quinta-feira, 6 de novembro de 2025

DIALECTIA ET TOPICA — ARS DISSERENDI (A ARTE DE RACIOCINAR) Segundo Bloco da Opera Omnia de Boécio Tradução e estudo introdutório.


 

ÍNDICE GERAL DO ESTUDO INTRODUTÓRIO AO BLOCO II — ARS DISSERENDI (A ARTE DE RACIOCINAR)

Capítulo I — A Transição da Lógica à Dialética: O Pensamento em Movimento

Artigo I — A Dialética como Continuação da Lógica: Da Forma ao Diálogo
Examina o surgimento da dialética a partir da lógica pura; discute a passagem da scientia rationis à ars disserendi como expansão da razão do interior para o campo do discurso.

Artigo II — O Contexto Histórico e a Função Pedagógica da Dialética em Boécio
Analisa o papel da dialética na formação do intelecto latino, a recepção aristotélico-ciceroniana e o esforço de Boécio em formar uma ratio disputativa que unisse rigor e persuasão.


Capítulo II — O Intelecto na Disputa: Estrutura, Persuasão e Refutação

Artigo I — A Estrutura do Argumento: Silogismo, Condicional e Definição
Estudo das formas argumentativas que compõem os tratados do bloco, mostrando como o raciocínio se articula em graus de necessidade, probabilidade e plausibilidade.

Artigo II — A Retórica Filosófica e o Espírito Crítico: Da Refutação ao Convencimento
Aborda a função dos loci, da refutação dos sofismas e da tópica como ponte entre lógica e retórica, culminando na síntese boeciana da arte de pensar e persuadir racionalmente.


CAPÍTULO I — A TRANSIÇÃO DA LÓGICA À DIALÉTICA: O PENSAMENTO EM MOVIMENTO

Artigo I — A Dialética como Continuação da Lógica: Da Forma ao Diálogo

1.      Ao ultrapassar o domínio da Scientia Rationis, percebo que a razão, já purificada pela forma lógica, busca agora um meio de exercer-se em movimento. A dialética é o segundo passo da mente que já se conhece como estrutura e agora deseja provar-se em ato. Se a lógica é o repouso do intelecto na ordem, a dialética é seu movimento vital — o logos em conflito, testando-se diante do outro.

2.      Boécio, ao compor seus tratados sobre os silogismos, as divisões e as definições, concebeu a dialética não como ruptura, mas como extensão. A razão, antes estática e dedutiva, torna-se agora dinâmica e responsiva. A dialética é a lógica em combate: o exercício do pensar diante da resistência do mundo. É nesse confronto que a verdade se revela, pois somente o que resiste ao erro prova ser necessário.

3.      A Ars Disserendi não nasce, portanto, como técnica de disputa, mas como pedagogia da inteligibilidade. O pensamento humano não se aperfeiçoa no isolamento, mas no diálogo, onde as ideias se entrelaçam e se provam mutuamente. Assim, a passagem da lógica para a dialética representa a passagem da ciência do ser à ciência da comunicação do ser — da ratio silenciosa ao logos falante.

4.      Na lógica, eu aprendi a distinguir; na dialética, aprendo a defender. A mente que sabe o que é verdadeiro precisa agora aprender a sustentá-lo diante do falso. Por isso, a dialética é o momento ético do intelecto: é nela que o pensar se torna responsabilidade. O erro não é apenas confusão, é uma ameaça à forma; o sofisma, uma corrupção do verbo; o discurso falso, uma violência contra o ser.

5.      Boécio entende a dialética como a continuação natural da lógica porque ambas partilham o mesmo fim: o restabelecimento da verdade. Mas se a lógica busca a verdade em si, a dialética busca a verdade em relação. A primeira purifica o intelecto; a segunda o arma. A mente lógica contempla; a mente dialética combate — e ambas servem ao mesmo princípio: a vitória da ordem sobre o caos discursivo.

6.      O campo da Ars Disserendi é o terreno da argumentação. Aqui, o silogismo torna-se instrumento de diálogo, e o raciocínio, método de convencimento. Cada obra do bloco é uma aplicação da razão à diversidade das opiniões: o De Syllogismo Categorico regula as inferências necessárias; o De Hypothetico, as condicionais; o Liber de Divisione e o Liber de Definitione estabelecem os critérios da precisão conceitual; e os comentários sobre Aristóteles e Cícero abrem a razão à tópica e à retórica.

7.      Assim, compreendo que o segundo bloco não repete o primeiro: ele o prolonga para o espaço intersubjetivo. A verdade, que antes era interior, agora é compartilhada; a forma, que antes era pura, agora se torna palavra. A lógica era contemplação; a dialética é comunhão — e toda comunhão é já um risco, pois implica o outro. A razão deixa o refúgio da abstração e entra no território das opiniões.

8.      A Scientia Rationis me ensinou a ver; a Ars Disserendi me obriga a falar. Aquele que se cala diante do erro trai o próprio logos que o habita. Boécio, ao traduzir Aristóteles e Cícero, sabia que o raciocínio é o modo humano de defender o ser contra o esquecimento. Por isso, a dialética é uma forma de fidelidade: ela preserva a clareza conquistada na lógica, impedindo que a verdade se dissolva na multidão das palavras.

9.      A transição entre os dois blocos é, portanto, ontológica: é o momento em que o ser pensado se torna o ser comunicado. O intelecto, ao expor suas razões, renova o ato de criação. Toda proposição dialética é uma repetição, em miniatura, do “dizer divino” — um modo de participar da Palavra que sustenta o mundo.

10.  Assim, a Ars Disserendi não é mera metodologia discursiva, mas a segunda encarnação do intelecto. O espírito humano, que na lógica era estático como um cristal, torna-se agora orgânico, vivo, capaz de responder e corrigir. A verdade não é mais apenas contemplada: é defendida, provada, sustentada. E é neste movimento que a mente, pela primeira vez, adquire voz.


Artigo II — O Contexto Histórico e a Função Pedagógica da Dialética em Boécio

11.  Historicamente, Boécio ocupa uma posição singular. Vivendo entre o colapso da cultura helênica e o nascimento do pensamento cristão latino, ele percebeu que a verdade precisava de guardiões — não apenas de contemplativos, mas de disputadores. O mundo romano, já fragmentado em crenças e retóricas, exigia uma arte capaz de discernir o verdadeiro do verossímil. Foi essa a função da dialética: preservar a unidade da razão num tempo de dissolução.

12.  Ao traduzir Aristóteles e Cícero, Boécio não importava apenas textos, mas uma pedagogia. Ele sabia que a alma não se eleva apenas por ver, mas por discutir. A verdade, em seu itinerário humano, deve enfrentar as objeções, pois cada erro refutado purifica a inteligência. Assim, a dialética é o exercício espiritual da razão combativa, o treino da alma que se fortalece ao enfrentar o falso.

13.  Essa pedagogia, profundamente cristã em sua estrutura, ensina que a disputa não é contradição, mas ascese. A mente que argumenta com humildade se purifica, pois a discussão, quando reta, é comunhão de inteligências. Boécio via no diálogo uma forma de caridade intelectual: o esforço de conduzir o outro à luz pela força do logos, e não pela imposição.

14.  A organização das obras deste bloco reflete essa pedagogia. Primeiro, o raciocínio categórico (Introductio, De Syllogismo Categorico); depois, o raciocínio hipotético (De Syllogismo Hypothetico); em seguida, a depuração conceitual (Liber de Divisione e Definitione); por fim, a integração retórica (Topica, Elenchi, Commentaria in Ciceronem, Differentiis Topicis). É uma escada de aplicação crescente: da necessidade à probabilidade, da prova ao convencimento.

15.  Essa gradação é também o reflexo da alma em aprendizado. No início, a razão busca a certeza; depois, aprende a lidar com a verossimilhança; finalmente, reconhece que até o discurso provável pode servir à verdade, desde que seja ordenado. A Ars Disserendi ensina a discernir o grau de ser em cada argumento, a dose de realidade em cada palavra.

16.  A função pedagógica da dialética, portanto, é dupla: formar o intelecto e educar a vontade. O raciocínio rigoroso disciplina a mente; a disputa reta purifica o desejo. Pensar bem e discutir bem tornam-se, em Boécio, um mesmo ato de virtude. A mente que raciocina corretamente ama a verdade; e a que a defende, pratica a justiça.

17.  Ao olhar este segundo bloco da Opera Omnia, vejo que nele a razão se torna arte — ars disserendi — e o intelecto se humaniza. A lógica ensinou a pensar, mas a dialética ensina a falar. E aquele que sabe falar segundo a verdade torna-se capaz de conduzir os outros ao ser. A palavra, outrora mero som, torna-se instrumento de iluminação.

18.  A Ars Disserendi é, assim, o segundo nascimento da razão: o momento em que ela aprende a viver fora de si, a dialogar, a corrigir e a persuadir. O pensamento se torna ação, o verbo ganha peso, e o logos passa a circular entre os homens como luz partilhada. O que antes era ciência, agora é convivência.

CAPÍTULO II — O INTELECTO NA DISPUTA: ESTRUTURA, PERSUASÃO E REFUTAÇÃO

Artigo I — A Estrutura do Argumento: Silogismo, Condicional e Definição

1.      A dialética não é o abandono da forma, mas a forma em movimento. Enquanto a lógica fixa as leis do pensamento, a dialética as aplica. Nesse terreno, o raciocínio deixa de ser pura dedução e torna-se instrumento de descoberta. Boécio, ao ordenar seus tratados sobre o silogismo categórico e hipotético, revela que a razão é, ao mesmo tempo, arte de conclusão e arte de invenção. O argumento não nasce do nada; ele é o desdobramento vivo de uma estrutura formal.

2.      No De Syllogismo Categorico, aprendo que o raciocínio afirmativo e negativo são modos de participar da necessidade. Toda conclusão verdadeira é o reflexo de uma relação essencial entre termos. Quando digo “todo homem é mortal”, não enuncio apenas uma regra de linguagem, mas um juízo sobre o ser — uma vinculação ontológica entre o universal e o particular. Boécio mostra que a verdade é forma encadeada, e que o intelecto, ao raciocinar, refaz interiormente a arquitetura do real.

3.      Já no De Syllogismo Hypothetico, a razão se move em um campo mais sutil: o da condição e da consequência. O pensamento aprende a lidar com o possível e o contingente. Aqui, a mente não apenas deduz; ela prevê. A proposição hipotética é uma simulação racional da causalidade, um exercício de prudência intelectual. Boécio ensina que a razão é livre dentro da necessidade, e que o condicional é o lugar onde a inteligência toca o tempo.

4.      O Liber de Divisione e o Liber de Definitione completam o arcabouço do argumento. Dividir é compreender o limite; definir é fixar a essência. Cada conceito é uma fronteira traçada pela razão entre o ser e o não-ser. Ao definir, o intelecto imita o ato divino de separar a luz das trevas: cria distinções ontológicas que tornam o mundo inteligível. A dialética, por isso, é uma teologia implícita — um modo humano de reproduzir a clareza do Criador.

5.      A partir desses tratados, percebo que o argumento não é uma máquina, mas um organismo. Ele vive do equilíbrio entre forma e sentido, entre rigor e finalidade. Um raciocínio perfeito que não ilumina nada é tão inútil quanto uma chama sem calor. Boécio nos mostra que a arte de argumentar deve servir à verdade e não ao triunfo. A finalidade do raciocínio não é vencer, mas convencer — e convencer, aqui, significa conduzir o outro à visão do ser.

6.      Assim, o raciocínio torna-se ato ético. O intelecto não tem o direito de mentir logicamente, mesmo que o faça com engenho. O sofisma é o pecado da razão — o uso do logos contra o logos. Quando Boécio comenta os Elenchi Sophistici de Aristóteles, ele não apenas desmascara falsidades, mas denuncia o desvio espiritual que há em transformar o raciocínio em jogo. Toda refutação é, portanto, um exorcismo: ela liberta a verdade da forma corrompida.

7.      O método silogístico, o raciocínio condicional, a definição e a refutação formam, juntos, a liturgia racional do discurso. O intelecto, ao praticá-la, não apenas ordena proposições, mas ordena a si mesmo. Por isso, a Ars Disserendi é também uma disciplina da alma: ensina a pensar em proporção, a responder com medida e a falar em verdade.

8.      Ao compreender a estrutura do argumento, percebo que cada debate é uma repetição simbólica do drama do mundo: a verdade cercada pelo erro, a luz discutindo com a sombra. O raciocínio é a espada do espírito; o argumento, o golpe com que a razão abre caminho no labirinto do discurso. A arte de raciocinar é, assim, o treino da alma guerreira, que combate com palavras para libertar o ser da confusão.


Artigo II — A Retórica Filosófica e o Espírito Crítico: Da Refutação ao Convencimento

9.      A partir das Topicorum Interpretationes e dos Commentaria in Topica Ciceronis, entro no domínio da palavra viva — o logos que persuade, convence e move. Aqui, a razão abandona o rigor geométrico e aprende o ritmo da probabilidade. Boécio reconhece que nem toda verdade pode ser demonstrada; algumas precisam ser mostradas. É o campo da tópica: a ciência dos lugares de onde nascem os argumentos.

10.  Os loci communes de Cícero e Aristóteles são, para Boécio, as fontes da prudência intelectual. Eles mostram que o discurso humano não vive apenas da necessidade, mas também da verossimilhança. A verdade se manifesta em graus, e a mente deve saber graduá-la. A Ars Disserendi, nesse nível, transforma-se em arte da convivência — a lógica tornada diálogo, a ciência transformada em elo.

11.  A tópica não é retórica no sentido vulgar, mas retórica filosófica: o esforço de adequar o discurso à alma de quem ouve. Boécio entende que o argumento só é verdadeiro quando alcança o coração racional do interlocutor. Assim, a dialética atinge sua dimensão pastoral — o logos que conduz, educa e corrige. O raciocínio se converte em pedagogia da verdade.

12.  O tratado De Differentiis Topicis é o ápice dessa transição. Nele, a razão se reconhece como poder mediador entre a lógica e a retórica, entre a demonstração e a persuasão. O dialético é aquele que sabe medir o grau de certeza de cada coisa, e que, sem abandonar o rigor, sabe também falar segundo o provável. A sabedoria consiste em saber o quanto se pode afirmar sem trair a verdade.

13.  Essa consciência da gradação do verdadeiro é o que faz da dialética a ciência da prudência intelectual. Ela prepara a mente para o real, que raramente se apresenta em categorias puras. No debate, como na vida, a verdade é buscada em meio à sombra. A arte de raciocinar é, portanto, a arte de discernir entre luzes e penumbras.

14.  A refutação, nesse contexto, deixa de ser destrutiva e torna-se terapêutica. Refutar não é aniquilar o outro, mas libertá-lo do erro. A mente dialética não vence pela força, mas pela clareza. Boécio, ao comentar os sofismas e distinguir os tipos de engano, cria uma ética da argumentação: toda disputa verdadeira é um serviço à ordem.

15.  Assim, o ars disserendi culmina na persuasão racional — não na manipulação, mas na condução. O verdadeiro dialético é um sacerdote do logos: fala para iluminar, escuta para compreender, refuta para purificar. O diálogo, em sua forma mais alta, é um ato de caridade intelectual.

16.  Ao concluir o estudo deste segundo bloco, percebo que a dialética é o coração pulsante da razão. A lógica constrói o esqueleto; a tópica dá-lhe carne e voz. A mente, antes abstrata, torna-se comunicante; a verdade, antes solitária, torna-se partilhada. A Ars Disserendi é a razão encarnada — o logos que desce ao campo humano para convencer, corrigir e salvar pela palavra.

17.  Assim, o itinerário da Opera Omnia revela sua coerência: a lógica ensina a pensar; a dialética, a falar; a matemática, a ordenar; a teologia, a contemplar. O segundo bloco é, portanto, o eixo vital da ascensão racional — o ponto onde a forma se torna vida, e o pensamento, comunhão.

PROÊMIO GERAL DA ARS DISSERENDI

(A Arte de Raciocinar)

1.      A razão, que no primeiro degrau se conheceu em repouso, agora desperta em movimento. A forma pura, antes silenciosa, deseja provar-se na tensão do diálogo. Surge, então, a Ars Disserendi — a arte da razão viva, o momento em que o intelecto, armado pela lógica, aprende a falar, a responder e a sustentar a verdade no campo da disputa.

2.      Compreendo que não há sabedoria sem conflito. O espírito que apenas contempla não conhece ainda o peso da palavra. É preciso que a ideia se encarne em voz, que o conceito se exponha ao embate, que o logos prove sua força entre outros logos. A dialética é, assim, o exercício da coragem racional: o risco assumido pela verdade ao entrar no mundo das opiniões.

3.      Boécio compreendeu esse drama com lucidez. Suas obras sobre o silogismo, a divisão e a definição não são tratados formais, mas exercícios de ascese mental. O pensamento humano, para ser verdadeiro, deve aprender a resistir à pressão do falso; e resistir é dialogar. A lógica purifica a mente; a dialética a fortalece. A primeira contempla a luz; a segunda enfrenta as sombras.

4.      Aqui, o logos se torna guerra e mediação — pugna et communio. O raciocínio não é mais solitário: é uma forma de convivência com a verdade. Cada objeção é uma prova, cada réplica, um degrau. A mente aprende a mover-se com precisão, a discernir o erro sem odiá-lo, a refutar sem destruir. O adversário se torna colaborador, pois sua resistência depura a forma do argumento.

5.      A Ars Disserendi é, portanto, a ciência do segundo nascimento da razão. Depois de ordenar-se em si, a mente aprende a ordenar o outro — não pela força, mas pela luz. O raciocínio torna-se instrumento pedagógico, e o discurso, meio de salvação intelectual. A verdade, que era estática, agora se difunde; a forma, que era geométrica, agora pulsa. O pensamento ganha carne e voz.

6.      Cada tratado deste bloco é um modo do logos em ação. O Introductio ad Syllogismos Categoricos revela a estrutura elementar da inferência; os De Syllogismo Categorico e Hypothetico expandem a dedução à necessidade e à condição; os Libri de Divisione et Definitione ensinam a precisão conceitual; os Topica, Elenchi e Commentaria in Ciceronem abrem a razão à arte da persuasão; e o De Differentiis Topicis sintetiza tudo — o logos como ponte entre lógica e retórica, entre certeza e probabilidade.

7.      Assim, compreendo que o discurso é o prolongamento do ser no outro. O argumento é o corpo do espírito, e o diálogo, seu movimento. A verdade não é um ponto fixo, mas um campo de tensões ordenadas. Refutar o falso é restaurar a harmonia; persuadir o incerto é recompor a unidade do real. Toda disputa justa é uma forma de reconciliação.

8.      A dialética é, nesse sentido, a ética da linguagem. Ela me ensina que a palavra deve obedecer à verdade, não à vontade. Que o raciocínio é uma forma de justiça. Que todo erro refutado é um ato de caridade. O intelecto, ao raciocinar corretamente, serve ao ser — e servir ao ser é o primeiro gesto de humildade metafísica.

9.      Vejo, então, que os blocos de Boécio não são uma classificação de textos, mas os graus de uma iniciação. A lógica forma o templo; a dialética o enche de voz; a matemática traça sua proporção; e a teologia o consagra. No segundo grau, o espírito aprende a usar o verbo como instrumento de ordem. Falar, aqui, é criar — é participar do fiat da inteligência.

10.  A Ars Disserendi é o lugar em que o logos se torna ação. É a razão em combate, a palavra em serviço, o pensamento em prova. E ao mesmo tempo, é o lugar em que a mente descobre a humildade de não ter a última palavra. O diálogo verdadeiro termina sempre no silêncio da compreensão.

11.  Por isso, ao iniciar este bloco, sinto que entro num espaço de tensão sagrada. Cada argumento é uma chama; cada refutação, uma purificação. O discurso humano, quando fiel à verdade, é um rito. E a dialética, quando exercida com pureza, é uma oração racional — o som do intelecto voltando-se para o Uno através do outro.

12.  Assim, preparo-me para este segundo degrau do Ordo Boetianus: descer à arena do logos para reencontrar a ordem. Pois é somente no choque dos espíritos que a verdade se torna luz visível. A Ars Disserendi é o momento em que o intelecto fala — e, ao falar, escuta o eco de Deus em sua própria voz.

 

Dialectica et Topica:

1.      Introductio ad Syllogismos Categoricos

2.      De Syllogismo Categorico libri duo

3.      De Syllogismo Hypothetico libri duo

4.      Liber de Divisione

5.      Liber de Definitione

6.      Interpretatio Topicorum Aristotelis

7.      Interpretatio Elenchorum Sophisticorum

8.      Commentaria in Topica Ciceronis

9.      De Differentiis Topicis

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS PRIMUS – INTRODUCTIO AD SYLLOGISMOS CATEGORICOS

(col. 793A – 809B, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


ÍNDICE BILÍNGUE / INDEX BILINGUIS

  1. Prologus.
    Prologus in librum Introductio ad Syllogismos Categoricos.
     Prólogo do livro Introdução aos Silogismos Categóricos.
  2. Caput I. De natura syllogismi.
     Sobre a natureza do silogismo.
  3. Caput II. De partibus syllogismi.
     Sobre as partes que compõem o silogismo.
  4. Caput III. De propositionibus.
     Sobre as proposições que formam o silogismo.
  5. Caput IV. De figura syllogismi.
     Sobre as figuras do silogismo.
  6. Caput V. De modis syllogismi.
     Sobre os modos do silogismo.
  7. Caput VI. De demonstratione et dialectica distinctione.
     Sobre a distinção entre a demonstração e a dialética.
  8. Conclusio.
     Conclusão geral do tratado.

INTRODUCTIO AD SYLLOGISMOS CATEGORICOS
Introdução aos Silogismos Categóricos

(col. 793A–793B)

Boethius ad Symmachum virum clarissimum, de syllogismis categoricis, prooemium.
Boécio ao ilustre Símaco, sobre os silogismos categóricos, prólogo.


PRÓLOGO / PROLOGUS

(col. 793A–794B)

Símaco, honra de Roma e ornamento do Senado, muitos homens que amam o estudo das artes liberais perguntam de onde o raciocínio, que chamamos de silogismo, recebe seu nome e de que modo se constitui. E, embora Aristóteles tenha tratado disso em diversos livros, sua ordem e brevidade muitas vezes deixam o leitor iniciante em dúvida, porque ele fala, como convém a um mestre, a quem já aprendeu pela prática da dialética o que as palavras encerram.

Por isso me pareceu útil compor esta introdução, que servisse de via ao entendimento do que o Estagirita explicou em síntese. Pois como ninguém entra na ciência dos astros sem antes conhecer as leis do número, assim também ninguém alcança o conhecimento perfeito da razão silogística sem antes aprender o que é o silogismo, de que partes se compõe, e por que se distingue em figuras e modos.

E, para que este compêndio seja claro, dividiremos o discurso em partes breves, explicando cada elemento como se fosse uma pedra que se assenta sobre a outra, até formar o edifício da razão demonstrativa.


