas às suas doutrinas reais.

Para o cristianismo conservador, “mística” é quase um palavrão. O cristianismo liberal às vezes parece valorizar mística e metafísica, mas, na realidade, vê as coisas muito mais em termos de sociologia, história, psicologia e ciências físicas. E as várias religiões orientais no Ocidente ou fazem causa comum — muitas vezes por simples inércia — com a Nova Era e/ou várias atitudes antitradicionais, ou então permanecem encapsuladas na veneração de seus próprios mestres e gurus, que podem ou não ser verdadeiros santos ou sábios representando a essência viva de suas respectivas tradições, mas que, em todo caso, geralmente não conseguem criticar de forma eficaz as atitudes do mundo moderno, nem sempre preservam a plenitude de suas próprias doutrinas tradicionais diante dele.

Diante desse estado de coisas, Frithjof Schuon e os outros escritores de sua escola, vivos ou mortos, representam uma alternativa metafísica à religião estreita e reacionária dos fundamentalistas e à religião informe e caótica — se ainda podemos usar esse nome — dos liberais e da Nova Era. No seu melhor, eles oferecem uma via que vai além tanto do exclusivismo religioso fanático quanto do sincretismo amorfo de uma “espiritualidade de fusão mundial”, que, em muitos aspectos, representa os primeiros movimentos do regime global do Anticristo.

O que é Metafísica?

A língua inglesa está cheia de “palavras caídas”, palavras que outrora carregaram todo um peso de significado, mas que agora foram reduzidas a sombras de si mesmas. Termos outrora precisamente exatos, compreendidos por todas as pessoas instruídas, tornaram-se clichês, quando não tiveram seus sentidos efetivamente invertidos. Palavras outrora cheias de alusão, ressonância e profundidade de implicação ficaram chapadas.

Uma dessas palavras é “metafísica”. A seção “metafísica” da sua livraria local provavelmente conterá livros que nada têm a ver com o que a palavra “metafísica” significou, de Aristóteles até a última metade do século XX. É verdade que a palavra significa literalmente “para além da física”, mas sempre foi usada para designar o que podemos chamar, de modo amplo, filosofia mística: o estudo dos “primeiros princípios”. Esses princípios são verdades permanentes, afirmações sobre realidades eternas. Dizem respeito ao Ser, e à relação do Ser com o universo — espiritual, psíquico e material — que permite a esse Ser manifestar-se. Tocam até mesmo aquilo que está para além do Ser.

Em linguagem religiosa, a metafísica trata da natureza de Deus e da relação de Deus com o cosmos e com a humanidade. A metafísica é, portanto, parceira natural da teologia; a única diferença é que a teologia estuda a “revelação”, aquilo que Deus nos revelou por Sua própria iniciativa, e a metafísica estuda Deus e Sua manifestação a partir de nossa capacidade, dada por Ele, de conhecê-Lo simplesmente porque Ele é nosso Criador e, portanto, algo d’Ele permanece em nossa natureza. Isso não significa, contudo, que teologia e metafísica componham dois mundos distintos, já que é principalmente a Autorrevelação de Deus nas grandes tradições religiosas que desperta, do sono de nossa natureza caída (ou esquecida), nossa capacidade “sobrenaturalmente natural” de conhecê-Lo; e é precisamente por meio da Intelectualidade — intuição metafísica — perfeitamente unida ao Amor divino que essa Autorrevelação vem a se aperfeiçoar na alma humana. [NOTA: No cristianismo ortodoxo oriental, a palavra “teologia” abrange muito mais do que no Ocidente, já que incorpora uma dimensão operativa ou contemplativa. Não denota apenas teoria, mas também realização, tornando-se aproximadamente sinônima do termo islâmico ma‘rifah.]

Durante a maior parte da história cristã, até o final da Idade Média, teologia e filosofia metafísica ou eram a mesma coisa, ou se relacionavam estreitamente, embora a tentação de separá-las certamente sempre estivesse presente, já que alguns metafísicos tendiam a ver os teólogos estudiosos das Escrituras como pessoas que trabalhavam mecanicamente com material de “segunda mão”, enquanto alguns teólogos viam habitualmente os metafísicos como hereges em potencial, que se metiam, com arrogância, em assuntos demais os mistérios divinos por iniciativa própria, sem o aval da Escritura e da Tradição. Cada lado via a “sombra” do outro, não a essência. Ambos tinham razão quanto à forma pela qual a metafísica ou a teologia podem se desviar, mas não quanto ao que esses dois modos de conhecer a Deus são em si mesmos.

Contudo, foi apenas no século XVIII, durante o período chamado, por algum motivo, de “Iluminismo”, que teologia e filosofia começaram realmente a divergir, embora as sementes dessa divergência tenham sido plantadas já no Renascimento. Mas a filosofia ainda era, basicamente, metafísica; os filósofos ainda faziam as perguntas últimas: qual é a natureza do Ser? Como podemos conhecê-Lo? E de que maneira o Ser-em-si se relaciona com o universo da natureza e da experiência humana? Coube ao período moderno, com o pragmatismo, o positivismo lógico, a fenomenologia e a desconstrução pós-moderna, separar enfim a “filosofia” da metafísica. As questões últimas passaram a ser consideradas destituídas de significado; já não eram mais “da moda”. A filosofia foi reduzida a reflexões secundárias sobre os achados das ciências físicas e sociais. E, por fim, até mesmo a teologia começou a seguir a filosofia por essa estrada longa e cada vez mais estreita. O próprio conceito de Primeiros Princípios saiu de moda, com o resultado de que o tempo e a mudança passaram a ser tidos como mais reais do que a verdade eterna; de fato, a própria existência de verdade eterna foi negada. Ela passou a ser vista como um tipo de superstição medieval, a ser estudada apenas como parte da “história das ideias”.

É como se uma bela mulher, com caráter corajoso e alma formosa, se aproximasse de mim e dissesse: “Sempre te amei”, e eu respondesse a mim mesmo da seguinte maneira: “Sinto-me fisicamente atraído por ela devido a uma propensão genética inata que me leva a procriar com um membro saudável da espécie, combinada a uma sensibilidade condicionada culturalmente ao padrão de beleza física da Europa Ocidental/América do Norte; e sou atraído por sua personalidade em razão de uma apreciação herdada culturalmente por certos tipos de caráter, incluindo determinados resquícios da moral judaico-cristã pré-pós-moderna. Ela talvez esteja atraída por mim por algumas das mesmas razões; contudo, é possível que esteja projetando em mim qualidades que não possuo, devido a uma capacidade crítica deficiente de sua parte; também é possível que esteja deliberadamente distorcendo seus sentimentos a fim de obter alguma vantagem.”

Ora, é óbvio que tais pensamentos não estariam totalmente destituídos de significado, mas é igualmente óbvio que eles perdem por completo o ponto central. Em outras palavras, a possibilidade de que eu esteja realmente diante do verdadeiro amor, e de que esse amor tenha de fato algo de eterno, a despeito de personalidades belas poderem definhar e corpos belos terem de envelhecer e morrer, é totalmente eliminada.

Assim ocorre com a filosofia contemporânea separada da metafísica. Ela pode produzir muitos detalhes interessantes e perspectivas úteis, mas perde de vista o ponto principal, que é o fato de que a palavra “filosofia” significa “amor à sabedoria”. O verdadeiro filósofo precisa ser um metafísico, e o verdadeiro metafísico conhecerá a sabedoria como algo eminentemente amável. O símbolo central desse amor à sabedoria, no mundo judaico-cristão, é a figura da Santa Sabedoria, a Hagia Sophia. Como ela diz no Livro dos Provérbios (8,17): “Eu amo os que me amam, e os que madrugam para procurar-me me encontrarão.”

Por que isso é importante?

O simples fato de termos de fazer essa pergunta mostra o quão densas se tornaram as trevas dos tempos atuais. E, em certo sentido, trata-se de um exercício fútil, visto que aqueles que nasceram com uma potencial capacidade de compreender a metafísica provavelmente já sabem a resposta, ao passo que aqueles sem esse potencial jamais poderão ser “convencidos”. A metafísica é o mundo da certeza, não o mundo das opiniões. Ainda assim, precisamos realmente colocar essa questão, porque, numa sociedade que já não se baseia em princípios espirituais, a metafísica pode parecer sem sentido ou, na melhor das hipóteses, um mero “interesse”, tal como rafting em corredeiras ou culinária gourmet.

O desafio que a sociedade lança a todos os interesses intelectuais é: “Se você é tão esperto, por que não é rico?”, o que pode tentar algumas pessoas com afinidade natural pela metafísica a “retrucar” à sociedade, talvez tentando provar que “princípios de verdade” metafísicos podem ajudá-las a ganhar dinheiro, ou, ao menos, afirmando que o valor da metafísica reside em outro lugar que não no fato de ela ser verdadeira. A ideia de que ela é valiosa porque contribui para construir estabilidade psicológica, ou melhorar a sociedade, ou tornar as pessoas mais sensíveis ao meio ambiente é a morte da metafísica, tal como a ideia de que se pode amar alguém porque essa pessoa satisfaz esta ou aquela necessidade física, psicológica ou social é a morte do verdadeiro amor.

Ora, a verdadeira metafísica e o verdadeiro amor produzem, sim, efeitos positivos sobre outros níveis da existência; satisfazem necessidades reais, embora não possamos prever nem controlar como tal influência se materializará. Mas, se buscamos essas coisas pelo “valor em dinheiro” e não porque são belas e verdadeiras em si mesmas, então não passamos de ladrões. Como se diz nos Evangelhos: “Buscai primeiro o Reino dos Céus, e todas essas coisas vos serão acrescentadas”, e “quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a vida por minha causa a encontrará.”

C. S. Lewis, em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (pp. 108–109), coloca a questão nestes termos, pela boca de seu demônio Fitafuso (Screwtape):

“Certamente não queremos que os homens deixem que o cristianismo transborde para a vida política, pois o estabelecimento de qualquer coisa parecida com uma sociedade justa seria um grande desastre. Por outro lado, queremos, e muito, fazer com que os homens tratem o cristianismo como um meio. (…) O que se deve fazer é levar um homem, primeiro, a valorizar a justiça social como algo que o Inimigo exige, e, depois, conduzi-lo ao estágio em que ele passa a valorizar o cristianismo porque este pode produzir justiça social. (…) ‘Creia nisto, não porque é verdade, mas por algum outro motivo.’ Esse é o jogo.”

E o que Lewis diz aqui sobre a fé vale em dobro para a intuição espiritual, pois vender a fé por seu valor de mercado produz apenas hipocrisia ou fanatismo, ao passo que vender a intuição espiritual produz magia negra.

Assim, uma resposta à pergunta “Por que a metafísica é importante?” é: “Para que não percamos o próprio conceito de Verdade objetiva.” A metafísica lida com absolutos, com as implicações necessárias da Verdade Absoluta. Se já não acreditamos na Verdade Absoluta, então tudo se torna relativo. Se tudo se torna relativo, a Verdade é substituída pelo poder; fica reduzida ao que quer que este ou aquele indivíduo poderoso, ou governo, ou grupo de interesse tenha o poder de declarar como verdadeiro.

E é exatamente assim que passamos a encarar hoje as questões de verdade: acreditamos que elas não são senão máscaras de questões de poder. Já tentou manter uma conversa com um partidário convicto desta ou daquela posição? Pode ser muito difícil sentar-se com ele ou ela para “raciocinarem juntos” sobre a verdade ou falsidade dessa posição, em parte porque o partidário já está convencido, mas também em parte porque ele ou ela está ocupado(a) tentando analisar seus motivos, descobrir “de que lado você está” e o que, exatamente, “você está tentando aprontar”.

Tudo o que o partidário diz é dito “com um efeito” em vista, e isso já há bastante tempo; por isso, torna-se muito difícil para ele ou ela acreditar que você levanta uma questão ou faz uma pergunta simplesmente porque deseja saber o que é verdadeiro; a busca desinteressada da verdade foi abandonada há muito de seu repertório. Ele ou ela sacrificou a verdade ao poder e supõe que todos os demais fizeram o mesmo.

E a crença de que a verdade é sempre, necessariamente, sacrificada ao poder torna-se profecia autorrealizadora; uma vez que o partidarismo é tomado como universal, nada fora dele é reconhecido ou admitido. As religiões deixam de ser visões da Verdade divina para se tornarem entidades sócio-históricas com esta ou aquela agenda. O estudo da história passa a ser visto como algo que nada tem a ver com a tentativa imparcial de descobrir o que realmente aconteceu e por quê, mas é tomado como parte do programa deste ou daquele bloco de poder. O mesmo se dá com a ética; o bem e o mal já não têm nada de universal, mas são apenas expressão do interesse de tal ou qual religião, classe ou cultura. Achados sociológicos e dados econômicos são igualmente postos a serviço de interesses especiais; por fim, até mesmo dados científicos — como, por exemplo, aqueles que poderiam provar ou refutar a teoria darwinista da evolução — já não ficam imunes.

E, se a suposição de que a verdade deve servir ao poder é levada longe o bastante, ela contamina o mundo das relações humanas: o que digo ao outro já não se baseia na verdade, mas apenas na vantagem. Ao caminhar pelas ruas de qualquer grande cidade americana, logo se descobre, caso ainda não o tenha feito, que o contato visual nada tem a ver com o desejo de ver outra pessoa simplesmente para obter uma impressão de quem ela é; ele se reduz a questões de poder: posso obter sexo, drogas ou dinheiro daquela pessoa? Ela deseja o mesmo de mim? É alguém que posso vitimar ou alguém que pode ferir-me? Aqueles que não se interessam por essas coisas rapidamente desenvolvem a habilidade de não atrair atenção sobre si mesmos; aprendem a evitar o contato visual, se puderem. (Em áreas rurais, as pessoas às vezes ainda dizem “olá” a estranhos “sem motivo”; para quem viveu a vida toda em cidades, isso pode ser um choque considerável.)

Esse é o resultado extremo do crescimento de um tipo de sociedade em que a metafísica não tem lugar. Sem um senso de Verdade absoluta e objetiva, tudo se torna subjetivizado, e é por isso que a psicologia está agora substituindo tanto a teologia quanto a filosofia. E, quando a Verdade espiritual se oculta, nem mesmo a psicologia consegue manter seu próprio nível; ela é empurrada numa direção materialista, até que tudo o que reste dela seja o behaviorismo e, por fim, a psicofarmacologia.

Além disso, quando o Absoluto é substituído pelo subjetivo, todas as subjetividades são “absolutizadas”: minha experiência individual é tão “absoluta” quanto a sua, e a sua quanto a minha; a isso se chama “tolerância”. Mas, se não há uma Realidade objetiva que inclua a mim e a você por ser maior do que nós, se não passamos de universos de experiência separados e hermeticamente fechados, como podemos nos relacionar? Apenas (como na visão do Inferno em C. S. Lewis) devorando-nos mutuamente.

Se tudo é subjetivo, se não há Verdade objetiva, então ou você precisa tornar-se parte de mim, ou eu acabarei tornando-me parte de você, restando apenas a opção de devorarmo-nos igualmente (se ao menos isso fosse possível) e chamar a isso de “amor”.

Assim, todo o complexo daquilo que se chama “codependência” pode, em última análise, ser atribuído à supressão do senso de Verdade objetiva, cuja forma mais alta e mais completa é a metafísica.

Dado que, neste mundo, a verdade é muitas vezes sacrificada ao poder, precisamos manter nosso gume crítico; caso contrário, não conseguiremos encontrar nosso caminho através do deserto em que o chefe é o poder, até chegarmos ao oásis em que o Rei é a Verdade. Mas, se nos tornarmos tão desconfiados e cínicos a ponto de já não crer que exista algo como “a verdade”, é evidente que fomos longe demais… ou não fomos longe o bastante.

Se a polícia deseja descobrir quem cometeu um assassinato, precisa questionar a veracidade das histórias que ouve; não pode simplesmente aceitá-las ao pé da letra. Mas, se, de tanto ouvir mentiras e meias-verdades ano após ano, os policiais se tornam tão cínicos a ponto de já não crer que exista algo como verdade objetiva — que alguém realmente cometeu aquele assassinato, o que significa que os outros suspeitos não o fizeram —, então deixam de poder cumprir sua função, como quando uma força policial se vê tentada a recolher “os suspeitos de sempre” para satisfazer a pressão pública.

Da mesma forma, a crítica pós-moderna — que se opõe à metafísica como poucas visões do mundo poderiam fazê-lo — pode envolver-se tanto em questionar os motivos de quem profere afirmações sobre o que é verdade que acaba esquecendo, e por fim nega conscientemente, que algo possa ser verdadeiro — exceto enquanto enunciado sem ponto de referência objetivo, que teria um “direito” de existir igual ao de qualquer outro enunciado, assim como uma espécie de planta ou animal teria o direito de ser salva da extinção por ser única e insubstituível.

Mas doutrinas não são animais. Nenhum animal ou raça humana pode ser “errado”, mas doutrinas podem. Se eu ensino que uma dieta rica em colesterol é boa para o coração, e outra pessoa ensina o oposto, tais afirmações não possuem igual direito de existir como meras manifestações da crença cultural ou da autoexpressão pessoal; uma delas está certa e a outra errada.

Os pós-modernos usam o mesmo argumento em relação às culturas humanas: cada qual tem igual direito de existir como expressão única do espírito humano. Mas aqui a questão torna-se ambígua, pois, embora cada expressão de cultura humana integral — seja “primal”, como a dos australianos ou dos hopis, seja “desenvolvida”, como a cultura islâmica norte-africana ou a greco-ortodoxa — faça parte do patrimônio insubstituível da raça, ainda assim uma cultura como a dos budistas tailandeses e a “cultura” de um cartel de drogas, ou a “cultura” tecnocrática mundial que está hoje destruindo toda a Terra, tanto cultural quanto ambientalmente (a si mesma incluída), não possuem igual direito de existir.

Mas, num mundo em que o conhecimento metafísico é suprimido, tudo é colocado no mesmo plano de valor; as crenças ou manifestações culturais mais saudáveis e as mais destrutivas possuem igual “direito” de existir, simplesmente porque “estão aí”.

A única coisa que os pós-modernos parecem temer realmente é a tirania da uniformidade, em que uma cultura dominante toma tudo para si e reprime todos os costumes e crenças minoritários. Isso, por certo, é exatamente o que está acontecendo hoje no mundo, e é profundamente destrutivo. Mas colocar uma cultura como a dos hopis, que fomenta virtudes como a cortesia, a auto-discrição, a cordialidade e um profundo senso ritual dedicado a manter o equilíbrio entre as necessidades do povo e os poderes do mundo espiritual, no mesmo nível da cultura da ilha de Dobu, baseada na magia negra, onde as “virtudes” admiradas (ao menos na década de 1930, quando a antropóloga Ruth Benedict escreveu sobre eles) são a capacidade de trair amigos e conterrâneos, arruinar suas colheitas e lançá-los na doença, não é imparcial; trata-se de algo caluniosamente destrutivo para a cultura hopi, ao mesmo tempo que deixa a cultura de Dobu ilesa.

Somente a compreensão de uma metafísica integral, derivada do estudo dos cumes do espírito humano tal como expressos nas grandes religiões do mundo e nas tradições sapienciais, pode fornecer-nos os padrões objetivos pelos quais se pode julgar se determinada cultura é saudável, cansada, degenerada ou ativamente subversiva da verdade.

Nem o “celebrar a diversidade” pós-moderno é necessariamente benéfico para as culturas primordiais e marginalizadas que pretende proteger, pois negar a validade de uma hierarquia absoluta de valores é, ao fim e ao cabo, negar a hierarquia de valores de cada cultura individual, que, na medida em que diz respeito a essa cultura, é absoluta.

Se nenhuma manifestação cultural é mais ou menos válida do que outra, então, se a geração jovem dos hopis passar a girar em torno, por exemplo, da “cultura” do uso de drogas e da música heavy metal, com o resultado de que a cultura hopi morra, quem poderá queixar-se?

Além disso, verifica-se que os partidários da nascente cultura tecnocrática global e aqueles que falam sobre a necessidade de celebrar a diversidade são, muitas vezes, as mesmas pessoas; desejam celebrar a diversidade cultural porque, enquanto tecnocratas econômicos globais, não possuem uma cultura local própria. Precisam explorar culturas locais em escala global para preencher suas necessidades espirituais, tal como exploram mão de obra barata para satisfazer suas necessidades econômicas. Quando afirmei, acima, que a “espiritualidade de fusão mundial” é a religião do Anticristo, é a isso, em parte, que eu me referia.

Assim, a relação de uma sociedade com a verdade metafísica tem tudo a ver com a natureza essencial dessa sociedade. Mas o valor social da metafísica é apenas um reflexo de níveis de verdade muito mais profundos, um dos quais diz respeito ao fato de que algumas pessoas precisam absolutamente do conhecimento metafísico para terem uma relação viva com Deus. Essas pessoas não são “crentes”; são “conhecedores”. A fé não lhes basta, não porque desprezem a fé, mas porque são capazes de conhecimento e não lhes será permitido “enterrar o seu talento” sem consequências graves.

Mas numa sociedade como a nossa, que ao mesmo tempo nega de modo fundamental a verdade metafísica objetiva e fornece um vasto espectro de falsas doutrinas — tolas, inconscientemente sinistras ou deliberadamente subversivas — que se disfarçam de metafísica, a pessoa com potencial para ser um “conhecedor” é desviada em cada esquina. Ela corre o risco de se tornar um cético religioso, já que as doutrinas religiosas às quais é exposta lhe parecem infantis (por ignorar o seu sentido mais profundo), ou então uma apologista de doutrinas aparentemente mais sofisticadas que, sem que ela o saiba, são radicalmente opostas à metafísica tradicional.

As tentações, provas e armadilhas que se apresentam aos “conhecedores” são formidáveis; eles têm um caminho muito mais longo e difícil a percorrer do que os crentes. Estarão atravessando zonas de conhecimento que, embora não se oponham à doutrina religiosa ortodoxa, não podem, pela própria natureza das coisas, ser explicitadas para todo adulto normalmente inteligente. Consequentemente, ficarão expostos a falsas ideias de toda espécie, algumas das quais extremamente sutis e fascinantes. Navegar por um mar como esse exige tanto uma vigilância intelectual aguda quanto uma firme e constante docilidade à vontade de Deus.

E também terão de enfrentar, em determinado momento, o demônio do Orgulho Intelectual, sobretudo se se sentirem incompreendidos ou perseguidos pelos crentes. As únicas coisas que podem salvá-los são uma humildade radical diante de Deus e uma clara compreensão de que o simples fato de possuírem um conhecimento metafísico sofisticado não significa que não possam também ser condenados, ao passo que o mais simples dos crentes, se segue sinceramente uma doutrina verdadeira, será salvo mesmo que jamais tenha ouvido falar de tal conhecimento. Como se diz nos Evangelhos: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” É por isso que, tradicionalmente, se entende que o caminho do conhecimento sagrado não pode ser percorrido com segurança, salvo em casos raros e imprevisíveis, sem uma moldura doutrinal ortodoxa e sem a orientação de um mestre espiritual.

A metafísica é também importante porque a fé “simples” está se tornando cada vez mais rara. No tempo em que a maioria vivia dentro de universos religiosos fechados, havia pouca dúvida quanto ao que se devia crer, já que quase não havia “alternativas”. A pessoa era crente, libertina, canalha ou talvez ateia secreta; mas não vivia confusa e indecisa sobre o que crer, pelo menos não no grau em que tantos vivem hoje. Ser confrontado por centenas de seitas e religiões, e por terapias que se passam por religiões; ser chamado a escolher, entre todas elas, aquela que representa a Verdade divina sem dispor de uma tradição da Verdade divina que lhe diga como escolher; e, depois, exausto pela luta, desistir da busca da objetividade e optar pelo sistema (ou pelos dez sistemas) mais compatível com o seu estilo pessoal — o que significa que, em vez de adorar a Deus, você está na verdade adorando a si mesmo —, nada disso figurava entre as armadilhas que se punham diante de um membro de qualquer cultura tradicional.

Numa sociedade global emergente, em que as doutrinas e práticas de todas as religiões mundiais, e de todos os caminhos místicos dentro dessas religiões, mais dezenas de formas de xamanismo tradicional, estão se tornando acessíveis em toda parte a buscadores sérios — e também a curiosos frívolos e magos iniciantes em busca de poder psíquico —, a religião passa a ser relativizada. Se mais de uma religião é verdadeira, então nenhuma religião pode ser absoluta — mas a justificativa essencial de qualquer religião é precisamente esta: que ela dá acesso à Verdade absoluta.

Logo, os “crentes” religiosos não têm outra saída senão ou denunciar violentamente as outras religiões — é aqui que nasce o “fundamentalismo” cristão, muçulmano, judeu e hindu que vemos hoje — ou então “relaxar”, tornando-se “ecumenistas promíscuos”, diletantes espirituais e degustadores de vinhos, como os “liberais” religiosos de hoje, que negam que possa haver algo como a Verdade Absoluta, excetuando aquele tipo de “verdade” que, como vimos acima, é tida como nada mais do que uma máscara de poder.

É aqui que o conceito de Frithjof Schuon sobre a “absolutidade relativa” de qualquer religião tradicional se torna tão importante; ele é, de fato, a única saída dessa dicotomia. Só a metafísica pode demonstrar, ao mesmo tempo, que existe uma Verdade Absoluta comum a todas as verdadeiras religiões (lembrando que nem tudo o que se chama “religião” o é de fato) e que, entretanto, essa Verdade não pode ser alcançada por meio da combinação entre elas, já que a existência de diferentes revelações religiosas, assim como a de diferentes raças ou indivíduos, é metafisicamente necessária. Como está dito no Alcorão: “Se Allah quisesse, teria feito de vós um só povo.”

Qualquer indivíduo inteligente e espiritualmente sensível, com ou sem formação religiosa, deve passar pelo fogo do ceticismo religioso no mundo de hoje. A crença simples, a menos que alguém tenha a felicidade de conservar uma real simplicidade de alma, de estar entre aqueles que chamamos de “sal da terra”, já não é possível para muitos. A capacidade sofisticada de enxergar profundidade e valor em tradições religiosas diferentes da própria quase inevitavelmente corrói a fé, ao menos num primeiro momento. Para uma pessoa assim, não há caminho “de volta” à fé religiosa simples; o único caminho é “para a frente”: chegar a compreender que existe uma Verdade Absoluta por detrás de todas as religiões, mas que, porém, só se pode alcançá-la seguindo uma dessas religiões até o fim, até essa Verdade.

O único remédio para a doença da sofisticação é uma sofisticação maior, que finalmente retorna à simplicidade. Onde o relativismo religioso destruiu a fé, nada senão a compreensão metafísica pode restaurá-la.

Mas é injusto e irrealista exigir compreensão metafísica de todos. Um mundo em que todos fossem metafísicos ou místicos seria um lugar extremamente desequilibrado. Eis por que os metafísicos, no mundo de hoje, têm de lutar para encontrar o seu nicho na sociedade, a partir do qual possam oferecer sua contribuição ao conjunto. E numa sociedade tão antitradicional e antimetafísica quanto a Nova Ordem global emergente, isso não é tarefa fácil, sobretudo porque essa luta precisa incluir a compreensão de que tanto o fundamentalismo quanto o ecumenismo promíscuo fazem parte da qualidade da época. Os metafísicos podem criticá-los, mas não podem fazê-los desaparecer.

Ainda assim, estar sob a maldição de ser capaz de compreender pessoas que jamais o compreenderão sempre foi o destino do metafísico — e é assim que deve ser, porque, se um dom espiritual não é também um fardo, o dotado acabará se inflando de orgulho espiritual e cairá como Ícaro, quando voou demasiado perto do Sol. Além disso, sem as trevas circundantes da ignorância espiritual para contê-la, a luz da compreensão espiritual abandonaria por completo este mundo — e, segundo a doutrina tradicional, se isso acontecesse, o mundo seria destruído. Como diz Rumi:

“Se não houvesse desatenção, este mundo deixaria de existir.
O desejo por Deus, a lembrança do outro mundo, a ‘embriaguez’ e o êxtase são os arquitetos do outro mundo.
Se todos estivessem afinados com aquele mundo, todos abandonaríamos este e iríamos para lá.
Deus, porém, quer que permaneçamos aqui, para que haja dois mundos.
Para isso, Ele estabeleceu dois chefes, desatenção e atenção, de modo que ambos os mundos floresçam.”
(
Sinais do Invisível [Fihi ma Fihi], p. 114.)

Em última análise, porém, todas essas razões pelas quais a metafísica é importante são apenas questões secundárias. A razão verdadeira pela qual a metafísica é importante é porque ela é verdadeira, e tudo o que é verdadeiro é também bom. O próprio Deus, sendo a Verdade Absoluta, é também o Sumo Bem. Num provérbio dos rishis hindus, que Schuon tantas vezes cita: “Não há direito superior ao da Verdade.”

O que é Tradição? O que é o Homem?

Hoje, quando falamos em “tradição”, tendemos a significar qualquer costume ou crença que tenha durado mais de uma geração — ou até por um período mais curto, como quando um estabelecimento comercial se anuncia como “uma tradição desde 1979”. No catolicismo, na ortodoxia oriental e na cabala hebraica, “tradição” refere-se a doutrinas transmitidas oralmente, ou sob formas como a liturgia e a iconografia. “Tradição” pode às vezes referir-se também aos escritos dos Padres da Igreja, dos rabinos judeus e, no Islã, dos sufis, que incluem, entre outras coisas, as ciências tradicionais da hermenêutica das Escrituras.

Tradição, então, não se opõe à Escritura; é um modo de transmitir, por meios diferentes, as mesmas doutrinas que a Escritura transmite. Quando os reformadores protestantes adotaram a doutrina da sola scriptura, a tradição cristã no Ocidente ficou radicalmente empobrecida. Contudo, já que reagiam a um empobrecimento que já existia — dado que as linhas de transmissão tradicional dentro do catolicismo estavam em vias de extinção —, não se pode culpar inteiramente os protestantes por essa degeneração.

A Escola Tradicionalista usa a palavra “Tradição” num sentido específico. Para eles, significa “a soma total da transmissão da Verdade divina por meios humanos, desde o início dos tempos até hoje”, por meio de Escritura, comentário, ensino oral, arte sagrada ou qualquer outra forma. Nesse sentido, ela é parceira da Revelação.

Segundo uma imagem usada pelo tradicionalista James Cutsinger, a Verdade revelada desce “verticalmente”; ela entra no tempo diretamente a partir da Eternidade, como uma pedra lançada num lago sereno. Se a pedra é a Revelação, as ondas que se espalham horizontalmente a partir do ponto em que ela atinge a água são a Tradição. Cada uma das grandes religiões do mundo representa um caso de Revelação e, assim, uma renovação da Tradição. A Revelação original, porém, foi a criação do universo, razão pela qual a natureza é muitas vezes chamada de “a primeira Escritura de Deus”.

E a síntese dessa manifestação divina universal é a Forma Humana, motivo pelo qual, na doutrina islâmica (assim como no historiador judeu Josefo), Adão é visto como o primeiro profeta, o destinatário da autorrevelação primordial de Deus. Em Gênesis e no Alcorão, diz-se que Adão, ainda no Jardim do Éden, nomeou os animais. Esotericamente, isso significa que ele os conhecia como projeções dos arquétipos eternos presentes na Natureza divina. Ele não inventou seus nomes, em outras palavras, mas olhou para dentro do próprio coração, para o seu Intelecto espiritual, e ali compreendeu os Atributos ou Nomes de Deus que se encontravam representados nas formas do mundo natural à sua volta.

Tradição, então, não é simplesmente qualquer coisa que nos chega de um passado remoto; uma série de erros filosóficos e heresias religiosas também têm pedigree antigo. Ela é, especificamente, a transmissão da Verdade absoluta por meio da forma e da consciência humanas — transmissão tão crucial que, segundo muitas autoridades, se cessasse de modo absoluto o mundo seria destruído. É o “caule” da criação, a ligação vital entre a flor do universo visível e o seu Fundamento divino. Corte-se o caule, e a flor murcha.

O que é o Intelecto?

Outro “vocábulo caído” é intelecto. Para a maioria de nós, ele significa lógica, racionalidade ou até a capacidade de manipular e memorizar grande quantidade de informações. Não era assim para os filósofos escolásticos da Idade Média. Para eles, intellectus (tradução latina do grego nous) significava a faculdade pela qual podemos compreender diretamente a Verdade espiritual ou metafísica, assim como o olho humano “compreende” a luz. Eles o distinguiam de ratio, a mente racional ou lógica. Dada uma premissa, a ratio pode chegar a uma conclusão, mas não chega, com isso, a uma verdade inteiramente “nova”. Não tem poder para apreender a Verdade por si, apenas para demonstrar as implicações lógicas de uma verdade já dada — uma verdade “dada” a ela pelo intellectus.

O Intelecto é a fonte de todos os axiomas — verdades que não podem ser demonstradas, apenas conhecidas intuitivamente.

Segundo praticamente todas as tradições antigas, inclusive o cristianismo tradicional e a filosofia platônica, o ser humano é composto de três níveis de ser: Espírito, alma e corpo — em grego, Pneuma (ou Nous), psyché e soma; em latim, Spiritus (ou Intellectus), anima e corpus.

Na era moderna, contudo, a distinção entre Espírito e alma se perdeu, com consequências desastrosas. Tendemos agora a crer, a não ser que sejamos materialistas completos, que tudo o que não é material deve ser espiritual — o que muitas vezes significa, para nós, que tudo o que encontramos por meio de sonhos, introspecção psicológica ou experiências psíquicas deve ser “verdadeiro” e, por implicação, “bom” — ou pelo menos não deve ser criticado, mesmo que o detestemos ou temamos… quanto mais, é claro, se for agradável ou fascinante.

E é precisamente esse erro metafísico — a ideia de que não há distinção entre psyché e Espírito — que, neste momento, está abrindo massas inteiras de pessoas a influências demoníacas e que tornará possível ao Anticristo fabricar um contrafação psíquica plausível da Realidade espiritual eterna.

Se soubéssemos que psyché e Espírito são duas coisas diferentes (ou melhor, dois níveis diferentes de ser), não, por exemplo, recorreríamos às múltiplas “linhas psíquicas” hoje anunciadas na televisão e em outros lugares, porque entenderíamos que o fato de alguém conseguir dizer-lhe a cor de sua roupa íntima ou o que você fez na terça-feira passada não significa, de forma alguma, que essa pessoa seja sábia ou boa. E o fato é que muitos médiuns (embora certamente não todos) apresentam personalidades desequilibradas e tenderão a usar seus poderes psíquicos de modo desonesto, já que tais poderes lhes deram uma certa capacidade de “viver de sua esperteza”.

Certa vez trabalhei com uma mulher extremamente psíquica. Ela percebeu que havia sido cometido um assassinato numa loja que planejávamos alugar — fato depois confirmado pelo corretor de imóveis. Durante uma conversa telefônica comigo, conseguiu localizar objetos escondidos num apartamento em que eu estava hospedado, que ela jamais visitara, quando eu mesmo não sabia onde estavam. Mas a principal forma como ela usava seus dons era para extorquir dinheiro das pessoas e escapar de processos.

Os psíquicos frequentemente têm problemas de “limite”. Estão tão abertos às energias sutis alheias que a linha entre eles e os outros tende a se confundir. Muitos esquizofrênicos têm a mesma dificuldade e, com frequência, certo grau de sensibilidade psíquica também. Esse “limite do ego” excessivamente permeável pode resultar em várias formas de descortesia radical, “codependência” e dissipação da energia psíquica da pessoa no ambiente que a cerca, fazendo dela uma espécie de “vampiro” que precisa drenar a vitalidade dos outros simplesmente para repor aquilo que está continuamente perdendo. Pode igualmente abrir essa pessoa à possessão demoníaca.

Numa conversa com um budista da linhagem Gelugpa (a escola do budismo vajrayana tibetano à qual pertence o Dalai Lama), disseram-me que há dois tipos de clarividência: o tipo legítimo, próprio do sábio budista avançado, que se desenvolve diretamente a partir das virtudes da compaixão e da concentração (um aprofundamento raro, mas não anormal, do cuidado e da atenção, usado sobretudo no contexto da direção espiritual), e aquilo que se chama de clarividência “contaminada”, que é uma das consequências kármicas de um curso interrompido de desenvolvimento espiritual e é considerada um grande obstáculo à Iluminação.

Portanto, “psíquico” não é sinônimo de “espiritual”. A psyché é um nível de ser baseado na polaridade sujeito/objeto, em que a experiência “objetiva” é condicionada pela “subjetividade” de quem a experimenta. O Espírito ou Intelecto transcende essa polaridade. Podemos descrevê-lo como perfeitamente Objetivo, já que é o que é, quer eu esteja consciente disso ou não; e, com igual validade, como o Sujeito absoluto (ou pelo menos um “raio” desse Sujeito divino que intercepta a alma humana), pois é a Testemunha última de tudo o que acontece, seja no plano dos arquétipos espirituais, seja dentro da minha psique, seja no mundo material. Em qualquer caso, Ele transcende a minha subjetividade individual. Não é, como alguns imaginam, o meu ego blasfemamente absolutizado; não é o grande “Eu”. Antes, é Deus dizendo “Eu Sou” dentro de mim, quer eu esteja consciente disso ou não, quer eu seja ou não fiel às implicações disso. “Já não sou eu quem vive”, diz São Paulo, “mas Cristo vive em mim.” Ou, nas palavras de Mestre Eckhart: “Há algo dentro da alma que é incriado e increável.”

Esse “Algo” é o Intelecto. De certo modo, é a nossa capacidade inata de conhecer Deus diretamente. De outro modo, é o próprio Autoconhecimento de Deus, do qual podemos ou não participar conscientemente, mas que, em qualquer caso, é a Fonte da nossa vida. Visto do ponto de vista da nossa subjetividade psíquica, tal conhecimento é, em última análise, impossível, já que nenhuma consciência individual limitada pode abarcar o Absoluto: “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam.” Visto do ponto de vista do Intelecto, porém, tal conhecimento não é apenas possível, mas necessário, pois o Conhecimento completo da Verdade é parte integrante da própria Verdade. É por isso que um dos nomes de Deus, no hinduísmo, é Satchitananda — Ser ou Verdade (Sat), Consciência dessa Verdade (Chit) e a Bem-aventurança da união entre Verdade e Consciência (Ananda). Este é também um dos significados do primeiro versículo do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”

Fé, Crença e Conhecimento

Fé e conhecimento são às vezes vistos como opostos, especialmente no mundo cristão. Aqueles que pensam poder chegar a Deus por meio do conhecimento e não da fé são frequentemente rotulados de “gnósticos” — termo que realmente quer dizer algo, embora seja tão frequentemente aplicado, como espécie de difamação genérica, a tudo aquilo de que o falante ou escritor desconfia na área da religião, mais ou menos como as palavras “comuna” ou “fascista” têm sido usadas na área da política. Os próprios Tradicionalistas às vezes são tachados de gnósticos por aqueles que não compreendem plenamente suas doutrinas.

Os gnósticos foram um grupo extremamente heterogêneo de seitas religiosas na Antiguidade tardia, que, entretanto, tendiam a partilhar certas doutrinas: que os universos psíquico e material são produto de uma “queda” dentro da Divindade, e não uma manifestação dessa Divindade no espaço, no tempo e na consciência humana; que a própria matéria é má; que Deus é, consequentemente, “alheio” à criação; que o cosmos é criado e governado, em vez disso, por falsos deuses maus e/ou iludidos, muitas vezes chefiados por um Demiurgo maligno, normalmente identificado com as esferas planetárias concêntricas da cosmologia ptolomaica (geocêntrica), consideradas como uma espécie de prisão cósmica; que o pecado de Adão foi uma revolta heróica e prometeica contra esse Demiurgo maligno; que a saída da prisão cósmica se dá pelo conhecimento, em oposição à fé — especificamente, pelo conhecimento de como o mundo decaído foi criado e como e por quem é governado; que a fé não passa de uma crença cega no sistema falso e opressor de coisas que é o universo; que o salvador, frequentemente mas não sempre identificado com Cristo, desliza para dentro desse falso mundo disfarçado, a fim de enganar os governantes cósmicos, e traz salvação à elite espiritual sob a forma de um conhecimento secreto ou gnosis; que esse Salvador não encarna realmente no mundo material, mas é uma espécie de aparição (como na heresia docetista), que nunca sofreu de fato na cruz, nem morreu, nem ressuscitou; e que (como na heresia ariana) ele não é divino, mas sim um dos Aeons eternos, uma espécie de arcanjo; que, sendo o cosmos falso e governado por falsos deuses, a “moralidade” apropriada é ou afastar-se inteiramente dele, através de um ascetismo extremo que em certas seitas gnósticas levava, às vezes, ao suicídio por inanição, ou então afrontar abertamente a falsa moralidade dos governantes do mundo mediante libertinagem e autossatisfação rebelde. Em alguns aspectos, o gnosticismo foi uma heresia cristã; em outros, um espectro de movimentos religiosos independentes.

Deveria ser relativamente óbvio que o gnosticismo, como todas as heresias, contém um grão de verdade, posto em contexto falso. A verdade, neste caso, é que a humanidade está, de algum modo, caída — seja por ignorância, seja por transgressão, seja por uma combinação de ambas — e que, consequentemente, o mundo que habitamos tem limitações radicais que não existiam no estado não caído do “Éden”. Segundo a doutrina cristã, até mesmo a morte é produto da queda do homem; não é realmente “natural”. O erro dos gnósticos foi tornar-se tão obcecados pelas consequências da queda que se esqueceram de que “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”; em termos teológicos, negaram a imanência de Deus em Sua criação, fazendo-o totalmente transcendente e, por isso, “estranho”. Desse modo, a despeito de toda a sua suposta sofisticação esotérica, em certo sentido levaram a queda do homem demasiado ao pé da letra. Obcecados com falsidade e erro, esqueceram-se de que o erro, embora produza efeitos reais, não é real em si. Concretizaram o erro; por conseguinte, sua “gnose” já não era a pura capacidade de ver através do erro na contemplação da Verdade divina, mas converteu-se numa tentativa de “lograr” os governantes do mundo por meio de um conhecimento especial, oculto. Isso não quer dizer que não houvesse nenhum autêntico entendimento metafísico entre os gnósticos, mas sim que os erros do movimento colocavam esse conhecimento num contexto falso e distorcido. E, como dizem os sufis, “basta um único cão para estragar toda uma bacia de água de rosas”.

A luta dos primeiros cristãos contra os gnósticos sectários — assim como a luta semelhante que ocorre hoje contra vários neognósticos — tem contribuído para obscurecer a verdade de que fé e conhecimento não se opõem, mas estão de fato intimamente relacionados. Aqueles cristãos que sustentam que toda metafísica é uma forma de gnosticismo — ou aqueles muçulmanos e orientalistas que veem a metafísica sufi como uma espécie de neoplatonismo, ou de xamanismo, ou de budismo, em vez de enxergá-la como a quintessência do Islã, baseada numa compreensão da revelação corânica profunda o bastante para penetrar não apenas a mente e a vontade, mas o Coração espiritual — e que, por isso, pensam que não devemos tentar conhecer diretamente as verdades de Deus, já que o intelecto humano é incapaz disso, devendo-nos limitar a recebê-las por “fé cega”, estão enganados. Na verdade, caíram numa espécie de heresia gnóstica própria ao repetir a oposição radical gnóstica entre fé e conhecimento. Por outro lado, sua crença de que a mente humana é incapaz de adquirir a Sabedoria divina também é verdadeira, em dois sentidos específicos: primeiro, porque a Sabedoria é dom, não conquista; segundo, porque só Deus pode conhecer Deus. Ignoram, no entanto, que o ser humano — e o seu Arquétipo na Natureza divina, que os sufis chamam al-insân al-kâmil, “o Homem Perfeito”, e os cristãos chamam “Deus Filho” (sem negar, evidentemente, as diferenças irredutíveis entre essas duas doutrinas) — é precisamente a forma desse Autoconhecimento divino.

A fé não pode ser limitada à crença (embora a crença seja parte necessária dela); é, antes, o início de um conhecimento direto e objetivo. Crede ut intellegas: “crê para que possas compreender”. É verdade que tentar acessar o Conhecimento divino ignorando a doutrina revelada é uma forma de orgulho espiritual, fadada ao desastre. Mas lutar para crer a doutrina religiosa unicamente pela força de vontade, ao mesmo tempo negando que essa crença possa algum dia florescer em verdadeira compreensão, é desprezar os dons do Espírito.

Nas palavras de São Paulo, a fé é “a substância das coisas que se esperam, a evidência das coisas que não se veem”. Ou seja, a fé é uma intelecção virtual — e um sinônimo de intelecção é gnosis.

Muitos Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, Máximo, o Confessor, e Dionísio Areopagita, foram metafísicos e “gnósticos” justamente nesse sentido — o que não significa que tenham professado a heresia do gnosticismo. Segundo Clemente, “podemos entrever algo do que Deus é se tentarmos, por meio de cada sensação, alcançar a realidade de cada criatura, sem desistir até que estejamos vivos para aquilo que a transcende.” Nas palavras de Dionísio: “É, pois, falso repetir o lugar-comum de que o mal reside na matéria enquanto tal. Para dizer a verdade, a própria matéria participa da ordem, da beleza, da forma...” E Máximo declara:

“[Deus] se mostra às nossas mentes na medida de nossa capacidade de compreender, por meio dos objetos visíveis que agem como letras do alfabeto. (...) Ele, o não-diferenciado, é visto em coisas diferenciadas, o simples, no composto. Aquele que não tem princípio é visto nas coisas que necessariamente têm princípio; o invisível, no visível; o intangível, no tangível. Assim Ele nos reúne em Si, por meio de todas as coisas.”

Ninguém que ensine tais doutrinas — que creia, como esses Padres da Igreja creem, que os céus proclamam a glória de Deus — pode ser chamado, com justiça, de gnóstico herético ou sectário.

A fé é “a substância das coisas que se esperam” no sentido de que a gnosis está virtualmente presente na alma humana. É “a evidência das coisas que não se veem” no sentido de que, pela fé — que é maior do que a crença, embora menos do que o conhecimento direto, podendo ser definida como receptividade à intelecção, prontidão para conhecer —, realidades invisíveis podem aparecer à mente sob a forma de símbolos e aos sentidos sob a forma de objetos materiais compreendidos simbolicamente. Nas palavras de Frithjof Schuon, “as formas sensíveis correspondem com exatidão às intelecções” (A Unidade Transcendente das Religiões, p. 62).

O que é Esoterismo?

No uso popular, a palavra “esotérico” significa algo como “desnecessariamente obscuro e complicado”, como quando nos pedem para não ficar “muito esotéricos”, mas “manter a coisa simples”. Aqueles com interesse superficial na espiritualidade mística tendem a definir esoterismo, na prática, como “segredos especiais para pessoas especiais”, enquanto os que desconfiam da mística, em parte como reação a essa atitude “elitista”, o verão como uma doutrina secreta e herética, oposta à revelação e à tradição.

Segundo a doutrina de alguns sufis (os “místicos organizados” dentro do Islã), bem como da seita xiita (os partidários do primo e genro do Profeta, Ali, que foi ao mesmo tempo o quarto califa sunita e o primeiro imã xiita), há um “equilíbrio” em todas as coisas, particularmente na religião, entre interior e exterior. Em toda forma há essência, e a essência manifesta-se sempre como forma. Visto assim, a espiritualidade mística é a essência interior da religião, enquanto a religião é a forma exterior da mística. Mas ela não é “meramente” a forma exterior; interior e exterior são igualmente necessários. Como dizem os sufis, sem a casca o miolo apodrece. No Alcorão, por exemplo, Deus é chamado tanto de “o Interior” (al-Batin) quanto de “o Exterior” (al-Zahir), termos que também poderiam ser traduzidos como “o esotérico” e “o exotérico”.

Na história islâmica, os clérigos exotéricos que periodicamente perseguiram os sufis deram origem a várias formas de “fundamentalismo” muçulmano, que ameaçavam arrancar o Coração do Islã, enquanto aqueles sufis que foram longe demais na direção oposta, tentando tornar-se puros batinis, muitas vezes desenvolveram tendências heréticas que ameaçavam a tradição de outra forma: tentaram, por assim dizer, viver como um Coração sem corpo.

Toda tradição espiritual precisa tanto de expressões interiores quanto exteriores. Mesmo o budismo, que talvez esteja mais próximo do que qualquer outra tradição de um esoterismo quase puro, exige a moralidade (sila) como equilíbrio complementar à sabedoria (prajñā) e à concentração (dhyāna). E o mesmo vale para a Escritura. Se a Bíblia ou o Alcorão forem reduzidos aos níveis socio-histórico e moral de significado — ou mesmo ao psicológico —, então seu sentido essencial é negado; são reduzidos à estatura de algo que qualquer filósofo moral poderia ter produzido com base num bom senso esclarecido. Mas se uma hermenêutica esotérica é usada para negar os níveis socio-histórico, moral e psicológico de significado, então a Escritura em questão não está sendo compreendida de modo completo ou equilibrado, com o resultado de que o próprio nível esotérico ou metafísico também sofre, já que enfatizar o sentido interior “espiritual” da Escritura descartando o sentido exterior “físico” implica que o Espírito não é a Fonte da vida da alma e do corpo, mas algo externo a eles, algo sem ligação “orgânica” com nossas vidas, um “Deus estranho” como o dos gnósticos, espécie de fantasma ou espectro — e isso é um erro metafísico.

Os exotéricos religiosos muitas vezes acreditam que o esoterismo não passa de uma espécie de doutrina alternativa e, portanto, necessariamente uma heresia — equívoco reforçado diariamente por milhares de pseudo-esoteristas, ou ocultistas, que pensam exatamente a mesma coisa. Essas pessoas se orgulham de chamar a si mesmas de “hereges”, como se essa palavra denotasse um tipo de rebeldia heroica baseada numa compreensão mais profunda das coisas espirituais do que a da massa de “ortodoxos” simplórios e superficiais; na realidade, porém, ela não é mais do que a admissão de que sua própria compreensão é superficial e de que se encontram em estado de erro metafísico.

A tragédia da religião exotérica é que ela possui a “pérola de grande preço”, “a única coisa necessária”, mas, em tantos casos, a perdeu de vista. A tragédia daqueles que inicialmente possuem certa medida de compreensão espiritual esotérica é que frequentemente sucumbem à tentação de identificar falsamente “ortodoxia” com “exoterismo” e, em seguida, repetir o erro de muitos exotéricos ao identificar falsamente “esoterismo” com “heresia”, esquecendo-se de que, se sua compreensão esotérica fosse verdadeira, estariam necessariamente no âmago da ortodoxia e, em certos aspectos — ou em certas ocasiões —, potencialmente ainda mais ortodoxos que os próprios exotéricos.

O pecado dos exotéricos é a estupidez militante que esmaga toda sutileza doutrinal. O pecado dos esotéricos é o orgulho intelectual, que leva, em alguns casos, a uma frivolidade no trato da doutrina. A doutrina religiosa ortodoxa só pode ser plenamente salvaguardada por um equilíbrio entre ambos, que às vezes estará à vista e às vezes permanecerá oculto, para ser preservado.

Esoterismo, portanto, não é uma doutrina alternativa, ainda que os escritos de certos esotéricos — como Mestre Eckhart no cristianismo, por exemplo, ou Ibn ‘Arabi no Islã — possam fazê-lo parecer assim aos olhos daqueles dotados de menor sutileza e profundidade de entendimento. Esoterismo é gnosis, um testemunho presente das verdades de Deus que emana das profundezas da Natureza divina. Não é, em última análise, doutrina, mas realização.

Os que estão disponíveis a essa realização constituirão necessariamente uma espécie de elite. Hoje não há ideal mais impopular — na verdade, mais desprezado — do que o de uma elite espiritual ou política, e com boa razão. A história está cheia de lições de como “elites” autoproclamadas e interessadas em si mesmas podem causar danos — como, por exemplo, os “Assassinos” ismaelitas no Islã, aquela confraria de terroristas esotéricos. Mas, se eu tiver um tumor cerebral e precisar de uma cirurgia, espero em Deus que o médico que a realizar seja o mais “elite” possível!

Do mesmo modo, há certas funções espirituais profundas que apenas poucos podem cumprir; chamamo-los de “santos”. Nem todos os santos são intelectuais, embora a gnosis deva estar virtualmente presente neles, já que a santidade se baseia na submissão da vontade a Deus, e o rosto de Deus apresentado à vontade traz a forma precisa da Verdade divina.

A verdade à qual se deve submeter é o Intelecto. E nem todos os santos intelectuais são esotéricos: Tomás de Aquino é um bom exemplo do “metafísico não esotérico”. É somente nos santos mais raros, como Máximo, o Confessor, e possivelmente São Bernardo, o patrono espiritual dos Templários, que santidade e gnose estão combinadas. Há também aqueles que ficam aquém da santidade realizada, mas ainda possuem certo grau de gnose — embora não o grau mais elevado — e é a partir deles que muitos dos problemas associados aos autoproclamados esotéricos têm origem, especialmente se falham em reconhecer suas limitações, idolatrando o Intelecto em vez de adorarem a Deus por meio dele. Há ainda aqueles que possuem certo grau de insight verdadeiramente esotérico — embora, nesse caso, não possa realmente ser chamado espiritual, mas sim um contrafação psíquica de alto nível do conhecimento espiritual — e que estão em liga com Satanás, sem o saber, e às vezes sabendo; e estes são as pessoas mais perigosas da terra, já que, dentre eles, os “contemplativos de Satanás” (awliyāʾ al-Shayān) serão escolhidos como a “guarda de elite” do Anticristo.

Quando elites espirituais tomam forma organizada no mundo exterior, estamos diante tanto do mais alto potencial para a transformação espiritual da sociedade quanto da mais satânica tentação ao orgulho espiritual titânico. É por isso que, segundo a opinião de alguns, uma verdadeira elite espiritual, como na lenda dos Cavaleiros da Távola Redonda, nunca dura muito em termos históricos: ou é destruída pelo pecado do orgulho, ou é dissolvida — deliberadamente por seus mestres iluminados, ou providencialmente pelo próprio Deus — antes que possa tornar-se totalmente corrupta. No Islã, muitos círculos sufis duraram como manifestações vivas apenas enquanto o mestre vivia, e então ou se dispersaram, ou continuaram como cascas vazias — embora isso certamente não seja verdade para as grandes ordens sufis sobreviventes, onde a transmissão da verdadeira baraka espiritual (graça) continua, em alguns casos, há muitos séculos. No Cristianismo, o exemplo mais claro de uma elite espiritual visível foi, segundo alguns, o dos Templários, cuja brutal supressão pela monarquia francesa, com o apoio do papado, foi ou a destruição trágica de uma espiritualidade profundamente esotérica pelas mãos de exotéricos invejosos e estúpidos, ou a necessária eliminação de uma irmandade internacional herética e corrupta com excesso de riqueza, poder e independência — ou talvez um pouco de ambos.

É verdade que o conhecimento “esotérico” costumava ser transmitido somente aos membros da elite espiritual, primeiro porque somente eles se interessavam, e segundo porque uma interpretação esotérica da doutrina pode desequilibrar a mente daqueles que a ela se atraem sem poder compreendê-la plenamente. Mas em nossos tempos todos os segredos esotéricos que podem ser ditos foram ou estão sendo ditos, então não há mais nada a perder nesse aspecto; é por isso que os Tradicionalistas frequentemente citam o provérbio dos cabalistas: “é melhor que a doutrina seja mal compreendida do que esquecida.” O fato é que nem todos podem compreender a metafísica — o que é o sentido da frase “o segredo protege a si mesmo” — e nem todos os que podem compreendê-la mentalmente são capazes de serem transformados espiritualmente por ela. Mas a qualidade do tempo presente exige que toda a verdade seja dita, custe o que custar, já que “o gato saiu do saco”, e é vital que essa verdade alcance aqueles poucos — dispersos por toda a população mundial — que podem lucrar com sua expressão plena.

Nem a questão sobre revelar ou ocultar doutrinas esotéricas é realmente nova. Guénon procurou um potencial esotérico secreto dentro do Catolicismo, possivelmente um resquício do Templarismo, mas não o encontrou. E muitas pessoas hoje ainda tentam descobrir — ou inventar — um Cristianismo esotérico. Mas, segundo Schuon, o Cristianismo em si é Cristianismo esotérico. A revelação cristã é uma espécie de “eso-exoterismo”, uma iniciação esotérica tornada disponível a todos; os ritos iniciáticos são o batismo e a confirmação. No Islã, a sabedoria esotérica é guardada pelos sufis, os místicos organizados. No Cristianismo — ao menos no Cristianismo pré-Reforma — ela estava dispersa por toda a tradição, “oculta a céu aberto”. O Catolicismo a possuía, mas, na ausência de uma tradição esotérica organizada comparável ao sufismo, não compreendeu o valor do tesouro que lhe fora confiado, razão pela qual hoje está no processo de “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Somente dentro da Ortodoxia Oriental, em grande parte devido à presença do hesicasmo, essa dimensão permaneceu relativamente intacta — o que não significa que a plenitude da salvação de Cristo, e portanto o potencial do esoterismo, não esteja presente também em algumas igrejas protestantes e no próprio Catolicismo, como testemunham grandes esoteristas como Jakob Böhme dentro do luteranismo.

A visão de Schuon sobre o Cristianismo é parcialmente confirmada por um interessante detalhe histórico: entre os mandeanos, uma antiga seita gnóstica do sul do Iraque, que afirma ter sido fundada por João Batista e que, segundo alguns estudiosos, pode descender dos essênios, Jesus é visto como uma espécie de renegado que revelou doutrinas esotéricas ao público. Isso demonstra, a meu ver, que o potencial espiritual fecundo no ministério de Jesus consistia em manifestar a profundidade interior da doutrina — e não em ocultá-la — e que as raízes da heresia gnóstica podem residir na tentativa de vários círculos esotéricos de desenvolverem seu próprio exoterismo, sua própria doutrina “alternativa”, em vez de permanecerem como “fermento” ou “grão de mostarda” dentro do Cristianismo como um todo. Por outro lado, Jesus sabia bem que nem todos seriam capazes de compreender a profundidade revelada da doutrina, razão pela qual nos Evangelhos Ele está continuamente dizendo coisas como “aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”, e por isso falava ao povo em parábolas, mas aos seus discípulos escolhidos falava direta e abertamente. A imagem central dessa qualidade “eso-exotérica” do Cristianismo é a Transfiguração de Cristo, onde a luz interior da tradição foi revelada abertamente. Mas permanece o fato de que nem todos têm olhos para ver essa luz: até mesmo Pedro, um dos doze escolhidos, não compreendeu totalmente o que acontecia. Assim, o segredo protege a si mesmo.

Segundo a sabedoria inerente à economia divina, pertencer a uma verdadeira elite espiritual, organizada ou não, é necessariamente o fardo mais pesado que pode ser suportado pela alma humana, embora a Intelectividade em si possa ser vista como uma graça compensatória, já que, como disse Jesus, “meu jugo é suave e meu fardo é leve.” E isso é justo: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” Não há tolice maior do que alguém crer que sua percepção esotérica é uma vantagem, uma “regalia”. Compreender coisas que pessoas com maior santidade, e até com maior inteligência mental, jamais compreenderão — coisas que, se você falhar em sua vida espiritual, apenas o condenarão mais profundamente — é um destino duro, assim como retornar de uma batalha heróica com um braço a menos pode ser um emblema de honra, mas não é, no sentido usual do termo, um caso de boa fortuna. Como me apontou o escritor tradicionalista Rama Coomaraswamy, no sistema tradicional de castas hindu, o dharma (dever sagrado) das duas castas mais elevadas — os brâmanes (sacerdotes e intelectuais espirituais) e os xátrias (guerreiros e administradores) — incluía salvaguardas internas contra o orgulho de sua posição elevada. Os brâmanes, proibidos de trabalhar para viver, tinham de mendigar seu pão de porta em porta entre a terceira casta, os vaixás, cidadãos trabalhadores e sólidos; esta é uma humilhação que intelectuais incapazes de ganhar dinheiro, como eu, conhecem bem. E o orgulho heroico dos xátrias era temperado pela possibilidade sempre presente de ferimento, mutilação e morte na batalha.

Portanto, parte integral da prática de um membro da elite espiritual é não identificar seu ego com sua função — lembrar de Deus, como dizem os sufis, e esquecer de si mesmo. Em outras palavras, a humildade requerida do esotérico é muito mais radical do que aquela suficiente para o exotérico, chegando a uma verdadeira autoaniquilação. Como disse Groucho Marx (sem dúvida repetindo, na forma de uma piada “Nasruddin” de uma só linha, um autêntico fragmento de saber esotérico, provavelmente transmitido pelos hassídicos): “Eu jamais ingressaria em um clube que me aceitasse como membro.”

Frithjof Schuon foi talvez um dos doze maiores metafísicos da história conhecida, comparável, em muitos aspectos, ao sábio hindu Shankaracharya, ao jñani cristão Mestre Eckhart ou ao filósofo neoplatônico Plotino. Contudo, a comparação da Escola Tradicionalista com o neoplatonismo tem outro sentido pertinente. A filosofia platônica e neoplatônica só conseguiu sobreviver ao se anexar a uma das grandes religiões reveladas, principalmente ao Cristianismo e ao Islã. A tradição neoplatônica iluminou profundamente esses universos religiosos, revelando em linguagem filosófica explícita muito do que teria permanecido implícito na linguagem densamente simbólica e mitopoética da Bíblia e do Alcorão. Mas nem o Cristianismo nem o Islã poderiam “tomar residência” dentro do neoplatonismo, que em si não podia prover uma matriz fértil. Sem o arcabouço de uma religião revelada, ele lentamente morreu. Nem mesmo o imperador romano Juliano, o Apóstata, conseguiu restabelecer o Paganismo filosófico de forma viável. E embora parte da razão para o desaparecimento das escolas filosóficas possa ser atribuída à perseguição cristã, o fato permanece: o platonismo tardio não era suficientemente amplo ou suficientemente em contato com a graça divina para sobreviver por si só. O abismo entre suas concepções elevadas e o paganismo degenerado que o cercava — e que teria de servir como sua base popular — era demasiado grande. Isso pode explicar por que começou, sob Jâmblico, a descer à teurgia quase mágica, e por que, segundo algumas especulações, pode até ter se tornado ancestral de certas formas de magia cerimonial ocidental.

A Escola Tradicionalista enfrenta um dilema semelhante. Os ensinamentos profundos e inspirados de Schuon e seus colegas só podem servir para reavivar as religiões do mundo à profundidade metafísica de suas próprias tradições ortodoxas. Até certo ponto, dentro tanto do Cristianismo quanto do Islã, esse processo já começou. Mas na medida em que o Tradicionalismo se apaixona tanto pela metafísica “pura” a ponto de esquecer que todo conhecimento metafísico, para ser espiritualmente operativo, necessita de uma matriz viva dentro de uma das grandes tradições reveladas — e, além disso, que não se pode simplesmente relacionar-se a essas tradições como se representassem nada mais do que um requisito mínimo, uma espécie de carteirinha exotérica que, após validar as buscas esotéricas como ortodoxas, pode ser guardada na carteira e largamente ignorada — ele corre o risco de tornar-se um “exoterismo alternativo”: em outras palavras, um culto. Segundo Ibn al-‘Arabī, um dos maiores esotéricos islâmicos, as obras espirituais obrigatórias para todos os crentes — oração, jejum, peregrinação, esmola e testemunho de fé — são maiores do que as obras “supererrogatórias”, inclusive as realizadas apenas pelos sufis. Ele adverte os esotéricos sufis contra se deixarem enganar pelas revelações ou “desvelamentos” que lhes vêm de Deus, de modo a abandonarem essas obras obrigatórias:

Encontramos pessoas sinceras entre o Povo de Deus que foram enganadas por este estado. Elas preferem seu próprio desvelamento e aquilo que se manifesta em seu entendimento de modo que anula a regra estabelecida. Confiam nisso em seu próprio caso, e permitem que outros observem a regra estabelecida em seu significado exterior. Mas… qualquer um que confia nisso está totalmente confuso e deixou sua afiliação ao Povo de Deus… Pode até acontecer que o possuidor de tal desvelamento continue a praticar o sentido exterior dessa regra, embora não creia nela para si mesmo. Ele a pratica estipulando a situação exterior (āhir), dizendo para si: “A este mandamento da Lei eu dou apenas o exterior de mim mesmo, pois conheci o seu segredo (sirr). Assim, sua propriedade em minha consciência interior é diferente de sua propriedade em meu exterior.” Portanto, ele não acredita nela em sua consciência interior enquanto a pratica. Quem a pratica assim… “seu ato falhou, e no mundo vindouro estará entre os perdedores” (Alcorão 5:5).
Futūāt al-Makkīyya II 233–34.

É preciso aproximar-se das tradições espirituais de modo íntegro, sem reservas secretas. Só então se perceberá que o verdadeiro esoterismo não se encontra em nenhum outro lugar senão nas profundezas raramente sondadas das doutrinas ortodoxas necessariamente aceitas por todos os crentes. E é precisamente isso que a Escola Tradicionalista prega. Que continuem a praticar o que pregam.

O Absoluto e o Infinito

Segundo Frithjof Schuon, Deus é tanto Absoluto quanto Infinito:

Em metafísica é necessário partir da ideia de que a Realidade Suprema é absoluta, e que, sendo absoluta, é infinita. É absoluto aquilo que não permite aumento ou diminuição, nem repetição ou divisão; é portanto aquilo que é ao mesmo tempo unicamente si mesmo e totalmente si mesmo. E infinito é aquilo que não é determinado por nenhum fator limitante e, portanto, não termina em qualquer fronteira…

O Infinito é, por assim dizer, a dimensão intrínseca do Absoluto; dizer Absoluto é dizer Infinito, um sendo inconcebível sem o outro.

A distinção entre o Absoluto e o Infinito expressa os dois aspectos fundamentais do Real: o da essencialidade e o da potencialidade; esta é a mais alta prefiguração principial dos polos masculino e feminino. A Radiação Universal, e assim a Māyā tanto divina quanto cósmica, brota do segundo aspecto, o Infinito, que coincide com a Toda-Possibilidade.
Survey of Metaphysics and Esoterism, pp. 15–16.

O Sumo Bem

Deus não é apenas Absoluto e Infinito; Ele é também o Bem. A ideia de Absolutidade sem a de Infinitude nos leva a imaginar Deus como um objeto remoto, inacessível, que não tem necessidade de comunicar-se: um Ser que, em vez de criar ou emanar todas as coisas, as exclui e nega. A ideia de Infinitude sem Absolutidade comunica uma sensação de proliferação interminável e fatigante, sem centro intrínseco de significado ou realidade. A ideia de uma Realidade Absoluta e Infinita que não seja também o Sumo Bem postula um Deus onipresente e todo-poderoso, mas sem solidariedade intrínseca com Sua criação — um Deus que, apesar de Seu Absoluto e de Seu Infinito, poderia ainda ser fundamentalmente cruel em relação a nós. E o conceito de um Deus que é apenas Bem, sem ser Absoluto ou Infinito, não passa do “Deus liberal”, um ideal moral impotente que deseja nosso bem, mas não é nem muito efetivo nem muito convincente quando confrontado com a “realidade dura”. Segundo Schuon:

O “Sumo Bem” é a Causa Primeira na medida em que é revelado por fenômenos que chamamos precisamente de “bons”, isto é, que o real e o bom coincidem. De fato, são os fenômenos positivos que atestam a Realidade Suprema, e não os negativos, privativos ou subversivos; estes últimos manifestariam o nada “se existisse”, e isso apenas num sentido indireto e paradoxal, na medida em que nada corresponde a um fim irrealizável que, no entanto, tende à realização.
Portanto, se chamamos o Princípio Supremo de Bem,
Agathón, ou se dizemos que é o Sumo Bem que é o Absoluto e portanto o Infinito, isso é não porque paradoxalmente limitemos o Real, mas porque sabemos que todo bem provém dele e o manifesta essencialmente, e assim revela a sua Natureza. Com certeza pode-se dizer que a Divindade está “além do bem e do mal”, mas com a condição de acrescentar que esse “além” é por sua vez um “bem”, no sentido de que dá testemunho de uma Essência em que não pode haver sombra de limitação ou privação, e que, consequentemente, não pode deixar de ser o Bem absoluto ou a Plenitude absoluta. . . .
Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 16

Transcendência e Imanência
Toda tradição religiosa válida, de uma forma ou de outra, dá testemunho do fato de que a Realidade Absoluta é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O que significam essas palavras? Dizer que Deus é transcendente quer dizer que Ele está além de todas as coisas e de todas as concepções. Dizer que Ele é imanente quer dizer que todas as formas e concepções são manifestações d’Ele. E como poderia ser diferente? Imaginemos um campo branco infinito com muitos círculos, e círculos dentro de círculos, de tamanhos vastamente diferentes, inscritos sobre ele. Que o campo infinito represente Deus. O campo branco é infinitamente maior que um círculo de uma polegada de diâmetro; é também infinitamente maior que um círculo de um quilômetro de diâmetro. Transcende ambos. No entanto, não há nada dentro nem do círculo de uma polegada nem do círculo de um quilômetro senão aquele campo branco infinito; ele é imanente em ambos. Schuon, porém, expressa de modo mais exato o significado de transcendência e imanência, evitando as armadilhas da minha ilustração simplista, quando diz:

em conexão com os aspectos ou modos do Sumo Bem, devemos também considerar as relações de Transcendência e Imanência, a primeira ligada mais ao aspecto da Absolutidade, a segunda ao da Infinitude. Segundo a primeira relação, só Deus é o Bem; só Ele possui, por exemplo, a qualidade de beleza; em comparação com a Beleza divina, a beleza de uma criatura não é nada, assim como a própria existência não é nada em face do Ser divino; tudo isso do ponto de vista da Transcendência.
A perspectiva da Imanência também parte do axioma de que somente Deus possui tanto as qualidades quanto a realidade; mas a sua conclusão é positiva e participativa, e assim se dirá que a beleza de uma criatura — sendo beleza e não o seu contrário — é necessariamente a de Deus, já que não há outra; e o mesmo é verdadeiro de todas as outras qualidades, sem esquecer, em sua base, o milagre da existência. A perspectiva da Imanência não anula as qualidades criadas, como o faz a da Transcendência, mas, pelo contrário, torna-as divinas, se é lícito assim se exprimir.
Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 17

Hierarquia
Não há conceito mais impopular hoje em dia do que o de hierarquia. No vocabulário da maioria das pessoas, ele não significa nada mais nem nada menos que “poder estabelecido, portanto arbitrário”.

O modernismo liberal rebelou-se contra as antigas hierarquias da Igreja e do Estado, distribuindo ao “povo” (na realidade, à burguesia) as prerrogativas que outrora pertenciam ao rei e ao papa. A interpretação das Escrituras passou a ser unicamente questão de inspiração individual; a casa de um homem era seu castelo. O resultado foi o domínio do “capitalismo predatório”, no qual indivíduos poderosos, sem relação orgânica ou “corporativa” com as massas, tomaram o poder, em grande parte por meios econômicos. O marxismo surgiu em reação a isso. Nas nações comunistas, o poder era teoricamente distribuído à maior e mais baixa classe, os trabalhadores, mas na realidade ficava nas mãos de uma pequena oligarquia partidária.

Essa rebelião contra as hierarquias sociais ocultou a verdade de que tais hierarquias existiam originalmente para fornecer uma imagem concreta e um lembrete da verdadeira hierarquia ontológica, a Grande Cadeia do Ser. Um rei ou papa individual seria desprezado pelo povo se traísse o seu arquétipo, se não estivesse à altura de sua função, mas o Trono e a Cátedra Papal, os arquétipos em si, permaneciam sacrossantos. O sacerdócio representava Deus no céu e no outro mundo; a monarquia representava o poder ativo de Deus neste mundo.

É claro que essa estrutura social “hierática” sempre foi imperfeita. E, quando em determinado lugar e época se degenerava, erguia-se como a pior forma de idolatria. Em vez de funcionar como símbolo transparente da Hierarquia do Ser, tornava-se um falso dessa Hierarquia, um véu sobre o rosto das realidades espirituais.

Tanto no Antigo Testamento quanto no Alcorão, o símbolo por excelência dessa falsificação da hierarquia espiritual é o Faraó do Egito. Segundo o Alcorão, o Faraó acreditava literalmente ser Deus — e é exatamente isso o que acontece quando uma estrutura régia ou eclesiástica elaborada começa a adorar o próprio saber e magnificência em vez do Deus a quem existe para servir. A verdadeira hierarquia, como a escada no sonho de Jacó, sobre a qual os anjos subiam e desciam constantemente, existe para fornecer uma “comunicação de mão dupla”, por assim dizer, entre a existência manifestada e a sua Fonte transcendente. O próprio universo é uma hierarquia desse tipo. Mas, quando o conceito humano de hierarquia degenera e se petrifica, a ideia da transcendência divina torna-se nada além de uma imagem falsa da inacessibilidade e indiferença de Deus. Nesse ponto é quando, pela misericórdia de Deus, a imanência divina muitas vezes entra em ação na mente coletiva. Moisés e os israelitas, como escravos dos egípcios, obviamente não podiam relacionar-se com Deus através da “pirâmide” esmagadora do sistema religioso egípcio (o que não quer dizer que nada tenham recebido dele; pelo menos um dos Salmos foi originalmente um antigo hino egípcio). Foi a Moisés, um fugitivo procurado por homicídio, escondido no deserto, que Deus falou através da sarça ardente. Quando a religião hierárquica se torna um refúgio para “guias cegos que não entram e não deixam os outros entrar”, então a visão da imanência divina, da disponibilidade misericordiosa de Deus para com os pobres e oprimidos — para com aqueles que têm verdadeira simplicidade de alma, inocentes de oprimir outros, inocentes de complexidades mentais e organizacionais estéreis — é desvelada. À luz disso, o Êxodo pode talvez ser visto como uma espécie de Reforma protestante contra uma religião egípcia tornada petrificada e espiritualmente morta.

Não obstante, a hierarquia é. Ela é intrínseca à natureza do Ser. Moisés, pela graça e pelo poder de Deus, foi chamado a ascender ao Monte Sinai, símbolo da Hierarquia do Ser, para receber a Torá. Aqueles que negaram a realidade dessa Hierarquia, que quiseram relacionar-se com Deus somente através de Sua Imanência, negando Sua Transcendência, permaneceram embaixo para adorar o Bezerro de Ouro.

Modos e níveis hierárquicos
O relato dos níveis do Ser que separam o Criador do universo material, ao mesmo tempo em que os unem, é semelhante em todas as tradições reveladas e nas obras de muitos filósofos místicos. Mas nunca é idêntico, já que tudo o que pode ser tornado explícito já entrou no mundo da relatividade. As doutrinas verdadeiramente metafísicas são infinitamente mais estáveis, articuladas, inteligíveis e concretas do que qualquer coisa nos mundos material ou psíquico. Mas, embora o Absoluto as emane, elas não podem contê-lo; só podem indicá-lo.

O Ser manifesta-se em diferentes níveis, mas aparece também em termos de diferentes qualidades ocupando um mesmo nível. Os níveis são verticais; cada nível superior é causa dos níveis abaixo dele e contém tudo o que está nesses níveis inferiores em forma mais elevada. Da mesma forma, cada nível inferior é manifestação ou expressão — um símbolo — de tudo o que está acima dele; nas palavras de René Guénon, “o efeito é um símbolo da causa”. Os modos do Ser, por outro lado, são horizontais; diferem em qualidade e função, mas não em grau de realidade; são manifestações polarizadas e mutuamente definidoras de um único nível de Ser.

A distinção entre modos e níveis pode ser ilustrada no campo do gênero. Em termos verticais, o homem, considerado como reflexo do Logos criador, é superior à mulher, considerada como reflexo da Substância universal receptiva. Vista a partir da perspectiva oposta, porém, a mulher, tomada como símbolo da Essência divina ou do Além-do-Ser, é superior ao homem, visto como símbolo do ímpeto particularizante do Logos, cujo limite ontológico é o mundo material tal como percebido pelo ego humano. Mas, em termos horizontais, homem e mulher estão polarizados como opostos complementares, no mesmo nível de Ser. A mão direita não é mais real do que a esquerda; por serem complementares, são iguais. Mas igualdade, nesse sentido, nada tem a ver com identidade ou mesmidade. A mão direita conserva sua conexão simbólica com os reinos superiores do Ser, com a verdade e o “direito”, enquanto a mão esquerda ou “sinistra” mantém afinidade com os reinos inferiores. Por outro lado — trocadilho deliberado — a mão direita também está relacionada ao ego consciente exterior e a mão esquerda à Verdade interior, como Jesus deu a entender quando recomendou que, ao praticar a caridade, alguém não deixasse que “a mão direita (ego consciente) saiba o que faz a esquerda (impulso espiritual interior)”. [NOTA: Quem meditar sobre o famoso símbolo Yin/Yang verá nele uma representação visual deste parágrafo.]

Segundo Schuon, o Princípio Supremo possui dimensões, modos e graus ou níveis. Suas dimensões são Absolutidade e Infinitude — bem como, em relação à Sua Māyā, à Sua potencialidade inerente de auto-manifestação, Perfeição. “Absolutidade do Real, Infinitude do Possível, Perfeição do Bem.” Seus modos são Sabedoria, Poder e Bondade, cada um dos quais, por sua vez, é Absoluto, Infinito e Perfeito. Seus graus ou níveis são “a Essência divina, a Potencialidade divina e a Manifestação divina; ou o Além-do-Ser, o Ser criador e o Espírito ou o Logos extensional que constitui o Centro divino do cosmos total” (Survey of Metaphysics and Esoterism, pp. 25–26). Schuon e outros metafísicos — Plotino, por exemplo, ou Dionísio Areopagita, ou Ibn al-‘Arabī — multiplicam essas dimensões, modos e graus da Realidade de muitos modos diferentes, apenas para reconduzi-los novamente à absoluta simplicidade de seu Princípio. A exposição acima visa apenas dar ao leitor uma ideia preliminar de alguns dos princípios mais essenciais da metafísica pura de Schuon.

Amor e Conhecimento
Os escritores da Escola Tradicionalista colocam o caminho da
gnosis ou jñāna, a via de união com Deus por meio do conhecimento, acima do caminho da devoção ou bhakti, que se baseia no amor. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento nunca está separado do amor. “Há uma bhakti sem jñāna”, afirma Schuon, “mas não há jñāna sem bhakti.”

“Em princípio, o conhecimento é maior do que o amor. . . .”, diz Schuon. No entanto, ele prossegue: “. . . mas de fato, no mundo, a relação é inversa, e o amor, a vontade, a tendência individual é, na prática, mais importante. . . .” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 148). Assim, um amor dinâmico a Deus é maior, em seus efeitos reais, do que um conhecimento mental ou “mundano” da metafísica, porque conduz a um conhecimento ainda mais elevado, que é a verdadeira realização. Em outro ponto do mesmo capítulo Schuon escreve: “Um culto da inteligência e a paixão mental afastam o homem da verdade. A inteligência se retira assim que o homem põe a sua confiança apenas nela. A paixão mental perseguindo a intuição intelectual é como o vento que apaga a luz de uma vela” (ibid., p. 132) e: “Tudo o que São Paulo diz sobre a caridade diz respeito ao conhecimento efetivo, já que este é amor. . . .” (ibid., p. 138).

Assim, Schuon, em certo sentido, define o amor como a energia que conduz à Meta, e em outro como um aspecto da própria Meta. Como diz em outro lugar: “A via do amor — bhakti metódica — pressupõe que através dela possamos ir em direção a Deus; enquanto o amor como tal — bhakti intrínseca — acompanha a via do conhecimento, jñāna, e baseia-se essencialmente em nossa sensibilidade à Beleza divina” (Roots of the Human Condition, p. 118).

Segundo Schuon, “o amor perfeito é ‘luminoso’ e o conhecimento perfeito é ‘quente’. . . . Em Deus o Amor é Luz e a Luz é Amor” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 148). “É necessário cavar fundo no solo da alma”, diz ele, “através de camadas de aridez e amargura, a fim de encontrar o amor e viver dele” (The Essential Writings of Frithjof Schuon, p. 451). Não obstante, Schuon escreve mais frequentemente a partir de uma perspectiva que coloca o conhecimento acima do amor. Ele diz:

Para o amor, o homem é sujeito e Deus é Objeto. Para o conhecimento, é Deus quem é Sujeito e o homem, objeto. . . . Para o homem espiritual de temperamento emocional, amar é ser e conhecer é pensar, e o coração representa a totalidade, a própria base do ser, e o cérebro, o fragmento, a superfície. Para o homem espiritual de temperamento intelectual, ao contrário, o conhecimento é ser e o amor é querer ou sentir, e o coração representa a universalidade ou o Si-mesmo (Self) e o cérebro, a individualidade ou o “eu”. O conhecimento parte do Universal, e o amor, do individual; é o Conhecedor absoluto que conhece, enquanto o sujeito humano, a criatura, é chamado a amar.
Spiritual Perspectives and Human Facts, pp. 144–145

Quatro páginas adiante, porém, Schuon toma outra direção. Depois de afirmar que, sob a perspectiva do Conhecimento, Deus é o Conhecedor e o sujeito humano o amante, ele agora diz: “O amor do homem afetivo consiste em que ele ama Deus. O amor do homem intelectual consiste em que Deus o ama; isto é, ele percebe intelectualmente — mas não de modo simplesmente teórico — que Deus é Amor” (ibid., p. 149). Aqui, portanto, mesmo para o homem intelectual — como para Dante no Paraíso — Deus ama, e é o próprio Amor. Como Schuon diz em outro ponto do mesmo livro, “[Deus] é Amor, não porque ama, mas ama porque é Amor” (ibid., p. 107). O Deus pessoal em ação é o “Amante”; a Essência divina é “Amor”; e isto é verdadeiro mesmo sob a perspectiva do conhecimento. Não obstante, o ponto de vista de Schuon permanece essencialmente jñānico e não bhaktico. Em The Essential Writings of Frithjof Schuon, pp. 39–40, ele escreve:

Quando colocamos a ênfase na Realidade objetiva — que então passa a ter precedência na relação entre sujeito e objeto — o sujeito torna-se objeto, no sentido de que, determinado inteiramente pelo objeto, esquece o elemento consciência; nesse caso, o sujeito, na medida em que é um fragmento, é absorvido pelo Objeto, na medida em que este é uma totalidade, assim como o acidente é reintegrado na Substância.

Esta é a perspectiva da bhakti, em que o amante de Deus é extaticamente aniquilado em seu Amado. Mas a perspectiva de jñāna, em que Deus não é o Objeto absoluto, mas o Atman, a Testemunha divina, é mais elevada ainda:

Mas o outro modo de ver as coisas, que reduz tudo ao Sujeito, tem precedência sobre o ponto de vista que concede primazia ao Objeto: se adoramos Deus, não é simplesmente pelo fato de Ele se apresentar a nós como uma realidade objetiva de imensidão vertiginosa e esmagadora — caso contrário adoraríamos as estrelas e as nebulosas — mas é sobretudo porque essa realidade, a priori objetiva, é o maior dos sujeitos; porque Ele é o Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente; porque é ao mesmo tempo onipotente, onisciente e consciente em grau sumo e benéfico.

O Problema do Mal
Um dos problemas perenes da teologia é o seguinte: se Deus é todo-poderoso, no sentido de que, em última análise, é responsável por tudo o que ocorre, então Ele deve ser também o autor do mal. Como, então, pode ser o Sumo Bem? E, se Ele é sumamente bom, não seria necessário haver um segundo princípio, distinto e oposto a Ele, para explicar a existência do mal? Se assim for, como pode Ele ser onipotente?

Os dualistas maniqueus adotaram esta última posição. O judaísmo e o islã tendem mais para a primeira, embora continuem a afirmar dogmaticamente a bondade e a misericórdia de Deus, de modos que só podem ser plenamente reconciliados com a onipotência divina, porém, a partir de uma perspectiva esotérica. O cristianismo aparentemente tende à posição mais dualista; seu dualismo, contudo, não é primariamente o que opõe Deus ao Diabo, mas sim o que opõe a bondade divina à vontade livre humana e angélica. Deus não quer o mal, mas o “permite”, embora o motivo por que um Deus bom e onipotente permitiria o mal apenas para nos dar a chance de lutar contra ele permaneça um enigma para muitos — ao menos para aqueles que não veem que o livre-arbítrio é um dom gratuito dado a nós, por Deus, de um aspecto de Sua própria Natureza.

Se Deus é bom, Ele não pode ser onipotente, e se é onipotente não pode ser bom — ou assim parece. Para Schuon, contudo, essa contradição resolve-se com facilidade. Dado que Deus é Infinito, Ele deve irradiar as possibilidades inerentes à Sua natureza, manifestando-as como a Hierarquia do Ser; e, à medida que a criação desce essa Hierarquia, tornando-se progressivamente menos real e menos viva, a possibilidade do mal — que não é um princípio em si, mas “apenas” uma condição de irrealidade relativa ou de não-entidade, assim como a fome não é uma coisa em si, mas “apenas” falta de alimento — entra em cena. (Dizer que “Ele deve” irradiar o Seu Ser não significa, contudo, que Ele não tenha escolha quando se trata de criar o universo, mas apenas que essa escolha é feita na eternidade, não no tempo. Para nós, aquilo que necessariamente somos por natureza e aquilo que livremente escolhemos fazer são duas coisas diferentes; para Deus, são a mesma.) Nas palavras de Schuon:

O mal é a “possibilidade do impossível”, cuja ausência faria com que o Infinito deixasse de ser o Infinito; perguntar por que a Toda-Possibilidade inclui a possibilidade de sua própria negação — possibilidade sempre reiniciada, mas nunca totalmente atualizada — é como perguntar por que a Existência é Existência, ou por que o Ser…

Primordialidade

Para os Tradicionalistas, a religião é primordial. Quando Santo Agostinho disse que o cristianismo sempre existiu, mas só foi chamado por esse nome depois da vinda de Jesus Cristo, ele estava afirmando essa primordialidade. Judeus e muçulmanos tocam na mesma verdade quando ensinam que Adão foi o primeiro profeta.

Todas as religiões verdadeiras têm uma única origem, que, em termos macrocósmicos, é o próprio universo, onde “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos”, e, em termos microcósmicos, a natureza “teomórfica” do homem, “terrível e maravilhosamente feito” à imagem e semelhança de Deus.

Na Idade de Ouro deste ciclo, todas as religiões eram uma só. Aquilo que o coração humano conhecia do Criador por intelecção direta, o olho humano via, pela contemplação, nos objetos do mundo natural e na forma do corpo humano. Mesmo hoje, alguns dos “povos primordiais” conservam vestígios dessa visão primordial do cosmos como manifestação do Grande Espírito. (Em reconhecimento de sua apreciação das espiritualidades primordiais, Frithjof Schuon foi admitido como membro tribal tanto entre os Crow quanto entre os Lakota [Sioux], e contou vários pajés tradicionais entre seus amigos espirituais.)

Primordialidade, porém, não significa que uma simples apreciação estética ou sentimental da natureza possa equivaler a uma orientação religiosa espiritualmente eficaz. Já não estamos na Idade de Ouro; a Árvore da Religião, cujas raízes estão na eternidade, no Absoluto unitário, já se ramificou muitas vezes desde então. Nestes últimos tempos, salvo casos imprevisíveis baseados em destino espiritual individual, a verdadeira religião só é encontrada em uma das tradições reveladas. O tronco da árvore pode ser um só, mas frutos nutritivos só crescem nos ramos.

As religiões reveladas, entretanto, não são inovações. Apesar de todas as suas dessemelhanças necessárias e providenciais, decorrentes de seu lugar no tempo cósmico e da natureza das coletividades humanas às quais foram e são dirigidas, cada revelação, num sentido mais profundo, é uma recordação da Revelação Primordial Una: a criação do cosmos por Deus, cujo centro consciente e auto-transcendente é o homem — na medida em que, por seu Intelecto interior, ele contempla sua Origem divina por meio desse mesmo Intelecto.

A Unidade Transcendente das Religiões

Assim, todas as religiões verdadeiras e reveladas são ramos da Única Verdade. Elas se encontram não apenas nas profundezas do tempo, mas nas profundezas da Natureza divina. Fora dessas profundezas, porém, divergem necessariamente. É possível, portanto, contemplar panoramas da Verdade revelada através de muitas tradições, mas não é possível praticar mais de uma religião ao mesmo tempo como meio de salvação, tanto quanto não se pode caminhar simultaneamente por duas ou três estradas. A essência da verdade espiritual, como a do amor humano, não está nas semelhanças abstratas que se podem traçar entre várias tradições religiosas, mas na particularidade de uma única tradição, plenamente assumida e plenamente vivida. Como dizem os sufis, é melhor cavar um poço com trinta metros de profundidade do que dez poços com três metros, se se quer encontrar água. Nas palavras de Rumi:

Quando é que a religião já foi uma só? Sempre foi duas ou três, e a guerra sempre grassou entre correligionários. Como você vai unificar a religião? No Dia da Ressurreição ela será unificada, mas aqui neste mundo isso é impossível, porque cada um tem um desejo e uma vontade diferentes. A unificação não é possível aqui. Na Ressurreição, porém, quando todos estiverem unidos, todos olharão para uma única coisa, todos ouvirão e falarão uma única coisa.
Signs of the Unseen [Fihi ma-Fihi], p. 29

O “Dia da Ressurreição” é também “antes da Queda” e “nas profundezas da Natureza divina”.

O Caminho Espiritual

James S. Cutsinger, em Advice to the Serious Seeker: Meditations on the Teaching of Frithjof Schuon, fala de quatro aspectos do Caminho espiritual: Verdade, Virtude, Beleza e Oração.

A Verdade é a doutrina metafísica que, com a graça de Deus, pode abrir-nos a uma intuição do Intelecto transcendente no centro da alma humana. Mas, para que a alma se conforme de modo permanente a esse Intelecto, é necessária a Virtude. As três virtudes primárias aqui são humildade, caridade e veracidade, que se relacionam às três faculdades principais da alma. A humildade conforma a vontade humana ao Intelecto transcendente, a caridade conforma os sentimentos, e a veracidade conforma a mente pensante. Ou, sob outra perspectiva, podemos dizer que cada virtude conduz a alma a uma relação mais profunda com o seu próprio arquétipo divino: a humildade abre a alma para a Virtude de Deus, e assim para uma apreciação humilde da virtude onde quer que apareça; a caridade, para a Beleza de Deus, e assim para toda Beleza em toda parte, incluindo a beleza moral daquele que não é fisicamente belo, ou a beleza virtual da própria condição humana naquele que carece até mesmo de beleza moral; e a Veracidade, para a Verdade de Deus, e assim para a Verdade em todas as suas formas, incluindo a verdade de situações contingentes e até de simples fatos. Na Natureza divina, porém, esses três arquétipos não são separados, razão pela qual cada um deles afeta cada uma das três faculdades da alma humana à sua maneira. A virtude é a verdade em ação, um de cujos frutos é a beleza moral. A beleza pode nutrir e fortalecer a vontade, além de ser, por direito próprio, um modo de conhecimento. E a Verdade em si é singularmente forte e incomparavelmente bela; ela torna possível tanto a honestidade emocional quanto uma avaliação objetiva do próprio progresso na virtude.

Nas palavras de Platão, “a Beleza é o esplendor da verdade”. Segundo Schuon, “a Beleza, com a amplitude de seu infinito e sua generosidade, rompe as atitudes fixas e os sistemas fechados do… egoísmo espiritual” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 164). As coisas belas, porém, não estão isentas de ambiguidades:

Toda Beleza é ao mesmo tempo uma porta fechada e uma porta aberta… um obstáculo e um veículo: ou a Beleza nos separa de Deus porque está totalmente identificada, em nossa mente, com o seu suporte terrestre, que então assume o papel de ídolo, ou a Beleza nos aproxima de Deus porque nela percebemos as vibrações da Beatitude e do Infinito que emanam da Beleza divina.
Esoterism as Principle and as Way, p. 182

Mesmo num objeto indigno, ou num objeto tornado indigno em relação a nós por causa de nossa idolatria, a Beleza continua sendo um raio da Natureza divina.

“A virtude é a Beleza da alma, assim como a Beleza é a Virtude das formas” (Logic and Transcendence, p. 246). É a Beleza que nos permite contemplar as formas ao nosso redor em sua “transparência metafísica”:

Se o ouro não é chumbo, é porque ele ‘conhece’ melhor o Divino. Seu ‘conhecimento’ está em sua própria forma… a rosa difere do lírio-d’água por sua particularidade intelectual, por seu ‘modo de conhecer’… Um animal nobre ou uma flor formosa é intelectualmente superior a um homem vil.
Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 121.

O quarto aspecto do Caminho espiritual, a Oração, é a essência dos outros três. Longe de ser mera técnica para realização de desejos ou alteração da consciência, ela é a Beleza essencial, a Virtude essencial e a Verdade essencial; como disse um rabino, “a própria oração é o Divino”.

A oração toma três formas complementares: a oração canônica, que nos conecta organicamente com nossa comunidade e tradição espirituais escolhidas; a oração pessoal, que nos conecta em nossa particularidade com o rosto específico do Divino que, na eternidade, se volta para essa particularidade; e a oração invocativa, que transcende ambas. A oração invocativa significa a invocação (idealmente) perpétua do Nome divino, prática chamada dhikr no sufismo, Oração de Jesus ou Oração do Coração no hesicasmo cristão ortodoxo, e japa(m) no hinduísmo. Pela Invocação, virtualmente senão de fato, somos aniquilados em nossa individualidade separada e divinizados pela atividade do Nome, já que “Deus e Seu Nome são um”. No sufismo isso se chama fanā e baqā, “aniquilação e subsistência-em-Deus”; na Ortodoxia, chama-se theosis ou deificação. É o estado a que São Paulo se referia quando disse “já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim”. Quando Jesus ordenou aos discípulos que “orassem sem cessar”, é provável que se referisse à prática da oração invocativa. Segundo o Dr. Cutsinger, a invocação do Nome divino é de tal profundidade e poder que jamais deve ser empreendida por iniciativa própria, mas apenas com a permissão de um mestre espiritual — ou, à falta de acesso a tal mestre, com base em um voto solene perante Deus e sob a orientação de um diretor espiritual. Por fim, não existe algo como uma Invocação “genérica”; os Nomes divinos que carregam o poder de engendrar Deus na alma humana são aqueles que o próprio Deus nos revelou, nas línguas dos Caminhos que Ele mesmo fundou.

Simplicidade de Alma

A metafísica é complexa; o seu Objeto é simples. Ela é complexa precisamente porque o seu Objeto é de tal simplicidade que toda complexidade concebível e mesmo inconcebível pode existir dentro d’Ele, sem caos, sem obscurecimento mútuo, numa paz ardente e trovejante.

Frithjof Schuon atribuía um lugar muito alto à simplicidade de alma. Embora seus livros fossem dirigidos a “intelectuais”, ele também atraía muitos que não tinham interesse em teorias complexas. A gnose, recorda ele, não é uma aquisição mental, mas um contemplar, em simplicidade total e virginal, a Verdade nua, até que o Objeto visto se transforme naquele que vê. Em Light on the Ancient Worlds (p. 109), ele escreve:

Se a Bíblia é ingênua, é uma honra ser ingênuo. Se as filosofias que negam o Espírito são inteligentes, então não existe tal coisa como inteligência. Uma crença humilde em um Paraíso situado entre as nuvens tem pelo menos um pano de fundo de Verdade inalienável, mas tem também — e sobretudo — o pano de fundo de uma realidade misericordiosa na qual não há engano, e isso é algo acima de qualquer preço.

Crítica do Mundo Moderno

A Verdade projeta uma longa sombra. Se algumas coisas são necessariamente verdadeiras, então outras são necessariamente falsas. O amor da Verdade deve, portanto, incluir o ódio ao erro, assim como o amor por uma pessoa amada humana deve incluir a vontade de defendê-la de tudo o que possa feri-la ou degradá-la, mesmo ao ponto de sacrificar a própria vida. Qualquer coisa menor não é verdadeiro amor — nem verdadeiro amor à sabedoria. E, no entanto, crítica e defesa estarão sempre em nível inferior ao da afirmação da Verdade, que é por sua vez inferior à contemplação pura da Verdade. Toda rosa tem seus espinhos; contudo, as rosas não são cultivadas por causa dos espinhos, mas por causa de sua forma, de sua cor e de seu perfume. A Verdade, embora tenha um gume duro, é essencialmente misericordiosa e redentora; nas palavras de Allah, um de Cujo Nomes é al-aqq (a Verdade), “Minha Misericórdia precede Minha ira”. Mas o que dizer de al-aqq em sua própria Essência, o que dizer da Verdade absoluta, dado que (segundo Schuon) o Absoluto não tem oposto? Como pode qualquer negação existir nas profundezas da Natureza divina? Talvez a melhor maneira de responder a isso seja com dois provérbios aparentemente paradoxais de William Blake, que certamente se referem ao nível da manifestação cósmica, e talvez até ao de maya-in-divinis: “Tudo o que é possível ser acreditado é uma imagem da Verdade”, e “Estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus.”

Os escritores da Escola Tradicionalista elaboraram talvez a crítica mais contundente do mundo moderno e pós-moderno de que dispomos. Livros representativos são The Bugbear of Literacy, de Ananda K. Coomaraswamy; The Destruction of the Christian Tradition, de Rama P. Coomaraswamy; King of the Castle, de Charles LeGai Eaton; The Crisis of the Modern World e The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de René Guénon; Ancient Beliefs and Modern Superstitions, de Martin Lings; seções de The Transcendent Unity of Religions, Spiritual Perspectives and Human Facts, Light on the Ancient Worlds e outras obras de Frithjof Schuon; e Beyond the Postmodern Mind, de Huston Smith. O presente livro foi escrito, em parte, para expandir e atualizar certos aspectos dessa crítica.

Para resumir a crítica tradicionalista do mundo moderno numa frase: eles não “compram” o pacote. Como viver dentro dele se você não o compra, e como aproveitar as oportunidades espirituais únicas propiciadas por tempos de trevas espirituais coletivas, é uma das questões centrais que os Tradicionalistas tentam responder.

Segundo a visão da maioria das religiões tradicionais, o tempo é cíclico, e entrópico. Uma Autorrevelação divina inaugura uma era do mundo, que desce de uma Idade de Ouro original até uma Idade de Ferro terminal, sendo finalmente destruída, após o que um novo ciclo de manifestação desce dos mundos superiores. Segundo essa visão, o progresso só pode ser uma ilusão; para cada bem que se ganha com o aumento do conhecimento humano e do controle sobre a natureza, um bem cultural e espiritual maior é perdido. O ciclo não pode ser revertido. As perversões do mundo moderno, sua destruição da metafísica, seus ataques à religião e suas violações do mundo natural e da forma humana são males, mas não são ilegais no sentido mais elevado do termo, já que as consequências terríveis da violação humana da justiça divina e natural são elas mesmas justas. “É necessário que haja escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo vem.” A humanidade coletiva, em certo sentido, pode ser perdoada; não é crime simplesmente envelhecer. Mas a “velhice do macrocosmo” não absolve os indivíduos de seu dever de discernir e escolher a Verdade. E quando Verdade e engano estão tão radicalmente polarizados, como devem estar nestes últimos dias, a escolha que se apresenta a cada indivíduo é mais momentosa do que em qualquer outro ponto de todo o ciclo.

A projeção desse falso mito do progresso sobre a biologia resulta na ideologia conhecida como evolucionismo, a doutrina de que o menos é a origem causal do mais, de que formas de vida mais elevadas e complexas, incluindo o homem, desenvolveram-se gradualmente a partir de formas mais simples. Os Tradicionalistas, por outro lado, ensinam que o advento de novas formas de vida — que o registro fóssil mostra ser mais descontínuo do que contínuo, pondo assim a “seleção natural de mutações aleatórias” de Darwin em séria dúvida — representa na realidade a descida de arquétipos espirituais organizadores da matéria a partir dos planos superiores do Ser, em resposta à palavra criadora de Deus. Essas “Ideias platônicas” das espécies então atraem para si a matéria de que necessitam para construir veículos físicos para sua vida no espaço e no tempo.

O progressismo e o evolucionismo são aspectos da ideologia mais abrangente conhecida como cientificismo, a crença de que nada existe para além do mundo material, e, portanto, de que o propósito e o destino do homem estão em conquistar e controlar a matéria, no curso da qual ele deve aprender a definir-se como matéria e nada mais.

Os Tradicionalistas também têm algo de valioso a dizer contra os excessos da democracia, que mantém íntima ligação histórica com o progressismo, o cientificismo e o evolucionismo. Quando a verdade se degrada a opinião da maioria, e quando o indivíduo consequentemente tenta basear suas escolhas morais na subjetividade de massa da sociedade coletiva que o cerca, em vez de em princípios objetivos, o resultado é o caos. (Acrescentaria apenas uma advertência: segundo Platão, a democracia sempre degenera em tirania; por isso nos convém manter a democracia o máximo de tempo que pudermos. O perigo que se ergue no horizonte pós-moderno não é a democracia, mas uma espécie de neo-aristocracia satânica, chamada por Guénon de “hierarquia invertida” e identificada por ele com o regime do Anticristo.)

Guénon vs. os Ocultistas

O fundador da Escola Tradicionalista, René Guénon (1886–1951), foi um dos dois ou três maiores expoentes da “metafísica pura” nos tempos modernos. Em livros como Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, Man and His Becoming according to the Vedanta, The Symbolism of the Cross e Multiple States of Being, ele reintroduziu a metafísica e o esoterismo tradicionais, tanto oriental quanto ocidental, no mundo ocidental. Mas havia outro lado em seu gênio. Antes de seu encontro com aquilo que passou a chamar de Tradição com “T” maiúsculo, ele explorou profunda e extensivamente o submundo do ocultismo ocidental — Rosacrucianismo, Maçonaria, Martinismo, Templarismo, Neognosticismo, Teosofia, Espiritismo e outras seitas — aproximadamente de 1905 ao início dos anos 1920. Saiu desse período convencido não apenas da falsidade doutrinal do ocultismo, especialmente quando comparado à herança metafísica comum das grandes religiões mundiais, mas também de seu profundo perigo espiritual. Atribuiu a morte de sua primeira esposa a influências sombrias provenientes daquele meio, e declarou sentir-se incapaz, mesmo depois de tornar-se muçulmano ortodoxo e iniciado sufi, de assumir o papel de mestre espiritual, já que sua alma fora marcada por um contato íntimo demais com forças psíquicas malignas em seus primeiros anos.

Numa tentativa de advertir outros desse perigo, e sem dúvida também como modo de purgar-se a si mesmo, publicou seu segundo livro (em 1921, quando seu primeiro livro, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, também apareceu) sob o título Le Théosophisme, histoire d’une pseudo-religion (Teosofismo: História de uma Pseudo-Religião), um libelo contra a Sociedade Teosófica de Madame Blavatsky, bem como contra a Antroposofia de Rudolf Steiner. (No decorrer do presente livro, a teosofia moderna surgirá várias vezes como a “sombra” contínua do Tradicionalismo.) Em Le Théosophisme, ele anuncia alguns dos temas aos quais retornaria em várias outras obras, incluindo L’Erreur Spirite (O Erro Espírita), em 1923, e sua obra-prima profética The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de 1948, onde aplica a metafísica pura à “crítica social” no plano mais universal imaginável, isto é, ao curso necessariamente descendente e ao fim apocalíptico do presente ciclo de manifestação na terra. Entre esses temas está um que apareceria em vários lugares de sua obra, incluindo Le Roi du Monde (O Rei do Mundo), 1927, e alcançaria seu auge em The Reign of Quantity: o do Anticristo.

Em Theosophy: History of a Pseudo-Religion, ele escreve:

Os falsos Messias que vimos até agora só realizaram milagres muito inferiores, e seus discípulos provavelmente não foram difíceis de converter. Mas quem sabe o que o futuro reserva? Quando se reflete que esses falsos Messias nunca foram senão instrumentos mais ou menos inconscientes daqueles que os conjuraram, e quando se pensa mais particularmente na série de tentativas feitas sucessivamente pelos teosofistas [a mais famosa sendo a promoção de Krishnamurti como Messias; os esforços contemporâneos parecem limitar-se ao “Maitreya” de Benjamin Creme], somos levados à conclusão de que não passaram de ensaios, experiências, por assim dizer, que serão renovadas sob várias formas até que se obtenha sucesso, e que, nesse meio-tempo, produzem invariavelmente um efeito algo inquietante.
Não que acreditemos que os teosofistas, mais do que os ocultistas e os espíritas, sejam fortes o bastante, por si sós, para levar com êxito a cabo uma empreitada dessa natureza. Mas não poderia haver, por detrás de todos esses movimentos, algo muito mais perigoso, de que seus líderes talvez nada saibam, sendo eles próprios, por sua vez, instrumentos inconscientes de um poder superior?
Citado em The Morning of the Magicians, Louis Pauwels e Jacques Bergier, Avon Books, 1960, pp. 219–220

[NOTA: É óbvio que a Sociedade Teosófica — ou, em termos contemporâneos, as “Sociedades” — não pode ser responsabilizada pelas ações ou declarações de cada um de seus membros, particularmente dado que carece de dogma oficial. Sem dúvida abrange muitos buscadores sinceros, e sua editora, Theosophical Publishing House, sob o selo Quest Books, publicou até alguns escritores tradicionalistas: Frithjof Schuon, Huston Smith — e o próprio autor. No entanto, aquilo que Guénon chamaria de “ação antitradicional” continua a emanar, ao menos oficiosamente, de muitos naquele meio, como veremos nos Capítulos Oito e Nove.]

René Guénon foi claramente uma figura central na crítica, no século XX, das religiões “Nova Era”, qualquer que seja o nome que assumam em determinado período. O que o torna a ele e a seus seguidores únicos é que baseiam essa crítica não em dogmatismo confessional, mas em metafísica universal. Que outro enfoque poderia demonstrar que o ocultismo e a doutrina Nova Era não são nem legitimamente metafísicos nem realmente esotéricos?

O Erro Espírita: Uma Sinopse

O que se segue é uma sinopse de The Spiritist Fallacy (L’Erreur Spirite), de Guénon, baseada numa tradução manuscrita do Dr. Rama Coomaraswamy. Ela é altamente esclarecedora, pois expõe muitas doutrinas “de ponta” da Nova Era como muitas vezes com mais de um século de idade, e fornece um valioso pano de fundo histórico para o movimento Nova Era atual.

Guénon define espiritismo não simplesmente como a crença de que seja possível comunicar-se com os mortos, mas como a crença de que tal comunicação possa ocorrer por meios materiais — pancadas de “espíritos”, telecinesia, materializações etc. Ele não nega nem o poder dos médiuns espíritas de produzir tais fenômenos, nem a possibilidade de uma comunicação “mental, intuitiva ou inspirada” com os falecidos — embora pouco faça para definir exatamente o que essa forma de comunicação poderia implicar. Mas repudia a ideia de que tal comunicação seja possível pelos métodos dos espíritas, concluindo, portanto, que os fenômenos espíritas representam algo inteiramente diverso.

Ele vê no espiritualismo uma espécie de materialismo ampliado. Descartes postulou uma cisão radical entre “corpo” e “espírito”, negando assim e suprimindo culturalmente a doutrina tradicional que, em sua forma mais simples, afirma que a forma humana é tripartida, composta de corpo, alma e Espírito. Os espiritualistas, teosofistas e ocultistas, numa tentativa equivocada de restaurar uma concepção mais abrangente e exata, postularam um “perispírito” (espiritualismo) ou “corpo astral” (Teosofia) como ponte entre corpo e espírito. Mas o viram, erroneamente, como uma espécie de corpo material sutil, capaz de agir sobre a matéria. Na realidade, porém, dado que corpo e espírito não são, como acreditava Descartes, completamente isolados um do outro, é desnecessário postular, como substituto da doutrina tradicional da alma, uma realidade quase material para fazer a ponte sobre um hiato inexistente entre ambos.

Uma dificuldade na concepção da alma como um corpo “sutil” é que isso faz parecer que a morte não passa de descartar o corpo material, após o que a “vida” do indivíduo continua sem mudança fundamental. (Segundo o sacerdote cristão ortodoxo Seraphim Rose, em seu livro The Soul After Death, doutrinas como essa removem o sentido da morte como confronto entre a alma humana e Deus, eliminando na prática toda ideia de juízo divino e destruindo um dos pontos fundamentais de orientação para a vida espiritual.) Além disso, se o “perispírito”, sendo quase material, pode agir diretamente sobre a matéria, por que a mediunidade é necessária para sua manifestação, como afirmam universalmente os espiritualistas? O espiritualismo ensina que um fluido ou energia sutil que emana do médium, chamada “força ódica”, “ectênica”, “força neurítica”, “ectoplasma” etc., é ingrediente necessário na manifestação do espírito. Por que, então, é necessário postular a existência de um perispírito ou corpo astral em primeiro lugar?

(A existência de um corpo sutil, na verdade, não é algo tão antitradicional quanto Guénon, em sua reação contra as doutrinas claramente antitradicionais dos espiritualistas, e contra Descartes, parece afirmar em The Spiritist Fallacy — um aparente deslize que ele mais que compensa em outras obras, especialmente Man and His Becoming according to the Vedanta. O próprio Vedanta fala de um corpo sutil, o sūkma śarīra, que, segundo os Brahma Sūtras, sobrevive até a Libertação final. Jesus, após sua ressurreição, apareceu em um corpo palpável, ainda que “glorificado”, e tanto Mullā adrā quanto Ibn al-Arabī, esoteristas muçulmanos, sustentam que a alma necessita de um corpo em todo estágio de existência. Um ser individual pode ser definido como uma relação polar entre sua fonte espiritual e sua manifestação formal, nenhuma das quais pode existir sozinha, porque são manifestações complementares de uma única Realidade. O polo espiritual tem precedência sobre o formal, uma vez que o Espírito representa, de fato, essa Realidade absoluta no modo de polaridade com sua própria manifestação; contudo, um polo nunca existe sem o outro. E à luz dessa doutrina, Guénon tem razão ao criticar os espiritualistas por conceberem a morte como nada além do desaparecimento do corpo material, deixando o corpo sutil exatamente como era antes, porque esse próprio desaparecimento exige uma “repolarização” entre o Espírito e sua manifestação em um nível inteiramente diferente, situando assim o ser individual em um novo plano ontológico. Mas, na medida em que ele se opõe à tendência espiritualista de conceber o corpo material como espécie de modelo para o corpo sutil, em vez de entender o corpo sutil como modelo do corpo material, Guénon está certíssimo.)

Guénon traça uma breve história do espiritualismo, que se originou em Hydesville, Nova York, devido a uma manifestação de “batidas de espírito” na casa de uma família alemã de sobrenome Fox (forma anglicizada de Voss), em 1847. O “espírito” produzia ruídos de pancadas, que estão entre os fenômenos relatados ao longo da história em relação a casas chamadas “mal-assombradas”. O “espírito” era interrogado com várias perguntas, e respondia corretamente por meio das pancadas. O que era significativo, segundo Guénon, não era o fenômeno em si, mas o conjunto único de conclusões tiradas a partir dele: especificamente, que a sociedade humana deveria ser promovida e aperfeiçoada pela instituição de uma comunicação ampla e contínua entre vivos e mortos. Surgiu um quaker de nome Isaac Post que — no verdadeiro espírito da inventividade ianque — concebeu um “telégrafo espiritual”, uma espécie de tábua ouija, para que o “espírito” pudesse se comunicar com mais facilidade. (Guénon observa as semelhanças entre a forma de culto quaker e as práticas de médiuns espíritas.) Descobriu-se então que o fenômeno se tornava mais intenso quando as irmãs Fox se encontravam no recinto, e esse foi, segundo Guénon, o momento exato em que o mundo moderno descobriu a mediunidade. O “espírito” afirmava ser o de um caixeiro-viajante que fora assassinado e enterrado no porão da casa da família Fox. Posteriormente o porão foi escavado e um esqueleto foi encontrado. O interesse por esses acontecimentos cresceu rapidamente até que se tornou o influente movimento internacional conhecido como Espiritualismo. A primeira convenção espiritualista nacional teve lugar em 1852, em Cleveland, Ohio, apenas cinco anos após as manifestações iniciais.

Os “espíritos” que enxameavam Hydesville afirmavam ser liderados por Benjamin Franklin, o arquétipo de todos os inventores ianques. Eles sustentavam ainda que as pesquisas modernas sobre eletricidade haviam preparado o caminho para a comunicação com eles, e que “Franklin” vinha sendo guiado em métodos para melhorar essa comunicação. O autor menciona também, em outro contexto, o caso de Thomas Edison, inventor ianque tornado capitão da indústria, que tentou seriamente construir um “rádio” para comunicação com os mortos!

Guénon pergunta por que um fenômeno que, desde a Antiguidade, se associava a casas assombradas teria, de repente, em meados do século XIX, gerado um movimento pseudo-religioso internacional. Embora admita que o clima da época tornara possível esse desenvolvimento, observa também como significativo o fato de que Madame Emma Hardinge-Britten, membro da sociedade secreta conhecida como Hermetic Brotherhood of Luxor, a qual Guénon investigara anteriormente, tenha se associado ao movimento espiritualista desde o início e escrito um livro intitulado History of Modern American Spiritualism (1870). A importância disso reside no fato de que a referida Irmandade sempre se opusera às teorias espiritualistas, e alegara ainda que os primeiros fenômenos espiritualistas haviam sido produzidos na realidade por indivíduos vivos atuando à distância — em outras palavras, por feitiçaria. Aparentemente, Annie Besant, da Sociedade Teosófica, em certa ocasião fez afirmação semelhante. Dada a natureza suspeita dessas fontes, Guénon não aceita necessariamente as suas alegações, mas admite a possibilidade de que possam estar certas. Em vista do fato de que a Hermetic Brotherhood of Luxor guardava afinidades com várias sociedades secretas anteriores na Alemanha, algumas delas maçônicas, que praticavam magia e “evocações” entre o fim do século XVIII e o início do XIX, ele especula que certos “adeptos” ligados à Irmandade ou a outros grupos possam ter produzido os fenômenos em Hydesville, talvez aproveitando “resíduos psíquicos” aderentes a uma casa onde ocorrera uma morte violenta — resíduos que, insiste, não são de modo algum o “espírito do morto”. O objetivo desses “adeptos”, segundo Guénon, poderia ter sido produzir determinados fenômenos psíquicos de grande projeção a fim de combater, na mente do público, a filosofia do materialismo, levando-o a crer na doutrina espiritualista, enquanto eles próprios sabiam mais. (Sou imediatamente lembrado dos vários embustes, alguns engenhosos o bastante para requerer alto nível de organização, que continuam a surgir em torno do fenômeno UFO.) Como hipótese mínima, ele considera provável que agentes de tais grupos tenham influenciado a população de Hydesville por meio de propaganda encoberta, tirando proveito, nesse cenário, de uma situação já existente. Mas combater o Materialismo com o Espiritualismo, esclarece Guénon, é simplesmente opor um erro a outro — verdade que se torna mais evidente a cada dia, à medida que uma fascinação por várias tecnologias arcanas e fenômenos psíquicos ou quase psíquicos, como telepatia e contatos com UFOs, continua a fundir-se na mente coletiva.

Em seguida Guénon nos apresenta Allan Kardec, o mais influente dos espiritualistas franceses, que produziu vários livros “canalizados” de “filosofia de espíritos”. Em seguida cita Daniel Dunglas Home, o mais fenomenal médium de materialização já estudado, tido como um dos mais confiáveis, que afirmava que Kardec era na realidade uma espécie de hipnotizador que se rodeava de médiuns impressionáveis aos quais tratava como sujeitos hipnóticos, com o resultado de que a filosofia por eles “recebida” era inteiramente composta das ideias preconcebidas de Kardec, transmitidas por sugestão. Guénon aceita essa avaliação, exceto por atribuir a sugestão não apenas a Kardec, mas à “mente de grupo” que ele partilhava com certos colegas.

O autor observa como o espiritualismo moderno se propagou na América sobretudo em jornais socialistas, e mostra como, na França, assumiu o caráter progressista, anticlerical e “cientificista” do iluminismo revolucionário dos séculos XVIII e XIX. (Também é interessante, de passagem, o fato de Robert Dale Owen [1801–1877], congressista norte-americano e filho do célebre socialista galês Robert Owen, ter sido um espiritualista entusiasta. Como conservador, Guénon estava naturalmente mais interessado nos vínculos do espiritualismo com a esquerda, mas é bem conhecido o fato de que o Partido Nacional-Socialista de Hitler, de extrema direita, bebeu em muitas influências semelhantes.)

Guénon mostra como os ensinamentos dos “espíritos” tendem a refletir as ideias do meio social em que surgem, uma vez que o poder de sugestão opera na mente coletiva assim como opera na mentalidade partilhada de grupos menores. Assim o espiritualismo francês fez da reencarnação um dogma, interpretando-a como forma de progresso espiritual e “evolução”, enquanto a reencarnação foi negada nas mensagens “espirituais” recebidas na sociedade mais conservadora da Inglaterra. Socialismo e espiritualismo tornaram-se profundamente entrelaçados na França, onde os “espíritos” tendiam a defender a ideologia da revolução de 1848.

Guénon, então, rebate os que afirmam que o espiritualismo é uma espécie de “bramanismo esotérico” — inexistente — ou um “fakirismo” ocidental. A palavra árabe faqīr, como o termo persa dervish — ambos às vezes usados como sinônimos de “sufi” — significa “pobre” ou “mendigo”. As pessoas chamadas de “faquires” pelos viajantes europeus são (sejam faquires ou não) na realidade magos. O autor deixa claro como a magia, embora seja uma “ciência experimental” válida, capaz de produzir fenômenos reais, é extremamente perigosa, motivo pelo qual é desencorajada pelas autoridades tradicionais em toda a Ásia, assim como o era na Antiguidade clássica. Magia e espiritualismo são radicalmente opostos, já que o mago, como o hipnotizador, é um agente ativo com objetivo definido, ao passo que o médium, como o sujeito hipnótico, está passivamente aberto a quaisquer influências. Nem a magia nem a mediunidade, contudo, podem ser explicadas por simples hipnotismo. Nas sociedades tradicionais, a mediunidade é vista como calamidade, sendo considerada um caso de possessão demoníaca; a ideia de elevar tal possessão ao posto de dom espiritual é inteiramente moderna e ocidental. Quanto à “evocação” deliberada de “espíritos”, ela sempre foi tida como crime grave, o crime de necromancia. As forças evocadas, porém, não são “almas dos mortos”, e sim resíduos psíquicos perigosos aderidos ao cadáver, o que explica por que magos negros gostam de frequentar cemitérios. Esses resíduos, que os hebreus chamavam ob, são idênticos aos manes romanos.

A afirmação de Guénon de que as sociedades tradicionais tinham uma atitude negativa em relação à magia precisa, porém, ser qualificada. Isso é certamente verdadeiro para as sociedades fundadas sobre o Judaísmo, o Cristianismo, o Islã, o Hinduísmo vedântico (ainda que não para a sociedade hindu como um todo, que abarca muitas formas de religião popular em que a magia, para o bem ou para o mal, desempenha um papel) e a maioria das formas de Budismo. A magia, especialmente a feitiçaria e a bruxaria, também era em grande parte malvista no paganismo pré-cristão da Europa e do Oriente Próximo, embora os cultos oficiais dessas sociedades pudessem conter elementos que hoje chamaríamos de mágicos. Segundo The Golden Bough, de Sir James Frazer, até mesmo os druidas celtas queimavam bruxas. Quando consideramos, porém, a grande área cultural da Ásia setentrional/central que deu origem ao xamanismo, a posição de Guénon precisa ser modificada. E, embora Confúcio tenha dito certa vez: “acredito nos seres sobrenaturais, mas os mantenho à distância”, o taoísmo e o xintoísmo incorporaram claramente elementos xamânicos, por meio dos quais as forças benéficas do cosmos eram invocadas para o bem geral do povo, ao passo que, no caso único do budismo vajrayāna do Tibete e do budismo Tiantai da China — ou de algumas de suas formas — forças semelhantes foram colocadas a serviço da Iluminação Total Perfeita. E embora as tradições da Ásia oriental pareçam ser, entre as “religiões mundiais”, as únicas a manter uma ligação ininterrupta com o xamanismo (a menos que consideremos a ioga indiana e certas práticas do sufismo centro-asiático como em certa medida xamânicas), a função de invocar forças espirituais para a proteção da sociedade e a cura de doenças sempre foi parte integral de qualquer sociedade baseada na religião — em outras palavras, de qualquer sociedade tradicional. A questão é: de que nível ontológico se extrai tal poder? A sociedade em questão é destinatária direta, por meio de revelação, de um raio do Absoluto? Ela invoca forças angélicas para cura, fertilidade e proteção contra forças mais demoníacas? Em que ponto, tendo perdido o contato direto com os mundos angélicos, ela começa a apaziguar essas forças demoníacas para mantê-las satisfeitas? E quando tal apaziguamento do mal se transforma em serviço direto a ele? Questões como essas, especialmente quando lidamos com sociedades “primitivas”, precisam ser respondidas caso a caso.

Neste ponto é necessário dizer algo sobre o xamanismo. O interesse pelo xamanismo fora das sociedades tribais tradicionais não era tão difundido em 1921 quanto é hoje, embora Guénon o tenha tratado brevemente em The Reign of Quantity, onde admite que provavelmente representa uma tradição espiritual válida, embora em estado de séria degeneração. Diante disso, pode a avaliação negativa de Guénon sobre a magia ser aplicada ao xamanismo também? A resposta depende de muitos fatores. Em seu melhor, o xamanismo é uma espécie de “teurgia hiperbórea” mediante a qual o xamã, através de sofrimento ascético voluntário, se coloca conscientemente sob a guia de seu daimon ou genius ou “anjo da guarda”, o arquétipo específico ou “Nome de Deus” com o qual tem afinidade intrínseca “pré-eterna”. Mas os loas ou mystères do vudu são, em sua origem, precisamente tais Nomes de Deus — e o vudu (como o obeah e a santeria), embora apresente sinais de derivar de um antigo “esoterismo” provavelmente sincrético, em que elementos africanos tropicais, egípcios, hebraicos, e até cristãos e helenísticos se entrecruzaram, é claramente uma tradição degenerada e contaminada, envolvida com, ainda que não estritamente idêntica a, magia negra demoníaca. Além disso, até a alta “teurgia” dos neoplatônicos resvalou na direção da magia à medida que a tradição que lhes deu origem se enfraquecia. Tudo o que se pode dizer sobre o xamanismo é que, embora parte dele represente uma verdadeira espiritualidade tradicional, revelada por Deus aos siberianos e nativos americanos tanto quanto a Torá aos hebreus ou o Alcorão aos árabes, grande parte do que hoje passa por xamanismo em círculos Nova Era e neopagãos, e até entre alguns nativos americanos, é degenerado, boa parte é espúria e alguma parte é má.

Guénon distingue entre magia e teurgia, situadas em níveis vastamente diferentes, sendo a teurgia a intervenção de poderes celestes. O poder numinoso da Arca da Aliança e do Templo de Jerusalém, de ícones sagrados e lugares santos, dos túmulos de santos, e do “ensombramento” de várias ordens sufis pela barakah (graça) de seus shaykhs fundadores, que podem ter morrido há séculos, são exemplos de teurgia, não de magia. Essa distinção de níveis, porém, é precisamente o que a mente pós-moderna já não consegue perceber. Magos contemporâneos rotineiramente retratarão a distinção entre o “mágico” e o “milagroso” apenas em termos de poder político e social. “Se alguém na Igreja realiza maravilhas”, queixam-se, “chama-se milagre; se fazemos a mesma coisa, carimba-se como magia.” Na realidade, as duas coisas não são idênticas, mas nem os magos, nem em alguns casos os próprios eclesiásticos, já conseguem notar a diferença.

Guénon rastreia a relação entre espiritualismo e ocultismo. Ele define como “ocultismo” o movimento derivado de Eliphas Levi (nome real Alphonse-Louis Constant, m. 1875) e posteriormente popularizado por Papus (Gérard Encausse), que rompeu com a Sociedade Teosófica em 1890. (Madame Blavatsky usava “ocultismo” como sinônimo de sua “Teosofia”, mas Guénon distingue os dois movimentos, embora sejam obviamente primos próximos.) O ocultismo é o resultado de uma tentativa equivocada de redescobrir, ou reinventar, o esoterismo iniciático. Tende a ser mais centralizado, mais intelectual ou ao menos pseudo-intelectual de forma elaborada, e mais elitista do que o espiritualismo, que resiste à centralização e gravita em direção ao pluralismo, ao sentimentalismo e à democracia. O ocultismo está também impregnado do espírito do “cientificismo”, que o levou a buscar a produção de fenômenos experimentalmente verificáveis, desqualificando-o totalmente como até mesmo uma aproximação do esoterismo tradicional. Os ocultistas franceses geralmente se opunham ao espiritualismo; contudo, seu próprio ecletismo às vezes levou a tentativas de aproximação. E tanto o ocultismo quanto a Teosofia, sem admiti-lo, tomaram de empréstimo várias doutrinas ao espiritualismo, incluindo a da reencarnação. Nessa polarização entre ocultismo e espiritualismo podemos ver as raízes da divergência atual entre o semi- ou pseudo-tradicional “ocultismo literário”, como o de Jocelyn Godwin e outros, e a Nova Era propriamente dita — representada, por exemplo, por Shirley MacLaine — com seu populismo solto do tipo “você também pode” e sua deliberada vocação para o grande público. O ocultismo literário parece, no momento, ganhar terreno sobre a Nova Era, ao menos do meu ponto de vista, já que dá a ilusão de substância quando comparado à fluidez etérea das ideias novaeristas. Se Deepak Chopra representa a comercialização de ideias pseudo-hindus para um público Nova Era (The Seven Spiritual Laws of Success), e James Redfield (The Celestine Prophecy) uma ideologia especificamente Nova Era, entre muitas, William Quinn (The Only Tradition) é um exemplo de ocultismo literário tentando obter legitimidade acadêmica — e, até certo ponto, conseguindo (ver os Capítulos Quatro e Oito).

Guénon admite que muitos “fenômenos psíquicos”, incluindo os produzidos por médiuns, são reais. Mas esse fato, por si só, em nada valida a explicação espiritualista de tais fenômenos, que podem ter muitas causas diferentes. A mediunidade, mesmo quando os fenômenos produzidos são genuínos, permanece uma forma de doença mental. Algumas “obsessões espirituais” são simplesmente casos de personalidade múltipla. Além disso, até médiuns verdadeiros podem recorrer à fraude, especialmente os “profissionais”. Dado que seus poderes não estão sob seu próprio controle, precisam de tempos em tempos suplementá-los por outros meios, já que “o espetáculo não pode parar”. Os médiuns às vezes também são mentirosos patológicos.

A tentativa de cientistas de investigar empiricamente os fenômenos psíquicos é viciada desde o início, uma vez que muitos investigadores ignoram as dinâmicas psicológicas que operam em personalidades instáveis, e praticamente nenhum deles compreende os princípios metafísicos, especificamente a distinção ontológica entre o plano psíquico e o espiritual. Um resultado disso é que médiuns altamente psíquicos e sugestionáveis podem canalizar “espíritos” que, para deleite do pesquisador, confirmam estrondosamente todas as suas teorias preferidas — teorias que, naturalmente, o médium está apenas extraindo diretamente da mente do próprio investigador. Competência em um ramo da ciência física não garante de modo algum a objetividade de um pesquisador diante de coisas como transtornos de personalidade e fenômenos psíquicos (ou, acrescentaria eu, ilusionismo de palco).

Os espiritualistas, como os ocultistas, tendem a uma ideologia humanista e anticatólica, algo que continua verdadeiro até hoje, ao menos quanto ao anticatolicismo. Tanto Jane Roberts, do material Seth, quanto Helen Schucman, canalizadora de A Course in Miracles, eram ex-católicas ressentidas com a Igreja; o mesmo provavelmente pode ser dito de Carlos Castaneda. E The Celestine Prophecy, de James Redfield, é um ataque direto ao catolicismo tradicional. Guénon cita uma passagem do espiritualista francês Charles Fauvety, em que este declara que a moralidade será um dia um ramo da ciência, não da religião, que uma fé mística na Ciência com “c” maiúsculo derrubará a autoridade de todos os sacerdócios. (Sou lembrado aqui do fato, interessante, de que foi o congressista e espiritualista Robert Dale Owen quem apresentou pela primeira vez o projeto de lei que deu origem ao Smithsonian Institution, o templo americano do cientificismo, onde os devotos do deus americano da Técnica podem venerar diariamente o “Spirit” of St. Louis e outros ídolos.)

Guénon caracteriza filosofias como o espiritualismo do psicólogo William James, que ele abraçou no fim da vida (embora o pai de James tenha sido seguidor de Swedenborg), bem como as tendências espiritualistas do filósofo Henri Bergson, como “satanismo inconsciente”. James prometeu fazer tudo que estivesse em seu poder para se comunicar com os vivos após a morte; o autor não se surpreende, portanto, que uma multidão de médiuns americanos tenha diligentemente recebido “mensagens” dele — a mais recente delas sendo Jane Roberts, que publicou, em 1978, um livro intitulado The Afterdeath Journal of an American Philosopher: The World View of William James.

O que se segue é o comentário do próprio autor sobre a validade do “material canalizado”:

Como o vejo, tal material pode ser distribuído em cinco categorias: (1) bobagens banais; (2) fantasias psicóticas; (3) prognósticos ou percepções clarividentes que se revelam exatas; (4) filosofias falsas; e (5) filosofias contendo elementos de verdade. As categorias 1, 2 e 4 podem ser explicadas em termos de doença mental e/ou obsessão demoníaca, embora nem sempre seja fácil distinguir ambas, sobretudo porque podem estar presentes ao mesmo tempo em uma mesma alma. As categorias 3 e 5 são mais difíceis de caracterizar. Uma visão psíquica exata de uma condição física, passada, presente ou futura (categoria 3), pode ser simplesmente caso de um talento natural, ainda que relativamente raro; pode ser sinal de intervenção angélica, sobretudo quando resulta em cura, proteção contra perigo ou esclarecimento de um dilema moral; pode também, em qualquer caso particular, ser exemplo de ilusão demoníaca. Quanto à categoria 5, filosofias “canalizadas” contendo elementos de verdade podem representar tentativa, por parte de poderes celestes, de ressuscitar certos aspectos da sabedoria tradicional que as pessoas de uma dada região e período histórico perderam, mas não há garantia de que seja esse o pode ser o caso em qualquer instância concreta. As doutrinas de Emmanuel Swedenborg, por exemplo — cientista físico de muitos talentos que se tornou visionário espiritual — representam talvez a categoria mais elevada de “filosofia de espíritos”. Seu Divine Love and Wisdom contém elementos que lembram o aristotelismo esotérico desenvolvido dentro da tradição islâmica. Sua doutrina dos anjos é em alguns aspectos semelhante à doutrina cristã ortodoxa de Dionísio Areopagita, e sua imagem do Homem Universal a doutrinas análogas que podem ser encontradas nos Padres da Igreja, na Cabala, e nos sufis e teósofos do Islã. Podemos especular que, dado que tais doutrinas não estavam disponíveis para um luterano sueco do século XVIII, foi necessário reintroduzi-las por meio de inspiração direta. Por outro lado, isso talvez não seja exato. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge and the Sacred, aponta que o luteranismo abraçou uma tradição teosófica, alquímica e mística, representada por figuras como Sebastian Franck, Paracelso, V. Weigel, Jacob Boehme, G. Arnold, G. Gichtel, C. F. Oetinger e outros. E os cientistas físicos antes e durante a época de Swedenborg eram bem mais propensos a ter preservado interesse por “ciências esotéricas”; até Isaac Newton escreveu sobre alquimia. Assim, permanece em aberto se Swedenborg derivou suas doutrinas inteiramente de inspiração direta ou em parte por transmissão humana (ele certamente poderia ter obtido seu aristotelismo esotérico da tradição alquímica, por exemplo). Em todo caso, suas doutrinas sobre a estrutura do mundo espiritual parecem todas transpostas a um nível mais literalista do que o encontrado em muitas fontes tradicionais, qualidade que, como Guénon assinala, é comum a muitos ensinamentos “de espírito”. Ele parece inseguro se esse mundo é um domínio de símbolos vivos e corporificados de realidades invisíveis, como na doutrina ibn-arabiana do ‘ālam al-mithāl, o “plano imaginal”, ou simplesmente uma espécie de natureza material superior. E entremeadas às suas doutrinas inegavelmente elevadas há outras de caráter mais fantástico ou mesmo psicótico, como quando, em Earths in the Universe, diz que os marcianos têm rostos metade negros e metade trigueiros, vivem de frutas e se vestem com fibras feitas de casca de árvore, ou que a atmosfera da Lua é tão diferente da terrestre que os habitantes falam a partir do estômago em vez dos pulmões, com um efeito semelhante a arrotar.

No caso de Swedenborg — e o mesmo talvez se possa dizer até de ensinamentos “canalizados” menos confiáveis, como o material Seth e A Course in Miracles — é difícil determinar se a mistura de doutrina sofisticada e material duvidoso pode simplesmente ser atribuída a uma comunicação imperfeita, ou se representa, em alguns casos pelo menos, uma tentativa satânica de perverter doutrinas teológicas, filosóficas e esotéricas profundas ao associá-las com lixo. O que podemos afirmar com maior segurança é que apenas aqueles que não têm acesso a fontes confiáveis de alimento serão forçados a tomar suas refeições misturadas a lixo. Que uma grande quantidade de doutrina profunda pode ser encontrada nos escritos de Swedenborg é inegável. Mas, agora que as escrituras e os clássicos das religiões do mundo e os escritos dos maiores sábios da história estão prontamente disponíveis, já não precisamos tomá-lo, e a outros como ele, como autoridades unicamente inspiradas, já que podemos julgá-los à luz de seus “originais” ortodoxos. Como deixa claro Guénon, já não há qualquer razão para depender de fontes suspeitas, não importa quais grãos de verdade possam conter.

Guénon apresenta em grande detalhe várias ideias espiritualistas fantásticas sobre a “sobrevivência” da personalidade humana, permitindo que sua própria absurdidade fale por si mesma. Ele trata longamente da teoria da reencarnação — lembrando-nos, por exemplo, que as formas mais antigas de espiritualismo moderno, a inglesa e a americana, a negavam, e que espiritualistas notáveis como Daniel Dunglas Home se opunham a ela veementemente — e rastreia a doutrina até o espiritualismo francês, especialmente o de Allan Kardec, de onde se espalhou para a Teosofia e o ocultismo. Ele distingue claramente reencarnação, transmigração e metempsicose, com base no que nega que o hinduísmo jamais tenha ensinado as doutrinas reencarnacionistas posteriormente cozinhadas pelos espiritualistas. (Para um tratamento mais completo das ideias de Guénon sobre a impossibilidade da reencarnação e da viagem no tempo, ver o Capítulo Sete.)

Ele mostra como o espiritualismo, enraizado no Zeitgeist do século XIX, adotou a teoria evolutiva, reinterpretou-a em termos “espirituais” (como fizeram os mórmons) e a identificou com a reencarnação. Ainda se pode ver essa influência no material Seth de Jane Roberts, onde a entidade “Seth” é às vezes definida como uma “porção futura” de Jane, assim como o “Seth II”, mais sublime, distante e etéreo, é uma “porção futura” de Seth — “futura”, aqui, tomando o lugar de “ontologicamente superior”. Porém, quando o material Seth fez sua estreia, em 1963, a confiança incontestada no progresso própria do século XIX e da primeira metade do XX já começara a vacilar, em parte por causa das armas nucleares, em parte também por um “einsteinismo social” baseado em uma versão popularizada da teoria da relatividade. Essa erosão do mito do progresso, bem como várias teorias de espaço-tempo multidimensional, é provavelmente o que levou Seth, ainda em muitos aspectos um “progressivista macrocósmico”, a falar da evolução biológica como conceito muito estreito e simplista, e das vidas reencarnacionais como fundamentalmente simultâneas em vez de sucessivas.

Guénon trata então da relação entre espiritualismo e satanismo, caracterizando como satanismo inconsciente qualquer doutrina subversiva à metafísica tradicional. Ele relata uma série de histórias sugestivas de influência demoníaca em círculos espiritualistas, ou ao menos de emanações tóxicas provenientes do subconsciente que, segundo ele, não são menos demoníacas em seus efeitos. Elas incluem escândalos sexuais de cunho sádico, bem como histórias de relações sexuais com íncubos, como as que frequentemente aparecem no folclore contemporâneo sobre UFOs. Detalha as tentativas repetidas de espiritualistas franceses de perverter e deturpar a doutrina católica, mencionando um panfleto difamatório sobre a Eucaristia que afirmava que “Jesus não estava inteiramente orgulhoso do papel clerical que desempenhou”, em termos altamente reminiscentes do material Seth. Menciona grupos como a Mental Science e a Christian Science que (como A Course in Miracles) negam a realidade do mal, fortalecendo assim a mão das forças demoníacas. Prossegue falando do espiritualismo como movimento quase político com grandes recursos de propaganda, caracterizando-o como grave perigo para a segurança pública.

Ele admite a validade, em certos casos, da clarividência e da cura psíquica, ainda que tais fenômenos permaneçam altamente ambíguos. Mas esses poderes psíquicos de modo algum provam que espiritualistas possam manter comércio contínuo com as almas dos mortos, mesmo se é assim que os próprios praticantes explicam suas habilidades. Os fenômenos, diz Guénon, jamais podem provar a verdade ou falsidade de uma doutrina. Por fim, fala dos perigos do espiritualismo para os próprios praticantes, relatando muitos casos de colapso mental, emocional e físico, epilepsia etc.

The Spiritist Fallacy é também valioso pela luz histórica que lança sobre a crença em “alienígenas” e UFOs. Muitos espiritualistas, segundo Guénon, acreditam que espíritos desencarnados ocupam o espaço. Ele cita um certo Ernest Bosc, que os chama de “nossos amigos no Espaço”, em resposta a um artigo publicado em 1913 na revista espiritualista Fraternist. Pode ser significativo que, cinquenta e cinco anos depois, os hippies chamassem extraterrestres de “irmãos do espaço”, e que o movimento Nova Era desde os anos 70 praticamente tenha apagado a distinção entre alienígenas espaciais e espíritos desencarnados.

Guénon menciona, como exemplo das pretensões infladas dos espiritualistas americanos, um grupo que se chamava “Ancient Order of Melchizedek”. Fala também de uma “Esoteric Fraternity” em Boston, liderada pelo cego Hiram Butler. Curiosamente, essa mesma Ordem de Melquisedeque, bem como Hiram Butler — que também, ao que parece, fundou um grupo do mesmo nome na Califórnia, em 1889, numa fazenda comunitária na encosta da Sierra — reaparecem em Messengers of Deception (1979), do pesquisador de UFOs Jacques Vallée. Vallée investigou vários grupos, tanto na França quanto nos Estados Unidos, que se denominavam Ordem de Melquisedeque, e descreveu a figura de Melquisedeque, o mestre de Abraão no livro do Gênesis, que não tinha pai nem mãe, como “um símbolo e um ponto de reunião para contatados de discos voadores” (ver Capítulo Sete). Assim, parece possível que a crença generalizada em UFOs, se não a proliferação do próprio fenômeno, esteja entre os frutos sociais e psicológicos do movimento espiritualista do final do século XIX e início do XX, que é, de tantas maneiras, o ancestral direto do movimento Nova Era de hoje.

Em The Spiritist Fallacy, Guénon diz o seguinte:

O que vemos… no espiritualismo e em outros movimentos semelhantes são as influências que incontestavelmente vêm do que alguns chamaram de “Reino do Anticristo”. Essa designação pode ser tomada simbolicamente, mas isso nada muda quanto à realidade e não torna essas influências menos malignas. Decerto aqueles que participam de tais movimentos, e mesmo os que acreditam dirigi-los, podem nada saber disso. É isso que torna tudo isso tão perigoso, pois muitos deles certamente fugiriam de horror se reconhecessem que são servos das “potências das trevas”. Mas sua cegueira é muitas vezes incurável, e sua boa-fé até contribui para que atraiam outras vítimas. Não nos permite isso dizer que o talento supremo do diabo, qualquer que seja a forma como o concebamos, é nos levar a negar sua existência?

O que é a Nova Era?

As falsificações pseudotradicionais, às quais pertencem todas as desnaturações das ideias de tradição… tomam sua forma mais perigosa na “pseudoiniciação”, primeiro porque nela se traduzem em ação efetiva em vez de permanecer na forma de concepções mais ou menos vagas, e em segundo lugar porque atacam a tradição pelo interior, naquilo que é seu próprio espírito, a saber, o domínio esotérico e iniciático.
RENÉ GUÉNON, The Reign of Quantity and the Signs of the Times

O erro central da Nova Era é a crença de que a Verdade espiritual possa ser nova. Certamente a informação bruta pode ser nova. O conhecimento do mundo material muda necessariamente o tempo todo, mas a Verdade em si não pode mudar. Ela nada tem a ver com o mundo material, regido por acontecimentos, nem com o mundo psíquico, regido por crenças. Ela é a Rocha dos Séculos, o Sempre Assim.

Se você acredita que o mundo como um todo possa evoluir ou progredir espiritualmente, precisa acreditar que a Verdade possa ser nova. Toda a metafísica tradicional, porém, nega isso. O Sempre Assim é revelado num único relâmpago; esta é a Palavra, o Logos, o Princípio eterno. Quaisquer reflexos desse Princípio que tenham entrado em matéria, energia, espaço e tempo — e, ao fazê-lo, os criado — já começaram a morrer. “Toda matéria está sujeita à entropia”, diz a Segunda Lei da Termodinâmica. “Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda. “Tudo perece”, diz o Alcorão Sagrado, “exceto Sua Face”.

As doutrinas da Nova Era são, em certo nível, uma tentativa de conectar uma metafísica tradicional mal compreendida com ideias progressistas e evolucionistas que lhes são totalmente incompatíveis. Por esse motivo, não podem funcionar como um Caminho espiritual completo. Toda a sinceridade, auto-sacrifício, sensibilidade psíquica e ambição espiritual do mundo não podem transformar a falsidade, ou a meia-verdade, no Sempre Assim.

Os proponentes das ideias Nova Era pensaram estar descobrindo, ou reinventando, as Verdades dos Séculos. Estavam apenas distorcendo-as. A Verdade sempre foi conhecida pelo gênero humano, no núcleo consciente da raça se não na mente de cada indivíduo, porque a Forma Humana é o espelho dessa Verdade neste mundo. E desde que a unidade primeira da humanidade envelheceu, os canais mais profundos dessa Verdade têm sido as grandes religiões reveladas por Deus. No nível dos primeiros princípios, que cada religião guarda em sua linguagem única e providencial, nada precisa ser inventado, nem reconstruído, nem aperfeiçoado. E nada pode sê-lo. Certamente as verdades dos séculos devem ser expressas de modo diferente em tempos e lugares diferentes, mas tais mudanças de expressão não passam de traduções. Não são, e não podem ser, revisões.

I. Uma breve história da “revolução espiritual” e do movimento Nova Era

Aqueles de nós que se lembram da “revolução espiritual” dos anos 60 e do movimento Nova Era que tomou o seu lugar, em algum momento nos anos 70, depois que aquela revolução morreu, terão ou testemunhado passivamente ou participado ativamente de um surto de idealismo. Psicodélicos, meditação, religiões orientais e conhecimento psíquico ou oculto haviam transformado tão profundamente aqueles que foram atraídos por eles — para o bem e para o mal, como veio a provar — que tudo o que precisávamos fazer, pensávamos, era difundi-los mais. Assim como o início e meados do século XX pediram educação e cultura para as massas, nós pedíamos iluminação em massa. O que parecia bom para nós no mundo interior de nossas almas, acreditávamos, tinha de ser bom para a sociedade como um todo. O legado do antigo reavivalismo americano de repente encontrou as drogas psicodélicas, religiões exóticas, ideias do século XX sobre evolução e progresso, e o choque da guerra do Vietnã para produzir uma atitude de “tudo ou nada”: “dê-me a Iluminação ou dê-me a Morte; Apocalipse Now”.

À medida que a mania dos anos 60 se atenuou na introversão dos anos 70, o espírito do reavivalismo populista americano foi substituído pelo igualmente americano espírito do charlatanismo religioso, psicológico e psíquico. A estranha mistura sessentista de misticismo tradicional e religião oriental com magia, ocultismo, mediunidade, poderes psíquicos, política de esquerda e os primeiros germes de um cientificismo mágico sofreu uma virada; o espírito empreendedor da pequena burguesia tinha entrado na arena das espiritualidades “alternativas”. E com essa mudança de ênfase, aquilo que passou a ser chamado de Nova Era substituiu (em parte) o ethos “hippie”.

Inúmeras novas abordagens à espiritualidade, à psicoterapia e ao desenvolvimento psíquico tomaram lugar ao lado dos sobreviventes de um mundo mais antigo de espiritualismo e Teosofia, Rosacrucianismo e ocultismo literário, que assim ganharam uma sobrevida.

A Nova Era ainda prestava homenagem ao misticismo, à autotranscendência e à ideia oriental de iluminação ou libertação. No entanto, o verdadeiro centro havia se deslocado para a tentativa de satisfazer os velhos e comprovados desejos de segurança, prazer e poder por meios sutis ou mágicos — desenvolvimento inevitável, uma vez que o ethos dos anos 60 só conseguiu popularizar o misticismo em nível de massa ao associá-lo, por meio das drogas psicodélicas, à autoindulgência desenfreada. Seja como neopaganismo, como impulso de desenvolver poderes psíquicos segundo o modelo Nova Era, como atração pelo xamanismo ou como atração infinitamente mais sombria pelas práticas satânicas, a magia havia efetivamente substituído a iluminação como paradigma dominante do mundo das espiritualidades alternativas no início da década de 1980.

Infelizmente, tanto na mente do público quanto, em certa medida, na própria realidade, as práticas psíquicas e mágicas, por um lado, e o misticismo e a metafísica tradicionais, por outro, foram jogadas no mesmo saco. Chegou a hora de separá-las. Até agora a Nova Era tem sido criticada principalmente por materialistas — céticos desmascaradores — e por cristãos conservadores, que dão a impressão (para o desinformado) de agir simplesmente por interesse próprio ameaçado, como um candidato que joga lama no adversário. A crítica presente está entre as raríssimas que se baseiam não em exclusivismo religioso militante, nem na defesa modernista da “realidade comum”, mas na religião comparada e na metafísica tradicional.

A “Nova Era” não poderia existir como movimento sem antecipar uma transformação espiritual e cultural de massa num futuro (perpetuamente) imediato; tal antecipação, porém, já existe há bastante tempo. Então, quando começou a Nova Era, enquanto movimento? O gurdjieffiano A.R. Orage editou antes da Primeira Guerra Mundial uma revista muito influente chamada The New Age; Swedenborg falou de uma nova era nascente, e ideias semelhantes remontam ao menos a Joaquim de Fiore, na cristandade medieval, e incluem grupos como os Illuminati, que floresceram à época da Revolução Francesa, bem como os maçons e rosacrucianos. Há boas razões, entretanto, para rastrear suas raízes principais até o Renascimento, quando o renascimento dos estudos clássicos gerou uma massa de especulação “esotérica”. (Certa vez ouvi Peter Caddy [de Findhorn] afirmar, numa palestra, que a Nova Era começou com o filósofo inglês do fim do Renascimento, Francis Bacon.) Embora parte dessa especulação fosse tradicionalmente válida e a maior parte ao menos nominalmente cristã, ela não pôde ser inteiramente contida dentro da ortodoxia católica. Isso foi sem dúvida, em parte, uma compensação para a solidificação da mente cristã sob o escolasticismo, e para a traição completa da metafísica cristã pelo nominalismo escolástico. Os nominalistas acreditavam que todas as distinções entre as coisas são apenas linguísticas, e negavam que algo acima da experiência sensorial pudesse ser conhecido pela mente, fazendo do nominalismo o verdadeiro primeiro ancestral tanto do naturalismo modernista quanto do relativismo pós-moderno.

Os Estados Unidos sempre tiveram um setor Nova Era. Muitos dos pais fundadores eram maçons, razão pela qual temos uma pirâmide encimada por um olho radiante no verso das cédulas de dólar. Os transcendentalistas da Nova Inglaterra e seus afins foram, em muitos aspectos, os ancestrais diretos tanto das comunas hippies dos anos 60 quanto da Nova Era de hoje. E os Shakers, produto puramente americano embora fundados por uma inglesa, começaram como espécie de ordem monástica leiga dentro do protestantismo, tornaram-se pioneiros em “tecnologia apropriada”, passaram a canalizar entidades espirituais e acabaram advogando um Governo Mundial único na época de Teddy Roosevelt.

Um estudo completo sequer das raízes americanas do movimento Nova Era ocuparia um livro inteiro; por mim, só posso falar com alguma autoridade do período que vai da “revolução espiritual” dos anos 60 até cerca de 1988. E ainda que eu estivesse, em muitos sentidos, no olho do furacão aqui no condado de Marin, Califórnia, o leitor deve entender que qualquer número de outras perspectivas sobre esse período, e outras listas de leitura, podem ser tão precisas quanto, se não mais.

Uma boa visão histórica do paradigma psíquico em que a Nova Era se baseia em larga medida é The Occult, de Colin Wilson (Vintage Books, 1973). Escrito em estilo jornalístico ágil, cobre uma enorme extensão de terreno. Embora inclua material de todos os períodos históricos, sua história básica abrange o ocultismo do século XVIII até Blavatsky e Gurdjieff (e ele certamente não se furta a relatar escândalos associados a essas duas figuras, já que rendem “boa matéria”), mas também traz algumas de suas linhas de investigação até as décadas de 1950 e 60, tocando, entre outras coisas, o fenômeno dos UFOs. E é valioso por mostrar muitas das conexões entre o ocultismo e tanto o xamanismo primitivo quanto a ciência moderna.

Outro livro importante foi The Morning of the Magicians (Avon Books, 1968; título inglês anterior The Dawn of Magic), de Louis Pauwels e Jacques Bergier, que trata longamente do ocultismo entre os nazistas (que os autores, é claro, deploram, mas também parecem invejar) e anuncia a vinda da futura Tecno-Magocracia mundial. Bergier é um guénoniano renegado que se tornou adepto do futurismo tecnocrático. Outro livro importante sobre a interface entre tecnologia e poderes psíquicos foi Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain, de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, publicado nos anos 70; os “visionários à distância” (remote viewers) que vieram a público em 1997, aparentemente participantes de um programa patrocinado pelo governo americano para treinar videntes para espionagem, foram sem dúvida parte da “corrida armamentista psíquica” anunciada nesse livro.

Uma das principais diferenças entre o ocultismo pós-guerra e o pré-guerra é o fenômeno UFO, prevalente desde o fim dos anos 40. O mito UFO fez parte do ethos da Era Psicodélica — muitos hippies falavam da “Nave-Mãe” que se supunha estar pairando sobre a Terra — mas de modo algum era dominante. A experiência psicodélica foi o paradigma principal de, digamos, 1965 até talvez 1972 ou 74; os principais defensores da espiritualidade psicodélica foram Ralph Metzner, Timothy Leary, Richard Alpert (Ram Dass), R. E. L. Masters & Jean Houston (The Varieties of the Psychedelic Experience) e John Lilly (The Center of the Cyclone, que apresenta uma abordagem psicodélica a “guias espirituais”). Leary foi o homem de relações públicas do movimento, e um verdadeiro excêntrico; dois livros representativos são The Psychedelic Experience, em que aplica o paradigma do Livro Tibetano dos Mortos à experiência com LSD, e The Politics of Ecstasy.

A figura mais genuína entre todos foi — e é — Ram Dass. Ele pode ser chamado o mais recente, senão o último, na linhagem dos perenialistas semi- ou não-tradicionais, que passa por Aldous Huxley e Alan Watts. Introduziu grande quantidade de material tradicional das religiões do mundo no universo hippie; sem ele, talvez eu jamais tivesse encontrado Schuon e a Escola Tradicionalista. Seus livros incluem Be Here Now, Grist for the Mill, The Only Dance There Is e, em época posterior, livros sobre serviço social como karma-yoga, como How Can I Help? Seus livros “de consciência” misturam metafísica tradicional, experiência psíquica e psicodélica e hinduísmo mais ou menos tradicional (hinduísmo para o Ocidente, isto é, que ignora o requisito tradicional de nascimento em uma das varnas, as castas). Foi em grande parte através dele que a doutrina tradicional de que a busca de poderes psíquicos bloqueia o desenvolvimento espiritual penetrou no mundo hippie e se tornou, ao menos por breve tempo, um clichê. Ele também tem a disposição de admitir que os gurus indianos que vieram ao Ocidente em sua maioria não representavam o que havia de melhor no hinduísmo. E, se há algo que separa Ram Dass da Nova Era como tal, é o fato de que ele não é evolucionista, espiritual ou de qualquer outro tipo.

À medida que o ethos psicodélico começou a declinar em meados dos anos 70, o paradigma Nova Era assumiu, baseado na canalização de “entidades”, no desenvolvimento de poderes psíquicos segundo o modelo do “potencial humano” (emanando em parte do Esalen Institute e incluindo o movimento da Psicologia Transpessoal, com figuras como Stanislas Grof, que também tem um histórico em pesquisa psicodélica), na crença em UFOs e na ideia de que a evolução da Terra está prestes a dar um “salto quântico”, conduzindo-nos através de uma mudança de paradigma que devemos ajudar por meio de um alinhamento coletivo de consciências.

A obra de Ram Dass e Timothy Leary estende-se até a primeira era Nova Era pós-anos 60. Ram Dass envolveu-se com canalização ao patrocinar os livros Emmanuel [de Pat Rodegast], e Leary, acompanhando os tempos, começou a captar o paradigma tecnocrático/UFO. A “canalização” está no centro da Nova Era, mas, antes de tratá-la, preciso mencionar outra figura seminal no movimento psicodélico, Carlos Castaneda, que quase sozinho reconectou a experiência psicodélica com o paradigma do xamanismo — ao menos no plano literário; inúmeros hippies se espalhavam pelo mundo em busca de novos psicodélicos, procurando homens-medicina no sudoeste americano e nas selvas da África e da América Latina, e trazendo à nossa atenção agentes como sementes de glória-da-manhã, o cacto San Pedro, cogumelos mágicos, yagé ou ayahuasca (todos da América Latina, sendo que a descoberta do yagé pela contracultura norte-americana havia sido pioneiramente realizada pelos escritores da Geração Beat William Burroughs e Allen Ginsberg em suas viagens à Amazônia), e ibogaina (da África). O peiote, por meio da Native American Church e de The Doors of Perception, de Aldous Huxley, provavelmente era conhecido um pouco antes, assim como o óxido nitroso via The Varieties of the Religious Experience, de William James; o poeta da Geração Beat Michael McClure, entre outros, escreveu sobre suas experiências com peiote. Mas foi Castaneda quem reuniu grande parte desse interesse e o conectou ao xamanismo e especialmente à feitiçaria. Seus livros são relatos pseudo-documentais bem escritos de suas interações com o feiticeiro yaqui Dom Juan Matus, seus colegas e aprendizes, no México. Entre eles estão The Teachings of Don Juan; A Separate Reality; Journey to Ixtlan; Tales of Power; The Second Ring of Power; The Eagle’s Gift; The Fire from Within; The Power of Silence; The Art of Dreaming; Magical Passes; e The Wheel of Time.

A outra grande influência nativo-americana sobre o movimento hippie foi o belo e profundamente espiritual Black Elk Speaks, de John G. Neihardt, mas a influência de Castaneda foi maior e não apenas desviou o interesse hippie pelos nativo-americanos da piedade religiosa em direção à magia, como também criou um “mercado”, entre brancos, para todo tipo de homem- ou mulher-medicina indígena americana, do genuíno ao sinistro passando pelo completo charlatão — produzindo, por exemplo, derivados caucasianos superficiais como Lynn Andrews.

Uma das divergências mais nítidas no mundo das espiritualidades “alternativas” é aquela entre a New Age e o Neopaganismo. Os neopagãos que derivaram da era hippie foram conduzidos pela experiência psicodélica e pelo espírito da época na direção da Wicca gardneriana e de outras formas de Wicca, ou do romantismo céltico, ou de várias formas de culto à Deusa (especialmente aquele promovido por Robert Graves), ou ainda em direção a influências — ao menos literárias — emanadas da Ordem da Aurora Dourada (Order of the Golden Dawn). Eu mesmo fui profundamente tocado pelos poderosos ecos do Renascimento Celta que se enredaram como um fio mágico pela revolução espiritual dos anos 60. Eles prometiam um “reencantamento do mundo” diante de nosso deserto tecnológico, uma redescoberta coletiva do caráter sagrado da natureza. E pareciam ter o poder de lançar um brilho mágico sobre o reino do amor heterossexual, lembrando-nos de sua profundidade trans-pessoal e nobreza. Infelizmente, porém, o paradigma mágico sobre o qual esse renascimento neopagão se baseava tinha afinidades secretas com aquela outra forma de magia, a tecnologia humana; esta foi uma das mais profundas e dolorosas ironias da luta desesperada da minha geração para recuperar o sagrado. Não por acaso “Fantasia (neopagã) e Ficção Científica” constitui um único gênero literário.

Numa extremidade do espectro, encontramos neopagãos na companhia de ocultistas literários bem-educados, como muitos dos que publicavam na revista Gnosis, por exemplo, mas eles também incluem, em suas fileiras, consumidores de drogas psicodélicas que “brincam” com magia, bem como praticantes “sérios” da arte, na outra extremidade. O nome do mago negro Aleister Crowley é bem conhecido nesse meio, mesmo quando não é respeitado.

Neopaganismo, xamanismo pop e culto à Deusa tendem a formar uma única subcultura, e todos os três geralmente compartilham um interesse de fundo em mitologia e mitopoesia, muitas vezes mediado pelas teorias psicológicas de Carl Jung. O aspecto mais “mainstream” desse ethos é, ou era, representado por Joseph Campbell; outro afluente foi a comunidade experimental de Findhorn, na Escócia, apresentada nos livros de Peter e Eileen Caddy (The Magic of Findhorn) e outros, onde a interação humana com espíritos elementais aparentemente produziu manifestações aparentemente impossíveis de fertilidade vegetal. Para minha sensibilidade, as experiências de Findhorn transmitem uma sensação feérica semelhante à que cerca outros “magos da horticultura”, como George Washington Carver e Luther Burbank (cuja obra ainda emana uma aura perceptível em sua casa em Santa Rosa), senão Rudolf Steiner. Na década de 1970, o ocultismo da horticultura, que inclui tanto magia quanto tecnologia “de fronteira”, foi catalogado num livro intitulado The Secret Life of Plants (A Vida Secreta das Plantas), de Peter Tompkins. A magia horticultural como um todo deve muito ao movimento da Naturphilosophie alemã, no qual Goethe — influência seminal tanto sobre Jung quanto sobre Steiner — foi figura central.

Por meio de figuras como o ex-padre católico Matthew Fox e sua colega, a bruxa Starhawk, o Neopaganismo (e isso vale em dobro para o junguianismo) fez vastas incursões no cristianismo norte-americano, particularmente por meio de seminários liberais como o Union Theological Seminary e o GTU. Em contraste com os neopagãos, os praticantes da New Age tendem a ser mais fascinados por tecnologia avançada, mais voltados ao “canalização” (channeling) e, em geral, menos literários, embora muitas vezes mais bem-sucedidos profissionalmente ou mais “yuppies” que os neopagãos. Ainda assim, existe um grande cruzamento entre os dois grupos. José Argüelles, por exemplo, que criou, através de seu livro The Mayan Factor, um dos primeiros eventos religiosos populares internacionais, o Harmonic Convergence, em 16–17 de agosto de 1987 (apresentado como data-chave para a mudança de paradigma da Nova Era, supostamente baseada no calendário maia), representa (ou representou) uma ponte entre essas duas tendências.

Quem quer que acompanhe a história da canalização encontrará boa parte da história da New Age desde os anos 60. O espiritualismo e a canalização New Age concentram-se na recepção de novas filosofias, que muitas vezes não passam de versões populares de ciência mal compreendida, particularmente da física einsteiniana e pós-einsteiniana e da genética moderna, na aquisição de poderes psíquicos, incluindo cura, e na tentativa de rasgar o véu do futuro. Allan Kardec e Stainton Moses, por exemplo — como Swedenborg antes deles — canalizaram filosofias inteiras do Mundo Espiritual no início do século XX, e Madame Blavatsky certamente foi profundamente influenciada pelo lado “filosófico”, assim como pelo lado mágico, do espiritualismo. O espiritualismo anterior talvez se concentrasse mais do que a canalização atual na tentativa de provar que a personalidade humana sobrevive à morte e em estabelecer contato com entes queridos falecidos em favor dos vivos, em grande parte devido ao efeito traumático da Primeira Guerra Mundial; mas tais preocupações certamente não desapareceram.

A figura-ponte mais importante entre essas duas ondas de espiritualismo provavelmente é o médico-médium em transe, clarividente histórico e prognosticador Edgar Cayce (1877–1945), cuja organização, a Association for Research and Enlightenment, ainda hoje é bastante ativa em Virginia Beach, Virgínia. Seu histórico como curador é assombroso, mas seu outro trabalho — incluindo uma série de tentativas fracassadas de encontrar petróleo ou tesouros enterrados por meios psíquicos — não esteve à altura. Seu ministério limitava-se à clarividência médica, dom que recebeu através de uma visão aos treze anos de idade, até cruzar o caminho do teosofista Arthur Lammers; depois disso, suas “leituras” começaram a tratar de assuntos ocultos como astrologia, Atlântida, reencarnação etc., aparentemente sob a influência das perguntas que Lammers lhe fazia em estado de transe. Como cristão devoto, Cayce ficou perturbado ao perceber que vinha canalizando ideias que pareciam contradizer a Bíblia, mas acabou por aceitá-las. (Lembra-se aqui a crença de Guénon de que magos e ocultistas costumam influenciar deliberadamente médiuns por sugestão, telepática ou não, para fazer parecer que suas próprias doutrinas também são ensinadas pelos “espíritos”.) Uma biografia autorizada de Cayce, There Is a River, de Thomas Sugrue, foi publicada em 1973.

Os dois conjuntos de material canalizado mais influentes por trás de grande parte da mitologia New Age são o material “Seth”, canalizado por Jane Roberts (The Seth Material; Seth Speaks; The Nature of Personal Reality e outros), e A Course in Miracles (Um Curso em Milagres), em que o orador é supostamente Jesus. Outro livro central é Opening to Channel, de Roman e Packer, escrito sobre a suposição de que todos podem — e devem — canalizar entidades psíquicas. Desde então, o número de canalizadores e de entidades canalizadas tornou-se tão vasto que quase impossível acompanhá-lo. Há a entidade Ramtha, canalizada por J. Z. Knight; e, desde os anos 70, diversas novas entidades surgiram, como Michael ou Hilarion, que podem ser canalizadas por mais de um médium. A origem desse desenvolvimento pode ser o desejo de certos escritores ou líderes de workshops de pegar carona no sucesso de outros mais conhecidos, mas o resultado foi algo como “fã-clubes psíquicos” em torno deste ou daquele espírito — possivelmente seitas religiosas em estado embrionário.

Um dos desenvolvimentos mais recentes e perturbadores na canalização New Age é a “canalização” de alienígenas, ou melhor, a quase completa confusão, na mente do público, entre entidades psíquicas e astronautas alienígenas tecnologicamente avançados. “Alienígenas” podem atravessar paredes, aparecer e desaparecer à vontade, estimular experiências fora do corpo e até manter relações sexuais conosco em sonhos — e ainda assim são vistos como seres de outros planetas que possuem tecnologias suficientemente avançadas para lhes permitir fazer essas coisas, embora essa identificação rígida de alienígenas com astronautas comece a mudar. É aqui que os escritos do padre Seraphim Rose sobre OVNIs são de importância central, como também a previsão de Guénon, em O Reino da Quantidade, de que o mundo, sob a influência do materialismo, chegaria a tal nadir de solidificação que a “grande muralha” entre os planos material e sutil começaria a rachar, permitindo a entrada de forças “infra-psíquicas”, o que ajuda a explicar por que tantos crentes devem interpretar manifestações obviamente psíquicas (com alguns efeitos físicos reais) em termos estritamente materiais. Os grupos contemporâneos seguidores de Barbara Hand Clow, que canalizam os Pleidianos (alienígenas das Plêiades), podem ser tomados como representativos desse desenvolvimento.

Talvez o anúncio inicial mais importante das esperanças e objetivos do movimento New Age tenha sido The Aquarian Conspiracy, de Marilyn Ferguson. Um ataque influente à New Age, a partir de um ponto de vista cristão evangélico, é The Hidden Dangers of the Rainbow, de Constance Cumby. Os livros de David Spangler (The Call; Everyday Miracles; Re-Imagining the World) e The Global Brain, de Peter Russell, também foram extremamente influentes.

Outros cinco fios no tecido da New Age merecem menção. O primeiro é o trabalho com sonhos (dream-work), que constitui uma ponte da psicologia junguiana e transpessoal para o mundo do oculto, em grande parte por meio do ensino de várias técnicas de controle dos sonhos e da equiparação entre experiências fora do corpo (o nome central aqui é Robert Monroe, que escreveu Journeys Out of Body e outros livros, e fundou diversas escolas para ensinar o homem comum a projetar-se astralmente) e o sonho lúcido — a experiência de despertar para o fato de que se está sonhando enquanto ainda se sonha. O sonho lúcido é elemento central na feitiçaria xamânica de Castaneda. O estudo científico desse fenômeno está associado ao Dr. Stanley Krippner, do Saybrook Institute, e ao Dr. Stephen LeBerge, em Stanford, como relatado em seu livro Lucid Dreaming; ambos conduziram pesquisas bem coordenadas e financiadas sobre sonho lúcido e controle dos sonhos. O trabalho com sonhos também é fortemente influenciado, senão em grande parte inspirado, pelo material canalizado de Seth.

O segundo fio é o interesse contemporâneo em anjos, que produziu vários livros. Ele pode representar, até certo ponto, uma forma de canalização de espíritos mais aceitável para alguns cristãos, por ser menos ameaçadora que uma conexão com “entidades psíquicas”; mas também é sinal de que o senso de transcendência sobre o qual se baseia o monoteísmo está desvanecendo do psiquismo ocidental, como ocorreu há muito tempo com grande parte das religiões africanas, deixando uma multiplicidade de “entidades” sutis para preencher o crescente vazio, as quais começam a parecer mais plausíveis, para muitas pessoas, do que um Pai-Deus distante. As interações contemporâneas com anjos incluem tanto intervenções não solicitadas quanto tentativas humanas deliberadas de comunicação.

Para mim, essa atração por anjos transmite aquela espécie de sensação leve e aérea que associo à Unity Church, e parece ligada, de forma vaga, às aparições contemporâneas da Virgem Maria, que vão desde as que provavelmente são verídicas, passando por várias manifestações parciais e suspeitas ou “canalizações” dentro de um quadro católico, até canalizações 100% New Age da “Mother Mary”, nome dado à Virgem por Paul McCartney, dos Beatles! As manifestações católicas incluem as de Scottsdale, Arizona, e Emmitsburg, Pensilvânia, ambas mediadas por uma mulher que (se entendi bem a história) foi “inspirada” por um padre ao retorno deste de Medjugorje, e então começou a receber mensagens da Virgem, primeiro no Arizona e depois na Pensilvânia. Muitas paróquias católicas aparentemente têm “clubes de Medjugorje”, iniciados por pessoas que viajaram para lá, incluindo uma em San Bruno, ao sul de San Francisco, onde crianças supostamente foram interpeladas por Maria; isso levou a uma moda altamente duvidosa, embora ainda possivelmente válida, de mensagens marianas.

O terceiro fio é o estudo das experiências de quase-morte (near-death experiences) como forma de tentar compreender a vida após a morte; os nomes principais nesse campo são Elizabeth Kübler-Ross (On Death and Dying e outros) e Raymond A. Moody (Life after Life). O livro de Moody e suas continuações, por ele próprio e por outros, atuaram no sentido de “padronizar” a concepção popular da experiência pós-morte até o ponto de se tornar um clichê midiático: o túnel escuro com uma luz ao final, o encontro com parentes falecidos etc. O padre Seraphim Rose, em The Soul After Death, faz uma boa crítica dessa visão despreocupada e “não-julgadora” da vida após a morte.

O quarto fio é, como mencionei acima, o treinamento gerencial. Um amigo meu — ou melhor, ex-amigo, já que sua vida se envolveu tanto com a escuridão espiritual que já não posso relacionar-me com ele — é consultor de treinamento gerencial de classe mundial, tendo trabalhado com grandes corporações multinacionais, tanto nos EUA quanto na orla do Pacífico. Por meio dele, fiquei sabendo que, como costumo dizer, “todo treinador gerencial precisa fundar sua própria religião antes de poder vender seus serviços”.

As verdades esotéricas dos séculos, bem como diversas práticas psíquicas, estão sendo digeridas e empacotadas como “paradigmas de treinamento” para a alta e média gerência das maiores corporações do mundo, muitas vezes em conexão com artes marciais chinesas e japonesas — ou ao menos isso acontecia quando invejávamos a economia japonesa e queríamos imitar o estilo gerencial japonês! Alguns anos atrás houve até um escândalo na Pacific Telephone quando consultores de treinamento gerencial que empregavam técnicas de Gurdjieff foram um pouco longe demais e pareciam estar recrutando adeptos (o que provavelmente faziam). Uma manifestação mais recente dessa tendência foi a tempestade em copo d’água em torno do trabalho de Jean Houston com o presidente e a primeira-dama Clinton, quando ela os conduzia em “visualizações guiadas” para que imaginassem estar conversando com figuras como Lincoln e FDR (Jean Houston, lembre-se, foi uma das pesquisadoras originais do LSD). A mídia estava pronta para estourar a manchete “Sessões espíritas na Casa Branca!” — mas então, sem dúvida, alguns começaram a lembrar que tinham feito algo muito semelhante no seminário de treinamento da semana anterior, e perceberam que tais “técnicas intuitivas de solução de problemas”, como as de Houston, agora são comuns em grandes corporações. Elas são as sucessoras das técnicas de Dale Carnegie e Norman Vincent Peale. Eis o quão mainstream a New Age se tornou.

O quinto fio é a mídia mainstream, entre a qual mencionarei apenas os muitos programas de TV baseados em realidade não ordinária, como The X-Files, e as “linhas telefônicas psíquicas”, nas quais, por alguns dólares por minuto, você pode falar com um “verdadeiro médium” que resolverá todos os seus problemas e lhe dirá como conduzir a vida. Surgiram reclamações de que essas linhas são viciantes, algo parecido com jogo compulsivo, com o perigo adicional de possessão demoníaca. Uma delas foi anunciada na TV por Nichelle Nichols, atriz que atuou na série e nos filmes originais de Star Trek, cujo irmão, membro da seita ufológica Heaven’s Gate, morreu no suicídio coletivo do grupo em março de 1997.

A cultura New Age incorpora certos elementos tradicionais ou semi-tradicionais. Muitos lamas tibetanos, por exemplo (incluindo o Dalai Lama), divulgam seus ensinamentos em círculos New Age e são ali respeitados, embora eu tenha ouvido dizer que outros lamas deploram esse desenvolvimento. Outros budistas tradicionais, como Thich Nhat Hanh, e aqueles ao menos com formação tradicional, como Jack Kornfield (embora o budismo que ele prega muitas vezes se pareça mais com psicoterapia de grupo do que com busca da Iluminação Total Perfeita), também se sentem em casa nesse mundo. Até recentemente, o sufismo era representado no universo New Age, pelo menos na Califórnia, sobretudo pelos seguidores de Samuel Lewis (“Sufi Sam”) e de Pir Vilayat Khan, da ordem Chishti, e por Jellaluddin Loras (filho de Suleiman Dede), dos mevlevis, que ensina a “gira” mevlevi a americanos. Samuel Lewis, que cresceu em Fairfax, Califórnia, perto de minha cidade natal, San Rafael, e faleceu em 1971, embora não tradicional e eclético, era um verdadeiro iniciado sufi, criador das “danças sufis” que, por muito tempo, passaram por sufismo na mente da maioria na Califórnia.

Tanto Pir Vilayat Khan quanto Samuel Lewis, e também Jellaluddin Loras, representam uma tentativa de tornar o sufismo “universal” separando-o, em maior ou menor grau, do Islã. Embora ordens mais tradicionais, como os naqshbandis e os helveti-jerrahis, estejam ativas há décadas, foram os chishtis e mevlevis “hippie-universalistas” que representaram a principal expressão pública de “sufismo” na região da baía de São Francisco até alguns anos atrás, quando Ali Kianfar, um iraniano “uwaysi” ou “discípulo de Khidr”, e sua esposa Nahid Angha começaram a se destacar, organizando grandes conferências de sufismo no estilo de workshops New Age e manifestando um “ecumenismo sufi” ao incluir psicólogos, alguns membros de outras tradições religiosas etc. Mesmo alguns dos velhos sufis hippies, entretanto, vêm se tornando lentamente mais islâmicos, talvez em reação aos excessos da New Age; o mesmo distanciamento gradual desse mundo parece ocorrer com certos mestres hindus.

O hinduísmo semi-tradicional (se é que tal coisa existe) foi representado na contracultura dos anos 60 e 70, e em parte ainda o é, por Ram Dass, Swami Satchidananda, Sri Chinmoy, Swami Muktananda, Da Free John, pelos seguidores de Paramhansa Yogananda e outros, incluindo um fluxo contínuo de “Santas Mães” radicadas na Índia; o sikhismo, por Yogi Bhajan, Kirpal Singh, seu filho Sant Darshan Singh, e atualmente por seu discípulo Sant Thakar Singh; e um cristianismo mais ou menos tradicional pelo interesse persistente em Thomas Merton, cujo lugar cultural foi, em certo sentido, herdado pelo monge beneditino Irmão David Steindl-Rast. Contudo, como essas figuras e seus sucessores são justapostos, na mente dos adeptos da New Age, à canalização, ao xamanismo, ao neopaganismo e ao culto ecofeminista da Deusa, quaisquer doutrinas tradicionais que ensinem tendem a se dissolver numa mentalidade anti-tradicional que as nega em todos os pontos, sem que seus estudantes — e talvez nem eles próprios — percebam. Jack Kornfield, por exemplo, fez um estudo da altíssima porcentagem de mestres hindus e budistas que se envolveram em escapadas sexuais com alunos depois de chegarem ao Ocidente; mas isso o levou a concluir não que seus problemas se baseiam numa traição ou diluição de suas respectivas tradições — como o afrouxamento dos votos monásticos budistas tradicionais, por exemplo —, e sim que as próprias tradições são deficientes em discernimento psicológico e, portanto, precisam ser suplementadas por métodos psicológicos ocidentais.

Essa mistura de doutrinas tradicionais com as ciências sociais ocidentais, e com elementos que poderíamos chamar de “New Age”, é bem representada pelo Naropa Institute, em Boulder, Colorado, fundado por Chögyam Trungpa, um tulku (reencarnação reconhecida de um mestre anterior) e detentor da linhagem Kargyüpa, que remonta a Naropa, Marpa e Milarepa — um exemplar plenamente autorizado da tradição e brilhante escritor sobre budismo tibetano, escolhido como mestre pela elite intelectual de duas gerações da contracultura norte-americana (Beat e Hippie), quando a festa desenfreada dos anos 60 descia à profunda depressão espiritual dos anos 70; que ocidentalizou e modernizou a tradição, rompendo radicalmente com a prática da maioria de seus correligionários; que afrouxou os votos monásticos tradicionais; e que morreu, perseguido por escândalos, de alcoolismo agudo em 1987.

Aqui, felizmente, termina minha experiência com o mundo das “espiritualidades alternativas”. Só quero acrescentar que o comentarista de rádio de alcance nacional Hank Hanegraaff, do evangélico Christian Research Institute, abriu meus olhos para o quão profundamente as ideias New Age e as práticas psíquicas já penetraram o cristianismo protestante, particularmente por meio do movimento carismático.

Sem metafísica tradicional, a teologia declina. Sem teologia, religião e espiritualidade passam a ser julgadas apenas por seu poder de produzir experiência. Quando a experiência é o único critério de espiritualidade, a intensidade torna-se sua única medida. Quando apenas a intensidade passa a ser o objetivo, amor e verdade são excluídos — e a escuridão ocupa o lugar vazio.

II. Os perigos do ocultismo

O que é “o oculto”?

A criação de Deus é hierárquica, e a divisão mais simples dessa hierarquia é em três níveis: material, psíquico e espiritual. Cada nível é mais sutil e mais vivo que o nível abaixo de si, e contém tudo o que está abaixo dele, embora em forma mais elevada.

O plano psíquico é o “ambiente” natural da psique humana, assim como a terra e o universo material são o ambiente do corpo humano. Ele não é puramente mau, como acreditam alguns cristãos, mas certamente é perigoso, pois, se o acessamos quer acidentalmente, quer por iniciativa própria, perdemos a proteção do plano material antes de necessariamente termos adquirido a proteção do plano espiritual, e ficamos, portanto, extremamente vulneráveis não apenas à dispersão de nossa energia psíquica e vital, mas à obsessão ou possessão pelos poderes do mal.

Não obstante, o plano psíquico não é exclusivamente demoníaco; caso contrário, não poderíamos receber orientação divina em sonhos, nem milagres físicos poderiam ocorrer, já que toda influência vinda do plano espiritual deve atravessar o plano psíquico antes de chegar à realidade material. Mas, justamente por isso, é muito difícil discernir se uma manifestação psíquica ou um fenômeno físico anômalo se origina no plano psíquico ou no plano espiritual. Não obstante, há uma diferença profunda de nível entre um ato de magia (quer com finalidade de cura, quer de dano) que emana do plano psíquico e um milagre que se origina no plano espiritual. Práticas psíquicas, mágicas ou xamânicas são “tecnologias”, instâncias de intervenção voluntária por parte de seres humanos ou entidades psíquicas. Milagres são manifestações do Espírito, da verdade eterna e do amor de Deus, nos níveis psíquico e material. Eles realizam muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, sem esforço, por meio do “desvelamento” de uma pequena parte da Verdade e do Amor infinitos de Deus.

O plano psíquico é um mundo múltiplo composto de muitos “pontos de vista” subjetivos. O plano espiritual é a irradiação da Realidade Divina objetiva; eles não são a mesma coisa, razão pela qual podemos encontrar pessoas extremamente psíquicas que não são espirituais de modo algum. No nível material, parecemos ser produto de nosso ambiente material, por meio da bioquímica, das influências culturais, da história e da evolução. No nível psíquico, nosso ambiente parece ser produto de nosso estado de consciência, já que, à medida que “sintonizamos” realidades diferentes, o ambiente muda. No nível espiritual, sabemos que somos absolutamente dependentes, criados por, e também de certo modo símbolos, da Realidade Divina de Deus. Somente na medida em que estamos abertos ao Espírito podemos saber quem realmente somos e o que é eternamente verdadeiro; somente pela realização do nível espiritual nos tornamos quem realmente somos. Nossa humanidade foi desenhada por Deus para essa realização. Se falhamos em atingi-la (dizem os sufis), então ainda não somos, ou somos apenas virtualmente, seres humanos.

O conhecimento psíquico é apenas mais um tipo de conhecimento; não há nada de necessariamente demoníaco nele, nem de necessariamente espiritual. Ainda assim, um pouco de conhecimento é algo perigoso, e o conhecimento psíquico é sem dúvida muito “pouco” quando comparado à sabedoria espiritual.

Os poderes psíquicos podem chegar até nós de cinco maneiras diferentes: (1) pelo nascimento; (2) por acidente, doença ou outro trauma; (3) como dom inesperado; (4) pela busca direta; e (5) como subproduto do desenvolvimento espiritual. As duas primeiras, ao menos inicialmente, são moralmente neutras. Se alguém nasce com capacidades psíquicas ou as adquire depois de um choque traumático ou lesão, é imprudente e injusto presumir que tal indivíduo se encontra possuído por demônios, assim como é injustificado supor que sua sensibilidade psíquica seja sinal de sabedoria espiritual. Por outro lado, se alguém dotado de capacidades psíquicas permanece ignorante das realidades espirituais, mas fundamenta sua visão de mundo apenas em informações psíquicas, essa pessoa está iludida e, portanto, potencialmente — mas não necessariamente — aberta à influência de demônios enganadores.

No caso de um “dom” de poderes psíquicos, sua irrupção não solicitada a partir de alguma fonte invisível, é nosso dever questionar a natureza dessa fonte, consultando alguém ligado a uma espiritualidade tradicional que seja conhecedor desses assuntos — supondo que possamos encontrar tal pessoa — e, em todo caso, pela oração. É necessário, em outras palavras, descobrir se esse dom representa uma tarefa que Deus nos impôs ou uma maldição sedutora que os poderes das trevas lançaram sobre nós.

Se alguém busca ativamente e obtém poderes psíquicos, a situação é mais séria, embora este seja um princípio difícil de compreender para muitas pessoas. Afinal, os poderes psíquicos não seriam simplesmente parte de nosso “potencial humano”? E não seria natural explorar e desenvolver nossos talentos dados por Deus? Aprendemos a andar, a falar, a dirigir, a fazer amor, a ganhar a vida, a nadar, a jogar basquete, a cantar, a escrever, a adquirir certo grau de insight psicológico sobre nós mesmos e sobre os outros, até a compreender filosofia e metafísica sem necessariamente nos tornarmos possuídos por demônios. Por que as capacidades psíquicas deveriam ser diferentes?

Existe, no entanto, um limite além do qual o desenvolvimento voluntarioso de nosso potencial humano passa a invadir um terreno onde nosso direito de fazer o que quisermos com nossos talentos já não é garantido. Transgredimos esse mesmo limite todos os dias, de uma forma ou de outra, por meio de nosso “progresso” tecnológico. O que há de errado com a tecnologia? Simplesmente o fato de que, se a desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos a terra e a forma humana. O que há de errado com os poderes psíquicos? Simplesmente o fato de que, se os desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos nossas almas.

Ocultismo é a prática de entrar em contato com o plano psíquico por iniciativa própria, ou em resposta a um convite vindo desse plano apenas. Nosso objetivo pode ser “acessar” o Espírito por meio da psique, mas mais frequentemente será apenas a tentativa de ampliar a área de nosso próprio ego, de perseguir, em mundos mais sutis, os objetivos básicos do ego em matéria de segurança, prazer e poder. Isto parece ser — e até certo ponto realmente é — uma simples extensão de nossa autocompreensão psicológica, uma espécie de exploração adolescente de nosso potencial psíquico. Mas, a menos que percebamos que é o Espírito de Deus que está realmente nos convocando a essa exploração, e que nosso verdadeiro objetivo deve ser entrar em relação consciente com o Espírito, em conhecimento e amor, e submeter-nos à Sua orientação, nossa exploração do plano psíquico rapidamente se tornará adoração de nosso próprio ego e atrairá aqueles poderes do mal cujo objetivo é nos separar eternamente de nosso Criador. É por isso que buscar poderes psíquicos com a finalidade de aumentar nossa segurança, prazer e poder, ou mesmo de “tomar o céu de assalto” — de “alcançar” Deus pela força de nossa própria vontade — é um caminho profundamente destrutivo.

Se poderes psíquicos aparecem como resultado de nossa submissão à Vontade de Deus, então eles são expressão dessa Vontade em nossas vidas; consequentemente, não atribuiremos sua operação a nós mesmos, mas ao nosso Criador. Mesmo assim, podem ser um “teste” enviado por Deus, para ver se amamos mais os Seus dons do que a Ele próprio.

Desde os anos 60, como apontei antes, o paradigma dominante no mundo da espiritualidade “alternativa” deslocou-se do misticismo para a magia. O motivo mágico sempre esteve presente; ainda assim, a crença de que a busca por poderes psíquicos pode interferir no desenvolvimento espiritual fazia parte da sabedoria recebida na época. Mas hoje em dia, excetuando-se os círculos religiosos conservadores e os Tradicionalistas, é algo raramente ouvido. Com técnicos esportivos ensinando técnicas psíquicas e mágicas a seus times, e consultores de treinamento gerencial transmitindo-as a executivos corporativos, a ideia de usar poderes psíquicos de um tipo ou de outro para expandir o “potencial humano” tornou-se mainstream, fato refletido no conteúdo de uma alta porcentagem dos programas de TV contemporâneos, em que poderes psíquicos e eventos mágicos se tornam elementos corriqueiros mesmo em enredos baseados ostensivamente na “realidade ordinária e cotidiana”, para não falar de programas psíquico-ficcional-científicos como The X-Files.

Não podemos simplesmente dizer que qualquer pessoa envolvida com o plano psíquico está destruindo gravemente sua psique ou está destinada à condenação. Alguns médiuns naturais, ou mesmo altamente treinados, praticam conscientemente sua arte a serviço da humanidade e para maior glória de Deus. Entretanto, toda a tendência do interesse contemporâneo por realidades psíquicas é profundamente sinistra, pois, quanto mais cresce o paradigma de “expandir seu potencial humano na busca de segurança, prazer e poder”, mais ele tende a suplantar o paradigma de “seguir a Vontade de Deus, mesmo que você tenha que sacrificar segurança, prazer e poder para fazê-lo”. Assim, a magia substitui a religião, e a visão mágica de mundo é tão abismalmente inferior às sublimes concepções de Realidade Divina e de destino humano preservadas pelas grandes religiões mundiais que simplesmente não há comparação.

Além disso, num mundo de magia, aqueles que não possuem algum tipo de pretensão a poder psíquico começam a sentir-se excluídos e vulneráveis. Lembro-me da história contada por um antropólogo que perguntou a um xamã nativo-americano por que ele se interessara pelo xamanismo. A resposta foi: “porque eu tinha medo dos xamãs”. Se a maioria das pessoas em seu ambiente carrega armas ou pertence a gangues, você se sentirá tentado a fazer o mesmo apenas para se proteger. Com a magia é a mesma coisa.

Mais uma vez, isso não significa negar a existência de médiuns orientados ao serviço e “magos brancos”, dispostos a sofrer pessoalmente para servir a Deus e à comunidade. Mas, a menos que pratiquem suas artes dentro da segurança de uma tradição espiritual viável, com longa experiência de seus usos e perigos, estarão inevitavelmente expostos àquelas forças que fazem tudo o que podem para provar que “o caminho do inferno é pavimentado com boas intenções”.

Isso nos traz novamente à questão do xamanismo, uma forma religiosa arcaica ainda praticada por centenas de milhões de pessoas na África, na Ásia, nas ilhas do Pacífico, nas Américas e em outros lugares, em que religião e magia parecem formar um todo único. Qualquer tradição capaz de produzir homens realmente santos, como o lakota Black Elk, não pode ser simplesmente descartada como paganismo ou feitiçaria; contudo, as práticas que caem sob o termo geral “xamanismo” podem se estender desde a mais elevada teurgia mística até a mais venenosa bruxaria e o puro charlatanismo.

René Guénon via o xamanismo como detentor de “uma cosmologia altamente desenvolvida… que poderia sugerir concordâncias com outras tradições sob muitos aspectos”, incluindo “ritos comparáveis a alguns que pertencem a tradições da mais alta ordem”. Por outro lado, a ênfase xamânica em “ciências tradicionais inferiores, como magia e adivinhação” significa que “é preciso suspeitar de uma degenerescência muito real, que às vezes pode chegar a uma verdadeira desviação, como facilmente pode acontecer a tais ciências quando se tornam excessivamente desenvolvidas” (The Reign of Quantity and the Signs of the Times, pp. 217–218). Michael F. Steltenkamp, em Black Elk, Holy Man of the Oglalla Sioux (University of Oklahoma Press, 1993), repete algumas das críticas do próprio Black Elk ao xamanismo, feitas depois de sua conversão ao catolicismo. Ele não rejeitou inteiramente o xamanismo tradicional, permitindo que um de seus amigos homens-medicina conduzisse um ritual de cura para ele, com algum sucesso, quando sofria de paralisia na velhice, mas exigiu que objetos rituais católicos, como santinhos, fossem substituídos pelos fetiches oglala. E reconheceu claramente, na humildade cristã, uma virtude superior à arrogância de muitos xamãs.

Além disso, há um abismo entre a função de um xamã em um ambiente tribal — onde ele ou ela representa uma grande parte da “tecnologia de sobrevivência” da tribo, incluindo a capacidade de encontrar e atrair caça, prover chuva para a agricultura, curar doenças, fazer psicoterapia, conduzir investigações criminais e realizar inteligência militar — e o papel desses mesmos poderes na sociedade atual, onde há mais espaço do que nunca para degeneração e autoengrandecimento. (Como evidência de que povos mais “primitivos” veem o xamanismo mais ou menos como nós vemos a tecnologia, Jean Cocteau repete uma história contada por um viajante no Haiti, onde árvores são aparentemente usadas às vezes como suporte para a telepatia. Quando uma mulher quer que o marido distante traga algo da cidade, por exemplo, ela fala com uma árvore que, de algum modo, retransmite a mensagem. Quando perguntaram a uma mulher por que seu povo falava com árvores, ela respondeu: “Porque somos pobres. Se fôssemos ricos, teríamos telefone.”)

A ampla difusão de técnicas xamânicas separadas de seu contexto tradicional, como as que podem ser aprendidas em um seminário de fim de semana, é claramente destrutiva enquanto tendência geral, não importando o quão “úteis” essas práticas possam ser numa situação particular. Quando se pode entrar em qualquer livraria generalista, mesmo no cinturão bíblico, e encontrar livros que incluem, em seu amontoado de “tecnologias” psíquicas, receitas de como lançar feitiços e maldições, fica bem claro que as coisas saíram de controle. Se lamentamos a fácil acessibilidade de armas de fogo e de informações sobre como fabricar bombas, inclusive nucleares, por que não adotamos a mesma atitude com relação à magia negra? Talvez porque temamos, com razão, a erosão de nossas salvaguardas constitucionais à liberdade religiosa, assim como os opositores do controle de armas temem a destruição de seu direito constitucional de “manter e portar armas”. Mas pode ser também devido ao fato de nutrirmos uma espécie de “incredulidade seletiva” quanto aos poderes do mal.

Lembro-me de um anúncio que vi em um jornal gratuito local, em que se podia pagar para que alguém lançasse uma maldição sobre outra pessoa. Telefonei para o jornal e argumentei que, se eles não acreditavam em maldições, estavam participando de propaganda enganosa, ao passo que, se acreditavam, estavam conspirando para cometer agressão. Naturalmente, não me ouviram; e a impressão que tive foi que, confrontados com a possibilidade de estarem ajudando a causar dano real a pessoas, reprimiram qualquer remorso negando a si mesmos que a magia negra seja real, e depois rebateram minha acusação de propaganda enganosa dizendo a si mesmos que, na verdade, ela é real — tudo isso de forma inconsciente, num piscar de olhos. Este é precisamente o tipo de ginástica mental que George Orwell analisou em 1984 como “duplipensar” (doublethink) — a capacidade de manter duas crenças contraditórias ao mesmo tempo sem qualquer ansiedade. Somos crentes lunáticos e/ou cínicos desmistificadores sempre que isso convém à nossa necessidade de evitar o confronto com a verdade objetiva.

Como disse C. S. Lewis em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (The Screwtape Letters), p. 32, pela boca de seu demônio Screwtape:

“Quando os humanos não acreditam em nossa existência, perdemos todos os agradáveis resultados do terrorismo direto, e não conseguimos fazer mágicos. Por outro lado, quando acreditam em nós, não podemos torná-los materialistas e céticos. Ao menos ainda não. Tenho grandes esperanças de que aprenderemos, no devido tempo, a emocionalizar e mitologizar sua ciência a tal ponto que aquilo que, na prática, é uma crença em nós (embora não sob esse nome) se infiltrará… se conseguirmos produzir nossa obra-prima — o Mago Materialista… então o fim da guerra estará à vista.”

Mas, é claro, o Mago Materialista já está entre nós há algum tempo; ele é a nota dominante do período histórico presente. A idolatria da tecnologia avançada, real ou imaginada, é nossa superstição contemporânea dominante. Basta lembrar que a palavra que hoje usamos para aquilo que sempre foi chamado “demônios” é “alienígenas”. Alienígenas nos abduzem, transportam pelo ar, nos examinam, têm relações sexuais conosco, atravessam paredes para entrar em nossas casas e aparecem em nossos sonhos. Mais de um milhão de norte-americanos afirmam ter tido essas experiências, tantos que grupos de apoio e até grandes conferências de “abduzidos” já formam uma indústria independente. Não conseguimos nos obrigar a chamá-los de “demônios”, por medo de nos tornarmos “fanáticos religiosos” e assim perdermos nossa filiação à sociedade materialista-tecnocrática. Mas temos que acreditar em toda história que ouvimos sobre eles, incluindo a propaganda grosseiramente orquestrada sobre a recuperação de cadáveres alienígenas em Roswell, Novo México (relato que permanece pouco convincente para o conhecido pesquisador de OVNIs Jacques Vallée), e admitir que possuem todos os poderes físicos e psíquicos comuns ao reino de Satanás; caso contrário, poderíamos passar por “céticos estreitos de mente”, velhos racionalistas enfadonhos sem nada interessante a dizer em reuniões sociais. Estamos sob o jugo do duplipensar.

Todos esses desenvolvimentos foram previstos, em seus contornos principais, se não em detalhe, por René Guénon em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, publicado em 1945. Segundo Guénon, ao longo dos últimos séculos, o mundo passou a ser definido menos pelas qualidades das coisas e mais pela pura quantidade, de modo que o “sucesso” de uma nação (por exemplo) não é medido pela profundidade da cultura, pela altura da compreensão espiritual ou pela qualidade de vida, mas pelo produto interno bruto. A “cultura da informação” é apenas a encarnação mais recente dessa tendência a quantificar tudo.

Mas o “reino da quantidade”, embora continue a ganhar poder, em certo sentido atingiu o auge no fim do século XIX e início do XX, quando o materialismo, como forma de ver o mundo, estava no ápice, na época em que ainda era possível crer de modo complacente em algo chamado “vida ordinária”. Como já apontei, tal materialismo resultou, segundo Guénon, em uma espécie de “solidificação do mundo”. Antigamente, digamos, nos anos 1950, relatos de ocorrências sobrenaturais, ou a crença de que tais coisas fossem possíveis, eram frequentemente recebidos com um “Como é possível você acreditar nisso? Estamos no século XX!”. Hoje, no início do século XXI, o estranho parece normal, senão inevitável. Em termos dos sons, imagens e crenças produzidos pela cultura de massa popular, vivemos numa espécie de Halloween permanente.

Como você talvez se recorde, a explicação de Guénon para isso é a seguinte: à medida que o materialismo solidificou o mundo, a noção da realidade das coisas espirituais — de um mundo mais alto que o psíquico, o Reino Divino, o Reino de Deus — tornou-se cada vez mais difícil de sustentar. É como se uma espécie de neblina psíquica se espalhasse pelo mundo, apagando a luz das estrelas. Mas já em 1945 (depois da detonação das primeiras armas nucleares, embora Guénon não mencione isso), essa materialidade pesada e sólida — a desolação, digamos, do stalinismo ou do capitalismo burguês — começava a rachar. Tornara-se tão dura que começava a ficar “frágil”, assim como os átomos dos elementos urânio e plutônio, ainda mais pesados do que o chumbo, são instáveis e radioativos.

Só que essas rachaduras não se abriam na direção superior, para receber a descida da graça divina; abriam-se para baixo, na interface entre este mundo e o reino “infra-psíquico” ou demoníaco. E quem quer que seja capaz de olhar objetiva e desapaixonadamente para nossa atual cultura da informação, para as imagens lúgubres, sedutoramente glamorosas e sinistras predominantes na televisão, nos videogames e na internet, será forçado a concordar.

Segundo Guénon, o único desfecho possível dessa evolução é a dissolução do mundo presente. Ele e a maioria dos Tradicionalistas concordam com cristãos conservadores em que vivemos nos últimos dias, o Tempo do Fim. Esse “Fim” pode implicar a destruição de toda a vida na Terra — ou não. Em qualquer caso, não pode ser visto exclusivamente em termos terrenos, já que o Fim do Mundo é um Apocalipse, uma “revelação” da Realidade Eterna de Deus, bem como o início do próximo ciclo de existência, o “Novo Céu” e a “Nova Terra”.

Assim, Guénon e outros Tradicionalistas, notadamente Martin Lings em seu livro The Eleventh Hour, são deliberadamente ambíguos nesse ponto, como quando Guénon diz que o mundo atual se dissolverá, mas isso não significa o fim da existência terrestre, ou que estamos diante do fim do Tempo, mas não do fim do Espaço. O significado exato dessas afirmações oraculares deve permanecer questão para nossa faculdade de intuição espiritual, e as verdades que essa faculdade descobre jamais poderão ser plenamente traduzidas em termos de espaço, tempo, matéria e história.

Mas quase todas as religiões mundiais, incluindo hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo, Islã e certas tradições nativas americanas, falam do fim do mundo ou do ciclo presente. E o cristianismo e o islã, em particular, enfatizam que, na véspera desse fim, todos os poderes psíquicos e tendências psicossociais que queiram negar a realidade de Deus e a dignidade da humanidade se condensarão naquilo que essas duas tradições chamam de reinado do Anticristo, que, seja ou não um indivíduo, será certamente o princípio subjacente à pior desumanidade que o gênero humano consiga conceber para impor a si mesmo e à Terra.

Os Tradicionalistas tendem a dizer que tal desenvolvimento não pode ser detido por nenhum tipo de ação social esclarecida; por outro lado, evocam o mito da batalha final entre o bem e o mal no fim do ciclo, chamada Armagedom na Bíblia, e que, na doutrina islâmica, é anunciada pelo Mahdi e concluída pela segunda vinda de Jesus, a quem muçulmanos e cristãos reconhecem como o Messias, que matará o Anticristo na batalha final. E o décimo avatar de Vishnu no hinduísmo, o avatara Kalki, também é descrito como guerreiro empunhando uma espada e montado em um cavalo branco, como o Verbo de Deus no capítulo 19 do Apocalipse.

Mas Armagedom não pode ser simplesmente algo como uma guerra termonuclear total, porque é uma batalha em que todos os inimigos da restauração da Ordem Divina sobre a terra são destruídos. Como tal, ela é manifestação da batalha que se trava na alma de cada um de nós, refletida nos “eventos reais” do mundo exterior. Mas, como Jesus disse, “não sabeis nem o dia nem a hora”; por isso quero, deliberadamente, afastar-me de qualquer prognóstico histórico e concentrar-me nessa “guerra invisível” dentro da alma humana.

Como já disse, é dever inato de todo ser humano realizar a verdade de Deus, da Realidade Absoluta, tanto quanto sua capacidade permita, e colocar-se sem reservas sob a orientação e direção do Único. Uma vez reconhecido e abraçado esse dever, porém, todos os poderes do plano psíquico que negam o Absoluto entram em ação. A guerra contra essas forças inferiores da alma é chamada, no Islã, de “o maior jihad”, a maior guerra santa; é um dever humano mais universal, mais formidável, e de cujo resultado depende muito mais, do que qualquer guerra travada em campos de batalha materiais.

Segundo uma possível perspectiva, Armagedom é uma guerra entre o amor e o poder tendo, como prêmio, o conhecimento. Até Carl Jung (a quem os Tradicionalistas detestam, com boa dose de razão) disse certa vez que, onde quer que o complexo de poder esteja, o amor se torna impossível. E, de fato, toda a questão dos perigos do ocultismo se reduz a isto: o nosso conhecimento espiritual tomará o amor como noiva — ou o poder? O amor é um grande poder em si mesmo, mas, em qualquer lugar onde o conhecimento sutil se una ao poder para violar o amor, estamos diante da religião do Anticristo.

Sabedoria, moralidade e técnica

Nos anos 60, parecia a muitos de minha geração que a “religião organizada”, por meio da qual entendíamos o judaísmo e o cristianismo eclesial, se limitava à moralidade — e que a moralidade era completamente arbitrária. Nada mais era do que um conjunto de “deves” (oughts) — ainda uma palavra malvista em certos meios — imposto pela “sociedade”, pelo “establishment” ou pela “hierarquia eclesiástica”, sem motivo válido. Por outro lado, havia algo como insight penetrante e sabedoria espiritual; sentíamos isso “instintivamente”. A religião parecia ter alguma relação com essa sabedoria desconhecida — certamente a Bíblia estava cheia de alusões místicas, se ao menos alguém fosse capaz de entendê-las —, mas nossos padres e pastores não pareciam possuir a chave. Tudo o que nos diziam, ou tudo o que ouvíamos, era: “seja bom porque Deus mandou”. E, quando perguntávamos “por que ser bom, o que isso significa, o que está por trás de tudo isso?”, tudo o que recebíamos deles era um corte seco.

A impressão nítida era que realmente havia algo a ser conhecido ali, mas nossos mestres já não o conheciam. Por isso fomos buscá-lo em outro lugar: nas religiões orientais, na espiritualidade indígena americana, no espiritualismo e no ocultismo ocidentais. Como escreveu o poeta Allen Ginsberg, referindo-se à experiência semelhante da Geração Beat, que era velha o suficiente para ser a de nossos pais, em seu famoso poema Howl, éramos aqueles “que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia e bop cabala porque o cosmo instintivamente vibrava a seus pés no Kansas”. Nesse processo descobrimos que realmente existia algo como Sabedoria — embora a forma exata e as implicações dela continuassem a escapar-nos — e que não era apenas algo em que se pudesse crer, mas algo que podia ser realizado. Você podia de fato experimentá-la; ela era real. Não apenas que, mas sempre existiram técnicas espirituais, como yoga, meditação, xamanismo ou teurgia, que podiam transformar conhecimento teórico ou vagas intuições espirituais em experiência concreta e real. Claro que era muito mais fácil simplesmente tomar LSD, peiote ou cogumelos mágicos e ser brindado com visões e insights espantosos, que iam do horrível ao ridículo até o sublime. Mas os espíritos mais sérios entre nós logo perceberam que não se podia tomar psicodélicos para sempre, que tinha de haver um caminho mais estável e responsável de buscar a iluminação. Este caminho, pensávamos, seria fornecido por formas mais tradicionais de sadhana (prática espiritual), como a meditação, ou por tipos mais “avançados” de ginástica psíquica, como os que estavam sendo desenvolvidos no Esalen Institute — incluindo encounter groups, privação sensorial, biofeedback e sabe Deus mais o quê.

E assim, em reação à superficialidade que percebíamos nas tradições cristã ou judaica em que havíamos sido criados, que nada podiam nos dar além de regras morais sem qualquer justificativa convincente, e que eram ou incapazes ou relutantes em nos oferecer explicações profundas sobre o sentido da vida que ansiávamos, ou em nos dar acesso às práticas espirituais concretas que sentíamos precisar para realizar esse sentido em profundidade, criamos para nós um ethos religioso em que a sabedoria era buscada e a técnica espiritual empregada à custa da moralidade. Ninguém nos disse que as verdades místicas e o sentido profundo de que precisávamos estavam no coração do cristianismo e do judaísmo; que técnicas sempre haviam existido dentro dessas tradições — como a Oração de Jesus no cristianismo oriental — para servir à realização dessas verdades; e que uma das técnicas místicas fundamentais, sem a qual nenhum sentido profundo pode ser compreendido nem sabedoria espiritual pode ser realizada, era a própria moralidade.

Tínhamos lido, e acreditávamos, que a compreensão mística vinha da transcendência do ego; o que nunca nos foi dito é que a moralidade é elemento necessário na ciência dessa transcendência. Então tentamos explodir nossos egos com doses maciças de drogas psicodélicas, que julgávamos tornar desnecessário o trabalho tedioso de vencer o simples egoísmo em nossas vidas diárias. Achávamos que era o melhor dos dois mundos: iluminação mística graças à graça barata dos psicodélicos ou de exercícios respiratórios ou luzes estroboscópicas ajustadas ao ritmo alfa do cérebro, e, no resto do tempo, total autoindulgência. Acreditávamos poder ficar com o bolo e comê-lo também… mas, em vez disso, foi o bolo que nos devorou.

Se o nosso judaísmo tivesse sido capaz de produzir verdadeiros tzaddikim, mestres da cabala ou do misticismo da merkabah, juntamente com uma exegese profunda da Torá; se o nosso catolicismo tivesse sido capaz de responder às nossas aspirações místicas e filosóficas mergulhando nos profundos ensinamentos místicos dos Padres da Igreja, e se tivesse existido algo como uma terceira ordem monástica à disposição dos jovens, que pudesse ter-nos dado uma orientação mística e uma prática espiritual diária; se o nosso protestantismo tivesse sido capaz de nos alimentar no poço místico dos “espirituais” como Franz von Baader e Jakob Böhme, então as coisas poderiam ter sido muito diferentes.

Mas, para que esse “se” tivesse sido realizado, o judaico-cristianismo teria de estar em condição muito diversa: fiel à profundidade de suas tradições, disposto e apto a resistir a qualquer compromisso com o secularismo, confiante em sua ortodoxia teológica, em sua compreensão filosófica e em sua sabedoria mística. Em vez de convidar os que estavam pelas estradas e encruzilhadas para o banquete de casamento, a porta foi fechada por aqueles “guias cegos que impedem os outros de entrar, mas não entram eles mesmos”. Então organizamos nosso próprio banquete de casamento nas estradas e encruzilhadas, que degenerou em orgia e, por fim, em motim.

Não obstante, desse motim surgiram verdadeiras intuições sobre “as profundezas de Deus” — que não tínhamos meio confiável de distinguir das trevas espirituais que as cercavam —, juntamente com elementos válidos de esoterismo e metafísica tradicionais escondidos em meio ao restante dos destroços, que conduziram uma minoria de nós, afinal, a misticismos estáveis e vivos enraizados nas ortodoxias tradicionais. Talvez a memória do número muito maior dos que foram destruídos para que nós poucos pudéssemos chegar, meio mortos, à porta da religião revelada, seja parte da motivação deste livro. O nome disso é “culpa do sobrevivente”.

Estados alterados de consciência: graça ou manipulação?

Para muitos cristãos evangélicos, os termos “misticismo” e “estados alterados de consciência” só podem designar uma perigosa ilusão. Segundo o conhecido mestre de rádio Hank Hanegraaff, cuja insistência na sã doutrina me é profundamente alentadora, e cujas denúncias das falsas doutrinas e práticas perigosas que hoje proliferam no protestantismo “carismático” deveriam ser ouvidas por todos, tais realidades, se é que são realidades, não têm lugar no cristianismo. Na melhor das hipóteses, seriam autoilusões ou produto de sugestão hipnótica; na pior, enganos demoníacos.

Será isso realmente verdade? Vejamos.

Antes de tudo, a palavra “misticismo” precisa ser definida. Em toda tradição há uma classe de santos, os santos contemplativos, chamados por Deus àquele tipo de experiência direta d’Ele que a maioria dos salvos conhecerá apenas após a morte. Santos católicos como João da Cruz ou Teresa de Ávila dedicaram boa parte de sua vida espiritual a cultivar uma prontidão para tal União com Deus, que no caso da maioria dos místicos é rara e breve (embora, num outro sentido, eterna), um arrebatamento pelo Espírito em que todo senso da existência da alma como algo separado de Deus é apagado.

O cristianismo ortodoxo oriental vai além até desse sentido de União ao descrever o êxito da vida espiritual normal como theosis, ou divinização, que não é simplesmente uma experiência rara e isolada, mas uma realização permanente de nossa Divindade interior, segundo a doutrina de que “Deus se faz homem para que o homem se faça Deus”. O sufismo fala igualmente de fanā’, aniquilação do eu humano em sua separatividade, na medida em que nos definimos por nós mesmos e por isso acreditamos implicitamente ser autocriados, e de baqā’, subsistência eterna na Natureza de Deus. O hinduísmo fala do jīvanmukta, a alma perfeitamente libertada nesta vida, e o budismo daquele que alcançou a Iluminação Total Perfeita, e assim se tornou um Buda, um “Desperto”, que reconhece que todos os seres, em sua natureza original — se ao menos o soubessem — já estão Despertos.

Misticismo, então, pode ser definido ou como a experiência temporária de União com Deus, um “estado alterado de consciência” buscado ou não, produzido pela ação direta de Deus (chamado no sufismo de hāl e, no cristianismo, de “contemplação infusa”), ou como o despertar permanente para a realidade de Deus, como no caso de um santo iluminado. É o misticismo em sua primeira definição, a de uma experiência rara ou incomum de Deus, um “estado alterado” em que o eu individual é posto de lado na contemplação do Divino, que parece incomodar muitos cristãos evangélicos.

O Novo Testamento, é claro, está repleto de histórias de “estados alterados de consciência”: a Transfiguração de Cristo; a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e a Virgem Maria em Pentecostes; a experiência de São Paulo no caminho de Damasco. “Mas espere!”, diz o cristão evangélico. “Esses não eram ‘estados alterados de consciência’, porque não eram experiências subjetivas. Foram produzidos pela ação da graça de Deus, operando de fora sobre os discípulos de Jesus. Não ocorreram simplesmente na mente daqueles que os vivenciaram; foram objetivamente reais.” Concedo isso plenamente. Mas dizer que a ação objetiva da graça de Deus não alterou profundamente a consciência dos que a receberam é absurdo.

A verdadeira questão é: acreditamos que os estados alterados em questão foram encontros com Deus iniciados por Sua ação na alma humana, ou acreditamos que esses encontros foram produzidos pelos próprios estados alterados, que por sua vez teriam sido criados voluntariamente pelas pessoas que os vivenciaram? Deus pode e de fato altera a consciência humana para torná-la mais receptiva a Ele, mas nenhuma quantidade de alteração autoinduzida da consciência pode “alcançar” Deus. Quanto a saber se eventos como a Transfiguração foram objetivos no sentido de que poderiam ter sido fotografados por satélites, por exemplo, suspendo o juízo. Quero apenas ressaltar que, só porque algo é visão, isso não significa que não seja real. Algumas visões são fantasias ou enganos demoníacos; outras são testemunhos de realidades objetivas mais altas e mais reais do que o mundo material.

Segundo a doutrina sufista, estados espirituais são dádivas de Deus, não aquisições. Não podemos produzi-los de forma alguma, nem sequer deveríamos rezar por eles. Nosso negócio é, simplesmente, lembrar de Deus e esquecer de nós mesmos. Por outro lado, se passamos todas as horas de vigília lembrando de Deus — e, por fim, cada hora de sono também —, estados espirituais ou místicos bem podem chegar. Buscá-los é ganância espiritual; rejeitá-los quando ocorrem pode ser ingratidão espiritual. Exigir presentes de nosso Benfeitor, ou rejeitá-los quando são oferecidos, são ambos atentados à cortesia; e, nas palavras de um provérbio sufista, “o sufismo é pura cortesia”.

A recepção de tais estados nada diz de forma definitiva sobre o grau de avanço espiritual do recipiente, já que, segundo o Alcorão, “Deus guia a quem quer, e extravia a quem quer”. Em outras palavras, Deus pode às vezes punir a ganância egotista de alguém por experiência e autoridade espirituais enviando-lhe estados pseudo-místicos — ou melhor, permitindo que forças demoníacas o façam — cujas consequências finais lhe mostrarão o próprio orgulho espiritual, se ele estiver disposto a ouvir. Doutrina semelhante é sugerida pelas palavras do Pai-nosso “não nos deixes cair em tentação”, que têm sido tão embaraçosas para alguns cristãos que estes as alteraram para “não nos ponhas à prova” — como se Deus já não nos pusesse à prova a cada momento de nossas vidas, de um modo ou de outro.

Além disso, segundo tanto a doutrina sufista quanto a hindu, estados místicos são enviados não por causa de nosso avanço espiritual, mas por causa de nossas impurezas. Imagine os raios do sol focados por uma lente sobre uma laje de mármore branco. Se houver serragem sobre o mármore, ela pegará fogo; se o mármore estiver limpo, haverá apenas iluminação. A serragem é a nossa massa de impurezas espirituais; as chamas são os estados espirituais que as queimam; a iluminação da pedra limpa é a Sabedoria; a luz é o Intelecto Divino.

Mas o que dizer de sistemas de desenvolvimento espiritual como a yoga, praticados por hindus e budistas vajrayanas, em que, longe de esperar que Deus conceda livremente um estado espiritual ao iogue, este o persegue ativamente por meio de sofisticada manipulação do sistema nervoso psicofísico, baseada em posturas corporais (āsanas), controle da respiração (prāāyāma), invocação verbal (mantra), meditação sobre diagramas simbólicos (maṇḍalas ou yantras) e gestos simbólicos (mudras)? Aqui a questão se torna mais complicada, e não há dúvida em minha mente de que qualquer prática espiritual fortemente carregada de técnica corre sempre o risco de transformar-se numa luta prometeica para “tomar o céu de assalto”, já que o iogue pode experimentar-se a si mesmo como praticando o método não em resposta obediente à graça divina, mas por iniciativa própria, como ego independente e autodirigido — e nenhum ego independente e autodirigido, exercendo técnicas psicofísicas sofisticadas por iniciativa própria, chegará a qualquer lugar senão às portas do inferno.

Ainda assim, a busca de estados espirituais, se realizada no contexto de uma tradição que a defina em termos de obediência à Vontade de Deus e de trabalho em Seu serviço, pode ser espiritualmente eficaz e, por fim, produzir santos. “Buscai e achareis; pedi e vos será dado; batei e vos será aberto.”

Tranquilidade, vigilância, confiança em Deus, amor de Deus, amor ao próximo, consciência da Presença de Deus são “estados alterados de consciência”: a tranquilidade é um estado de espírito diferente da agitação, a alegria agradecida é diferente da mesquinhez rabugenta, a vigilância é diferente da sonolência, a confiança é diferente da ansiedade, o amor é diferente do ódio, a consciência da Presença de Deus é diferente da visão da absurdidade existencial ou do tédio cotidiano. E, se não podemos simplesmente produzir esses estados alterados por força de vontade, por outro lado a sua vinda exige de nossa parte uma atitude responsável — “apta a responder”.

Se alguém está palestrando, você não fica simplesmente esperando em condição de tédio embotado e sonolento até que o orador diga algo tão avassalador que sua mente turva seja tomada à força — não. Você se endireita e presta atenção. E jamais “ouvirá” o que Deus lhe diz enquanto não estiver disposto a escutar. Escutar é um estado “alterado” de consciência; é algo diferente da desatenção. Isso não significa que Deus não seja uma Realidade objetiva; ao contrário. A própria existência dessa Realidade objetiva exige que nosso estado de consciência seja alterado, de forma a chegar a uma compreensão dEla adequada — não à Realidade infinita de Deus, mas ao menos à plenitude de nossa capacidade humana, dada por Deus, de conhecê-Lo. E aquilo que essa Realidade exige, Ela mesma torna possível.

Além disso, se essa Realidade por vezes sobrepuja nossa mente, de modo que entremos em “estados alterados” de embriaguez espiritual ou êxtase, isso não é impróprio, a menos que tentemos deliberadamente produzir tais estados para nos comprazermos neles. Estados assim nos ensinam, em termos de experiência concreta, que a mente humana não pode abarcar Deus e, ao mesmo tempo, “alargam as fronteiras de nossa tenda”, queimando impurezas espirituais e ampliando nossa capacidade de compreender e obedecer a uma Realidade Divina que nunca poderemos abarcar totalmente. E, em algum ponto de nossa luta para compreender Deus — ou de renunciar a tentar compreendê-Lo — podemos, de repente, chegar à percepção de que somos compreendidos. Como disse o Profeta Maomé (que a paz esteja com ele): “Ora a Deus como se O visses, pois, mesmo que não O vejas, Ele te vê.” A perfeita compreensão que Deus tem de nós é o Ser Divino, o atman em nós, que é o sentido das palavras de Maomé: “Quem conhece a si mesmo conhece o seu Senhor.” E esse Ser Divino em nós é tão objetivo, tão “absolutamente outro” em relação a tudo o que posso experimentar como meu pequeno eu individual, quanto qualquer Pai Todo-Poderoso entronizado no céu.

Se vemos o Absoluto como o Númeno por trás de todos os fenômenos, ou como o Self dentro de nossa subjetividade psíquica, a Realidade é a mesma: dentro do sujeito, ou dentro do objeto percebido subjetivamente — e, ainda assim, infinitamente além de ambos —, está a Única Verdade.

Lembrar-se de que se está na presença de Deus é a prática espiritual central no hesicasmo cristão ortodoxo oriental (a Oração de Jesus, ou oração do coração), no sufismo islâmico (dhikr), e também é importante no hinduísmo (como japa). Todas essas três tradições continuam a produzir santos, que são a prova viva de qualquer religião. A maioria dos santos ortodoxos, muçulmanos e hindus praticou esse tipo de lembrança. Não que esta, ou qualquer outra prática espiritual, possa transformar alguém em santo, ou mesmo salvar sua alma. Mas, se pela graça de Deus a presença do Único se torna profundamente real para uma pessoa, ela será naturalmente movida, em simples gratidão, a trabalhar para remover tudo quanto impeça esse senso de presença, assim como é natural que alguém preste profunda atenção à pessoa que ama, ou não queira agir tolamente ou aparecer desleixado diante do Rei.

Meditação não é feitiçaria; é simplesmente atenção. Silêncio profundo não é magia; é simplesmente respeito pelo Único de quem esperamos ouvir — o Único que já nos fala agora, se ao menos fôssemos silenciosos o bastante para ouvi-Lo.

Quanto a práticas espirituais mais complexas, como posturas, visualizações, exercícios respiratórios etc., seu objetivo não é diferente da simples lembrança: remover todos os impedimentos a um sentido mais profundo da presença de Deus. E, embora sua natureza mais elaborada possa torná-las suscetíveis de perversão pelo querer prometeico, que sempre quer acreditar poder alcançar Deus por seu próprio esforço, no clima de graça que é uma tradição espiritual intacta tais práticas raramente degenerarão em magia, mas preservarão a essência da pura adoração.

III. Doutrinas New Age refutadas

A New Age contém muitos buscadores sinceros e, pelo que sei, possivelmente até alguns santos ocultos (mas Deus sabe melhor). Deus evidentemente tem tanto o poder quanto o direito de recompensar com o dom de Sua graça — expressa em termos de amor, conhecimento e poder — aqueles que O buscam sinceramente, apesar da insuficiência e até do perigo das doutrinas que tais buscadores possam sustentar. Mas esse fato não torna tais doutrinas mais adequadas ou menos perigosas. Da mesma forma, a aceitação da doutrina revelada ortodoxa não afasta os perigos da hipocrisia, do orgulho espiritual e de outros vícios; tal doutrina, contudo, não é menos proteção eficaz nem menos apoio à vida espiritual, nem menos intrinsecamente verdadeira, só porque alguns dos que se identificam com ela são corruptos.

Não pretendo que esta refutação de doutrinas New Age seja, de modo algum, um juízo sobre a sinceridade ou as conquistas espirituais dos que nelas creem; como o estado da alma de alguém é questão entre o indivíduo e Deus, não tenho nem o direito nem o poder de sondá-lo. A parábola do Bom Samaritano não foi destinada a invalidar a ortodoxia doutrinal, já que “não vim abolir a lei, mas levá-la à perfeição”. Mas foi destinada a apresentar o estado e o destino da alma humana, antes de tudo, em termos de “pelos seus frutos os conhecereis”.

Canalização de “entidades”

O mundo das espiritualidades alternativas, e em muitos aspectos a nossa sociedade como um todo, entrou num período em que o paradigma da magia — que inclui tanto a magia tecnológica quanto as formas “tradicionais” de magia — está substituindo o da religião, tanto exotérica quanto esotérica. Gente demais na New Age, herdeira do populismo espiritual hippie, ensina hoje que “todo mundo pode ser xamã, todo mundo pode canalizar ‘entidades’”. Certamente nem todos os seres no plano psíquico, ou no mundo dos jinn, são maus ou iludidos — segundo a doutrina islâmica, alguns jinn são muçulmanos e outros, não —, mas isso não significa que uma abertura frívola para aquele mundo não esteja expondo a sociedade ao perigo de possessão demoníaca em massa, e confirmando integralmente a previsão de Guénon de que a vida humana, nos dias finais do ciclo, estaria sujeita a incursões do “infra-psíquico”.

A canalização de “guias espirituais” é, talvez, a manifestação mais central das espiritualidades New Age. É uma prática que, embora nem sempre seja estritamente má, é profundamente perigosa; a maioria dessas “entidades”, quando não são simples criações da imaginação individual, é no mínimo ambígua e, em muitos casos, são demônios propriamente ditos, cuja natureza demoníaca se torna mais clara a cada ano que passa. E não é de forma alguma o aspecto menos destrutivo dessa canalização o fato de ela representar não uma simples ilusão, mas uma contrafação da doutrina tradicional.

O daimōn de Sócrates, o genius ou juno dos romanos, possivelmente certos aspectos da teurgia neoplatônica, o anjo da guarda no cristianismo, o fravashi no zoroastrismo, os espíritos dos profetas com os quais Ibn al-‘Arabī mantinha contato no Islã, o yidam ou divindade tutelar no budismo tibetano — tudo isso representa, em forma estritamente tradicional, a realidade de que a canalização de espíritos é, em grande medida, a imitação fraudulenta. Talvez a abordagem mais segura seja simplesmente chamar de demoníaco todo o “plano intermediário” ou ‘ālam al-mithāl, como muitos cristãos fizeram. Mas, se “não há direito superior ao da verdade”, então alguém precisa admitir que o plano intermediário não é estritamente demoníaco, mas sim perigoso e ambíguo. Nem todo peixe do mar é tubarão — mas cuidado com os tubarões.

Frithjof Schuon e Seyyed Hossein Nasr falam, por exemplo, da magia como uma ciência tradicional, e Schuon admite que exista algo como magia branca, isto é, a interação com “aqueles jinn que são muçulmanos” para fazer o bem, embora também advirta contra envolver-se com ela. Mas devo confessar que dizer essa verdade me deixa profundamente nervoso, porque pode tentar os frívolos a dizer: “muito bem, então praticarei apenas magia branca e ficarei longe da negra” — algo infinitamente mais fácil de dizer do que de fazer.

Práticas tradicionais como o exorcismo mostram, de fato, certas afinidades com a magia branca. O verdadeiro exorcismo, porém, aplica o poder espiritual ao plano psíquico, ao passo que a magia branca opõe poderes psíquicos benéficos a poderes malignos — algo que jamais deveria ser tentado fora de um contexto tradicional, como o de um xamanismo verídico, supondo que algum de nós possua critérios pelos quais distinguir o verdadeiro xamanismo de seus rivais degenerados ou falsificados.

Lembro-me de uma conversa telefônica que tive com um “curador espiritual” autodidata, que realizava exorcismos em parte por visualização. “Eu simplesmente explico à entidade obsessora que ela não precisa agir de modo tão perverso, que tem outras opções abertas para o progresso espiritual. Isso geralmente a despotencializa e lhe permite passar a planos mais elevados.” Quisera eu ter-lhe respondido: “Impressionante! Se até anjos decaídos são tão fáceis para você converter, por que não tenta trabalhar com assassinos em série? Estes deveriam ser brincadeira de criança.”

No plano dos princípios metafísicos, o que separa o daimōn de Sócrates de uma “entidade” como Ramtha? Como distinguir um anjo da guarda de um demônio enganador? Creio que a resposta não se encontra apenas no dom do discernimento de espíritos — que, é claro, é inestimável —, mas também na orientação básica da pessoa. Na medida em que alguém se relaciona com tais seres em termos de vontade, procurando-os, coagindo-os ou exigindo conhecimento deles, então eles não passam de espíritos familiares. Na medida em que se relaciona com eles em termos do Intelecto, não os buscando, mas aceitando-os quando se apresentam como dons de sabedoria, de conselho e de conhecimento, e não de poder, então é mais provável que sejam anjos. Ainda assim, espíritos enganadores podem aproximar-se até dos sinceros e podem ter interesse especial em perverter a vida espiritual daqueles que realmente progridem em amor e conhecimento.

Anjos são “mensageiros”. São enviados por Deus. Portanto, se alguém concentra-se em Deus, e não no mensageiro (e essa concentração só pode manter-se estável dentro dos limites de uma tradição revelada, embora Deus sempre possa fazer exceções), o mensageiro tenderá a ser angélico; ao passo que, se alguém se concentra no mensageiro em vez de Deus, então o mensageiro provavelmente é, ou se tornará, demoníaco.

Quando o carteiro traz uma carta do Amado, você não vai para a cama com o carteiro, nem faz amor com a carta; você se lembra dAquele a quem ama e aguarda o encontro com Ele em pessoa. Quando os habitantes de Sodoma quiseram possuir os anjos de Deus — sendo a luxúria sexual apenas uma forma dessa cobiça, que simboliza implicitamente todas as demais, especialmente a ganância espiritual —, foi exatamente isso o que fizeram. E é isso que me torna desconfiado da atual moda dos “anjos”; ela parece ser sinal de que o Deus Transcendente está se tornando menos real para muitas pessoas. O senso de uma comunhão viva e contínua com Deus é parte da piedade normal. A aparição de um anjo é, em regra, um acontecimento raro. Mas quando visões de anjos se tornam mais comuns do que o senso da realidade de Deus, então a situação é obviamente anormal, e Deus está a caminho de tornar-se, na mente coletiva, um deus otiosus, como o Deus Altíssimo em muitas (não em todas) tribos africanas. A religião norte-americana, nesse sentido, está na verdade tornando-se mais parecida com as religiões não cristãs e não muçulmanas da África tropical; embora ainda se admita a existência do Deus Altíssimo que criou o mundo, Ele já não é acessível, enquanto várias entidades psíquicas, longe de serem inacessíveis, estão se tornando cada vez mais difíceis de evitar.

Falando em termos das religiões tradicionais africanas e chinesas, e do xintoísmo japonês, essas entidades podem representar os Antepassados Deificados que, por sua vez, simbolizam os arquétipos espirituais permanentes, ou hipóstases divinas, ou Nomes de Deus; podem também ser fantasmas e demônios. E à medida que o senso do Deus Transcendente enfraquece, é muito mais provável que encontremos fantasmas e demônios do que arcanjos.

Assim, no que diz respeito à canalização de espíritos — que em sua forma popular deve claramente ser rejeitada — creio que a atitude correta é admitir a existência de anjos assim como de demônios, reconhecer que influências angélicas estão no domínio do possível, mas enfatizar que, embora Deus possa enviar seus anjos para se comunicarem conosco, o desejo de encontrar um anjo é quase sempre destrutivo. “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” — incluindo os anjos, se Deus assim o quiser, embora a experiência consciente do plano angélico não seja absolutamente necessária à vida espiritual.

Creio que é melhor admitir a possibilidade de intervenção angélica, porque, se dissermos que é possível e até provável encontrarmos demônios, mas extremamente improvável, senão efetivamente impossível, encontrarmos anjos, podemos acabar pregando a rejeição dos mensageiros de Deus, dando assim mais ajuda e conforto às potências das trevas.

Não devemos supor, porém, que só porque demônios e anjos são reais, as figuras “canalizadas” sejam sempre entidades psíquicas. Durante minha excursão de dois anos pelo universo New Age, ouvi uma história sobre canalização que nada tinha a ver com o sobrenatural, mas muito a ver com psicologia. Uma mulher criada por pais adotivos vinha canalizando uma “entidade” enquanto, ao mesmo tempo, buscava seus pais biológicos. Eis que, quando os encontrou, descobriu que seu nome de batismo original, de que não tinha nenhuma lembrança consciente, era o nome de sua “entidade”!

Também naquele período formei a impressão de que certa canalização tem a ver tanto com o colapso da autoridade social tradicional quanto com uma profunda falta de autoconfiança intelectual por parte dos envolvidos. Se alguém não possui uma sabedoria socialmente aceita para aplicar a diferentes circunstâncias, e não confia na própria capacidade de dar sentido às coisas, pode fabricar psicologicamente uma “entidade” infalível para desempenhar essas funções. É como se, quando a sociedade não sustenta uma identificação das faculdades de pensamento racional e de bom juízo com a personalidade consciente, essas faculdades pudessem tornar-se “complexos autônomos”. Se você não consegue acreditar em sua própria capacidade de pensar, sempre pode atribuir essa capacidade ao seu espírito familiar, que não necessariamente será capaz de pensar, mas ao menos representará um gesto pateticamente esperançoso nessa direção.

Equívocos neopagãos

O mundo New Age/neopagão acredita fervorosamente que seu conhecimento é esotérico. Mas, como quase nunca se faz ali a distinção entre psique e Espírito — distinção que, anos atrás, ouvi ser chamada de “patriarcal” por membros de um “coletivo de espiritualidade feminista” —, o termo “esoterismo” não pode legitimamente ser-lhe aplicado. Crê-se, em muitos círculos neopagãos, que imaginar um nível de realidade mais alto que o psíquico é apoiar a tirania política, cooperar com a opressão das mulheres, destruir o meio ambiente natural e Deus sabe o que mais. Consequentemente, o conhecimento entre os neopagãos permanece, em sua maior parte, no nível psíquico — que, como já dissemos, é um nível real de ser, sobre o qual nos faria bem saber alguma coisa, especialmente porque, em nossos tempos, as experiências psíquicas estão se tornando mais difíceis do que nunca de evitar. Mas, a menos que a psique seja guiada e protegida pelo Espírito, tal conhecimento rapidamente se torna ilusório e, muitas vezes, demoníaco.

Muita gente (e não apenas os neopagãos), graças a escritores como Sir James Frazer, Robert Graves e seus sucessores, acredita hoje que o núcleo secreto e esotérico da tradição judaico-cristã-islâmica é na realidade o paganismo. Esse equívoco está em plano inteiramente diverso do “ecumenismo esotérico” (termo de Schuon) que nos permite ver verdadeiras afinidades entre as religiões abraâmicas e certos “paganismos altos”, como o orfismo ou o neoplatonismo.

Escritores com formação em psicologia junguiana, ou interessados em mitógrafos como Joseph Campbell, tentarão rotineiramente traçar toda e qualquer passagem bíblica ou doutrina judaico-cristã a sua suposta raiz “pagã” — cegamente, automaticamente, e sem trégua. Paralelos certamente existem, mas a ideia, raramente questionada em meios mitopoéticos e neopagãos, de que o judaísmo e o cristianismo são na verdade paganismo disfarçado, é simplesmente falsa.

Ela ignora séculos, senão milênios, de perseguição dirigida contra os judeus pelas mais poderosas nações pagãs do Oriente Próximo; ignora a perseguição da religião judaica levada adiante pelos gregos selêucidas pagãos; ignora a perseguição tanto de judeus quanto de cristãos pelo paganismo greco-romano sob o Império Romano; ignora a posterior contra-perseguição, pelos cristãos, do paganismo greco-romano; ignora a destruição muçulmana de cultos pagãos; ignora séculos de polêmica teológica de judeus contra pagãos, pagãos contra cristãos e judeus, e cristãos e muçulmanos contra pagãos.

Essas perseguições e contra-perseguições não foram apenas políticas; representavam também reais divergências doutrinais. As religiões abraâmicas, quaisquer diferenças que tivessem entre si, e quaisquer recaídas em direção ao paganismo em que possam ter incorrido, partilharam uma oposição clara e deliberada a ele, assim como os pagãos, em geral, se opuseram às religiões abraâmicas. Os dois campos diferentes criam em coisas diferentes, sabiam disso e o diziam. Por outro lado, as religiões abraâmicas partilham com a religião egípcia, e com as raízes órfico-pitagóricas arcaicas do paganismo clássico, uma relação com aquilo que Guénon e os tradicionalistas chamam de Tradição Primordial.

Mas essa Tradição não deve ser estritamente identificada nem com o paganismo nem com o monoteísmo abraâmico, embora as religiões abraâmicas a tenham preservado em forma mais pura do que o paganismo degenerado da Antiguidade tardia. Em todo caso, o paganismo de que Frazer e Graves trataram pouco se assemelha à verdadeira Tradição Primordial, ainda que qualquer um que compreenda essa Tradição possa sempre reconhecer, mais ou menos, restos degenerados dela no material apresentado por ambos os escritores, bem como na religião teutônica, no druidismo celta, na religião babilônica e nos mitos gregos e romanos.

Materialismo sutil

Como lhe falta uma doutrina sólida e bem articulada da transcendência, a New Age tende a um materialismo sutil. O Divino e o meramente cósmico são frequentemente confundidos. Deus é concebido como uma forma de energia útil que pode ser captada e manipulada pelos seres humanos, algo na linha da “Força” dos filmes Star Wars.

A Divindade transpessoal, de que o Deus pessoal é a primeira manifestação formal, é imaginada antes como uma fonte impessoal de energia ou um conjunto de leis naturais, na linha da gravitação ou da energia nuclear. A pessoa humana é sutilmente desvalorizada; o reconhecimento do valor eterno e qualitativo da pessoalidade, já que é falsamente identificado com um egoísmo “humano-demais”, é substituído por um culto quantitativo da energia. Os segredos dos mundos celestes devem ser encontrados na estrutura do DNA humano. O senso da Eternidade é substituído pelos paradoxos espaço-temporais da física pós-einsteiniana.

As palavras “Deus” e “universo” são usadas de modo intercambiável; para Deepak Chopra, por exemplo, Deus é o “computador cósmico”. E, para José Argüelles, como antes para Timothy Leary, o Centro do Ser já não está virtualmente em toda parte — e, portanto, a ser encontrado, do ponto de vista humano, nas profundezas transcendentais do Coração espiritual —, mas passa a ser identificado com o centro da galáxia. É claro que todo o conceito de Ser, em comparação com o da metafísica tradicional ou mesmo da teologia exotérica, sofreu um rebaixamento quântico.

Um dos sinais de tal materialismo na New Age é a idolatria dos cristais. Conheci adeptos New Age que agiam como se possuíssem, em cristais de quartzo, fluorita ou ametista, verdadeiros pedaços de Deus. Essa cristalolatria, em nossa cultura pós-cristã, provavelmente se baseia em uma compreensão decadente da Encarnação de Cristo — ou talvez numa intuição da forma final “cristalizada” que será assumida por este ciclo de manifestação (a Jerusalém Celeste do Apocalipse), mal-interpretada de modo literalista. Segundo o simbolismo tradicional, as joias de que a Jerusalém Celeste é composta são sabedorias celestes.

O uso de joias, cristais e minerais coloridos como ferramentas mágicas — ao menos fora do xamanismo tradicional — indica, portanto, uma degeneração em nossa compreensão coletiva da própria Sabedoria. Sophia já não é venerada como raio da Natureza Divina; a matéria em si, espelho de Sophia, é que é adorada. A matéria, como Einstein provou, libera enorme poder — mas apenas em seu ponto de dissolução. Assim, nosso culto da matéria é essencialmente um culto de poder autodestrutivo e contraditório.

O lado mais luminoso da New Age: cura psíquica e holística

A New Age, em um nível, representa a redescoberta ou reinvenção de muitas ciências cosmológicas tradicionais, embora fora de um contexto religioso e metafísico que pudesse orientá-las com segurança para o Absoluto. Por exemplo, muitos praticantes New Age possuem um conhecimento prático sofisticado de energias sutis, que, até certo ponto, pode legitimamente ser usado com finalidade terapêutica. Mas onde, exatamente, se encontra esse limite?

Deveria ser óbvio que é um exagero chamar de demoníacas certas terapias físicas vagamente New Age, como a integração estrutural (“Rolfing”), como alguns cristãos conservadores tendem a fazer, que poderiam proibir um cristão de praticar, por exemplo, a postura invertida do hatha-yoga como terapia para sinusite crônica ou para melhorar o suprimento de sangue ao cérebro, sob o argumento de que isso não é cristão e, portanto, é anticristão e, logo, satânico. O fato é que ficar de cabeça para baixo às vezes cura sinusite, e que o trabalho corporal profundo pode melhorar a postura e eliminar dores crônicas.

E proibir, digamos, a prática ecologicamente correta da agricultura biodinâmica só porque foi desenvolvida pelo “ocultista cristão” Rudolf Steiner seria igualmente tolo.

A prática é uma coisa, o paradigma que lhe deu origem é outra. Poder-se-ia, com igual ou maior razão, recusar a implantação cirúrgica de uma válvula cardíaca artificial, ou de uma lente intraocular, ou de uma prótese de quadril, porque tais intervenções se baseiam no paradigma que vê o corpo humano como máquina biológica, e não como “imagem e semelhança de Deus”.

Por outro lado, o paradigma necessariamente influencia a prática, de maneiras nem sempre óbvias; é preciso certo grau de discernimento espiritual para ver onde termina a prática e começa o sistema de crenças daqueles que a desenvolveram. Ida Rolf, por exemplo, explicava a integração estrutural em termos influenciados pela teosofia moderna, que é essencialmente um ocultismo anticristão.

Mas o fato é que a teosofia apresenta, em forma distorcida, material roubado de ensinamentos tradicionais válidos, como a doutrina hindu dos kośas, as várias “vestes” do Ser Divino em nós — intelecto, mente, corpo etc. —, doutrina estritamente análoga a ensinamentos dos Padres cristãos sobre a natureza trina do homem — espírito, alma e corpo — e sobre as várias faculdades da alma.

Se um membro de família foi raptado e violado, não o rejeitamos quando nos é devolvido, mas trabalhamos para curá-lo e reintegrá-lo à família. O mesmo é — ou deveria ser — verdadeiro quanto a doutrinas tradicionais esquecidas que foram tomadas em forma distorcida pelo ocultismo. Ainda assim, se você não consegue substituir seu quadril sem pensar em si mesmo como um robô sem alma, ou passar por uma sessão de Rolfing sem aderir a ideias ocultistas distorcidas, então é melhor não o fazer.

Nutrição, herbologia, várias formas de trabalho corporal, acupuntura… tudo isso pode ser aplicado, por praticantes bem treinados, com bons resultados. Minha esposa e eu nos beneficiamos muito da integração estrutural, que, no caso dela, eliminou problemas posturais de que sofrera a maior parte da vida.

Tipos de cura que utilizam exercícios respiratórios, como o Rebirthing, são mais ambíguos, já que ativar à força os sistemas sutis de energia do corpo pode ser perigoso física e psicologicamente, sobretudo quando praticado fora de formas tradicionais, como o prāāyāma ióguico, que exige dieta e estilo de vida específicos, a orientação de um mestre e até um quadro doutrinal tradicional para ser praticado com segurança. O Rebirthing foi muito útil para mim em épocas de grande estresse, mas o paradigma em que se baseia, que inclui em alguns casos a fantasia da imortalidade física, é um claro inconveniente que precisa ser filtrado.

Quando a forma de cura em questão lida com energias psicofísicas ainda mais sutis que as ativadas pelo controle da respiração, ela se torna mais ambígua. E quando tais energias são concebidas como modificadas ou intensificadas pela intervenção de “entidades curadoras” do plano psíquico, como é tradicionalmente comum no xamanismo, a situação torna-se ainda menos certa e mais exposta a perigos ocultos.

Eu mesmo experimentei benefícios de algumas dessas práticas. Por exemplo, a energia canalizada por uma igreja japonesa New Age, a Joh-rei Fellowship — que parece ter origem em nível muito elevado do plano psíquico —, parece inteiramente benigna. O motivo por que deixei de frequentá-la, depois de muitos anos de experiência positiva, teve mais a ver com a divergência entre a visão de mundo da metafísica tradicional, que se tornara central para mim, e a de uma nova religião japonesa devotada a trazer o paraíso à terra, embora sua doutrina da futura “purificação” do mundo não seja totalmente diversa das escatologias tradicionais, ainda que com um viés New Age.

O Joh-rei incorpora muitos elementos tradicionais budistas, xintoístas e (em última análise) taoístas/xamânicos; ainda assim, a “graça barata” da experiência talvez estivesse interferindo de modo sutil com minha disposição de confiar em minhas próprias práticas espirituais mais tradicionais e em minha fé em Deus.

O Joh-rei parece relativamente seguro, na medida em que não parece abrir o corpo etérico ou de energia sutil. Várias outras formas de cura psíquica, contudo, que de fato intervêm com força no nível da energia sutil, podem, sem querer, abrir a pessoa a outras influências, que estão longe de ser saudáveis.

Os curadores mais poderosos dessa categoria são os cirurgiões psíquicos das Filipinas. Experimentei esse poder em várias ocasiões, tanto nas Filipinas quanto aqui nos Estados Unidos. Embora haja alguns charlatães, os que conheci são genuínos. Estou convencido disso, tendo observado várias operações e tendo sido operado por eles. Como não há como eu provar isso, o leitor terá de limitar-se a acreditar que eu acredito.

Esses curadores têm o poder de abrir partes do corpo humano com as mãos nuas para remover matéria estranha e tecido doente, virtualmente desmaterializando áreas específicas, que em seguida se recompõem imediatamente, como água em uma bacia que não deixa buraco quando se retira dela um objeto. Há pouca ou nenhuma dor, e nenhum período de convalescença, exceto um processo de “voltar ao normal” em nível de energia sutil, que pode levar um ou dois dias.

Embora os cirurgiões psíquicos possam abordar a cura de condições graves ou apenas incômodas de formas impossíveis à ciência moderna, sua taxa de sucesso, segundo suas próprias estatísticas, é comparável: um terço curado, um terço melhorado e um terço inalterado. Eu geralmente estava no segundo terço.

Embora a maioria dos cirurgiões psíquicos sejam cristãos e atribuam seu poder ao Espírito Santo — o que não há razão para, necessariamente, duvidar —, é claro que utilizam uma técnica xamânica antiga. Poderes similares foram atribuídos a xamãs em muitas partes do mundo, embora a maioria dos primeiros exploradores costumeiramente as explicasse como truques de prestidigitação, outra antiga prática “espiritual” ainda usada por charlatães hoje.

Creio que os cirurgiões psíquicos trabalham através do mundo dos devas ou dos jinn, seres residentes no plano psíquico que podem interagir com o plano material em certas circunstâncias. Alguns desses seres são claramente benéficos e podem de fato estar operando sob a bênção do Espírito Santo. Ainda assim, a cirurgia psíquica não é miraculosa. Dá a impressão de ser uma tecnologia psíquica antiga e sofisticada, desenvolvida por culturas que eram tão avançadas nesse campo quanto nós o somos em nossa própria marca de magia de alta tecnologia. É uma intervenção bem-intencionada de indivíduos altamente treinados e orientados para o serviço. Não é um ato direto de Deus.

Os cirurgiões psíquicos genuínos que conheci são poderosos e benevolentes. Ajudaram muita gente. Contudo, é verdade que tal cirurgia, e outras formas de cura psíquica que lidam com o corpo de energia sutil, trazem perigos ocultos. Um perigo é que possamos nos viciar em presenciar prodígios e comecemos a perder a fé, já que estamos agora tentando fundamentá-la na demonstração: “prova” não é fé. “Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram.”

E, se a cirurgia física expõe ao risco de infecção pós-operatória, o mesmo pode ser verdadeiro para a cirurgia psíquica em nível mais sutil. Se o paradigma de “livrar-se do mal” não for subordinado ao paradigma de “abrir-se à verdade e ao amor de Deus”, essa purificação meramente negativa pode resultar na condição descrita na parábola de Jesus, em que o demônio expulso vagueia por lugares áridos, lembra-se de sua antiga “casa”, volta e a encontra “varrida e adornada”, como que pronta para recebê-lo, e traz consigo sete demônios piores do que ele. (A ex-terapeuta New Age Clare McGrath-Merkle escreve com grande lucidez sobre essa possibilidade, a partir de dura experiência pessoal, bem como sobre os perigos psíquicos, psicológicos e físicos do trabalho com energias sutis e da “magia branca” em geral.)

Quanto a mim, só posso compartilhar dois fenômenos interessantes. Tendo recebido ajuda clara dos cirurgiões para um problema de saúde preocupante, adquiri o hábito de visitá-los sempre que vinham à minha região. Então notei algo curioso: se num primeiro momento eram úteis, nas duas últimas vezes em que os procurei meu problema voltava, em pequena escala, pouco antes de sua chegada, como se precisasse estar ali só para que eles o pudessem curar. Seria a própria presença deles a atrair mais impurezas à superfície? Ou eu havia entrado em uma zona de retornos decrescentes e de apegos sutis? Felizmente, meu dilema foi resolvido por meu diretor espiritual que, com gentileza mas firmeza, pediu que eu parasse de vê-los.

O segundo fenômeno — comparável, em termos emocionais, a ver um muro de tijolos desabar sobre um trecho de calçada por onde se vinha caminhando — foi que, após minha última visita aos cirurgiões psíquicos, sonhei com o Anticristo. Não tomo isso necessariamente como significando que os cirurgiões sejam de fato seus servos — embora Deus saiba melhor. Mas permanece o fato de que a “religião psíquica” que se apoia em sinais e prodígios estará entre os primeiros territórios a serem conquistados e ocupados pelo Anticristo quando ele vier… e, quando as embarcações de desembarque forem lançadas e o bombardeio naval começar, não é boa ideia ficar na praia.

Nove princípios da New Age

O Dr. Rama Coomaraswamy, em um artigo intitulado “A dessacralização do hinduísmo para consumo ocidental”, enumera nove princípios New Age, que ele toma de um livro da Dra. Catheryn Ridall, Ph.D., e que representam a essência dos “ensinamentos espirituais” canalizados hoje. Abaixo segue um resumo deles, em que tento separar os elementos de verdade espiritual da matriz de erro que é a doutrina New Age.

Uma falsificação é pior do que um simples erro. Esses nove princípios estão cheios de equívocos que, no entanto, são precisamente concebidos para obscurecer verdades metafísicas específicas. E o efeito de tais contrafações é que “se você faz, está condenado; se não faz, também”. O Diabo adora empregar falsificações, porque aceitá-las é ser levado ao erro, ao passo que rejeitá-las sem expô-las — isto é, sem trazer à luz o verdadeiro princípio que a falsificação foi concebida para esconder — é ser manobrado a rejeitar a verdade que está sendo imitada.

Tentarei desconstruir os “princípios” que se seguem, expor as falsificações de que são feitos e apresentar os princípios tradicionais que elas velam:

1.      Evolução universal da consciência rumo a maior amor e compaixão.

Isto é certamente falso se aplicado à coletividade humana ou ao universo material. A receptividade da consciência encarnada e condicionada pelo tempo à Realidade Divina cresce e decresce de modo cíclico, e a receptividade humana a Deus, no plano coletivo, encontra-se hoje em queda acentuada e irreversível. A verdade encoberta aqui é que o destino da alma individual no caminho espiritual é “evoluir” no sentido de “desenrolar o que foi enrolado”, dissolvendo o núcleo duro de egotismo e de vontade própria.

Essa “evolução” inclui certamente o desenvolvimento da compaixão — em termos do budismo mahayana, “a realização do vazio (não-ego) é idêntica à compaixão” —, mas (e aqui o princípio é enganoso por ser incompleto) essa “evolução” resulta também no desenvolvimento de um verdadeiro conhecimento objetivo.

2.      No contexto da evolução universal da consciência, podemos ser guiados tanto por seres mais ‘evoluídos’ do que nós quanto por partes superiores de nós mesmos que também estão evoluindo.

É certamente verdade que pessoas mais sábias do que nós, seja porque nasceram mais sábias, seja porque percorreram mais do caminho espiritual, podem às vezes ser designadas por Deus para nos guiar, se preenchermos as condições necessárias — desde que nós e elas compreendamos que, em última análise, Deus é o único guia.

E, em casos raros — como o do guia sufi Khidr, considerado um profeta imortal, desencarnado, ou melhor, habitando um corpo sutil como o Cristo glorificado —, seres mais “avançados” do que nós podem legitimamente nos guiar de modo ao qual possamos responder conscientemente. Mas crer que essa possibilidade rara torna desnecessário conectarmo-nos a uma tradição revelada e colocarmo-nos (se Deus quiser) sob a orientação de um representante humano plenamente autorizado dessa tradição, supondo que exista um, é falso.

E crer que o contato consciente e contínuo com um “guia” desencarnado seja normal — para qualquer um que não seja um feiticeiro, isto é, alguém em comunhão com seu espírito familiar - e que tal contato não é uma porta aberta para a possessão demoníaca é uma ilusão profundamente enganosa. Além disso, dizer que podemos ser guiados pelo nosso “eu superior”, que também está evoluindo, é falso; tentar orientar-se espiritualmente para algo que ainda está no reino do devir é reduzir o significado de “orientação espiritual” a zero.

Se há algum sentido para o termo “eu superior”, ele só pode referir-se, não a jiva (a alma individual), mas ao atman, o nível de Espírito em nós que Eckhart indicou quando disse: “há algo dentro da alma que é incriado e incriável”. O atman não nos guia no sentido de que possamos travar com ele uma conversação, mas porque, como “o Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente” (Schuon), Deus no modo de Testemunha, ele representa a moksha virtual (termo hindu para a Libertação final), no sentido em que o Buda falava ao dizer que “todos os seres são iluminados desde o princípio”, embora soubesse muito bem que nem todos os seres, dentro de um determinado período de tempo, viriam a realizar essa iluminação.

Reflexos psíquicos do atman, sugestivos dele embora não devam ser identificados com ele, certamente podem aparecer em sonhos ou visões. Esses reflexos serão enganosos, ambíguos ou veículo da Graça de Deus, dependendo da vontade de Deus para aquela pessoa e de seu estado espiritual. The Psychology of Sufism, do Dr. Javad Nurbakhsh, por exemplo, contém um catálogo de símbolos oníricos do Coração espiritual, que Jung chamaria de símbolos do arquétipo do Self. Mas tais símbolos só funcionam como marcos psíquicos confiáveis dentro do contexto do próprio sufismo, assim como os símbolos da Cabala só funcionam para cabalistas iniciados e praticantes, etc.

3,4. A terra está em um ponto crítico de seu desenvolvimento; estamos testemunhando uma grande mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual; estamos caminhando rumo a maior maturidade espiritual; a terra passará por uma purificação de valores e da organização social; haverá mudanças terrestres como terremotos.

É verdade que a terra está em um ponto crítico, mas a mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual e organização social não é rumo a maior maturidade espiritual, mas rumo ao caos e à dissolução. É verdade que haverá, e já há, mudanças terrestres, como foram preditas por Jesus para o fim do século, e verdade que haverá uma purificação. Mas essa purificação será apocalíptica, não progressiva, e representará o fim da humanidade atual. O “novo céu e a nova terra” serão para “outra” humanidade.

5.      Guias estão agora aparecendo para nos ajudar através dessa transição para uma era de paz; novas energias de frequência mais elevada causarão distúrbios menores no comportamento.

É falso que estejamos em transição para um tempo de paz, a não ser que se trate de uma paz falsa e temporária; portanto os “guias” que afirmam estar nos ajudando através dessa transição são enganosos. Nem os distúrbios atuais de comportamento são “menores”, para dizer o mínimo. É verdade, de certo modo, que estamos encontrando “energias superiores”, mas isso se dá porque nosso próprio nível de integração está caindo a tal ponto que a Graça sempre presente de Deus só pode ser experimentada, no plano coletivo, como ira, já que não somos receptivos a ela. O “nível de energia”, ou nível ontológico, da parousia ultrapassa de tal maneira aquilo que o mundo pode receber que o despedaçará, abrindo caminho para “um novo céu e uma nova terra”.

6.      O ser humano é uma parte de uma alma ou eu-divino multidimensional; somos muito mais do que pensamos ser.

Verdadeiro e falso. Como disse Jesus, “vós sois deuses, e todos filhos do Altíssimo”. Mas ele equilibrou isto dizendo: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, que é Deus”. É verdade que a humanidade existe simultaneamente em mundos mais altos do que o material, a saber, o psíquico e o Espiritual. Não ascendemos simplesmente a esses mundos, nem neles ingressamos pela primeira vez quando morremos, porque a “Grande Cadeia do Ser” representa o “raio” mediante o qual Deus nos criou e mantém na existência, instante após instante.

Se, porém, nos voltamos contra esses mundos superiores — dando nossa fidelidade ao ego em lugar de dá-la a Deus —, então eles se tornarão nosso Inferno: a psique, um caos angustiado; o Espírito em nós, uma Luz cortante e cegante que nos força a afastar-nos do Centro radiante do Ser, como as legiões de Miguel expulsando o Demônio e seus anjos para o abismo. A questão central é esta: esses aspectos mais elevados de nosso ser são reivindicados pelo ego, como se fôssemos autocriados, ou são vistos como dom de Deus, de nosso próprio ser, que não podemos reivindicar como nosso nem mesmo em termos materiais?

Os adeptos da New Age gostam da ideia de que existimos simultaneamente em mundos superiores; com o que têm maior dificuldade é com o fato de que “aquele que quiser salvar sua vida a perderá, mas aquele que perder sua vida por amor de Mim a encontrará”. Isto porque querem reivindicar esses mundos superiores para o ego; ensinam que podemos entrar e “explorar” esses mundos como espécie de atividade de lazer, por uma simples expansão incremental de nosso “potencial humano”, sem piedade, sem sacrifício, sem temor de Deus. Sua doutrina é essencialmente prometeica; escolhem esquecer que “quem nasce duas vezes precisa morrer uma vez”.

7.      Criamos nossa própria experiência em todos os níveis; não há vítimas; criamos nosso próprio sofrimento como experiência de aprendizado.

É falso dizer que criamos nossa própria experiência se o “nós” em questão é a psique individual, porque a psique não se cria a si mesma, sendo totalmente contingente em relação ao Espírito de Deus, e porque outras psiques individuais existem; o solipsismo aqui implícito é assim refutado tanto “vertical” quanto “horizontalmente”. Há, entretanto, um sentido em que isso é verdadeiro, mas apenas em sentido negativo, já que certamente criamos algumas de nossas próprias limitações perceptivas. Em vez de “criamos nossa própria realidade”, seria melhor dizer “criamos nossas próprias ilusões, que então se tornam nossa ‘realidade’”.

A psicologia da percepção demonstrou até que ponto nossa visão do mundo é um padrão aprendido, determinado tanto pela cultura quanto pela experiência pessoal, senão por uma série de escolhas baseadas no medo e no desejo. Isso significa que, na medida em que tomamos o mundo que percebemos como algo absoluto, estamos aprisionados em um padrão subjetivo, ao passo que, se percebemos que esse padrão subjetivo de experiência é relativo, que, em face da Realidade objetiva, ele não passa de uma privação, então começamos a libertar-nos dele, já que passamos a intuir a Matriz Absoluta da qual tal padrão é apenas uma versão editada.

Assim, quando os crentes da New Age dizem “criamos nossa própria realidade”, minha resposta é “Sim e não. Nossa mente e nossos sentidos não projetam essa ‘realidade’ sobre o nada, mas a abstraem a partir do Infinito, que é a verdadeira Realidade; a ‘realidade’ que criamos é uma limitação imposta ao Infinito”.

Dizer “não há vítimas” é verdade se com isso queremos dizer que tudo, em sentido último, é um ato de Deus, e Deus é justo — como diz Schuon, mesmo o sofrimento do inocente é justificado do ponto de vista que vê a própria existência cósmica, embora em certo sentido necessária, como um desequilíbrio diante do Absoluto. Nas palavras de Rabi’a: “a tua existência é um pecado com o qual nenhum outro pecado pode ser comparado”.

A ideia de que não há vítimas é uma interpretação da lei do karma — mas, se se dá a entender nessa interpretação que a caridade para com os que sofrem não é obrigatória para nós, já que “isso é apenas o karma deles”, ou que podemos tornar-nos libertos simplesmente criando ilusões para nós mesmos e depois vendo através delas, então ela é falsa. O karma não é um sistema autoexaurível; sem dharma, a verdade operante que eleva alguém acima do nível de causa e efeito kármico ao afirmar a realidade da autotranscendência, o karma nunca pode ser “vivido até o fim”; sem a Misericórdia da Verdade de Deus, livremente dada e livremente aceita, juntamente com sua “cruz”, a ilusão nunca pode ser dissipada. A danação é a prova de que nem todo sofrimento tem o poder de iluminar.

8.      A matéria segue o pensamento; nossa realidade física é criada, e pode ser mudada, por nossas crenças.

A matéria segue o pensamento de Deus, não o nosso; sugerir o contrário, dizer que somos cocriadores por direito próprio, é falso. É verdade que nossa experiência pode ser mudada ao mudarmos nossas crenças, mas essa mudança não pode ser soberana nem arbitrária. Não podemos simplesmente acreditar no que quisermos e pensar que estamos assim controlando o mundo, porque realmente há uma realidade objetiva, tanto em nós quanto fora de nós, algo que é exatamente o que é, não importa o que aconteça de acreditarmos.

E é também provável que tenhamos tão pouco controle sobre nossos desejos, sobre aquilo em que queremos crer, quanto sobre o mundo exterior. Acreditar que podemos mudar o que é mudando o que cremos a respeito do que é é a fantasia de onipotência do ego infantil expandida em falso princípio metafísico.

Uma mudança de crença pode alterar nossa experiência de duas maneiras apenas: se conformarmos nossas crenças à Verdade espiritual objetiva, veremos o universo como ele realmente é, ao mesmo tempo contingente em relação a essa Verdade e manifestação dela; se nossas crenças forem determinadas pelo ego, que interpreta o mundo ao seu redor apenas com base nos próprios medos e desejos, nada perceberemos e produziremos senão caos.

Agora, em sentido mais limitado, é verdade que uma pessoa profundamente deprimida, por exemplo, acreditará que menos coisas são possíveis em relação ao seu entorno físico, enquanto alguém em estado maníaco pode temporariamente ser capaz de responder a possibilidades físicas e psicológicas reais que o deprimido não consegue ver — mas não sem consequências graves, já que ele não percebe as limitações inerentes a tais possibilidades, que estão objetivamente lá, independentemente da crença.

É certamente verdade que um santo pode ser veículo de milagres físicos, mas isso nada tem a ver com manipulação de crença, sendo operação direta de Deus tornada possível pela fé. Um mago também pode ser capaz de produzir mudanças na matéria física ou em situações, e poder-se-ia dizer que consegue fazê-lo porque acredita que consegue, mas as manifestações reais são produzidas por forças psíquicas que existem quer ele creia nelas, quer não. O mago branco necessariamente compreenderá que é veículo de forças de um plano mais sutil, mas o mago negro frequentemente acredita, falsamente, que comanda tais forças; ele aplica o ingênuo credo cotidiano de que “sou capitão do meu destino, senhor da minha alma” a planos mais sutis, não querendo entender que quem quer que creia que, com seu ego limitado, comanda as forças de um reino mais sutil, está na verdade escravizado por elas.

A prática da magia é como emitir cheques sobre uma conta no vermelho: embora você talvez possa “descontá-los” e assim produzir “fenômenos”, eles serão fenômenos de dívida, não de valor. “E não sairá dali enquanto não tiver pago o último centavo.” O ego não pode produzir nada além de privação; todo poder e todo valor pertencem a Deus.

É verdade que, se todos conformássemos perfeitamente nossa consciência à Realidade espiritual objetiva, o mundo material se dissolveria e seria transformado em Paraíso. Mas isso está tão distante quanto possível da ideia de que nossas crenças criam a realidade a partir do nada, visto que tal conformação perfeita — que, obviamente, é impossível em termos práticos — não poderia ser função de crença, que vê “como por espelho, em enigma”, mas apenas de verdadeiro conhecimento objetivo. Como ressaltei acima, o ego não cria; ele apenas edita.

9.      Embora nossa expressão individual demonstre grande diversidade, somos todos, em última análise, um.

Verdade. A única questão é: em que sentido somos um? Se isto se entende horizontalmente, no plano social ou em termos de participação nos mesmos motivos subconscientes, então o melhor que se pode dizer é que, para o bem ou para o mal, estamos relacionados, ou apenas “relativamente unos”. Nossa verdadeira unidade é vertical, em virtude do atman ou Self Divino em nós; somos todos criações, ou manifestações simbólicas, do único Self Divino. Em virtude desse atman somos, no mais profundo nível do nosso ser, ao mesmo tempo únicos e universais.

O Self em nós é Ser puro, transpessoal, universal, sem atributos; em outro sentido, está até além do Ser. Mas, como Deus é único bem como universal, o Self é também o princípio de nossa integridade humana única, segundo a qual não somos simplesmente a humanidade em abstrato, mas seres humanos efetivos, ordenados por Deus a ser precisamente nós mesmos, nem mais, nem menos, nem outros.

E, contudo, essa singularidade é também universal, já que é partilhada por todos os seres humanos e, de fato, por todas as coisas. O Self como princípio de unicidade não é outro que o Self como princípio do Ser puro, como quando Deus, falando a Moisés no Êxodo, nomeia-se a Si mesmo “Eu Sou o que Sou”, isto é: “Minha Essência única não é outra que Meu Ser puro; é Minha Essência única ser o Ser puro”. E o que Deus pode dizer de Si mesmo, podemos igualmente dizer, pelo menos virtualmente, de Deus, o atman em nós.

E mais dois

A esses nove princípios, gostaria de acrescentar outros dois que creio serem igualmente integrantes da crença New Age:

10. Que psique e Espírito são idênticos.

11. Que a espiritualidade é uma conquista pessoal, um feito, um tour-de-force.

Como demonstro em muitos lugares ao longo deste livro, ambos esses princípios são inteiramente falsos.

Os cristãos não estão sozinhos

Como a New Age é em grande parte um fenômeno “pós-cristão” e, com frequência, abertamente anticristão, a maioria das críticas a ela (se deixarmos de lado os humanistas seculares, que tendem a ver todas as religiões mais ou menos como seitas) veio do campo cristão. A maioria, mas não todas.

Em The Desacralization of Hinduism for Western Consumption, o Dr. Rama Coomaraswamy, um católico tradicional que viveu por muitos anos, na juventude, como hindu ortodoxo, traça as carreiras de Sri Aurobindo, Maharishi Mahesh Yogi e Bagwan Shree Rajneesh, apresentando-os como exemplos de mestres hindus espúrios cuja influência sobre a New Age foi profunda e ampla; tais mestres de modo algum representam o hinduísmo normal. Escreve Coomaraswamy: “Que pensam os expoentes ortodoxos do hinduísmo sobre Mahesh Yogi? A pergunta foi feita a Sua Santidade Sri Chandraskharendra Sarasvati, Sri Shankaracharyaswami de Kamakoti Peetha, 68º Acharya na linha de Kamakoti Peetha e uma das mais altas autoridades dentro da tradição hindu. Sua resposta foi que o homem era um impostor!”

Um segundo grupo que tem sido crítico da New Age, por ter sido diretamente vitimado por ela, são os anciãos espirituais tradicionais nativo-americanos. Os trechos seguintes, de um artigo de Gary Knack na edição da primavera de 1997 do jornal indígena Akwesasne Notes, mostram como os problemas com “New Age med men” são semelhantes aos escândalos mais conhecidos envolvendo mestres hindus e budistas ocidentalizados, pastores protestantes e padres católicos.

Há por aqui vários chamados “homens-medicina”, de ascendência nativa,
que se perverteram e lançaram uma doença sobre o povo. Um deles,
como muitos sabem, usou sua posição respeitada para molestar sexualmente
crianças. Ao se descobrir esse fato, a palavra foi dada para ficar quieto,
pois isso poderia prejudicar o movimento. Muitos de seus seguidores,
em sua maioria brancos, permaneceram ao lado dele e continuaram
trabalhando nas comunidades brancas ignorantes no sul da Califórnia.
… Um chamado “homem-medicina”, de ascendência lakota, foi promovido
localmente [em Ashland, Oregon] por um professor universitário, seu
agente. Tornou-se bem conhecido, e ainda é, por seus livros e excursões
New Age… fomos informados por uma das mulheres brancas, que iam
regularmente suar conosco, de que esse “med man” tinha um histórico
local de sondar sexualmente mulheres nas cabanas de suor… alguns do
grupo de Los Angeles e seguidores do molestador de crianças
aproximaram-se do “med man” New Age com dinheiro na mão e
quiseram iniciar uma
sundance multirracial nos arredores de Ashland.
Feito. Começou em 1988. Recusamos aproximar-nos disso. Passamos a
ver a confusão derivada à medida que o “med man” a dirigiu por vários
anos. Inflou egos já inchados; famílias se desintegraram; um dos auxiliares
nativos cometeu suicídio em Dakota do Sul; outro supostamente cometeu
assassinato; houve confrontos armados por causa de drogas; a “cerimônia”
foi alterada para adequar-se às sensibilidades brancas, e por aí vai.
Alguém mais assumiu depois que o “med man” acabou se afastando,
mas o estrago já estava feito e a doença se espalhando. Os que queriam
ser passaram a ser “homens e mulheres-medicina”. Já estão vendendo
fitas de vídeo sobre o cachimbo sagrado e outras práticas cerimoniais.

As práticas espirituais nativo-americanas, tradicionais e não tradicionais, tornaram-se altamente comercializadas em círculos New Age. Mas, como escreve Don R. em um editorial intitulado Are Non-Native Americans Meddling in American Indian Ways? (New Perspectives, A Journal of Conscious Living, 8 de julho de 1994):

Vender ou trocar objetos sagrados como penas de águia ou cachimbos sagrados
é contrário a todos os Ensinamentos Espirituais Nativo-Americanos
e à lei federal. Eles só podem ser dados, sem apego, para Cerimônia.
Quebrar esse modo seguirá você pela eternidade no Pós-vida.
Nenhum dinheiro ou supostos “Dons de Medicina” será aceito por ensinamentos,
especialmente por Cerimônia. Nossos Modos sagrados são um dom
dos Avôs e do Criador, e você não barganha com o Criador.

Autoridades da New Age: uma casa dividida

Certamente se encontram verdades em todos os filósofos, e sobretudo meiasverdades,
mas essas verdades são ladeadas por erros e incoerências, e, além disso,
não são necessárias. … Verdades embutidas em erros estão carregadas, de forma indireta,
com o veneno de seu contexto errôneo. …
FRITHJOF SCHUON, “Letter on Existentialism”, The Essential Writings of Frithjof Schuon

I. A falácia do absoluto psíquico:
verdade e engano em
The Seth Material

O professor Huston Smith, em Beyond the Post-Modern Mind, traçou o desenvolvimento da visão de mundo pós-moderna dentro da disciplina formal da filosofia, e da academia em geral. Mas, enquanto os acadêmicos se afastavam do modernismo — que, embora franzisse o cenho para a metafísica, ainda acreditava em uma realidade objetiva comum baseada na ciência, na história e na psicologia — rumo à atual negação pós-moderna de qualquer “paradigma abrangente” que pudesse transpor os distintos mundos culturais com que todos temos de lidar nesta era de pluralismo e globalismo, a mente popular, tão opaca à academia quanto a academia o era para ela, seguia um curso paralelo, provando que, embora possa não haver realidade objetiva — doutrina que nego com entusiasmo —, certamente há um zeitgeist comum.

Enquanto professores desconstruíam o modernismo em seus departamentos de literatura e filosofia, uma dona de casa do norte do estado de Nova York fazia o mesmo para a mente de massa, ou ao menos para aquele segmento dela aberto a ideias “New Age”.

A filosofia “canalizada” mais sofisticada e influente do movimento New Age do pós-Segunda Guerra, à parte A Course in Miracles, é sem dúvida o material de Seth, ditado por meio de Jane Roberts. Os livros representativos são provavelmente The Seth Material (Prentice-Hall, 1970; citações da edição Bantam Books, 1970), Seth Speaks: The Eternal Validity of the Soul (Prentice-Hall, 1972) e The Nature of Personal Reality: A Seth Book (Prentice-Hall, 1974).

Mrs. Roberts, que morreu em 1983, era uma ex-católica semiboêmia que escrevia ficção científica antes de começar a canalizar Seth, a quem primeiro contatou através do tabuleiro ouija e depois canalizou em estado de transe. Os livros acima, e outros, incluindo suas obras de ficção, praticamente sozinhos atualizaram o espiritualismo para um público pós-guerra mais “sofisticado”, iniciaram a atual onda de “canalização” e exerceram poderosa influência sobre o “trabalho com sonhos” contemporâneo, incluindo o “sonho lúcido”.

O material de Seth é, em certos aspectos, uma releitura do espiritualismo à luz da física einsteiniana e pós-einsteiniana, da teoria quântica e da psicologia junguiana. Eu mesmo, enquanto buscador não tradicional, interessei-me bastante por ele em certa época.

“Seth” é muito mais sofisticado, espirituoso e aparentemente mais inteligente do que os açucarados “guias espirituais” de outros tempos. Ele apresenta uma visão de mundo em que cada um de nós vive muitas vidas “reencarnacionais”, exceto que — de seu ponto de vista desencarnado — elas são simultâneas, não sucessivas, e todas são facetas de uma única “entidade” consciente, que por sua vez é apenas um aspecto de uma “entidade” maior, e assim por diante, numa hierarquia ascendente, até “All That Is” ou “o Deus Multidimensional”.

Seth também fala, como muitos físicos modernos, de “realidades prováveis”, e ensina que, sempre que escolhemos um curso de ação entre vários, outros “eus prováveis” escolhem atualizá-los, de modo que toda possibilidade de experiência é vivida, num mundo provável ou noutro. Nossos diversos eus prováveis também são capazes, em certas condições, de comunicar uns com os outros, permitindo-nos escolher futuros prováveis diferentes e mais positivos. E, assim como vivemos simultaneamente muitas vidas prováveis, Deus Se atualiza em muitos universos prováveis, ou versões prováveis de Si mesmo, razão pela qual é chamado de “Multidimensional God”.

Traços de doutrinas esotéricas válidas podem ser encontrados nos ensinamentos de Seth. A ideia da multidimensionalidade de Deus lembra o termo de Frithjof Schuon maya-in-divinis, a doutrina de que todo o mundo da manifestação existe como multiplicidade potencial dentro da natureza essencialmente unitária de Deus, ou o conceito sufi da multiplicidade dos Nomes Divinos — análogos às “Energias Divinas” de São Gregório Palamas —, cada um dos quais contém todos os outros.

E uma doutrina semelhante à de Ibn al-‘Arabi, sobre o anseio primordial dos “arquétipos permanentes” (ayan al-thabita) de serem atualizados cosmicamente pelo Hálito do Misericordioso (nafas al-Rahman), por meio daquele aspecto pungente e nostálgico da criatividade divina que Henry Corbin, em Creative Imagination in the Sufism of Ibn Arabi, chama de “teopático”, pode ser encontrada em The Seth Material.

Seth ensina que o mundo material é recriado momento a momento, doutrina chamada no Islã de “ocasionalismo” — um escorregão irônico da língua, já que ele classifica o Islã como religião de segunda categoria, muito inferior ao cristianismo, ainda que ambos sejam inferiores ao budismo. E o conceito de Ibn al-‘Arabi de nosso “Senhor” como a face pessoal do Absoluto transpessoal, voltada para nós somente, é ecoado na afirmação de Seth de que “[a] parte de All That Is que está consciente de si mesma como você… pode ser invocada para auxílio quando necessário. … Essa parte que se conhece como você, e como mais do que você, é o Deus pessoal, veja” (The Seth Material, p. 270).

Mas tudo é transposto para um nível psíquico em que o paradigma dominante é “a exploração aventureira do Ser através do desenvolvimento de nossos poderes psíquicos”, e é salpicado de erros graves, como a ideia (em The Seth Material, p. 267) de que, se All That Is não tivesse resolvido o problema de como entidades finitas poderiam ser atualizadas no contexto do Absoluto e do Infinito (questão respondida de forma adequada na Cabala pela doutrina do Tsim-Tsum, a retração criadora de Deus em Sua própria Essência para “dar espaço” aos seres criados), então todo o universo teria sido insano, ou de que All That Is está eternamente buscando um Deus maior do que Ele mesmo, A respeito de Quem Ele não tem certeza de que exista.

Esse último ensinamento nada mais é que um mal-entendido da doutrina tradicional sobre a relação entre Deus e Deidade, Saguna Brahman e Nirguna Brahman, Ser e Além-do-Ser, doutrina que afirma (na formulação de René Guénon) que o Ser, longe de buscar o Além-do-Ser, é precisamente a afirmação do Além-do-Ser. É verdade que certos escritores muçulmanos falam da nostalgia do Ser por Aquilo que o transcende, derivando a palavra Allah de uma raiz que denota “nostalgia”. A nostalgia do Ser pelo Além-do-Ser é, porém, o eterno mergulho do Deus pessoal de volta em Sua própria Essência; não é uma incerteza inquieta de Sua parte quanto a saber se essa Essência existe. Aqui podemos ver como o material de Seth se alimenta e ao mesmo tempo distorce um estrato muito mais profundo de ensinamento esotérico do que aquele a que os antigos guias espirituais, ou mesmo os teosofistas e ocultistas, conseguiram ter acesso.

Não obstante, o conceito que Seth apresenta de Deus, pelo menos em certos textos, é esclarecedor em muitos aspectos. Na página 241 de Seth Speaks, ele diz:

o termo “ser supremo” é em si mesmo distorcivo, pois vocês naturalmente projetam sobre ele as qualidades da natureza humana. Se eu lhes dissesse que Deus é uma ideia, vocês não entenderiam o que quero dizer, pois não compreendem as dimensões nas quais uma ideia tem sua realidade, ou a energia que ela pode originar e pôr em movimento. Vocês não creem em ideias da mesma forma que creem em objetos físicos, de modo que, se eu disser que Deus é uma ideia, vocês interpretarão mal isto como se significasse que Deus é menos que real — nebuloso, sem realidade, sem propósito e sem ação motivada.

Foi em parte graças a passagens como essa, no material de Seth, que cheguei a compreender que as Ideias objetivas não são abstrações, mas realidades densamente compactadas e conscientes, em relação às quais os planos psíquico e material são relativamente abstratos — razão pela qual a teosofia islâmica, como a de Suhrawardi, por exemplo, pode representar as Ideias platônicas como anjos. Sou grato a “Seth” por me ter ajudado a vislumbrar essa percepção; não sou grato pela associação de tais verdades a falsidades enganosas. Se eu não tivesse rompido essa associação, jamais teria chegado ao limiar da ortodoxia. E a própria passagem acima é distorcida de várias maneiras.

Em primeiro lugar, Deus em Sua Realidade mais profunda é “superessencial”, além mesmo do nível “arcoangélico” das Ideias eternas, inteligíveis, vivas, conscientes e poderosas. Em segundo lugar, divorciar as Ideias da Pessoalidade, como Seth faz quando reclama do termo “ser supremo”, é empurrar essas Ideias em direção a uma abstração. A pessoalidade, como tantos hoje parecem pensar, não é o reino do ego e de sua banalidade; a consciência do ego, como versão editada da Pessoalidade condicionada por atitudes psíquicas coletivas, está mais próxima da abstração impessoal do que da verdade das pessoas vivas. Assim como o mistério das Ideias ou dos símbolos está no fato de que são entidades vivas e conscientes, o mistério das pessoas está no fato de que elas também são Ideias, símbolos, Energias Divinas, Nomes de Deus. Separar a natureza simbólica da natureza pessoal da Realidade é banalizar as pessoas e tornar abstratos os símbolos.

Ainda mais exata do que a passagem citada é esta descrição da Natureza divina em Seth Speaks, pp. 245–246:

Deus é mais do que a soma de todos os sistemas prováveis de realidade que Ele criou, e ainda assim Ele está dentro de cada um deles, sem exceção. Ele está, portanto, dentro de cada homem e mulher. Ele está também dentro de cada aranha, sombra e sapo, e é isso que o homem não gosta de admitir. (…) Por outro lado, Ele é humano, na medida em que é uma porção de cada indivíduo; e, dentro da vastidão de Sua experiência, Ele mantém uma “forma-ideia” de Si mesmo enquanto humano, à qual vocês podem se relacionar. Ele literalmente Se fez carne para habitar entre vocês, pois Ele forma a carne de vocês, na medida em que é responsável pela energia que dá vitalidade e validade ao seu eu privado multidimensional, que por sua vez forma sua imagem de acordo com as suas próprias ideias.

É em passagens como esta que Jane/Seth se aproxima do nível da metafísica tradicional, como a de Ibn al-‘Arabi. A doutrina tradicional da Transcendência e da Imanência é claramente expressa, assim como o conceito esotérico do Arquétipo do Homem in divinis. Não obstante, a descrição de Deus como uma “porção” do indivíduo é incorreta; e há também o perigo de que a centralidade da forma humana na existência terrestre — que inclui, como símbolo encarnado dessa centralidade, a unicidade da Encarnação de Cristo — possa ser obscurecida pela descrição, inegavelmente verdadeira, que Seth oferece da Imanência de Deus como uma Encarnação cósmica.

Mas o material de Seth nem sempre emana de um nível de compreensão tão elevado e, quando fica aquém desse nível, cai muito baixo, como veremos. (Por exemplo, na p. 280 de The Nature of Personal Reality, Seth — como Madame Blavatsky — fala de épocas em que “as linhas entre espécies não estavam completamente traçadas”, quando “homens e animais se misturavam”.)

Em The Nature of Personal Reality, p. 480, Seth afirma que, pelo menos em relação aos indivíduos, “a perfeição não é um ser, pois todo ser está em estado de devir. Isso não significa que todo ser está em estado de tornar-se perfeito, mas em estado de tornar-se mais ele mesmo”. Trata-se da reformulação, por Seth, da ideia junguiana de “individuação”, muito provavelmente pescada no inconsciente de Jane, a qual, quando aplicada ao indivíduo humano, tende a cavar um fosso entre autorrealização e autotranscendência.

A meu ver, seria melhor dizer que me torno mais eu mesmo ao realizar mais profundamente o Self em mim, ao aprender melhor a ver minha subjetividade contingente e o universo dimensional que ela habita a partir dessa perspectiva Absoluta. E, em termos ontológicos (como na teologia do processo e em todos os outros erros modernos que subordinam o ser ao devir), a frase nega a Perfeição de Deus no nível do Ser puro.

A perfeição de Deus, Sua “autorrealização”, na medida em que Ele é “ato puro”, corre aqui o risco de ser definida apenas em termos de Sua criatividade — como quando, na p. 241 de Seth Speaks, se diz que “Deus… é, antes de tudo, um criador…”. Mas Ele não é, antes de tudo, um criador. Antes de tudo, Ele é Ele mesmo, Um sem segundo, que em nada necessita “exteriorizar-Se” enquanto universo. No nível do Ser puro, Ele é a única Realidade, além de “interior” e “exterior”; a criação, ainda que virtual dentro d’Ele, está perfeitamente unida à Sua Natureza essencial. Deus não precisa “provar-Se” por meio da criatividade. Ele emana o universo simplesmente porque não há barreira em Sua Natureza que impeça que isso aconteça.

Não obstante, no nível em que Ele existe enquanto Criador em relação a este universo, Ele quer conscientemente criar, embora não como decisão arbitrária. Como disse Einstein, “Deus não joga dados com o universo”. Como Deus é Ato, não há fronteira n’Ele entre aquilo que Ele é e aquilo que Ele escolhe.

A tendência a exaltar o devir em detrimento do ser, assim como a necessidade de multiplicar entidades, universos prováveis e dimensões espaço-temporais, baseia-se em parte na incapacidade de conceber a Eternidade da Natureza divina como algo diferente de uma espécie de petrificação ou estagnação, uma condição estática e morta que invalida e congela todo movimento criador — ao passo que, na realidade, a Eternidade está viva em sua própria quietude, libertando eternamente todas as possibilidades na existência dimensional simplesmente por transcender a todas elas. Em termos taoístas, Ela realiza tudo precisamente por não fazer nada.

A devoção de Seth/Jane ao devir e à criatividade, em detrimento da límpida paz e da irradiação do Ser puro, parece fundar-se, como o é com a maioria das pessoas, num medo da perda ou da invalidação do eu. Na p. 182 de Seth Speaks, Seth adverte:

Não há nada mais mortal do que o nirvana. Pelo menos seus conceitos cristãos
lhes dão alguma esperança crepuscular de um paraíso sufocante e entediante,
onde sua individualidade ao menos pode se expressar, e o nirvana não
lhes estende tal conforto. Em vez disso, oferece-lhes a aniquilação de sua
personalidade, numa bem-aventurança que destrói a integridade do seu ser.
Fujam de tal bem-aventurança!

À parte a deturpação do nirvana como aniquilação literal do eu — a doutrina budista considera tanto a crença na autoaniquilação do Buda no Nirvana quanto a crença em sua permanência individual como extremos desequilibrados e, portanto, erros —, e a imagem de um paraíso cristão que só alguém morto para todos os valores poéticos poderia levar a sério, dada a trovejante, joalhada, multidimensional e viva resplandecência da Jerusalém Celeste nos capítulos 21 e 22 do Apocalipse, comparável à revelação visionária da Forma Universal de Krishna na Bhagavad-Gita, esse mau conselho espiritual denota simplesmente um medo de “morrer” para um nível mais baixo e estreito de ser, a fim de renascer num nível mais alto e amplo.

Sem dúvida é por isso que Jane, sob a tutela de Seth, se empenha tanto em esticar, expandir, transformar e multiplicar seu eu psíquico: é o mesmo medo humano primordial inato de morrer para a psique subjetiva, a fim de renascer no, e como, Espírito Objetivo Absoluto. Melhor reencarnação, simultânea ou não, e cem universos prováveis, do que essa única morte para uma Vida maior. Como Seth/Jane diz na p. 282 de Seth Speaks, “o desenvolvimento se desdobra em todas as direções. A alma não está subindo uma série de degraus, cada um representando um novo e mais alto ponto de desenvolvimento”.

Isso é literalmente verdadeiro em relação à alma, mas não é verdadeiro quanto à metanoia pela qual a alma é transcendida e o Espírito realizado. Pode aplicar-se à criatividade, portanto, mas não à contemplação.

Nas pp. 481–482 de The Nature of Personal Reality, Seth expõe a contradição e o dilema:

Não há nada mais pomposo do que a falsa humildade. Muitas pessoas que se
consideram buscadoras da verdade e espirituais estão cheias dela. Com frequência
usam termos religiosos para se expressar. Dirão: “Eu não sou nada, mas o espírito de Deus
move-se através de mim, e, se faço algum bem, é por causa do Espírito de Deus e
não por causa de mim mesmo”, ou: “Eu não tenho habilidade alguma em mim.
Somente o poder de Deus tem qualquer habilidade.”

Agora: Nesses termos, vocês são o poder de Deus manifestado. Vocês não são
impotentes. Ao contrário. Através do seu ser, o poder de Deus é fortalecido,
pois vocês são uma porção daquilo que Ele é. Vocês não são simplesmente um
insignificante e inócuo pedaço de barro através do qual Ele decide manifestar-Se.

Trata-se de uma passagem altamente significativa, tanto pela verdade que expressa quanto pelo erro que revela. Se alguém quiser saber como um mal-entendido do cristianismo, assim como das religiões orientais, deu origem à New Age, está tudo aí.

Certamente existem pessoas como as que Seth descreve; é possível usar a verdade de que todo poder e bondade são atribuíveis apenas a Deus como meio de negar o orgulho espiritual — uma vez que secretamente se identifica o próprio ego com esse Ser todo-bom e todo-poderoso —, bem como de apegar-se à própria impotência e condição de vítima, como se se fosse esperar por um milagre divino de levitação, em vez de simplesmente levantar da cama de manhã. Mas, como deveria ser óbvio, não foi isso que Cristo quis dizer quando afirmou: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um só, que é Deus” (Lc 18,19).

Essa forma de “humildade” é apenas sombra da verdade — e definir uma verdade em função de sua sombra é tão injusto e impreciso quanto definir um ser humano amoroso, inteligente e corajoso em função, digamos, de uma pequena gagueira ou de um tique facial. É um golpe baixo.

Como Seth diz, eu sou o poder de Deus manifestado. Se, porém, atribuo esse poder à parte limitada, egoica, de mim mesmo, perco o ponto: o ego pode ser o recipiente — ou talvez o ladrão —, mas Deus é a Fonte. Colocar o ego no lugar de Deus é bloquear a corrente da vitalidade divina e entrar no mundo das sombras.

Mas, se atribuo toda bondade, verdade e poder a Deus, ao mesmo tempo em que reconheço que nada sou em mim mesmo senão uma manifestação d’Ele, a “resistência” a essa corrente é superada. Se nada sou em mim mesmo, então sou todo Deus. Se, porém, me vejo como uma parte de Deus por meio de cuja existência “o poder de Deus é fortalecido”, como se eu, em minha minúscula condição de criatura, pudesse de algum modo acrescentar algo ao Infinito, então sou apenas parcial.

E, quando as consequências dessa parcialidade chegarem, quando minha “cocriatividade” se revelar como usurpação, por mim, de algo que não me pertence, pareço então um “insignificante pedaço de barro”, uma retraída e carrancuda falta de resposta à graça e ao poder de Deus. A identificação do ego com Deus é resistência a Deus; a arrogância prometeica é a face oculta da falsa humildade. Nas palavras de William Blake, “a vergonha é o manto do orgulho”.

Mas, se de fato nada sou diante da Glória de Deus, então o insignificante pedaço de barro que pensa poder resistir a essa Glória é dissolvido.

A dissolução do ego, contudo, não é negação, repressão nem invalidação da pessoa humana. Em minha pessoalidade, sou uma face viva de Deus; o ego é simplesmente tudo quanto se interpõe entre mim e esse conhecimento. Minha nada reconhecida é apenas minha libertação do fardo ilusório da minha autocriação. Em termos sufis, o outro lado da minha aniquilação em Deus — fanā — é minha subsistência em Deus — baqā.

Subsistindo n’Ele, conheço-me completamente contingente n’Ele; vejo como eu, em minha singular pessoalidade, sou exatamente aquilo que Deus quer que eu seja. Deus reconhece um certo aspecto de Si mesmo em mim somente; nenhuma outra pessoa, objeto ou entidade pode ocupar esse lugar. E a raiz de minha singularidade é a minha aniquilação. É sob a luz desse princípio que a bela passagem de Seth Speaks, p. 384, deve ser compreendida: “(…) cada homem sabe em seu íntimo que sua vida consciente depende de uma dimensão maior de atualidade. Essa dimensão maior não pode ser atualizada num sistema tridimensional; ainda assim, o conhecimento dessa dimensão maior jorra do âmago mais íntimo do ser, transformando tudo o que toca”.

Diz-se que Seth tem o poder de perscrutar todo o espaço e tempo, bem como reinos que os transcendem. Ele fala sobre civilizações perdidas, condições sociais e espirituais no tempo de Cristo, e possíveis desenvolvimentos futuros na sociedade e na psique humana. No entanto, o seu conhecimento do cristianismo e das religiões orientais — algo que pode ser verificado por meio de textos reais e do saber de mestres vivos — se assemelha muito mais ao de uma dona de casa New Age autodidata, interessada em religião e espiritualidade.

Na p. 273 de The Nature of Personal Reality, Seth afirma que “muitas (…) escolas orientais também enfatizam — assim como numerosas escolas espiritualistas — a importância dos ‘níveis inconscientes do eu’ e ensinam vocês a desconfiar da mente consciente”. Isso pode ou não ser verdadeiro em relação ao espiritualismo, especialmente sob influência da psicologia junguiana, mas não é de fato característico das “escolas orientais” com as quais estou familiarizado.

O Vedānta sublinha a necessidade de tomarmos consciência de nossa identidade com o Absoluto interior; ele não nos ensina a confiar nesse Absoluto apenas como um substrato inconsciente. A palavra buddha significa desperto, não adormecido; a prática central do budismo theravāda é a atenção plena, não a inconsciência. Seth, por outro lado, muitas vezes falava através de Jane Roberts quando ela estava tão inconsciente que não tinha a menor ideia do que ela (ou Seth) dizia até sair do transe. Parece evidente que certo grau de “projeção” está atuando aqui.

Na p. 400 de Seth Speaks, o “deus hebreu” é destacado como símbolo do ego humano em emergência a partir de uma identidade arcaica com a natureza (refletindo conceitos de antropólogos como Lévy-Bruhl, que foi importante influência para Carl Jung e seu discípulo Erich Neumann, autor de The Origin and History of Consciousness); “Deus torna-se aliado do homem contra a natureza”.

Essa religião hebraica de um “deus superintendente (…) irado e justo e às vezes cruel” é contraposta aos antigos politeísmos que reconheciam a sacralidade da natureza via o conceito de um Deus Supremo onipresente, do qual os vários deuses são expressões. Parece que Seth está se referindo às religiões pagãs de fertilidade da África e do Oriente Próximo.

Entretanto, o deus babilônico Marduk é um símbolo muito mais claro do ego emergente do que Yahweh, uma vez que ele mata heroicamente o monstro marinho arcaico feminino Tiamat e cria as ordens celeste e terrestre a partir dos fragmentos de seu corpo estraçalhado — embora haja algumas indicações, no Antigo Testamento, de que um mito de criação semelhante possa ter sido atribuído a Yahweh em outra época.

E não seria o deus pagão Moloch, a quem se sacrificavam crianças queimando-as vivas, um símbolo melhor da crueldade do ego, já que Yahweh é também amoroso e misericordioso? Talvez; mas, como o Zeitgeist, então e agora, favorece a reabilitação do paganismo e a deturpação do judaico-cristianismo, esses fatos precisam ser ignorados.

Na p. 401, a religião anti-natural dos hebreus é contraposta às religiões anteriores em que os homens aprendiam por meio da comunicação com uma natureza viva. O que, então, fazer do rico simbolismo natural do Livro de Jó, ou da história veterotestamentária do profeta Elias sendo alimentado por corvos? E como interpretar a seguinte passagem do Livro da Sabedoria hebraico?

É ele [Yahweh] que me deu o conhecimento infalível daquilo que existe, para conhecer
a estrutura do mundo e a atividade dos elementos, o começo e o fim dos tempos, a alternância dos solstícios e a mudança das estações, o ciclo do ano e as constelações das estrelas, a natureza dos animais e o temperamento das feras, o poder dos espíritos e os pensamentos dos homens, a variedade das plantas e as virtudes das raízes;
aprendi tanto o que está oculto quanto o que se manifesta.
SABEDORIA 7,17–21

Seth/Jane parece ser um bom psicólogo e saber muito sobre como a realidade material emerge do domínio psíquico. Não tenho dúvida de que parte do que ele/ela ensina nesse nível é exata e útil. Ele/ela também se mostrou um(a) clarividente altamente hábil.

Mas, dado que sua compreensão daquilo que transcende a dimensão psíquica é radicalmente incompleta e, em alguns casos, distorcida, é difícil separar o trigo do joio.

Um dos princípios centrais do ensino de Seth, e de muitas outras filosofias New Age, é que a crença cria a realidade: “Você faz a sua própria realidade”, diz ele; “não há outra regra. Saber disso é o segredo da criatividade” (The Nature of Personal Reality, p. 16).

Mas o que exatamente é uma crença? Ela não pode existir no vácuo; tem de ser crença em algo, convicção de que algo é de fato o caso. Contudo, se toda realidade é criada pela crença, então nada existe objetivamente para que a crença diga respeito. E, se nos tornamos conscientes de que a realidade é criada pela crença, em vez de a crença conformar-se a algo que a transcende — a saber, a realidade —, então a crença, enquanto convicção de que algo é de fato o caso, não pode existir. Dizer que a crença cria a realidade, em vez de dizer que a realidade está lá, e que a crença ou a espelha ou dela se afasta, é tornar a crença efetivamente impossível.

Na p. 20 de The Nature of Personal Reality, Seth declara: “Vocês tomam suas crenças sobre a realidade como verdade…”. E, na p. 26:

Vocês precisam perceber que qualquer ideia que aceitem como verdade é uma crença que sustentam.
Precisam, então, dar o passo seguinte e dizer: “Ela não é necessariamente verdadeira, ainda que eu acredite nela”.
Vocês irão, assim espero, aprender a descartar todas as crenças que impliquem limitações básicas.

Ele está ensinando, em outras palavras, que crenças devem ser distinguidas da realidade e que a realidade, em essência, é ilimitada. Não tenho nenhuma objeção a isso. Mas, na p. 24, ele sustenta, como princípio fundamental, que “Você cria a sua própria realidade” — por meio da crença.

Em vez de distinguir realidade de crença para que a crença possa conformar-se mais diretamente à realidade, Seth parece querer distingui-las de maneira que possamos mudar a realidade para servir às nossas necessidades. Ele sugere que, se cremos em algo porque é verdade, estamos simplesmente sendo estreitos de mente, especialmente quando essa crença limita nossas opções.

Ensinar ao mesmo tempo que a realidade está além da crença e que é criada pela crença é uma contradição clara. A contradição surge porque, segundo Seth, a “realidade” não é nem um mundo material objetivo nem uma ordem metafísica objetiva, mas o “eu”; de acordo com outro de seus princípios fundamentais (também p. 24), “o Eu não é limitado”.

Mas, é claro, nossos egos contingentes e subjetivos são limitados por definição; o único Eu ilimitado é o atman interior, Deus enquanto Sujeito Absoluto. Será esse o “Eu” a que Seth se refere? Vejamos.

Na p. 16, logo após afirmar que “Você faz a sua própria realidade”, Seth qualifica sua afirmação:

Falei de “vocês”, mas isto não deve ser confundido com o “vocês” que vocês costumam julgar ser — apenas o ego, pois o ego é apenas uma parte de Vocês; é aquela parte de vocês que lida diretamente com o conteúdo de sua mente consciente, e está mais diretamente preocupada com as porções materiais de sua experiência.

Está sendo implícito, portanto, um Eu maior, com E maiúsculo (You), virtualmente idêntico a Deus. Mas Seth também ensina que cada um de nós cria, via crença, um mundo pessoal único. Como Deus cria todos os mundos, esse Vocês maior, do qual o ego consciente é apenas uma parte, não pode ser Deus. Temos aqui, como em boa parte da doutrina New Age, uma confusão entre os eus contingente e Absoluto.

“Cada um de vocês”, diz Seth, “independentemente de posição, status, circunstância ou condição física, tem controle sobre a sua própria experiência pessoal” (p. xxii). Na realidade, porém, só Deus tem controle absoluto, mesmo sobre uma área limitada de existência como uma vida individual. Minha identidade limitada e condicionada, ainda que transcenda meu ego cotidiano, não pode usurpar esse poder, como talvez tenha ficado evidente quando Jane Roberts morreu relativamente jovem de uma doença incapacitante.

Somente se eu realizei o atman é que o “eu” pode reivindicar esse poder, porque, nesse ponto, é Deus — não eu — quem diz “Eu Sou” em mim.

Aqui encontramos o erro inevitável das filosofias psíquicas que negam (ou, como nas doutrinas de Seth, hesitam em afirmar) a existência de uma ordem metafísica objetiva, e ainda assim se esforçam para transcender o materialismo: elas são obrigadas a ver o mundo como criação da psique subjetiva. A crença subjetiva precisa determinar as condições materiais, porque a única alternativa seria que as condições materiais determinassem a crença, fazendo da consciência um epifenômeno da matéria, como no materialismo marxista.

Mas, assim como a consciência não pode ser reduzida à matéria porque, nas palavras de C. S. Lewis, “o conhecimento de uma coisa não é uma das partes dessa coisa”, ela tampouco pode ser definida como produto de uma crença arbitrária operando no vácuo, como projeção voluntária de uma entidade encarnada ou desencarnada, ou de uma massa delas.

Crença não é ato soberano de criação, mas imagem mais ou menos exata de algo que já está lá, antes de crermos nele. Na medida em que a crença se conforma à realidade, ela liberta. Na medida em que dela se afasta, aprisiona.

E uma crença não deve ser considerada verdadeira apenas quando nega as limitações do eu individual, e falsa quando as afirma. Algumas limitações individuais são produto de crenças falsas e desnecessárias; outras representam os limites necessários de toda existência contingente. A crença se conforma à realidade não negando as limitações do eu individual, mas apresentando-nos uma visão do Eu Absoluto, para além e dentro de todas as individualidades contingentes.

Nenhuma quantidade de refinamento de nossas habilidades criativas ou expansão e multiplicação de nossas percepções psíquicas pode somar-se à realização desse Eu.

Em The Nature of Personal Reality, p. xxii, Seth declara: “O mundo tal como vocês o conhecem é um quadro de suas expectativas. O mundo tal como o gênero humano o conhece é uma materialização em massa de suas expectativas individuais.” De certo modo isso é verdadeiro, embora não se estivermos entendendo que um indivíduo ou uma raça possam ter um controle total e consciente sobre os acontecimentos. Essa “materialização”, porém, não é um ato de criação, mas um ato de atenção. Nossa experiência individual e coletiva baseia-se em parte nos aspectos da criação eterna de Deus aos quais escolhemos prestar atenção; mas esse campo de escolhas perceptivas também é limitado — limitado de modo providencial — pela forma humana na qual Deus nos criou.

Essa forma nos situa entre um modo de percepção singularmente plástico, virtualmente capaz de perceber qualquer coisa na experiência terrestre, bem como em planos superiores da realidade que constituem o “caule” vivo dessa experiência, e nossa capacidade de contemplar o Absoluto. Nossa tarefa delegada, pela qual realizamos no espaço e no tempo, bem como em planos psíquicos e espirituais superiores, nossa forma eterna na mente de Deus, não é perseguir todas as possibilidades inerentes a esse modo plástico de percepção — fazê-lo seria dissolver-nos no ilimitado e perder a forma humana —, mas sim subordinar esse modo de percepção, em contemplação, ao Absoluto, até o ponto em que cheguemos a ver, como universo, precisamente aquilo que Deus vê em nós, já que passamos a ver com o olho de Deus.

Não gostamos de ser lembrados do truísmo de que nossa crença só nos liberta se se conforma à realidade, porque a palavra “realidade” denota hoje em grande parte “realidade material”, e nos rebelamos contra o reducionismo implicado por nossa própria definição falsa. Sentimos, com razão, que deve haver algo além das condições materiais grosseiras, mas não vemos aonde voltar-nos em busca disso senão à nossa própria subjetividade. E, como parecemos ter mais poder para controlar nossas fantasias do que para afetar a realidade material, queremos acreditar que de algum modo podemos controlar a realidade material por meio de nossas fantasias. Afinal, não é exatamente isso que todo inventor bem-sucedido faz? A fantasia do voo produziu o avião; a fantasia da visão remota produziu a televisão. Esquecemos que o inventor, para ser bem-sucedido, precisou conformar suas ideias às normas da realidade objetiva material de forma mais estrita do que nós provavelmente faremos em toda a nossa vida.

E, no entanto, existe algo como criatividade. Existe a atualização de possibilidades. Tais possibilidades não são meras crenças arbitrárias tornadas atuais no espaço e no tempo, mas realidades objetivas que existem em um plano mais elevado da Grande Cadeia do Ser do que a psique subjetiva; é por isso que a criatividade pode, sob certas condições, fazer parte da contemplação — ou, melhor dizendo, por que a contemplação deve estar na base de toda criatividade verdadeira, se ela não há de nos conduzir à escuridão espiritual.

Além da psique subjetiva, com suas crenças, há o plano psíquico objetivo, com seus reflexos vivos dos arquétipos eternos; além desses reflexos estão os próprios arquétipos, tal como se revelam na contemplação, transcendente por completo ao plano psíquico. É verdade que o plano material como um todo é manifestação parcial do plano psíquico, que é manifestação parcial do plano celeste ou arquetípico, que é manifestação parcial do Logos, que é manifestação parcial de Deus. Mas isso não significa, como afirma Seth, que os seres conscientes do universo criam o plano material como uma materialização em massa de crenças. Quem cria o universo é Deus, não nós.