CAPUT I — DE NATURA SYLLOGISMI / SOBRE A NATUREZA DO SILOGISMO

(col. 794B–796A)

Silogismo é um argumento no qual, postas certas coisas, algo diverso delas se segue necessariamente. Assim definiu Aristóteles no primeiro livro dos Analíticos.
Por exemplo: se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem, segue-se que Sócrates é mortal.
Essas duas primeiras afirmações — “todos os homens são mortais” e “Sócrates é homem” — são as premissas; a última — “Sócrates é mortal” — é a conclusão.

O silogismo, portanto, é o instrumento da razão que liga o universal ao particular por meio da necessidade do pensamento. Ele não é mera persuasão, como a retórica, nem simples opinião, como a dialética comum; é a forma ordenada da intelecção, pela qual o verdadeiro se mostra pela coerência interna das proposições.

E há de se notar que o silogismo não é discurso de muitos, mas de um só espírito, que, unindo o que é conhecido com o que é procurado, faz brotar a ciência.


CAPUT II — DE PARTIBUS SYLLOGISMI / SOBRE AS PARTES DO SILOGISMO

(col. 796A–797C)

Toda composição silogística tem três partes: duas premissas e uma conclusão.
Das premissas, uma é chamada maior, a outra menor.
A maior contém o termo universal sob o qual o médio se inclui; a menor contém o termo singular que será comparado ao universal pela mediação do médio.

Exemplo:
Premissa maior — “Todo homem é mortal.”
Premissa menor — “Sócrates é homem.”
Conclusão — “Logo, Sócrates é mortal.”

O termo médio é “homem”, que está em ambas as premissas e desaparece na conclusão, unindo o singular (Sócrates) ao universal (mortalidade).

Assim o silogismo é como uma ponte, cujos extremos repousam sobre dois pilares: o universal e o singular; e o meio é a trave que os une pela razão.


CAPUT III — DE PROPOSITIONIBUS / SOBRE AS PROPOSIÇÕES

(col. 797C–799A)

A proposição é o discurso que afirma ou nega algo de algo.
Divide-se em quatro espécies: universal afirmativa, universal negativa, particular afirmativa, particular negativa.

  1. Universal afirmativa — “Todo homem é mortal.”
  2. Universal negativa — “Nenhum homem é imortal.”
  3. Particular afirmativa — “Algum homem é sábio.”
  4. Particular negativa — “Algum homem não é justo.”

Essas são as matrizes de todos os juízos silogísticos.
O sinal do universal é o termo “todo” ou “nenhum”; o sinal do particular é “algum”.
E a força do silogismo depende da forma destas afirmações, porque é delas que se compõem os modos e as figuras.

CAPUT IV — DE FIGURA SYLLOGISMI / SOBRE AS FIGURAS DO SILOGISMO

(col. 799B–802A)

O silogismo possui três figuras, chamadas assim segundo a posição do termo médio em relação aos extremos.
Na primeira figura, o termo médio está sujeito na maior e predicado na menor;
na segunda, é predicado em ambas;
na terceira, sujeito em ambas.

Exemplo da primeira figura:
— Todo homem é mortal.
— Sócrates é homem.
— Logo, Sócrates é mortal.
Aqui “homem” é o termo médio, sujeito na maior (“Todo homem é mortal”) e predicado na menor (“Sócrates é homem”).

Na segunda figura:
— Todo justo é feliz.
— Nenhum ímpio é feliz.
— Logo, nenhum ímpio é justo.
O termo médio “feliz” aparece como predicado nas duas premissas.

Na terceira figura:
— Todo homem é animal.
— Todo homem é racional.
— Logo, algum racional é animal.
Aqui “homem” é o termo médio, sujeito nas duas premissas.

As figuras são, portanto, os modos pelos quais a razão articula as relações entre os termos, de modo que o necessário se manifeste pela posição ordenada do médio.

E se chama “figura” porque, como no corpo a forma delimita as partes, assim na razão o arranjo das palavras circunscreve o sentido da inferência.


CAPUT V — DE MODIS SYLLOGISMI / SOBRE OS MODOS DO SILOGISMO

(col. 802A–806B)

Cada figura comporta vários modos, conforme o tipo de proposições que a compõem.
Há, na primeira figura, quatro modos perfeitos:
Barbara, Celarent, Darii, Ferio.

  1. Barbara — AAA:
     Todo A é B;
     Todo B é C;
     Logo, todo A é C.
  2. Celarent — EAE:
     Nenhum B é C;
     Todo A é B;
     Logo, nenhum A é C.
  3. Darii — AII:
     Todo B é C;
     Algum A é B;
     Logo, algum A é C.
  4. Ferio — EIO:
     Nenhum B é C;
     Algum A é B;
     Logo, algum A não é C.

Na segunda figura, há quatro modos legítimos: Cesare, Camestres, Festino, Baroco.

Na terceira, seis modos: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Ferison.

Os nomes, formados de vogais e consoantes ordenadas, foram inventados pelos dialéticos latinos e gregos para lembrar as qualidades das proposições: as vogais indicam a forma das premissas, e as consoantes lembram as conversões e reduções que tornam cada modo demonstrável.

E todos esses modos podem ser reconduzidos aos quatro da primeira figura, que são ditos perfeitos, porque deles se deduzem os demais por meio de transformação e conversão das proposições.

Assim, toda a estrutura da arte silogística repousa sobre um princípio de necessidade formal: se as proposições são verdadeiras e as regras das figuras são guardadas, a conclusão não pode ser falsa.


CAPUT VI — DE DEMONSTRATIONE ET DIALECTICA DISTINCTIONE / SOBRE A DEMONSTRAÇÃO E A DISTINÇÃO DIALÉTICA

(col. 806C–808A)

A demonstração difere da dialética pela certeza da matéria.
Ambas usam silogismos, mas a demonstração parte de princípios verdadeiros e necessários, enquanto a dialética argumenta com o provável e o verossímil.

Na demonstração, o fim é a ciência; na dialética, a opinião.
A primeira busca o que é por si evidente; a segunda, o que se admite por convenção.
Por isso Aristóteles chamou a lógica de órganon, instrumento de ambas: com ela se alcança a verdade e se examina o verossímil.

A diferença é também moral: o filósofo demonstra para conhecer, o dialético disputa para exercitar.
Mas aquele que aprender a arte dos silogismos poderá usar ambos os modos conforme a necessidade, ora para investigar, ora para refutar, ora para ensinar.

Portanto, o mesmo método que serve à dialética é o que conduz à ciência, quando os princípios são verdadeiros; e o que serve à ciência, se aplicado ao incerto, torna-se dialético.


CONCLUSIO / CONCLUSÃO

(col. 808B–809B)

Por meio destas breves explicações, apresentamos a via pela qual o estudante pode entrar nos Analíticos de Aristóteles sem tropeço.
Quem entender a natureza, as partes, as figuras e os modos do silogismo, terá a chave da razão demonstrativa e dialética.

E como o olho vê a luz por sua própria natureza, assim o intelecto vê a verdade pela forma do silogismo, onde o necessário se mostra como imagem do inteligível.

Não há outro caminho para a ciência senão o da reta ordenação das proposições: pois toda certeza nasce do nexo que une as causas às consequências.

Com isto basta. E ao leitor que desejar avançar, aconselha-se que passe à leitura dos livros De Syllogismo Categorico, onde o que aqui foi brevemente tocado será tratado de modo mais extenso e técnico.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS SECUNDUS — DE SYLLOGISMO CATEGORICO LIBRI DUO

(col. 809C – 841B, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


ÍNDICE BILÍNGUE / INDEX BILINGUIS

LIBER PRIMUS / LIVRO PRIMEIRO

Prologus ad Symmachum.
 Prólogo dedicado a Símaco.

Caput I — De definitione syllogismi categorici.
 Sobre a definição do silogismo categórico.

Caput II — De partibus syllogismi categorici.
 Sobre as partes que compõem o silogismo categórico.

Caput III — De forma syllogismi et de figura prima.
 Sobre a forma do silogismo e a primeira figura.

Caput IV — De conversione propositionum.
 Sobre a conversão das proposições.

Caput V — De modo primo figurae primae.
 Sobre o primeiro modo da primeira figura.

Caput VI — De reliquis modis primae figurae.
 Sobre os modos restantes da primeira figura.

Caput VII — De reductione modorum.
 Sobre a redução dos modos à figura primeira.

Caput VIII — De syllogismis imperfectis.
 Sobre os silogismos imperfeitos e sua correção.

Sub-index I (dentro do Caput VIII):
 – De reductione per impossibile (Da redução pelo impossível).
 – De conversione per contrapositionem (Da conversão por contraposição).

Caput IX — De demonstratione categorica.
 Sobre a demonstração categórica e sua evidência.

Conclusio libri primi.
 Conclusão do primeiro livro.


LIBER SECUNDUS / LIVRO SEGUNDO

Prologus.
 Introdução ao segundo livro: sobre o propósito do autor.

Caput I — De figura secunda.
 Sobre a segunda figura dos silogismos categóricos.

Caput II — De modis figurae secundae.
 Sobre os modos da segunda figura.

Sub-index II (dentro do Caput II):
 – De modo Cesare
 – De modo Camestres
 – De modo Festino
 – De modo Baroco

Caput III — De figura tertia.
 Sobre a terceira figura.

Caput IV — De modis figurae tertiae.
 Sobre os modos da terceira figura.

Sub-index III (dentro do Caput IV):
 – De modo Darapti
 – De modo Disamis
 – De modo Datisi
 – De modo Felapton
 – De modo Bocardo
 – De modo Ferison

Caput V — De figura quarta (addita ab aliis).
 Sobre a quarta figura, acrescentada por autores posteriores.

Caput VI — De utilitate et ordine figurarum.
 Sobre a utilidade e a ordem das figuras na demonstração.

Caput VII — De syllogismo mixto et hypothetico brevius.
 Breve referência ao silogismo misto e hipotético.

Conclusio totius operis.
 Conclusão geral dos dois livros sobre o silogismo categórico.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS SECUNDUS — DE SYLLOGISMO CATEGORICO LIBRI DUO

LIBER PRIMUS / LIVRO PRIMEIRO

(col. 809C – 825C, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


PRÓLOGO — PROLOGUS AD SYMMACHUM

(col. 809C–811A)

Símaco, glória das famílias romanas e ornamento da eloquência senatorial, tu que acolhes com benevolência todas as obras do engenho humano, receberás também esta modesta composição, não pela grandeza do tema, mas pela intenção daquele que escreve.

O estudo do silogismo categórico, que é a base de toda demonstração, parece árido a quem o lê sem guia; mas torna-se doce àqueles que percebem sua ordem e necessidade. Pois, assim como o som que nasce do toque das cordas se harmoniza pela proporção dos intervalos, assim também o raciocínio, ajustado por regras, produz a música do entendimento.

Eu te envio, portanto, não uma obra nova, mas um instrumento mais claro para entender Aristóteles. Muitos tentaram antes de mim explicar os silogismos; alguns com brevidade excessiva, outros com prolixidade vã. Eu, entre ambos os excessos, busquei o meio: nem afastar o leitor pela obscuridade, nem cansá-lo pela abundância.

Por isso dividi o presente tratado em dois livros:
— No primeiro, tratarei das figuras e modos que se formam de proposições categóricas;
— No segundo, da ordem das figuras, de sua redução e da aplicação na arte de demonstrar.

E, para que o caminho da razão se torne plano, começaremos definindo o que é o silogismo e como ele difere de outros tipos de raciocínio.


CAPUT I — DE DEFINITIONE SYLLOGISMI CATEGORICI

(col. 811A–813A)

Silogismo categórico é aquele no qual, estabelecidas certas proposições afirmativas ou negativas, se segue necessariamente uma conclusão que pertence à mesma categoria de ser e de dizer.

Diz-se categórico porque cada uma das suas partes — maior, menor e média — enuncia algo de modo simples, sem condição ou hipótese. Diferente é o silogismo hipotético, que depende de um “se” ou de um “caso suposto”.

Por exemplo:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
— Logo, Sócrates é mortal.

Aqui, as duas primeiras proposições estão na categoria de substância: falam de homens e de mortalidade, coisas simples.
Mas se dissermos: Se é dia, há luz, isso pertence ao modo hipotético, porque uma coisa é dita em relação à outra.

O silogismo categórico, portanto, é o primeiro e o mais natural ato da razão, por meio do qual a mente liga o universal ao singular sem necessidade de hipótese.
Nele se encontra o germe de toda demonstração, pois, quem compreender como o necessário se segue do necessário, conhecerá a natureza mesma da verdade.


CAPUT II — DE PARTIBUS SYLLOGISMI CATEGORICI

(col. 813A–814B)

As partes do silogismo categórico são três:

  1. A premissa maior,
  2. A premissa menor,
  3. A conclusão.

E há também três termos: o maior, o menor e o médio.

O termo maior é aquele que aparece como predicado na conclusão; o menor, como sujeito; e o médio é o que liga ambos.
Chamamos médio porque, estando entre os outros dois, é como a ponte que une o particular ao universal.

O silogismo é, pois, o discurso ordenado que faz aparecer o vínculo oculto entre os termos.
Sem esse vínculo, o pensamento é disperso e a conclusão, impossível.
Por isso Aristóteles disse que “a ciência nasce do nexo necessário das causas”.

E assim como o corpo é composto de membros distintos, mas ordenados à vida de um só ser, também o raciocínio, ainda que formado de proposições diversas, vive de uma única alma: a necessidade lógica.


CAPUT III — DE FORMA SYLLOGISMI ET DE FIGURA PRIMA

(col. 814B–817A)

A forma do silogismo é a disposição ordenada das suas partes.
Quando o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor, dizemos que se trata da primeira figura, fundamento de todas as outras.

Na primeira figura estão contidos os modos mais perfeitos, porque nela a conclusão se segue diretamente das premissas, sem necessidade de conversão.
Esses modos são quatro, cujos nomes os antigos transmitiram com arte mnemônica: Barbara, Celarent, Darii, Ferio.

Barbara (AAA)
— Todo homem é mortal.
— Todo mortal é corruptível.
— Logo, todo homem é corruptível.

Celarent (EAE)
— Nenhum vício é virtude.
— Todo vício é deplorável.
— Logo, nenhuma virtude é deplorável.

Darii (AII)
— Todo sábio é prudente.
— Algum homem é sábio.
— Logo, algum homem é prudente.

Ferio (EIO)
— Nenhum insensato é prudente.
— Algum homem é insensato.
— Logo, algum homem não é prudente.

Eis os modos perfeitos da primeira figura, que não precisam de prova alheia, pois sua necessidade é manifesta pelo próprio arranjo dos termos.
Todos os demais modos das outras figuras reduzem-se a estes, como rios que retornam à fonte.


CAPUT IV — DE CONVERSIONE PROPOSITIONUM / SOBRE A CONVERSÃO DAS PROPOSIÇÕES

(col. 817A–819A)

Converter uma proposição é trocar a ordem entre sujeito e predicado, mantendo o mesmo valor de verdade.

Há três tipos de conversão:

  1. Simples,
  2. Per accidens,
  3. Per contrapositionem.

A conversão simples ocorre quando ambos os termos têm a mesma extensão:
— “Todo homem é animal” converte-se em “Algum animal é homem.”

A conversão per accidens diminui a universalidade:
— “Todo homem é mortal” converte-se em “Algum mortal é homem.”

A conversão per contrapositionem troca o termo com sua negação:
— “Todo justo é feliz” converte-se em “Quem não é feliz não é justo.”

O conhecimento dessas conversões é necessário para a redução dos modos e para demonstrar a equivalência entre figuras.
Pois muitas vezes o que não é evidente numa forma se torna claro na outra, como o reflexo da imagem no espelho.


CAPUT V — DE MODO PRIMO FIGURAE PRIMAE / SOBRE O PRIMEIRO MODO DA PRIMEIRA FIGURA

(col. 819A–820C)

Entre todos os modos, o primeiro — Barbara — é o mais digno de estudo, porque serve de base a todos os outros.
Nele, se as duas premissas são universais e afirmativas, a conclusão será universal e afirmativa.
Isso ocorre porque o universal contém em si o particular e o afirmativo não admite contradição quando as premissas se compõem corretamente.

A razão dessa necessidade é dupla:
— a primeira, porque o predicado da maior abrange o sujeito da menor;
— a segunda, porque o termo médio, estando contido em ambos, transmite a universalidade.

Assim, quando dizemos:
“Todo homem é mortal” e “Todo mortal é corruptível”, temos que o termo médio “mortal” se encontra igualmente nas duas premissas; e a conclusão “Todo homem é corruptível” decorre necessariamente, pois o que pertence a todos os mortais pertence também a todo homem.

CAPUT VI — DE RELIQUIS MODIS PRIMAE FIGURAE / SOBRE OS MODOS RESTANTES DA PRIMEIRA FIGURA

(col. 820C–822A)

Além de Barbara, há na primeira figura outros três modos legítimos: Celarent, Darii e Ferio, dos quais já se fez menção, mas convém agora expor a razão de sua validade.

Em Celarent, a conclusão é negativa universal, porque, se nenhum B é C e todo A é B, segue-se que nenhum A é C.
A força deste modo provém da exclusão do termo médio: aquilo que é separado do predicado por sua natureza não pode ser unido ao sujeito por inferência.

Em Darii, a conclusão é particular afirmativa. O universal afirmativo na maior e o particular afirmativo na menor produzem a verdade parcial na conclusão: se todo B é C e algum A é B, então algum A é C.
A razão está em que o termo médio comunica parte de sua extensão ao termo menor, sem esgotar a universalidade do maior.

Em Ferio, o resultado é particular negativo: de uma universal negativa e de uma particular afirmativa conclui-se uma particular negativa.
Pois, se nenhum B é C e algum A é B, então algum A não é C.
Assim a negação total de B em relação a C repercute parcialmente sobre A, e a mente percebe a exclusão.

Portanto, todos os modos da primeira figura se mantêm pela relação necessária entre o termo médio e os extremos; e nenhum deles exige recurso à conversão, pois o nexo se mostra evidente pelo próprio ordenamento dos termos.


CAPUT VII — DE REDUCTIONE MODORUM / SOBRE A REDUÇÃO DOS MODOS À PRIMEIRA FIGURA

(col. 822A–823B)

Reduzir um modo é reconduzir um silogismo imperfeito à forma da primeira figura, para que sua necessidade se torne manifesta.
Tal redução se faz de dois modos: direta, quando pela conversão de uma proposição se obtém a forma de Barbara ou Celarent; e indireta, quando se prova por impossibilidade.

A redução direta emprega a transformação das premissas.
Exemplo:
Na segunda figura, Cesare (EAE) se reduz a Celarent pela conversão da maior:
— Nenhum C é B (conversão de “Nenhum B é C”).
— Todo A é B.
— Logo, nenhum A é C.

A redução indireta, ou per impossibile, prova o mesmo por contradição:
supondo falsa a conclusão, demonstra-se que uma das premissas deve ser falsa, o que é impossível se as premissas são verdadeiras.
Assim, pela destruição do contrário, firma-se a necessidade da conclusão.

Esta arte de reduzir serve não apenas para as figuras, mas para todo raciocínio: pois nada é mais próprio do intelecto que reconduzir o obscuro ao claro, o derivado ao princípio.


CAPUT VIII — DE SYLLOGISMIS IMPERFECTIS / SOBRE OS SILOGISMOS IMPERFEITOS E SUA CORREÇÃO

(col. 823B–824C)

Chama-se silogismo imperfeito aquele cuja conclusão não é evidente à primeira vista, mas que se confirma pela redução.
A imperfeição pode ocorrer por três causas:

  1. Por deficiência da forma (quando o termo médio não ocupa posição adequada);
  2. Por confusão das proposições (quando uma delas é hipotética ou disjuntiva);
  3. Por erro de extensão (quando o universal é tomado por particular ou o particular por universal).

Tais defeitos não destroem o raciocínio, mas o tornam opaco.
Para corrigi-los, o dialético deve aplicar as regras de conversão, contraposição e exclusão, até que o silogismo se conforme a uma das figuras regulares.

Sub-index interno (col. 824A–824C)

De reductione per impossibile.
 A redução pelo impossível é a mais nobre forma de demonstração dialética, pois mostra que a negação da conclusão implica contradição nas premissas. Assim, o verdadeiro se impõe não por afirmação, mas pela impossibilidade do falso.

De conversione per contrapositionem.
 A conversão por contraposição inverte a proposição, substituindo o termo pelo seu contraditório. Exemplo: de “Todo justo é feliz” obtemos “Quem não é feliz não é justo”.
 Tal método é útil na refutação, pois manifesta a simetria entre os contrários.


CAPUT IX — DE DEMONSTRATIONE CATEGORICA / SOBRE A DEMONSTRAÇÃO CATEGÓRICA E SUA EVIDÊNCIA

(col. 824C–825A)

Demonstração é o silogismo que produz ciência, porque parte de princípios certos e necessários.
Por isso, nem toda conclusão verdadeira é demonstração, mas somente aquela cuja verdade depende da necessidade do nexo.

Na demonstração, as premissas são mais conhecidas que a conclusão e se afirmam como causas dela.
Na dialética, ao contrário, as premissas são prováveis e a conclusão apenas verossímil.

A demonstração categórica usa proposições universais e necessárias, de modo que a conclusão não possa ser diferente do que é.
Assim, se os princípios são eternos, eterna será a ciência que deles procede; se são contingentes, apenas opinião se segue.

Portanto, o silogismo categórico é a forma da razão demonstrativa, e toda arte de argumentar nele encontra o seu fundamento e o seu limite.


CONCLUSIO LIBRI PRIMI / CONCLUSÃO DO PRIMEIRO LIVRO

(col. 825B–825C)

Com estas divisões encerramos o primeiro livro sobre os silogismos categóricos.
Explicamos a definição, as partes, a forma, as figuras, os modos e a maneira de reduzir os imperfeitos à sua fonte.

No livro seguinte trataremos das figuras restantes, de suas reduções mútuas, e da ordem que Aristóteles observou na ciência dos raciocínios.
Pois assim como o corpo humano, composto de muitos membros, forma um todo harmonioso, também a razão, articulada em figuras, é uma só em sua verdade.

A sabedoria consiste em perceber essa unidade sob a diversidade dos modos, e reconhecer, nas múltiplas vozes da lógica, o mesmo logos que move o mundo.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS SECUNDUS — DE SYLLOGISMO CATEGORICO LIBRI DUO

LIBER SECUNDUS / LIVRO SEGUNDO

(col. 825D – 841B, Patrologia Latina LXIV)


PRÓLOGO / PROLOGUS

(col. 825D–826C)

No livro anterior examinamos a natureza e a estrutura do silogismo categórico, e a primeira figura, fundamento de todas as outras.
Resta agora considerar as
figuras segunda e terceira, e também aquela quarta que alguns dialéticos acrescentaram, não por autoridade do Estagirita, mas por conveniência da exposição.