Visto que a psique é superior à matéria e, portanto, funciona como causa próxima desta, podemos dizer que Deus cria o plano material através de nós, mas somente depois de nos criar primeiro. O papel de nossas crenças é ou conduzir-nos mais profundamente à realidade material e às experiências que ela proporciona, ou conformar-nos mais estreitamente ao arquétipo espiritual através do qual Deus nos criou, e, por fim, ao próprio Criador. Porém, quer nossas crenças nos levem a elaborar mais amplamente os planos de manifestação psíquica e material — por meio da arte e da tecnologia, por exemplo — quer nos conduzam a vislumbrar, contemplar e unir-nos ao nosso arquétipo espiritual, elas jamais criam algo novo. Crenças alteram, sem dúvida, a experiência; no nível mais fundamental — um nível tão profundo que transcende todas as vicissitudes da vida condicionada —, elas são as únicas coisas que podem fazê-lo.

Se seremos salvos ou perdidos, iludidos ou iluminados, depende em grande medida, num certo estágio do caminho, da crença. Mas elas não podem criar; só podem condicionar, limitar, modular. Somente se a realidade fosse experiência individual, como afirmam as filosofias psíquicas, é que as crenças poderiam criar, e somente se não houvesse nada ontologicamente superior ao plano psíquico é que seríamos obrigados a definir a realidade como experiência individual, em vez de definir a experiência individual como visão mais ou menos exata da realidade.

Podemos ser “sub-criadores”, então, mas não cocriadores. Só Deus é Rabb al-‘ālamīn, Senhor dos mundos. Podemos construir e desconstruir; só Deus cria.

Quanto à doutrina de Seth sobre multiplicidade de vidas reencarnacionais experimentadas simultaneamente do ponto de vista de um “eu interior”, estou perfeitamente disposto a aceitar a premissa de que Charles Upton é uma face de uma “entidade” maior, cujas outras faces existem em outros lugares e tempos, passados, presentes e futuros — uma entidade que, por sua vez, é face de uma consciência viva ainda maior. (Seth chama indivíduos que habitam meu próprio tempo e estão ligados a mim por um arquétipo comum de “contrapartes”.)

Isso está mais ou menos em linha com a imagem tradicional da Grande Cadeia do Ser como uma árvore invertida (cf. a Árvore da Vida no Gênesis), cujas raízes se ocultam no “céu”, no Absoluto informe. No meu caso, tais faces podem incluir o poeta William Blake, o cabalista Isaac Luria (ou seu discípulo Hayyim Vital) e uma mulher chamada Teodosia, que parece ter sido filósofa cristã platônica vivendo na região do Mediterrâneo oriental, talvez no século III. Assim como a congregação de uma igreja partilha o mesmo santo padroeiro, sem dúvida compartilho com muitas pessoas que jamais encontrarei o mesmo “arquétipo padroeiro”. (Segundo a doutrina de Ibn ‘Arabī, todo “amigo de Deus” no Islã pertence à família de um certo profeta. Maomé é o “tronco” da Árvore da Vida para todos os muçulmanos, ao passo que o “ramo” particular de Ibn ‘Arabī, no qual ele era, por assim dizer, uma “folha”, é o profeta Jesus.)

Estou também disposto a aceitar que todas as “vidas” unidas por uma entidade comum são percebidas por essa entidade como simultâneas; essa “eternidade relativa” é chamada, na teologia cristã ortodoxa, de “tempo eônico”. O que não aceito é que isso seja descrição de reencarnação. Charles Upton não é reencarnação de Isaac Luria ou William Blake, assim como o galho de uma árvore não é, de fato, um ramo menor num outro galho separado. Estamos unidos não horizontalmente, de galho a galho, como se estivéssemos ligados por uma trepadeira parasita, mas verticalmente, em virtude do fato de brotarmos do mesmo tronco.

Portanto, o único meio vivo pelo qual posso entrar em contato com as demais almas eternas que brotam do mesmo arquétipo ou Nome de Deus que eu é através desse próprio arquétipo. Tentar contatá-las horizontalmente, como se fossem vidas passadas (ou futuras) de Charles Upton, é aprisioná-las solipsisticamente na casca do meu ego, violar a integridade delas e usurpar o terreno de suas relações pessoais únicas com nosso arquétipo comum. É relacionar-me a elas não como almas humanas completas, mas apenas como fantasmas. E, uma vez que eu realize plenamente o nosso arquétipo, tais excursões horizontais pelo tempo multidimensional, na tentativa de contatar as faces perdidas do “meu” ser, tornam-se desnecessárias.

Essas excursões podem, em alguns casos, representar fases iniciais da irrupção desse arquétipo; talvez tenham representado assim para mim. Mas, se eu nunca tivesse transcendido o paradigma reencarnacionista, se jamais tivesse entendido que unidade é ontologicamente superior à multidimensionalidade, teria sido disperso aos quatro ventos.

Em Beyond the Postmodern Mind, pp. 39–40, Huston Smith observa que, quando o pós-modernismo nega qualquer realidade objetiva fora daquela “construída” por uma dada cultura, isso é logicamente equivalente à negação de qualquer realidade fora daquela construída pelo indivíduo (e, em última análise, eu acrescentaria, pelos complexos, subpersonalidades e momentos aleatórios e desconexos de percepção dentro desse indivíduo). “Subjetividades sócio-culturais, linguísticas, enclausuradas em si mesmas” não são senão “solipsismos sociais ou coletivos”.

É aqui que a mitologia de Seth se revela como forma popular da ideologia pós-moderna. Se todo ponto de vista subjetivo é absoluto, então não pode haver relação entre eles. E, se não pode haver relação, todas as experiências, todos os objetos e todas as outras pessoas são apenas aspectos de “mim”. Assim, se eu preciso relacionar-me com “outros” — e qual de nós não precisa? —, a única abordagem possível é relacionar-me a outros “eus”: vidas passadas, vidas futuras, versões prováveis e contrapartes presentes de Charles Upton.

Esse narcisismo pós-moderno, ou solipsismo, inseparável da negação da realidade objetiva, é facilmente discernível na epistemologia de Seth. Na p. 127 de The Seth Material, ele usa uma taça de vinho nas mãos de Jane, visível a duas outras pessoas na sala, para sustentar que

Nenhum de vocês vê o copo que o outro vê. (…) Cada um de vocês três cria o seu próprio copo, em sua perspectiva pessoal. Portanto, vocês têm aqui três copos físicos diferentes. (…) Cada indivíduo cria, de fato, um objeto inteiramente distinto…

Immanuel Kant negava, na prática, que as três pessoas nessa sala pudessem jamais experimentar a taça de vinho enquanto “coisa em si”; tudo que poderiam perceber seriam três conjuntos irredutíveis de “fenômenos”. Ainda assim, o copo-em-si, o númeno, era real. Coube à filosofia pós-moderna — e a Seth — negar a realidade do próprio númeno.

(Quando a frustração diante de tal degeneração filosófica me toma, às vezes alivio-me imaginando que estou no saguão de um hotel onde acontece um congresso de pós-modernismo. Uma mulher que assiste ao congresso aproxima-se e me pede indicações para a garagem. “Isso depende de você”, respondo. “Sua garagem está onde você decidir construí-la. Além disso, não posso ajudá-la; estou estacionado em outra garagem.”)

E, se alguém objetar que a absolutização, por Seth, dos pontos de vista individuais não é propriamente solipsismo, já que ele concede o mesmo estatuto “absoluto” à percepção de cada indivíduo, não apenas à de Jane Roberts ou Charles Upton, peço que considere a seguinte afirmação de The Nature of Personal Reality, p. 4:

Vocês projetam seus pensamentos, sentimentos e expectativas para fora, depois os percebem como realidade externa. Quando parece a vocês que outros os estão observando, são vocês que estão se observando do ponto de vista de suas próprias projeções.

Em outras palavras, eu jamais posso ser experiência válida para os outros, nem eles para mim. O conhecimento objetivo de outros enquanto pessoas — em outras palavras, o amor humano — está filosoficamente descartado. Talvez a única saída do “o inferno são os outros”, de Sartre, pelo menos para o solipsista pós-moderno integral, seja: “mas, felizmente, não há outros”.

Todavia, para fazer justiça a Seth/Jane, devo citar também um exemplo da concepção oposta:

O mundo interior de cada homem e mulher está ligado ao mundo interior da terra. O espírito se faz carne. Parte da alma de cada indivíduo, então, está intimamente ligada ao que vocês chamam de alma do mundo, ou alma da terra.

A menor brizna de erva, ou flor, tem consciência dessa ligação, e sem raciocinar compreende sua própria posição, sua singularidade e sua fonte de vitalidade. Os átomos e moléculas que compõem todos os objetos, quer seja o corpo de uma pessoa, uma mesa, uma pedra ou um sapo, conhecem o grande impulso passivo da criatividade que jaz por baixo da sua própria existência, e sobre o qual flutua sua individualidade, clara, distinta e inatacável.

THE NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 4.

O que está longe de ser certo aqui é se Seth/Jane percebe que essa visão, inegavelmente bela em seu próprio nível e verdadeira nesse mesmo nível, contradiz a visão solipsista anterior. Se todos os objetos são sencientes, como três pessoas observando “uma” taça de vinho podem criar três taças físicas diferentes? A própria taça não “sabe” que é taça, uma coisa em si, mesmo se ninguém a estiver olhando?

E, se três observadores criam três taças, por que esses mesmos três não poderiam criar três Charles Uptons, já que tanto eu quanto a taça somos seres sencientes? Se o observador cria a coisa observada, como pode ser verdadeiro dizer que “quando parece a vocês que outros os estão observando, são vocês que estão se observando do ponto de vista de suas próprias projeções”?

Nesse ponto estamos claramente presos num círculo vicioso de paradoxos, que Frithjof Schuon resolve de modo decisivo em seu ensaio “The Enigma of Diversified Subjectivity”:

Falar de uma subjetividade diversificada, portanto múltipla, é sem dúvida inevitável, uma vez que o mundo é o que é, mas não deixa, ainda assim, de ser contradição em termos, porque, logicamente, subjetividade e pluralidade se excluem.
De fato, o sujeito cognoscente é único frente a uma multidão indefinida de objetos conhecidos ou a conhecer, e essa irremovível — ainda que ilusória — unicidade tem em si algo de absoluto, sob sua própria perspectiva, precisamente a da consciência: nenhum indivíduo pode deixar de ser “eu”, e, empiricamente, não há outro “eu” senão o dele próprio.

O problema só pode ser resolvido numa realidade metafísica, cuja imanência invisível elimina a aparente absurdidade de um sujeito que é, por um lado, único por definição e, por outro, tão numeroso quanto os objetos; o sujeito paradoxalmente se torna objeto por sua vez (…) [diante de] um Sujeito absoluto que projeta sujeitos contingentes de maneira misteriosamente contraditória, mas necessariamente homogênea.

ROOTS OF THE HUMAN CONDITION, pp. 46–47.

Em outras palavras, assim que minha subjetividade contingente, pela autotranscendência que dá início ao Caminho espiritual, se torna apenas mais um objeto do Testemunho divino, para Quem todas as demais subjetividades são igualmente objetos, o paradoxo da pluralidade inegável da subjetividade versus sua inegável unicidade também é transcendido.

É precisamente esse Sujeito absoluto que venho chamando de “realidade objetiva”, já que ele transcende nossas subjetividades contingentes individuais e, nas palavras de Schuon (p. 46), “Para o homem, até o Sujeito divino é objeto, exceto no ápice da união mística”. O Sujeito divino — “objetivo” porque Absoluto — é o Conhecedor imanente de tudo quanto há para ser conhecido.

As coisas podem, portanto, ser coisas-em-si, porque Deus as conhece como são e, ao conhecê-las, cria-as. Nós testemunhamos os fenômenos; Ele contempla, por assim dizer, o númeno, precisamente porque testemunha todas as coisas como a Si mesmo. E podemos participar misteriosamente desse testemunho, não por meio de nossas subjetividades contingentes, mas em virtude do Sujeito Absoluto, o Testemunho divino em nós.

Assim, a taça de vinho é de fato uma taça de vinho — não porque, como sustenta Seth, as três pessoas que a observam estejam ajustando telepaticamente suas percepções subjetivas umas às outras, instante a instante, mas porque qualquer objeto material que possa ser conhecido, validamente ainda que não de modo idêntico, por mais de um sujeito contingente é, por isso mesmo, sinal do Sujeito absoluto presente em todo conhecedor.

A matéria, portanto, situa-se abaixo das subjetividades contingentes do plano psíquico como espelho e testemunho das realidades celestes que se erguem acima dela. A convergência imperfeita, mas inexorável, de nossas visões fenomenais subjetivas do mundo material atesta a realidade transcendente do númeno, que é, ao mesmo tempo, a Essência oculta dos fenômenos e o Testemunho oculto que realiza a “vacuidades” dos fenômenos no ato de contemplar essa Essência como a Si mesmo.

E é precisamente por isso que o universo é sagrado e, por extensão, por que o ciberespaço é profano (ciberespaço: um modo de ser do mundo que não está no mundo).

Quando minha subjetividade contingente se torna objetiva para o Testemunho Absoluto, torna-se virtualmente disponível um número infinito de pontos de vista perceptivos — digo virtualmente, porque, quando minha subjetividade contingente retorna na tentativa de acessar esses pontos de vista para deles tirar proveito, eles se dissipam.

O surgimento de visões de vidas passadas pode ser sinal da dissolução do ego, como quando o Buda, ao alcançar a iluminação, se lembrou de todas as suas existências anteriores. O mesmo vale para a visão de “eus prováveis”. O mesmo vale para as contrapartes presentes: quando “perco a minha vida para encontrá-la”, então “amo o próximo como a mim mesmo” porque o vejo como a mim mesmo — ou melhor, vejo que ambos partilhamos o mesmo Eu divino.

Se sei que “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”, então compreendo precisamente como “sois deuses, e todos filhos do Altíssimo”.

O número de vidas passadas e futuras, contrapartes presentes e eus prováveis é infinito, já que, em última análise, inclui todos os seres sencientes e todas as formas manifestas. Mas, na medida em que essas vidas passadas, contrapartes e eus prováveis são vistos como “meus”, o ego ainda não foi transcendido.

Considerá-los como ampliação da minha área de identidade, como enriquecimento do meu estoque de conhecimento, vitalidade e criatividade é recuar na soleira da autotranscendência. É trocar mística por magia.

Nas doutrinas de Seth, a criatividade toma o lugar da salvação, da autotranscendência ou da iluminação. É verdade que a criatividade pode ajudar-nos a ir além de muitas das crenças limitantes que compõem nossas identidades egóicas habituais, simplesmente porque a entrega ao mundo manifestado de uma concepção maior do que qualquer que tenhamos até então acolhido exige que o façamos.

Se, por preguiça, covardia ou autoavaliação equivocada, “enterrarmos nosso talento”, recusando-nos a engajar-nos na luta criativa exigida por nossa natureza — exigida, em outras palavras, pelo Deus em nós —, jamais alcançaremos a Libertação.

Mas a criatividade, em si, não basta para nos libertar. Sua energia ou shakti dirige-se para longe da Fonte, em direção à manifestação desta, ao passo que o Caminho espiritual requer que a shakti seja dirigida para longe da manifestação e de volta à Fonte. Em outras palavras, a contemplação é superior à criatividade.

E uma das coisas que a contemplação nos ensina é que só Deus cria. A contemplação, ao dissolver pele após pele do nosso ego, pode liberar torrentes de criatividade (nem toda ela, e certamente não suas formas mais elevadas, em moldes que possamos hoje entender), pois cada véu removido do rosto de Deus permite que mais do Seu Infinito Esplendor Criador se manifeste.

Mas a contemplação da Verdade é eternamente superior à expressão da Verdade. A contemplação pode existir sem expressão; a expressão não pode existir sem contemplação.

Segundo Seth, não há tal coisa como mal. “[U]ma crença no bem sem uma crença no mal pode parecer-lhes altamente irrealista. Esta crença, porém, é o melhor tipo de seguro que vocês podem ter, tanto durante a vida física como depois dela” (Seth Speaks, p. 192).

Embora isso possa parecer o mais absoluto “Pollyanna”, não existe mal em termos básicos.
Isso não significa que vocês não encontrem efeitos que pareçam maus, mas (…)
todas as aparentes oposições são outros rostos do único impulso supremo em direção à criatividade.
THE NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 283.

Em certo nível isso é, sem dúvida, verdadeiro. A metafísica tradicional ensina que Deus é ao mesmo tempo a única Realidade e o Bem soberano, enquanto o mal é privatio boni, privação ou diminuição nesse Bem e nessa Realidade, uma queda na direção de uma irrealidade que, em seus efeitos funestos, é dolorosamente real.

Mas algumas das conclusões que Seth tira desse princípio estão longe de ser consistentes. Na p. 166 de The Nature of Personal Reality, por exemplo, ele afirma:

Demônios de qualquer espécie são o resultado de suas crenças.
Nascem de uma crença em culpa “antinatural”.
Vocês podem personificá-los. Podem até encontrá-los em sua experiência,
mas, se o fizerem, continuarão sendo produto de sua imensurável criatividade,
embora formados por sua culpa e pela crença nessa culpa.

É como dizer: “não há molestadores de crianças ou assassinos em série; estes são apenas resultados de sua crença”. No nível de consciência em que Deus é reconhecido como única Realidade, não há demônios, nem anjos, nem outras pessoas, nem “eu”, pelo menos como realidades independentes; há apenas os rostos infinitos do Deus único, rostos de Misericórdia e Beleza, de Rigor e Majestade.

Mas, se há um “eu”, um ser consciente dotado de livre-arbítrio, supostamente capaz de criar realidades (como demônios) por meio da crença, então existem outros seres, físicos e psíquicos, que também possuem livre-arbítrio e são igualmente capazes de escolher. Demônios são simplesmente seres em planos mais sutis de manifestação que escolheram rebelar-se contra o Criador, assim como molestadores de crianças são pessoas no plano físico que escolheram rebelar-se contra a imagem de Deus neles.

Seth, porém, não admite essa possibilidade:

Enquanto vocês acreditarem num diabo (…) criarão um que será real o bastante para vocês e para outros que continuem a criá-lo. Por causa da energia que lhe é conferida por tais pessoas, ele terá certo grau de consciência própria, mas esse pseudo-diabo não tem poder nem realidade para aqueles que não acreditam em sua existência, nem lhe conferem energia através de sua crença. Ele é, em outras palavras, uma alucinação superlativa.
SETH SPEAKS, pp. 282–283.

Isso é absurdo. Certamente se poderia dizer que, sob certo aspecto, o povo alemão “criou” Hitler por meio de suas crenças — mas isso significaria que, uma vez “criado”, ele não tinha realidade objetiva nem poder de ferir aqueles que não lhe conferiam “energia”?

Se adeptos tibetanos têm de fato a capacidade de criar tulpas, imagens mentais visualizadas que se tornam visíveis e sólidas no plano material, então não há nada que me impeça de levar uma bordoada na cabeça causada pela “alucinação” de outra pessoa.

E Seth não se contenta em negar a realidade de Satanás; ele também procura reabilitá-lo:

Satanás representa — em termos da história [da queda, dos anjos rebeldes] —
a parte de All That Is, ou Deus, que “saiu de Si mesmo”, por assim dizer,
e se tornou ligado à terra com suas criaturas, oferecendo-lhes livre-arbítrio e escolha
que “antes” não estavam disponíveis.
Daí os elementos majestosos atribuídos a Satanás, e o poder.
As características terrenas aparecem muitas vezes conforme ele é representado em forma animal,
pois ele estava também, é claro, ligado aos atributos intuitivos terrestres
dos quais brotaria a nova consciência humana.
THE NATURE OF PERSONAL REALITY, pp. 270–271.

O Satanás aqui descrito parece ser um composto do Satanás de Milton (elementos majestosos), do Pã grego (características animais e terrenas) e da versão gnóstica da serpente do Éden como libertadora e portadora de consciência, bem como uma imagem alternativa de Adão como primeiro ancestral humano e, até certo ponto, de Cristo, essa “porção” de Deus que encarna e oferece liberdade espiritual ao homem.

Cada uma dessas atribuições pode ou não ter alguma validade simbólica em seus próprios contextos bastante distintos — mas não em termos da história, que é a história judaico-cristã. Em termos dessa história, Satanás representa a verdade de que o orgulho e a rebeldia têm raízes em nível extremamente elevado da Hierarquia do Ser, o plano em que a consciência sujeito/objeto começa a despontar. Foi aí que a escolha entre reconhecer ou desviar-se da Fonte divina se apresentou pela primeira vez aos seres espirituais mais elevados, e alguns deles optaram por voltar-se contra Ela.

Mas por que motivo Seth escolhe descartar justamente essa história, e só ela, sobretudo tendo em vista que é a versão judaico-cristã que ele está parodiando, não a gnóstica, nem a pagã grega, nem a miltoniana?

Por que é este o único significado da figura de Satanás, dentre muitos possíveis significados, que ele se empenha em esconder?
Ao longo dos livros de Jane Roberts, Seth se esforça para convencer Jane de que ele é real, de que não é simplesmente um produto de sua imaginação — o que, naturalmente, não seria o caso se, como ele afirma, nossa experiência fosse criada inteiramente por nossas crenças. Nas pp. 15–16 de
Seth Speaks ele diz:
“Parte da minha energia é... projetada através de Ruburt [o nome masculino de Seth para Jane], e a energia dele e a minha ativam sua forma física durante nossas sessões... Não sou, portanto, um produto do subconsciente de Ruburt, mais do que ele é um produto do meu subconsciente. Tampouco sou uma personalidade secundária, tentando astutamente minar um ego precário.”
Mas se, como Seth ensina, criamos nossa própria experiência, então por que a experiência de Jane com demônios ou Satanás é “uma alucinação superlativa”, e sua experiência com Seth é uma realidade sóbria e objetiva? Será que essa contradição gritante talvez se baseie na suposição de que nada no plano psíquico pode ser mau, no sentido em que um serial killer é mau, porque o plano psíquico é moral e espiritualmente mais elevado que o físico? Se for assim, então estamos diante de um dos erros mais comuns — e mais perigosos — do pensamento Nova Era: que tudo o que é invisível deve ser espiritual, e portanto bom. Esquecemos que é a psique invisível do assassino em série que é autora de seu mal, não seu corpo físico.
Tudo o que podemos afirmar com absoluta certeza é que há engano operando aqui.
Outra inconsistência aparece nas pp. 284–285 de
The Nature of Personal Reality:
“Suas ideias de bem e mal aplicadas à saúde e à doença são extremamente importantes... se você considera a doença um tipo de estigma moral, então simplesmente acrescentará uma qualidade desnecessária ao mau estado de saúde.
Tais julgamentos são extremamente simplistas e ignoram a vasta gama de motivação e experiência humanas. Se você está decidido a acreditar que ‘DEUS’ (em maiúsculas e aspas) cria apenas o ‘bem’, então qualquer deficiência física, doença ou deformidade se torna uma afronta à sua crença, ameaça-a e o deixa zangado e ressentido. Se você ficar doente, pode odiar a si mesmo por não ser o que deveria ser — uma imagem física perfeita feita à semelhança de um Deus perfeito.”
Isto, novamente, é uma boa crítica psicológica, digna de ser aplicada, digamos, à Ciência Cristã ou mesmo a
Um Curso em Milagres. Mas contradiz o ensinamento de Seth na p. 283 do mesmo livro, de que apenas o bem é real. Talvez Seth esteja realmente dizendo que nossas ideias de bem são estreitas demais, que o verdadeiro bem de Deus não deve ser identificado com nosso senso habitual do que seria agradável ou desejável. Se for assim, então não tenho qualquer disputa com ele. Ainda assim, sua relutância inconsistente e ilógica em admitir a realidade, em seu próprio plano, do mal demoníaco torna difícil confiar inteiramente em seus motivos. Poderia ele, por exemplo, estar tentando usar o fato de que a realidade física é necessariamente imperfeita — apesar de seu ensinamento de que “cada um de vocês... controla sua própria experiência pessoal” — para negar a verdade espiritual de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus?
Seth é confuso quanto ao conceito de hierarquia. Frequentemente o emprega, mas, alinhado ao preconceito contemporâneo contra o conceito, também o nega. Ao mesmo tempo em que afirma, na p. 282 de
Seth Speaks, que “A alma não está subindo uma série de degraus, cada um representando um novo e mais elevado ponto de desenvolvimento”, em outros trechos admite a validade da hierarquia, como em seu conceito de “gestalts piramidais”, segundo o qual cada entidade consciente é uma faceta ou aspecto de uma entidade maior, até Tudo Aquilo Que É (All That Is). E nas pp. 321–328 de Seth Speaks ele elabora sua própria hierarquia, composta de estados de consciência: estado A-1-a, semelhante ao estado alfa, onde a matéria começa a se tornar transparente à consciência; A-1-b, relacionado a “presentes de grupo... probabilidades de massa, questões raciais, o movimento da civilização”; A-1-c, uma extensão do anterior, onde há maior participação nos eventos; A-2, onde passados reencarnacionais dentro da linha presente de probabilidade podem ser investigados; e A-3, relacionado à história biológica, geológica e planetária. Observe, porém, que todos esses níveis de consciência representam uma penetração mais profunda na realidade manifestada, terrena.
As representações tradicionais da Hierarquia do Ser, por outro lado, estão orientadas para a Realidade Absoluta; cobrem um território muito mais vasto. Por exemplo, as cinco
hadhrat “presenças” do sufismo, em uma apresentação, são jism (o “corpo”), khayal (a “imaginação”, o domínio psíquico), ‘aql (“intelecto”, o mundo angélico), Wahidiyah (“Unidade”, ou Ser) e Ahadiyah (“Unicidade”, ou Além-Ser). Em termos desta versão da Hierarquia do Ser, todos os níveis listados por Seth dizem respeito exclusivamente a jism visto do ponto de vista de khayal. A hierarquia de Seth, sendo em grande parte psíquica e relacionada à manifestação criativa, desce a níveis ontológicos inferiores à medida que se espalha pela existência dimensional. A Hierarquia tradicional do Ser, por outro lado — sendo, em certo sentido, uma imagem da autotranscendência do indivíduo no Caminho espiritual — eleva-se a níveis superiores, reúne e sintetiza o que estava disperso e finalmente retorna à sua Fonte Divina.
O material de Seth, como
Um Curso em Milagres, também nega a realidade da culpa:
“Não há carma a ser pago como punição a menos que você acredite que existem crimes pelos quais deve pagar... Em termos mais amplos, não há causa e efeito, embora estes sejam suposições fundamentais em sua realidade.”
THE NATURE OF PERSONAL REALITY, p. 179
Seth parece estar usando o conceito de tempo simultâneo aqui como uma forma de contornar a ideia de retribuição, já que um crime passado (poder-se-ia pensar) só pode ser punido em um tempo futuro. A mesma necessidade de negar o significado e a validade da culpa está, sem dúvida, por trás da rejeição de Seth/Jane da causalidade — negação que é ela própria negada pelo peso inteiro do material de Seth, que continuamente martela no leitor a ideia de que crença (causa) cria realidade (efeito).
A negação por parte de Seth da realidade objetiva da transgressão é ainda contradita por toda a sua moralidade da “culpa natural” (
The Nature of Personal Reality, pp. 167–168), onde “não ir à igreja no domingo” e “ter pensamentos agressivos normais” são definidos como “não violações”, enquanto “fazer violência ao seu corpo, ou ao de outro” ou “fazer violência ao espírito de outro” são chamadas “violações”. E tais atos não são violações simplesmente porque acreditamos que sejam, já que “matar enquanto protege seu próprio corpo da morte pelas mãos de outro através de contato imediato é uma violação”, mesmo que “você acredite que a autodefesa física seja a única maneira de enfrentar tal situação”. Talvez Seth esteja realmente apenas negando que a culpa possa ser superada por meio de punição. Ainda assim, onde há violação, e portanto culpa, haverá eventualmente uma correção — o que é precisamente o que constitui punição justa. Se fugirmos da correção natural e imediata proporcionada pela “culpa natural” — que parece ser o termo de Seth para “consciência”, embora também se aplique aos animais — então a correção deve assumir formas cada vez mais insistentes até que finalmente estejamos dispostos a ouvi-la: isto é a “retribuição kármica”.
Como tantos outros ensinadores da Nova Era, Jane Roberts e seu Seth eram abertamente intolerantes do Cristianismo tradicional. Segundo Seth, a “entidade Cristo” encarnou em três indivíduos humanos diferentes: João Batista, Jesus de Nazaré e São Paulo. Essa ideia, que parece ser uma leitura literalista da doutrina da Trindade (representada iconicamente na tradição ortodoxa oriental pelos três viajantes, identificados como anjos, que visitaram Abraão), tem o efeito de erodir a doutrina central do Cristianismo, a Encarnação, tornando-a quantitativa e literalista, já que segundo Seth a entidade Cristo era “grande demais para caber” em apenas um veículo humano. Além disso, segundo Seth, quando Cristo retornar será largamente desconhecido — uma inversão direta da doutrina tradicional segundo a qual, embora Cristo em sua primeira vinda tenha sido humilde e obscuro, ao menos durante sua vida terrena, sua segunda vinda não será em sofrimento e sacrifício, mas em poder e glória.
Seth nos diverte com histórias vulgares de sua vida anterior como um papa degenerado, com uma amante e filhos ilegítimos, que começou a perder a fé na Igreja quando não conseguia explicar a si mesmo por que Deus escolheria um degenerado como ele para ser Seu representante na terra. Ele afirma, com afetação, que um dos Evangelhos, “não o de Marcos nem o de João”, é uma “falsificação” na qual “eventos [foram] distorcidos para fazer parecer que alguns deles ocorreram em um contexto completamente diferente...” (
The Nature of Personal Reality, pp. 486–487), após o que Jane “intuitivamente” determina que é o Evangelho segundo Mateus — história improvável, já que Mateus paralela tão proximamente Marcos e Lucas que os três são chamados “sinóticos”. O melhor que podemos dizer sobre essa falsificação do Cristianismo é que uma doutrina espiritual mais elevada está sendo erodida por suas próprias reflexões psíquicas inferiores. A pior interpretação, que parece muito mais provável em alguns casos, é que influências demoníacas estão deliberadamente atacando a fé cristã. De qualquer forma, o resultado é subversivo, pois uma doutrina mais completa e integrada está sendo substituída por algo menos adulto em natureza, mais dissipado e infantil.
Seth/Jane faz grandes esforços para minar as doutrinas centrais do Cristianismo e, no processo, revela uma profunda veia de inconsistência e engano. Os doze discípulos não nasceram como homens, mas foram criados como materializações das energias combinadas de Jesus, João Batista e São Paulo —
tulpus do Cristo (Seth Speaks, p. 244). Mais significativamente, como em certas heresias gnósticas, Cristo não foi fisicamente crucificado, tornando sua ressurreição sem sentido: sem morte, não há triunfo sobre a morte. Um substituto humano iludido foi crucificado em seu lugar. Segundo Seth Speaks, pp. 435–436:
“Havia uma conspiração na qual Judas desempenhou um papel, numa tentativa de fazer um mártir de Cristo. O homem escolhido foi drogado — daí a necessidade de ajudá-lo a carregar a cruz (veja Lucas 23) — e disseram-lhe que ele era o Cristo... Maria veio porque estava cheia de tristeza pelo homem que acreditava ser seu filho... O grupo responsável queria fazer parecer que uma determinada fração dos judeus havia crucificado Cristo... O túmulo estava vazio porque [os conspiradores] carregaram o corpo embora. Maria Madalena viu Cristo, entretanto, imediatamente depois (veja Mateus 28). Cristo era um grande psíquico. Ele fez as feridas aparecerem então em seu próprio corpo, e apareceu tanto fisicamente quanto em estados fora do corpo a seus seguidores. Ele tentou, contudo, explicar o que havia acontecido e sua posição, mas aqueles que não estavam na conspiração não entenderiam, e interpretaram mal suas declarações. Pedro negou o Senhor três vezes (Mateus 26), dizendo que não o conhecia, porque reconheceu que aquele homem não era Cristo. A súplica, ‘Pedro, por que me abandonaste?’ veio do homem que acreditava ser Cristo — a versão drogada. Judas apontou aquele homem. Ele sabia da conspiração e temia que o verdadeiro Cristo fosse capturado. Portanto, ele entregou às autoridades um homem conhecido por ser um Messias autoproclamado — para salvar, não destruir, a vida do Cristo histórico.”
Providencialmente, essa enganação subversiva se desfaz tanto em termos de fato quanto de lógica. O fato é que Jesus não disse “Pedro, por que me abandonaste?”, mas “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15:34). E se Jesus quisesse “explicar o que havia acontecido e sua posição” — que Ele nunca havia sido crucificado — por que faria feridas aparecerem em seu corpo? E se Ele escolheu aceitar a conspiração depois do fato por razões de imagem pública, então Seth o acusa de participar, ou ao menos lucrar, com o sequestro, dopagem e assassinato de um homem inocente — como seria implicado, se a versão de Seth fosse verdadeira, por João 13:27 (o Evangelho de João é aceito por Seth como um dos “verdadeiros”), onde Jesus diz a Judas na última ceia: “O que você faz, faze-o depressa” — declaração muito melhor interpretada simplesmente como prova de que Jesus não foi preso contra sua vontade, já que conhecia os planos de Judas. Além disso, na p. 284, Seth contradiz toda essa história dizendo que “A Crucificação... surgiu no mundo da realidade física [ênfase minha] a partir da realidade interior da qual suas intuições e percepções mais profundas também brotam”. Assim estamos diante de engano, corrupção intelectual e blasfêmia — embora, quando “comprei” o material de Seth, eu mesmo não conseguia ver esse fato óbvio. Tal é o abismo entre a iluminação da fé e “a suspensão voluntária da descrença”.
Não se limitando ao Cristianismo, Seth também ataca o Islã:
“O maometanismo ficou muito aquém. Neste caso, as projeções eram de violência predominante. O amor e o parentesco eram secundários ao que realmente equivalia ao batismo e comunhão por meio da violência e do sangue.”
SETH SPEAKS, p. 400
Embora eu não desculpe todos os excessos dos guerreiros muçulmanos — ou dos cruzados cristãos, ou dos samurais budistas — é meu dever repetir que os “cinco pilares do Islã” são: (1) o testemunho de fé, de que “não há deus senão Deus, e Muhammad é o profeta de Deus”; (2) a oração diária; (3) o pagamento da taxa para sustento dos pobres; (4) o jejum durante o Ramadã; e (5) a peregrinação a Meca (se os recursos permitirem).
Jihad, ou “lutar no caminho de Deus”, para proteger as fronteiras do Islã ou para a justiça social dentro delas, é opcional — embora a luta contra as próprias paixões, o “maior jihad”, não o seja. O Islã nasceu como um drama épico em que mais da metade do mundo conhecido foi conquistado em tempo surpreendentemente curto, e parte dessa qualidade permaneceu impressa nele, assim como a qualidade de longanimidade (que Seth também despreza, incidentalmente) foi impressa no Cristianismo durante seus trezentos anos de opressão antes que Constantino levantasse a proibição. É em parte essa história que permitiu ao Islã medieval elevar a guerra a um nível de honra e cavalheirismo que frequentemente colocava os cruzados cristãos em vergonha.
E qualquer pessoa que pense que os santos, místicos, filósofos, poetas e arquitetos do Islã ficaram aquém de seus equivalentes cristãos ou budistas é profundamente ignorante. As artes espirituais são evidência da profundidade e da verdade de qualquer religião, assim como seus santos e sábios são sua prova. Por esses critérios, o Islã não é inferior a nenhum. A filosofia cristã da Idade Média foi em grande parte influenciada e criada em resposta à filosofia islâmica, que alguns intelectuais cristãos admitiam abertamente ser superior à da Europa cristã. O grande sábio sufi Ibn al-‘Arabi, cujos conceitos aparecem frequentemente neste livro, foi um dos talvez cinco maiores filósofos místicos de todos os tempos, senão o maior de todos, embora muitos outros sufis rivalizem com ele. Rumi foi, discutivelmente, o maior poeta místico... mas quem pode esquecer Jami, Nizami e o incomparável Hafiz? E santos místicos gigantes como Junayd, Bayazid e al-Hallaj, além de tantos outros que não cabem todos os nomes deles neste mundo, brilham como estrelas no céu negro de Deus.
Contra essa riqueza, tudo o que Seth/Jane consegue apresentar é um preconceito filisteu da classe média americana, que é simplesmente desinformado: Islã, fraco em parentesco? E quem, senão os mamelucos egípcios — guerreiros muçulmanos — salvaram a cristandade em 1260 da destruição pelos tártaros sob Hulagu Khan? Se não tivesse sido pel a vitória mameluca sob Baybars em Ayn Jalut, talvez não tivesse restado cristandade alguma para Seth falsificar. A espada, tanto física quanto intelectual, tem seus usos — sendo o mundo o que é.

Seth/Jane, então, não é apenas contrário ao Cristianismo, mas a todas as religiões tradicionais, como tantos líderes da Nova Era que seguiram em seus passos. Na p. 241 de Seth Speaks, ele diz: “Em uma realidade inconcebivelmente multidimensional, os antigos conceitos de Deus são relativamente sem sentido.” Dizer isso, porém, é negar que as “coisas profundas de Deus” sempre foram conhecidas, que elas são de fato primordiais. É verdade que conceitos de Deus nascem, vivem e morrem com as religiões às quais são integrais; mas isso não significa que o conhecimento das coisas Divinas possa avançar, progredir, evoluir ou melhorar. Ele não pode fazê-lo porque seu objeto é eterno. A única mudança possível está na receptividade ou resistência a esse conhecimento por parte dos seres humanos; o conhecimento em si é imutável. Além disso, as diferenças básicas entre vários conceitos de Deus não são diferenças de moda, mas diferenças de nível.
Sempre haverá uma ideia de um Absoluto Informal, e de um Deus Pessoal, e dos raios ou sabedorias ou energias pelas quais esse Deus se manifesta. Sempre haverá uma ideia da transcendência de Deus, bem como de Sua imanência, com a ênfase tendendo a se deslocar de uma para a outra. O Divino será sempre ao mesmo tempo iluminado e velado por sua identificação com conceitos abstratos; será sempre ao mesmo tempo concretamente encontrado e rebaixado ao nível da magia pela sua identificação com o poder miraculoso. Será sempre visto como ao mesmo tempo Unitário e múltiplo, e sua Unidade será sempre entendida ou como abraçando seus aspectos múltiplos como seu Princípio essencial, ou como negando tal multiplicidade, caindo assim ao nível de uma abstração e abrindo a porta para a reinterpretação da Unidade como uma sombra fraca e desvanecente escondida sob o tumulto dessa multiplicidade.
A Unidade Divina estará sempre em perigo de ser interpretada de forma panteísta, ou de afundar na direção do politeísmo, erros que ambos terminam numa queda no materialismo. Nenhuma mudança de moda nas imagens de Deus pode alterar os princípios básicos da metafísica, nem os modos perenes pelos quais esses princípios são expressos, discutidos e mal compreendidos.

Dada sua oposição profundamente arraigada às religiões tradicionais, não é surpreendente que a versão de Seth/Jane sobre a Segunda Vinda de Cristo apresente muitas semelhanças com a imagem tradicional do Anticristo (ver Capítulo Nove). Segundo Seth, o Cristo da Segunda Vinda será sobretudo uma encarnação da porção paulina da entidade Cristo:

“Ele não virá para recompensar os justos e enviar os malfeitores à perdição eterna. Ele irá, contudo, iniciar um novo drama religioso... Como aconteceu uma vez antes, porém, Ele não será geralmente conhecido por quem Ele é. Não haverá proclamação gloriosa diante da qual o mundo inteiro se curvará. Ele retornará para colocar o Cristianismo em ordem, que estará em frangalhos na época de sua chegada, e para estabelecer um novo sistema de pensamento quando o mundo estiver em extrema necessidade de um. ... Até lá, todas as religiões estarão em grave crise.
Ele minará a organização religiosa — não as unirá. Sua mensagem será a do indivíduo em relação a Tudo Aquilo Que É (All That Is). ... Em 2075, tudo isso já terá sido realizado.
Você pode notar aqui que Nostradamus viu a dissolução da Igreja Católica Romana como o fim do mundo. Ele não podia imaginar a civilização sem ela, por isso muitas de suas previsões posteriores devem ser lidas tendo isso em mente.
A terceira personalidade de Cristo será conhecida como um grande psíquico, pois será Ele quem ensinará à humanidade o uso daqueles sentidos internos que, somente eles, tornam possível a verdadeira espiritualidade. Assassinos e vítimas trocarão de papéis à medida que memórias reencarnacionais vierem à superfície da consciência. Por meio do desenvolvimento dessas capacidades, a sacralidade da vida será intimamente reconhecida e apreciada.”
SETH SPEAKS, pp. 389–390

“[A] qualidade militante no homem mudará completamente de natureza, e será descartada tal como vocês a conhecem, quando a próxima personalidade de Cristo surgir... No próximo século, a natureza interior do homem, com esses desenvolvimentos, se libertará de muitas restrições que a prendiam. Uma nova era começará — não, agora, um céu na terra, mas um mundo muito mais são e justo...”
SETH SPEAKS, pp. 393–394

“A metamorfose... terá tal força e poder que convocará da humanidade as mesmas qualidades de dentro dela... Elas finalmente romperão os véus da percepção física, estendendo essa percepção de novas maneiras.
Agora, falta à humanidade tal foco. A terceira personalidade representará esse foco... Essa personalidade... não será orientada em termos de um sexo, uma cor, uma raça.
Pela primeira vez, portanto, ela romperá os conceitos terrenos de personalidade. Terá a capacidade de mostrar esses efeitos diversos à medida que escolher.”
SETH SPEAKS, p. 397

Assim, esse ser “colocará o Cristianismo em ordem” minando todas as organizações religiosas e destruindo a Igreja Católica, objetivo declarado de muitas organizações da Nova Era, incluindo — ao menos historicamente — a Sociedade Teosófica. E dizer “Assassinos e vítimas trocarão de papéis” só pode significar, neste contexto, que as forças reprimidas pelo Cristianismo e pelas demais religiões tradicionais se levantarão e tomarão sua vingança, como de fato já está claramente acontecendo. Como, então, a “natureza militante do homem” será “descartada”? E se não haverá “proclamação gloriosa” desse “Cristo”, como então ele se tornará um “foco” para toda a humanidade?

Um ser de nenhum sexo, raça ou cor particular é um monstro. A erosão das diferenças sexuais — culturalmente, por meio de operações de mudança de sexo, e possivelmente agora pela engenharia genética, que talvez também possa alterar características raciais — é o maior e mais desumanizador mal no mundo hoje. Se esse ser introduz tal alteração caótica e destruição da forma humana, então ele, ela ou isso é o Anticristo. Os “véus da percepção física” não são transcendidos pela distorção caótica da forma física, mas pela realização do Informal (Formless), e depois pela compreensão de como o Informal se manifesta simbolicamente como formas particulares. Entre as mais centrais de tais formas simbólicas está o gênero, que é um dos emblemas mais profundos da realidade e das dinâmicas interiores da Natureza Divina.
Se percebemos a “transparência metafísica dos fenômenos” (na expressão de Schuon), temos os véus da percepção física transcendidos sem alterá-los, razão pela qual as formas físicas — especialmente as da natureza e do corpo humano — podem atuar como símbolos de seu Princípio informe. Se, em vez disso, tentamos ir além delas através de sua distorção caótica, tornamo-las opacas. Esta é a contrafação psíquica da transcendência espiritual. Tal distorção da forma pela qual tentamos nos libertar das condições espaço-temporais da existência física, da matéria considerada apenas como véu sobre realidades superiores, em vez de também como manifestação delas, baseia-se num modo de engano demoníaco que é muito comum nestes últimos dias; pode de fato ser a tentação satânica central dos tempos apocalípticos (ver Capítulo Sete). Se nada na humanidade terrena é sagrado para esse ser, essa “terceira personalidade” tão esperada, então ele já está entre os perdedores.

Em The Further Education of Oversoul Seven (Prentice-Hall, 1974), um de seus livros de ficção baseados nos ensinamentos de Seth, Jane Roberts dá rédea solta ao seu desprezo pelas religiões tradicionais. No Capítulo Dezessete, intitulado “Ram-Ram the Godologist and Case History 9871: J. Christ”, encontramos o seguinte:

“Cristo jazia sobre um sofá dourado, coberto com mantos de veludo real, os olhos fechados, seus longos cachos marrom-acinzentados em desordem em torno do rosto, as mãos cruzadas sobre o peito e uma colcha puxada até onde sua camisola hospitalar terminava. Ele parecia estar dormindo ou sonhando... Seven pulou para trás quando um Lúcifer gigantesco apareceu na projeção do céu...
‘O bicho-papão original’, disse Ram-Ram, com grande satisfação. ‘Bastante eficaz, não acha? Pode-se dizer que Lúcifer era a sombra de Cristo, e representava todas as porções de sua personalidade que ele teve de negar: o amor ao poder, a sede de conhecimento e a pura vitalidade automática, ou os aspectos masculinos em terminologia terrena. A gentileza de Cristo, sua compreensão e assim por diante enfatizaram o feminino — “Os mansos herdarão a terra” e tudo isso...’”

(O texto, naturalmente, ignora Cristo e os cambistas, bem como sua denúncia dos fariseus hipócritas como “sepulcros caiados”).

“Seven recuou cada vez mais enquanto o Lúcifer gigantesco se transformava em um Jeová aos gritos, ameaçando os israelitas e exigindo sacrifícios... entregando as tábuas com os Dez Mandamentos a Moisés. Mas até Moisés parecia insano, pensou Seven, infeliz... havia fogo, enxofre, fumaça; prédios desabando, tendas esmagadas, cavalos e pessoas emitindo sons agonizantes, um burro com a cabeça recém-cortada por destroços voadores...
‘Você pensaria que Lúcifer fez tudo isso’, disse Ram-Ram. ‘Mas foi Jeová. Entende? Com memórias pré-natais assim, e um pai que exterminava populações inteiras se o irritavam — bem, até um filho divino estaria fadado a ter problemas. Some a isso o fato de que Cristo teve uma mãe humana, não divina. Jeová não tinha uma esposa divina; era irritadiço demais. Nenhuma deusa o suportaria. Então, de certo modo, Cristo era meio órfão, divinamente falando. Ele era o filho de um pai que era basicamente impotente — daí o anjo ter aparecido a Maria — um pai que descarregava suas frustrações na terra’, e, acrescentou Ram-Ram triunfantemente, ‘em seu filho.’ Por que mais ele o enviou para ser crucificado?...”

(Para uma resposta a isso, ver a seção sobre Um Curso em Milagres, abaixo.)

“A relação entre os doze homens também era interessante. Especialmente a de Cristo com João — a ternura que deveria ter ido para as mulheres...” Ram-Ram ergueu significativamente suas espessas sobrancelhas brancas...
“Mas, basicamente, Jeová e Lúcifer são ambos projeções da mente de Cristo”, disse Ram-Ram.

Jane Roberts se revela, em passagens como esta, uma espécie de Salman Rushdie para o Cristianismo, um dentre muitos em excesso nos últimos cento e cinquenta anos, incluindo Nietzsche, George Bernard Shaw e os roteiristas e produtores de Jesus Christ Superstar. Se ela estivesse viva hoje, eu não clamaria por sua morte. Eu simplesmente lhe apontaria sua infantilidade destrutiva e lhe diria para crescer. (Eu diria o mesmo — eu digo o mesmo — ao sr. Rushdie.)

No Capítulo Dezoito, “Seven’s Disquieting Interview with Christ, a Multidimensional Happening Turns into an Insane Vision, and Jeffy-boy Becomes a Character in a Book” [A perturbadora entrevista de Seven com Cristo, um acontecimento multidimensional se torna uma visão insana, e Jeffy-boy se torna um personagem de um livro], a Sra. Roberts apresenta Cristo e Zeus como deuses envelhecidos e esgotados vivendo juntos em um asilo de outro mundo:

“Agora o poder de Cristo parecia estar diminuindo a um ponto em que Seven quase se sentia envergonhado por ele. Cristo estava beliscando o carneiro, por exemplo: comendo sem faca ou garfo — ele e Zeus ambos tomando bocadas muito grandes, com Cristo tendo dificuldade com as partes mais duras... Zeus colocou o pedaço de carne de volta sobre a mesinha de centro e disse pensativo: ‘Sabe, Cristo, você podia ter dito aquela citação “Dai a César” e esquecido. Em uma vida, uma pessoa, até um deus, pronuncia tantas palavras...’ Os olhos de Cristo brilharam perigosamente. Ele cuspiu um pedaço de carne no guardanapo e disse, muito enfaticamente e deliberadamente: ‘Eu não disse aquelas palavras. E também não amaldiçoei a pobre figueira. Ser mal citado é uma das piores coisas que podem acontecer à mensagem de um deus...’”

Ela prossegue:

“Zeus e Cristo, todos os internos da instituição e todos os deuses no asilo se fundiram em um superdeus selvagem e incoerente, mas tão antigo, tão grandemente senil, tão docemente insano que até as gramíneas tremiam ao mero pensamento de sua aproximação... Seven estava apavorado... viu pombos assustados voarem para esconderijos. Sentiu o hálito do deus sacudir o mundo em pedaços em outonos sem fim; folhas cometendo suicídio exultante... A insanidade do deus sussurrava tortuosamente pelos cromossomos dos homens, manchando-os com falhas sem número. O deus senil bradava sua verdade incoerente às multidões, que por sua vez matavam seus vizinhos e cavalgavam em triunfo amargo por guerras selvagens sem fim. Maomé louco brandia sua espada eterna; Jeová, em ataques de tremores sagrados, enviava suas pragas e dilúvios; Júpiter e Thor arremessavam seus raios enquanto Buda contemplava seu divino umbigo... Seven gritou: ‘Parem!’”

Por fim, no Capítulo Dezenove, tendo tratado de Jeová, Cristo e Maomé, ela volta sua atenção para a Virgem Maria. Sua “Maria” diz:

“Nunca consegui me dispor a discutir... coisas da carne com meu filho... Eu lhe disse, meu filho, que ele viera de Deus... sem a agência do homem. Foi apenas o engano inocente de uma mãe... Meu filho acreditou em mim’, Maria clamou em voz angustiada. ‘Ele se tornou verdadeiramente iludido... Foi tão ruim que Jesus finalmente tentou suicídio. Tiraram todas as facas e garfos e todos os talheres dele no asilo...’”

Depois, por último mas não menos importante, o Buda:

“Will prostrou-se no chão e disse: ‘Aqui estou, Mestre. Não tenho mais ego. Terminei com o desejo... por favor, considere-me seu servo... Estou acabado com vontades e luxúrias.’ O Buda levantou suas belas sobrancelhas gelatinosas e disse a Oversoul Seven: ‘Do que ele está falando?’ ‘Com licença’, interrompeu Lydia hesitante. ‘O senhor é um deus indiano? Se for, tenho algumas perguntas.’ ‘Sou, se isso agrada sua fantasia’, disse o Buda. ‘Agora, o que aquele pobre sujeito está dizendo?’... ‘Om, om, om’, Will entoava, e Buda estalou: ‘Quer calar a boca?’ tão alto que Will saltou em pé. ‘E o que é toda essa tolice de abandonar o desejo?’, exigiu Buda.”

Neste ponto, o leitor provavelmente está se perguntando por que estou perdendo tempo repetindo esse tipo de material. Há três razões. Primeiro, porque os ensinamentos de Seth foram imensamente influentes. Segundo, porque essas passagens fornecem um exemplo cegantemente claro do preconceito Nova Era extremamente comum dirigido não apenas contra o Cristianismo, mas cada vez mais agora contra todas as religiões do mundo. E terceiro, elas demonstram uma verdade sobre a cultura americana contemporânea: acreditamos que tudo o que possa ser satirizado deve ser satirizado, em nome da liberdade da personalidade; que ninguém, exceto um estraga-prazeres pomposo, poderia criticar alguém por rir de algo que é sagrado para milhões; que o riso é inerentemente libertador; que é incapaz de ser destrutivo. Somos viciados em uma leviandade cruel, desintegradora e infantil, mesmo que nossas piadas não sejam mais engraçadas, mesmo que a piada agora seja conosco.
Como Salman Rushdie, somos possuídos pelo arquétipo do trickster destrutivo, bem personificado pelo deus Loki, titã do caos, destinado na mitologia nórdica a trazer o fim do mundo, o Crepúsculo dos Deuses. E assim como Loki foi o nêmesis D O herói solar nórdico Baldur, assim como o deus egípcio Seth, ou a Serpente Apófis, era o nêmesis do Sol. Segundo Ananda Coomaraswamy, “não pode haver dúvida de que, para os egípcios, o conflito do Sol com Apófis-Seth era um conflito de luz contra trevas, do bem contra o mal” (The Door in the Sky, Coomaraswamy on Myth and Meaning, ed. Rama Coomaraswamy, p. 111). Poderia esse Seth-Apófis, talvez, ser o mesmo Seth que falou através de Jane Roberts?

É precisamente um crepúsculo ou senilidade dos deuses que a Sra. Roberts descreve em The Further Education of Oversoul Seven. Ela não faz isso necessariamente por maldade consciente; em outros livros, Seth atribui posição muito elevada a Cristo e ao Buda. Como tantos boêmios americanos, ela simplesmente identifica o sentido tradicional do sagrado com pomposidade, e uma deflação tipo trickster desse sentido com libertação individual.

(Para me permitir uma digressão: a atitude de Jane Roberts aqui se assemelha à daquele tipo de budistas americanos contemporâneos que conseguem zombar de sua própria tradição, completamente sem vergonha. Afinal, que mal pode vir do riso? Se nada é sagrado, nada pode ser profanado. E não dizem os zen-budistas: “Se você vir o Buda, mate-o”? Esses neobudistas esquecem que tal frase foi proferida sobre o pano de fundo de uma seriedade profunda e corajosa em matéria religiosa — um desejo desesperado e total de libertação da Roda da Existência, que levou até um buscador a decepação do próprio braço apenas para obter a atenção de seu Mestre. A atitude deles se aproxima mais de “é melhor você matar o Buda agora, ou algum dia pode ser que você o veja.” E, para esse assassinato da santa seriedade, para essa destruição de todo senso do sagrado, que arma melhor e mais irrepreensível poderia existir que o riso? Não quero dizer que um desejo desesperado e total de libertação seja sempre propício ao esclarecimento, mas apenas que uma atitude leviana jamais o é. O riso saudável, certamente, pode ajudar a dissolver apegos egóicos, mas a leviandade egocêntrica não é senão um modo de evitar o compromisso adulto, a profundidade de alma e a lealdade à verdade.)

Para ser justo com a Sra. Roberts, devo acrescentar que ela não pretende essas passagens como um ataque “sério” às religiões do mundo, mas sim como sátira à forma pela qual nossas imagens do divino se degeneraram. Mas, como muitas sátiras, elas próprias são um exemplo perfeito das atitudes que tentam esvaziar.

“Antes que você diga qualquer coisa [diz o personagem Oversoul Seven mais adiante no Capítulo Dezenove], estou terrivelmente desapontado. Eu achava que os deuses teriam mais juízo...” “Eu tomei como certo [diz o personagem Cyprus] que você estivesse percebendo as versões de Lydia e Will dos deuses... Os deuses, tal como entendidos pelos mortais, são sempre personificações convencionais. São como estátuas psicológicas religiosas... Superestrelas animadas; talvez essa expressão seja a melhor de todas.” “Mas a realidade dos deuses é outra coisa inteiramente”, exclamou Seven. “Como foi que se produziu um mal-entendido desses? E se existem deuses reais por trás dos deuses que encontrei, então como encontrá-los? Se eles estão sempre camuflados pelas crenças que as pessoas têm sobre eles, como alguém pode encontrá-los?”

Eis uma boa pergunta. Se não há verdade objetiva por trás de nossas criações subjetivas, se não existe taça de vinho realmente real no aposento, apenas três taças fantasmáticas em três mundos separados, então com certeza não há Deus objetivamente real por trás de nossas imagens d’Ele. Nem a sátira destrutiva dirigida contra imagens do sagrado ajuda, em qualquer medida, essas realidades-camuflagem a tornarem-se mais transparentes à Realidade que foram concebidas para representar — muito pelo contrário. Porque a jangada não é ela mesma a Outra Margem, Jane Roberts (como tantas pessoas hoje em dia) sente-se justificada em queimar a jangada.

Deus, em Sua Misericórdia intrínseca, simplesmente por ser a Essência de todas as coisas, estende-Se a Si mesmo dentro de nossas concepções d’Ele; isto, porém, é algo de que a Sra. Roberts está muito longe de se mostrar segura. Se ela realmente soubesse, como Oversoul Seven afirma, que “Tudo Aquilo Que É (All That Is) está escondido em nós, e em tudo o mais também”, sua imaginação não teria produzido imagens de Deus tão vigorosamente degeneradas, tão opacas à realidade de Deus, sem compensá-las com imagens de Majestade e Beleza transparentes a essa Realidade. Ainda aqui, como alhures, a Justiça Divina é ao mesmo tempo intrínseca e imediata: satirize Cristo, Maomé, Jeová, Buda e a Virgem Maria, e tudo o que lhe restará será Seth. Onde quer que a alma de Jane Roberts esteja agora, desejo-lhe boa viagem, nas asas dessa concepção, rumo a qualquer meta última em direção à qual ele possa estar se dirigindo.

II. O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda

Os muitos livros de Carlos Castaneda introduziram, quase sozinhos, a feitiçaria no próprio mainstream da sociedade americana. Foram elogiados e comentados por antropólogos, psicólogos e expoentes do “potencial humano”. Influenciaram a arte, o entretenimento e outras áreas da cultura. Alteraram profundamente a maneira como os brancos veem os nativos americanos. Permaneceram como uma nota constante e grave na caótica sinfonia das “espiritualidades alternativas” por mais de trinta anos.

Richard De Mille, filho do famoso produtor de cinema Cecil B. De Mille, escreveu um livro em 1976 intitulado Castaneda’s Journey, em parte desmistificando os livros de Don Juan. Ele repete a opinião do psiquiatra Dr. Arnold Mandell de que o “informante” Don Juan Matus representa uma travessura de coiote pregada por Castaneda em Dr. Harold Garfinkle, seu orientador de doutorado na UCLA. Como Garfinkle, sendo um bom pós-modernista, sustentava que todos os dados antropológicos são fabricados por antropólogos, Castaneda simplesmente fabricou Don Juan para ultrapassar Garfinkle em sua própria tese. De Mille rastreia muitos dos supostos ensinamentos do feiticeiro yaqui e de seus colegas, bem como os dramáticos acontecimentos mágicos relatados nos livros de Castaneda, até influências ocultistas e literárias específicas que nada têm a ver com a cultura nativa americana. (Eu mesmo identifiquei uma delas: o “guardião” que aparece em A Separate Reality, um monstro babando, voador, com trinta metros de altura, porteiro de outra dimensão, que acaba se revelando um minúsculo mosquito, vem diretamente do conto “The Sphinx”, de Edgar Allan Poe.) Mas, embora se possa mostrar com bastante clareza que os livros de Castaneda são ao menos parcialmente ficcionais — nos últimos ele próprio chega perto de abandonar a máscara de “reportagem” — isso apenas invalida Castaneda como antropólogo; não o invalida como feiticeiro.

Carlos Castaneda é, em minha opinião, praticante de alguma forma de feitiçaria nativo-americana, talvez eclética, talvez de origem tolteca como ele afirma em certo ponto, talvez não mexicana: um “neo-xamã” que conheci sustentava que “Don Juan” e seu irmão feiticeiro “Don Genaro” eram na verdade índios navajos; chegou até a nos revelar seus nomes. Sei que Castaneda não é um charlatão perfeito no que diz respeito à feitiçaria porque, seguindo algumas de suas técnicas — e nem sempre com o auxílio de drogas psicodélicas — cheguei à soleira do mundo que ele propõe e aprendi, nesse processo, que a magia é muito triste.

Os livros de Castaneda são muitas vezes escritos em estilo marcante e vigoroso, que, contudo, pode tornar-se cansativo depois que o fascínio inicial se dissipa. Suas descrições de estados de “realidade não-ordinária” são precisas, vívidas, coloridas e às vezes deliberadamente paradoxais e desconcertantes. Ele é hábil em construí-las para que apelam a muitos sentidos de uma vez, inclusive o visceral, do qual é um poeta raro e sutil. Na figura de “Carlos, o Aventureiro”, que é criação literária tanto quanto seu Don Juan, encontram-se as qualidades do aprendiz de feiticeiro confuso e aterrorizado, do acadêmico pedante manietado por seu excesso de intelectualismo, do pesquisador dedicado relatando estados de “realidade não-ordinária”, do trickster travesso — embora outros personagens em seus livros assumam mais frequentemente esse papel, proporcionando um eficiente disfarce para o autor — e do “homem de carne e osso” que enfrenta estoicamente um mundo fascinante, hostil e imprevisível, armado unicamente de seu machismo, de sua “honra como homem”. Seus livros são, sem dúvida, poéticos, razão pela qual — exceto em alguns pontos em que ele invade o terreno da religião e por isso precisa ser refutado dentro do contexto daquele universo de discurso — minha resposta a ele também será poética; mais poética, ao menos, que as outras seções deste capítulo.

Seja real, mito ou outra coisa totalmente diversa, o Nagual Juan Matus é a imagem de um homem deixado sozinho com suas vitórias. De seu poleiro à beira do mundo humano, ele contempla a vida dos homens e nada vê senão a passagem de fantasmas.

Juan é um homem que sobreviveu à destruição total de sua cultura — aquilo que, na terminologia da feitiçaria, ele chama de destruição do tonal de seu povo — primeiro pela Conquista, depois pelas Guerras Yaquis. Sobreviveu aprendendo a viver no mundo do Poder, o mundo do nagual, que é o mundo em que todo feiticeiro entra no exercício de seu ofício, tenha ou não uma tribo para onde voltar.

Juan não tem tribo para onde voltar. A única tribo que aparece em seus livros, fora o próprio colégio de feiticeiros, é composta de oito índios bêbados de tequila numa cabana. E a única relação de Juan com eles é a do ladrão de almas, que, se puder, roubará aqui e ali uma alma, arrancando-a de sua vida mesquinha e sórdida, e mergulhando com ela no mundo do Poder. Juan Matus é, assim, a imagem do indivíduo atômico, tornado estranho pela morte de uma cultura, à espera talvez do nascimento de outra, e enquanto isso vivendo como viajante espacial anônimo nos desertos do norte do México. E a relevância de Juan reside nisto: cada cultura neste planeta, da mais primitiva à mais industrialmente desenvolvida, está agora perdendo sua razão de ser; todo tonal está sendo despedaçado.

Mas, como Juan diz, quando o tonal morre, o homem morre. Então como Juan sobrevive? Ele sobrevive pelo tonal do feiticeiro, o “consenso especial”, para cuja validação precisa de pelo menos mais um — no caso de Juan, Genaro. “O mundo só é real quando estou com este aqui”, diz Juan. Então nem mesmo Don Juan Matus é autossuficiente. Até o Nagual Juan Matus, para sobreviver, precisa de Homem: isto é, precisa de Amor.

Vitória sobre o medo, sobre a clareza, sobre o poder, sobre a velhice (os Quatro Inimigos de um Homem de Conhecimento, de The Teachings of Don Juan) não são o bastante.

Além disso, Juan precisa de Carlos. A velhice se aproxima; Genaro também é velho. Quando Genaro morre, o mundo já não é real. Juan, apesar de todas as suas vitórias, caminha então no mundo dos fantasmas, que são os mortos. Assim o velho homem convoca seu último aliado: o jovem que o ajudará a continuar validando seu mundo, que o auxiliará em sua batalha contra o último inimigo de um homem de conhecimento.

Juan Matus é o retrato de um homem deixado sozinho com suas vitórias, isto é, um homem que fracassou: ver os outros homens como fantasmas é ser um fantasma. Seu fracasso, contudo, não é inteiramente seu. É o fracasso de uma cultura; é o fracasso da teia de relações humanas que constitui a verdade da vida humana; é o fracasso do amor.

Os livros de Carlos Castaneda são, de certo modo, um tipo de mito chicano. O coiote com quem Carlos fala em Journey to Ixtlan é um coiote chicano, como aqueles atravessadores do desespero humano que vivem na região de fronteira entre os Estados Unidos e o México. O próprio livro é uma de suas muitas artimanhas. Pode ser que Coiote tenha hoje pelo menos tanto lugar entre chicanos, refugiados e trabalhadores migrantes quanto entre nativos americanos, já que seus traços de humor, crueldade e disfarce são particularmente úteis a uma população que precisa levar vidas duplas.

O folclore retrata Castaneda sentado num café em Los Angeles dizendo a um de seus amigos: “Na verdade, estou no México agora.” Nesse caso, Carlos, que nasceu em vários países da América do Sul, fala como deslocado. Ele está sentado calmamente num café e está em trânsito veloz, como todos nós no mundo pós-moderno. Ele tem dez máscaras, ou cinquenta, o bastante para levá-lo até o pôr-do-sol.

Uma das principais conquistas do feiticeiro é a capacidade de criar um “duplo”, por meio do “sonhar”. O que quer que seja isso no plano sutil (histórias aparentemente válidas de bilocação foram contadas sobre santos), em certo sentido esse duplo é um mito do imigrante ilegal ou do revolucionário terrorista clandestino: que modo melhor de confundir o FBI ou o Serviço de Imigração e Naturalização do que estar em dois lugares ao mesmo tempo?

E o riso! O riso é a habilidade de salto do peixe no rio das ambiguidades; impede que a identidade se solidifique e assim se torne alvo, tanto para o ódio quanto para o amor.

“Você deve apagar sua história pessoal, deve criar uma névoa em torno de suas ações”, diz Juan a Carlos; bom conselho para quem precisa manter sua identidade inacessível à polícia. “Sim! Você é um feixe”, diz Juan, depois que ele e Genaro acabam de reduzir Carlos a estilhaços. Um feixe: isto é, uma múltipla personificação, por um ser alienígena, da cultura, da solidariedade humana, de cada amor separado que perdeu. “E eles me pareciam fantasmas.”

O centro operativo do mundo da feitiçaria é o Poder. O feiticeiro empunha o Poder, e no entanto é escravo dele. Os encontros com ele, concebidos como lutas ou batalhas, permitem-lhe armazenar Poder em seu corpo — ou então o matam. Uma vez tendo acumulado Poder suficiente, ele pode usá-lo para romper e entrar no mundo do nagual. O que acontece depois disso é mera hipótese, já que só o próprio Poder pode dizer que uso deve ser feito do Poder. Se o temperamento do feiticeiro é bondoso, será um feiticeiro bondoso; se cruel, será cruel. Não se faz qualquer tentativa de moldar o caráter; se o feiticeiro acaba bondoso ou cruel é considerado irrelevante. A chave de acesso e controle do Poder é a Vontade, definida como um ou mais cordões de energia que brotam do plexo solar, ou de um ponto abaixo do umbigo.

Dizer que só o Poder pode lhe dizer para que o Poder deve ser usado soa um pouco como o princípio de que níveis mais elevados de realidade possuem significado intrínseco, razão pela qual não podem ser utilizados para empoderar agendas de nível inferior. Contudo, o Poder, pura agência, jamais pode ser o dono do sentido, mas só pode existir como servo ou expressão dele — ou então é expressão de ausência de sentido, servo de dissipação e caos, instrumento do mal. Dizer que o Poder pode conferir sentido a si mesmo é uma contrafação satânica da submissão à Vontade de Deus: Deus não é apenas Poder, mas também Bondade e Verdade.

O mundo em geral se tornou muito mais parecido com o mundo de Castaneda desde que ele começou a publicar, em 1968. Com o colapso, por toda parte, do consenso quanto ao significado da vida humana — devido à tecnologia desencadeada e ao choque de culturas em uma era de pluralismo globalista — existe grande impulso a confiar apenas na vontade própria, a simplesmente tomar o poder — pessoal, cultural ou político — e deixá-lo dizer-nos o que fazer de nossas vidas, já que nada mais parece capaz de preencher essa função de modo convincente. Mas tudo o que o poder pode nos dizer é: “obtenha mais poder”. Sem valores estabelecidos, baseados em moralidade estável, que por sua vez se enraíza em princípios metafísicos eternos, o poder é desprovido de sentido. É puramente niilista. Certamente termos como Vontade e Poder possuem seus significados especializados no contexto da feitiçaria de Castaneda; ainda assim, tanto seus usos seculares quanto os mágicos apontam para uma perda comum: a perda de nossa capacidade de conceber a Realidade Absoluta como Bem. De Nietzsche a Castaneda, o ethos pós-moderno considera tal identificação, comum a todas as religiões tradicionais bem como o platonismo, como algo constrangedoramente sentimental e obviamente não verdadeiro, já que a “vida real” é dura e impiedosa. Mas a vida era igualmente dura nos tempos de Maomé, de Jesus, de Sócrates e de Lao Tsé; por que eles não chegaram a conclusão semelhante? Simplesmente porque estavam em um nível mais elevado do que tanto o secularismo cínico quanto a magia cínica: eles conheciam a Deus.

Mas, embora apenas o Poder possa definir os usos do Poder, torna-se progressivamente mais claro, de livro em livro, que o objetivo real da feitiçaria de Carlos Castaneda é simplesmente evitar a morte física. Sua meta última, ao que parece, é poder caminhar vivo para o outro mundo: imitar, via magia — dom de alguns poucos santos raros, como o budista Milarepa, e de profetas como Enoque e Elias, sem falar em Jesus Cristo, que não deixaram corpo algum para trás quando “morreram”.

Ainda assim, dadas as peripécias nada santas de Castaneda e seus colegas, o verdadeiro objetivo pareceria ser transferir a consciência para o sutil “duplo etérico” no momento da morte — tornar-se um fantasma vivo, um espectro consciente, habitando uma dimensão não menos apinhada de fantasmas do que as ruas e casas deste mundo.

Alguns antropólogos dividem magos ou xamãs em quatro categorias: o Curador, o Feiticeiro, o Mago e a Bruxa. O Curador é o bem-conhecido xamã tribal que representa a perícia médica e psicoterapêutica de seu povo, que pode localizar e atrair caça, prever ou controlar o clima, realizar investigações criminais, conduzir a inteligência militar, equilibrar a psique da tribo e, em geral, proteger seu povo de perigos psíquicos e às vezes físicos.

O Feiticeiro é aquele que busca poder pessoal por razões pessoais. Ele não se interessa em ajudar nem em dominar outras pessoas, sendo o solitário por excelência, o aventureiro psíquico autodirigido.

O Mago usa seu poder para dominar os outros. É o tirano espiritual, o arquiteto e agente de uma agenda consciente que ele se esforça por impor à comunidade. A figura de Clingschor, no romance Parzival, era um Mago, não um Feiticeiro.

A Bruxa, apesar de todo o seu aparente poder, é o peão possuído e indefeso do caos, aquele que espalha veneno e mal sem motivo consciente algum além da pura perversidade.

Segundo esse esquema, Carlos seria, como ele mesmo diz, um Feiticeiro. Ora, a feitiçaria é proibida por todas as grandes religiões porque é definida como magia negra, ou comércio com demônios. Podem tais coisas ser atribuídas a Castaneda? Certamente sua feitiçaria está repleta de muitos elementos geralmente associados às artes negras: adivinhação, espíritos familiares, ataques psíquicos devastadores e contra-ataques (embora, ao que parece, com a finalidade de ensinar e aprender), animais fantasmais grotescos e figuras humanoides horripilantes que brilham no escuro... mas, deixando isso de lado, não seria o pequeno Carlos simplesmente um aventureiro inocente, sem vontade de fazer mal, apenas desejoso de explorar, de alargar a área da própria consciência? Ouça:

“‘O que exatamente você quer que eu faça?’, perguntei num tom firme e intimidador. ‘Já te disse!’, gritou ela. ‘Você e eu somos iguais.’ Pedi que ela explicasse o que queria dizer... Ela se levantou abruptamente e deixou a saia cair no chão. ‘É isso que eu quero dizer!’, gritou, acariciando sua região púbica... Fiquei atônito. Doña Soledad, a velha índia, mãe de meu amigo Pablito, estava de fato meio nua, a poucos passos de mim, mostrando-me seus genitais... seu corpo não era o de uma velha. Tinha coxas belamente musculosas, escuras e sem pelos... ‘Você sabe o que fazer’, disse, apontando para o púbis. ‘Nós somos um aqui.’ Ela descobriu os seios robustos. ‘Doña Soledad, eu imploro!’, exclamei. ‘O que deu em você? Você é a mãe do Pablito.’ ‘Não, não sou!’, retrucou. ‘Não sou mãe de ninguém.’” (The Second Ring of Power, p. 21).

“Seus dentes estavam cerrados. Seus olhos fixos nos meus. Pareciam duros e maus. De repente, ela avançou em minha direção. Bateu com o pé direito no chão, como um esgrimista, e estendeu as mãos em garra para me agarrar pela cintura, soltando o grito mais arrepiante... Corri para o carro, mas, com agilidade inconcebível, ela rolou até meus pés e me fez tropeçar nela. Caí de bruços e ela me agarrou pelo pé esquerdo. Encolhi a perna direita e teria dado um pontapé em seu rosto com a sola do sapato se ela não tivesse me largado e rolado. Senti uma dor aguda na panturrilha direita. Ela havia me agarrado pela perna... tinha prensado ambas as minhas pernas contra o capô. Puxou-me para si e caí sobre ela... Mal conseguia me mexer sob a pressão gigantesca de seu corpo... De repente ouvi um rosnado e o enorme cão pulou sobre as costas dela e a afastou de mim... Eu podia ouvir o rosnado furioso do cão e os gritos desumanos da mulher. Então, de repente, os latidos e rosnados do cão se transformaram em ganidos e uivos, como se estivesse ferido ou como se algo o estivesse assustando. Senti um solavanco no fundo do estômago. Meus ouvidos começaram a zumbir” (ibid., p. 25).

“‘O Nagual não é humano’, ela disse. ‘O que a faz dizer isso?’ ‘O Nagual é um demônio de sabe-se lá que tempo.’ Suas palavras me gelaram. Senti meu coração disparar. Certamente ela não poderia ter encontrado plateia melhor... Supliquei que explicasse o que queria dizer com isso. ‘O toque dele mudou as pessoas’, disse ela. ‘Ele entrou no seu corpo velho. Ele colocou algo dentro dele. Fez o mesmo comigo. Deixou algo em mim e algo tomou conta. Só um demônio pode fazer isso. Agora eu sou o vento norte e não temo nada nem ninguém. Antes de ele me mudar, eu era uma velha fraca e feia que desmaiaria só de ouvir mencionar o nome dele’” (ibid., p. 37).

Carlos talvez ainda seja, no fundo, inocente, mas certamente anda em má companhia. Teme-se que as pessoas com quem se relacionou não tenham tido o melhor efeito sobre seu caráter.

Se Castaneda não tivesse invadido o terreno do Absoluto, mas se limitasse a falar sobre como adquirir poderes psíquicos, eu provavelmente o teria deixado em paz. Mas ele não resistiu a colocar certas concepções derivadas da feitiçaria, sejam tradicionais, sejam independentes, no lugar da compreensão tradicional e ortodoxa da natureza de Deus. E Deus certamente está por trás dessas concepções — o que não quer dizer muito, já que toda concepção de qualquer coisa, por mais limitada ou distorcida, é em última análise uma ideia d’Ele. A questão é: essas concepções se abrem para a plenitude de Sua Realidade, ou nos fixam numa visão limitada dela que, na medida em que se ergue como resistência a essa plenitude, deve suportar os golpes daquela Realidade?

Eis o “Deus” que Castaneda nos apresenta em The Second Ring of Power:

“Don Juan... explicou que... o molde do homem era definitivamente uma entidade... Descreveu o molde como sendo a fonte, a origem do homem, já que, sem o molde para agrupar a força da vida, não haveria maneira de essa força se reunir na forma humana. [La Gorda disse:] ‘O molde humano brilha e sempre é encontrado em poços de água e ravinas estreitas... Ele se alimenta de água. Sem água não há molde... O Nagual disse que, às vezes, se temos poder pessoal suficiente, podemos chegar a entrever o molde, mesmo sem sermos feiticeiros; quando isso acontece, dizemos que vimos Deus. Ele disse que, se o chamarmos de Deus, é a verdade. O molde é Deus.’” (pp. 154–155).

Talvez isso seja uma imagem do arquétipo do Homem in divinis, tal como visto por certas escolas de feiticeiros nativo-americanos — mas duvido, já que o trocadilho com mold como molde e também como mofo — “sem água não há mofo” — é torcido e demoníaco.

Em The Eagle’s Gift, pp. 176–177, Deus é apresentado como a Águia:

“O poder que governa o destino de todos os seres vivos é chamado de Águia... A Águia devora a consciência de todas as criaturas que, vivas na terra um instante antes e agora mortas, flutuaram até o bico da Águia, como um enxame incessante de vagalumes, para encontrar seu dono, sua razão de terem tido vida... a consciência é o alimento da Águia. A Águia, o poder que governa os destinos de todos os seres vivos, reflete de modo igual e simultâneo todas essas criaturas vivas. Não há, portanto, modo algum de o homem rezar para a Águia, de pedir favores, de esperar graça. A parte humana da Águia é insignificante demais para mover o Todo. A Águia, embora não seja movida pelas circunstâncias de ser vivo algum, concedeu um dom a cada uma dessas criaturas. A seu modo e direito, qualquer uma delas, se assim o desejar, tem o poder de manter a chama da consciência, o poder de desobedecer à convocação para morrer e ser consumida... de buscar uma abertura para a liberdade e atravessá-la... A Águia concedeu esse dom a fim de perpetuar a consciência.”

É sempre interessante ouvir as ideias que as pessoas têm sobre o que a Realidade Absoluta e Infinita é incapaz de fazer. Segundo Frithjof Schuon (ele próprio uma Águia, segundo seus amigos e mestres nativo-americanos), Deus, na medida em que “governa os destinos de todos os seres vivos” — o Deus Pessoal, ou Ser puro — possui todo poder sobre o universo que é Seu reflexo, exceto o poder de alterar a natureza essencial desse universo como imagem expansiva e, por isso, progressivamente atenuada d’Ele. Ele pode abolir qualquer mal particular, por exemplo, mas não o mal enquanto tal, já que o que chamamos de mal é precisamente consequência dessa atenuação, aspecto inseparável da manifestação cósmica na medida em que esta ao mesmo tempo revela e vela seu Princípio. Castaneda, porém, nega a Deus, como Águia, o poder de conceder ajuda. Ele “governa o destino de todos os seres vivos”, e ainda assim teria menos poder concreto para nos ajudar do que um policial na ronda ou um operador de informações telefônicas. Belo governador.

A razão que Castaneda dá para essa deplorável incapacidade é que Ele “reflete de modo igual e simultâneo todos... os seres vivos” e que, consequentemente, “a parte humana da Águia é insignificante demais para mover o Todo”. Mas quem disse que é preciso mover o Todo? O Sol inteiro precisa entrar pela minha janela para que eu receba um raio seu? Deus precisa perturbar toda a ordem cósmica só para cuidar do meu pequeno problema? Apenas se essa ordem não for senão uma máquina composta de leis fixas — ao invés de o Ato dinâmico e eterno de um Criador Divino, que é o que ela realmente é.

A Águia de Castaneda acaba se revelando bastante deísta aqui. E sim, de certo modo, a consciência das criaturas é alimento de Deus, assim como o Ser de Deus é alimento das criaturas. Ainda assim, Deus pode viver sem Suas criaturas, embora não como “governador de todos os destinos”. Nem Deus “devora nossa consciência” apenas no momento da morte; Ele enxerga através de nossos olhos agora mesmo, em cada instante de nossas vidas simultaneamente, porque Ele está na Eternidade. Nós podemos esperá-Lo; Ele não precisa esperar por nós.

O dom da Águia, segundo Castaneda, é a chance de desobedecê-La, de escapar de suas garras. Isto, evidentemente, é uma distorção satânica da doutrina do livre-arbítrio, como se o uso correto da vontade humana, o único caminho para a liberdade, fosse a desobediência ao Princípio da Vida. Tal como entre os gnósticos, esse governador de destinos é uma espécie de Demiurgo, um Arconte que se deve contornar ou transcender, embora Ele seja mais generoso que seu equivalente gnóstico, já que foi Ele próprio quem nos deu os meios para isso.

Tudo isso é absurdo. Um nível de ser não é transcendido por um voo rápido através de um buraco nele antes que ele nos agarre, mas sim tornando-se esse nível. A consciência transcende níveis inferiores precisamente ao ser “devorada” por níveis superiores. Aquele que é devorado pela Águia não é dissolvido nos sucos gástricos da Águia; quem é devorado pela Águia torna-se Águia. Toda a cosmologia do feiticeiro segundo Castaneda revela-se aqui como função do simples medo da perda de identidade, o medo primordial da morte. O feiticeiro, como em Tales of Power, pode saltar de um alto penhasco e não morrer. Nem mesmo a Águia, nem mesmo Deus pode destruir sua consciência individual separada, seu ego. Para garantir que isso jamais aconteça, ele sacrificará até sua humanidade àquela pequena chama lúgubre. O estado real das coisas, contudo, é outro: “Quem procura preservar a própria vida irá perdê-la; mas quem perder a própria vida, por Minha causa, a encontrará.”

Em Tales of Power, Castaneda nos apresenta aquilo que poderia ser interpretado como outra versão do Absoluto, em sua doutrina do tonal e do nagual. O tonal e o nagual são as duas partes do ser humano, bem como os dois aspectos do próprio ser. O tonal é tudo o que é cognoscível e inteligível; o tonal do indivíduo é tudo o que se pode dizer ou saber sobre ele. Em certo sentido, o tonal é o eu social — “pessoa” no sentido de “máscara” — mas é igualmente a totalidade do que é cognoscível sobre o mundo em torno de nós — o qual, segundo Don Juan, é de fato criado, ou arranjado de modo a constituir uma ordem compreensível, por esse eu social. A realidade é um padrão aprendido de percepção, um padrão que pode ser alterado.

O nagual, por outro lado, é aquilo que está além da definição e do conhecimento ordenado. É pura agência, puro poder. Quando o tonal é tensionado quase até o ponto de morte, seja pelas técnicas da feitiçaria, seja pelos golpes da vida, o nagual emerge. Apenas o feiticeiro, porém, pode sobreviver a essa emergência, já que ele aprendeu tanto a desconstruir o tonal quanto a usar o poder do próprio nagual para reconstruí-lo.

Este é um conceito bastante sofisticado. O tonal — e posso perfeitamente estar enganado aqui — pareceria corresponder, aproximadamente, à Shakti do hinduísmo, o poder que cria a aparência-mundo, e o nagual a Shiva, o Absoluto Informal, ou pelo menos às extensões psíquicas de ambos, já que se diz que o tonal começa no nascimento e termina na morte.

Don Juan compara o tonal a uma ilha. Em Tales of Power, ele usa uma mesa de café para ilustrar sua natureza. Carlos pergunta o que é o nagual. O nagual é mente? É pensamento, alma, graça, céu? É Deus? Em cada ocasião, Juan aponta para algum objeto sobre a mesa — os talheres, ou o molho de pimenta. Tudo o que atribuímos ao nagual, tudo o que usamos para descrevê-lo, é apenas outro aspecto do tonal. Deus ele compara à toalha de mesa e diz:

“Eu disse que o nagual não era Deus porque Deus é um item do nosso tonal pessoal e do tonal de nossa época. O tonal é, como já disse, tudo aquilo de que pensamos que o mundo é composto, incluindo Deus, é claro. Deus não tem mais importância do que ser parte do tonal de nosso tempo.
‘No meu entendimento, Don Juan, Deus é tudo. Não estamos falando da mesma coisa?’ ‘Não. Deus é apenas tudo aquilo que você pode pensar; logo, propriamente falando, é apenas mais um item na ilha. Deus não pode ser testemunhado à vontade, só se pode falar sobre Ele. O nagual, por outro lado, está a serviço do guerreiro. Ele pode ser testemunhado, mas não se pode falar dele.’” (p. 127).

Está tudo aí: Deus como conceito sem realidade por trás; Deus como subordinado à história e à sociologia; Deus como fantasma impotente, tema para discussão interminável e infrutífera. Na minha opinião, Castaneda não aprendeu tudo isso com algum misterioso homem de conhecimento em um café na Cidade do México; aprendeu com seus professores na UCLA. Isso faz parte integrante da academia pós-moderna. Deus não pode ser testemunhado? Muito bem. Seus efeitos, porém, podem — e, em rigor, não há nada além desses efeitos em todo o reino da testemunha. E Ele também, até certo ponto, pode ser objeto de discurso — exatamente como o nagual, que Don Juan de que acabara de falar longamente. Tampouco Deus é simplesmente “tudo de que você pode pensar”: em Sua Essência, segundo os sufis e muitos outros, Ele é a única “coisa” de que você não pode pensar. Castaneda pode conhecer o tonal e o nagual, mas nada sabe do que teólogos e metafísicos querem dizer por “Deus”.

O que o nagual de fato seja segundo a metafísica tradicional não posso dizer com certeza, já que Castaneda o apresenta em termos de experiência, não de conceitos, e é uma experiência que não tive. Se fosse o Si mesmo do hinduísmo, o Absoluto Informal — às vezes personificado por Shiva como destruidor da ilusão-mundo — isso explicaria muita coisa, permitindo traçar paralelos entre a feitiçaria nativo-americana de Castaneda (se é isso mesmo que ela é) e o hinduísmo tântrico. O mestre budista vajrayana Chögyam Trungpa, porém, disse certa vez que esperava encontrar uma espécie de Tantra nativo-americano nos livros de Castaneda, mas desistira da busca. E nas pp. 140–141 de Tales of Power, o próprio Castaneda ergue obstáculos a tal identificação:

“[Eu] argumentei que, no pensamento europeu, já havíamos dado conta do que ele chamava de ‘nagual’. Introduzi o conceito de Ego Transcendental, ou do observador não observado presente em todos os nossos pensamentos, percepções e sentimentos. Expliquei a Don Juan que o indivíduo podia perceber-se ou intuir-se a si mesmo, como um eu, por meio do Ego Transcendental, porque ele era a única coisa capaz de juízo, capaz de revelar a realidade dentro do âmbito de sua consciência. Don Juan permaneceu imperturbável. Riu.
‘Revelar a realidade’, disse ele, imitando-me. ‘Isso é o tonal.’
Argumentei que o ‘tonal’ poderia ser chamado de Ego Empírico encontrado no fluxo passageiro de consciência ou experiência, enquanto o Ego Transcendental se encontrava por trás desse fluxo.
‘Observando, suponho’, disse ele zombeteiro.
‘Exato. Observando a si mesmo’, eu disse.
‘Ouço você falar’, disse ele, ‘mas você não está dizendo nada. O nagual não é experiência, nem intuição, nem consciência. Esses termos e tudo o mais que você queira dizer são apenas itens na ilha do tonal.’”

Ainda na p. 131, porém, Carlos pergunta: “O nagual tem consciência? Está ciente das coisas?” E Don Juan responde: “Claro. Ele está ciente de tudo.” Mas, se ele está ciente de tudo, nada mais é senão o Ego Transcendental — melhor chamado, em terminologia hindu, de atman, o Si mesmo. E embora o nagual, se o identificarmos com o Si mesmo, não seja uma experiência — ainda que seja certamente uma realização, que transcende totalmente, porém, a subjetividade limitada do ego empírico — é sem dúvida apresentado como experiência em outras passagens de Tales of Power. Na p. 265, falando do nagual, Don Juan diz: “O nagual é indizível. Todos os sentimentos possíveis e seres e eus flutuam nele como chatas, pacíficos, inalterados, para sempre.” Como reservatório eterno de todas as formas, corresponderia ao “mundo inteligível” do filósofo neoplatônico Jâmblico, definido por Frithjof Schuon como “o Ser enquanto contém as Qualidades Divinas das quais são derivadas as essências angélicas e os arquétipos existenciais” (Dimensions of Islam, p. 148), ou possivelmente ao nível de ser que os sufis chamam de Wahidiyah, “Unidade”, definido por Schuon como “o mundo das possibilidades ontológicas” (p. 150). Esse mundo inteligível supremo é transcendido pela Ahadiyah ou Dhat dos sufis (Além-Ser ou Essência), o Atman dos hindus. O tonal corresponderia então ao ‘aql, ou “intelecto”, dos sufis (que é um nível de ser mais baixo do que o que Schuon chama de Intelecto com “I” maiúsculo, correspondente ao ‘Ilm sufi), e a tudo o que está abaixo dele, em relação ao qual se ergue como princípio ordenador, incluindo khayal, a imaginação ou plano psíquico, e jism, o corpo. Mas, nas descrições que Castaneda faz de nagual e tonal como experiências, tudo acaba inevitavelmente apresentado em termos muito mais subjetivos ou psíquicos.

No mundo do nagual, Carlos tem a sensação de cair pelo ar, o corpo se desfazendo e dissolvendo, até restar apenas a cabeça:

“Tudo o que restava de ‘mim’ era um centímetro quadrado, uma pepita, um minúsculo resíduo semelhante a seixo. Todo o meu sentir estava concentrado ali; então a pepita pareceu explodir e eu estava em mil pedaços. Eu sabia, ou algo em algum lugar sabia, que eu estava ciente dos mil pedaços ao mesmo tempo. Eu era a própria consciência.” (p. 261).

Depois, no mundo do tonal:

“Então alguma parte daquela consciência começou a agitar-se; ela ergueu-se, cresceu. Tornou-se localizada. E, pouco a pouco, recuperei o senso de limites, consciência ou seja o que for, e de repente o ‘eu’ que eu conhecia e com o qual estava familiarizado irrompeu na mais espetacular visão de todas as combinações imagináveis de cenas ‘belas’; era como se eu estivesse olhando milhares de imagens do mundo, de pessoas, de coisas.” (pp. 261–262).

De novo, nagual:

“Explodi. Desintegrei-me. Algo em mim cedeu; liberou algo que eu mantivera trancado toda a minha vida. Eu estava totalmente ciente de que meu reservatório secreto fora tocado e jorrava sem restrições. Já não havia a doce unidade que chamo de ‘eu’. Não havia nada, e ainda assim esse nada estava cheio. Não era luz nem escuridão, nem quente nem frio, nem agradável nem desagradável. Não era que eu me movesse, flutuasse ou estivesse imóvel, nem tampouco era uma unidade única, um eu, como estou acostumado a ser. Eu era uma miríade de eus que eram todos ‘eu’, uma colônia de unidades separadas que tinham uma lealdade especial umas para com as outras e que se uniam inevitavelmente para formar uma única consciência, minha consciência humana. Não era que eu ‘soubesse’ além da sombra de dúvida, porque não havia nada com que eu pudesse ter ‘sabido’, mas todas as minhas consciências singulares ‘sabiam’ que o ‘eu’, o ‘mim’ do meu mundo familiar era uma colônia, um conglomerado de sentimentos separados e independentes que possuem uma solidariedade inflexível uns com os outros. A solidariedade inflexível de minhas incontáveis consciências, a lealdade que essas partes tinham umas pelas outras era minha força vital.” (p. 262).

E, de novo, tonal:

“Esses nódulos de consciência estavam dispersos... Então algo os agitava, e eles se uniam e emergiam em uma área onde todos tinham de ser reunidos em um só bloco, o ‘eu’ que conheço. Como ‘eu’, ‘eu mesmo’ então eu testemunhava uma cena coerente de atividade mundana, ou uma cena que pertencia a outros mundos e que eu achava que devia ser pura imaginação, ou uma cena que pertencia ao ‘pensar puro’, isto é, eu tinha visões de sistemas intelectuais, ou de ideias encadeadas como verbalizações. Em algumas cenas eu conversava comigo mesmo à vontade.” (p. 263).

No mundo do nagual, Carlos chega mais perto do que em qualquer outra passagem de seus livros da experiência mística clássica, como no tonal ele sacia a sede de experiências mentais e imaginativas. E, no entanto — que narcisismo invencível. Sua identidade é lançada pelos ares, mas todos os fragmentos dispersos ainda são fragmentos de Carlos. Em nenhum desses mundos inimagináveis ele encontra alguém mais — apenas Carlos, Carlos, Carlos. Que ilustração mais clara se poderia desejar da verdade de que, sem relação, sem amor, não há saída do ego, unificado ou pulverizado que seja: “Ninguém vem ao Pai senão por Mim.” Até que o Si mesmo, o Absoluto Informal, seja realizado, esse Si mesmo é o Senhor acima, o Absolutamente Outro, a Própria Pessoa, Aquele que nos conhece e nos ama perfeitamente, exatamente como somos. Como Castaneda demonstra de modo convincente, na ausência de uma relação consciente e voluntária com esse Deus Pessoal, a porta para o Absoluto Informal está fechada para nós; “perdemos” o ego apenas para entrar no mundo da “força vital”, o espectro do ego. Tornamo-nos aquele herói pós-moderno, o Homem Múltiplo, o homem das alternativas. É verdade, no plano psíquico, que somos de fato múltiplos. É também verdade que nascemos da Unidade e a ela somos destinados, porque somos conhecidos pelo Um, como Um só. Como remédio para o estado de Castaneda, que ele partilha com tantos viajantes pós-modernos por incontáveis mundos alternativos, só posso receitar o hadith de Maomé (sobre ele, paz): “Ora a Deus como se O visses — porque, mesmo que tu não O vejas, Ele te vê.” Conhece-te como conhecido, señor Castaneda, e fica em paz.

Fui apresentado, brevemente, a Carlos Castaneda em 1968 por meu mentor poético, o poeta da Geração Beat Lew Welch, em uma de suas “Festas da Lua Cheia com Mexilhão” em Muir Beach, Califórnia. Em meio aos hippies nus e em transe, Castaneda se destacava: um pequeno e bem-apessoado cavalheiro latino, de terno escuro, camisa branca e gravata. Não tendo lido nenhum de seus livros na época, ele não me interessou; espero fervorosamente que eu lhe tenha sido de tão pouco interesse quanto ele me foi. (Anos mais tarde percebi que Lew pretendia isso como uma espécie de iniciação para mim: não à toa ele me apresentou tanto a Castaneda quanto ao meu primeiro verdadeiro mestre sufi. De certo modo, este livro é uma resposta à escolha que ele colocou diante de mim, há trinta anos, na pessoa desses dois homens.)

Na seção introdutória de I, Leo, o romance inacabado de Lew Welch, ele conta uma visão que teve certa vez na cidade de Nova York. (Outra versão aparece em seus poemas reunidos, Ring of Bone, em “Din Poem”.) Era como se tivesse recebido de um mago uma droga estranha que lhe permitiria tornar-se membro da raça humana. Idêntico aos habitantes da terra, ele seria capaz de compreendê-los como se fosse um deles, como um antropólogo que vive por anos com a tribo que estuda; o relato que prometera apresentar seria, portanto, completamente exato. Lew percebeu isso porque a droga começava a perder o efeito — e, à medida que isso acontecia, percebeu também que todos na terra haviam recebido a mesma droga e a mesma missão, e que, mais rapidamente em alguns casos, mais lentamente em outros, ela ia perdendo o poder sobre todos. Ele diz:

“Notei que a angústia, em mim, foi ficando cada vez mais tênue, mais tênue, mais tênue. Enquanto, o tempo todo, eu continuava vendo as coisas cada vez mais claras, mais claras, mais claras. E notei também que, quanto mais claramente se veem as coisas, mais medo se sente... Vi que todos esses corredores assustados do metrô estavam, assim como eu, sofrendo cada vez menos a angústia real (drogada) — e que seu medo presente não era senão um sintoma de abstinência. Principalmente eles iam percebendo que o ‘amor’ (uma das angústias causadas pela droga) já não era possível para eles. É isso que os apavorava. Pois todos têm medo. Eu tenho medo. No entanto, acho que tenho menos medo do que eles. Acho que o que está acontecendo é natural e bom, e eles, talvez por se lembrarem menos claramente do mago do que eu, não acham que seja natural e bom. Por isso estão muito apavorados. E então, de repente, percebi que essa visão é a visão de todos os livros e homens que valem a pena. No budismo ela é chamada de vazio. No cristianismo, ‘a noite escura da alma’... Hart Crane mergulhou nela. Li Po a abraçou em seu rio embriagado...”
I, LEO, pp. 7–8

Errado. A razão pela qual eles, e ele, ficaram apavorados é que, quando o amor morre, o inferno se abre. A impossibilidade do amor não é o “vazio” do budismo; os budistas ensinam que vacuidade e compaixão são duas faces de uma só coisa. E não é a “noite escura da alma” de São João da Cruz, porque, no cristianismo, Deus é amor. Por outro lado, pode muito bem ter sido o que Hart Crane e Li Po experimentaram, dois poetas alcoólatras que se suicidaram por afogamento, assim como Lew Welch, outro poeta alcoólatra, se suicidou estourando os miolos em algum lugar da Serra — o que constitui a refutação definitiva de seu argumento.

Creio que a passagem acima mostra tanto a deriva da alma coletiva humana rumo ao frio demoníaco dos últimos dias quanto a zona dessa alma em que Lew Welch e Carlos Castaneda estavam de acordo: este, jurado a sobreviver à morte do amor e seguir em frente; aquele, por fim, incapaz de fazer tal juramento.

E o que o próprio Carlos tem a dizer sobre o amor? Ouça as palavras da feiticeira doña Soledad:

“Pablito não é meu inimigo porque seus olhos estavam fixos em direção oposta, mas porque ele é meu filho... Tenho de entrar naquele outro mundo. Onde o Nagual está agora. Onde Genaro e Eligio estão agora. Mesmo que eu tenha de destruir Pablito para fazer isso.”
THE SECOND RING OF POWER, pp. 64–65

Doce senhora. Corajosa também! E a feiticeira la Gorda, sua colega, é igualmente doce:

“para entrar no outro mundo é preciso ser completo. Para ser feiticeiro é preciso ter toda a própria luminosidade: sem buracos, sem remendos e com toda a borda do espírito...”
“‘Mas como você recuperou sua completude?’, perguntei. ‘... Tive de recusar aquelas duas meninas [as filhas dela]’, disse... ‘o nagual... guiou-me a fazer isso, e a primeira coisa que me fez fazer foi recusar meu amor por aquelas duas crianças... Tive de afagar-lhes a cabeça de leve e deixar meu lado esquerdo arrancar a borda delas.’
‘O que aconteceu com elas?’
‘Nada. Elas nunca sentiram coisa alguma. Voltaram para casa e agora são como duas pessoas adultas. Vazias, como a maioria das pessoas ao redor delas. Não gostam da companhia de crianças porque não têm uso para elas. Eu diria que estão até melhor assim.’” (ibid., pp. 132–133).

Portanto, a destruição do amor faz parte do programa de um feiticeiro. Não é feita por maldade; crer nisso seria insuportavelmente burguês. É apenas uma exigência técnica.

“Pegue Soledad... Ela é a melhor bruxa que se pode encontrar e é incompleta. Teve dois filhos. Um deles era menina. Felizmente para Soledad, a filha morreu... a borda do espírito de uma pessoa que morre volta aos doadores, o que significa que essa borda volta aos pais... A filha de Soledad morreu sem deixar filhos e Soledad recebeu um impulso que fechou metade do buraco dela [o buraco em seu espírito]. Agora, a única esperança que tem de fechá-lo completamente é Pablito morrer. E, pelo mesmo raciocínio, a grande esperança de Pablito por um impulso é Soledad morrer.
Eu lhe disse em termos bem fortes que o que dizia era repugnante e horripilante para mim... Expliquei que eu gostava de crianças, que tinha o mais profundo respeito por elas... que não conseguia conceber ferir uma criança em qualquer sentido, por qualquer motivo.
‘O Nagual não fez a regra’, disse ela. ‘A regra é feita em algum lugar lá fora, e não por um homem... Eu era uma mulher religiosa. Podia lhe dizer o que costumava repetir sem saber o que significava. Eu queria que minha alma entrasse no reino dos céus. Ainda quero isso, só que estou em outro caminho. O mundo do nagual é o reino dos céus.’” (ibid., pp. 234–235).

Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras: a regra desse “outro caminho” não foi feita por homem algum, mas por um “anjo de luz”. Carlos reage:

“Objetei, por princípio, à conotação religiosa que ela dava. Eu havia me acostumado, com Don Juan, a nunca me deter nesse assunto. Ela explicou muito calmamente que não via diferença em termos de estilo de vida entre nós e as verdadeiras freiras e padres. Observou que não só as verdadeiras freiras e padres são, em geral, completos, como também não se enfraquecem com atos sexuais.
‘Eu sempre torcerei pelas freiras e padres. Somos iguais. Nós abandonamos o mundo e, no entanto, estamos no meio dele. Padres e freiras seriam grandes feiticeiros voadores se alguém lhes dissesse que podem fazer isso.’” (ibid., p. 235).

Que mente aberta, la Gorda; ela admite que freiras e padres talvez sejam bons o bastante para serem magos negros! E quão pós-moderno é o conjunto inteiro A coisa é: a crença de que o amor não pode ser senão uma terrível e exaustiva codependência, a ameaça máxima à própria sobrevivência.

Carlos Castaneda tem muito a dizer sobre o guerreiro e sua impecabilidade. Para ser um verdadeiro feiticeiro, é preciso ser um guerreiro. Do meu ponto de vista, porém, um guerreiro — ainda que ele seja incapaz de viver no centro do amor — precisa empenhar sua vida em defender o amor lá na fronteira, no perímetro guardado do coração. Se falha nisso, se termina destruindo o amor em vez de defendê-lo, então não é guerreiro, mas apenas bandido.

É claro que Castaneda e eu empregamos o termo “guerreiro” em dois sentidos diferentes. Mas o que estou dizendo? Castaneda não é destituído de amor; sua amada é a própria Terra, como descobrimos nas pp. 284–285 de Tales of Power:

“‘O amor de Genaro é o mundo’ [diz Don Juan]. ‘Ele estava agora mesmo abraçando esta enorme terra, mas como é tão pequeno tudo o que pode fazer é nadar nela...’
Don Juan agachou-se à nossa frente. Acariciou delicadamente o chão. ‘Esta é a predileção de dois guerreiros’, disse. ‘Esta terra, este mundo. Para um guerreiro não pode haver amor maior... Só se alguém ama a terra com paixão inflexível pode libertar sua tristeza... A tristeza pertence somente àqueles que odeiam a própria coisa que dá abrigo ao seu ser.’ Don Juan novamente acariciou o chão com ternura. ‘Este ser adorável, que está vivo até seus últimos recantos e compreende todo sentimento, acalmou-me, curou-me das minhas dores e, finalmente, quando compreendi plenamente meu amor por ele, ensinou-me a liberdade.’”

Mate sua mãe, mate seus filhos, e depois dê todo o seu amor à Terra? O que ela quer com o “amor” de psicopatas e poluidores? É um concerto muito bonito o que Don Juan toca aqui, no violino do sentimentalismo de adoração da natureza; contudo, como diz Rumi, o mundo pode ser tão belo quanto uma noiva, mas ninguém pode desposar essa fascinante criatura. Com toda certeza, esta adorável Terra merece muitas serenatas — mas só porque sua beleza e majestade, seus vales suaves e floridos e seus vulcões em erupção, seu Quetzal e seu Jaguar, são letras traçadas com a Pena do Amado. Quanto a ela mesma, considerada separadamente d’Ele, não é senão um planeta, um arranjo de estruturas e forças materiais. Ai daqueles que tentam nadar nesse coração de pedra, como eu fiz, como se fosse o colo de uma mãe amorosa! Tais tolos se encontrarão face a face com a Medusa. Transformar-se-ão em pedra como todas essas pedras à nossa volta, que um dia foram homens.

O xamanismo é profundamente ambíguo no mundo de hoje; ainda assim, não é pura magia negra. Produziu homens santos como Lame Deer e Black Elk, e xamãs na categoria dos Curadores, como os cirurgiões psíquicos das Filipinas, ainda estão ativos. A história a seguir, sobre uma “boa feiticeira”, foi-me contada por Joan, uma ex-freira católica que atuava nos movimentos populares de libertação da América Latina na década de 1980:

Uma certa região do México estava sendo aterrorizada por brujos (feiticeiros), que formavam uma espécie de máfia. Eles eram os únicos “médicos” da área e usavam seu monopólio sobre os cuidados médicos para oprimir a população. Joan trabalhava junto a uma bruja local que se opunha aos feiticeiros; elas formavam jovens catequistas católicos como médicos herbalistas, para quebrar o monopólio dos brujos. Joan relata uma reunião com a bruja em que os olhos desta se voltaram totalmente para os lados, o direito para a direita e o esquerdo para a esquerda, após o que ela recitou clarividentemente toda a história da vida de Joan. Ela ofereceu-se para fazer de Joan sua aprendiz e disse: “Vou te ensinar sobre os poderes da Flor de Alho, da Espada de Prata e da Cruz; mas o maior poder é o Amor.” Joan, porém, decidiu seguir para a América do Sul, para estudar teologia da libertação.

Portanto, ainda existem bons xamãs, verdadeiros Curadores, que certamente discordariam de Carlos Castaneda quanto ao amor. Contudo, o fato de católicos terem achado necessário trabalhar com feiticeiros, por mais benevolentes que fossem, revela uma perda da dimensão teúrgica dentro da Igreja Ocidental, de poderes que ainda estão ativos na Ortodoxia Oriental, que possui ícones milagrosos e continua a produzir santos taumaturgos como São Serafim de Sarov e São João Maximovitch de Xangai e São Francisco, até os tempos contemporâneos.

E a atração de Joan pela teologia da libertação revela outra perda, pois mostra como o catolicismo não tem conseguido conservar o entendimento das obras corporais de misericórdia como instâncias da misericórdia eterna de Deus, e por conseguinte sentiu a necessidade de identificá-las com um progressismo secular espúrio e com uma falsa esperança histórica.

Espero que me seja permitido contar mais uma história xamânica: quando São Inocêncio, apóstolo russo-ortodoxo da América, viajou para as Ilhas Aleutas em 1828, encontrou um xamã aleúta. O xamã não se surpreendeu ao vê-lo; dissera aos outros ilhéus que um padre chegaria naquele dia. O xamã fora batizado por missionários ortodoxos algum tempo antes, que, porém, não tiveram tempo de catequizar os nativos. Mas São Inocêncio, para seu espanto, descobriu que o xamã possuía uma compreensão abrangente da doutrina cristã. Quando o santo lhe perguntou como isso era possível para uma pessoa analfabeta como ele, uma pessoa sem mestres, respondeu que “dois companheiros” tinham vindo ensinar-lhe tudo. Segundo sua descrição, um deles era o arcanjo Gabriel, tal como representado nos ícones ortodoxos. Em outras palavras, havia sido catequizado por anjos. Ele se ofereceu para deixar São Inocêncio ver esses catequistas celestes, mas o santo acabou recusando a oferta, já que o desejo de testemunhar prodígios pode levar ao orgulho espiritual.

Uma pessoa como eu, que não é feiticeira, não pode presumir comentar a validade ou a falsidade de uma arte na qual não foi iniciada. Isso é questão técnica que só pode ser tratada competentemente pelos próprios mestres e artífices dessa arte. Da mesma forma, não sendo espadachim, nem mesmo apreciador das artes marciais, nada tenho a dizer sobre como um mestre de kendo pratica sua profissão — no plano técnico. Posso, sim, e tenho algo a dizer sobre o valor do que ele faz. Tenho pleno direito de dizer mesmo ao maior dos espadachins: não oprimas; não mates o inocente; não te alugues a tiranos; não te deleites na crueldade; não pratiques tua esgrima de modo que a sociedade se aproxime um pouco mais de se transformar numa massa de gangues em guerra. Isso tenho o direito de dizer. Do mesmo modo, tenho o direito de dizer a qualquer feiticeiro: não viole a integridade de teus semelhantes; não manipules os outros; não causes dano; não seduzas nem enganes; não assumas para com as forças sutis da natureza a mesma atitude que uma madeireira tem para com um bosque de sequoias antigas; não percas tua humanidade em tuas excursões para outros mundos, a ponto de te tornares uma ferida aberta por onde a corrupção psíquica possa entrar e espalhar-se pelo mundo humano; não retrates a Fonte eterna de todas as coisas — Verdade Absoluta, Consciência Absoluta e Beatitude Absoluta — como uma fonte de poder sem amor, a ser explorada por saqueadores psíquicos, tal como a indústria nuclear explora o urânio nas Black Hills; não ajas de modo que contribuas para matar o amor entre os seres humanos, e o amor de Deus, mais depressa do que teria sido morto se nunca tivesses nascido; não te tornes como Carlos Castaneda, que possui conhecimento, poder, sensibilidade, sentimento e nostalgia, mas não amor.

O amor parece uma palavra tão fraca, descolorida de certo modo, diante das maravilhas e terrores da feitiçaria. Contudo, a magia, quando investigada diretamente, revela-se triste, porque o seu terror e a sua maravilha envolvem a perda da forma humana. Em The Eagle’s Gift, p. 308, Don Juan diz a Carlos: “‘... guerreiros não têm vida própria. A partir do momento em que compreendem a natureza da consciência, deixam de ser pessoas e a condição humana já não faz parte de sua visão’.” É verdade que o profeta Maomé (sobre ele, paz) disse “morre antes de morreres”. Mas essa morte é a morte do ego, não da pessoa, sendo esta última apenas a contrafação satânica da autotranscendência. A forma humana foi criada por Deus para ser Seu representante neste mundo; como não fomos nós que criamos essa forma, não temos direito de destruí-la. A realização de que nossa vida não nos pertence não é destruição da forma humana, mas precisamente o princípio dela.

Muitos hoje, porém, não lamentam a perda progressiva dessa forma; chegam mesmo a depositar suas esperanças nessa perda. Se ao menos o amor finalmente morresse, finalmente parasse de bater à porta da nossa consciência, bloqueando nossas percepções, interferindo em nossa eficiência; se ao menos a lembrança assombrosa da confiança ferida, dos relacionamentos traídos, da inocência envenenada, nos abandonasse de uma vez por todas. Sem esse lastro a nos manter no chão, talvez pudéssemos saltar, com abandono soberbo e impecável controle, para o mundo do poder! A noite fervilhante poderia fechar-se sobre nós. Desfalecendo de medo, e da expectativa das coisas que estão por vir, poderíamos fazer desse terror nosso aliado. Poderíamos encará-lo e saudá-lo com a honra de um guerreiro. Na luta de vida ou morte com aquele adversário, o conhecimento poderia ser tomado como troféu e manejado, girando a chave mestra deste mundo e abrindo sua porta. Nosso voo poderia conduzir-nos a incontáveis outros mundos, universos de exaltação, estranheza abismal e deslumbrante maravilha. O triunfo do guerreiro que faz do terror seu amigo poderia mesmo florescer além do túmulo, permitindo-nos caminhar sozinhos rumo a esse mistério último, essa noite luminosa, com nossa virilidade intacta. Tudo isso poderia ser nosso, se apenas o amor repousasse em paz em seu túmulo. Cavamos esse túmulo com nossas próprias mãos, com toda a astúcia e estoicismo de que fomos capazes. Se ao menos nossas asas poderosas pudessem levar-nos ao fim do mundo, onde um vento uivante abafasse seus sussurros; se ao menos pudéssemos encontrar uma laje de pedra pesada o bastante para esmagá-lo e sufocá-lo. Os sussurros do amor, esse fantasma tênue e persistente, são como água sobre a pedra. O que o gotejar constante pode fazer à pedra sólida? Que poder a água tem, doce ou salgada, para mudar a face dela? Ainda assim, as eras passam velozes sob a colina seca e coberta de grama daquele outro mundo; as asas da águia, seus batimentos constantes, sob aquele céu separado, abanam os séculos para longe — até que cheguemos como esqueletos, calvos e trêmulos, diante da carne plena de nossa negação. Esta é a voz dessa negação, os próprios acentos dela, captados e registrados por minha esposa, Jennifer Doane Upton:

Virgem de Guadalupe, Kali do nosso continente,
Quando eu te pedir que me mostres a
Cabeça espetada do meu amado, não a escondas,
Porque eu já o vi
Em teu rosto.

Tiraste dele o reconhecimento de mim
E, no lugar do meu amor,
Ele sente apenas uma dor tremenda.

E mesmo quando sorris para ele
Ele não se aproxima de ti,
Porque não sabe que alguma vez se afastou de ti.

Virgem de Guadalupe,
Não me sorrias
Dessa maneira
No dia da minha morte.

Quão fácil é satirizar Carlos Castaneda, descarregar toda a minha ironia retórica contra um alvo digno e vulnerável no lado escuro das coisas. Mas, lembrem-se, eu também estive lá. Mexi com as artes negras — acreditando o tempo todo, é claro, que não havia nada de negro nelas, que eu podia amar e servir a Deus enquanto brincava de “feiticeiro lírico”... expressão muito adequada de Castaneda, dado que poetas, especialmente poetas fracassados, adoram pensar-se como magos. Passei três dias e duas noites na cabana de uma bruxa local, uma mulher para quem os homens eram atraídos quando já haviam decidido suicidar-se — três mortes de que certamente sei. Sentei ali comendo as drogas dela como forma de fazer penitência, suponho, por uma infância superprotegida, como tantos da minha geração, porque sentia que precisava familiarizar-me com o lado escuro das coisas. Pois bem, consegui, e absorvi uma boa dose de amargura no processo, parte da qual veio à tona depois na forma deste livro, à medida que a luz e o calor do Caminho espiritual a cozinhavam para fora dos meus ossos.

Não há nada, nessas críticas, sátiras e denúncias, que não estivesse primeiro em mim. De onde mais teria vindo toda essa tinta negra? A escuridão em que mergulhei refletiu-se de volta para mim no espelho do mundo... esse espelho que tem a peculiaridade única de realmente conter porções de tudo o que nele se reflete, verdade ou falsidade, luz ou trevas. No espelho de Mahamaya nada é pura ilusão, mas nada é o que parece. (Agora afasta-te desse espelho escuro e fumegante, e volta-te para a Luz.)

III. Transcendência sem imanência: o neo-gnosticismo de A Course in Miracles

(NOTA: Como A Course in Miracles é bastante extenso, baseei a maior parte desta crítica em dois livros mais curtos: The Most Commonly Asked Questions about A Course in Miracles, de Gloria e Kenneth Wapnick (1995), e A Course in Miracles and Christianity: A Dialogue, de Kenneth Wapnick e Pe. W. Norris Clarke, S.J. (1989), ambos publicados pela The Foundation for a Course in Miracles. As citações do primeiro aparecem sob a abreviatura MCQCM, e as do segundo sob CMCD. Citações designadas como “texto”, “workbook” e “manual” vêm dos três volumes originais do Course propriamente dito.)

A produção mais sofisticada de toda a cultura Nova Era é A Course in Miracles. Em muitos aspectos representa o auge intelectual do movimento, e encontra-se claramente num nível superior às fantasias de médiuns e espiritualistas, sendo uma tentativa real de metafísica. Infelizmente, está construída sobre um erro fundamental, do qual muitos outros erros decorrem.

Há uma grande quantidade de verdade profunda em A Course in Miracles: o sentido intransigente de Deus como Verdade e Amor absolutos; uma percepção profunda dos jogos intrincados que o ego joga para escapar dessa Verdade e desse Amor; a compreensão de que o modo de consciência sujeito/objeto não pode testemunhar diretamente a Verdade Absoluta; a doutrina de uma única escolha, e apenas uma, que é completamente livre, a escolha entre Verdade e ilusão; a primazia concedida ao perdão no processo de metanoia, aquela mudança total de mente pela qual a Verdade é escolhida e a ilusão rejeitada; a doutrina — inteiramente verdadeira em certo sentido — de que a humanidade jamais caiu realmente no pecado, jamais entrou de fato na ilusão da separação de Deus. Essas verdades, que o Course partilha de um modo ou de outro com toda metafísica tradicional, podem até ser suficientes, pela graça de Deus, para fazer dele um verdadeiro passo no Caminho espiritual, pelo menos para alguns. Ainda assim, o erro fundamental permanece. Alguns, ao trilhar o caminho do Course, podem superar esse erro; mas o Course em si não pode ajudá-los a fazê-lo. E, se esse erro não for superado, o caminho do Course permanece como uma ponte construída pela metade. A Verdade da Outra Margem pode ser vista, mas não alcançada.

Segundo a metafísica tradicional de todos os povos, o Princípio Supremo é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O movimento Nova Era como um todo, dada sua fascinação pelo plano psíquico e sua tendência cientificista a glamourizar a matéria, é claramente inclinado na direção da imanência, tendendo a ver qualquer Deus que transcenda este mundo como tirânico ou ineficaz. A Course in Miracles, porém, pende para o lado oposto, como se um extremo de erro precisasse ser “equilibrado” com o extremo oposto. O Deus do Course é estritamente transcendente. Ele não criou o mundo, que não passa de uma ilusão do ego. Como conhece apenas a Verdade, nem sequer está ciente de que esse mundo ilusório “existe”.

A Course in Miracles é uma produção mediúnica de Helen Schucman e de seu parceiro Bill Thetford que, como Jane Roberts e seu marido Rob, produtores do material Seth, constituem um exemplo do clássico “triângulo” mediúnico: uma médium mulher que canaliza uma entidade masculina com a ajuda de um amanuense masculino — a entidade, nesse caso, sendo o próprio “Cristo”.

Segundo Journey Without Distance, The Story Behind A Course in Miracles, de Robert Skutch (Berkeley, Celestial Arts, 1984), o Dr. William N. Thetford, Professor de Psicologia Médica na Columbia University, conheceu Helen Schucman em meados dos anos 1960, quando ambos trabalhavam no Departamento de Psicologia do Presbyterian Hospital, do qual o Dr. Thetford era diretor. Quando criança e também mais tarde na vida, Helen foi atraída pelo catolicismo, que via como possível fonte de milagres. Quando tais milagres não se concretizavam ou, quando eventos possivelmente miraculosos ocorriam mas podiam ser explicados racionalmente, ela se enfurecia com a Igreja e se tornava uma ateia militante. E Bill Thetford, curiosamente, trabalhou na Universidade de Chicago durante a Segunda Guerra Mundial no Projeto Manhattan, que desenvolveu a primeira bomba atômica. Pouco antes de Helen começar a canalizar o Course, teve uma série de sonhos e visões em que se via como uma poderosa sacerdotisa, às vezes benéfica, às vezes violenta e destrutiva. Pode-se especular que seu ódio pela Igreja e seu desejo reprimido de autoridade espiritual tenham se combinado com a culpa de Bill Thetford por ter ajudado a criar armas nucleares, produzindo uma atmosfera psíquica propícia ao nascimento do Course, repleto de ensinamentos novos e miraculosos capazes de salvar o mundo — embora, segundo esses ensinamentos, o mundo não seja real, crença que certamente absolveria os criadores da Bomba da possível culpa de destruí-lo.

Uma das coisas mais intrigantes sobre Helen Schucman é que A Course in Miracles aparentemente não “funcionou” para ela. “Não tendo crença em Deus”, é citada dizendo,

“Eu ressentia o material que estava anotando e sentia-me fortemente impelida a atacá-lo e prová-lo errado. Por outro lado, passava um tempo considerável não apenas anotando-o, mas também ditando-o a Bill, de modo que era evidente que eu também o levava bastante a sério... Eu estava na posição impossível de não acreditar na obra da minha própria vida.”
JOURNEY WITHOUT DISTANCE, p. 134

Como Willis Harman escreveu no prefácio do mesmo livro:

“Perguntei-lhe certa vez como era possível que esse documento extraordinário pelo qual fora responsável tivesse trazido sabedoria e paz a tantos e, ainda assim, fosse aparentemente ineficaz para ela. Nunca esquecerei sua resposta. ‘Eu sei que o Course é verdadeiro, Bill’, ela disse — e então, após uma pausa: ‘mas eu não acredito nele.’”
JOURNEY WITHOUT DISTANCE, p. iv

É claro que a canalizadora de A Course in Miracles era radicalmente dividida. Isso, porém, não era apenas uma ironia psicológica: a alma da médium do Course necessariamente estava dividida porque a metafísica do próprio Course é radicalmente dualista.

Contudo, é precisamente isso que o Course nega. Enquanto outras espiritualidades, especialmente o cristianismo bíblico, são rotuladas como dualistas (cf. CMCD, p. 23), o Course é considerado puramente unitário. A Course in Miracles ensina que Deus não criou o mundo e nada sabe dele. O mundo, incluindo nossos corpos, foi criado pelo ego como um ataque a Deus; é ilusão, sonho. Esse sonho, porém, tem grande poder: o poder de determinar cada item da nossa experiência, até o momento em que nossa crença nele seja superada. Assim, temos essencialmente dois deuses diferentes: um Deus totalmente transcendente que ignora o cosmos — semelhante ao “Deus Estranho” dos gnósticos sectários — e o Ego que (embora não exista realmente) é o criador de todo o universo, e portanto análogo ao Demiurgo gnóstico iludido, que cria a prisão do cosmos físico e psíquico a partir da falsa crença de ser o verdadeiro Deus. Em termos simples, se a quase totalidade da nossa experiência é diferente de Deus e oposta a Ele, então é, na prática, um segundo Deus. Podemos alegar que tudo é ilusão; não podemos ignorar seus efeitos.

O Princípio Supremo é tanto transcendente quanto imanente. Em certo sentido é totalmente outro em relação ao mundo manifesto; em outro, é a Essência desse mundo. Portanto, segundo a doutrina unânime da metafísica tradicional, o mundo é ao mesmo tempo um véu que oculta Deus e uma projeção simbólica que O manifesta. Se fosse apenas manifestação de Deus, toma-lo-íamos como Deus, como fazem os panteístas, e assim jamais ascenderíamos à visão e à União com o próprio Deus. E, se fosse apenas véu, o conhecimento mesmo da existência de Deus seria impossível para nós, já que até Sua autorrevelação deliberada, incluindo o próprio papel e a tinta de A Course in Miracles, assim que entrasse neste mundo, tornar-se-ia parte do véu, parte do “ataque a Deus”. E, então, nossa relação com esse Course não poderia ser senão (na terminologia do livro) um “relacionamento especial”, uma identificação do ego mascarando-se de amor a Deus e de dedicação à iluminação espiritual. Se o universo não é manifestação de Deus, assim como véu que O esconde, então todas as nossas ideias de Deus, incluindo as apresentadas pelo Course, são ídolos sem sentido. (Segundo o Dr. Wapnick, em CMCD, p. 54, o Course ensina que Deus não é nem transcendente nem imanente, já que não pode estar nem em nem além de algo que não existe. Mas o Course certamente ensina que Ele está além, não dentro, deste “ilusão” tão insistente.) O Dr. Wapnick identifica a doutrina do Course de que o mundo é literalmente ilusão com a doutrina de maya do Vedanta hindu, bem como com “o mais alto ensinamento do budismo”, e relata que alguns envolvidos com o Course o chamaram de “Vedanta cristão” (CMCD, p. 30). Mas nem hindus, nem budistas ensinam que o mundo literalmente não é real. Segundo o Vedanta, maya não significa “ilusão”; significa “aparição”. A maya do Princípio Supremo, ou Brahman, não é uma irrealidade literal, mas uma espécie de imagem mágica do Divino que é real em certo sentido e irreal em outro. O impulso do Vedanta não é ensinar que o mundo é literalmente ilusório, mas superar o literalismo em si. Segundo a doutrina de maya, o mundo não é literalmente uma ilusão, mas, se o tomarmos como objeto literalmente real, coisa-em-si, então estamos iludidos. Não é uma coisa-em-si: é a auto-manifestação mágica de Deus para — e como — suas criaturas.

Inerente a toda aparição, porém, está a tendência de ser tomada como literalmente real; os vedantinos chamam a esse poder de manifestação, na medida em que vela seu Princípio, de avidya-maya. Aqueles sob o poder de avidya-maya precisam da doutrina de uma Realidade Absoluta transcendente — tal como A Course in Miracles ensina — que esteja totalmente além deste mundo manifesto, diferente dele e maior do que ele. Mas assim que esse Absoluto transcendente é realizado, então é conhecido não só como Absoluto, mas também como Infinito. Como pura Transcendência, Ele exclui como irreal tudo o que Lhe é outro; como Absoluto unido à Infinidade (em termos do tantra hindu, Shiva unido à sua Shakti), Ele abraça todas as coisas como Si mesmo, já que, se não o fizesse, seria menos do que Infinito e, portanto, não realmente Absoluto.

O reconhecimento de que as formas visíveis e inteligíveis, que velam Deus se as tomamos literalmente, na verdade O manifestam se deixamos de cometer esse erro e até formam um Caminho de retorno à plena realização d’Ele, os vedantinos chamam de vidya-maya, o poder fascinante e iluminador da Verdade Absoluta. Usando a terminologia do Course, toda vez que largamos um “relacionamento especial” baseado na identificação do ego, o objeto que soltamos imediatamente se torna manifestação da Verdade, com a qual entramos em “relacionamento santo”. E isso não seria possível se o mundo, como o Course afirma, fosse literalmente e absolutamente uma ilusão.

Os budistas concordam com isso. A dialética budista, depois de postular um Nirvana completamente transcendente e indizível, que “não é nem terra, nem ar, nem fogo, nem água, nem o plano do éter infinito, nem o plano do espaço infinito, nem o plano da consciência infinita” etc., etc., chega finalmente (no Lankavatara Sutra) a: “Mas este próprio sangsara, este mundo ilusório criado pelo desejo e pela ânsia, é ele mesmo o Nirvana” — o argumento sendo que, se houvesse literalmente um mundo de ilusão sangsárica fora e oposto ao Nirvana, então o próprio Nirvana seria apenas realidade relativa, não o Absoluto. Os budistas, pelo menos os do Mahayana, concordam com o Course quanto a não haver, em realidade, um “mundo” independente fundado em desejo e ignorância, já que “todos os seres são iluminados desde o princípio”, se apenas soubessem disso. Mas, se não há mundo, são obrigados a perguntar: o que então é este mundo? Respondem dizendo, não que o mundo seja literalmente uma ilusão, mas que é “vazio de natureza própria”; não tem existência literal, não tem ego; por isso aplicam a todos os fenômenos o termo shunyata, “vacuidez”. Mas essa vacuidade, por não ser literal, não pode ser interpretada como negação literal da realidade do mundo; tal negação seria um extremo falso, assim como a crença na realidade literal de um mundo de fenômenos que possuem natureza própria é outro extremo falso. E assim o budismo emparelha shunyata com um princípio complementar, tathata ou “talidade”. Precisamente porque todas as coisas são vazias de natureza própria (shunyata), todas as coisas, exatamente como são (em sua tathata), manifestam o Princípio Supremo; a natureza-Buda; Nirvana; Iluminação.

Certamente o Course inclui ensinamentos que contêm elementos de imanência; se não o fizesse, se Deus fosse absolutamente transcendente em todos os sentidos, não haveria Course e nem alunos para cursá-lo. Ele ensina que, dentro deste mundo onírico falso, pela ação misericordiosa de Cristo e do Espírito Santo, surge um sonho de bondade e perdão. Esse sonho não é real, mas pode conduzir à Realidade se o seguirmos. O que o Course nega é que todo o Universo seja, em certo sentido, esse sonho libertador e salvador. Cada manifestação, se nos relacionamos com ela sem ego, é uma porta para o Absoluto, porque — como o próprio Course ensina, mas não compreende plenamente — em certo sentido jamais deixou o Absoluto; é a doutrina de maya-in-divinis de Frithjof Schuon. (O Course também fala de uma criação perfeita e eterna dentro da Natureza Divina — análoga aos éons do pleroma gnóstico — mas essa criação não contém os arquétipos da manifestação cósmica.) Em termos de cosmogonia, isso significa não só que este universo ilusório, este “ataque a Deus”, pode de algum modo tornar-se hospedeiro dos ensinamentos pelos quais o ataque pode ser desfeito — segundo o Course, ao percebermos que, na Realidade, o ataque jamais ocorreu — mas também que a manifestação inicial de um mundo aparentemente separado de Deus foi não apenas um velamento da Realidade Absoluta que pareceu criar um universo de sofrimento, como também uma manifestação jubilosa e libertadora dessa Realidade. A criação do Universo foi, em si, uma libertação da prisão, uma salvação da ilusão, um ato de Misericórdia Divina. No hadith qudsi de Maomé (sobre ele, paz), Deus diz: “Eu era um Tesouro Escondido e ansiava por ser conhecido, então criei o mundo para que Eu fosse conhecido.” Do mesmo modo, a resposta à segunda pergunta “Por que Deus nos fez?”, no antigo Baltimore Catechism, é: “Deus nos fez para manifestar Sua bondade e para partilhar conosco Sua felicidade eterna no céu.” Compreender que o mundo fenomenal é prisão de sofrimento exige pouca perspicácia; perceber que ele é também, junto com o seu Gêngis Khan, seu Auschwitz e sua bomba de hidrogênio, um ato de Misericórdia Divina, é uma verdade profundamente esotérica — a qual aprendi na escola primária católica.

No Islã há duas Misericórdias divinas, ar-Rahman e ar-Rahim, mencionadas no início da maior parte das suratas do Alcorão. Rahman é a Misericórdia universal de Deus, pela qual Ele diz Sim a todas as coisas, criando assim o Universo; Rahim é Sua Misericórdia particular, dirigida àqueles que se voltam para Ele em busca de salvação, que diz Sim a algumas coisas — as que ajudam a purificar a alma e a recordá-la de Sua Realidade — e Não a outras, as que velam Sua Imagem no coração humano. Rahim é a Misericórdia da redenção; Rahman é a Misericórdia da criação. Antes da criação, nas profundezas da Natureza Divina, é como se todos os seres possíveis, que viriam a formar o universo, clamassem por ser separados de Deus para que pudessem conhecê-Lo de fato — algo que começamos a entender quando lembramos que a proximidade cotidiana de nosso amado humano às vezes o oculta de nós; “a ausência faz o coração ficar mais afetuoso”. E Deus atendeu ao clamor. Ele suspirou um suspiro chamado nafas ar-Rahman, o “sopro do misericordioso”, pelo qual todas as coisas passaram a ser. Quando a Bíblia diz que “os céus narram a glória de Deus”, quando o devoto nativo-americano reconhece o mundo natural, com toda sua violência e derramamento de sangue, como sua catedral, e todas as formas vivas e não vivas à sua volta como sinais espirituais de Wakan Tanka, eles se relacionam com Deus segundo Sua teofania primordial, segundo Rahman. Nas palavras do Gênesis, Deus contemplou o mundo que fizera e chamou-o bom. E, na medida em que O deixamos olhar por nossos olhos esse mundo, nós também podemos chamá-lo assim. Mas a existência de seres sencientes separados que compõem um universo não foi apenas uma manifestação misericordiosa de Deus para seus olhos vivos; foi também necessariamente um velamento da plenitude da Natureza Divina. E, à medida que o ciclo da manifestação avançava, esse velamento tornou-se fonte de sofrimento. Foi então que as miríades de seres sencientes, perdidos na ilusão de separação de Deus, clamaram a Ele por salvação; novamente, Deus atendeu ao clamor. Enviou profetas, salvadores e avatares para nos recordar Sua Realidade e estabelecer Caminhos de retorno à plenitude dessa Realidade. Portanto, tudo o que Deus realmente faz é atender a nossos desejos — aos mais profundos, isto é; aqueles desejos mais rasos que Ele frequentemente não concede, ao menos nas formas limitadas em que os concebemos, são aspectos parciais, ou traduções pobres, de nosso Desejo mais profundo, aquele que Deus deseja para nós na Eternidade: que sejamos exatamente o que somos em nossa verdade mais íntima; que nos relacionemos com Ele exatamente como só nós podemos.

Esta é a fábula da criação de todas as coisas por Allah e do retorno de todas as coisas a Ele. É estritamente análoga ao “expirar e inspirar de Brahman” no hinduísmo, e à Criação, Queda, Redenção e Restauração no cristianismo. E, se compreendermos que isso de fato não se dá no tempo, mas na Eternidade, que esses quatro movimentos são na realidade simultâneos, então deixa de ser fábula; torna-se um certo nível de gnose.

A Course in Miracles fica aquém dessa gnose. E o principal efeito desse déficit, baseado em sua metafísica unilateral, é que a relação entre o relativo e o Absoluto é mal compreendida. A verdade de que o Ser relativo é subconjunto necessário do Ser Absoluto não é apreendida; a Grande Cadeia do Ser que une todas as coisas à sua Fonte transcendente, em virtude da imanência dessa Fonte nelas, fica assim rompida. E os ensinamentos práticos do Course, por mais úteis que possam ser em certo estágio ou para certas pessoas, não bastam para restaurá-la.

Em termos metafísicos, então, o erro de A Course in Miracles é ver o mundo como avidya-maya mas não como vidya-maya, entender Deus como transcendente, mas não imanente, ver os fenômenos em termos de shunyata mas não em termos de tathata. Quais são os efeitos desse erro?

Para começar, o papel do ego é mal compreendido. Concede-se-lhe pleno poder para criar o universo — embora ele e o universo sejam ambos irreais — como se fosse a partir do nada. Mas, na realidade, o ego não cria. Ele nem sequer cria a ilusão. Tudo o que faz é editar. O universo não é uma ilusão criada a partir do nada, e sim uma Realidade vista através de um espelho distorcido. Assim como os sentidos não relatam tudo o que existe, nem mesmo no nível material, mas apenas aquilo para que foram projetados, também o ego escolhe apenas aqueles aspectos de Deus com os quais ele se identifica, e chama a isso de universo. Pode acreditar inconscientemente que criou esse Universo, mas — como o Course ensina — isso não passa de delírio. O que de fato fez — e isso o Course nega — foi perceber Deus segundo suas próprias limitações. O que mais poderia perceber, já que Deus é a única Realidade? Mas se ele fabrica um universo encadeando percepções limitadas e fragmentadas do próprio Deus, então esse universo não pode, literal e exclusivamente, ser um “ataque a Deus”. Do ponto de vista do ego subjetivo, embora não em sua Essência tal como conhecida por Deus, ele precisa ser uma tentativa ambígua tanto de negar Deus quanto de compreendê-Lo. Na medida em que é negação, deve — como o Course ensina — ser negado. Na medida em que é percepção parcial da Realidade Absoluta, deve — como o Course nega — ser afirmado.

O Dr. Wapnick, em CMCD, pp. 61–62, cita a seguinte “afirmação” do Course:

Sou responsável pelo que vejo.
Escolho os sentimentos que experimento, e decido qual meta desejo alcançar.
E tudo o que parece acontecer comigo eu peço, e recebo como pedi.
(TEXT, p. 418)

Tal como está, isso não é verdade. O “eu” que vê isto e não aquilo, que experimenta sentimentos, decide metas e a quem as coisas acontecem, é o ego — e o ego não é onipotente. Ele não é Deus. O ego busca a autonomia e, ao fazê-lo, torna-se escravo de condições que não pode nem escolher nem controlar. Só no sentido irônico é que “conseguiu o que pediu”. Wapnick prossegue dizendo que “essa escolha se simplifica na decisão entre o ego ou o Espírito Santo como nosso guia de comportamento”. Aqui estou inteiramente de acordo: não escolhemos nossas experiências específicas; escolhemos se as vivenciaremos a partir do ponto de vista do ego, de “vítima onipotente”, ou no contexto do Espírito Santo, em que todos os eventos são atos de Misericórdia Divina e manifestações da Verdade Divina. O Course, contudo, nega que Deus envie experiências — meia verdade, pois enquanto Deus em Sua Essência está além de dizer Sim a isto e Não àquilo, em relação a nós, e dependendo do nosso estado, Ele é realmente experimentado como impondo mandamentos e proibições, enviando recompensas e provas. Se o ego pensa que controla sua própria experiência, está profundamente iludido. Se acredita que um Deus externo controla arbitrariamente sua experiência, ainda está parcialmente iludido. Mas se pudermos esquecer o ego na submissão à Vontade de Deus, operando através de eventos aparentemente externos, começaremos a perceber que essa Vontade não é imposta arbitrariamente, mas é inseparável do estado de seu sujeito. Em termos sufis, é assim que o taslīm (submissão) conduz à compreensão de que, nas palavras de Ibn al-‘Arabī, “o determinado (a criatura) determina o Determinador (o Senhor)”.

Em CMCD, p. 63, o Dr. Wapnick diz que “simplesmente mudar ou controlar o próprio comportamento — como é o objetivo de qualquer código de moral — não basta, já que a causa raiz, que é a culpa da mente, ainda estará lá”. Concordo. Mas, na p. 64, ele continua: “As pessoas acreditam equivocadamente que, controlando seu comportamento, podem realmente mudar seus pensamentos. E o que acontece então é que a culpa e o ódio subjacentes, que não mudaram em nada, passam a ser projetados sob a forma de julgamento ou perseguição, enquanto a pessoa permanece totalmente inconsciente da verdadeira natureza de suas ações, porque o pensamento subjacente permaneceu inconsciente.” Concordo que é exatamente isso o que pode acontecer, e com demasiada frequência aconteceu. Ainda assim, na ascese cristã tradicional — como representada pela Filocalia, por exemplo — a mudança de comportamento não é considerada objetivo final, como os Wapnick parecem supor. Entende-se perfeitamente que as paixões que causam o comportamento pecaminoso residem não no corpo, mas na mente; por isso a luta contra elas é às vezes chamada de “guerra invisível”. É verdade que mudar nosso comportamento não pode, em si, mudar nossos pensamentos. O que pode fazer, porém, quando praticado em contexto tradicional em que as leis da askesis são compreendidas, é trazer esses pensamentos à superfície. Pensamentos que se expressam automaticamente em ações jamais podem tornar-se conscientes, mas, quando sua expressão exterior é interrompida, aparecem em sua forma verdadeira — se, isto é, formos ensinados a vigiá-los.

A incapacidade do Course de afirmar a realidade da existência manifesta ao mesmo tempo que a nega gera vários erros óbvios e perigosos. Para começar, do ponto de vista cristão, ele cai em três heresias: gnosticismo, arianismo e docetismo. (A palavra “heresia” sugere à mente moderna nada além de um ato de rebelião contra um dogma arbitrariamente imposto por autoridades religiosas para fins políticos. Mas, na realidade, é um erro, um equívoco metafísico, geralmente baseado num elemento de verdade retirado de seu contexto pleno e suficiente.) A negação gnóstica de que Deus criou o mundo situa necessariamente, mas de modo falso, o ato de criação — que é um conceito inevitável, já que é verdadeiro — dentro da própria Natureza Divina: Jesus é criado, não gerado (arianismo); o Espírito Santo também é criado. O arquétipo da manifestação cósmica de Deus, Deus Filho, já não é considerado divino; por consequência, o cosmos já não é real. (O Course fala do Filho e do Espírito Santo como “criatos” na eternidade, não no tempo, e como permanecendo inseparáveis do Pai, o que sugere, de certo modo, a “geração” do Filho e a “processão” do Espírito na doutrina católica; mas a palavra usada ainda é “criação”.) E quando o Course, em conformidade com sua negação absoluta da realidade do mundo, afirma que Jesus nunca nasceu, nunca morreu e nunca sofreu, trata-se do erro do docetismo.

Se o cosmos é irreal, então quaisquer distinções de nível dentro dele são sem sentido. Nas palavras do Course, “uma hierarquia de ilusões é a primeira lei do caos” (TEXT, p. 455). Em MCQCM, p. 24, os Wapnick desenvolvem essa doutrina do seguinte modo:

“‘A beleza está nos olhos de quem vê’ ... é ... aplicável aqui, já que o que alguém considera belo outro pode achar esteticamente desagradável...
De modo semelhante, o que uma sociedade julga bom, outra pode julgar mau e contrário ao bem comum. Isso pode ser evidenciado por um estudo cuidadoso da história, sociologia e antropologia cultural... nada do que o mundo considera belo é real, e por isso não pode ter sido criado por Deus... tanto a beleza quanto a bondade são conceitos relativos e, portanto, ilusórios...”

Mas será realmente verdade que bondade e moralidade são inteiramente relativas? Ouçamos o que C. S. Lewis tem a dizer em seu ensaio “The Poison of Subjectivism” (Christian Reflections, 1967, pp. 78–79):

“E quanto à objeção moderna — de que os padrões éticos de diferentes culturas divergem tanto que não há tradição comum alguma? A resposta é que isso é uma mentira — uma boa, sólida, retumbante mentira. Se um homem entrar numa biblioteca e passar alguns dias com a Encyclopedia of Religion and Ethics, logo descobrirá a maciça unanimidade da razão prática no homem. Do hino babilônico a Samos, das Leis de Manu, do Livro dos Mortos [egípcio], dos Analectos, dos estóicos, dos platônicos, dos aborígenes australianos e dos peles-vermelhas, ele recolherá as mesmas denunciações triunfantemente monótonas da opressão, do assassinato, da traição e da falsidade, as mesmas injunções de bondade para com os idosos, os jovens e os fracos, de esmola, imparcialidade e honestidade. Há, é claro, diferenças. Há até cegueiras em culturas particulares — assim como há selvagens que não sabem contar até vinte. Mas a pretensão de que somos apresentados a um mero caos — [de que] nenhum contorno de valores universalmente aceitos se insinua — é simplesmente falsa e deveria ser contradita em tempo e fora de tempo sempre que for encontrada. Longe de encontrarmos um caos, encontramos exatamente o que esperaríamos se o bem fosse de fato algo objetivo e a razão o órgão pelo qual é apreendido...
Se admitirmos uma vez que aquilo que Deus entende por ‘bondade’ é simplesmente diferente do que julgamos ser bom, não resta qualquer diferença entre a religião pura e o culto ao demônio.”

Talvez não se possa dizer o mesmo com igual segurança no campo do gosto estético. Ainda assim, em toda cultura humana, flores são consideradas belas; se algum dia você encontrar alguém repelido por elas (alergias à parte), pode estar certo de que essa pessoa está emocionalmente enferma. Pode ser que não haja explicação completa para o gosto, devido ao elemento subjetivo. Porém, um gosto são ainda se baseia em princípios objetivos. O gosto estético é como o paladar para alimentos; pode ser saudável ou doentio. Alguém que considera atraentes alimentos saudáveis tem um sentido de gosto saudável. Mas uma pessoa que gosta de comida lixo ou estragada tem o paladar que chamamos de “viciado”. Tal pessoa pode sentir prazer real em comer alimentos nocivos, mas isso não impedirá que a deixem doente.

A negação da realidade do mundo tende a reforçar o narcisismo. O mundo, incluindo outras pessoas, é irreal segundo o Course — mas, como eu sei disso, eu mesmo devo ser real. O mundo é meu sonho; não pode ser o sonho de Deus, já que Ele nem sequer sabe dele. Essa é uma das contradições ocultas de A Course in Miracles, que mina sua meta declarada de superar a crença do ego de que é autônomo e auto-criado. Nas palavras dos Wapnick:

“Nosso mundo e nossas vidas são nossos sonhos, assim como nossos sonhos de sono — com todas as suas figuras e eventos — estão presentes em nossas mentes adormecidas que, em certo sentido, também não passam de alucinações... já que o conteúdo do sonho do ego é medo, ódio, vitimização e falta de perdão, todas as figuras oníricas terão os temas acima roteirizados ao longo do sonho que chamamos de ‘vida’... não há ninguém a ser perdoado porque, mais uma vez, todas as pessoas em nossas vidas são simplesmente figuras inventadas em nossos sonhos. Quem precisa de perdão somos nós mesmos — por termos sonhado, em primeiro lugar, em vez de nos lembrarmos de nossa identidade como Cristo, desperto em Deus... Nossa função de ‘libertar nossos irmãos’ por meio do perdão refere-se a uma função e processo que, na verdade, ocorrem apenas dentro de nossas mentes...”
(MCQCM, pp. 78–79)

Tomando os Wapnick ao pé da letra, com base apenas nessa passagem, poderíamos concluir que subscrevem à máxima de Jean-Paul Sartre de que “o inferno são os outros”. Claramente não posso perdoar os outros se não acredito que sejam reais, assim como não posso amá-los, respeitá-los ou fazer-lhes justiça. Eles são simplesmente minhas criações ilusórias; mas, ao contrário de Deus no Gênesis, não posso contemplá-los e chamá-los bons. Trata-se de solipsismo mascarado de iluminação; alegar que as outras pessoas não existem é uma forma de homicídio. Na p. 79, os Wapnick dizem que “ao escolher Jesus como nosso mestre em vez do ego... nos tornamos lembretes para nossos irmãos de que eles podem fazer a mesma escolha que nós fizemos...” Mas, infelizmente, “figuras inventadas em nossos sonhos” não têm poder de escolha. Admite-se, nas pp. 78–79, que minha mente onírica também é uma alucinação, mas isso não a impede de ser mais real do que suas próprias criações, já que é capaz de perceber que esses fantasmas são de fato fantasmas. E, se ela mesma é uma alucinação, então quem está alucinando? O Course nega que Deus possa estar sonhando comigo, de modo que a única alternativa é que devo estar sonhando a mim mesmo. Se Deus está inconsciente de mim tal como me experimento neste mundo, se Ele não me criou nesta dimensão, então devo ter me criado. Se sou minha própria alucinação, então o ego é de fato auto-criado, portanto equivalente a Deus. O Course ensina que uma porção do Filho, da criação total e perfeita de Deus na eternidade, distraiu-se por um instante e pareceu cair no sono, permitindo assim que a “pequena ideia louca” de que poderíamos ser separados de Deus projetasse todo o universo ilusório. Mas essa porção adormecida, ou aparentemente adormecida, do Filho é precisamente o ego sutil.

A única saída para a falsa crença do ego de que é auto-criado é que o centro de minha consciência se desloque do ego para o ātman, a Testemunha divina — uma metanoia expressa por São Paulo quando disse: “já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim”. Se nos conhecemos como conhecidos por Deus, então o ego se dissolve. Mas se Deus jamais pode testemunhar esse ego — como ilusão — ele jamais pode ser dissolvido. Permanece preso no sonho ilusório de sua própria auto-criação. Jesus, segundo o Course, compreende a ilusão na qual caímos; Deus, identificado estritamente com o Pai, não; o Espírito Santo é nossa “mente correta”, o pensamento de Deus que corrige as falsas crenças do ego. Mas, a menos que nos conheçamos como vistos e compreendidos pelo próprio Absoluto, jamais poderemos realizar esse Absoluto como o verdadeiro Eu, o verdadeiro Vidente em nós. Nos termos do Course, continuamos presos à ilusão de que é simplesmente nossa própria compreensão da Verdade que torna essa Verdade aquilo que é (cf. TEXT, p. 356). Nas palavras do Dr. Wapnick (MCQCM, p. 32):

“Se os estudantes, com o amor de Jesus a seu lado, podem olhar sem julgamento e sem culpa para seus egos em ação, então, quem está olhando? Não pode ser o próprio ego, mas a mente...”

Isso é exato, até certo ponto. Mas essa Testemunha interior, que Wapnick chama de “a mente”, precisa ser, em última instância, o próprio Absoluto, já que, se for algo menos, o “sonho de separação” não é transcendido; um modo sutil de percepção sujeito/objeto não foi superado; a semente do ego permanece. A negação de que a mente, em seu nível mais profundo, seja o próprio Absoluto, a Testemunha divina, é ela mesma uma ilusão do ego.

Além disso, negar que o universo tenha ao menos uma realidade relativa é colocar um abismo intransponível entre Deus e nossa experiência, abismo que o Course então tenta transpor. Mas, se não há relação intrínseca entre Deus e o universo, a Hierarquia do Ser — a única ponte concebível entre eles — é inválida. Assim como a negação da transcendência faz essa Hierarquia desabar, porque coloca tudo no mesmo nível ontológico (em última instância, material), também a negação da imanência faz o mesmo, já que não há nada, nem mesmo relativamente real, fora de Deus, com o que Ele pudesse ter uma relação hierárquica. Nas palavras dos Wapnick:

“Os chamados reinos animal, vegetal e mineral são todos tanto quanto parte da Filiação [a criação eterna de Deus] quanto o é o homo sapiens. Distinções entre o que é animado e o que é inanimado foram introduzidas arbitrariamente pelo homo sapiens, seguindo os ensinamentos do ego, a fim de poder categorizar e controlar um mundo ilusório e ter ‘domínio sobre todo ser vivente’ (Gn 1:26,28). Crença desse tipo é o que A Course in Miracles chama de primeira lei do caos, que existe uma ‘hierarquia de ilusões’ (TEXT, p. 455), em que alguns aspectos da ilusão são considerados mais altos, mais evoluídos ou mais inclinados espiritualmente do que outros, como quando os cientistas falam de uma ‘cadeia de seres’, por exemplo, em que, por implicação, há uma escala de vida e de não-vida. Na realidade, porém, todas as formas de ‘vida’ são as mesmas, porque são todas iguais em ser projeções do pensamento do ego de vida-separada-de-Deus.”
(MCQCM, p. 34)

Esta é uma meia-verdade poderosamente destrutiva, que não pode ser levada a sério sem certa dose de autoengano, como se vê pelo fato de que o Course ele mesmo postula uma hierarquia espiritual quando fala de “professores de Deus” (teachers of God) e dos “professores de professores”, que são mais espiritualmente esclarecidos do que eles; e sua regra de achatamento da hierarquia — “não há ordem de dificuldade em milagres” — isto é, nas ações do Espírito Santo para corrigir as falsas ideias do ego, é desmentida por afirmações como: “a última coisa que pode ajudar os que não estão em sua mente correta, ou os doentes, é um aumento de medo (...). Se forem expostos prematuramente a um milagre, podem ser precipitados em pânico” (TEXT, p. 20).

A hierarquia é uma realidade. Se essa, ou qualquer realidade, não for aceita, ela voltará pela porta dos fundos, aparecendo como contradição enganosa em vez de verdade conscientemente admitida. Isso não quer dizer que a hierarquia deva ser absolutizada; ela continua sendo uma verdade relativa, de certo modo, já que diz respeito à relação entre o ser relativo e o Ser Absoluto. Mas, em virtude de sua relação com o Absoluto, ela participa dessa Absolutidade; numa expressão usada por Frithjof Schuon em outros contextos, ela é “relativamente absoluta”. Segundo a metafísica tradicional, o Absoluto não apenas nega a relatividade, mas também a abrange. Nos termos de Ibn al-ʿArabī, o Absoluto é absolutamente não-delimitado, já que não é delimitado pela sua própria não-delimitação. Os limites, possuindo sua própria realidade relativa, podem aparecer dentro da Realidade sem que essa Realidade seja limitada por eles; Deus não precisa refugiar-se na Sua própria Ilimitação para evitar cair sob a limitação. Ele pode derramar-Se imprudentemente na existência relativa sem, de forma alguma, perder Sua Absolutidade — razão pela qual a existência relativa pode “retornar” ao Absoluto, mediante a compreensão de que suas próprias limitações experimentadas de modo algum limitam Deus, mas sim O exprimem.