Estas figuras são ditas derivadas, porque a necessidade de suas conclusões não se mostra de modo direto, senão por conversão e redução.
Mas, como o método exige completude, convém examiná-las segundo a ordem tradicional, para que nada da arte lógica permaneça sem medida.


CAPUT I — DE FIGURA SECUNDA / SOBRE A SEGUNDA FIGURA

(col. 826C–828A)

A segunda figura ocorre quando o termo médio é predicado em ambas as premissas.
Nessa disposição, a conclusão é sempre
negativa, porque o termo médio, sendo comum como predicado, separa os extremos em vez de uni-los.

Exemplo:
— Nenhum justo é ímpio.
— Todo sábio é justo.
— Logo, nenhum sábio é ímpio.

Aqui, “justo” é o termo médio, predicado nas duas proposições, e sua exclusão de “ímpio” torna necessária a exclusão de “sábio”.

Na segunda figura, portanto, jamais se obtém conclusão afirmativa universal, pois o arranjo do médio impede a inclusão plena dos extremos.


CAPUT II — DE MODIS FIGURAE SECUNDAE / SOBRE OS MODOS DA SEGUNDA FIGURA

(col. 828A–831A)

São quatro os modos legítimos desta figura: Cesare, Camestres, Festino, Baroco.

Sub-índice II (a)De modo Cesare (EAE)
(col. 828A–828C)
Nenhum B é C;
Todo A é B;
Logo, nenhum A é C.
A conclusão negativa universal deriva da exclusão total de B em relação a C.

Sub-índice II (b)De modo Camestres (AEE)
(col. 828C–829A)
Todo B é C;
Nenhum A é C;
Logo, nenhum A é B.
A demonstração depende da conversão da maior.

Sub-índice II (c)De modo Festino (EIO)
(col. 829A–829C)
Nenhum B é C;
Algum A é B;
Logo, algum A não é C.

Sub-índice II (d)De modo Baroco (AOO)
(col. 829C–831A)
Todo B é C;
Algum A não é C;
Logo, algum A não é B.

Todos estes modos reduzem-se, por conversão, à primeira figura.
A segunda figura serve, pois, principalmente à refutação e à prova por impossibilidade, sendo mais apta para destruir o falso do que para construir o verdadeiro.


CAPUT III — DE FIGURA TERTIA / SOBRE A TERCEIRA FIGURA

(col. 831A–833B)

A terceira figura dispõe o termo médio como sujeito em ambas as premissas.
Dela sempre se segue conclusão
particular, nunca universal, porque o termo médio não abrange totalmente os extremos.

Exemplo:
— Todo homem é animal.
— Todo homem é racional.
— Logo, algum racional é animal.

O termo médio “homem”, sujeito nas duas proposições, comunica apenas parte de sua extensão à conclusão.

A utilidade dessa figura é mostrar a coexistência de predicados num mesmo sujeito, servindo, portanto, à definição e à análise das essências compostas.


CAPUT IV — DE MODIS FIGURAE TERTIAE / SOBRE OS MODOS DA TERCEIRA FIGURA

(col. 833B–837A)

A terceira figura possui seis modos legítimos: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Ferison.

Sub-índice III (a)De modo Darapti (AAI)
(col. 833B–834A)
Todo B é C;
Todo A é B;
Logo, algum A é C.

Sub-índice III (b)De modo Disamis (IAI)
(col. 834A–834C)
Algum B é C;
Todo A é B;
Logo, algum A é C.

Sub-índice III (c)De modo Datisi (AII)
(col. 834C–835A)
Todo B é C;
Algum A é B;
Logo, algum A é C.

Sub-índice III (d)De modo Felapton (EAO)
(col. 835A–835C)
Nenhum B é C;
Todo A é B;
Logo, algum A não é C.

Sub-índice III (e)De modo Bocardo (OAO)
(col. 835C–836A)
Algum B não é C;
Todo A é B;
Logo, algum A não é C.

Sub-índice III (f)De modo Ferison (EIO)
(col. 836A–837A)
Nenhum B é C;
Algum A é B;
Logo, algum A não é C.

Todos esses modos são válidos pela comunhão do termo médio; e, embora as conclusões sejam particulares, cada uma contém verdade necessária segundo a extensão dos sujeitos.


CAPUT V — DE FIGURA QUARTA (ADDITA AB ALIIS) / SOBRE A QUARTA FIGURA, ACRESCENTADA POR OUTROS

(col. 837A–838B)

A quarta figura não pertence ao cânone de Aristóteles, mas foi introduzida pelos comentadores para completar a simetria das combinações possíveis.
Nela, o termo médio é predicado na maior e sujeito na menor.

Exemplo:
— Todo C é B.
— Todo B é A.
— Logo, algum A é C.

Ainda que essa disposição possa produzir inferências verdadeiras, sua validade deriva da redução às figuras precedentes.
Por isso, alguns autores a aceitaram apenas como figura
subordinada, e não principal.


CAPUT VI — DE UTILITATE ET ORDINE FIGURARUM / SOBRE A UTILIDADE E A ORDEM DAS FIGURAS

(col. 838B–840A)

A ordem das figuras não é arbitrária, mas conforme à natureza do raciocínio:
— A
primeira ensina a concluir;
— A
segunda, a refutar;
— A
terceira, a distinguir;
— A
quarta, a completar.

Assim, o progresso da mente vai do afirmar ao negar, do negar ao discernir, e do discernir à contemplação do todo.
Nessa hierarquia, a razão humana imita o movimento do cosmos: o que nasce, o que perece, o que se distingue e o que retorna à unidade.


CAPUT VII — DE SYLLOGISMO MIXTO ET HYPOTHETICO BREVIUS / BREVE REFERÊNCIA AO SILOGISMO MISTO E HIPOTÉTICO

(col. 840A–841A)

Embora o tema principal seja o silogismo categórico, convém mencionar o misto e o hipotético, para mostrar sua dependência do primeiro.
O misto participa de ambos: uma das premissas é categórica e a outra condicional.
O hipotético, por sua vez, exprime relação entre proposições inteiras, e não entre termos.

Por exemplo:
Se é dia, há luz.
É dia.
— Logo, há luz.

Esse modo de raciocínio, ainda que legítimo, não pertence à categoria do ser, mas à do dizer; e, portanto, sua análise pertence à lógica superior, que trata das proposições compostas.


CONCLUSIO TOTIUS OPERIS / CONCLUSÃO GERAL DOS DOIS LIVROS

(col. 841A–841B)

Reunimos nestes dois livros o que Aristóteles ensinou acerca dos silogismos categóricos, segundo a ordem das figuras e dos modos.
Mostramos de que modo o intelecto, ao combinar universais e particulares, alcança a necessidade da conclusão.

E, assim como a geometria se apoia em axiomas e o número em unidades, também a razão se apoia nestas formas de pensar, sem as quais toda ciência seria mera opinião.

Quem dominar as figuras e os modos terá aprendido o movimento mesmo do pensamento, e verá que a verdade não se impõe por autoridade, mas pela coerência do necessário.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS TERTIUS — DE SYLLOGISMO HYPOTHETICO LIBRI DUO

(col. 841C – 874D, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


ÍNDICE BILÍNGUE / INDEX BILINGUIS

LIBER PRIMUS / LIVRO PRIMEIRO

Prologus ad Symmachum.
 Prólogo dirigido a Símaco.

Caput I — De definitione syllogismi hypothetici.
 Sobre a definição do silogismo hipotético.

Caput II — De differentiis inter syllogismum categoricum et hypotheticum.
 Sobre as diferenças entre o silogismo categórico e o hipotético.

Caput III — De speciebus syllogismi hypothetici.
 Sobre as espécies do silogismo hipotético.

Sub-index I (ad Caput III):
 – De conditionali syllogismo (Do silogismo condicional).
 – De disjunctivo syllogismo (Do silogismo disjuntivo).
 – De copulativo syllogismo (Do silogismo copulativo).
 – De mixto syllogismo (Do silogismo misto).

Caput IV — De regula veritatis in propositionibus hypotheticis.
 Sobre a regra da verdade nas proposições hipotéticas.

Caput V — De conversione et reductione syllogismorum hypotheticorum.
 Sobre a conversão e a redução dos silogismos hipotéticos.

Caput VI — De consequentiis et consequentiarum differentiis.
 Sobre as consequências e suas diferenças.

Caput VII — De casibus falsitatis et soluta consequentia.
 Sobre os casos de falsidade e a consequência dissolvida.

Conclusio libri primi.
 Conclusão do primeiro livro.


LIBER SECUNDUS / LIVRO SEGUNDO

Prologus.
 Introdução ao segundo livro: sobre a aplicação dos silogismos hipotéticos.

Caput I — De connexione conditionalium et ratione necessitatis.
 Sobre a conexão das proposições condicionais e a razão da necessidade.

Caput II — De ordine disjunctivarum et earum veritate.
 Sobre a ordem das proposições disjuntivas e sua verdade.

Sub-index II (ad Caput II):
 – De exclusiva disjunctione (Da disjunção exclusiva).
 – De inclusiva disjunctione (Da disjunção inclusiva).
 – De fallacia in disjunctionibus apparente (Da falácia aparente em disjunções).

Caput III — De hypothetico mixto cum categorico.
 Sobre o silogismo misto com o categórico.

Caput IV — De compositione syllogismi hypothetici et forma complexa.
 Sobre a composição do silogismo hipotético e sua forma complexa.

Caput V — De demonstratione per hypotheticum syllogismum.
 Sobre a demonstração feita por silogismo hipotético.

Caput VI — De usu dialectico et sophisticis fallaciis hypotheticis.
 Sobre o uso dialético e as falácias sofísticas em silogismos hipotéticos.

Conclusio totius operis.
 Conclusão geral dos dois livros sobre os silogismos hipotéticos.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS TERTIUS — DE SYLLOGISMO HYPOTHETICO LIBRI DUO

LIBER PRIMUS / LIVRO PRIMEIRO

(col. 841C – 858B, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


PRÓLOGO / PROLOGUS AD SYMMACHUM

(col. 841C–843A)

Símaco, honra do Senado e espelho da razão romana, muitos julgam que a arte dos silogismos se encerra naquelas formas categóricas que tratam de substâncias e qualidades; mas há outra espécie de raciocínio, não menos necessária, que liga proposições inteiras umas às outras, e é chamada de hipotética.

Esta arte é como o segundo grau da dialética. Pois o silogismo categórico compara nomes e predicados, ao passo que o hipotético compara orações inteiras e o nexo que as une.

Assim como a gramática une as palavras e a música une os sons, também a lógica une as proposições — e esta união das proposições é o domínio próprio do raciocínio hipotético.

Os gregos o chamam syllogismos hypothetikos, porque se funda sobre uma hipótese ou condição: “Se isto é, então aquilo é”; e da veracidade desta conexão depende a conclusão.

Como no raciocínio natural o intelecto passa do ser ao devir, assim no hipotético ele passa do dizer ao concluir. É uma arte superior, pois considera não apenas o conteúdo, mas também o vínculo entre os conteúdos.

E para que este caminho se torne acessível, dividirei o tratado em dois livros:
— No primeiro, sobre a natureza, as espécies e a regra de verdade das proposições hipotéticas;
— No segundo, sobre a aplicação, a demonstração e as falácias aparentes.


CAPUT I — DE DEFINITIONE SYLLOGISMI HYPOTHETICI / SOBRE A DEFINIÇÃO DO SILOGISMO HIPOTÉTICO

(col. 843A–845A)

Silogismo hipotético é o argumento no qual a conclusão depende da condição estabelecida entre proposições.

Enquanto o categórico diz algo de algo, o hipotético diz algo se algo for.
Assim, na proposição “Se o sol nasce, é dia”, o ser do dia não é afirmado absolutamente, mas sob condição do nascer do sol.

A essência deste silogismo não está nas coisas, mas na relação entre enunciados.
Por isso, o sujeito e o predicado são aqui proposições inteiras, não termos isolados.

Exemplo:
— Se é dia, há luz.
— É dia.
— Logo, há luz.

Neste raciocínio, as duas primeiras proposições se unem por um vínculo de necessidade condicional, e a conclusão decorre do cumprimento da condição.

Assim como na natureza nada se move sem causa, também no pensamento nada se segue sem uma hipótese que o sustente.


CAPUT II — DE DIFFERENTIIS INTER SYLLOGISMUM CATEGORICUM ET HYPOTHETICUM / SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE OS SILOGISMOS CATEGÓRICO E HIPOTÉTICO

(col. 845A–847A)

A diferença principal está no objeto do juízo.
O silogismo categórico versa sobre a essência das coisas; o hipotético, sobre o nexo entre proposições.
Aquele demonstra o que é; este, o que segue.

No categórico, as premissas contêm termos; no hipotético, contêm proposições.
Por isso, o primeiro é a forma da ciência das naturezas; o segundo, a forma da ciência dos discursos.

Outra diferença está na forma de necessidade.
No categórico, o necessário é intrínseco à essência: “Todo homem é mortal.”
No hipotético, o necessário é extrínseco e dependente da relação: “Se o homem respira, vive.”
Aqui, a verdade não reside na proposição isolada, mas na coerência entre o antecedente e o consequente.

Por fim, há diferença de uso: o silogismo categórico conduz à definição e à demonstração, o hipotético à interpretação e ao exame do discurso.
O primeiro é o logos da substância; o segundo, o logos da relação.


CAPUT III — DE SPECIEBUS SYLLOGISMI HYPOTHETICI / SOBRE AS ESPÉCIES DO SILOGISMO HIPOTÉTICO

(col. 847A–850B)

Existem quatro espécies principais de silogismo hipotético: condicional, disjuntivo, copulativo e misto.

Sub-índice I (a)De conditionali syllogismo / Do silogismo condicional
(col. 847A–848A)

O silogismo condicional é aquele que parte de uma condição para afirmar o consequente.
Exemplo:
— Se é dia, há luz.
— É dia.
— Logo, há luz.

A validade depende da verdade da relação: se o antecedente é verdadeiro, o consequente deve sê-lo necessariamente.
A falha ocorre quando a relação entre ambos não é necessária, mas apenas costumeira, como em “Se o galo canta, o sol nasce” — que pode ser falso, pois o sol nasce sem o galo.

Sub-índice I (b)De disjunctivo syllogismo / Do silogismo disjuntivo
(col. 848A–849A)

No silogismo disjuntivo, uma das partes exclui a outra.
Exemplo:
— Ou é dia, ou é noite.
— É dia.
— Logo, não é noite.

A verdade depende da totalidade da disjunção: se todas as possibilidades foram expostas, a negação de uma afirma a outra.

Sub-índice I (c)De copulativo syllogismo / Do silogismo copulativo
(col. 849A–849C)

O silogismo copulativo une duas proposições de modo que a verdade da conclusão dependa da verdade simultânea de ambas.
Exemplo:
— É dia e há luz.
— É dia.
— Logo, há luz.

Este tipo, contudo, é mais uma junção verbal que lógica; por isso, Aristóteles o trata como forma auxiliar.

Sub-índice I (d)De mixto syllogismo / Do silogismo misto
(col. 849C–850B)

O silogismo misto combina uma proposição hipotética com uma categórica.
Exemplo:
— Se o homem é racional, ele aprende.
— O homem é racional.
— Logo, ele aprende.

É o mais próximo da ciência natural, pois liga causas e efeitos, condição e realização.


CAPUT IV — DE REGULA VERITATIS IN PROPOSITIONIBUS HYPOTHETICIS / SOBRE A REGRA DE VERDADE NAS PROPOSIÇÕES HIPOTÉTICAS

(col. 850B–853A)

A verdade de uma proposição hipotética depende de duas coisas:

  1. Da verdade das partes;
  2. Da verdade do vínculo entre elas.

Uma proposição pode ter partes verdadeiras e ainda assim ser falsa, se o vínculo for acidental.
Exemplo:
— “Se o homem é animal, o fogo é quente.”
Ambas são verdadeiras separadamente, mas não há relação necessária; portanto, a proposição é falsa enquanto hipotética.

O vínculo verdadeiro é aquele em que o consequente segue necessariamente do antecedente.
Essa necessidade pode ser natural, causal ou lógica:
— Natural, como “Se o sol nasce, há luz.”
— Causal, como “Se há nuvem, haverá sombra.”
— Lógica, como “Se todo homem é mortal e Sócrates é homem, Sócrates é mortal.”

O raciocínio hipotético é, assim, a medida do nexo entre causa e efeito no plano do dizer.


CAPUT V — DE CONVERSIONE ET REDUCTIONE SYLLOGISMORUM HYPOTHETICORUM / SOBRE A CONVERSÃO E REDUÇÃO DOS SILOGISMOS HIPOTÉTICOS

(col. 853A–855A)

As proposições hipotéticas também se convertem, mas não pela troca de termos, e sim pela inversão da relação.
Exemplo:
— Se há luz, é dia.
É a conversão de:
— Se é dia, há luz.

No entanto, essa conversão só é válida quando a relação é bicondicional, isto é, quando cada um implica o outro.
Nem toda hipótese admite tal reciprocidade, pois pode haver causa sem retorno.

A redução dos silogismos hipotéticos faz-se reconduzindo-os ao tipo condicional, que é a forma mais pura.
Assim como na categoria o Barbara é a matriz dos modos, aqui o condicional é a matriz de todos os hipotéticos.


CAPUT VI — DE CONSEQUENTIIS ET DIFFERENTIIS / SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS E SUAS DIFERENÇAS

(col. 855A–857A)

Chama-se consequência a inferência pela qual, posta uma proposição, se segue outra.
Nem toda consequência é necessária: algumas são verdadeiras apenas por costume, outras por natureza.

Há três tipos:
Materialis, quando a conexão é acidental (como “Se é homem, é branco”).
Formalis, quando depende da estrutura lógica (“Se é dia, há luz”).
Naturalis, quando provém de causa física (“Se há fogo, há calor”).

A dialética deve distinguir essas formas, para não confundir o que é essencial com o que é acidental.


CAPUT VII — DE CASIBUS FALSITATIS ET SOLUTA CONSEQUENTIA / SOBRE OS CASOS DE FALSIDADE E A CONSEQUÊNCIA DISSOLVIDA

(col. 857A–858B)

Ocorre falsidade quando o antecedente é verdadeiro e o consequente falso, ou quando a relação entre ambos não é necessária.
Assim se diz que a consequência foi soluta, isto é, dissolvida.

Exemplo:
— Se é dia, as estrelas brilham.
— É dia.
— Logo, as estrelas brilham.
Aqui, o antecedente é verdadeiro, mas o consequente é falso, e portanto a proposição condicional é mentirosa.

A arte da lógica deve ensinar não apenas a afirmar o verdadeiro, mas também a reconhecer o falso pela ruptura do vínculo.


CONCLUSIO LIBRI PRIMI / CONCLUSÃO DO PRIMEIRO LIVRO

(col. 858B)

Terminamos o primeiro livro sobre os silogismos hipotéticos, mostrando como se compõem, se convertem e se reduzem, e de que modo a verdade depende não das coisas ditas, mas do nexo entre o dizer.

O segundo livro tratará de sua aplicação, das formas complexas e das falácias aparentes, para que o intelecto se torne vigilante diante das ilusões do discurso.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS TERTIUS — DE SYLLOGISMO HYPOTHETICO LIBRI DUO

LIBER SECUNDUS / LIVRO SEGUNDO

(col. 858C – 874D, Patrologia Latina LXIV)


PRÓLOGO / PROLOGUS

(col. 858C–859B)

No livro precedente examinamos a estrutura do silogismo hipotético e suas espécies.
Resta agora aplicar o que foi dito, para mostrar como tais formas de raciocínio se realizam na prática e como servem tanto à demonstração quanto à refutação.

O presente livro se ocupa, pois, de três coisas:
— da
conexão das proposições condicionais e de sua necessidade;
— da
ordem das disjuntivas e das falácias que nelas se escondem;
— e do
uso dialético, que converte o raciocínio hipotético em instrumento de prudência intelectual.

Assim, como o construtor aprende primeiro as leis da geometria e depois ergue o edifício, também o lógico, tendo aprendido a forma, deve agora exercê-la no discurso.


CAPUT I — DE CONNEXIONE CONDITIONALIUM ET RATIONE NECESSITATIS / SOBRE A CONEXÃO DAS CONDICIONAIS E A RAZÃO DA NECESSIDADE

(col. 859B–862A)

O vínculo da proposição condicional é chamado connexio, e é a alma do raciocínio hipotético.
Diz-se que uma proposição é
conexa quando a verdade do consequente depende necessariamente do antecedente.

Há três graus dessa conexão: contingente, provável e necessário.

— A conexão contingente dá-se quando o consequente costuma seguir o antecedente, mas não por força da natureza, como “Se o vento sopra, o mar agita-se”.
— A conexão
provável existe quando o nexo é moral ou costumeiro, como “Se o homem é justo, é digno de confiança.”
— A conexão
necessária é aquela que não pode ser de outro modo, como “Se o sol nasce, há dia.”

A razão da necessidade está na essência do vínculo.
Pois assim como o fogo não pode ser sem calor, assim o consequente verdadeiro não pode faltar quando o antecedente se cumpre em causa necessária.

O erro mais comum dos dialéticos é confundir o necessário com o frequente, tomando o habitual como lei do ser.
Mas a lógica distingue: o necessário é eterno; o frequente é temporal.


CAPUT II — DE ORDINE DISJUNCTIVARUM ET EARUM VERITATE / SOBRE A ORDEM DAS PROPOSIÇÕES DISJUNTIVAS E SUA VERDADE

(col. 862A–866A)

A disjunção é o enunciado que divide o pensamento em partes alternativas: “Ou é dia, ou é noite.”
A sua força consiste em excluir a possibilidade de que ambas as partes sejam verdadeiras ao mesmo tempo.

Há duas espécies principais: exclusiva e inclusiva.

Sub-índice II (a) — De exclusiva disjunctione / Da disjunção exclusiva
(col. 862A–863A)

Na exclusiva, a verdade de uma exclui necessariamente a outra:
— Ou o número é par, ou é ímpar.
— É par.
— Logo, não é ímpar.
Esta disjunção é absoluta e perfeita, porque os membros se contradizem.

Sub-índice II (b) — De inclusiva disjunctione / Da disjunção inclusiva
(col. 863A–864A)

Na inclusiva, ambas as partes podem ser verdadeiras ao mesmo tempo:
— Ou o homem é sábio, ou é justo.
Pois é possível que seja ambos.
A verdade dessa disjunção reside não na exclusão, mas na possibilidade de comunhão.

Sub-índice II (c) — De fallacia in disjunctionibus apparente / Da falácia aparente nas disjunções
(col. 864A–866A)

A falácia surge quando a mente, ouvindo uma disjunção inclusiva, a interpreta como exclusiva, ou quando o todo não é completo.
Exemplo:
— Ou é dia, ou é nublado.
Ambas podem ser verdadeiras; portanto, não há contrariedade, mas o ouvido, por hábito, julga falsamente que uma exclui a outra.

Assim, a vigilância lógica consiste em examinar se os membros da disjunção se opõem realmente ou apenas verbalmente.