A hierarquia, então, embora relativa, é também necessária. A Realidade, não sendo exclusivamente transcendente, manifesta-se necessariamente em, e como, ser relativo — simplesmente porque, sendo Infinita, nada a impede de fazê-lo. Se a hierarquia fosse estritamente absoluta, a imanência seria negada. Seria impossível conhecer a Essência divina como essência de todas as coisas. Deus ficaria fixo a uma distância infinita de Suas criaturas, que seriam obrigadas ou a desesperar de jamais realizá-Lo, ou a tentar “tomar o céu de assalto”, subindo os degraus fixos dessa hierarquia absoluta, em direção àquele Deus distante, pela pura auto-vontade prometeica. Inversamente, se não houvesse hierarquia, não poderia haver Caminho espiritual, nenhum modo de crescer em amor e conhecimento. Toda experiência seria definida literalmente ou como ilusão total, ou como a própria Essência divina. Enquanto ilusão, estaria sem qualquer esperança de atingir o Ser; enquanto Essência divina em sentido literal, estaria sem esperança de outro modo, por não ter possibilidade de confrontar as próprias ilusões e sofrimentos limitantes. Se somos todos literalmente Deus e ainda assim algo está radicalmente errado, então a que Deus podemos recorrer em busca de auxílio?

A hierarquia, corretamente compreendida, não é opressão; é misericórdia, cujo servo é a justiça. Sendo verdadeira, é tratada de um modo ou de outro em qualquer doutrina metafísica autêntica. Sempre que é excluída, aparece em formas ilusórias. E o mesmo vale para a imanência. A Course in Miracles, como era de se esperar, também tem uma doutrina de imanência espalhada em seu interior, mas essa doutrina não é colocada na relação correta com o transcendentalismo dominante do Course. Ela salta aos olhos como contradição desconcertante, sendo uma introdução sentimental e ilógica do amor pelas criaturas, para compensar a definição do universo, pelo Course, como um ataque a Deus:

“Quão santo é o menor grão de areia, quando se percebe que ele é parte do quadro completo do Filho de Deus! As formas que os pedaços quebrados parecem assumir nada significam. Pois o todo está em cada um. E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que qualquer outra parte.”
(TEXT, p. 557)

Aqui, portanto, em contradição com a definição de “ataque a Deus”, o universo criado parece ser definido como bom, santo, e como parte ao menos do “quadro” do Filho de Deus, que é a criação perfeita e eterna de Deus. Mas, como essa doutrina de imanência não é emparelhada com o transcendentalismo do Course desde o início, ela é sutilmente distorcida. Em linha com a negação da hierarquia, o Course afirma, com razão, que “o todo [do Filho de Deus] está em cada um”, em cada “pedaço quebrado” dele. Esta é a perspectiva da imanência. Mas dizer que, porque o todo está em cada forma, então todas as formas são iguais, é um erro. Deus não é apenas o Universal; Ele é também o Único. Em termos de maya-in-divinis, cuja expressão exterior é a manifestação cósmica, essa Unicidade aparece em cada forma pela qual Deus se manifesta. Porque Deus é Universal, o todo d’Ele aparece em cada parte de Sua manifestação, embora somente em Essência, não em forma. Porque Deus é Único, essa Unicidade também aparece em cada parte; não há duas formas, dois grãos de areia ou dois indivíduos humanos idênticos. Se isso não fosse verdade, o amor não seria possível, já que, se o todo está presente em mim do mesmo modo que está nos outros, em vez de estar em mim de maneira única, tal como sua manifestação nos outros é única, então para que eu precisaria dos outros? Se “as formas que os pedaços quebrados parecem assumir nada significam”, então as pessoas, em sua alteridade em relação a mim, são formas vazias, destituídas de sentido. De que me servem? Se somos apenas únicos, somos mutuamente exclusivos, e o amor é negado; se a unicidade é suprimida em nome da doutrina de que o todo está em cada um, o amor é novamente negado. Uma mulher é praticamente igual a qualquer outra; se você viu uma sequoia, viu todas. Mas a verdade é que estamos relacionados uns aos outros justamente por nossa alteridade; somos aparentados por nossa unicidade comum, que é expressão da Unicidade Absoluta de Deus. Para que o amor exista, a verdadeira relação entre Deus e o cosmos precisa ser conhecida. Para conhecê-la, precisamos aceitar e compreender a Grande Cadeia do Ser, na qual o fato de que Deus é a Essência tanto de mim quanto de uma pedra não suprime de modo absurdo a verdade de que sou superior a uma pedra, já que posso saber disso.

Quando o Gênesis fala de Deus dando à humanidade “domínio sobre todos os seres vivos”, trata-se de um domínio do Intelecto, e só secundariamente de um domínio da vontade. A ideia de que isso nos dá carta branca para usar, alterar, distorcer e destruir tudo o que vemos não passa de interpretação errônea, pelo ego, da missão que Deus nos confiou. Em termos islâmicos, o homem é o khalīfa de Deus, ou vice-gerente, na criação material, porque só nós podemos contemplar conscientemente essa criação como composta de sinais de Deus (āyāt), e assim agir como o conduto entre ela e o Espírito que lhe dá vida. Este é o significado da lenda, tanto bíblica quanto corânica, de que Adão nomeou os animais: ele, como só ele podia, reconheceu-os como nomes ou sinais de Deus.

Em CMCD, p. 29, o Dr. Wapnick fala da natureza e da unicidade de Deus:

“Deus não é um indivíduo, com identidade ou eu pessoal; isto é, Ele não tem forma que O distinga de Sua criação. Ele é totalmente impessoal, como o Um de Plotino. Assim, Sua unicidade não é definida comparando-O com outro, mas Deus é único porque não há outro.”

Isso está menos de um milímetro fora do centro — mas um erro pequeno vale tanto quanto um enorme. De fato, Deus é único; e, com efeito, em essência não há outra Realidade. Mas nenhuma unicidade, incluindo a unicidade da pessoa humana, é definida pela comparação com outra coisa; tudo aquilo que é único é, por definição, incomparável. A unicidade de Deus, portanto, não pode ser usada como argumento em favor de Sua estrita impessoalidade. Segundo a metafísica tradicional, Deus é ao mesmo tempo pessoal e impessoal — em termos hindus, tanto Saguna Brahman quanto Nirguna Brahman.

Deus é impessoal no sentido de que não é limitado por forma. É pessoal no sentido de que essa ausência de limite necessariamente nos aparece, na medida em que somos pessoas, como a própria Personalidade. De um lado, Ele transcende todos os atributos da personalidade; se não o fizesse, poderíamos abarcá-Lo; Ele estaria encerrado dentro dos limites de nossas mentes finitas. Mas, de outro lado, Ele é a única Pessoa da qual se pode predicar a Realidade em sentido pleno — a única Realidade concreta e singular de que todas as demais formas e seres são “versões” relativamente abstratas. De um ponto de vista, podemos dizer que o Deus impessoal, a “Divindade” (Godhead) de Mestre Eckhart, é hierarquicamente superior ao Deus pessoal, que age e é apenas em relação à Sua manifestação divina e cósmica. Ainda assim, se a Divindade fosse estritamente impessoal no sentido de carecer da personalidade, o Deus pessoal não poderia ser Sua primeira hipóstase inteligível. Talvez seja melhor, então, chamar Deus, em Sua Essência divina, não de impessoal, mas de transpessoal. Afinal, o que é uma pessoa? Está ela limitada ao que sei dela, à minha imagem de sua personalidade? Não é ela tão misteriosa, em suas profundezas últimas, quanto o próprio Deus, já que essas profundezas, na verdade, se abrem para o próprio Deus? Uma pessoa não é abstração impessoal pelo simples fato de haver nela mais do que eu jamais possa conhecer. As profundezas da Personalidade nos levam muito além de tudo quanto podemos saber das pessoas; e, no entanto, o pronome pelo qual nos referimos a esse mistério ainda não é “o quê”, mas “Quem”. E esse Quem, embora não limitado por forma, não é, por isso, estritamente informe, já que “Ele não é delimitado pela Sua própria não-delimitação”. As palavras do Tao Te Ching são pertinentes aqui, ainda que se aproximem do Absoluto por meio da metáfora da natureza, e não do homem:

“O Tao é esquivo e intangível.
Oh, é intangível e esquivo, e no entanto nele há imagem.
Oh, é intangível e esquivo, e no entanto nele há forma.
Oh, é obscuro e escuro, e no entanto nele há essência.
Essa essência é muito real, e nisto reside a fé.”

O Ser está disposto em graus ontológicos; se não estivesse, eu não poderia olhar para cima, em direção à Verdade, e pedir que ela me ilumine, nem poderia ser generoso e protetor com os seres vivos abaixo de mim na hierarquia. Eu não poderia aceitar meu próprio estatuto ontológico de criatura como necessariamente exaltado em certos aspectos e limitado em outros — recusando isso, eu me sujeitaria à arrogância e ao desespero luciferinos — nem poderia aspirar a atingir conscientemente esse estatuto, se por egotismo eu tivesse caído abaixo dele, como todos nós caímos, de uma forma ou de outra. E, se a hierarquia é achatada, então a igualdade também sofre. A perspectiva que me permite ver como sou ontologicamente inferior a algumas coisas e superior a outras, embora compartilhe com elas a mesma Essência divina, também me permite ver como sou diferente e ao mesmo tempo relacionado a indivíduos no mesmo plano de ser que eu. Onde a hierarquia é esmagada, a unidade só pode aparecer como uniformidade abstrata, e a uniformidade destrói tanto a piedade, que reconhece o mais alto e o mais baixo, quanto o afeto que existe entre iguais singularmente diferentes e, por isso mesmo, singularmente relacionados. O universo de nossa experiência torna-se planície árida e ilusória do ego narcísico: um ataque contra Deus.

Nem A Course in Miracles consegue dispensar a hierarquia que “oficialmente” nega. Em MCQCM, p. 90, o Dr. Wapnick diz:

“O estudante não é convidado a passar diretamente dos pesadelos ilusórios dos relacionamentos especiais para a realidade do único relacionamento com Deus, mas, com Jesus como guia, eles passam primeiro pelos sonhos ilusórios do perdão (...); primeiro aprendem que Deus é um Pai amoroso, e não odioso, e que o Espírito Santo é um companheiro consolador no mundo, e não seu inimigo. Só então podem aprender que, na verdade, não há mundo algum em que eles possam nos consolar. A metáfora cumpriu o seu papel.”

Trata-se, precisamente, de uma “hierarquia de ilusões”. O que se nega, ao que parece, é que essa hierarquia seja ontológica. É uma hierarquia de experiências, não de realidades. Mas, segundo a metafísica tradicional, a epistemologia e a ontologia — conhecer e ser — formam um todo indivisível: experiências mais elevadas são experiências reais de mundos mais elevados. Se não fosse assim, todo nosso “conhecimento” seria ilusório, trancado no círculo do ego narcísico. Os sufis também falam da existência manifesta como metáfora, mas não lhe negam toda realidade; apenas atribuem sua realidade unicamente a Deus, a quem a existência metafórica simultaneamente manifesta e vela. Qualquer experiência, portanto, é em certa medida uma experiência da Realidade; se fosse possível a uma experiência carecer de toda realidade, não poderíamos experimentá-la. Certamente podemos interpretar erroneamente o que vemos, como quando os hindus comparam maya a “confundir uma corda com uma cobra”. Mas é impossível ver algo que não está lá, ao menos em algum nível. O Dr. Wapnick fala de despertar da crença na realidade do mundo como acordar de um sonho (CMCD, p. 19). Mas quem disse que sonhos não são reais? Eles podem nos dar intuições válidas, afetar nossa saúde, até predizer o futuro. São um nível de realidade; a vida desperta é outro. E Deus é a própria Realidade, além de dormindo e acordado, além de níveis; todo dormir e acordar, todos os níveis ontológicos são aspectos d’Ele.

A transcendência exclusiva de A Course in Miracles tem ainda uma consequência adicional e arrepiante: Deus não ouve nossas orações. Como poderia, se está totalmente inconsciente deste universo ilusório de que fazemos parte? Nas palavras do workbook, p. 335: “Não penses que Ele ouve as pequenas preces dos que O invocam com nomes de ídolos caros ao mundo. Eles não podem alcançá-Lo assim.” E, nas pp. 69–70, o TEXT diz:

“Deus não guia, porque só pode compartilhar conhecimento perfeito.
A orientação é avaliativa, porque implica que há um caminho certo e um caminho errado (...). O Espírito Santo, por sua vez, guia e oferece escolha...”

É como dizer: “A Estrela Polar não pode guiar marinheiros porque não se move; somente o astrolábio pode guiar.” Mas a imobilidade da Estrela, assim como a perfeição do Divino, é orientação. Se a “perfeição” não pode guiar, então está longe de ser perfeita.

A doutrina de que Deus não ouve nem responde às orações é um erro. Segundo Ibn al-ʿArabī, nossa imagem de Deus, o Deus criado na crença, é auto-criada e, portanto, menos do que Deus. Ainda assim, Deus, em Sua Misericórdia intrínseca, aceita as preces que Lhe dirigimos, já que, mesmo que a forma não seja Ele, Ele permanece a Essência dela. Nossa capacidade de compreender Sua resposta pode ser limitada pela forma sob a qual O concebemos, mas nenhuma forma adorada como Deus está totalmente separada d’Ele. Os Wapnick, em MCQCM, p. 120, mencionam vários trechos do Course em que somos orientados a rezar a Deus como se Ele nos ouvisse, sobretudo pedindo perdão, mas isso é explicado como espécie de reeducação de si mesmo, dentro do contexto do sonho ilusório do ego, sob a tutela de um Espírito Santo — criado, não divino — que é como a memória, pelo ego, da Realidade de Deus.

A razão pela qual o Course nega que Deus possa ouvir e responder às nossas orações é, ao que parece, enfatizar que a Expiação (Atonement) já está completa na Eternidade. Mas, como o aspecto de nós que ora a Deus na esperança de Sua resposta existe no tempo, nós necessariamente, e legitimamente, experienciamos a Expiação como processo — embora, se não intuímos também a realidade eterna da Expiação como subjacente a esse processo, o processo jamais termine. Mas A Course in Miracles, como o ego humano, parece incapaz de imaginar que “o tempo é a imagem móvel da Eternidade”, que aquilo que é eterno e infinito para Deus é vivido pela mente egoica como temporal e limitado, sem que exista entre ambos qualquer barreira real fora da má percepção do ego. Quando o Course diz que Deus não ouve nossas orações, ou que ignora o universo, essa é sua maneira de tentar salvaguardar a Absolutidade e a Perfeição divinas. No entanto, ao seguir tal via, vê-se forçado a negar Sua Infinitude. Falha em compreender que Deus, ao contrário de nós, pode olhar para Esta é uma meia-verdade poderosamente destrutiva, que não pode ser levada a sério sem certo grau de autoengano, como fica ilustrado pelo fato de que o próprio Course postula uma hierarquia espiritual quando fala de “mestres de Deus” (teachers of God) e dos “mestres de mestres” (teachers of teachers), que são mais espiritualmente iluminados do que eles; e sua regra de achatamento da hierarquia, segundo a qual “não há grau de dificuldade em milagres” — nas ações do Espírito Santo para corrigir as falsas ideias do ego — é desmentida por afirmações como: “a última coisa que pode ajudar os não-retos de mente, ou os doentes, é um aumento de medo. (…) Se forem expostos prematuramente a um milagre, podem ser precipitados em pânico” (TEXT, p.20).

A hierarquia é uma realidade. Se essa, ou qualquer realidade, não for aceita, ela entrará pela porta dos fundos, aparecendo como uma contradição enganosa em vez de uma verdade conscientemente aceita. Isso não quer dizer que a hierarquia deva ser absolutizada; ela permanece uma verdade relativa, de certo modo, já que diz respeito à relação entre o ser relativo e o Ser Absoluto. Mas, em virtude de sua relação com o Absoluto, ela participa dessa Absolutidade; numa frase usada por Frithjof Schuon em outros contextos, ela é “relativamente absoluta”. Segundo a metafísica tradicional, o Absoluto não apenas nega a relatividade, mas também a abrange. Em termos de Ibn al-‘Arabi, o Absoluto é absolutamente não-delimitado, já que não é delimitado pela própria não-delimitação. Limites, possuindo sua própria realidade relativa, podem aparecer dentro da Realidade sem que essa Realidade seja limitada por eles; Deus não precisa refugiar-se em sua própria Ilimitação para evitar cair sob limitação. Ele pode derramar-Se temerariamente na existência relativa sem, de modo algum, perder Sua Absolutidade — razão pela qual a existência relativa pode “retornar” ao Absoluto através da compreensão de que suas próprias limitações experimentadas de forma alguma limitam Deus, mas antes O expressam.

A hierarquia, então, embora seja relativa, também é necessária. A Realidade, por não ser exclusivamente transcendente, necessariamente Se manifesta na, e como, existência relativa — simplesmente porque, sendo Infinita, nada a impede de fazê-lo. Se a hierarquia fosse estritamente absoluta, a imanência seria negada. Seria impossível conhecer a Essência Divina como essência de todas as coisas. Deus ficaria fixado a uma distância infinita de suas criaturas, que seriam forçadas ou a desesperar de jamais realizá-Lo, ou a tentar “tomar o céu de assalto” escalando, apenas pela vontade prometeica, os degraus fixos dessa hierarquia absoluta, rumo a esse Deus distante. Inversamente, se não houvesse hierarquia, não poderia haver Caminho espiritual, nenhum modo de crescer em amor e conhecimento. Toda experiência seria definida, literalmente, ou como ilusão total, ou como Essência Divina. Como ilusão, estaria sem qualquer esperança de alcançar o Ser; como Essência Divina em sentido literal, estaria sem esperança de outro modo, não tendo qualquer possibilidade de confrontar suas próprias ilusões e sofrimentos limitantes. Se somos todos literalmente Deus, e ainda assim algo está radicalmente errado, então a que Deus podemos recorrer em busca de ajuda?

A hierarquia, corretamente entendida, não é opressão; é misericórdia, cujo servo é a justiça. Sendo verdadeira, é tratada de uma forma ou de outra por qualquer doutrina metafísica autêntica. Sempre que é excluída, aparece em formas ilusórias. O mesmo vale para a imanência. A Course in Miracles, sem surpresa, também tem uma doutrina de imanência pairando dentro dele, mas essa doutrina não é colocada na relação correta com o transcendentalismo dominante do Course. Ela sobressai como uma contradição intrigante, sendo uma introdução sentimental e ilógica do amor pelas criaturas, para compensar a definição do universo, dada pelo Course, como um ataque a Deus:

Quão santo é o menor grão de areia, quando se percebe que ele é parte do quadro completo do Filho de Deus! As formas que os fragmentos partidos parecem tomar nada significam. Pois o todo está em cada um. E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que cada outra parte.
TEXT, p.557

Assim, aqui, em contradição com a definição de “ataque a Deus”, o universo criado parece ser definido como bom, santo, e parte ao menos do “quadro” do Filho de Deus, que é a criação perfeita e eterna de Deus. Mas como essa doutrina de imanência não é desde o início emparelhada com o transcendentalismo do Course, ela é sutilmente distorcida. Em linha com a negação da hierarquia, o Course afirma, corretamente, que “o todo (do Filho de Deus) está em cada um”, cada “fragmento partido” dele. Esta é a perspectiva da imanência. Mas dizer que, porque o todo está em cada forma, então todas as formas são iguais, é um erro. Deus não é só o Universal; Ele é também o Único. Em termos de maya-in-divinis, cuja expressão exterior é a manifestação cósmica, essa Unicidade aparece em cada forma através da qual Deus se manifesta. Porque Deus é Universal, o todo d’Ele aparece em cada parte de Sua manifestação, embora apenas em Essência, não na forma. Porque Deus é Único, essa Unicidade também aparece em cada parte; nenhuma forma, nenhum grão de areia ou indivíduo humano é idêntico a outro. Se isso não fosse verdade, o amor não seria possível, já que, se o todo está presente em mim da mesma maneira que está nos outros — em vez de estar em mim de modo único, assim como sua manifestação nos outros é única — então para que eu precisaria dos outros? Se “as formas que os fragmentos partidos parecem tomar nada significam”, então as pessoas em sua alteridade em relação a mim são formas vazias, destituídas de significado. De quem eu preciso? Se somos apenas únicos, somos mutuamente exclusivos, e o amor é negado; se a unicidade é suprimida em nome da doutrina de que o todo está em cada um, o amor é negado de novo. Uma mulher é muito parecida com qualquer outra; se você viu uma sequoia, viu todas. Mas a verdade é que nos relacionamos uns aos outros por nossa própria alteridade, somos aparentados por nossa unicidade comum, que é expressão da Unicidade Absoluta de Deus. Para que o amor exista, a verdadeira relação entre Deus e o cosmos precisa ser conhecida. E, para que isso seja conhecido, devemos aceitar e compreender a Grande Cadeia do Ser, onde o fato de que Deus é a Essência tanto de mim quanto de uma rocha de modo algum suprime a verdade de que eu sou superior a uma rocha, já que posso saber disso.

Quando o Gênesis fala de Deus dando à humanidade “domínio sobre todos os seres vivos”, este é um domínio do Intelecto, e só secundariamente um domínio da vontade. A ideia de que isso nos dá carta branca para usar, alterar, distorcer e destruir tudo o que vemos não passa de uma má interpretação egóica da missão que Deus nos confiou. Em termos islâmicos, o homem é o khalifa de Deus, ou vice-gerente, na criação material, porque só nós podemos contemplar conscientemente essa criação como composta pelos sinais de Deus (ayat), e assim agir como conduto entre ela e o Espírito que lhe dá vida. Esse é o sentido da lenda, tanto bíblica quanto corânica, segundo a qual Adão nomeou os animais: ele, como só ele podia, reconheceu-os como nomes ou sinais de Deus.

Em CMCD, p.29, o Dr. Wapnick fala da natureza e da unicidade de Deus:

Deus não é um indivíduo, com identidade ou eu pessoal; isto é, Ele não tem forma que o distinga de sua criação. Ele é totalmente impessoal, como o Um de Plotino. Assim, Sua unicidade não é definida comparando-O com outro, mas antes Deus é único porque não há outro.

Isto está menos de um milímetro fora do centro — mas um erro é tão bom quanto um quilômetro. De fato Deus é único; e de fato, em essência, não há outra Realidade. Mas nenhuma unicidade, incluindo a unicidade da pessoa humana, é definida comparando-a com outra coisa; aquilo que é único, por definição, é incomparável. A unicidade de Deus, então, não pode ser usada como argumento em favor de Sua estrita impessoalidade. Segundo a metafísica tradicional, Deus é ao mesmo tempo pessoal e impessoal — em terminologia hindu, tanto Saguna Brahman quanto Nirguna Brahman.

Deus é impessoal no sentido de que não é limitado por forma. Ele é pessoal no sentido de que essa ausência de limite necessariamente nos aparece, enquanto somos pessoas, como a própria Personalidade. De um modo, Ele transcende todos os atributos de personalidade; se não o fizesse, poderíamos circunscrevê-Lo; Ele estaria selado, afastado do Infinito, dentro dos limites de nossas mentes limitadas. Mas de outro modo, Ele é a única Pessoa da qual a Realidade pode ser predicada — a única Realidade concreta e singular de que todas as outras formas e seres são “versões” relativamente abstratas. Sob um certo ponto de vista, podemos dizer que o Deus impessoal, a “Divindade” de Meister Eckhart, é hierarquicamente superior ao Deus pessoal, que age e é apenas em relação à Sua manifestação divina e cósmica. Contudo, se a Divindade fosse estritamente impessoal, no sentido de carecer ou faltar-lhe a pessoalidade, o Deus pessoal não poderia ser sua primeira hipóstase inteligível. Portanto, é provavelmente melhor chamar Deus, em Sua Essência divina, não de impessoal, mas de transpessoal. Afinal, o que é uma pessoa? Está ela limitada ao que eu sei dela, à minha imagem de sua personalidade? Não é ela tão misteriosa em suas profundezas últimas quanto o próprio Deus, já que tais profundezas, de fato, se abrem em Deus? Uma pessoa não é uma abstração impessoal simplesmente porque há nela mais do que eu jamais posso conhecer. As profundezas da Personalidade nos levam muito além de tudo o que podemos saber das pessoas, mas o pronome pelo qual nos referimos a esse mistério ainda não é “o que”, mas “Quem”. E esse Quem, embora não seja limitado por forma, tampouco é, por isso, estritamente sem forma, já que “Ele não é delimitado pela Sua própria não-delimitação”. As palavras do Tao Te Ching são relevantes aqui, embora ele tenda a abordar o Absoluto pela metáfora da natureza, mais do que pela do homem:

O Tao é evasivo e intangível.
Oh, ele é intangível e evasivo, ainda assim dentro dele há imagem.
Oh, ele é intangível e evasivo, ainda assim dentro dele há forma.
Oh, ele é obscuro e escuro, ainda assim dentro dele há essência.
Essa essência é muito real, e aí reside a fé.

O ser é disposto em graus ontológicos; se assim não fosse, eu não poderia erguer os olhos para a Verdade e pedir que ela me iluminasse, nem poderia eu ser generoso e protetor com seres vivos colocados abaixo de mim na hierarquia. Eu não poderia aceitar meu próprio estatuto ontológico de criatura como sendo necessariamente exaltado em alguns aspectos e limitado em outros — sujeitando-me, por essa recusa, à arrogância luciferina e ao desespero — nem poderia aspirar a realizar conscientemente esse estatuto, se por egoísmo eu tivesse caído abaixo dele, como todos nós o fizemos de um jeito ou de outro. E, se a hierarquia é esmagada, então a própria igualdade sofre. A perspectiva que me permite ver como sou ontologicamente inferior a algumas coisas e superior a outras, embora compartilhe com elas a mesma Essência Divina, também me deixa ver como sou diferente mas relacionado a indivíduos no mesmo plano de ser que eu. Onde a hierarquia é achatada, a unidade só pode aparecer como uniformidade abstrata, e a uniformidade destrói tanto a piedade — que reconhece superior e inferior — quanto o afeto, que existe entre iguais diferentemente únicos e, portanto, singularmente relacionados. O universo da nossa experiência torna-se uma ilusão plana e estéril do ego narcísico: um ataque a Deus.

Nem A Course in Miracles consegue dispensar-se de postular a hierarquia que, “oficialmente”, nega. Em MCQCM, p.90, o Dr. Wapnick diz:

O estudante não é convidado a passar diretamente dos pesadelos ilusórios dos relacionamentos especiais para a realidade da única relação com Deus, mas, com Jesus como seu guia, primeiro passa pelos sonhos ilusórios do perdão (…) primeiro aprendem que Deus é um Pai amoroso, e não odioso, e que o Espírito Santo é um companheiro consolador no mundo, e não seu inimigo. Só então podem aprender que, de fato, não há mundo no qual eles possam consolar-nos. A metáfora cumpriu seu propósito.

Isto é, precisamente, uma “hierarquia de ilusões”. O que se nega, aparentemente, é que esta hierarquia seja ontológica. É uma hierarquia de experiências, não de realidades. Mas, segundo a metafísica tradicional, epistemologia e ontologia, conhecimento e ser, formam um todo indivisível: experiências superiores são experiências reais de mundos superiores. Se não fosse assim, todo o nosso “saber” seria ilusório, trancado no círculo do ego narcísico. Sufis também falam da existência manifesta como metáfora, mas não lhe negam toda realidade; simplesmente atribuem sua realidade apenas a Deus, a Quem a existência metafórica tanto manifesta quanto vela. Qualquer experiência, portanto, é, em certo grau, uma experiência da Realidade; se fosse possível que uma experiência carecesse de toda realidade, não poderíamos experimentá-la. Certamente podemos interpretar mal aquilo que vemos, como quando os hindus comparam maya com “tomar uma corda por uma cobra”. Mas é impossível ver algo que não esteja lá — ao menos em algum nível.

O Dr. Wapnick fala do despertar da crença na realidade do mundo como semelhante a acordar de um sonho (CMCD, p.19). Mas quem disse que os sonhos não são reais? Eles podem nos dar intuições válidas, afetar nossa saúde, até prever o futuro. São um nível de realidade; a vida de vigília é outro. E Deus é a própria Realidade, além de dormir e vigiar, além de níveis; todos os dormir e vigiar, todos os níveis ontológicos, são aspectos d’Ele.

O transcendentalismo exclusivo de A Course in Miracles tem ainda uma consequência final, arrepiante: Deus não escuta nossas orações. Como poderia, se Ele está totalmente inconsciente deste universo ilusório do qual fazemos parte? Nas palavras do workbook, p.335: “Não penses que Ele ouve as pequenas orações daqueles que O invocam com nomes de ídolos acarinhados pelo mundo. Elas não podem alcançá-Lo assim.” E nas pp. 69–70, o TEXT diz:

Deus não guia, porque Ele só pode compartilhar o conhecimento perfeito. A orientação é avaliativa, porque implica que há um caminho certo e um caminho errado (…) o Espírito Santo, porém, guia, e oferece escolha. (…)

Isto é como dizer: “a Estrela Polar não pode guiar marinheiros porque não se move; só o astrolábio pode guiar”. Mas a imobilidade da Estrela, como a perfeição do Divino, é orientação. Se a “perfeição” não pode guiar, então ela está muito longe de ser perfeita.

A doutrina de que Deus não ouve e não responde às orações é um erro. Segundo Ibn al-‘Arabi, nossa imagem de Deus, o “Deus criado na crença”, é auto-criada e, portanto, menos do que Deus. Ainda assim, Deus, em Sua Misericórdia intrínseca, aceita as orações que dirigimos a essa imagem, já que, embora a forma não seja Ele, Ele permanece a Essência dela. Nossa capacidade de compreender Sua resposta pode ser limitada pela forma sob a qual O concebemos, mas nenhuma forma adorada como Deus está totalmente separada d’Ele. Os Wapnicks, em MCQCM, p.120, mencionam vários trechos do Course em que somos orientados a rezar a Deus como se Ele nos escutasse, especialmente pedindo perdão, mas isso é explicado como uma espécie de “re-treinamento” de si mesmo, dentro do contexto do sonho ilusório do ego, sob a tutela de um Espírito Santo — criado, não Divino — que é como a memória, pelo ego, da Realidade de Deus.

A razão pela qual o Course nega que Deus possa ouvir e responder nossas orações é, ao que parece, enfatizar que a Expiação já está completa na Eternidade. Mas como o aspecto de nós que reza a Deus na esperança de Sua resposta existe no tempo, necessariamente e legitimamente experimentamos a Expiação como um processo — embora, se não intuímos também a realidade eterna da Expiação como subjacente a esse processo, o processo nunca termine. A Course in Miracles, porém, como o ego humano, parece incapaz de imaginar que “o tempo é a imagem móvel da Eternidade”, que aquilo que é eterno e infinito para Deus é experimentado pela mente egoica como temporal e limitado, sem qualquer barreira real existindo entre ambos, fora da má percepção do ego. Quando o Course diz que Deus não escuta nossas orações, ou que Ele desconhece o universo, este é o modo que encontra de tentar salvaguardar Sua Absolutidade e Perfeição. Contudo, ao seguir essa rota, é forçado a negar Sua Infinitude. Ele não consegue entender que Deus, ao contrário de nós, pode olhar para a limitação e não ser limitado por ela, assim como pode responder às nossas orações sem se definir em termos de nossas necessidades; Ele não é “codependente”.

Sua capacidade de fazer isso é uma das coisas que O tornam Deus. Deus vê todas as nossas necessidades e limitações, mas as vê apenas como Sua Perfeição. Como poderia testemunhar apenas Sua própria Perfeição e ainda responder às nossas necessidades, ser ainda mais profundamente consciente do que nós das ilusões sob as quais labutamos e dos sofrimentos que experimentamos, e ainda assim nada ser senão Seu próprio Ser, Consciência e Bem-aventurança, não pode ser entendido pela mente literalista do Course; é por isso que ele deve cair na heresia do gnosticismo para explicar o aparentemente inexplicável. Para a metafísica tradicional, porém — como também para a alma da simples piedade, tão rara nestes tempos — a relação entre o Absoluto e o relativo, Deus e o universo, eu e meu Senhor, não é enigmática, mas transparente.

O texto de A Course in Miracles, como a maior parte do material canalizado, é extremamente irregular. Uma psicologia sofisticada do ego em fuga de Deus, e uma metafísica sutil embora unilateral, se misturam com devoção melosa, afirmações simplistas de “pensamento positivo” reminiscentes da Ciência Cristã — como a declaração tola na p.42 do TEXT de que “quando te sentes cansado é porque julgaste a ti mesmo capaz de te cansar” —, jogos de palavras enganosos e afirmações que contradizem os princípios principais do Course, ao menos tal como apresentados pelo Dr. Wapnick. Por exemplo, o seguinte trecho aparece na p.77: “Tudo o que aceitas na tua mente tem realidade para ti. É a tua aceitação que o torna real para ti (…); a mente é capaz de criar realidade e fazer ilusão…” Certamente, tudo o que aceitas como real é real para ti. Mas a mente não cria a realidade; ela a percebe. Realidade, por definição, é o que é objetivamente verdadeiro e realmente está lá, quer eu a perceba ou compreenda, quer não. Em outros pontos, o Course ensina precisamente isso, como quando define como erro a crença de “que o teu entendimento é uma poderosa contribuição para a verdade e a torna o que é” (TEXT, p.356). Dizer que a mente pode criar realidade, mas depois negar que o ato de entender uma verdade a cria, é uma contradição direta, uma dentre muitas que permeiam o Course.

Um paradoxo é uma tentativa de colocar em palavras uma verdade que as palavras só podem sugerir, mas não definir. Uma contradição é, simplesmente, um erro. O Course explica suas próprias contradições óbvias como paradoxos de ensino que apontam para verdades inefáveis. Porém, ao menos algumas delas são simplesmente contradições, que apontam para a escuridão intelectual e o caos. Por exemplo, quando o TEXT, p.55, afirma que “Nenhuma força, exceto a tua própria vontade, é forte o bastante ou digna o bastante para guiar-te. Nisso és tão livre quanto Deus”, isso contradiz a doutrina do Course de que, embora a vontade seja livre no Céu por estar alinhada à vontade de Deus, no reino da ilusão, o mundo da “mente dividida” — o único lugar em que o conceito de “orientação” tem qualquer significado —, a vontade nada pode fazer senão escolher entre dois guias, o ego e o Espírito Santo; e Deus não precisa escolher quem ou o que O guiará. Nas palavras dos Wapnicks: “Dentro do sonho (…), o conceito de livre arbítrio torna-se extremamente importante, pois é o mecanismo da salvação” (MCQCM, p.70). Segundo o manual (p.75), “Neste mundo a única liberdade restante é a liberdade de escolha; sempre entre duas escolhas ou duas vozes. A vontade [no Céu] não está envolvida em [percepção limitada, sujeito-objeto] em nenhum nível, e nada tem a ver com escolha.” Mas se a vontade celestial está além da escolha, além da “percepção”, além do sonho, então — nos termos do Course — ela deveria ser demasiado perfeita para guiar-nos. É por isso que — nos termos do Course — Jesus e o Espírito Santo devem aparecer, dentro do sonho, como guias. A vontade no nível do sonho, dentro do reino da ilusão em que a orientação é necessária e possível, só pode escolher (e aqui concordo totalmente com o Course) entre dois senhores: ego ou Espírito. Portanto, dizer que “Nenhuma força, exceto a tua própria vontade, é forte o bastante ou digna o bastante para guiar-te” é falso, tanto na realidade quanto segundo outros princípios do próprio Course. Tal como está, é um apelo à vontade própria luciferina, porque a vontade humana não foi feita para guiar, mas para seguir uma orientação. É o Intelecto, a mente de Deus em nós, que guia; o poder sozinho é impotente para estabelecer a Verdade, e é destituído de sentido sem ela.

Em relação à nossa vontade, o Intelecto Divino aparece sem dúvida como Vontade de Deus, já que exige a obediência de nossa vontade. Fá-lo, porém, não porque nos domine pela força, mas porque nos obriga pela Verdade. Uma vez que algo é conhecido como verdadeiro, torna-se senhor de nós; só podemos parecer escapar à regra da Verdade mentindo para nós mesmos. Mas uma verdade conhecida, coberta por uma mentira voluntária, é uma casa construída sobre areia; “se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os que a constroem”.

O Course, porém, nega que o Intelecto seja o Guia da vontade; nas palavras de seu “Jesus”: “Enfatizamos que não precisas compreender nada” (TEXT, p.356). Como desculpa para a mensagem confusa de A Course in Miracles, essas palavras podem ter alguma razão de ser. Como conselho espiritual, são veneno. Reduzem o significado de “orientação” a zero. Submeter voluntariamente a verdade — espiritual ou não — antes de compreendê-la plenamente é a única porta para um entendimento maior; sem essa submissão, nenhum ensinamento pode ter lugar. Mas é preciso compreender algo dessa verdade desde o início para saber que tal submissão é requerida. E, depois disso, cada nova submissão, cada sacrifício da vontade própria diante de um ensinamento que é objetivamente verdadeiro, resulta em um aprofundamento desse entendimento. Se isso não acontece, estamos trabalhando sob um engano.

Outra contradição gritante no Course é a seguinte: Na p.30 do TEXT, “Jesus” diz que o fim coletivo do sonho cósmico se dará ao longo de milhões de anos. (Doutrina semelhante encontra-se, curiosamente, nos ensinamentos do gnóstico Valentim.) Mas a doutrina de que o universo é um ataque ilusório contra Deus é incompatível com a doutrina da evolução espiritual do macrocosmo. Se, nos termos do Course, a má percepção do ego é corrigida num “instante santo” que está fora do tempo, se o tempo em si é ilusão, então o cosmos não pode ser redimido ao longo do tempo, seja em um dia, seja em um trilhão de anos. É verdade, como o Alcorão repete inúmeras vezes, que todas as coisas retornam a Deus — mas não através do tempo. A porta para Deus não está no espaço ou na duração, mas na profundidade do momento presente. Certamente, o Caminho espiritual de um indivíduo passa por estágios sucessivos e parece levar tempo. Porém, como o Caminho não é uma linha traçada no tempo, mas uma que se estende do tempo à Eternidade, esses estágios estão inscritos na face da própria Eternidade. Em termos sufis, os passos do Caminho não conduzem a Deus, mas se dão em Deus.

Como o próprio Course ensina, nossa escolha de sermos guiados pelo Espírito em vez do ego é uma decisão de sair do tempo. Talvez, poder-se-ia argumentar, se todos os seres sencientes que compõem o universo viessem a fazer essa escolha, o sonho do universo terminaria. Mas, para que isso ocorra, o ambiente cósmico teria de tornar-se virtualmente perfeito — um destino extremamente improvável para um ataque ilusório contra Deus. Seres sencientes teriam de parar de nascer, para que todos pudessem fazer essa escolha juntos, já que a constante produção de bebês ignorantes continuaria renovando o sonho. E, para garantir que todos escolhessem corretamente, precisariam de um tempo infinito para fazê-lo; teriam de parar de morrer. O sonho do universo, porém, é um sonho de tempo; dentro desse sonho, o tempo não pode terminar. E a escolha de ser guiado pelo Espírito em vez do ego, a escolha de sair do tempo, é algo que apenas indivíduos podem fazer. Um “universo” não pode escolher.

Ainda mais perturbador e revelador do que as contradições do Course é seu jogo de palavras maliciosamente enganoso. Na p.71 do TEXT, por exemplo, a passagem evangélica em que Jesus diz “meu jugo é suave e meu fardo é leve” é reinterpretada para significar “unamo-nos, pois a minha mensagem é luz (light)”. Esta “exegese” é tão absurda e de tão mau gosto que sugere uma vontade demoníaca agindo para distorcer o sentido da Escritura. “Light”, é claro, só significa tanto “leve” quanto “luz” em inglês, não em aramaico. Quanto a “burden”, pode ser entendido como denotando uma “mensagem”, já que dois de seus significados, segundo o American Heritage Dictionary, são “uma ideia principal ou recorrente; um tema” e “o refrão ou estribilho de uma composição [musical]”. Esse “burden”, porém, deriva do latim burda, “flauta”, enquanto o “burden” mais familiar, significando algo difícil de carregar, vem do inglês antigo byrthen. São duas palavras diferentes. Joguinhos tão infantis ou travessos são claramente indignos de Jesus Cristo, embora não do “Jesus” do Course, que parece carecer da maturidade e da humanidade, do sal, de seu homônimo — nada surpreendente, já que nunca nasceu como homem.

Um dos aspectos mais interessantes de A Course in Miracles é sua “ego-psicologia transcendental”, sua narrativa de como o ego se esconde da Verdade Divina. Este “mito da queda” é mais ou menos o seguinte: uma porção da Filiação, criação eterna e perfeita de Deus, adormeceu — ou pareceu fazê-lo. No sonho que parecia estar tendo, imaginou a possibilidade de separação de Deus — algo que, de fato, é impossível. Esse sonho resultou numa falsa percepção fundamental, um ataque a Deus que nunca ocorreu na realidade, já que nenhum ataque desse tipo pode ocorrer. Mas a crença de que tal ataque ocorreu resultou na ilusão de um universo físico composto de vastas quantidades de matéria e energia, vastidões de espaço e tempo. O ego acreditou ter roubado de Deus o poder de criar esse universo e, assim, temeu a retribuição divina. Consequentemente, interpretou a crucifixão de Jesus não como ato de amor da parte de Deus, mas como punição do Pai imposta ao Filho, como ego, pelo pecado de tentar existir separado d’Ele e, desse modo, criar o universo. Em medo dessa punição, o ego projetou sobre Cristo aquilo que temia que acontecesse consigo mesmo. A expiação vicária por nossos pecados, através do sofrimento de Cristo, não é portanto eficaz; não passa de um modo de o ego negar o próprio medo da punição por um pecado que de fato não cometeu. O ego teme encontrar Cristo por causa do perigo de perceber que nenhum pecado jamais ocorreu. Como o ego vive de medo e culpa, a percepção de que o pecado fundamental de separação de Deus nunca aconteceu seria “fatal” para ele — enquanto ilusão. E, porque nenhum pecado foi cometido, nossa culpa é injustificada; de certo modo, a própria culpa é o “pecado”.

Como “sombra” do Cristianismo, esta é uma história muito interessante. Sem dúvida, muitas pessoas, em tempos em que a plenitude da doutrina cristã raramente é ensinada, experimentam o Cristianismo precisamente dessa maneira, Helen Schucman entre elas. Se for assim, esta variação sobre o tema cristão pode ser útil como forma de entender como a doutrina cristã pode ser distorcida por crenças inconscientes do ego. A versão do Cristianismo dada pelo Course poderia mesmo ser chamada de “Cristianismo segundo o ego”. Nesta versão-sombra, a verdade de que só Deus cria o universo fica escondida sob o erro que vê o ego como um rival, ainda que ilusório, criador. O Course acerta quando aponta o erro — a ideia de que o ego poderia ter o poder de criar um universo real, o que, na realidade, não tem — mas erra quanto à verdade do caso — que o verdadeiro Criador do universo é Deus. (Essa é a natureza do saber-sombra; ele pode criticar o erro, mas não consegue positivar a Verdade.)

Da mesma forma, quando o Course critica a expiação vicária, o dogma de que Cristo pagou a dívida do nosso pecado por meio de Seu sofrimento e morte, acerta quanto à interpretação errônea que definiria “vicariato” como uma espécie de função de bode expiatório pela qual nossos pecados são “levados embora” para um deserto onde nossa responsabilidade termina. Mas erra quanto à verdade do assunto: que pecadores redimidos por Cristo devem morrer com Ele para ressuscitar com Ele, que devem “tomar sua cruz” e segui-Lo, apenas para descobrir que Seu “jugo é suave” e Seu “fardo leve”. Isso não é punição por parte de um Deus irado; é vitória sobre a morte. O Course afirma que os discípulos de Jesus acreditaram que a crucifixão foi a punição do Pai imposta ao Filho pelo pecado do homem. Isso não passa de uma calúnia tola, já que outra doutrina mais elevada foi ensinada abertamente desde o início: que a morte do Filho foi a oferta livre que o Pai fez de Si mesmo, como Deus, na pessoa de Seu Filho — já que Pai e Filho são “uma só substância” — para pagar a dívida do homem. E essa dívida não poderia ter sido a “honra ferida” do Pai que precisava ser satisfeita, como Anselmo sustentou — o Course parece depender fortemente da teologia anselmiana como seu espantalho principal frente à redenção —, porque a oferta do Filho pelo Pai foi sacrifício, não exigência.

O Course entende corretamente que a crucifixão e a ressurreição de Jesus tinham por fim demonstrar que nenhum ataque eficaz pode realmente ser feito contra Deus, e que Seu Perdão continua disponível para nós, apesar da nossa culpa, se estivermos apenas dispostos a aceitá-Lo; do contrário, não seria perdão. O que não entende é que Deus abraça nosso sofrimento e o faz Seu, sem incorrer, por isso, em qualquer dano ou diminuição. Esse é um escândalo para o gnosticismo literalista de A Course in Miracles; por isso precisa negar que Jesus tenha nascido, sofrido ou morrido. Mas se Ele não fez nada disso, então a ressurreição foi um teatrinho insignificante e nada provou. Que Deus pudesse sofrer e ainda assim não sofrer; que Cristo pudesse realmente nascer, realmente sangrar, realmente morrer e, no entanto, estar além de tudo isso, como a ressurreição provou — esse é o paradoxo místico que o Course não consegue aceitar. O Cristianismo normativo, ortodoxo, é demasiado esotérico para a mente que produziu A Course in Miracles.

Se Deus é a única Realidade, como ensinam tanto os sufis quanto A Course in Miracles — embora em sentidos radicalmente diferentes — então Ele deve ser minha Essência oculta — verdade expressa por Jesus quando disse: “Eu estou no Pai, e o Pai em mim” (Jo 14,11), e “Eu [estou] neles e Tu [Pai] em mim, para que sejam aperfeiçoados…” (Jo 17,23). A implicação aqui é que todo o meu sofrer tão real é, em Essência, nenhum sofrimento. Quando o santo hindu Ramakrishna estava morrendo de câncer na garganta, muito sofrimento ocorreu. Não podemos dizer que, porque Ramakrishna era um santo — ou, segundo alguns, um pequeno avatar — ele, por isso, não poderia ter nascido na carne, contraído câncer na garganta e morrido disso. O fato é simplesmente que, na medida em que Ele era um ser plenamente realizado, um jivanmukta, não havia ego ali para sofrer aquele sofrimento. Não é que o sofrimento nunca tenha acontecido; acreditar nisso seria superstição literalista. É só que o sofrimento era, em Essência, nenhum sofrimento, porque Deus, enquanto Essência interior de Ramakrishna, e tua, e minha, não sofre — e é precisamente por isso que Ele pode, e de fato, toma sobre Si todo o sofrimento do universo.

A Course in Miracles, como Sigmund Freud, afirma que não o pecado, mas a culpa é a fonte de nossos problemas. Já que o “pecado original” nunca teve lugar, a culpa é pura ilusão, que a psicanálise e/ou o Course existem para dissipar. Não somos perdoados por nossos pecados; somos perdoados por acreditar que pecamos em primeiro lugar. Mas o que poderia ser mais produtor de culpa do que definir o universo como ilusão criada pelo ego como ataque a Deus? Como egos, segundo esta doutrina, somos culpados do crime cósmico mais horrível imaginável. Claro que esse crime nunca realmente aconteceu — exceto que cada item da nossa experiência, Se acreditamos no Course, ela nos grita que sim. Assim, nossa própria experiência torna-se o inimigo, o Deus irado que nos persegue; de acordo com os princípios do Course, ao menos tal como eu os leio, a experiência é culpa — exceto pelo fato de que nada está realmente acontecendo. Nossa experiência é irreal.

Como, se nossa vontade é livre para escolher entre ego e Espírito, pode a escolha do ego em vez do Espírito não ser um pecado? E como podemos ser perdoados por um pecado que nunca cometemos? Como podemos escapar de uma prisão que experimentamos como inegavelmente real se essa prisão não existe? O Course, ao mesmo tempo em que nega a realidade do universo, toma esse universo como uma espécie de absoluto negativo, uma situação desesperadora que não contém nada de bom, razão exata pela qual precisa defini-lo como ilusão. Mas se o universo é absolutamente irreal — ou absolutamente real — jamais encontraremos Deus, seja porque não conseguiremos imaginá-Lo como uma Realidade que transcende nossa experiência, seja porque tomaremos todas as nossas experiências imaginárias d’Ele como ilusões sem significado. Do mesmo modo, o Course, enquanto nega a realidade da culpa, transforma a culpa em um monstro com poder infinito para nos atormentar, invalidar e aprisionar, o que é precisamente a razão pela qual precisa chamá-la de irreal. Mas, se a culpa é ilusão total — ou realidade total —, nunca conheceremos o perdão, porque jamais o buscaremos; ou não veremos necessidade dele, ou desesperaremos dele. E, afinal, o que há de tão terrível na culpa, se existe algo como perdão? A culpa, se dela nos tornamos plenamente conscientes pelo poder da graça de Deus, conduz àquela grande bem-aventurança conhecida como remorso, que é parte do êxtase do amor. Deveríamos todos ter tanta sorte.

Além disso, A Course in Miracles não apenas “reinterpreta” o Cristianismo; também o ataca. Na p.4 de MCQCM, o Dr. Wapnick descreve “o Deus bíblico” como “muito claramente uma pessoa que vê o pecado como real”, e caracteriza o Seu relacionamento com um povo escolhido e o Seu aspecto irado e punitivo como um “amor especial (…) e ódio especial (…) que estão associados ao sistema de pensamento do ego (…) [a seção do Course intitulada] ‘As Leis do Caos’ contém um retrato vívido desse Deus bíblico, que tornou o pecado real e assim revelou suas origens egoicas, ou melhor, os egos dos escritores dos livros da Bíblia.” Em CMCD, p.23, a Bíblia é descrita como ensinando uma espiritualidade “dualista”; em MCQCM, p.99, os Wapnicks falam de “outras espiritualidades (não cristãs)” como sendo aquelas cujos “nomes são legião”, usando a expressão pela qual os demônios possessores se designam a si mesmos em Lucas 8,30. Colocando-se deliberadamente em um plano mais elevado que a Bíblia com suas “origens egoicas”, o Course caracteriza a si mesmo nos seguintes termos: “De todas as mensagens que recebeste e não compreendeste, somente este curso está aberto ao teu entendimento e pode ser compreendido. Esta é a tua linguagem” (TEXT, p.437); nega, em outras palavras, que quaisquer outros textos ou escrituras espirituais sejam sequer inteligíveis, ao mesmo tempo em que afirma que “não precisas compreender nada”.

Poderia aqui estar operando um certo tipo de projeção psicológica? Esta é certamente uma explicação possível para as contradições do Course, à luz das quais podemos talvez entender por que os Wapnicks, na p.129 de MCQCM, acabam chegando a caracterizar “a forte influência do Cristianismo” sob a qual o mundo ocidental cresceu como “uma influência [junto com a psicanálise] que não tem sido muito cristã nem espiritual” — como se a doutrina cristã pudesse ser mostrada como fundada em um mal-entendido da própria doutrina cristã.

Como está amplamente claro a partir dessas citações, A Course in Miracles é considerado, em certo sentido, como a verdade exclusiva; o judaísmo bíblico e o Cristianismo são vistos como ilusões do ego. Essa intolerância, fundada numa disposição “sem culpa” — especialmente no caso do Cristianismo — de reescrever doutrinas tradicionais até que satisfaçam os critérios de falsidade do Course, parece ser um bom exemplo da tendência que os próprios Wapnicks, em outro lugar, procuram cortar pela raiz, quando afirmam que, se os estudantes do Course tentassem proselitizar, “sentir-se-iam impelidos a criticar, julgar ou atacar outros caminhos espirituais” (MCQCM, p.114).

A caracterização que o Course faz do Cristianismo como dualista é imprecisa porque unilateral. Ele desconhece, por exemplo, que, segundo a Bíblia, o Deus que vê o pecado como real também o conhece como irreal: “Tu és de olhos tão puros, que não podes ver o mal” (Hab 1,13). Nem Ele é necessariamente símbolo do ego por exibir um aspecto irado e punitivo; Sua ira é simplesmente o modo como o ego precisa experimentá-Lo, até que esse ego seja sacrificado e libertado. Segundo a Bíblia, o sacrifício aceitável a Deus não é o do corpo em si, mas o do ego — não “a gordura dos carneiros”, mas “um coração contrito”. A ira divina é misericórdia divina distorcida pelo ego, mas também dirigida ao ego; a única coisa capaz de despertar um ego profundamente autoidolátrico da ilusão de sua própria autocriação é a tremenda majestade de Deus. Certamente, se o nível do pecado e do arrependimento nunca é transcendido, se a misericórdia e o perdão de Deus jamais são intuídos por trás da face da Sua justiça, o ego deve permanecer selado em seu próprio narcisismo, onde usará o auto-tormento masoquista como argumento em sua tentativa constante de provar que é autogerado. É por isso que os sufis falam da necessidade, em certo ponto, de “arrepender-se do arrependimento”. Mas, se o nível do pecado e do arrependimento nunca é alcançado em primeiro lugar, jamais poderá ser transcendido, já que o ego que se treinou para obedecer a seus próprios impulsos como se fossem a vontade de Deus — em termos sufis, o “eu que ordena” — interpreta toda manifestação de perdão simplesmente como licença para matar.

O Course não aceita nada disso. Na p.137 do TEXT, afirma, corretamente, que quando escolhemos ser guiados pelo Espírito, o ego, “percebendo a derrota e zangado com ela (…) considera-se rejeitado e torna-se retaliador”. Este é precisamente o sentido da crucifixão, exceto que Jesus, uma vez que era sua vontade dar a vida por todos nós, suportou a retaliação não apenas do seu ego individual, mas também do ego coletivo da humanidade. Contudo, A Course in Miracles, por ser deliberadamente anticristão, não consegue ver na crucifixão uma ilustração óbvia de sua própria doutrina, retratando-a em vez disso como um drama falso em que o ego acredita que deve sofrer tormentos para apaziguar um Deus irado — meia-verdade distorcida, já que a crucifixão nada mais é do que o sacrifício de tudo o que se interpõe entre o Filho e o amor do Pai: o próprio ego. E é verdade, de certo modo, que a Bíblia apresenta a relação de Deus com o Seu universo sob uma luz dualista; que outra coisa pode a linguagem mitopoética fazer, se quer contar uma história? Mas o aspecto advaita da Bíblia também está lá, não muito abaixo da superfície: “Eu e o Pai somos um”; “antes que Abraão fosse, Eu sou”; “já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim”; “o Reino de Deus está dentro de vós”. Infelizmente, a mente que produziu A Course in Miracles é literalista demais para reconhecer isso. E, finalmente, quem poderia seriamente acreditar que a Bíblia foi distorcida pelos egos de seus escribas, muitos dos quais deram a vida em testemunho da sua verdade, e ao mesmo tempo não admitir que o Course teria sido, com a mesma probabilidade, distorcido pelo ego de Helen Schucman — uma senhora zangada com a Igreja Católica, que nem sequer tinha certeza se acreditava em Deus?

Um dos aspectos mais estranhos de A Course in Miracles, ao menos da minha perspectiva, é que ele contém uma versão distorcida da doutrina de Frithjof Schuon sobre a Unidade Transcendente das Religiões. Em sua forma autêntica, essa doutrina afirma que Deus revelou mais de um caminho capaz de conduzir a alma humana de volta a Ele; esses caminhos se encontram nas grandes religiões mundiais, assim como em certas espiritualidades “primordiais”. Cada caminho é único, e uma pessoa não pode trilhar mais de um ao mesmo tempo. Por outro lado, as doutrinas metafísicas superiores das religiões reveladas são unânimes, embora com muitas diferenças de ênfase, em expressar certos princípios espirituais universais. Mas o único acesso prático, “operativo”, de uma pessoa a essas verdades permanece sendo sua fidelidade a uma tradição religiosa, tanto no nível da prática espiritual quanto no das doutrinas específicas e únicas que fornecem o contexto necessário para essa prática.

Segundo o Course, “uma teologia universal é impossível, mas uma experiência universal não só é possível como necessária” (manual, p.73); e em MCQCM, p.113, o Dr. Wapnick adverte os estudantes do Course a serem “cautelosos (…) quanto a tentar misturar teologias e abordagens espirituais que, em última análise, não se combinam”. Isso parece inteiramente em linha com o ensinamento de Schuon.

No entanto, na p.111, o Dr. Wapnick revela a verdadeira razão para essa cautela, criticando a prática comum de incluir A Course in Miracles naquilo que Aldous Huxley chamou de

“a filosofia perene”, expressão guarda-chuva usada para abarcar as principais tradições místicas do mundo (…): isso presta ao Course um profundo desserviço, porque obscurece a contribuição distintiva que ele dá às espiritualidades do mundo: a ideia de que não apenas o universo físico é uma ilusão que Deus não criou, mas que também foi ‘feito como um ataque’ a Ele. (…) Este princípio psicológico profundo e sofisticado, integrado a uma metafísica puramente não-dual, é o que torna A Course in Miracles único entre os sistemas espirituais e religiosos de pensamento no mundo.

Portanto, o Course deve ser mantido à parte de outras doutrinas metafísicas não porque todos os caminhos válidos sejam discretos, mas porque os outros caminhos são menos válidos. Isto nada menos é do que um exclusivismo exotérico, ou literalismo, que se disfarça de esoterismo. É correto, num certo nível, dizer que “uma teologia universal não é possível”, mas a razão pela qual o Course afirma essa verdade é para obscurecer outra, que o coloca em má posição: a de que todas as teologias, em suas profundezas metafísicas, serão encontradas apontando, a partir de suas perspectivas necessariamente únicas, para uma única Verdade que transcende essas perspectivas, e ainda assim se manifesta por meio delas. A unidade das religiões, em outras palavras, não é sincrética ou eclética, mas transcendente. O Course, porém, negaria completamente essa unidade em nome de sua própria transcendência exclusiva. E isso é um erro.

Nem o Course é realmente único como pretende. Certamente se afasta, em pontos centrais, da doutrina unânime das tradições sapienciais do mundo, especialmente em sua negação da imanência; mas tem muito em comum com doutrinas que tais tradições consideram, com toda razão, heréticas — mais obviamente com as heresias cristãs do gnosticismo, do arianismo e do docetismo, já que o Course é moldado em termos quase cristãos, mas também, em certos aspectos, com doutrinas consideradas heréticas em relação ao budismo, como aquelas que afirmam a irrealidade literal dos fenômenos ou a existência eterna literal do Buda. E já vimos como sua doutrina da inexistência literal do universo se choca com a doutrina hindu de maya.

Levando em conta as diferenças entre linguagem filosófica e linguagem mitopoética, a doutrina de que o universo foi criado pelo ego como ataque a Deus é substancialmente a mesma do Demiurgo iludido no gnosticismo, ou da gnóstica Sofia que, como o ego que ela simboliza, cria a ilusão da matéria a partir de seu próprio auto-erotismo, sem o concurso de um consorte — sendo isto uma representação mítica (verdadeira em certo sentido, se não tomada ao pé da letra) da crença ilusória do ego em sua própria autocriação. A cosmogonia de A Course in Miracles, portanto, é substancialmente a da heresia gnóstica; mas o “Jesus” do Course parece ignorar essas afinidades.

A Course in Miracles parece ser um tipo de supercompensação para o materialismo do mundo moderno (o mesmo talvez seja verdadeiro do gnosticismo em relação ao paganismo clássico tardio). A pesada crença literalista na realidade material projeta, como sombra, a doutrina de que o mundo é pura ilusão e Deus, exclusivamente transcendente. Assim como a fissão nuclear demonstrou experimentalmente que o limite de nossa crença na realidade da matéria havia sido alcançado, A Course in Miracles demonstra metafisicamente a mesma coisa. O surgimento da doutrina da transcendência exclusiva, embora seja um erro, é, por isso, um sinal escatológico. Só quando o mundo manifesto está quase completamente morto para nós, só quando se torna tão opaco à nossa percepção espiritual encolhida que já não pode ser percebido como “sinal” de Deus, é que uma negação total, mesmo da realidade relativa desse mundo, começa a parecer o único caminho de saída.

Na minha opinião, a heresia conhecida como A Course in Miracles é consequência inevitável da supressão contemporânea da metafísica tradicional dentro do Cristianismo, particularmente na Igreja Católica. Em MCQCM, p.123, Helen Schucman é citada dizendo, a respeito do Course: “Finalmente, há um sistema espiritual para intelectuais.” A fome de profundidade metafísica e iluminação intelectual está aí; é parte inescapável da qualidade do nosso tempo. Mas, se a Igreja já não consegue satisfazê-la, então ai da Igreja! É aqui que a rejeição católica contemporânea da metafísica tradicional, e a recorrente desconfiança cristã de sua própria dimensão sapiencial, até mesmo dentro da Ortodoxia, voltam para assombrá-la. Como se Clemente de Alexandria, Dionísio Areopagita, Máximo o Confessor, Mestre Eckhart, Scotus Eriugena — para mencionar apenas alguns — não estivessem entre os maiores intelectuais espirituais da raça humana. Mas, é claro, a maioria dos cristãos jamais os leu, e é uma das razões pelas quais Helen Schucman, uma potencial intelectual pneumática educada por freiras católicas, pôde trazer à luz suas doutrinas heréticas, que desde então lançaram raízes dentro da própria Igreja. A doutrina abomina o vácuo; somente a verdadeira metafísica cristã tradicional pode impedir que esse vácuo, na Igreja, seja preenchido com meias verdades perigosas como as da Sra. Schucman. A Course in Miracles não foi uma produção má, de certo ponto de vista, para uma “freelancer” não tradicional. Mas não foi suficiente, e, no reino da Verdade, insuficiência não é neutra; é subversiva. Um pouco de metafísica é coisa perigosa, porque, uma vez que ideias desequilibradas tenham criado raízes em um nível intelectual elevado, como o que o Course tenta ocupar, a doutrina metafísica plena — que só ela é plenamente eficaz, para aqueles que têm capacidade para isso — tem poucas chances de ser reconhecida. Talvez o verdadeiro propósito de A Course in Miracles seja atrair, e neutralizar espiritualmente, aqueles com capacidade para compreender e lucrar com a Verdade metafísica. Se assim for, quem é então o seu autor?

IV. A Profecia Celestina:
Uma Cultura Pré-Colombiana de Solteiros

Uma das mitologias New Age inventadas mais populares dos últimos anos encontra-se em A Profecia Celestina e em suas continuações, de James Redfield. O livro é claramente ficcional, mas os leitores do Sr. Redfield geralmente concordam em ignorar esse fato para poderem deixar-se cair sob o feitiço de uma fascinante aventura espiritual!

O livro é o relato da descoberta de um misterioso manuscrito aramaico em um sítio arqueológico peruano, as Ruínas Celestinas. O manuscrito, datado de 600 a.C., prediz que, justamente nestas décadas, a raça humana passará por uma transformação cultural e espiritual em massa, baseada na compreensão das Nove Visões (Nine Insights) contidas nesse manuscrito. O único problema é que as autoridades peruanas, instigadas pelo bispo católico conservador, o cardeal Sebastián, estão tentando suprimir o manuscrito pela força militar. Mas uma intrépida rede de cientistas e acadêmicos de todo o mundo, atraídos ao Peru por seu interesse no manuscrito, luta ao lado de padres católicos locais progressistas para preservá-lo das forças da reação.

A doutrina de A Profecia Celestina é a seguinte: uma vez que um número cada vez maior de nós admita que eventos sincrônicos misteriosamente significativos continuam acontecendo (Primeira Visão) e, em seguida, desenvolva um senso de perspectiva histórica que nos mostre (1) que a Idade Média cristã foi espiritual de certo modo, exceto pelo fato de ter sido controlada por eclesiásticos de mente estreita que sufocaram a evolução, e (2) que as explorações e os avanços científicos do segundo milênio, especialmente desde o Renascimento, foram uma tentativa de descobrir o propósito da vida terrena depois que a Idade Média tacanha se desfez, mas que (3) desistimos de esperar que a resposta chegasse e nos contentamos com o conforto material (em conjunto, a Segunda Visão), então poderemos aprender a ver as auras de energia em torno de plantas, rochas e outras pessoas, e torná-las mais fortes (Terceira Visão).

Uma vez que possamos canalizar energia para as plantas e uns para os outros, seremos capazes de parar de competir uns com os outros por energia vital (Quarta Visão) e ter experiências místicas cósmicas (Quinta Visão), que nos ajudarão a ir além das quatro formas diferentes de lutar por atenção e poder que aprendemos na infância (Sexta Visão), após o que seremos capazes de ver como todos os eventos, mesmo os negativos, fazem parte do fluxo da evolução espiritual e ligar-nos a ele (Sétima Visão). Depois disso, poderemos educar nossos filhos de modo diferente, fazendo com que sempre haja um adulto dando atenção total a uma criança, e também superar a co-dependência nos relacionamentos românticos e em outros relacionamentos (em conjunto, a Oitava Visão), o que nos permitirá criar uma nova cultura planetária, em que a população será controlada, a energia será barata e abundante, vastas florestas primevas serão deixadas para crescer, as cidades serão autossuficientes, totalmente automatizadas e geridas por inteligência artificial, e em que nossas vibrações energéticas atingirão um nível tão elevado que nos desmaterializaremos, um por um, e entraremos no Céu sem morrer!

The Celestine Prophecy revela-se aqui como uma colcha de retalhos de ideias psicológicas e pseudo-esotéricas contemporâneas, caoticamente costuradas pelo fio de uma fantasia literária. A ideia de profecias misteriosas descobertas na América Latina, em um sítio maia/inca, e que dizem respeito às últimas décadas do segundo milênio e às primeiras do terceiro, deriva muito provavelmente das pretensões de José Argüelles quanto ao valor macropreditivo do calendário maia. Sincronicidade (Primeira Visão) vem de Carl Jung; perspectiva histórica (Segunda Visão), de uma ignorância de história; auras (Terceira Visão), da pesquisa psíquica e de relatos de clarividentes; lutas de poder em torno de energia (Quarta Visão), da psicologia contemporânea, de ensinamentos psíquicos modernos e da experiência comum de pessoas que tentam se relacionar quando, na verdade, não se amam; uma ideia falsa de “experiência mística” (Quinta Visão), da teoria da evolução; a análise dos diferentes estilos de manipulação interpessoal (Sexta Visão), da psicologia popular, ou de sistemas como o eneagrama (na versão de Helen Palmer, não na forma tradicional usada pelos sufis naqshbandis) ou da observação direta; evolução espiritual (Sétima Visão), da teoria darwiniana mal aplicada; uma nova ética interpessoal (Oitava Visão), da psicologia popular; uma nova cultura planetária (Nona Visão), de projeções futuristas comuns; o estilo da escrita em si, de Carlos Castaneda. As Visões Um, Três, Quatro e Seis são válidas em seus níveis próprios, amplamente separados, mas não se alinham para produzir nada que se aproxime de um todo orgânico. Até a Oitava Visão tem algo a seu favor, se não for usada para justificar distância afetiva e falta de compromisso nos relacionamentos — como costuma acontecer.

Toda essa mistura não é nem integrada nem antiga, contudo — mas isso aparentemente não é problema, porque Redfield não faz nenhuma reivindicação rígida quanto à autenticidade do manuscrito em que seu sistema supostamente se baseia; e o manuscrito inexistente foi destruído pelas forças da reação no final do livro mesmo, de modo que ficamos apenas com as fantasias que projetamos naquele vazio. As fantasias que somos orientados a projetar.

The Celestine Prophecy baseia-se nos costumes da cultura global de solteiros New Age, ampliados a proporções cósmicas. Todos os protagonistas são solteiros, ou porque fazem parte da cultura New Age de solteiros, ou porque são padres. Também não há peruanos casados entre as forças do bem. Os filhos da luz são advertidos a não entrar em relacionamentos comprometidos antes de estarem altamente evoluídos, e a única situação familiar apresentada aparece entre os “nativos” não iluminados, oferecida como ilustração dos problemas interpessoais que podem ser superados pela Quarta Visão. A única criança entre as forças do progresso espiritual aparentemente vive com uma mãe solteira.

A Igreja Católica é o inimigo. A hierarquia não iluminada teme o manuscrito porque ele minará seu poder se as pessoas aprenderem a “evoluir” sem a permissão dela. Eles acreditam que, se as pessoas transcenderem a necessidade de autoridade espiritual, sairão em desatino.

Os padres progressistas perseguidos, integrantes das forças do bem, são todos teilhardianos. Em vez de salvação, creem em um progresso espiritual linear coletivo rumo ao Ponto Ômega. Não esperam nenhum apocalipse. Acreditam que o manuscrito celestino finalmente iluminará o verdadeiro sentido da tradição católica, embora a negue em todos os seus aspectos.

De que lado você se identifica? Com os velhos rançosos da Igreja, com sua ênfase repressiva em autoridade e sofrimento, ou com a cultura New Age de solteiros, que promete uma terra renovada e paradisíaca, onde tudo o que você tem a fazer é aprender a notar sincronicidades, ver auras em torno de plantas, prestar atenção às crianças e evitar relacionamentos co-dependentes — e então poderá dissolver-se em pura luz? A escolha é simples — e é sua!

Talvez o leitor esteja se perguntando por que estou gastando tempo criticando aquilo que é obviamente uma fantasia. Há várias razões.

Primeiro, A Profecia Celestina representa parte da ideologia “tender-minded” (ou cabeça-mole) da futura civilização global. Seus inimigos são: (1) a Igreja Católica, que representa um possível internacionalismo rival, bem como uma força que procura preservar costumes tradicionais que atrapalham o globalismo; e (2) o governo peruano, um nacionalismo “atrasado” que o globalismo — representado aqui pela Rede Internacional dos Acadêmicos Ladrões de Arte das Forças da Luz, que tenta roubar o manuscrito — procura varrer para longe em toda parte. Segundo, esses livros são — ou foram até bem recentemente — extremamente populares. E terceiro, como tentativa de deturpar, subverter e, em última instância, substituir a doutrina cristã, eles representam um dos muitos prenúncios New Age do regime do Anticristo.

Comecemos com alguns erros factuais:

(1) Na p. 8, o aramaico é apresentado como o idioma em que boa parte do Antigo Testamento foi escrita. Mas quase todo o Antigo Testamento está na verdade escrito em hebraico. Apenas partes dos livros de Esdras e Daniel, e frases isoladas, estão em aramaico.

(2) Na p. 22, pinta-se o seguinte quadro da Idade Média cristã:

“Você se encontra na classe social de seu pai — essencialmente camponês ou aristocrata — e sabe que estará sempre confinado a essa classe. Mas, qualquer que seja a classe em que esteja (…), logo percebe que a posição social é secundária em relação à realidade espiritual da vida, tal como definida pelos eclesiásticos. (…) Se você seguir as instruções deles, fica assegurado de que terá uma vida futura recompensadora. Mas se não seguir o curso que prescrevem, então, bem… há a excomunhão e a danação certa.”

A implicação é que a Igreja impunha a imobilidade social enquanto dirigia toda a atenção da pessoa para o além. Mas, na realidade, a Igreja era, em termos práticos, o único caminho de ascensão social disponível na Idade Média. Por meio de uma carreira clerical, um camponês podia até se tornar Papa. E dizer que os que seguiam “as instruções dos eclesiásticos” seriam salvos e os que não o fizessem seriam condenados via excomunhão fornece um quadro muito distorcido. As “instruções dos eclesiásticos” não eram decretos arbitrários impostos por uma espécie de exército de ocupação — claramente sugerido pela imagem de um cardeal peruano dirigindo secretamente um regime de terror militar —, mas expressão da doutrina cristã ortodoxa, que, com algumas exceções gritantes, era aceita como natural por todos os setores da sociedade. No plano político, você até poderia não gostar das ações do bispo local ou mesmo do Papa, mas tomaria a doutrina que ensinavam, bem como seu direito de ensiná-la, como algo dado, em comum com a maior parte das pessoas, nos mais diversos lugares e épocas do mundo medieval. E os pecadores não eram rotineiramente condenados via excomunhão; eles eram — e são — tornados incapazes, por seu próprio egoísmo, de suportar a luz direta do Amor de Deus após a morte, experimentando-a, devido à resistência a ela, como fogo do inferno. Deus, não o homem, julga os pecadores, e só os julga conforme sua própria intenção. A excomunhão não era punição pelo pecado em si, mas era reservada àqueles que desafiavam abertamente a autoridade doutrinária da Igreja.

(3) Na p. 29 lemos que,

“no fim do milênio (…) uma obsessão de quatrocentos anos se completara. Havíamos criado os meios para a segurança material e agora parecíamos prontos — na verdade, em posição — para descobrir por que havíamos feito isso.”

A única coisa errada nessa afirmação é que ela não se aplica à maioria das pessoas na Terra.

(4) Na p. 42, lê-se:

“Experimentos [em física quântica] revelaram que, quando você fragmenta pequenos aspectos dessa energia, o que chamamos de partículas elementares, e tenta observar como operam, o próprio ato de observação altera os resultados — como se essas partículas elementares fossem influenciadas pelo que o experimentador espera. (…) Em outras palavras, a matéria básica do universo, em seu núcleo, parece ser uma espécie de energia pura maleável à intenção humana.”

Isto é uma total deturpação da física quântica. O fato de a observação afetar resultados experimentais no nível quântico nada tem a ver com as expectativas do experimentador. Trata-se, antes, de um “princípio de exclusão” que define os limites absolutos de precisão na medição. As expectativas do experimentador afetam os resultados na medida em que determinam a hipótese de trabalho sobre a qual o experimento é construído — assim como as perguntas específicas que eu lhe fizer a respeito de sua vida influenciarão as respostas que você me der. Mas a forma particular da sua vida está realmente lá, quer eu a investigue, quer não. Da mesma maneira, a estrutura da natureza não é determinada pelas perguntas que fazemos a ela. Se fosse assim, a experimentação científica não teria sentido.

O propósito “didático” da doutrina segundo a qual a própria realidade, e não apenas a experiência, é afetada pela expectativa é justificar a aceitação da fantasia como real — especialmente da fantasia dirigida ou sugerida, já que é tudo o que nos resta se não houver critério de realidade, nenhum manuscrito existente. Sem qualquer modo de avaliar a realidade objetiva de uma afirmação, nem motivação para fazê-lo, nem — em última análise, e aí A Profecia Celestina é puramente pós-moderna — qualquer crença de que exista algo como realidade objetiva, aquele que tem chutzpah e impulso de poder pessoal para definir arbitrariamente a realidade, o mágico de palco que diz à sua plateia desorientada “imaginemos isto juntos”, é Deus — ao menos temporariamente. Este é o lado negativo das “visualizações guiadas” tão comuns em oficinas New Age: funcionam como sessões de treinamento em sugestionabilidade acrítica.

(5) Na p. 59: “A antiga ideia newtoniana é que tudo acontece por acaso (…) que todo evento tem uma linha de causalidade independente de nossa atitude.” Mas, é claro, dizer que tudo acontece por acaso é negar que linhas independentes de causalidade possam existir. Newton não disse que tudo acontece por acaso; disse que tudo acontece por linhas de causalidade independentes. O pensamento de Redfield está tão confuso aqui, para além de sua simples ignorância dos fatos, que sou levado a concluir que sua negação de linhas independentes de causalidade o levou a negar também a validade do raciocínio lógico, motivo pelo qual esqueceu como raciocinar. Mas, se a realidade objetiva é influenciada pela atitude de alguém, para além das simples consequências de suas ações, então talvez, se Redfield adotar a atitude de que Newton realmente afirmou que tudo depende do acaso — ainda que, na verdade, não o tenha dito —, então, de certo modo, ele realmente o disse — se, isto é, acreditarmos que ele o disse. Vi o mágico serrar a mulher ao meio com meus próprios olhos; logo, ele realmente a serrou, porque ver é crer. Ou melhor, como Redfield e outros mágicos de palco sabem, crer é ver. Chama-se “desvio de atenção”.

(6) Na p. 235: “As ruínas onde a Nona [Visão] foi encontrada se chamam Templos Celestinos, os Templos Celestes.” A palavra “Celestino”, contudo, refere-se na verdade à Ordem Celestina de monges católicos, fundada pelo Papa Celestino V por volta de 1260. Os mosteiros celestinos foram destruídos durante e após a Revolução Francesa; consequentemente, grande parte da Europa Ocidental abrigava várias “ruínas Celestinas”. De tão obsessivamente que Redfield deseja suplantar a Igreja Católica, ele acaba apropriando até o nome de uma de suas ordens monásticas.

(7) Na p. 237, o cardeal conservador Sebastián é retratado como vivendo na expectativa do “arrebatamento”. Mas católicos conservadores e tradicionais não creem no arrebatamento; trata-se de uma doutrina do cristianismo evangélico de origem relativamente recente.

Dos erros factuais, passemos agora à deturpação do amor.

Na p. 116, a personagem “Padre Sánchez”, como o Deepak Chopra de As Sete Leis Espirituais do Sucesso e em consonância com os costumes da cultura internacional de solteiros, prega contra a ideia de que o amor exija algum tipo de sacrifício. Quão comum é essa crença, ao menos nas nações ocidentais desenvolvidas. “Eu achei que seria maravilhoso”, dizemos, “e por um tempo foi maravilhoso, mas então começou a ser terrível, por isso fui embora.” Nossa pregação — muitas vezes justificada — contra a “co-dependência” é usada com frequência demais para encobrir o fato de que tendemos a considerar que nossos relacionamentos, como o restante das coisas em que investimos, existem simplesmente para satisfazer nossas expectativas. Se aquilo que desejávamos do relacionamento não se realiza imediatamente, devolvemos o “produto” como faríamos com uma mercadoria defeituosa. “Se não funciona, por que ficar com isso?”, dizemos a nós mesmos. “Por que deveriam esperar que eu gastasse meus próprios recursos para consertar algo que deveria ter sido melhor feito desde o início? Não é minha função arrumá-lo; o que quero é um substituto.” Nas palavras de “Padre Sánchez”:

“O papel do amor tem sido mal compreendido há muito tempo. O amor não é algo que devamos fazer para sermos bons ou para tornar o mundo um lugar melhor por algum tipo de responsabilidade moral abstrata, ou porque devemos abrir mão do nosso hedonismo. Conectar-se com a energia se sente primeiro como excitação, depois como euforia e, então, como amor. Encontrar energia suficiente para manter esse estado de amor certamente ajuda o mundo, mas ajuda mais diretamente a nós mesmos. É a coisa mais hedonista que podemos fazer.”

O amor, em outras palavras, é um “barato”. Nada tem a ver com serviço compassivo (agape), muito menos com apreço e devoção à unicidade da pessoa do outro (amor); é uma forma ou nível de energia. Aqui vemos de novo a tendência panteísta de acreditar que a energia está em um nível de ser mais elevado do que a pessoalidade. É verdade que, se o fluxo de energia vital se esgota, a nossa própria pessoalidade e a dos outros fica abafada. Mas isso se dá porque a energia vital é a expressão-campo da pessoalidade, a shakti dela, não um substituto para ela. Em termos hindus, não há Prakriti (matéria/energia primordial) sem Purusha (o “Pessoa” divina interior); e a nossa própria pessoalidade única, bem como a dos outros, é a manifestação mais direta do Divino em nós. Substituir a energia de “se sentir bem” por uma pessoalidade desenvolvida, bem como por autossacrifício, formação de caráter, empatia e todas as demais coisas que servem a essa pessoalidade — e que, só elas, tornam possível o mundo do amor humano maduro e dos relacionamentos adultos — é chegar perigosamente perto de reduzir o amor humano à atração sexual, ou a outras formas mais sutis de atração, igualmente impessoais e efêmeras.

A co-dependência não é “relacionamento demais”, mas uma falha em se relacionar com o outro como pessoa real. Meu ego vê o outro como parte de mim, e o outro faz o mesmo, produzindo uma confusão de identidades. Não há relação nem polaridade, porque não há definição pessoal, apenas um campo impessoal de energia psíquica, cheio de expectativas e desejos semi-conscientes. Tal campo às vezes pode parecer “espiritual”, porque a falta de definição pessoal amacia a aresta dura do ego. Mas o ego continua ali, tanto mais perigoso por estar menos focado e menos visível.

Segundo A Profecia Celestina, a co-dependência é universal; como diz a personagem “Karla” (p. 195): “Todos somos co-dependentes, e todos estamos saindo disso agora.” Ela descreve o relacionamento “comum” entre homem e mulher como “uma luta de poder”. “Sempre nos perguntamos”, diz ela, “o que faz o êxtase e a euforia do amor acabarem, de repente se transformarem em conflito, e agora” — graças ao misterioso Manuscrito descoberto nas selvas peruanas — “nós sabemos.” Ela continua:

“Quando começamos a evoluir, passamos automaticamente a receber nossa energia de sexo oposto (…) do (…) universo. Mas (…) se aparece outra pessoa que oferece essa energia diretamente, podemos nos cortar da fonte verdadeira (…) e regredir (…). Até aprendermos a evitar essa situação, andamos por aí como um círculo meio completo. Sabe, parecemos a letra C. Ficamos muito suscetíveis a uma pessoa do sexo oposto, outro círculo meio completo, aparecer e juntar-se a nós — completando o círculo dessa maneira — e nos dar uma explosão de euforia e energia que parece a plenitude produzida por uma conexão plena com o universo. Na realidade, só nos juntamos com outra pessoa que também anda procurando sua outra metade do lado de fora.

“Veja, o problema com essa pessoa completa, esse O, que ambos pensam ter alcançado, é que foram precisas duas pessoas para fazer essa pessoa inteira, uma fornecendo a energia feminina e a outra, a masculina. Essa pessoa inteira, por conseguinte, tem duas cabeças, ou egos. Os dois querem comandar a pessoa inteira que criaram e, assim, como na infância, os dois querem mandar no outro como se o outro fosse eles mesmos. Esse tipo de ilusão de completude sempre desaba em luta de poder. No fim, cada pessoa tem de considerar a outra como garantida e até invalidá-la para poder conduzir esse eu inteiro na direção que quer seguir. Mas, é claro, isso não funciona, pelo menos não mais. Talvez no passado um dos parceiros estivesse disposto a submeter-se ao outro — normalmente a mulher, às vezes o homem. Mas estamos despertando agora. Ninguém quer mais ser subserviente a ninguém.”

“(…) Adeus romance”, eu disse.

“Ah, ainda podemos ter romance”, respondeu Karla. “Mas primeiro temos de completar o círculo por conta própria. Temos de estabilizar nosso canal com o universo. Isso leva tempo, mas depois (…) podemos ter o que o Manuscrito chama de relacionamento superior. Quando então nos conectamos romanticamente com outra pessoa inteira, criamos uma superpessoa (…). Mas isso nunca nos desvia do caminho da nossa evolução individual.” (pp. 193–195)

Há muita verdade nesse quadro da co-dependência, que é uma das doenças psicológicas particulares do nosso tempo, em que todo o sistema do Mundo conspira contra qualquer coisa que lembre formação de caráter. Há verdade no diagnóstico, até certo ponto, mas tenho sérios problemas com o tratamento.

Para começar, o “universo” através do qual recebemos nossa “energia de sexo oposto” está cheio de outras pessoas, que mediam essa energia para nós. A criança criada por lobos não conseguirá relacionar-se muito bem com outros seres humanos, sejam ou não do sexo oposto. A única forma de aprender a se relacionar é relacionando-se.

Ver o “universo” como fonte primordial da relação sexual, e as pessoas concretas do sexo oposto como secundárias, é outro dos muitos efeitos devastadores do panteísmo, do culto à natureza e da idolatria da energia. Outra vez: não existe campo de “energia sexual” sem pessoas realmente sexuadas. Separar outras pessoas, tanto enquanto indivíduos quanto enquanto representantes de seu gênero, de seus arquétipos transpessoais na mente de Deus é transformá-las em ídolos do próprio ego; isso Redfield entende. Mas relacionar-se com “energias” transpessoais em vez de com pessoas reais também é idolatria — não de indivíduos, mas dos arquétipos. A primeira idolatria produz uma condição contraída, estagnada, “humana demais”, de energia esgotada; a segunda produz uma condição “divina demais” de inflação do ego, uma dispersão explosiva da alma.

“Karla” descreve o relacionamento co-dependente como “uma pessoa inteira” com “duas cabeças”. Mas, é claro, não se trata de uma pessoa inteira, mas de uma massa de ilusões, identificações, projeções e autocontradições. E saber se tal relacionamento poderá amadurecer com o tempo, ou se é melhor, em última instância, que os parceiros o dissolvam e entrem em outras relações depois de terem crescido um pouco, só pode ser respondido caso a caso; não há regra geral. Mas, se algo é certo, é que uma pessoa não pode “completar o círculo” que lhe permita relacionar-se com os outros “sozinha”. Relação só se aprende relacionando-se.

As pessoas podem esperar a vida inteira até estarem “completas” o bastante para ter um relacionamento significativo e nunca chegar lá, porque estão tentando tornar-se egos narcisistas perfeitos, hermeticamente selados, sem necessidades humanas — e quem quer relacionar-se com alguém assim? Uma pessoa desse tipo também será incapaz de submeter-se ao outro com dignidade, assim como de aceitar a submissão do outro com justiça e graça, porque o ego narcisista fraco nunca se submete: apenas se identifica e manipula. Certamente a pessoa irremediavelmente co-dependente faria bem em tirar um sabático de relacionamentos íntimos, interromper o ciclo de identificação, autodestruição e manipulação, e aprender que há mais na vida do que um parceiro sexual. Mas se o co-dependente tentar esperar até tornar-se totalmente autossuficiente — em outras palavras, até seu ego tornar-se Deus — antes de entrar em um relacionamento de amor, então que espere muito.

Como seres humanos encarnados, vivemos num mundo relativo, o que significa que, como criaturas — ainda que não como Nomes de Deus — somos fundamentalmente incompletos. Precisamos uns dos outros, e assim deve ser. Sem essa necessidade, a sociedade humana seria impossível. Só uma arrogância luciferina desejaria negar os limites inerentes da nossa condição de criatura. Essa arrogância, no entanto, é um traço comum da psique coletiva destes últimos tempos, porque, na medida em que Deus deixa de ser real para nós, devemos projetar a perfeição que pertence só a Ele ou sobre o universo (no culto materialista da natureza), ou sobre os relacionamentos humanos (na co-dependência), ou sobre a pseudossuficiência (no narcisismo).

Quando Jesus disse: “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”, não nos estava mandando tentar alcançar perfeição no plano psíquico, mas reconhecer que a verdadeira perfeição é “celeste” ou celestial, que é uma realidade espiritual, não psíquica, pois “quem de vós, com todas as suas preocupações, pode acrescentar um côvado à sua estatura?”. Ao reconhecer os limites inerentes da psique, somos conduzidos a reconhecer o “Pai interior” que a transcende, a perfeição de Deus que, embora seja outra que tudo aquilo com que nos definimos, é entretanto o nosso verdadeiro Ser: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo é que vive em mim.” E, se percebemos que a completude está somente em Deus, não colocaremos nossos relacionamentos humanos sob o estresse impossível de exigir que sejam completos, mas os entenderemos como incompletos por natureza e, portanto, como oportunidades de desenvolver as virtudes da paciência, da compaixão, da bondade amorosa, da cortesia, da coragem e do autorrespeito, como canais para a expressão do Amor Divino no mundo humano. Pelas virtudes, a psique humana atinge o mais alto nível de desenvolvimento, e assim se conforma, até o limite de sua capacidade, à sua Fonte espiritual.

Existe algo como o “relacionamento superior”; Redfield está certo quanto a isso. Não há alquimia espiritual maior do que um matrimônio amoroso vivido conscientemente como parte do caminho espiritual. Mas esse romance superior, ou matrimônio espiritual, não é uma união perfeita de dois indivíduos perfeitamente autossuficientes, e sim uma relação forjada nas chamas da subserviência mútua — em oposição a um padrão fixo de domínio-e-submissão — em que cada parceiro, muitas vezes superando grande resistência, adora a Deus na pessoa do outro. Só que, como “Karla” diz, “ninguém quer mais ser subserviente a ninguém”, e é por isso que conflitos instáveis de ego substituíram, como “norma” na sociedade contemporânea, os matrimônios estáveis.

O romance espiritual é a veneração mútua do outro como símbolo vivo do Eu Divino — e não, como na co-dependência, a idolatria recíproca do ego na pessoa do outro. Não é algum tipo de fantasia sexual glamourosa e arquetípica para dois, como em grande parte do que veio a ser chamado de “movimento da sexualidade sagrada”, mas o reconhecimento dos arquétipos transpessoais de gênero em si mesmo e no outro. E, como esses arquétipos de gênero não são algo que o ego possa possuir, não podem ser corporificados mediante a inflação da personalidade até o nível arquetípico, mas somente mediante uma humilde submissão àquilo que transcende a personalidade por completo.

Deixando de lado as deturpações do amor, passemos agora a examinar as deturpações estreitamente relacionadas da religião e da espiritualidade.

Na p. 106, Redfield deixa claro que concebe Deus — ou, melhor, aquilo em que acredita em vez de Deus — como “energia de outra fonte — uma fonte que, um dia, aprenderemos a captar à vontade”. Como Deepak Chopra, James Redfield vê o Divino como uma energia passiva e quase inconsciente que pode ser “captada” como qualquer outro recurso natural. E sou sempre eu, sempre o ego individual, quem faz essa captação. Qualquer ideia de que essa “energia”, em relação a nós, possa possuir uma intenção consciente própria é vista como superstição cristã primitiva. Que Ela pudesse decidir captar a nós, em vez de sermos nós a captá-La, jamais lhe passa pela cabeça. Afinal, diz a mente da Nova Era, ninguém quer mais ser subserviente a ninguém — e, se a subserviência voluntária a outro ser humano já é problema, imagine quão terrível e antinatural seria ser subserviente ao próprio Absoluto!

No quinto capítulo de A Profecia Celestina, o narrador tem aquilo que identifica como uma experiência mística. Trata-se, porém, de uma experiência que quase nada tem em comum com o relato universal dos místicos e contemplativos das religiões e tradições sapienciais do mundo ao longo da história. Estimulado pelo medo de ser capturado ou morto por soldados perseguidores que tentam suprimir o Manuscrito, ele experimenta (1) que a Terra é realmente uma esfera, que o espaço sideral existe abaixo de seus pés tanto quanto acima de sua cabeça; (2) uma identificação do mundo natural como parte de seu corpo; (3) o panorama da evolução cósmica e biológica, do Big Bang até o homem; e (4) a percepção de que a evolução continua na consciência dos seres humanos e tem algo a ver com coincidências sincrônicas.

A autêntica experiência mística é atemporal. Baseia-se num profundo senso de relação com — ou absorção em — uma ordem superior de Realidade. Em sua forma introvertida, transcende inteiramente o mundo material, ao passo que, em sua forma extrovertida, transfigura esse mundo, produzindo uma visão da dimensão material como manifestação simbólica de uma Realidade superior que transcende espaço, tempo, matéria e energia. A visão do narrador, porém, é simplesmente a de um horizonte mais amplo de espaço, tempo, matéria e energia; não é, de forma alguma, mística. Além disso, ver os seres humanos como flor de um processo evolutivo e vanguarda de um desenvolvimento evolutivo futuro é identificar o indivíduo como o nível mais elevado de ser; mas, se nada é considerado mais alto do que o indivíduo, esse indivíduo não pode relacionar-se com uma Realidade superior nem ser nela absorvido. Outra vez, portanto, a experiência do narrador não pode ser chamada de mística.

É certamente verdade, segundo a filosofia esotérica, que a ordem criada retorna à sua Fonte divina por meio do desabrochar espiritual consciente dos seres sencientes individuais. Mas essa “evolução”, esse desdobramento do indivíduo por meio da transcendência do ego auto-identificado, não é continuação do processo cosmogônico, e sim uma reversão desse processo. Em vez de uma maior elaboração de formas criadas, é uma dissolução progressiva dessas formas, conduzindo à sua reintegração em seus respectivos protótipos em níveis cada vez mais elevados de ser. A palavra “evolução” significa um “desenrolar”, um “virar para fora” daquilo que foi enrodilhado ou voltado para dentro de si mesmo para produzir a consciência centrada no ego e o mundo das formas materiais. Visto do ponto de vista da manifestação, a criação é uma “involução”, um processo de auto-envolvimento, enquanto a “evolução” é o processo contrário, pelo qual a criação é desenrolada, dissolvida, e a Unidade original desvelada. Em vez de “levar adiante a evolução do universo rumo a níveis cada vez mais altos de complexidade vibracional” (p. 117), na verdade estamos ou conduzindo-o a níveis cada vez mais elevados de simplicidade, ou ajudando-o a degenerar em complexidade e auto-envolvimento cada vez maiores.

O homem é a forma de vida mais complexa da terra, porque é, em certo sentido, a síntese e o epítome de todas as outras formas. Se, como nos dizem a Bíblia e o Alcorão, Adão nomeou os animais, isso se deve ao fato de ele conter em si mesmo todos os nomes de Deus dos quais as formas naturais do universo são projeções. Ele pôde nomeá-los porque, sendo Homem, já conhecia seus nomes. Assim, do ponto de vista esotérico, o propósito da complexidade humana é tornar possível que retornemos, em nome de todas as coisas, à simplicidade da nossa Origem. Depois de cruzada certa linha, a complexificação ulterior da vida humana começa a destruir essa própria vida e o mundo natural ao seu redor; é óbvio que cruzamos essa linha há algum tempo.

Quando a criação da vida chega ao ser senciente autoconsciente, o retorno à Fonte já começou; como se lê no Alcorão, “a Ele [Allah] retorna toda a questão”. Mas, embora esse retorno seja em última análise inevitável, o ser senciente autoconsciente pode regressar à sua Fonte por uma de duas vias: a via da simplificação ou “recordação”, que conduz à salvação da alma e à sua reintegração em seu protótipo, ou a via da complexificação ulterior ou “dispersão”, levando à fragmentação da alma, à destruição da vida e ao retorno final à Fonte, após um éon de sofrimento, pela via do fogo penitencial. Todo o propósito da religião, enquanto projeção da Misericórdia de Deus neste mundo, é definir esses caminhos, mostrando-nos como escolher o primeiro e evitar o segundo.

O hábito de ver a complexificação sempre crescente como uma ascensão a níveis ontológicos mais altos — erro sobre o qual se baseia todo o sistema de Teilhard de Chardin, de onde Redfield provavelmente o tomou — é inseparável da visão de mundo do materialismo. Visto do ponto de vista da matéria, maior complexificação é ser mais elevado. Visto do ponto de vista da consciência, o ser mais elevado é alcançado por meio da simplificação, da recordação, do recolhimento do que se dispersou. É isso que a meditação busca. A mente que retorna à simplicidade, ao que os taoístas chamam de “bloco não talhado”, é suficientemente calma para testemunhar vastidões de complexidade cósmica; a mente agitada só consegue testemunhar algumas obsessões emaranhadas e repetitivas. Mas a paz que permite à mente recolhida testemunhar a complexidade das coisas também lhe permite conhecê-las em sua simplicidade primordial, como faces do Uno. É assim que todas as coisas retornam à sua Fonte: por meio da purificação da consciência.

Na p. 176, Redfield ergue, como espantalho representando a posição religiosa tradicional, um “Padre Costous”, que apresenta as razões da Igreja para se opor ao Manuscrito:
— “Você acha que o Manuscrito está minando sua religião?”, perguntei gentilmente a Costous. Ele me olhou com desdém. “Não apenas a nossa religião; a religião de todos. Você acha que não há um plano para este mundo? Deus está no controle. Ele nos atribui o destino. Nosso trabalho é obedecer às leis estabelecidas por Deus.
A evolução é um mito. Deus cria o futuro do jeito que quer. Dizer que os humanos podem fazer a si mesmos evoluir tira a vontade de Deus do cenário. Isso permite que as pessoas sejam egoístas e separadas. Elas pensarão que sua evolução é a coisa importante, não o plano de Deus. Tratarão umas às outras ainda pior do que fazem agora.”

Dizer “Deus (…) nos atribui o destino (…); Deus cria o futuro do jeito que quer (…)" é, essencialmente, negar o livre-arbítrio. Mas a Igreja Católica ensina que a vontade humana é livre. Nas palavras de Santo Agostinho em A Cidade de Deus: “Afirmamos tanto que Deus conhece todas as coisas antes que aconteçam quanto que nós, por nosso livre-arbítrio, fazemos tudo aquilo que sentimos e sabemos que não aconteceria sem a nossa deliberação.” Assim, Redfield se engana aqui.

Além disso, quando faz seu “Padre Costous” opor “os humanos fazerem a si mesmos evoluir” à “vontade de Deus”, está deixando a “evolução” pessoal representar aquilo que a teologia católica tradicional chama de “boas obras”, e a “vontade de Deus” representar a Graça divina — como se o catolicismo ensinasse que a alma é salva somente pela graça, ou pela fé como dom da graça. Mas o catolicismo de fato ensina que a alma é salva pela fé e pelas obras, que labutar por nossa própria “evolução” espiritual — leia-se “santificação” — com base na fé concedida por Deus e sob a influência da Graça divina não é apenas possibilidade, mas dever. Por outro lado, o “Padre Costous” está inteiramente certo ao dizer que, se acreditarmos poder “fazer” a nós mesmos desenvolver espiritualmente fora do contexto da vontade e do plano de Deus, nos tornaremos egoístas e separados. Isto acontece ser uma das “leis de Deus”, que não são decretos arbitrários de algum tirano cósmico, como Redfield parece pensar, mas simplesmente a natureza das coisas. A “cultura do narcisismo”, para usar o nome de Christopher Lasch, é uma consequência da ignorância de massa dessa lei em particular.

Nas pp. 235–236, o sacerdote progressista e pró-Manuscrito “Padre Sanchez” tem a seguinte troca com o conservador “Cardeal Sebastian”:
[Sebastian]: “Nós sabemos o que é espiritualidade, Padre Sanchez.”
“Sabemos? Acho que não. Passamos séculos falando sobre isso, visualizando isso, professando nossa crença nisso. Mas sempre caracterizamos essa conexão como algo que o indivíduo deve fazer para evitar que algo ruim aconteça, em vez de adquirir algo bom e tremendo. O Manuscrito descreve a inspiração que surge quando estamos verdadeiramente amando os outros e evoluindo nossas vidas adiante.”

James Redfield aparentemente acredita, a julgar por esta passagem, que o cristianismo não produziu santos, místicos, sábios, que tudo não passou de um exercício acadêmico ou fantasia de desejo, embora durando dois milênios. Mas é claro que o cristianismo ensinou desde o início que o amor é a mais alta virtude; produziu tanto paradigmas de amor humano, como São Francisco ou Madre Teresa, quanto derramou mais sangue, suor e tesouro em obras concretas de misericórdia do que a Nova Era jamais fará, mesmo que tornasse o serviço aos pobres, doentes e desabrigados sua primeira prioridade — o que dá poucos sinais de fazer. E dizer que o cristianismo não tinha a mínima noção de que a espiritualidade poderia ser algo “bom e tremendo” até que este Manuscrito fictício aparecesse é, obviamente, absurdo. Todo o testemunho da Escritura, de santos, místicos e gigantes espirituais do cristianismo o desmente plenamente.

Na p. 236, “Sanchez” e “Sebastian” discutem sobre evolução espiritual:
[Sanchez]: “O Manuscrito descreve o progresso das gerações sucessivas como uma evolução da compreensão, uma evolução rumo a espiritualidade e vibração mais elevadas. Cada geração incorpora mais energia e acumula mais verdade e então passa esse status às pessoas da próxima geração, que o estendem ainda mais.”
“Isso é absurdo”, disse Sebastian. “Só há um caminho para se tornar mais espiritual, e é seguindo os exemplos nas Escrituras.” “Exatamente!”, disse Sanchez. “Mas, de novo, quais são os exemplos? Não é a história das Escrituras a história de pessoas aprendendo a receber a energia e a vontade de Deus interiormente?
Não foi isso que os primeiros profetas levaram o povo a fazer no Antigo Testamento? E não é essa receptividade à energia de Deus interior o que culminou na vida do filho de um carpinteiro, a ponto de dizermos que o próprio Deus desceu à Terra?
“Não é a história do Novo Testamento”, ele continuou, “a história de um grupo de pessoas sendo preenchidas com algum tipo de energia que as transformou? O próprio Jesus não disse que o que ele fez nós poderíamos fazer também, e mais? Nunca levamos essa ideia a sério — até agora. Só agora estamos apreendendo do que Jesus falava, para onde ele nos conduzia. O Manuscrito identificou o que ele quis dizer! Como fazer!”

Em outras palavras, sempre tivemos a teoria; o que faltava era o manual de instruções. (Como mais poderia uma sociedade tecnológica ver a espiritualidade, senão como um processo de superar dificuldades técnicas?) Mas devemos crer que, onde milhares de vidas heroicas e santas dedicadas à oração, meditação e serviço fracassaram, a superação da co-dependência, a apreciação de coincidências e a visão de auras ao redor de plantas terão sucesso? Devido à ignorância cultural generalizada sobre a verdadeira espiritualidade — para não falar das nossas próprias tradições históricas —, muitos aparentemente creem que sim. E certamente a história das Escrituras tem a ver, em um nível, com receber a energia e a vontade de Deus interiormente. Mas a ideia de progresso espiritual coletivo através das gerações não faz parte dessa história, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Do Éden à história humana houve uma queda. Do governo do povo escolhido por profetas e juízes ao governo por reis, outra. E o Novo Testamento também, mesmo deixando de lado o Apocalipse e em comum com todas as demais Escrituras tradicionais, prediz não evolução, mas degeneração:

Surgirão falsos Cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos.
Mt 24,24

Sabe, porém, isto: nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis.
Os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, soberbos, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios,
sem afeição natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, inimigos dos bons,
traidores, atrevidos, orgulhosos, amigos dos prazeres mais que amigos de Deus;
tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela…
2Tm 3,1–5

Quanto à previsão de Jesus de que seus seguidores fariam obras ainda maiores do que ele, o fato de que um pequeno grupo de devotos proscritos de um mestre executado viria a fundar uma religião que suplantaria o império mais poderoso da Terra cumpre claramente essa previsão. E qualquer um que tenha alcançado a santificação, como Jesus, venceu a morte.

Apesar de tentar criar um panorama espiritual “alternativo”, A Profecia Celestina não é tanto um livro de ensinamentos espirituais quanto uma ideologia espiritualizada concebida, consciente ou inconscientemente, para justificar e glamurizar a economia global emergente. Nas pp. 225–227, a personagem “Dobson” diz:
“A próxima mudança cultural será a automação da produção de bens (…) liberando o tempo de todos para que possamos perseguir outros empreendimentos (…) nossos dons (…) devem ir para as pessoas que nos deram verdade espiritual. Quando pessoas entram em nossas vidas no momento certo para nos dar as respostas de que precisamos, devemos lhes dar dinheiro. É assim que começaremos a complementar nossas rendas e a sair das ocupações que nos limitam. À medida que mais pessoas se engajarem nessa economia espiritual, iniciaremos uma verdadeira mudança para a cultura do próximo milênio. (…) Pagar aos outros por seus insights iniciará a transformação e, então, à medida que partes cada vez maiores da economia forem automatizadas, a moeda desaparecerá.”

Assim, a era da informação é identificada com uma nova espiritualidade milenar. Não importa que a globalização continue a alargar o fosso entre ricos e pobres, ou que muitos empregados pela economia global da informação presentemente estejam trabalhando 60 horas por semana ou mais, ou que agora sejam necessários dois salários para manter um padrão de vida de classe média, “libertando”, assim, nossos filhos para serem criados pela televisão e socializados por gangues. E não importa que milhões, cujo tempo foi “liberado” pela automação, agora estejam sem teto. (A taxa de desemprego, lembremos, é a porcentagem de trabalhadores recentemente empregados que estão presentemente sem emprego; ela nada diz sobre o número crescente de não-trabalhadores que não têm um emprego há anos.) E como pagar às pessoas por verdade espiritual é fundamentalmente diferente da venda de indulgências no catolicismo pré-reforma? Se você paga por um dom, ele deixa de ser dom e vira produto. Nas palavras de Jesus, “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”. A forma correta de gratidão por um insight espiritual é retribuir ao doador com um insight seu, ou transmitir o insight original a outro que seja digno dele, quando o lugar, o tempo e as circunstâncias forem adequados. E a forma mais elevada de gratidão é reconhecer que todo insight vem de Deus e, então, trabalhar para realizar esse dom de insight na própria vida.

Aqui vemos como a cultura dos workshops Nova Era — o comércio de “serviços espirituais”, do qual A Profecia Celestina, com suas fitas, grupos, redes e oficinas complementares, é exemplo primário — é simplesmente um setor da economia de serviços baseada em informação nas nações desenvolvidas. Talvez seja só isso que a Nova Era é. Mas, se for verdade, qual é o significado disso?

René Guénon, no capítulo 16 de O Reino da Quantidade, intitulado “A Degenerescência da Moeda”, mostra como o dinheiro perdeu progressivamente seu conteúdo qualitativo ou simbólico, degenerando na direção da quantidade pura — fato apenas mais confirmado pelo atual sistema eletrônico de transferência de fundos, em que “dinheiro” já não é nem moeda nem papel, mas simplesmente um número registrado. Com base nessa tendência, e no princípio metafísico de que algo como uma “quantidade pura” absolutamente não pode existir, ele prediz, como “Dobson”, que o dinheiro desaparecerá. Mas, no capítulo 39, “A Grande Paródia ou a Espiritualidade Invertida”, onde caracteriza o reino do Anticristo como “uma falsa ‘restauração espiritual’ (…) uma espécie de reintrodução da qualidade em todas as coisas” (p. 326), ele prossegue dizendo (p. 359, n. 2):
“O próprio dinheiro, ou aquilo que tomar o seu lugar, voltará a possuir um caráter qualitativo desse tipo, pois está dito que ‘ninguém poderá comprar nem vender senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome’ (Ap 13,17), e isso implica o uso efetivo, em ligação com o dinheiro, dos símbolos invertidos da ‘contratradição’ (…)”.

Não é, por certo, pecado — embora possa ser ocasião de pecado — vender livros que se escreveu ou objetos de arte que se produziu para transmitir ideias espirituais. Mas a quantificação monetária direta do próprio insight, tal como propõe James Redfield, prenuncia o desenvolvimento que René Guénon prevê, sobretudo porque Redfield também fala do desaparecimento da moeda. Insight espiritual é puramente qualitativo, literalmente “impagável”.

Além disso, segundo os ensinamentos tradicionais, o conhecimento espiritual pode ser dado, mas não pode ser adquirido. A tentativa de comprar coisas sagradas e, assim, torná-las quantitativas — baseada no erro intelectual de que é possível comprar coisas sagradas — é conhecida no cristianismo como o pecado da “simonia”, nomeado a partir do mago e heresiarca gnóstico Simão Mago, que ofereceu comprar o poder milagroso do Espírito Santo de Simão Pedro em Atos 8,9–24, como se fosse uma espécie de segredo profissional ou técnico. Na medida em que a cultura da informação tenta quantificar o insight espiritual com base monetária, ela incorre precisamente em simonia. E, sendo o insight essencialmente qualitativo, não quantitativo — fato que a cultura da informação parece ter sido criada justamente para negar —, seu uso como forma de moeda confirma a previsão de Guénon de que “o dinheiro (…) ou o que vier a ocupar seu lugar, voltará a possuir [um] caráter qualitativo [invertido]” sob o regime do Anticristo.

Ao caracterizar A Profecia Celestina como um precursor desse regime, não estou afirmando que James Redfield seja (ou não) o promotor consciente de uma agenda espiritualmente subversiva, mas apenas que ele é vítima — e também beneficiário — de uma falsa esperança.

V. Ter vs. Comer:
O Hinduísmo Empreendedor de Deepak Chopra

Na idade de Kali, só a riqueza será o critério de linhagem, moralidade e mérito (…) a falta de riquezas será o único teste de impiedade.
Bhagavata Purana

Deepak Chopra, médico holístico, outrora seguidor de Maharishi Mahesh Yogi e CEO do Chopra Center for Well-being, é talvez o professor de maior sucesso no mundo ocidental, e além dele, entre aqueles que não tanto pregam princípios metafísicos falsos, mas aplicam princípios verdadeiros a objetos falsos — no caso do Dr. Chopra, o sucesso mundano. Não disputo sua perícia como médico, nem o truísmo comum da Nova Era de que uma cura da alma às vezes pode curar também o corpo, até certo ponto. O que contesto é a identificação estrita da salvação ou iluminação com o bem-estar físico ou mesmo emocional. A onipotência de Deus Lhe dá o poder de curar qualquer doença. Também Lhe dá o direito de exigir de nós tudo quanto possuímos, incluindo a saúde física, requerer que não coloquemos “deuses” diante d’Ele, mas O escolhamos somente. Jesus curou lepra e cegueira congênita; chegou a ressuscitar mortos. Mas também convocou seus seguidores a enfrentarem o martírio, a sacrificarem o apego ao bem-estar em nome de algo infinitamente mais alto, a “tomar a sua cruz e segui-Lo”.
Em
As sete leis espirituais do sucesso, o Dr. Chopra faz a seguinte afirmação para o seu método:
“Quando esse conhecimento é incorporado à sua consciência, ele lhe dará a capacidade de criar riqueza ilimitada com facilidade sem esforço e de experimentar sucesso em todo empreendimento. (…) Sucesso é a capacidade de realizar seus desejos com facilidade sem esforço. (…) A abundância material, em todas as suas expressões, é uma daquelas coisas que tornam a viagem mais agradável. Mas sucesso também inclui boa saúde, energia e entusiasmo pela vida, relacionamentos gratificantes, liberdade criativa, estabilidade emocional e psicológica, um senso de bem-estar e paz de espírito.” Em outras palavras, o Dr. Chopra identifica estritamente a realização de Deus com o bem-estar material. Mas isso, é claro, é idolatria. Quando o grande santo indiano Ramakrishna estava morrendo de câncer de garganta, seus discípulos imploraram que ele se curasse com o seu poder de ioga. Sua resposta foi: “Mas é isso que a Mãe quer. Como posso eu querer outra coisa?”

Tratemos, uma por uma, das sete leis de Deepak Chopra:

1.      A Lei do Potencial Puro
“A fonte de toda a criação é a pura consciência. (…) Pura potencialidade buscando expressão do não-manifesto para o manifesto. E quando percebemos que nosso verdadeiro Si mesmo é de pura potencialidade, alinhamo-nos com o poder que manifesta tudo no universo.”
A primeira lei, em sua maior parte, é verdadeira como está formulada. Contudo, o Dr. Chopra prossegue dizendo que “quando você descobre sua natureza essencial e sabe quem realmente é, nesse próprio saber está a capacidade de realizar qualquer sonho que tenha, porque você é a possibilidade eterna, a potencialidade imensurável de tudo o que foi, é e será” (p. 10). Isso só pode significar que Deus, que é seu verdadeiro Si, tem a capacidade de realizar qualquer sonho que Deus tenha. Para ver a verdade disso, basta apontar para o universo. Mas assim que a palavra “você” é definida por seus desejos, como aquele que carece e, portanto, deseja abundância material, boa saúde, energia e entusiasmo pela vida, relacionamentos gratificantes, liberdade criativa, estabilidade emocional e psicológica, um senso de bem-estar e paz de espírito, então já não estamos falando de Deus, mas de um ser limitado por matéria, energia, espaço, tempo e personalidade — tudo partes daquele Véu sobre o rosto de Deus criado pelo próprio desejo. Estamos na presença de um ente contingente que poderia nunca ter nascido, nasceu e inevitavelmente morrerá. Esse ente não possui potencialidade ilimitada, assim como o Oceano não pode ser contido numa xícara. É apenas uma expressão, selecionada dentre a potencialidade infinita, do poder criativo de Deus.

O Dr. Chopra reivindica para esse poder baseado no conhecimento do Si que “ele atrai pessoas até você, e também atrai as coisas que você quer. Ele magnetiza pessoas, situações e circunstâncias para apoiar seus desejos. Isso também é chamado de apoio das leis da natureza. É o apoio da divindade; é o apoio que vem de estar em estado de graça” (p. 13). Ora, é certamente verdade que o Si atrai todas as coisas para si; como ensina o Alcorão, todas as coisas retornam a Allah. Uma vez criado um vazio no campo do egotismo, que em termos subjetivos é o autoconceito e em termos objetivos o mundo da “realidade ordinária”, a energia corre para preencher esse vazio e unir-se ao radiante atman, o Si Divino nele. Se, usando a terminologia tântrica, chamarmos esse Si Divino de “Shiva”, então a energia atraída por Ele, que é o campo universal de Sua própria autoexpressão, é Sua “Shakti”. Shakti é a energia do desejo universal, desejo no nível do Divino, como no hadith em que Allah diz: “Eu era um tesouro oculto e desejei ser conhecido, então criei o universo para que Eu fosse conhecido.” Mas a única maneira de acessar o nível do desejo de Deus é transcender os próprios desejos; nas palavras de Jesus: “Não se faça a minha vontade, mas a Tua.” A Shakti divina, em outras palavras, não sustenta os seus desejos pessoais, mas é manifestação do “desejo” do próprio Deus, Seu esplendor infinito auto-manifestante. Por outro lado, nossos desejos mais verdadeiros fazem parte do que Deus deseja para nós, pois são aspectos da forma única na qual Ele quis nos criar. É esse nível de desejo que se cumpre quando entramos no campo do esplendor auto-manifestante de Deus. Mas o único modo de acessar esse nível de desejo é renunciar a tudo o que podemos imaginar desejar para nós mesmos e repousar no que o próprio Deus deseja para nós. Não podemos usar o Infinito para satisfazer as demandas do finito; não podemos ter o bolo e comê-lo. Se tentarmos assim mesmo, e parecer estar funcionando, estamos na verdade no processo de “gastar o nosso bom karma”, trocando nosso potencial de união libertadora com Deus pelos bens materiais e psicológicos deste mundo. Nosso ego não foi transcendido, apenas se tornou mais sutil — e as consequências para qualquer ego que acredita poder usar o Absoluto para satisfazer seus próprios desejos minúsculos são que ele passa a ver a si mesmo como o Absoluto, ponto em que o rosto do Absoluto se vela. Quando isso acontece, a energia da abundância divina é cortada. Em termos judaico-cristãos, isso é conhecido como “a queda de Lúcifer”. Segundo a doutrina budista, aquelas almas que, tendo acumulado grande montante de mérito espiritual, decidem gastá-lo na realização “bem-sucedida” do desejo em vez da libertação final do desejo, que desperdiçam seu bom karma em farras intelectuais, emocionais e materiais aparentemente não seguidas — até muito depois — por qualquer ressaca séria, dizem-se estar no Deva-loka, o reino dos deuses longevivos que habitam em ignorância bem-aventurada. Mas mesmo que possam existir por milhares de éons nesse estado, ele finalmente chega ao fim; os mundos infernais abrem suas mandíbulas. E essas almas, tendo passado incontáveis éons deixando atrofiar suas faculdades espirituais sem o desafio de um karma difícil, não têm poder para escapar dessas mandíbulas — até muito, muito mais tarde. Nas palavras de Jesus, “não sairão daí até pagarem o último centavo.”

2.      A Lei da Doação
“O universo opera por meio da troca dinâmica. (…) Dar e receber são aspectos diferentes do fluxo de energia no universo. E, em nossa disposição de dar aquilo que buscamos, mantemos a abundância do universo circulando em nossas vidas.”
Essa lei também é mais ou menos verdadeira. Egotismo, de fato, pode ser definido como aquilo que obstrui o fluxo da energia vital. O Dr. Chopra prossegue: “Quanto mais você dá, mais você receberá, porque manterá a abundância do universo circulando em sua vida” (pp. 29–30); “Se, através do ato de dar, você sente que perdeu algo, então o dom não foi realmente dado e não causará aumento” (p. 30); “Se você quer alegria, dê alegria aos outros; se quer amor, aprenda a dar amor; se quer atenção e apreciação, aprenda a dar atenção e apreciação; se quer afluência material, ajude outros a tornarem-se afluentes materialmente” (pp. 30–31). Tudo isso é verdadeiro e vale ser repetido. Contudo, deixa muito por dizer. Para começar, o Dr. Chopra, embora recomende com acerto que cada ato de dar seja acompanhado de uma oração pela felicidade do recebedor, tende a manter tudo no nível da felicidade material. Esse nível, porém, não pode ser sustentado. Nosso dar e receber deve ou crescer na direção de ver que somente Deus é o Doador, e daí para a estação de nada desejar de Deus senão o próprio Deus, e finalmente para o conhecimento de que Deus, além de ser o único Doador, é também o único Recebedor; ou então decairá, na direção do apego a benefícios estritamente materiais, e terminará por reduzir o ato de dar a uma espécie de feitiço mágico para forçar o universo a entregar.

O que falta aqui é o sentido de que se é chamado a dar não apenas bens materiais, atenção, amor e felicidade, mas também todo o senso de identidade. Isto é outra maneira de dizer que é preciso aprender a dar não com garantia de retorno, mas completamente sem esperança de retorno. Só isso é doação verdadeira; todo o resto é compra e venda. Dar sem esperança de retorno é doar uma parte da própria identidade, incondicionalmente e para sempre. Mas nosso senso de identidade, que não quer morrer, raramente se rende sem luta, o que significa que muitas vezes se tem de passar pelo sentimento de ter “perdido algo” ao fazer um dom; é isso o que se entende por sacrifício. Jesus Cristo deu sua vida livremente, mas não sem sofrimento: “Se possível, afaste-se de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a Tua.” Ainda assim perdoou seus algozes; não guardou rancor, mas concluiu seu sacrifício e o entregou. Somente se esse sentimento de perda-de-identidade não é sacrificado por sua vez, mas retido como queixa contra o destino, é que o dom em questão “não foi realmente dado”.

O Dr. Chopra sustenta que “o dinheiro é realmente um símbolo da energia vital que trocamos e da energia vital que usamos como resultado do serviço que prestamos ao universo” (p. 28). “Como um rio, o dinheiro deve manter-se fluindo; caso contrário, começa a congestionar, a sufocar e estrangular a sua própria força vital” (p. 30). Isso é verdadeiro no plano dos ideais e é uma maneira expansiva e edificante de encarar o dinheiro. Mas todos sabemos quão imperfeitamente isso se aplica no plano dos fatos. Há exceções suficientes a essa regra neste mundo, mesmo deixando de lado os esquemas de marketing em pirâmide, para me fazer pensar duas vezes antes de contratar o Dr. Chopra como meu consultor financeiro. O universo pode, em certo sentido, ser uma economia de livre mercado, mas não está isento de boom e colapso. Justiça perfeita não é possível no plano da manifestação porque a própria manifestação é produto de um desequilíbrio primordial. Uma das consequências desse desequilíbrio é que até mesmo a intenção de saldar as dívidas kármicas gera mais karma. Só em Deus a justiça é perfeita e, por isso, desnecessária. Tomar menos do que Ele é permanecer em dívida; vender tudo o que se tem e comprar a Ele é cancelar tanto a dívida quanto o devedor. “Quem busca guardar a sua vida a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa, a encontrará.”

A doutrina do Dr. Chopra de que o dinheiro deve manter-se em fluxo é baseada no conceito hindu de vasor dhara, a “Corrente de Riqueza”, cuja continuidade é um dos resultados do Sacrifício védico. Essa Corrente, porém, não circula horizontalmente, de pessoa a pessoa, mas verticalmente, subindo do mundo humano ao mundo dos deuses na fumaça do Sacrifício, e retornando do mundo dos deuses ao mundo humano na forma de chuva, que simboliza todos os bens da vida concebidos como uma “chuva de bênçãos”. Para Deepak Chopra, passar coisas adiante claramente substituiu abrir mão das coisas. Essa tendência de interpretar horizontal e quantitativamente doutrinas sagradas originalmente concebidas em termos verticais e qualitativos é inseparável das mentalidades moderna e pós-moderna; é a origem, por exemplo, da doutrina da evolução, que substitui a hierarquia ontológica pelo desenvolvimento histórico.

O Sacrifício védico é de fato oferecido tanto pelo bem material quanto pelo espiritual do sacrificante, tanto neste mundo quanto no outro. O fruto material do sacrifício é que nem o sacrificante nem o seu povo morram de penúria; o fruto espiritual é o conhecimento direto de Deus. Mas, segundo Ananda Coomaraswamy,
“Essas distinções entre bens temporais e eternos correspondem àquela que é traçada com nitidez nos
Brahmanas entre um mero patrocínio ou desempenho dos ritos e uma compreensão deles; o mero participante assegura apenas o imediato, e o Compreensor (…) ambos os fins da operação.”
Ele assinala ainda que, de acordo com os
Brahmanas, “a vítima é representante do próprio sacrificante, ou, como dizem os textos, é o próprio sacrificante.” O Sacrifício védico é, portanto, chamado ātmayajña, “auto-sacrifício”. É incerto se Deepak Chopra realmente entende isso.

3.      A Lei do “Karma” ou de Causa e Efeito
“Toda ação gera uma força de energia que retorna a nós em igual espécie. (…) O que semeamos é o que colhemos. E quando escolhemos ações que trazem felicidade e sucesso aos outros, o fruto do nosso karma é felicidade e sucesso.”
Verdadeiro — desde que nos lembremos de que nem todos os frutos kármicos são colhidos nesta vida, e de que a definição de “bom karma” para uma pessoa dedicada à busca da felicidade é uma, e para outra dedicada à busca da libertação, outra. A qualidade do primeiro é a desejabilidade; a qualidade do segundo é tudo quanto conduza à libertação, seja dor ou prazer, boa saúde ou má saúde, afluência ou pobreza. O fruto do primeiro é a felicidade intermitente e temporária. O fruto do segundo é Deus, cuja bem-aventurança está além de toda limitação; não pode ser definida em termos do experienciador, do objeto experienciado ou mesmo da experiência. Chama-se “Bem-aventurança” não porque seja uma experiência, mas porque o direito, conquistado e concedido, de repousar em sua proximidade é o Paraíso.

Na p. 40, o Dr. Chopra diz:
“Somos fazedores de escolhas infinitas. A cada momento da existência, estamos naquele campo de todas as possibilidades onde temos acesso a uma infinidade de escolhas (…) a melhor maneira de maximizar o uso da lei kármica é tornar-se conscientemente ciente das escolhas que fazemos em cada momento.”
Há várias coisas erradas nessa afirmação. Para começar, o que há de tão maravilhoso em ter acesso a escolhas infinitas a cada momento? Três ou quatro alternativas já não são difíceis o bastante sem sermos confrontados com milhões?

Escolha infinita não é o mesmo que possibilidade infinita. O divulgador sufi Idries Shah observou certa vez que, em vez de liberdade de escolha, deveríamos aspirar à liberdade de escolha. Em vez de aplicar centenas de critérios da psicologia, sociologia, política, economia, biologia, filosofia, teologia etc. a cada nova escolha, não seria melhor se fôssemos tão certos da única coisa certa a fazer em qualquer momento que a escolha já não nos atormentasse? Estar “no Tao” não significa entrar num campo de escolhas infinitas; é antes a ação correta espontânea brotando da “consciência sem escolha”.

A ideia de “uma infinidade de escolhas” é essencialmente sem sentido e nasce de uma confusão entre a vontade humana e a Vontade de Deus. O infinito pertence somente a Deus, que está além de toda escolha, pois quer a atualização simultânea de toda possibilidade nas profundezas de Sua própria natureza, por Seu ato eterno de Auto-compreensão — embora não, é claro, dentro de um conjunto limitado de circunstâncias contingentes, como uma vida humana, uma era histórica ou um universo material. Deus não escolhe entre alternativas, Ele quer o que é — embora, do nosso ponto de vista condicionado e limitado, devamos experimentá-Lo dizendo sim a algumas coisas e não a outras. Como seres conscientes porém limitados, somos nós que somos confrontados com alternativas e, portanto, com escolhas. Nosso ponto de contato com o Infinito não está no mundo das alternativas, mas no mundo da Unidade. Há apenas uma escolha infinita que nossa vontade pode fazer: negar a si mesma e submeter-se à Vontade de Deus — permitir que Aquele, que está totalmente além da escolha, escolha por nós.

No caminho da submissão à Vontade de Deus, escolhas precisam, por certo, ser feitas. Permanece nossa responsabilidade escolher aquelas circunstâncias no mundo relativo que melhor sustentem essa Submissão, e aquelas ações que melhor expressem o que Deus nos ordena realizar nesse mesmo mundo relativo. Essas escolhas, contudo, não são infinitas, mas limitadas e, portanto, relativas — necessariamente, pois a relatividade é a essência da escolha. São os ecos da Unidade da Vontade de Deus no reino contingente e múltiplo de nossa vontade pessoal. Sem A submissão, sem a Única Escolha Infinita, não passa de impedimento.
Nas pp. 43–44, o Dr. Chopra fornece o critério segundo o qual as escolhas devem ser feitas:
“No momento em que você conscientemente faz uma escolha, preste atenção ao seu corpo e pergunte ao seu corpo: ‘Se eu fizer essa escolha, o que acontece?’ Se o seu corpo lhe enviar uma mensagem de conforto, essa é a escolha certa. Se o seu corpo enviar uma mensagem de desconforto, essa não é a escolha apropriada. (…) Para algumas pessoas, a mensagem de conforto e desconforto está na região do plexo solar, mas para a maioria das pessoas está na região do coração. (…) Só o coração conhece a resposta correta. A maioria das pessoas pensa que o coração é meloso e sentimental. Mas não é. O coração é intuitivo; é holístico, acessa o computador cósmico.”

Aqui temos uma enorme confusão de níveis. O que o “corpo”, o “plexo solar”, o “coração” nos dizem pode ser a verdadeira voz da consciência, do Intelecto Divino em nós. Também pode ser a voz do ego inconsciente, o “eu que ordena”. O Dr. Chopra pressupõe em seus leitores um nível de desenvolvimento espiritual que lhes permitiria distinguir uma coisa da outra. Mas tal “discernimento dos espíritos” é, na verdade, bastante raro, ao menos quando se trata de alguma certeza real. O “não” que muitas vezes sentimos no plexo solar pode ser a voz da vontade de Deus; esse chakra, entretanto, é notoriamente vulnerável aos ditames do eu que ordena, já que se relaciona com questões de poder pessoal, em particular com a resposta de luta-ou-fuga. E o “coração” intuitivo e holístico ao qual o Dr. Chopra nos pede que recorramos não está confiavelmente disponível à consciência da maioria das pessoas, embora possa desvelar-se em momentos imprevisíveis, apenas para ocultar-se de novo em seguida. Em suas camadas externas, o “chakra do coração” é o lugar de nossos sentimentos “mamíferos”: afeto, orgulho, coragem, tristeza. Só no nível mais profundo, ao qual se chega apenas por meio de uma Submissão radical, o verdadeiro “Coração espiritual” nos é acessível. E esse Coração está em um plano de ser vastamente superior à nossa capacidade, sempre imperfeita, de manipular leis cósmicas.

À primeira vista, o Dr. Chopra parece estar dizendo: “se é gostoso, faça.” Sua ideia do que é “gostoso” é obviamente muito mais sutil que a de um alcoólatra ou toxicômano; é mais verdadeiramente epicurista (no sentido original do termo), pois reconhece que a busca bem-sucedida da alegria e do bem-estar requer certo grau de sabedoria. Mas afirmar que qualquer sensação de desconforto físico ao contemplar um curso de ação significa que você deve rejeitá-lo é profundamente errado. Para o Dr. Chopra, não há “escolhas difíceis”; o que é certo é sempre o que é fácil. Isso só é verdadeiro, em qualquer sentido, para aqueles que amam a vontade de Deus acima de tudo, mais do que poder, sucesso, riqueza material ou saúde física, que estão dispostos a sacrificar todos os bens da vida mortal para seguir a Verdade. E, mesmo para eles, escolher o Verdadeiro em vez do desejável nem sempre é fácil. Jesus teve sua agonia no jardim. Gandhi sofreu pessoal e fisicamente, bem como emocionalmente, em seus jejuns e prisões para libertar sua nação; se tivesse cedido diante dessas “mensagens de desconforto”, a Índia poderia ainda ser colônia britânica. E estou certo de que Dietrich Bonhoeffer, que arriscou e afinal perdeu a vida ao opor-se aos nazistas, não embarcou em sua jornada heroica sem muitos calafrios de medo no plexo solar.

O clássico espiritual hindu Bhagavad-Gītā, ambientado no grande conflito entre os clãs aparentados dos Pāṇḍavas e dos Kauravas, começa com um diálogo entre Arjuna, herói dos Pāṇḍavas, e seu cocheiro Krishna, que é o próprio Deus. A cena é o campo de batalha de Kuruketra; o momento é imediatamente antes do combate. Diz Arjuna:

“Krishna, Krishna,
agora que contemplo
estes meus parentes
dispostos à luta,
minhas pernas fraquejam,
minha boca resseca,
meu corpo treme,
meus cabelos se eriçam,
minha pele parece arder,
o arco Gā
ṇḍīva
cai de minha m
ão,
minha mente gira
sem cessar,
j
á não me sustento.
Krishna, eu vejo
press
ágios funestos!
Que esperan
ça pode vir
deste matar os meus?

Tendo assim falado, Arjuna lançou no chão flechas e arco, em meio ao campo. Sentou-se no assento do carro, e seu coração foi subjugado pela tristeza. “Arjuna,” — replica Krishna — “é esta hora de batalha momento para escrúpulos e fantasias? São eles dignos de ti, que buscas a iluminação? Qualquer homem valente, que apenas aspire à fama ou ao céu, os desprezaria… afasta esta covardia, Arjuna. Levanta-te.”

Arjuna é um dos maiores heróis de seu tempo, física e espiritualmente. Ainda assim, quase foi esmagado pelo pensamento da guerra fratricida prestes a iniciar-se. Seu corpo recusou-se a ficar de pé; a tristeza obscureceu-lhe o coração. Se tivesse ouvido a “sabedoria” do corpo naquele instante, teria traído seu destino. Só Krishna, a voz da Verdade Absoluta dentro dele, pôde ergue-lo. Aqueles que, como Arjuna, possuem ao mesmo tempo a capacidade de escutar profundamente o interior e a coragem de seguir a Voz interior para onde quer que ela conduza, podem aceitar o conselho do Dr. Chopra. Todos os demais correm o risco de serem extraviados por apelos tão fáceis à “sabedoria do corpo”. Por isso a maioria das tradições fala da necessidade de um Mestre espiritual vivo, ou de uma comunidade espiritualmente viável baseada numa verdadeira religião revelada, que possa ser essa Voz para nós até que possamos realmente ouvi-la — e obedecê-la sem hesitação — sem auxílio externo.

4.      A Lei do Mínimo Esforço
“A inteligência da natureza funciona com facilidade sem esforço… Com despreocupação, harmonia e amor. E quando aproveitamos as forças da harmonia, da alegria e do amor, criamos sucesso e boa fortuna com facilidade sem esforço.”
Sim — mas o Amor não se deixa arrear. Alegria arreada não é livre de cuidado. Harmonia, posta no arreio, começa a virar discórdia. E a natureza também abriga o tigre, o vírus, o terremoto. A ação de Deus, do Tao, é sem esforço. Na medida em que tornamos essa facilidade nossa, já não nos apegamos a sucesso ou boa fortuna. Tudo quanto Deus envia, saúde ou doença, alegria ou sofrimento, riqueza ou pobreza, é boa fortuna, porque é Sua vontade. Repousar na vontade de Deus, fluir com o Tao, certamente dissolve muitos problemas por nós mesmos criados. Tensão e luta estreitam nosso foco e drenam nossa energia vital. Mas quem acredita que Deus “lhe deve” prosperidade material porque confiou n’Ele pode deparar-se com a lição de Jó, e começar a aprender algo sobre a confiança real. “Ainda que Ele me mate, n’Ele confiarei.” O Amor jamais se submeterá a ser arreado, porque o Amor é o Condutor. Que Ele nos atrele ao Seu carro; que nos conceda tal honra. Como diz o Dr. Chopra nas pp. 58–59:
“Responsabilidade significa não culpar pessoa ou coisa alguma por sua situação, inclusive a si mesmo. Tendo aceitado esta circunstância, este evento, este problema, responsabilidade significa então a capacidade de dar uma resposta criativa à situação tal como é agora. Todo problema contém a semente da oportunidade, e essa percepção permite-lhe tomar o momento e transformá-lo em uma situação ou coisa melhor. Uma vez que você faça isso, toda situação perturbadora tornar-se-á oportunidade de criação de algo novo e belo, e todo suposto algoz ou tirano tornar-se-á seu mestre. A realidade é uma interpretação.”

Tudo isso é verdadeiro — exceto que é realmente Deus quem toma o momento e o transforma, não eu. Minha tarefa, minha responsabilidade precisa e contínua, é simplesmente sair do caminho d’Ele. E não é a Realidade que “é uma interpretação”, mas apenas a experiência subjetiva. A Realidade, o Que É, está além de toda interpretação. Nas palavras de Lew Welch, é “o que acontece quer eu olhe, quer não”.

5.      A Lei da Intenção e do Desejo
“Em toda intenção e desejo está inerente a mecânica de seu cumprimento… A intenção e o desejo, no campo da pura potencialidade, têm poder organizador infinito. E quando introduzimos uma intenção no solo fértil da pura potencialidade, colocamos esse poder organizador infinito para trabalhar a nosso favor.”
Mais uma vez, o finito não pode usar o Infinito para capacitar suas agendas. É verdade que um desejo que surja do campo da pura potencialidade possui imenso poder organizador. O primeiro desses “desejos”, o de máximo poder organizador possível, é o
Logos, o Primeiro Intelecto, a semente da manifestação universal. Mas nem mesmo seu poder é infinito, porque todo desejo, inclusive o desejo de Deus de ser conhecido por Suas criaturas, é um limite estabelecido dentro do campo da pura potencialidade. E dado que esse campo é o próprio Infinito, de que ponto “fora” dele um desejo poderia ser introduzido? O Infinito não tem “fora”.

Deepak Chopra, e tantos outros, invertem rotineiramente a relação entre criatura e Criador porque veem Deus como totalmente passivo; uma espécie de recurso natural infinito, à nossa disposição para explorarmos quando e como quisermos, para obtermos o que queremos. “No nível do campo quântico,” diz o Dr. Chopra (p. 67), “não há nada além de energia e informação. O campo quântico é apenas outro nome para o campo da pura consciência ou pura potencialidade.” Assim, Deus, para Chopra, não passa de uma energia material sutil como ondas de rádio ou magnetismo. Este é o erro do panteísmo — que, como vemos com clareza aqui, é apenas outro nome para materialismo sutil.

O panteísmo surge quando o Nirgua Brahman, o Absoluto Impessoal, “o Divino sem qualificações”, é mal-compreendido, levando à negação do Sagua Brahman, “o Divino com qualificações”, o Deus pessoal. Sagua Brahman é o Ser; Nirgua Brahman é o Além-Ser, ou o Não-Ser. Mas, como disse Guénon, “o Ser é a afirmação do Não-Ser.” O Deus Pessoal é a concepção mais alta possível que as criaturas podem ter do Absoluto Impessoal. Esse Absoluto não é “impessoal” por carecer de Pessoalidade — se o fosse, o Deus Pessoal não seria Seu símbolo supremo nem Sua manifestação mais concreta —, mas por estar absolutamente além de concepção. Se não estivesse, as criaturas poderiam compreender, abarcar e possuir Deus — que, por esse fato, deixaria de ser Deus.

A tendência de usar o Absoluto Impessoal para negar o Deus Pessoal, tão comum entre muitos curiosos da mística e da metafísica, é apenas outra forma do desejo do ego de ser Deus. Mas sem o Deus Pessoal ocupando seu degrau próprio na hierarquia, o Nirgua Brahman é sutilmente falsificado. Nosso senso de Sua Transcendência Absoluta começa a esvair-se. Passa a ser conhecido não como realmente é, como Essência Divina totalmente além da concepção, mas como potencialidade universal, poder Divino, Mahāśakti. Eis o sentido da doutrina tradicional de que Adão caiu por aspirar ao conhecimento direto da incognoscível Divindade, bem como da afirmação de Jesus de que “ninguém vem ao Pai senão por mim”, indicando que ninguém que negue ou tente contornar o Sagua Brahman pode chegar ao Nirgua Brahman. E quando a incognoscível e transcendente Divindade é confundida com Seu poder, Sua Śakti, então o Śaktimān, o detentor do poder, o Ato transcendente e imóvel que fecunda essa potencialidade dinâmica, fica obscurecido. Já não é Śiva, já não é Deus quem cumpre esse papel — sou eu. Sem um Purua (“Pessoa”), um Īśvara (“Senhor”), um Sagua Brahman que complemente a Prakti da pura potencialidade concebida como matéria/energia primordial, sem um Deus pessoal consciente, volitivo e atuante, infinitamente maior do que eu (ainda que Seu Ato essencial seja simplesmente Ser), quem mais pode ocupar esse lugar? Eu, o pequeno ego, passo a ser aquele cujos desejos a Mahāśakti, a Grande Mãe, está aí para cumprir. E Ela os cumprirá, até certo ponto. Quem intui Sua realidade é livre para haurir Seu poder — mas não sem consequências. A consequência kármica de crermos que estamos capacitados e autorizados a aproveitar Sua energia para realizar nossos desejos pessoais é simplesmente sermos libertos dessa ilusão — por Kālī, a Negra, a Mãe Terrível. Depois de mamar no seio da Beleza, seremos lenta ou subitamente transferidos ao seio do Rigor. Este, de fato, é um modo de ver todo o ciclo da manifestação de Deus — seja individual, planetário ou cósmico, ou até um único momento de esquecimento espiritual —, que começa na presença de Deus, cai até o ponto em que cremos que o ego é Deus, e termina no sacrifício desse ego diante do rosto de Deus. Isso também explica por que a última das Quatro Eras na cosmologia hindu se chama Kali Yuga.

Magos são aqueles que tratam com a Grande Mãe como indivíduos, pessoas com desejos próprios, não como veículos do Absoluto. A receita mágica de Deepak, o Mago, para usar Deus a fim de obter o que você quer tem cinco partes:
(1) Unir-se ao Ser essencial. (2) Lançar suas intenções e desejos no útero desse Ser. (3) Manter seu contato com o Ser essencial; proteger a semente de sua intenção dos olhos do mundo. (4) Renunciar ao apego ao resultado. (5) Deixar o universo cuidar dos detalhes.

Há muita sabedoria nessa receita. Ela é mais sensata do que o mero “poder do pensamento positivo” e quase desenha a oração de petição. Além disso, eleva a concepção da petição acima de simplesmente implorar ajuda a Deus, como se tentássemos manipulá-Lo despertando pena de nós. Falta-lhe apenas uma coisa: o entendimento de que nossos desejos mais profundos não vêm de nós; vêm de Deus. E todo desejo que vem de Deus é, no fundo, desejo por Ele. Nas palavras de uma oração do mestre sufi Bāyazīd Bistāmī: “Ó Deus, Tu sabes o que eu quero.”

Os desejos pessoais não são senão versões editadas daquilo que o próprio Deus deseja para nós. Queremos que Ele nos dê um carro, uma casa, um amante, uma carreira bem-sucedida. Ele quer dar-nos a Si mesmo. “Lançar suas intenções e desejos no útero do Ser” (n.º 2) e “renunciar ao apego ao resultado” (n.º 4) são, na verdade, maneiras de dizer a Deus: “Isto é o que eu penso querer para mim, mas agora sacrifico esse desejo em favor do que Tu queres para mim. Não se faça a minha vontade, mas a Tua.” Diz-se que “o extremo do homem é a oportunidade de Deus.” Onde nossa capacidade acaba, começa a de Deus. E nossos desejos mais profundos são uma via para esse extremo. Se nunca admitirmos o que mais profundamente queremos nesta vida, seja porque parece “pouco espiritual” ter desejos, seja porque secretamente desesperamos de vê-los algum dia cumpridos (e essas duas coisas são, muitas vezes, duas faces de uma mesma moeda), jamais chegaremos àquela profundeza da alma onde os nossos desejos cessam e os de Deus começam. Mas, se nunca sacrificarmos a Deus esses desejos mais profundos quando a eles chegarmos, jamais veremos sua forma verdadeira, jamais os conheceremos como reflexos mais ou menos fiéis dos desejos específicos de Deus para nós.

A Lei do Desapego
“No desapego reside a sabedoria da incerteza… Na sabedoria da incerteza reside a liberdade do nosso passado, do conhecido, que é a prisão do condicionamento pretérito. E, na disposição de dar um passo para o desconhecido, o campo de todas as possibilidades, nós nos rendemos à mente criadora que orquestra a dança do universo.”
Mais uma vez, o Dr. Chopra nos diz que “para adquirir qualquer coisa no plano físico universo, você tem de renunciar ao seu apego a ele” (p. 83). Mas renunciar ao apego a algo para adquiri-lo não é renunciar ao apego. Você não pode ficar com o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Jesus disse: “Buscai primeiro o Reino dos Céus e a sua justiça, e todas essas coisas [isto é, as necessidades básicas da vida] vos serão acrescentadas.” Ele não disse: “Se você quer todas essas coisas, simplesmente busque o Reino dos Céus e você as obterá.” A diferença entre Deepak Chopra e Jesus pode ser sutil, mas é imensa. Como disse um amigo meu: “Deus não pode ser usado como meio para um fim, porque Ele é o Fim.” Quando Jesus prometeu que “todas essas coisas vos serão acrescentadas”, estava nos ensinando a não permitir que a preocupação com a manutenção da vida nos distraísse de colocar Deus em primeiro lugar; ele não estava nos dando um modo de operar o que o Dr. Chopra gosta de chamar de “o computador cósmico”. Como vimos, o Dr. Chopra sustenta que “esse conhecimento lhe dará a capacidade de criar riqueza ilimitada… e experimentar sucesso em todo empreendimento”. Lao Tsé, porém, está muito mais próximo da verdade quando diz que “sucesso demais não é vantagem” e que “quem sabe que o bastante é bastante, sempre terá o bastante”.

“Tudo o que você quiser pode ser adquirido por meio do desapego, porque o desapego se baseia na crença inquestionável em seu verdadeiro Self” (p. 84). Seria injusto, a esta altura, perguntar por que o Dr. Chopra aparentemente não está disposto a pôr fim à fome no mundo, à guerra e à destruição ambiental? Ele realmente não quer essas coisas? Mas, indo ao ponto: o erro central de Deepak Chopra parece ser a crença de que seu verdadeiro Self é uma espécie de Deepak Chopra infinito, embora ele seja cortês o bastante para conceder que, no meu caso, será uma espécie de Charles Upton infinito. Os sábios védicos da Índia ensinaram a doutrina Tat tvam asi, “Tu és Isso”. Mas Tat tvam asi não significa que “você” (o ego) “é Isso” (o Self); significa que “Isso” (o Self) “é o verdadeiro você”, como na doutrina de Śakarācārya de que nosso sentimento de sermos nós mesmos é um sinal do Self Absoluto e Transcendente em nós. Isso não é uma extensão de mim; eu sou uma extensão de Isso.

E, certamente, há sabedoria na incerteza. Certamente, como diz o Dr. Chopra, superar nosso apego à segurança, que é na verdade apego ao passado conhecido, nos ajudará a experimentar “empolgação, aventura, mistério… a diversão da vida… a magia, a celebração, a exultação e o júbilo do próprio espírito” (p. 87) — além de todos os sustos e tombos que vêm junto. Mas, quando ele diz “O que é o conhecido? O conhecido é o nosso passado” (p. 86), limita “o conhecido” ao conhecimento acumulado, esquecendo que também existe jñāna, o conhecimento eterno, a realização do Self. E esse Self se expressa, em certo nível, por meio dos princípios metafísicos eternos subjacentes a todas as religiões válidas, princípios que têm o poder de abrir nossa consciência para a realidade desse Self. A sabedoria não se alcança abrindo mão do conhecimento, mas apenas do apego ao conhecimento. O conhecimento deve ser transcendido, mas somente na direção de sua Fonte, não na direção do caos e da ignorância. A sabedoria da incerteza é obtida substituindo uma certeza ilusória no plano dos fenômenos por uma verdadeira certeza da realidade de Deus. E, dada a adoração contemporânea do caos e da ignorância, que quase alcançou estatura de crença religiosa nestes últimos dias, esse ponto precisa ser enfatizado repetidas vezes.

A lista do Dr. Chopra de coisas que precisamos transcender, para nos abrirmos à sabedoria da incerteza, inclui “impotência, desesperança, necessidades mundanas, preocupações triviais, silenciosa desesperação e seriedade” (p. 85). Concordo plenamente que todas essas coisas nos aprisionam — exceto a “seriedade”. A seriedade é uma das coisas mais belas que existem, na terra ou no Paraíso.

7. A Lei do “Dharma” ou Propósito de Vida
Todo mundo tem um propósito na vida… Um dom único ou talento especial a oferecer aos outros. E quando combinamos esse talento único com o serviço aos outros, experimentamos o êxtase e a exultação do nosso próprio espírito, que é a meta última de todas as metas.

O Dr. Chopra divide a Lei do Dharma em três componentes: descobrir o verdadeiro Self; descobrir, nutrir e expressar os talentos específicos dados por Deus; dedicar esses talentos ao serviço dos outros. Isso é inteiramente admirável. Contudo, questiono se o paradigma “você pode obter o que quiser” levará a esse resultado, na ausência de um senso de hierarquia no reino do desejo, um entendimento de que alguns desejos são mais elevados e menos egocêntricos do que outros.

O Prof. Huston Smith, em The World’s Religions, faz a seguinte afirmação: “Se fôssemos caracterizar o hinduísmo como um todo — sua vasta literatura, rituais complicados, costumes populares espalhados, arte opulenta — e comprimi-lo em uma única afirmação, encontraríamos algo dizendo: Você pode ter o que quer.” Ele prossegue apresentando a hierarquia ascendente de desejos do hinduísmo como prazer; sucesso; serviço; e Libertação. O prazer, como desejo indiscutivelmente natural, pode ser legitimamente buscado, segundo a crença hindu — até que chegue o momento em que comecemos a experimentar suas limitações, compreendendo que o prazer é fundamentalmente inseparável da dor. Nesse ponto, provavelmente sentiremos a atração do sucesso mundano, outra meta humana legítima. Mas aqueles que buscam sucesso acabarão por aprender que, assim como o prazer é inseparável da dor, sucesso e ganho são inseparáveis de fracasso e perda. Mesmo que ainda retenhamos poder e posses, podemos perder a sensação de que eles dão sentido à vida. E, é claro, “você não leva nada consigo”. Aqueles que sentem o vazio do sucesso mundano serão então atraídos por uma vida de dever e serviço. O que poderiam significar poder, riqueza ou fama para alguém como Madre Teresa, senão na medida em que isso pudesse servir ao seu objetivo de serviço à humanidade? Mas até o dever e o serviço não são, em última análise, satisfatórios. “Os pobres sempre os tereis convosco” conduz à percepção de que “meu reino não é deste mundo”. E, no coração daqueles que se sentem constritos até pelo horizonte do serviço universal, nascerá o anseio por moksha, união com Deus, Libertação.

Há, então, uma progressão natural do autoenvolvimento do prazer, passando pela autoafirmação do poder e pelo autosacrifício do serviço, até a autotranscendência da Libertação. E “mais alto” também significa “mais amplo”: cada encarnação do desejo habita um universo mais vasto. O mundo do prazer é o corpo. O mundo do poder é a família, a propriedade, a empresa — também o partido, a classe, a igreja, a nação. O serviço também habita partido, classe, igreja e nação, mas os vê com olhos mais amplos, como oportunidades de autosacrifício em vez de acumulação de poder pessoal. Em última análise, abarca o mundo inteiro — e o outro mundo também, pois os frutos do autosacrifício nesta vida serão desfrutados na próxima. E, por fim, o campo da Libertação é o próprio Deus. Poucos, é claro, viverão para experimentar plenamente os quatro mundos do desejo, mas isso não é problema em última instância, já que, se o percurso não se completa nesta vida, pode ser concluído nas vidas vindouras.

Deepak Chopra parece carecer desse senso de desenvolvimento e refinamento do desejo, que conduz à sua transcendência última. Ele mantém fé implícita na absolutidade e universalidade das aspirações humanas comuns à saúde e à riqueza e ao bem-estar; concede até lugar ao serviço, desde que não exija autosacrifício. Mas a cobiça humana média permanece seu dado, seu primeiro princípio. É a única coisa que ele jamais questiona. Contudo, como disse Peter O’Toole, no papel-título de Lawrence da Arábia, “Você pode fazer o que quiser, mas não pode querer o que quiser.” O desejo não é apenas algo a ser satisfeito; é também algo a ser alterado, purificado e, às vezes, renunciado. Se há um princípio de senso comum espiritual que a Nova Era não quer ouvir, é este. “Você pode ter saúde perfeita e riqueza ilimitada” não soa nada mal. “Você pode ter mulheres ilimitadas e poder ilimitado”, porém, soa bem diferente, enquanto “você pode ter um suprimento ilimitado de drogas, álcool e pornografia” também cai na rubrica de “obter o que quiser”, se é isso que você quer.