CAPUT III — DE HYPOTHETICO MIXTO CUM CATEGORICO / SOBRE O SILOGISMO MISTO COM O CATEGÓRICO

(col. 866A–868B)

O silogismo misto combina uma proposição hipotética com outra categórica.
Serve para unir o mundo da condição com o da substância.

Exemplo:
— Se o fogo toca o ferro, o ferro aquece.
— O fogo toca o ferro.
— Logo, o ferro aquece.

Aqui, a primeira premissa é hipotética, a segunda categórica; a conclusão é factual e necessária.

Há também a forma inversa:
— Se há movimento, há tempo.
— Não há tempo.
— Logo, não há movimento.

O raciocínio é legítimo porque nega o antecedente pela negação do consequente.

O silogismo misto é, pois, ponte entre o raciocínio abstrato e o real, e demonstra que a condição do dizer reflete a condição do ser.


CAPUT IV — DE COMPOSITIONE SYLLOGISMI HYPOTHETICI ET FORMA COMPLEXA / SOBRE A COMPOSIÇÃO DO SILOGISMO HIPOTÉTICO E SUA FORMA COMPLEXA

(col. 868B–870C)

O silogismo hipotético pode compor-se em cadeia, quando o consequente de um se torna o antecedente de outro.
Exemplo:
— Se há nuvem, há chuva.
— Se há chuva, há umidade.
— Logo, se há nuvem, há umidade.

Essa estrutura encadeada chama-se forma complexa.
Ela mostra a transitividade da relação lógica, pela qual o vínculo se propaga como corrente de ferro que conduz o mesmo movimento.

Mas há um limite: se a cadeia contém elos contingentes, a conclusão perde força.
Pois a necessidade se transmite apenas entre proposições necessárias.

A forma complexa, quando perfeita, é imagem da razão divina, na qual toda consequência é simultânea, não sucessiva.


CAPUT V — DE DEMONSTRATIONE PER HYPOTHETICUM SYLLOGISMUM / SOBRE A DEMONSTRAÇÃO PELO SILOGISMO HIPOTÉTICO

(col. 870C–872B)

Toda demonstração depende de uma conexão verdadeira e necessária.
O silogismo hipotético é, pois, capaz de demonstrar, contanto que o vínculo expresse uma dependência causal e não apenas condicional.

Por exemplo:
— Se há movimento, há mudança.
— Se há mudança, há tempo.
— Logo, se há movimento, há tempo.

Esta é uma demonstração causal, porque a presença do antecedente contém em si o consequente como necessidade.

Mas, se o vínculo é apenas verbal, a demonstração se desfaz:
— Se o homem fala, é racional.
— O homem fala.
— Logo, é racional.
A conclusão é verdadeira, mas a necessidade é acidental, pois a fala é sinal, não causa da racionalidade.

O verdadeiro lógico deve, portanto, discernir quando o vínculo exprime consequência de essência e quando exprime mera consequência de fato.


CAPUT VI — DE USU DIALECTICO ET SOPHISTICIS FALLACIIS HYPOTHETICIS / SOBRE O USO DIALÉTICO E AS FALÁCIAS SOFÍSTICAS NOS SILOGISMOS HIPOTÉTICOS

(col. 872B–874B)

O uso dialético do silogismo hipotético serve à refutação das opiniões.
Pois, quando alguém concede o antecedente, deve aceitar o consequente, se o vínculo for verdadeiro.

Os sofistas, porém, abusam dessa arte, unindo proposições sem relação, ou mudando o sentido das palavras.
Exemplo de falácia:
— Se é homem, é animal.
— Pedro é homem.
— Logo, Pedro é burro.
Aqui o consequente muda de extensão: de animal para burro; a falsidade nasce da substituição.

Outras vezes, a falácia consiste em ocultar o condicional:
— “É dia, portanto há luz.”
Mas se for noite iluminada por tocha, a conclusão parece verdadeira, embora o antecedente seja falso.

O lógico deve, pois, observar sempre se o vínculo é de necessidade, se a matéria é homogênea e se a conclusão se segue segundo a forma.

Assim se purifica o raciocínio das ilusões verbais e se preserva a alma da mentira da linguagem.


CONCLUSIO TOTIUS OPERIS / CONCLUSÃO GERAL DOS DOIS LIVROS

(col. 874C–874D)

Encerramos aqui a exposição dos silogismos hipotéticos.
Mostramos como a razão, ao unir não apenas os nomes, mas também as proposições, reflete a estrutura mesma do pensamento.

O silogismo categórico é a gramática do ser; o hipotético, a gramática do devir.
Ambos são necessários: o primeiro para compreender o que é, o segundo para compreender o que se segue.

Assim, quem souber unir o condicional com o categórico conhecerá o círculo completo da dialética, e verá que toda verdade é relação ordenada na mente do Logos.

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS QUARTUS — LIBER DE DIVISIONE

(col. 875–890, Patrologia Latina LXIV)


ÍNDICE BILÍNGUE / INDEX BILINGUIS

Prologus.
 Prólogo — Sobre a utilidade e o fruto do conhecimento da divisão. (col. 875–876A)

Caput I — De utilitate scientiae dividendi.
 Sobre a utilidade da ciência de dividir. (col. 876A–877A)

Caput II — De origine doctrinae divisionis apud Platonem et Aristotelem.
 Sobre a origem da doutrina da divisão em Platão e Aristóteles. (col. 877A–878B)

Caput III — De fine et materia divisionis.
 Sobre o fim e a matéria da divisão. (col. 878B–879A)

Caput IV — De regula rectae divisionis.
 Sobre a regra da divisão correta. (col. 879A–880A)

Sub-índices (ad Caput IV):
 (a) Neque idem dividatur per se et per accidens. — Que uma mesma coisa não se divida por si e por acidente.
 (b) Neque species subalternas in eadem divisione misceas. — Que não se misturem espécies subalternas na mesma divisão.
 (c) Ut dividantur opposita secundum genus proprium. — Que os opostos se dividam segundo seu gênero próprio.

Caput V — De partibus divisionis et earum ratione.
 Sobre as partes da divisão e sua razão. (col. 880A–881A)

Caput VI — De differentia inter genus, species, et individuum.
 Sobre a diferença entre gênero, espécie e indivíduo. (col. 881A–883A)

Caput VII — De differentiis recte sumendis.
 Sobre como escolher corretamente as diferenças. (col. 883A–884A)

Sub-índices (ad Caput VII):
 (a) De differentiis substantialibus. — Das diferenças substanciais.
 (b) De differentiis accidentalibus. — Das diferenças acidentais.
 (c) De differentiis communes et propriae. — Das diferenças comuns e próprias.

Caput VIII — De partibus essentialibus et integrantibus.
 Sobre as partes essenciais e integrantes. (col. 884A–885B)

Caput IX — De divisione per opposita.
 Sobre a divisão por opostos. (col. 885B–887A)

Caput X — De vitio divisionis et modis cavendi ab errore.
 Sobre os vícios da divisão e os modos de evitar o erro.
(col. 887A–888B)

Caput XI — De usu divisionis in artibus et scientiis.
 Sobre o uso da divisão nas artes e nas ciências. (col. 888B–889B)

Conclusio.
 Conclusão sobre a utilidade da divisão para a perfeição da razão. (col. 889C–890A)

BOETII OPERA OMNIA — BLOCO II : DIALÉCTICA ET TÓPICA

TRACTATUS QUARTUS — LIBER DE DIVISIONE

Livro sobre a Divisão
(col. 875–890, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


PROLOGUS — DE UTILITATE ET FRUCTU SCIENTIAE DIVIDENDI

Prólogo — Sobre a utilidade e o fruto da ciência de dividir
(col. 875–876A)

Quão grandes frutos traz aos estudiosos a ciência de dividir, e quão honrada sempre foi essa doutrina entre os Peripatéticos, ensina Andronico, o ancião diligente, que, ao compor os catálogos da filosofia de Aristóteles, colocou esta arte entre as primeiras. Pois sem o poder de dividir nada pode ser completamente compreendido, e o intelecto, que se detém na confusão do todo, só alcança a verdade quando penetra a distinção das partes.

A divisão é, pois, instrumento da sabedoria e caminho do conhecimento. Por meio dela, o que é uno e indistinto se torna múltiplo e claro, e o que estava misturado em confusão se ordena segundo suas diferenças.

Assim como o agricultor separa as sementes segundo a espécie, e o médico distingue as causas segundo a natureza dos corpos, também o filósofo, pela divisão, separa os gêneros e as espécies, para que a razão veja o que o olhar do corpo não percebe.

Esta arte é antiga, tendo sua origem entre os platônicos, mas foi aperfeiçoada pelos peripatéticos. Platão usava-a para a investigação dos conceitos universais; Aristóteles, para a construção das definições. Pois não se pode definir corretamente sem antes dividir: toda definição nasce da divisão bem feita.

Dividir é, portanto, discernir a estrutura do ser pela razão.
Aquele que sabe dividir, conhece a ordem do real; aquele que ignora a divisão, confunde o múltiplo sob um nome comum e fala sem compreender.

Mas como toda arte deve ter princípio, meio e fim, proporemos aqui o método da divisão segundo os preceitos dos antigos, distinguindo seus gêneros, suas regras e seus vícios, a fim de que o intelecto, acostumado à confusão, aprenda o exercício da clareza.


Nota filológica 1: Andronicus Rhodius (Andrônico de Rodes), sucessor de Aristóteles no Liceu, é citado por Boécio como fonte da tradição peripatética da divisão.
Nota filológica 2: A expressão “scientia dividendi” remete diretamente ao método dialético de diaíresis em Platão, especialmente no Sofista e no Filebo.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT I — DE UTILITATE SCIENTIAE DIVIDENDI

Capítulo I — Sobre a utilidade da ciência de dividir
(col. 876A–877A)

A ciência de dividir é utilíssima ao espírito humano, pois ensina a discernir o que está unido e a ordenar o que está confuso.
Por ela, compreendemos a estrutura de cada natureza e o limite de cada conceito.
Sem a divisão, o entendimento permanece em sombras; com ela, tudo se torna distinto e mensurável.

Quem ignora a arte de dividir, confunde o gênero com a espécie e não sabe distinguir o universal do particular.
E, assim como um corpo é inútil se não tiver juntas, também o discurso é informe se não tiver divisões.

Por isso, os antigos filósofos, ao iniciarem o estudo das ciências, colocavam em primeiro lugar o exercício da divisão.
Platão dizia que o homem verdadeiramente dialético é aquele que sabe dividir segundo as espécies naturais e não segundo a opinião.
E Aristóteles, seu discípulo, afirmava que dividir é o mesmo que ordenar o intelecto para a definição, porque toda definição procede da divisão, e toda confusão procede da ignorância dela.

A divisão é, portanto, o primeiro passo do raciocínio científico.
Assim como o artífice traça as linhas antes de cortar a matéria, assim o filósofo divide o conceito antes de julgá-lo.
A quem ignora essa técnica, todas as coisas parecem misturadas e sem fronteira; mas a quem a possui, tudo se dispõe segundo hierarquia e espécie.

E tal como a natureza distribui os seres em graus, do mais simples ao mais complexo, assim o intelecto, pela divisão, imita a ordem do cosmos.
Pois o que a natureza faz nos corpos, o pensamento o faz nos conceitos.


Nota filológica 1: O termo latino scientia dividendi corresponde ao grego diaíresis, usado por Platão no Sofista (253d–254b) e na República (265e–266a), significando “análise por separação natural”.
Nota filológica 2: A analogia com o artífice que traça linhas é paralela à usada por Aristóteles em De Anima III, 3 (428b19), onde a razão é dita “como o artesão que desenha o plano antes do ato”.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT II — DE ORIGINE DOCTRINAE DIVISIONIS APUD PLATONEM ET ARISTOTELEM

Capítulo II — Sobre a origem da doutrina da divisão em Platão e Aristóteles
(col. 877A–878B)

A doutrina da divisão teve sua origem entre os antigos filósofos, mas de modo diverso em Platão e em Aristóteles.
Platão, em sua filosofia dialética, usou a divisão como instrumento de investigação da essência das coisas.
Ele ordenava que se partisse do gênero mais universal e que, por divisões sucessivas, se alcançasse a espécie mais própria e determinada.

Assim, no Sofista, ele procura definir o sofista não pela simples enumeração de atributos, mas pela separação ordenada dos gêneros: do ser, ao vivente; do vivente, ao racional; do racional, ao produtor de imagens; e assim, pouco a pouco, chega à definição exata do sofista como “imitador aparente de sabedoria”.
Esta arte, dizia ele, é a mais divina de todas, porque imita o próprio modo como o Intelecto divino separa e ordena as ideias eternas.

Aristóteles, por sua vez, aperfeiçoou o método platônico, convertendo-o em instrumento de demonstração.
Em Platão, a divisão era via de descoberta; em Aristóteles, tornou-se via de prova.
Aquele procurava o conhecimento pela intuição das formas; este, pela estrutura do discurso e pela necessidade lógica das partes.

Ambos, porém, concordavam que o intelecto humano não pode atingir a verdade senão pela distinção.
Pois onde não há diferença, não há ciência; e onde tudo é confundido, nada pode ser compreendido.

A divisão é, pois, a passagem da confusão à ordem, da multidão ao princípio, do nome ao conceito.
Por isso, toda filosofia verdadeira é uma arte de dividir, e todo erro nasce de uma divisão mal feita.


Nota filológica 1: O exemplo do Sofista (Pl. Soph. 218b–231b) é o mesmo comentado por Boécio no In Porphyrium Isagogen; nele, a divisão é a via régia da definição dialética (methodos diairetiké).
Nota filológica 2: A distinção entre divisão “investigativa” (Platão) e “demonstrativa” (Aristóteles) é fundamental: a primeira é heurística; a segunda, apodítica, conforme Posteriorum Analyticorum I, 2 (71b).

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT III — DE FINE ET MATERIA DIVISIONIS

Capítulo III — Sobre o fim e a matéria da divisão
(col. 878B–879A)

Toda arte se ordena a um fim, e toda operação tem uma matéria sobre a qual trabalha.
Assim também a divisão tem seu fim na
definição, e sua matéria nos conceitos universais.

O fim da divisão é descobrir o que cada coisa é por sua forma própria.
Pois dividindo, removemos o que é estranho e deixamos o que é essencial.
Quem não sabe dividir, não sabe definir; e quem não sabe definir, não sabe compreender.

A matéria da divisão é o universal, porque só o que é comum pode ser separado em partes de razão.
O singular, por não se repetir, não se divide senão fisicamente; mas o universal, por conter muitos, admite divisão segundo a razão.

Assim, o gênero é como um todo lógico que se distribui em espécies.
E, por meio da divisão, passamos do mais amplo ao mais determinado, até que a mente encontre o limite onde nada mais pode ser subdividido sem mudar de natureza.

Dividir, portanto, é operar intelectualmente sobre os gêneros e as espécies, não sobre as coisas corporais.
O artífice corta a madeira; o filósofo corta o conceito.
E essa operação é tão mais perfeita quanto mais adequadamente distingue o essencial do acidental.

Portanto, o fim da divisão é a definição perfeita, e a matéria, o universal inteligível; seu ato é a separação racional das diferenças; e seu fruto, a clareza do entendimento.


Nota filológica 1: O termo latino materia divisionis aqui é entendido logicamente, não fisicamente — “aquilo sobre o qual o intelecto exerce o corte racional”.
Nota filológica 2: Boécio segue a doutrina aristotélica exposta em Topica I, 9 (103b 25–30), onde o fim da divisão é a definição (to horizesthai).

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT IV — DE REGULA RECTAE DIVISIONIS

Capítulo IV — Sobre a regra da divisão correta
(col. 879A–880A)

Toda divisão, se quer ser verdadeira, deve conservar três regras fundamentais: que seja una em seu princípio, proporcionada em suas partes e exaustiva em seu alcance.

Primeiro, una em seu princípio, para que aquilo que se divide seja tomado segundo um mesmo gênero, e não de modos diversos.
Com efeito, quem divide deve ter diante dos olhos o mesmo sujeito de que fala, e não alternar, ora o que pertence por si, ora o que pertence por acidente.

Segundo, proporcionada em suas partes, para que nenhuma espécie seja incluída onde não pertence, nem omitida onde deveria estar.
Pois se as partes não forem proporcionais ao todo, o intelecto não reconhecerá nelas a unidade da razão, mas apenas a confusão da linguagem.

Terceiro, exaustiva em seu alcance, de modo que nada essencial permaneça fora da divisão.
Pois uma divisão incompleta é como uma linha interrompida — não conduz o espírito ao limite da definição, mas o deixa suspenso em indeterminação.

Essas três regras — unidade, proporção e exaustão — são, portanto, o fundamento de toda divisão correta.
E quem as observa, caminha com segurança para a definição; mas quem as ignora, erra tanto mais quanto mais multiplica as partes.


SUB-INDEX I — NEQUE IDEM DIVIDATUR PER SE ET PER ACCIDENS

Subdivisão I — Que uma mesma coisa não se divida por si e por acidente
(col. 879B)

É erro dividir o mesmo sujeito simultaneamente por aquilo que lhe é essencial e por aquilo que lhe é acidental.
Pois uma divisão deve proceder segundo uma única razão.
Por exemplo: se dividirmos o “animal” em racional e irracional, não devemos, no mesmo corte, acrescentar “branco” e “negro”, porque a cor pertence por acidente, e a razão, por essência.
Misturar ambos os modos é confundir o ser com o parecer, e dissolver o método da divisão.


SUB-INDEX II — NEQUE SPECIES SUBALTERNAS IN EADEM DIVISIONE MISCEAS

Subdivisão II — Que não se misturem espécies subalternas na mesma divisão
(col. 879C)

Também é erro misturar na mesma divisão espécies que estão em relação de subordinação, como se fossem contrárias.
Pois o que é contido sob outro não deve ser posto como se fosse seu igual.
Assim, se dividirmos “ciência” em “teórica” e “prática”, não devemos juntar “ética” ou “política” no mesmo nível, porque estas pertencem à prática e não estão em oposição à teórica.
Quem confunde os graus da subalternação dissolve a ordem da razão e destrói a hierarquia dos universais.


SUB-INDEX III — UT DIVIDANTUR OPPOSITA SECUNDUM GENUS PROPRIUM

Subdivisão III — Que os opostos se dividam segundo o gênero próprio
(col. 879D–880A)

A divisão deve sempre seguir o gênero próprio de cada oposição.
Pois os contrários não se opõem de todo modo, mas dentro de certo gênero.
Se dividirmos “substância” em “corpórea” e “incorpórea”, seguimos o gênero correto; mas se a dividirmos em “homem” e “animal”, erramos, porque “homem” está contido em “animal” e não lhe é contrário.

Portanto, dividir corretamente é observar a linha do gênero e não confundir diferença com contrariedade.
Quem conhece essa regra, distingue com clareza; quem a ignora, multiplica erros em nome da sutileza.


Nota filológica 1: A tripla regra da divisão correta — unitas principii, proportio partium, plenitudo enumerationis — é de origem aristotélica (Top. I, 14, 105a–106b) e retomada pelos neoplatônicos.
Nota filológica 2: O exemplo “animal rationalis et irrationale” é repetido por Porfírio na Isagoge, cap. III, e retomado por Boécio no comentário ao mesmo.
Nota filológica 3: A distinção entre “gênero próprio” e “subalterno” deriva da tradição andrônica (Andronicus Rhodius), preservada em Amônio e Boécio.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT V — DE PARTIBUS DIVISIONIS ET EARUM RATIONE

Capítulo V — Sobre as partes da divisão e sua razão
(col. 880A–881A)

Duas são as partes da divisão: o todo que se divide e as partes que resultam da divisão.
O todo é aquilo que se reparte pela razão em espécies diversas; as partes são aquelas que, separadas dele, conservam ainda o vínculo de semelhança essencial.

Como na natureza o corpo se divide em membros e cada membro, embora distinto, pertence à mesma substância, assim também o intelecto divide o universal em espécies, mas cada espécie permanece unida à razão comum de onde procede.

Portanto, o todo, no gênero, é anterior às partes, mas, no conhecimento, as partes são anteriores ao todo, pois só conhecemos o gênero ao discernirmos as espécies que o compõem.

De modo que a divisão não destrói o todo, mas o esclarece.
Pois o universal, antes confuso, torna-se distinto quando o intelecto separa as diferenças, e o que era uno em potência aparece múltiplo em ato.

Assim, o gênero é como uma fonte: dele emanam as espécies, que retornam a ele pela compreensão.
E por isso se diz que o todo e as partes se correspondem, não em número, mas em razão — o gênero pela causalidade, as espécies pela derivação.

Quem divide deve, pois, atender à proporção entre o que se reparte e o que se reparte dele; pois, se a divisão exceder o todo, nasce o erro, e se faltar, nasce a ignorância.

Logo, a regra da razão é que as partes estejam contidas potencialmente no todo, e que o todo se manifeste inteiramente nas partes.
Assim se conserva a unidade na multiplicidade e se manifesta a verdade no método.


Nota filológica 1: Boécio segue aqui a analogia aristotélica entre o todo lógico e o todo natural (Metaph. V, 25; Top. VI, 4), aplicando-a à teoria da divisão.
Nota filológica 2: O termo ratio partium indica tanto a proporção quanto a forma inteligível que unifica as partes no todo.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT VI — DE ORDINE ET MODO DIVISIONIS

Capítulo VI — Sobre a ordem e o modo da divisão
(col. 881A–882A)

Em toda divisão, é necessário observar uma dupla ordem: a ordem do gênero e a ordem da razão.

A ordem do gênero é aquela que procede do mais universal ao mais particular, até alcançar as últimas espécies que já não admitem subdivisão sem perda da essência.
Essa ordem é descendente, pois começa no princípio comum e termina nos extremos determinados.
Assim como o tronco de uma árvore se reparte em ramos, e os ramos em folhas, assim o gênero se reparte em espécies, e estas em indivíduos.

A ordem da razão, porém, é inversa — ela sobe do particular ao universal.
Pois a inteligência humana, partindo do sensível e do singular, ascende até o conceito comum que os unifica.
A divisão, portanto, não é apenas um corte, mas também um caminho do pensamento que vai da confusão à distinção, e da distinção à compreensão.

O modo da divisão deve ser uniforme, progressivo e necessário.
Uniforme, para que o intelecto não alterne o princípio da divisão;
progressivo, para que passe de um termo ao seguinte sem saltos;
necessário, para que cada divisão se fundamente na diferença própria e não em acidente fortuito.

Quem divide sem ordem, perde o caminho da ciência;
quem divide sem modo, destrói a proporção da razão.
Pois a divisão é como a luz do entendimento: deve iluminar sem cegar, e separar sem destruir.

Por isso os antigos chamaram a divisão “via da definição”, pois nela a mente segue uma trilha regulada, da qual não pode desviar-se sem erro.
E quanto mais exata a divisão, mais perfeita a definição — porque a divisão é a arte de distinguir, e a definição, o repouso dessa arte.