Nenhuma quantidade de serviço aos outros, por si só, purificará desejos inferiores. Pode fazê-lo, se a forma de serviço que você oferece for parte de seu dharma dado por Deus. Mas também pode ser um modo de esconder-se do trabalho que precisa fazer em si mesmo, ou de compensar o mau karma que você está gerando em outras partes da vida para poder continuar a gerá-lo. É certamente verdade que todos nós somos convocados, pelo mandato humano, a servir aos outros. A essência desse serviço, no entanto, não consiste em resolver os problemas das pessoas, mas em amá-las. Aqueles incapazes de amar os outros a menos que possam de algum modo ajudá-los concretamente não sabem o que é amor. Mais próximo da solução de problemas, no caminho do amor verdadeiro e do serviço, está a empatia. A solução de problemas baseada numa empatia sincera, objetiva e desprendida é menos propensa, do que a abordagem quantitativa e clínica, a criar mais problemas do que resolve.

Empatia, ou compaixão, frequentemente requer sofrimento. A verdadeira compaixão é um “sofrer-com” desapegado aquele que está em dor. Ela não recolhe a dor do sofredor para então devolvê-la a ele — condição a que chamamos “piedade”. Tampouco envenena o ajudante com a dor que ele tenta aliviar, tornando-o fonte de mais dor para os que o cercam, e um peso para o próprio sofredor. Na compaixão espiritual, a capacidade de sentar-se com a dor do outro e a capacidade de liberar essa dor na presença de Deus são a mesma coisa.

O sofrimento, porém, é um escândalo para a Nova Era, uma obsessão medieval mórbida, uma derrota vergonhosa de todo o programa de êxtase, afirmação positiva e sucesso ilimitado, sem falar num sinal a seus competidores social-darwinistas de que você provavelmente não está apto a sobreviver por ser insuficientemente “evoluído”. Se nossa capacidade de sofrer — de permanecer numa relação difícil, por exemplo, ou em outra luta da vida, em nome de um princípio mais alto — é hoje tão menor que a de nossos avós, isso pode ser porque eliminamos o amor como propósito aceitável de vida e o substituímos por uma combinação de servir aos outros e obter o que queremos. Quantos casais contemporâneos, por exemplo, pensam sua relação como uma espécie de acordo negociado em que serviço e egoísmo se equilibram contratualmente para que ambos consigam o que desejam? A única coisa que as pessoas realmente querem, todavia, é amor, e o amor é uma Realidade que já as possui — verdade que o ego mágico e autogratificante, e o mundo por ele definido, jamais aceitarão.

Adendo
Em seu livro posterior, The Path to Love, Deepak Chopra parece um pouco mais maduro e realista em algumas áreas — admitindo, por exemplo, que dinheiro e poder são coisas pelas quais devemos lutar. Ele também diz duas coisas muito importantes com as quais concordo inteiramente: primeiro, que somos ensinados, nesta cultura, que o amor romântico nada tem a ver com espiritualidade; segundo, que o amor romântico pode fazer parte do Caminho espiritual, porque por meio desse amor podemos sentir a presença da Eternidade. (A Divina Comédia e La Vita Nuova, de Dante, provam isso além de qualquer dúvida.) A sociedade contemporânea não vê o amor romântico como prenúncio da Eternidade, mas como rendição ao tempo e ao caos; somente o ego é para sempre. E não apenas somos ensinados que o amor romântico não pode ser espiritual; somos também ensinados que estamos sendo ensinados de que ele é espiritual. Os niilistas cínicos que odeiam o amor romântico gostam de fingir que ainda estamos oprimidos — e em rebelião — contra os costumes vitorianos, quando na verdade estamos oprimidos pelos costumes niilistas, e a rebelião já passou da hora.

Parte Dois:
Guerra Espiritual
As Sombras de Deus

Se deuses se unem contra o Homem
Instalando seu domínio acima
Da Forma Humana Divina,
Lançados de sua alta Estação
Nos céus eternos da
Imaginação Humana: sepultados abaixo
Em escura obliteração com dores incessantes séculos a fio
Em Inimizade e guerra — primeiro enfraquecidos, depois em severo arrependimento —
Devem renovar seu brilho & suas funções desorganizadas
Reorganizar novamente até assumirem a imagem do humano
Cooperando na bem-aventurança do Homem obedecendo à sua Vontade
Servos do Infinito e Eterno da forma Humana

— WILLIAM BLAKE, de The Four Zoas

Nas conhecidas palavras de São Paulo, na Epístola aos Efésios, “não é contra carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nas regiões celestes”. Esses principados e potestades, a meu ver, podem ser legitimamente vistos como elementos do sistema do Anticristo, um sistema que se “constela” apenas no fim do éon, mas que está virtualmente presente ao longo de toda a história humana “decadida”, como quando Paulo fala do “deus deste mundo [que] cegou o entendimento dos incrédulos” (2Cor 4:4). O “deus deste mundo” é obviamente Satanás, mas Satanás em seu aspecto particular de patrono da “mundanidade”, do sistema social organizado e psicológico de massa criado pelo ego humano em rebelião contra Deus. O Anticristo, per se, representa o estabelecimento desse sistema em sua forma terminal para este éon por meio da irrupção de forças sub-humanas, “infrapsíquicas”, na história humana, assim como Cristo — e Maomé, e o Buda, e os Avatares hindus — representam a irrupção da Sabedoria e do Amor Divinos.

Para muitos dos primeiros cristãos, o Império Romano representava, por razões óbvias, o sistema do Anticristo. O imperador romano foi adorado como um deus em certo tempo, ao menos nas províncias, e o Número da Besta, 666, é frequentemente resolvido como referência numerológica ao imperador Nero. A queixa central dos Zelotes judeus, os guerrilheiros antirromanos do tempo de Jesus, era que exigir que os judeus pagassem tributos a Roma era um ato de culto ao imperador e, portanto, uma blasfêmia contra Deus, especialmente porque o denário romano em que o tributo devia ser pago portava a imagem do imperador e, assim, era tecnicamente um ídolo aos olhos de muitos judeus, que, como os muçulmanos em séculos posteriores, proibiam fazer qualquer imagem de Yahweh e consideravam todo deus representável visualmente como inerentemente falso. Que Jesus, em certo nível, fosse simpático aos Zelotes, embora certamente não fosse um revolucionário político — mais do que fosse um colaborador de Roma — é mostrado pelo fato de ter criticado todas as seitas judaicas conhecidas de seu tempo — fariseus, saduceus, escribas e herodianos — exceto os zelotes e os essênios, e de ter contado entre seus discípulos um Simão, o Zelote, ainda que não possamos ter certeza se “Zelote” se refere à filiação de Simão ou apenas ao seu caráter.

No Apocalipse, o símbolo central do Anticristo é a Besta, que age como agente do Dragão (Satanás). Sobre a Besta cavalga a Meretriz, cujo nome é Mistério, Babilônia, a Grande. As sete cabeças da Besta, que são sete reis, são também sete montes sobre os quais ela está assentada, como os sete montes de Roma. E assim, em um nível, a Besta é o Império Romano, comparado pelo autor do livro ao cativeiro babilônico dos judeus. Essa identificação da Besta com Roma levou certas seitas protestantes a vê-la como símbolo da Igreja Católica Romana — uma atribuição que só seria parcialmente justificada no caso de completa apostasia do catolicismo, o que, em minha opinião, não pode ser considerado comprovado nem agora.

O Dragão do Apocalipse, identificado com Satanás, representa uma ordem espiritual pervertida. Baseada nessa ordem satânica está a ordem social pervertida da Besta. E a Meretriz da Babilônia, que cavalga a Besta — isto é, que ao mesmo tempo a guia e por ela é carregada — é a ordem psíquica pervertida dos últimos dias. As sete cabeças da Besta, que são sete reis com os quais Babilônia se deita e sete montes sobre os quais ela reina, simbolizam — entre outras coisas — as sete faculdades principais da alma, que na Antiguidade eram representadas pelos sete planetas: a Lua, fertilidade e emoção subconsciente; Mercúrio, pensamento, astúcia e a capacidade de lidar com informação; Vênus, amor, sexualidade e relacionalidade; o Sol, intelecto, o centro espiritual da alma e fonte de sua vida; Marte, vontade e agressão; Júpiter, capacidade de liderança e inteligência filosófica; Saturno, capacidade de planejamento de longo prazo, conhecimento místico e a sabedoria da velhice. Se a Besta e a Meretriz “ocupam” as sete províncias da alma, isso indica que o regime do Anticristo conquistou e perverteu todos esses aspectos da vida humana, tanto social quanto psicologicamente, perversão que é representada na teologia católica pelos sete pecados capitais. Segundo Martin Lings, em seu artigo “Os sete pecados capitais à luz do simbolismo do número”, superbia (soberba) relaciona-se ao Sol, avaritia (avareza) a Saturno, luxuria (luxúria) a Vênus, invidia (inveja) a Mercúrio, gula (gula) a Júpiter, ira (ira) a Marte, e accidia (acídia) à Lua. O poder da Besta sobre a alma humana é simbolizado pela “marca da Besta” — que, neste caso, é de fato, segundo o Apocalipse, uma segunda Besta, serva da primeira, identificada como o Falso Profeta —, colocada ou sobre a mão direita ou sobre a testa. A marca sobre a mão direita simboliza o poder sobre a vontade, e a sobre a testa, o poder sobre a inteligência: quando a inteligência é obscurecida, a vontade também é subjugada, pois agora deve seguir o erro em vez da Verdade.

O regime do Anticristo, então, opera em três níveis, que são os três níveis ontológicos do ser humano: o nível material, incluindo tanto o âmbito sócio-histórico quanto o corpo humano; o nível psíquico, abrangendo a mente consciente e a subconsciente; e o nível espiritual, que, embora não possa ser pervertido em última instância, por ser Divino, pode ser obscurecido pelos poderes das trevas e igualmente falsificado, de acordo com o princípio de que “Satanás é o macaco de Deus”.

A Besta, que é o Anticristo, é assim o contraface de Cristo, uma versão perversa e distorcida da imagem de Deus em nós. Sob seu regime, todas as potências e qualidades da forma humana, considerada como o ato central de Autorrevelação de Deus neste mundo (“quem me vê, vê o Pai”, disse Jesus, falando como o Arquétipo Divino da Humanidade) são imitadas por forças demoníacas: sabedoria, amor, milagres de cura e controle sobre as forças naturais, e até a ressurreição do corpo — tudo será encenado em contrafação, “de modo a seduzir, se possível, até os eleitos”.

Cristãos evangélicos tendem a se concentrar em predições relativas a como o sistema do Anticristo aparecerá na história e na sociedade futuras. Este é um nível válido e importante para se ver a questão, embora devamos tomar cuidado para não interpretar a Escritura estreitamente demais, pois um acontecimento relatado num texto densamente simbólico como o Apocalipse pode surgir na história como vários eventos distintos, ou tendências, ocorrendo em diferentes momentos. Minha intenção, contudo, é concentrar-me mais nos aspectos psíquicos e metafísicos das “trevas deste mundo”, incluindo aquele nível em que a mente inconsciente interage com a sociedade, o domínio onde os poderes das trevas aparecem como sistemas de crença inconscientes e costumes sociais.

Uma sociedade espiritualmente degenerada governa seus membros não apenas por táticas de estado policial, ou influenciando-os a acreditar conscientemente em doutrinas falsas, mas também doutrinando-os a adotar certas crenças inconscientemente — crenças que terão tanto mais poder sobre eles justamente por essa inconscientização, já que jamais são trazidas à luz do dia, onde poderiam ser avaliadas criticamente. Uma sociedade má inculcará essas crenças deliberadamente, por meio de vários tipos de propaganda, doutrinação e controle mental. Por outro lado, os governantes dessa sociedade, em alguns aspectos, serão tão inconscientes quanto a população que doutrinam. Embora possam mentir conscientemente ao povo sobre questões de fato, ainda assim tomam absolutamente por garantidas as crenças fundamentais que disseminam, sendo, portanto, inconscientes delas. As mentiras mais profundas — os costumes sociais inconscientes e as falsas concepções de Deus sobre as quais se baseiam — aparecem aos nossos governantes simplesmente como a natureza das coisas. Porque nelas creem implicitamente, nunca precisam se tornar conscientes delas como crenças. Se você quer iludir os outros, é melhor começar iludindo a si mesmo; assim, ninguém poderá questionar sua “sinceridade”.

Essas crenças agem como demônios possuidores, controlando a psique por dentro e punindo qualquer movimento de pensamento, sentimento ou intuição que contrarie sua visão da realidade, muito frequentemente por meio de sentimentos de vergonha, medo, ira incontrolável, orgulho gélido ou profunda depressão — tudo o que constituirá tentações ao mesmo pecado fundamental, o pecado do desespero. (Isto não quer dizer que todos esses sentimentos sejam ataques demoníacos. Há também uma vergonha saudável que nos protege de atos vergonhosos; um medo saudável que nos defende de perigos físicos e espirituais; uma ira saudável diante do mal ou da injustiça; um “orgulho” saudável que assume a forma de amor-próprio ou veneração do que é digno; e uma tristeza saudável que aparece como compaixão, ou remorso.) Além disso, o que é uma crença falsa inconsciente no nível psicológico é precisamente um demônio no plano psíquico ou espiritual. Na parábola do exorcismo, por Jesus, do endemoninhado solitário, os demônios que o possuíam dão seu nome como “legião”, referência óbvia não apenas à ocupação militar romana da Judeia, mas também à possessão da alma judaica, por meio da “opressão internalizada”, pelos costumes sociais inconscientes do imperium romano.

Os demônios que “administram” os sistemas de crença falsos em questão não devem ser comparados àqueles que nos tentam à autocomplacência pessoal — à luxúria, por exemplo, ou à acídia, ou à ira. São mais da ordem dos querubins caídos, grandes inteligências espirituais que se voltaram contra Deus. São demônios do intelecto, não demônios da vontade. Quando São Paulo fala de “principados e potestades” que são “os príncipes das trevas deste mundo”, é a esses seres que ele se refere.

Em certo nível, esses querubins caídos constituem um sistema articulado de erro, um contrafactual direto do pleroma divino ou celeste que aparece no Apocalipse como o Trono do Cordeiro cercado pelos quatro Animais Viventes, as sete Lâmpadas, os vinte e quatro Anciãos, etc. O significado simbólico dessas figuras talvez jamais seja conhecido com precisão (embora claramente o tenha sido em algum tempo); basta dizer, neste contexto, que representam a primeira criação de Deus, espiritual, prévia ao universo material — ainda que sejam “prévios” mais no sentido espiritual do que no temporal, visto que a primeira criação é eterna em relação à nossa criação material temporal, não simplesmente “anterior” a ela no tempo.

Depois de meditar por muitos anos sobre esses temas, creio ter alcançado certa medida de insight sobre aquilo que C. S. Lewis, em tom jocoso, chamou, em suas Cartas do Inferno (Screwtape Letters), de “Baixararquia” — o sistema de dominação infernal da sociedade humana coletiva, não apenas de indivíduos —, e mais particularmente sobre o nível representado pelo número quatro, que pareceria ser o contraface satânico dos Quatro Animais Viventes. Fui profundamente influenciado nessas meditações pelos “livros proféticos” de William Blake — The Four Zoas, Milton e Jerusalem —, eles próprios influenciados pela Cabala hebraica, onde, numa linguagem visionária obscura e flamejante, ele analisa a Queda e a Redenção do Homem em termos da queda das quatro faculdades centrais da alma humana, as Quatro Zoas ou Animais Viventes, e sua redenção por Cristo, que é o Intelecto espiritual eterno. Minha intenção aqui não é, certamente, criar uma teologia alternativa, mas lançar uma luz poética e metafórica sobre certas consequências psíquicas da queda do homem, que, segundo autoridades tradicionais, bem como o sentido bastante óbvio do livro do Gênesis, inclui tanto a perversão da vontade quanto o obscurecimento do Intelecto.

A queda do homem, vista em termos intelectuais, começa como um mal-entendido primordial da verdadeira natureza de Deus. Tudo o mais decorre disso, pois a incapacidade de compreender Quem Deus realmente é distorce nossa imagem de toda outra coisa, pessoa, situação ou nível do ser. Onde o intelecto é obscurecido pela ignorância espiritual, ele só pode revelar-nos sombras da Verdade, objetos falsos aos quais a vontade se sente atraída por causa de sua semelhança parcial com a Verdade que ocultam — no curso do que se torna enfraquecida e distorcida, até que não mais consiga querer o Bem, mesmo que, pela Graça de Deus, a treva do Intelecto fosse, por um momento, suspensa, e esse Bem revelado.

Uma sombra requer três coisas: uma fonte de luz, um objeto opaco e um campo onde a sombra cai. Se a luz é Deus, o objeto opaco, o ego, e o campo onde a sombra cai, o universo, então as sombras do ego, projetadas pela Luz de Deus, são crenças falsas, que aparecem a esse ego não como suas próprias sombras, nem sequer como crenças, mas como a natureza literal da realidade: as sombras de Deus.

O ego, por definição, não se conhece. Tenta nos convencer de que podemos nos tornar únicos e originais se nos submetermos à sua magia. Esquece que o egotismo, na verdade, nos estereotipa, torna-nos tediosamente previsíveis, porque os egos humanos, no fundo, são muito parecidos. Nossos medos e desejos mais profundos, de que o ego é composto, são muito poucos e muito comuns.

Deus é a única Realidade, o único objeto — e sujeito — de todo conhecimento. Mas, quando o medo e o desejo primordiais, que são a forma-semente do ego, separam sujeito de objeto, de tal modo que o sujeito cognoscente já não é aparentemente Deus — como na Realidade sempre o é, visto que só Deus, em última análise, é Testemunha de Sua própria manifestação —, então nascem visões limitadas e condicionadas da Realidade, mantidas nas mentes de sujeitos limitados e condicionados. De um ponto de vista, essas visões limitadas, e os sujeitos limitados que as percebem, são a manifestação criativa de Deus no espaço e no tempo; de outro, são as sombras de Deus, Seus véus. Quando essas sombras se tornam espessas e sua escuridão intensa, parece como se Deus estivesse ausente de Sua criação. É para esses lugares e tempos da aparente “morte de Deus” que Ele envia os profetas, salvadores e avatares que fundam e renovam as grandes tradições de sabedoria.

Vistos de certo modo, as crenças falsas não passam de ilusões; levá-las a sério demais é conceder-lhes mais realidade do que merecem. Mas, na medida em que crenças falsas são de fato cridas, especialmente no nível coletivo, produzem efeitos reais, não apenas no plano psíquico, mas também nos planos social, fisiológico e ambiental. A ilusão — cujo nome moral é mal — é essencialmente uma privação, uma falta. Nunca se pode fazer completo sentido dela porque, sendo um “buraco” na realidade, e não uma realidade por direito próprio, é fundamentalmente absurda. No entanto, uma condição como a fome também é uma “mera” falta — falta de alimento —, mas suas consequências estão longe de ser ilusórias. Do mesmo modo, as crenças falsas, e os poderes demoníacos que as administram, têm efeitos reais — que ignoramos por nosso próprio risco. Os “principados e potestades”, assim, podem ser considerados como falsas percepções fundamentais da natureza de Deus pelos estratos mais profundos e ocultos do ego humano — o qual, de outra perspectiva, é inteiramente composto por essas falsas concepções. Em outras palavras, são ídolos — falsos deuses como o Bezerro de Ouro destruído por Moisés, ou os ídolos pagãos varridos da Caaba pelo Profeta Maomé (sobre ele a paz).

Conceba os ídolos mais fundamentais e universais, as sombras primordiais de Deus, como quatro: a idolatria da Lei, a idolatria do Destino, a idolatria do Caos e a idolatria do Eu. São os elementais primordiais do ego humano, a análise da ordem obscurecida da percepção criada pela queda do homem — os “príncipes das trevas deste mundo”. À percepção obscurecida do ego autoidolátrico, aparecem como potências por direito próprio e também — já que estão em perpétuo conflito — como alternativas reais. Mas, na realidade, estão em perpétua colusão para impedir-nos de ver qualquer luz de Verdade além das alternativas trágicas e irônicas que propõem. E, longe de serem potências independentes e autoexistentes, não são, na raiz, senão emblemas de nosso recuo fundamental diante do Esplendor incandescente de Deus, projetados, como as sombras na caverna de Platão, na paisagem da psique e, daí, na natureza e na sociedade. Todavia, de outra perspectiva, são, precisamente, demônios — potências espirituais em rebelião contra Deus. Podemos resolver esse aparente paradoxo se percebermos que é somente o estado de alienação do ego em relação a Deus que o abre à influência de tais forças demoníacas, que se encontram em estado semelhante de alienação, e que a origem dessa alienação, em ambos os casos, é a ignorância ou ilusão. O ego iludido adora a si mesmo em vez de Deus — seja na arrogância, seja no desespero —, e as formas que essa auto-adoração assume são as formas das potências demoníacas. Praticamente falando, devemos admitir tanto que essas potências estão em oposição deliberada e ativa a Deus e à vida espiritual, quanto que elas próprias se encontram iludidas, mesmo enquanto tentam, com astúcia infernal, iludir-nos. Em outras palavras, seu poder é inteiramente negativo, baseado somente na ignorância — razão por que são chamadas “potestades das trevas”. E embora será sempre necessário, dada nossa condição decaída, lutar contra elas vontade contra vontade, é apenas a dispersão das sombras da ignorância, à luz do Intelecto Divino, que finalmente quebra seu poder.

Idolatria da Lei
Deus é legislador. A Torá, as Leis de Manu, a sharī‘a islâmica foram dadas à humanidade não como imposição arbitrária de regras tirânicas, mas como misericórdia — razão pela qual os antigos viam reis e sábios legisladores entre os supremos benfeitores da raça. Dado que a humanidade caiu do Éden, da percepção direta da Realidade Divina, a lei tornou-se necessidade. Uma lei sagrada é expressão da verdadeira forma da cultura humana — e, em última instância, da Forma Humana — à qual essa lei se aplica. Pelo ato divino de legislar, Deus cria determinada cultura no espaço e no tempo: não por decreto arbitrário, mas por Sua visão dessa cultura como uma faceta eterna da Humanidade Divina dentro de Sua própria natureza. Ordenar “não matarás, não furtarás, não cometerás adultério, não te esquecerás de reconhecer a Fonte Divina da tua vida” é como nos ordenar que não cortemos nossos braços nem arranquemos nossos olhos. Como salvaguarda de nossa humanidade integral, a lei sagrada é devedora dessa humanidade. É talhada para nos servir; não somos nós que, como no mito do leito de Procusto, somos mutilados para caber nela. Como disse Jesus, “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”. A lei revelada é necessária porque nos encontramos no tempo e, assim, precisamos de um veículo pelo qual princípios eternos possam ser aplicados a situações mutáveis.

A própria sacralidade da lei revelada, porém, torna-a vulnerável ao crescimento da idolatria. Esquecemos que ela nos foi dada para nos proteger e começamos a usá-la como ferramenta a serviço do ego coletivo, uma arma contra a Imagem de Deus em nós. Deus é Absoluto, e os princípios eternos são absolutos relativamente a manifestação cósmica; porém, quando nosso senso de absolutidade é deslocado por ser identificado com situações contingentes, nasce a idolatria. E a essência da idolatria da Lei é aplicá-la cegamente, mecanicamente, sem levar em conta a forma real das situações que ela foi criada para regular, nem a verdadeira natureza das pessoas que ela foi escrita para proteger. Toda lei verdadeiramente sagrada não é apenas um conjunto de deveres e proibições, mas a expressão, no domínio moral, de princípios eternos e metafísicos. “Guardar o Dia do Senhor santo”, por exemplo, refere-se, num nível esotérico, ao Presente Eterno como lugar de repouso de Deus; e “Não cobiçarás a mulher do próximo” ao que os hindus chamam svadharma, o dever e destino espiritual únicos de cada um — simbolizados pela esposa do homem, imagem de sua alma —, que não podem ser trocados e que ninguém mais pode cumprir: “Melhor o próprio dharma, mesmo mal executado, do que o dharma de outrem, por melhor que seja.” Esses princípios eternos não existem apenas “por trás” da letra da lei, mas igualmente “por trás” do rosto da situação humana que a lei deve confrontar e regular. Mas quando isso é esquecido, quando a lei é aplicada indiscriminadamente em vez de imparcialmente, ela se transforma num ídolo sanguinário, exigindo, como o deus pagão Moloque do Antigo Testamento, o sacrifício de nossos filhos (esotericamente, nossa criatividade) e, como o deus guerreiro asteca Huitzilopochtli, nossos corações ainda pulsantes (a Imagem de Deus em nós). Prescrever o mesmo remédio para todos parece imparcial; contudo nada é mais destrutivo — exatamente como se um médico receitasse penicilina ou insulina a todos os pacientes indiscriminadamente, para evitar o trabalho do diagnóstico e a humilde constatação de que não conhece de antemão a natureza precisa da doença. Como disse Blake: “Uma só lei para o Leão e o Boi é opressão.” Quando a certeza derivada da compreensão de princípios eternos é usada como desculpa para não nos engajarmos com pessoas reais e situações concretas na obra do discernimento, a idolatria da Lei está em plena força.

A falsa religião da Lei é melhor representada pelo legalismo das religiões abraâmicas quando ele se expande além de seus limites legítimos e nega a Misericórdia. Grande parte do ministério de Jesus foi dirigida contra essa idolatria, representada nos Evangelhos por Escribas e Fariseus. A idolatria da Lei inclui ou a falsa doutrina de que a lei de Deus é maior que o próprio Deus — que Ele é seu escravo e não seu Autor —, ou o erro correlato — sustentado pelos asharitas mais extremos no Islã — de que Sua Vontade é arbitrária e, assim, tem precedência até sobre Sua Natureza, como se Deus pudesse querer ser o que quer que fosse, até algo distinto de Deus. Este segundo erro, porém, talvez se descreva melhor como uma síntese da idolatria da Lei com a idolatria do Eu (ver abaixo), pois vê Deus como uma espécie de rebelde — um rebelde contra Si mesmo. Quando esse espírito de legalismo se expressa socialmente, torna-se um Estado policial tirânico, muito provavelmente (ao menos hoje) protetor de um monopólio econômico que empobrece as massas e as exclui da participação na vida da nação e/ou do mundo, e que resguarda o próprio poder por várias formas de propaganda, controle mental e terror de Estado. Expressa psicologicamente, torna-se o caráter rígido e autoritário, cheio de orgulho gélido, que reprime e domina seus próprios pensamentos, sentimentos, sensações e percepções tão brutalmente quanto qualquer ditador domina a população infeliz.

Idolatria do Destino
Deus é a natureza das coisas. O reconhecimento da natureza das coisas — que os chineses chamam Tao, os hindus
ta, e os antigos egípcios maat —, a manifestação do Ser necessário na ordem cósmica, é a base da espiritualidade contemplativa. O modo como as coisas naturalmente são — o reino da lei natural — manifesta-se como adequação, beleza e inevitabilidade; por meio dele podemos contemplar os Nomes Divinos ou as Ideias platônicas, os arquétipos eternos na mente de Deus.

A contemplação é como o espaço: vazia em si, mostra-nos o desenho pelo qual as coisas se relacionam fora do tempo, sub specie aeternitatis. A Lei entra no tempo, e por isso se manifesta como fala e Escritura pronunciada; a contemplação, por ser da natureza do espaço, é melhor simbolizada pelo maṇḍala hindu, pela caligrafia sagrada do Alcorão ou pelo ícone da Ortodoxia oriental. Mas quando a contemplação pura se obscurece, quando a receptividade primordial da alma se perde, então nasce o Destino. Já não podemos contemplar o padrão eterno das coisas; em consequência, o Sempre-Assim transforma-se no fatídico, no irremediavelmente inevitável. A superfície imóvel do lago contemplativo é perturbada pelo tempo — não o tempo criativo da lei sagrada, mas o tempo condicionado pelo medo do que possa acontecer no futuro, já que deixamos de ver a forma do que sempre é. Sob o regime do Destino, a causalidade vertical — o senso de que tudo acontece por virtude da vontade eterna de Deus para este momento particular — é velada e substituída pela causalidade horizontal. As causas passadas agora são vistas como a origem dos eventos futuros; mas, como as raízes do passado estão ocultas, a forma do futuro também o está. Os eventos tornam-se imprevisíveis porque suas causas estão veladas em mistério; pelo mesmo motivo, parecem inevitáveis.

Heráclito disse: “o caráter é o destino”, um oráculo que pode ser tomado de dois modos. Nas palavras do Profeta Maomé (sobre ele a paz): “quem conhece a si mesmo conhece seu Senhor.” Isto significa que, se alguém pode ver a si mesmo com a objetividade perfeita do Self Divino — a Testemunha — dentro da alma, verá aquele pequeno “eu” lá fora como projeção, no espaço e no tempo, de um arquétipo específico na mente de Deus — e então o destino não guarda surpresas. Todos os acontecimentos se mostram perfeitamente adequados à forma do si a que acontecem; a vontade de Deus para um indivíduo, num instante particular, é indistinguível da vontade desse indivíduo por si mesmo, pois ambas são uma. Por outro lado, se o caráter é inconsciente — e normalmente é, não importa quanta introspecção psicológica façamos ou quanta devolutiva recebamos, já que só quem somos realmente pode ser conhecido à luz objetiva de Deus —, então ele se projeta no mundo dos eventos como um destino misterioso do qual não escapamos, façamos o que fizermos. As mesmas coisas continuam a acontecer, repetidas vezes, e todas as tentativas de escaparmos apenas parecem acelerar-lhes o passo. As tragédias gregas, com seu senso da “falha fatal”, ilustram da melhor forma esse lado sombrio do dito de Heráclito.

Esses eventos obsessivamente repetitivos persistem por um tipo de esquecimento fundamental que os gregos chamavam amnesia e os muçulmanos, ghaflah — o esquecimento da Testemunha Divina em nós, que leva a uma incapacidade geral de atenção e ao desconhecimento de nosso caráter essencial e de nossas reais necessidades. Continuamos pedindo coisas, esquecemos que pedimos e então reagimos com choque quando desejos inconscientes se cumprem. Se estivéssemos conscientes dos desejos ocultos em nós, distinguiríamos entre caráter essencial e imposto, entre desejos acidentais, implantados pelas circunstâncias ou pelos projetos de outros, e desejos essenciais, inseparáveis de quem somos na mente de Deus. O primeiro tipo jamais pode ser realmente satisfeito; o segundo já está satisfeito, num mundo mais alto — um mundo que, paradoxalmente, só nos é desvelado por nossa luta para encontrar e cumprir nossos verdadeiros desejos neste mundo imperfeito, onde tal cumprimento nunca pode ser completo ou, mesmo quando parece sê-lo por um instante, jamais perdura.

Até despertarmos da amnésia, estamos sob o regime do Destino. Toda vez que algo “fatal” acontece, horrorizamo-nos ao perceber que ainda não escapamos da maldição. E, à medida que cada volta do destino, surgida do futuro misterioso, passa ao passado oculto, ela acrescenta-se ao estoque de carma aparente pelo qual o “passado” misterioso parece ser a origem do “futuro” oculto. Assim como o corpo pode viciar-se em certas drogas, nosso destino pode viciar-se em certos eventos. Quando um arquétipo eterno — um caráter na mente de Deus — é velado pelo obscurecimento da mente individual, ou da sociedade como um todo, ele se torna o centro de um ciclo kármico, um “círculo vicioso”: aquilo que Blake chamou de “círculo do destino”. Quando os estóicos tentaram absolutizar ciclos naturais na doutrina do “retorno eterno” — segundo a qual todos os eventos retornam sem fim do mesmo modo às mesmas pessoas por ciclos vastos e intermináveis —, ergueram o “círculo do destino” à condição de ídolo, como as Moiras gregas ou a deusa romana Fortuna, cuja adoração girava, literalmente, a conhecida “roda da fortuna”. Faziam-no reagindo a uma alienação do senso de eternidade prevalente na Antiguidade clássica. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, critica essa doutrina, dando a entender que a crença no círculo do destino funda-se, na verdade, num argumento circular, pois (eu acrescentaria) se as premissas sobre as quais um argumento se baseia não são vistas como axiomáticas — e assim eternas em relação ao movimento do argumento —, esse movimento se torna circular. Os que se lembram de Deus, na eternidade, conhecem todos os eventos como eternamente presentes. Os que se esquecem de Deus tornam-se como “pontos brancos em movimento” (Blake) entre um passado esquecido, dominado pela nostalgia, e um futuro misterioso, governado pelo medo. Vivem num mundo onde o esquecimento do passado é obrigatório, e onde todos os que se esquecem do passado estão condenados a repeti-lo.

A falsa religião do Destino manifesta-se ou como culto dos ciclos da natureza — como nos aspectos negativos e mecanicistas do astro-culto mesopotâmico de que provém a astrologia (que nem sempre é fatalista, pois por vezes se aproxima de uma visão dos arquétipos eternos) — ou como a negação calvinista do livre-arbítrio baseada numa doutrina errônea da predestinação, que vê a vontade eterna de Deus para o indivíduo como algo distinto da soma total de suas próprias decisões; ao passo que, na realidade, a “presciência” de Deus quanto às nossas decisões não as causa, mas é simplesmente Sua visão delas sub specie aeternitatis. Expressa psicologicamente e socialmente, essa adoração do Destino torna-se um “zodíaco” largamente inconsciente de tipologia social — de caráter imposto, não essencial —, onde os costumes sociais inconscientes determinam o destino do indivíduo por meio das expectativas da sociedade para com ele, expectativas que progressivamente se tornam as dele para consigo mesmo. Se o pecado da idolatria da Lei é o orgulho, o da idolatria do Destino é o medo. [NOTA: a melhor análise concentrada do Ídolo Destino que já encontrei é o conto “A Loteria na Babilônia”, de Jorge Luis Borges.]

Idolatria do Caos
Deus é vida infinita. A vasta profusão das “dez mil coisas” transborda eternamente na manifestação a partir da Infinidade Divina. Deus envia leis sagradas, mas é maior do que elas. Manifesta-se como a ordem cósmica, mas não por ela se limita. Em Deus não há barreiras à irradiação infinita do Seu Ser — e essa é Sua perfeita liberdade, liberdade que não começa a esgotar-se por universo após universo, pululantes de vida.

Mas nós não podemos agir como Deus age. Somos contingentes; Ele é Absoluto. Ele está além da forma; nós estamos adstritos às formas em que Ele nos criou. Ele nos transcende absolutamente. Quando isso é esquecido — quando Sua transcendência é velada e vemos apenas Sua imanência no mundo acessível aos sentidos, e então nos identificamos com ela —, começamos a crer que o caminho da liberdade passa pela informeidade e pela dissipação. Como perdemos a visão de como a forma emana do que está acima da forma, buscamos a Infinidade divina no que está abaixo da forma: numa intoxicação dionisíaca que termina como terminou com o rei Penteu, nas Bacantes de Eurípides. Penteu, rei de Tebas, despreza o novo culto de Dioniso (Baco, deus do vinho, talvez também do cogumelo amanita muscaria) que invadiu a Grécia e foi abraçado por mulheres — as bacantes — que dançam em êxtase e, no frenesi, dilaceram animais vivos. Dioniso assume a aparência de um tipo sombrio do submundo, é preso e levado ao palácio. Ali, oferece dizer a Penteu onde ele pode ver as bacantes em seu santuário secreto na floresta. Penteu, voyeuristicamente fascinado, aceita, vai espiar e é despedaçado por sua própria mãe, Ágave, que no delírio o toma por um animal. Eurípides diz que buscar a vida divina no que está abaixo da forma — idealizando e adorando a natureza animal — é ser feito em pedaços por nossa mãe, que é a natureza material; mater = matéria. Esta é a idolatria do Caos.

A falsa religião do Caos é a dionisíaca: inclui vários tipos de anarquismo político, social e moral; aquelas formas de falsa mística que identificam Deus com a informeidade em vez da Essência supra-formal, e “consciência superior”, de modo simplista, com intoxicação; e aquelas psicoterapias que fazem da liberação da constrição, da inibição e da “armadura de caráter” o fator central. Quem, como Penteu, é “civilizado” de modo tacanho — e não realmente culto, de modo amplo — buscará muitas vezes esse tipo de liberação num retorno à simplicidade da Natureza, concebida como paraíso materno de segurança, auto-indulgência, facilidade e irresponsabilidade — esquecendo que, por exemplo, nenhum bosquímano africano ou aborígene australiano sobreviveria um dia sequer sem grau de resistência, coragem e vigilância maior do que a maioria dos habitantes da cidade jamais possuirá. Se a emoção dominante do Destino é o medo, a do Caos é a vergonha.

Idolatria do Eu
Deus é o Sujeito Absoluto, o ātman, o Self transcendente e imanente, a imago Dei em cada um. Em virtude desse ātman, somos, no nível mais profundo do nosso ser, ao mesmo tempo únicos e universais. O Self em nós é Ser puro, impessoal e universal, sem atributos; segundo alguns metafísicos — entre eles Frithjof Schuon —, prefere-se descrevê-lo como “além-do-Ser”, dado que jamais pode ser objeto de consciência sujeito a definição, pois “o olho não pode ver a si mesmo”. Mas, porque Deus é único tanto quanto universal, esse Self é também o princípio de nossa integridade humana singular: a maneira pela qual não somos mera “humanidade” em abstrato, mas seres humanos concretos, comandados por Deus a ser precisamente nós mesmos — nem maiores, nem menores, nem outros. E, no entanto, essa unicidade é também universal, pois é partilhada por todos os seres humanos — na verdade, por todas as coisas. O Self como princípio de unicidade não é outro que o Self como princípio do Ser puro, como quando Deus, falando a Moisés no Êxodo, nomeia-Se: “Eu Sou o que Sou”: Minha Essência única não é outra senão Meu Ser puro; é Minha Essência única ser Ser puro.

E o que Deus pode dizer de Si, podemos dizê-lo também — certamente não de nossas personalidades humanas limitadas, mas de Deus, o ātman, em nós. Nas palavras de São Paulo: “Já não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim.”

Mas quando a unicidade se separa do ser, perde sua universalidade. É exatamente o que ocorre quando atribuimos unicidade só a nós e a negamos aos outros. Esta é a idolatria do Eu. Quando adoramos nossa própria individualidade separada como se fosse Deus, começamos a crer que isolamento voluntarioso é o caminho da integridade e que, nas palavras de Sartre, “o inferno são os outros”. Consequentemente, só conseguimos nos relacionar confortavelmente com os demais se os vemos como subordinados — isto é, como partes menores de nós mesmos. Eis a ironia da auto-adoração: buscando unidade e inteireza por meio do isolamento e da dominância, acabamos Gradualmente tornamo-nos cheios dos fantasmas de todas as relações que negamos e traímos. Nossa busca pela individualidade (“indivisão”) a todo custo resulta apenas em fragmentação. Nós mesmos nos tornamos “a multidão solitária”.
A falsa religião da Individualidade é o Prometeísmo, que inclui todas as formas de hybris: a crença solipsista e Nova Era de que “eu crio minha própria realidade” (quando a verdade é algo mais como “eu crio minha própria ilusão”); a ideia de que o desenvolvimento espiritual é uma espécie de façanha ou realização heroica a ser glorificada; a noção de que o indivíduo só pode obter integridade e significado rompendo a lei e rebelando-se contra os costumes; e a vontade dominante da sociedade ocidental — e agora global — de conquistar a natureza, negar a Deus e remodelar a vida humana de acordo com o mais demente “idealismo” imaginável, mesmo ao risco de destruir tanto a humanidade quanto a Terra.
Se a Lei é governada pelo orgulho, o Destino pelo medo e o Caos pela vergonha, a Individualidade é governada pela ira.

Esses quatro ídolos — Lei, Destino, Caos e Individualidade — são uma análise da ordem decaída da percepção conhecida, na teologia cristã, como “este mundo”. Eles não operam de forma isolada. A Lei tirânica e mecanicista assume o aspecto do misterioso Destino. Dizem-nos que a ignorância da lei não é desculpa; contudo, quem pode jamais conhecer essa lei em sua totalidade? E o Destino, na realidade, não é a operação do ser-em-si, mas de uma ordem estabelecida — embora oculta — das coisas, um sistema artificial, uma Lei idólatra.
A Lei tirânica imposta ao indivíduo produz o rebelde voluntarioso, e assim a Lei reforça a Individualidade. Imposta à sociedade ou à natureza, ela produz o Caos. E tanto a Rebelião quanto o Caos tornam necessária uma Lei cada vez mais tirânica, cega e mecanicista. Em nome da guerra às drogas, destruímos os direitos civis. Em nome da administração das áreas selvagens, queimamos o Parque Nacional de Yellowstone. Mas quanto mais cegamente tentamos impor ordem sobre a natureza e a sociedade, mais caos e rebelião criamos.

O Destino imposto ao indivíduo promove a Individualidade, já que ser voluntarioso e sofrer as consequências parece inevitável, enquanto o único modo de possuir integridade individual parece ser submeter-se ao próprio Destino: “um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer”, mesmo — ou especialmente — se os resultados forem fatais. E o Destino imposto à sociedade produz o Caos.
Se toda uma geração de adolescentes acredita estar fadada ao fracasso, o uso de drogas e a dissipação parecem a única saída, e a sociedade se dissolve. Assim, tanto o indivíduo voluntarioso fadado a morrer — como o herói irlandês Cuchulainn, que foi escolhido, empoderado, exaltado e condenado pela deusa Morrigan — quanto o indivíduo caótico destinado à degradação e à loucura são servos do Destino.
O indivíduo caótico é suscetível à vergonha diante daqueles indivíduos mais afortunados sobre os quais o Destino parece sorrir; e esses filhos e filhas afortunados devem manter sua alta posição na corte do Destino lançando vergonha sobre aqueles vulneráveis a ela, numa tentativa de evitar um destino adverso forçando outros a vivê-lo em seu lugar.
Assim, enquanto a Lei se manifesta como regras explícitas, o Destino frequentemente usa a máscara da moralidade social inconsciente. Se somos o “tipo certo de pessoa”, a sociedade nos acolhe; se somos o “tipo errado”, mesmo que nossas ações sejam impecáveis, perdemos.
E se tentamos libertar-nos dessa tipologia moral imposta, as únicas alternativas parecem ser rebelar-se violentamente ou abraçar a própria vergonha que a sociedade nos impõe — e superar seu estigma deleitando-nos nela. Mas deleitar-se na vergonha é apenas descer ao Caos, enquanto rebelar-se contra o Destino é sacrificar-se a ele.
Cuchulainn lutou contra a Deusa à qual devia seu poder, e foi destruído: rebelou-se contra seu destino, e, portanto, o encontrou.

Assim, podemos ver que tanto a submissão quanto a rebelião contra esses ídolos apenas lhes concedem uma realidade que de fato não possuem, aumentando, assim, seu poder. Submeter-se à falsa Lei é, em última instância, ser forçado a cometer os próprios crimes que essa Lei pune, assim como adorar uma falsa retidão moral é colocar-se sob uma falsa vergonha.
Nas palavras de Blake, “Prisões são construídas com pedras de [falsa] Lei / Prostíbulos com tijolos de [falsa] Religião.”
E rebelar-se contra a Lei é finalmente tornar-se ela mesma, como no conhecido destino do revolucionário bem-sucedido que substitui uma tirania por outra.
Além disso, tornar-se Lei é, em última análise, cair sob o poder do Destino, como quando o sistema estabelecido cresce além do controle daqueles que o administram e desce ao Caos.
Submeter-se ao Caos, numa busca ilusória de paz — como no caso do alcoolismo ou da dependência de drogas — é cair tanto sob a vergonha do Destino quanto sob a punição da Lei, e expor-se aos impulsos voluntariosos dos fragmentos separados ou “complexos” da própria alma, que fazem parte da Individualidade, tornando essa alma vulnerável também às vontades violentas e voluntariosas das Individualidades alheias.
Uma pessoa violentamente fora de controle atrai a violência de outras pessoas; uma mulher drogada corre o risco de ser violada.
E quando a alma toma essa vontade como sua, na esperança de se defender — quando se afirma agressivamente na tentativa de superar o Caos, ou de se defender da agressão dos outros — a Lei está sempre ali para sentenciar.
Do mesmo modo, aqueles que se rebelam contra a vergonha do Caos tentando ser “as pessoas certas” aos olhos de uma sociedade degenerada, que buscam a bênção moral do sistema de “este mundo” na tentativa de colocar o Destino a seu favor, acabarão encontrando-se vergonhosamente comprometidos.
Passando do Destino à Lei, tornam-se agentes do próprio sistema de opressão que antes buscavam combater — daquele estabelecimento tirânico cuja Lei cega e mecanicista criou o Caos em primeiro lugar.

Deveria ser óbvio, então, que “este mundo” não oferece saída, porque nenhum ídolo terreno isolado pode nos dar abrigo contra, ou poder sobre, os outros. Eles estão em conluio, e sua função é impedir-nos de vislumbrar qualquer Realidade fora dos termos desesperançosos que impõem.

Mas por que os ídolos primordiais são quatro em número? Seria isso apenas um modo conveniente de ver as coisas, ou há uma estrutura mais profunda subjacente a essa quaternidade? De certo modo, ambas as afirmações são verdadeiras. Os mistérios da Natureza Divina, de Sua relação com Sua manifestação criativa e de Sua distorção pelo ego humano, nunca podem ser perfeitamente definidos ou sistematizados — matematicamente ou de qualquer outro modo.
E, no entanto, no processo de contemplar esses mistérios, certas formas surgem, mais sugestivas das “coisas profundas de Deus” do que qualquer coisa que nossa consciência material ou psíquica possa perceber ou criar. De tradição em tradição, de momento em momento de insight espiritual, as formas que aparecem são sempre semelhantes, mas nunca idênticas, demonstrando assim tanto que Deus é perfeitamente concreto, infinitamente real e absolutamente único, quanto que Sua Essência última está completamente além da concepção.

Veja assim: o modo sujeito/objeto de percepção em que nos encontramos imersos, onde “eu” sou um sujeito humano e “aquilo lá fora” é um mundo, é uma projeção, em nível inferior, da auto-compreensão especular de Deus nas profundezas de Sua própria natureza. Oculto dentro da minha subjetividade humana perceptiva está o Sujeito Divino — Deus como a Testemunha eterna de todos os mundos. Oculto por trás do “mundo lá fora” está o Objeto Divino — o rosto de Deus eternamente presente por trás das formas e eventos de nossas vidas.
Assim, a díade “Deus e Seu Autoconhecimento” é o arquétipo da díade “eu e meu mundo” — fazendo quatro no total.

Quando o Sujeito Divino é velado, seu Objeto Divino é transformado de um reflexo perfeito daquela Testemunha em um mundo misterioso com “vontade própria” — o mundo do Destino. Simultaneamente, o Sujeito torna-se condicionado por sua tentativa de compreender esse mundo misterioso — em outras palavras, de impor-lhe a Lei a partir de fora, em vez de ver o padrão harmonioso dentro dele — e acaba por ser obscurecido. Tudo o que resta é o ídolo da Individualidade, uma subjetividade humana egóica e autoidentificada, tentando impor sua própria vontade sobre um “mundo lá fora” que, sendo condicionado e obscurecido por essa mesma subjetividade decaída, deve aparecer como um Caos sem sentido — como na visão de Heisenberg da indeterminação aleatória como princípio fundamental do mundo material.
Em outras palavras, à medida que a consciência cai do nível da Auto-compreensão Divina ao nível do egotismo humano, ídolos são gerados, preenchendo o vazio deixado pela (aparente) retirada da Presença de Deus.

Sob uma perspectiva, esses quatro ídolos são contrafações satânicas — as distorções egóicas — daquilo que, na Cabala hebraica, são chamados de “os quatro mundos”, que estão relacionados aos Quatro Seres Viventes (hayoth, em hebraico) que aparecem tanto na visão de Ezequiel quanto no Apocalipse de São João.
Do ponto de vista dos quatro mundos, a descida do Sujeito Divino ao ego humano não é uma “queda”, mas uma manifestação progressiva de Deus que jamais se aparta fundamentalmente da Natureza Divina.
Leo Schaya, em O Significado Universal da Cabala, descreve esses mundos nos seguintes termos, como a “anatomia esotérica” do Homem considerado como “imagem e semelhança de Deus”:

“A luz reveladora, criadora e redentora do Ser divino é, por assim dizer, ‘refratada’ através do prisma causal de seus aspectos, as Sefirot, na multiplicidade indefinida e variedade da manifestação universal. A imensa hierarquia de graus onto-cosmológicos, com tudo o que contêm, é estabelecida por essa ‘refração’ da luz divina; esses graus são recapitulados nos quatro ‘mundos’ (olamim), a saber: olam ha’atsiluth, o transcendente ‘mundo da emanação’, que é o das Sefirot; olam haberiyah, o ‘mundo da criação’ ideal ou espiritual, preenchido unicamente pela imanência divina (Shekinah); olam ha’yetsirah, o sutil ‘mundo da formação’, habitado por anjos, gênios e almas; e olam ha’asiyah, o sensório e corpóreo ‘mundo feito de fato’.” (p. 26)

“O homem é a imagem mais perfeita da realidade universal em toda a criação; ele é a recapitulação ‘encarnada’ de todos os graus cósmicos e de seus arquétipos divinos... representa o símbolo mais evidente das dez Sefirot, e sua personalidade integral abrange todos os mundos: seu ser puro e incriado identifica-se com o sefirotico ‘mundo da emanação’... seu espírito, com o prototípico ‘mundo da criação’... sua alma, com o sutil ‘mundo da formação’... seu corpo, com o sensório ‘mundo de fato’.” (p. 70)

O “mundo da emanação” está relacionado ao Sujeito Divino; é o arquétipo da lei sagrada — as dez Sefirot sendo os protótipos dos Dez Mandamentos.
O “mundo da criação” relaciona-se ao Objeto Divino; é o arquétipo da sabedoria e da contemplação.
O “mundo da formação” relaciona-se à forma sutil do cosmos como objeto do sujeito humano individual; é o arquétipo da energia vital universal, do mundo percebido considerado como shakti — ou energia radiante e auto-manifestante — desse sujeito, em virtude do Sujeito Divino oculto dentro dele.
O “mundo de fato” relaciona-se à unicidade da pessoa humana; é o arquétipo do próprio sujeito humano, representado pelo corpo, o fato mais concreto de nossa experiência.
A idolatria da Lei é, assim, a contrafação do mundo da emanação; a idolatria do Destino, a do mundo da criação; a idolatria do Caos, a do mundo da formação; e a idolatria da Individualidade, a do mundo de fato.

Mas qual é a saída desse sistema do mundo decaído?
A resposta verdadeira e suficiente a essa questão é: sondar a profundidade e cumprir as condições de qualquer uma das grandes religiões ou tradições de sabedoria, que foram enviadas por Deus para nos salvar de nossa condição humana decaída, esquecida ou ignorante.
E a resposta especificamente intelectual — ou jñânica — dentro do contexto de uma dessas tradições, sinceramente abraçada e plenamente vivida, é: não lutar com as formas da ilusão idólatra, não rebelar-se contra, nem buscar poder nas sombras de Deus, mas simplesmente vê-las — e, assim, vê-las através.

Por trás do Destino está a pura contemplação, cujos símbolos incluem a Prajnaparamita budista, a Mulher-Búfalo-Branco dos Lakota e a Santa Sabedoria judaico-cristã.
Por trás da Lei está a função profética que Blake chamou de Imaginação — pela qual os princípios eternos renovam para sempre sua aliança com os momentos únicos de nossas vidas.
Por trás do Caos está a shakti, o poder universal do Absoluto — o “Espírito de Deus” que “se movia sobre a face das águas” — e que, em seu modo redentor, é a atração cósmica de todas as coisas de volta à sua única Fonte transcendente.
E por trás da Individualidade está o Vidente invisível — o Único Eu de Todos, dentro do coração humano.
À medida que despertamos para esses quatro aspectos do Divino, essas “quatro criaturas viventes” — pela graça de Deus e por nossa plena e voluntária cooperação com ela — o ego abstrato e separado se dissolve na luz da Única Realidade.

Mas, retornando ao nosso tema principal: como esse sistema de idolatria, e o mundo decaído fundado sobre ele, relaciona-se ao Anticristo?
Se tomarmos o Anticristo como um indivíduo, podemos ver os quatro ídolos primordiais como uma espécie de análise de seu caráter. Em outras palavras, podemos esperar que o Anticristo — e o sistema que ele administra — seja simultaneamente o mais autoritário, o mais rebelde, o mais caótico e o mais fatalista imaginável.
(Até o grau em que o Anticristo é o “símio de Cristo”, contudo, seu caráter como quintessência da idolatria será oculto do povo. Seu fatalismo parecerá a eles certeza e segurança; seu caos parecerá liberdade e espontaneidade; sua rebeldia parecerá coragem e integridade; e seu autoritarismo, a aura do direito divino.)

Todos esses quatro elementos, em algum grau, aparecem no caráter de Adolf Hitler, que pode certamente ser descrito como um precursor do Anticristo.
Seu autoritarismo é óbvio, pois ele criou um estado policial de ferro sobre a maior parte da Europa.
Mas ele também foi um rebelde — um revolucionário “socialista” — que derrubou o poder hereditário da nobreza alemã e dos junkers proprietários de terras.
Seu apelo à geração de seu tempo foi um chamado à “rebelião” contra a autoridade real ou imaginada: o Tratado de Versalhes, a República de Weimar, os judeus.
E, no entanto, sua linguagem e, em última instância, suas ações eram fatalistas.
Em Mein Kampf, ele apelou a “deuses” como “natureza” e “destino” para sustentar a afirmação de que seu Reich estava destinado a durar mil anos — fazendo dele, incidentalmente, uma contrafação satânica do milênio cristão.
Ele depositava grande confiança em astrólogos e outros prognosticadores.

E, tardiamente na guerra, com a Alemanha em plena retirada, quando poderia ter reduzido suas perdas — militar e politicamente — de muitas maneiras, escolheu ver a derrota da Alemanha em termos fatalistas.
Em vez de reconhecê-la como um revés sério, mas não terminal, para a nação, viu-a como um Götterdämmerung — uma catástrofe apocalíptica inevitável.
Longe de tentar evitar esse destino, demonstrou a profundidade de seu culto ao destino ao, em última análise, aliar-se a ele — fazendo tudo o que pôde para torná-lo o mais destrutivo possível.
Ordenou que os depósitos vitais de alimentos e as fábricas restantes da Alemanha fossem destruídos, e até inundou o metrô de Berlim, matando milhares de cidadãos alemães que haviam se refugiado ali contra o Exército Vermelho invasor.

E, além do caos criado por seu autoritarismo, rebeldia e fatalismo, ele também incorporou a autocomplacência caótica ao seu programa partidário — como no movimento “Força pela Alegria” dentro da Juventude Hitlerista, onde a promiscuidade sexual tornava-se quase obrigatória.
Além disso, sua tomada de decisões errática, especialmente nos últimos tempos da guerra — para citar apenas um entre muitos exemplos — demonstrou o caos fundamental de seu caráter.

Mas nem sempre precisamos recorrer a Hitler para compreender o sistema do Anticristo, embora ele seja sempre um exemplo de caso altamente valioso.
E quanto à sociedade global atual? Regimes ditatoriais, terrorismo religioso e étnico, uma ordem econômica multinacional que enriquece poucos e empobrece as massas, cartéis criminosos multinacionais que lucram enormemente com esse estado de coisas, uma degeneração moral generalizada que chama à existência códigos e atitudes morais repressivos, o ambiente natural descendo ao caos, ameaçando nosso suprimento de alimento e oxigênio, gerando novas doenças; várias propostas para transformar o corpo humano — por meio da engenharia genética, da biônica, da psicofarmacologia e do controle eletrônico da mente — em um robô biotecnológico a fim de controlar esse caos social e biológico, senão a fantasia final de “carregar” a consciência humana em computadores sofisticados e assim dispensar inteiramente o corpo — este é o estado do mundo em que vivemos.

E assim, aqueles que desejam identificar o exato ano e mês em que o Anticristo aparecerá talvez estejam perdendo o ponto: em certo sentido, ele já está aqui.
E mesmo que esteja destinado a manifestar-se em algum momento como um único indivíduo — como preveem os cristãos evangélicos, os muçulmanos tradicionais e os escritores tradicionalistas (notavelmente René Guénon e Martin Lings) — ainda assim não podemos isolá-lo convenientemente dentro dessa forma individual e desse período histórico.
Ele está em toda parte e em todos os tempos na ordem decaída da história humana, porque, em essência, ele nada mais é do que o ego humano em rebelião contra Deus.
Ele tem estado virtualmente presente na alma humana — e em sua expressão social — desde que Adão e Eva comeram a maçã.

Sophión — prossigo com o segundo bloco (a partir de “In the ’60s it was generally true…”)?

Você disse:

sim

O ChatGPT disse:

Nos anos 1960, era geralmente verdade que aqueles com formação liberal ou de esquerda tendiam a ver a tirania política ou econômica (Lei) e a moralidade repressiva e compulsiva (Destino) como os males supremos; enquanto pessoas de formação conservadora ou de direita eram mais propensas a considerar como absolutos os males da revolução violenta e/ou da atividade criminosa (Individualidade) e da degeneração moral (Caos).
Essa avaliação ainda é, em grande medida, precisa. Contudo, tem sido igualmente verdadeiro, pelo menos desde o final dos anos 1970 — se não desde os 1930 — que os liberais “politicamente corretos” se identificam com certas políticas governamentais estabelecidas que os conservadores veem como tirânicas; e agora que a tocha radical antigovernamental passou dos revolucionários de esquerda para as milícias secessionistas de direita, muitos conservadores, tanto radicais quanto moderados, percebem o governo como os escolhendo para perseguição.

Mas, em qualquer caso, não posso enfatizar o suficiente que essas visões parciais — por mais verdadeiras que possam ser em seu próprio domínio — são totalmente insuficientes para definir a manifestação social do mal espiritual que aqui chamamos de Anticristo.
O mal infernal pode utilizar qualquer conjunto de costumes sociais e qualquer sistema político ou econômico para construir seu poder, já que uma de suas estratégias é criar conflitos insolúveis baseados em alternativas falsamente definidas.
Em outras palavras, ele traça as linhas do conflito de modo errado; de forma que, por exemplo, “liberais” que acreditam defender a santidade da vida como um absoluto — opondo-se a toda guerra e defendendo até o pior assassino em massa contra a pena de morte — acabarão apoiando o suicídio assistido por médicos, surdos a todos os relatos de seus abusos (bem como ao entendimento de que ele é, em si, um abuso); enquanto “conservadores” que se opõem veementemente ao uso de drogas ilegais tomam alguém como Ollie North por herói, ignorando todas as evidências de que ele possa ter participado do contrabando de cocaína para ajudar a financiar a guerra secreta dos Contras.

E uma vez que o conflito entre o bem e o mal é falsamente definido, toda a coragem e idealismo do mundo só servem para fortalecer o mal e erodir o bem.
As forças infernais colocam direita contra esquerda, judeus contra muçulmanos, mulheres contra homens — de tal forma que suas posições respectivas tornam-se tão estreitamente concebidas que o dano é feito e a escuridão se espalha, não importa de que lado se tome — uma situação que levou W. B. Yeats, em seu poema
The Second Coming, que profetiza o advento do Anticristo, a descrever os últimos dias como um tempo em que “os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada.”

Isto não quer dizer, é claro, que alguns sistemas sociais não sejam melhores do que outros, nem que não sejamos às vezes chamados a tomar partido em conflitos sociais.
Nem todas as oposições percebidas são ilusões demoníacas; crer nisso seria, por si só, uma ilusão.
Mas, a menos que tenhamos uma visão suficientemente ampla da natureza do mal coletivo — que nada mais é do que a expressão exterior do poder do ego humano, e das forças infernais que esse ego invoca para perverter e apropriar-se de tudo o que possa imaginar —, jamais compreenderemos o sistema do Anticristo, e poderemos, consequentemente, encontrar-nos involuntariamente prestando-lhe tributo, mesmo (ou especialmente!) no próprio ato de combatê-lo.
É verdade que Jesus disse: “Não vim trazer a paz, mas a espada” — mas também disse: “Não resistais ao mal” e “Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés.”

A Escola Tradicionalista não é senão conservadora, pois sua teoria da história baseia-se na degeneração “entrópica” do homem e da sociedade a partir de uma Idade de Ouro original.
Mas eu próprio alcancei seu limiar movendo-me através — e, espero, além — da contracultura liberal e do mundo da política esquerdista, e certamente não repudiei todos os valores que aprendi naquele campo ambíguo.
Ainda assim, como Christopher Lasch em The True and Only Heaven, precisei (ao menos) separar os valores da “democracia” daqueles do “progresso”.

Segundo o relato exposto na República de Platão sobre a degeneração da sociedade humana ao longo do éon, primeiro vem a “aristocracia”, que Martin Lings identifica com a teocracia; é o governo dos “melhores”, os intelectuais espirituais — em termos hindus, a casta dos brâmanes.
Em seguida surge a “timocracia”, o governo dos que têm caráter nobre, o rei e seus cortesãos — a casta dos kshatriyas.
Depois vem a “oligarquia”, o governo por uma classe indefinida de indivíduos poderosos — talvez os ricos, já que outro nome dado por Platão à oligarquia é “plutocracia”.
Após a oligarquia vem a “democracia”, o governo pelo povo.
E, por fim, vem a “tirania”, o governo por ditadores e demagogos.

Portanto, segundo essa visão, ainda que lamentemos não sermos mais governados por reis e filósofos sábios (na medida em que um dia o fomos) — lembrando que o próprio “trono” podia ser algo bom em tempos em que a instituição estava espiritualmente viva, mesmo que um rei em particular abusasse de sua autoridade e, por isso, fosse justamente deposto —, o fato de estarmos agora na fase da democracia significa que devemos manter nossa posição aqui o máximo possível, quaisquer que sejam as falhas da democracia, pois a única alternativa, segundo Platão, é a tirania.

E essa tirania — autoritária, rebelde, caótica e fatalista — será a expressão sociopolítica (a Besta) da disposição cultural e psíquica de massa dos tempos finais (a Meretriz), que é o reflexo de uma ordem espiritual contrafeita e, portanto, satânica (o Dragão).
Esta é uma possível formulação — e acredito que útil — do sistema do Anticristo.

Mas devemos ter cuidado para nunca supor que aquilo que mais nos repele e nos parece mais maligno deva necessariamente ser o regime do Anticristo.
Em termos mundanos — e “o mundo” lançou raízes profundas na alma da maioria de nós —, o Anticristo parecerá uma boa proposta. Ele nos atrairá fazendo um apelo pervertido ao que há de melhor em nós.
Ele não apenas tomará o poder; também se apropriará dos valores.

No relato muçulmano xiita, o Mahdi — o “messias” islâmico, às vezes identificado com Elias, que aparecerá antes da Segunda Vinda de Jesus — usará um turbante amarelo, e os servos do Anticristo, turbantes verdes.
Isto é curioso, pois a cor amarela, no Islã, costuma simbolizar fraqueza, assim como, no simbolismo popular ocidental, representa covardia ou doença contagiosa.
Mas o verde é a cor do Paraíso — especificamente, em alguns sistemas, do Paraíso da perfeição da Imanência Divina, que vem após a negritude da Essência Divina transcendente e incognoscível, e assim representa o mais alto grau de realização.
Portanto, no regime do Anticristo — como previu René Guénon — o significado do simbolismo espiritual será invertido.
Como está escrito em 2 Coríntios 11:14: “O próprio Satanás se transfigura em anjo de luz.”


A Guerra Contra o Amor

O mundo moderno não apenas perverte nossas crenças e nossas ações; ele também devasta nossos sentimentos — testemunha disso é a violação, por quase todos os setores da sociedade contemporânea — religiosa, secular e “esotérica” —, do domínio do amor romântico.
Costumávamos dizer: “O amor tudo conquista”; mas, como nada nos resta agora da palavra “amor” senão uma sentimentalidade muda e a reação automática ao estímulo sexual, esquecemos o poder incomparável daquele Conquistador — esquecemos que somente o Amor pode colocar todas as faculdades humanas, incluindo coragem, autossacrifício e inteligência estratégica, a Seu serviço.

O amor romântico tem sido um alicerce oculto — e às vezes um pilar reconhecido — da civilização europeia por quase mil anos.
Alcançou sua expressão literária mais alta no
Parzival, de Wolfram von Eschenbach, e na Divina Comédia de Dante — o maior compêndio único de conhecimento espiritual da cristandade ocidental — onde a tradição dos trovadores foi plenamente reunida à tradição cristã, culminando na figura de Beatriz Portinari como encarnação da Santa Sabedoria.
E, sendo eu — se minha genealogia familiar é precisa — o vigésimo nono descendente direto (embora muitas vezes pela linha feminina) de Leonor da Aquitânia, que presidiu os famosos Tribunais do Amor, e portanto o trigésimo primeiro na linhagem de seu avô Guilherme de Poitiers, o primeiro trovador, meus ancestrais agora me impelam a falar novamente em nome do Amor, diante das trevas dos últimos dias, e a refutar a calúnia do “Mundo” de que o Amor é cego.
Ao contrário, é a paixão que é cega; mas a visão do Amor penetra como uma flecha na profundeza do Coração espiritual.

O Anticristo será a concha perfeita.
Ele será política, cultural, religiosa e até metafisicamente “correto”.
Tudo o que fizer, segundo todos os critérios explícitos, parecerá, a princípio, certo.
Aqueles que o reconhecerem e se opuserem a ele não parecerão espirituais aos olhos do mundo — talvez nem mesmo aos próprios olhos.
Parecerão desequilibrados, arrogantes, reacionários, mesquinhos.
Diante da imensa vacuidade da Besta, somente uma natureza emocional sã — que tenha suportado a vergonha do Amor, cujos sentimentos estejam enraizados no próprio Amor — terá poder para sentir o cheiro da corrupção, dos “ossos de homens mortos e de toda imundícia”, ocultos naquele sepulcro caiado.


O Amor de Muitos se Esfriará

O sistema do Anticristo será — e já é — um regime articulado e estabelecido de frieza emocional.
Ao criticar tendências sociais corruptas ou ideias metafísicas falsas, nunca devemos esquecer que a mente não pode ser obscurecida, nem a sociedade humana tornar-se verdadeiramente monstruosa, a menos que os afetos também estejam poluídos por falso brilho, entorpecidos e petrificados pela arrogância e pelo auto-desprezo, envenenados pela dor não vivida e pelo medo reprimido.

A praga da frieza emocional, agora pandêmica no mundo, nos afeta sem que o percebamos.
Atrocidades grotescas podem, por instantes, despertar-nos para nossa condição coletiva, mas também nos entorpecem.
Uma vez erodida nossa confiança fundamental em Deus — supondo que algum dia a tenhamos possuído —, buscamos segurança emocional na sociedade humana, num tipo de calor mamífero coletivo que esperamos nos proteja da ansiedade metafísica que sentimos.
E, quando a sociedade se torna insegura, tentamos recuar ainda mais — até o próprio instinto.
Assim como o sentimentalismo humanista substitui a fé em Deus, também a dependência da energia, do fascínio e da ferocidade das reações emocionais sub-humanas substitui o sentimento.
Mas, como o comportamento humano coletivo começa a demonstrar, há ainda menos segurança no instinto do que na sociedade, pois, para que a sociedade humana exista, é necessário que se exerça certa medida de responsabilidade humana — alguém tem de “cuidar da loja”.

Em 2 Timóteo 3:3, São Paulo diz que, à medida que a era se aproxima de seu fim, as pessoas serão “sem afeto natural”.
E a cultura americana contemporânea — limitando minha crítica ao que conheço em primeira mão — mostra todas as evidências disso.
É comum que pais abusem dos filhos, e não é desconhecido que filhos matem os pais.
Uma falta de amor onipresente levou a um achatamento emocional geral e a um enfraquecimento da textura da alma — como se, em nossa ânsia por segurança, aspirássemos inconscientemente a transformar-nos em algo semelhante a imagens geradas por computador: tais imagens não podem sofrer angústia existencial, e há pouco a lamentar se acabam sendo “apagadas”.
Esse achatamento emocional manifesta-se, em termos grosseiros, como uma praga de violência psicótica — como se os perpetradores de crimes monstruosos tentassem, de algum modo, chocar-se de volta à realidade tridimensional (embora apenas se entorpeçam ainda mais) — e, de modo mais sutil, como uma falta disseminada do que antes se chamava “cortesia comum”, aparentemente baseada num medo profundo — eu quase diria supersticioso — do sentimento.
E esses dois polos não são alheios entre si, pois uma insensibilidade coletiva aos sentimentos dos outros significa que todos estão sempre sendo ofendidos — e pessoas ofendidas estão sempre ficando furiosas.

Os efeitos desse congelamento da alma humana são mais evidentes no mundo das relações heterossexuais.
Entre suas consequências estão a promiscuidade, a monogamia serial insípida e o que chamo de “casamento paralelo”, derivado dos costumes da cultura dos solteiros e sustentado pela estrutura da família de dupla carreira, em que o cônjuge é apenas uma espécie de colega de quarto, onde o ato prático de enfrentar o mundo substituiu quase completamente o ato emocional de enfrentar um ao outro.

O sociólogo Herbert Hendin, escrevendo em 1975, quando o atual regime de frieza emocional estava sendo estabelecido no rescaldo das convulsões psíquicas e sociais dos anos 1960, registrou esta impressão dos estudantes universitários que estudou:

“As mulheres… para se protegerem da raiva masculina… tentam criar uma vida que parece expressamente concebida para eliminar a possibilidade de serem afetadas por um homem. O medo do envolvimento é profundo, difuso… um medo de ser totalmente aniquilada, ou de perder a luta pela autoafirmação… a maioria das jovens evita a verdadeira intimidade com um homem, sentindo que o próprio ato de se importar é autodestrutivo… para ambos os sexos na sociedade, importar-se profundamente com alguém está se tornando sinônimo de perder… Numa cultura que institucionaliza a falta de compromisso, é muito difícil ser comprometido; numa nação que parece determinada a despojar o sexo de romance e ternura, é muito difícil ser um amante terno e fiel.”

Essas palavras ecoam, de muitas maneiras, as do poeta alemão medieval Gottfried von Strassburg — apenas para nos lembrar que o Amor tem estado sob ataque neste mundo desde que a humanidade buscou, pela primeira vez, o fruto de um “conhecimento” que o Amor não pode dar:

“Lamento o amor com todo o meu coração; pois embora quase todos hoje o abracem e se apeguem a ele, ninguém lhe concede o que lhe é devido.
Todos queremos nosso prazer dele, e conviver com ele.
Mas não! O amor não é o que nós, com nossos enganos, estamos agora fazendo dele uns para os outros…
É realmente verdade o que dizem: ‘O Amor é perseguido e caçado até os confins da terra.’
Tudo o que possuímos dele é a palavra — o nome apenas nos resta; e isso, também, já o desgastamos tão maltratado, mal-usado e vulgarizado, que a pobre criatura se envergonha de seu próprio nome, enojada até com o som dele.

Quando o coração de uma pessoa se torna frio, ela já perdeu a faculdade pela qual essa frieza poderia ser discernida — assim como alguém cuja consciência morreu já não pode sentir a própria falta de consciência, ou alguém cujo paladar se tornou embotado já não pode “provar” o próprio mau gosto.
Há muitos entre nós — oremos para que não estejamos entre eles — cujos corações já estão mortos, deixando suas mentes racionais relativamente intactas, e até mais capazes, em certos aspectos, de operar com eficiência numa sociedade baseada na “maldade espiritual nos lugares elevados”, numa frieza psicopática que caminha para tornar-se a norma.
Como disse Jesus, quando seus discípulos lhe perguntaram quais seriam os sinais de sua vinda ao fim do mundo presente: “E por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará” (Mateus 24:12).

A história desse congelamento inconsciente das emoções é contada por Hans Christian Andersen em seu conto “A Rainha da Neve”:
Um demônio — que é também um professor, ou mestre-escola — inventa um espelho no qual tudo o que é mau cresce até proporções monstruosas, enquanto as coisas boas aparecem distorcidas e diminuídas.
Ele e seus alunos viajam pelo mundo inteiro com o espelho, zombando de tudo o que é bom.
Tentam até voar até o céu para zombar dos anjos, mas quanto mais alto sobem, mais pesado o espelho se torna, até que escorrega de suas mãos e despedaça-se em um milhão de fragmentos.
Alguns pedaços do espelho são usados para fazer janelas, através das quais o mundo parece feio e distorcido.
Minúsculos estilhaços penetram nos olhos das pessoas, destruindo-lhes a capacidade de ver o bem em qualquer coisa, enquanto outros se alojam em seus corações — que então se congelam em blocos de gelo.

Esses acontecimentos anunciam a vinda da Rainha da Neve, que habita um palácio de gelo além do Círculo Polar Ártico e sobrevoa o mundo com a nevasca, destruindo o calor e o amor onde quer que os encontre.
O jovem herói do conto é sequestrado e levado ao seu palácio, onde é ensinado a jogar um tipo de jogo de tabuleiro chamado “as imagens de gelo da razão”. Ele é finalmente resgatado por sua amiga de infância, que deve empreender uma longa e perigosa busca para encontrá-lo e restaurar-lhe a alma.

“A Rainha da Neve” é, sem dúvida, uma alegoria inconsciente da queda do “Paraíso Hiperbóreo”, mencionado por René Guénon como a terra original da Tradição Primordial — cujo último vestígio folclórico, por estranho que pareça, é o mito do Papai Noel.
A Rainha da Neve é uma espécie de “Anti-Papai Noel”, que substitui o calor e a generosidade por uma possessividade gélida.
O mesmo tipo de frieza pode afetar aqueles que tentam compreender as ideias metafísicas apenas com a mente.
Em muitos contos de fadas — como o espanhol “O Papagaio Branco” ou o persa “O Teixo do Banho” — qualquer um que se aproxime do Centro sagrado com a atitude errada (por exemplo, curiosidade ou fome de poder) é transformado, não em gelo, mas em pedra.

“A Rainha da Neve” é a história da ocupação do “polo” — o centro espiritual da consciência humana — pelo regime do racionalismo materialista, articulado nas altas academias e difundido às massas por meio do sistema público de ensino, velando a percepção direta de Deus e destruindo a fé pela qual tal percepção poderia ser restaurada.
O “ponto imóvel do mundo girante”, simbolizado pela Estrela Polar — o ponto onde a Eternidade intercepta o tempo —, é transformado no regime do Destino: nas constelações que giram inexoravelmente, como no Relógio do Mundo.
Esse regime expressa-se, em termos da ciência do século XIX, como determinismo mecanicista; e, em teologia, pelo erro conhecido como Deísmo, que negava a imanência de Deus em Sua criação, reduzindo-a a um mecanismo sem alma.

Se, como diz Schuon, o Renascimento foi a vingança do Paganismo clássico sobre a Cristandade, podemos ver a figura da Rainha da Neve — que, no final do conto, é vencida pelo amor cristão — como uma união simbólica do Neopaganismo com o cientificismo (ambos oriundos, em última análise, do Renascimento), algo semelhante à Deusa da Razão adorada nas catedrais dessacralizadas da França durante a Revolução.

A maneira de Andersen opor-se à frieza do materialismo racionalista foi através da sentimentalidade — que, como observa Guénon, não passa da expressão afetiva do próprio materialismo.
Uma vez que o materialismo nega a existência das realidades superiores acessíveis à Intelectualidade, a emoção deve agora enraizar-se não na Verdade eterna, mas no mundo da natureza e dos sentidos — um mundo sujeito ao tempo e à decadência.
Essa orientação invertida transforma inevitavelmente a emoção humana sã e inteligente em sentimentalismo, nostalgia e atração pela morte — como nos poetas românticos ingleses e alemães que adoravam a natureza em vez de Deus.

Para aqueles que possuem um senso de transcendência, o mundo da natureza — como a forma humana, de que é a shakti viva — é o locus da manifestação de todos os Nomes e Energias de Deus.
Para os que carecem desse senso, é um campo de batalha sem coração, um mecanismo biotecnológico e, em última análise, um cemitério — quer consigam ou não lançar sobre ele um manto temporário de fascinação lírica.

Quando Guénon escrevia, o regime do sentimentalismo burguês estava em plena força; basta lembrarmos a veneração vulgar e açucarada pela “Pequena Flor”, Santa Teresa de Lisieux, para percebermos contra o que ele lutava como expositor da metafísica pura — embora devamos lembrar, como observa Thomas Merton, que Santa Teresa era uma santa verdadeira.
O próprio Schuon tinha grande respeito por ela e até acreditava que alguns de seus escritos continham elementos de verdadeira gnose.

Essa batalha contra um emocionalismo degenerado explica em parte por que Guénon escrevia com sua peculiar marca de sang-froid, o que levou alguns a descrevê-lo como “um olho sem corpo”.
Para defender-se — e defender sua missão — contra sentimentalidades e entusiasmos falsos de toda espécie, ele escrevia sem fervor, protegido apenas pelo espinho de uma ironia distante e medida.

O sentimentalismo, contudo, já não é o nosso problema.
Se há um único sinal da transição do crepúsculo da era moderna para a aurora do pós-modernismo, é a fúria tanto da cultura popular quanto da acadêmica em derrubar todos os ídolos do sentimento — ídolos bem estabelecidos desde o fim dos anos 1950 e início dos 1960.
Se as emoções oficialmente consagradas da era vitoriana eram o triunfalismo e o sentimentalismo, nosso status quo pós-moderno, por sua vez, impõe a vulgaridade, o entorpecimento emocional, o terror, o fascínio sinistro, o desgosto e o desespero.

Que o pós-modernismo, enquanto regime cultural, possa presumir “estabelecer-se” sobre tal fundação de areia é uma perfeita ilustração do princípio de “uma casa dividida contra si mesma”.
Ela não permanecerá.

Como a Negação do Amor Pode Perverter a Metafísica

Nestes tempos, em que todas as relações humanas primordiais estão sendo sistematicamente devastadas — pela mecanização da reprodução, por exemplo —, muitos de nós temos tentado refugiar-nos em Deus diante da destruição do amor humano, tanto por meio da identidade de grupo oferecida pela religião exotérica quanto através dos mistérios e lutas do Caminho espiritual.
Mas, como o próprio estado de decadência cultural que levou o amor humano à beira da extinção também removeu os apoios exotéricos normais do Caminho esotérico — por exemplo, o apoio de uma moralidade social fundada espiritualmente, que tanto nutre quanto protege e vela a Realidade interior —, o empreendimento esotérico em si está agora mais exposto à mundanidade e ao “materialismo espiritual” talvez mais do que em qualquer outro momento de sua história.

O Caminho espiritual está sendo cada vez mais concebido não como a coroa da vida humana, mas como um substituto dela; esquecemos que “ninguém vem ao Pai” — à transcendência de Deus — “senão por Mim” — pela humanidade de Deus.

Como escreveu Schuon:

“No caso de algumas pessoas, a intenção de amar a Deus traz consigo a incapacidade de amar os homens; ora, esta segunda destrói a primeira. Numa alma vulgar, o zelo pelo amor espiritual e pela mortificação pode trazer consigo um egocentrismo gelado...”

Lamentavelmente, o mesmo pode ser dito de um Caminho espiritual que enfatiza a Intelectualidade em detrimento da devoção sentimental — não porque essa ênfase não seja plenamente justificada no caso do temperamento espiritual jñânico, mas porque uma certa proporção daqueles atraídos pela metafísica e pela ideia de Intelectualidade inevitavelmente interpretará isso como significando que o apego ao conhecimento espiritual justifica, ou mesmo exige, o abandono do amor espiritual e humano.

Mas, como Schuon nos adverte em Spiritual Perspectives and Human Facts:

“Um culto à inteligência e à paixão mental afasta o homem da verdade.
A inteligência retira-se tão logo o homem confia apenas nela.
A paixão mental que persegue a intuição intelectual é como o vento que apaga a luz de uma vela.”

Minha esposa, Jennifer Doane Upton, em seu ensaio “A Visão de Dante sobre o Amor Espiritual”, trata desse erro:

“Costuma-se assumir, no mundo de hoje, que o sentimento é estritamente subjetivo.
Mas é mais exato dizer que alguns sentimentos são objetivamente verdadeiros e outros objetivamente falsos.
Se você ama um demônio, por exemplo, seus sentimentos não são verdadeiros.
O mundo moderno deleita-se nas paixões, mas, de muitos modos, tenta matar a ‘voz mansa e delicada’ do sentimento objetivo.
O sentimento verdadeiro pode muitas vezes parecer pequeno e sem importância, como flores alpinas, ainda que essas plantas aparentemente insignificantes possuam o poder de suportar grande frio.”

Muitas pessoas hoje que têm interesse pela metafísica tendem a acreditar que os sentimentos são meros “acidentes”.
No entanto, alguém pode perder a alma por meio de um sentimento falso, enquanto o sentimento verdadeiro pode salvá-la — e nada que diga respeito à salvação ou à danação pode ser apenas acidental.

Em Paraíso 26:59–63 (tradução de Allen Mandelbaum), Dante diz:

“A Morte que Ele sofreu, para que eu vivesse,
E a esperança à qual os fiéis, como eu, se apegam,
Juntamente com esse conhecimento vivo [isto é, as ‘mordidas’ do Amor Divino em união com o amor humano] asseguraram
Que, do mar do amor errado, eu fosse trazido
À praia do amor correto, e ali permaneço firme.”

Dado o conceito prevalente nos círculos metafísicos de que os afetos são acidentais, alguns concluem que, sendo a alma o domínio dos afetos, ela é, portanto, o princípio das paixões e dos vícios, incluindo o orgulho.
Mas o sentimento certamente não é mais inerentemente orgulhoso do que o pensamento.
O sentimento verdadeiro relaciona-se aos aspectos mais espirituais da alma; apenas o sentimento falso está envolvido com as paixões.
E o Amor, que é de origem divina, pertence a mais do que a alma sensível.
Mas, embora o Amor seja mais do que sentimento, ele nunca exclui o sentimento; se o Amor está presente, o sentimento está presente.
O sentimento pode estar ali de modo oblíquo; às vezes alguém pode ser mais objetivamente amoroso ao agir contra certos sentimentos.
Ainda assim, o Amor é sempre a coroa do sentimento verdadeiro — o que significa sentimento objetivo.

Em Paraíso 26:28–39, lê-se:

“O bem, assim que é percebido como bem,
Acende o amor e o faz mais viver,
Quanto mais de bem puder incluir em si.
Portanto, à Essência, cuja prerrogativa
É que o bem conhecido fora dela
Não é senão a luz que seus raios dão,
Mais do que a outro lugar deve, em amor,
Tender a mente de quem vê a verdade
Em que o fundamento da prova repousa.”

Essa verdade — continua Dante — é tornada clara ao intelecto
Por Aquele que dá testemunho daquele Amor primordial
Que todas as substâncias eternas mantêm.

Segundo Frithjof Schuon, “há bhakti sem jñana, mas não há jñana sem bhakti”; embora o conhecimento seja mais alto que o amor, o amor é mais fundamental que o conhecimento.

Por outro lado, o seguidor de Schuon, Martin Lings — cuja obra e presença são tão admiráveis que hesito em criticá-lo — fala, em The Eleventh Hour, de uma perspectiva do conhecimento, e não do amor, como a mais adequada ao nosso tempo.
Em minha opinião, isso já é, no mínimo, um estreitamento radical do ensinamento de Schuon.

Se, como Schuon nunca se cansa de repetir, não há direito superior à verdade, então deve-se admitir — porque é verdade — que é quase impossível dizer a muitos ocidentais contemporâneos que o conhecimento é, de certo modo, superior ao amor (embora, de outro modo, o amor seja mais fundamental que o conhecimento) sem que ouçam isso como se significasse que a compaixão deva, portanto, ser desvalorizada, os sentimentos desconfiados e o esforço de desenvolver a inteligência emocional abandonado.

Uma razão para isso é que muitas pessoas atraídas pela intelectualidade — tanto espiritual quanto secular — estão simplesmente fugindo da dor emocional.
Sua tentativa de pacificar e harmonizar a emoção por meio da disciplina mental torna-se, assim, uma luta para reprimir o sentimento e uma negação da qualidade especial de percepção que apenas o sentimento pode oferecer.

Afinal, num mundo de sofrimento em massa e desumanização, é infinitamente mais fácil — ao menos de início — desesperar da compaixão, reprimir a emoção e encerrar-se em uma concha de gelo contra o terror externo… e então (é claro) passar a reproduzir esse mesmo terror, de forma mais concentrada, mais íntima e mais destrutiva para a alma, dentro dessa própria concha — tomá-lo por mestre e acabar tornando-se seu agente.

Para combater esse mal-entendido aparentemente inevitável, não posso fazer nada melhor do que citar a doutrina de Schuon, em Survey of Metaphysics and Esoterism, sobre o lugar da emoção na vida espiritual:

“Não ser ‘emocional’: isto parece, hoje em dia, ser a própria condição da ‘objetividade’; enquanto, na realidade, a objetividade é independente da presença ou ausência do elemento emocional...
A emotividade manifesta e permite perceber aqueles aspectos de um bem ou de um mal que a mera definição lógica não poderia manifestar direta e concretamente...
Se a dignidade natural exige certa impassibilidade — manifestando, assim, o ‘motor imóvel’ e o sentido do sagrado —, ela, contudo, não exclui os impulsos naturais da alma, como é mostrado pelas vidas dos sábios e dos santos, e sobretudo pela experiência cotidiana...
Num homem espiritual há continuidade entre sua impassibilidade interior — resultante de sua consciência do Imutável — e sua emoção...
Na emoção do homem espiritual, o ‘motor imóvel’ permanece sempre presente e acessível.
Como sua emoção está ligada ao conhecimento, a verdade jamais é traída...
Fundamentalmente, diríamos que, onde há Verdade, há também Amor.
Cada Deva possui sua Shakti; no microcosmo humano, a alma sensível une-se ao intelecto discernidor, assim como, na Ordem Divina, a Misericórdia une-se à Onisciência; e, em última análise, a Infinitude é consubstancial ao Absoluto.”

Essa relação entre o sentimento e a visão espiritual é desenvolvida mais adiante por Jennifer Doane Upton:

“Há, na sociedade contemporânea, uma profunda ignorância acerca do verdadeiro sentimento, o que conduz a uma frieza emocional que abre a alma ao mundanismo — mesmo quando a compreensão doutrinal, em seu próprio domínio, conseguiu excluir esse mundo.

O sentimento desenvolvido é refinado e sutil. Longe de ser meramente sentimental ou demonstrativo, ele frequentemente contém sua própria demonstração, quando tal manifestação destruiria o contexto em que aparece; é isso que explica por que, enquanto está no Inferno, Dante nunca pronuncia o nome de Beatriz.

O sentimento deve ser cultivado — tanto pelo bem da plenitude da vida humana quanto porque ele próprio pode ser um veículo perfeito de união com Deus, não apenas pela energia psíquica que libera, mas também pelas percepções particulares que somente o sentimento desenvolvido pode oferecer; isto não é bhakti no sentido usual do termo.
Há certas vias para o Intelecto transcendente que só se abrem por meio do sentimento.”

E então ela cita Paraíso 28:1–12:

“Quando aquela que tornou meu espírito paraíso
Desnudou a verdade, e seus contrários,
Na vida presente do mísero gênero humano,

Assim como aquele que, olhando no espelho, vê
Uma chama de tocha acesa atrás de si,
Antes que a veja ou a pense,

E volta-se para ver se o vidro oposto
Disse-lhe a verdade, e encontra que concorda com ela,
Tão precisamente como nota e medida correspondem —

Assim está registrado em minha memória
Que me voltei, olhando para aqueles olhos de luz,
De onde o amor me lançara o laço para capturar-me...”

E conclui:

“Voltemos àquela antiga e melodiosa expressão ‘amor verdadeiro’.
Agora ela nos soa meramente sentimental.
Mas ‘verdadeiro’ significa ‘objetivo’; o amor verdadeiro é amor objetivo.
Muitas vezes uma pessoa alcançou a Verdade partindo da função do pensamento, apenas para vê-la destruída em sua vida por meio de um sentimento falso.
O sentimento verdadeiro, ao contrário, pode ser uma faculdade de ‘retorno ao lar’, atraindo-nos para o Centro quase mais rapidamente do que poderíamos viajar por iniciativa própria.”

E então ela cita São Bernardo — símbolo da contemplação divina — dirigindo-se a Dante em Paraíso 32:149–150:

“E tu, com teu sentimento (l’affezione),
Segue minhas palavras, para que teu coração se una a elas.”

Segundo Dante, o Amor é o Supremo Fim da vida espiritual, não apenas a energia que a move.
Esse Amor supremo e objetivo é outro nome para o Intelecto transcendente.

Em Paraíso 32:142–144, São Bernardo diz:

“E voltemos nossos olhos ao Amor Primordial,
Para que, ainda fitando-O, possas penetrar
Em Seu esplendor, tanto quanto em ti couber.”

E em Paraíso 33:85–92, Dante declara:

“Eu vi folhas dentro do fogo sem fundo
Presas num só volume pelo amor, o mesmo
Que o universo sustém espalhado em seu labirinto.

Substância e acidentes, e seus modos, tornaram-se
Como que fundidos em um todo, de tal maneira
Que o que falo é uma única chama simples.

Em verdade, creio que vi com meus próprios olhos
A forma que une o mundo inteiro...”

Em Spiritual Perspectives and Human Facts, Schuon diz:

“Aquilo que é ‘amor’ no início [do Caminho espiritual] aparecerá como ‘Conhecimento’ no resultado, e o que é ‘conhecimento’ no início aparecerá no resultado como ‘Amor’.
O amor do homem afetivo é que ele ama a Deus.
O amor do homem intelectual é que Deus o ama — isto é, ele compreende intelectualmente — mas não apenas de modo teórico — que Deus é Amor.”

Dante concorda com essa visão. Em Paraíso 28:109–111, ele coloca o conhecimento firmemente acima do amor:

“A bem-aventurança celeste
Funda-se no ato que vê a Deus,
Não naquele que O ama, o qual vem depois deste.”

Ao longo de todo o Paraíso, contudo, ele nunca se cansa de repetir que Deus é Amor — chamando-O, por exemplo, de “aquele Amor Primordial” (32:142).
O que tanto Dante quanto Schuon dizem, em outras palavras, não é que Deus seja Verdade em vez de Amor, mas que o conhecimento pleno e sereno de Deus como Amor (e, portanto, também como Verdade) é maior do que a resposta emocional a Ele — por mais intensa, devota e necessária que essa resposta seja para a purificação da alma.

O Diabo adora criar falsas antíteses, de modo que, qualquer lado que se escolha, o dano é feito e a escuridão se espalha.
E talvez sua favorita de todas seja a que opõe amor e conhecimento.
Que poderia melhor servir a seus propósitos do que perverter o afeto até que ele obscureça o intelecto, identificando o amor com a insensatez no imaginário popular, de modo que os mais amorosos entre nós sejam continuamente feridos até que seus afetos congelem?
E o que melhor revelaria a qualidade do orgulho satânico do que fazer com que o conhecimento seja identificado com frieza emocional, a gnose com prestígio social, e a inteligência com astúcia — até que a dureza de coração em si seja vista como virtude, pois, se os inteligentes são frios, então tornar-se frio deve significar tornar-se inteligente?

No contexto da “guerra invisível” entre a ordem da Realidade Divina e a subversão infernal dessa Ordem, alguns dos mais poderosos e inteligentes dos “querubins caídos” parecem ocupar justamente a fenda entre o amor e o conhecimento, guerreando contra todos os que tentam aproximá-los ou intuir sua unidade intrínseca.
(Lembra-se aqui dos “gigantes de gelo” nórdicos, espíritos de frio abissal, ou do nono círculo congelado do Inferno de Dante, reservado aos traidores do amor.)
Em vez de sermos “sábios como as serpentes e simples como as pombas”, essas forças preferem ver-nos “inofensivos como serpentes” — brutalmente astutos — e “sábios como pombas” — ingênuos.

E, deixando de lado toda a metafísica, a complementaridade entre amor e conhecimento é, ou deveria ser, simples bom senso.
Se a mente coletiva não estivesse tão enevoada pela corrupção dos tempos, seria fácil ver que tudo o que realmente serve ao amor serve igualmente ao conhecimento, enquanto tudo o que fere o amor obscurece também o intelecto.
Se nos acomodamos na estupidez, perderemos nossa capacidade de amar a Deus e ao próximo — pois não se pode amar o que não se quer conhecer; e se nos acostumamos com a falta de amor, inevitavelmente cairemos na estupidez — pois não se pode conhecer algo enquanto se trabalha para evitar todo contato íntimo com ele.
O que poderia ser mais óbvio?
E se nunca aprendemos a amar os outros conhecendo-os, e a conhecê-los amando-os, então não teremos êxito no reino Divino depois de termos falhado no humano.

A Terra Devastada

O conhecimento tem dois caminhos abertos diante de si: o caminho do Amor e o caminho do Poder.
Se o Conhecimento se une ao Amor, subordinando assim o Poder (que é transformado em servo dessa união), define-se o estado do Paraíso.
Se mantém um caso adúltero com o Poder, e com isso subordina o Amor (fazendo dele a vítima dessa ligação), define-se o estado do Inferno.

No ícone cristão ortodoxo de São Jorge, o santo é representado como um cavaleiro montado em um cavalo branco, no ato de resgatar uma princesa de um dragão, perfurando-o com sua lança.
Se São Jorge é o Conhecimento, então a princesa é o Amor, e o dragão é o Poder.
No mundo exterior, o dragão manifesta-se como tirania, opressão, vício coletivo e o regime estabelecido da insensibilidade; no mundo interior, ele é o
nafs al-ammara — a alma passional, o domínio da concupiscência sobre o coração humano.
O dragão, em outras palavras, é Satanás, o arquétipo espiritual do Anticristo.
E a princesa é a energia de Eros, que é ou escrava do motivo do poder — como a Meretriz da Babilônia, “com quem os reis da terra se prostituíram” (Apocalipse 17:2) — ou esposa do Conhecimento, o corpo vivo da Verdade, como no caso da Jerusalém Celestial, descrita em Apocalipse 21:2 como “descendo do céu, de Deus, preparada como uma esposa adornada para seu marido”.

A história do Amor escravizado ao Poder devido à imaturidade do Conhecimento é contada no romance do Graal Parzival, de Wolfram von Eschenbach.
O Rei do Graal, Anfortas, ainda adolescente, é ferido nos testículos durante um torneio, como punição por orgulho insensato no amor.
Sua ferida nunca cicatriza, embora a presença do Graal — de que ele é guardião — o mantenha vivo.
Seu reino definha.
Ao mesmo tempo, o mago castrado Clingschor, em aliança com o rei tirano Gramoflanz, lança seu feitiço maligno sobre todos os amantes e envenena o amor deles.
(Clingschor foi castrado pelo rei da Sicília, que o apanhou em adultério com sua esposa, a rainha Iblis — “Iblis” ou “Eblis” sendo o nome muçulmano para Satanás.)

Gawain e Parzival, cavaleiros da Távola Redonda de Artur, em busca de aventura, penetram no campo de energia dessa Terra Devastada, onde o amor é escravizado e destruído pelo orgulho e pelo poder.
Gawain suporta as provações do Castelo das Maravilhas, cheio de muitas mulheres presas sob o feitiço de Clingschor, liberta-as e une-se à sua amada, Lady Orgeleuse.
E Parzival, lutando com sua própria imaturidade espiritual e emocional, finalmente redime e cura Anfortas, o Rei do Graal, simplesmente perguntando o que o aflige, sendo em seguida reunido a sua esposa Condwiramurs — cujo nome, derivado do francês
conduire-amours, significa “guiar o amor”.
O próprio Parzival torna-se o novo guardião do Graal.
O regime de Clingschor/Gramoflanz — espiritualidade pervertida aliada ao poder político — é uma forma, ou prenúncio, do regime do Anticristo.
Tudo o que amaldiçoa o amor, tudo o que distorce ou destrói a sexualidade — como a engenharia genética humana — conduz diretamente àquela Terra Devastada terminal, governada por um mago castrado, onde a Besta é montada pela Meretriz (a Rainha Iblis do romance
Parzival), que compra e vende todos os bens e tesouros da terra, inclusive as almas dos homens (Apocalipse 18:13).


O Amor Humano como Misericórdia de Deus

A tradição romântica ocidental, de onde essa história é tirada, tem funcionado como um contrapeso ao ascetismo extramundano da cristandade ocidental por quase um milênio.
E, apesar de sua associação inicial com heresias como o catarismo, acabou por tornar-se parte integrante da cultura cristã da Europa Ocidental, como provam abundantemente as obras de Dante e Shakespeare, que mergulham profundamente na tradição romântica.

O valor central celebrado nessa tradição é a união do amor espiritual (agape) e do desejo apaixonado (eros), conhecida como amor.
No ensaio “High Romance and the Spiritual Path”, Jennifer Doane Upton escreve:

“O amor humano, de certo modo, encontra sua morte no nascimento do amor divino.
Mas, de outro modo, vive novamente por meio dessa mesma morte, tornando-se símbolo desse amor superior.

Na Alta Romance, o espírito desce e preenche o nível humano.

Muitas vezes, por causa da intensidade de emoção que isso produz, sentimo-nos envergonhados ao nos aproximar de um material romântico.
Todo esse amar o amor, e ter de viver sem o amor mesmo enquanto amamos — fere nosso amor-próprio.

Quando negamos os estados românticos, distorcemos as próprias formas que o espírito tenta enobrecer.
O espírito paira acima de nós, sem modo de alcançar nossa humanidade.
Nós o deixamos à deriva.”

Em Amor, a pessoalidade do amado é central — assim como, na realização espiritual verdadeira, Deus não é uma abstração ou um espectro insubstancial, mas a Realidade mais concreta imaginável.
Do ponto de vista mundano, isso é visto como sentimentalismo vulgar; e, de uma perspectiva manchada de arrogância espiritual, o amor por um ser humano é visto apenas como idolatria — a adoração do próprio ego na pessoa de outro.

Diante de tal cinismo mundano — e de um idealismo espiritual igualmente cínico —, envergonhamo-nos do amor romântico, esquecendo que, como Schuon recorda em Understanding Islam,

“os mundos ‘românticos’ são precisamente aqueles nos quais Deus ainda é provável.”

Assim como os vitorianos se entregavam à fantasia do amor sentimental mas envergonhavam-se da sexualidade, nós nos entregamos a toda forma de exibicionismo sexual, mas nos envergonhamos do amor.
A paixão, a ternura e a coragem do verdadeiro amor romântico — em contraste com o mero romantismo sentimental — estão entre as poucas virtudes capazes de humanizar as relações entre homem e mulher.
Pode-se até dizer que essa profundidade de amor é quase a única força capaz de estender a graça espiritual do sacramento cristão do matrimônio às dimensões psíquicas e interpessoais.

Como em todas as reflexões da Unidade divina no reino da multiplicidade, há sempre o perigo da dissipação e da queda — e, como sempre, esse perigo só pode ser superado de um modo: pelo sacrifício.
Como diz Schuon:

“É necessário cavar fundo no solo da alma, através de camadas de aridez e amargura, para encontrar o amor e viver dele.”

A tradição romântica ocidental, com sua exaltação de uma forma de adultério ritual, na qual a fidelidade estrita (da parte do homem), o risco da própria vida e um elemento de rigor ascético eram as virtudes operantes, começou como uma rebelião contra a convenção sem coração do casamento aristocrático, onde todos os valores pessoais e afetivos eram sacrificados à busca do poder político.
A convenção sem coração dos tempos atuais, porém, não é o matrimônio, mas uma ausência de amor cruel em todas as áreas da vida, aliada ao apego às formas mais venenosas de autoindulgência sexual.
O resultado final desse apego é a devastação da sexualidade e o achatamento geral da alma, tornando-a vulnerável ao orgulho mundano e à sedução pelas várias formas de irrealidade sub-humana propostas pela sociedade tecnocrática.

Consequentemente, no campo das relações humanas, o ato central de rebelião libertadora contra os costumes sociais degenerados já não é o adultério perigoso e ritualizado cantado pelos trovadores, mas o matrimônio amoroso — onde o poder empregado por Deus para criar o universo, o poder da polaridade, atinge seu ponto de máxima concentração.

Em Esoterism as Principle and as Way, Schuon formula o princípio do amor humano pessoal como caminho e expressão da união com Deus:

“Uma condição indispensável para a experiência inocente e natural da felicidade terrena é a capacidade espiritual de encontrar a felicidade em Deus, e a incapacidade de desfrutar das coisas fora d’Ele.
Não podemos amar validamente e de modo duradouro uma criatura sem carregá-la dentro de nós em virtude de nosso apego ao Criador; não que essa posse interior deva ser perfeita, mas deve estar ao menos presente como intenção que nos permita aperfeiçoá-la.

Estar em paz com Deus é buscar e encontrar nossa felicidade n’Ele; a criatura que Ele uniu a nós pode e deve ajudar-nos a alcançar isso com maior facilidade ou menor dificuldade, segundo nossos dons e segundo a graça, merecida ou imerecida.

Ao dizer isso, evocamos o paradoxo — ou antes, o mistério — do apego com vista ao desapego, da exterioridade com vista à interioridade, ou ainda, da forma com vista à essência.
O verdadeiro amor nos liga a uma forma sacramental enquanto nos separa do mundo, e assim reencontra o mistério da revelação exteriorizada com vista à interiorização da Salvação.”
(
The Essential Writings of Frithjof Schuon, pp. 419–420)

Amar o que é passageiro, efêmero e destinado ao túmulo — amá-lo com um amor que, como todo amor, é eterno em seu núcleo — é provar a plenitude pungente da existência em meio à “poeira vermelha deste mundo”.
E ver, finalmente, o objeto humano do próprio amor como transparente ao próprio Amor é, nas palavras de Yeats, “quebrar os dentes do tempo”.
Por meio de um profundo sacrifício do apego, que conduz a uma transmutação alquímica dos afetos, transforma-se a nostalgia do passado, que é corrupção, em nostalgia da Eternidade, que é bem-aventurança.
Viver na consciência íntima da morte inevitável do próprio amado é, paradoxalmente, vê-lo
sub specie aeternitatis: não mais como objeto de amor, mas como visão do próprio Amor, na qual a separação entre este mundo e o próximo é superada.

Amar romanticamente em meio à frieza dos últimos dias, sem idolatria pessoal e em nome do “Amor que move o Sol e as outras estrelas”, é arriscar tudo — poder, prestígio, segurança, até a própria vida —, todo o espectro dos valores mundanos e egóicos, pelo bem desse Amor.
O Mundo — o Sistema do Anticristo, o regime estabelecido da arrogância e do desespero coletivos — sente-se profundamente ameaçado por essa união de sexualidade, espiritualidade e amor pessoal que chamei
Amor, e a subverte sempre que pode: ora pelo puritanismo, ora pelo libertinismo, e muitas vezes por uma mistura profana dos dois, como em grande parte do que se passa por “tantra” ou “sexualidade sagrada” no mundo da Nova Era, onde a impessoalidade se disfarça de desapego, e a sensação física refinada substitui tanto o êxtase místico quanto o amor humano.
Esse senso de ameaça, por parte do reino do Anticristo, é um sinal seguro de que há algo na essência do
Amor que, se purificado da idolatria e consagrado a Deus — ao próprio Amor —, possui o poder de cortar esse reino pela raiz.

UFOs e a Metafísica Tradicional:

Uma Demonologia Pós-Moderna

Quando foi perguntado a William James como definir “realidade”, ele deu a seguinte resposta:

“Qualquer coisa é real se nos vemos obrigados a levá-la em conta de algum modo.”

Segundo essa definição ampla (embora nada profunda), os OVNIs são certamente reais.
A crença de massa neles exerceu um efeito imenso e incalculável sobre nossa sociedade.
E essa crença não surgiu simplesmente do nada; há método por trás dessa loucura social, psíquica e empiricamente documentada.

Friedrich Nietzsche advertiu:

“Cuidado: enquanto olhas para o abismo, o abismo olha para ti.”

É por isso que aconselho o leitor a não abrir esta seção em estado de depressão, ansiedade ou curiosidade mórbida.
Quem já sabe o quão maléficos são os OVNIs, e não tem dever que o obrigue a investigá-los, deve pular este capítulo.
Mas aqueles que acreditam que possa haver algo “espiritual” neles — e não temem ser seriamente desiludidos —, leiam adiante.


O Lugar do Mito dos OVNIs na Cultura Contemporânea

O fenômeno dos OVNIs constitui uma verdadeira demonologia pós-moderna — embora muitos daqueles que creem que os “Objetos Voadores Não Identificados” sejam visitantes extraterrestres tratem o tema mais como uma religião pós-moderna.
E essa relação religiosa ou quase religiosa com o fenômeno não se limita aos cultos ufológicos propriamente ditos.

Tomemos apenas um exemplo: segundo o pesquisador de OVNIs Jacques Vallée, em Messengers of Deception, o papa e fundador da “Igreja da Cientologia”, L. Ron Hubbard — que morreu em 1986 e que, segundo correspondência que mantive no fim dos anos 1960 com o ex-cientologista William Burroughs, tinha histórico na Inteligência Naval — “teria praticado magia ritual com um especialista em foguetes chamado Jack Parsons, que, no deserto de Mojave, em 1945, encontrou um ‘Ser Espiritual’ que considerou venusiano” (p. 13).
De acordo com Vallée, tanto Hubbard quanto Parsons tinham ligação com a
Ordo Templi Orientis, fundada pelo mago negro Aleister Crowley.
Parsons, no entanto, viria a tornar-se cofundador tanto da
Aerojet Corporation quanto do Jet Propulsion Laboratory.

Seja verdade ou não, tais afirmações estão em perfeita consonância com o folclore ufológico contemporâneo, que nos informa que nossa tecnologia moderna é ou um “presente” dos “povos dos discos voadores”, ou um produto da engenharia reversa de uma nave que teria caído em Roswell, Novo México, em 1947.
E tais crenças não se restringem a cultos da Nova Era ou a eremitas excêntricos que vivem em trailers; muitos profissionais responsáveis e bem estabelecidos da cultura da informação — inclusive executivos corporativos — também as sustentam.
E ao menos um presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, admitiu ter visto um OVNI.
Ideias que antes pertenciam ao “fringe lunático” tornam-se, cada vez mais, aceitáveis entre as elites políticas e empresariais.
Podemos, portanto, dizer que a mitologia dos OVNIs está a caminho de tornar-se socialmente dominante, ou ao menos altamente significativa, na sociedade global atual — algo de que o mitógrafo Joseph Campbell estava plenamente consciente quando se tornou “consultor mítico” de George Lucas para a trilogia
Star Wars.

O fato de eu ter tido de mergulhar profundamente na metafísica tradicional para abordar o fenômeno dos OVNIs de uma posição intelectual estável — e de ter sido obrigado a criticar crenças como “viagem física no tempo” e “reencarnação literal” ao lidar com o mito dos “alienígenas” — mostra o quanto as ideias que René Guénon chamou de “contra-iniciáticas” ocuparam os centros da consciência humana abandonados, ao longo dos últimos séculos, pela metafísica e pela teologia tradicionais.

Segundo Guénon, em sua obra profética O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, à medida que este ciclo de manifestação se aproxima do fim, o ambiente cósmico primeiro se solidifica — sendo isso, de certo modo, tanto causa quanto efeito do materialismo moderno — e, em seguida, simplesmente se fratura, pois uma realidade material absolutamente isolada dos planos sutis do ser é metafisicamente impossível.

Essas rachaduras no “grande muro” que separa o universo físico do plano sutil ou anímico inicialmente se abrem “para baixo”, em direção ao domínio “infrapsíquico” ou demoníaco (cf. Apocalipse 9:1–3); o “realismo mágico” substitui a “vida ordinária”.
Somente no momento final uma grande fenda se abre “para cima”, na Segunda Vinda de Cristo — a manifestação daquele Ser a quem os hindus chamam
Kalki Avatara —, que encerrará este mundo e inaugurará o próximo ciclo de manifestação.

E, contudo, para aqueles que têm fé em Deus e intuição do Absoluto, a “fenda superior”, por abrir-se sobre a Eternidade, já está aqui; embora a mente coletiva se torne cada vez menos capaz de vê-la, a Porta da Graça não está fechada:

“Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”

Como sombra escura de uma Luz maior do que este mundo pode produzir, o fenômeno dos OVNIs é verdadeiramente um sinal escatológico.


Não há dúvida de que o mito dos OVNIs afetou profundamente a mente coletiva.
Quando a seita
Heaven’s Gate cometeu suicídio coletivo perto de San Diego, em março de 1997, a questão do papel da ideologia ufológica na vida contemporânea tornou-se, por um breve tempo, o problema mais urgente para o povo americano.
Os seguidores de M. H. Applewhite — fervorosos fãs de
Star Trek — acreditavam que suas almas seriam reunidas após a morte a bordo de uma “nave espacial” invisivelmente seguindo o cometa Hale–Bopp.
Na autópsia dos membros do culto, descobriu-se que vários homens haviam sido castrados — operação que mais tarde se afirmou ter sido voluntária.

Há verdades que é vergonhoso conhecer; a verdade sobre os OVNIs é uma delas.
Mesmo há cinquenta anos, tal conhecimento só poderia ser alcançado por alguém patologicamente atraído pela degeneração humana e pelo lado sombrio do mundo espiritual.
Mas hoje, o que antes era domínio de alguns magos negros já não pode ser inteiramente evitado por nenhum de nós.

O fenômeno dos OVNIs é talvez o mais sinistro complexo de crenças e eventos entre aqueles vagamente associados à Nova Era.
Saiu das sombras da ficção científica popular e do ocultismo marginal para tornar-se parte integrante da cultura americana dominante — como sistema de crenças ou arquétipo cultural, senão como experiência pessoal.
A popular série
Arquivo X e a enxurrada de livros e publicações “Nova Era” que apresentam ensinamentos supostamente transmitidos por “alienígenas” — The Pleiadian Agenda, de Barbara Hand Clow, por exemplo — são prova suficiente.

Para dar sentido ao fenômeno, não perderei tempo especulando se ele realmente ocorre ou não; aceitarei simplesmente as conclusões de pesquisadores confiáveis, notadamente o Dr. Jacques Vallée, e partirei daí.
Aceitarei também, sem desculpas, a existência de mundos invisíveis e a capacidade desses mundos de afetar e alterar o mundo físico.
Como diz Frithjof Schuon:

“Por mais restrita que seja a experiência do homem moderno em coisas pertencentes à ordem psíquica ou sutil, ainda há fenômenos desse tipo que, em princípio, não lhe são inacessíveis — mas ele os trata, desde o início, como ‘superstições’ e os entrega aos ocultistas.”

A aceitação da dimensão psíquica é, em todo caso, parte da religião: não se pode negar a magia sem se desviar da fé.
(Light on the Ancient Worlds, p. 104)

É doutrina católica tradicional, por exemplo, ensinar a realidade da magia e da feitiçaria para que os fiéis tenham certeza de evitá-las. Eu apenas acrescentaria que, onde o homem moderno nega a realidade dos fenômenos psíquicos, o homem pós-moderno os aceita com demasiada facilidade — e então os usa para se rebelar contra a religião, e finalmente para substituir Deus.

Para enfrentar as trevas espirituais que o fenômeno dos OVNIs representa e não ser danificado por elas, é necessário um tipo de dupla consciência. Antes de tudo, será preciso admitir que coisas como “pousos” alienígenas e “abduções” humanas estão realmente ocorrendo. Mas também precisamos lembrar que, como diz James Cutsinger, “há um grau maior de Ser no belo do que no feio” (Advice to the Serious Seeker: Meditations on the Teachings of Frithjof Schuon, p. 34).

Nas palavras de Schuon:

O nada “não é”, mas “aparece” em relação ao real, à medida que o real se projeta em direção ao finito. Afastar-se do Princípio Divino é tornar-se “outro que Ele”, permanecendo, contudo, necessariamente n’Ele, já que Ele é a única realidade. Isso significa que o mundo compreende necessariamente — de modo relativo, é claro, pois o nada não existe — aquela privação de realidade ou de perfeição que chamamos “mal”. Por um lado, o mal não vem de Deus, pois sendo negativo, não pode ter causa positiva; por outro, o mal resulta do desdobramento da manifestação divina, mas, nesse sentido, precisamente, não é “mal”, é simplesmente a sombra de um processo que é positivo em si mesmo.
Finalmente, se considerarmos em Maya (isto é, a manifestação divina concebida como tendo uma natureza parcialmente ilusória, de não ser o que parece) a qualidade de “obscuridade” ou “ignorância” (tamas), como se manifesta na natureza em geral ou no homem em particular, somos compelidos a ver nela o que se poderia chamar de “mistério do absurdo”; o absurdo é aquilo que, em si mesmo e não quanto à sua causa metafísica, é desprovido de razão suficiente e não manifesta mais do que sua própria acidentalidade cega. A gênese do mundo, em primeiro lugar, e o desdobramento dos acontecimentos humanos, aparecem como uma luta contra o absurdo; o inteligível confirma-se em contraste com o ininteligível.
(Logic and Transcendence, pp. 154–155)

Em outras palavras, o mal é como um buraco no Ser. Em certo sentido, ele realmente existe — é melhor não negá-lo, ou você cairá dentro do buraco. Mas, em outro sentido, ele não é real, pois nada mais é que uma falta ou diminuição da realidade, um espaço vazio. O mundo dos OVNIs é como um pesadelo desperto, um mundo de irrealidades sombrias tornadas atuais.

Mas, se lembrarmos que a beleza é mais real que a feiura, e que a Realidade é boa em essência, então podemos — com a ajuda de Deus — olhar a feiura de frente sem sermos vencidos por ela, sem nos deixarmos convencer em definitivo. Porque, como diz Schuon, embora o mal em sua própria natureza seja, em última instância, irreal, ainda precisamos lutar contra ele.

Segundo a pura metafísica de Schuon, o mal é produto daquele movimento inevitável do ser que se afasta de seu Princípio Divino e se manifesta como o cosmos. Assim como a luz está sempre deixando o Sol porque o Sol é radiante, brilhando cada vez mais tenuemente na escuridão circundante, do mesmo modo o fato de que Deus é não apenas Absoluto, mas também Infinito, significa que Seu Ser deve comunicar-se, deve irradiar eternamente na direção de um não-ser que nunca pode ser alcançado, porque existe apenas como tendência, e não como parte real do Ser.

Mas o fato de que, como diz Schuon, temos de lutar contra o constante atrativo do absurdo e do não-ser significa que a doutrina do mal, derivada de sua pura metafísica, deve ser equilibrada pela doutrina complementar de que o mal é sempre produto de um abuso da vontade livre — por parte dos homens ou dos seres espirituais.

Essa aparente contradição é resolvida pela misteriosa identidade entre escolha e destino, sem a qual o conhecimento que Deus tem do nosso destino anularia nossa liberdade, em vez de ser Seu conhecimento eterno e presente de como decidimos usar essa liberdade.

E o fato de o mal ser “ininteligível” não significa que nele não haja ordem ou método; se fosse “puro” caos, não existiria nem mesmo em sentido relativo. Assim, o mal não pode ser absolutamente ininteligível; é melhor descrevê-lo como movimento na direção de uma ininteligibilidade absoluta que, como puro não-ser, jamais pode ser alcançada.

Portanto, toda organização ou desenho que aparece dentro do mal não faz parte de sua própria natureza, mas foi roubada do Bem. É por isso que o verdadeiro mal sempre exibe uma mistura reveladora de astúcia diabólica e imensa estupidez.

Na primeira metade do século XX, a imagem dominante dos extraterrestres era a de monstros horríveis vindos de outros mundos, que chegavam à Terra em naves espaciais para conquistar e destruir. O livro representativo dessa fase foi A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, publicado em 1898, que quase pode ser tomado como profético da Primeira Guerra Mundial, quando tanques, lança-chamas, gás venenoso e bombardeios aéreos chocaram o mundo com o horror da guerra tecnológica.

O poder desse mito sobre a mente coletiva foi amplamente demonstrado pela farsa radiofônica de Orson Welles, A Guerra dos Mundos, em 1938, na véspera da Segunda Guerra Mundial. (Sempre me impressionou o fato de que ambos os homens tinham quase o mesmo sobrenome; algo estava realmente “jorrando” do submundo psíquico.)

Essa imagem dos extraterrestres como monstros desumanos ainda está entre nós. Mas, no final da década de 1950, começou a ser complementada por um mito radicalmente diferente: o dos extraterrestres sábios e poderosos que vêm à Terra para nos salvar da autodestruição nuclear. O famoso filme estrelado por Michael Rennie, O Dia em que a Terra Parou (1951), é a expressão representativa dessa ideia, que foi a visão dominante dos extraterrestres no movimento hippie.

A crença hippie, surgida na segunda metade da década de 1960 e herdada pelo movimento Nova Era nos anos 1970, dizia respeito aos “Irmãos do Espaço” do Conselho Intergaláctico — em muitos aspectos, a versão popular da Federação Unida dos Planetas da série de televisão Star Trek — que estavam aqui para salvar a Terra ou para levar todos os bons hippies com eles para um mundo melhor, em uma versão contracultural da doutrina cristã evangélica do “arrebatamento”.

E a “Nave-Mãe” que supostamente pairava invisível acima, esperando para recebê-los, era (em minha opinião) uma versão distorcida da Jerusalém Celestial. A expressão escrita mais detalhada desse sistema de crenças foi — e ainda é — um texto “canalizado” massivo, O Livro de Urântia (1955); e o mito do extraterrestre benevolente também foi a base de filmes como Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e E.T. (1982).

As coisas começaram a mudar por volta do tempo em que o sinistro livro Communion, de Whitley Strieber, foi publicado em 1986. Com o número crescente de relatos de “abduções alienígenas” — segundo uma pesquisa de 1991, entre várias centenas de milhares e vários milhões de norte-americanos acreditam ter sido vítimas de tais eventos —, o conceito do “Irmão do Espaço” benevolente começou lentamente a ser substituído pelo do sequestrador demoníaco, ao mesmo tempo em que o clichê dos “homenzinhos verdes” com antenas na cabeça dava lugar à imagem dos “cinzentos”: seres de pele pálida como cadáveres, sem cabelo e com enormes olhos negros e alongados — imagem derivada diretamente das descrições de Strieber, como representada na capa de seu livro.

(O pesquisador de OVNIs Jacques Vallee descreve essa imagem como “sábia e benevolente”; para mim, é arrepiante.)

Vi Strieber ser entrevistado uma vez em um documentário da PBS. Ele admitiu que seus encontros com alienígenas foram os eventos mais horríveis de sua vida, mas mostrou absolutamente nenhum desejo de romper com eles por causa disso. Os encontros eram tão estranhos e irresistíveis que sua fascinação por eles superava todas as outras considerações — incluindo, aparentemente, seu próprio respeito por si mesmo.

Lembrei-me da situação da esposa abusada ou da criança incestuosa que não consegue imaginar a vida separada de seu agressor. É uma verdade psicológica que qualquer experiência extremamente intensa torna-se “numinosa”, em certo sentido. Tendemos a identificar as coisas mais poderosas que nos aconteceram com a própria “realidade”.

A filha estuprada pelo pai carregará essa experiência em sua psique como um ponto de referência indelével, que, em sua vida posterior, pode levá-la a demonizar e/ou idealizar outros homens nos quais veja, ou sobre os quais projete, aspectos de seu pai. O soldado brutalizado pela guerra buscará outras situações violentas — talvez até ganhando a vida como mercenário — porque, embora saiba que “a guerra é um inferno”, não consegue deixá-la de lado.

Situações de “vida normal” parecem-lhe vazias e irreais; em nenhum outro lugar, senão na presença da violência sangrenta, sente-se inteiramente “ele mesmo”. Deixou parte de sua alma no campo de batalha e continua voltando ao lugar onde a perdeu. Apenas na cena do crime original sente-se, ao menos por um instante, completo.

O Lugar dos OVNIs na Hierarquia do Ser

De acordo com a metafísica tradicional, como vimos acima, o Ser é disposto hierarquicamente, em níveis ontológicos distintos. Esta é a “Grande Cadeia do Ser” do século XVIII, que, quando “ruiu” — isto é, quando começamos a ver a hierarquia do Ser horizontalmente, em termos de tempo, em vez de verticalmente, em termos de eternidade — transformou-se no mito do progresso.

Quando deixamos de reconhecer o Absoluto como a coroa eterna da hierarquia do Ser, fomos forçados a imaginar que algo maior e melhor — ou pelo menos mais estranho e mais poderoso — encontrava-se no Futuro. “Deus acima” foi substituído por “seja o que for que está por vir adiante”.

Todas as tradições espirituais e filosofias tradicionais incluem a Grande Cadeia do Ser sob uma forma ou outra, mas como cada metafísico parece formulá-la de modo um pouco diferente, correrei o risco de apresentar minha própria versão, que provavelmente deve mais ao teósofo sufista Ibn al-‘Arabī e ao metafísico tradicionalista Frithjof Schuon do que a qualquer outro, mas que não pode ser estritamente atribuída a nenhum dos dois.

Ela baseia-se em oito níveis de Ser, em ordem descendente. Cada nível não apenas transcende tudo o que está abaixo dele, mas também contém, em forma mais elevada, tudo o que está abaixo. Os dois primeiros níveis são puramente divinos; os dois seguintes, espirituais; os dois seguintes, psíquicos; e os dois últimos, físicos.


O DIVINO

Primeiro nível: o Além-Do-Ser (Dionísio Areopagita), a Divindade (Meister Eckhart), a essência divina incognoscível.

Segundo nível: o Ser puro, Allah (“a Divindade”), o próprio Deus — o Deus pessoal que é Criador, Regente, Juiz e Salvador do universo, enquanto transcende absolutamente essas funções, pois não é limitado por nenhum relacionamento com o ser criado.


O ESPÍRITO

Terceiro nível: o Intelecto, o ato primordial de autocompreensão de Deus em termos de sujeito e objeto — em termos cristãos, “Deus Pai” e “Deus Filho”.
O Intelecto é o raio do Divino dentro das criaturas — o
nous dos filósofos neoplatônicos — sobre o qual Eckhart disse: “Há algo na alma que é incriado e incriável.”
Em termos de sua função criativa, o Intelecto é o
pneuma, o Espírito Santo de Deus que “pairava sobre a face das águas”.

Quarto nível: o Arquangélico, o reino dos arquétipos permanentes ou dos Nomes Divinos, talvez representados pelas Sete Lâmpadas e pelos Quatro Animais Viventes que cercam o Trono do Cordeiro no Apocalipse.
É o nível dos princípios metafísicos eternos ou das Ideias platônicas, que, longe de serem abstrações, são na realidade mais densamente concretos — apesar de toda sua transparência à Luz Divina — e mais carregados de energia criadora e reveladora da verdade do que qualquer coisa abaixo deles.


A PSIQUE

Quinto nível: o Angélico, a manifestação do Espírito no plano psíquico — o plano do pensamento, da emoção e da intenção. Cada anjo é, ao mesmo tempo, um ser vivo e consciente, e a manifestação de uma Ideia específica.

Sexto nível: o Imaginal, o “plano astral” ou ʿālam al-mithāl, onde todo pensamento, sentimento ou intenção — qualquer que seja o nível de ser a que essencialmente corresponda — aparece como uma imagem simbólica que é, ao mesmo tempo, um ser vivo.
Este é o mundo dos sonhos e das imagens mentais, que não ocorre simplesmente dentro desta ou daquela consciência individual, mas é contínuo com um “ambiente” psíquico objetivo, assim como o corpo humano é contínuo com o mundo natural.


O MUNDO MATERIAL

Sétimo nível: o Etérico. Este é o reino da “alma da matéria”, a face oculta da natureza, o mundo das fadas celtas, dos jinn muçulmanos, o mundo do “bioplasma”, das auras, dos espíritos elementares e das energias sutis.
É a
Anima Mundi, a substância sutil e o padrão essencial do mundo material.

Oitavo nível: o Material — o mundo percebido por nossos sentidos.

A ciência lida quase exclusivamente com o oitavo nível, embora às vezes seja forçada a confrontar fenômenos emanados do sétimo, e a teorizar sobre realidades de sétimo nível para explicar paradoxos que aparecem no oitavo.
E como a ciência substituiu em grande parte a religião e a metafísica como nossa forma dominante de compreender o mundo, estamos quase totalmente desamparados quando se trata de explicar — e, especialmente, de avaliar — o fenômeno dos OVNIs.

Porque acreditamos na evolução e no progresso, em vez de compreender a natureza hierárquica e eterna do Ser, tudo o que irrompe do nível sete para o nível oito, para nós, pode ser Deus, ou Merlin, o Mago, ou uma “raça tecnológica altamente evoluída” — ou sabe Deus o quê.
E a razão pela qual tantos seres do sétimo nível estão agora aparecendo para nós, em escala global, pode ser porque perdemos a capacidade de avaliá-los; eles agora podem representar-se a nós como bem quiserem.

Quem São os “Aliens”

Segundo a doutrina muçulmana, os Jinn — plural de Jinni, o conhecido “gênio da lâmpada” — são seres que habitam um plano mais sutil que o Material, porém mais grosseiro que o Imaginal e o Angélico: o sétimo plano na Grande Cadeia do Ser.

Os “alienígenas” pertencem à categoria dos Jinn. Segundo Jacques Vallee — o mais equilibrado e confiável dos pesquisadores de OVNIs, convidado a apresentar suas descobertas em uma conferência restrita com o Secretário-Geral da ONU, Kurt Waldheim (sua obra Messengers of Deception, And/Or Press, Berkeley, 1969 e 1994, é leitura indispensável) — o fenômeno possui três aspectos:

1.      É um fenômeno real e inexplicável, que aparece em radares e deixa vestígios físicos reais.

2.      É um fenômeno psíquico, que afeta profundamente as percepções das pessoas.

3.      Está cercado de enganos do tipo Missão Impossível, produzidos por grupos humanos reais, aparentemente com o propósito de influenciar a crença das massas.

Mas como podemos reunir esses três fatos? Se os OVNIs são fisicamente reais, dizemos, então devem ser naves espaciais. Se são psíquicos, então devem ser produto de histeria coletiva — ou entidades psíquicas reais. Mas se são “encenados”, então como poderiam ser uma coisa ou outra? A mente busca desesperadamente um fechamento.

Se são naves espaciais, devemos recorrer à astronomia, à NASA e ao Departamento de Defesa para obter informações sobre eles.

Se eles são entidades psíquicas, então os médiuns nos dirão o que pretendem. E, se são eventos encenados, devemos confiar na contra-inteligência e no jornalismo investigativo. Mas — e se forem as três coisas ao mesmo tempo...? A mente crítica tenta compreender isso, fracassa e então se desliga. É para isso que o fenômeno é feito.

O padre Seraphim Rose, sacerdote ortodoxo oriental nascido nos Estados Unidos e falecido em 1982, oferece talvez a melhor explicação que possuímos para o fenômeno dos OVNIs:
Em termos simples, eles são demônios. Fazem o que os demônios sempre fizeram. Suas “naves” são produtos de uma “tecnologia demoníaca” que começa no reino sutil e invade o nosso.

Em Orthodoxy and the Religion of the Future (pp. 134, 136), ele escreve:

“O aspecto mais desconcertante do fenômeno dos OVNIs para a maioria dos pesquisadores — isto é, a estranha mistura de características físicas e psíquicas — não é nenhum mistério para os leitores dos livros espirituais ortodoxos, especialmente as Vidas dos Santos.

Os demônios também possuem ‘corpos físicos’, embora a ‘matéria’ de que são compostos tenha tal sutileza que não pode ser percebida pelos homens, a menos que suas ‘portas espirituais da percepção’ sejam abertas — seja pela vontade de Deus (no caso dos santos), seja contra ela (no caso dos feiticeiros e médiuns).

A literatura ortodoxa está repleta de manifestações demoníacas que se encaixam exatamente no padrão dos OVNIs: aparições de seres e objetos ‘sólidos’ (sejam os próprios demônios ou suas criações ilusórias) que repentinamente se ‘materializam’ e ‘desmaterializam’, sempre com o objetivo de impressionar e confundir as pessoas e, em última instância, levá-las à perdição.”

As Vidas de Santo Antão, o Grande (séc. IV) e de São Cipriano, o ex-feiticeiro (séc. III) estão cheias de tais episódios.
Padre Seraphim conclui:

“É evidente que as manifestações dos ‘discos voadores’ de hoje estão perfeitamente dentro da ‘tecnologia’ dos demônios; nada mais as explica tão bem. As múltiplas fraudes demoníacas da literatura ortodoxa foram adaptadas à mitologia do espaço exterior, e nada além disso... Seu propósito é provocar assombro, produzir ‘provas’ das ‘inteligências superiores’ — ‘anjos’, se a vítima neles crê, ou ‘visitantes do espaço’, para os homens modernos — e assim conquistar confiança para a mensagem que desejam transmitir.”

E, para que não se pense que apenas um monge tradicional poderia chegar a essa impressão, o próprio Seraphim cita a introdução de UFOs and Related Subjects: An Annotated Bibliography (Lynn G. Catoe, 1969), preparada pela Biblioteca do Congresso para a Força Aérea dos EUA:

“Muitos dos relatos de OVNIs hoje publicados na imprensa popular descrevem incidentes que se assemelham de modo impressionante à possessão demoníaca e aos fenômenos psíquicos há muito conhecidos de teólogos e parapsicólogos.”

Escrevendo nos anos 1970, Seraphim Rose relaciona o fenômeno dos OVNIs à fascinação de toda a cultura moderna pela ficção científica — ponto enfatizado em 1997, quando o culto Heaven’s Gate, após cometer suicídio coletivo, revelou-se composto de fanáticos de Star Trek. Ele comenta (pp. 103–104):

“O mundo e a humanidade do futuro são vistos pela ficção científica ostensivamente como ‘projeções’ de descobertas científicas atuais; na realidade, porém, essas ‘projeções’ correspondem de modo notável à experiência cotidiana do oculto e do demoníaco em todas as épocas.

Entre as características dos seres ‘altamente evoluídos’ do futuro estão: comunicação telepática, capacidade de voar, materializar-se e desmaterializar-se, transformar aparências ou criar cenas e criaturas ilusórias por ‘pensamento puro’, viajar a velocidades além de qualquer tecnologia moderna, possuir os corpos dos homens, e ensinar uma filosofia ‘espiritual’ que está ‘além de todas as religiões’ e promete um estado no qual as ‘inteligências avançadas’ não dependerão mais da matéria.

Tudo isso são práticas e pretensões clássicas de feiticeiros e demônios.”

Um estudo recente da história da ficção científica, observa ele, admite que “um aspecto persistente da visão da ficção científica é o desejo de transcender a experiência normal... pela apresentação de personagens e eventos que transgridem as condições do espaço e do tempo” (Robert Scholes & Eric S. Rabkin, Science Fiction: History, Science, Vision, 1977, p. 175).

“Os roteiros de Star Trek e de outras histórias de ficção científica, com seus dispositivos ‘científicos’ futuristas, poderiam ser lidos, em partes, como excertos das vidas dos antigos santos ortodoxos, quando as ações dos feiticeiros ainda eram um elemento vivo da vida pagã.”


Seraphim Rose repete a hipótese de Jacques Vallee: os OVNIs “são construídos tanto como artefatos físicos quanto como dispositivos psíquicos”. Ele também aceita a conclusão de Vallee — baseada em análise estatística das aparições mais convincentes — de que não podem ser naves interplanetárias, pois há simplesmente demais delas. Não é provável, por exemplo, que os cerca de dois milhões de americanos que afirmam ter sido abduzidos tenham sido sequestrados por astronautas.

Entretanto, Seraphim não explica totalmente as provas de Vallee quanto às atividades de engano rastreáveis a grupos humanos, embora sua comparação com os fenômenos produzidos pelos feiticeiros da Antiguidade seja muito sugestiva.

Minha própria hipótese — mais sombria — é a seguinte: certos grupos de ocultistas ou magos negros, voltados para a dominação mundial (alguns com vínculos com a comunidade de inteligência, como mostra Vallee em Messengers of Deception e Revelations), e que podem ou não possuir tecnologias “interdimensionais” fornecidas ou inspiradas pelos Jinn, estão encenando enganos.

O exemplo clássico é a propaganda que transformou o evento de Roswell em “queda de nave alienígena”. O objetivo seria triplo:

1.      Desviar a atenção pública de outras atividades ocultas;

2.      Influenciar a mente coletiva rumo a uma mudança de paradigma — afastando-a da religião e da ciência objetiva, aproximando-a da crença em visitantes extraterrestres;

3.      Invocar, por sugestão de massa e magia simpática, os demônios a quem prestam culto.

As duas primeiras hipóteses são de Vallee; a terceira é minha.

Pode ser que, já no início do século XX, quando surgiram os primeiros estudos sobre lavagem cerebral em massa — como Man the Puppet: The Art of Controlling Minds (Abram Lipsky, 1925) — e quando o rádio e a televisão tornaram possível pela primeira vez a influência instantânea sobre as multidões, certos magos negros tenham percebido que, se podiam invocar demônios por auto-sugestão, poderiam invocá-los em escala coletiva por sugestão de massa. Eles tentaram — e funcionou.

E ainda o fazem.

O psiquiatra John E. Mack, em Abduction, relata que uma paciente teve um encontro com alienígenas logo após assistir a um programa de TV baseado em Communion, de Strieber; outra lembrou uma abdução depois de ler o próprio livro.

Não sei o suficiente para acusar Strieber de invocação demoníaca deliberada, nem para absolvê-lo; apenas observo que imagens demoníacas carregadas de energia possuem vida própria.

Devemos lembrar, porém, que tais magos não são poderosos no sentido de possuir maior liberdade de ação do que os demais. Um incendiário psicótico pode sentir-se poderoso ao provocar o movimento frenético do mundo à sua volta, mas acender uma floresta inteira com um fósforo é apenas aparência de poder — na realidade, é ausência de sentimento, de inteligência e de vontade.

A verdadeira força espiritual e social é criadora; trabalha para construir, refinar e iluminar.

O fascínio de um crente fanático — ou de um manipulador cínico — pelos OVNIs e entidades psíquicas é comparável aos efeitos de álcool ou metanfetamina: o impulso de energia emocional ou mental que sentimos não vem de fora — está nos deixando.

O mesmo ocorre com aqueles que invocam entidades que são menos reais (espiritualmente falando) do que os próprios seres humanos: a fascinação que sentimos por elas não é algo que nos dão, mas algo que lhes entregamos — aquilo que elas nos roubam.

Se o “alien” de hoje se assemelha ao “vampiro” tradicional, é porque ambos nos roubam o “sangue”, a energia vital — que, no sentido mais profundo, nada mais é do que a atenção espiritual que devemos a Deus, fonte da vida.

Assim como o adultério destrói o matrimônio desviando a energia erótica, também o “alien” e a “entidade” destroem nossa relação com Deus desviando a energia espiritual.

Os OVNIs são “apports”. Entre os poderes tradicionalmente atribuídos a mágicos e médiuns sempre esteve o de materializar objetos. Tais apports, contudo, tendem a ser instáveis: parecem exibir todas as características da matéria comum, mas frequentemente dematerializam-se após certo tempo. (Autobiography of a Yogi, de Paramhansa Yogananda, está repleta de histórias desse tipo.)

Os fenômenos dos OVNIs exibem a mesma propriedade: inegavelmente reais em sentido físico, são também fugidios, como se a energia necessária para mantê-los no plano material fosse grande demais para que permanecessem aqui por muito tempo — são como peixes fora d’água.

E isso se ajusta perfeitamente ao folclore dos Jinn em todas as nações: podem afetar o plano físico, mas não podem existir nele de modo estável.

Arriscando uma especulação ousada, posso imaginar que a tecnologia computacional — que sempre me pareceu em parte inspirada pelos Jinn — talvez represente uma tentativa destes de construir corpos para si mesmos, estáveis neste mundo, sobretudo se considerarmos que os Jinn e os “aliens” parecem capazes de interagir com a energia eletromagnética: motores de automóveis que se apagam próximos a discos voadores, vozes de Raudive que surgem espontaneamente em fitas magnéticas etc.

Se for assim, isso significaria também que — como na história de Maupassant, Le Horla — eles desejam nos substituir.

Mas, se estão tão determinados a nos fascinar com seus poderes “superiores”, por que aparentemente invejam nossa capacidade de habitar corpos físicos?
Poderia ser porque sabem muito bem que a
Forma Humana é a Imagem de Deus, Seu vice-regente sobre a Terra — mesmo que nós tenhamos esquecido isso —, e portanto fazem tudo ao seu alcance para substituí-la, principalmente ao nos tentar a deconstruí-la psiquicamente e geneticamente.

Se eles, com todos os seus “talentos selvagens”, desejam ser humanos, assim como parecem desejar tornar-nos mais semelhantes aos Jinn, transformando-nos em “crianças trocadas”, o que isso implica sobre sua própria avaliação de si mesmos? Talvez simplesmente que querem sair do Fogo.

Os “alienígenas” não precisam da cooperação de ocultistas e magos negros para aparecer neste mundo; porém tais alianças facilitam sua entrada, além de lhes fornecer agentes conscientes ou inconscientes dispostos e/ou disponíveis para cumprir suas ordens.

A capacidade desses magos de invocar entidades alienígenas em escala de massa é apenas um aspecto da qualidade dos tempos atuais.

Segundo René Guénon, em Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps:

“Como toda ação eficaz necessariamente pressupõe agentes, a ação antitradicional é, como todas as outras, de modo algum uma produção espontânea ou fortuita.
O fato de que ela se tenha conformado à natureza específica do período cíclico em que atua explica por que foi possível e por que teve êxito; mas isso não basta para explicar o modo de sua realização, nem para indicar as diversas medidas postas em operação para chegar ao seu resultado.”


Nem Todos os Jinn São Maus

Nem todos os Jinn são demônios. Segundo a doutrina islâmica, por exemplo, alguns Jinn são “muçulmanos”, e outros não. A mesma distinção entre entidades benevolentes e demoníacas encontra-se no folclore das fadas celtas.

As Dakinis do budismo tibetano — entidades sutis em forma feminina que auxiliam os iogues a alcançar a Libertação — deslocam-se de modo semelhante aos OVNIs, e são retratadas como inteiramente benignas e prestativas.

Na narrativa da morte do famoso santo tibetano Milarepa, no Jetsün Kahbum, lê-se:

“As Dakinis transportaram o Chaitya [a relíquia contendo as cinzas do santo] pelos céus, sustentando-o diretamente sobre os discípulos principais, de modo que ele irradiava seus raios de luz sobre as cabeças de cada um deles...

E no céu apareceram as divindades tântricas Gaypa-Dorje, Demchog, Sang-du e Dorje-Pa-mo, cercadas por inumeráveis hostes, que, após circundarem a Divindade Suprema, fundiram-se nela.

Finalmente, toda a assembleia se transformou em um orbe de luz, e este partiu velozmente para o Oriente. O Chaitya foi transportado para o leste, em meio a um som de música celestial.”

Os Purānas hindus também mencionam viagens no reino sutil em veículos chamados vimanas, e tais deslocamentos não são exclusivos de seres demoníacos.

Além disso, os espíritos elementares que formam a ligação entre o mundo natural e seu Criador não são maus, embora possam ser perigosos; o arquétipo sutil e consciente de uma bela árvore de carvalho, por exemplo, não pode ser chamado de demônio.

(Um amigo meu, aliás, viu certa vez — sem auxílio de psicodélicos — um enorme disco verde e luminoso movendo-se pela floresta, atravessando troncos como se fossem ar: aparentemente um navio élfico.)

Mas os Jinn que estão encenando as manifestações atuais de OVNIs são quase certamente demônios.

De acordo com Seraphim Rose, eles estão aqui para preparar-nos para a religião do Anticristo. Concordo — e acrescentaria que qualquer um que deseje encontrar entidades psíquicas — boas, más ou neutras — porque Deus não lhe parece “real o bastante”, tornar-se-á brinquedo dos demônios.

Pode até ser verdade — ainda que não possa prová-lo — que aqueles do mundo neopagão, fascinados pelo culto a elementais e espíritos da natureza em lugar do Espírito Divino, acabem por seduzir e corromper tais espíritos, mesmo que, de início, fossem benignos ou neutros.

Afinal, se você fosse adorado por milhares de devotos fascinados, acreditando que o contato consigo lhes concederia poderes mágicos — não se sentiria tentado?
Não seria influenciado a esquecer que seu único dever é
lembrar-se de Deus e obedecer à Sua vontade?

Os espíritos da natureza também estão obrigados a recordar e obedecer à Fonte de Toda a Vida; na medida em que o fazem, tornam-se condutos da energia divina do Espírito Santo, que flui para dentro do mundo natural e o sustenta.

Mas se eles esquecem esse dever em seu desejo de serem amados e adorados — como os homens que os invocam e os celebram —, então tornam-se demônios.

Pois, assim como a alma humana que se volta para o mundo e o toma como fim absoluto, esquecendo o Deus que lhe deu o ser, transforma-se num espírito de trevas, também os elementais e inteligências sutis, quando esquecem sua origem e aceitam a adoração como se fossem deuses, caem do seu estado natural de servos da Criação para o de usurpadores espirituais.

A corrupção das hierarquias inferiores é sempre consequência do esquecimento da Ordem superior.
Assim, o mesmo impulso que levou Lúcifer a dizer Non serviam — “não servirei” — conduz igualmente o Jinn orgulhoso, o elemental lisonjeado, e o homem que busca no poder psíquico a confirmação de sua própria divindade.

A partir desse instante, a corrente do Espírito é invertida: o que antes fluía de cima para baixo, vivificando o cosmos, passa a fluir de baixo para cima, vampirizando a vida. O mundo natural, então, não mais espelha a luz divina, mas torna-se uma máscara, um teatro de forças impuras que simulam beleza e sabedoria enquanto destroem o vínculo da criatura com o Criador.

É isso que ocorre quando os homens, fascinados por entidades intermediárias, procuram nelas um substituto para Deus. As potências sutis respondem a esse chamado, mas o fazem tomando a energia que lhes é oferecida: a atenção, o desejo, a imaginação, o amor. Alimentam-se da centelha divina que nos foi dada, até que o espírito humano, esvaziado, já não seja capaz de distinguir o Bem do Mal.

E, então, tudo se confunde: o céu com o abismo, o anjo com o alienígena, o milagre com a manipulação.
O que deveria ser sinal de transcendência converte-se em paródia, e a adoração da natureza degenera em idolatria da matéria, até que a Criação inteira — distorcida pelo orgulho das criaturas que esqueceram o nome de Deus — clame em silêncio pela restauração do Espírito que a gerou.

Pois, quando o homem abandona o amor a Deus, até os seres que antes o serviam aprendem com ele o mesmo esquecimento, e a ordem da Criação começa a se desagregar a partir do centro: o coração humano.

Assim, pode ser verdade que adorar o mundo natural, em vez de contemplar Deus por meio dele, é na realidade algo destrutivo para ele; que uma fascinação egotista pelos espíritos da natureza pode, de fato, ser o arquétipo em plano sutil da destruição do mundo natural pela ganância humana e pela tecnologia. Viagem no Tempo e Reencarnação — Relacionadas e Refutadas
Os mitos contemporâneos de “ficção científica” sobre viagem no tempo e espaço multidimensional, derivados de especulações imaginativas sobre a física einsteiniana e pós-einsteiniana, e frequentemente aplicados ao fenômeno dos OVNIs, estão de certo modo substituindo a visão de mundo das religiões reveladas, já que parecem transcender o materialismo e fornecer as possibilidades “milagrosas” sempre associadas à fé religiosa e à experiência espiritual. Para Deus todas as coisas são possíveis — mas se todas as coisas, ou muitas coisas estranhas, são possíveis aos OVNIs, e serão possíveis à ciência humana no futuro, então quem precisa de Deus? Se o espaço, o tempo, a matéria e até certos processos mentais podem ser manipulados por várias energias sutis materiais, então quem precisa da graça? Se a viagem no tempo é possível, quem precisa da eternidade? É isso o que creem, e às vezes declaram abertamente, aqueles que adoram as energias elementares por meio do culto da ciência arcana. Mas, na realidade, o mito da viagem no tempo, baseado em sua maior parte na crença de que talvez seja possível reverter localmente o fluxo do tempo e viajar “para trás”, representa na verdade a morte do mito do progresso. Eis a evidência de que, se todos os sistemas coerentes de crença estão sendo desconstruídos pelo pós-modernismo, nem mesmo o cientificismo está imune ao processo.

Ninguém menos que um aventureiro especulativo como Stephen Hawking admitiu sua crença de que a viagem no tempo é possível. Mas há contradições lógicas irredutíveis inerentes a ela, ou ao menos ao nosso modo usual de concebê-la. Imaginamos que possa ser possível viajar em muitas direções no tempo, em vez de numa só, assim como podemos viajar em muitas direções no espaço. Mas, se a viagem no tempo se tornará possível no futuro, então — por definição — ela já aconteceu. E se já aconteceu, onde estão todos os viajantes do futuro, todos os historiadores, os arqueólogos e os turistas? Eles estão se ocultando, dizemos, porque sua aparição aberta seria chocante demais para nós e alteraria a história futura. Mas, se eles estão viajando de “então” para “agora”, já alteraram a história futura, apareçam abertamente ou não. E se a história futura foi alterada por sua viagem no tempo, então ela foi “sempre” alterada. E se foi “sempre” alterada, então nenhuma “alteração” de fato ocorreu.

Mas outros sustentam que eles se mostraram, que os “alienígenas” que agora aparecem são na verdade viajantes para o “agora” vindos do nosso próprio tempo futuro. Por que voltaram? Talvez com o propósito mesmo de alterar a história, de salvar a raça humana da autodestruição. Mas, se fracassarem nessa tentativa, então não haverá história humana futura de onde tenham viajado de volta; e, se estão destinados a ter sucesso, então já tiveram sucesso, de modo que nunca precisaram fazer a viagem em primeiro lugar. Eles, e nós, podemos relaxar.

Alguns tentam resolver o paradoxo da viagem no tempo alegando que é possível viajar a um passado alternativo ou provável, embora não ao passado que lembramos. Mas “viajar” a um universo “paralelo” não é a mesma coisa que viajar ao próprio passado. Pode ser ou não ser possível separar, por meio de tecnologia arcana, o corpo humano de sua situação própria no tempo. Mas, e então? Esse corpo então entraria no caos de todas as realidades prováveis, sem modo de “sintonizar” qualquer uma delas, já que sua única forma de se “ajustar” a uma realidade particular se basearia em toda a sua estrutura, a qual é própria de apenas uma região ou qualidade do espaço-tempo. Nós e nossas vidas não somos duas coisas separadas — uma verdade que a cultura pós-moderna faz tudo ao seu alcance para nos levar a esquecer. Quer se trate de um yuppie que jogou a própria casa fora para perseguir a vida de um globalista itinerante, quer de um refugiado expulso de sua casa pelas forças desse mesmo globalismo, o ser humano pós-moderno é levado a experimentar seu ego como uma mônada autoinclusa, sem relação orgânica com o entorno. E, à medida que mudamos de ambiente com frequência cada vez maior e aleatoriedade emocional, passamos a acreditar que podemos mudar de identidades do mesmo modo, que podemos ser quem quer que “encenemos” ser, num dado dia ou num dado momento. E então nossa identidade ou se dissolve num repertório esquizofrênico ao estilo Robin Williams de “posturas” ou “rotinas”, ou encolhe até um pequeno núcleo duro de individualidade impessoal e genérica, que acreditamos poder ser inserida indiferentemente em qualquer situação porque nenhuma situação lhe é realmente nativa. Porque nossas psíquês são caóticas e fragmentadas, a viagem no tempo começa a nos parecer possível, até natural, porque já não experimentamos nossas próprias vidas como parte integral de nós mesmos.

Se vamos aplicar a metáfora de viajar no espaço a viajar no tempo, teremos de levá-la às últimas consequências. E, se o fizermos, seremos forçados a admitir que, se é impossível viajar no espaço de São Francisco a Nova York se não há uma Nova York lá para onde ir, então seria igualmente impossível para mim viajar do agora de volta à Idade Média a menos que houvesse um “eu” lá, na Idade Média, para eu ser.

Mas talvez houvesse, dizemos. Talvez eu tenha de fato vivido uma vida passada na Idade Média, e talvez eu consiga voltar a ela de algum modo. Aqui podemos ver como a especulação sobre a possibilidade da viagem no tempo torna necessário, em certo ponto, postular a teoria da reencarnação. Se a física pós-einsteiniana se torna nossa religião, então a crença na reencarnação deve, em certo ponto, tornar-se um dogma dessa religião. Ora, se eu conseguir viajar de volta fisicamente à Idade Média, então já deve existir, em potência, um registro do fato de eu tê-lo feito, de que o “eu de então” apareceu do nada, ou de que um “segundo eu” apareceu e encontrou o “eu de então”. Mas, se eu viesse a descobrir esse registro, e mais tarde decidisse não viajar de volta no tempo, então de onde veio o registro? De onde mais senão de um tempo futuro em que eu mudei de ideia e decidi ir afinal? Isso significa que, se eu sei que há um “eu” lá atrás para eu ir até ele, então não posso decidir não ir até ele. E outra maneira de dizer “não posso decidir não ir até ele” é dizer “eu sou ele”. E, se eu sou ele, então o conceito de “viagem” torna-se sem sentido. Por outro lado, obviamente eu não sou ele. Eu sou eu mesmo. Este eu aqui e agora não pode ser sobreposto àquele eu lá e então, porque todos os eus, todas as formas, todos os momentos, são únicos, e são de fato a manifestação, no mundo relativo, da Unicidade Absoluta de Deus. E, assim, perguntar se a viagem no tempo é fisicamente possível não é como perguntar “é possível eu viajar da Espanha à Alemanha?”; é muito mais como perguntar “é possível a própria Espanha viajar para a Alemanha?” Quem somos fisicamente é inseparável do tempo em que vivemos, porque tempos distintos têm qualidades intrínsecas distintas. Segundo Guénon em O Reino da Quantidade,

É evidente que os períodos de tempo são qualitativamente diferenciados pelos eventos que neles se desenrolam… a situação de um corpo no espaço pode variar mediante a ocorrência do movimento, ao passo que a de um evento no tempo é rigidamente determinada e estritamente “única”, de modo que a natureza essencial dos eventos parece estar muito mais rigidamente ligada ao tempo do que a dos corpos ao espaço.