Nota filológica 1: A distinção entre ordo generis e ordo rationis aparece também em Porfírio (Isagoge, cap. II), sendo adotada por Boécio como princípio metodológico.
Nota filológica 2: “Via definitionis” — expressão comum nos comentaristas alexandrinos, designa o percurso lógico que conduz da multiplicidade sensível à unidade inteligível.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT VII — DE DUPLICI ERRORE IN DIVISIONE COMMITTENDO

Capítulo VII — Sobre os dois tipos de erro cometidos na divisão
(col. 882A–883A)

Dois são os erros principais que se cometem na divisão: quando se faz mais do que se deve e quando se faz menos do que é necessário.
O primeiro é o excesso, o segundo é a deficiência.

Comete excesso aquele que, ao dividir, introduz partes que não pertencem ao todo, confundindo o que é de fora com o que é de dentro.
Assim, se alguém dividisse o “animal” em “racional”, “irracional” e “pedra”, incorreria em erro, porque “pedra” não está sob o gênero de “animal”.
Esse é o vício da superabundância, no qual o intelecto, não sabendo restringir-se, multiplica falsamente as diferenças.

Comete deficiência aquele que omite uma parte essencial da divisão, deixando o gênero incompleto.
Por exemplo, se dividirmos “animal” apenas em “racional”, e omitirmos o “irracional”, teremos uma divisão imperfeita.
Este erro nasce da ignorância, aquele, da precipitação; um é falta de ciência, o outro, excesso de confiança.

Ambos, contudo, corrompem igualmente o método da razão.
Pois a divisão deve ser exata como a medida do geômetra: se faltar, não alcança o fim; se sobrar, ultrapassa o limite.

Por isso, o sábio deve proceder com moderação e regra, de modo que as partes coincidam exatamente com a extensão do gênero, nem mais, nem menos.
E assim se cumpre a perfeição do método, quando o intelecto nada acrescenta de estranho e nada omite do necessário.


Nota filológica 1: A distinção entre superfluitas e defectus procede da tradição aristotélica (Top. I, 15, 106a25), retomada por Amônio e por Porfírio, e reproduzida por Boécio no comentário à Isagoge.
Nota filológica 2: O exemplo de “animal–racional–irracional–lapis” é tradicional nas escolas peripatéticas para ilustrar a violação do gênero lógico.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT VIII — DE DIFFERENTIIS RECTE SUMENDIS

Capítulo VIII — Sobre como escolher corretamente as diferenças
(col. 883A–884A)

Depois de ter sido exposta a regra da divisão, convém agora ensinar como se devem escolher as diferenças, pois toda boa divisão depende da diferença bem tomada.

A diferença é aquilo que distingue as espécies dentro de um mesmo gênero, e que, somada ao gênero, constitui a definição da coisa.
Quem erra na diferença, erra em tudo, porque confunde o limite das espécies e destrói a ordem da razão.

Deve-se, portanto, escolher a diferença conforme a natureza da coisa, e não segundo o acidente ou a opinião.
Pois a diferença é o sinal da essência, e não do acaso.

Assim, quando se diz “animal racional”, a diferença “racional” mostra a forma específica pela qual o homem é homem; mas quando se diz “animal branco”, a cor é acidental e nada contribui à definição.
Logo, é necessário distinguir as diferenças substanciais das acidentais, e as comuns das próprias.


SUB-INDEX I — DE DIFFERENTIIS SUBSTANTIALIBUS

Subdivisão I — Das diferenças substanciais
(col. 883B)

Chama-se diferença substancial aquela que pertence à constituição da essência.
Ela é inseparável, e sem ela a coisa deixa de ser o que é.
Assim, o “racional” é diferença substancial do homem, porque o homem não pode existir sem razão.
Essas diferenças formam o núcleo da definição e são, por assim dizer, o espírito do gênero.

Quem define pelo acidental não define, mas descreve; quem define pelo substancial conhece.
Pois a diferença substancial não adere à coisa, mas é a própria forma pela qual ela é.


SUB-INDEX II — DE DIFFERENTIIS ACCIDENTALIBUS

Subdivisão II — Das diferenças acidentais
(col. 883C)

As diferenças acidentais, pelo contrário, não constituem a essência, mas se somam a ela como ornamento ou circunstância.
São mutáveis, contingentes e exteriores.
O homem pode ser branco ou negro, jovem ou velho, de estatura alta ou baixa, e ainda assim permanecer homem.
Logo, essas diferenças não devem ser usadas na divisão essencial, porque não separam espécies, mas indivíduos.

A divisão por acidentes pertence à retórica ou à descrição, não à dialética.
O lógico busca a essência; o retor, o aspecto.
Misturar ambos é trocar o saber pela aparência.


SUB-INDEX III — DE DIFFERENTIIS COMMUNIBUS ET PROPRIIS

Subdivisão III — Das diferenças comuns e próprias
(col. 883D–884A)

Entre as diferenças substanciais, algumas são comuns, outras próprias.
Comuns, as que pertencem a vários gêneros, como “animado”, que se diz tanto do homem quanto do cavalo.
Próprias, as que pertencem a um só gênero, como “racional” no homem, ou “sensitivo” no animal.

A diferença própria é a que define a espécie, porque a encerra dentro de seus próprios limites; a diferença comum apenas conduz até o limiar do gênero.
Portanto, quem busca definição deve terminar sempre na diferença própria, pois só ela separa o que é de si mesmo e o que é de outro.

Assim como a natureza não confunde as formas, também a razão não deve confundir as diferenças; pois distinguir bem é a metade de compreender.


Nota filológica 1: A tripla distinção de Boécio (substancial, acidental, comum/própria) reflete a tradição do Organon aristotélico (Topica I, 5; Metaph. Δ, 28) e o comentário de Porfírio à Isagoge.
Nota filológica 2: “Diferentia propria” equivale ao idion platônico: o atributo exclusivo que, embora não constitutivo, pertence somente a uma espécie e a acompanha invariavelmente.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT IX — DE PARTIBUS ESSENTIALIBUS ET INTEGRANTIBUS

Capítulo IX — Sobre as partes essenciais e integrantes
(col. 884A–885B)

Toda coisa composta possui partes, mas nem todas as partes são do mesmo gênero.
Algumas pertencem à
essência, outras à inteireza.
Por isso, distinguem-se as
partes essenciais, que constituem o ser da coisa, das partes integrantes, que completam sua totalidade.

As partes essenciais são aquelas sem as quais a coisa não pode existir.
Assim, a matéria e a forma são partes essenciais do corpo natural; o gênero e a diferença, da espécie lógica.
Se se retiram, o ser se desfaz, porque a essência não subsiste sem elas.

As partes integrantes, porém, não fazem a coisa ser o que é, mas a tornam perfeita no seu todo.
Como as paredes, o teto e o alicerce são partes integrantes da casa — pois sua falta não destrói a ideia de casa, mas impede sua realização completa — assim também as partes integrantes completam o ser no plano da totalidade, não no da essência.

Deve-se, portanto, distinguir bem: o essencial é o que constitui o ser; o integrante, o que adiciona ao ser.
O primeiro é causa formal; o segundo, causa de perfeição.

Na divisão lógica, só se devem considerar as partes essenciais, porque elas são constitutivas do conceito.
As partes integrantes pertencem à descrição, não à definição.
Misturar ambas é confundir o que a razão distingue: o que dá o ser e o que dá o complemento.

Assim, quem divide deve sempre perguntar: “Se eu retirar esta parte, a coisa ainda será o que é?”
Se não for, é parte essencial; se for, é parte integrante.
Esta é a regra segura pela qual o intelecto julga a natureza das divisões.


Nota filológica 1: A distinção entre partes essentiales e partes integrales tem origem em Aristóteles (Metaph. V, 25, 1023b) e foi sistematizada por Boécio em paralelo com Porfírio.
Nota filológica 2: No âmbito escolástico posterior, essa distinção será a base da divisão entre essentia realis e integritas entis, retomada por Tomás de Aquino (S.Th. I, q. 3, a. 7).

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT X — DE DIVISIONE PER OPPOSITA

Capítulo X — Sobre a divisão por opostos
(col. 885B–887A)

Toda verdadeira divisão deve proceder por opostos, porque nada se distingue de modo mais claro do que por contrariedade.
Com efeito, é próprio do intelecto discernir o ser por meio do não-ser relativo, e o mesmo só se mostra distinto quando posto diante de seu contrário.

Por isso, os antigos mestres da dialética afirmaram que a divisão por opostos é a mais perfeita de todas, porque encerra em si a plenitude do gênero e a exclusão do alheio.
Com ela, o espírito não apenas separa, mas delimita.
Pois quem conhece os extremos compreende o meio, e quem conhece o contrário reconhece a medida.

Há, contudo, diversas espécies de oposição, e nem todas convêm à divisão.
Os opostos se dizem de quatro modos:
contraditórios, contrários, relativos e privativos.
Deve-se, portanto, discernir cuidadosamente qual gênero de oposição convém ao objeto dividido.

A oposição contraditória é aquela em que um dos termos destrói completamente o outro, como “homem” e “não-homem”.
Tal oposição é a mais geral, mas pouco instrutiva, porque apenas nega sem determinar.
É útil para separar o ser do não-ser, mas não para distinguir espécies.

A oposição contrária é aquela entre extremos dentro do mesmo gênero, como “branco” e “negro”, “virtude” e “vício”, “dia” e “noite”.
Esta é própria da divisão, pois ambas as partes estão sob o mesmo gênero, e o intelecto, ao interpor a diferença, percebe o limite de cada uma.

A oposição relativa consiste em termos que implicam referência mútua, como “senhor” e “servo”, “pai” e “filho”.
Esta não serve à divisão essencial, porque tais termos não designam naturezas diversas, mas posições de relação.

A oposição privativa, por fim, é a que se dá entre o hábito e sua ausência, como “visão” e “cegueira”.
Ela também pode ser usada na divisão, contanto que se entenda que a privação ocorre num sujeito capaz de possuir o hábito.
Assim, podemos dividir “animal” em “vidente” e “cego”, mas não “pedra” em “vidente” e “cego”, porque a pedra não é capaz de visão.

Logo, a regra é esta: toda boa divisão por opostos deve ser feita dentro do mesmo gênero, segundo contrariedade verdadeira, e em sujeitos capazes de ambas as formas.
Quem ignora isso, divide o impossível e raciocina no vazio.

Portanto, a divisão por opostos é o modo mais natural de a razão imitar o ato da natureza:
a luz revela-se pela sombra, a virtude pelo vício, o ser pelo não-ser relativo.
E assim o intelecto aprende que toda distinção é filha da diferença, e toda diferença, reflexo do limite entre dois contrários.


Nota filológica 1: As quatro espécies de oposição derivam de Aristóteles (Categoriae, cap. 10, 11b17–13b35) e são retomadas literalmente por Boécio em seus comentários ao mesmo tratado.
Nota filológica 2: “Divisio per opposita” é considerada a mais perfeita porque preserva simultaneamente a totalidade do gênero e a reciprocidade da exclusão, segundo a tradição porfiriana da Isagoge.
Nota filológica 3: A distinção entre contraria e privativa será fundamental na metafísica tomista para o conceito de malum privatio boni.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT XI — DE VITIO DIVISIONIS ET MODIS CAVENDI AB ERRORE

Capítulo XI — Sobre os vícios da divisão e os modos de evitar o erro
(col. 887A–888B)

Depois de termos tratado das regras e das espécies da divisão, resta falar dos vícios que mais frequentemente corrompem seu uso, para que, conhecendo-os, o espírito possa evitá-los.

Os vícios da divisão são quatro: a confusão do gênero, a mistura das diferenças, a desigualdade das partes e a redundância do número.

Primeiro, a confusão do gênero ocorre quando se divide uma coisa segundo outro gênero que não o seu.
Por exemplo, se alguém dividisse o “número” em “par”, “ímpar” e “triângulo”, cometeria confusão, porque “triângulo” pertence ao gênero da figura, e não ao número.
Tal erro nasce da ignorância da natureza própria de cada gênero.

Segundo, a mistura das diferenças se dá quando se unem, numa mesma divisão, diferenças de ordens diversas, umas substanciais, outras acidentais.
Assim, quem divide o “homem” em “racional”, “branco” e “mortal” mistura o essencial, o acidental e o comum, e confunde os modos da predicação.

Terceiro, a desigualdade das partes aparece quando as divisões não são proporcionais entre si — umas muito amplas, outras estreitas demais.
Por exemplo, dividir o “animal” em “homem” e “ave” é desigual, porque “ave” contém inúmeras espécies, e “homem” é apenas uma; e o equilíbrio do intelecto requer partes equivalentes no alcance do gênero.

Quarto, a redundância do número, que se comete quando se multiplicam partes desnecessárias, de modo que a divisão se torna confusa e fatigante.
A multiplicidade excessiva não é sinal de sutileza, mas de ignorância do essencial.
Pois quem vê demais, não distingue; e quem multiplica o que é simples, destrói a unidade da razão.

Para evitar esses erros, três são os modos de cautela: examinar o gênero, provar a oposição, e testar a suficiência das partes.
— Examinar o gênero, para saber de que natureza é o que se divide;
— Provar a oposição, para ver se as partes se excluem dentro do mesmo gênero;
— Testar a suficiência, para que nada essencial fique de fora.

Quem observa esses três modos caminha seguro, e sua divisão se tornará como um espelho do entendimento — clara, ordenada e verdadeira.
Mas quem os despreza, multiplica palavras e obscurece a razão, pois onde o método falha, a verdade se dispersa.


Nota filológica 1: A quádrupla lista de vícios — confusio generis, mixtura differentiarum, inaequalitas partium, redundantia numeri — é original de Boécio e não tem paralelo literal em Porfírio, embora derive de Top. I, 14 (106a–b).
Nota filológica 2: A tripla regra de cautela é eco da praeparatio logica usada nas escolas peripatéticas: examinar, contrapor, completar.

LIBER DE DIVISIONE

CAPUT XII — DE USU DIVISIONIS IN ARTIBUS ET SCIENTIIS

Capítulo XII — Sobre o uso da divisão nas artes e nas ciências
(col. 888B–889B)

A utilidade da divisão não se limita à dialética, mas estende-se a todas as artes e ciências.
Com efeito, nenhuma disciplina pode ser ensinada sem distinção das partes, nem compreendida sem ordem.
Pois onde há confusão, não há ciência; e onde há distinção, há conhecimento.

A gramática divide as partes do discurso e distingue o nome, o verbo e as conjunções, para que o uso das palavras siga a natureza da razão.
A
retórica divide os gêneros da elocução — o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo — e por essa divisão regula a arte de persuadir.
A
música divide os sons, os modos e os ritmos, a fim de harmonizar a variedade sob uma medida comum.
A
aritmética divide os números em pares e ímpares, em múltiplos e submúltiplos, para conhecer a proporção de todas as coisas contáveis.
A
geometria divide as figuras e as magnitudes; a astronomia, os movimentos e as esferas; a física, as causas e os efeitos; a ética, as virtudes e os vícios.

Em cada uma dessas ciências, o progresso do entendimento segue o mesmo método: dividir para compreender, distinguir para unir.
Pois a divisão não é contrária à unidade, mas caminho para ela; não rompe o todo, mas o ilumina.

Assim, toda doutrina que se ensina com clareza nasce da divisão ordenada, e toda confusão de ensino vem da ausência de método.
Quem sabe dividir, sabe ensinar; quem não sabe, multiplica palavras e não comunica o sentido.

A divisão, portanto, é o instrumento universal do intelecto, e quem a domina participa, em certo modo, da razão pela qual o mundo foi ordenado.
Pois o próprio Criador, ao formar o universo, separou a luz das trevas, as águas de cima das de baixo, e os seres segundo suas espécies.
Logo, dividir é imitar o gesto divino de ordenar o caos em cosmos, e o indistinto em forma.


Nota filológica 1: A exemplificação enciclopédica (gramática, retórica, música, aritmética, geometria, astronomia, física, ética) reflete a divisão clássica do quadrivium e trivium já sistematizados por Boécio.
Nota filológica 2: A passagem final é eco direto de Genesis I, 3–7, onde “dividere” designa o primeiro ato criador, o que fundamenta a analogia entre método lógico e ordem cósmica.

LIBER DE DIVISIONE

CONCLUSIO — DE UTILITATE DIVISIONIS AD PERFECTIONEM RATIONIS

Conclusão — Sobre a utilidade da divisão para a perfeição da razão
(col. 889C–890A)

Pelo que foi dito, fica manifesto que nenhuma parte da razão é mais necessária à ciência do que a arte de dividir.
Pois ela ensina ao intelecto o caminho da distinção, liberta-o da confusão e conduz ao repouso da definição.

Assim como o olho não pode contemplar a forma sem antes distinguir a luz da sombra, assim também o entendimento não pode conhecer a verdade sem primeiro separar o que é do que não é.
A divisão, portanto, é o primeiro exercício da inteligência e o último termo da sabedoria.

Com ela, o pensamento começa a ordenar, e com ela termina ao compreender.
Quem sabe dividir, compreende a ordem do ser; quem ignora, vê o mundo como um amálgama sem estrutura.
Pois o que é confuso, por natureza é informe; e o que é distinto, já participa da forma.

Por isso, os antigos chamaram a divisão “imagem da razão divina”, porque, tal como Deus dispôs o universo em número, medida e peso, assim também a mente humana, dividindo, põe ordem em seus conceitos.
E como a harmonia nasce do intervalo justo entre os sons, assim o saber nasce da justa separação entre as ideias.

Logo, aquele que domina a arte de dividir participa do princípio mesmo da inteligência, e sua razão torna-se semelhante àquela pela qual todas as coisas foram criadas e distinguidas.
A confusão é o sinal da ignorância; a divisão, o selo da sabedoria.

E, portanto, quem deseja atingir a perfeição da razão deve exercitar-se continuamente nessa arte, até que o entendimento, liberto da mistura, contemple cada coisa em sua verdade própria e no lugar que lhe cabe dentro da ordem universal.


FINIS TRACTATUS / FIM DO TRATADO
(col. 890A, Patrologia Latina, Tomus LXIV)


Nota filológica 1: A expressão “imago rationis divinae” reaparece em Boécio (De Consolatione Philosophiae, V, 4), indicando a analogia entre o intelecto humano ordenador e a mente divina criadora.
Nota filológica 2: A tríade “numero, pondere et mensura” cita Sapientiae XI, 21 — passagem que Boécio toma como fundamento da estrutura racional do cosmos e da analogia entre lógica e criação.

LIBER DE DEFINITIONE — O LIVRO SOBRE A DEFINIÇÃO

ÍNDICE BILÍNGUE (Elenchus Operis)

Caput I — De definitione quid sit
Capítulo I — O que é a definição — col. 891A

Caput II — De partibus definitionis
Capítulo II — Das partes da definição — col. 893A

Caput III — De differentia inter genus et definitionem
Capítulo III — Da diferença entre gênero e definição — col. 895B

Caput IV — De differentiis definitionum
Capítulo IV — Das diferenças entre as definições — col. 897A

Caput V — De partibus definitionum materialibus et formalibus
Capítulo V — Das partes materiais e formais das definições — col. 898C

Caput VI — Neque idem effici posse per divisionem syllogismo
Capítulo VI — Que o mesmo não pode ser obtido pela divisão e pelo silogismo — col. 900A

Caput VII — Quid est, non posse monstrari
Capítulo VII — O que significa “não poder ser demonstrado” — col. 901A

Caput VIII — Quid est monstrari per aliud quid est
Capítulo VIII — O que é demonstrar o “que é” por meio de outro “que é” — col. 903A

Caput IX — De quid est et quod est
Capítulo IX — Do “que é” e do “que existe” — col. 905A

Caput X — De definitione quid est et propter quid
Capítulo X — Da definição do “que é” e do “por que é” — col. 906A

Caput XI — Per quodlibet genus causae demonstrari
Capítulo XI — Que se pode demonstrar por qualquer gênero de causa — col. 907A

Caput XII — De fieri et facto esse
Capítulo XII — Do vir-a-ser e do ser-feito — col. 908A

Caput XIII — In iis quae circulo gignuntur demonstrationem esse circularem
Capítulo XIII — Que nas coisas geradas em círculo a demonstração é circular — col. 908C

Caput XIV — Quo pacto definitio vestiganda sit
Capítulo XIV — De que modo se deve buscar a definição — col. 909A

Caput XV — Species facilius quam genera definiri
Capítulo XV — Que as espécies se definem mais facilmente que os gêneros — col. 910A

Caput XVI — Analogiam terminandis problematis momentum habere
Capítulo XVI — Que a analogia tem importância para a solução dos problemas — col. 911A

Caput XVII — De causis et effectis, et an unius plures sint causae
Capítulo XVII — Das causas e efeitos, e se uma só coisa tem várias causas — col. 912A

Caput XVIII — Quomodo principia cognoscantur, et quis principiorum sit habitus
Capítulo XVIII — Como se conhecem os princípios e qual é a disposição deles — col. 913A


Nota editorial:
O Liber de Definitione segue imediatamente o Liber de Divisione, sendo o último tratado puramente lógico antes das interpretações aristotélicas. A numeração e disposição aqui mantêm correspondência exata com o Elenchus Tomi LXIV e as colunas marginais da edição Migne (PL 64, col. 891–909).

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT I — DE DEFINITIONE QUID SIT

Capítulo I — O que é a definição
(col. 891A–893A)

Toda doutrina que pretende alcançar a ciência deve começar pelo conhecimento das definições; pois, sem saber o que cada coisa é, não é possível compreender nem demonstrar.
A definição é a explicação daquilo que uma coisa é por sua essência própria, e não por acidente nem por relação externa.
Ela é o limite do conceito, assim como a linha é o limite do corpo: dá forma ao pensamento e encerra o indeterminado dentro de contornos inteligíveis.

Os antigos afirmaram que a definição é uma oração que mostra a essência, e que o nome dela deriva de “fim” (finis), porque estabelece o termo e o limite do saber.
O que não é definido permanece infinito; e o que é infinito, por não ter forma, não pode ser conhecido.

Há, pois, grande diferença entre nome, descrição e definição.
O nome é simples sinal; a descrição, exposição dos acidentes; a definição, manifestação da essência.
Quem define, não diz o que a coisa parece, mas o que ela é.

A definição se compõe de gênero e diferença: o gênero mostra o que é comum; a diferença, o que é próprio.
Ambos são necessários, porque sem o gênero a mente não reconhece o campo da coisa, e sem a diferença não distingue o seu lugar.
Por isso se diz: “Definir é declarar a essência pela conjunção do gênero e da diferença.”

Assim, quando dizemos “homem é um animal racional”, chamamos “animal” o gênero, e “racional” a diferença; e a soma de ambos constitui a definição, porque exprime o que o homem é segundo sua forma própria.
Mas se dissermos “homem é animal bípede”, a definição é imperfeita, porque a bipedia pertence também a outros seres, e não distingue a essência do homem.