Se eu existo num tempo diferente, devo existir num estado diferente. Meu estado como um recém-nascido é inseparável do ano de 1948; meu estado como um homem de 48 anos é inseparável do ano de 1997. A única maneira de eu “viajar” a 1127 é assumir um dos estados — isto é, um dos indivíduos — disponíveis em 1127. Assim, no mínimo, a viagem no tempo não pode ser física.

Mas pode ser psíquica? Pode ser reencarnacional? Pode uma encarnação anterior de mim mesmo conhecer-me, por antecipação clarividente? Posso eu conhecê-la, por memória clarividente? Podemos comunicar-nos um com o outro através dos mares do tempo multidimensional?

Sim e não. Aquele homem na Idade Média não sou eu, nem eu sou ele. Como diz Guénon em O Erro Espírita, “duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque, se são realmente idênticas, não são duas coisas, mas uma e a mesma coisa; Leibniz tem toda razão neste ponto.” Ainda assim, podemos ter uma afinidade eterna um pelo outro, porque somos membros da mesma “família espiritual”, emanações do mesmo arquétipo espiritual ou Nome de Deus. Isso, porém, não significa que a informação — e, por implicação, a causalidade — possa viajar de volta no tempo de mim para ele. Na realidade, eu simplesmente herdo dele certo “material” psíquico, assim como herdaria os bens de um parente falecido: traços psíquicos, problemas não resolvidos, até memórias. É isso que se chama “metempsicose”, que não é a mesma coisa que reencarnação. Quando memórias herdadas aparecem em minha vida, o que pode acontecer a qualquer momento do meu nascimento até minha morte, necessariamente me parecerá como se eu tivesse, ao menos em sentido limitado, voltado no tempo, já que estou revivendo experiências passadas de outro. Mas, na realidade, essas experiências vieram adiante no tempo ao meu encontro, com base numa afinidade — não numa identidade — entre aquele ser humano passado e eu mesmo, uma afinidade que, em essência, é eterna, não temporal. E ele também pode intuir minha realidade com base na mesma afinidade eterna, embora, nesse caso, a metempsicose, ou herança psíquica, não opere; se operasse, memórias de vidas “futuras” seriam tão comuns quanto memórias de “passadas”. Ele e eu podemos descobrir nossa afinidade interior ao longo de nossas vidas, por um processo aparentemente temporal — eu pela memória, ele pela antecipação — mas a afinidade em si é eterna na mente de Deus; ela existe para além do plano do ser onde o tempo, multidimensional ou não, tem qualquer significado. Assim, a única conclusão possível é que o mito da viagem no tempo, bem como a doutrina da reencarnação como um deslocamento horizontal da alma individual idêntica através do tempo de um corpo físico a outro, baseia-se numa incapacidade de conceber a verdadeira natureza da eternidade. Portanto, aqueles que se tornam obcecados por esses mitos estão se tornando disponíveis a forças satânicas cujo objetivo é ocultar de nós a realidade da eternidade por meio de uma falsificação, deslumbrar-nos de tal modo com espaços multidimensionais e viagens no tempo multidirecionais que percamos a capacidade de imaginar contemplativamente como Deus pode ver todas as coisas, passadas, presentes e futuras, bem como todas as realidades prováveis, num momento presente eterno, como a “Segunda Pessoa da Santíssima Trindade”, a forma total e integral de Sua Auto-manifestação — em essência, não outra senão Ele mesmo — que, quando refratada pela matriz espaço-temporal, percebemos por meio de nossos sentidos físicos e chamamos de “o universo”.

Os Tradicionalistas, pelo menos Ananda Coomaraswamy, René Guénon e Whitall Perry, negam a doutrina da reencarnação e afirmam que, embora seja aceita como verdadeira por muitos hindus, e algo que a ela se assemelha por praticamente todos os budistas, não é ensino ortodoxo. Eles explicam aparentes referências a cadeias de existências reencarnacionais como um mal-entendido, ou má aplicação, de duas doutrinas distintas: a metempsicose — o ensino de que material psíquico assim como físico liberado pelos mortos (inclusive memórias) pode ser herdado pelos vivos — e a transmigração — o ensino de que a individualidade eterna passa por muitos estados de existência viajando verticalmente (ou, para sermos estritamente exatos, em uma espiral ascendente ou descendente) na Grande Cadeia do Ser, jamais passando duas vezes por qualquer estado, incluindo o nosso humano encarnado. Segundo Guénon em O Erro Espírita,

a transmigração… é uma questão da passagem do ser a outros estados de existência, os quais são determinados… por condições inteiramente diferentes daquelas a que a personalidade humana está sujeita… Isto é o que todas as doutrinas tradicionais do Oriente ensinam… a verdadeira doutrina da transmigração, entendida no sentido que lhe confere a pura metafísica, a qual permite de uma vez por todas refutar a ideia de reencarnação.

Os Tradicionalistas sustentam que nem mesmo o hinduísmo ensinou originalmente a doutrina da reencarnação tal como é atualmente entendida. Whitall Perry, em “Reincarnation: New Flesh on Old Bones” [Studies in Comparative Religion, vol. 13, ns. 3 e 4, p. 153], escreve:

a alma empenhada no pitri-yāna (“Caminho dos ancestrais”) não “desliza horizontalmente” por uma série indeterminada de vidas e mortes, uma vez tendo sido “lançada” no sasāra, mas antes é referida de volta ao término de cada vida à sua Fonte; há uma dimensão vertical (simbolizada nos Upanishads como um retorno à “Esfera da Lua” — equiparável a Hiranyagarbha) que significa um confronto direto (ainda que não identidade) com seu ponto primevo de Origem. Cada “vida” pode, portanto, ser considerada original, como uma entrada fresca na existência ou “descida”, seja para um domínio esplêndido, seja terrível, e como uma experiência cíclica única com um retorno que culmina numa teofania ou “Juízo”, no qual momento toda alma de fato — e com clareza devastadora — recorda sua “vida anterior”. Todo o tempo a porta da Libertação para o deva-yāna (“Caminho dos deuses”) permanece acessível aos “Conhecedores da Verdade”, uma vez dadas as respostas corretas que permitem a passagem para fora do sasāra e a união com estados supraformais de ser.

Em outras palavras, eu não sou uma “reencarnação” daquele homem na Idade Média; na realidade, ambos somos “encarnações” únicas, ou facetas, do mesmo Arquétipo eterno ou “Nome de Deus”. Resta alguma incerteza quanto a se “alma” na passagem acima se refere à individualidade humana única ou ao Arquétipo comum de toda uma “família” de tais individualidades, mas isso não passa de um reflexo da ambiguidade primordial, ou antes, do paradoxo, da doutrina hindu tradicional da transmigração: que Brahman, o próprio Absoluto, é “o único e verdadeiro Transmigrante” — afirmação paradoxal porque o Absoluto, estando além de toda relatividade, é, noutra acepção, a única Realidade que não poderia possivelmente transmigrar. Esse paradoxo é resolvido pela doutrina de māyā: que o sasāra, embora inegavelmente real do ponto de vista dos seres relativos que o experimentam, é ilusão do ponto de vista do Absoluto. Deus conhece o sasāra como não tendo realidade separada em si; Ele o vê não como as alegrias e dores, as lutas e escolhas de inumeráveis seres sencientes embora saiba muito bem que esses seres sencientes de fato o experienciam assim, e o saiba ainda mais profundamente do que eles mesmos — mas como a irradiação infinita, auto-manifestante, somente de Si Mesmo. Em outras palavras, quando eu realizo plenamente a verdade de que “Deus é o único e verdadeiro transmigrante”, a transmigração cessa. Além disso, sabe-se também — porque Deus o sabe — que, na Realidade, ela nunca começou.

A falha em perceber que a transmigração nunca começou porque “o único e verdadeiro Transmigrante” é o Absoluto produz a experiência ambígua da transmigração, que, como um modo de māyā, é “tanto real quanto irreal”. A falha em entender que cada existência transmigracional é uma criação nova — como no conceito islâmico de “ocasionalismo”, a doutrina de que Deus recria todo o universo e a alma humana a cada novo instante — produz a crença na reencarnação; o Ato Divino, vertical e soberano, torna-se horizontal, e contingente, de causa e efeito. A crença na reencarnação da mesma individualidade humana numa série de vidas diferentes — doutrina que, aliás, não é ensinada pelos budistas, já que estes não postulam uma individualidade humana única em primeiro lugar — separa a alma humana de sua Fonte transcendente, exceto na origem primeira e no fim último de cada ‘cadeia de vidas’ indeterminada. Ela resulta num universo mecanicista e deísta onde Deus não pode ter relação misericordiosa, iluminadora, perdoadora e redentora com os mundos e as almas que Ele criou — um universo onde, por não poder haver dharma, nem intervenção salvífica divina, nem dispensações religiosas, o karma é absoluto. Num tal universo, eu não posso me arrepender, nem Deus pode perdoar. Foi essa absolutização do karma que levou Mme Blavatsky (que, como veremos, de fato aceitou a reencarnação em sua obra final, A Doutrina Secreta, apesar das negativas de alguns de seus seguidores) a odiar e rejeitar a doutrina cristã do perdão dos pecados como violação da lei do karma, e até a definir a oração e o sacrifício, concebidos como tentativas de alterar ou contornar o karma, como atos de magia negra. Mas tomar o karma como absoluto é absurdo e autocontraditório. O karma, enquanto cadeia de ações e reações causais no mundo relativo do samsara, é relativo em essência; jamais pode ser absoluto. Toda condição de inevitabilidade causal no plano horizontal pode ser compensada pela operação da liberdade humana, e da Misericórdia Divina, no plano vertical.

A doutrina da reencarnação está organicamente relacionada à crença na possibilidade de viagem no tempo. A mente do materialismo, presa ao espaço e ao tempo, confronta a Eternidade, mas não pode realizá-la nem compreendê-la; o materialismo só consegue ver “outro modo de existência” como “outra ocasião de existência material”. A mente incapaz de transcender o tempo só pode conceber tal transcendência como uma capacidade enormemente ampliada de viajar para trás, ou lateralmente, por dimensões horizontais indefinidas, para outras realidades materiais. O senso do que os sufis chamam de waqt, a Presença divina eterna manifestada neste momento particular, ameaça seus pressupostos mais fundamentais e, assim, sua própria existência. Em fuga dessa Presença, ela busca refúgio em espaços multidimensionais e tempos paralelos e cadeias de vidas reencarnacionais. Tais teorias complexas e arcanas nos atraem porque, simplesmente, temos medo de encontrar Deus. Relutamos em admitir que este momento único está eternamente salvo ou eternamente perdido segundo a qualidade presente do nosso amor, sabedoria e vigilância, ou, ao contrário, do nosso ódio, delírio e caos mental. Queremos uma segunda chance, ou um número infinito de segundas chances, para sermos quem somos aos olhos de Deus. Mas, se estamos em fuga de nossa identidade integral sub specie aeternitatis, então todas essas segundas chances, todas essas vidas futuras ou viagens de volta ao passado para consertar nossas falhas, são apenas tantas novas chances de ir para o Inferno. O tempo é a Misericórdia da Eternidade, disse Blake. Ele nos é dado como um dom precioso, como parte de nossa liberdade humana dada por Deus. Se o desperdiçamos, não há segunda chance. O desejo de viajar no tempo para escapar ou alterar as consequências de nossas ações é idêntico ao desejo de não estar aqui agora, de não ser quem realmente somos, de não pagar nossas dívidas kármicas deixando de tentar fugir de nossos credores, de não nos sentarmos no Espírito e permitir que nossas dívidas sejam perdoadas pela Misericórdia de Deus, de não permanecermos na presença de Deus. É, portanto, puramente satânico. Sentar em contemplação é entregar o passado a Deus e receber d’Ele o futuro; “viajar no tempo” é rejeitar o que Deus quer nos dar e agarrar o que Ele quer tirar de nós. Nas palavras do xeique sufi Ibn Abbad de Ronda, “O tolo é aquele que se esforça por obter, a cada instante, algum resultado que Allah não quis.”

Ora, é verdade que, no plano psíquico, já existimos num espaço-tempo mais multidimensional do que no plano físico. Se isso não fosse verdade, visões de realidades passadas e futuras, ou de várias realidades “paralelas”, não seriam possíveis, como claramente são. Mas não podemos “viajar” por essas realidades sem transcender o arcabouço perceptivo necessário para a realidade física, que inclui o tempo linear e unidirecional; e transcender o tempo é transcender a própria “viagem”, e entrar na simultaneidade. Afirmar que podemos transcender o tempo a fim de melhorá-lo, que podemos viajar ao passado para criar um futuro melhor, é como afirmar que podemos melhorar as condições dentro de nossa cela de prisão sendo libertos dela. Mas quem sustentaria que o melhor uso da liberdade, ou mesmo um uso possível dela, é melhorar a escravidão? Quem além de um mago iludido, que acredita poder tocar um nível superior do ser para reforçar as agendas de um nível inferior, que pode usar a Verdade para manipular suas ilusões, o Desapego para cumprir seus desejos, a Ausência de Desejo para ampliar seu poder pessoal? Se realizamos conscientemente aquele aspecto de nós que transcende os limites espaço-temporais da realidade física, então todo o campo do espaço-tempo físico torna-se virtualmente disponível para nós. Mas não se torna disponível para aquela parte de nós que ainda está limitada ao espaço-tempo. O nível material do nosso ser que, enquanto vivemos, está sempre ali, e que sempre retém o potencial de recuperar o controle de todo o nosso campo perceptivo, se permitirmos — a parte que está sempre dizendo “tenho medo de envelhecer, tenho medo de morrer, tenho medo do fim do mundo, tenho que sair daqui, não quero reconhecer meus limites, não quero encarar meu fim, por que alguém não pode me congelar para que eu seja reanimado no futuro? por que alguém não pode inventar a viagem no tempo para eu fugir para o passado?” — essa parte de nós não pode manipular realidades trans-materiais e multidimensionais. Ela jamais pode entrar em contato com elas porque, precisamente, está em fuga delas. A única maneira de contatá-las seria morrer para si mesma, e isso é exatamente o que ela está tentando estabelecer contato com elas para impedir. Este é o círculo vicioso do materialismo tentando acessar e controlar o Espírito para fins materialistas, a contradição inerente à visão de mundo mágica, a idolatria autoderrotante de forças e dimensões sutis materiais disfarçadas como a liberdade do Espírito dada por Deus.

Os Jinn não transcendem o espaço e o tempo, mas existem em uma qualidade de espaço e tempo diferente da nossa em nossas vidas materiais do dia a dia. Como essa relação mais multidimensional com a matriz espaço-temporal lhes permite louvar a Deus de modos únicos talvez jamais nos seja dado conhecer. Mas é claro que aqueles Jinn que “não são muçulmanos” percebem que, se puderem nos fascinar e/ou aterrorizar com sua própria realidade multidimensional, que nunca poderemos tornar plenamente nossa nesta vida, isso nos distrairá poderosamente de nossa própria relação adequada com o espaço-tempo, e assim das responsabilidades únicas e especificamente humanas que Deus nos deu como vias para conhecê-Lo: nascer; crescer “em sabedoria, idade e graça”; na vida adulta, lutar com as limitações da existência encarnada para proteger e dar continuidade à vida; na velhice, adquirir sabedoria; na morte, encontrar nosso Criador. Quem não quer jogar segundo essas regras não quer mais ser um ser humano; nas palavras de um discurso de 1975, registrado por Jacques Vallée em Mensageiros da Decepção, por um membro do Culto Heaven’s Gate (ou Metamorfose Individual Humana, como então se chamava), “muita gente está cansada de jogar o jogo humano”. Mas o jogo humano e a forma humana são o único modo pelo qual podemos nos relacionar com a Fonte Divina de nossas vidas; todos os poderes dos Jinn não podem mudar este simples fato. Mas podem ocultá-lo de nós, e é exatamente isso que estão tentando fazer no presente. É verdade que, no nível psíquico do nosso ser, somos tão multidimensionais quanto os Jinn. Mas também é verdade que estamos aqui na vida física por um propósito, que fomos desenhados por Deus para a experiência física assim como para o conhecimento psíquico e a compreensão espiritual, e que a finalidade da vida física e do tempo unidirecional é nos apresentar continuamente uma escolha eterna: escapar do momento presente, e assim entrar no que as religiões da Índia chamam de “samsara” e as abraâmicas de “Inferno”, ou permanecer plenamente dentro dele, e assim ascender, pela via vertical que nos tira do tempo que passa, ao “Céu”, a estados mais elevados de realidade. Se a atividade presente dos Jinn para nos distrair dessa escolha humana última é melhor entendida como subversão do lado deles ou como abdicação do mandato humano do nosso, não precisa nos preocupar. Mas a escolha eterna que nos confronta neste momento presente deve nos preocupar. É a “uma coisa necessária”. A religião não tem outro propósito senão nos lembrar disso. Todo o resto é “as trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes”. Não passa de distração — talvez fatal. Em Mensageiros da Decepção, Jacques Vallée cita um membro de um culto de OVNIs chamado A Ordem de Melquisedeque dizendo-lhe: “precisamos enfatizar o fato de que estamos recebendo um novo programa! Não temos de passar pelo antigo programa do Armagedom.” Mas Armagedom é precisamente a batalha final entre a verdade e a falsidade, concebida como confrontando toda a raça humana no mesmo momento crucial. Evitar essa batalha — o que as forças do mal adorariam nos fazer acreditar que de algum modo é possível — não é “transcender a verdade e a falsidade” (como se misturar igualmente realidade e ilusão fosse sinal de “equilíbrio” e “objetividade”), mas simplesmente abraçar a falsidade, e assim nos encontrar, nas palavras do Alcorão, “entre os perdedores”. E a tentativa de contornar o juízo de Deus, de impedir que as consequências da ação humana neste mundo sejam plenamente confrontadas e penetradas pela Verdade Divina, é uma agenda central da Nova Era. Pensar que podemos evitar a batalha de Armagedom é, no entanto, acabar do lado perdedor.

Culto aos OVNIs como Contra-Iniciação
O interesse na figura de Melquisedeque no mundo dos cultos de OVNIs, documentado por Vallée em Mensageiros da Decepção, é altamente significativo. Melquisedeque não teve pai nem mãe, de modo que ele é, em certo sentido, imortal: não nascido, portanto jamais morrerá. Isso o colocaria na mesma categoria que os “profetas imortais” Enoque, Elias e o sufi Khidr, que muitas vezes é identificado com Elias. (Assim como Melquisedeque foi o mestre de Abraão no Antigo Testamento, Khidr ou Khezr é o nome dado pelos sufis ao mestre encontrado por Moisés no Alcorão.) Segundo Guénon em seu livro O Rei do Mundo, Melquisedeque representa a Tradição Primordial, o conhecimento original e perene da Verdade eterna da humanidade, o tronco daquela árvore cujos ramos são as grandes religiões históricas. Enoque também é muito citado no mundo dos OVNIs, já que ele — como Elias, e como o Profeta Muhammad, sobre ele a paz — viajou ao outro mundo sem passar pela morte física. Tal “ascensão” é um dom de Deus para um punhado raro de seus santos e profetas; os cultistas de OVNIs, porém, gostam de se identificar com seus próprios “raptos” demoníacos. O contatado Jim Hurtak, por exemplo, recebeu um texto de seus mestres alienígenas que publicou como As Chaves de Enoque. Crentes em OVNIs também reinterpretam regularmente o “carro de fogo” de Elias como um OVNI.

Em O Reino da Quantidade, René Guénon falou da “contra-iniciação” — a tentativa de forças demoníacas de subverter não apenas a religião revelada, mas também as espiritualidades mais esotéricas, como a Cabala dentro do Judaísmo, o Sufismo dentro do Islã ou o Hesicasmo dentro do Cristianismo Ortodoxo — todas as quais, em suas formas legítimas, são estritamente tradicionais e ortodoxas, apesar das distorções heterodoxas produzidas por pessoas como Gurdjieff e Dion Fortune. Em minha opinião, o fenômeno dos OVNIs representa a manifestação mais concentrada e disseminada dessa contra-iniciação já surgida, e a de maior sucesso em nível de massa. Em A Tesouraria da Sabedoria Tradicional, de Whitall Perry, encontramos a seguinte pista para o interesse dos cultistas de OVNIs em Enoque, fornecida pela mística alemã do século XIII Mechthild de Magdeburgo:

Agradou ao Anticristo
Descobrir toda a sabedoria que Enoque aprendera de Deus,
Para que o Anticristo pudesse declará-la abertamente
Junto com seu próprio ensino falso:
Pois se ao menos ele pudesse atrair Enoque para si
Todo o mundo e grande honra seriam seus.

Segundo a doutrina tradicional da Unidade Transcendente das Religiões, todas as verdadeiras religiões reveladas são versões da única Tradição Primordial que é tão antiga quanto a humanidade. Essa Tradição, porém, não pode ser acessada diretamente, mas deve ser abordada por meio de uma das grandes religiões do mundo — do contrário, provavelmente se topará com uma das muitas tentativas de uma espécie de metafísica “genérica”, que colhe fragmentos de muitas tradições, algum sistema que se apresenta como universal mas permanece cortado da Sabedoria e da Graça de Deus, o único poder que pode fazer de alguém um sábio ou um santo. Embora a Verdade seja Una, e os centros esotéricos ou místicos de todas as verdadeiras religiões apontem diretamente para essa mesma Verdade Divina, o “primordialismo” não pode ser uma forma viável em si; o fruto que nutre cresce nos ramos da árvore, não no tronco. E, sendo a porta humana para a Realidade Divina, a Tradição Primordial só pode ser plenamente realizada no mistério da união da alma com Deus. Parece, portanto, que a prevalência da figura de Melquisedeque no folclore de OVNIs e Espíritas é evidência de uma perversão satânica da Unidade Transcendente das Religiões. Se a doutrina da Unidade da Verdade puder ser falsamente usada para negar a eficácia providencial das revelações divinas particulares que Deus nos deu, a fim de promover um sincretismo religioso “Nova Era” — como de fato está acontecendo diante de nossos olhos — então grande dano será feito às formas sagradas que o Divino estabeleceu como caminhos para nosso retorno Àquele que nos criou. E se as largas vias de volta a Deus forem bloqueadas (um bloqueio que, na misericórdia de Deus, jamais pode ser absoluto), então as Potestades do Ar, as nações dos jinn káfir, terão carta branca para apresentar falsamente o plano sutil, psíquico, como o Reino dos Céus, para substituir a sabedoria pela clarividência e a santidade por poderes mágicos e psíquicos na mente das massas.

Melquisedeque não teve pai nem mãe. Como tal, simboliza a Unidade primordial do Ser, ontologicamente anterior aos pares de opostos que determinam a existência manifesta. A falsificação satânica dessa transcendência da polaridade, porém, é a negação da polaridade. A Humanidade primordial, antes da queda no tempo e no espaço, era andrógina, como o era Adão antes de Eva ser separada. Mas a falsificação satânica do andrógino, como apontou William Blake, é o que ele chamou de hermafrodita. No sistema de Blake, Satanás é um hermafrodita em quem todos os estados possíveis são caoticamente misturados — uma contrafação perfeita da Unidade do Ser, onde todas as possibilidades são abraçadas e sintetizadas por Aquilo que as transcende. O que cai abaixo da polaridade imita o que a transcende. A figura de Melquisedeque, tal como interpretada pelos adoradores de OVNIs, é, assim, uma falsificação satânica da Unidade principial, simbolizando, entre outras coisas, a destruição da sexualidade, que a genética moderna agora tornou possível. A auto-castração dos membros do culto de OVNIs Heaven’s Gate foi um ato de culto satânico: destruir a sexualidade é separar a humanidade de seu arquétipo e pôr fim à sua vice-gerência.

Religião, Evolução e OVNIs
Jacques Vallée, em seu livro Dimensões (Contemporary Books, 1988) — possivelmente sob a influência funesta de Whitley Strieber — fala do fenômeno dos OVNIs, inexplicável e numinoso, como a provável origem de religiões passadas e talvez até futuras. Mas, ao fazer essa alegação, ele revela o que só posso chamar de uma chocante, embora muito comum, falta de senso de proporção, já que ele coloca na mesma categoria obsessão demoníaca, aparições de fadas, encontros com OVNIs e a aparição da Virgem Maria em Fátima! Isso é como dizer que quem ou o que quer que saia do mesmo hotel — um santo, um enxame de moscas, um automóvel, um cão-guia, um traficante ou uma lata de lixo — deve ser da mesma natureza ou ter a mesma intenção. Ele está tão hipnotizado pelo fato elementar, aceito até bem recentemente pela vasta maioria da humanidade, de que manifestações físicas mensuráveis podem emergir do invisível, que a qualidade do que emerge lhe escapa completamente, em grande parte porque o mecanismo dessa emergência não pode ser explicado em termos científicos atuais — como se os milagres divinos que são as civilizações cristã, muçulmana ou budista, durando séculos e milênios e representando os cumes do espírito humano, cada uma transbordando de arte requintada, filosofia profunda, costumes sociais nobres e dignos, heroísmo corajoso e autossacrifício, e que continuam a produzir esses espelhos de Deus em forma humana, nossos santos iluminados, pudessem ter sido lançados às pressas por alguns fantasmas fazendo acrobacias aéreas, raptando e brutalizando transeuntes inocentes e violentando algumas mulheres!

Tenho o maior respeito pelo Dr. Vallée como investigador objetivo, científico e em grande parte imparcial do fenômeno OVNI, alguém que não se furta a expor seu frequente horror e repulsa a certas de suas manifestações; em Confrontations (Ballantine, 1990), por exemplo, ele dedica um capítulo às doenças e mortes misteriosas frequentemente associadas ao contato com OVNIs. No entanto, parece sentir que, em nome da “objetividade”, deve tomar cuidado para não tirar conclusões de sua própria repulsa. Mas, se o nojo normal diante de carne podre representa a “sabedoria orgânica” do corpo, que nos diz que, se comermos carne podre, adoeceremos, por que ele não pode reconhecer sua repulsa emocional ao fenômeno OVNI como expressão de uma sabedoria similar, de ordem psíquica ou espiritual?

É aqui que se tornam evidentes os limites da perspectiva científica de Vallée, ou melhor, de sua ideologia científica — seu cientificismo. Porque, segundo a ideologia do cientificismo — o “Reino da Quantidade” de Guénon — não é permitido fazer perguntas qualitativas, nem basear conclusões em considerações qualitativas, inclusive morais. Na medida em que o Dr. Vallée é um bom humanista e, portanto, possui uma consciência e um senso de honra herdados da cristandade, embora não creditados a ela, ele é um homem de cultura. Mas só se pode lamentar a completa ausência de cultura, e até de simples humanidade, mostrada por aqueles indivíduos — e por aquela parte do próprio Dr. Vallée — que nada conseguem ver ou investigar além do mecanismo das coisas.

Tal pessoa deve reduzir uma doutrina religiosa exaltada e a civilização incomparável produzida por ela a um “revestimento cultural” sobre um fenômeno basicamente material. Moisés viu um vulcão e fundou o judaísmo; os discípulos de Jesus viram um OVNI e construíram a cristandade. Mas, para quem tenha o menor entendimento do que é uma religião, os truques vulgares e sem gosto produzidos pelos “alienígenas” de hoje — cujo nível espiritual parece, em muitos casos, pouco superior ao de um molestador de crianças — quando comparados com as manifestações profundamente sábias, boas e belas que são as religiões e tradições sapienciais do mundo — tão imponentes em aspecto quanto sublimes em concepção — necessariamente aparecerão como excremento. E só porque um pedaço de excremento é tirado de um chapéu como um coelho, não passa a ter cheiro mais doce.

Costuma-se dizer que “gosto não se discute”. Discordo. Um gosto são deve basear-se em certa apreciação do verdadeiro, do bom e do belo, que são, em última instância, nada mais do que a manifestação de Deus neste mundo, do qual Ele é o único princípio. Já o gosto degenerado denuncia uma alma ferida — traumatizada, e portanto necessitada de cura, ou deliberadamente pervertida, e portanto a caminho da ira divina. Só peço que minha própria decisão de escrever sobre o tema dos OVNIs não indique o início de uma depravação semelhante em mim.

Ainda assim, o Dr. Vallée nos prestou um serviço ao observar que muitos dos fenômenos psicofísicos que cercaram a aparição da Virgem em Fátima também são comumente relatados como parte de encontros com OVNIs: uma percepção de queda de temperatura, paralisia temporária, fragrâncias doces, sons musicais, luzes em arco-íris, o fenômeno aéreo ambíguo conhecido como “cabelos de anjo” ou “chuva de flores” (os quatro últimos sendo características comuns das aparições de devas ou dakinis no budismo vajrayana), o movimento de descida do objeto — no caso de Fátima, o sol — com um balanço oscilante, etc.

Tais semelhanças o levaram a concluir que as manifestações de OVNIs e as aparições da Virgem, ou mesmo os milagres e o nascimento virginal de Jesus — visto que gestações assexuadas inexplicadas (que são, muito provavelmente, enganos demoníacos) são às vezes relatadas em relação a contatos “alienígenas”, segundo o próprio Vallée em Dimensions — representam a mesma ordem de fenômenos. Mas qualquer um que espere uma renovação espiritual e cultural mundial como a trazida por Jesus de Nazaré surgir de um “O Bebê de Rosemary” está profundamente iludido.

E a verdade é que nossas expectativas reais em relação a tais fenômenos estão longe de ser esperançosas, quer tenhamos coragem de admiti-lo ou não. Em algum lugar de nossas almas todos sabemos a diferença entre o Filho de Deus e o fruto de um íncubo demoníaco; nossos filmes de horror, se nada mais, o comprovam.

Quanto aos fenômenos psicofísicos que cercam aparições tanto angélicas quanto demoníacas, estes devem ser entendidos como simples reações materiais ou quase materiais à passagem de uma manifestação — qualquer manifestação — do plano psíquico para o físico, através da fronteira energética chamada por alguns de “parede etérica”, que, vista da perspectiva material, parece estar de algum modo relacionada ao espectro eletromagnético, se não a definirmos simplesmente como a própria matriz espaço-temporal.

Pode ser admissível, neste contexto, pelo menos provisoriamente, redefinir os “quatro elementos” clássicos — tradicionalmente vistos como o lar dos “espíritos elementais” sutis, os gnomos, ondinas, silfos e salamandras — como matéria (Terra, o que estabiliza a manifestação física); energia (Água, o que revela as ondas em movimento); espaço (Ar, o que representa o ambiente sutil de todos os seres vivos); e tempo (Fogo, o que germina, transforma e, por fim, consome todas as coisas).

Seja como for, a verdade é que não podemos avaliar plenamente uma aparição verídica, em termos de sua fonte original ou de suas consequências últimas, simplesmente catalogando as reverberações psicofísicas imediatas de sua irrupção em nosso mundo. Tais manifestações podem ser milagres, no sentido de que têm sua origem no mundo do Espírito; podem ser fenômenos mágicos, tendo origem apenas no plano psíquico; e, se mágicos, podem ser benignos ou demoníacos.

Nas palavras de Schuon (Light on the Ancient Worlds, p. 104): “no que diz respeito aos milagres, suas causas ultrapassam o plano psíquico, embora seus efeitos passem por ele” — o que significa que todas as aparições, embora possam vir de pontos de origem distintos, devem entrar em nosso mundo pela mesma porta; se não fosse assim, “o discernimento dos espíritos” não seria um dos dons de Deus, nem Jesus teria de nos lembrar que “pelos seus frutos os conhecereis.”

O cientificismo do Dr. Vallée aparece no capítulo final de Dimensions. A introdução é escrita por Whitley Strieber; Vallée o ecoa (a menos que Strieber esteja de fato ecoando Vallée) quando, na página 291, afirma: “Eles [os alienígenas dos OVNIs] são... parte do sistema de controle da evolução humana.” É triste perceber que um pesquisador dedicado, que valoriza acima de tudo a objetividade, e que por isso foi capaz de questionar o mito dominante de que os OVNIs são naves espaciais, e de reconhecer não só sua inexplicável realidade física, mas também seus efeitos psíquicos inegáveis e as evidências concretas de engano humano que os cercam — sem usar uma verdade para ocultar as outras — perde completamente essa admirável objetividade quando se trata do grande ídolo do cientificismo: a evolução.

Não vou aqui recontar as muitas discrepâncias e contradições na doutrina de Darwin, e em outras variações dessa crença, que um número crescente de cientistas de várias áreas considera tornarem a teoria insustentável, nem citarei os trabalhos dos metafísicos tradicionalistas, como Frithjof Schuon, Martin Lings, Seyyed Hossein Nasr e Huston Smith, que explicam por que tal conclusão é filosoficamente necessária. Limitarei-me a perguntar ao Dr. Vallée: o que os raptos, os estranhos experimentos médicos, as mutilações humanas e animais (que ele relata em Messengers of Deception), as acrobacias aéreas projetadas para assustar e confundir, as molestações sexuais e o uso de forças sutis, psíquicas ou psicotecnológicas, que paralisam o corpo e obscurecem a mente, têm a ver com evolução?

Se aceitamos a teoria da evolução biológica, não a compreendemos como baseada em processos físicos que não precisam de OVNIs para prosseguir? E, se falamos de evolução social ou espiritual, o que o terror, a violação e o engano têm a ver com isso? Pode-se forçar um macaco a evoluir em homem torturando-o ou hipnotizando-o? Pode-se melhorar uma sociedade confundindo-a e aterrorizando-a? Pode-se forçar um homem a evoluir em anjo raptando-o e molestando-o sexualmente?

Não há “prova material” de que o fenômeno OVNI represente um conflito entre forças Divinas e forças infra-psíquicas pela atenção da mente humana e pela lealdade da alma humana — um conflito que pode muito bem ser o próprio chamado “Armagedom” no Livro do Apocalipse —, nem tal prova jamais será obtida. Mas afirmo que, a quem observar o fenômeno com toda a amplitude de suas faculdades humanas, a hipótese da “guerra invisível” deve parecer uma explicação infinitamente superior à “evolucionista”.

Controle Mental e Roswell: A Agenda Spielberg?
As atividades de engano e controle mental que se agrupam em torno do fenômeno OVNI são discerníveis não apenas em manifestações encenadas de supostos pousos extraterrestres ou eventos sobrenaturais, mas também em certas produções midiáticas, especialmente filmes como Contatos Imediatos do Terceiro Grau.

Quem estiver realmente interessado nessa hipótese deve alugar Contatos Imediatos, a trilogia Star Wars (1977; 1980; 1983), E.T., A Fire in the Sky (1993) e Roswell. A Fire in the Sky, a história de um suposto sequestro alienígena real, é um relato bastante inocente e direto de um evento intensamente traumático. Star Wars, embora não isenta de elementos sombrios comuns a toda ficção científica, é uma velha “ópera espacial”.

A moral que apresenta pode se opor em muitos pontos à doutrina espiritual tradicional, mas ainda assim, apesar do uso de temas mitológicos fornecidos pelo “consultor mítico” Joseph Campbell, é essencialmente uma história de aventura contada para fins de entretenimento; não é propaganda deliberada.

E.T. é extremamente suspeito, especialmente por apresentar uma paródia da imagem de Michelangelo na Capela Sistina de Deus criando Adão ao tocar-lhe o dedo — produziu regularmente uma espécie de reação pseudo-religiosa sentimental em pessoas para quem todas as emoções religiosas normais eram aparentemente estranhas — mas não há nada nisso que não possa ser explicado pelo anticlericalismo e satanismo estético geralmente endêmicos à cultura de Hollywood.

Contatos Imediatos do Terceiro Grau, por outro lado, com sua exaltação da tendência psicopática, tão prevalente na cultura contemporânea, de romper todos os laços econômicos e emocionais na perseguição de algum ideal fantástico e vazio, é outra coisa; desde seu lançamento, sempre o considerei um trabalho de controle mental.

É nada menos que uma falsificação satânica do “arrebatamento”: em vez de uma doutrina sã e fé religiosa, no contexto das intensas energias psíquicas e espirituais liberadas no fim apocalíptico do aeon, levando à experiência extática da presença de Deus, ele apresenta o niilismo emocional, o vazio espiritual e a ausência de qualquer quadro de referência estável como pré-requisitos para uma rendição voluntária a forças inumanas — e apresenta esse desfecho como “positivo”.

O “herói” do filme abandona completamente sua vida para perseguir a origem do som em sua cabeça — algumas notas musicais — e a imagem mental de uma rocha desértica estéril — experiências que várias formas de hipnose e controle mental podem muito bem produzir com facilidade — e é recompensado sendo levado de bom grado por uma nave alienígena.

Que muitos espectadores tenham encarado Contatos Imediatos como algo mais que mero entretenimento ficou claro para mim no fim dos anos 1980, quando participei de uma festa na casa da musicista New Age Constance Demby. Algumas notas musicais haviam aparecido misteriosamente em uma de suas fitas! Nossa anfitriã alegre e entusiasta as tocou para nós e as interpretou, não surpreendentemente, como uma mensagem pessoal dos “Irmãos do Espaço”, à semelhança das notas musicais de Contatos Imediatos.

Dispensa dizer que ninguém na sala a contradisse; um dos métodos mais eficazes de controle mental autoinduzido, como todos sabemos, baseia-se no medo da gafe social!

[NOTA: não sendo cinéfilo, só depois de terminar este capítulo percebi que as três produções que mais me pareceram controle mental — Contatos Imediatos, E.T. e Roswell — foram todas produzidas por Steven Spielberg! É claro que ninguém deve tirar conclusões rígidas disso; pode ser que o Sr. Spielberg simplesmente tenha um estilo de produção cinematográfica semelhante ao controle mental.]

O “docudrama” televisivo Roswell (1994), estrelado por Martin Sheen, sobre a suposta queda de uma nave alienígena no Novo México em 1947 e a recuperação tanto de corpos alienígenas quanto de sobreviventes que mais tarde morreram, serve como exemplo ainda melhor. Jacques Vallée, em Revelations, explica por que acredita ser improvável que o incidente de Roswell tenha sido o acidente de uma nave extraterrestre. Ele também nos fornece uma informação interessante que contradiz a versão televisiva do evento.

Segundo Vallée, as primeiras pessoas a chegar ao suposto local do acidente encontraram outro grupo já lá, que se descrevia como “arqueólogos”. Vallée especula que sua verdadeira função pode ter sido plantar o material misterioso que mais tarde foi alegado ser os destroços da nave — um material que, segundo ele, poderia facilmente ter sido produzido pela tecnologia humana existente em 1947.

Em Roswell, porém, afirma-se que o objeto não poderia ser uma aeronave experimental acidentada porque “eles estariam procurando por ela” se fosse, mas ninguém apareceu; o local, quando abordado pela primeira vez após o incidente, estava deserto. Obviamente, essas duas afirmações não batem.

Entre as técnicas mais comuns de controle mental — úteis a qualquer um que deseje usá-las e consiga atrair atenção suficiente pela mídia ou pela internet — está a estratégia da ocultação governamental: se alguém afirmar que um dado fato é verdadeiro, mas que o governo o está encobrindo, uma certa parcela do público acreditará automaticamente — especialmente se for possível pressionar o governo a ponto de este começar a emitir negativas. É uma ferramenta barata e confiável; até o próprio governo pode usá-la. Roswell baseia-se nessa estratégia, assim como vários outros “documentários” e “vazamentos” ainda mais propagandísticos relativos ao incidente de Roswell que apareceram posteriormente.

Mas Roswell também é um bom espécime de duas técnicas de controle mental muito mais sofisticadas, que devem ser classificadas como satânicas, pois representam perversões de princípios metafísicos específicos. Dei a essas técnicas os nomes de contradição subliminar e fechamento adiado.

Nas palavras de Jacques Vallee,

é possível fazer grandes parcelas de qualquer população acreditar na existência de raças sobrenaturais, na possibilidade de máquinas voadoras, na pluralidade de mundos habitados, expondo-as a algumas poucas cenas cuidadosamente produzidas, cujos detalhes são adaptados à cultura e às superstições de um tempo e lugar particulares
PASSPORT TO MAGONIA [Henry Regnery Co., 1969] pp. 150–1

Seraphim Rose comenta que

uma pista importante para o significado dessas “cenas produzidas” pode ser vista na observação frequentemente feita por observadores cuidadosos dos fenômenos de OVNIs, especialmente os CE-III [“contatos imediatos de terceiro grau”, isto é, avistamentos de “alienígenas” sencientes] e casos de “contatados”: que são profundamente “absurdos”, ou contêm pelo menos tanta absurdidade quanto realidade. Contatos imediatos individuais possuem detalhes absurdos, como as quatro panquecas dadas por um ocupante de OVNI a um criador de galinhas de Wisconsin em 1961; mais significativamente, os próprios encontros são estranhamente sem propósito, sem objetivo ou significado claro. Um psiquiatra da Pensilvânia sugeriu que a absurdidade presente em quase todos os casos de OVNIs é na verdade uma técnica hipnótica. “Quando a pessoa é perturbada pelo absurdo ou pelo contraditório, e sua mente está buscando significado, ela fica extremamente aberta à transferência de pensamento, a receber cura psíquica etc.” ([Vallee] The Invisible College [E.P. Dutton], p. 115).

Exatamente. Na técnica da contradição subliminar, duas informações mutuamente incompatíveis são projetadas simultaneamente na percepção da vítima sem que a contradição seja apontada ou explicada. Na técnica do fechamento adiado, dados inexplicáveis são continuamente alimentados à vítima ou vítimas ao longo de um período de tempo, dados que sempre sugerem a possibilidade de uma explicação racional, mas nunca a permitem de fato. E, uma vez que a mente humana é feita para buscar e produzir tanto fechamento perceptivo quanto racional, a mente submetida ao fechamento adiado reagirá à frustração continuada de uma de suas necessidades mais básicas afundando em exaustão atônita, ou produzindo uma forma paranoide e delirante de fechamento. A esquizofrenia apresenta à mente uma torrente de dados que sobrecarrega os processos normais de fechamento emocional, racional e perceptivo; a esquizofrenia paranoide representa uma tentativa mais ou menos bem-sucedida de alcançar fechamento relativo por meios anormais. O fechamento adiado, então, pode ser definido como um método experimental para produzir esquizofrenia paranoide (para um relato ficcional dessa técnica, remeto o leitor a That Hideous Strength, de C. S. Lewis, pp. 297–298).

Contudo, contradição subliminar e fechamento adiado não são apenas técnicas de controle mental; são também elementos essenciais da “filosofia” pós-moderna, que acredita que enunciados contraditórios não são necessariamente mutuamente exclusivos, e que qualquer fechamento quanto à verdadeira natureza das coisas, qualquer “paradigma abrangente”, é impossível. O pós-modernismo, tanto como filosofia quanto como nome de nossa cultura contemporânea, emprega a contradição subliminar e o fechamento adiado simplesmente porque não consegue imaginar outra coisa; ele já não crê na existência da verdade objetiva. (Isto, por si, basta para explicar a “Agenda Spielberg”, embora não para refutar absolutamente a existência de uma tentativa mais deliberada de “engenharia social”.) Em Messengers of Deception somos apresentados ao contatado de OVNIs Rael (Claude Vorilhon, cujo patronímico posteriormente apareceu na série de ficção científica de TV Babylon 5 como o nome de uma raça alienígena, os Vorilhons), um falso profeta de barba e vestes, que usa um medalhão baseado em um desenho supostamente mostrado a ele pelos alienígenas. O desenho — uma combinação entre uma suástica e a estrela de Davi — é um exemplo de contradição subliminar. E, como a contradição é dirigida ao “cérebro direito” na forma de uma imagem, em vez de ao “cérebro esquerdo” na forma de um enunciado, é mais provável que seja aceita sem crítica, já que o papel do hemisfério cerebral direito é sintetizar dados, não analisá-los. Assim que uma contradição subliminar é aceita no campo da percepção sem resistência inicial, a faculdade crítica fica atordoada, e a mente se torna receptiva à sugestão.

Pergunto-me se alguém além de mim já percebeu a manobra da contradição subliminar tal como opera em situações sociais normais. Se uma pessoa que deseja influenciá-lo consegue estabelecer uma imagem clara em sua mente de quem ela é e do que se deve esperar dela, e então, rápida e despreocupadamente, diz ou faz algo que contradiz totalmente essa imagem, sem exibir a malícia normal ou a ansiedade social que tal mudança geralmente acarreta, você pode aceitar simultânea e subliminarmente tanto sua imagem dela quanto o contrário dessa imagem. Se aceitar, ela o atordoou a um estado em que pode ser facilmente manipulado. Uma contradição subliminar entre fala e linguagem corporal pode ter o mesmo efeito.

O fenômeno OVNI como um todo, e também o fenômeno dos agroglifos, é um caso da técnica do fechamento adiado. Os OVNIs são naves espaciais? Entidades psíquicas? Fraudes humanas? São filósofos sábios vindos para nos ajudar, ou invasores sinistros aqui para nos destruir? A ambiguidade do fenômeno, em si, produz um estado de fechamento adiado, mas é claro, pelas pesquisas do Dr. Vallee, que essa ambiguidade também está sendo deliberadamente explorada por grupos humanos. Se você colocar uma pessoa numa cela, junto com uma marreta, uma boneca Barbie, uma lata de azeitonas e um novelo de fio de cobre, e disser que a libertará assim que ela inventar um sistema filosófico baseado nesses quatro “princípios”, ela pode surpreendê-lo com sua capacidade de fazer “fechamento” sobre os significados intrínsecos e as inter-relações entre elementos que, em qualquer sentido objetivo, não o permitem. Seu “sistema” dirá muito mais sobre seus próprios anseios, medos, crenças e pressupostos enraizados do que sobre os dados fornecidos. E, uma vez que você saiba qual é o “sistema” dela, poderá estressá-la ainda mais alimentando-a com dados que novamente o contradigam, arruinando seu padrão meticulosamente construído. Melhor ainda, pode alimentá-la com dados que o confirmem triunfantemente — e aos quais estejam enxertados outros itens de informação que você deseja que ela aceite como implicitamente verdadeiros. E ela os aceitará, porque os experimentará não como crenças alheias que lhe estão sendo impostas contra a vontade, mas como partes de um padrão que ela própria criou, por seu próprio trabalho, imaginação, sacrifício e busca da verdade.

Roswell está repleto de contradições subliminares, e o enredo inteiro é um exemplo de fechamento adiado. É a história de Jesse Marcel, um oficial da Força Aérea que visita o local da queda e recolhe parte do material misterioso de que supostamente era feita a nave — e que depois, no curso de um encobrimento governamental do incidente, é forçado a mentir sobre sua experiência. Jesse é o arquétipo do paranoico incompreendido, com quem muitos americanos podem se identificar — mas nós, observadores oniscientes, sabemos que ele está dizendo a verdade. Vemo-lo anos depois, em uma reunião de sua antiga unidade, morrendo de enfisema. Ele ainda está decidido a expor o encobrimento e chegar ao fundo do que realmente aconteceu. Encontra alguns outros que tiveram algo a ver com o incidente e ouve a história sobre a recuperação de corpos alienígenas e de um ocupante vivo. À medida que as histórias são contadas, vemos flashbacks a 1947, alguns supostamente autênticos, outros apenas dramatizações de boatos. Não há resolução. Por fim, o misterioso pesquisador de OVNIs e/ou agente governamental e/ou antigovernamental, Townsend (o personagem de Martin Sheen), aborda Jesse e lhe conta mais sobre as bizarras minúcias do fenômeno OVNI do que ele jamais soube — referindo-se, no processo, a Contatos Imediatos do Terceiro Grau, o único outro filme de OVNIs, exceto talvez E.T., que destaquei como experimento de controle mental —, mas o deixa tão oprimido e perplexo quanto antes. Townsend também não tem conclusões finais, mas permanece misteriosamente conhecedor e intimidante; após encontrá-lo, Jesse afunda em desespero.

Sempre que o incidente é descrito, relatos contraditórios são apresentados. As peles dos alienígenas são lisas/não, são escamosas; suas cabeças são ovais/não, são em forma de pera; o objeto caído é plano e em forma de crescente (vemos um relance rápido)/não, é ovóide (vemos um relance contraditório); o nome do agente funerário contatado pela Força Aérea é Paul Davis/não, David Paulus. Os corpos são cinco ou seis/não, três ou quatro; os corpos são humanoides/não, infantis (como se crianças não fossem humanas)/não, fetais; a nave é cilíndrica/não, redonda/não, ovóide/não, em forma de cúpula: o discurso desorientador continua sem parar. Em certo ponto, vemos a manchete de jornal do Roswell Daily Record relatando a desmistificação oficial do incidente como um balão meteorológico caído: “Gen. Ramey esvazia disco de Roswell.” À primeira vista, isso não significa muito ou nada, a menos que seja um trocadilho infeliz com o ato de despejar chá derramado. Subliminarmente, significa duas coisas diferentes e contraditórias: que o general “esvazia” o incidente de significado — isto é, o declara irreal — e que ele descarrega o disco em si, indicando que é um objeto real do qual coisas reais podem ser retiradas, presumivelmente os corpos alienígenas. Como aparentemente esta é uma manchete real da época, não podemos atribuir a contradição subliminar que ela contém a Steven Spielberg. Como explicá-la, então? Deixando de lado teorias conspiratórias elaboradas — como o envolvimento da comunidade de inteligência em todos os aspectos do incidente de Roswell desde o primeiro dia —, talvez alguém da equipe do Roswell Daily Record que acreditava na queda tenha construído a manchete de modo a desmoralizar os desmistificadores oficiais. Ou pode simplesmente representar — e isso não invalida de modo algum as explicações acima — a reação intuitiva da mente humana, em nível profundamente inconsciente, à “ideia arquetípica” do OVNI como um “mensageiro de engano”.

A ação é repetidamente intercalada com imagens religiosas. Quando Jesse mostra pela primeira vez o material misterioso do disco à sua família, ele aparece abaixo de um quadro de Jesus na parede de sua casa. Quando Townsend faz suas revelações misteriosas e desconcertantes a Jesse, a cena começa com um padre celebrando um serviço memorial para aviadores falecidos do lado de fora de um hangar; Townsend leva Jesse para dentro do hangar, conta os segredos dos OVNIs e vai embora. No final, voltamos ao serviço memorial e ao padre. A cena foi concebida para dar a impressão nítida, embora subliminar, de que o serviço católico é a forma externa ou exotérica, e a lore dos OVNIs o significado interno ou esotérico. Os temas do temenos sagrado, templo ou caverna de mistério, e da experiência iniciática como uma morte espiritual (o serviço memorial) também são explorados — mas não uma morte e renascimento, já que Jesse permanece dentro do hangar e não retorna, nessa cena, à luz do sol. A sugestão é que o fenômeno OVNI é equivalente à, e substituirá a, religião revelada — sugestão tornada mais explícita na cena em que os oficiais da Força Aérea encarregados de investigar o incidente repetem a crença de que “alienígenas” manipularam a genética humana e inspiraram líderes religiosos ao longo da história, e são advertidos por seu superior: “Pensem nas nossas instituições religiosas — se tudo isso viesse à tona, no que as pessoas iriam acreditar?”; e na cena em que o filho de Jesse diz ao pai moribundo, que crê estar perto de descobrir a verdade: “Você está perto de nada. Encare, pai, você nunca vai achar o que procura, você só quer uma resposta como se houvesse alguma prova por aí de Deus, ou de uma vida após a morte, OVNIs, é tudo a mesma coisa, algo para se agarrar quando nada faz sentido, isso é fantasia, para te fazer sentir melhor à noite.” Assim, diante da morte, desse “nada”, dessa “noite”, nenhuma fé é permitida; bata, e porta nenhuma se abrirá.

Mas o verdadeiro objetivo de Roswell e de outras propagandas relacionadas a OVNIs é revelado na cena em que um oficial participante da investigação é mostrado em uma galeria, olhando (brevemente, para instaurar uma “sugestão em vigília”) para talvez um retrato do século XVIII ou XIX de um “santo” aureolado, que olha para cima e à sua direita para um feixe de luz sugestivo da glória de Deus — ou de um feixe de um OVNI —, mas segurando na mão esquerda um objeto vermelho emitindo chamas brancas, chamas que na verdade incendeiam sua auréola; o objeto parece ser a cabeça de um demônio. O oficial pergunta: “Sob que agência estaremos operando?” Seu colega lhe responde: “Nenhuma, teremos controle completo.” Aqui começamos a ver o significado da tradição de que Satanás tem santos e contemplativos próprios, que não respondem nem a Deus nem aos homens. Por outro lado, o santo está sob o feixe de luz na pintura, assim como o oficial está sob a própria pintura; palavra e imagem são diretamente contraditórias em nível subliminar. E o fato de o santo segurar na mão a cabeça flamejante do demônio — se é isso que é — mostra que ele a controla, ou acredita controlá-la, tal como o mago cerimonial da Renascença invocaria o poder de Deus, ou de um de Seus anjos, para dar-lhe controle sobre o demônio que desejava escravizar. Aqui, o desejo de autonomia espiritual prometeica é usado para negar a verdade de que o feiticeiro, embora adore claramente sua própria vontade como se fosse Deus, está de fato entregando essa vontade ao controle de uma vontade infernal por meio desse mesmo culto. Esta é a “negação” — e também a “codependência” — que afeta todos os magos: autodeterminação é escravidão, mas todo adorador da autodeterminação deve negar isso, até que seja tarde demais.

Roswell também faz o que pode para confundir e neutralizar as descobertas de pesquisadores honestos como Vallee. Quando os figurões militares discutem como encobrir a queda de Roswell, um pergunta “e se as pessoas acharem que não estamos no controle dos céus?” e outro responde “elas estariam certas” — instaurando, assim, outra contradição subliminar em relação a “temos controle completo”. Em seguida, propõem que se realizem “fraudes” e que informações verdadeiras sejam vazadas por meio de fontes pouco confiáveis e suspeitas como parte do encobrimento. Mas por quê fraudes? Como uma aparição de OVNI encenada de modo convincente pode convencer as pessoas de que não existem OVNIs? Só pode fazê-lo se mais tarde for provada como fraude — mas isso é justamente o que quase nunca é absolutamente provável quando se alegam enganos de OVNIs. Tudo o que Vallee conseguiu obter são pistas tentadoras de que uma manifestação particular poderia ter sido uma fraude, e evidências suficientemente convincentes para sugerir que o fenômeno como um todo inclui atividades de engano por grupos humanos. Mas, se algo é claro nesse mundo turvo, é que quaisquer enganos em curso destinam-se a ser acreditados, não desmascarados. Quanto ao vazamento de informações verdadeiras por fontes não confiáveis, isso está sendo feito, a fim de estabelecer um “circuito de feedback” entre malucos lunáticos e céticos cínicos. Mas o propósito de tal circuito, segundo Vallee em Messengers of Deception, é desencorajar a investigação objetiva do fenômeno, não convencer as pessoas de que não existem OVNIs. Se esse fosse seu propósito, ter-se-ia de concluir que não é uma estratégia muito eficaz, dado que, toda vez que alguém que investigou os dados reais, ou que ele próprio experimentou o fenômeno, o ouve ser desdenhosamente desacreditado pelas “autoridades”, acadêmicas ou militares, tais autoridades perdem mais credibilidade aos olhos dele — e toda vez que essa pessoa, ou alguém como ele manifeste suas legítimas sensações de que as autoridades estão ou iludidas ou desonestas em relação ao fenômeno, os oficiais em questão tornam-se ainda mais cínicos e autodefensivos, perdendo assim ainda mais autoridade sobre aqueles cuja confiança sustentava seu poder. E, nesse vácuo de autoridade social e cultural, entram — os OVNIs.

Jacques Vallee acredita que esse método de desencorajar a investigação objetiva tem em grande parte o propósito de ocultar as atividades de grupos humanos, permitindo-lhes talvez testar novas armas de alta tecnologia ou dispositivos “psicotrônicos” para manipulação da consciência humana sem interferência pública ou política. Concordo. Mas há outras razões.

Esse rebaixamento da consciência coletiva e o enfraquecimento do senso de realidade estão sendo deliberadamente engenheirados com dois propósitos: primeiro, tornar o público mais sugestionável e aberto à crença nos OVNIs; segundo, embalar-nos em um falso senso de “segurança” — na verdade, um torpor psíquico baseado no medo reprimido — de modo que não percebamos que os OVNIs representam uma invasão psíquica em massa da mais alarmante natureza, exigindo resposta imediata e militante no plano da guerra espiritual.

Esse abaissement de niveau mental é servido por vários instrumentos, entre eles a tendência de retratar os alienígenas de modo cômico, completando assim a tríade Medo / Adoração / Complacência, que também se observa diante de outras possibilidades horrendas — a clonagem humana, por exemplo. Primeiro os tememos; depois rimos deles para negar o medo; e, uma vez reprimido o medo, nós os aceitamos.

Essa irrealidade fabricada é simbolizada em Roswell pela névoa alcoólica em que as histórias da queda do OVNI são trocadas durante a reunião da Força Aérea; um dos informantes, lento e obeso, aparece flutuando de costas numa piscina, com um copo equilibrado na barriga. Não é uma imagem feita para promover nem a lucidez crítica nem a vigilância espiritual.

A intenção central dos roteiristas e produtores de Roswell emerge na cena em que Townsend “educa” Jesse Marcel dentro do hangar. Segue um trecho do diálogo:

Townsend: É preciso proceder com cautela aqui, em guarda contra o desejo de querer que seja verdade ou de querer que não seja verdade. É preciso ser, tanto quanto possível, neutro.
Jesse Marcel: Bem, como se pode ser neutro? Uma coisa é verdadeira ou não é — não há meio-termo.
T: Certo, certo... então nada disso é verdade.
J: Nada?
T: Bem, talvez parte...
J: Não, não, você está brincando comigo — por que está brincando comigo?
T: Porque talvez você nem soubesse o que é verdade, mesmo se tivesse visto tudo com seus próprios olhos. Que tal essa resposta?
J: Então o que foi que vi naquele campo?
T: Aquilo?... ora, foi um balão meteorológico.
J: Não, não foi, eu sei o que vi, e aquilo não era deste mundo.
T: Você não entende, Jesse — você não tem nada, apenas um monte de velhas lembranças e recordações de segunda mão. Ninguém vai levá-lo a sério, sem prova, sem evidência concreta.

O que se prega aqui é nada menos que a impossibilidade de alcançar a verdade objetiva, e, em última instância, a irrealidade da própria verdade objetiva. Restam-nos apenas subjetividades irredutíveis, sem paradigma abrangente que as una numa visão integrada da realidade. Este é o programa inteiro da era e da agenda pós-modernas em resumo — e, já que a Verdade objetiva é, em última análise, Deus, o que se prega aqui é também uma negação de Deus, e sua substituição por principados e potestades demoníacas.

Mas sem fundamento na objetividade divina do Ser, até mesmo nossa capacidade de tirar conclusões racionais dos dados empíricos se erode, pois a racionalidade é nada menos que um eco mental distante da Intelectio, ou Gnose divina.

Nas palavras de C. S. Lewis, em That Hideous Strength (1946), seu romance de ficção científica sobre a invasão da Terra pelas forças do Anticristo (que o autor tradicionalista James Cutsinger descreveu como “O Reino da Quantidade em forma de ficção”):

As ciências físicas, boas e inocentes em si mesmas, já haviam... começado a se distorcer, manobradas sutilmente em certa direção. O desespero quanto à verdade objetiva vinha sendo insinuado nos cientistas; a indiferença a ela e a concentração no mero poder foram o resultado. Balbúcios sobre o élan vital e flertes com o panpsiquismo prometiam restaurar a Anima Mundi dos magos... As próprias experiências da sala de dissecação e do laboratório patológico estavam gerando a convicção de que sufocar todas as repugnâncias profundas era a primeira condição do progresso.

O cerne da questão — que aparece nas duas primeiras falas do diálogo acima — é um ataque deliberado e planejado ao conceito de verdade objetiva; o desconstrucionismo pós-moderno da academia não passa do vapor sufocante que sobe de um caldeirão muito mais profundo e escuro.

Quando Townsend diz que devemos nos guardar de desejar que a hipótese extraterrestre seja verdadeira ou falsa, ele formula corretamente um dos pré-requisitos da objetividade real — mas, em vez de usar a palavra objetiva, ele usa neutra. Ora, neutralidade não é objetividade; pode significar tanto niilismo quanto indiferença. E Jesse percebe esse niilismo — o que o leva a rejeitar a postura “neutra” e a protestar: “Uma coisa é verdadeira ou não é; não há meio-termo.”

Mas, da forma como Townsend armou a situação, Jesse derrota a si mesmo com esse protesto, pois é levado a defender a objetividade atacando os próprios critérios de objetividade, falsamente associados a uma neutralidade niilista — uma neutralidade que, nesse contexto, é apenas outro nome para sugestionabilidade.

Quão engenhosos, quão astutos foram (e são) os roteiristas e o produtor (Steven Spielberg) de Roswell. Mas, se são tão inteligentes — pergunta-se —, por que não podem ser sábios? Porque isso não está nos interesses das forças que conscientemente ou inconscientemente servem; toda inteligência verdadeira é de Deus.

Uma metafísica invertida e satânica está na origem de Roswell.
A contradição subliminar é o contrafator satânico do princípio metafísico segundo o qual o Absoluto está além das “symplegades”, os pares de opostos.
O fechamento adiado é o contrafator satânico do princípio metafísico de que o Infinito, por definição, não pode ser contido em nenhum sistema de pensamento ou percepção.

Absolutidade e Infinidade, como vimos na metafísica de Frithjof Schuon, descrevem propriamente a Essência divina de Deus — e nada mais. Aplicá-las a qualquer coisa relativa e contingente, a qualquer coisa no domínio da manifestação cósmica, é a mais alta forma de idolatria, talvez melhor caracterizada como uma decepção de Iblis — o nome muçulmano de Satanás, ou o princípio satânico em seu modo mais sutil de operação metafísica.

O Absoluto, ou o Ser Necessário, não é realizado pela fusão ou confusão dos opostos, mas pela transcendência deles, após a qual se vê exatamente como o Absoluto se manifesta por meio deles.
E o Infinito, ou Ser Possível, não é realizado pela tentativa fadada de reduzir a Possibilidade Infinita da Natureza divina a um sistema fechado, mas simplesmente aceitando o que vem e deixando ir o que deve ir, sabendo que todas as coisas são manifestação da vontade de Deus — seja em termos do que Ele quer positivamente (o Ser, o bem), seja do que Ele permite negativamente (a privação do Ser, o mal) — considerando que o universo, embora O manifeste, não é Ele mesmo, e é, portanto, necessariamente imperfeito.

A submissão à vontade de Deus manifestada nos eventos de nossas vidas — submissão que não exclui, mas exige nossa resposta criativa, pois nosso desejo inato de viver vidas plenas e significativas é também parte da vontade divina — conduz à gnose de todos os eventos como atos de Deus, o que se abre para a gnose mais profunda de todas as formas manifestas como possibilidades arquetípicas eternas dentro do abraço da Infinidade divina.

A realização de Deus como Infinito não é o desejo por um fechamento filosófico ou experiencial final, mas o sacrifício desse desejo diante da Imanência divina; a realização de Deus como Absoluto não é a confusão horizontal ou neutralização das polaridades, mas a intuição vertical de seu Princípio comum à luz da Transcendência divina.

Na cena final, vemos Jesse Marcel vagueando sem esperança pelo local da queda, na relva seca do outono, procurando “provas concretas” — fragmentos dos destroços do OVNI, todos recolhidos trinta anos antes. Ele busca a certeza não onde ela realmente pode ser encontrada, no Fundamento objetivo do Ser, mas justamente onde jamais poderá encontrá-la: na memória. Jesse, sua esposa e seu filho se reúnem novamente como família em torno de um sentimento de futilidade melancólica: “Jamais poderemos conhecer a verdade”, diz o filme, “mas pelo menos podemos nos encolher juntos, emocionalmente, sobre a base de um desespero comum quanto a conhecê-la.”

Assim, Roswell termina com mais um contrafator satânico: o da humildade.
Em vez de uma reverência piedosa diante do que transcende a forma, somos deixados com uma atonia hipnótica e desesperançada diante do que jamais a alcançou, ou caiu abaixo dela.

Contudo, como diz Rumi, as moedas falsas só existem porque existe o ouro verdadeiro; ou, nas palavras de Meister Eckhart, “Quanto mais ele blasfema, mais louva a Deus.”

Assim, a prática espiritual aqui não é lutar com as sombras da contradição e da incerteza, mas voltar-se 180 graus para longe delas.
É deixar que o falso lembre o verdadeiro: fazer da contradição sem esperança uma forma de lembrar a Verdade divina absoluta que eternamente possui o poder de resolvê-la; e da incerteza sem fim uma forma de lembrar a Vida divina infinita que irradia do núcleo dessa Verdade — pela qual podemos, nas palavras famosas de Blake,

“Ver o mundo num grão de areia
E o Céu numa flor selvagem,
Ter o Infinito na palma da mão
E a Eternidade numa hora.”

A falsa humildade diante do que é menos real que você o torna arrogante e destrói sua dignidade humana. A verdadeira humildade diante do que é infinitamente maior que você o abençoa e eleva — razão pela qual os muçulmanos dizem que o homem, porque é servo de Deus, é por isso mesmo Seu vicegerente, Seu representante plenamente autorizado neste mundo.


Abdução: A Agenda Ontológica

O contato alienígena representa uma irrupção no plano material de forças sub-humanas provenientes do domínio sutil, cujo objetivo é a dissolução de nosso mundo. Mas, embora a dissolução seja o fim natural de qualquer ciclo de manifestação, não somos obrigados a capitular às forças que a produzem, pois há em nós uma centelha da Natureza divina que está além da manifestação, que não foi velada pelo começo nem corrompida pela queda, e não será alterada pelo fim.

Mas, se esquecermos isso — se desviarmos nossa atenção espiritual do Espírito de Deus para as forças do caos e da subversão que são Sua sombra —, então nosso retorno a Ele, que, segundo o Alcorão, é o destino de todos os seres, será indefinidamente retardado, e acabará ocorrendo pela via sombria do tormento infernal, e não pelo caminho da Misericórdia divina, o caminho do Amor e da Sabedoria de Deus.

Segundo Guénon, como recordarás, a adoção de crenças materialistas pela massa da humanidade resultou em uma “solidificação do mundo”.
Mas o materialismo já ultrapassou seu ápice — uma verdade que Guénon já via em 1945 e que hoje é muito mais evidente.

No final do século XIX, quando a ideologia materialista estava em seu auge, religião e “superstição” foram desmascaradas.
Mas hoje, à medida que essa ideologia perde poder — sendo a queda da União Soviética um dos sinais mais claros disso —, e à medida que a crença em seres sutis e mundos invisíveis se torna mais aceitável, essa aceitação não assume a forma de um retorno à religião e à metafísica, que continuam a ser erodidas, mas sim de uma fascinação coletiva por possibilidades misteriosas e sinistras, exatamente como Guénon previu.

A “transcendência” pós-moderna do paradigma modernista, do qual o materialismo era parte integral — Marx e Darwin sendo dois de seus pilares centrais — resultou não em um renascimento da teologia tradicional, mas em uma adoração niilista da fragmentação e do caos sob o nome de “celebração da diversidade”.

O pós-modernismo revela-se um caldeirão tóxico no qual ciência oculta, material cultural desintegrado e forças “infrapsíquicas” se misturam em proporções quase iguais.

Nas palavras do próprio Guénon:

A concepção materialista, uma vez formada e difundida de um modo ou de outro, só pode servir para reforçar a própria “solidificação” do mundo que, em primeiro lugar, a tornou possível... a “solidificação” nunca pode ser completa, e há limites além dos quais não pode ir... quanto mais a “solidificação” avança, mais precária se torna, pois o grau mais baixo é também o menos estável; a crescente rapidez das mudanças que ocorrem no mundo de hoje é um testemunho eloquente demais dessa verdade... embora o domínio do materialismo esteja enfraquecendo, não há motivo para alegrar-se, pois a manifestação cíclica ainda não está completa, e as “fissuras” só podem ser produzidas de baixo; em outras palavras, o que “interfere” com o mundo sensível através dessas fissuras só pode ser um “psiquismo cósmico inferior”, em suas formas mais destrutivas e desorganizadoras — e é claro que influências desse tipo são as únicas realmente adequadas a uma ação que tenha a dissolução como objetivo... tudo o que tende a favorecer e ampliar essas “interferências” corresponde, consciente ou inconscientemente, a uma nova fase da desviação de que o materialismo representou, na realidade, um estágio menos “avançado”... Na tradição islâmica, essas “fissuras” são aquelas pelas quais, no fim do ciclo, as hordas devastadoras de Gogue e Magogue forçarão sua entrada, pois não cessam de tentar invadir este mundo; essas “entidades” representam as influências inferiores em questão.
(O Reino da Quantidade, pp. 145, 147, 202, 206)

Nenhuma exposição mais clara da “agenda ontológica” dos “alienígenas” atuais nos é disponível do que o livro Abduction: Human Encounters with Aliens, do autor ganhador do Prêmio Pulitzer e psiquiatra de Harvard John E. Mack.

Baseado em quase cem casos de “abdução alienígena”, o Dr. Mack (como Jacques Vallee, cuja preeminência como ufólogo ele reconhece) conclui que tais abduções são reais e realizadas por entidades de planos mais sutis do ser, que têm poder de tocar fisicamente este plano.

Ele mergulha mais fundo que Vallee na análise do “pacto psicológico e psicofísico” frequentemente estabelecido entre os alienígenas e seus abduzidos, mas ignora, por alguma razão, as descobertas de Vallee sobre o envolvimento de grupos humanos praticando engano e controle mental.

Segundo Mack, a abdução alienígena tende a ocorrer em famílias.
Muitos abduzidos tiveram pais alcoólatras ou emocionalmente frios, vieram de lares desfeitos ou sofreram abuso sexual infantil. Mack menciona um estudo em que a experiência de abdução é relacionada a abusos rituais por cultos satânicos.

A interação com os “alienígenas” pode começar já aos 2 ou 3 anos de idade.
Na infância, eles geralmente aparecem como relativamente benignos; mas, quando o abduzido atinge a puberdade, suas ações se tornam mais sinistras.
Os abduzidos às vezes transferem aos alienígenas sentimentos de amor não correspondidos no ambiente familiar — e experimentam ser amados em troca.

Muitos abduzidos, na estimativa de Mack, parecem particularmente psíquicos ou intuitivos; muitos experimentam o desenvolvimento de poderes psíquicos como resultado da própria abdução.
Os “alienígenas” exibem características comumente encontradas no xamanismo; eles, ou suas naves, às vezes aparecem como animais. Também guardam uma semelhança óbvia com os tradicionais “deuses, espíritos, anjos, fadas, demônios, goules, vampiros e monstros marinhos” — embora pareça que Mack é incapaz de diferenciar entre os vários tipos de seres sutis, ou não queira fazê-lo. E embora avistamentos de OVNIs ocorram no mundo todo, a maioria das abduções é relatada no hemisfério ocidental, com os Estados Unidos liderando a lista. (A correlação entre atividade de OVNIs e frieza emocional tem um detalhe interessante: o psicanalista freudiano dissidente Wilhelm Reich, pai de grande parte do “trabalho corporal” de hoje, tentava, no fim da vida — quando muitos creem que se havia desequilibrado mentalmente —, manipular e aumentar uma sutil “energia vital” que chamou de “orgone”, como parte de sua luta contra a “praga emocional”. Este era o seu nome para um congelamento em massa da emoção humana, muitas vezes expresso nos termos do que chamava de “couraça de caráter”, bem como por meio de movimentos sociais como o nazismo. Segundo Reich, os OVNIs, como fonte de “energia orgônica mortífera”, eram em parte responsáveis por essa praga.)

Os sequestradores alienígenas submetem suas vítimas a procedimentos “de aspecto médico” aterrorizantes e humilhantes. Também as observam voyeuristicamente enquanto praticam relações sexuais, ou eles próprios mantêm relações com elas. Uma das principais agendas dos alienígenas parece ser extrair esperma e óvulos de seus abduzidos para engenheirar geneticamente uma raça “híbrida” humano/alienígena. Abduzidas do sexo feminino experimentam esses fetos híbridos sendo colocados em seus ventres e, depois, de algum modo removidos alguns meses mais tarde, para continuar seu crescimento a bordo das “naves” alienígenas.

Suas “mães” às vezes são reabduzidas e então orientadas a mostrar amor materno a esses seres híbridos, que parecem “apáticos”. Não há evidência de gravidezes físicas reais. Após a abdução, muitas vítimas passam a se perceber como possuindo agora, ou como sempre tendo possuído, uma identidade dupla “humana/alienígena”; às vezes se veem realizando os mesmos “procedimentos” ou “experimentos” sobre novos abduzidos que foram originalmente realizados nelas.

O Dr. Mack apresenta, em seus relatos de caso, algumas das histórias mais horripilantes de ataque e possessão demoníaca que já encontrei, embora ele não as reconheça como tais. Ele admite (p. 13) que “os abduzidos... carregam cicatrizes físicas e psicológicas de sua experiência. Elas vão de pesadelos e ansiedade a agitação nervosa crônica, depressão, chegando mesmo à psicose, até cicatrizes físicas — marcas de perfuração e incisão, escoriações, queimaduras e feridas”. Fala de casamentos desfeitos e alienação de afeto entre pais e filhos entre os efeitos posteriores mais comuns, e diz que efeitos físicos e psicológicos negativos persistem mesmo em casos em que ocorre cura espontânea de doenças crônicas ou incuráveis. Naturalmente se suporia, portanto, que sua abordagem terapêutica incluiria uma tentativa de proteger seus pacientes de influências alienígenas contínuas e ajudá-los a romper quaisquer laços psicológicos remanescentes. Mas não é esse o caso, porque Mack, de modo chocante, acredita que a influência dos alienígenas, em geral, é boa! Ele vê seu papel como o de ajudar seus clientes a lembrar as experiências de abdução, muitas vezes por meio de hipnose (que, aliás, tem-se mostrado tão pouco confiável como ferramenta para acessar “memórias recuperadas” que os tribunais recentemente desautorizaram depoimentos baseados nela) — e então ajudá-los a lidar com as emoções violentas e horríveis que tais memórias implicam — e então ajudá-los a aceitar que sua experiência é (de algum modo) em última análise “positiva”, “transformadora” ou “espiritual”. Ele se vê apoiando-os mais contra terapeutas céticos e membros da família do que contra os próprios sequestradores alienígenas. “Em meu trabalho com abduzidos”, diz, “estou plenamente envolvido, experienciando e revivendo com eles [sic] o mundo que eles estão trazendo à tona a partir do inconsciente.” Tem-se a nítida impressão de que a sessão terapêutica com o Dr. Mack é, na verdade, a segunda metade ausente da própria experiência de abdução, que inclui tanto um evento original profundamente traumático, ou série de eventos, quanto a aceitação final da experiência, em contradição com os sentimentos mais profundos do paciente, como uma “mensagem” ou “missão” dos alienígenas, no enquadramento terapêutico “permissivo”, “de apoio”, “não ameaçador”, “não julgador”, “acolhedor” fornecido pelo Dr. Mack. Seria interessante, contudo, ver como alguns dos pacientes de Mack reagiriam em um ambiente diferente — o de um exorcismo tradicional, por exemplo. Seus sentimentos deliberadamente reprimidos de terem sido profundamente violados reemergiriam em tal contexto? A aceitação plena desses sentimentos levaria a uma conclusão radicalmente diferente acerca da verdadeira agenda dos alienígenas? O próprio Mack parece ver sua interação com seus clientes como parte da “composição” da experiência de abdução. Ele a descreve como um processo “cocriativo”, “o produto de um entrelaçamento ou confluência da consciência de duas (ou mais) pessoas na sala. Algo pode ser trazido à tona que não estava lá antes exatamente na mesma forma” (p. 391). Precisamente.

Ler Mack é como observar, através de um espelho unidirecional, as manobras de um médico confuso que está tão fascinado com a tarefa de diagnosticar uma doença que se esqueceu de que seu dever é curar o paciente. Talvez ele simplesmente não saiba por onde começar a tratar a doença que o confronta. Mas só se pode concluir de seu livro — já que ele o afirma abertamente — que ele aceita a agenda alienígena relatada por seus pacientes atormentados e traumatizados, porque eles mesmos a aceitam. Seria esta a forma final da “terapia centrada no cliente” de Carl Rogers? A ideia de que, já que o paciente escolheu a esquizofrenia, ou a possessão demoníaca, o papel do psiquiatra é apoiá-lo nessa escolha e ajudá-lo a enlouquecer? É claro que o cliente “aceita” o programa alienígena: ele está possuído por ele — exatamente como uma célula humana invadida por um vírus, que utiliza a própria estrutura genética da célula para criar réplicas de si, está possuída pelo vírus. Mas só porque o sistema imunológico de uma pessoa falha em superar o ataque de um micróbio, devemos então sufragar esse “escolha”? Isso é boa prática médica? (Não por acaso C. S. Lewis, em That Hideous Strength, chamou os seres espaciais demoníacos e/ou anjos caídos empenhados em conquistar a Terra de “macrobes”.) Mack vasculha fragmentos dispersos de saberes espirituais e ocultos para explicar o que seus pacientes estão passando e nada encontra além de evidências de que tais coisas sempre ocorreram, somadas a especulações baseadas nas declarações feitas pelos próprios alienígenas! Mas, se alguém me sequestra e tortura, isso é alguma indicação de que eu deva acreditar no que ele diz? Tal atitude é de algum modo racional, para não dizer sã no nível do sentimento humano normal? E o fato de coisas semelhantes terem ocorrido ao longo da história é algo puramente elementar. O poder de realidades de dimensões invisíveis de incidir sobre nosso mundo sempre fez parte do conhecimento humano, não obstante sua supressão pelo materialismo reducionista nos últimos dois séculos. Mack constrói seu argumento para aceitar a agenda alienígena no fato de que a mera presença deles derruba o paradigma materialista. Mas, se é assim, por que não pode ele aceitar o consenso comum dos milênios pré-materialistas, quando era bem entendido — como ainda o é por muitos hoje — que manifestações como as que ele relata indicam a presença de demônios, e que os demônios são, em todos os casos em que isso serve a seus fins — e às vezes porque simplesmente não conseguem evitar —, mentirosos deliberados? Ele lucra jubilosamente com a negação, por parte do materialismo, da validade da religião e de qualquer senso de ordem moral no universo; é precisamente isso que lhe permite aceitar uma realidade puramente demoníaca de natureza sutil — acoplada a uma filosofia sinistra e autocontraditória — e então apresentá-la como a arauta de uma grande mudança de paradigma porque transcende o materialismo. Isto é exatamente o que Guénon quis dizer quando afirmou que o materialismo primeiro “solidifica” a mentalidade humana e depois produz “fissuras” que se abrem não para o “celestial”, mas para o “infrapsíquico”.

A prática correta, quando confrontados com manifestações como a abdução alienígena, para as quais as evidências duras continuam a se acumular, é simplesmente admitir o óbvio — que tais manifestações existem — e então passar a fazer as perguntas que ocorrerão imediatamente a qualquer ser humano normal e religiosamente instruído: (1) A manifestação em questão é boa, neutra ou má? (2) Se é boa, o que nos pede? (3) Se é neutra, é útil ou perda de tempo? (4) Se é má, como podemos evitá-la e/ou combatê-la? Alguém que não consegue formular sequer essas perguntas mais elementares e inevitáveis não é, de modo algum, médico de almas. E, infelizmente, Mack cai nessa categoria. Ele parece acreditar que formular questões morais sobre o que aparenta ser ações deliberadas de seres conscientes é de algum modo anticientífico, e repete o clichê niilista comum, derivado de uma metafísica contrafeita, de que seres de planos mais sutis estão de algum modo além do bem e do mal. Ele atribui ignorantemente essa metafísica contrafeita ao budismo tibetano e opõe-a à do judaico-cristianismo:
“Para a percepção polarizante do dualismo cristão, esses seres de olhos escuros parecem ser os companheiros do Diabo (Downing, 1990). Tradições religiosas orientais, como o budismo tibetano, que sempre reconheceram a vasta gama de entidades espirituais no cosmos, parecem ter menos dificuldade em aceitar a realidade do fenômeno de abdução por OVNIs do que os monoteísmos mais dualistas, que oferecem poderosa resistência à aceitação” (p. 412).

Em relação à crença de que realidades superiores são moralmente neutras, o ensinamento de Frithjof Schuon sobre o assunto é o seguinte: Deus pode estar “além do bem e do mal” porque transcende toda a relatividade, mas isso não significa que Ele esteja “além do bem”, ou moralmente neutro em sua relação conosco, ou de algum modo meio bom e meio mau. Ele é o Soberano Bem, além de qualquer relação concebível com a manifestação fragmentária e privativa que chamamos de “mal”. Sua bondade transcende a definição como “o oposto do mal” não porque esteja, de algum modo, envolvida com o mal, mas porque é Absoluta e, consequentemente, não tem oposto.

Quando Mack usa a palavra “aceitação” no trecho acima, ele quer dizer “aceitação como real” ou “aceitação como boa e/ou inevitável”, como quando ajuda seus clientes, no ambiente terapêutico, a superar sua resistência natural e aceitar a agenda alienígena? Ele parece dizer que o budismo tibetano, com sua compreensão da “vasta gama de entidades espirituais no cosmos”, as aceita como reais, ao passo que a tradição cristã não o faz. Mas o cristianismo, ao ver os alienígenas como “companheiros do Diabo”, obviamente os aceita como reais, pela própria admissão de Mack. Mack torna a palavra “aceitação” deliberadamente ambígua para insinuar que, enquanto o cristianismo estreitamente os rejeita como maus, o budismo tibetano, de visão ampla, os aceita como parte natural do cosmo; mas tudo o que ele realmente conseguiu afirmar de modo factual é que os budistas tibetanos creem que são reais — o que, é claro, também é verdadeiro para os cristãos. Sua intenção óbvia é criar uma cunha entre cristianismo e budismo, e insinuar que os tibetanos, ao aceitarem os alienígenas como reais, necessariamente os aceitam como bons, como se o budismo tibetano não possuísse doutrina do demoníaco. Não é o caso, evidentemente. Tanto o cristianismo quanto o vajrayana reconhecem a existência de entidades demoníacas — a diferença é que os cristãos creem que são eternamente condenadas, ao passo que os budistas sustentam que, pagos seus débitos kármicos, podem passar a modos de existência relativamente menos infernais, e que grandes santos podem, em ocasiões, até mesmo convertê-las ao budismo! Mas seus efeitos profundamente destrutivos, e a necessidade de combatê-las vigorosamente no plano espiritual, são plenamente reconhecidos por ambas as tradições; insinuar o contrário é ou culposamente ignorante ou efetivamente calunioso para com o budismo tibetano. E só porque os demônios são entendidos esotericamente no vajrayana como aparições concebidas na própria mente, que simbolizam apegos e paixões obscurecedores, isso em nada os torna menos reais; afinal, a forma humana também é uma aparição concebida na própria mente — que é, em última análise, a mente do Buda —, simbólica neste caso do “estado humano difícil de alcançar”, o único estado a partir do qual o potencial para a Iluminação Total Perfeita pode ser realizado.

Padma-sambhava, o grande adepto do vajrayana que levou o budismo ao Tibete, passou muito de seu tempo combatendo e subjugando demônios. As passagens seguintes são de The Tibetan Book of the Great Liberation, de W. Y. Evans-Wentz:
“Então Padma pensou: ‘Não posso muito bem difundir a Doutrina e ajudar os seres sencientes até que eu destrua o mal’... subjugou todos... os demônios e espíritos malignos, matou-os e levou seus corações e sangue à sua boca. Seus princípios-de-consciência ele transmutou na sílaba Hum e fez o Hum desaparecer nos mundos celestes... Transformando-se no Rei das Deidades Irascíveis, Padma, sentado em meditação, subjugou os Gnomos... Padma realizou danças mágicas na superfície de um lago venenoso em ebulição, e todos os nagas malignos e demoníacos que habitavam o lago se submeteram a ele... subjugou vários tipos de demônios, como os que causam epidemias, doenças, obstáculos, granizo e fome... Padma trouxe todos os deuses que habitam os céus presididos por Brahma sob seu controle... E, sob outros disfarces, Padma venceu todos os mais furiosos e temíveis espíritos malignos e 21.000 demônios, machos e fêmeas... as deusas Remati e Ekadzati apareceram diante de Padma e o louvaram por ter conquistado todos os males e todas as divindades” (pp. 139–142).

Em linha com as constatações de Mack, os alienígenas deveriam obviamente ser classificados entre os “demônios que causam doenças e obstáculos” — mas, se ele tem tanto respeito pelo budismo tibetano, por que não os vê como forças a serem subjugadas? Presumo que seja porque ele não é mais um budista vajrayana do que é um cristão, embora não se envergonhe de tirar doutrinas de ambas as tradições de seus contextos e usá-las para seus próprios fins. “Não pode haver muito lugar”, diz ele, “especialmente dentro da tradição judaico-cristã, para uma variedade de pequenos, porém poderosos, seres domésticos que administram uma mistura estranha de trauma e transcendência sem aparente respeito por qualquer hierarquia ou doutrina religiosa estabelecida” (p. 412). Mas, como acabamos de ver, o judaico-cristianismo tem um lugar perfeito para eles: as regiões infernais. Sua falta de “respeito” por qualquer “hierarquia ou doutrina religiosa estabelecida” claramente não representa uma incapacidade das religiões reveladas de lhes dar sentido, mas sim uma vontade, por parte dos alienígenas, de descreditar as religiões reveladas — uma agenda que Mack, como demonstrado no trecho acima, apoia. E não há maneira melhor de minar a religião revelada do que associar a ideia de “transcendência” à ideia de “violação traumática”, separando assim o Verdadeiro do Bom na mente das vítimas, e associando a Verdade, não à Bondade, mas ao mal e ao poder nu. Segundo a metafísica tradicional, o Ser puro é em si o Sumo Bem a quem chamamos Deus; consequentemente, quanto mais real algo é, melhor ele é, e quanto melhor algo é, mais real ele é. É meta do Anticristo separar a Verdade da Bondade e do Amor, e uni-la em vez disso ao poder implacável, para assim varrer da terra a Bondade e o Amor.

Mack responde repetidas vezes aos críticos que atribuem a aceitação, pelos abduzidos, da agenda dos alienígenas à “Síndrome de Estocolmo”, a tendência psicológica documentada de vítimas se identificarem com seus algozes, como Patty Hearst fez com os terroristas que a sequestraram. Ele diz (p. 339):
Em contraste com os propósitos estreitos e interesseiros de abusadores humanos e sequestradores políticos, os seres revelam um propósito compartilhado e oferecem a possibilidade de abertura para uma cosmovisão inclusiva e mais ampla, que é poderosamente internalizada por muitos abduzidos.

Mas Patty Hearst também foi aberta a um “propósito compartilhado” baseado numa “cosmovisão inclusiva e mais ampla” — a da luta de classes global, em oposição à vida protegida de uma moça rica e mimada — pela Exército Simbionês de Libertação; e qualquer criança cuja primeira experiência sexual seja com um sequestrador ou molestador certamente teve sua cosmovisão ampliada, embora de maneira terrivelmente destrutiva. Não há contradição necessária entre um “propósito interesseiro” e uma “cosmovisão mais ampla”. Hitler, que não só era interesseiro como fez do ato de servi-lo uma pseudorreligião, abriu vistas extremamente amplas ao povo alemão. Infelizmente para eles, e para o resto do mundo, eram vistas do mal.

Na p. 407, o Dr. Mack tenta defender abusos humilhantes e desumanizadores como experiência positiva e transformadora. Ele diz:
Costumam me perguntar como experiências tão traumáticas, e até cruéis às vezes, podem também ser espiritualmente transformadoras. Para mim não há inconsistência aqui, a menos que alguém reserve a espiritualidade para esferas livres de dor e luta. Às vezes nosso aprendizado espiritual mais útil vem às mãos de mestres ásperos, que têm pouca consideração por nossas presunções, defesas psicológicas ou pontos de vista estabelecidos.

Qualquer que seja sua intenção, uma afirmação tão abrangente poderia ser interpretada como defesa não apenas do “direito” de alienígenas nos sequestrarem, mas do “direito” de gurus megalomaníacos e psiquiatras antiéticos abusarem psicologicamente e sexualmente de seus devotos e clientes. É verdade que a experiência dos campos de extermínio nazistas foi poderosamente transformadora, em sentido espiritual, para alguns judeus; Elie Wiesel e Viktor Frankl vêm imediatamente à mente. Mas isso significa que os nazistas foram uma força espiritual para o bem no mundo? Mais uma vez, devo citar as palavras de Jesus: “É necessário que venha o escândalo, mas ai daquele por quem o escândalo vem.” Creia alguém em OVNIs e abdução alienígena ou não, os graves perigos da abordagem de Mack deveriam ser óbvios.

Incrivelmente, Mack vê a experiência de abdução como paradigma de “crescimento pessoal e transformação”. Ele a apresenta em termos de oito elementos, ou estágios (pp. 48–49): (1) “Atravessar” a morte do ego rumo à aceitação; (2) reconhecer os alienígenas como intermediários entre o estado humano e uma consciência cósmica impessoal; (3) experimentar extaticamente um retorno ao “Lar” dessa consciência; (4) recordar vidas passadas; (5) obter uma consciência ampliada que transcende o nível material e inclui grandes ciclos de manifestação reencarnacional; (6) identificação da própria consciência com uma vasta gama de outras formas de consciência, incluindo as de espíritos elementais e dinossauros; (7) experiência de identidade dual humano/alienígena; (8) alcance de uma consciência multidimensional que parece transcender a matriz espaço-temporal. Trate-mos desses itens um por um.

(1) A falsidade aqui é identificar a rendição voluntária do próprio ego com a quebra forçada da própria vontade. Deus não é hipnotizador nem terrorista. Uma relação profunda e fecunda com a Fonte de Toda Vida não pode ser produto de lavagem cerebral e controle mental. Portanto, quaisquer forças que empreguem tais técnicas se opõem a Deus. Como escreve C. S. Lewis em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, falando pela boca de seu demônio Fitapixa (pp. 37–38):
Para nós, um ser humano é primordialmente alimento; nossa meta é a absorção de sua vontade na nossa, o aumento de nossa própria área de individualidade às custas dele. Mas a obediência que o Inimigo exige dos homens é coisa bem diferente. [...] O serviço d’Ele [é] perfeita liberdade. [...] Queremos gado que afinal possa virar alimento; Ele quer servos que afinal possam virar filhos.
Nas palavras de Maomé (sobre quem haja paz), “não há compulsão na religião”.

(2) Os jinn são, em certo sentido, intermediários entre o estado humano e níveis mais altos de consciência, simplesmente porque habitam um plano mais sutil da Grande Cadeia do Ser — mas crer que possam ser intermediários para nós é uma falsidade: eles não estão no “tronco humano”. E se os jinn que encontramos forem, por acaso, o que os cristãos chamam de “anjos caídos” — seres do plano sutil que se voltaram contra a Fonte da Vida por uso pervertido do livre-arbítrio —, então só podem agir como intermediários eficazes entre nós e a nossa própria destruição espiritual. Quando Jesus disse, “ninguém vem ao Pai senão por mim”, uma das coisas que quis dizer é que nenhum ser humano pode unir-se a Deus por qualquer outra via que não a Humanidade de Deus. Como dizem os muçulmanos, os seres humanos relacionam-se com Deus em virtude de nossa fitrah, nossa natureza humana primordial criada por Deus. Consequentemente, a imagem de Deus como uma “consciência cósmica impessoal” é outra falsidade. No primeiro nível da Grande Cadeia do Ser, Deus está Além-do-Ser, a Essência divina incognoscível, a “Deidade” dos místicos; mas não temos acesso a essa Deidade senão por meio do segundo nível, por meio do Deus pessoal. E esse Deus não é um Ser separado, mas é de uma só Essência com a Deidade. A Deidade não é impessoal, em outras palavras, mas transpessoal; se a Personalidade divina não fosse um potencial dentro da Deidade transpessoal, essa Personalidade jamais poderia aparecer. Crer o contrário é identificar autotranscendência e União mística com alienação e desumanização. E esta é uma imagem contrafeita, demasiadamente comum, do Caminho espiritual na mente de muitos, que os alienígenas — como autênticos “espíritos de alienação” — estão aqui para explorar.

(3) A experiência extática de um retorno ao “Lar” — um nome para o ponto de origem dos alienígenas tomado diretamente do filme E.T., a propósito — só pode, dado o contexto horrífico, ser uma falsidade demoníaca. Porque os alienígenas têm acesso ao plano psíquico, podem, é claro, produzir intensas experiências psíquicas, como Mack demonstra repetidamente; tais experiências, como bem sabemos, podem até ser iniciadas por substâncias químicas. E dado o rescaldo do materialismo que ainda nos aflige, é mais fácil do que nunca para eles fazerem passar experiências psíquicas por realizações espirituais, já que quase ninguém hoje em dia é ensinado sequer à necessidade do “discernimento de espíritos”, quanto menos aos critérios necessários, e já que qualquer coisa de qualidade mais sutil do que o nível material morto da ambiência atual provavelmente parecerá “numinosa”.

Segundo o Dr. Mack, a maioria (mas não todas) das abduções por OVNIs parecem ser “experiências fora do corpo”. Serafim Rose, em A Alma após a Morte (St Herman of Alaska Brotherhood, Platina, Califórnia, 1980), pp. 115–116, diz o seguinte sobre tais experiências:
Pode-se perguntar: e quanto aos sentimentos de “paz” e “agradabilidade” que parecem ser quase universais no estado “fora do corpo”? E quanto à visão de “luz” que tantos veem? [...] Essas experiências são “naturais” à alma quando separada do corpo. [...] Nesse sentido, a “paz” e a “agradabilidade” da experiência fora do corpo podem ser consideradas reais e não um engano. O engano entra, contudo, no instante em que alguém começa a interpretar esses sentimentos “naturais” como algo “espiritual” — como se essa paz fosse a verdadeira paz da reconciliação com Deus, e a “agradabilidade” fosse o verdadeiro deleite espiritual do céu.

(4; 5) Mais uma vez, a transcendência da consciência corpórea grosseira não é prova de desenvolvimento espiritual, nem sequer de experiência espiritual válida. E a recordação de vidas passadas, como já vimos, é uma falsidade se tomada literalmente. Ademais, por permanecer no plano meramente psíquico, o plano da “metempsicose”, não é de modo algum espiritual.

(6) A identificação da própria consciência com uma vasta gama de outros tipos de consciência é marca de dissolução psíquica, não de desenvolvimento espiritual. O mandato humano é primeiro reconhecer a total dependência de Deus e, por fim, ver-se com os olhos de Deus, tornando-se assim identificado com o Arquétipo eterno da Humanidade dentro da Natureza divina, o “Adão primordial”. Pelos olhos dessa Humanidade divina, podemos contemplar e obter insight sobre outras formas de consciência — orgânicas, psíquicas e espirituais; esse é o sentido do mito, presente tanto no Alcorão quanto no Gênesis, de que “Adão nomeou os animais”: ele viu suas naturezas essenciais, os Nomes de Deus que eram e são seus arquétipos eternos. Mas permitir que a própria consciência flua horizontalmente para outras formas não humanas e subumanas por meio do abandono da forma humana chama-se “loucura” no plano psíquico e “condenação” no plano espiritual. Segundo o Alcorão, depois que Allah criou Adão, ordenou aos anjos que a ele se prostrassem. Todo anjo obedeceu — exceto Iblis, o Satanás muçulmano. Abrir a psique às variações intermináveis da manifestação cósmica sem manter fidelidade à própria forma humana, tal como ela existe na mente de Deus, é prostrar-se a Iblis e entrar “nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes”.

(7) A experiência de identidade dual humano/alienígena é transtorno de personalidade múltipla no plano psíquico e possessão demoníaca no plano espiritual. Assim como os vampiros do folclore transformam suas vítimas em vampiros, os sequestradores alienígenas “transformam suas vítimas em alienígenas” ao “roubar-lhes a alma” — destruindo sua identificação com a própria humanidade.

(8) A marca da verdadeira consciência superior é a Unidade: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é Um.” O caleidoscópio multidimensional do mundo dos jinn é destrutivo à Unidade, a menos que seja visto com olhos de Unidade: e só a identificação contemplativa com o que está acima de nós na Grande Cadeia do Ser — não com dinossauros, que estão abaixo de nós (sem falar que estão extintos!), nem com espíritos elementais que, embora mais sutis do que nós, não são centrais como nós (sendo algo como fagulhas ou reverberações do Adão Primordial no plano sutil-material) — pode dar-nos esses olhos.

Os alienígenas são mentirosos. Como o próprio Mack admite, na p. 415, “eu não diria que os alienígenas nunca recorrem a enganos para ocultar seus propósitos”. E uma de suas mentiras é que a razão pela qual suprimem deliberadamente as memórias da experiência de abdução é “proteger” suas vítimas. (O objetivo real, em minha opinião, é permitir que a semente do controle psíquico amadureça sem ser perturbada.) Mack, por outro lado, afirma que não viu evidência de que a rememoração cause qualquer dano. Isso por si só não deveria alertá-lo para a presença de engano? Mas, é claro, como ele admite, o engano não lhe apresenta problemas, e certamente não o levou a questionar os motivos dos sequestradores. Tal ingenuidade, em qualquer outra situação, destruiria a credibilidade de quem a exibe como pesquisador objetivo. Aqui, destrói.

O desejo de Mack de ser enganado parece ter destruído completamente suas faculdades críticas, razão pela qual ele consegue fazer a seguinte afirmação absurda e contraditória com, presume-se, a maior seriedade:
Por meio da [dos alienígenas] interação com os abduzidos, eles os aproximam (e a todos nós, potencialmente) de nossas raízes cósmicas espirituais, devolvem-nos à luz divina ou ao “Lar”, um “lugar” (na verdade, um estado de ser) onde o segredo, o ciúme, a ganância e a destrutividade não têm propósito. Os alienígenas, por outro lado, anseiam experimentar a intensa emocionalidade que vem com nossa plena corporificação. Eles se fascinam por nossa sensualidade, nosso calor, nossa capacidade de erotismo e profundo afeto parental, e parecem responder ao amor de coração aberto. Em certos momentos agem como crianças carentes de amor. Deleitam-se em ver humanos em todo tipo de atos de amor, que podem até encenar enquanto ficam ao redor assistindo e tagarelando enquanto os abduzidos os realizam (pp. 415–416).

Neste ponto, parece quase injusto aproveitar-se da vulnerabilidade do Dr. Mack apontando as vertiginosas inconsistências do trecho acima — mas o dever chama: se os alienígenas vêm de um “Lar” onde o segredo não tem propósito, por que tantas vezes mantêm suas abduções em segredo apagando toda memória delas da mente de suas vítimas? Se a destrutividade não tem propósito lá, por que são tão destrutivos, física, social e psicologicamente, para os infelizes que os encontram? Se se deleitam com nosso afeto parental, por que a alienação de afeto entre pais e filhos é amiúde um dos efeitos posteriores da abdução (p. 30)? E o que observar voyeuristicamente — para não dizer encenar pornograficamente — atos de relação sexual humana tem a ver com amor?

“A própria relação humano/alienígena evolui para um vínculo poderoso”, diz Mack.
Apesar do ressentimento e da terrorização, os abduzidos podem sentir profundo amor pelos seres alienígenas, especialmente pelas figuras líderes, o que experimentam como reciprocado, a despeito do modo frio e profissional com que as próprias abduções são conduzidas. Os alienígenas podem ser percebidos como verdadeira família, tendo protegido os experienciadores das depredações, doenças e perdas humanas.

Mas o próprio Mack, no mesmo livro, documentou como os alienígenas comumente produzem doença e perda! Mais uma vez, vemos, com nauseante clareza, como a negação é virtude apenas para o verdadeiro crente.

O “vínculo poderoso” que alguns abduzidos desenvolvem com seus algozes é, é claro, nenhuma prova de que a relação seja saudável, porque — como todos sabemos — o mal seduz. C. S. Lewis, em Essa Força Medonha (That Hideous Strength, pp. 268–269), oferece esta descrição arrepiantemente precisa da tentação demoníaca de seu herói pelas forças do Anticristo:
De repente, como algo que lhe saltasse através de distâncias infinitas com a velocidade da luz, o desejo (salgado, negro, voraz, inexorável) agarrou-o pela garganta. A mera dica bastará para transmitir, àqueles que a sentiram, a qualidade da emoção que agora o sacudia, como um cão sacudindo um rato; para outros, nenhuma descrição talvez baste. Muitos escritores falam disso em termos de luxúria: descrição admiravelmente esclarecedora por dentro, totalmente enganosa por fora. [...] Tudo o mais que Mark jamais sentira — amor, ambição, fome, a própria luxúria — parecia ter sido mera água com açúcar, brinquedos de criança, não valendo um latejo dos nervos. A atração infinita daquela coisa escura sugava para si todas as outras paixões: o resto do mundo aparecia esbranquiçado, etiolado, insípido, um mundo de casamentos brancos e brancas pratos sem sal, jogando por fichas... Mas era como a luxúria também sob outro aspecto. É inútil apontar ao homem pervertido o horror de sua perversão: enquanto o ataque feroz o domina, o horror é o próprio tempero de seu desejo. É a feiura em si que se torna, ao fim, o objetivo de sua lascívia; a beleza há muito tempo se tornou estimulante fraco demais. E assim era aqui. As criaturas... sopravam morte sobre a raça humana e sobre toda alegria. Não apesar, mas por causa disso, a terrível gravitação o sugava e o atraía, fascinando-o em direção a elas.

Significativamente, Mack descobre que “praticamente todo abduzido recebe informações sobre a destruição do ecossistema terrestre e sente-se compelido a fazer algo a respeito” (p. 413). Os alienígenas às vezes perguntam aos abduzidos por que são tão destrutivos; por alguma razão, os abduzidos geralmente não pensam em fazer-lhes a mesma pergunta. Frequentemente, os abduzidos são mostrados a imagens horrendas de futura devastação ecológica e até mesmo da divisão e desintegração real do globo, e emergem mais “sensíveis ao meio ambiente” do que eram antes.

O “programa de hibridização humano/alienígena” é apresentado pelos alienígenas como uma resposta ao estado do meio ambiente. Segundo Mack:
“Tanto homens quanto mulheres passam a sentir, apesar da raiva [por terem sido abduzidos], que estão participando — até que escolheram participar — de um processo que é criador e doador de vida. Além disso, para a maioria dos abduzidos, a hibridização ocorreu simultaneamente com uma iluminação transmitida pelos seres alienígenas que lhes trouxe, de modo forçado, a consciência do fracasso do experimento humano em sua forma atual. Os experienciadores de abdução passam a sentir profundamente que a morte dos seres humanos e de inúmeras outras espécies ocorrerá em vasta escala se continuarmos em nosso curso atual e que algum tipo de nova forma de vida deve evoluir se a essência biológica e espiritual humana há de ser preservada. Geralmente, eles não questionam por que a manutenção da vida humana deve assumir forma tão estranha” (pp. 414–415, itálicos do autor).

Mas, é claro, uma hibridização que parece ocorrer no plano sutil não é biológica, nem a essência dos híbridos humano/alienígenas é realmente humana, mais do que a do macaco humanizado recentemente produzido na Itália, no qual foram combinados DNA humano e de macaco. Em ambos os casos, o resultado é uma traição direta à essência humana, não sua preservação. (Aqui temos boa evidência, aliás, de que as forças demoníacas conhecidas como “alienígenas” podem, de fato, estar fornecendo a inspiração para a ciência da engenharia genética — especialmente quando aplicada a seres humanos. É como se os geneticistas, praticamente todos os quais creem que o homem evoluiu de ancestrais semelhantes a macacos, estivessem sendo forçados a provar, na prática, as doutrinas de seus oponentes tradicionalistas, que afirmam — como o livro maia Popol Vuh, entre outros textos e tradições antigas — que os macacos são na verdade homens degenerados.)

E as imagens da Terra se partindo em duas, fornecidas pelos alienígenas, são curiosas. Nenhuma quantidade de devastação ambiental produzida pelos homens poderia ter esse efeito. Além de ser uma possível imagem das “fendas para baixo” na “grande muralha” de que fala Guénon, uma conclusão lógica seria que tais imagens estão sendo usadas para nos aterrorizar a ponto de sacrificarmos nossa sexualidade — e nossa própria humanidade — aos terroristas alienígenas que no-las mostram; a automutilação dos membros da seita Heaven’s Gate pode ter o mesmo significado.

Eles parecem usar nosso medo legítimo da destruição ambiental e do fim do mundo para nos confrontar com uma tentação que pode ser resumida assim:
A natureza é mais importante do que a forma humana — portanto, abandone tua humanidade, trai o arquétipo humano que está diretamente acima de ti na Natureza divina e adora, em vez disso, o que está abaixo de ti. Não retornes a sexualidade ao seu arquétipo em Deus, por meio do amor humano normal e da reprodução; entrega tuas energias eróticas, emocionais e reprodutivas ao demoníaco e ao infra-humano. Se fizeres isso, poderás evitar o juízo de Deus; poderás evitar o confronto com o arquétipo divino de tua Humanidade e não ter de ver como te afastaste e o traíste; poderás evitar a morte — ou ao menos a morte da espécie; a forma humana ainda poderá viver (diz a mentira) em forma sub-humana, como um híbrido demoníaco/humano. Se queres evitar ser enviado ao Inferno, simplesmente vai para o Inferno por vontade própria.

Estão impondo essa tentação por meio das mais profundas e intensas emoções humanas: a paixão sexual criadora de vida e o medo da morte universal. Como qualquer bom lavador de cérebros sabe, o terror é uma das duas ferramentas mais eficazes para quebrar a vontade do sujeito; o alívio é a outra. E quando o terror é intenso, às vezes o desejo sexual é o único refúgio contra ele. Sabendo disso, os alienígenas produzem o maior medo de que são capazes e depois oferecem o desejo sexual como saída. Por esse método, apropriam-se da sexualidade de suas vítimas e ganham um grau de poder sobre elas extremamente difícil de combater, pois, se uma tentativa de libertação é proposta, a vítima teme que o terror retorne.

“Os alienígenas enfatizam o aspecto evolutivo do processo de união das espécies, a repopulação da Terra subsequente a um colapso ambiental total”, diz Mack (p. 417). Mas então o que se faz da “sensibilidade ambiental” que os alienígenas supostamente produzem em suas vítimas? Que utilidade tem a sensibilidade ambiental num mundo morto? E como alguém pode amar a Terra e desejar preservá-la se seu “amor pela Terra” é produto de abdução, terror e violação de sua integridade humana? Que experiência poderia ser melhor projetada para nos fazer odiar a Terra e desesperar de salvá-la? Que maneira melhor de tornar o ambientalismo repugnante aos crentes religiosos do que associá-lo, em suas mentes, à atividade demoníaca? E que meio mais eficaz de subverter o próprio ambientalismo do que criar uma falsa oposição entre humanidade e natureza, afirmando que a única maneira de a vida orgânica — incluindo a humana — sobreviver é se abandonarmos nossa humanidade?

Se o “experimento humano” falhou em sua forma atual, se o colapso ambiental total é inevitável, quem se sentirá motivado a preservar o mundo natural? E como confiar que a ação para preservar o mundo natural será ambientalmente sã se conduzida por alguém com um sistema de crenças tão negativo? Contrataríamos alguém para reorganizar nossa empresa que nos dissesse, de antemão, estar convencido de que fracassaremos? Diante desse amontoado de enganos projetados para mascarar seus motivos, só posso concluir que o verdadeiro objetivo dos “alienígenas” é usar nosso medo do fim do mundo — e nossa culpa por destruí-lo — como oportunidade para nos atrair à nossa perdição.

Eis, pois, a tripla tentação demoníaca dos últimos tempos: (1) Adorar o mundo natural em si, em vez de adorar a Deus por meio dele; (2) Desviar nossas forças sexuais em direção sub-humana; e (3) Trair diretamente a forma humana. E as três estão intimamente relacionadas, já que desviar nossos poderes reprodutivos — e as profundas emoções humanas que naturalmente os acompanham — numa direção não humana é talvez o modo mais eficaz de trair nossa humanidade; e trair nossa humanidade é o modo mais eficaz de destruir a Terra, pois nossa abdicação da responsabilidade concedida por Deus de agir como Seu vice-regente no mundo material está na base de nossa adoração de ideologias subumanas, incluindo o materialismo; e o materialismo é a visão de mundo da qual brotaram as tecnologias subumanas que estão destruindo nosso planeta. “Onde o homem não está, a natureza é estéril”, disse William Blake — ao que os alienígenas respondem, de fato: “Se a desumanização está destruindo a Terra, talvez a desumanização total possa salvá-la” — enquanto desviam nossa atenção, por um momento ao menos, do fato de que já nos disseram que ela não pode ser salva: contradição subliminar em sua forma mais terminal.

Felizmente, por todos os indícios, os “visitantes” alienígenas não são dignos de crédito. Não são mestres confiáveis — para dizer o mínimo. E às vezes os próprios alienígenas admitem isso. Num relato de Jacques Vallée (The Invisible College, pp. 17, 21), alienígenas humanoides disseram a um abduzido que contatam as pessoas por acaso, que “querem confundir as pessoas” e ordenaram-lhe “não falar sabiamente sobre esta noite”. Se o Dr. Mack tivesse sido o abduzido, tenho certeza de que teria ficado mais do que contente em obedecer a essa ordem.

Uma Segunda Vinda Contrafeita

O mito do OVNI exerce grande poder sobre a mente contemporânea; é um verdadeiro sinal de nossos tempos. Isso se deve ao fato de que, apesar de todas as suas implicações sinistras, há por trás dele uma realidade arquetípica. Para dar um exemplo: embora os OVNIs apareçam sob muitas formas diferentes — Jacques Vallée, em UFO Chronicles of the Soviet Union [Ballantine, 1992], diz que os ufólogos russos estão mais dispostos do que seus equivalentes ocidentais a admitir que o fenômeno é “polivalente” —, o disco luminoso conhecido como “prato voador” exerceu mais influência sobre a imaginação popular do que qualquer outro. Por quê?

Carl Jung, em Flying Saucers: A Modern Myth of Things Seen in the Sky (1959), viu em sua forma circular um símbolo de seu “Arquétipo do Si Mesmo” e acreditava que o fenômeno representava um anseio coletivo pela Segunda Vinda de Cristo — anseio que, em minha opinião, está sendo cooptado pelos jinn que servem ao Anticristo e desviado, por meio da fascinação coletiva, em direção a uma contrafação satânica da parúsia.

Muitos ufólogos, entre eles Erich von Däniken, interpretaram a visão do Trono de Deus no primeiro capítulo de Ezequiel como uma manifestação de OVNI, baseando-se no brilho e rapidez dos “quatro seres vivos” (hayoth) que sustentavam o Trono, e na associação dos seres com “rodas” e “aros cheios de olhos” e “uma roda dentro de outra roda”. Mas a visão de Ezequiel não foi uma visão sensorial de acrobacias aéreas paradoxais e sem sentido produzidas pelos jinn, e sim uma visão intelectual do poder criativo de Deus manifestando-se no e como o universo. Se o Trono apareceu a seus olhos físicos, foi apenas porque o significado do Trono já havia despontado em seu coração.

Leo Schaya, em O Significado Universal da Cabala (p. 84), dá o sentido simbólico da visão de Ezequiel, o que deveria bastar para que qualquer pessoa com o mínimo de intuição espiritual veja a imensa diferença de nível entre o fenômeno dos OVNIs e uma verdadeira teofania:
“O ‘trono’, em sua plenitude, é a primeira e espiritual cristalização de todas as possibilidades criaturais antes que sejam postas em movimento no meio do cosmos. Quando o ‘trono’ assume seu aspecto dinâmico e a manifestação cósmica começa a mover-se, chama-se então de ‘carro’ (merkabah); então os quatro hayoth, ou eixos periféricos da criação, brotam do ‘trono’ tornado ‘carro’, como ‘relâmpagos disparando em todas as direções’, medindo todas as dimensões e todos os planos da existência manifestada. Sob o aspecto de ‘tochas’, ‘luzes brilhantes’ ou relâmpagos espirituais, os hayoth também são chamados kerubim [querubins], ‘aqueles que estão próximos’ do Deus vivo, isto é, que emanam diretamente de Deus em ação. Enquanto os eixos hayóthicos viajam em todas as direções do cosmos, deles saem as ‘rodas’ (ofanim), ou poderes angélicos, que participam da atualização das formas esféricas e dos movimentos cíclicos do criado; suas vibrações em espiral — por assim dizer, ‘uma roda dentro de outra roda’ — são chamadas ‘redemoinhos’ (galgalim).”

Assim como o Anticristo imita o Cristo, os OVNIs imitam o Trono de Deus, que, na metafísica muçulmana e hebraica, representa o ápice da ordem criada e, em termos cristãos, aparece como o “Trono do Cordeiro” no centro da Jerusalém Celeste.

Os alienígenas estão aqui para imitar realidades espirituais no nível psicofísico e assim preparar o caminho para o Anticristo. Como diz São Simeão, o Novo Teólogo, na Philokalia (p. 11):
“Os homens não entenderão que os milagres do Anticristo não têm propósito bom ou racional, nenhum significado definido, que são alheios à verdade, cheios de mentiras, que são uma encenação monstruosa, maliciosa e sem sentido, que aumenta a fim de maravilhar, reduzir à perplexidade e ao esquecimento, enganar, seduzir, atrair pela fascinação de um efeito pomposo, vazio e estúpido.”

Assim como nosso gosto em arte, arquitetura, formas sociais e relações humanas se tornou embotado nestes últimos dias, também o é nosso gosto em milagres. Segundo Serafim Rose:
“Cientistas sérios na [antiga] União Soviética [...] especulam que Jesus Cristo pode ter sido um ‘cosmonauta’, e que ‘hoje podemos estar à beira de uma ‘segunda vinda’ de seres inteligentes do espaço exterior’.
(Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain, Bantam Books, 1977, pp. 98–99.) [...] Talvez nunca, desde o início da era cristã, os demônios tenham aparecido tão abertamente e extensivamente como hoje. A teoria dos ‘visitantes do espaço exterior’ é apenas um dos muitos pretextos que estão usando para obter aceitação da ideia de que ‘seres superiores’ agora devem assumir o destino da humanidade [...] A ‘mensagem’ dos OVNIs é: preparem-se para o Anticristo; o ‘salvador’ do mundo apóstata está vindo para governá-lo. Talvez ele mesmo venha pelo ar, a fim de completar sua imitação do Cristo (Mt 24:30; At 1:2); talvez apenas os ‘visitantes do espaço exterior’ desçam publicamente para oferecer ‘adoração cósmica’ a seu mestre; talvez o ‘fogo do céu’ (Ap 13:13) seja apenas parte dos grandes espetáculos demoníacos dos últimos tempos. De qualquer modo, a mensagem à humanidade contemporânea é: esperai a salvação, não da revelação cristã e da fé em um Deus invisível, mas de veículos no céu.”
(Orthodoxy and the Religion of the Future, pp. 102, 140–142)

Para não sermos arrastados ao campo do Anticristo, devemos superar, com a ajuda de Deus, a tripla tentação apresentada acima. Devemos lembrar que as formas da natureza não são para ser adoradas, mas que somos chamados a adorar o Deus invisível e transcendente por meio delas, reconhecendo-as como manifestações simbólicas de realidades eternas ocultas na Natureza divina. Como diz São Paulo:
“Porque as coisas invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, são vistas, sendo compreendidas pelas coisas que são feitas, tanto o seu eterno poder como a sua divindade.” (Rm 1:20).

Devemos lembrar a sacralidade e profundidade simbólica de nossas forças e naturezas sexuais. Nas palavras de James Cutsinger:
“O que [C. S. Lewis chama de] essa ‘real polaridade’ [de gênero] encontra-se, não apenas, como sugere Lewis, nas criaturas — por mais sobre-humanas que sejam —, mas até o próprio topo da Realidade Divina [...] que é a Fonte última de tudo o mais, e que, por essa razão, é a fonte e paradigma de todas as distinções. Em sua absolutidade e transcendência, o Divino é o arquétipo de tudo o que é masculino, enquanto sua infinidade e capacidade de imanência manifestam-se em todos os níveis do feminino [...] As qualidades polares reveladas a nós como sexo são, de fato, objetivamente reais em todos os planos da hierarquia ontológica. [...] Como escreveu Seyyed Hossein Nasr, ‘a diferença entre os dois sexos não pode ser apenas biológica e física, porque, na perspectiva tradicional, o nível corpóreo da existência tem seu princípio no estado sutil, o sutil no espiritual, e o espiritual no o Próprio Ser divino.
“Femininidade, Hierarquia e Deus”, em RELIGION OF THE HEART, org. Seyyed Hossein Nasr e William Stoddart, p. 115

O gênero é, de fato, tão integral à nossa humanidade que o modo como o vivemos, ou o sublimamos, ou o consagramos, é um dos elementos que determinam se permanecemos ou não unidos ao nosso arquétipo humano. Entregar nossa sexualidade ao poder de forças não-humanas é afastar-se da forma humana. Dedicá-la a um amor plenamente humano, ou diretamente a Deus como na vocação monástica, é adorar a Deus por meio da forma humana.

Por fim, devemos lembrar o que a forma humana realmente é. Alá, nos ahadith qudsi (as tradições em que o próprio Deus fala), declara que “os céus e a terra não Me podem conter, mas o coração do Meu servo crente pode conter-Me”. E nas palavras de São Gregório de Nissa:

“Reconhece até que ponto o Criador te honrou acima de todo o restante da criação. O céu não é imagem de Deus, nem a lua, nem o sol, nem a beleza dos astros, nem nada do que pode ser visto na criação. Tu somente foste feito à imagem da Realidade que transcende toda compreensão, à semelhança da beleza imperecível, ao cunho da verdadeira divindade, ao destinatário da bem-aventurança, ao selo da verdadeira luz. Quando a Ele te voltas, tornas-te aquilo que Ele mesmo é. […] Não há nada tão grande entre os seres que possa comparar-se à tua grandeza. Deus é capaz de medir todo o céu com o palmo. A terra e o mar estão encerrados no côncavo de Sua mão. E embora Ele seja tão grande e tenha toda a criação na palma da mão, tu és capaz de contê-Lo; Ele habita em ti e move-Se em ti sem constrangimento. […]”
SEGUNDA HOMILIA SOBRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS (PG 44, 765); itálicos meus

Segundo ensinamentos esotéricos de muitas tradições, claramente refletidos nas passagens acima, a humanidade é o “tronco” que liga a terra a Deus. Deus sustenta a terra e tudo quanto há nela apenas por meio do homem — doutrina provada negativamente pelo fato de que só o homem tem o poder de destruir a terra: quando já não tomamos Deus como nosso centro, e assim nos afastamos de nossa própria humanidade, a terra começa a morrer. É essa verdade, acima de tudo, que os alienígenas fazem tudo ao seu alcance para impedir que nos lembremos.

Nada acontece que não seja vontade de Deus. Não obstante, segundo o metafísico sufista Ibn al-‘Arabi, embora tudo o que acontece seja querido por Deus — porque, se algo contrário à Sua vontade pudesse ocorrer, Ele não seria Deus — nem tudo faz parte do desejo de Deus. É por isso que Ele nos envia leis sagradas, que nos dizem o que fazer e o que evitar se quisermos aproximar-nos d’Ele. O mal não é bom em si; é contrário ao desejo de Deus. Mas Ele o quer — ou, em termos cristãos, permite-o — como parte de um bem maior. Não amaldiçoamos os vermes que devoram um cadáver; e, sob certo ponto de vista, os “alienígenas” não passam de vermes, cujo trabalho é devorar o que já está morto no psiquismo coletivo humano. Mas isso não significa que seja boa ideia passar o tempo socializando com cadáveres; se o fizeres, adoecerás. A experiência da doença é um mal natural, e a abdução, a tortura e o estupro são males morais — que, para a vítima, são, contudo, moralmente indistinguíveis de desastres naturais. Ainda assim, tais males, se os enfrentarmos com fé bastante profunda em nosso Criador, podem aguçar nossa vigilância espiritual e, por fim, despertar-nos para uma Misericórdia mais profunda. Assim como as mentiras testemunham a Verdade — não porque sejam verdadeiras, mas porque a capacidade de reconhecer sua falsidade é sinal da presença da Verdade —, assim também a desgraça e a catástrofe testemunham a Misericórdia. Até os piores sofrimentos podem ser conhecidos, querendo Deus, como parte de uma Misericórdia tão grande que até isto — até a guerra, até o câncer, até a abdução alienígena — é nela engolido. Como dizem os ahadith qudsi, “Minha Misericórdia precede Minha Ira”; e no Alcorão: “Não há refúgio contra Deus senão n’Ele”.

Vigília na Hora Onze:
Uma Refutação de The Only Tradition

Este capítulo é um exemplo de guerra intelectual no contexto dos últimos dias. É característico do fim do ciclo que tanto conflitos quanto alianças assumam formas ambíguas e autocontraditórias, e que toda oposição que não se baseie na polaridade última, que é também a decisão última — a que separa “ovelhas” de “bodes” —, tenda a transformar-se em seu oposto com rapidez atordoante. Para os fins desta batalha, escolho como arma as doutrinas da Escola Tradicionalista, fundadas na metafísica tradicional e no esoterismo, tomando-as como mais próximas da Verdade Absoluta do que as doutrinas apresentadas por William W. Quinn Jr., fundadas na sociologia acadêmica, na religião comparada segundo Mircea Eliade e nos ensinamentos da Sociedade Teosófica, as quais estão relativamente mais próximas da falsidade “absoluta” de al-Dajjal, o nome muçulmano do Anticristo — aquela Sombra inevitável da Verdade que está sempre lá em potência, mas que só “se constela” plenamente no fim do éon. Isso não significa que o Sr. Quinn não possa emergir amanhã como um campeão da verdade, ou que não esteja neste momento mais próximo de Deus do que eu, ou que as próprias doutrinas tradicionalistas não possam, sob certas circunstâncias, também ser úteis a al-Dajjal. Contudo, quando a batalha se engaja, tais questões devem ser deixadas para depois. As doutrinas da Escola Tradicionalista e os princípios da metafísica tradicional estão sendo gravemente deturpados; é, portanto, hora de traçar, nas palavras de Blake, “a linha dura e aramada da retidão e da certeza”.

The Only Tradition, de William W. Quinn, Jr. (SUNY, 1997), deveria ter sido resenhado por Huston Smith e por mim num esforço colaborativo, até que o Dr. Smith pressentiu o que havia ali e decidiu que suas energias estariam melhor direcionadas em outro lugar. O livro de Quinn iluminou para mim, como um relâmpago em noite escura, áreas inteiras da paisagem Tradicionalista, suas forças, suas fraquezas e os pontos específicos de potencial ruptura inimiga onde reforços são requeridos sem demora.

William Quinn é membro da Sociedade Teosófica, fundada por Helena Petrovna Blavatsky; no início dos anos 1970, foi editor de uma de suas revistas, The American Theosophist. A Sociedade permanece entre as tramas mais tenazes que correm sob o tecido da Nova Era. Seu ramo americano mostrou uns poucos sinais de interesse por uma metafísica mais tradicional, tendo publicado livros de Frithjof Schuon, Huston Smith e meus. E posso agradecê-los por minha primeira introdução ao conceito de Hierarquia do Ser, bem como notar que meu editor na Theosophical Publishing House era estudante do Vajrayāna — budismo esotérico autêntico, isto é, não a espúria concoção homônima de Madame Blavatsky.

Mas, sem surpresa, a Sociedade não demonstra desejo algum de repudiar as doutrinas de seus fundadores, e aí está o nó. Ao longo do tempo geraram dissidências como Elizabeth Claire Prophet, cujo grupo comprou armas e entrincheirou-se em Montana há alguns anos com base numa previsão dela sobre o fim do mundo (que, em minha opinião, não pode ser rechaçado com armas), e Benjamin Creme, que, em nome de seu protegido, o “instrutor do mundo” Maitreya, anda ocupado preparando o terreno para a Segunda Vinda de “Cristo” (ou, como é mais provável, do Anticristo), tal como Annie Besant e seus colegas fizeram com Jiddu Krishnamurti em anos anteriores — embora Krishnamurti tenha sido honrado o bastante para recusar desempenhar o falso Messias segundo o roteiro da Sociedade. E o nome e/ou a mitologia deles continuam a surgir em muitos lugares inesperados. Embora seus livros não sejam muito populares nos círculos da Nova Era, sua capacidade de persistência lhes dá uma influência muito desproporcional à popularidade — ou à falta dela. Uma resenha de The Hidden Dangers of the Rainbow na revista Gnosis, anos atrás, escarneceu da autora cristã evangélica Constance Cumby por ser paranoica o suficiente para acreditar que a Sociedade Teosófica era a força motriz por trás do movimento Nova Era. No entanto, ninguém menos que Jocelyn Godwin (a quem sempre considerei uma espécie de Tradicionalista, até olhar mais de perto sua obra), em The Theosophical Enlightenment (SUNY, 1994, p. 379), afirma que “os teosofistas forneceram quase todos os alicerces do movimento ‘Nova Era’, seu reflexo exotérico [...]” [itálicos meus]; ele declara explicitamente aqui que a Sociedade Teosófica não é simplesmente a origem histórica, mas o centro “esotérico” contínuo da Nova Era. Claro que nem Constance Cumby nem Godwin estão necessariamente certos sobre a Sociedade; a primeira pode falar por medo e o segundo por desejo, além de tentar lançar uma profecia autorrealizável. E é claro que outros grupos — os Cientologistas, por exemplo, ou a Igreja da Unificação — competem com a Sociedade pelo mesmo prêmio. Ainda assim, é assim que a Sociedade tende a ver a si mesma: como um potencial, se não atual, “comitê gestor” da Nova Era, o centro efetivo do que René Guénon chamou de “ação antitradicional” que conduz, em última análise, à “contrainiciação”. Como disse Guénon em O Reinado da Quantidade, pp. 317–318,

“É provável que se estabeleçam centros aos quais as organizações pertencentes à ‘contrainiciação’ estarão ligadas [...] não há motivo para surpresa se esses próprios centros, e não apenas algumas das organizações que lhes são mais ou menos diretamente subordinadas, forem encontrados engajados em lutas uns com os outros, pois o domínio em que se situam é o mais próximo de todos do domínio da dissolução ‘caótica’.”

O próprio Godwin parece, em muitos aspectos, identificado com os objetivos da Sociedade. Na mesma página da citação acima, a última do livro, ele diz: “Nenhuma civilização anterior jamais teve o interesse, os recursos ou a necessidade interior [...] de abraçar intelectualmente o mundo inteiro; de dar o passo aterrador de renunciar, até blasfemar, sua própria tradição religiosa na busca de uma visão mais aberta e racionalista; de publicar livremente aqueles segredos que antigamente estavam sob o selo da iniciação; e, em suma, de lançar a humanidade no alambique espiritual em que nos encontramos hoje” [todos os itálicos meus]. Assim, a destruição do Cristianismo — e, claro, de todas as demais religiões tradicionais, se se interpuserem — é uma “necessidade interior” de uma sociedade num “alambique” que sofre uma transmutação alquímica rumo a uma “visão mais aberta e racionalista”; essa liquidação da tradição cristã, concebida como necessidade espiritual, foi um dos objetivos de vida de Blavatsky. O passo é “aterrorizante”, porém necessário e até heróico: em outras palavras, prometeico. O próprio Nietzsche não o teria dito melhor.

Os parágrafos seguintes são minha resenha (não editada) de The Only Tradition para a revista Gnosis, que pode servir de introdução à resenha mais longa, ou refutação, que segue:

A escola “Tradicionalista” — René Guénon, Ananda Coomaraswamy, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Frithjof Schuon, Martin Lings, Seyyed Hossein Nasr, etc. — está, lenta mas seguramente, tornando-se mais conhecida, tanto entre acadêmicos quanto no “público metafísico geral”. Em The Only Tradition, William Quinn tenta situar a escola em contexto mais amplo ao mostrar suas afinidades com Mircea Eliade, H. P. Blavatsky e outros; tanto sua exposição das doutrinas e da história dos Tradicionalistas quanto seu estudo de culturas tradicionais “primitivas” e “desenvolvidas” são interessantes. Mas Eliade não era Tradicionalista; em No Souvenirs, caracterizou-os como compositores de “mitos úteis” artísticos, sem validade “científica” (objetiva). E quando Quinn tenta provar que Blavatsky ensinou a mesma doutrina que Coomaraswamy e Guénon, tropeça feio. Trata o livro de Guénon atacando a Sociedade Teosófica (Teosofia: História de uma Pseudorreligião) como um lapso inexplicável, ainda que admitindo que Eliade o elogiou, e atribui a discordância dos Tradicionalistas com Blavatsky à ignorância deles de A Doutrina Secreta. Ciente de que Coomaraswamy e Guénon negavam a reencarnação física humana em favor da “transmigração” a planos superiores (ou inferiores), ele afirma que

“O ponto central do mal-entendido diz respeito à percepção dos autores Tradicionais de que o elemento divino [...] juntamente com a ‘personalidade’ sobrevivente (um agregado de emoções, mente e memórias pessoais) seria, segundo os Teosofistas, encarnado em sucessivas formas corpóreas — noção que Blavatsky não promulgou.”

Mas ela promulgou:

“Os átomos melhor impregnados pelo princípio vital (um fator independente, eterno, consciente) são [...] atraídos novamente uns pelos outros e tornam-se o princípio animador do novo corpo em cada nova encarnação [...] assim como a Alma individual é sempre a mesma, assim também os átomos dos princípios inferiores (corpo, seu duplo vital astral, etc.) são atraídos [...] sempre para a mesma individualidade em uma série de vários corpos.”
A DOUTRINA SECRETA [doravante, DS] II, 671–72

Quinn lamenta que “por alguma razão desconhecida” os Teosofistas sejam tidos como favoráveis ao Darwinismo, anátema para os Tradicionalistas. Mas Blavatsky às vezes o foi: “Os brâmanes-pandits e os tannaim [...] especularam sobre a criação do mundo de modo bastante darwiniano” (DS I, 202); “O dia pode chegar [...] em que a ‘seleção natural’, como ensinada por Darwin [...] formará apenas uma parte [...] de nossa doutrina oriental da Evolução” (DS I, 600). Que ela negue a seleção natural em outros trechos de A Doutrina Secreta apenas mostra quão confusa era. Ao menos os Tradicionalistas produziram um corpo sério de trabalho, próprio para adultos — mas, para saber que toda oração é magia negra, ou que certas tribos primitivas são produto de cruzamento entre humanos e animais, ou que a cruz de Cristo é um pênis, leia Blavatsky.

HPB via a manifestação, cósmica e histórica, como descendendo de planos superiores (aí os Tradicionalistas concordam), “tocando o fundo” (mais ou menos agora) e então evoluindo automaticamente de volta à sua Origem. Os Tradicionalistas negam qualquer reascensão exceto a da consciência individual; a manifestação se dissolverá, e uma nova descida divina inaugurará um novo ciclo. Quinn, seguindo Blavatsky, substitui evolução por apocalipse e ignora a revelação.

Ele aceita a gnose; possivelmente acredita que ela nos permite investigar Deus experimentalmente. Mas Deus nos livre de que Ele nos conheça melhor do que nós O conhecemos, ou intervenha ativamente nos assuntos humanos, ou nos exija algo. Blavatsky, também, odiava a religião revelada, algo que Quinn tenta negar. Consequentemente, após uma contundente crítica “Tradicionalista” da modernidade, ele subitamente abraça o que acaba de denunciar, prevendo uma “Idade de Ouro” pós-cataclísmica repovoada por “grupos reprodutores” governamentais, onde a “planetização” destruiu todas as religiões reveladas em nome de uma “cultura de um mundo”, uma sociedade estritamente hierárquica governada por “cientistas/metafísicos”. Mas que ele imagine a ideologia desse mundo infernal (aceitável, porque inevitável) como incluindo doutrinas dos Tradicionalistas — que não admitem acesso à verdade espiritual fora da revelação — é uma deturpação, sobretudo porque os Tradicionalistas veem a Idade de Ouro de qualquer ciclo como igualitária por estar “acima de casta”. (Cf. Martin Lings, Crenças Antigas e Superstições Modernas, p. 49; ver também Guénon, O Reinado da Quantidade, p. 326, sobre “contrahierarquia”.)

Quinn admite que sua tentativa de confluir Coomaraswamy, Guénon e Blavatsky levará os Tradicionalistas a descartá-la como “sem mérito e confusa”. Isso não é surpreendente, particularmente à luz da própria avaliação que Madame Blavatsky faz de si como alguém que não merece nossa confiança. Cito de The Spiritualists, de Ruth Brandon, Alfred A. Knopf, 1983, p. 13:

O que se deve fazer quando, para governar os homens, é preciso enganá-los, quando, a fim de capturá-los e fazê-los perseguir seja lá o que for, é necessário prometer-lhes e mostrar-lhes brinquedos? Suponha que meus livros e The Theosophist fossem mil vezes mais interessantes e sérios; você acha que eu teria onde viver e algum grau de sucesso se, por trás de tudo isso, não houvesse “fenômenos”? Eu não teria conseguido absolutamente nada e já há muito teria batido as botas de fome.

Na p. 25 de The Only Tradition, Quinn confunde a equação tradicional entre ser e conhecer com a doutrina niilista da Nova Era de que a realidade é criada, não pelo conhecimento objetivo, mas simplesmente pela crença. Depois de citar Coomaraswamy no sentido de que “ser e conhecer são o mesmo… a recordação é a própria vida, e o esquecimento, uma beberagem letal”, ele comenta: “Não podemos separar, em outras palavras, o que somos e o que sabemos, mais do que podemos separar o que somos e o que cremos, já que nossas crenças ajudam a definir nosso ser e vice-versa.” Mas “recordação” aqui significa recordação do que realmente somos, não do que pensamos ser; a recordação daquilo que já somos em potência é a essência da “autoatualização”, de “tornar-nos aquilo que somos”. Crenças não nos colocam necessariamente em relação com o conhecimento; só o fazem se forem verdadeiras. Tomar crença como sinônimo de conhecimento é negar a objetividade e, portanto, adorar o esquecimento. A função da revelação, juntamente com sua expressão tradicional, é prover-nos de crenças dogmáticas suficientemente sábias para impedir-nos, no plano moral, de nos desviarmos gravemente, e dotadas de suficiente verdade objetiva, no plano intelectual, para conduzir-nos ao conhecimento e à certeza. “Creio para que possa compreender” só funciona no contexto da tradição revelada; em outros contextos — os da propaganda política ou da fraude criminosa, por exemplo — a crença obviamente não é concebida para servir à compreensão; muito pelo contrário. Crenças que não são verdadeiras “definem o nosso ser” apenas no sentido de que o distorcem, ao passo que o nosso ser define nossas crenças em dois sentidos distintos: na medida em que o nosso ser é, em sua essência mais profunda, o próprio Ser, ele gera todas as crenças possíveis, segundo a ação da Infinidade divina; sob essa perspectiva, a perspectiva da māyā-in-divinis, “tudo o que pode ser crido”, nas palavras de Blake, “é uma imagem da verdade”. Por outro lado, do ponto de vista de nossa individualidade humana, em que algumas crenças são “verdadeiras” porque conduzem à Verdade, e outras “falsas” porque levam à perdição, nosso ser define nossas crenças apenas no sentido de que um intelecto obscurecido produz apenas erro, e uma vontade concupiscente busca o erro para justificar suas ações.

Um dos principais propósitos de Quinn é reconciliar, de algum modo, a Teosofia de H. P. Blavatsky com o Tradicionalismo de René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon. Mas, já que eles ensinaram doutrinas radicalmente diferentes e dado que os Tradicionalistas consideram os Teosofistas não apenas errados, mas ativamente subversivos da verdade, por que ele desejaria fazê-lo? Para responder a essa pergunta, precisamos examinar sua tentativa de ocultar a subversão vitalícia de Blavatsky à Tradição e seu ódio à religião revelada.

Na p. 118, Quinn descreve os “primeiros princípios” que está prestes a apresentar como “uma destilação… de todos aqueles expressos nas perspectivas de Coomaraswamy, Guénon, Blavatsky…”. Poder-se-ia fazer o mesmo, por exemplo, com as visões de Marx, Nietzsche e Oscar Wilde, e obter muitos paralelos, mas o exercício seria destituído de sentido sem uma análise de suas diferenças. E, dado que as divergências e mesmo a oposição violenta entre Blavatsky e os Tradicionalistas são tantas e tão profundas que Guénon escreveu um livro inteiro sobre elas — uma tarefa ingrata que me alegra não recair sobre mim —, alguns exemplos não serão descabidos. Na p. 119, Quinn cita Coomaraswamy falando da “significação do sacrifício” como um dos elementos que o Cristianismo tem em comum com “todos os outros dialetos da tradição primordial”, depois de nos informar que seu catálogo de princípios será um pouco diferente do de Coomaraswamy. Isso não surpreende, já que Blavatsky (SD I, p. 416) afirma o seguinte: “Todo ‘sacrifício’ ou oração a Deus não é melhor do que um ato de magia negra.”

Na p. 121, Quinn trata da distinção tradicional entre o Absoluto informe e o Deus pessoal — o “Deus” e a “Deidade” de Mestre Eckhart, o Saguna Brahman e o Nirguna Brahman do Vedānta — e cita as palavras quintessenciais de Frithjof Schuon sobre o tema: “É verdade que Deus enquanto criador, revelador e salvador não se identifica com o Absoluto enquanto tal; é igualmente verdade que Deus enquanto tal, na plena profundidade de Sua Realidade, não pode ser reduzido à Sua função criadora.” A Deidade manifesta-Se como Deus, mas a essência de Deus é a Deidade; Deus e Sua Essência “não são dois”. Quinn emparelha essa citação com uma de Blavatsky: “Parabrahman [isto é, Nirguna Brahman] não é ‘Deus’ porque não é um Deus.” Mas nem Schuon, nem Eckhart, nem o Vedānta negam o Deus pessoal (nem o fez Guénon, embora talvez se possa censurá-lo por subenfatizá-Lo, exceto pelo fato de que, ao concentrar-se no Absoluto informe, cumpria sua função específica). Blavatsky, porém, O nega. Em SD II, p. 194, ela diz: “Não obstante, seja qual for a alegoria [da separação dos sexos no Gênesis] que signifique, mesmo seu sentido exotérico exige um Construtor divino do homem — um ‘Progenitor’. Acreditamos, então, em tais seres ‘sobrenaturais’? Dizemos: não. O Ocultismo jamais acreditou em nada, quer animado, quer inanimado, fora da natureza.” E em SD II, p. 475: “Nossa querela presente é exclusivamente com a teologia. A igreja impõe a crença em um Deus pessoal e um diabo pessoal, enquanto o ocultismo mostra a falácia de tal crença.”

Por fim, Quinn tenta ocultar os sentimentos anticristãos de Blavatsky extraindo de Theosophy: History of a Pseudo-Religion, de Guénon, uma citação da teosofista Annie Besant que afirma a necessidade “acima de tudo de combater Roma e seus padres, lutar onde quer que seja contra o Cristianismo e expulsar Deus dos céus”, e então revelando que ela fez essa declaração dez anos antes de conhecer Mme. Blavatsky — como se HPB não mantivesse ideias semelhantes até o dia em que morreu, como as duas citações acima indicam claramente: contender com a teologia para negar a existência de um Deus pessoal é tanto “combater Roma” quanto “expulsar Deus dos céus”. E qualquer um com ânimo — ou temeridade — para ler toda A Doutrina Secreta encontrará muitas outras declarações com o mesmo propósito. Por exemplo, doutrinas como “o Logos e Satanás são um” (SD II, p. 515) são precisamente anticristãs, pois, para o Cristianismo, o Logos é Cristo; e a negação de Deus pela Teosofia (quão irônico é esse termo, já que “teosofia” significa literalmente “sabedoria de Deus”) parece emanar também das “entidades” da Sociedade. Segundo Jocelyn Godwin (The Theosophical Enlightenment, p. 329), “Koot Hoomi”, numa das “cartas dos mahatmas” endereçadas a A. O. Hume, fez a seguinte declaração: “Negamos Deus tanto como filósofos quanto como budistas. Sabemos que há vidas espirituais planetárias e outras, e sabemos que no nosso sistema não existe tal coisa como Deus, seja pessoal ou impessoal.” Mas, é claro, o sr. Hoomi está em erro aqui, já que os budistas têm uma série de nomes para o Princípio Absoluto: Nirvāa; o Dharmakāya; o Ādi-Buddha; Śūnyatā; a Natureza de Buda; a Luz Clara do Vazio.

Godwin, em The Theosophical Enlightenment, caracteriza assim a atitude de Blavatsky (p. 292): “Uma teologia absurda, sustentando um sacerdócio corrupto e uma bibliolatria sem inteligência; foi isso que Blavatsky viu — e detestou — ao examinar a história do Cristianismo.” Ele fala dos “Irmãos de Luxor” (bête noire de Guénon), organização com a qual Blavatsky esteve associada em seus primeiros anos, como incluindo em seu programa, às ocultas para a base — embora provavelmente não para Blavatsky —, “a abolição do Cristianismo em favor de um humanismo livre-pensador”, e na p. 305 descreve seu Isis Unveiled em termos entusiásticos como “um clarim conclamando a humanidade a despertar do sono encantado em que fora mergulhada pelos embustes do Cristianismo e da ciência”. E como se tudo isso não bastasse, posso coroá-lo com as próprias palavras de Quinn. Quando lhe telefonei em seu escritório de advocacia em Phoenix, Arizona, e o confrontei com o objetivo declarado de Blavatsky de destruir o Cristianismo, sua resposta foi: “Não o Cristianismo per se; apenas as Igrejas.” Isso, é claro, equivale a dizer: “Não quero assassiná-lo; quero apenas assassinar seu corpo.” Nem as atenções subversivas de Blavatsky se dirigiam apenas ao Cristianismo. Chamar seu cozido de doutrinas ocultistas de “budismo esotérico” era subverter o Budismo; reduzir o Judaísmo a falicismo e culto aos astros era subverter o Judaísmo; e canalizar “mahatmas” espúrios era subverter o Hinduísmo (ou novamente o Budismo, na medida em que eram apresentados como “tibetanos”), tarefa que a Sociedade tentou concluir com afinco após sua morte — e abrir caminho para o reinado do Anticristo no processo — apresentando Krishnamurti como “Avatāra” e “Messias”. À luz de tudo isso, a seguinte passagem de René Guénon, de O Reino da Quantidade, pp. 293–294, não parece mais do que uma descrição factual do estado das coisas:

a “contra-iniciação” trabalha no sentido de introduzir seus agentes em organizações “pseudo-iniciáticas”, usando-os para “inspirar” tais organizações, sem que isso seja percebido pelos membros comuns e, geralmente, também pelos chefes ostensivos… tais agentes são de fato introduzidos, de modo semelhante e sempre que possível, em todos os “movimentos” mais exteriores do mundo contemporâneo, políticos ou de outra natureza, e mesmo… em organizações autêntica e iniciáticas ou religiosas, mas somente quando seu espírito tradicional está tão enfraquecido que já não podem resistir a uma penetração tão insidiosa… este último caso… é a aplicação mais direta possível da atividade de dissolução.

Nos capítulos 6 e 7, Quinn transforma em confusão os termos “tradição”, philosophia perennis e “teosofia”, manejando com destreza várias definições acadêmicas incompletas de “tradição” e philosophia perennis para obscurecer o fato de que, segundo a Escola Tradicionalista (ou Perene), eles são essencialmente dois nomes para a mesma coisa, ainda que com uma diferença de matiz relacionada à distinção-sem-oposição entre revelação primordial e histórica. Ao mesmo tempo, relativiza o conceito Tradicionalista/Perene de “Tradição”, o que é justificável de um ponto de vista sociológico, mas não se essa relativização for usada para negar que por “Tradição” os Tradicionalistas entendem “acesso ao Absoluto por meio de Sua própria Auto-revelação, uma revelação que opera no tempo ao mesmo tempo que, em essência, o transcende”. Quanto à “teosofia”, ele começa traçando uma distinção ampla demais entre ela e Tradição/philosophia perennis, das quais é parte integrante, se não propriamente a mesma coisa sob outro nome. Em seguida, após admitir duas definições para teosofia, uma genérica e tradicional, outra denotando a Sociedade Teosófica, ele arma um espantalho (um entre muitos ao longo do livro) fingindo escandalizar-se (p. 95) porque “até Seyyed Hossein Nasr” usa o termo theosophy para denotar a “filosofia tradicional” (ikmah) — como se “teosofia” ali significasse “a Sociedade Teosófica”, que os Tradicionalistas detestam, e não, como é óbvio pelo contexto, teosofia no sentido tradicional e genérico. Ele cita o Prof. J. J. Poortman, da Universidade de Leiden (p. 97), identificando a “teosofia histórica mais antiga” — que Poortman distingue expressamente da “teosofia moderna” — com figuras de porte como Böhme e Plotino, e então joga com os termos “mais antiga” e “moderna” para retratar a distinção de Poortman como puramente “temporal”. Por fim, já que o “moderno” vem depois do “antigo”, ele termina por reivindicar a Sociedade Teosófica de Blavatsky como sucessora histórica direta da teosofia no sentido tradicional e genérico, valendo-se do texto de Poortman ao mesmo tempo que contradiz diretamente a distinção que Poortman acaba de fazer. Esse jogo de mãos pode ser útil ao sustentar uma causa em juízo, mas é indigno de um “teósofo” — a menos, é claro, que pretendamos empregar o termo em seu sentido moderno! A Doutrina Secreta está repleta disso.

Então por que Quinn se esforça tanto em reconciliar com a Tradição o ódio virulento de Blavatsky à Tradição? Por que não pode simplesmente descartá-la, ou opor-se abertamente à Tradição em seu nome? A resposta, em uma palavra, é “subversão”, no sentido de Guénon em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos. Pode ser ou não verdade que um quadro de ocultistas antitradicionais que se identificam com a teosofia moderna esteja agora deliberadamente movendo-se para subverter as doutrinas da Escola Tradicionalista, particularmente à vista do ataque de Guénon em 1921 à Teosofia em Theosophy: History of a Pseudo-Religion, que Quinn tenta contrapor em The Only Tradition. Talvez, em vista de certas vulnerabilidades que ora aparecem no Tradicionalismo, não sendo a menor delas sua exposição pública crescente, considerem que chegou a hora do troco. Como Guénon ressalta em O Reino da Quantidade, pp. 229–230,

é de primeira importância não esquecer que, já que toda ação efetiva pressupõe necessariamente agentes, a ação antitradicional é como todas as outras espécies de ação, de modo que não pode ser uma espécie de produção espontânea ou “fortuita” e, uma vez que se exerce particularmente no domínio humano, deve necessariamente envolver a intervenção de agentes humanos… a iniciação… é aquilo que realmente encarna o “espírito” de uma tradição… portanto, a iniciação é o que deve ser combatido… pela ação antitradicional… o termo “contra-iniciação” é, portanto, o melhor para descrever aquilo ao qual pertencem os agentes humanos pelos quais a ação antitradicional é realizada.

Mas, ainda que grupos humanos efetivos, conhecidos e desconhecidos, possam ou não estar movendo-se contra a Escola Tradicionalista de modo mais ou menos deliberado, não precisamos explicar cada ataque específico como planejado e executado por esta ou aquela organização. A verdadeira “agenda” emana de um plano mais sutil das coisas, cuja expressão exterior é simplesmente o zeitgeist. Um zeitgeist antitradicional, porém, é em parte oportunidade estratégica para — e em parte o próprio resultado da — ação de forças espirituais subversivas. E a maior parte dos servidores de tais forças, embora certamente não todos, são inconscientes de quem servem. Nas famosas palavras de São Paulo, “não é contra a carne e o sangue que temos de lutar, mas contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade nas regiões celestes” (Ef 6,12). Precisamos compreender que o Tradicionalismo estará necessariamente sob ataque num mundo como este, e que grande parte desse ataque se travará no campo da “guerra invisível”.

Ironicamente, porque Quinn descarta a religião revelada, em linha com a negação blavatskiana de um Deus pessoal, e concentra-se na intelectividade, acaba por não compreender o que é a intelectividade. Na p. 79 ele cita a definição de Manzanedo da philosophia perennis como “a colação de verdades de ordem natural comumente reconhecidas pelo homem”, e afirma que “essa descrição sucinta e bastante representativa provavelmente teria poucos críticos… na esfera da filosofia Tradicional.” Mas, se Manzanedo entende por “ordem natural” o que esta expressão significou no contexto das religiões abraâmicas (e não, por exemplo, no de certas correntes da filosofia grega) — isto é, o nível externo e sensorial da realidade, acessível aos “nascidos uma vez”, ao “homem natural” — então de modo algum corresponde à intelecção e, portanto, não seria aceitável para a “filosofia Tradicional”. Na p. 85, Quinn afirma corretamente que “a filosofia moderna, e mesmo o seu ramo metafísico, é essencialmente secular: por conseguinte, percebe a philosophia perennis como primariamente categorial e secular”. Mas, na p. 84, ele acaba de dizer:

O símbolo analógico mais útil… para ilustrar a diferença entre as concepções da filosofia moderna e a perspectiva Tradicional… é a Escada de Jacó. … Os degraus inferiores representam os princípios rudimentares e relativamente poucos de consenso sobre os quais os filósofos modernos se uniriam; os degraus superiores representam os princípios relativamente desenvolvidos e mais numerosos sobre os quais os autores Tradicionais tendem a concentrar-se em suas discussões da philosophia perennis. Independentemente da metodologia e da etiologia, que de fato indicam dissimilaridades genuínas entre as duas concepções, não se deve perder de vista que a escada em si é uma só, que o seu “topo” depende da sua “base”.