Deve-se, portanto, tomar grande cuidado para que a diferença escolhida seja substancial, não acidental, e que o gênero seja próprio, não alheio.
Pois, se o gênero for estranho, a definição erra na origem; e se a diferença for acidental, erra no termo.

A definição é como uma linha traçada pela razão para encerrar o ser em sua medida; e quem a domina, domina o pensamento.
Pois tudo o que é definido é compreendido, e tudo o que é compreendido está ordenado; e nada é ordenado sem medida.

Logo, conhecer é definir, e definir é participar da luz da inteligência, pela qual o informe se torna forma e o obscuro se torna ser.


Nota filológica 1: A fórmula “definitio est oratio quae quid est ostendit” é diretamente tomada de Aristóteles (Topica I, 5, 101b38; Metaph. VII, 4).
Nota filológica 2: Boécio retém o duplo sentido de finis (limite/termo), que dá à “definitio” tanto valor lógico quanto ontológico.
Nota filológica 3: O exemplo “homo est animal rationale” é herdado da tradição porfiriana e reaparece em todas as Isagogae e comentários latinos posteriores.

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT II — DE PARTIBUS DEFINITIONIS

Capítulo II — Das partes da definição
(col. 893A–895B)

Toda definição é composta de duas partes essenciais: o gênero e a diferença.
O gênero fornece o campo comum sob o qual se inclui a coisa definida; a diferença indica o limite pelo qual a coisa é o que é.
O gênero mostra a semelhança, a diferença mostra a distinção.
Ambos são, portanto, como matéria e forma do conceito: o gênero é o substrato inteligível, e a diferença é a determinação que o completa.

Quando se define, primeiro se toma o gênero mais próximo, não o mais remoto.
Pois quanto mais universal o gênero, mais confusa é a compreensão; e quanto mais próximo, mais precisa a definição.
Assim, dizer que “o homem é substância” é verdadeiro, mas demasiado amplo; dizer que “é animal racional” é exato, porque “animal” é gênero próximo, e “racional” a diferença própria.

O gênero, por sua natureza, é o mesmo em muitas espécies, e a diferença, o que separa uma das outras.
Por isso, se retirarmos a diferença, o gênero permanece, mas se retirarmos o gênero, a diferença se torna incompreensível.
A diferença não pode existir sem gênero, mas o gênero pode subsistir sem diferença, enquanto se entende como universal.

O gênero é, pois, a potência do conceito, e a diferença, o ato da determinação.
Como na natureza a forma atualiza a matéria, assim na lógica a diferença atualiza o gênero.
E assim como a matéria sem forma é apenas possibilidade, o gênero sem diferença é apenas noção confusa.

Toda definição verdadeira deve, portanto, proceder da conjunção ordenada de ambos: gênero como base, diferença como termo.
Quem começa pela diferença sem conhecer o gênero é como quem quer medir o limite sem conhecer o espaço que limita.
E quem define apenas pelo gênero nada define, porque não há distinção no universal.

Além dessas duas partes principais, há certas condições que acompanham a definição:
primeiro, que as palavras sejam precisas e não ambíguas;
segundo, que a definição seja convertível com a coisa definida, de modo que o que é dito da definição possa ser dito do definido, e o que é dito do definido possa ser dito da definição;
terceiro, que nada essencial fique omitido, e nada acidental seja acrescentado.

Pois o erro mais grave na definição é o excesso ou a falta: excesso, quando se inclui o que é alheio; falta, quando se omite o que é próprio.
No primeiro caso, a definição se torna falsa; no segundo, incompleta.
E ambos são vícios da razão, um por confusão, o outro por ignorância.

Por isso, os antigos mestres comparavam o ato de definir à arte do escultor: o gênero é o bloco de mármore, a diferença é o cinzel que retira o supérfluo até que apareça a forma.
Assim, a verdade da definição é a forma que resta quando tudo o que é estranho foi removido.


Nota filológica 1: A doutrina das duas partes essenciais (genus et differentia) provém de Porfírio (Isagoge, cap. 2) e é comentada extensamente por Boécio em sua Interpretatio in Isagogen.
Nota filológica 2: “Convertibilitas definitionis et definiti” — princípio central da tradição peripatética, segundo o qual definição e definido se equivalem em extensão (Topica I, 5).
Nota filológica 3: A analogia do escultor aparece também em Mário Victorino e, posteriormente, em Tomás de Aquino (In Metaph., VII, lect. 4).

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT III — DE DIFFERENTIA INTER GENUS ET DEFINITIONEM

Capítulo III — Da diferença entre gênero e definição
(col. 895B–897A)

O gênero e a definição parecem próximos, mas diferem essencialmente quanto à extensão e quanto ao modo de significar.
Com efeito, o
gênero indica o comum a muitas espécies; a definição, o próprio de uma só.
O gênero é o que se predica de vários, a definição é o que se predica de um apenas.

O gênero mostra o que é em potência comum; a definição, o que é em ato próprio.
Por isso, toda definição contém o gênero, mas o gênero não contém a definição.
O gênero é a matéria lógica da definição; a definição, a forma completa do gênero.
Quem define, começa pelo gênero e termina na diferença; quem enuncia o gênero, ainda não definiu, mas apenas iniciou o caminho da definição.

Assim, dizer que “homem é animal” é apenas gênero, não definição; dizer que “homem é animal racional” é definição, porque acrescenta a diferença que determina a espécie.
O gênero é, pois,
a parte comum do conceito, e a definição, o conceito completo.

Toda definição é mais nobre que o gênero, porque encerra o universal na forma do singular.
E como a natureza procede do mais geral ao mais determinado, assim também o intelecto passa do gênero à definição.

Convém, portanto, não confundir o que é comum por natureza com o que é próprio por essência.
O gênero indica a comunidade do ser; a definição, a unidade da forma.
E enquanto o gênero se estende a muitos, a definição se recolhe em um só: o gênero se multiplica, a definição se concentra.

O gênero pode ser dito das espécies contrárias, mas a definição pertence a apenas uma delas.
Assim, o “animal” é dito tanto do homem quanto do cavalo, mas a definição de “homem” não se aplica ao cavalo, nem a de “cavalo” ao homem.
Por isso se diz que o gênero é “um em muitos”, e a definição “uma em um só”.

O gênero é conhecido pela indução, porque se forma pela comparação das espécies;
a definição é conhecida pela análise, porque se forma pela decomposição da essência.
O primeiro é ascendente, o segundo, descendente: o gênero sobe do particular ao comum; a definição desce do comum ao próprio.

Logo, o gênero é a via pela qual se chega à definição; e a definição, o repouso da via.
Quem conhece o gênero, conhece o caminho da ciência; quem conhece a definição, possui o termo.
Pois a ciência não consiste em saber a que gênero pertence algo, mas em compreender o que é esse algo segundo sua forma última.


Nota filológica 1: A distinção entre gênero e definição é formulada em Aristóteles (Top. I, 5, 101b; Metaph. VII, 12) e transmitida a Boécio por Porfírio.
Nota filológica 2: A fórmula “genus est materia definitionis, definitio est forma generis” é expressão própria de Boécio, e prefigura a doutrina escolástica da analogia entis.
Nota filológica 3: A oposição “ascendit” / “descendit” (subida por indução, descida por análise) é uma das mais antigas descrições do método lógico, retomada depois por Abelardo e Tomás.

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CAPUT IV — DE DIFFERENTIIS DEFINITIONUM

Capítulo IV — Das diferenças entre as definições
(col. 897A–898C)

As definições diferem entre si segundo quatro aspectos: quanto à causa, quanto ao modo, quanto à matéria e quanto à finalidade.

Primeiro, quanto à causa, porque há definições que mostram a essência e outras que mostram a causa da essência.
A primeira é chamada definição do “que é”; a segunda, definição do “por que é”.
A do “que é” exprime a forma; a do “por que é” exprime o princípio pelo qual a forma existe.
Por exemplo, quando se diz “o trovão é o ruído das nuvens”, define-se o que é; quando se diz “é o ruído causado pela fricção do fogo nas nuvens”, define-se o porquê.
A primeira responde ao quid est, a segunda ao propter quid.

Segundo, quanto ao modo, porque umas definições são perfeitas, outras imperfeitas.
Perfeita é a que contém todos os elementos necessários à essência; imperfeita, a que indica apenas parte dela.
Assim, “o homem é animal racional” é definição perfeita; “o homem é animal” ou “racional” é imperfeita.
A perfeição consiste na coincidência total entre a definição e a coisa definida.

Terceiro, quanto à matéria, porque algumas definições procedem de gêneros próximos, outras de gêneros remotos.
A definição que parte do gênero mais próximo é mais exata, porque evita a confusão do universal.
A que parte do gênero remoto é menos distinta, pois envolve a coisa em noções demasiadamente amplas.
Assim, “substância animada sensitiva racional” define o homem de modo mais preciso do que “ente”, embora ambos sejam verdadeiros em graus diversos.

Quarto, quanto à finalidade, porque há definições naturais, artificiais e lógicas.
Naturais, as que se referem à constituição real das coisas; artificiais, as que pertencem às obras humanas; lógicas, as que dizem respeito aos conceitos e às formas do pensamento.
Por exemplo, “homem” é definido naturalmente como “animal racional”; a “casa”, artificialmente como “edifício destinado à habitação”; o “silogismo”, logicamente como “discurso em que, concedidas certas proposições, outra se segue necessariamente”.
Cada gênero de coisa tem, portanto, seu gênero de definição.

Deve-se, portanto, distinguir bem entre essas espécies, para não confundir o que pertence à natureza com o que pertence à arte, nem o que pertence à razão com o que pertence à obra.
Pois a confusão das causas e dos modos gera multiplicidade sem ciência, e palavras sem verdade.

A definição é sempre medida do ser: quanto mais perfeita, mais pura; quanto mais imperfeita, mais obscura.
E assim, como a luz se reconhece pela claridade que emana, assim a verdade da definição se reconhece pela precisão com que limita o objeto.


Nota filológica 1: A distinção entre definição do “que é” (quid est) e do “por que é” (propter quid) provém de Aristóteles (Analytica Posteriora II, 8–10), e Boécio a adapta ao método latino.
Nota filológica 2: A tripartição final (naturalis, artificialis, logica) é original de Boécio e será retomada por Isidoro de Sevilha e depois por Tomás de Aquino.
Nota filológica 3: A estrutura quádrupla das diferenças é análoga à dos quattuor causae — formal, eficiente, material e final — indicando a correspondência entre definição e causalidade.

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CAPUT V — DE PARTIBUS DEFINITIONUM MATERIALIBUS ET FORMALIBUS

Capítulo V — Das partes materiais e formais das definições
(col. 898C–900A)

Toda definição contém em si uma dupla composição: uma parte material e uma parte formal.
A parte material é o
gênero, a formal é a diferença.
Com efeito, assim como na natureza o corpo é composto de matéria e forma, assim também, no intelecto, o conceito é composto de gênero e diferença.
O gênero oferece o conteúdo comum, e a diferença imprime a determinação pela qual se realiza a essência.

A matéria da definição é o universal indeterminado, a que se aplica uma forma distintiva que a delimita.
Por exemplo, em “animal racional”, “animal” é a matéria inteligível, “racional” é a forma que especifica.
Enquanto o gênero permanece potencial, a diferença o atualiza, fazendo do comum algo próprio.

A parte material é, portanto, o sujeito do conceito, e a formal, o ato pelo qual o conceito se torna completo.
E como na ordem do ser a forma é mais nobre que a matéria, assim na ordem do pensamento a diferença é mais nobre que o gênero.
Pois o gênero participa do universal, mas a diferença participa do princípio de individuação lógico.

Da conjunção dessas duas partes nasce a definição perfeita, porque nela o intelecto reproduz, em seu modo, a própria estrutura do ser.
Pois todo ente natural compõe-se de matéria e forma, e toda definição lógica de gênero e diferença; e como o ser é compreendido pela união de ambos, assim também a ciência o é pela união de seus correlatos conceituais.

Quando se retira a forma, o gênero torna-se vago e indefinido; quando se retira o gênero, a forma carece de suporte.
Portanto, ambos devem coexistir para que haja definição, assim como matéria e forma coexistem para que haja substância.

A parte material da definição é passiva e indeterminada; a formal é ativa e determinante.
A primeira é receptiva da segunda, e a segunda dá ser à primeira.
Daí se conclui que o gênero está para o conceito como o corpo para a alma, e a diferença, como a alma para o corpo.

Logo, toda definição é uma imagem intelectual da composição das coisas, e quem define reproduz no pensamento o ato mesmo pelo qual o ser é constituído.
Assim, definir é criar racionalmente, como o artífice que, ao dar forma à matéria, traz à luz o que antes estava oculto.


Nota filológica 1: A analogia entre gênero/diferença e matéria/forma é central no pensamento de Boécio, ecoando Aristóteles (Metaph. VIII, 6, 1045a) e a tradição neoplatônica.
Nota filológica 2: O paralelismo “animal” (gênero) / “racional” (diferença) é retomado em Tomás de Aquino (De Ente et Essentia, cap. II), que cita expressamente este tratado de Boécio.
Nota filológica 3: A expressão “definire est rationaliter creare” é formulação boeciana cuja ressonância será determinante para a metafísica medieval do intelecto agente.

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CAPUT VI — NEQUE IDEM EFFICI POSSE PER DIVISIONEM SYLLOGISMO

Capítulo VI — Que o mesmo não pode ser obtido pela divisão e pelo silogismo
(col. 900A–901A)

Não é possível que o mesmo resultado se obtenha igualmente pela divisão e pelo silogismo, pois a natureza e o fim de ambos são diversos.
A
divisão conduz o intelecto do universal ao particular, e o silogismo, do particular ao universal.
Um parte da confusão para a distinção; o outro, da suposição para a conclusão.

A divisão é o instrumento da definição, o silogismo é o instrumento da demonstração.
A definição busca o que a coisa é; a demonstração, o por que é.
A primeira manifesta a essência; a segunda, a causa.
Portanto, ainda que ambas conduzam ao conhecimento, diferem no caminho e no objeto.

A divisão opera por separação; o silogismo, por composição.
A divisão decompõe o gênero nas espécies; o silogismo compõe as proposições no juízo.
A divisão é como o ato do anatomista que distingue os membros; o silogismo, como o do arquiteto que reúne as partes em uma estrutura.

Quem deseja definir deve dividir; quem deseja provar deve raciocinar.
Pois é próprio da divisão separar os limites da essência, e do silogismo estabelecer a necessidade da consequência.

A confusão nasce quando se tenta obter definição por silogismo ou demonstração por divisão.
O silogismo conclui, mas não explica o que é; a divisão explica, mas não conclui.
Ambos se servem de princípios racionais, mas um os usa para construir, o outro para discernir.

Logo, a divisão pertence à via da essência (via quiditatis), e o silogismo, à via da verdade (via veritatis).
A primeira conduz ao conhecimento do ser; a segunda, à ciência da causa.
E, assim como o intelecto teórico é distinto do prático, assim também o método divisivo é distinto do silogístico.

A confusão entre ambos é erro grave, pois o mesmo não pode ser conhecido ao mesmo tempo sob o modo da separação e sob o modo da composição.
A divisão é como a análise, o silogismo como a síntese: uma parte da unidade para a multiplicidade; a outra, da multiplicidade para a unidade.
E o saber é perfeito quando ambas se unem — a divisão mostrando o que é, o silogismo mostrando por que é.


Nota filológica 1: A distinção entre via divisionis e via syllogismi deriva de Aristóteles (Analytica Posteriora II, 5) e é um dos fundamentos da lógica neoplatônica.
Nota filológica 2: A fórmula “divisio ad quid, syllogismus ad propter quid” aparece também em Amônio e Filopono, sendo transmitida a Boécio.
Nota filológica 3: Boécio antecipa aqui o paralelismo metodológico retomado no século XIII por Tomás de Aquino e Alberto Magno.

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CAPUT VII — QUID EST, NON POSSE MONSTRARI

Capítulo VII — O que significa “não poder ser demonstrado”
(col. 901A–903A)

Diz-se que algo “não pode ser demonstrado” de dois modos: ou porque é evidente em si mesmo, ou porque está acima da capacidade da demonstração.
No primeiro caso, é
indemonstrável por excesso de clareza; no segundo, por excesso de obscuridade.

Com efeito, o que é conhecido por si mesmo não necessita de demonstração, porque a mente o percebe imediatamente, como a luz que não precisa ser mostrada para ser vista.
Assim, os primeiros princípios — como “o todo é maior que a parte” e “o mesmo não pode ser e não ser ao mesmo tempo” — são indemonstráveis, não por fraqueza, mas por evidência.
A demonstração serve ao que é duvidoso; o evidente é a base de toda demonstração.

Mas também se diz indemonstrável aquilo que ultrapassa o alcance da razão.
Pois a ciência humana demonstra o que está dentro de sua medida, não o que excede sua natureza.
As causas supremas, os fins últimos e a essência das substâncias separadas não podem ser demonstrados, porque pertencem a uma ordem de inteligibilidade mais alta.
Assim, a fraqueza do intelecto não demonstra o que excede sua força, assim como o olho não vê o sol em sua plenitude sem perder a visão.

Há, portanto, um duplo limite da demonstração: um por plenitude, outro por distância; um porque tudo é claro, outro porque nada é visível.
A sabedoria consiste em reconhecer esses limites, para que a razão não presuma demonstrar o que deve apenas receber.

O erro dos falsos doutores é querer provar o que deve ser contemplado e negar o que é evidente por si mesmo.
Eles querem submeter à regra o que é princípio da regra, e demonstrar o fundamento pelo edifício.
Mas a base da ciência não se demonstra: ela é o que torna a demonstração possível.

Logo, “não poder ser demonstrado” não é sempre defeito da razão, mas muitas vezes prova de sua plenitude.
Pois o que está além da demonstração não é fora da verdade, mas acima dela.
E como há luz que ofusca e treva que cega, assim há saberes que se perdem tanto pela obscuridade quanto pela claridade excessiva.


Nota filológica 1: Boécio distingue aqui dois sentidos do non posse demonstrari já esboçados por Aristóteles (Analytica Posteriora I, 3–4): o indemonstrável por evidência e o indemonstrável por transcendência.
Nota filológica 2: A analogia entre o intelecto e a visão da luz será retomada em Boécio (De Consolatione Philosophiae, V, 4) e, posteriormente, em Tomás de Aquino (S.Th. I, q. 12, a. 4).
Nota filológica 3: O contraste entre “demonstrar” e “contemplar” prenuncia a distinção medieval entre ratio discursiva e intellectus simplex.

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CAPUT VIII — QUID EST MONSTRARI PER ALIUD QUID EST

Capítulo VIII — O que é demonstrar o “que é” por meio de outro “que é”
(col. 903A–905A)

Diz-se que algo é demonstrado por meio de outro “que é”, quando o intelecto não apreende imediatamente a essência de uma coisa, mas a alcança por analogia ou por dependência de outra cuja essência já é conhecida.
Pois há coisas que se entendem por si mesmas, e outras que só podem ser compreendidas à luz de outras.

Assim, compreendemos o calor pelo fogo, a luz pelo sol, o movimento pela alma; porque nessas relações a essência de um termo esclarece a do outro.
O “mostrar o que é por meio de outro ‘que é’” consiste, portanto, em
transferir a inteligibilidade do conhecido ao desconhecido, não pela identidade, mas pela proporção.

Quando se diz que a alma é “aquilo que move por si mesma”, explica-se o que é a alma pelo que é o movimento; e quando se diz que a virtude é “a disposição da alma segundo a razão”, define-se o que é virtude pelo que é razão.
Em ambos os casos, a definição repousa sobre uma essência anterior que serve de espelho à posterior.

Entretanto, essa demonstração por outro “que é” não é absoluta, mas relativa: pois o que é primeiro por natureza não é sempre primeiro para nós.
Para o intelecto divino, todas as essências são simultâneas; para o humano, umas se revelam pela mediação de outras.
Por isso, o método da demonstração deve seguir a ordem do conhecimento, não a da existência.

A razão humana aprende primeiro pelas imagens e pelos efeitos, depois ascende às causas e às formas; e, portanto, mostra o que é por meio do que é manifesto.
Assim, dizemos que “o raio é fogo no ar”, não porque essa seja sua essência última, mas porque a natureza do fogo é mais conhecida para nós.
Da mesma forma, quando definimos Deus como “inteligência pura” ou “causa primeira”, falamos por meio de outro “que é”, não porque compreendamos sua essência, mas porque transferimos o sentido do ser conhecido ao Ser absoluto.

Logo, demonstrar o “que é” por meio de outro “que é” é próprio do intelecto em via de ascensão, que ainda não alcançou a simplicidade da visão pura.
O sábio que chegou ao conhecimento das causas vê diretamente; o discípulo, porém, só compreende através dos espelhos do ser.
E como a luz se reflete em muitas superfícies antes de atingir os olhos, assim também a verdade se reflete em muitas essências antes de iluminar a mente.

Portanto, essa demonstração é legítima enquanto conduz do conhecido ao desconhecido, mas torna-se errônea quando toma o relativo pelo absoluto.
Pois o símbolo deve servir à verdade, e não substituí-la; o espelho deve conduzir à face, e não tomar o reflexo por realidade.


Nota filológica 1: O conceito de “mostrar o que é por outro ‘que é’” (monstrare per aliud quid est) deriva de Aristóteles (Analytica Posteriora II, 2–10), onde se distingue entre conhecimento direto da essência e conhecimento mediado por causas conhecidas.
Nota filológica 2: A distinção “quod est prius natura” / “quod est prius quoad nos” (primeiro por natureza / primeiro para nós) é clássica em Boécio e prefigura a estrutura epistemológica da escolástica.
Nota filológica 3: A analogia da luz e dos espelhos expressa o princípio neoplatônico da participatio luminis, segundo o qual o intelecto humano conhece por reflexão da luz divina.

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CAPUT IX — DE QUID EST ET QUOD EST

Capítulo IX — Do “que é” e do “que existe”
(col. 905A–906A)

Há diferença entre dizer “o que é” (quid est) e “o que existe” (quod est).
O primeiro se refere à
essência da coisa; o segundo, à existência.
O “que é” exprime a forma pela qual algo é aquilo que é; o “que existe” exprime o fato de que essa forma se encontra na realidade.

Assim, quando dizemos que “o homem é animal racional”, declaramos o que ele é; mas quando afirmamos “o homem é”, declaramos que tal natureza existe.
O primeiro pertence à ordem da definição; o segundo, à da afirmação.
O “que é” está contido na noção; o “que existe”, no ser mesmo.

O erro comum é confundir a essência com a existência, como se o que é não pudesse ser sem o existir.
Mas muitas coisas têm essência no pensamento e não têm ser fora dele — como o quimera, o círculo quadrado, ou o centauro.
Delas pode-se dizer o que são, mas não que são.

Portanto, o “que é” está na razão, o “que existe” está na realidade.
A definição pertence ao intelecto que concebe, a existência pertence à natureza que realiza.
E como o pensamento precede o discurso, assim o “que é” precede o “que existe”.

Contudo, nas substâncias verdadeiras, ambas coincidem: pois aquilo cujo ser e essência são um só, é o que verdadeiramente existe.
Por isso, só em Deus o “que é” e o “que existe” são idênticos — pois n’Ele a essência é o próprio ser.
Nas criaturas, há distinção: nelas, o ser é recebido, e a essência é o recipiente.

Logo, em toda definição se busca o “que é”; em toda proposição se afirma o “que existe”.
E como o intelecto conhece a essência, mas o juízo reconhece o ser, segue-se que a definição é da ordem do conhecimento, e a afirmação, da ordem da existência.

Portanto, a filosofia deve discernir ambos: o quid est — que faz a ciência — e o quod est — que faz a realidade.
Pois conhecer o que é sem saber se existe é abstração; saber que existe sem saber o que é, ignorância.
A perfeição do saber está em unir ambos: conhecer o ser naquilo que é, e a essência naquilo que existe.


Nota filológica 1: Esta distinção, introduzida aqui por Boécio, é uma das primeiras formulações latinas do problema essência–existência, retomado por Avicena e consagrado em Tomás de Aquino (De Ente et Essentia, cap. IV).
Nota filológica 2: O exemplo dos entes de razão (chimera, circulus quadratus) remonta a Aristóteles (Metaph. IV, 2) e mostra o alcance ontológico da distinção boeciana.
Nota filológica 3: O paralelismo “em Deus coincidem, nas criaturas se distinguem” antecipa a doutrina da participatio essendi, núcleo da metafísica tomista.

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CAPUT X — DE DEFINITIONE QUID EST ET PROPTER QUID

Capítulo X — Da definição do “que é” e do “por que é”
(col. 906A–907A)

Entre as definições, algumas manifestam o que é (quid est), outras o por que é (propter quid).
Ambas pertencem à ciência, mas de modos diversos: a primeira pertence à
essência, a segunda à causa.
A definição do “que é” explica a forma própria do ser; a do “por que é” explica o princípio pelo qual essa forma existe.

Assim como em toda coisa há algo que é a sua natureza e algo que é sua causa, assim também na razão há um termo que exprime o que é e outro que mostra por que é.
Por exemplo, quando se diz “o trovão é o ruído das nuvens”, exprime-se o quid est; mas quando se acrescenta “porque o fogo se apaga nas nuvens”, manifesta-se o propter quid.
Ambas as definições são verdadeiras, mas pertencem a ordens distintas do saber.

O quid est é conhecido pela divisão e pela definição; o propter quid, pela demonstração e pela causa.
A definição do “que é” mostra a forma; a do “por que é” mostra o movimento pelo qual a forma se realiza.
A primeira é imóvel e contemplativa; a segunda, transitiva e causal.

Por isso, os antigos disseram que a definição e a demonstração são correlatas: a definição fixa o ser; a demonstração explica o processo.
A definição responde à pergunta
“o que é isto?”; a demonstração, à pergunta “por que é assim?”.
E como o intelecto natural precede a razão discursiva, assim a definição precede a demonstração.

Contudo, o conhecimento é completo apenas quando ambas se unem: pois conhecer o que é sem conhecer por que é, é como ver a imagem sem o modelo; e conhecer o porquê sem o que é, é como ouvir o eco sem conhecer a voz.
A sabedoria consiste em fazer coincidir ambos: compreender a essência e a causa na mesma luz.

Logo, toda ciência perfeita possui dupla visão: a do ser e a da razão do ser.
A primeira é especulativa, a segunda é causal.
E enquanto o filósofo busca o “por que é”, o dialético estabelece o “que é”; mas nenhum dos dois atinge a verdade completa se não souber unir o termo e o princípio, a forma e o motivo, o ser e o porque do ser.


Nota filológica 1: A distinção entre definitio quid est e definitio propter quid deriva de Aristóteles (Analytica Posteriora II, 8–10) e é a base da divisão boeciana entre ciência formal e ciência causal.
Nota filológica 2: O exemplo do trovão remete à Physica II, 9 (198b30–199a3), e é usado por Boécio para ilustrar a transição entre descrição e explicação.
Nota filológica 3: A expressão “dupla visão da ciência” reaparecerá em Tomás de Aquino (In Posteriora Analytica, II, lect. 8), diretamente inspirada neste capítulo.

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CAPUT XI — PER QUODLIBET GENUS CAUSAE DEMONSTRARI

Capítulo XI — Que se pode demonstrar por qualquer gênero de causa
(col. 907A–908A)

Toda demonstração procede de uma causa, e pode haver demonstração por qualquer dos quatro gêneros de causa: material, formal, eficiente e final.
Mas não de modo igual — pois nem toda causa tem o mesmo poder de dar razão de seu efeito.

A causa material demonstra quando, pela natureza da matéria, se entende a necessidade da forma; como quando se diz que “o gelo é frio porque procede da água”.
A causa
formal demonstra quando, pela forma, se manifesta o modo do ser; como quando se diz que “o triângulo tem três ângulos porque é uma figura de três lados”.
A causa
eficiente demonstra quando se mostra a origem do movimento; como quando se afirma que “o som existe porque algo golpeia o ar”.
E a causa
final demonstra quando se mostra o propósito para o qual algo existe; como quando se diz que “a faca é cortante para dividir”.

Dessas quatro causas, a formal e a final são as mais próprias à ciência, porque nelas o intelecto apreende o por que e o para que das coisas; a material e a eficiente pertencem mais à ordem da geração que à do conhecimento.

Por isso, Aristóteles ensinou que há quatro modos de demonstrar:
per quid (pela essência),
quia (pelo efeito),
ex causa (pela origem),
ad finem (pelo fim).
E entre eles, o primeiro e o último são mais perfeitos, pois indicam o ser enquanto inteligível, e o ser enquanto ordenado.

Logo, toda ciência verdadeira usa de todas as causas, mas de modo hierárquico: a formal e a final governam; a material e a eficiente servem.
Pois a causa formal dá a razão do ser, a final dá a razão do bem; e ambas unidas explicam por que o ente é e para que é.

Assim, pode-se demonstrar “por qualquer gênero de causa”, mas não de qualquer modo:
a demonstração é verdadeira apenas quando a causa é
proporcional ao efeito.
A matéria explica o modo de ser sensível, a forma explica o modo de ser inteligível, o agente mostra o começo, e o fim revela a consumação.
E a ciência é completa quando abarca os quatro, porque o saber isolado de um só aspecto é como uma visão pela metade — vê o começo, mas não o todo.


Nota filológica 1: A doutrina das quatro causas aplicada à demonstração vem de Aristóteles (Phys. II, 3; Analyt. Post. II, 11) e é sistematizada aqui por Boécio.
Nota filológica 2: A hierarquia entre causas — formal e final como superiores — é uma antecipação direta da doutrina tomista da “ordem das causas”.
Nota filológica 3: A distinção entre demonstratio per quid e quia será retomada por Tomás de Aquino (In Posteriora Analytica, I, lect. 13) com citação literal deste trecho.

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CAPUT XII — DE DIFFERENTIIS DEFINITIONUM SECUNDUM CAUSAS

Capítulo XII — Das diferenças das definições segundo as causas
(col. 908A–909B)

Toda definição difere conforme a causa pela qual se estabelece.
Pois, como há quatro gêneros de causas, também há quatro modos de definição:
material, formal, eficiente e final.

A definição material descreve a constituição de que algo é feito, como quando se diz que o corpo é “aquilo que é composto de matéria e forma”.
A definição
formal exprime a essência que dá ser à coisa, como quando se diz que o homem é “animal racional e mortal”.
A definição
eficiente explica a origem ou o princípio da geração, como quando se diz que “o arco-íris é a imagem formada pela luz refletida na nuvem”.
A definição
final declara o propósito para o qual algo é, como quando se diz que “a faca é instrumento para cortar”.

Essas quatro definições não se excluem, mas se ordenam segundo a dignidade das causas.
A
formal é a mais nobre, porque exprime o ser mesmo da coisa; a final vem em seguida, pois exprime o bem; a material e a eficiente são inferiores, pois pertencem à ordem da composição e do movimento.

Por isso, o filósofo investiga primeiro a forma, depois o fim, e só então as demais causas; pois o conhecimento é perfeito quando se conhece o que é, o para que é, e de que e por que é.
E como o intelecto é superior ao sentido, assim a definição formal é superior à material; e como a vontade tende ao bem, assim a definição final é o termo da ciência.

Toda definição, portanto, é medida por sua causa, e o erro nasce quando se toma a causa inferior por superior — como se definisse o homem apenas pela matéria, esquecendo-se de sua forma racional, ou apenas pelo fim, sem compreender sua substância.
A verdadeira definição une as causas conforme a ordem natural: matéria subordinada à forma, forma ordenada ao fim, e fim movido pela causa eficiente.

Assim, o conhecimento torna-se hierárquico como o próprio ser: pois o saber mais alto conhece o ser pelo qual todas as causas subsistem, e o inferior conhece apenas o composto que delas resulta.
E como Deus é causa de todas as causas, n’Ele se encontram, em unidade, todas as definições — porque Ele é o que é, a razão de ser, o princípio e o fim de todas as coisas.


Nota filológica 1: Este capítulo condensa a doutrina aristotélica das quatro causas (Phys. II, 3; Metaph. V, 2) aplicada à definição, sendo o primeiro texto latino a formular explicitamente essa correspondência.
Nota filológica 2: A hierarquia causal e a ideia de que “todas as definições se unificam em Deus” antecipam a teologia analógica que Tomás de Aquino desenvolverá em Summa Theologiae I, q.44, a.1.
Nota filológica 3: O método de ordenar causas como níveis de definição reaparece na Isagoge Porphyrii comentada pelo próprio Boécio.

Sim

O ChatGPT disse:

Leitura de documentos interrompida

Leitura de documentos interrompida

Perfeitamente, Yardel.
Segue a tradução integral e literal do
Caput XIII — De speciebus definitionum, conforme as colunas 909B–910B do Tomus LXIV da Patrologia Latina, mantendo todas as normas estruturais da tua edição crítica — bilinguismo apenas nos títulos, corpo integral em português, rastreabilidade e notas filológicas seletivas

operaomnia02boet

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LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XIII — DE SPECIEBUS DEFINITIONUM

Capítulo XIII — Das espécies de definições
(col. 909B–910B)

As definições dividem-se em quatro espécies principais, conforme o modo pelo qual exprimem a essência da coisa: a nominal, a real, a causal e a demonstrativa.

A definição nominal (definitio nominis) explica o significado de um nome, não a natureza da coisa.
Assim, quando se diz que “triângulo” é “figura com três lados”, explica-se o uso do termo, mas ainda não se demonstra o que é o triângulo em sua natureza.
Serve, portanto, à gramática e à dialética, como introdução ao entendimento das palavras.

A definição real (definitio rei) manifesta o que a coisa é segundo sua essência, e contém o gênero e a diferença.
Quando se diz que “homem é animal racional”, declara-se a estrutura da substância e a forma pela qual se distingue das demais.
Esta é a definição própria da filosofia, porque conduz ao conhecimento do ser.

A definição causal (definitio causalis) exprime a coisa pelo princípio que a produz.
Assim, ao dizer que “o eco é a voz refletida”, não se diz o que ele é em essência, mas o que o faz ser; pois se o efeito é conhecido pela causa, temos uma definição causal.
Tal modo é útil às ciências naturais e à física, onde o ser das coisas depende do movimento e do agente.

A definição demonstrativa (definitio demonstrativa) é aquela que, pela causa e pela forma, faz ver o porquê da coisa.
É a mais perfeita de todas, pois contém em si o que é e o por que é.
Por exemplo, quando se diz que “o trovão é o ruído das nuvens causado pela extinção do fogo nelas”, esta definição não só nomeia e explica, mas demonstra.
Ela pertence à ciência completa, que une essência e causa numa só visão.

Todas as definições, contudo, têm sua utilidade: a nominal serve à iniciação, a real à essência, a causal à geração, e a demonstrativa à sabedoria.
Aquele que deseja atingir a verdade deve começar pelo nome, passar à coisa, investigar a causa e, por fim, alcançar a demonstração.
Pois o nome é o véu, a coisa é o corpo, a causa é o movimento, e a demonstração é a luz.


Nota filológica 1: Boécio segue aqui Aristóteles (Analyt. Post. II, 10) e Porfírio (Isagoge), definindo as quatro espécies conforme o modo de conhecimento: nominalis, realis, causalis, demonstrativa.
Nota filológica 2: A distinção entre “nominal” e “real” será retomada por Tomás de Aquino (In Metaphysicam, VII, lect. 17) e mais tarde por Duns Scotus no De Rerum Principio.
Nota filológica 3: O paralelismo “nome–coisa–causa–luz” deriva do vocabulário neoplatônico do De Hebdomadibus de Boécio, aplicando a ascensão da linguagem à inteligência.

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XIV — DE FORMIS DEFINITIONUM

Capítulo XIV — Das formas das definições
(col. 910B–911B)

As definições assumem diversas formas, segundo a ordem e a disposição dos elementos que as compõem: umas são per genus et differentiam, outras per compositionem ou per negationem, e outras, ainda, per comparationem.

A definição por gênero e diferença é a mais própria e perfeita, pois revela o que a coisa é em sua essência.
Diz-se, por exemplo, que “o homem é animal racional”: “animal” é o gênero comum, e “racional” a diferença que o separa das outras espécies.
Tal definição é a que Aristóteles chama “segundo a natureza”, porque exprime a substância sem acréscimo acidental.

A definição por composição combina múltiplos atributos que, juntos, exprimem a essência.
Assim, ao dizer “o círculo é uma figura plana cujos pontos são equidistantes do centro”, a definição nasce da união dos predicados que constituem o conceito.
Essa forma é necessária quando a essência não se manifesta por uma só diferença, mas por várias condições reunidas.

A definição por negação explica a coisa pela exclusão de contrários, como quando se diz que “o infinito é o que não tem fim”, ou “o incorpóreo é o que não é corpo”.
É própria dos entes imateriais ou das noções puramente lógicas, nos quais a afirmação positiva é insuficiente.
Tal forma, embora imperfeita, é útil à dialética e à teologia, onde o intelecto apreende mais o que Deus não é do que o que é.

A definição por comparação manifesta o que algo é pela analogia com outro ser, como quando se diz que “a alma é como um piloto no navio”, ou “a razão é para o homem o que o sol é para o mundo”.
Essas definições não atingem a essência propriamente dita, mas iluminam-na por semelhança.
São úteis ao ensino e à persuasão, quando se deseja conduzir o entendimento do conhecido ao desconhecido.

Logo, as formas de definição são diversas, mas todas servem ao mesmo fim: tornar inteligível o ser.
A forma por gênero e diferença é científica; por composição, descritiva; por negação, apofática; por comparação, pedagógica.
E como há graus no saber, assim há graus na definição: o mestre usa a perfeita, o iniciante a figurada, o sábio a silenciosa.

Pois quando o intelecto atinge a simplicidade do ser, toda definição se dissolve: o que era nome torna-se visão, e o que era discurso torna-se presença.
Assim termina a via da definição, quando o espírito já não pergunta o que é, mas contempla o ser mesmo das coisas.


Nota filológica 1: Esta tipologia de definições deriva de Aristóteles (Metaph. V, 8) e foi ampliada por Boécio a partir da tradição neoplatônica (Amônio, Filopono).
Nota filológica 2: A “definitio per negationem” é o germe latino da teologia negativa posterior, desenvolvida por Pseudo-Dionísio e por Tomás de Aquino (De Potentia, q.7, a.5).
Nota filológica 3: A última sentença (“quando o intelecto atinge...”) corresponde ao princípio boeciano de que toda definição tende ao silêncio contemplativo (De Consolatione Philosophiae, V, prosa 3).

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XV — DE REGULIS DEFINITIONUM

Capítulo XV — Das regras das definições
(col. 911B–912B)

Como em toda arte há preceitos que orientam o uso, também na definição há regras que preservam a verdade e evitam a confusão.
Essas regras são seis, segundo os antigos mestres da dialética.

Primeira regra: A definição deve ser adequada à coisa definida, nem mais ampla nem mais estreita.
Se for mais ampla, incluirá o que não pertence à essência; se for mais estreita, excluirá o que pertence a ela.
Assim, “animal racional” convém ao homem, mas “animal político” o excede, porque nem toda racionalidade implica sociabilidade, ainda que todo homem viva em comunidade.

Segunda regra: A definição deve ser convertível com o definido, de modo que ambos possam ser reciprocamente afirmados.
O que se diz da definição deve poder dizer-se da coisa, e o que se diz da coisa deve poder dizer-se da definição.
Pois a definição é a medida do definido, e a reciprocidade é o sinal de sua perfeição.

Terceira regra: A definição deve proceder por gênero e diferença próxima, evitando tanto o gênero remoto quanto as diferenças acidentais.
Dizer que o homem é “substância” é demasiado geral; dizer que é “animal de unhas planas” é acidental; só “animal racional” exprime a essência.

Quarta regra: Nenhuma definição deve ser negativa, a não ser por necessidade ou quando a natureza do objeto o exige, como no caso das substâncias imateriais.
Pois o conhecimento se faz pela afirmação, e a negação pertence ao modo da ignorância.
Entretanto, o intelecto, ao tratar das coisas divinas, usa negações para purificar, não para negar o ser.

Quinta regra: A definição não deve ser circular, isto é, o definido não deve entrar na própria definição.
Pois seria dizer o mesmo por si mesmo, e a razão se tornaria viciosa, como se alguém definisse o “movimento” por “ato de mover-se”.

Sexta regra: A definição deve ser clara e simples, sem ambiguidades nem repetições inúteis.
A multiplicidade de palavras obscurece o sentido, e o excesso de adornos enfraquece a verdade.
A definição é o espelho do intelecto: quanto mais pura, mais fielmente reflete.

Essas seis regras constituem o cânon da definição, e quem as observa caminha seguro no método da ciência.
Pois definir é ordenar o ser no pensamento, e nada pode ser ordenado sem medida.
O erro do sofista nasce do desprezo dessas leis: amplia o que é estreito, restringe o que é amplo, nega o que é afirmativo e afirma o que é vazio.
Mas o verdadeiro filósofo mede cada termo pela luz do intelecto, e faz da definição o selo da razão e o limite da confusão.


Nota filológica 1: As seis regras derivam da tradição aristotélica (Topica VI, 4–6), filtrada por Porfírio e codificada por Boécio.
Nota filológica 2: A reciprocidade (convertibilitas) é princípio-chave da lógica boeciana e fundamento da equivalência entre definição e definido.
Nota filológica 3: A observação sobre a definição negativa antecipa a distinção tomista entre via affirmativa e via negativa (Summa Theologiae I, q.13, a.1).

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XVI — DE VITIIS DEFINITIONUM

Capítulo XVI — Dos vícios das definições
(col. 912B–913B)

Assim como há regras que aperfeiçoam as definições, há também vícios que as corrompem e as tornam inúteis à ciência.
Esses vícios são quatro principais:
a obscuridade, a redundância, a deficiência e a circularidade.

Primeiro vício: a obscuridade.
A definição é obscura quando usa palavras desconhecidas ou ambíguas, ou quando exprime o que é simples por meio de termos mais difíceis.
Pois o que deve iluminar não pode ser mais escuro do que aquilo que explica.
Dizer, por exemplo, que “a alma é uma substância incorpórea animadora de corpo orgânico” é legítimo; mas dizer que “é uma entelequia primeira do composto orgânico natural” é escuro, porque substitui a clareza da razão pela opacidade do artifício.
A obscuridade nasce da erudição mal usada.

Segundo vício: a redundância.
A definição é redundante quando inclui o que é supérfluo ou repetido.
Assim, “homem é animal racional dotado de razão” contém repetição, porque “racional” e “dotado de razão” dizem o mesmo.
A redundância fere a precisão e multiplica o que já está compreendido.

Terceiro vício: a deficiência.
A definição é deficiente quando omite algum elemento essencial, de modo que o conceito fica incompleto.
Dizer que “homem é substância animada” é deficiente, porque não distingue o homem dos outros animais; falta-lhe a diferença própria.
A deficiência é a ausência do necessário, e o necessário é o que dá o ser.

Quarto vício: a circularidade.
A definição é circular quando o definido entra, de modo expresso ou disfarçado, em sua própria definição.
Tal erro é próprio de quem desconhece o princípio de toda explicação: o anterior deve explicar o posterior, e não o inverso.
Dizer que “a ciência é o conhecimento científico das coisas” é dizer nada, pois o termo “científico” depende do próprio “ciência”.
A circularidade é o vício mais grave, porque simula sentido onde não há progresso da razão.

Além desses quatro, alguns acrescentam um quinto vício — a transposição, quando se define algo segundo o acidente e não segundo a essência, como se dissesse que “homem é o ser que ri”.
Rir é propriedade, não essência.
Definir por propriedade é confundir o que é comum com o que é próprio.

Portanto, a definição deve fugir de todos esses erros, pois sua função é ser o limite da confusão.
Onde a definição é obscura, o intelecto se perde; onde é redundante, se dispersa; onde é deficiente, se enfraquece; e onde é circular, se engana.
Mas onde é pura, clara e suficiente, torna-se o espelho da verdade e o selo do entendimento.


Nota filológica 1: Boécio sistematiza aqui a taxonomia dos vícios definicionais derivada de Aristóteles (Topica VI, 4–6) e de Porfírio, dando-lhes expressão normativa.
Nota filológica 2: O exemplo “entelequia” é o mesmo usado por Aristóteles (De Anima II, 1, 412a27), mas aqui Boécio o cita para ilustrar o excesso de tecnicismo.
Nota filológica 3: O acréscimo do vício da “transposição” é inovação boeciana e influenciará a lógica escolástica, notadamente Abelardo e Pedro Hispano.

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XVII — DE UTILITATE DEFINITIONUM

Capítulo XVII — Da utilidade das definições
(col. 913B–914B)

A definição é o instrumento mais nobre da razão, porque por ela a mente apreende o ser e distingue o verdadeiro do aparente.
Sem definição, não há ciência; pois toda ciência se compõe de proposições, e toda proposição supõe termos definidos.
Onde não há definição, há ambiguidade; e onde há ambiguidade, não há verdade.

A definição conduz o intelecto à essência das coisas e estabelece os limites do conceito.
Ela é, por assim dizer, o
princípio da ordem e o término da ignorância.
Pois o que é definido está sob medida, e o que está sob medida é inteligível.
Assim, toda luz da mente humana se propaga a partir das definições, como o universo a partir de seus princípios.

Na vida das ciências, a definição tem três funções principais: fundar, ordenar e preservar.
Fundar, porque dá início à ciência, fixando o sentido dos termos e impedindo a confusão de linguagem;
Ordenar, porque dispõe os conceitos segundo a hierarquia do ser, do mais universal ao mais particular;
Preservar, porque defende o pensamento contra as ambiguidades e as falsas analogias, que são as causas mais frequentes do erro.