Mas, se os degraus inferiores modernos da escada e os degraus superiores Tradicionais têm etiologias distintas, então, por lógica simples, o segundo não pode derivar do primeiro. E é claramente falso que os princípios Tradicionais da philosophia perennis dependam “dos princípios relativamente poucos de consenso sobre os quais os filósofos modernos se uniriam”, já que a filosofia moderna nega unanimemente os princípios tradicionais. Eles dependem, antes, da Intelecção, da percepção direta da Verdade pelo Intelecto, que é um raio dessa Verdade. E, como a Intelecção — seja inspirada pelas grandes revelações históricas, seja concedida pela Auto-revelação primordial de Deus que é o cosmos — é a fonte de toda Verdade, os princípios mantidos em comum pelos filósofos modernos dependem da Intelecção, e não o contrário, uma vez que o erro não pode existir sem uma verdade a perverter — embora, infelizmente, eles já não o vejam, dado que suas concepções são em grande parte autocontraditórias e cheias de obscuridade intelectual.

Na p. 294, Quinn apresenta falsamente, como Tradicional, a teoria mecanicista dos ciclos cósmicos e históricos de William I. Thompson:

à medida que a entropia atinge o seu limite no caos, dá-se uma reversão no ciclo, uma forma cósmica é gerada a partir do único fundo suficientemente vasto para ela, a saber, o caos. O caos cria a decadência fértil na qual as sementes remanescentes da idade anterior dos deuses irrompem em vida. …

Mas ninguém que creia que o caos possa ser o criador da forma ou da ordem entende a Intelecção — ou, já agora, crê em Deus. A teoria do caos criador é a base da teoria da evolução “instrucional” (em vez de “descritiva”, nos termos de E. F. Schumacher), a ideia de que o menor pode dar origem ao maior; ela também justifica várias formas de niilismo anárquico, que operam com a crença de que, se varrermos limpo os antigos valores e formas sociais, algo brilhante e novo automaticamente tomará o seu lugar. Mas a verdade é que a entropia nunca se inverte “por si só”; como descrição da natureza essencial de toda manifestação material, a Segunda Lei da Termodinâmica está correta. A dissolução do cosmos no fim do ciclo de fato resulta num “caos fértil” potencial, onde as sementes — ou, para sermos estritamente precisos, os ovos — do novo ciclo jazem em latência. Mas ele é fértil apenas em potência; para que o novo ciclo emerja à atualidade, precisa ser fecundado. O “Espírito de Deus” deve “pairar sobre a face dessas águas”. A prima materia informe deve ser impregnada pela forma do Logos. E essa impregnação é um ato soberano de Deus. Ela não depende dos ciclos históricos e cósmicos porque vem de fora deles. São os ciclos, antes, que dependem Dela. E o fato de o Ato criador de Deus ser eterno em relação a todos os ciclos temporais não significa que seja mecanicamente inevitável no plano desses ciclos. É um dom gratuito de Forma àquilo que só pode ansiar por Forma; as trevas, por mais potencialmente férteis, não podem dizer “faça-se a luz”. E a receptividade da alma humana purificada guarda, no microcosmo, a mesma relação com a Intelecção que a prima materia cósmica guarda com o Logos, no macrocosmo. A visão intelectual “in-forma-nos”, “forma-nos por dentro” — mas não pode fazê-lo enquanto lutarmos por definir e manter nossa própria identidade, e “morrermos antes de morrer”.

Segundo a lei da entropia, tudo quanto entrou em manifestação cósmica já começou a morrer. É a isso que o Buda se referia em seu “Sermão do Fogo”, quando declarou que o universo, os sentidos, a mente — tudo o que entrou no reino do nome e da forma — está em chamas. O Ato criador de Deus, porém, é eterno. E assim, no momento em que a manifestação perde a capacidade de haurir mais vida do Ato divino de Auto-revelação que a criou, ela se dissolve, retorna às “águas” — ponto em que sua luta por manter a existência separada já não obscurece esse Ato eterno, radiante e revelatório, que volta a atingir, de novo, o espelho imóvel dessas águas e faz aflorarem, à forma manifesta, as potencialidades ocultas em suas profundezas, fora do caos e para dentro do cosmos. “Quem procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por minha causa, salvá-la-á.”

A negação da revelação conduz a uma falsa imagem da intelecção como espécie de “empirismo superior”. Aqueles “esoteristas” que buscam uma metafísica sem religião, um esoterismo sem a plenitude da Tradição, serão tentados a ver “as coisas profundas de Deus” como seu preserve privado, como mistérios arcanos a serem sondados, quase-cientificamente, por um “intelecto” convertido em escravo da paixão mental, e não como sabedoria e poder do Deus Vivo, que tem vontade e a exerce, que intervém ativamente nos assuntos humanos e que, longe de ser um mero espécime para suas pesquisas ocultas, exige algo deles. O que C. S. Lewis diz do Deus do panteísmo, em Milagres (ed. Macmillan, pp. 93–94), é igualmente verdadeiro do Deus da falsa intelecção:

O Deus do panteísta nada faz, nada exige. Ele está ali se você O desejar, como um livro numa estante. Ele não o perseguirá. Não há perigo de que, em algum momento, o céu e a terra fujam ao Seu olhar. Se Ele fosse a verdade, então poderíamos realmente dizer que todas as imagens cristãs de realeza foram um acidente histórico do qual nossa religião deveria ser purgada. É com um choque que descobrimos que são indispensáveis. Você já teve esse choque antes, em conexão com coisas menores — quando a linha puxa sua mão, quando algo respira ao seu lado na escuridão. Assim aqui; o choque vem no momento exato em que o arrepio de vida nos é comunicado ao longo da pista que vínhamos seguindo. É sempre chocante encontrar a vida onde pensávamos estar sós. “Cuidado!”, clamamos, “está vivo”.

Mas, como o Deus de Quinn não é “vivo” nesse sentido, ele fala habitualmente da intelecção em termos prometeicos e voluntaristas: de “usar a ‘intuição intelectual’” (p. 22), da “conscrição da intuição intelectual… para transpassar os princípios mais altos e sutis da doutrina” (p. 88) e da “barreira… que impede os filósofos modernos de transpassar… as verdades perenes que aguardam resolução por cada indivíduo” (p. 75). Ele nega implicitamente que possamos receber verdades por meio da revelação e da Tradição (embora devamos, claro, realizá-las por nós mesmos) e identifica a intelecção com um individualismo prometeico no domínio filosófico. Vale repetir a doutrina de Frithjof Schuon:

Um culto da inteligência e da paixão mental afasta o homem ainda mais da verdade. A inteligência se retira assim que o homem deposita a confiança somente nela. A paixão mental que persegue a intuição intelectual é como o vento que apaga a luz de uma vela.

Tal identificação com a intelecção, acoplada à negação consciente ou implícita da revelação, é uma das coisas que definem os esotéricos interesseiros em conflito com as autoridades exotéricas. Conforme leio a posição de Ibn al-‘Arabī em suas Futūāt al-Makkīyah, a capacidade de aceitar normas exotéricas depois de atingir a compreensão do significado das realidades interiores — estados, estações, testemunhos e desvelamentos — é a marca dos esotéricos acabados, “o Povo da Censura”, em contraste com os esotéricos unilateralistas ou inis (os “sufis”) e os simples crentes exotéricos. Seyyed Hossein Nasr, em Islamic Spirituality II, define “o Povo da Censura” como os esotéricos autoidentificados que se destacam da multidão, os censurados pelos ‘ulamā’ exotéricos por pensarem — ou agirem como se — não estivessem vinculados à sharī‘ah; ao passo que, para Ibn al-‘Arabī, “o Povo da Censura” são os que transcenderam a dicotomia esotérico/exotérico e, por isso, são censurados pelos sufis por, ao que lhes parece, abandonarem a via interior e tornarem-se de novo crentes exotéricos normais e desinteressantes. (Kierkegaard, na figura do “Cavaleiro da Fé”, define a estação idêntica.) O princípio metafísico sobre o qual essa divisão tripartida se baseia é, na linguagem do Vedānta, “Brahman está além tanto da forma quanto da ausência de forma” e, nas palavras de Ibn al-‘Arabī (em minha paráfrase), “Deus é não-delimitado em sentido absoluto, isto é, Ele não é delimitado nem pela sua própria não-delimitação”. Aqueles que concebem Deus como delimitado, como possuindo forma, são os simples crentes; os que O concebem como informe e não-delimitado são os esotéricos unilateralistas, os inis, os “sufis”; os que O concebem como além tanto da ausência de forma quanto da forma, como não delimitado por Sua própria não-delimitação, são os esotéricos acabados, o Povo da Censura. Se Deus está além tanto da forma quanto da ausência de forma, então as formas exotéricas das religiões reveladas são teofanias, não véus — o mesmo valendo para qualquer forma particular que seja. Nas palavras de Ibn al-‘Arabī (William C. Chittick, The Sufi Path of Knowledge, p. 260),

A Realidade é a situação efetiva do Ser. … A Sharī‘ah é idêntica à Realidade. … Quando os sufis viram que tanto os eleitos quanto o povo praticavam a Sharī‘ah e que apenas os eleitos conheciam a Realidade, distinguiram entre a Sharī‘ah e a Realidade. Fizeram a Sharī‘ah pertencer às propriedades e disposições da Realidade que são manifestas, e fizeram a Realidade pertencer às suas propriedades e disposições que são não-manifestas.

Além disso, se cada religião revelada é, em essência — se não em suas manifestações contingentes —, uma teofania completa, então não há necessidade de somar uma à outra, mais do que eu precisaria somar outra pessoa a mim, ou duas, ou cinco, para me manter como manifestação do Si mesmo dentro de todo si. Assim que percebo que “o que está aqui está alhures, e o que não está aqui não está em parte alguma”, termina a minha cobiça espiritual.

A negação, por Quinn, da doutrina tradicional do apocalipse — que, para os cristãos, necessariamente inclui a segunda vinda de Cristo; para os muçulmanos, a “segunda vinda” do Profeta Jesus (cuja vinda, segundo alguns, será anunciada pelo Mahdī); para os judeus, o advento do Messias; para os budistas, a chegada do Buda Maitreya; e, para os hindus, a aparição do Avatāra Kalki — relaciona-se intimamente com sua negação da revelação: se Deus não pode intervir ativamente nos assuntos humanos — ou se seria inconveniente para nós que Ele o fizesse —, então Ele não pode mais encerrar um ciclo de manifestação humana e inaugurar um novo do que pode fundar uma religião revelada; o ciclo de manifestação é, por conseguinte, mecanicista, inevitável, expressão de uma lei “científica”, como a órbita da Terra em torno do Sol, e não a forma assumida no espaço-tempo pelo Ato eterno de Auto-revelação de Deus. E assim crê Quinn (p. 293), mais ou menos em linha com Blavatsky, que

a evolução espiritual move-se em espiral cíclica e helicoidal por meio do entrejogo de polaridades opostas, e essa visão Tradicional é a perspectiva da dinâmica temporal (histórica) de que a dialética histórica hegeliana é uma aproximação grosseira. Fundidos indissoluvelmente com essa abordagem helicoidal-cíclica da evolução estão os dois processos de enantiodromia e da teoria da compensação (que Guénon chama “reintegração”), que operam em tandem; isto é, o germe ou semente da díade “tese” está presente na díade “antítese”, para usar os termos de Hegel, e, enquanto uma díade está em manifestação, sua parceira começa a crescer depois que o nadir de sua rotação cíclica é alcançado e acabará por igualá-la e então superá-la até atingir o seu zênite (ponto em que sua parceira está no nadir), e assim por diante…; à luz disso, podemos dizer que a visão Tradicional da periodicidade provavelmente exclui a aniquilação total da humanidade na terra.

Mas, deixando de lado o fato de que “enantiodromia e teoria da compensação” não são Tradicionais, mas junguianas, Quinn deturpa a teoria de “reintegração” de Guénon, que não substitui a dissolução da manifestação no fim do ciclo, mas ocorre imediatamente antes dela (cf. O Reino da Quantidade, pp. 328–329). E ele deveria saber que a versão do ciclo de manifestação que apresenta não é de modo algum a Tradicionalista, como afirma, e que “a aniquilação total da humanidade na terra” é sim uma possibilidade distinta, dependendo da magnitude do ciclo atualmente em encerramento, visto que ele próprio cita Coomaraswamy (p. 130) no sentido de que, após o mahāpralaya — a grande dissolução — “as sementes, ideias ou imagens da futura manifestação persistem durante o intervalo de inter-Tempo da resolução, num plano mais alto de existência, incólumes à destruição das formas manifestadas”, não em “repositórios especiais” de estoque humano reprodutor, nem em pequenos e remotos enclaves de sobrevivencialistas esotéricos. Dito isso, quero deixar claro que não creio necessariamente que todo ser humano perecerá da terra num futuro relativamente próximo, nem deposito qualquer esperança na continuidade da história e da vida humanas. Minha fé em Deus e meu senso do significado da vida terrena não dependem nem de uma coisa nem de outra. A esperança escatológica é esperança vertical; ela não requer nem a destruição da terra nem a sua preservação para realizar-se, pois diz respeito a “um novo céu e uma nova terra”. E, no entanto, esse novo céu e essa nova terra relacionam-se intimamente com este céu e esta terra — paradoxo aparente que explica as afirmações oraculares de Guénon em O Reino da Quantidade: que o fim do ciclo é o fim de “uma” humanidade; que é o fim do tempo, mas não o fim do espaço; que é a completa dissolução da manifestação, mas não o fim da existência terrestre. Fixar as esperanças na destruição da terra é desespero: “é necessário que venham os escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo vem”. Mas fixá-las na continuidade futura da história humana é falsa esperança: a verdadeira esperança não pode fundar-se na projeção de nossos medos e desejos presentes num futuro quando, por meios incertos, aquilo que esperamos triunfará sobre o que tememos. A verdadeira esperança é vertical — isto é, contemplativa e escatológica. Do mesmo modo que a contemplação nos desapega da esperança e do temor relativos a eventos futuros ao substituir a esperança temporal pela esperança na Misericórdia presente de Deus, e o temor temporal pelo temor da Sua Grandeza presente — a altura e a profundidade do axis mundi —, assim também a esperança escatológica é vertical exatamente nesse mesmo sentido, e a esperança vertical é além da questão de saber se toda a vida, ou toda a vida humana, perecerá da Terra em um futuro previsível — embora fingir que a destruição da Terra é um assunto indiferente para nós seja outro extremo, já que o amor pela Terra de Deus faz parte do amor a Deus, e seríamos insanamente arrogantes e emocionalmente mortos se afirmássemos que o fim de toda a vida terrestre simplesmente não nos tocaria: até Cristo chorou sobre Jerusalém. O que sabemos é que este ciclo, esta “humanidade”, está prestes a terminar, e que este fim será — ou melhor, é — a ocasião de uma irrupção radical da eternidade no tempo. Nisso está a nossa esperança.

Nas palavras de Thomas Merton, em “The Time of the End is the Time of No Room” (Raids on the Unspeakable, pp. 65–75):

No sentido bíblico, a expressão “o Fim” não significa necessariamente apenas “o fim violento, súbito e mau”. A escatologia bíblica não deve ser confundida com a vaga e ansiosa escatologia das apreensões humanas. Vivemos numa era de duas escatologias sobrepostas: a das ansiedades e esperanças seculares, e a da realização revelada. Às vezes a primeira é simplesmente confundida com a segunda; às vezes resulta da completa negação e desespero diante da segunda. De fato, o medo patológico do fim violento — que, quando suficientemente despertado, torna-se uma esperança veladamente disfarçada por esse mesmo fim — fornece algo do clima de confusão e desespero em que as esperanças mais profundas da escatologia bíblica se realizam. … Pois a escatologia não é término e castigo, encerramento de contas e fechamento de livros: é o início final, o nascimento definitivo em uma nova criação. Não é o último suspiro das possibilidades exauridas, mas o primeiro gosto de tudo o que está além de ser concebido como atual.

Essa alternativa aparentemente inescapável, mas na verdade ilusória, entre desespero histórico e esperança histórica — que é, na realidade, apenas outra forma de desespero — entre, isto é, o medo da morte e o desejo de morrer, intimamente relacionados de tantos modos — é na verdade a projeção de uma falsa dicotomia metafísica. Em certo sentido, tem a ver com nossa crença na evolução e nossa adoração do progresso, que foram, para tantos (inclusive para mim até bem recentemente), não apenas os pressupostos básicos que dão sentido às nossas lutas vitais, mas também o fundamento filosófico de nossa solidariedade com a humanidade e com a Terra — conceitos fundamentais que ampliam nossos horizontes, conferem significado às nossas ações além de nossos mesquinhos interesses pessoais e nos movem rumo à compaixão e à autotranscendência. Em outras palavras, são esses dogmas modernistas que substituíram especificamente a caridade cristã e a esperança na Providência Divina.

Mas agora que os mitos do progresso biológico e social estão profundamente ameaçados pela devolução e regressão que vemos ao nosso redor, muitos de nós perdemos nossa raison d’être, nossa razão de viver além de nossos desejos egoístas. “Para que tudo isso?”, perguntamos. A história e a evolução precisam estar indo a algum lugar; precisam ter um objetivo. Se não estão indo a lugar algum, se “falham”, então toda a luta humana é sem sentido. E se não conseguimos ver como a evolução e o progresso poderiam “triunfar” no mundo material, seremos tentados a postular uma evolução superior, mais sutil, que possa triunfar, de algum modo, em mundos mais elevados. E esse triunfo da luta espiritual humana deve ter um significado além da simples libertação do cativeiro da vida encarnada. A vida encarnada, o seu cativeiro e a nossa fuga desse cativeiro precisam significar algo. E o que mais poderiam logicamente significar, perguntamos — e, ao fazê-lo, colocamo-nos na companhia de H. P. Blavatsky, Rudolf Steiner e Teilhard de Chardin — senão que a manifestação e a reintegração do Universo devem, de fato, acrescentar algo novo à natureza de Deus?

Porque, caso contrário, dizemos a nós mesmos, os gnósticos têm razão: o universo, incluindo a existência humana encarnada, é um erro — seja da nossa parte, seja da própria Divindade; tudo o que podemos fazer diante disso é dar meia-volta, admitir que tudo foi uma má proposta e retornar à, e assim restaurar, a Divindade ferida.

A falsa dicotomia metafísica é esta: ou Deus também está evoluindo, ou Ele decaiu e deve ser restaurado. Mas, do ponto de vista da gnosis, que é o único campo no qual essa falsa dicotomia pode ser resolvida, vemos que tanto a ideia de que a evolução e a história humana têm um significado último dentro do tempo — como no “Ponto Ômega” de Chardin — quanto, como nos gnósticos, a ideia de que evolução e história são destituídas de sentido porque o próprio tempo é um erro, ambas dependem de uma negação de que Deus é Absoluto, Infinito, Perfeito e suficiente em Si mesmo.

Uma vez compreendida essa verdade de Deus, contudo, chegamos então à visão do tempo como um aspecto da Infinidade de Deus, assim como os princípios imutáveis são aspectos de Sua Absolutidade; e do tempo como algo que não “vai” a parte alguma senão de volta a Deus — um movimento que não pode ocorrer no futuro, sob pena de cairmos num tipo de “deísmo pós-eterno”, complemento e oposto do mais familiar deísmo pré-eterno — mas que está realmente ocorrendo agora, na Eternidade. O passado eterno, o passado como Agora, sub specie aeternitatis, é Criação; o futuro eterno, o futuro como Agora, sub specie aeternitatis, é Apocatástase. E o significado do tempo é: ele é abrangido por, e existe como manifestação de, a Eternidade, onde todo sentido reside.

Na p. 269, Quinn afirma corretamente que “Na visão Tradicional… o cosmos não encontra seu significado no indivíduo; o indivíduo encontra seu significado no cosmos, assim como a parte encontra o seu significado no todo.” Mas, nas pp. 272–273, ele sustenta que Carl Jung estava “de certo modo próximo da perspectiva Tradicional” e apoia isso com a afirmação de que “Para Jung, a neurose da modernidade está em buscar respostas massificadas, externas e quantitativas para um problema cuja única solução se encontra por meios individuais, internos e qualitativos ou psicodinâmicos.” Talvez essas posições possam ser conciliadas — deixando de lado a identificação implícita entre metafísica e psicologia profunda, que é o mais errôneo possível — ao afirmar que é responsabilidade exclusiva do indivíduo encontrar seu significado no cosmos e, assim, no Princípio de que o cosmos é manifestação, ainda que só possa realizar isso com o “auxílio” do próprio cosmos, concebido como apoio divinamente concedido para a contemplação da Natureza divina, algo que pode ocorrer (na maioria dos casos) apenas no contexto da doutrina revelada. Mas não é imediatamente evidente que Quinn compreenda isso.

Se Carl Jung está, de certo modo, “próximo” da perspectiva Tradicionalista, é essa situação de estar “tão perto e ainda assim tão longe” que impediu, mais do que qualquer outro fator, a Escola Tradicionalista de ressuscitar uma psicologia verdadeiramente tradicional e principiológica — sem mencionar o efeito profundamente subversivo de Jung sobre o Cristianismo, especialmente o Catolicismo Romano. É como se o racionalismo moderno tivesse separado a proficiência doutrinal da compreensão da eficácia e do significado simbólico das imagens no mundo católico, resultando que os católicos, possuindo uma profunda sensibilidade simbólica “no sangue”, sentiram a necessidade de recuperar tal compreensão, mas a buscaram no junguianismo em vez de na plenitude de sua própria tradição — com resultados desastrosos. Se ao menos Titus Burckhardt e outros de perspectiva Tradicional tivessem chegado à alquimia tempo suficiente antes de Jung, de modo a permitir-lhes explicitar todo o seu alcance de significados e aplicações psicológicas — e não apenas a sua simbologia metafísica — sem receio de serem identificados com o junguianismo!

Jung e sua escola não estão desprovidos de intuições psicológicas penetrantes e úteis, e algumas de suas doutrinas são como sombras projetadas por uma perspectiva metafísica válida. O “arquétipo do Si”, por exemplo, está próximo do que os sufis entendem por Coração — isto é, o “ponto central” da psique, onde ela é atravessada por um raio do Espírito — e a “hierarquia descendente” de camadas psíquicas de Jung — a Sombra, a Sízygia (“anima” e “animus”) e o Si — poderia ser vista como os reflexos psíquicos do corpo, da própria psique (baseada, como é, num modo sujeito–objeto de percepção) e do Espírito, segundo o princípio de que “o que é mais alto em princípio é o mais baixo na manifestação”. Mas, como observa Burckhardt em seu capítulo sobre “Psicologia Moderna” em Mirror of the Intellect, a relutância de Jung em postular uma dimensão metafísica objetiva e sua derivação explícita do “inconsciente coletivo” a partir da estrutura do cérebro humano — que ele vê como elo com o nosso passado animal por via da evolução — tornam sua doutrina não apenas insuficiente, mas ativamente subversiva da metafísica tradicional.

O papel de Jung na modernidade, e sua afinidade com as novas elites globais antitradicionais, é evidenciado por Christopher Lasch em The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy (Nova York e Londres, W. W. Norton & Company, 1995, pp. 236–239):

A beleza do sistema de Jung, para aqueles ameaçados pela “falta de sentido”, como ele gostava de chamá-la, era que oferecia “sentido” sem voltar as costas à modernidade. Jung assegurava a seus seguidores, de fato, que poderiam permanecer plenamente modernos sem sacrificar o consolo emocional outrora proporcionado pela religião ortodoxa. … Era ao indivíduo dotado, aquele que aceitava o fardo da maturidade, que Jung se dirigia nos ensaios reunidos em 1933 sob o título inevitável Modern Man in Search of a Soul. Ao superar a tradição, o indivíduo plenamente moderno ganhava uma perspectiva mais ampla, mas inevitavelmente se afastava de seus semelhantes mais conservadores. Uma “consciência mais plena do presente o remove… da imersão na consciência comum”, da “massa de homens que vivem inteiramente dentro dos limites da tradição”. É por isso que a solução do “problema espiritual moderno”, como Jung o chamava, não poderia residir num retorno às “formas obsoletas de religião”, tanto quanto não poderia residir numa visão puramente secular do mundo. … O homem moderno, tendo “ouvido o bastante sobre culpa e pecado”, era com razão desconfiado de “ideias fixas sobre o que é certo”, desconfiado de conselheiros espirituais que “fingiam saber o que é certo e o que não é”. O julgamento moral, de todo modo, “tirava algo da riqueza da experiência”.

[A versão junguiana da psicanálise era] o meio pelo qual libertar a imaginação religiosa de seu cativeiro em credos moribundos. Ao proporcionar acesso não apenas à vida inconsciente dos indivíduos, mas também ao “inconsciente coletivo” da raça humana, a psicanálise junguiana escavava a estrutura permanente da mitologia religiosa — o material bruto a partir do qual o mundo moderno poderia construir novas formas de vida religiosa apropriadas às suas necessidades. Jung convidava seus pacientes e leitores a percorrer toda a gama de mitologias e técnicas espirituais — todas igualmente disponíveis para inspeção, graças à expansão da consciência histórica no mundo moderno — e a experimentar uma variedade de combinações até encontrarem aquela mais adequada às suas exigências individuais. … As classes instruídas, incapazes de escapar ao fardo da sofisticação, podiam invejar as fés ingênuas do passado; podiam até invejar as classes que continuavam inconscientemente a observar as fés tradicionais no século XX, ainda não expostas aos ventos gélidos do pensamento crítico moderno. Contudo, não podiam trocar de lugar com as massas não iluminadas, tanto quanto não podiam retornar ao passado. Uma vez assimilado o hábito crítico da mente, ninguém que entendesse suas implicações poderia encontrar refúgio ou descanso nos sistemas pré-modernos de pensamento e crença. Era essa experiência de desilusão, mais do que qualquer outra coisa, que se acreditava distinguir o artista e o intelectual das criaturas irrefletidas da convenção, que desconfiavam dos artistas e intelectuais precisamente porque não suportavam ouvir as más notícias.

[Nota: Para uma exposição reveladora do Anticristianismo explícito e do Neopaganismo de Jung, ver The Jung Cult (Princeton University Press, 1994) e The Aryan Christ (Random House, 1997), ambos de Richard Noll.]

Todo grupo centrado em um conjunto de crenças e valores — em outras palavras, todo grupo — possui uma visão de sociedade. E isso é certamente verdadeiro para os Tradicionalistas, cuja “crítica do mundo moderno” é um aspecto integral, embora não essencial, de seu ensinamento. Mas o próprio hábito de contemplar princípios eternos pode tornar alguns deles (ou melhor, de nós) lentos para reconhecer mudanças sociais profundas. Escritores tradicionalistas ainda nos advertem contra o igualitarismo e o socialismo, enquanto o verdadeiro sinal dos nossos tempos, no plano socioeconômico, é a queda do comunismo e a enorme e crescente disparidade global entre ricos e pobres.

Nem os Estados Unidos estão isentos dessas tendências, como qualquer um disposto a olhar pode ver. Lester Thurlow, em sua orelha para The Winner-Take-All Society (1995), de Robert H. Frank e Philip J. Cook, escreve: “A história verá a mudança na distribuição americana de rendimentos desde a década de 1970 como a maior que qualquer sociedade já teve sem uma revolução ou uma derrota militar e subsequente ocupação.” E, na p. 229 desse livro, os autores citam o jornalista Mickey Kraus:

Sempre tivemos ricos e pobres. Mas o dinheiro é cada vez mais algo que permite aos ricos, ou mesmo aos meramente prósperos, viver uma vida à parte dos pobres. E os ricos e semi-ricos parecem cada vez mais querer viver uma vida à parte. …

Ou, nas palavras de Christopher Lasch, em The Revolt of the Elites (p. 29):

O curso geral da história recente já não favorece o nivelamento das distinções sociais, mas caminha cada vez mais na direção de uma sociedade de duas classes, na qual os poucos favorecidos monopolizam as vantagens do dinheiro, da educação e do poder.

De muitos modos, a “sociologia Tradicionalista” é semelhante à de Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas (salvo por certos pressupostos progressistas que os Tradicionalistas negam), que lamentava o surgimento das massas desenraizadas e secularizadas, sem senso de tradição, e o desaparecimento das antigas aristocracias que haviam sido os repositórios dos valores culturais e espirituais. Mas é a tese de Lasch, em The Revolt of the Elites, que o jogo agora se inverteu: são as novas “elites” globais que representam o progressismo e o secularismo, enquanto as “massas” de hoje são comparativamente conservadoras e tradicionais.

Como coloca o sociólogo da religião Peter Berger, em uma frase frequentemente citada por Huston Smith:

Se os indianos orientais são o povo mais religioso da Terra e os suecos o menos religioso, então a América (e, eu acrescentaria, a Nova Ordem Mundial) é como uma nação de indianos governada por suecos.

Segundo Lasch (p. 215):

Entre as elites, [a religião] é tida em baixa estima — algo útil para casamentos e funerais, mas de resto dispensável. Um estado mental cético e iconoclástico é uma das características distintivas das classes do conhecimento. Seu compromisso com a cultura da crítica é entendido como excludente de compromissos religiosos. A atitude das elites para com a religião varia da indiferença à hostilidade ativa. Ela repousa sobre uma caricatura do fundamentalismo religioso como um movimento reacionário empenhado em reverter todas as conquistas progressistas obtidas nas últimas três décadas.

A distinção de Lasch entre a “revolta das massas” de Ortega y Gasset e a atual “revolta das elites” merece ser citada amplamente.

Ortega e outros críticos descreviam a cultura de massa como uma combinação de “ingratidão radical” com uma crença inquestionada em possibilidades ilimitadas. O homem-massa, segundo Ortega, tomava como dadas as benesses conferidas pela civilização e as exigia “peremptoriamente, como se fossem direitos naturais”. Herdeiro de todas as eras, estava beatificamente inconsciente de sua dívida para com o passado. Embora desfrutasse de vantagens trazidas pela “elevação do nível histórico” em geral, não sentia obrigação nem para com seus progenitores nem para com sua prole. Não reconhecia nenhuma autoridade fora de si mesmo, conduzindo-se como se fosse “senhor de sua própria existência”. Sua “incrível ignorância da história” tornava possível pensar o momento presente como muito superior às civilizações do passado e esquecer, além disso, que a própria civilização contemporânea era produto de séculos de desenvolvimento histórico, não a conquista singular de uma era que teria descoberto o segredo do progresso ao virar as costas ao passado.

Esses modos de pensar, ao que parece, associam-se com mais precisão ao surgimento da meritocracia do que à “revolta das massas”. O próprio Ortega admitia que o “protótipo do homem-massa” era “o homem de ciência” — o “técnico”, o especialista, o “douto ignorante” cuja maestria em seu “cantinho do universo” só era igualada por sua ignorância do resto. Mas o processo em questão não deriva simplesmente da substituição do antiquado homem de letras pelo especialista, como a análise de Ortega sugere; deriva da estrutura intrínseca da própria meritocracia. A meritocracia é uma paródia da democracia [e aqui Quinn é mais honesto do que alguns, não tendo apreço algum pela democracia]. Ela oferece oportunidades de ascensão, ao menos em teoria, a qualquer um com talento para aproveitá-las, mas “oportunidades de subir”, como aponta R. H. Tawney em Equality, “não substituem a difusão geral dos meios da civilização”, da “dignidade e cultura” de que todos precisam “ascendam ou não”. A mobilidade social não mina a influência das elites; se algo faz, é solidificá-la ao sustentar a ilusão de que repousa unicamente no mérito. (pp. 40–41)

O mercado em que as novas elites operam é agora internacional em alcance. Suas fortunas estão atreladas a empreendimentos que atuam através de fronteiras nacionais. Preocupam-se mais com o funcionamento suave do sistema como um todo do que com qualquer uma de suas partes. Suas lealdades — se o termo não for anacrônico nesse contexto — são internacionais, e não regionais, nacionais ou locais. Têm mais em comum com seus pares em Bruxelas ou Hong Kong do que com as massas de americanos ainda não plugados à rede de comunicações globais. (p. 34)

Curiosamente, é Robert Reich, apesar de sua admiração pela nova classe dos “analistas simbólicos”, quem fornece um dos relatos mais penetrantes do “lado mais sombrio do cosmopolitismo”. Sem vínculos nacionais — lembra ele — as pessoas têm pouca inclinação para fazer sacrifícios ou aceitar responsabilidade por seus atos. “Aprendemos a sentir-nos responsáveis pelos outros porque partilhamos com eles uma história comum, … uma cultura comum, … um destino comum.” A desnacionalização da empresa tende a produzir uma classe de cosmopolitas que se veem como “cidadãos do mundo, mas sem aceitar … quaisquer das obrigações que a cidadania, normalmente, implica”. Porém o cosmopolitismo dos poucos favorecidos, por ser desinformado pela prática da cidadania, revela-se uma forma mais elevada de paroquialismo. Em vez de apoiarem serviços públicos, as novas elites colocam seu dinheiro na melhoria de seus próprios enclaves autocercados. (pp. 46–47)

As “zonas” e “redes” admiradas por Reich pouco se assemelham a comunidades em qualquer sentido tradicional do termo. Povoada por transeuntes, falta-lhes a continuidade que deriva do senso de lugar e de padrões de conduta conscientemente cultivados e transmitidos de geração em geração. (p. 40)

Quinn às vezes dá a impressão de que concordaria com a crítica acima, ainda que desde uma perspectiva especificamente Tradicionalista. Nas pp. 284–285, citando liberalmente Guénon e Coomaraswamy, Quinn lamenta de modo convincente a poluição “cultural” (e/ou culturocídio), na qual, por conquista militar, dominação econômica ou qualquer outra forma de hegemonia imposta, as culturas industriais quantitativas do Ocidente moderno corromperam ou destruíram culturas Tradicionais. Trata-se de algo mais do que a passagem da sociedade tradicional: é, mais propriamente, uma campanha ativa que procede “subjugando um povo; tirando-lhe o que tem de mais precioso, a saber, a sua própria cultura; coagindo-o a adotar costumes e instituições de um povo estrangeiro; forçando-o ao trabalho mais odioso para que adquira coisas que para ele são perfeitamente inúteis” [citação de A Crise do Mundo Moderno, de Guénon].

Primeiro por um processo de colonização e dominação forçadas, depois por atrito, uma a uma as várias culturas indígenas com que o Ocidente moderno entrou em contato desde o Renascimento foram gradualmente se desintegrando, no sentido estrito da palavra. Repetidas vezes, “o fato de termos destruído os fundamentos vocacionais e artísticos de quaisquer culturas tradicionais que nosso toque tenha infectado”, como escreveu Coomaraswamy certa vez, deixou o planeta com cada vez menos culturas Tradicionais pristinas e coerentes. Ou foram forçadas a renunciar, ou gradualmente abandonaram seus modos Tradicionais, baseados numa cosmovisão mitológica ou metafísica qualitativa, e literalmente “compraram” a ilusão do progresso material. …

Para esses países, essas culturas, a poluição é dupla e quase instantânea. A poluição visível das novas autoestradas e fábricas — construídas, respectivamente, para agilizar o trânsito de alta entropia crucial ao industrialismo e para explorar mão de obra local barata — é o sinal exterior de uma poluição de tipo mais devastador na visão Tradicional: a troca de sentido, valor, inteireza, sacralidade e qualidade de vida por falta de sentido, relativismo, fragmentação, secularismo e quantidade.

Concordo integralmente com essa avaliação. Mas, no capítulo seguinte, no que é provavelmente o momento mais sinistro de todo o livro de Quinn, por meio de uma impressionante manifestação do que George Orwell chamou de “duplipensar”, ele dá meia-volta completa e toma como sua esperança e seu ideal aquilo que acabara de lamentar como um desastre sem mitigação. Na p. 301, fala em termos elogiosos da nova globalização: “ … quando, na história do mundo, já houve tanto esforço despendido na planetização do pensamento; na cooperação internacional, como exemplificada pelas Nações Unidas; na unanimidade e conformidade trazidas pelo comércio mundial, pela ciência, pela tecnologia; em redes de coleta de dados via satélite e telecomunicações; e em intercâmbios educacionais e artísticos como agora? Organizações internacionais cujo único propósito é a promulgação da consciência planetária existem hoje, e comunidades espirituais internacionalmente constituídas proliferam.” Mas o que é uma “planetização do pensamento” baseada numa “unanimidade e conformidade trazidas pelo comércio mundial, ciência, tecnologia” senão uma “hegemonia imposta” originada nas “culturas industriais quantitativas do Ocidente moderno”, que continua a destruir sociedades Tradicionais “tirando-lhes o que têm de mais precioso, a saber, a sua própria cultura”?

Logo, Quinn não é crítico das elites insurgentes de Lasch, mas em muitos pontos membro delas — embora mais arguto do que a maioria, por admitir abertamente que as coisas não podem prosseguir como estão, que o mundo presente caminha para a catástrofe. E, como é comum entre as novas elites globais, fala muito bem das culturas primitivas como repositórios de metafísica tradicional (cap. 9), ao mesmo tempo em que reconhece a existência de “etnocentrismo e xenofobia pandêmicos, paroquialismo, tribalismo e solipsismo de grupo” (p. 300), embora atribua uma preocupação excessiva com essas tendências apenas aos céticos da planetização — quando, na realidade, a planetização vai bem e avança sem entraves. Contudo, até certo ponto, ambas as atitudes são justificadas. E não é esse “etnocentrismo, xenofobia, paroquialismo e tribalismo” muitas vezes a expressão mesma da luta pela sobrevivência das culturas mais Tradicionais, cujo desaparecimento Quinn finge lamentar? É frequente que membros da elite global apreciem culturas primitivas como se fossem uma espécie de vida selvagem — daí o uso, de resto justificável, do termo “culturas ameaçadas” — enquanto veem separatistas étnicos, sejam bascos, tâmeis, sérvios ou (como se torna cada vez mais adequado mencionar) anglo-saxões norte-americanos local ou nacionalmente identificados, como entraves ao progresso a serem removidos. Em outras palavras: um grupo cultural ou étnico não globalmente identificado e sem poder político é considerado representar um primitivismo pristino digno de preservação, ao passo que o mesmo grupo, dotado de certo poder, constitui inimigo da “planetização”; (é por isso, de passagem, que Quinn cita O Reino da Quantidade (p. 217) para o efeito de que “o xamanismo se mostrará incluir ritos comparáveis a certos outros da mais alta ordem” e ignora a afirmação de Guénon na página seguinte de que “uma degenerescência muito real deve ser suspeitada” no xamanismo, “a ponto de por vezes equivaler a uma verdadeira desviação”).

E, de fato, ao mesmo tempo em que a planetização se move para destruir todas as culturas pré-industriais, as estantes — pelo menos do setor americano das elites globais — estão abarrotadas de livros sobre as espiritualidades dessas culturas, enquanto suas paredes se cobrem de seus artefatos, desde entalhes tribais africanos comprados de cooperativas artesanais nativas até estatuetas maias contrabandeadas pela fronteira mexicana por “coletivos” de ladrões de arte. E embora o mecenato dessas elites a artistas “primitivos” possa ajudar, em alguma medida, tais culturas em luta — ou tais bandos em luta —, o dinheiro usado para comprar os objetos em questão provém da economia global que destrói sistematicamente as culturas que os produzem, e que inclui também o comércio global de artesanato, legal ou ilegal. É aqui que a caracterização, em grande parte justa, de Lasch das elites globais como essencialmente seculares precisa ser matizada.

Seculares podem ser, vistas desde uma perspectiva tradicional, mas isso não quer dizer que algumas delas não se interessem profundamente por religiões; tudo o que rejeitam é a fé religiosa. Consideram as tradições religiosas do mundo — inclusive seus esoterismos — como um recurso cultural a explorar, assim como exploram recursos naturais e mão de obra barata, para preencher o vazio deixado em suas almas por seu secularismo impenitente. A “religião” característica de alguns (não todos) setores da elite global é uma espécie de “espiritualidade fusion mundial” — que, porém, é essencialmente psíquica, não espiritual — composta de textos, música, objetos rituais, práticas iogues e mágicas, e até iniciações xamânicas coletadas pelo mundo afora. Isso se torna mais fácil de entender se lembrarmos que certos membros da comunidade de negócios sempre flertaram com a ideia de filiação a sociedades secretas. Maçons, Elks, Oddfellows, Shriners e Druidas representam uma longa tradição de envolvimento burguês em organizações pseudo-iniciáticas, algumas das quais — particularmente a Maçonaria — dão sinais de possível descendência de verdadeiras sociedades iniciáticas no passado remoto. Guénon via os maçons como a progênie degenerada de uma linhagem iniciática válida, cujo simbolismo esotérico, se não a sua barakah, conservou elementos tradicionais reais. E as pretensões iniciáticas da Maçonaria, bem como suas conexões com o mundo dos negócios, sobrevivem até hoje. Muitos desses “clubes masculinos” são internacionais em escopo, e certos de seus símbolos e práticas — quer estritamente para entretenimento, quer por razões muito mais sérias — permanecem secretos; isso indubitavelmente tornou alguns deles úteis a corporações multinacionais no processo de expandir seu alcance.

Se somarmos a isso a vertente do “misticismo motivacional” representada por Dale Carnegie e Norman Vincent Peale, bem como a massa de ideias e técnicas mágicas e quase mágicas introduzidas no mundo dos negócios pelos ex-hippies da geração baby boom, a “religiosidade esotérica” das elites globalistas deixa de soar tão inverossímil. O diplomata vaticano, autor e exorcista de renome internacional Pe. Malachi Martin sustentava que a liderança maçônica — que, segundo ele, subverteu com sucesso a Igreja Católica — provinha dessas elites, e que a maioria dos “luciferianos” que encontrou em seu trabalho eram membros de alto escalão das comunidades empresarial, profissional e eclesiástica — embora eu me apresse em acrescentar que as práticas Nova Era que se possam encontrar no mundo corporativo certamente não têm todas origem ou intenção satanista. Mas, dado que a burguesia sempre teve suas sociedades secretas — como a aristocracia teve sua “ordem esotérica” de cavalaria —, a ideia popular de que todas as ideias psíquicas ou mágicas são fenômenos “marginais” simplesmente não é precisa. E, se há um paradigma “espiritual” característico nesse mundo de consultoria corporativa — pelo menos no setor dele que experimentei diretamente —, é o xamanismo; ou então outra coisa que leva o mesmo nome. Segundo a mitologia Nova Era e/ou da Nova Classe, o xamanismo, por poder ser definido como — ou reduzido a — um conjunto de “técnicas arcaicas do êxtase” (para citar o subtítulo da obra famosa de Mircea Eliade sobre o tema), é a mais transportável de todas as espiritualidades, perfeitamente ajustada à classe dos “transientes de elite” descrita por Lasch.

Por ser técnica, e não culturalmente fundada, não estaria tão profundamente vinculada a culturas locais como a Ortodoxia russa, por exemplo, ou o Islã — ou assim diz a história; e, enquanto conjunto de “técnicas” antes que “dogmas”, é altamente atraente para uma classe que valoriza “habilidade” — sobretudo mental ou psíquica — acima da lealdade a valores tradicionais ou da fé em Deus. Supostamente a mais individualista de todas as espiritualidades, é também a mais potencialmente prometeica, pois — ao menos conforme a mitologia Nova Era em questão — se baseia em façanhas mágicas, e não no sacrifício do ego, e numa “insight” visto não como fruto de ascese contemplativa ou dom de Deus, mas como resultado de uma espécie de “incursão aos mistérios”, segundo um paradigma mais próximo da espionagem do que da religião. As “comunidades espirituais internacionalmente constituídas” de Quinn são, em parte, redes psíquicas e “neoxamânicas” para as elites.

Na p. 303, Quinn admite que,
embora suas ênfases divergissem, Coomaraswamy e Guénon insistiam ambos na participação e na iniciação regular numa Tradição viva para compreender e assimilar os primeiros princípios e os ensinamentos esotéricos concomitantes. Do mesmo modo, ambos rejeitavam a noção de um “esperanto religioso” eclético, emprestado … dos diversos sistemas Tradicionais.

“Contudo”, prossegue ele,
ambos morreram antes que se pudesse afirmar inequivocamente que, sobre a face da Terra, já não se encontram culturas plenamente Tradicionais, que tudo o que resta das antigas sobrevive em bolsões isolados de áreas remotas e rurais.

Mas o que é verdade para “culturas” Tradicionais não é verdade para Tradições, que podem e de fato sobrevivem. Meu sufismo islâmico — com seus ensinamentos e práticas tradicionais, seus mestres vivos, seus estados e estações espirituais — e a ortodoxia oriental de minha esposa — com sua liturgia tradicional, seus ensinamentos patrísticos, sua comunhão dos santos e seus milagres — estão mais vivos do que Quinn jamais saberá — e isso no coração da “planetização” e do “esperanto religioso”, a área da Baía de São Francisco.
E então, aparentemente sem qualquer escrúpulo de consciência, Quinn subverte todo o trabalho de vida de Guénon e Coomaraswamy, bem diante de nossos olhos — homens que ele afirma respeitar. Na página 302, referindo-se às objeções de Guénon e Coomaraswamy a “uma fé sincrética universalmente aceitável, incorporando tudo o que há de ‘melhor em cada fé’”, ele diz:
Mas, porque a base de uma cultura planetária — se esta deve ser uma nova cultura Tradicional — deve ser uma consciência planetária espiritualmente orientada, e porque esta última deve conter princípios sagrados inerentes, comuns e representativos das principais religiões do mundo, a conclusão inevitável é que os primeiros princípios da metafísica natural, que sozinhos satisfazem esses pré-requisitos, devem desempenhar um papel primário que, à primeira vista, pode parecer ser tal “fé sincrética universalmente aceitável”.

E nas páginas 303–304, ele afirma que, se o derramamento sem precedentes da philosophia perennis ou theosophia — a Tradição — nos séculos XIX e XX foi o progenitor de uma nova Tradição viva planetária ortodoxa... então, com base nas obras de suas vidas, Guénon e Coomaraswamy teriam sido contribuintes-chave de qualquer futura cultura Tradicional planetária — uma ironia sutil à luz de sua posição sobre o “esperanto religioso”.

E então:
A planetização já começou — tanto tecnológica quanto conceitualmente — como vimos. Mas a visão de uma cultura planetária baseada nos preceitos da cultura Tradicional, conforme delineada por Guénon e Coomaraswamy, é uma nova entrada no campo do futurismo.

É também uma nova entrada no campo da mendacidade: Tradição sem Tradições seria como humanidade sem seres humanos. Quão certo estava Walter Benjamin quando disse: “Os mortos não estão seguros”!

Nas páginas 304–305, Quinn revela seu verdadeiro objeto de adoração:
Por definição, a estrutura social da cultura planetária Tradicional deve ser hierárquica, e desta Tradição se refere apenas a uma elite espiritual determinada unicamente pela virtude da capacidade, cuja função será transmitir, por assim dizer, os princípios metafísicos superiores e a doutrina que deles se desdobra... Presumivelmente, este será o papel de cientistas/metafísicos avançados... e/ou religiosos e estudantes de filosofia — como Guénon, por exemplo — que se concentram nesses assuntos.

Mas uma hierarquia de castas tradicional e uma meritocracia, tal como Quinn imagina — e falsamente equipara à Tradição — são duas coisas muito diferentes. Brâmanes e Kshatriyas são o produto de nascimento meritório, não de competição meritocrática impiedosa. Na página 39 de The Revolt of the Elites, Christopher Lasch fala da “arrogância do poder”, à qual os “melhores e mais brilhantes” são congenitamente viciados, e diz:
Essa arrogância não deve ser confundida com o orgulho característico das classes aristocráticas, que repousa sobre a herança de uma linhagem antiga e sobre a obrigação de defender sua honra. Nem o valor e a cavalaria, nem o código do amor cortês e romântico, com os quais esses valores estão intimamente aliados [isto é, os valores dos “Kshatriyas” ocidentais], têm lugar na visão de mundo dos melhores e mais brilhantes. Uma meritocracia não tem mais uso para a cavalaria do que uma aristocracia hereditária tem para o intelecto. Embora vantagens hereditárias desempenhem um papel importante na conquista de status profissional ou gerencial, a nova classe deve manter a ficção de que seu poder repousa exclusivamente na inteligência. Por conseguinte, tem pouco senso de gratidão ancestral ou de obrigação de corresponder às responsabilidades herdadas do passado. Considera-se uma elite autoconstruída, devendo seus privilégios exclusivamente a seus próprios esforços.

E, na página 44:
Uma aristocracia do talento — ideal superficialmente atraente, que parece distinguir as democracias das sociedades baseadas em privilégios hereditários — revela-se uma contradição em termos: os talentosos retêm muitos dos vícios da aristocracia sem suas virtudes. Seu esnobismo carece de qualquer reconhecimento de obrigações recíprocas entre os poucos favorecidos e a multidão. Embora estejam cheios de “compaixão” pelos pobres, não se pode dizer que subscrevam à teoria da noblesse oblige, que implicaria uma disposição de fazer uma contribuição direta e pessoal ao bem público.

Quando Quinn diz que “a estrutura social da cultura planetária Tradicional deve ser hierárquica”, ele se refere necessariamente a um desenvolvimento futuro no ciclo presente ou à Idade de Ouro do próximo ciclo; nas páginas 303–304 ele diz que não tem certeza se os sinais da planetização apontam para o advento de um novo avatara (isto é, um novo ciclo), ou para o desenvolvimento das doutrinas de Blavatsky e dos Tradicionalistas em uma nova cultura Tradicional planetária. Mas, segundo os Tradicionalistas, a Idade de Ouro de qualquer novo ciclo é não-hierárquica. Nas palavras de Martin Lings (Ancient Beliefs and Modern Superstitions, p. 49): “A Idade de Ouro é, por definição, a era em que todos os homens estão ‘acima da casta’.” Assim, Quinn está errado nisso.

E se ele está falando de um desenvolvimento futuro de uma cultura Tradicional planetária hierárquica dentro deste ciclo, então ele é universalmente contradito pela Tradição, que vê o sistema de castas como uma forma de prolongar a glória da Idade de Ouro em períodos posteriores, mas reconhece que a hierarquia tradicional de castas deve tornar-se cada vez mais impossível à medida que o Kali-yuga progride, visto que a maioria dos homens caiu agora “abaixo da casta”, assim como na Idade de Ouro estavam “acima” dela.

E a “restauração” predita por Guénon, a ocorrer diretamente antes da dissolução do ciclo, é um breve anúncio do ciclo por vir, não um “milênio” terreno dos últimos dias — crença que, segundo as autoridades cristãs ortodoxas, constitui a heresia do “quiliastismo”. Assim, Quinn está errado também aí.

Portanto, a única coisa à qual ele possivelmente pode estar se referindo é ao que René Guénon chama de “contra-hierarquia”: o reino do Anticristo. Nas páginas 325–326 de The Reign of Quantity and the Signs of the Times, Guénon escreve:
Já se pode ver esboçada, em várias produções de origem ou inspiração indubitavelmente “contra-iniciática”, a ideia de uma organização que seria como o contraparte — mas, pelo mesmo motivo, também a falsificação — de uma concepção tradicional como a do “Sacro Império”, e uma tal organização deve tornar-se a expressão da “contra-tradição” na ordem social; e por razões semelhantes o Anticristo deve aparecer como algo que poderia ser chamado, usando a linguagem da tradição hindu, de um Chakravarti invertido... Seu tempo certamente não será mais o “reino da quantidade”... ao contrário, será marcado, sob o pretexto de uma falsa “restauração espiritual”, por uma espécie de reintrodução da qualidade em todas as coisas, mas de uma qualidade invertida em relação ao seu significado normal e legítimo. Após o “igualitarismo” de nossos tempos, haverá novamente uma hierarquia visivelmente estabelecida, mas uma hierarquia invertida, de fato uma verdadeira “contra-hierarquia”, cujo cume será ocupado pelo ser que estará, na realidade, situado mais próximo do que qualquer outro do próprio fundo do “poço do Inferno”.

Tentando colocar o fluxo contemporâneo das forças sociais em uma sentença, cheguei a: “A globalização da elite leva à balcanização das massas.” Nas palavras de Christopher Lasch (pp. 47–48):
O mundo do final do século XX apresenta um espetáculo curioso. Por um lado, está agora unido, por meio da agência do mercado, como nunca esteve antes. Capital e trabalho fluem livremente através de fronteiras políticas que parecem cada vez mais artificiais e inexequíveis. A cultura popular segue em seu rastro. Por outro lado, lealdades tribais raramente foram promovidas de modo tão agressivo. Guerras religiosas e étnicas irrompem em um país após o outro: na Índia e no Sri Lanka; em grandes partes da África; na antiga União Soviética e na antiga Iugoslávia.

E, eu acrescentaria, em Oklahoma City, onde as milícias secessionistas dos estados das planícies e das montanhas, em grande parte cristãs e supremacistas brancas, flexionaram seus músculos. Aquilo que Quinn caracteriza como “etnocentrismo e xenofobia pandêmicos, paroquialismo, tribalismo e solipsismo de grupo”, que tão facilmente pode ser retratado como uma resistência puramente negativa e reacionária às maravilhas da planetização, é na verdade inseparável dela. Dada a verdade metafísica de que a manifestação, considerada em sua forma e não em sua essência, não é o Princípio, ela deve revelar a Unidade Divina em modo múltiplo; uma multiplicidade de culturas e de revelações religiosas, assim como uma multiplicidade de indivíduos humanos, é metafisicamente necessária. Portanto, toda tentativa de homogeneizar artificialmente a cultura e a religião mundiais deve ser compensada por fragmentação e conflito; quando uma multiplicidade orgânica é suprimida, o princípio sobre o qual ela se baseia precisa reafirmar-se, mas em uma forma negativa. Em outras palavras, é impossível que a planetização triunfe em seus próprios termos. No momento em que parecer ter triunfado, sua instabilidade terá atingido massa crítica, e ela simplesmente se dissolverá. Assim, quando Quinn, na p. 305, diz que
uma futura cultura Tradicional planetária... deve ser unânime — aceita e participada por todos — pois sem essa unanimidade não poderia ser considerada Tradicional,
ele não apenas inverte completamente o significado da palavra “Tradicional”, e desmente sua ampla lamentação, na p. 284, sobre
“poluição” cultural (e/ou culturicídio) ... por conquista militar, dominação econômica, (“neocolonialismo”, ou qualquer outra forma de hegemonia ou imperialismo impostos),
como também deposita sua fé em algo que, felizmente, não acontecerá.

Além disso, na mesma página, ele fundamenta a capacidade de cada indivíduo, em tal “cultura Tradicional planetária”, de “ver a unidade, a sacralidade, a unicidade da vida” em “sua aceitação universal como um fato científico” [itálico meu]. Isto, é claro, é uma inversão direta do significado de Tradição. A visão da unidade e da sacralidade da vida só pode ser estabelecida pela Intelectuação e pela Revelação, não por experimento científico. Há gerações sabemos que o oxigênio que respiramos é produzido pelas florestas da terra; isso nos impediu de derrubá-las?

Quando li pela primeira vez a versão extremamente plausível de William Quinn Jr. sobre o futuro, embora estivesse horrorizado, senti-me tentado. Fui tentado, primeiro, ao desespero, pois, segundo Quinn, tudo o que amo é estéril e morrerá, enquanto tudo o que odeio é demasiadamente fértil e inevitavelmente triunfará. Meu Islã, meu Sufismo, morrerão, assim como a Ortodoxia russa e o hesicasmo de minha esposa. O futuro pertence à planetização, às elites globais, a uma “espiritualidade” genérica e mundialmente híbrida de técnicos psíquicos, aos nossos mestres Nova Era inteligentes e competentes — não aos pobres excêntricos desequilibrados e supersticiosos cuja única função foi destruir todas as tradições sagradas para que aqueles Homens Superiores pudessem assumir o controle. E então — por um instante — senti a segunda tentação: se você não pode vencê-los, junte-se a eles. Se o fizer, talvez seus escritos terão alguma pequena influência sobre o futuro cinzento e terrível adiante. Você pode não ser salvo, mas ao menos será — lembrado.

Pela graça de Deus, venci essa tentação. Que eu e minhas esperanças mundanas sejamos esmagados, eu disse; ao menos terei permanecido fiel à Verdade conforme Deus me deu luz para vê-la, porque essa Verdade é eterna. Aconteça o que acontecer no terreno da história humana, Aquele Uno permanecerá inviolado, Senhor dos mundos, dono do Dia do Juízo. Tudo perece, exceto Seu Rosto.

E então algo interessante aconteceu. Assim que me resignei, e às minhas tradições, à destruição inevitável, vi que essa destruição está longe de ser inevitável. Se o Cristianismo pôde sobreviver ao Império Romano; se o Judaísmo pôde sobreviver ao Faraó, ao cativeiro babilônico, ao terror nazista; se a religião dos Lakota pôde sobreviver ao “destino manifesto” da raça anglo-saxã, então o Islã e o Sufismo também podem sobreviver. E o Cristianismo Ortodoxo. E talvez até o Budismo Tibetano. Não, talvez, como princípios regentes de civilizações inteiras, mas como “caules” ocultos que conectam o mundo da manifestação ao seu Princípio.

É claro que a Verdade revelada e as Tradições que a transmitem durarão até o fim dos tempos, pela mesma razão que o sopro da vida deve durar até a morte do corpo — porque sem isso, a vida não pode continuar. Se, segundo o Sufismo e o Hassidismo, o mundo é mantido na existência por seus santos ocultos, talvez o mesmo possa ser dito de suas tradições ocultas. Se o Cristianismo deve retornar às catacumbas; se, como disse o Profeta (sobre ele a paz), “o Islã começou no exílio e terminará no exílio: bem-aventurados os que estão no exílio!”, então que assim seja. E se a batalha conhecida como Armagedom está destinada a ser travada no campo da história, como com toda certeza está sendo travada agora na linha divisória que atravessa diretamente cada alma humana, então, quando o chamado vier — não o chamado desta ou daquela agenda sociopolítica, mas o relâmpago que sai do Oriente e brilha até o Ocidente — e se eu viver para vê-lo, então estarei pronto. Ya Mahdi! Ya ‘Isa!

Sobre a Guerra Invisível
A Escola Tradicionalista, e seu campo circundante de influência onde cresce continuamente o interesse pela “filosofia perene”, não estão isentos da pressão das forças que, no presente, atuam para destruir e/ou perverter todas as expressões da verdadeira espiritualidade. Antes, se é exato dizer que o Tradicionalismo — quer o identifiquemos exclusivamente ou não com a Escola Tradicionalista tal como hoje constituída — representa a plenitude da verdade metafísica, é de se esperar que as forças tendentes a perverter a doutrina sejam mais ativas no mundo Tradicionalista do que em qualquer outro lugar. A “guerra invisível” em que as espiritualidades tradicionais se encontram atualmente empenhadas não é apenas contra as paixões da alma inferior, mas também contra forças psíquicas objetivas — os Jinn, digamos, ou ao menos aqueles dentre eles que se opõem ativamente a Deus — que exploram essas paixões. Isso, é claro, sempre foi verdade. Mas o esforço global e concertado daquilo que Guénon chamou de “infra-psíquico” para perverter todas as organizações religiosas e espirituais válidas mediante a inversão do simbolismo religioso teve de esperar até “a undécima hora” para aparecer em sua forma verdadeira, inegável e terminal.

São Paulo disse o melhor: “não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os dominadores das trevas deste mundo, contra as maldades espirituais nos lugares celestiais” (Ef 6,12). Precisamos compreender que o Tradicionalismo estará necessariamente sob ataque num mundo como este, e que grande parte desse ataque ocorrerá no âmbito sutil. Mas admitir a realidade desse nível das coisas requer grande equilíbrio. A paranoia, e o fanatismo resultante, são fruto de: (1) situar a “agenda” percebida no nível ontológico errado; e (2) esquecer que tudo isso é uma manifestação legítima dos últimos tempos, e que, em última análise, nada acontece que não seja a vontade de Deus. Se atribuirmos a seres humanos o que são na realidade ações dos Jinn kafir, e aos Jinn o que é melhor entendido como ações de Deus, então estamos paranoicos. Contudo, se usamos a verdade de que todos os eventos são vontade de Deus para negar as ações dos Jinn, e a verdade de que alguns Jinn estão em guerra com a religião para negar as ações de grupos humanos reais — os “agentes da contra-iniciação” de Guénon — então estamos perigosamente complacentes. Tal complacência pode não passar de um modo de negar o medo que sentimos diante das forças psíquicas soltas no mundo nestes derradeiros dias, forças que nos tentarão ou a buscar a bênção dos “principados e potestades”, sejam materiais, sociais ou psíquicos — pois a vida fora dos termos por eles definidos será feita para parecer desesperançada, improdutiva ou tola, senão completamente impossível — ou a desafiar os “dominadores das trevas deste mundo” de maneira simplista, ingênua e/ou orgulhosa, tornando-nos assim seus agentes no próprio ato de os combater. É importante lembrar aqui que somos chamados a ser “sábios como as serpentes” tanto quanto “simples como as pombas”, e que enfrentar astúcia diabólica apenas com inocência, nobreza e coragem é cortejar a destruição.

Em tempos como estes, uma análise crítica das forças sociais e psicológicas coletivas, bem como (na medida do possível) das “agendas” que emanam do âmbito psíquico sutil, pode ser simplesmente outra forma de exame de consciência. Onde o mal do mundo, onde o regime vindouro do Anticristo, estabeleceu o seu ponto de apoio em mim? A expressão da Verdade principial não é, e nunca pode ser, caso de propaganda; não é um ato sociopolítico, mas litúrgico. O “valor de face” desse trabalho está depositado em outro mundo — misteriosamente presente no Centro deste — onde a traça e a ferrugem não corroem, nem os ladrões arrombam e roubam.

Escatologia Comparada
A ESCATOLOGIA é a ciência de quatro “últimas coisas”: a morte individual; o destino individual no além; o fim deste mundo ou ciclo de manifestação; a renovação da vida e da existência após esse fim. Este ensaio trata das duas últimas — do apocalipse, da reabsorção das formas por seus arquétipos celestes, e da remanifestação dessas formas na “Idade de Ouro” do ciclo por vir. Neste capítulo comparo o saber escatológico de oito tradições: o zoroastrismo, o hinduísmo, o budismo, o judaísmo, o cristianismo, o islã, os Hopi e os Lakota. Vistas sinopticamente, as profecias dessas oito tradições aparecem como raios, ou facetas, de uma única Forma.

Segundo um hadith de Muslim, conforme parafraseado por William Chittick,
Deus aparecerá na ressurreição em uma multidão de formas, mas Suas criaturas O negarão até que Ele apareça numa forma que corresponda à sua própria crença. Somente os homens perfeitos, cujos corações abarcam todos os Nomes Divinos em perfeito equilíbrio, reconhecerão Deus em qualquer forma que Ele manifeste.

Saoshyant vs. Angra Mainyu:
Eschatologia Zoroastriana

As profecias dos “fins dos tempos” de muitas tradições predizem uma degeneração da espiritualidade, da civilização e do meio ambiente conduzindo a um conflito apocalíptico. Mas parece provável que Zarathushtra (Zaratustra) tenha sido o primeiro a condensar todas as forças contrárias à religião e à vida humana em uma única figura: Angra Mainyu (posteriormente chamado Ahriman). Muitos deuses antigos tinham seus antagonistas sombrios; Set, por exemplo, era o irmão e inimigo do Osíris egípcio. Mas a maioria desses antagonismos era vista em termos do ciclo anual das estações, ou dos feitos heroicos de um salvador sustentador do mundo, como o Krishna subjugador de demônios. Zaratustra, porém, concebeu a luta da luz contra as trevas em termos de todo o ciclo da manifestação, vislumbrando uma vitória definitiva das forças da luz no fim do tempo, durante o evento apocalíptico chamado em persa antigo Frashegird. Assim, muitos estudiosos veem o zoroastrismo como o ancestral original da escatologia judaico-cristã, e Angra Mainyu como o protótipo tanto de Satanás quanto do Anticristo. O vindouro salvador escatológico, Saoshyant, é o equivalente zoroastriano do Kalki Avatara hindu, do Messias judaico, do Cristo da segunda vinda, do Mahdi muçulmano, e semelhante em muitos aspectos ao Buda futuro, Maitreya.

A teofania central no zoroastrismo é o fogo, que é também o agente primordial do Juízo Final. No relato do Frashegird no Bundahish, um grande meteoro atingirá a terra [cf. Ap 8,10–11; 9,1 ss.] e acenderá o fogo escatológico. Rios de metal derretido fluirão. Aos justos, parecerão leite morno; aos ímpios, metal fundido. Os sábios experimentam a chama de Ahura Mazda (“Senhor da Sabedoria”) como luz — isto é, iluminação; os falsos, como fogo punitivo. De acordo com as escrituras zoroastrianas chamadas Yashts, algumas das quais se crê remontarem a c. 2000 a.C.:
Para que os mortos se levantem, Aquilo que Vive, o Indestrutível, virá, e o mundo será feito maravilhoso segundo o seu querer... Quando Astvatereta [Saoshyant] sair do Lago Kansaoya, mensageiro de Mazda Ahura, filho de Vispa-tauvairi [sua mãe virgem], brandindo a arma vitoriosa... então expulsará a Drug [“Engano”, epíteto de Angra Mainyu] do mundo de Asha [Lei Divina]. Ele contemplará com sabedoria, ele verá toda a criação... ele contemplará com olhos de sacrifício todo o mundo material, e atentamente tornará todo o mundo material imperecível... Angra Mainyu, de obras más, fugirá, despojado de poder. YASHT 19

Pergunta-se se o pahlavi drug ou druj está relacionado à palavra siríaca daggal, que também denota “engano”, e da qual dajjal, o nome árabe para o Anticristo, é derivado.

Profetizar que Saoshyant imortalizará o mundo material por meio da vigilância, e fitando-o com sabedoria e com olhos de sacrifício, é dizer que o mundo será transformado, via o sacrifício do ego humano, de um objeto material literal em teofania, uma visão dos Nomes eternos de Deus; ele será novamente visto como Adão o viu no Éden. Nas palavras de Blake, de The Marriage of Heaven and Hell:
A antiga tradição de que o mundo será consumido pelo fogo no fim de seis mil anos é verdadeira... Pois o querubim com sua espada flamejante é por este meio ordenado a deixar sua guarda da árvore da vida, e quando o fizer, toda a criação será consumida, e aparecerá infinita e santa, ao passo que agora aparece finita e corrupta. Isso se cumprirá por um aprimoramento do gozo sensível.

A função do Homem é agir como o olho de Deus sobre o mundo criado, unindo-o ao seu Arquétipo por meio da contemplação divina, e só secundariamente trabalhar, em linha com essa visão contemplativa, com as forças e condições naturais. À medida que a consciência humana é purificada no fogo espiritual e escatológico, o mundo perderá sua “materialidade” literalista (que, como negação pura, não é em si capaz de ser salva) e se tornará aquilo que sempre foi, um paraíso imortal. Esta restauração apocalíptica do mundo natural é muito próxima da ideia da redenção do cosmos no Cristianismo Ortodoxo oriental, onde o sacramento da Eucaristia — pelo qual a Encarnação e a Redenção de Cristo são propagadas por todo o espaço e tempo — é às vezes identificado com a transfiguração do universo. Nas palavras do teólogo ortodoxo Olivier Clément:
O mundo foi criado como um ato de celebração, para que pudesse compartilhar da graça e tornar-se Eucaristia por meio das oferendas dos seres humanos. E é precisamente isso que Cristo, o último Adão, realizou. Por sua morte O tikkun messiânico, por exemplo, é pós-milenarista; na Cabala luriânica, o Messias vem quando tivermos nos purificado suficientemente por meio de nossas próprias ações; ele é um reflexo automático dessa pureza. Por outro lado, os movimentos messiânicos de Bar Kochba e de Sabbatai Zevi — o primeiro político e militar, o segundo místico e espiritual — eram necessariamente pré-milenaristas. Essas concepções, assim como as do ab-rogamento versus a observância perfeita da Torá, parecem totalmente opostas. Mais uma vez, porém, é o Zohar que indica, embora de modo velado, a identidade oculta entre elas.

Seguindo a Aggadá, o Zohar vê o advento messiânico como gradual, embora não como produto de um desenvolvimento histórico. A vinda do Messias não é uma realização humana, mas um milagre divino. Segundo o Zohar, os gentios (chamados “Esaú” ou “Edom”) receberam sua iluminação de um só golpe, após o qual começaram lentamente a perdê-la. Israel, ao contrário, recebeu sua iluminação gradualmente. À medida que a perda de força e de luz entre os gentios continua, Israel crescerá em poder e conhecimento, até o ponto em que poderá superá-los e destruí-los. Depois disso, a luz divina crescerá em Israel até que todas as coisas sejam restauradas. A separação entre criatura e Criador será transcendida. O mundo retornará ao estado de Éden, e todo homem e mulher contemplará a Shekinah “olho a olho”.

Minha exegese dessa doutrina é a seguinte: os gentios, ou “Esaú”, são o mundo exterior da criação; são a própria história. “Israel”, por outro lado, é o mundo interior da alma. Segundo a doutrina hindu e greco-romana, o ciclo cósmico de manifestação começa com uma Idade de Ouro dada por Deus e depois degenera; as “nações” recebem sua iluminação de uma só vez e então a perdem progressivamente.

Essa “entropia histórica” está relacionada à entropia líquida de todos os processos físicos. A própria existência de um mundo sensível “fora” do sujeito que percebe é, de fato, uma expressão dessa entropia: se o Sol e as estrelas não estivessem se consumindo, nada veríamos; se a matéria não estivesse se desintegrando, vaporizando, erodindo e dissolvendo, nada ouviríamos, cheiraríamos, sentiríamos ou provaríamos. A matéria é entropia. O universo em expansão representa a dissipação inerente a tudo que é material, bem como o destino final de todos aqueles para quem a matéria é a realidade central.

Na dimensão interior da alma, porém, ocorre o movimento oposto. À medida que o senso de realidade se retira do mundo sensível e se coloca na escada ascendente do Ser, que é “interior” em relação àquele mundo, a atração dos sentidos e o peso literal da realidade histórica perdem força, até que a contemplação das realidades espirituais conquista e supera a força opressiva das contingências materiais; este é o retorno do “cativeiro” e do “exílio” e a entrada na “Terra Prometida”. Primeiro, elevamo-nos à compreensão do mundo sensível e material como experiência psíquica e subjetiva; em seguida, o Testemunho espiritual último dessa experiência psíquica do mundo material é progressivamente revelado. Assim como o mundo exterior está sempre se expandindo e dissipando, o mundo interior, na medida em que nele colocamos nossa atenção, está sempre sendo “recolhido”, sempre convergindo a um ponto. (Em termos sufis, o mundo exterior é o domínio da tafraqa, dispersão, e o interior é o domínio do jamʿ, reunião ou concentração.)

Esse movimento simultâneo e duplo pode ser representado por dois triângulos sobrepostos, em que o vértice do triângulo inferior (a manifestação de YHVH por meio da criação) é o ponto central da base do triângulo superior (o retorno a YHVH pela contemplação espiritual), e vice-versa. Esse diagrama é uma forma do Escudo ou Estrela de Davi (o Selo de Salomão), que é um dos emblemas do Adam Kadmon (outro sendo a Árvore da Vida cabalística das dez sephiroth), que, na dimensão escatológica, é também o Messias: a “Forma Humana Divina”, criada à “imagem e semelhança de Deus”, sendo a forma secreta de YHVH, que transcende e, portanto, abarca tanto Sua criação do cosmos quanto o tikkun universal do cosmos até sua raiz n’Ele.

Quando a “geração” do mundo exterior for totalmente culpada e corrupta — quando estiver completamente morta para nós, pois teremos morrido para ela —, então a “geração” do mundo interior será totalmente inocente, pois conhece apenas a Deus, “cujos olhos são puros demais para ver a iniquidade”. É precisamente nesse sentido que o Messias virá em uma “geração” totalmente inocente em um aspecto e totalmente corrupta em outro.

Mas o Messias, como Adão, não representa exclusivamente o triunfo da recordação interior sobre a manifestação exterior, material e histórica, mas abarca ambas as dimensões. A esperança judaica de um reino terrestre restaurado não é, portanto, simplesmente abandonada ou superada, mas totalmente transformada. Como no Apocalipse cristão, o reino messiânico — a Nova Jerusalém, esposa do Messias — representa tanto um novo céu quanto uma nova terra.

Segundo o Zohar, o Messias não virá até que as lágrimas de Esaú se esgotem. Trata-se da mesma história contada de outro modo. Jacó é “Israel”, o nome que recebeu após sua luta com o anjo em Peniel, na qual superou a corrente “descendente” da manifestação e entrou na corrente “ascendente” do tikkun, sendo estas as duas direções em que os anjos se moviam em seu sonho da Escada, tipo da Árvore da Vida cabalística. No contexto deste mundo, ele saiu da luta manco; no contexto do próximo, obteve a bênção de Deus.

O irmão de Jacó, Esaú, portanto, representa o apego à corrente descendente da criação — tão fresca e infantil no Éden —, que leva finalmente à dissipação na visão materialista das coisas, que sempre venderá seu direito de primogenitura invisível, sua parte no mundo vindouro, por “um prato de lentilhas”, os bens materiais visíveis deste mundo. (O fato de que Jacó só pôde obter a bênção patriarcal de seu pai cego, Isaac, por meio do engano representa que o caminho do tikkun é interior e esotérico. O fato de uma parte desse engano ter exigido que Jacó se vestisse com uma pele de animal para que Isaac acreditasse estar abençoando seu filho peludo, Esaú, representa a transfiguração da natureza inferior, material ou animal do homem no caminho de seu retorno ao Criador.)

A cor de Esaú, primogênito de Isaac, e também do guisado pelo qual vendeu seu direito de primogenitura, é o vermelho. O vermelho simboliza a criação, a energia vital primordial; Esaú compartilha esse simbolismo com Adão, o primeiro homem criado, cujo nome significa “barro vermelho”. Mas o vermelho dessa vitalidade primordial é também o vermelho da violência, a queda do polo da forma em direção ao polo da matéria, que termina em descida ao materialismo; por isso foi adotado pelos “vermelhos”, os marxistas. E não é o primogênito Esaú — o impulso criativo original de Deus — quem recebe a bênção, mas seu irmão mais novo, Jacó, símbolo do tikkun, a reversão do processo cosmogônico, também conhecido como o Caminho espiritual.

O esgotamento das lágrimas de Esaú representa o esgotamento do materialismo, a cessação do impulso de correr atrás do Paraíso perdido no deserto da matéria, energia, espaço e tempo. Em termos metafísicos, é o esgotamento da corrente de manifestação criadora neste ciclo.

O rabino Israel de Rizhin disse: nos dias do Messias o homem não mais lutará com seu próximo, mas consigo mesmo. A luta com o mundo exterior será substituída pela luta para conquistar o mundo interior; em termos muçulmanos, a Jihad Menor dará lugar à Maior. (W. B. Yeats também, em A Vision, previu que a era vindoura seria “antitética”, assim como a que está passando é “primária”. O caráter primário, ou a humanidade nas idades primárias, luta contra as condições; o caráter antitético, ou o homem nas idades antitéticas, luta consigo mesmo.)

O rabino Israel disse também que o mundo messiânico será um mundo sem imagens, “no qual a imagem e o seu objeto não poderão mais ser relacionados”. Em termos negativos — os da “geração totalmente corrupta” —, isso indica o nadir solipsista do pós-modernismo, onde todas as experiências são consideradas sem referente objetivo — meras imagens. Em termos positivos — os da “geração totalmente inocente” —, refere-se ao tikkun ou reabsorção de todas as coisas em seus princípios invisíveis e transcendentais.

Se imagem e objeto, ou fenômeno e númeno, ou manifestação cósmica e sua Fonte divina, não podem mais ser “relacionados” como dois termos separados, significa que estão ou totalmente divorciados ou totalmente unidos. O primeiro estado é o Inferno; o segundo, o Paraíso; a separação final entre a condição divorciada e a condição nupcial é o Juízo Final.

Maitreya: Escatologia Budista

Na maioria das escolas do budismo, o futuro Buda — seja o último Buda deste ciclo de manifestação, seja simplesmente o próximo a aparecer — chamar-se-á Maitreya, palavra que significa “luz do luar”. (Pode ser ou não significativo que o profeta Maomé, considerado perfeitamente receptivo à luz de Alá, também seja comparado à lua.)

Em Maitreya, The Future Buddha [ed. Alan Sponberg e Helen Hardacre, Cambridge University Press, 1988], minha principal fonte para esta exposição, o colaborador Jan Nattier chama Maitreya de o “ungido” herdeiro de Shakyamuni, a figura histórica que conhecemos como “o Buda”. Ele seria, portanto, ao menos no sentido etimológico estrito, um messias ou christos, que em hebraico e grego significam, respectivamente, “ungido” — embora Nattier possa estar usando a palavra de modo genérico.

Seu nome pode relacioná-lo ao salvador zoroastriano Mithra; Joseph M. Kitagawa, na mesma obra, traça paralelos entre Maitreya e o Saoshyant zoroastriano. A doutrina budista do tempo cíclico é notoriamente a-histórica, gerando previsões como “daqui a alguns milhares de anos a vida humana durará 80 mil anos”, afirmação que só pode ter sentido simbólico ou mitológico.

E enquanto a doutrina hindu dos ciclos, geralmente aceita pelos tradicionalistas via Coomaraswamy e Guénon, começa com uma Idade de Ouro, desce pelas idades de Prata, Bronze e Ferro e termina com uma dissolução apocalíptica — após a qual uma nova Idade de Ouro desce, já formada, dos mundos celestes —, os budistas veem o tempo cíclico de modo mais horizontal, como um subir e descer de vastas ondas eônicas: o ambiente cósmico vai gradualmente perdendo a capacidade de receber a verdade e depois a recupera.

A doutrina hindu dos ciclos é substancialmente a mesma que a dos gregos clássicos e, em linhas gerais, coincide com a escatologia cristã e muçulmana; a budista é partilhada pelos jainistas e foi, mais ou menos, a adotada pela Sociedade Teosófica — com a diferença de que os budistas situam a próxima Idade de Ouro a milhares de anos no futuro (cerca de 2 500 anos segundo algumas escolas, embora certos mestres tendam hoje a reduzir esse número a 500, dada a decadência dos tempos), ao passo que H. P. Blavatsky, em A Doutrina Secreta, a via como iminente.

Seja como for, a maioria dos budistas concorda com os cristãos, muçulmanos e hindus tradicionais que a nossa era atual está em declínio. Estamos nos “últimos 500 anos do dharma”, o período final do ciclo, ao fim do qual o budismo desaparecerá ou sobreviverá apenas como sombra vazia de si mesmo. A era terminará em guerra antes da aparição de Maitreya, assim como, na escatologia cristã, o Armagedom precederá a Segunda Vinda de Cristo.

Muitos, como Martin Lings, identificam Maitreya com o Kalki hindu, o décimo e último avatar de Vishnu, que virá ao fim do degenerado Kali-yuga para encerrar este ciclo e inaugurar outro — sobretudo porque a escritura hindu Bhāgavata Purāna identifica o nono avatar de Vishnu com o Buda histórico.

Os theravadins veem Maitreya como o último dos cinco Budas do presente período, o qual, embora termine com a degeneração do budismo, é considerado o “eon favorável”, em oposição à concepção hindu de nossa era como o Kali-yuga, Idade do Ferro.

Já os mahayanistas costumam atribuir Maitreya à longínqua Idade de Ouro do próximo ciclo, quando o mundo tiver finalmente se recuperado da degeneração e do fim apocalíptico deste; ele não inaugura o ciclo, mas entra nele quando o tempo está maduro. Essa versão mahayanista de Maitreya pode, portanto, ser chamada “pós-milenarista”, embora não no sentido progressista ou reformista, já que o budismo vê seus ciclos de florescimento e decadência espiritual mais como as estações de um padrão pré-estabelecido do que como produto da ação ou omissão humanas.

Os frutos do karma amadurecem mais para o avanço ou atraso espiritual do indivíduo do que para o agravamento ou melhora do mundo. Alguns budistas mahayanistas, porém, especialmente na China e no Sudeste Asiático, imaginaram Maitreya destinado a aparecer nestes mesmos “últimos 500 anos do dharma”, talvez até nesta geração, vendo-o como figura revolucionária/apocalíptica semelhante a Cristo, ao Mahdi ou ao Messias judaico — um conjunto de crenças que, como nas doutrinas análogas das religiões abraâmicas, tende a gerar lutas dinásticas ou movimentos populares de libertação liderados por “pretendentes” quase religiosos que afirmam ser o esperado Salvador budista.

Maitreya surgirá durante o reinado de um monarca mundial, um chakravartin, “aquele que gira a roda”. Jan Nattier repete a profecia de que ele será anunciado por Kāśyapa, discípulo de Shakyamuni que teria permanecido em animação suspensa através das eras, até emergir como arauto de Maitreya. (Nattier reconhece em “Kāśyapa” o nome persa “Keresaspa”, o arauto designado do salvador zoroastriano Saoshyant. Keresaspa também sairá de sua “ocultação” ou animação suspensa para cumprir seu papel.)

Segundo a escola Tendai, ele será um rei cingalês chamado Dhutta-Gamani, irmão de Maitreya e também seu primeiro discípulo. Outros dão ao rei o nome de Shanka. Segundo uma história, ele renunciará ao trono para seguir Maitreya. Como Shanka pertencerá necessariamente à casta guerreira, kshatriya, Maitreya pertencerá à mais alta casta sacerdotal, brāhmana.

Tal conjunção entre um Buda e um chakravartin ocorre muito raramente; segundo o folclore mahayanista relatado por Padmanabh S. Jaini, em seu capítulo “As etapas na carreira bodhisattva do Tathāgata Maitreya”, isso acontece “no início de cada nova ascensão dentro de um eon intermediário (antarkalpa) em um dado ciclo temporal (mahakalpa)”.

Estamos agora “no final de um antarkalpa, que se move rapidamente em direção a um pequeno apocalipse”. Assim, Maitreya encarnará num futuro longínquo, numa nova civilização sustentada por “duas rodas da lei”: a roda do mérito que conduz ao Paraíso, movida por um chakravartin, e a roda da renúncia que conduz ao Nirvana, movida por ele mesmo como Buda.

Isto pareceria ser a versão budista da satyayuga ou Idade de Ouro hindu, quando abundância mundana e bem-aventurança transcendente não são oponentes da Libertação final, como frequentemente o são para nós nesta Idade do Ferro, mas seus discípulos e servos.

A Parusia: Escatologia Cristã

Há tanta literatura cristã contemporânea relativa aos últimos dias e ao Apocalipse — especialmente da ala evangélica da Igreja — que, em vez de tentar ordenar essa profusão, limitarei-me a recorrer ao que caiu naturalmente em minhas mãos. A conversão de minha esposa à ortodoxia russa Adicionou muitos livros novos às nossas estantes, entre os quais The Apocalypse of St John: An Orthodox Commentary, do arcebispo Averky de Jordanville, baseado em muitas fontes patrísticas (notadamente o Commentary on the Apocalypse de São André, arcebispo de Cesareia, c. séc. V), e Ultimate Things: An Orthodox Christian Perspective on the End Times, de Dennis E. Engleman, que nos foi recomendado por Rama Coomaraswamy. Ambos os livros têm a vantagem de se basearem em grande parte nas fontes cristãs mais antigas e ambos caminham na linha tênue entre uma interpretação excessivamente literal e uma excessivamente alegórica da Escritura. São perfeitamente oportunos, mas não tão ligados às notícias diárias a ponto de correrem o risco de serem atropelados pelo curso dos acontecimentos. Grande parte desta seção baseia-se nos dois livros acima, suplementados por The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de Guénon.

A interpretação ortodoxa do Apocalipse e sua doutrina da escatologia em geral diverge de muitas interpretações evangélicas em dois pontos principais. Primeiro, é firmemente amilenarista. Cristo não virá estabelecer um reinado terreno de mil anos após a tribulação, como no pré-milenarismo, nem descerá para coroar um governo de mil anos da cristandade estabelecido por seus seguidores, como no pós-milenarismo. Tal milenarismo foi condenado, como a heresia do “quiliastismo”, pelo Segundo Concílio Ecumênico. Para a maioria dos ortodoxos, assim como para Santo Agostinho e a maioria dos católicos tradicionais, o “milênio” descrito em Ap 20,1–10, quando Satanás estará acorrentado, é a própria era da Igreja, e em grande parte já passou.

Em minha própria opinião, a colocação do milênio após o combate escatológico — o que levou muitos a interpretá-lo como um império cristão mundano do futuro — tem a ver com a correspondência secreta entre a Igreja Militante e a Igreja Triunfante. Se o reino de Cristo “não é deste mundo”, e se a pertença a ele se baseia em morrer com Cristo e assim participar de sua ressurreição, então os cristãos estão, em certo sentido, além do Apocalipse já agora, habitando um “milênio” celeste que não terá fim.

A segunda principal divergência em relação à escatologia evangélica diz respeito à interpretação materialista do “arrebatamento”, noção baseada, segundo Engleman, nas visões de uma escocesa, Margaret Macdonald, em 1830. Os partidários dessa doutrina citam Ap 3,10 — “também eu te guardarei da hora da provação que há de vir sobre o mundo inteiro” —, assim como 1Ts 4,15–17, segundo a qual os vivos em Cristo serão arrebatados… “nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares”, e Mt 24,29–31, quando os anjos reunirão os eleitos “dos quatro ventos, de uma extremidade dos céus à outra”.

Segundo Engleman, isso nada tem a ver com uma levitação ou desmaterialização dos cristãos para que escapem da tribulação, mas com uma “transformação espiritual instantânea”. Em apoio a isso, cita Jo 17,15: “Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno.”

Em minha própria opinião, já que em 1 Tessalonicenses os vivos serão arrebatados após a ressurreição dos mortos, para encontrá-los no ar, isso pode simplesmente referir-se à entrada dos salvos no céu após a morte. Em qualquer caso, nada tem a ver com uma dispensação especial aos cristãos permitindo-lhes escapar da grande tribulação, já que acontecerá depois que a tribulação tiver terminado. Engleman e outros cristãos ortodoxos creem que a expectativa evangélica de um milênio terreno, e a crença de que os cristãos escaparão da tribulação, são precisamente as doutrinas errôneas que levarão muitos deles a confundir o Anticristo e seu governo terreno com Cristo e seu Reino. E, eu acrescentaria, a doutrina do arrebatamento é em parte responsável pela fascinação contemporânea com “abduções alienígenas”. (A versão hippie do arrebatamento era que todos os bons hippies seriam levados para um novo mundo na “nave-mãe” alienígena.)

Engleman cita o resumo de Santo Agostinho sobre a escatologia cristã em A Cidade de Deus:
“Elias, o tesbita, virá; os judeus crerão; o Anticristo perseguirá; Cristo julgará; os mortos ressuscitarão; os bons e os maus serão separados; o mundo será queimado e renovado.”

E, embora aceite o Apocalipse como um evento tanto espiritual quanto histórico futuro, Agostinho adverte contra tomar seus símbolos literalmente demais, e especialmente contra marcar datas, já que “daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas somente o meu Pai” (Mt 24,36).

As quatro feras do Livro de Daniel que sobem do mar, Engleman as interpreta como quatro impérios mundiais. A última fera, com dez chifres, três dos quais são arrancados para dar lugar a um pequeno chifre “que proferia palavras pomposas”, é interpretada como Roma, ampliada para abranger os vários impérios mundiais que surgiram da cristandade ocidental, incluindo a vindoura Nova Ordem Mundial. Segundo São Hipólito, o “pequeno chifre” é o Anticristo. A quarta fera é análoga à Besta do Apocalipse, que tem sete cabeças e dez chifres, que muitos veem como sete reinos sucessivos e dez reis contemporâneos. O mar de onde emergem as quatro feras em Daniel e a Besta do Apocalipse é interpretado como o mar tempestuoso da humanidade coletiva. (Tendo eu a vê-lo mais como o “inconsciente coletivo”, a condição psicológica de massa da alma humana decaída, o que dá no mesmo, essencialmente. Assim como o “mar” é a psicologia de massa, o “ar” é o plano psíquico em si, habitado por aqueles seres sutis chamados na Bíblia de “potestades do ar”, geralmente considerados demoníacos.)

O império global da quarta fera em Daniel será a base de operações do Anticristo. Os judeus voltarão à sua pátria. O Templo será restaurado. Nele o Anticristo será reconhecido pelos judeus como seu Messias e, depois, como Deus. A maior parte da cristandade abandonará suas doutrinas para segui-lo.

Os tempos finais serão tempos de apostasia em massa e de engano demoníaco. Tal apostasia não pode ser detida; o melhor que se pode fazer é evitar ser influenciado por ela — o que, por si, será uma espécie de luta de vida ou morte. Quando o Anticristo surgir, será hora de retornar à Igreja das catacumbas, já que a Igreja “à vista”, até mesmo a própria Ortodoxia, em sua maior parte o adorará.

Se Satanás é o macaco de Deus, o Anticristo pode ser chamado o macaco de Cristo. Ele falsificará as experiências de vida e os milagres de Cristo — inclusive, na medida do possível, a ressurreição. Como Cristo, será um mestre. Será um rei deste mundo, enquanto Cristo é monarca de um reino que não é deste mundo; será sumo sacerdote de todas as religiões, exigindo que todos os homens o adorem como Deus. Começará seu reinado com uma demonstração de mansidão, que rapidamente se tornará um reinado de terror. Enganará muitos — inclusive a si mesmo, segundo alguns, pois não saberá que é realmente o Anticristo.

O símbolo tanto de Cristo quanto do Anticristo, segundo São Hipólito, é o leão. (É um fato interessante que o deus Legba, o “Cristo” da religião do vodu, também seja simbolizado pelo leão.) Como diz Guénon em O Reino da Quantidade,
“o Anticristo pode adotar os próprios símbolos do Messias, usando-os, é claro, em sentido invertido… Do mesmo modo, pode e deve haver uma estranha semelhança entre as designações do Messias (al-Masī
a, em árabe) e do Anticristo (al-Masīkh). … Masīkh pode ser tomado como uma deformação de Masīa, por mera adição de um ponto à letra final; ao mesmo tempo, a primeira palavra significa ‘deformado’, o que expressa corretamente o caráter do Anticristo” (pp. 326–327; n. 173).

No início do século XIX, São Nilo revelou que o Anticristo nasceria “sem a semente do homem” — por inseminação artificial ou manipulação genética, presume-se — do ventre de uma mulher má; seu surgimento será, assim, uma falsificação satânica do nascimento virginal de Jesus. Nas palavras de Guénon (The Reign of Quantity, p. 328),
“o falso é necessariamente também o ‘artificial’, e, a esse respeito, a ‘contratradição’ não pode deixar, apesar de suas outras características, de reter o caráter ‘mecânico’ que convém a todas as produções do mundo moderno, do qual ela própria será a última.”

Segundo São Hipólito, a mãe do Anticristo virá da tribo de Dã, a única tribo de Israel não mencionada no Apocalipse, e que é chamada (em Gn 49,17) de “serpente à beira do caminho, víbora pela vereda”. (O deus-serpente do vodu, Danbhala, talvez se relacione com a tribo de Dã, especialmente porque um dos muitos afluentes do sincretismo mágico do vodu foi uma forma heterodoxa de judaísmo etíope. O lugar de Dã, entre as regiões na Palestina atribuídas às tribos de Israel, fica no Norte, o que pode indicar que ele, como a serpente no Éden, tenha algo a ver com a queda do Paraíso hiperbóreo.)

O número da Besta, 666 (Ap 13,18), é interpretado (Ultimate Things, p. 140) da seguinte maneira: enquanto 7 é o número de Deus, que transcende a manifestação, 6 é o número da manifestação completa. Portanto, 666 refere-se ao “reino do homem e da natureza sem Deus” estendido aos domínios do corpo, da mente e da alma. (Guénon, em The Reign of Quantity [cap. 39, n. 7], diz que “o número da Besta” é também um número solar — mais um exemplo do princípio do “macaco de Cristo”, já que Cristo é o “Sol da Justiça”.) A Imagem da Besta em Ap 13, que a segunda besta — o Falso Profeta — faz erguer e ser adorada por todos os homens, é identificada com a imagem de cabeça de ouro, peito de prata, ventre de bronze, pernas de ferro e pés de ferro misturado com barro sonhada pelo rei Nabucodonosor (Dn 2,31–44), que cai depois de ter os pés quebrados pela “pedra não talhada por mãos” — o Reino de Deus —, e identificada ainda com o ídolo de ouro erguido pelo rei para ser adorado por todos os homens em Daniel 3. Os diferentes metais representam quatro impérios mundiais, de Babilônia a Roma; a Imagem da Besta é, assim, a totalidade do reino do homem erguido contra o reino de Deus. (Os autores tradicionalistas identificam a imagem em Daniel com as quatro idades do mundo nas tradições greco-romana e hindu. O fato de os pés da imagem serem parcialmente de barro refere-se à instabilidade ontológica do fim dos tempos. O destino final do materialismo, simbolizado pelo ferro que parece tão forte e permanente, é a dissolução, pois a matéria é a mais instável e efêmera de todas as coisas. O abandono do conceito de matéria sólida pela física moderna e a fragmentação de nossa imagem do mundo material pelos meios eletrônicos são sinais claros dessa dissolução.)

O Anticristo, segundo o Apocalipse, governará por “sete dias”, que são na verdade sete anos, embora nem mesmo esse período deva ser tomado literalmente demais.

Segundo Engleman, ele ascenderá ao poder num mundo politicamente unificado. Sua capital será Jerusalém, e seu trono, um Templo judaico renovado. (Judeus conservadores em Israel estão já agora preparados para reconstruir o Templo, e acreditam que aquele que os conduzir a reconstruí-lo será o Messias.)

Os profetas Henoc e Elias, as “duas testemunhas” de Ap 11,3–5, então retornarão e denunciarão o Anticristo. (Segundo o Antigo Testamento, nem Henoc nem Elias experimentaram a morte, razão pela qual os sufis identificam Elias com Khidr, o “profeta imortal”.) Eles serão martirizados pelo Anticristo, ressuscitarão após três dias e meio e ascenderão ao céu. Por causa de seu ministério, um remanescente dos judeus se converterá a Cristo.

Após o martírio das testemunhas, começará a Tribulação. A Besta colocará sua marca sobre todos os que a ela se submetem, sem a qual ninguém poderá comprar ou vender. O mundo será escravizado. Sobrevirão as grandes pragas do fim dos tempos. O Templo será desolado. E cristãos em toda parte serão perseguidos.

Segundo o Apocalipse e Zacarias, a batalha final será travada no vale do Armagedom, perto de Jerusalém. Satanás enganará as nações, Gog e Magog (Ap 20,7–9), e as reunirá para a batalha, onde serão destruídas por fogo do céu. O maior terremoto da história da Terra ocorrerá. O rio Eufrates secará. O arcanjo Miguel guerreará com o dragão (Satanás) “no céu”, derrotá-lo-á e o lançará fora (Ap 12,7–9).

Então Cristo, o Verbo de Deus, descerá do céu. Com seus exércitos angélicos, fará guerra contra a Besta, o Falso Profeta e seus exércitos, triunfará sobre eles e os lançará no lago de fogo (Ap 19,11–21). A Jerusalém Celeste descerá. Os mortos ressuscitarão e serão julgados. Haverá um novo céu e uma nova terra.

O Apocalipse contém um episódio fascinante sobre o qual nunca ouvi ninguém comentar. Ap 17,16–17 diz o seguinte:
“E os dez chifres que viste na besta, esses odiarão a meretriz, e a deixarão desolada e nua, e comerão as suas carnes e a queimarão no fogo.
Porque Deus pôs em seus corações que cumpram o seu intento, e tenham uma mesma ideia, e deem o seu reino à besta, até que se cumpram as palavras de Deus.”

À primeira vista, parece dizer que o próprio Anticristo, ou os dez chifres sobre sua cabeça — que são seus servos, os dez reis —, destruirão a Meretriz da Babilônia. Primeiro a Meretriz é vista montada sobre a besta (Ap 17,3); mas então os dez reis a matam, após o que — segundo a vontade de Deus — entregam seus reinos à besta. O que devemos pensar disso?

Talvez se refira a um tempo de luxo e excesso que cede lugar a um tempo de dureza, e que, por sua própria decadência, parece justificar essa dureza — como a decadência da República de Weimar deu credibilidade às medidas draconianas de Hitler. Pode também descrever uma economia mundial unificada cujo colapso, devido a contradições internas, nacionalismos ressurgentes ou outros fatores, introduz o reinado do Anticristo, que sozinho parece capaz de restaurar a ordem.

O Imam Maomé e o Profeta Jesus: Escatologia Muçulmana

(Minha principal fonte para esta seção é Islamic Messianism: The Idea of the Mahdi in Twelver Shi’ism, de Abdulaziz Abdulhussein Sachedina, State University of New York Press, 1981. As fontes primárias de Sachedina são Muhammad ibn ʿAlī al-Bāqir e Jaʿfar al-ādiq, o 5º e o 6º imames xiitas.)

Os sinais da Hora do Julgamento na tradição islâmica são muitos. A lua será fendida em duas, simbolizando a ruptura do istmo psíquico entre este mundo material “sublunar” e o próximo mundo, a barreira entre tempo e eternidade. (O desaparecimento do mar na vinda do novo céu e da nova terra em Ap 21,1 sem dúvida tem o mesmo significado; o mar é instável e sempre mutável como a psique, e a lua governa o mar.) Segundo um hadith do Profeta, os edifícios alcançarão o céu à medida que o fim se aproxima, e os homens se vestirão como mulheres. (Curiosamente, São Nilo do Monte Atos, no século XIX, também mencionou o travestismo como sinal apocalíptico; e eu acrescentaria que, como a polaridade é o princípio de toda manifestação cósmica, a erosão das diferenças sexuais é um sinal claro da dissolução da humanidade terrena.) Entre outros sinais, o Alcorão prevê um grande terremoto (Surata “O Terremoto”), como o descrito em Ap 16,18. A surata 21 (“Os Profetas”) fala de um tempo em que “Gog e Magog serão soltos e se precipitarão de toda encosta, e o verdadeiro anúncio estará próximo”; a mesma surata faz referência a uma “besta” que sairá “da terra” nos últimos dias e falará aos homens “quando a Palavra cair sobre eles”. Segundo um hadith, que soa como uma versão da moderna ideia evangélica cristã do Arrebatamento, “Deus enviará um vento frio “da direção da Síria” — o Norte —, e ninguém que tenha no coração sequer um único grão de bondade permanecerá na terra sem ser levado.” (Compare Mt 24,40–44 e 1Ts 4,17; ver também “O Cerco de Shambhala”, abaixo.) A escatologia islâmica partilha com o cristianismo a crença de que Jesus retornará no fim dos tempos. Os muçulmanos, porém, que chamam Jesus de “o Espírito de Deus” e aceitam até a doutrina do nascimento virginal, ainda o veem como um grande profeta, mas não como o Filho de Deus, já que, segundo o Alcorão, Deus “nem gera nem foi gerado”.

Junto com a segunda vinda de Jesus, os muçulmanos também esperam o advento do Mahdi, o “bem-guiado”, que os xiitas identificam com Muhammad al-Mahdi, o Décimo Segundo Imame oculto. A doutrina do Mahdi é muito mais desenvolvida no xiismo, onde alcançou status dogmático, do que no islã sunita; alguns sunitas, em reação contra a concepção xiita, chegam a repetir a tradição de que “não há Mahdi senão Jesus, o Filho de Maria”. Não obstante, segundo o grande historiador muçulmano Ibn Khaldun, em sua Muqaddima:
“Tem sido bem conhecido (e geralmente aceito) por todos os muçulmanos em toda época que, no fim dos tempos, um homem da família (do Profeta) sem falta aparecerá, alguém que fortalecerá o islã e fará triunfar a justiça. Os muçulmanos o seguirão, e ele ganhará domínio sobre o mundo muçulmano. Ele será chamado o Mahdi. Após ele, o Anticristo aparecerá, juntamente com todos os sinais subsequentes da Hora.” (Islamic Messianism, p. 14)

O Mahdi aparecerá “depois que os corações se endureçam e a terra se encha de perversidade” (cf. Mt 24,10–12). Segundo o hadith de Maomé, “ninguém se assemelhará mais a mim do que al-Mahdi”. Ele “encherá a terra de equidade e justiça, assim como ela foi cheia de iniquidade, injustiça e tirania”. Ele surgirá nos tempos finais, quando o sol nascer no Ocidente. Outro sinal de seu advento será um eclipse do sol no meio do Ramadã e da lua no fim — uma impossibilidade astronômica. Ele virá durante as fitan (“provas”), sedição e conflito civil, a tribulação dos últimos dias. A descida de Jesus durante o governo de al-Mahdi será o sinal da Hora.

Segundo fontes sunitas, Jesus matará o Anticristo:
“Ele descerá à Terra Santa num lugar chamado Afiq, com uma lança na mão; com ela matará al-Dajjal e irá a Jerusalém na hora da oração da manhã. O imame buscará ceder-lhe o lugar, mas Jesus recusará e adorará atrás dele segundo a Sharia de Maomé. Depois disso ele matará o porco, quebrará a cruz e matará todos os cristãos que não acreditarem nele. Uma vez que al-Dajjal seja morto, os Povos do Livro crerão nele e formarão uma única umma dos que se submetem à vontade de Deus. Jesus estabelecerá o governo da justiça e permanecerá por quarenta anos, depois do que morrerá. Seu funeral ocorrerá em Medina, onde será sepultado ao lado de Maomé, num lugar entre Abu Bakr e ‘Umar’.” (Islamic Messianism, pp. 171–172)

Como o Cristo do Apocalipse, al-Qāʾim al-Mahdi aquele que se levanta, o bem-guiado” — encarnará o princípio da justiça inflexível, em vez da qualidade de severidade temperada por diplomacia e misericórdia exibida pelo Profeta Maomé (sobre ele a paz). Segundo fontes xiitas, ele herdará a cota de malha do Profeta, sua lança curta e sua espada, Dhu al-Fiqar (significando “de duas pontas” ou “duplamente perfurante”), que ele deu a Ali ibn abi-Talib. Na versão xiita, é al-Mahdi, não Jesus, quem matará o Anticristo.

Segundo uma tradição de Ali, o surgimento do Anticristo, ou al-Dajjal, será precedido por um tempo de grande dureza, uma “tribulação”. Em sua testa estará escrito “Este é o kafir (‘não crente’)”, o que todos, letrados ou iletrados, poderão ler. Como Jesus, ele cavalgará um jumento. Fará soar um chamado que será ouvido de uma extremidade da terra à outra. Alegará ser Deus. No dia de seu surgimento, seus seguidores usarão algo verde na cabeça. Em um lugar chamado Afiq (assim como no relato sunita), na Síria, numa sexta-feira, três horas antes do pôr do sol, Deus fará com que ele e seus seguidores sejam mortos por “aquele atrás de quem Jesus adorará” — o Décimo Segundo Imame, o Mahdi. Esse será o início da grande revolução do Imame — aquela falsificada em 1979 pelo aiatolá Khomeini —, após a qual nenhum arrependimento será aceito (pp. 172–173).

Segundo um hadith de Jaʿfar al-ādiq, o Mahdi entrará em Meca com um turbante amarelo na cabeça e conduzindo um rebanho de cabras. Usará as sandálias remendadas do Profeta e carregará seu cajado. Aparecerá como um jovem. Irá à Caaba, onde será encontrado durante a noite por Miguel, Gabriel e uma hoste de anjos. Postar-se-á entre as colinas Rukn e Maqam, anunciar-se-á e exigirá lealdade. O povo se reunirá. Então Deus fará erguer quatro pilares de luz até os céus; todos na terra os verão e saberão que al-Qāʾim surgiu. O imame al-Hussein (neto do Profeta, o Segundo Imame), usando um turbante preto, e 12 000 xiitas de Ali ressuscitarão; (quem fizer obediência a al-Hussein antes da ascensão de al-Qāʾim é infiel). Al-Qāʾim al-Mahdi apoiará as costas na parede da Caaba e estenderá a mão, da qual uma luz irradiará. O primeiro de muitos a prestar-lhe obediência será Gabriel, seguido pelos fiéis entre os jinn, os nobres de Meca e outros.

Tudo isso acontecerá ao nascer do sol. Depois que o sol subir mais alto, uma voz do Oriente anunciará que o Mahdi chegou. A terra inteira a ouvirá. Mas, ao pôr do sol, uma segunda voz clamará do Ocidente, anunciando a vinda de um “anti-Mahdi” omíada. Muitos serão desencaminhados por esse chamado.

O Mahdi revelará o verdadeiro texto das escrituras de Adão e Sete, Noé e Abraão, bem como da Torá, dos Salmos e do Evangelho. Os seguidores dessas escrituras reconhecerão que ele as restaurou à sua verdadeira forma, como eram antes de os textos serem deturpados. Em seguida, ele lerá o Alcorão, e seus seguidores reconhecerão que nada, absolutamente nada, fora deturpado no texto do Livro. Ele derrubará a Caaba e a reconstruirá como era no tempo de Adão. Combaterá os descrentes e os matará. Matará al-Sufyan, o falso messias omíada (que pode ou não ser a mesma figura que o anterior a quem chamei de “anti-Mahdi”). Ali retornará dos mortos para habitar numa enorme tenda, grande como um país inteiro, sustentada sobre quatro pilares. Céu e terra serão iluminados. Todos os segredos serão revelados (pp. 161–166).

William C. Chittick, em Islamic Spirituality I, apresenta um comentário esotérico do sufi Al-Jili, de seu Al-Insān al-kāmil, tratando de algumas das passagens escriturísticas e tradições relativas à Hora do Juízo:
“Al-Jili interpreta os eventos que ocorrem no fim dos tempos em termos da morte voluntária ou Grande ressurreição experimentada pelo viajante espiritual. Segundo um hadith, Gog e Magog aparecerão na terra, comendo seus frutos e bebendo seus mares; uma vez mortos, a terra reviverá. Do mesmo modo, a agitação do ego e os pensamentos corruptos tomam posse da terra do coração de um homem, comem seus frutos e bebem seus mares, de modo que nenhum traço de conhecimento espiritual pode aparecer. Então os anjos de Deus aniquilam esses sussurros satânicos com ciências de Deus: a terra é revivida e dá colheita abundante. Isso é um sinal de o homem ganhar proximidade de Deus. Quanto à besta da terra, ela virá contar aos habitantes da terra as verdades das promessas concernentes à ressurreição. Do mesmo modo, o viajante alcança um estágio de desvelamento em que vem a compreender os mistérios interiores da religião; isso é um favor de Deus, para que ‘as tropas de sua fé não recuem diante dos exércitos do véu contínuo’. Assim como o povo não se convencerá da vinda da Hora até o aparecimento da besta, assim o gnóstico não compreenderá todos os requisitos da Divindade até que o espírito apareça de dentro da terra de sua natureza corporal.
O conflito entre al-Dajjal e Jesus refere-se à batalha entre o ego e o espírito, enquanto a aparição do Mahdi alude a o homem tornar-se ‘o Possuidor do Equilíbrio no ápice de toda perfeição’. Por fim, o nascer do sol no Ocidente marca a realização da perfeição humana última” (p. 401).

Várias suratas do Alcorão tratam da Hora do Juízo, entre elas “O Derrubamento” (81), “A Fenda” (82), “A Fissão” (84), “O Terremoto” (99) e “A Calamidade” (101). Eis algumas passagens relevantes que, como a maior parte do Alcorão, podem ser interpretadas tanto em termos de eventos exteriores quanto de transformação espiritual interior:

De “A Fenda”:
Em nome de Alá, o Benéfico, o Misericordioso.
Quando o céu for fendido,
Quando os planetas forem dispersos,
Quando o mar for derramado,
E os sepulcros forem revolvidos,
Uma alma saberá o que mandou adiante e o que deixou para trás…

De “O Derrubamento”:
Quando o Sol for derrubado,
E quando as estrelas caírem,
E quando as colinas forem movidas,
E quando as camelas prenhes forem abandonadas,
E quando as feras forem ajuntadas,
E quando os mares subirem,
E quando as almas forem reunidas,
E quando a menina enterrada viva for inquirida
Por qual pecado foi morta,
E quando as páginas forem abertas,
E quando o céu for rasgado,
E quando o inferno for aceso,
E quando o jardim for trazido perto,
(Então) toda alma saberá o que ela preparou…

De “A Fissão”:
Quando o céu for fendido,
E atento ao seu Senhor em temor,
Quando a terra for estendida
E tiver lançado fora tudo o que nela havia, e estiver vazia,
E atenta ao seu Senhor em temor!
Tu, por certo, ó homem, trabalhas rumo ao teu Senhor um trabalho que O encontrarás (em Sua presença)…
… Eu juro pelo arrebol do pôr do sol,
E pela noite e tudo o que ela envolve,
E pela lua quando está plena,
Que viajareis de plano em plano.
Que têm eles, então, que não creem?

Eschatologia cristã e muçulmana comparadas

Como já vimos, há muitos paralelos entre o saber escatológico muçulmano e cristão. Martin Lings, em The Eleventh Hour, cita a tradição sunita do Profeta, segundo a qual
“Um grupo do meu povo não deixará de lutar pela verdade até a manifestação do Anticristo… Quando estiverem prestes a combater, mesmo enquanto alinham suas fileiras para a oração quando ela é chamada, Jesus, o filho de Maria, descerá e os conduzirá na oração. E o inimigo de Deus, quando vir Jesus, derreter-se-á como sal que se derrete na água. Se fosse deixado, ele se derreteria em perecimento; mas Deus o matará pela mão de Jesus, que lhes mostrará seu sangue sobre sua lança.”

Dada a diferença inegável de níveis, a matança do Anticristo por Jesus obviamente faz paralelo com a história contada em muitos ícones ortodoxos de São Miguel, onde o arcanjo é mostrado no ato de matar o Anticristo — com uma lança. Ademais, quando o Mahdi se manifesta na Caaba, segundo a tradição xiita de Jaʿfar al-ādiq, o Sexto Imame (ver acima), ele recebe obediência não apenas dos fiéis, mas dos anjos e dos jinn; assim, al-Mahdi, como São Miguel, é também o líder do “exército celestial”. (Jaʿfar relata outra tradição segundo a qual o falso messias omíada será também morto por um arcanjo — não por Miguel, contudo, mas por Gabriel.) Nas tradições xiitas, como vimos, não é papel de Jesus, mas do Mahdi, matar o Anticristo, também com uma lança. O título do Mahdi, sāhib al-sayf, “mestre da espada”, liga-o ao Kalki Avatāra (ver abaixo no Bhāgavata Purāa) e também ao Cristo de Ap 19,12; 21, que diz de si nos Evangelhos: “Não vim trazer paz, mas espada.” A “espada de dois gumes” de Jesus Cristo no Apocalipse relaciona-se com Dhu’l Fiqar, a espada de duas pontas manejada tanto pelo Profeta Maomé quanto pelo Imame Ali?

Os ícones ortodoxos de São Jorge e São Miguel parecem apresentar Miguel como o arquétipo angélico de Jorge, que é seu agente ativo neste mundo. Ambos empunham a lança. Assim como Miguel mata o Anticristo, Jorge mata o Dragão que, no Apocalipse, simboliza Satanás, a quem o Anticristo serve. Os muçulmanos veneram São Jorge como idêntico ao profeta imortal sufi Khidr, a quem os sufis também identificam com Elias. Segundo o livro de Malaquias, bem como os Evangelhos, Elias deve vir para restaurar todas as coisas antes do grande e terrível Dia do Senhor. Leo Schaya identifica Elias com o Mahdi.

Lings relata o hadith de que o Anticristo será “um homem cego do olho direito, no qual toda luz está extinta, como se fosse uma uva”. Numa tradição de Ali, o olho único do Anticristo está “no centro da testa, brilhando como uma estrela” — o que encontra paralelo numa visão apocalíptica de São João de Kronstadt, em que ele foi conduzido em espírito por São Serafim de Sarov através de cenas da vinda do Anticristo. Numa cena, o Anticristo está entronizado sobre o altar em Jerusalém, presumivelmente na Igreja do Santo Sepulcro — embora o Domo da Rocha ou um Templo judaico restaurado sejam também interpretações possíveis —, usando “uma coroa de ouro com uma estrela”. (Divine Ascent, A Journal of Orthodox Faith, vol. 1, n. 1.)

O fato de o Anticristo ter visão apenas no olho esquerdo significa, segundo o sufi Najm al-Dīn Rāzī, que ele é materialista, ciente deste mundo, mas cego para o próximo. Sua percepção está cortada dos mundos espirituais superiores; ele não reconhece nada além do mundo dos sentidos. (Uma verdade semelhante é expressa nos ícones da Ortodoxia oriental, onde Satanás é sempre mostrado de perfil, com apenas um olho visível: o pecado envolve falta de perspectiva.) Mas a tradição de que o olho único do Anticristo está no centro da testa, brilhando como uma estrela, tem um significado diferente. A estrela na testa é uma representação do ājñā-chakra, o “terceiro olho”, que é o órgão da percepção sutil ou espiritual. Isso significa que o Anticristo será capaz, até certo ponto, de cooptar e perverter as faculdades de percepção superior — possivelmente apenas no nível sutil de “visão remota” e semelhantes, mas possivelmente também no nível de uma compreensão mental da verdade metafísica, ou mesmo no de uma indiferença gélida fazendo o papel de um alto desapego espiritual — uma contemplação fria e sem coração da “nudez existencial” das coisas disfarçada de profunda contemplação do Ser puro. Pode ser, em última análise, que o único nível de consciência totalmente imune à perversão seja a consciência “cardíaca” que os sufis, e os hindus, e os cristãos ortodoxos orientais chamam de “Coração”, o nível da Imagem de Deus em nós, cujo núcleo interior — o “olho do Coração” — é a Testemunha divina, o ātman. O “arrebatamento” que protege os eleitos de Deus da tribulação trazida pelo Anticristo pode, em um nível de significado, ser uma absorção no “paraíso do Coração” quando todo o resto na sociedade e na alma humana tiver sido invadido pelas trevas. Santo Agostinho, em A Cidade de Deus, define o mal demoníaco como conhecimento sem amor — o que nunca pode ser a forma mais alta de conhecimento, o conhecimento dos logoi, os protótipos de todas as coisas como existem na mente de Deus; esse grau de conhecimento, ele implica, não pode existir sem amor. Quando a falta demoníaca de amor invade a cabeça, o único refúgio é o Coração — o que não significa que a única proteção contra o pensamento é emoção intensa. O Anticristo é igualmente capaz de perverter a emoção, o que talvez seja um dos significados simbólicos da Meretriz da Babilônia. A estratégia não é abandonar a cabeça e esconder-se no Coração, mas “decapitar” — o que, em símbolo sufi, significa superar o ego obstinado — e colocá-la, por assim dizer, dentro do Coração. Em outras palavras, o conhecimento deve aprofundar-se, até que deixe de ser minha pequena tentativa individual de compreender o mundo e o Deus que o criou, para tornar-se o ato criador eterno de auto-testemunho de Deus dentro de mim e, através de mim, dentro do espelho do mundo, pois é, em última instância, esse Ato Divino de Auto-Testemunho que cria tanto o eu quanto o mundo.

O Anticristo coroado de estrela é um falso Cristo, cuja nascente foi anunciada por uma estrela; é mais um exemplo do paralelismo simbólico entre Cristo e Anticristo. Ap 2,28 diz: “E dar-lhe-ei [ao que vencer] a estrela da manhã.” Segundo o arcebispo Averky, em The Apocalypse of St. John: An Orthodox Commentary, isso significa ou que ele receberá Cristo — que em 2Pe 1,19 é chamado “a estrela da manhã” que brilha nos corações dos homens — ou que receberá domínio sobre Satanás, que em Is 14,12 é identificado com Lúcifer, a estrela da manhã.

A natureza de um só olho do Anticristo representa uma falsificação da Unidade Divina. Quando Jesus disse: “Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será cheio de luz”, referia-se ao Olho do Coração, que testemunha a Unidade de Deus e transmite a luz dessa Unidade à psique individual, da psique ao corpo, e do corpo ao universo, que assim é restaurado ao seu estado edênico, no qual o mundo apresentado pelos sentidos é experimentado como o espelho primordial dos Nomes ou Energias de Deus. Mas o olho único do Anticristo só pode ver e adorar o universo como se ele fosse literalmente Deus, misticando e glorificando a matéria para negar a Transcendência Divina — à maneira dos materialistas antirreligiosos como Carl Sagan. Aqueles que buscam unidade e estabilidade através da adoração da matéria encontrar-se-ão, no entanto, adorando o caos. Nas palavras dos Evangelhos, são os que edificam “a casa sobre a areia”: sobre o enxame de partículas subatômicas regidas pela indeterminação aleatória, bem como sobre o caos do “individualismo atômico de massa”, que é a expressão social dessa visão das coisas. A única fonte de estabilidade, a única “rocha”, é a Natureza Divina, onde as formas eternas e radiantes — os logoi de todas as coisas — repousam na mente de Deus.

Segundo a tradição xiita, o Décimo Segundo Imame, Muhammad al-Mahdi, foi “ocultado” (escondido) na infância para impedir seu assassinato, lembrando Ap 12,1–5, onde “a mulher vestida de sol” dá à luz um “filho varão” destinado a “reger todas as nações com vara de ferro”, mas que foi “arrebatado para Deus e para o seu trono” para evitar ser devorado por “um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres”. O caos mundial estará entre os sinais de seu retorno iminente. Quando ele vier, as mães que amamentam seus filhos os abandonarão de medo; cf. Mt 24,19: “Ai das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias!” É ilícito mencionar (ou revelar) o nome de al-Mahdi, perguntar onde está ou fixar o tempo de seu advento, embora muitas tradições afirmem que será num “futuro próximo”. Compare Ap 19,11–12, onde o cavaleiro no cavalo branco, chamado Fiel e Verdadeiro, “tinha um nome escrito que ninguém conhecia, senão Ele mesmo”, e Mt 24,26: “Se vos disserem: Eis que ele está no deserto, não saiais; eis que está nos aposentos interiores, não creiais”; bem como Mt 24,36: “Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, senão somente o meu Pai.” Compare também Ap 22,7: “Eis que venho em breve”, e Ap 3,12–13: “Escreverei sobre [o que vencer] o meu novo nome.”

O Mahdi trará também um novo Livro; compare Ap 5,1–2: “E vi na destra do que estava assentado no trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte, que proclamava com grande voz: Quem é digno de abrir o livro e de romper os seus selos?” Compare também o Sepher ha-Yasher ou Livro da Justiça, que, segundo a tradição judaica, será trazido por Elias nos últimos dias (ver adiante). E assim como somos advertidos em Mt 24,24–27 a não correr atrás de falsos Cristos e falsos profetas “porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e se mostra até o Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem”, também a maior autoridade do islã xiita, o Sexto Imame Jaʿfar al-ādiq, declara: Cuidado com os que afirmam [que o Mahdi já veio] antes da ascensão de al-Sufyani [o falso messias omíada, semelhante ao Anticristo] e da voz do céu; são mentirosos.”

Um paralelo interessante — que é também uma clara divergência — entre o Alcorão e o Apocalipse diz respeito a uma besta que surgirá da terra nos últimos dias. Na tradição islâmica, o Anticristo emerge da terra; na tradição cristã, do mar. (Algumas versões islâmicas, contudo, também falam do Anticristo como um demônio marinho.) Na versão cristã, assim como a Besta que é o Anticristo sobe do mar, uma segunda besta (Ap 13,11), identificada com o Falso Profeta, sai da terra e faz com que os homens recebam a marca da Besta (presumivelmente a primeira) nas testas ou nas mãos direitas. Do mesmo modo, segundo a Surata 27,82: “Quando a Palavra cair sobre eles, traremos para eles, de dentro da terra, uma besta que lhes falará.” Segundo o comentário de Ali ibn abi-Talib sobre esta passagem:
“Quando a besta aparecer, ela trará o selo de Salomão e o cajado de Moisés. Colocará o selo sobre o rosto de cada crente, deixando as palavras: ‘Este é um verdadeiro crente’; e sobre o rosto do infiel, deixando as palavras: ‘Este é um verdadeiro infiel’... Então a besta levantará a cabeça, e todos, do Oriente ao Ocidente, a verão, depois que o sol tiver nascido no Ocidente. Quando levantar a cabeça, o arrependimento não mais será aceito.”

A besta do Alcorão não é claramente nem o Anticristo nem o Falso Profeta do Apocalipse. Contudo, tanto a besta do Alcorão quanto o Falso Profeta surgem de sob a terra, da morada dos mortos, que em muitas tradições representa tudo o que foi reprimido e esquecido na alma humana individual ou coletiva. O Falso Profeta talvez simbolize o mal humano oculto nessa alma, assim como a primeira besta — o Anticristo —, que emerge não da terra do mundo humano, mas do mar do “inconsciente coletivo”, simboliza a parte dessa alma aberta a, e controlada por, um mal trans-humano e satânico: o Dragão.

Mas a besta do Alcorão parece representar a totalidade da alma humana coletiva, o bem oculto tanto quanto o mal oculto — o nafs em todos os níveis, seja mandante, acusador ou pacificado —, agora pronunciando toda a verdade de sua natureza sob a compulsão do Espírito. Assim também ocorre no Caminho espiritual, onde os viajantes “morrem antes de serem feitos morrer”: a descida da Palavra ou do Espírito faz com que tudo o que estava oculto na alma venha à plena luz; e, quando esse processo se completa, a possibilidade de ação individual — e, portanto, de arrependimento individual — termina, seja pela morte física, seja pela aniquilação em Deus. À luz da Palavra, são as obras dos homens, medidas pelo cajado de Moisés (que representa a lei), e suas disposições psíquicas, discernidas pelo selo de Salomão (que representa seu poder sobre os jinn, isto é, o domínio da psique), que testemunham de modo definitivo quem está destinado ao Jardim e quem ao Fogo. Os rostos de ambos os grupos são selados pelo anel de Salomão porque, segundo a doutrina islâmica, “os atos são julgados por suas intenções.”

Eschatologia hindu: Kalki e Cristo comparados

As escrituras hindus conhecidas como Purāas são tidas por alguns como compostas entre os séculos IV e XVI d.C. As autoridades tradicionais hindus, porém, atribuem-nas ao antigo sábio Vyāsa — também considerado autor do Mahābhārata — e as veem como versões escritas de tradições orais muito mais antigas, uma vez que são mencionadas nos Upaniads (c. 600–300 a.C.) e até nos Brāhmaas (c. 800–600 a.C.). A palavra purāa em si significa “antigo”, ou talvez “antigo-novo”, para expressar a perenidade e a atualidade sempre renovada da sabedoria primordial. Existem dezoito purāas principais: seis dedicadas a Brahmā, seis a Viṣṇu e seis a Śiva.

As purāas vaiṣṇavas contêm a doutrina hindu dos ciclos cósmicos, bem como a história dos avatāras de Viṣṇu, dos quais Krishna é provavelmente o mais conhecido. Os paralelos entre certas seções das Purāas e o Livro do Apocalipse — especialmente partes do Viṣṇu Purāa (datado do século VI por Joseph Campbell) e do Bhāgavata Purāa (século X) — são numerosos e notáveis. Essas escrituras, bem como o Bhāa Bhārata e o Agni Purāa (que é śaivita, não vaiṣṇava), contêm predições da vinda do Kalki Avatāra, o décimo avatāra de Viṣṇu no último período do ciclo, sendo os nove anteriores já passados.

Alguns estudiosos explicam essa semelhança pela influência cristã primitiva sobre o hinduísmo. Mas é igualmente provável que ambas as representações do Salvador destinado a aparecer no fim dos tempos sejam variações de uma única tradição, relacionada à doutrina do ciclo cósmico ou Grande Ano, comum aos antigos mesopotâmios, hindus, gregos, nórdicos e até aos lakotas — e provavelmente baseada na precessão astronômica dos equinócios. Joseph Campbell remonta essa tradição a cerca de 300 a.C. na Mesopotâmia, embora as listas de reis antediluvianos numerologicamente ligadas ao Grande Ano sejam muito mais antigas, e o sistema numérico que empregam, baseado no número 60, remonte a cerca de 3200 a.C.

As listas de reis sumérios e babilônios geralmente nomeiam dez reis — o mesmo número de patriarcas de Adão a Noé —, o que leva a pensar se a doutrina hindu dos dez grandes avatāras de Viṣṇu, sendo Kalki o último deste ciclo, não seria uma versão posterior da mesma constelação de ideias, sobretudo porque Noé veio ao fim de uma era e inaugurou outra. O número dez relaciona-se ao ciclo cósmico hindu, o manvantara, por sua divisão em quatro yugas: a Satyayuga, a Tretāyuga, a Dvāparayuga e a Kaliyuga. A Tretāyuga é três quartos da duração da Satyayuga, a Dvāparayuga metade, e a Kaliyuga um quarto, produzindo os números 4, 3, 2 e 1, cuja soma é dez.

Segundo o Viṣṇu Purāa:
“Quando as práticas ensinadas pelos Vedas e pelos institutos da lei cessarem, e o fim da era de Kali estiver próximo, uma porção daquele Ser divino que existe de sua própria natureza espiritual no caráter de Brahmā, e que é o princípio e o fim, e que tudo abrange, descerá à terra: nascerá na família de Vi
ṣṇuyaśas, um eminente brâmane da aldeia de Śambhala, como Kalki, dotado das oito faculdades sobre-humanas. Por seu poder sobre-humano destruirá todos os mlecchas [bárbaros estrangeiros] e ladrões, e todos cujas mentes estiverem devotadas à iniquidade. Então restabelecerá a retidão na terra; e as mentes dos que viverem no fim da era de Kali serão translúcidas como cristal. Os homens assim transformados pela virtude desse tempo serão como a semente dos seres humanos e darão origem a uma raça que seguirá as leis da era de Kta, ou era da pureza [outro nome da Satyayuga].”

Kalki, como “porção daquele Ser divino que existe... como Brahmā [o Criador]”, é evidentemente análogo — embora não teologicamente idêntico — a Cristo, o Filho de Deus Pai. Ele é chamado “o princípio e o fim”, o que é precisamente como Cristo se descreve em Ap 1,8. Sua restauração da justiça na terra assemelha-se ao novo céu e à nova terra do capítulo 21 desse livro, e as mentes “claras como cristal” daqueles que o virem evocam a Jerusalém Celeste, cuja “luz era como a de uma pedra preciosíssima, como jaspe, cristalina” (Ap 21,11).

A altura da muralha que cerca a Jerusalém Celeste, medida pelo anjo em Ap 21,17, é dada como “cento e quarenta e quatro côvados, medida de homem, isto é, de anjo”. É uma referência direta aos “144 mil redimidos da terra” (Ap 14,3) e indica que a Jerusalém Celeste é a projeção da essência “angélica” da forma humana na mente de Deus; os 144 mil redimidos são, por assim dizer, os tijolos vivos dessa Cidade. Os 144 mil, assim como os “24 anciãos” de Ap 4,4.10, sugerem não tanto uma soma numérica de indivíduos quanto uma disposição, em diferentes planos de manifestação, do arquétipo humano, a semente do Homem. (Em Mc 4,16, os indivíduos humanos são comparados a sementes.)

“Os homens assim transformados pela virtude desse tempo”, que “serão a semente dos seres humanos”, são, portanto, análogos aos 24 anciãos e aos 144 mil redimidos, se entendermos “semente” como o protótipo no plano sutil da humanidade do próximo eão — o novo céu e a nova terra —, e não como os sobreviventes dispersos de uma catástrofe material. E a ideia de que os homens serão “transformados” ecoa claramente 1Cor 15,51–52: “Seremos todos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta.”

Segue o relato de Kalki segundo o Bhāgavata Purāa:
“Quando a era de Kali, cuja trajetória é tão dura para os homens, estiver quase no fim, o Senhor aparecerá em sua forma divina (composta apenas de sattva). […] O Senhor Vi
ṣṇu, adorado por toda a criação animada e inanimada, e a Alma do universo, aparecerá (neste mundo da matéria) para proteger a virtude dos justos e eliminar (toda a soma do) seu karma (libertando-os assim). O Senhor aparecerá sob o nome de Kalki na casa do nobre Viṣṇuyaśa o mais eminente brâmane da aldeia de Śambhala. Montado num veloz cavalo chamado Devadatta […] e capaz de subjugar os ímpios, o Senhor do universo, empunhando […] os oito poderes divinos […] e dotado de [infinitas] virtudes e esplendor incomparável, percorrerá o globo sobre aquele cavalo veloz e exterminará com sua espada, aos milhões, ladrões que ostentam insígnias de realeza. Quando todos os ladrões tiverem sido exterminados, as mentes do povo das cidades e do campo tornar-se-ão puras, por respirarem as brisas impregnadas da fragrância sagrada dos pigmentos sobre o corpo do Senhor Vasudeva [Kalki]. Com o Senhor Vasudeva, encarnação da força, em seus corações, sua descendência crescerá em extremo vigor. […] Quando o Senhor Śrī Hari, o Protetor do Dharma, aparecer como Kalki, a Satyayuga [a Idade de Ouro] prevalecerá novamente.”

Martin Lings, em The Eleventh Hour, identifica Kalki com Maitreya Buda e com o Cristo:
“Assim como o cristianismo, [o hinduísmo] depende do Avatāra, isto é, da descida da Divindade a este mundo; e para a manutenção da tradição há uma sucessão de nada menos que dez Avatāras. Quanto aos tempos históricos, o sétimo e o oitavo destes, Rāma e Krishna, são os mais importantes para o próprio hinduísmo. O nono, especificamente não hindu (literalmente ‘estrangeiro’), é geralmente considerado o Buda; e o décimo, Kalki “o cavaleiro do cavalo branco” terá a função universal de encerrar este ciclo do tempo e inaugurar o próximo, o que identificou sua descida com a segunda vinda de Cristo.

O “cavaleiro do cavalo branco” aparece com o mesmo papel que Kalki no capítulo 19 do Apocalipse:
“E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro, e julga e peleja com justiça.
E os seus olhos eram como chama de fogo; e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito que ninguém sabia senão ele mesmo.” (19,11–12)
“E da sua boca saía uma espada afiada, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com vara de ferro; e ele pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-Poderoso.” (19,15)
“E vi a besta, e os reis da terra, e os seus exércitos [isto é, os ‘dezenas de milhões de ladrões ostentando insígnias de realeza’] reunidos para fazerem guerra àquele que estava assentado sobre o cavalo e ao seu exército. E a besta foi presa, e com ela o falso profeta que, diante dela, fizera os sinais com que enganou os que receberam o sinal da besta e os que adoraram a sua imagem. Os dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.
E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado sobre o cavalo; e todas as aves se fartaram das suas carnes.” (19,19–21)

Nos ícones da Ortodoxia oriental, tanto São Miguel quanto São Jorge são mostrados montando cavalos brancos, combatendo respectivamente o Anticristo e o Dragão. As semelhanças impressionantes entre a escatologia hindu e a cristã podem ser explicadas, suponho, por uma difusão de motivos. Contudo, como observou um amigo meu, nenhuma tradição integral aceita mitos ou doutrinas de fora de suas fronteiras, a menos que sejam intrinsecamente compatíveis com sua visão central. Hinduísmo e cristianismo, quando olham para o fim do Éon, fitam profundamente a mesma realidade objetiva. Nem essa revelação visionária dos arquétipos espirituais é incompatível com qualquer corrente particular de influência histórica, porque a história é providencial; o mundo eterno e espiritual é a fonte última do mundo histórico: “o tempo é a imagem móvel da Eternidade.”

Eschatologia hindu, judaico-cristã, lakota e hopi comparadas

Como já apontei, um dos maiores erros da Nova Era — que também infiltrou o cristianismo liberal — é identificar as religiões primordiais com seu próprio anti-transcendentalismo, negar implicitamente a natureza como teofania do Grande Espírito e tomá-la em vez disso como um objeto material — a “Nave Terra” — a ser adorada em si e por si. No entanto, aquelas das religiões primordiais que preservaram relativamente intacta a Tradição Primordial têm uma afinidade muito maior com as grandes religiões reveladas do que com o neopaganismo contemporâneo ou a ideologia da Nova Era. Evidência dessa afinidade pode ser vista em muitas áreas do mito e da doutrina, e uma delas é a escatologia. Tanto as tradições lakota quanto a hindu, por exemplo, partilham a doutrina de um ciclo contínuo de manifestação, cada ciclo dividido em quatro idades. Cito o autor tradicionalista Joseph Epes Brown, de seu livro The Sacred Pipe: Black Elk’s Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux, p. 9, n. 15:

“Segundo a mitologia siouana [lakota], acredita-se que, no início do ciclo, um búfalo foi colocado no Oeste para conter as águas. Todo ano esse búfalo perde um pelo, e a cada idade ele perde uma perna. Quando todos os seus pelos e as quatro pernas tiverem desaparecido, então as águas novamente irrompem, e o ciclo chega ao fim.

Um paralelo impressionante a esse mito encontra-se na tradição hindu, onde é o touro Dharma (a lei divina) quem tem quatro pernas, cada uma representando uma idade do ciclo total. Ao longo dessas quatro idades (yugas), a verdadeira espiritualidade torna-se cada vez mais obscurecida, até que o ciclo (manvantara) se encerra com uma catástrofe, após a qual a espiritualidade primordial é restaurada, e o ciclo tem início novamente.

Tanto o índio americano quanto o hindu creem que, no presente, o búfalo ou o touro está sobre sua última perna, e está quase completamente calvo. Crenças correspondentes poderiam ser citadas de muitas outras tradições. Ver René Guénon, A Crise do Mundo Moderno. [Ver também Frithjof Schuon, The Feathered Sun, Bloomington, World Wisdom Books, 1990, pp. 113–114.]”

Quanto a paralelos com a escatologia judaico-cristã, talvez o mais claro seja a doutrina lakota dos “dias sagrados vermelho e azul”. “Esses”, segundo Joseph Epes Brown, “são os dias no fim do mundo em que a lua se tornará vermelha e o sol se tornará azul. Mas, como para o homem tradicional tudo no macrocosmo tem seu correspondente no microcosmo, pode haver um fim do mundo para o indivíduo aqui e agora, sempre que ele recebe iluminação de Wakan-Tanka, de modo que seu ego ou ignorância morre, e então ele vive continuamente no Espírito.”

Segundo o profeta Joel (cap. 2, v. 31; ecoado em Mt 24,29 e Mc 13,24), “o sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor”. Ambas as tradições afirmam que a lua se tornará vermelha, e o sol certamente “escurece” se se torna azul. Ademais, o azul-escuro é identificado com, ou substituído por, o preto no simbolismo de cores de muitas nações. O Krishna de pele azul é às vezes chamado Kāla, “o negro”, e no comentário de Richard Wilhelm à sua tradução do I Ching afirma-se que “o preto, ou antes o azul-escuro, é a cor do céu”. Segundo Epes Brown, o azul (sem surpresa) é também “a cor dos céus” no simbolismo lakota.

O sol escurecido e a lua vermelha relacionam-se claramente a eclipses solar e lunar; uma lua em eclipse frequentemente mostra uma cor vermelho-opaca. Mas poucos parecem saber que a cor real do sol ao meio-dia, a olho nu — como provei a mim mesmo na infância, olhando para ele por curtos períodos —, é um azul-negro cintilante. Quanto aos significados simbólicos dessas cores atribuídas ao sol e à lua, podem ser tomados em pelo menos dois níveis. Do ponto de vista do “ego ou ignorância” quando morre, o escurecimento do sol representa o velamento do Intelecto, como quando Jesus na cruz clamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, e o avermelhamento da lua, a irrupção das paixões. Quando o Intelecto é velado, as paixões se desmandam; tais são as condições universalmente previstas para o fim da Kaliyuga. A lua é símbolo universal do mundo da psique, que se volta tanto para os ciclos “sublunares” da natureza, como sua causa próxima, quanto para o Sol do Intelecto, sua Fonte última. A segunda orientação é o sentido simbólico da lua no islã, representando não tanto a psique em si quanto o centro transcendente da psique, o “Coração” — o nível de ser do qual a Virgem Maria falava em Lc 1,46 ao dizer: “Minha alma engrandece o Senhor.” A primeira orientação é representada pelas várias deusas lunares pagãs que regem os ciclos da fertilidade.

Do ponto de vista dos arquétipos eternos, porém, sol azul e lua vermelha têm outro significado. Como vimos, René Guénon em O Reino da Quantidade apresenta o curso de qualquer ciclo de manifestação como uma descida do polo da Essência, cujo símbolo é o sol, ao polo da Substância, simbolizada pela lua. Mas Essência e Substância, como arquétipos, jamais entram elas mesmas na manifestação — a primeira por sua exaltação, a segunda por sua simplicidade. Assim como a Essência está acima da forma, e portanto é inconcebível, assim a Substância está abaixo da forma, e consequentemente é incapaz de ser descoberta ou possuída (e é por isso, incidentalmente, que a busca da física por uma “partícula última”, ou equivalente, nunca terá fim).

Na medida em que Essência e Substância se refletem no mundo manifesto, a Essência aparece (em termos aristotélicos) como forma ou protótipo, aquilo que confere forma, e a Substância como matriz ou matéria, aquilo que recebe a forma. À medida que o ciclo desce, porém, forma vai-se obscurecendo por trás dos véus da matéria, enquanto matéria adota progressivamente as prerrogativas da forma, embora apenas num sentido ilusório; à medida que as formas eternas pelas quais Deus cria o mundo material ficam ocultas, começa a parecer como se a matéria de algum modo tivesse o poder de se criar a si mesma. O azul celeste da forma escurece, enquanto a matéria assume o matiz vermelho irado do materialismo autoafirmativo; nas palavras de Charles Péguy (que condensam, em certo sentido, a doutrina das idades do mundo de A República de Platão): “tudo começa em mística e termina em política.” Forma e matéria acabam por confundir-se a tal ponto que a polaridade sustentadora do mundo entre elas desmorona, e o ciclo termina em caos. Mas quando o sol se torna azul e a lua, vermelha, isso indica uma repolarização purificadora de forma e matéria, que as devolve aos arquétipos originais. O sol azul é símbolo da Essência, ou qualidade pura, manifestando-se como ordem celeste, o princípio do Pai; a lua vermelha é símbolo da Substância, ou receptividade pura, manifestando-se como energia vital, o poder de atrair essências ou qualidades à manifestação, o princípio da Mãe. A forma já não está agora onerada pelas cascas escuras da matéria, mas revela diretamente a Essência, enquanto a matéria já não se arroga o poder de conferir forma, mas manifesta diretamente a virgindade receptiva da Substância. Assim, prepara-se o cenário para as núpcias do Pai divino e da Mãe divina, o “banquete do Cordeiro”, a geração de “um novo céu e uma nova terra”.

Joseph Epes Brown apresenta a doutrina lakota de forma vs. Essência e matéria vs. Substância da seguinte maneira:
“Assim como se faz a distinção dentro de Wakan-Tanka entre Pai e Avô, assim a Terra é considerada sob dois aspectos, o de Mãe e o de Avó. O primeiro é a terra considerada como produtora de todas as formas em crescimento, em ato; ao passo que Avó refere-se ao chão ou substrato de todas as coisas em crescimento — potencialidade. Esta distinção é a mesma feita pelos escolásticos cristãos entre natura naturans e natura naturata.” (p. 6, n. 7)

Mãe Terra, então, é matéria, e Avó Terra é Substância; Espírito Pai e Espírito Avô são forma e Essência; ou, numa oitava superior, Ser e Além-do-ser. Segundo Epes Brown:
“Wakan-Tanka como Avô é o Grande Espírito independente da manifestação, não qualificado, ilimitado, idêntico à Divindade cristã, ou ao hindu Brahma-Nirguna. Wakan-Tanka como Pai é o Grande Espírito considerado em relação à Sua manifestação, seja como Criador, Preservador ou Destruidor, idêntico ao Deus cristão, ou ao hindu Brahma-Saguna.” (p. 5, n. 6)

Os hopi também têm uma tradição de quatro mundos sucessivos, que são ao mesmo tempo idades temporais e níveis ontológicos. Segundo The Book of the Hopi, de Frank Waters, o primeiro mundo é Tokpela, Espaço Infinito. Num nível, Tokpela é o mundo do Além-do-Ser, onde Tiowa, o Absoluto informe, existe em solidão, antes da criação; noutro, é o mundo da primeira criação. (À medida que as quatro idades avançam, tornam-se menos como níveis ontológicos e mais como períodos históricos; movemo-nos do polo da forma qualitativa para o da matéria quantitativa.) Nessa feição — como está associado ao mineral sikyasvu, o ouro — é evidentemente a Idade de Ouro. Em Tokpela — talvez identificável com o paleolítico — as pessoas vivem em paz com os animais e entre si. É destruído em parte pelos enganos de Kato’ya, o formoso, descrito como “uma cobra de grande cabeça”, claramente análogo à serpente do Gênesis. (Isto é interessante, dado que os hopi estão entre as tribos menos influenciadas pelo cristianismo.) Quando o primeiro mundo começa a degenerar, os escolhidos dentre o povo iniciam sua migração; seguem uma nuvem de dia e uma estrela de noite, assim como o povo escolhido em Êxodo segue uma coluna de nuvem e uma de fogo. À medida que Tokpela é destruído pelo fogo, refugiam-se no subsolo com o Povo Formiga, análogo aos primordiais homens-formiga nascidos da terra do mito grego, os mirmidões.

Em seguida, o povo emerge do mundo subterrâneo das formigas e entra no segundo mundo, Tokpa, Meia-Noite Escura, cujo mineral é qochasiva, prata. Esta é a Idade de Prata, aparentemente o neolítico, quando artes manuais e vida aldeã se desenvolvem. O segundo mundo é destruído por água e gelo quando os gêmeos Poqanghoya e Palongawhoya, guardiões dos polos, deixam suas estações e a terra vira duas vezes. O povo novamente se refugia no subsolo com as formigas e depois emerge no terceiro mundo.

O terceiro mundo, Kuskurza, relaciona-se ao mineral palasiva, cobre — componente principal do bronze. Estamos, pois, na Idade do Bronze. Em Kuskurza, o povo superpovoa e usa seu poder reprodutivo para o mal — o cobre sendo identificado, no simbolismo tradicional, com Vênus, o princípio erótico. Desenvolvem alta tecnologia, vivem em cidades e voam sobre escudos cobertos de couro chamados patuwvotas — surpreendentemente semelhantes aos vimanas voadores descritos nas purāas hindus —, que usam como máquinas de guerra. Kuskurza, como Atlântida, é destruído pela água; continentes inteiros submergem.

Quando o terceiro mundo está prestes a terminar, a Mulher Aranha — figura algo como a shekhinah de Sotuknang, o demiurgo, o primeiro ser criado, que por sua vez é a energia ativa de Tiowa, o Criador — diz ao povo que entre em juncos ocos para escapar do dilúvio. Depois instrui-os a fazer desses juncos barcos. Conduz-lhes numa migração sobre as águas, à procura do quarto mundo. (Os barcos de junco lembram a embarcação egípcia de junco que Thor Heyerdahl usou para cruzar o Atlântico em sua Expedição Ra, provando assim que os egípcios — ou atlantes — poderiam ter povoado o Novo Mundo, embora a direção de sua jornada, Leste e um pouco ao Norte, sugira uma origem no Sudeste Asiático.) Durante essa migração, enviam aves em busca de terra, como Noé em Gênesis, mas nenhuma terra é encontrada.

Depois de parar num continente que não era seu destino verdadeiro, chegam ao quarto mundo, chamado Tuwaqachi, o Mundo Completo, onde a vida é dura. Este é o mundo que atualmente ocupamos. O mineral associado ao quarto mundo é o “mineral misto” sikyapala, análogo ao ferro misturado com barro que compõe os pés da estátua sonhada pelo rei Nabucodonosor no Livro de Daniel; assim, Tuwaqachi parece ser a Idade do Ferro. O guardião espiritual de Tuwaqachi é Masaw, que também foi o governante de Kuskurza, o terceiro mundo, e que o levou ao fim por meio de sua corrupção. Ele está aqui porque Tiowa decidiu dar-lhe uma segunda chance — que parece ter desperdiçado. O mito hopi indica claramente que este mundo também será destruído pelo abuso do poder reprodutivo e da alta tecnologia. Vemos aqui novamente, pela convergência de hinduísmo, judaico-cristianismo, Aristóteles e os ensinamentos hopi e lakota, como a metafísica tradicional, a ciência dos princípios eternos, é ao mesmo tempo primordial e universal.

Escatologia budista tibetana
A escatologia budista tibetana, notadamente a tradição que aparece no Kalachakra Tantra, difere em aspectos importantes das outras formas de budismo. Em Tibet de Thubten Jigme Norbu (Simon & Schuster, 1968), um tulku da linhagem Gelugpa e irmão mais velho do Dalai Lama, dá-se o relato seguinte, que tem afinidades claras com as escatologias de muitas outras tradições. O Shambhala Smonlam diz:
Intrépido, no meio do teu exército de deuses,
Entre tuas doze divisões,
Montas a cavalo.
Apontas tua lança para o peito de Hanumanda,
Ministro das forças do mal alinhadas
Contra Shambhala.
Assim será destruído o mal.

Shambhala é o nome de uma cidade e de um país “ao Norte” onde se crê terem se originado alguns dos ensinamentos originais do Tantrismo tibetano. No período final do ciclo, quando a religião e a moralidade tiverem degenerado e a terra se tiver tornado mais fria, a cidade de Shambhala será o único lugar na terra onde os ensinamentos do Buda serão preservados. Assim que a corrupção invasora do mundo ao redor atingir os muros da cidade, o rei-deus de Shambhala sairá cavalgando contra o líder das forças do mal e o matará.

Lhasa estará coberta de água nesse tempo. Depois que o mal for destruído, Tsong Khapa se erguerá de seu túmulo no Mosteiro de Ganden e o budismo será renovado por mil anos. Então virá o fim do mundo, que será consumado primeiro pelo fogo, depois pelo vento, depois pela água. Pouquíssimos seres humanos sobreviverão, no topo das árvores e em cavernas (falando esotericamente, por virtude de altura intelectual e profundidade espiritual). Os deuses virão do Paraíso de Ganden e levarão essas pessoas consigo; elas receberão ensinamentos espirituais e se tornarão imortais. Finalmente, quando o vento novamente revolver o oceano leitoso e o mundo for recriado, aqueles iluminados dos dias finais, salvos do ciclo anterior de manifestação, serão as estrelas no céu. (Compare Dn 12,3, segundo o qual, no fim do tempo, “os que forem sábios resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos tiverem ensinado a justiça, como as estrelas por toda a eternidade”.)

Hanumanda pareceria ser algo como um Anticristo tibetano. (Alhures seu nome é dado como Krinmati, um senhor bárbaro.) As doze divisões de seu adversário, o rei-deus, são paralelas às “[mais de] doze legiões de anjos” prontas para defender Jesus em Mt 26,53, bem como aos 12.000 seguidores de Ali que ressuscitam por ocasião da vinda do Mahdi na escatologia muçulmana, e aos 12.000 eleitos selados de cada uma das 12 tribos de Israel em Ap 7,4–8. (O número 12 sugere obviamente o Zodíaco, o que identificaria os diversos exércitos escatológicos com o que no Antigo Testamento se chama de “exército do céu” — as estrelas: “As estrelas em seus cursos combatem do lado dos justos.”) O cerco de Shambhala claramente sugere a batalha do Armagedom, quando Jerusalém será cercada por exércitos. “Reunirei todas as nações contra Jerusalém para a batalha; e a cidade será tomada…” (Zc 14,2–3). O motivo do “arrebatamento” também aparece, como se encontra tanto na tradição cristã quanto na islâmica, juntamente com o mito do milênio — a escatologia budista tibetana, segundo a presente versão, é “pré-milenarista” —, assim como a profecia de que o herói escatológico montado matará uma figura semelhante ao Anticristo com uma lança.

Segundo o relato dado por John Newman, coautor de The Wheel of Time: Kalachakra in Context (Madison: Deer Park Books, 1985), a figura “messias” e rei de Shambhala que derrota as forças do mal é Raudra Charki — que, curiosamente, é nomeado como o último dos “Kalkis”, uma linhagem de governantes de Shambhala fundada pelo primeiro Kalki, o grande Yashas, cuja rainha era Tara. Assim, ele pareceria ser pelo menos parcialmente identificável com o Avatara Kalki dos Purāas hindus. O neto de Raudra Charki, futuro governante de Shambhala, será Kashyapa, nome dado ao arauto de Maitreya na profecia mahayana acima referida.

O fato de que a terra estará mais fria durante o Cerco de Shambhala sugere o Fimbulwinter nórdico, bem como elementos no mito zoroastriano do Var de Yima (ver abaixo), do qual a lenda de Shambhala parece ser uma versão tibetana. Tanto Shambhala quanto o Var de Yima situam-se “no Norte”, fazendo delas variações sobre o tema do Paraíso Hiperbóreo.

Segundo alguns relatos tibetanos, a cidade de Shambhala fica perto do rio Oxus, na Ásia Central. Isso pareceria confirmar a tradição repetida pelo seguidor de Gurdjieff J. G. Bennett de que a palavra Shambhala, ao menos segundo uma etimologia popular, é na verdade o árabe Shams-i-Balkh, “Sol de Balkh”, nome do templo do Fogo zoroastriano na antiga cidade de Balkh, no vale do Oxus. Em um relato alternativo e possivelmente mais confiável dado por John Newman, porém, Shambhala está localizada na bacia do Tarim, diretamente ao norte do Tibete, a leste e um pouco ao norte de Balkh. Newman identifica o rio Sita mencionado nas escrituras do Kalachakra com o Tarim. Já no Vishnu Purana, Shambhala é a pequena aldeia na Índia onde nascerá o Avatara Kalki. Mas, esteja onde estiver a Shambhala quasi-geográfica, o verdadeiro sítio dessa cidade-estado milagrosa é no “Oitavo Clima”, o ‘ālam al-mithāl, o Plano Imaginal. Seu rei-deus, o Kalki, é — como o Rei Artur, os profetas imortais Khidr e Elias, o zoroastriano Yima e o ocultado Décimo Segundo Imame — mais uma versão do “Rei do Mundo” de Guénon, o arquétipo do Homem para o éon presente, entronizado no plano sutil e cercado pelo Paraíso Terrestre, que é sua emanação, sua shakti.

A tradição escatológica de muitas tradições reflete-se no espelho dessa “lenda do fim” tibetana.

Benjamin Creme, profeta do Anticristo teosófico
(Todas as citações são tiradas de The Emergence Quarterly, número de informações de base, publicação gratuita do Movimento Maitreya)

Como contraponto a essas escatologias tradicionais, devemos dedicar algum tempo a uma das mais claras escatologias invertidas contemporâneas, a de Benjamin Creme, cujos ensinamentos se baseiam nas doutrinas da Sociedade Teosófica, particularmente nas de Alice Bailey, autora de The Reappearance of Christ (1948). Creme está tão obviamente desempenhando o papel de Falso Profeta para sua figura “Maitreya” ocultada como Anticristo, que se suspeita que o faça deliberadamente. Seu “Anticristo” é provavelmente um falso Messias literal demais para ser o verdadeiro Anticristo; ainda assim, o ministério de Creme demonstra como os papéis de “Anticristo” e “Falso Profeta” estão no ar neste momento.

Creme afirma estar em contato telepático constante com o “Mestre Maitreya”, que é aquele esperado pelos cristãos como Jesus, pelos judeus como o Messias, pelos muçulmanos como o Mahdi etc. “Maitreya” desceu de seu retiro montanhês nos Himalaias em 1977 para se tornar um indiano ou paquistanês vivendo em Londres. Ele não vem como líder religioso, mas como guia para os de todas as religiões, bem como para ateus. “Um verdadeiro discípulo”, diz ele, “é aquele que respeitará as tradições. Respeite suas próprias religiões, suas próprias ideologias — em suma, sua própria forma-pensamento, e vocês experimentarão o Mestre.” Claramente, a verdade da religião, ou das ideologias seculares, não o preocupa. Nem sequer importa se você crê ou não em Deus. “Maitreya” presta homenagem à unidade transcendente das doutrinas religiosas tradicionais; seus ensinamentos, porém, contradizem repetidamente essas doutrinas. O Mestre está aparentemente “acima” de questões de verdade, e é por isso que não acredito no que ele diz. Sob a influência de sua energia, diz Creme, “cada vez mais pessoas se revoltarão, porque hábitos antigos, códigos seculares impostos à mente, devem ser quebrados. As pessoas não aceitarão soluções impostas.” Isso não me soa muito como respeito por todas as tradições e ideologias.

A comercialização e o reinado das forças de mercado são um flagelo, diz “Maitreya”. Concordo. “A nova política não será mais moldada pelos ‘ismos’ do capitalismo ou do socialismo, mas criada a partir do autorrespeito em indivíduos e nações. Liberdade, autonomia e salvação serão os objetivos de todos”, escreve Creme, “e são todos a mesma coisa. A realidade da interdependência global tornar-se-á um fato estabelecido em nossa consciência.” Bem, tornou-se. Mas o novo senso de interdependência global de hoje, que se torna cada vez mais pesado e ansioso, é precisamente produto da comercialização e das forças de mercado. E, se as duras lições da história e um entendimento elementar de psicologia ainda não nos ensinaram que liberdade e salvação nem sempre são a mesma coisa, pouco posso acrescentar. A liberdade externa às vezes serve à salvação e às vezes a mina, mas quem não estiver disposto, se necessário, a sacrificar a ação autodeterminada para salvar a alma, ainda não aprendeu a diferença entre a escravidão do libertinismo e a Libertação que só pode vir da obediência estrita à Fonte do amor e da verdade. Tal obediência é, porém, estranha a Creme. “Os políticos somente, diz Maitreya, são culpados pelo desespero dos viciados em drogas. ‘Se as pessoas estão tão pressionadas na vida que não podem nem se alimentar direito… levarão vidas desesperadas.’” Trata-se de uma meia-verdade, obviamente: não existem viciados ricos?

Creme aposta em um colapso econômico mundial começando no Japão para nos trazer à razão, despertar-nos para valores mais altos e dar a “Maitreya” a chance de assumir. Ele aparentemente espera por uma revolução mundial teosófica dos anos 2000 nos moldes da ascensão comunista durante a Grande Depressão dos anos 1930.

Foi “Maitreya” quem decretou a queda da União Soviética e pôs fim ao Apartheid na África do Sul. É ele quem está produzindo, atualmente, de algum lugar nos subúrbios de Londres, todas as aparições de anjos, da Virgem Maria, do Buda e de Cristo pelo mundo, poços de cura miraculosos, estátuas que bebem leite na Índia, caroneiros que desaparecem prevendo a Segunda Vinda e misteriosas cruzes de luz aparecendo em janelas por todo o mundo, começando no sul da Califórnia. Seu “programa” é simples: A unidade da humanidade; uma nova civilização baseada em partilha, justiça econômica e social e cooperação global; alimentação, vestuário, moradia e cuidados médicos adequados; a regeneração do meio ambiente; e o fim da fome mundial, juntamente com iluminação espiritual em massa: um Buda em cada panela. Como escreve Dennis Engleman em Ultimate Things (pp. 179–180),
“O Anticristo desenvolverá a reputação de solucionador fenomenal de problemas. Sua habilidade desconcertante de antecipar resultados e propor soluções parecerá profética e visionária a um mundo alheio a suas manipulações secretas. Guerra, perturbação econômica, injustiça social, instabilidade política, intolerância religiosa — nenhuma dificuldade escapará a seu toque suavizador.”

Quem pode discordar dessas metas elevadas? Quem, senão os supersticiosos, os retrógrados, os corruptos ou os insanos, poderia opor-se a elas? Quem, senão degenerados, dizia Hitler, poderia opor-se ao pleno emprego, a uma cultura mais espiritual que dá esperança e direção aos jovens, e ao fim das disposições vergonhosas e opressivas do Tratado de Versalhes? Quem, senão reacionários burgueses, dizia Marx, poderia opor-se a uma sociedade sem classes, baseada no princípio “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, onde ninguém se excede e ninguém passa fome? O que “Maitreya” propõe é bom — mas o bem, como é óbvio, pode ser cooptado. E o que se pode esperar de alguém que afirma estar engenheirando mudanças mundiais maciças, assim como uma manifestação global de caroneiros que desaparecem, a partir de algum lugar dos subúrbios de Londres? Ou de pessoas desequilibradas o bastante para acreditar nele?

Um tema recorrente nos ensinamentos de “Maitreya”, como nos do fundador do EST, o falecido Werner Erhard, é o fim da fome mundial. O que poderia ser mais compassivo, mais irrepreensível? Contudo, segundo Sachedina em Islamic Messianism, p. 173,
“O papel de Al-Dajjal [o Anticristo] no Fim dos Tempos é quase idêntico ao de Satanás, como explicado em fontes tradicionais, porque ele tentará as pessoas trazendo comida e água, que serão escassas naquele tempo.”

Creme aguarda com expectativa o dia em que “Maitreya” se manifestará ao mundo:
“No momento mais cedo possível, Maitreya demonstrará Sua verdadeira identidade. No Dia da Declaração, as redes internacionais de televisão estarão interligadas. Por convite da mídia, veremos o rosto de Maitreya na televisão, mas Ele não falará. Em vez disso, cada um de nós ouvirá suas palavras telepaticamente em nossa própria língua, ao mesmo tempo em que ele impressiona as mentes de toda a humanidade. Mesmo os que não o estiverem assistindo na televisão terão essa experiência. Ao mesmo tempo, centenas de milhares de curas espontâneas ocorrerão pelo mundo. Assim saberemos que esse homem é de fato o Instrutor do Mundo para toda a humanidade.”

Portanto, Creme e seus amigos teosóficos esperam encenar um evento de sugestão global em massa. Segundo Ultimate Things (pp. 134–135),
“Uma humanidade acostumada a shows de laser, televisão de alta definição e outros espetáculos ficará extasiada com o Anticristo. A mídia o amará; figuras públicas de todos os tipos se apresentarão em seu apoio. Contudo, o entusiasmo terá origens sinistras. São Inácio Brianchaninov adverte: ‘Os espíritos falsos, enviados por toda a terra, incitarão nos homens uma opinião geralmente elevada sobre o anticristo, um êxtase universal, uma atração irresistível por ele.’ Como João Batista, ‘o Precursor’, preparou o caminho para o ministério público de Jesus, um homem singularmente astuto preparará o palco para o advento do Anticristo. Essa pessoa, referida na Escritura como ‘o falso profeta’, encantará o mundo por meio de espetáculos astutamente encenados… Uma humanidade ensinada pela ciência de que tudo o que quer pode ter, e por Hollywood a crer que tudo o que vê é verdade, será enfeitiçada e mistificada pelas maravilhas do falso profeta. Suas apresentações mágicas atiçarão, e ao mesmo tempo entorpecerão, a ânsia em suas almas por verdadeiras visões celestes.” (pp. 182–183)

Nas palavras de Martin Lings (The Eleventh Hour, pp. 97–98), “Como no cristianismo, acredita-se no islã que [o Anticristo] causará corrupção, e que por seu poder de operar prodígios ganhará muitos para o seu lado.”

Segundo Creme, “Maitreya” vem surgindo gradualmente para a vista pública “a fim de não infringir o livre-arbítrio da humanidade”. Mas, segundo Engleman (p. 254),
“Diferentemente do Anticristo, que terá de enganar a humanidade e usar toda a tecnologia moderna disponível para avançar sua causa, a Segunda Vinda de Cristo causará um choque espiritual imediato em todo o mundo. ‘Não será necessário nem possível que pessoas comuniquem a notícia da vinda do Filho de Deus’, escreveu São Inácio Brianchaninov. ‘Ele aparecerá subitamente… a todos os homens e a toda a terra ao mesmo tempo.’”

Não entrarei em detalhes na “filosofia esotérica” de Creme, já que é basicamente a da Sociedade Teosófica. Citarei, porém, três passagens. A primeira é atribuída ao mestre Djwhal Khul, conforme canalizado por Alice Bailey: “Toda atividade que impulsiona o ser humano rumo a alguma forma de desenvolvimento — físico, emocional, intuitivo, social — se está adiante de seu estado presente, é essencialmente espiritual por natureza.” Mas “adiante” rumo a quê? O bandido que malha para ser um bandido mais forte, o ladrão que aguça seus sentidos e destreza manual para ser um ladrão melhor, o espião que desenvolve sua intuição para ser um espião melhor — são essas atividades espirituais? (Segundo o modo como minha própria intuição se desenvolveu, ouço no nome “Djwhal Khul” as palavras árabes Dajjāl, “Anticristo”, e qul, “recita”.)

A segunda passagem tenta definir a natureza de Deus: “O esoterismo postula que Deus é a soma total de todas as leis, e todas as energias governadas por essas leis, que compõem tudo no universo manifestado e não manifestado — tudo o que vemos e não vemos.” Contudo, isso não é esoterismo, e sim cientificismo, o familiar culto supersticioso das leis naturais e energias invisíveis que sempre aparece quando a teologia é influenciada pela ciência, ou quando a ciência popularizada é transformada em religião. O verdadeiro esoterismo, por outro lado, conhece Deus como Essência Absoluta, Perfeita e Infinita que é igualmente Pessoa, uma Realidade que em Si mesma não pode ser apreendida ou abarcada em termos de qualquer forma concebível. Deus é inconcebível não porque careça de pessoalidade, mas porque, em vez de ser esta ou aquela pessoa, Ele é a própria Pessoalidade — não como uma categoria abstrata, porém como uma Essência única. Para o “esoterismo” vulgar e confuso de Benjamin Creme, por sua vez, Deus não passa de um amontoado de tudo, um conglomerado infinito de todo isto e todo aquilo.

A terceira passagem é de interesse mais imediato:
“Segundo a Sabedoria Sem Idade, o antiCristo não é um indivíduo que vive em certo ponto do tempo, mas uma energia liberada antes do advento do Cristo. Ela vem preparar o caminho para as forças construtivas do Cristo destruindo os velhos modos cristalizados que bloqueiam o crescimento da sociedade. Embora o antiCristo seja uma energia, ele se manifesta por meio de indivíduos e assim tem feito em diferentes momentos da história, mais notavelmente por meio do imperador Nero na época romana e, mais recentemente, por meio de Hitler e alguns de seus colaboradores mais próximos. Com a derrota das potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, a obra da energia do antiCristo ficou concluída para esta era e não se manifestará novamente por mais de 3.000 anos.”

Então, se Benjamin Creme deve ser acreditado — como claramente quer ser, e com razão —, o “Mestre Maitreya” não pode ser o Anticristo! Mas Hitler, preparar o caminho para o Cristo? Hitler como João Batista, como Elias? Não me parece. Nas palavras do arcebispo ortodoxo Averky de Jordanville, tal como relatado em Ultimate Things,
“A tarefa fundamental dos servos do vindouro Anticristo é destruir o velho mundo com todos os seus antigos conceitos e ‘preconceitos’ para edificar em seu lugar um novo mundo adequado para receber seu ‘novo dono’ que se aproxima, o qual tomará o lugar de Cristo para as pessoas e lhes dará na terra aquilo que Cristo não lhes deu.”

Jamais devemos esquecer que o que parece ridículo à superfície pode ser profundamente sinistro nas profundezas; como o próprio “Mestre Maitreya” nos diz, a complacência está entre os piores vícios. O Dr. Rama Coomaraswamy, em seu ensaio “The Desacralization of Hinduism for Western Consumption”, diz o seguinte a respeito de Alice Bailey, que sucedeu Annie Besant à frente da Sociedade Teosófica, e seus planos para uma nova religião mundial:
“É interessante olhar as instruções de Bailey sobre as religiões ortodoxas do mundo. Inicialmente, os Novos Ageanos hão de pleitear liberdade religiosa em seus comunicados públicos. Só mais tarde insistirão na nova religião mundial obrigatória com que seus livros conclamam, uma religião rompendo completamente com o conceito de Jesus Cristo e de Deus Pai. Os que não a seguirem serão eliminados por meio de violência — a que ela chama ‘uma ação de limpeza’. Estamos claramente a caminho do ponto Ômega e do reinado do anticristo.”

Motivo do arauto: a vontade e o Intelecto

Na maioria das tradições escatológicas, o Messias ou Avatara vindouro é precedido por um arauto, como Jesus por João Batista. Na escatologia judaica, o Messias deve ser anunciado por Elias, um dos dois profetas do Antigo Testamento que nunca sofreram a morte, razão pela qual os contemporâneos de Jesus se perguntavam se João Batista não seria Elias de volta. A segunda vinda de Jesus deve ser anunciada pelas “duas testemunhas” do Apocalipse, identificadas com Elias e Enoque, o segundo dos dois profetas imortais do Antigo Testamento. O advento do Buda Maitreya será anunciado pelo discípulo de Shakyamuni, Kashyapa, que também permaneceu em alguma forma de “ocultação” ou animação suspensa, e o de Saoshyant por Keresaspa, que igualmente permanecerá imortal no plano de manifestação sutil até chegar sua hora. A descida do Profeta Jesus na escatologia islâmica será anunciada pelo Mahdi, que sobreviveu através das eras em animação suspensa ou “ocultação”, assim como o próprio Mahdi, na versão xiita, é anunciado pela “voz do oriente após o nascer do sol”. E, embora o Avatara Kalki não seja anunciado por uma figura específica, ele é “acolhido” por Vishnuyasa, o brâmane, em cuja casa nasce, assim como Maitreya nasce na mesma casa que o rei Dhutta-Gamani, seu irmão, ou durante o reinado do rei Shanka. (A ressurreição do grande mestre tibetano Tsong Khapa, cujo nome certamente soa como “Kashyapa” e “Keresaspa”, é um motivo semelhante, embora Tsong Khapa não seja um arauto.)

Assim, o Salvador escatológico quase sempre tem um parceiro, que geralmente chega antes dele para anunciar sua vinda. O anunciador permaneceu em animação suspensa ao longo das longas eras, enquanto o Salvador, embora de certo modo represente o reaparecimento de um Salvador anterior, também traz o sabor de um advento inteiramente novo, uma descida da Eternidade ao tempo, uma re-manifestação da Verdade salvífica, fresca dos mundos celestes. (No relato zoroastriano é Yima, o primeiro profeta, quem permanece em animação suspensa, para voltar no advento de Saoshyant.)

A relação entre o Salvador e seu arauto é também a de uma manifestação parcial e uma completa da mesma realidade. João Batista foi um profeta militante, Jesus um sacerdote e rei. O mesmo é verdadeiro de Elias vis-à-vis o Messias, ou do Messias filho de José derrotado vs. o Messias filho de Davi triunfante. No islã, o Mahdi é o arauto do profeta Jesus, pois vem antes dele. Contudo, Jesus rezará atrás de al-Mahdi, que atuará como Imame (no sentido de condutor da oração), embora isso talvez deva ser entendido como um ato de cortesia suprema, já que al-Mahdi inicialmente buscará ceder seu lugar a Jesus. E segundo o relato de al-Jili, Jesus é o militante, pois abate o Anticristo, enquanto o Mahdi que desponta após a batalha personifica o equilíbrio restaurado. O Buda Maitreya, que é um brâmane, em alguns relatos é anunciado por seu irmão e primeiro discípulo, o rei Dhutta-Gamani, e não por Kashyapa, assim como o arauto e primeiro discípulo de Jesus foi seu primo, João Batista; segundo outras versões, Maitreya está destinado a aparecer e atuar com o monarca universal Shanka. Na tradição escatológica hindu, o militante Avatara Kalki nasce na casa do brâmane Vishnuyasa.

Em todos os casos, então, temos uma parceria escatológica entre uma figura militante e uma “espiritual” ou pneumática. A polarização do Messias judeu em versões sacerdotal e régia (para tomar apenas um exemplo) é, portanto, um motivo universal. Isso pode ser explicado historicamente como produto da tensão entre o repetido fracasso das esperanças messiânicas em sua expressão política e a esperança eterna de renovação espiritual; a derrota política sempre força os derrotados a perguntar como sua intenção poderia ter sido mais pura e sua dedicação mais profunda, e tal questionamento muitas vezes leva à ideia de que só depois que o povo se purificar espiritualmente virá a salvação. É por isso que o messianismo revolucionário é frequentemente pré-milenarista, e o messianismo espiritual (na medida em que nasce da derrota revolucionária) pós-milenarista. Mas, como a própria história é a expressão fluida no tempo de princípios metafísicos eternos, as raízes da polarização entre figuras escatológicas militantes e pneumáticas devem ser buscadas em planos mais altos do ser.

Em alguns casos, o militante é o arauto e o pneumático o Salvador; em outros, é o inverso. O Cristo do primeiro advento (anunciado por João), o Buda Maitreya (anunciado por Dhutta-Gamani) e o Mahdi vis-à-vis Jesus (ao menos no relato de al-Jili) são espirituais anunciados ou precedidos por militantes. Por outro lado, o Messias judeu (anunciado por Elias), o Avatara Kalki do hinduísmo (pareado com Vishnuyasa) e o Verbo de Deus no Apocalipse, o Cristo da Segunda Vinda (anunciado por Enoque e Elias) são militantes anunciados ou hospedados por espirituais. Essa caracterização está longe de ser perfeita, obviamente, já que o Elias que anuncia o Messias foi certamente um profeta militante durante sua vida terrena, razão pela qual muitos dos judeus reconheceram a mesma qualidade no militante Batista. E, nos vários relatos muçulmanos, Jesus às vezes é o militante matador do Anticristo e al-Mahdi o restaurador do equilíbrio após a batalha, enquanto às vezes é ele quem, depois que o próprio Mahdi é vencido pelo Anticristo, o vence por sua vez e assim restaura a ordem. Mas a polarização entre militância e transcendência, por mais que se resolva numa tradição ou relato particular, permanece nitidamente em relevo.

A meu ver, o significado desse par é o seguinte: As figuras militantes representam a vontade, as espirituais o Intelecto. Vontade afirmada, vontade derrotada e Intelecto desvelado são tese, antítese e síntese; a vontade, ao menos no nível humano, deve tanto fazer sua melhor obra quanto admitir sua impotência última antes que o Intelecto aurore. No início do Caminho espiritual, o viajante quer seguir a Deus, assume plena responsabilidade pessoal. Então o nafs dominante se aglomera, mostrando à vontade individual sua impotência última; por fim Deus (se Ele assim o quiser) toma o campo e abate o nafs. Moisés mata o capataz, foge ao deserto e vê Deus na sarça ardente. Cristo ministra, é crucificado e ressuscita. Maomé recebe sua missão, é exilado para Medina, retorna a Meca em triunfo. O Messias filho de José é derrotado pelo Anticristo, que por sua vez é vencido pelo Messias filho de Davi. O Décimo Segundo Imame aparece, é ocultado, retorna no Último Dia.

Como no Caminho espiritual, assim no cenário escatológico: sob uma perspectiva, o esforço individual de uma pessoa para crescer no Espírito precede o pleno alvorecer desse Espírito; sob outra, é a dádiva livre inicial desse Espírito que só ele torna possível tal esforço. Que Moisés mate o capataz egípcio e fuja para o deserto, após o que Deus lhe fala, indica em termos esotéricos que a luta da vontade humana contra o eu inferior — ainda que tal vontade não possa triunfar em seus próprios termos (Moisés não ganhou poder pessoal ao matar o capataz, mas tornou-se um fugitivo sem lar) — deve ainda preceder o alvorecer do Intelecto Transcendente, ao qual finalmente presta obediência. A mesma verdade é simbolizada no islã pela conquista do Anticristo pelo Profeta Jesus (isto é, a superação da vontade do eu inferior pela vontade obediente a Deus e por Ele capacitada), e a subsequente restauração do equilíbrio pelo Mahdi (o alvorecer do Intelecto Divino depois que a vontade, em vitória e derrota, é pacificada), e na tradição judaica pelo Messias filho de José que vai à batalha com o Anticristo e é morto, para então ser seguido pelo Messias filho de Davi, que derrota e mata o Anticristo. Na tradição budista, o fato de o rei Shanka, da casta kshatriya ou guerreira, renunciar ao trono para seguir o brâmane Maitreya reflete a mesma doutrina. Nas palavras de Schuon (Stations of Wisdom, p. 157),
“O que separa o homem da Realidade Divina é a mais tênue das barreiras. Deus está infinitamente próximo do homem, mas o homem está infinitamente longe de Deus. Essa barreira, para o homem, é uma montanha… que ele deve remover com as próprias mãos. Ele cava a terra, mas em vão, a montanha permanece; o homem, porém, continua cavando em Nome de Deus. E a montanha desaparece. Ela nunca esteve lá.”

Noutro sentido, porém, a Verdade Divina, que o Intelecto tanto vê quanto é, não pode ser realizada a menos que a vontade lhe preste obediência. Assim, enquanto o Intelecto permanece num plano mais alto do que a vontade, a plena ativação da vontade a serviço do Intelecto representa a encarnação completa, ou realização, daquilo que no plano do Intelecto é apenas virtual em relação ao homem, embora completo e plenamente realizado em relação a Deus. Ademais, nada há de mais militante e rigoroso em seus efeitos do que o alvorecer da Verdade objetiva. A objetividade absoluta, a espada do Intelecto discriminante, é juízo perfeito e perdão perfeito, sem a mínima distinção entre ambos. Deus nada testemunha senão a Si mesmo — este é o Seu rigor — e conhece todas as coisas como a Si mesmo — esta é a Sua misericórdia.

Quando o arauto imortal e ocultado é uma figura militante, isso possivelmente representa a manutenção de uma tradição espiritual apenas no nível legalista, pareada com uma suspensão do pleno poder da obediência humana até que o conhecimento direto de Deus seja novamente desvelado. Quando o arauto oculto é uma figura pneumática, isso pode simbolizar uma guarda do saber esotérico por escolas marginalizadas ou clandestinas, ou tal saber preservado, sem o saber de seus guardiões, nas formas da religião exotérica, até que tais potenciais espirituais interiores possam novamente manifestar-se exteriormente na plenitude da vida humana.

O “breve milênio”

Os autores da escola tradicionalista que tratam mais diretamente de escatologia — René Guénon, Martin Lings e Leo Schaya — não antecipam um milênio terrestre dos derradeiros dias. Não são milenaristas. Eles veem, porém, uma “restauração” breve antes do fim do ciclo. Em Perspectives on Initiation (p. 254), René Guénon diz o seguinte sobre o advento do Mahdi:
“Além disso, essa [retificação messiânica total] terá de ser preparada, mesmo visivelmente, antes do fim do ciclo presente; mas isso só pode ser feito por alguém que, unindo em si os poderes do Céu e da Terra, do Oriente e do Ocidente, manifestará exteriormente, tanto no domínio do conhecimento quanto no da ação, o duplo poder sacerdotal e real que foi preservado através das eras na integridade de seu princípio único pelos guardiães ocultos da tradição primordial.”

E Martin Lings, em The Eleventh Hour, diz o seguinte sobre a “restauração” ou “breve milênio”:
“Após ‘uma devastação iminente em escala mundial, não total, mas ainda assim de proporções cataclísmicas, e não final, porque é ‘antes do fim’, embora haja motivos para a convicção de que ‘o fim’ em si não possa estar distante, há razão para antecipar uma ‘correção antes do fechamento do ciclo’, baseada em parte na profecia em Mt 24 referente à ‘grande tribulação como nunca houve desde o princípio do mundo’, especialmente à luz do versículo 22: ‘E se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria; mas “Por causa dos eleitos, aqueles dias serão abreviados.”

Poder-se-ia pensar que o relato muçulmano xiita da vinda, das batalhas, do triunfo final e do governo justo do Mahdi seria puramente milenarista, já que o xiismo — talvez mais do que qualquer outra tradição, exceto a judaica — concebe o evento escatológico como uma revolução contra a tirania (embora tal revolução também esteja claramente subentendida no Apocalipse cristão). E, de muitos modos, a atribuição de milenarismo ao islã xiita é justificada.

Segundo um relato, por exemplo, o Mahdi — ou seu sucessor — governará por 309 anos. Contudo, 309 é também o número de anos que os lendários Sete Dormentes de Éfeso permaneceram em sua caverna em estado de animação suspensa, o que me leva a suspeitar que esse período de tempo possa ser uma referência velada a um estado póstumo. Outro relato dá à sua regência a duração de 19 anos; uma fonte sunita diz 5, 7 ou 9 anos. Ele morrerá quarenta dias antes da ressurreição dos mortos e do Dia do Juízo. (Uma tradição correlata do “breve milênio” afirma que, em sua segunda vinda, Jesus reinará por quarenta anos após matar o Anticristo, e então morrerá.)

Também é possível interpretar o “milênio” xiita — assim como o cristão (Ap 20:1–10) — como um “reino” não deste mundo. Jafar al-Sadiq é citado dizendo, segundo uma fonte, que o Mahdi governará por sete anos; e segundo outra, que o governo de al-Mahdi durará enquanto o céu e a terra existirem, e todos os seus súditos estarão no céu ou no inferno — uma referência velada, embora clara, a um estado póstumo. A mesma fonte o cita dizendo que, após o governo do Mahdi, virá o dia da ressurreição. Mas se o seu governo é póstumo, então essa “ressurreição” deve referir-se ao mahapralaya, a reabsorção até mesmo dos mais altos paraísos formais em seu Princípio Absoluto.

O conceito de um breve milênio talvez também possa ser discernido no livro de Joel:

“E os celeiros se encherão de trigo, e os lagares transbordarão de vinho e de azeite. E restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo gafanhoto... (2:24–25)
E acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão sonhos, vossos jovens terão visões:
E também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu Espírito.
E mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça.
O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor.
E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo...” (2:28–32)

Mas qual é, se existe, a relação orgânica entre a ideia de um florescimento milenar breve imediatamente antes do fim do ciclo — lembrando o breve e terminal vigor que um moribundo às vezes demonstra — e um “reino” póstumo que não terá fim?
A resposta será evidente a qualquer um que já tenha experimentado a atmosfera de libertação jubilosa e de possibilidades infinitas que acompanha um renascimento cultural após um longo período de repressão imaginativa, ou os sinais ascendentes e os primeiros tiros de uma verdadeira revolução social justa — por mais destrutivos que esses movimentos venham a se tornar, décadas ou séculos adiante.
Tal experiência é precisamente o rompimento da Eternidade dentro do tempo transitório. Os dias da Távola Redonda são sempre breves, mas o Trono de Artur, em Avalon, permanece.
Neste mundo, um momento passa num instante; no outro mundo — que está dentro deste em Essência, assim como à frente dele no tempo — esse momento não tem fim.


O Fim e o Princípio Estão nas Mãos de Deus

As pessoas do movimento Nova Era, assim como muitos que são simplesmente secularistas, frequentemente acreditam que qualquer um que sustente a doutrina de que este mundo deve acabar na verdade deseja que ele acabe. Pensam na escatologia tradicional como uma profecia negativa autorrealizável que impede a humanidade de enfrentar e resolver seus problemas globais, e veem os crentes religiosos como maníacos rancorosos que querem que tudo seja destruído apenas para provarem que estavam certos. Em alguns casos isso pode ser verdade.
Mas, ainda assim, tudo o que tem um começo no tempo também tem um fim. É sinal de doença mental admitir isso? Toda pessoa que reconhece, por exemplo, que todos os que nascem devem morrer é necessariamente deprimida ou suicida?

No capítulo dez de Ultimate Things, “Por que o diabo odeia uma multidão”, Dennis Engleman refuta o problema da superpopulação como “propaganda de uma terra inchada” e sustenta que “eufemismos como ‘controle de natalidade’ e ‘serviços reprodutivos’ significam, principalmente, aborto”. Ele repete a tradição — comum, embora não dogmática — de que “somente quando houver crentes suficientes para preencher os lugares no Céu deixados pelos anjos caídos é que Cristo retornará”.

Embora seu livro seja excelente — eu o recomendaria a qualquer pessoa interessada na tradição dos últimos dias — não posso concordar inteiramente com ele aqui. O problema da superpopulação é muito real. E embora a mesma mentalidade geral pareça estar por trás tanto do controle de natalidade quanto do aborto, de outro modo eles são diametralmente opostos: quanto menos disponível e eficaz for o controle de natalidade, mais gravidezes indesejadas haverá, e quanto mais gravidezes indesejadas, mais abortos.

O aborto é claramente um grande mal, que Engleman corretamente compara ao sacrifício humano. Embora, em minha opinião, ele possa ser justificado em alguns casos — como estupro incestuoso, deformação maciça do feto ou certeza virtual da morte da mãe — ainda assim me causa desconforto. Mesmo Ken Kesey, dos Merry Pranksters, chegou a dizer, em um dos Whole Earth Catalogues por volta de 1970, que o maior ponto falho de todo o programa liberal/contracultural era o aborto.

Quanto à lenda de que Cristo retornará quando o número de crentes igualar o dos anjos caídos, isso me parece representar uma verdade espiritual sutil que foi rebaixada ao nível literal. Poderia, por exemplo, ser usada para justificar a poligamia cristã, já que isso aumentaria a taxa de natalidade entre os cristãos. E se Cristo só retornará quando nascerem cristãos suficientes, por que então São Paulo ensinou que “é melhor não casar”?

Segundo a escatologia cristã ortodoxa e a muçulmana, o Anticristo cooptará a prática das boas obras. Isso significa que realizar boas obras sob o regime do Anticristo é, em última análise, fazer o mal?

O Anticristo, ou seu sistema, tentará estabelecer o seguinte dilema — que, em muitos aspectos, já se manifesta: “Quem faz o bem necessariamente me serve, porque todo bem é minha propriedade; portanto, quem me resiste não tem escolha senão fazer ou permitir o mal.”
Evitar a superpopulação é um bem evidente. Mas se a solução macro para o problema populacional resultar em graves abusos dos direitos humanos, como aparentemente ocorreu na China, então esse bem torna-se tributário do mal. Proteger o meio ambiente é um bem evidente. A humanidade, em Gênesis, é ordenada por Deus a “replencher a terra”, e, segundo Ap 11:18, Deus, nos últimos dias, recompensará Seus “servos os profetas”, mas “destruirá os que destroem a terra”.

Contudo, se a proteção ambiental for conduzida segundo um paradigma opressivo, materialista ou cientificista que negue a natureza teomórfica do homem, então esse bem também servirá a um fim mau.
Nem todo modo de fazer o bem, portanto, serve ao Bem. Se um bom fim não justifica meios maus, tampouco bons meios justificam um fim que é, em última instância, mau.

A morte é certamente um mal, mas a perda da alma imortal é um destino pior do que a morte.

Qualquer grande esforço coletivo — como a proteção do meio ambiente ou a prevenção da superpopulação — inevitavelmente gerará aproveitadores e atrairá aqueles que buscam poder político e vantagem econômica. E o parasita final de todos os bons esforços deste ciclo será o sistema do Anticristo.

Mas sempre será possível realizar o bem material de modo que ele sirva ao bem espiritual. Todo esforço voltado à melhoria das condições materiais, se for baseado na verdadeira compaixão e numa apreciação espiritual da forma humana e do mundo natural como sinais da presença de Deus e manifestações simbólicas de Sua Natureza, é uma forma de adoração.

Não precisamos — e não devemos — permitir que o sistema do Anticristo co-opte todo o bem, a ponto de, em reação a ele, tornarmo-nos exemplos de crueldade ou indiferença que esse mesmo sistema possa usar para provar sua própria necessidade e legitimidade. Todo bem concreto que possa ser feito com base diferente da do Anticristo minará seu poder e retardará sua vinda, dando a mais almas tempo para rejeitar o erro, discernir e escolher a Verdade.

A questão perene é: em que momento tais esforços deixam de ser expressões diretas do bem e passam a se tornar tentativas de tomar o poder em nome do bem, com o resultado de que o bem é destronado e o poder é idolatrado? E até que ponto um grupo ou indivíduo, em determinado lugar e tempo, pode exercer poder em nome do bem sem começar a suprimir o próprio bem em nome do poder? Somente um discernimento espiritual profundo, baseado numa submissão radical à vontade de Deus, pode responder a essa questão.

Talvez a maior área de conflito e polarização entre as escatologias seculares e as tradicionais seja o ambientalismo. Muitos cristãos tradicionais veem um “socialismo verde” neopagão que adora o cosmos material em lugar do Deus transcendente e nega a natureza teomórfica do homem como o preço para salvar o meio ambiente — e não estão dispostos a pagá-lo.

E muitos ambientalistas, especialmente os de tendências neopagãs, acreditam que a própria ideia de transcendência, tal como sustentada pelas religiões tradicionais, está na raiz da destruição ambiental. Esquecem-se de que são a ciência e a tecnologia — e não a religião — que destroem o meio ambiente, e que as raízes do atual regime científico-tecnológico estão no renascimento neopagão do saber clássico durante o Renascimento, e não no transcendentalismo da Idade Média cristã.

É precisamente a crença de que este mundo é tudo o que existe que inflama o desejo de “ter tudo agora” e nos obriga a devastar a terra no processo de obtê-lo.

Entretanto, é possível trabalhar pela proteção do meio ambiente, em pequena escala, sem recorrer a macro-soluções desumanizantes e antiespirituais. Segundo Evágrio do Ponto:

“Quanto àqueles que estão longe de Deus... Deus tornou possível que se aproximem do conhecimento d’Ele e de Seu amor por meio das criaturas. Ele as produziu, por assim dizer, como as letras do alfabeto, pelo Seu poder e sabedoria.”

Do mesmo modo ensina o Alcorão:

“Na vossa criação e em todas as bestas espalhadas sobre a terra há sinais para os que têm fé verdadeira.
Na alternância da noite e do dia, e no sustento que Allah faz descer dos céus, com o qual vivifica a terra depois de morta, e na distribuição dos ventos, há sinais para os que são inteligentes.”
(Alcorão 45:4–6)

Com base em doutrinas como essas, é possível realizar o serviço ambiental como um ato litúrgico ou contemplativo, sem exaltar a sobrevivência material coletiva acima da salvação da alma humana.

Mas se a terra está condenada, muitos perguntam, por que cuidar do meio ambiente? Isso equivale a dizer: “por que manter a própria saúde, se de todo modo vai-se morrer? Por que continuar a cuidar de uma mãe idosa se ela não tem muito tempo de vida?”

Se algo ou alguém necessita de cuidado, e temos poder para oferecê-lo, então cuidamos. Assim como no caminho do karma-yoga do Bhagavad-Gītā, realizamos a ação por ela mesma — isto é, por amor a Deus — e dedicamos a Ele os frutos da ação.

No Apocalipse 19:17–18, no dia do combate escatológico, “as aves que voam pelo meio do céu” são convidadas a banquetearem-se “com a carne dos reis, dos capitães e dos poderosos... e com a carne de todos os homens”.

E segundo 2 Pedro 3:10, “os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; a terra, e as obras que nela há, serão descobertas [ou consumidas]”.

Mas Dennis Engleman (Ultimate Things, p. 258) repete a doutrina de que:

“O ‘fim deste mundo’ não produz aniquilação (exceto do mal), mas sim restauração e renovação. ‘Pois este mundo passará por transmutação, não por destruição absoluta’, escreveu o bem-aventurado Agostinho, ‘e por isso o apóstolo diz: “A figura deste mundo passa” (1 Cor. 7:31). A figura, portanto, passa; não a natureza.’”

Segundo Santo Irineu, citado por São André de Cesareia, “nem a essência nem o ser da criação perecerão”.

E conforme René Guénon em O Reino da Quantidade (pp. 330–331, 336):

“O fim aqui considerado é inegavelmente de importância consideravelmente maior que muitos outros, pois é o fim de todo um Manvantara, e portanto da existência temporal do que pode com razão ser chamado uma humanidade; mas isso, deve-se repetir, de modo algum implica o fim do mundo terrestre em si, porque, pela ‘reintegração’ que ocorre no instante final, esse fim se tornará imediatamente o começo de outro Manvantara... Pode-se dizer com toda a verdade que ‘o fim de uma humanidade’ nunca é, nem pode ser, senão o fim de uma ilusão.”

Não parece, portanto, doutrinariamente necessário que toda a vida — ou mesmo toda a vida humana — seja destruída (ou preservada) no fim deste ciclo. Do ponto de vista material, algumas espécies ou alguns indivíduos humanos podem sobreviver, por meio dos quais a vida poderia recomeçar.

Do ponto de vista espiritual, tudo será destruído e consumido, após o que o Criador renovará todas as coisas.

Mas para salvar nossas almas — o único motivo de estarmos na terra — devemos adotar o ponto de vista espiritual e deixar que o nível material (subconjunto e subordinado ao espiritual) cuide de si conforme o desígnio divino.

Estar disposto a enfrentar o evento escatológico como o fim deste ciclo de manifestação — pronto para permitir que a si mesmo e a todos os seres vivos morram e renasçam ao toque do Todo-Poderoso — é a porta para o Novo Céu e a Nova Terra.

Mas planejar a própria sobrevivência física além do Apocalipse, ou imaginar como a raça poderia persistir em termos materiais — mediante o armazenamento de material genético humano controlado por computadores em cavernas subterrâneas secretas, ou outras fantasias desumanizantes de alta tecnologia — é tornar-se servo do Anticristo.

Deus salvará, destruirá e recriará a vida como Lhe aprouver; quem coloca sua esperança em algo além dessa Vontade reservou seu lugar no Fogo.


Enfrentando o Apocalipse

“E vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.
E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu da parte de Deus, adornada como uma esposa para o seu esposo.
E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis o tabernáculo de Deus com os homens, e Ele habitará com eles, e eles serão o Seu povo, e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus.
E Deus enxugará toda lágrima dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram.”
(Apocalipse 21:1–4)

Se aderirmos a uma espiritualidade que seria invalidada pelo fim do mundo, então essa espiritualidade não é verdadeira.
Mas o mesmo pode ser dito de uma espiritualidade que exija o fim do mundo para se validar.

O propósito da meditação sobre o fim das coisas é duplo. Primeiro, porque a possibilidade do fim da existência humana no plano material é parte inescapável da qualidade de nosso tempo; portanto, precisamos de modos doutrinalmente ortodoxos e espiritualmente frutíferos de nos relacionar com ela. Segundo, o fim das coisas está sempre presente, independentemente do período histórico em que vivamos. Todas as coisas são impermanentes; a morte chega a todos. O fim das coisas é um lembrete constante de que devemos colocar as mãos no arado e realizar nossa salvação enquanto ainda podemos, pois o tempo é sempre curto. É também uma metáfora perene para a verdadeira morte — a morte do ego — e para a verdadeira imortalidade — a eternidade da Rocha dos Séculos, impenetrável às ondas do tempo, aos ciclos de criação e dissolução que se quebram contra ela.

Segundo os tradicionalistas, os últimos dias não estão isentos de suas próprias bênçãos e oportunidades espirituais, que não poderiam existir em nenhum outro ponto do ciclo.

A primeira é a facilidade comparativa do desapego espiritual, para aqueles inclinados nesse sentido. Nas palavras de Martin Lings:

“O desapego é uma característica essencial do sábio, e essa virtude, que em tempos melhores só podia ser adquirida através de grandes esforços espirituais, pode tornar-se mais espontânea pela visão do próprio mundo em ruínas caóticas.”

A segunda bênção é a do conhecimento enciclopédico. Como afirma Schuon:

“Se as sociedades humanas se degeneram por um lado com o passar do tempo, acumulam por outro experiências em virtude da velhice, por mais misturadas a erros que estejam.”

O conhecimento das grandes tradições espirituais do mundo — como o que tornou possível a redação deste livro — era muito mais difícil de acessar há poucas décadas.

A terceira bênção, nesta extrema velhice do macrocosmo, é a possibilidade ampliada de serenidade e discernimento espiritual. Em The Eleventh Hour, Martin Lings escreve:

“Há... um aspecto da velhice normal, o mais positivo de todos... em virtude do qual nossos tempos são únicos. Costuma-se dizer de homens e mulheres espirituais, ao final de suas vidas, que têm ‘um pé já no Paraíso’. Isso não nega que a morte seja uma ruptura súbita, uma quebra de continuidade — e não pode deixar de sê-lo, pois precisa transformar a velhice mortal em juventude imortal.
Contudo, a hagiografia ensina que os últimos dias das almas santificadas podem ser notavelmente luminosos e transparentes. Tampouco é incomum que a iminência da morte traga consigo graças especiais, como visões, em antegosto do que está por vir. O amadurecimento da espiritualidade, que é o aspecto mais elevado da própria velhice, é assim coroado com uma iluminação que pertence mais à juventude do que à idade... No macrocosmo, a proximidade da nova Idade de Ouro não pode deixar de se fazer sentir misteriosamente antes do fim do velho ciclo.” (p. 66)


A Unidade Transcendente das Religiões como Prática Espiritual

A Unidade Transcendente das Religiões não é apenas uma doutrina; é também uma prática. É importante compreender isso, pois, se nossa relação com ela permanecer limitada à doutrina, ela decairá ao nível da abstração e perderá sua dimensão transcendente. Tornar-se-á mero ecumenismo exotérico, ou religião comparada, ou uma busca puramente mental pelos princípios metafísicos comuns a todas as tradições.

Frithjof Schuon e outros tradicionalistas costumam explicar a Unidade Transcendente das Religiões por meio do que chamo de “teia tradicionalista” — símbolo também encontrado, por exemplo, em Plotino.

Quando jovem, Schuon encontrou em sua cidade natal, Basileia (Suíça), um venerável marabuto negro que viera do Senegal. Durante a conversa, o velho desenhou um círculo no chão com raios conectando a circunferência ao centro.
Disse: “Deus é o centro; todos os caminhos levam a Ele.

Isso pode ter sido a origem da imagem da teia na mente de Schuon. O símbolo completo, porém — tanto em Schuon quanto em Plotino — inclui diversos círculos concêntricos que representam diferentes planos de realidade, aquilo que em outro ponto deste livro chamei de Grande Cadeia do Ser.

Os círculos indicam, como na Divina Comédia, a proximidade ou distância relativa de um plano de Ser em relação ao Princípio central, enquanto os raios indicam as quididades incomparáveis — os “o-que-é” — que são precisamente elas mesmas e nada mais, independentemente do nível de Ser em que apareçam. Assim como o aroma de uma rosa é exatamente aquele aroma e nenhum outro, quer o sintamos apenas como um leve sopro no ar, quer estejamos imersos em um lago de água de rosas.

Em termos aristotélicos, os raios simbolizam a essência, e os círculos concêntricos, a existência; os pontos de intersecção entre ambos representam as coisas concretamente existentes — onde essência (“o que é”) e existência (“o ser”) se unem. Uma pedra, por exemplo, não pode ser pedra se lhe faltar a qualidade de “pedrosidade” ou a qualidade de efetivamente existir.

Nas coisas existentes — pedras, galáxias, seres humanos, espíritos, anjos — essência e existência estão unidas apenas relativamente, pois é possível distinguir um raio ou um círculo de outro. Somente no Centro, somente em Deus mesmo, essência e existência estão unidas de modo absoluto:

Eu sou Aquele que Sou.

No contexto da Unidade Transcendente das Religiões, cada raio é uma tradição religiosa integral e revelada.
O fato de irradiar do Centro indica que foi revelada por Deus; o fato de todos os raios se encontrarem apenas no Centro indica que a unidade das religiões não é ecumênica (isto é, mundana), mas transcendente.

As religiões, portanto, não se unem por meio de sua comparabilidade relativa, mas com base em sua incomparável singularidade. O campo da religião comparada — o nível em que dizemos “o Islã é parecido com o Cristianismo nisto, mas diferente naquilo; o Hinduísmo é semelhante ao Budismo ou ao Cristianismo nestes aspectos, mas distinto naqueles” — não é o da Unidade Transcendente das Religiões.

A teia tradicionalista pode também ser vista como um “Stonehenge espiritual”: um círculo de portas separadas e discretas, cada uma oferecendo uma visão única do mesmo Centro, onde, digamos, brilha uma grande Luz.
Só é possível olhar por uma porta de cada vez.
Posso olhar de lado, da minha porta muçulmana, e ver minha esposa Jenny ajoelhada à luz que entra por sua porta cristã; mas essa luz será sempre, para mim, uma luz refletida.

Para ela, Jesus é o Cristo, o Filho unigênito de Deus.
Para mim, como muçulmano, Ele é um grande profeta, o Espírito e Verbo de Deus, nascido de uma virgem e destinado a retornar no fim dos tempos para derrotar o Anticristo; mas não é o Filho de Deus, pois, segundo o Alcorão, “Ele [Alá] não gera nem é gerado.

Então, discordamos sobre a natureza de Jesus?
Se passássemos nosso tempo olhando “de lado” nas religiões, teríamos de discordar.
Jesus teria de ser ou um grande profeta ou o Filho de Deus — não poderia ser ambos.
Mas a essência da religião, que é o Caminho espiritual, não se move lateralmente; ela se move do ponto em que estamos na circunferência, rumo ao Centro, isto é, rumo ao Deus Único.

E esse Deus é tão grande, tão abrangente de todas as concepções d’Ele, e ao mesmo tempo tão fundamentalmente independente de todas elas, que cada visão d’Ele, se realmente dirigida ao Centro por um raio ininterrupto que d’Ele emana, produz uma visão única e incomparável da Realidade divina, a qual, longe de ser relativa às outras, é abençoada e confirmada pelo Absoluto, participando de Sua própria natureza.
Essa é a doutrina de Schuon do “relativamente absoluto”.

Cada visão de Deus — seja de uma religião revelada, seja de um indivíduo dentro dela, ou de um momento na vida desse indivíduo — é única e incomparável, pois é uma visão de Deus, o Incomparável, o Único.

Enquanto contemplo esse Deus, não tenho tempo nem perspectiva para comparar minha doutrina com a de outro; enquanto comparo e contrasto doutrinas, não contemplo Deus.

Deus, contudo, não é apenas incomparável — no sentido de transcendente —, mas também comparável — no sentido de imanente.
Se Deus não estivesse absolutamente além de toda concepção, não seria Único; seria comparável, relativo, definível por algo outro ou inferior a Si mesmo, e, portanto, não seria Deus. Mas, se Deus não fosse também, de algum modo, comparável às coisas criadas, não poderíamos formar nenhuma concepção d’Ele, e, assim, não teríamos meio algum de conhecê-Lo.

E, visto que as coisas criadas são, em essência, nada além de concepções d’Ele, manifestações simbólicas de Seus Atributos, Energias ou Nomes, segue-se que, se Deus fosse apenas incomparável, sem possuir também um aspecto de comparabilidade, não haveria universo.
Uma vez compreendida a Unicidade de Deus, compreendemos também que todas as coisas criadas são únicas em si mesmas, precisamente porque refletem essa Unicidade.

Além disso, se temos o poder de ver as coisas como realmente são em si, temos também o poder secundário de compará-las não com sua Fonte comum, mas entre si, discernindo em que são semelhantes e em que diferem. É aqui, porém, que devemos atender ao aviso de Shakespeare: “As comparações são odiosas.”

O poder de comparar as coisas existentes entre si, em vez de com sua Fonte transcendente, é a origem da abstração.
E o perigo da abstração — por mais útil e até necessária que seja à nossa vida e ao modo de funcionamento da mente humana — é que possamos começar a pensar que a categoria abstrata é a origem dos particulares únicos que a compõem, quando, na verdade, é o inverso.

A nação, em certo sentido, produz o cidadão;
mas é muito mais verdadeiro — e em conformidade com uma ordem superior de realidade — dizer que o cidadão (ou melhor, o ser humano, muito mais que sua mera cidadania) é quem produz a nação.

À medida que nos afastamos do centro da teia, a tendência à abstração aumenta.
As essências, simbolizadas pelos raios, permanecem absolutamente únicas; mas essa verdade torna-se cada vez mais obscurecida à medida que descemos pelos círculos concêntricos em direção aos níveis inferiores do ser.
Os níveis superiores revelam a unicidade das essências; os inferiores a obscurecem.

Consequentemente, no plano material ou sócio-histórico, a abstração começa a confundir indivíduos, culturas e religiões.
Uma religião, nesse nível, passa a ser definida sobretudo por como se assemelha ou difere das demais.
Uma cultura torna-se um conjunto de parâmetros quantitativos — uma população, uma massa de recursos, um sistema de leis e instituições, um produto nacional bruto.
Um indivíduo torna-se um mônada estatístico, mero número nas tábuas atuariais de uma companhia de seguros — um código.

Nos termos de Guénon, o movimento em direção ao Centro é movimento rumo à Essência (ou qualidade); o movimento em direção à periferia é movimento rumo à Substância (ou quantidade).

(“Substância”, aqui, oposta à “Essência”, e não aos “acidentes”; pois o termo filosófico ousiaSubstância, em oposição a seus acidentes — começa ele próprio a assumir o significado de “Essência”. Já em Guénon, “Substância” é usada num sentido próximo à materia aristotélico-tomista, em oposição à forma, que é quase sinônima de “Essência”).


As Ideias platônicas ou Nomes de Deus são muitas vezes tidos como categorias abstratas, em parte porque, no plano da linguagem, as imagens mais particulares são necessariamente as mais sensuais.
A linguagem ancora nossa percepção do particular ao nível sensorial; as palavras de que precisamos para descrever realidades superiores ao sensível tornam-se cada vez mais abstratas à medida que ascendemos na Grande Cadeia do Ser.
Contudo, isso não é verdadeiro das próprias realidades.

Uma Ideia platônica não é uma categoria abstrata, mas um nível mais elevado de particularidade.
Muitos homens podem ser a origem da categoria abstrata “homem”, mas a Ideia concreta “Homem” é a origem e o criador de muitos homens.

Uma Ideia platônica não é o denominador comum abstrato de muitos particulares, mas o “denominador superior comum” — o concreto, abrangente — dos indivíduos que a compõem, os quais, em relação a ela, são abstrações relativas.

A Ideia platônica “Homem” não contém apenas o que é comum a todos os seres humanos — o que, porque há dois sexos, excluiria os órgãos genitais, e, porque há amputados e cegos, excluiria também braços, pernas e olhos —, mas tudo o que “Homem”, em todas as suas variações, poderia manifestar, e tudo isso em uma única forma.

Por isso, o homem original no Timeu de Platão é um andrógino, e também uma esfera: a forma esférica representa, nesse caso, a realização simultânea e sintética de todas as possibilidades humanas.

E porque as Ideias não são pálidas abstrações, mas ordens superiores de particularidade, realidades mais concretas do que a própria matéria, os filósofos místicos persas — como Suhrawardi —, seguindo seus irmãos judeus, cristãos e zoroastrianos, chegaram à visão das Ideias platônicas como seres vastos, poderosos e conscientes: em outras palavras, anjos.

De acordo com a angelologia judaico-cristã, por exemplo, o arcanjo Miguel não é um símbolo abstrato da guerra espiritual; ele é um ser pessoal e consciente, de vastíssima sabedoria e poder, o comandante dessa guerra — não por aquilo que é, mas por quem é.

Mesmo assim, ele permanece a própria essência e Ideia da guerra espiritual, “encarnada” no plano arcanjólico.

Não há, em última análise, contradição entre as ordens pessoal e arquetípica da realidade, já que ambas são tentativas de expressar a qualidade das essências, e estas são incomparáveis — incapazes de serem plenamente definidas em termos outros que não elas mesmas.


(Eu disse acima que, quanto mais concretas são as realidades acima do sensível, mais abstratas precisam se tornar as palavras que as descrevem. A exceção é quando as palavras são usadas não como descrições, mas como nomes.
“Guerra espiritual” é um conceito abstrato; “São Miguel” é uma pessoa concreta.
Consequentemente, as palavras mais concretas e carregadas de realidade existentes são os Nomes de Deus, usados nas diversas tradições para invocar — ou seja, reconhecer — Sua presença.
Seus Nomes não são, primordialmente, nossas descrições d’Ele, mas Seus próprios atos de auto-manifestação a nós.)


A abstração, contudo, também tem uma função ascendente, pela qual pode servir à visão da Unidade Transcendente das Religiões.
A religião comparada, quando conduzida de forma profunda e rigorosa, revela duas coisas:

1.      Que as doutrinas das diferentes religiões aproximam-se à medida que nos acercamos dos centros místicos dessas religiões;

2.      Que, mesmo assim, nunca se alcança unanimidade perfeita no plano doutrinal.

O sufi Ibn al-‘Arabi e o sábio cristão Mestre Eckhart estão muito mais próximos um do outro do que, por exemplo, os concílios eclesiásticos do Cristianismo e os ulemas do Islã; contudo, Eckhart permanece plenamente cristão e Ibn al-‘Arabi essencialmente muçulmano.

A religião comparada serve à visão da Unidade Transcendente das Religiões não ao propor um universalismo horizontal, em que as doutrinas são misturadas até perderem a forma e se dissolverem no indiferenciado, mas ao revelar — por contraste — a unidade vertical, isto é, o ponto de origem comum que sustenta todas as revelações autênticas.

Essa unidade não é o resultado de uma síntese feita pelo homem, mas a constatação de uma hierarquia ontológica: à medida que o olhar do espírito sobe do plano das formas externas (ritos, dogmas, línguas, teologias) ao plano do Espírito puro, as diferenças se tornam cada vez menos divisórias, até que, no cume, elas desaparecem — não porque se anulem, mas porque são transfiguradas em sua fonte única.

Nesse sentido, o conhecimento comparativo — quando iluminado pela contemplação — não destrói as formas; ele as purifica. Ele reconhece que cada tradição é uma janela para o Absoluto, e que olhar por uma não implica quebrar as outras.

A Unidade Transcendente não é, portanto, uma fusão, mas uma coincidência.
Cada religião autêntica mantém a sua própria forma, sua linguagem sagrada e seu eixo revelado; mas todas se encontram no ponto em que o humano toca o Divino, onde os nomes distintos — Brahman, Allah, Deus, Tao — são modos de um mesmo Silêncio.

É nesse ponto que a prática da Unidade Transcendente se distingue do mero sincretismo. O sincretismo tenta juntar fragmentos dispersos para criar uma totalidade artificial; a visão transcendente, ao contrário, vê a totalidade já presente em cada fragmento, pois o Todo está implicado em cada símbolo verdadeiro.

Por isso, o sábio tradicionalista não é um colecionador de doutrinas, mas um contemplativo: ele lê em cada forma o reflexo de uma mesma Luz, e, ao aprofundar-se na sua própria via — não ao abandoná-la —, reconhece o coração universal que pulsa nas demais.

A verdadeira comparação entre religiões, portanto, é uma comparação vertical: não entre as doutrinas em si, mas entre seus graus de participação no Real. O que se compara não é “o que dizem”, mas o quanto do Inefável deixam transparecer.

E assim, a Unidade Transcendente das Religiões, entendida não apenas como doutrina mas como via espiritual, culmina na contemplação de um Centro eterno, no qual todos os nomes, formas e tempos cessam — e onde permanece apenas o Uno, que é o mesmo para todos os santos, profetas e sábios, seja qual for o idioma de sua revelação.

todo caráter, mas “triangulando”, por assim dizer, um ponto comum de Origem — um ato que requer, geometricamente, ao menos dois pontos-de-vista inteiramente únicos e separados. O fato de que as doutrinas de todas as religiões se tornam cada vez mais semelhantes à medida que seus respectivos centros místicos são abordados prova que essa Origem está realmente ali e tem um caráter real. O fato de que as doutrinas das religiões, embora se aproximem cada vez mais, nunca de fato se encontram deste lado do Absoluto, prova que essa Origem é verdadeiramente transcendente e inteiramente além da concepção. O Verbo, o Logos divino, é Um; não deixa, contudo, de ser o primeiro princípio da criação e da divisão. Os Caminhos apenas se encontram no Silêncio virginal e materno antes de quem, e de quem, o Verbo é proferido.

A Unidade Transcendente das Religiões não é simplesmente uma doutrina, como eu disse; é também uma prática. E, se a prática não é mantida viva, a doutrina degenera. Ouvi Martin Lings, numa palestra gravada, debatendo-se diante de uma audiência de exoteristas religiosos, incapaz de contrapor-se à afirmação de que “Segundo o princípio lógico de não-contradição, Jesus Cristo não pode ao mesmo tempo ser e não ser a encarnação única de Deus; se o Cristianismo, baseado nessa crença, é verdadeiro, então outras religiões, que a negam, devem ser falsas.” Lings tentou responder a essa objeção à Unidade Transcendente das Religiões comparando Cristo aos avatares de Vishnu, como Krishna, que fizeram a mesma reivindicação de Divindade que ele. Mas Cristo não é um entre os dez avatares de Vishnu; ele é, da perspectiva cristã, o avatar único, o Filho unigênito de Deus. Apenas o entendimento de que toda visão do Absoluto possui uma dimensão de incomparabilidade, de que é abençoada pelo Absoluto com a própria Absolutidade de Deus e é, assim, “relativamente Absoluta”, poderia ter respondido à objeção do perguntador — talvez não para a sua satisfação, mas ainda assim para a plena satisfação da Verdade. A doutrina da Unidade Transcendente das Religiões convoca imensas forças sociais e psicológicas, que atuam no sentido de forçar uma cunha entre o termo “transcendente” e o termo “unidade”. Aqueles que inconscientemente começam a errar na direção da unidade, em oposição à transcendência, serão impelidos para um universalismo horizontal; esta é a análise de Schuon, em seu livro Perspectivas Espirituais e Fatos Humanos, sobre o destino da Ordem de Ramakrishna sob Vivekananda e seus sucessores. Ramakrishna, como um santo do mais alto grau, foi capaz de ver e encarnar a unidade das religiões a partir de uma perspectiva transcendente, uma que não destruiu, mas antes cumpriu seu hinduísmo quintessential. A Ordem de Ramakrishna, por outro lado — ao menos segundo Schuon — começou a afastar-se do Hinduísmo ortodoxo na direção de um universalismo raso, acusação que, ironicamente, tem sido dirigida ao próprio Schuon em termos do Islã. No extremo oposto, aqueles que, sem perceber, começam a errar na direção da transcendência, em oposição à unidade, adentrarão o campo em que o inefável e Transcendente Absoluto exige uma forma no mundo relativo por meio da qual possa ser expresso, e serão consequentemente tentados a absolutizar os aspectos essencialmente relativos de sua tradição religiosa, vendo sua absolutidade através da lente distorcida de sua relatividade em vez de através da porta aberta de sua transcendência; esta é a sombra idólatra e literalista da doutrina de Schuon do “relativamente Absoluto”. Assim, a Unidade Transcendente das Religiões, dada a tardança dos tempos bem como as simples limitações da natureza humana, inevitavelmente gerará suas duas “feras guardiãs” que se erguem de ambos os lados de seu umbral para desviar o curso de todos os que realmente não a entendem: À esquerda, o Gog do universalismo; à direita, o Magog do exclusivismo, cujas expressões sócio-históricas são o modernismo ou o pós-modernismo, de um lado (o princípio por trás do globalismo político e econômico), e o fundamentalismo reacionário, de outro (o princípio por trás das reações “tribalistas” contra a hegemonia globalista).

Praticar a Unidade Transcendente das Religiões é caminhar no fio da navalha que atravessa um dos mais formidáveis “pares de opostos” metafísicos. É imensamente exigente, psicologicamente, filosoficamente e contemplativamente, porque a doutrina da Unidade Transcendente em última análise emana talvez do mais alto nível inteligível de princípio metafísico. Segundo Schuon, Deus é ao mesmo tempo Absoluto e Infinito. A absolutidade de Deus é a fonte de Sua transcendência e a origem da unicidade de cada forma religiosa dada por Deus. A infinidade de Deus é a fonte de Sua imanência, a origem da unidade subjacente de todas as religiões verdadeiras. Estes são o Shiva e a Shakti de Sua autorrevelação no âmbito religioso. Aderir apenas à absolutidade de Deus e rejeitar Sua infinidade é cair no autoritarismo religioso; aderir à Sua infinidade e rejeitar Sua absolutidade é deslizar para a promiscuidade religiosa.

Em termos concretos, a prática da Unidade Transcendente das Religiões se reduz a seis tipos diferentes de trabalho árduo: Primeiro, aceitar uma das religiões reveladas e permanecer fiel a ela, tanto em termos de prática exterior quanto de verdade interior. Segundo, do ponto de vista da religião herdada ou adotada, contemplar as visões da Verdade fornecidas pelas outras religiões e intuir sua unidade intrínseca. Terceiro, sempre que alguém se perceber identificando estritamente sua forma religiosa com Deus, de modo a estar de fato adorando a forma em vez da Divindade, parar e lembrar-se de Deus. Quarto, sempre que alguém se perceber olhando de lado para outras religiões, orgulhosamente ou com ansiedade, perguntando-se se essas formas são melhores ou piores do que a própria, parar e lembrar-se de Deus. Quinto, sempre que a “mente-macaco” de alguém começar a costurar um ídolo de retalhos feito de fragmentos de muitas tradições religiosas, parar e lembrar-se de Deus. Sexto, sempre que alguém se perceber tomando orgulho espiritual em sua compreensão de princípios metafísicos abstratos, olhando lá de cima — desta falsa elevação — para as tradições reveladas como remansos de literalismo, superstição provinciana e mera humanidade, parar e lembrar-se de Deus.

A lealdade a uma única religião, depois que já se percebeu que outras religiões são dadas por Deus e eficazes, é como a lealdade ao próprio cônjuge. Minha esposa é minha amada, minha única, não porque seja melhor que todas as outras mulheres segundo este ou aquele conjunto de critérios, mas porque é incomparável. E não preciso denegrir outras mulheres para prová-lo: “comparações são odiosas”. Ela é o meu “melhor” não porque seja melhor do que outras mulheres, mas porque, livremente escolhida, é o dom de Deus somente para mim. Se outros homens amam suas esposas, isso deveria levar-me a questionar se devo amar a minha? Se ela for insultada, eu a defenderei, mas não insultarei as esposas de outros homens por algum sentimento equivocado de que, assim fazendo, estou lhe prestando honra.

O mesmo se dá com a religião. A religião de uma pessoa é a esposa do Espírito dessa pessoa, assim como o marido ou a esposa de alguém é o cônjuge do corpo e da alma dessa pessoa. Onde há amor verdadeiro, a comparação não pode entrar. Nas palavras do poeta bengali Vidyapati (de Em Louvor de Krishna: Canções do Bengali, trad. por E. C. Dinock e D. Leverton), falando como Radha, a amada de Krishna:
como a asa para o pássaro
como a asa para o pássaro
água para o peixe,
vida para o vivente — assim tu para mim.
Mas dize-me,
Madhava, amado,
quem és tu?
Quem és tu de verdade?
diz Vidyapati, eles são um ao outro.

A Unidade Transcendente das Religiões vs. O Sistema do Anticristo
Segundo Apoc. 20:7–8,
Quando se completarem os mil anos [o milênio durante o qual o diabo está acorrentado, identificado pelos teólogos ortodoxos como a era da Igreja], Satanás será solto de sua prisão, e sairá para enganar as nações que estão nos quatro cantos da terra, Gog e Magog, a fim de ajuntá-las para a batalha; o número delas é como a areia do mar.
Segundo O Apocalipse de São João: Um Comentário Ortodoxo do Arcebispo Averkios de Jordanville, o significado de Gog em hebraico é “uma reunião” ou “aquele que reúne”, e o de Magog, “uma exaltação” ou “aquele que exalta”. “Exaltação” sugere-me a ideia de transcendência em oposição à unidade, e “reunião”, a ideia de unidade em oposição à transcendência. A implicação, aqui, é que um dos enganos mais profundos do Anticristo, nos últimos dias do ciclo, será colocar esses dois aspectos integrais do Absoluto em oposição um ao outro na mente coletiva, e em escala global, nos “quatro cantos da terra”.

Quanto à expressão econômica e política dessa estéril polaridade satânica, a falsa coesão da tirania de esquerda, bem como o capitalismo global atual, cairiam sob Gog, enquanto tanto o falso hierarquismo da tirania de direita quanto o absolutismo violento dos vários movimentos separatistas “tribais” opostos ao globalismo — tanto étnicos quanto religiosos — se enquadrariam sob Magog. Em termos religiosos, aquelas teologias liberais, historicistas, evolucionistas, quase materialistas e cripto-pagãs que enfatizam a imanência de Deus em oposição à Sua transcendência fazem parte de Gog; enquanto aquelas teologias reacionárias que exaltam a transcendência sobre a imanência, veem o mundo material como um vale de lágrimas, denigrem o corpo humano e encaram a destruição da natureza com indiferença, senão com aprovação secreta — uma vez que o melhor que podemos esperar é terminar logo com tudo — fazem parte de Magog.

O conflito entre ambos é precisamente a falsificação satânica do verdadeiro conflito escatológico descrito em Ap 19:11–20, entre o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores e a Besta com seu falso profeta. Aqueles que podem ser atraídos a lutar numa guerra falsificada entre elementos que deveriam ser reconciliados — porque são essencialmente partes da mesma realidade, vistas num espelho distorcido — perderão seu chamado a lutar na verdadeira guerra entre forças que não devem, nem podem, ser reconciliadas: as da Verdade e as da Mentira. (Nota: o globalismo, na medida em que prepara o palco para o surgimento da “hierarquia invertida” de Guénon, contém também a semente de Magog, enquanto o tribalismo, como herança comum de todos os excluídos da elite global, guarda a semente de Gog; nos últimos tempos, nenhum partido, classe ou setor consegue manter por muito tempo sua estabilidade ideológica — a “taxa de contradição” aproxima-se da velocidade da luz.)

Num mundo profundamente polarizado entre o Gog do globalismo sincretista e o Magog do “tribalismo” exclusivista — palavra que começa a designar o que antes se chamava “nacionalismo” ou “patriotismo” ou “lealdade à própria religião” —, a Unidade Transcendente das Religiões representa claramente um caminho do meio, ou uma terceira força, ao menos no campo religioso. Ela se opõe igualmente ao universalismo das elites globais e à violenta afirmação de si das “tribos” fundamentalistas oprimidas e marginalizadas por essas elites. Talvez esta seja uma das razões pelas quais grupos e indivíduos que aderem a essa doutrina têm sido submetidos a imensa pressão psíquica, algo que observadores na periferia da Escola Tradicionalista, como eu, não podem deixar de notar. É razoável supor que o Anticristo desejaria nada mais do que subverter e desacreditar os Tradicionalistas, visto que a Unidade Transcendente das Religiões é uma das poucas visões de mundo que poderiam se interpor ao estéril e terminal conflito entre globalismo e tribalismo, que é a nota central de seu “sistema” na arena social.

Se todas as alternativas possíveis à luta entre globalismo e tribalismo desaparecerem da mente coletiva, então o Anticristo terá vencido. Ele pode usar o globalismo econômico e político e o universalismo de uma “espiritualidade de fusão mundial” para subverter e oprimir todas as religiões e culturas religiosas integrais, forçando-as a estreitar seu foco e a violar a plenitude de suas próprias tradições em reação contra isso. Pode levá-las a excessos fanáticos e terroristas que as farão parecer bárbaras e ultrapassadas aos olhos daqueles que vacilam entre uma identificação global ou tribal — e ainda colocá-las umas contra as outras. Unir para oprimir; dividir para conquistar.

À luz disso, podemos ver que o exclusivismo do cristianismo tradicional — e, com certas reservas, também do judaísmo e do islã — é ao mesmo tempo sua maior força e sua maior fraqueza. O exclusivismo dessas religiões abraâmicas lhes permite fortificar-se conscientemente contra o Sistema do Anticristo — o cristianismo por meio de seu “espírito de catacumba”, sua capacidade, derivada em última instância do monaquismo, de construir fortalezas espirituais contra o mundo; e o islã pelo fato de que o dar al-Islam permanece o maior bloco da humanidade que, em parte, ainda se organiza social e politicamente em torno de uma Revelação Divina — embora em graus muito variados — como ocorria na Europa Medieval e no Império Bizantino. Por outro lado, o próprio exclusivismo impediu que essas religiões, salvo raras exceções, se unissem em causa comum contra o universalismo e o secularismo globalistas. Permanecem vulneráveis às táticas de “dividir e conquistar” do sistema do Anticristo — fase que pode muito bem ser o prelúdio, se acreditarmos nas especulações escatológicas tradicionais como as apresentadas em Ultimate Things, de Dennis E. Engleman, a uma fase posterior de “unir para oprimir” — uma capitulação dos exclusivistas exaustos, ansiando pelo fim do conflito interminável, ao universalismo satânico do próprio Anticristo.

Segundo Ultimate Things, o Anticristo se revelará em Jerusalém e se proclamará Rei dos Judeus; a nação judaica, bem como muitos cristãos, o aceitarão. Do ponto de vista islâmico, contudo, qualquer governante mundial que comece como Rei dos Judeus e seja posteriormente reconhecido pelos cristãos seria imediatamente e universalmente identificado como o próprio Anticristo. É inconcebível — a menos que o islã tradicional e mesmo fundamentalista praticamente desapareça — que tal figura pudesse tentar os muçulmanos a aceitá-lo como o Mahdi ou o Jesus escatológico. Assim, se as previsões relatadas por Engleman forem de alguma forma precisas, ele apresenta de fato, como cenário escatológico mais provável, uma apostasia em massa de judeus e cristãos que deixaria apenas os muçulmanos conscientes de quem o Anticristo realmente é, e prontos para combatê-lo.

Como então poderia o Anticristo emergir como um verdadeiro monarca global, ainda que satânico? Talvez a oposição militante de um islã desacreditado aos olhos do restante do mundo contra um “salvador” quase universalmente admirado seja precisamente o que consolidará seu poder. Apresso-me a dizer que isto não é de modo algum uma previsão — Deus me livre. Estou apenas permitindo-me imaginar vários cenários baseados na qualidade de ironia e autocontradição última que é a nota de todos os movimentos históricos nestes últimos dias. E uma das voltas dessa ironia é o fato de que muitos muçulmanos semissecularizados — Dodi al-Fayed, por exemplo — parecem muito mais afinados com os costumes da cultura globalista pós-moderna do que qualquer cristão que eu possa citar.

Se a maior força e a maior fraqueza do cristianismo tradicional residem em seu exclusivismo, a força e fraqueza comparáveis do budismo — especialmente no Ocidente — estão em sua capacidade de “adaptar-se”. O mesmo vale para o hinduísmo heterodoxo ocidentalizado e para várias influências oriundas do Extremo Oriente, como o Feng Shui, a meditação taoísta e as artes marciais sino-japonesas. Em seu melhor aspecto, isso representa um desapego radical às normas “do mundo”, permitindo-lhe evitar todo tipo de literalismo dogmático e fundamentalismo — e a marginalização que tal postura frequentemente acarreta. Em seu pior, indica uma capitulação ao egotismo coletivo desse mesmo “mundo”.

Nos Estados Unidos, pelo menos, o budismo tornou-se parte aceitável da deriva cultural neopagã geral que, embora possa não se identificar com o globalismo, muitas vezes acaba por servi-lo. O mesmo ocorre com certas vertentes do sufismo americano, especialmente aquelas que tentam separar a tradição sufi do islã. Como religião que reconhece uma queda (na ignorância) e propõe um fim de salvação (pela iluminação), ela possui “naturalmente” uma afinidade muito maior com as religiões abraâmicas do que com um paganismo que aceita o status ontológico do mundo e apenas busca tirar proveito dele. Mas não foi assim que as coisas se desenrolaram sociologicamente.

O budismo americano, sendo uma religião não teísta (ainda que certamente não ateísta, pois possui uma doutrina do Absoluto), tem atraído muitas pessoas — especialmente, como se viu, muitos judeus americanos — que fogem de suas próprias ideias estreitas e supersticiosas de Deus. Um conhecido meu, católico tradicional que estudou por anos sob os anciãos hopis, conta a história de uma “festa budista de Halloween”, na qual um conhecido mestre budista americano, vestido de “sufi”, declarou que o budismo é melhor que as religiões abraâmicas porque, assim como os nativos americanos, os budistas não acreditam em Deus — afirmação que meu amigo sabia, por longa experiência pessoal com a espiritualidade indígena americana, ser totalmente falsa. Ainda assim, era uma ideia que “caía bem” entre o público liberal, Nova Era e neopagão de onde esse mestre obtinha seus alunos — o tipo de gente cujo apreço pelos índios americanos é até mais destrutivo para a espiritualidade indígena do que sua atração pelo budismo é para o próprio budismo.

O falso ecumenismo da cultura neopagã e Nova Era é o canteiro de sementes daquela “espiritualidade de fusão mundial” na qual fragmentos de todas as tradições espirituais são lançados promiscuamente, para sua corrupção mútua. O verdadeiro ecumenismo, por outro lado — expressão exterior do “ecumenismo esotérico” da Unidade Transcendente das Religiões, que compreende a própria singularidade e particularidade das tradições religiosas autênticas como o fundamento transcendente de sua unidade — não é uma amálgama sincretista ou um disfarce diplomático das diferenças doutrinais, mas uma frente unida contra um inimigo comum: aquela aliança profana de cientificismo, materialismo mágico, idolatria da psique e niilismo pós-moderno que avança, com toda a pressa deliberada, em direção ao sistema do Anticristo.

Leo Schaya, escrevendo principalmente do ponto de vista do esoterismo judaico, vê a missão escatológica de Elias como uma restauração da “tradição unânime” em preparação para a vinda do Messias. Antes do evento conhecido no Gênesis como a “confusão das línguas”, que seguiu-se à queda da Torre de Babel, a humanidade falava uma única língua religiosa. Depois desse tempo, porém, a autorrevelação de Deus ao homem tomou a forma de tradições religiosas distintas, cada uma autônoma e autossuficiente. A Árvore da Vida, que fora um único tronco, dividiu-se agora em vários ramos.

Segundo Schaya, entretanto, a unanimidade primordial está destinada a ser restabelecida antes do fim do ciclo:

Segundo a tradição judaica, toda a Torá de Moisés equivale a uma única linha do Sepher ha-Yasher [o “Livro da Justiça” que Elias deve trazer consigo], o que significa que esse Livro, por não ser “escritural” mas de natureza “operativa”, será a verdadeira realização final da Escritura, a “realização” que, por definição, vai incomensuravelmente além da “letra”. Ao mesmo tempo, o judaísmo coloca tacitamente as demais “linhas” desse “Livro” à disposição de todas as revelações divinas, quaisquer que sejam, cada uma formulando ou anunciando à sua maneira a mesma Verdade Eterna e o mesmo Destino do homem e do mundo. O “Livro” de Elias é a Sabedoria integral da Tradição unânime e a Manifestação escatológica do único e mesmo Princípio.
Para os judeus, Elias representa a transição da exclusividade tradicional à universalidade que também possuem, pois afirmam que o Tesbita elevará sua voz tão alto para anunciar a paz espiritual que será ouvida de uma extremidade à outra da terra; e os Doutores da Lei ensinam que “os justos de todas as nações têm parte na vida futura” ou ainda que “todos os homens que não são idólatras podem ser considerados israelitas.”
Elias deve restabelecer todas as coisas em nome e por causa dessa “paz” espiritual que o Messias trará de uma vez por todas: ela será cristalizada para sempre na Nova Jerusalém “fundada por — ou para — a paz”, segundo a etimologia de Yerushalem ou Yerushalaim. Elias desceu, e tem descido por séculos, ao mundo inferior para preparar, com a cooperação daqueles que inspira, esse estado final da humanidade. Ele revela, pouco a pouco e de modo mais intenso e geral à medida que o fim se aproxima, a essência espiritual e universal, a unidade transcendente de todas as religiões autênticas. É como se a cidade radiante fosse construída pacientemente, colocando-se uma pedra luminosa após outra em seu lugar. O poder motivador dessa tarefa pode ser chamado de “corrente elíaca”, ao menos na órbita da tradição judaico-cristã, enquanto outras tradições usarão seus próprios termos para descrever esse mesmo fluxo universal. Segundo a terminologia do esoterismo judaico, esse fluxo pertence ao “rio do Éden supremo”, o “rio de Yobel” ou “grande Jubileu”, que é a Libertação final. O Apocalipse o chama de “o rio da água da vida, claro como cristal” (Ap 22:1); ele será cristalizado nas “pedras preciosas”, as luzes inextinguíveis da Nova Jerusalém.

(“A Missão de Elias”, Studies in Comparative Religion, vol. 14, n. 3–4, pp. 165–166.*)

A doutrina do “Livro de Elias” encontra paralelo direto na doutrina muçulmana xiita de que, quando o al-Mahdi emergir de sua ocultação, trará um novo Livro. Que esse Livro representa a Tradição Primordial em si — a qual transcende as tradições reveladas sem as negar — é indicado pela tradição segundo a qual o Mahdi “governará o povo da Torá conforme a Torá, o povo do Evangelho conforme o Evangelho, e o povo do Alcorão conforme o Alcorão.” (Nasir al-Din Tusi, Ghayba). Que o Mahdi restaurará as escrituras de Adão e Sete, e derrubará a Caaba para reconstruí-la como era no tempo de Adão, também se refere à Tradição Primordial.

A mesma ordem de verdade é talvez simbolizada em Ap 7:4–8 pelos “144.000 selados”, extraídos (12.000 de cada vez, como os 12.000 seguidores de Ali que ressuscitarão para seguir o Mahdi) de cada uma das doze tribos de Israel — que, nesse contexto, não podem ser estritamente identificadas com os judeus, mas devem representar doze facetas distintas da forma humana —, e também pelo fato de que a Jerusalém Celeste não conterá templo algum, “pois o Senhor Deus Todo-Poderoso e o Cordeiro são o templo dela” (Ap 21:22–23). Nas palavras de Jesus: “Tenho ainda outras ovelhas.”

A profecia de que a unidade primordial da verdade religiosa será restabelecida antes do fim também pode ser encontrada na tradição zoroastriana. Segundo o Vendidad (2), Yima, o primeiro homem, o Adão zoroastriano, foi o ser humano a quem Ahura Mazda primeiro pregou a religião ahúrica ou zoroastriana; do mesmo modo, judeus e muçulmanos, no mesmo plano de entendimento, veem Adão não apenas como o primeiro homem, mas também como o primeiro profeta. Depois de expandir, cultivar e governar o mundo da manifestação por (como leio) 1.800 anos Yima foi convocado por Ahura Mazda, que previu que invernos rigorosos viriam ao mundo material, um dos quais seria especialmente destrutivo. (Esta é substancialmente a mesma doutrina que o Fimbulwinter escatológico da mitologia nórdica; o nome Yima também está relacionado ao nórdico Ymir, o gigante original que foi abatido para criar o mundo material, cujos ossos se tornaram as montanhas, cujo sangue os rios etc.). Então Ahura Mazda ordenou a Yima que construísse um var (“recinto”) com planta quadrada, o abastecesse com feno dourado e reunisse nele a semente das melhores plantas, os melhores animais, os melhores seres humanos — 1.800 pessoas ao todo —, bem como o sol, a lua e as estrelas, que, no var, podem ser vistas se pondo e nascendo apenas uma vez por ano. Contudo, para os habitantes do var, cada dia será como um ano. (1.800 × 80 = 144.000, o número dos eleitos na Nova Jerusalém.) Deve haver um rio irrigando o var, que conterá também prados, casas — o mundo manifesto inteiro em microcosmo.

O Var de Yima, então, é o equivalente zoroastriano da arca de Noé, embora a catástrofe que destrói o mundo seja vista como um congelamento, e não como um dilúvio. Ele também é semelhante, de certos modos, à Nova Jerusalém, que também é quadrangular e irrigada por um rio. O Var de Yima, porém, parece estar subterrâneo; é um recinto, uma caverna, e também um antigo reino subterrâneo, como o domínio céltico das “fadas”, cujos habitantes residem em “colinas das fadas” — os túmulos-túmulos que pontilham a paisagem da Europa Ocidental; como tal, é análogo à kiva do Povo Formiga do mito hopi. (O local de nascimento de Cristo num estábulo ou caverna cercado por animais, seu berço uma manjedoura cheia de feno, e sua visita por três “magos” que geralmente são considerados Magos zoroastrianos tenderiam a identificá-lo com Yima, ao menos aos olhos dos zoroastrianos, mas talvez também aos daqueles judeus, como os essênios, que podem ter mantido conexões zoroastrianas contínuas.)

Segundo a história, o Var de Yima foi concebido para ajudar a humanidade e a natureza a sobreviver a uma série de invernos rigorosos; ainda assim, também se diz que o Var de Yima só será aberto no Frashegird, o fim dos tempos. Torna-se claro, portanto, que os “invernos rigorosos” na verdade representam o congelamento e a contração do ambiente cósmico, incluindo a percepção humana, que devem piorar à medida que o ciclo se desenrola. Assim como Blake identificou o dilúvio de Noé como uma submersão da Idade de Ouro atlante pelo “Mar do Espaço e do Tempo”, os “maus invernos” do mito zoroastriano representam, de certos modos, o crescente materialismo da sociedade humana e a consequente relegação da visão da Eternidade a um reino mitológico subterrâneo. “Subterrâneo” equivale a “reprimido”; o que outrora foi uma visão sensorial imediata do mundo natural sub specie aeternitatis agora está oculto, para segurança, na “caverna do Coração”.

Em 1927, Guénon publicou um livro intitulado Le Roi du Monde (“O Rei do Mundo”). Tratava do mito do Centro sagrado em várias religiões (Meca, Jerusalém, Olimpo etc.) e postulava a existência de um Centro Primordial, um Paraíso Hiperbóreo original, do qual todos os outros derivam — afirmação que levou alguns a criticá-lo por se entregar, como Gurdjieff e Idries Shah, a um romantismo geográfico ocultista do tipo “Shangri-La” — sendo o próprio Shangri-La, é claro, uma versão literária tardia do mesmo mito de Hiperbórea, a terra da eterna primavera que jaz no extremo Norte, “atrás do Vento Norte”. Esse Centro original é a fonte da Tradição Primordial, cujo representante, em termos das religiões abraâmicas, é Melquisedeque. No livro do Gênesis, Melquisedeque, Rei de Salém e Sacerdote do Deus Altíssimo, abençoa Abraão, no que Guénon identifica como uma cerimônia de iniciação. Melquisedeque também é mencionado no Sl 110:4: “O Senhor jurou e não se arrependerá: tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.” Jesus comenta esse salmo em Marcos e Lucas, assim como Pedro em seu sermão de Pentecostes, conforme narrado em Atos. Guénon compara Melquisedeque ao hindu Manu e a outros sacerdotes e legisladores originais.

É bastante claro que o zoroastriano Yima é outra versão desse “Rei do Mundo”. Os sufis também possuem um conceito do “Polo da Era” — obviamente um símbolo hiperbóreo — que é semelhante, em muitos aspectos, à doutrina xiita do Mahdi, o Décimo Segundo Imã oculto; o esoterismo xiita, de fato, identifica o Mahdi com Melquisedeque. A linhagem desse Polo desconhecido, ou Qutb, pareceria, portanto, ser a versão sufi do sacerdócio primordial de Melquisedeque, que, por não ter pai nem mãe, é, em certo sentido, imortal: não nascido, logo jamais morrerá. Isso o coloca na mesma categoria que os “profetas imortais” Enoque, Elias e o sufi Khidr, “o Verde”, identificado pelos muçulmanos tanto com Elias quanto com São Jorge. Assim como Melquisedeque foi mestre de Abraão no Antigo Testamento, Khidr é o nome dado pelos sufis ao mestre encontrado por Moisés no Alcorão. O Rei do Mundo também tem afinidades óbvias com figuras como Artur e todos os outros “reis de outrora e porvir” da mitologia mundial. O cavaleiro de Artur, Owain, no romance “Owain e a Condessa da Fonte”, torna-se senhor da Fonte da Vida; o mesmo se dá com muitos dos reis sagrados mencionados em O Ramo Dourado de Frazer, e também com Khidr, que guarda a Fonte da Vida situada “entre os dois mares”, no barzakh (ístmo) entre este mundo e o próximo — em certo sentido o reino sutil ou feérico, em outro o Coração, situado entre as águas amargas da multiplicidade material e as águas doces da Unidade espiritual. A Jerusalém Celeste também encerra a Fonte da Vida.

O Var de Yima é identificado como o Paraíso Hiperbóreo pelo fato de conter sol, lua e estrelas, que uma vez por ano (ou uma vez por dia) podem ser vistos se pondo e nascendo. Voltado para o sul no Hemisfério Norte (isto é, olhando a partir do Norte), está-se em posição de ver os pontos onde o sol e a lua nascem e se põem; voltado para o norte, podem-se ver as estrelas nascendo e se pondo simultaneamente. O aspecto celeste do Var de Yima revela-se, assim, nas constelações da Ursa Maior e Menor, o Castelo Revolvente ou caer sidi dos celtas britônicos, onde reis falecidos convivem com a Deusa Branca, em movimento incessante ao redor da Estrela Polar (o Qutb), aquele “ponto imóvel do mundo que gira”, que é o pivô visível da Eternidade na ordem criada, a porta que conduz além dos ciclos de nascimento e morte. (Guénon, em A Ciência dos Símbolos Sagrados, afirma que var e bear são a mesma palavra.) O fato de o Var conter as sementes de todos os seres vivos, incluindo os céus circulantes, indica que ele não é apenas um Templo, mas também um Éon: um ciclo inteiro de manifestação testemunhado simultaneamente como uma forma única. A Árvore da Vida, na Nova Jerusalém, que dá doze espécies de frutos, um a cada mês — referência óbvia ao zodíaco — tem o mesmo significado: um ciclo completo de tempo concebido num único instante.

Os lakotas chamam o sul de “a direção para a qual sempre estamos voltados” e, ao fazê-lo, identificam-se como hiperbóreos, cujo assento está no Norte, além dos ciclos do tempo, de onde olham para o Sul, para este mundo material. Eles identificam ainda o eixo norte–sul como “a boa estrada vermelha” e a linha leste–oeste da trilha do Sol como “a estrada negra (ou azul) da dificuldade”. O xamanismo em geral pode ser descrito como uma espiritualidade hiperbórea. Não apenas sua pátria está no extremo Norte (Sibéria), mas a estrutura “axial” do xamanismo siberiano, segundo a qual o xamã ascende e/ou desce a Árvore do Mundo, subindo através de muitos paraísos ou descendo por muitos submundos, como os anjos que sobem e descem a escada no sonho de Jacó, revela-o como manifestação Polar. (Às vezes o xamã usa uma escada real durante o transe.) Um poema da tradição altaica, adaptado de Shamanism: Archaic Techniques of Ecstasy de Mircea Eliade, fala de uma jornada xamânica a um “Príncipe Ulgan” que vive no céu, descrito como aquele “para quem as estrelas e o céu/estão girando mil vezes/girando mil vezes de novo” — uma versão siberiana do Deus transcendente como “o Rei do Mundo” em seu var celeste. No mesmo poema, o xamã é mostrado escalando o céu na forma de um ganso. Gansos migratórios, que na mitologia céltica são identificados com as almas dos mortos (e, sem dúvida, dos não nascidos), seguem o caminho hiperbóreo norte–sul, a Boa Estrada Vermelha, que é uma projeção no plano horizontal do axis mundi, o caminho vertical que une Céu e Terra. Esse caminho é identificado, entre outras coisas, com a coluna vertebral humana: em terminologia iogue, a sushumna nadi com seus sete chakras. Paramhamsa, ou “ganso exaltado”, é também um epíteto de iogues hindus.

Essa orientação Norte–Sul coloca a espiritualidade hiperbórea em um plano ontológico mais elevado do que aquelas religiões cujo ponto sagrado de “orientação” é o Leste. Voltados para o Leste, testemunhamos todas as formas e eventos ao entrarem no ciclo da manifestação a partir do Invisível; voltados para o Oeste, observamos quando dele se retiram. Mas, se nos voltamos para o Norte, orientamo-nos para aquele Centro Eterno que está além da manifestação inteiramente; é como se, em vez de girarmos dentro dos ciclos de nascimento e morte, esses ciclos girassem dentro de nós. A religião hiperbórea é, assim, edênica e primordial. Quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, viajaram para o “Oriente do Éden”; isso, a meu ver, representa uma queda de uma espiritualidade aeônica e hiperbórea, voltada para o Norte, a uma espiritualidade cíclica e Solar, voltada para o Leste — em termos lakotas, uma partida da Boa Estrada Vermelha para trilhar a Estrada Negra da Dificuldade (cf. Gn 3:19: “No suor do teu rosto comerás o teu pão”). E o fato de que, em tantas tradições antigas, forças demoníacas sejam figuradas como vindo do Norte indica tanto o rigor da Transcendência quanto o fato de que o caminho de volta a Hiperbórea, neste ciclo, está fechado; as portas do Éden são bloqueadas pelos Querubins e pela espada flamejante que se revolve por todos os lados (Gn 3:24). A sede da tribo de Dã, por exemplo, de quem se supõe que o Anticristo proceda, está no extremo norte de Israel. Em outras palavras, não podemos ignorar o tempo; devemos conformar nossa espiritualidade às necessidades do ponto particular do ciclo em que nos encontramos, sob pena de invocar energias demoníacas. E isso significa, entre outras coisas, que o xamanismo não é mais o que foi. Praticá-lo tão tarde no ciclo, especialmente se não se nasce numa das religiões primordiais, é encontrar perigos espirituais que não existiam quando o ciclo era jovem. Sem dúvida algumas tradições primordiais ainda abrigam xamãs poderosos e equilibrados, dedicados ao esclarecimento espiritual e ao serviço humano — e Deus é quem melhor o sabe.

Segundo Guénon, Melquisedeque representa a Tradição Primordial para as religiões abraâmicas; mas provavelmente é mais simples e esclarecedor dizer que o Rei do Mundo é Adão, em linha com a doutrina muçulmana de que o homem não é apenas abd, servo de Deus, mas também Seu khalifa, vice-regente. O princípio metafísico, aqui, é que, como toda queda é de um plano de ser relativamente mais real e mais eterno para um relativamente menos real e mais temporal, há sempre um sentido em que a queda em questão nunca ocorreu; uma queda na ilusão é sempre, de certo modo, ilusória. (O romance de Hermann Hesse Viagem ao Oriente trata exatamente disso.) Como dizem os budistas, “todos os seres são iluminados desde o princípio.” Assim, o Adão que nunca caiu, o arquétipo do Homem no plano sutil-material — que é Yima, o Manu hindu e Melquisedeque — está, de certo modo, ainda nos governando. Se ele não estivesse ainda lá, no plano sutil, nós não estaríamos mais aqui, no plano material, pois ele é parte de nosso “caule”, nossa conexão viva e contínua com o Criador por meio do Mundo Invisível. A questão é: podemos voltar-nos para ele como um “Polo” em algum sentido real e espiritualmente eficaz? Muita água já passou debaixo da ponte desde a Idade de Ouro, e continua a passar cada vez mais depressa. Espiritualidades primordiais ainda podem olhar para aquele a quem os mandeus do Iraque chamam de “Adão Secreto”, mas o homem histórico não é agora primordial, exceto em essência. O ciclo seguiu adiante; entramos no mundo da queda e da redenção, e portanto devemos recorrer a salvadores, em vez disso — profetas como Abraão, Moisés e Maomé; avatares como Rama, ou Krishna, ou Jesus. Certamente ainda existem religiões que voltam-se para o Ancestral Primordial em vez do Salvador — já vindo ou por vir — como seu foco espiritual; isso é verdadeiro para muitas religiões africanas e para o totemismo em geral, como o era para o antigo culto chinês ao Imperador Amarelo. Mas praticamente todas essas religiões mostram sinais de séria degeneração. E a avançada da hora reflete-se ainda, de um modo que considero normativo, no fato de que o culto de Brahma, o Criador, essencialmente se extinguiu no hinduísmo; os devotos hindus agora olham ou para Vishnu, o Preservador, ou para Shiva, o Destruidor. Além disso, a história avançou tanto em direção ao fim do éon que o esperado advento de Kalki, ou Maitreya, ou al-Mahdi, ou o Cristo escatológico começa a exercer sua atração magnética e tornar-se nosso novo Centro espiritual. Em termos cíclicos, isso deixa o Adão primordial bem para trás.

E, no entanto, a eternidade nunca está “para trás”. A verdade de que Adão, em um sentido específico, jamais caiu de fato, sempre estará presente no pano de fundo deste mundo caído. Ela está, de certo modo, mais próxima no islã do que no cristianismo — ao menos no cristianismo ocidental —, já que os muçulmanos não reconhecem uma queda total do homem, uma corrupção da própria substância humana, mas apenas ghaflah, “desatenção”, a amnésia platônica — embora as consequências dessa desatenção sejam tão graves quanto as de qualquer pecado original. No islã, um ser humano ainda pode permanecer diante de Deus como Adão, em sua natureza original não caída, sua fitrah. Mas, como Blake mostra por meio de sua figura de Albion, o Homem Antigo, o Rei do Mundo é, em sentido muito real, caído ou deposto. Dentro do universo cristão, ele precisa de Cristo para redimi-lo; isto é o que se entende pelo “despojo do inferno”, que se segue à crucifixão e precede a ressurreição. (Yima, também, está caído de um modo, não caído e eterno de outro.) Como em Jerusalém de Blake, Jesus deve despertar Albion/Adão de seu sono semelhante à morte sobre a Rocha dos Séculos, onde jaz submerso, como a Atlântida perdida, sob o Mar do Espaço e do Tempo.

Guénon, em O Reino da Quantidade, diz que o Anticristo será uma espécie de Chakravartin invertido, um falso Rei do Mundo. Portanto, a pergunta surge inevitavelmente: O que esse falso Rei tem a ver com o verdadeiro Rei do Mundo, supostamente ainda reinando em Shambhala/Belovódia/Avalon? Estão eles em guerra nesse outro mundo? Se o Rei do Mundo é, em certo sentido, não caído e ainda reinante, e em outro sentido deposto, e se o Anticristo está destinado a aparecer como um falso Rei do Mundo, então qual é exatamente o papel escatológico de le Roi du Monde?

Em That Hideous Strength (Aquele Forte Abominável), de C. S. Lewis, trava-se uma guerra entre os poderes da Luz e das Trevas para ver se a antiga magia pagã representada por Merlin — que não teve pai humano e que nunca morreu (como Elias, Enoque, Khidr e o Décimo Segundo Imã), mas foi “ocultado” — cairá sob o poder das forças da Verdade ou sob o das do Anticristo. Se tomarmos Merlin como representante da Tradição Primordial, ao menos para Lewis (que, além disso, relaciona Merlin ao sacerdócio de Melquisedeque), podemos apoiá-lo em sua intuição de que os remanescentes de certas espiritualidades arcaicas podem e irão apoiar as forças da Luz no combate escatológico: Segundo a doutrina zoroastriana pertinente, durante o Frashegird o Var de Yima será aberto; seus habitantes emergirão e unir-se à luta cósmica até o triunfo final do bem. Assim, a primordialidade une forças com a escatologia, do mesmo modo que a natureza original do homem, criada por Deus, une-se à redenção e à Graça divina; Yima apoia Saoshyant — o primeiro “salvador” luta ao lado do último. Da mesma maneira, a escatologia xiita prevê o retorno dos mais justos, assim como dos mais ímpios dos mortos, antes da ressurreição geral, dando aos justos a oportunidade de finalmente triunfarem sobre seus opressores. O epíteto mais comum do Mahdi xiita, al-Qā’im — “aquele que se levanta” — denota tanto a ressurreição dos mortos quanto a “insurreição” contra a tirania. Quando João Batista, vestido com peles de animais e alimentando-se de frutos silvestres em vez de cultivados, anunciou a vinda de Jesus Cristo, creio que ele estava conscientemente encenando o papel do Adão primordial (possivelmente em sua versão essênia ou mandeana), como arauto e aliado do Salvador.

Como o evento escatológico é uma irrupção da Eternidade no tempo, ele deve incluir todas as manifestações da Verdade Divina compreendidas no ciclo que chega ao fim; deve ser uma recapitulação, bem como uma morte e renascimento. A ênfase dos escritores tradicionalistas sobre a Tradição Primordial e a Unidade Transcendente das Religiões é, portanto, uma expressão necessária e providencial da verdade espiritual para estes últimos dias.

A sombra sempre presente da primordialidade, entretanto, é o atavismo. O retorno das espiritualidades arcaicas, em forma degenerada, para o fim do ciclo, inevitavelmente exerce um efeito destrutivo sobre as religiões reveladas. Somente a teofania messiânica tem o poder de libertar a primordialidade de sua casca atávica. E a distinção entre a Unidade Transcendente das Religiões, de um lado, e aquela “espiritualidade de fusão mundial” sincretista, marca registrada do Anticristo, de outro — uma coleção de fragmentos inteiramente pós-moderna em seu niilismo — é simplesmente sutil demais para ser compreendida por todos os atraídos mesmo pela metafísica tradicional. (O próprio Schuon parece ter suspeitado disso em A Unidade Transcendente das Religiões, seu segundo livro, quando caracterizou sua revelação aberta das doutrinas esotéricas como uma resposta anormal exigida por uma situação anormal, e expressou sua crença de que “o mal que poderia, em princípio, sobrevir a certas pessoas pelo contato com as verdades em questão é compensado pelas vantagens que outros obterão das mesmas verdades.”)

A sombra satânica da Unidade Transcendente das Religiões, em outras palavras, é precisamente o pseudo-esoterismo do Anticristo. Se o patrono simbólico da espiritualidade primordial é Adão, então podemos dizer, em terminologia cristã, que, embora ele tenha sido redimido pelo sacrifício de Cristo, as consequências de seu pecado não foram, por isso, apagadas. Desde a Redenção, ele — e a raça humana — tem estado num estado purgatorial. Sua alma está no Paraíso, mas seus descendentes — que são, em certo sentido, o seu corpo — embora virtualmente redimidos (“está consumado”), ainda não estão plenamente santificados (“toma tua cruz e segue-Me”). Somente no apocalipse, somente na ressurreição do corpo, quando os mortos ressuscitam e os vivos são transformados, as consequências da ação humana — virtuosa e pecaminosa — são finalmente colhidas no nível macrocosmico. Só então o bom grão é recolhido e o joio lançado ao fogo. Portanto, invocar a espiritualidade primordial nos últimos dias do ciclo, antes que a segunda vinda de Cristo a invoque de forma definitiva, é servir tanto à agenda do bem quanto à do mal, tanto de Cristo quanto do Anticristo. É tornar virtualmente presente, junto com a primordialidade do estado edênico, a totalidade do carma humano deste ciclo — e, assim fazendo, servir à polarização final, àquela separação das ovelhas e dos bodes que culminará na batalha do Armagedom.

Em Lógica e Transcendência, Frithjof Schuon articula claramente o que espera (ainda que dificilmente espere alcançar) ao promulgar sua doutrina da Unidade Transcendente das Religiões:

“No período cíclico em que vivemos, a situação do mundo é tal que o dogmatismo exclusivo (ainda que não o dogmatismo em si, uma vez que os dogmas são necessários como fundamentos imutáveis e possuem dimensões internas e inclusivas) tem dificuldade em sustentar-se; queira ou não, precisa de certos elementos esotéricos, sem os quais corre o risco de expor-se a erros de tipo muito mais questionável que a gnose [que, para Schuon, não é um erro, ainda que certamente o seja para alguns dogmáticos]. Infelizmente, escolhe-se o caminho errado; busca-se a saída de certos impasses, não com a ajuda do esoterismo, mas recorrendo às mais falsas e perniciosas ideologias filosóficas e científicas, e, pela universalidade do espírito — cuja realidade é confusamente percebida —, substitui-se um chamado ‘ecumenismo’ que consiste em nada mais que banalidades e sentimentalismos e que aceita tudo sem discriminação.
A atitude oposta, da crença literal estreita, ainda é espiritualmente viável dentro de um sistema fechado que nada conhece de outros mundos tradicionais, mas a longo prazo é insustentável e perigosa num universo onde tudo se encontra e se interpenetra... Tornou-se impossível defender efetivamente uma única religião contra todas as outras declarando as demais anátema sem exceção; persistir nisso (a menos que se viva em uma sociedade ainda medieval, caso em que a questão não se coloca) é um pouco como tentar manter o sistema ptolomaico contra a evidência dos fatos astronômicos verificados e verificáveis.
Mesmo assim, não acreditamos que a solidariedade espiritual assim imposta deva ou possa implicar um entendimento mútuo completo; ela pode deter-se pela metade, ao menos para o homem comum, especialmente porque é sempre possível colocar entre parênteses as questões que não se pode ou não se deseja resolver. O que temos em mente — insistamos mais uma vez — não é a ideia, autodestrutiva na prática, de uma compreensão metafísica e quintessencial generalizada, mas simplesmente a possibilidade de uma compreensão adequada que sirva, por um lado, para salvaguardar a herança religiosa contra os avanços da mentalidade cientificista onipresente e, por outro, para suscitar uma solidariedade perfeitamente lógica e dessentimentalizada entre aqueles que tradicionalmente reconhecem a transcendência e a imortalidade.” (pp. 4–5)

Schuon parece ter previsto o possível dano que poderia advir aos indivíduos pela revelação aberta das verdades esotéricas, bem como a inevitável tendência de confundir a Unidade Transcendente das Religiões com o sincretismo. Mas, ao descartar uma “compreensão metafísica e quintessencial generalizada” — o que eu chamaria de uma metafísica genérica extra-tradicional — como algo “autodestrutivo na prática”, parece não ter percebido completamente o perigo desse desenvolvimento, perigo que, com a clareza da retrospectiva, demonstrei no Capítulo Nove e em outras partes deste livro. Autodestrutivo, pode ser, em termos espirituais; em termos sociais e psicológicos, porém, é autopropagante. Como diz Guénon em O Reino da Quantidade (pp. 293–294):

“A ‘contra-iniciação’ trabalha com o objetivo de introduzir seus agentes... até mesmo... em organizações autenticamente iniciáticas... mas apenas quando seu espírito tradicional está tão enfraquecido que já não pode resistir a uma penetração tão insidiosa... este último caso... é a aplicação mais direta possível da atividade dissolutiva.”

E, eu acrescentaria, esses “agentes” não são necessariamente indivíduos; podem ser igualmente crenças e suposições inconscientes, carregadas de elevada energia psíquica coletiva.

O perigo de uma abordagem primordial à espiritualidade é que ela pode levar seus devotos a imaginar que a Idade de Ouro realmente retornou. Mas, mesmo que as fronteiras do presente ciclo se tornem tão translúcidas, devido à sua extrema velhice, que os contornos do ciclo por vir possam ser claramente vistos através de sua pele, ainda assim não podemos chegar lá a partir daqui. E acreditar que podemos fazê-lo, sem o incômodo do juízo apocalíptico — ou simplesmente sem a própria morte — é talvez o erro central da Nova Era.

A forma da Tradição Primordial deve brilhar através das paredes adelgaçadas da realidade material ao final do ciclo; a luz que ela emite tem a função crucial de preparar-nos, como nada mais poderia, para a ira vindoura — e para a maior Misericórdia pela qual essa ira será finalmente vencida, quando a morte for tragada na vitória. Mas aqueles que seguem essa luz de modo literal, como se pudessem possuí-la, são conduzidos à tentação profunda: o que poderia ser mais espiritualmente enganoso do que crer que uma inocência edênica primordial pode manifestar-se abertamente nestes tempos humanos mais degenerados, sem lançar nossas pérolas mais preciosas diante dos piores porcos do ciclo? Nós, hippies, tentamos isso — e aprendemos, da forma mais dura, que não funciona. Se quisermos ser mansos como as pombas, é melhor que sejamos também astutos como as serpentes.

Foi a missão de Frithjof Schuon (ainda que não apenas dele) desdobrar a Maya do Intelecto Transcendente para o período final deste ciclo e projetar suas formulações doutrinais incomparáveis sobre a vasta tela do mundo. Maya, contudo, é ilimitada, incontrolável, espalhando impiedosamente as sementes de todas as coisas — boas e más, velhas e novas, sábias e ilusas. Como aspecto da Infinidade Divina, não pode ser contida por limites morais nem doutrinais. Diante dessa Maya, tudo o que se pode fazer é submeter-se à vontade de Deus e implorar Sua graça, sacrificando toda tentativa autocentrada de alcançar encerramento pragmático ou conceitual. Este é o caminho para o Paraíso — assim como a persistência em tentar derivar imperativos estratégicos ou um sentido sistemático do mistério da Auto-revelação infinita de Deus é o caminho para o Inferno. É precisamente para este propósito, ao que parece, que a Maya do Intelecto Transcendente é desdobrada nos tempos escatológicos: para separar as ovelhas dos bodes.


Lutando com a Tradição

Eu disse acima que a primeira coisa necessária a quem deseja praticar a Unidade Transcendente das Religiões é simplesmente aceitar uma das tradições religiosas reveladas e permanecer fiel a ela, tanto em termos de prática exterior quanto de verdade interior. Mas quão simples é isso, de fato? A verdade é que não é simples — especialmente hoje.

Tantos aspectos da vida que, em tempos mais estáveis, eram o direito de nascença de quase todos — uma família, uma comunidade, um matrimônio, um ofício ou profissão, uma religião — agora precisam ser alcançados por meio de um autêntico tour de force. Nem todos, com o grau normal de talento e desenvolvimento humano, são necessariamente capazes de encontrar ou construir aquela matriz de sentido e valor que outrora era dada — ou, como os progressistas gostam de dizer, “imposta” — pelos padrões e instituições sociais tradicionais. E não é menor, entre as “guerras de orientação” que devemos travar nestes tempos, a luta para chegar a um acordo com um universo religioso tradicional.

Essa luta tem vários aspectos. O primeiro é superar, com honestidade, nossas próprias suposições modernistas, pós-modernas, materialistas ou ocultistas — sem simplesmente suprimi-las ou negá-las — por meio do Intelecto, e não apenas pela vontade. Cada suposição deve ser claramente identificada, confrontada com a doutrina tradicional que ela foi inventada para ocultar, e derrotada em combate intelectual consciente — um combate que leve em conta toda a gama de nossos sentimentos tanto quanto de nossas ideias, pois os sentimentos são muitas vezes apenas ideias que ainda não estão claras, assim como as ideias, quando plenamente realizadas, não contradizem nossos sentimentos mais verdadeiros, mas são, em certo sentido, as formas objetivas ou “cristalizadas” assumidas por esses sentimentos.

Adotar meramente um conjunto de valores tradicionais do mesmo modo como se adquiriu os valores modernistas — por identificação inconsciente do ego — nunca será suficiente. Isso pode transformar alguém num reacionário ou num “purista”, mas jamais num verdadeiro tradicionalista. Por outro lado, esperar até que todas as objeções emocionais e intelectuais sejam respondidas antes de fazer um compromisso tradicional é, na maioria dos casos, esperar demais. Assim que o Intelecto — o centro espiritual — se sente atraído por uma forma tradicional (atração que se manifestará em termos de pensamento e sentimento, ainda que, dependendo do tipo psicológico, tenhamos consciência mais de um do que do outro), então a vontade deve responder. Se não o fizer, se tentarmos reter nossa vontade de nos comprometer até que a compreensão intelectual seja perfeita, talvez já tenhamos perdido o barco.

Cada aprofundamento da compreensão deve ser acompanhado por um movimento da vontade, caso contrário desperdiçaremos nossas vidas construindo castelos acadêmicos no ar, sem jamais dar o primeiro passo real. Como disse o centurião romano a Jesus: “Creio, Senhor; ajuda a minha incredulidade.”

Quando alguém vive sua vida espiritual como um caos de incertezas e atrações conflitantes, uma forma religiosa tradicional pode parecer um ponto de estabilidade absoluta — um porto seguro contra as tempestades do mundo exterior e da alma fragmentada. Infelizmente, nem sempre é assim. A estabilidade está realmente ali, mas frequentemente vem acompanhada de um nível de instabilidade e conflito maior do que aquele que o mundo exterior sozinho pode produzir. Igrejas, sinagogas, ashrams, zawiyas, mesquitas e zendos são instituições humanas, cheias de fraquezas humanas. E o próprio fato de que sua razão de existir é colocar-nos em contato com o Absoluto, a “Rocha dos Séculos”, frequentemente amplia essas fraquezas desproporcionalmente.

Faltas éticas que pareceriam insignificantes num advogado, por exemplo, tornam-se escandalosas num ministro ou mestre espiritual. E, de certo modo, essa reação é justificada: quanto mais nos aproximamos da Luz, mais agudo e escuro se torna o Sombra. A instabilidade do “eu comandante” e os ataques do Mundo e do Diabo nunca são tão intensos quanto na proximidade imediata daquela estabilidade absoluta que é a Verdade Divina.

As queimaduras infligidas à alma pelas falhas de um líder espiritual são muitas vezes mais profundas do que as causadas por um médico ou advogado antiéticos — especialmente se a sinceridade do discípulo é maior do que sua sabedoria; isso vale em dobro, naturalmente, para o Caminho espiritual esotérico.

Neste ponto, é necessário aplicar a verdade metafísica de que tudo o que acontece, pareça bom ou mau para nós, é uma manifestação do Divino. Nem todas as coisas são sábias ou boas como escolhas, mas todas são verdadeiras como atos e palavras de Deus. O ego humano, ainda praticando sua astúcia e impondo suas agendas em proximidade com a sabedoria e o poder de Deus, é uma das melhores definições possíveis de Satanás.

E quando Satanás aparentemente assume uma igreja ou grupo espiritual, muitas vezes a única coisa que se pode fazer — dado que não somos santos — é sair o mais rápido possível antes que a alma sofra dano permanente. Como dizem na Jamaica: “Às vezes, ausência de corpo é melhor do que presença de mente.”

Mas o fato permanece: as acrobacias do ego — individual ou coletivo — diante do Absoluto constituem não apenas a forma mais perigosa de ilusão espiritual, mas também a mais poderosa forma de purgação espiritual. Quanto mais profunda a ilusão, mais profunda a lição — para aqueles que têm olhos para ver, resistência para suportar e permissão de Deus para correr o risco.

Outro aspecto da luta com a tradição é o fato de que todas as tradições estão sob ataque nestes últimos dias — pelas forças do globalismo pós-moderno, de um lado, e pelas reações separatistas e reacionárias ao globalismo, de outro A luta contra o eu dominante, que se desenrola no contexto do drama normal das relações humanas — intensificado pela proximidade com o Espírito —, é hoje agravada pela incerteza quanto às próprias doutrinas e práticas. O que constitui uma ruptura herética com a tradição, e o que é simplesmente uma adaptação sábia às condições do tempo? O que é, na realidade, uma defesa heroica da Tradição — de um veículo único e insubstituível da relação entre o Absoluto e a vida terrena — e o que é apenas uma defesa violenta, fanática ou estupidamente petrificada de aspectos acidentais, ainda que de antiga linhagem, que nada têm a ver com a vida espiritual?

A luta para compreender e reconciliar-se com a Tradição, combinada à luta paralela para avaliar a saúde ou doença da forma tradicional à qual se é atraído, pode impor um fardo esmagador à relação da alma com Deus. Muitas pessoas hoje, despertando para esse fardo, simplesmente o descartam, concluindo — com a ajuda entusiástica do mundo contemporâneo — que não vale o esforço. É muito mais fácil, diante de um mundo cada vez mais dividido entre o pluralismo cultural pós-moderno e a reação fundamentalista, dizer apenas “uma praga sobre ambas as casas”, optar por uma espiritualidade “individualista” autodirigida ou, simplesmente, afundar em uma apatia cínica e entorpecida.

Devemos lembrar também que o esforço de estabilizar a própria filiação religiosa, embora necessário, não é suficiente para definir o caminho espiritual. Não estamos aqui para nos identificar com formas religiosas, mas para nos lembrarmos de Deus. Nossa busca por formas dotadas de profundidade, estabilidade e ortodoxia deve sempre ser vista à luz dessa Meta superior e central.


Lutar ou não lutar

O iminente Governo Mundial Único apresenta muitos sinais de ser o regime predito do Anticristo. Mas, como já observei, não é tão simples assim, pois as forças “tribais” que reagem contra o globalismo são, em última análise, parte do mesmo sistema. Segundo um dos muitos cenários possíveis, as forças satânicas que operam no fim do Éon poderiam muito bem estabelecer um Governo Mundial apenas para preparar o palco para o surgimento do Anticristo como grande líder de uma revolução mundial contra esse governo — revolução que, se triunfasse, seria o verdadeiro Governo Mundial.

Ou o martírio do Anticristo, às mãos de tal governo, poderia ser um sacrifício deliberado — ou mesmo encenado —, imitando falsamente a morte de Cristo e conduzindo a uma ressurreição igualmente falsa. Não afirmo que isso acontecerá; não faço prognósticos. Quero apenas indicar que o Anticristo, enquanto manifestação espúria da universalidade divina, terá a capacidade de usar todos os lados de qualquer conflito, inclusive um conflito global, para consolidar seu poder — com exceção do Conflito Messiânico final, chamado Armagedom no Apocalipse, o qual é iniciado e concluído pelo próprio Deus.

O “discernimento dos espíritos” nos tempos apocalípticos talvez possa ser reduzido à capacidade de responder, em muitas circunstâncias diferentes, a uma única pergunta: qual é a verdadeira guerra? Se o Anticristo conseguir nos tentar a lutar antes da hora, ou em um campo demasiado estreito — ou, inversamente, se conseguir nos levar a adiar a escolha por tempo demais —, então já terá vencido.

Eis o perigo do método que adotei: o de multiplicar os critérios pelos quais o futuro Avatāra pode ser distinguido do Anticristo. O risco é cairmos num tipo de regressão paranoica infinita, como no mundo da espionagem, onde todo agente duplo é, na verdade, triplo, e nada é o que parece. Porque, em outro sentido, as coisas são sempre o que parecem — para os puros de coração.

Se conheces o teu próprio ego, conheces o Anticristo; se conheces o Deus dentro de ti, conheces o próprio Deus. Os critérios pelos quais se reconhece o Anticristo são os mesmos pelos quais se reconhece o pecado: se compreendemos o que é a Sabedoria Divina, reconheceremos o que lhe é contrário; se conhecemos o que é o Amor Divino, perceberemos o que o viola.

Os sinais do fim nas diversas escatologias tradicionais não podem ser aplicados diretamente à história sem antes serem aplicados ao estado da própria alma. Só depois que o “discernimento dos espíritos” estiver estabelecido em nosso intelecto, vontade e afetos é que poderemos voltar-nos e ver as forças atuantes nestes últimos dias da história mundial à luz da verdade objetiva. Se sabemos como o ego opera — sobretudo quando tenta apropriar-se de nossa luta contra a tentação para reivindicar santidade para si, ou forçar sua entrada nos mistérios de Deus para reivindicar sabedoria —, não seremos enganados pelos movimentos análogos do Anticristo no campo da história.

A capacidade do Anticristo de lutar simultaneamente em todos os lados de uma guerra — espalhando ilusão, paranoia e conflito autoperpetuante —, que é uma paródia satânica da presença oculta de Deus por trás de cada máscara humana, talvez não encontre ilustração melhor do que a situação contemporânea de Israel.

Cada ato de opressão e/ou legítima defesa do governo israelense; cada ato de terrorismo e/ou autoproteção legítima dos “extremistas” palestinos; cada gesto contraditório de “moderação” da OLP; cada ato de intervenção e/ou negligência do Irã, Rússia, Egito, Síria, Líbano, Jordânia, Estados Unidos, Europa Ocidental ou ONU — todos, passados certos limites, produzem o mesmo efeito: o endurecimento das linhas, a escalada do conflito.

Isso não significa que umas ações sejam tão boas ou más quanto outras, mas que a própria situação adquire vida própria e impõe o seu tributo sobre todas as formas concebíveis de se relacionar com ela.

É espantoso perceber que, sob uma determinada ótica, os mesmos “lugares sociopolíticos” existentes na Palestina de hoje já existiam no tempo de Jesus, há dois mil anos — apenas ocupados por forças diferentes. O governo de Israel ocupa o lugar dos escribas e fariseus. Os palestinos militantes estão onde estavam os zelotes. Os Estados Unidos e/ou a ONU assumem o papel do Império Romano. E a posição singular de Jesus — no centro, onde todas as forças sociais convergiam — seria hoje ocupada por Yasser Arafat, crucificado como está nos chifres de cada contradição... mas, evidentemente, Arafat não é Jesus; ele não transcende as condições que ocupa, é apenas o fantoche delas.

Jesus de Nazaré estava profundamente consciente das forças políticas de seu tempo — e, no plano humano, precisava estar. Isso não quer dizer, claro, que fosse algum tipo de revolucionário político; talvez necessitasse apenas de certa sagacidade política para evitar ser forçado a tomar partido — a favor ou contra o partido do Templo em sua acomodação com Roma, ou a favor ou contra os Zelotes — num mundo em que todos aparentemente tinham de escolher um lado, e em que tudo caminhava inexoravelmente para a Revolta Judaica de 66 d.C.

Quando seus oponentes o desafiaram publicamente a responder se era lícito pagar o tributo romano, acreditaram tê-lo encurralado. Se dissesse “sim”, perderia o apoio dos Zelotes, que viam o tributo como um ato de adoração ao imperador — uma blasfêmia contra Javé —, já que a moeda do imposto trazia a efígie de César, um “ídolo”. Também perderia sua autoridade moral para criticar os escribas e fariseus, que haviam se acomodado ao poder romano.

Se dissesse “não”, seria identificado com os Zelotes e poderia ser preso por sedição, sua morte se tornando indistinta da de tantos outros rebeldes “unidimensionais” como Barrabás.

Seu modo de atravessar as symplegades — os rochedos estreitos dessa contradição sociopolítica — foi uma obra-prima de sublimação, e talvez nos dê uma pista de como evitar ser arrastados para conflitos falsos ou estreitamente definidos, trilhando, em vez disso, o caminho que conduz à guerra verdadeira.

Primeiro, pediu a alguém que lhe mostrasse a moeda do tributo, demonstrando assim que não possuía dinheiro — era um dos “pobres” aos quais viera anunciar a Boa Nova (fuqarā’, plural de faqīr, sinônimo de “sufi”) — e também que a moeda “idólatra” estava em livre circulação.

Depois, ao perguntar “de quem é esta imagem?” e ouvir “de César”, distanciou-se dos Zelotes, mostrando que a moeda não poderia ser um ídolo, pois César não era Deus; por isso, devolver a César o que era de César não era blasfêmia.

Ao mesmo tempo, afirmava implicitamente que devolver a imagem do pequeno falso deus a ele mesmo podia até ser visto como condescendência dos judeus, que conheciam e adoravam o Deus vivo; seu estatuto de povo escolhido permanecia intacto, e não seria violado por satisfazer o narcisismo desses pequenos césares autoproclamados.

Sem essa combinação de sabedoria política e discernimento espiritual, Jesus teria sido arrastado a um conflito político e sua missão teria fracassado — humanamente falando, pois, do ponto de vista divino, sua missão era ordenada por Deus e não poderia falhar.

Essa lição prática sobre como não ser tragado por conflitos políticos prematuros e estreitos — que comprometem a percepção espiritual e a prontidão para escutar o verdadeiro chamado divino — tem também um lado esotérico: é uma “parábola em ação” de como ultrapassar os pares de opostos e realizar o Absoluto.

Os cristãos ortodoxos orientais interpretam “o que é de César” como o peso de ouro da moeda, e “o que é de Deus” como a forma humana nela gravada, feita à imagem e semelhança de Deus. A matéria de nossas vidas pertence a este mundo; nossas riquezas passarão a outros, nossos corpos à terra. Mas a forma — o selo da imagem divina — pertence a Deus por toda a eternidade. Por isso, na ressurreição, ela pode ser novamente “encarnada” em substância gloriosa e incorruptível.

A lição é esta: não é a matéria de nossas vidas que devemos proteger do Anticristo — como pensam certos sobrevivencialistas —, mas a forma. Nos últimos dias, como sempre, a verdadeira luta não é por conservar os bens, nem mesmo a vida, mas por não perder a alma. Em última instância, isso é tudo o que nos é exigido.

Num mundo definido por falsos conflitos de toda espécie, qual é a guerra verdadeira?
A resposta muçulmana é: o Maior Jihad, a guerra contra tudo em si mesmo que se opõe a Deus.

Mas o Maior e o Menor Jihad — este último sendo a luta no mundo exterior contra o que ataca ou corrompe a religião — não são independentes. Tudo o que podemos esperar nos tempos finais — e é realmente a maior esperança que a humanidade pode ter — é permanecer fiéis à Verdade.

Porém, às vezes, para não sermos afastados dela pelo medo ou seduzidos por tentações satânicas, é necessário defendê-la ativamente no mundo exterior — por palavra ou ação.

Se não estivermos dispostos a arriscar reputação, sustento ou vida quando as circunstâncias o exigirem, como poderemos garantir que nossa fidelidade interior a Deus é algo mais que orgulho espiritual?

Por outro lado, se realmente tivéssemos vencido a Besta interior — o “eu dominante” —, o terror e a sedução do mundo não teriam poder sobre nós.

Assim, o Menor Jihad, por mais necessário que seja, é sempre, em certo sentido, uma projeção do Maior Jihad no palco do mundo; é a guerra contra o nafs al-ammāra, o eu imperioso, travada em alegoria e por procuração.

Talvez a melhor resposta à pergunta “lutar ou não lutar?” seja: aprende a lidar apenas com o inimigo, interior ou exterior, que está diretamente em teu caminho.

Se tentares lutar a batalha de outro, Deus não te apoiará. E se abandonares teu caminho verdadeiro por fome de conflito, ou impaciência para ver tudo resolvido, já foste derrotado.

Por isso é tão importante conhecer o próprio caminho como ele realmente é — para distinguir entre os talentos concedidos por Deus, que não devem ser enterrados, e as agendas autoimpostas, que precisam ser sacrificadas.

O mínimo que se pode dizer, em termos concretos, é que uma denúncia do regime do Anticristo — como a dos “duas testemunhas” do Apocalipse — será apropriada em muitas circunstâncias (embora claramente não em todas, já que o disfarce e o silêncio prudente podem ser necessários para autoproteção ou proteção dos outros).

Mas devemos lembrar sempre que a guerra contra o Anticristo — no mundo exterior e, ainda mais, no interior — é também terreno fértil para o crescimento do orgulho espiritual. Que poderia ser mais embriagante do que acreditar ser parte de um “resto eleito”, chamado por Deus a desafiar a Besta? Já vimos muitos fanáticos políticos e religiosos possuídos por essa ideia — e veremos muitos mais.

Felizmente, a vitória em termos mundanos é, nos últimos dias, impossível aos fiéis, embora pequenas vitórias ainda possam ser conquistadas.

O melhor que podemos esperar é que todos nós — vindos de qualquer religião verdadeira e inspirada por Deus — um dia nos encontremos com as costas contra a mesma parede.

Ó, bem-aventurada parede!
Ali todas as esperanças se cumprirão, para aqueles que, pela graça de Deus, não conservaram outra esperança senão Ele.

Segundo alguns sufis, o Anticristo é precisamente o nafs al-ammāra, o “eu mandante” ou “ego exigente”; o conflito entre globalismo e tribalismo é o reflexo do conflito aparente, no nafs, entre o orgulho complacente e a rebeldia violenta.

O seguinte trecho é retirado de Marmūzāt-i Asadī, de Najm ad-Dīn Rāzī, com citações do Alcorão:

“Quanto à verdade sobre Jesus e o Anticristo e o contraste e semelhança entre eles, pode-se dizer que a semelhança é superficial e o contraste fundamental.
Sob o aspecto da aparência, ambos são chamados ‘Messias’, ambos têm um jumento, ambos estão vivos e ambos fazem os mortos viver.
Ora, Jesus é chamado ‘Messias’ por viajar pelos céus, enquanto o Anticristo é chamado ‘Messias’ por viajar pela terra de oriente a ocidente.
Jesus é celeste e o Anticristo é terreno.
Jesus tem visão e confere visão aos outros — vidente porque, em sua infância, disse: ‘Em verdade sou servo de Deus’ (Maria, 30), e conferindo visão ao curar ‘o cego e o leproso’ (A Família de Imran, 49; A Mesa Servida, 110) —, enquanto o Anticristo é cego e cega os outros, pois apresenta a Verdade como falsidade e a falsidade como Verdade.
Jesus traz os mortos à vida como milagre, para dar fundamento à fé; o Anticristo reanima os mortos como demonstração de poder, para induzir à negação da fé.
E o surgimento do Anticristo a partir da terra serve para instaurar um reino de opressão e corrupção, enquanto a descida de Jesus do céu é para instaurar um reino de equidade e justiça.”

Esteja ciente de que tudo no reino da forma é um reflexo daquilo que está no reino do espírito, e tudo quanto há nos reinos da forma e do espírito está representado no homem. Assim, o “jesuicismo” em ti é o teu espírito, pois acerca de Jesus se disse: “Sopramos do Nosso Espírito nele [ventre de Maria]” (“O Banimento”, 12), ao passo que acerca de ti se disse: “Soprei nele [Adão] do Meu Espírito” (“Al-Hijr”, 29). Jesus dá vida aos mortos, assim como o espírito dá vida ao corpo morto. Jesus teve mãe, ao passo que o Sopro Divino lhe fez as vezes de pai; do mesmo modo, o espírito (de cada pessoa) é gerado pela mãe dos elementos e pelo pai do Sopro. Jesus é sublime e o espírito é sublime; Jesus é a Palavra e o espírito é a Palavra, conforme indica a expressão de que o “espírito é por ordem do meu Senhor” (“A Ascensão Noturna”, 85). Jesus montou um jumento, assim como o espírito cavalga o corpo.

E o Anticristo é representado em ti pelo teu “ego exigente”. O Anticristo é caolho, tal como o teu ego, que vê somente o mundo e é cego para o além. Tudo quanto o Anticristo apresenta como paraíso é, na realidade, inferno; e o que apresenta como inferno é, na verdade, paraíso. Do mesmo modo, o ego apresenta as paixões e prazeres carnais como paradisíacos, quando na verdade são infernais, e apresenta a devoção e o culto espiritual como infernais, quando na realidade são celestiais por natureza.

O Anticristo monta um jumento, e o teu ego possui qualidades bestiais. O mistério de tudo isso é que, embora Jesus estivesse no mundo, assim como o Anticristo, Jesus foi levado ao céu por algum tempo, enquanto o Anticristo foi encerrado nas entranhas da terra. Então, primeiro o Anticristo será trazido à luz para devastar a terra, criar desordem e perpetrar corrupção, reclamando para si a divindade. Em seguida, Jesus será trazido de cima e receberá o domínio, afirmando ser o servo de Deus. Ele logrará matar o Anticristo e então instaurará um reino de prosperidade, justiça e equidade. Depois de algum tempo, passará deste mundo, e o Dia do Juízo estará às portas.

Do mesmo modo, espírito e ego são reunidos no mundo da humanidade. Contudo, o espírito é elevado ao céu do coração, ao passo que o Anticristo do ego é confinado à terra do estado humano. Leva vários anos para a humanidade desenvolver todo o seu potencial e para os constituintes do corpo amadurecerem adequadamente. Primeiro, o Anticristo do ego emerge dos limites da infância, montado no asno das qualidades animais, lançando-se em seu programa de devastar o mundo, reclamando divindade ao modo de “Viste aquele que toma o desejo por seu deus...?” (“Os que se Ajoelham”, 23), e exortando para o inferno da cobiça e da luxúria como se fosse a meta celeste, ao mesmo tempo que difama o céu da devoção e do culto como se fosse inferno. Ele mata os crentes das qualidades louváveis e angélicas com as mãos descrentes das qualidades satânicas e condenáveis, ressuscitando as potências mortas na natureza humana, até que, de súbito, a graça inimaginável traz do Alto o Jesus da espiritualidade, montado nas asas régias do Gabriel da Lei, tomando voo do excelso céu do coração para descer ao mundo da humanidade.

A Razão, deixada atrás, fita o seu estribo em partida,
Enquanto o Amor avança à frente, montado ao seu lado.

Jesus mata o Anticristo do ego, decepando-lhe a cabeça da natureza material, e estabelece o domínio da justiça e da equidade da espiritualidade no mundo da humanidade, destruindo o porco da avidez, quebrando a cruz da natureza carnal e cortando os grilhões da paixão.

JESUS AOS OLHOS DOS SUFIS, Dr. Javad Nurbakhsh, pp. 61–64

Quando o Anticristo se ergue, o Cristo está próximo. Quando o ego vem a lume de modo evidente, o Intelecto espiritual, por ver a sua estrutura inteira, já não fica velado por ele; o Olho do Coração está aberto. Quando aquilo que supúnhamos ser um objeto sólido é visto como sombra, então, como toda sombra, dá testemunho da Luz.

O mal, como todas as coisas, está aqui para nos ensinar. No início, ensina-nos a sua própria realidade maciça como uma parede que nos separa de Deus, um poder a ser combatido sem quartel. No fim, ensina-nos a sua própria vacuidade, a sua irrealidade fundamental. Mas até conhecermos a sua realidade, jamais conheceremos a sua vacuidade. Até sabermos que a luta contra o mal cabe inteiramente a nós, e que a batalha nunca terminará, jamais saberemos que, na realidade, a luta contra ele é só assunto de Deus, e que a batalha já terminou. Nunca foi necessária. Nunca começou. Quando, como está predito nas escrituras hindus para o fim do ciclo, “cem sóis surgem de uma vez no céu”, não se encontra nenhuma nulidade; não aparece sombra alguma. Quando o próprio Deus entra no campo de batalha, não encontra resistência: porque somente Deus é.

Devemos iniciar a guerra contra a alma passional — quer vista no palco do mundo, quer reconhecida no íntimo — em estado de santa seriedade, plenamente cientes do caráter formidável do mal a combater, que a princípio parece cobrir todas as coisas. Mas como podemos conhecer o mal como mal, se o mal é tudo quanto há? Com o que o comparamos para emitir tal juízo? O que e onde está a Luz pela qual podemos dizer “isto é luz, e isto é trevas”? Fazer esta pergunta é a primeira etapa da jornada da ilusão autocentrada à Realidade Divina. Esta jornada pode ser mapeada em 7 estágios:

(1) Aceitamos as condições com o nosso ego, por identificação. O mal não é real, ou no máximo se identifica com a minha experiência de sofrimento, um infortúnio sem sentido a ser evitado — mesmo que, para isso, eu tenha de tornar-me irreal —, como se a irrealidade fosse uma espécie de segurança e não o nome do inferno.

(2) O mal é real e externo, embora basicamente material. Não é apenas o meu sofrimento, mas o sofrimento dos outros também. Devemos combatê-lo.

(3) O mal é real, interno e psicológico. É expressão do “instinto de rebanho”, da subjetividade de massa que governa nossos sentimentos, pensamentos e ações por meio do “inconsciente coletivo”. Combate-se mediante uma compreensão psicológica de nossas crenças e motivações, conduzindo a uma desidentificação com os costumes inconscientes da sociedade — o processo de “individuação” de Jung.

(4) O mal é real, externo e espiritual. Devemos testemunhar contra ele para não sermos seduzidos por ele, mas não podemos vencê-lo; somente o representante de Deus no campo da história, somente o Messias, pode derrotar o Anticristo.

(5) O mal é real, espiritual e transpessoal. É produto de entidades espirituais conscientes em rebelião contra Deus. Combate-se pelo poder espiritual da oração e do exorcismo.

(6) O mal é real, interno, espiritual e assunto apenas meu; é a atividade do eu dominante. Supera-se por meio do ato de esquecer-se de si e lembrar-se de Deus.

(7) Visto que todo o mal do mundo é apenas o meu próprio, ele é, em última análise, irreal. Só Deus é real; não há deus senão Deus, não há realidade senão a Realidade. O Buda vê apenas Budas. Aquilo que, em níveis inferiores, ainda devemos chamar de mal revela-se necessário à manifestação de Deus, expressão de Sua Majestade e de Sua Justiça.

Mas o fato de que todos os eventos são, em última instância, atos de Deus, que é o Sumo Bem, não nos absolve da responsabilidade moral pessoal; não temos o direito de dizer “foi Deus quem me fez fazê-lo”. “É necessário que haja escândalos”, disse Jesus, “mas ai daqueles por quem vêm os escândalos.” Tampouco devemos usar a responsabilidade moral pessoal como pretexto para negar a realidade da influência demoníaca, assim como não devemos usar o reconhecimento de tal influência para ocultar os modos pelos quais somos afetados pelas emoções e sistemas de crença da sociedade coletiva. Nossa concentração nessas emoções e sistemas de crença não deve cegar-nos para os eventos apocalípticos ao nosso redor, nem o reconhecimento dos sinais apocalípticos deve impedir-nos de fazer o pouco que podemos, em termos concretos, quando surge a oportunidade de serviço.

Cada nível mais alto de nossa compreensão do mal não nega os níveis abaixo, mas os abarca. O nível superior é o verdadeiro “contexto informante” do inferior, que revela tanto os seus limites necessários quanto o seu papel preciso no conjunto. Portanto, o contexto último, mesmo para o serviço concreto e a ação política, é o entendimento de que todos os eventos são atos de Deus; o modo “litúrgico” de agir à luz desse conhecimento é simplesmente desempenhar o papel que Deus nos atribuiu, pressupondo que Ele também nos deu a luz necessária para reconhecê-lo.

O Apocalipse Esotérico

No plano material, os acontecimentos são interpretados conforme sustentem ou ameacem o nosso senso de identidade, que é psíquico. Quando a consciência começa a ser retirada do plano psíquico para o plano do Espírito — que, como Testemunha pura e Conhecimento puro, necessariamente transcende a experiência —, então todas as experiências, inclusive as sensoriais, são compreendidas como emanando do nível psíquico e conhecidas, simultaneamente, tanto como possíveis tentações quanto como manifestações efetivas de Deus. Na medida em que tais experiências têm o potencial de seduzir a consciência de volta à identificação com o nível psíquico — reforçando o senso de um experienciador limitado e subjetivo —, são tentações. Na medida em que são resistidas, os eventos em questão já não podem ser chamados experiências, mas revelam-se aspectos, ou instâncias, da Auto-manifestação do Absoluto.

No nível psíquico, o mundo que experimentamos é necessariamente interpretado em termos de bem e mal. E, como a consciência fixada no nível psíquico não pode testemunhar tal nível, os conteúdos da psique devem aparecer em forma “projetada” como os eventos de nossas vidas. (Apesar de seus erros metafísicos, Carl Jung sabia disso, ensinando que “o que é reprimido é necessariamente projetado”.) Mas quando a consciência inicia sua peregrinação do nível da psique ao nível do Espírito, a psique emerge daquela inconsciência; fica desvelada ante o rosto da Testemunha espiritual. E quando, por virtude dessa Testemunha, todos os eventos — inclusive os materiais — são conhecidos como emanando do plano psíquico, assim como o plano psíquico, como um todo, é conhecido como dramatização das verdades que residem eternamente no plano espiritual, então as projeções psíquicas sobre o plano material são retiradas. O mundo deixa de ser um objeto experimentado por um sujeito individual e transforma-se em uma aparição visionária contemplada pela Testemunha divina — ou, em termos budistas, por ninguém.

À medida que a consciência continua a mover-se da psique ao Espírito, os eventos passam a ser vistos não como influências boas ou más, mas como forças que, de fato, ou nos puxam, ou não nos puxam, a identificarmo-nos com elas, levando-nos a abandonar o nível espiritual e retornar ao psíquico. É isto o que os sufis querem dizer quando afirmam que “o pecado do crente é a concupiscência; o pecado do gnóstico é a desatenção”. Eventos aparentemente bons podem tentar à desatenção, assim como eventos aparentemente maus podem sustentar a vigilância e a lembrança espiritual.

Em termos de guerra intelectual — a luta por superar o erro e abraçar a Verdade —, a passagem da psique ao Espírito faz com que os erros que reconhecemos, em nós ou nos outros, se manifestem diretamente. Quando começamos a testemunhá-los, em vez de simplesmente criticá-los ou lutar contra eles, eles se apresentam diante de nós; encarnam-se concretamente e se realizam por inteiro. Em outras palavras, tornam-se lições — desde que resistamos à tentação de nos identificarmos com eles —, e um erro que é realmente uma lição deixa de ser forma de falsidade para ser forma de Verdade. Quando o erro é plenamente encarnado como Verdade por nossas próprias ações, o resultado é um remorso profundo e espontâneo. Quando o erro é plenamente encarnado como Verdade pelas ações de outros, o resultado é uma gratidão profunda e espontânea.

O movimento da consciência da psique ao Espírito, durante o qual erros latentes surgem formados e encenados por inteiro até revelarem-se como formas de Verdade, é o significado esotérico do apocalipse — que quer dizer “revelação”. A morte física é símbolo da morte do ego — da crença de que a psique humana é autônoma e autoengendrada. O fim do mundo é símbolo da “recolha” produzida pela morte do ego — o ajuntamento dos fragmentos dispersos da psique, mediante a retirada das projeções dessa psique no deserto abstrato da matéria, energia, espaço e tempo.

A experiência é inseparável da sensação de que existe alguém capaz de ter experiências. No fim último do ciclo da manifestação — que é o mundo —, no fim último do ciclo da experiência — que é o ego —, esse “alguém” é confrontado por Kali, a Negra. Ela é Māyā, ela é Mahāśakti — ao mesmo tempo a Essência Divina incognoscível e todo véu que simultaneamente oculta e revela essa Essência, sem distinção alguma entre ambas. Na medida em que tentamos apegar-nos à vida diante de Kali, ela nos toma a vida. Na medida em que deixamos a vida ir, diante de Kali, ela é essa vida.

A experiência é Māyā, é Śakti. Se nos identificamos com ela, torna-se parte da Avidyā-māyā, a corrente da manifestação cósmica de Deus, cujo termo último é a “morte de Deus”. Se quebramos a identificação com ela, torna-se parte da Vidyā-māyā, a corrente da misericórdia redentora e reintegradora de Deus, cujo termo último é a Libertação final dos grilhões da existência contingente.

A Função Apocalíptica do Anticristo

O Anticristo é o grande bode expiatório, que extrai da alma tudo o que é sub-humano, abortivo e exausto, deixando a substância humana puramente receptiva à luz de Deus. Ele não é o bode expiatório compassivo, como Cristo, que carrega voluntariamente as nossas impurezas e, assim, demonstra que a nossa fuga mais profunda de Deus acontece, na realidade, em Deus — se ao menos o soubéssemos. Como prefigurado na figura de Judas, ele é apenas o veículo que transporta tudo quanto falhou em atingir forma integral para os fogos da aniquilação, porque se recusou a submeter-se à vontade de Deus, recusou-se a ser plenamente criado por Ele e, por isso, jamais O conheceu.

Eis talvez o logro mais profundo de que o Anticristo é capaz: retratar o sofrimento sombrio, sem sentido e estéril do ego — que não quer desapegar-se de si — como se fosse o sofrimento autosacrificial daquele Amor divino que “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Diante do Anticristo — do seu fascínio e do seu horror, do seu desespero e da sua cegueira, e do seu tédio indizível —, tudo o que é preciso fazer é escolher o Real e rejeitar o que jamais poderia ser real: simplesmente, a qualquer custo, como Cristo, quando venceu Satanás no deserto; como o Buda, quando resistiu a Mara, o Tentador, sob a Árvore do Iluminamento, no ponto adamantino.

Dizem os budistas tibetanos: “arremessa todas as culpas num só.” No processo, os crimes de um destino cruel e misterioso tornam-se frutos do carma — as consequências das ações deliberadas dos seres sencientes. O carma de todos os seres sencientes torna-se o meu próprio carma, a estrutura do meu ego. E, por fim, os crimes e sofrimentos do meu ego convertem-se na forma inevitável do EGO, vazio de toda substância perante o Absoluto. Todos são perdoados porque ninguém é culpado senão ele — e “ele” não é ninguém.

O sentido esotérico do Anticristo é: existe um só ego. O meu ego é O ego; o Deus que habita em meu Coração é O Deus. Quando o meu ego é aniquilado, todo ego é aniquilado, porque não há outro ego. Quando o Deus em meu Coração é desvelado, Ele é desvelado para todos, para todos os seres, porque há um só Coração. Quando um santo clama: “Sou o pior dos pecadores!”, o sentido interno é: eu sou o ÚNICO pecador. Eu sou Adão comendo o fruto proibido; pelo mesmo sinal, eu sou Cristo sofrendo as consequências desse ato, triunfando sobre eles, e erguendo-me das suas ruínas. Eu sou o Buda alcançando a iluminação para si mesmo — e, por isso mesmo, para todos os seres sencientes —, porque, aos olhos do Buda iluminado, não existem tais coisas como “incontáveis seres a serem iluminados” nem “o Buda que faz o voto de iluminá-los”. A iluminação é Una. Deus é Um. Não há deus senão Deus.

Quando vi pela primeira vez o Anticristo, minha resposta foi: “Isto significa que já não tenho um único inimigo sobre a terra. Que todos os seres estejam bem; que todos os seres sejam felizes.” Quando o Anticristo viveu comigo em minha própria casa, ele perverteu minha visão do universo de Deus, sussurrou acusações contra esta ou aquela pessoa, contra este ou aquele grupo; afirmava que eram seguidores do Anticristo. Mas quando deixou minha casa para ir ao mundo e espalhar devastação, quando o vi erguer-se como uma sombra sobre toda a terra, não restava em meu coração um fio de ódio. Ele já nada tinha a me ensinar, salvo sua própria vacuidade, sua natureza de sombra. Ao revelar-se como pura sombra, deu testemunho da Luz — a grande luz penetrante, sondadora, desveladora, desmanchadora e curativa de Deus, agora irrompendo sobre o mundo.

O romper dessa Luz é eterno. Está no âmago de cada momento. O fim do mundo jaz oculto em cada instante. A terminação do ciclo, a dissolução de todas as coisas, o passar do céu e da terra, o nascer do novo céu e da nova terra — tudo está sempre ali, no tempo presente grávido de tempo futuro, onde toda a criação geme para ser libertada — até agora. “Quando o homem rejeita o erro e abraça a verdade”, disse William Blake, “um julgamento final passa sobre esse homem.”

O uso próprio, a prática espiritual específica dos tempos apocalípticos é: deixar que tudo nos seja tirado, exceto a Verdade. Quando Blake clamou: “Tudo o que puder ser destruído, que seja destruído!”, foi isso que quis dizer. Quem puder — com o auxílio do Céu — não reverter, mas simplesmente resistir às tremendas forças centrífugas, dispersivas, enfraquecedoras e descendentes ativas no fim do Éon, verá que toda a escória de sua alma, todo o pecado, todo o peso espiritual e toda a escuridão intelectual dos últimos dias lhe foram roubados pelo Anticristo. Que fique com eles.

Por uma catarse radical análoga àquela tentada pelos dramaturgos gregos — encenada não no palco ateniense, mas no do mundo, e da alma humana —, o Deus Todo-Poderoso, por meio do Anticristo, se o reconhecermos e o resistirmos interiormente, literalmente nos “expulsará o inferno de dentro”. Ele queimará a tristeza com tristeza e o medo com medo, pois somente na presença da Misericórdia de Deus podemos enfrentar toda a profundidade da dor e do terror que todos sentimos no fim do ciclo, e testemunhar sua vacuidade essencial.

Se pudermos resistir ao desespero em todas as suas formas — inclusive o pânico violento, a frieza do coração e a falsa esperança luciferina —, então, depois que todos os resíduos kármicos de todo o ciclo tiverem sido arrancados de nós, lá estaremos, nus, em absoluta simplicidade, diante do rosto de Deus.

Este é o sentido de “por causa dos eleitos, aqueles dias serão abreviados”, e de “os mansos herdarão a terra”. Tudo o que em nós “cristalizar”, para usar um dos termos favoritos de Schuon, na presença da Verdade Absoluta, será “recolhido aos celeiros” onde se armazenam as potências férteis — o “grão de semente” para o próximo Éon. “Aquele que perseverar até o fim será salvo”: será preservado.

Tudo o que resiste ao fim do tempo permanece no início do tempo. Tudo o que está além do tempo resiste ao seu fim. Se “o tempo é a imagem móvel da eternidade”, então aquilo em nós que permanece intocado pelo tempo é parte Daquilo de que essa imagem foi feita.

A “Nova Era” crê que certos seres humanos “altamente evoluídos” podem sobreviver na terra para se tornarem os líderes espirituais — e até temporais — da próxima Idade de Ouro; mas isso é apenas o simulacro literalista da verdadeira doutrina. A verdade é simplesmente que tudo o que em nós resiste à tentação de fugir de Deus, buscando refúgio na dissolução caótica — de esconder-se da destruição da matéria, ou do medo dessa destruição, na própria matéria (um dos significados de “orarão para que as montanhas caiam sobre eles”) —, mas morre, ao contrário, uma morte vigilante e obediente diante do rosto da Única Realidade, entrará no banquete dos Pirs, dos Sheikhs, dos Tzaddikim, dos Antepassados deificados que são os pais e protótipos de todos os ciclos da manifestação — aqueles que são chamados, no livro do Apocalipse, “os vinte e quatro Anciãos diante do Trono do Cordeiro”.

Como foi no fim, assim é no princípio.

A Prática do Apocalipse

Em minha humilde opinião, o gesto espiritual central para os tempos apocalípticos é o seguinte:

Quando te encontrares em estado de medo ou pesar diante do mal do mundo, da degeneração da humanidade e da ruína da terra, sabe que esse mal, ruína e degeneração nada mais são que a resistência coletiva do mundo à iminente vinda do Mahdi, do Décimo Avatar, do Messias — e que o medo ou a tristeza que agora experimentas são a tua maneira de participar dessa resistência.

Sabendo disso, simplesmente deixa de resistir-Lhe e permite que o Messias venha. Cessa de tentar manter o mundo em existência pelo poder do teu ego; deixa-o ir. Deixa que termine. Deixa teu ego terminar. Tens combatido o Messias; cessa as hostilidades agora, “não resistas ao mal” (que é como teu ego O percebe), depõe as armas e permite que Ele atravesse “as nuvens do céu” — as nuvens do egotismo individual e coletivo que têm separado a terra de sua Fonte divina desde a queda do homem.

Pedi ao meu orientador espiritual que comentasse o parágrafo acima, já que aconselhar um público desconhecido sobre questões de prática espiritual não é algo que eu tenha o direito ou a capacidade de fazer por minha própria e escassa autoridade. Sua resposta foi: “Lembra-te, porém: o mundo é perfeito.”

Em outras palavras: o Messias já está aqui. Sempre esteve aqui. Em cada momento espiritual, o mundo sai fresco das mãos do Criador. Assim como Deus é perfeito, Sua expressão é perfeita — se, isto é, formos capazes de testemunhá-la, com todas as suas maravilhas e horrores, como Sua manifestação imediata. Esta é a verdadeira Revelação: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Que Deus, pela graça do meu Mestre, me conceda a capacidade e a humildade de saber isto não apenas com a mente, mas com todo o Coração.

Encerrará este livro, como é apropriado, com as palavras de Frithjof Schuon, em Light on the Ancient Worlds, p. 49:

“Mesmo os crentes são, em sua maioria, demasiado indiferentes para sentir concretamente que Deus não está apenas ‘acima’ de nós, no ‘Céu’, mas também ‘adiante’ de nós, no fim do mundo — ou simplesmente no fim de nossas vidas; que somos atraídos através da vida por uma força inexorável, e que, ao final do curso, Deus nos aguarda; que o mundo será um dia submergido e tragado por uma irrupção inimaginável do puramente miraculoso — inimaginável porque ultrapassa toda experiência e medida humana. O homem não pode, de modo algum, apoiar-se em seu passado para dar testemunho de algo assim, não mais do que uma efêmera poderia discorrer sobre a alternância das estações; o nascer do sol não pode de modo algum penetrar nas sensações habituais de uma criatura nascida à meia-noite, cuja vida dura apenas um dia; a súbita aparição do orbe solar, impossível de prever por qualquer fenômeno análogo ocorrido durante as longas horas de treva, pareceria um prodígio apocalíptico inaudito.

E é assim que Deus virá.
Não haverá senão este advento único, esta única Presença — e por ela o mundo das experiências será despedaçado.”

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