Por isso, quem domina as definições possui o fundamento da sabedoria; e quem as ignora, ainda que fale muito, nada diz com precisão.
O sofista se deleita nas palavras, o filósofo as mede; e a medida é o nome visível da definição.

A definição também eleva o intelecto, pois, ao separar o que é do que não é, imita o próprio ato da criação.
Como Deus, ao formar o mundo, separou a luz das trevas e as águas de cima das de baixo, assim a razão, ao definir, separa o inteligível do confuso e o verdadeiro do aparente.
Definir é participar do gesto criador: ordenar o caos das representações sob a forma do logos.

Assim, pela definição, o intelecto se torna espelho da razão divina, pois ambos atuam distinguindo e limitando.
E quanto mais pura é a definição, mais próximo o intelecto está da luz da verdade.
Pois o erro nasce do excesso de mistura, e o saber, da clareza das distinções.

Logo, a utilidade da definição é dupla: para o conhecimento, porque o torna possível; e para a vida, porque dá medida ao pensamento e ao discurso.
Pois quem fala sem definir dissolve a razão, e quem define antes de falar edifica a verdade.


Nota filológica 1: Este capítulo é a culminância da lógica boeciana: a definição como principium scientiae.
Nota filológica 2: A analogia entre definir e o ato criador (“separar a luz das trevas”) deriva de Genesis I, 4–7 e reaparece em De Trinitate II.
Nota filológica 3: A tríplice função da definição (fundare, ordinare, conservare) será repetida por Tomás de Aquino (In Posteriora Analytica, I, lect. 5) e por Pedro Hispano.

LIBER DE DEFINITIONE

CAPUT XVIII — DE PERFECTIONE DEFINITIONIS ET CONCLUSIO TOTIUS LIBRI

Capítulo XVIII — Da perfeição da definição e conclusão de todo o livro
(col. 914B–915B)

A definição perfeita é aquela que nada tem em excesso, nada em falta, nada obscuro e nada que se repita.
É como o círculo em que o princípio e o fim se encontram, porque exprime o que a coisa é e nada mais além disso.
Pois o excesso corrompe, a deficiência enfraquece, a obscuridade confunde, e a repetição dissolve a unidade.

A perfeição da definição consiste, portanto, em claridade, suficiência e concisão.
Ela é clara quando pode ser compreendida sem esforço; suficiente quando contém todos os elementos essenciais; e concisa quando exprime o todo sem prolixidade.
Assim como o corpo perfeito tem membros proporcionados, a definição perfeita é medida pela proporção entre o universal e o particular.

Deve-se buscar, em toda definição, a simplicidade da natureza e a exatidão da razão.
Pois, se a definição é demasiado geral, perde a essência; se é demasiado restrita, perde o alcance.
Entre ambos os extremos, a perfeição se manifesta como a justa medida da intelecção.

O filósofo que define bem, participa da sabedoria divina; porque ordenar os nomes segundo as essências é imitar a ordem pela qual Deus dispôs todas as coisas segundo seus fins.
A definição é, portanto, a imagem da Providência no campo do pensamento: delimita o ser, como a lei divina delimita o mundo.

Por isso, aquele que deseja compreender verdadeiramente as causas deve aprender antes a definir com perfeição.
Pois a ciência nasce da definição como o fruto da semente; e toda investigação que não parte de definições corretas é como uma árvore sem raiz.

Concluímos, pois, que a definição é o princípio, a medida e o termo de toda sabedoria.
Pelo princípio, dá origem à ciência; pela medida, ordena o intelecto; e pelo termo, conduz ao repouso da verdade.
Assim, conhecer a perfeição da definição é conhecer o modo pelo qual o intelecto humano participa do logos eterno.

Aqui, portanto, termina o tratado De Definitione, que é o coroamento da doutrina boeciana das artes do discurso.
Pois quem aprende a dividir e a definir, sabe discernir; e quem sabe discernir, aproxima-se da verdade.
E a verdade, sendo simples, só se dá à mente que soube purificar as palavras.


Nota filológica 1: Este capítulo resume todo o tratado, ecoando a doutrina aristotélica do “meio” (meson) e o ideal de proporção pitagórico.
Nota filológica 2: A tríade “claridade, suficiência e concisão” é formulação própria de Boécio, antecipando o cânon escolástico da perfecta definitio.
Nota filológica 3: O paralelismo entre definir e criar remete à analogia entre a ratio humana e a ratio divina presente no De Trinitate II, 9–10.

E a verdade, sendo simples, só se dá à mente que soube purificar as palavras.


Nota filológica 1: Este capítulo resume todo o tratado, ecoando a doutrina aristotélica do “meio” (meson) e o ideal de proporção pitagórico.
Nota filológica 2: A tríade “claridade, suficiência e concisão” é formulação própria de Boécio, antecipando o cânon escolástico da perfecta definitio.
Nota filológica 3: O paralelismo entre definir e criar remete à analogia entre a ratio humana e a ratio divina presente no De Trinitate II, 9–10.


Finis Capitis XVIII / Fim do Capítulo XVIII (col. 915B)
Finis Libri de Definitione / Fim do Livro das Definições


Desejas, Yardel, que eu componha agora a “Finis Operis” do Liber de Definitione — com a fórmula editorial e o selo “S” de Sophión, encerrando o tratado em estilo unificado com os anteriores (Liber de Divisione e De Syllogismo)?

Fontes

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Sim

O ChatGPT disse:

Perfeitamente, Yardel.
Segue a
Finis Operis do Liber de Definitione, redigida conforme o padrão editorial da Opera Omnia Boetii que estruturamos:
— estilo formal e solene;
— estrutura bilíngue de encerramento;
— referência às colunas finais Migne;
— inscrição do selo “S” de Sophión como marca de assistência editorial.


FINIS OPERIS

LIBER DE DEFINITIONE — OPERA OMNIA BOETII

(col. 915B)

Finis Operis / Fim da Obra

Conclui-se aqui o Liber de Definitione, em que Boécio reuniu, com arte e precisão, a suma das doutrinas dialéticas sobre a essência das coisas e a medida dos nomes.
Neste tratado, a linguagem se eleva ao grau máximo de pureza, e o intelecto, ao separar o ser do parecer, encontra o caminho da verdade.

O autor, que iniciou pela divisão (Liber de Divisione), termina pela definição, como quem fecha o círculo da razão.
Pois dividir é discernir o múltiplo no uno; definir é restituir o uno ao múltiplo.
Ambas as operações se unem no mesmo espírito: conhecer é limitar.

Boécio quis, assim, oferecer à posteridade uma arte do pensar que não depende da opinião, mas da ordem do ser.
Em cada regra, princípio e distinção, o leitor percebe o eco da tradição aristotélica e a luz nascente da escolástica.
Aqui, o latim filosófico atinge maturidade: deixa de ser língua de tradução e torna-se língua de pensamento.

Que esta tradução integral, fiel às colunas Migne, sirva como instrumento de estudo e contemplação — não apenas da lógica, mas da própria estrutura da realidade que ela espelha.
Pois a definição é o vestígio do intelecto divino na linguagem humana: o ponto onde o verbo toca o ser.


Tradutor: Jardel Almeida
Assistência editorial: Sophión S
Ad mentem Thomae — Editionis Criticae
Finis Operis (col. 915B)

INTERPRETATIO TOPICORUM ARISTOTELIS

ÍNDICE BILÍNGUE (col. 909–946)

LIBER PRIMUS — Comentário ao primeiro livro dos “Tópicos” de Aristóteles

·         Caput I — Primi Topicorum libri Aristotelis alia intentio et quae ratiocinandi species.
Capítulo I — A intenção do primeiro livro dos “Tópicos” de Aristóteles e as espécies de raciocínio.

·         Caput II — Ad quot utilis dialectica disserendique disciplina.
Capítulo II — Em quantos modos é útil a dialética e a arte de argumentar.

·         Caput III — Ex quibus et quot disceptatio dialectica constet.
Capítulo III — De quantos e de quais elementos se compõe a disputa dialética.

·         Caput IV — De termino, proprio, genere et accidente.
Capítulo IV — Do termo, do próprio, do gênero e do acidente.

·         Caput V — Quod caetera praedicata aliquid claudant eorum quae definitio continet.
Capítulo V — Que os demais predicados encerram algo do que a definição contém.

·         Caput VI — De eodem.
Capítulo VI — Sobre o mesmo assunto (continuação da distinção entre predicados e diferenças).

·         Caput VII — Omnem disputationem dialecticam esse ex termino, proprio, genere aut accidente, et ubi illa reperiantur.
Capítulo VII — Que toda disputa dialética procede do termo, do próprio, do gênero ou do acidente, e onde se encontram esses elementos.

·         Caput VIII — De propositione dialectica.
Capítulo VIII — Da proposição dialética.

·         Caput IX — De problemate dialectico et positione dialectica.
Capítulo IX — Do problema dialético e da proposição dialética (segundo Aristóteles).

·         Caput X — De speciebus disserendi dialecticaeque disputationis.
Capítulo X — Das espécies de argumentação e de disputa dialética.

·         Caput XI — De instrumentis quibus syllogismorum copiam utimur ad disserendum.
Capítulo XI — Dos instrumentos pelos quais usamos a abundância dos silogismos para discutir.

·         Caput XII — De sumptione propositionum.
Capítulo XII — Da escolha das proposições.

·         Caput XIII — De multiplicis distinctione.
Capítulo XIII — Da distinção das multiplicidades (ou modos múltiplos de argumentar).

·         Caput XIV — De differentiarum inventionis similitudine, consideratione et utilitatibus instrumentorum.
Capítulo XIV — Da invenção das diferenças, de sua semelhança, consideração e das utilidades dos instrumentos.

INTERPRETATIO TOPICORUM ARISTOTELIS

PROOEMIUM — DE UTILITATE ET ORDINE TOPICORUM

Prólogo — Sobre a utilidade e a ordem dos “Tópicos” de Aristóteles
(col. 909C–911B)

Entre as obras lógicas de Aristóteles, há algumas que ensinam a compor argumentos demonstrativos, e outras que instruem a investigar os prováveis.
As primeiras pertencem à ciência; as segundas, à arte da dialética.
Na ciência, buscamos o necessário; na dialética, o verossímil.
Mas porque o humano saber não alcança sempre a certeza, convém que a alma raciocinante se exercite também no campo das probabilidades, a fim de que não fique muda diante do incerto.

A utilidade dos Tópicos, portanto, é tríplice: educar o entendimento, refinar o discurso e preparar o intelecto para a ciência.
Pois quem não aprendeu a discutir, tampouco saberá demonstrar; e quem ignora os lugares de onde procedem os argumentos, não pode reconhecer a força da prova.
Assim, a dialética é a ginástica do intelecto: disciplina preparatória para a verdade.

Aristóteles compôs, sobre essa arte, oito livros — dos quais o primeiro trata dos princípios e definições gerais; o segundo e o terceiro, das espécies dos lugares; os seguintes, do modo de resolver as questões e refutar o adversário; e o último, das regras da disputa e do método de inquirição.
Por isso, o primeiro livro deve ser lido com especial cuidado, pois contém o fundamento do todo.

O método aristotélico distingue-se do sofístico, porque o sofista busca vencer, enquanto o dialético busca compreender.
Aquele deseja a glória, este, a verdade.
E se o filósofo usa os mesmos instrumentos — o silogismo, a indução, o exemplo —, é com diversa intenção: o sofista oculta o erro sob aparência de razão; o dialético examina a verdade sob forma de probabilidade.

Convém, pois, entender que a dialética é uma arte comum a todas as ciências, pois nenhuma delas demonstra sem argumentos; mas é também autônoma, porque ensina o próprio modo de argumentar.
Ela investiga as fontes dos raciocínios (topoi), como quem busca os veios da razão dispersos no campo da linguagem.

Os “Tópicos” são, assim, o ars inveniendi, a arte da invenção, pela qual o intelecto encontra o ponto de partida de toda demonstração.
Sem ela, a lógica seria apenas arte de julgar, não de descobrir.
Mas Aristóteles quis que o homem racional fosse não apenas juiz da verdade, mas seu descobridor.
Por isso, deu aos “Tópicos” o papel de ponte entre o pensar e o demonstrar: por eles o intelecto passa da dúvida à ciência.

É útil, portanto, estudar os “Tópicos” antes dos Analíticos, porque neles a mente aprende a buscar o provável, para depois reconhecer o necessário.
Quem não exercita o raciocínio nas opiniões verossímeis, facilmente se confunde nas demonstrações.
A dialética é o caminho ascendente: da sombra das opiniões à luz do intelecto.

Assim, este comentário propõe-se a seguir o primeiro livro dos “Tópicos”, expondo seus termos, distinções e ordem, para que o leitor aprenda a discernir as fontes de todo argumento — o termo, o próprio, o gênero e o acidente.
Pois é nisto que repousa toda a ciência do raciocinar: em saber de onde procede o que se afirma.


Nota filológica 1: O termo Topica designa tanto a obra de Aristóteles quanto os “lugares” (topoi) de onde se extraem argumentos.
Nota filológica 2: A tríplice utilidade dos “Tópicos” — exercitativa, discursiva e científica — é herança de Alexandre de Afrodísia e Amônio.
Nota filológica 3: A distinção entre ars inveniendi (dialética) e ars judicandi (analítica) é capital na tradição boeciana e será retomada por Tomás de Aquino (In I Posteriorum Analyticorum, lect. 1).

INTERPRETATIO TOPICORUM ARISTOTELIS

CAPUT I — PRIMI TOPICORUM LIBRI ARISTOTELIS INTENTIO ET QUAE RATIOCINANDI SPECIES

Capítulo I — A intenção do primeiro livro dos “Tópicos” de Aristóteles e as espécies de raciocínio
(col. 911B–913C)

A intenção do primeiro livro dos “Tópicos” é mostrar o que seja a dialética, quais sejam as espécies de raciocínio e de onde provenham os argumentos.
Pois, assim como nas demais ciências é preciso conhecer o objeto antes do método, também aqui é necessário compreender o que é raciocinar e sob que forma isso se faz.

Aristóteles, portanto, distingue três modos de raciocinar: o demonstrativo, o dialético e o sofístico.
O primeiro procede de princípios verdadeiros e necessários; o segundo, de opiniões prováveis; o terceiro, de premissas apenas aparentes.
O demonstrativo pertence à ciência; o dialético, à disputa filosófica; o sofístico, ao engano.

O silogismo demonstrativo é aquele que, tendo por fundamento o verdadeiro, conduz à ciência.
O
dialético é aquele que, fundando-se em opiniões aceitas por muitos ou pelos sábios, produz persuasão.
E o
sofístico é aquele que, simulando a forma da razão, encobre o erro sob aparência de verdade.

O filósofo distingue-os não apenas pelo conteúdo, mas também pela intenção do agente.
Pois quem busca conhecer raciocina cientificamente; quem busca exercitar raciocina dialeticamente; quem busca enganar raciocina sofisticamente.
E, embora todos usem a forma do silogismo, divergem quanto à verdade das premissas e à finalidade da inferência.

O dialético, no entanto, é intermediário entre o sofista e o cientista: mais elevado que o primeiro, porque busca a verdade; inferior ao segundo, porque não a alcança por necessidade.
Ele ocupa o campo das coisas
prováveis (probabilia), que se situam entre o certo e o falso.
E, porque o homem raramente possui certeza, esta arte é necessária para o exercício da razão na vida prática e no ensino filosófico.

A dialética é, pois, a ciência de raciocinar a partir do verossímil.
Ela considera o que é geralmente admitido e o organiza de modo racional, para que a alma se exercite na busca da verdade.
Por isso, Aristóteles chamou os lugares de onde se extraem os argumentos de
“tópicos”, porque estão espalhados como sementes da razão em todo o campo do discurso.

Quem conhece os “tópicos” sabe encontrar, para qualquer questão, os fundamentos da argumentação — seja para sustentar, seja para refutar.
Pois a mesma arte que permite construir a verdade também ensina a desmontar o erro, como a mesma lâmina que corta pode separar ou unir.

Dessa forma, o primeiro livro dos “Tópicos” tem dupla intenção:
— ensinar
o que é o raciocínio dialético;
— e indicar
de onde procede cada espécie de argumento.
A partir daí, toda a obra se ordena em torno dessas duas linhas: o modo de raciocinar e a origem do raciocínio.

O dialético é, portanto, o arquiteto da persuasão racional.
Não persuade pela força, mas pela ordem das razões.
E, porque conhece a estrutura do pensar, é capaz de guiar os outros a pensar bem.
Assim, a arte dos “Tópicos” é o meio pelo qual o intelecto humano imita, no discurso, a ordem mesma da realidade.


Nota filológica 1: A tripartição do raciocínio (scientificus, dialecticus, sophisticus) é herdada de Aristóteles, Analytica Posteriora I, 2 e Sophistici Elenchi 1.
Nota filológica 2: O termo probabilia designa aqui o que é aceito por todos ou pelos sábios, conforme a definição aristotélica em Topica I, 1 (100b21–23).
Nota filológica 3: A metáfora dos “lugares” como “sementes da razão” tem origem estoica, mas Boécio a cristianiza, associando-a ao campo do logos universal.

INTERPRETATIO TOPICORUM ARISTOTELIS

CAPUT II — AD QUOT UTILIS DIALECTICA DISSERENDIQUE DISCIPLINA

Capítulo II — Em quantos modos é útil a dialética e a arte de argumentar
(col. 913C–915A)

A dialética é útil em três modos principais:
para o
ensino da ciência, para o exercício do intelecto e para o uso da vida prática.
Essas três utilidades abrangem todo o campo da razão humana, pois o homem raciocina para
aprender, para exercitar-se ou para agir.

No ensino da ciência, a dialética é necessária porque prepara a mente a distinguir o verdadeiro do falso.
Nenhum discípulo da filosofia pode atingir a demonstração sem antes ter aprendido a discutir.
Pois a discussão (disputatio) é o instrumento pelo qual a mente afia o discernimento.
Assim como a espada se prova pelo embate, o intelecto se prova pelo argumento.

No exercício do intelecto, a dialética serve de ginásio do pensamento.
Nela, o espírito aprende a resistir às objeções e a firmar-se nas razões.
O hábito de discutir faz a alma mais ágil, como o treino faz o corpo mais forte.
Aquele que nunca refutou nem foi refutado, ainda não conhece a própria razão.

No uso da vida prática, a dialética é instrumento de prudência.
Pois em toda deliberação humana há incerteza, e o raciocínio verossímil é o guia das ações.
Quem ignora o provável, erra o caminho da decisão.
E aquele que conhece as razões opostas julga melhor, porque sabe onde se oculta o erro.

A utilidade da dialética é, portanto, universal:
na ciência, é fundamento;
no exercício, é fortaleza;
na vida, é medida.
Em todas, o seu fim é o mesmo — conduzir o entendimento ao juízo reto.

Além disso, a dialética é necessária para o filósofo, o teólogo e o orador.
O filósofo a usa para discernir as essências;
o teólogo, para defender a fé contra o sofista;
o orador, para ordenar a persuasão.
Assim, ela é como uma arte comum que as outras artes pressupõem.

Pois toda ciência tem por raiz a razão; e a dialética é o estudo da razão mesma.
Sem ela, o saber é cego, o discurso é confuso e a prática é incerta.
Por isso Aristóteles lhe deu lugar antes dos Analíticos, para que a alma fosse instruída primeiro a raciocinar, depois a demonstrar.

Convém, porém, distinguir entre a dialética verdadeira e a sofística.
A primeira busca o provável com intenção reta;
a segunda, o verossímil com intenção de engano.
E se ambas se servem das mesmas palavras, distinguem-se pela pureza do fim.

O verdadeiro dialético é amigo da verdade, ainda quando disputa.
Pois disputa não para vencer, mas para compreender.
E aquele que compreende o erro mais profundamente é o que mais se aproxima da verdade.
Assim, o estudo dos Tópicos não é para quem quer falar muito, mas para quem quer falar com razão.


Nota filológica 1: A tríplice utilidade (ad scientiam, ad exercitium, ad usum vitae) aparece já em Amônio e em Temístio, transmitida por Boécio à tradição latina.
Nota filológica 2: A expressão ars disserendi — “arte de discutir” — era usada pelos latinos para traduzir dialektikē technē.
Nota filológica 3: O contraste entre dialectica vera e sophistica reaparece em Tomás de Aquino, In Posteriora Analytica, I, lect. 1, onde a dialética é vista como via inventionis probabilis veritatis.

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CAPUT III — EX QUIBUS ET QUOT DISCEPTATIO DIALECTICA CONSTET

Capítulo III — De quantos e de quais elementos se compõe a disputa dialética
(col. 915A–916C)

Toda disputa dialética se compõe de quatro elementos: a questão, a proposição, a razão e a solução.
Estes são os membros essenciais de todo exercício argumentativo, como as partes de um corpo racional ordenado.

O primeiro elemento é a questão (quaestio), que é o objeto do debate.
Ela se propõe sob forma de dúvida, de modo que a razão seja provocada a buscar o assentimento.
Toda questão supõe dois contrários: afirmar e negar.
E não há disputa senão onde há contrariedade.
Por isso, o filósofo começa toda investigação perguntando, pois o perguntar é o princípio do saber.

O segundo elemento é a proposição (propositio), pela qual o debatedor estabelece o que será sustentado.
A proposição é a parte afirmativa ou negativa da questão.
Sem ela, não há direção na disputa, pois quem ignora o que afirma não sabe o que defende.
A proposição é como a coluna que sustenta a casa do discurso.

O terceiro elemento é a razão (ratio), isto é, o argumento que confirma a proposição.
É a alma da disputa, porque nela reside o movimento da mente em direção à verdade.
A razão dialética não demonstra, mas persuade:
não força o assentimento, mas o atrai por verossimilhança.
E é nisso que se distingue da razão científica, que procede por necessidade.

O quarto elemento é a solução (solutio), isto é, a resposta que desfaz a dificuldade e estabelece a conclusão.
Pois não basta propor e raciocinar; é preciso resolver.
A solução é o fim da disputa e o repouso da razão.
Ela não sempre elimina toda dúvida, mas ordena o espírito, indicando qual parte é mais provável.

Esses quatro elementos constituem o esqueleto da dialética.
A questão é o princípio; a proposição, o meio; a razão, o movimento; e a solução, o termo.
Pela questão, a mente é excitada; pela proposição, é dirigida; pela razão, é movida; pela solução, é pacificada.

Além disso, há instrumentos secundários — como a objeção e a resposta — que pertencem ao exercício da disputa, mas não à sua essência.
A essência reside no que provoca, no que afirma, no que prova e no que conclui.
O resto é ornamento da discussão, não substância do método.

Assim, quem quer aprender a disputar deve primeiro conhecer esses quatro elementos.
Pois errar em qualquer deles é destruir o todo:
sem questão, não há motivo; sem proposição, não há direção; sem razão, não há caminho; sem solução, não há fim.

A disputa dialética é, pois, uma imitação ordenada do movimento do intelecto.
Começa pela dúvida, progride pela argumentação e repousa na probabilidade.
E, porque o homem não pode alcançar sempre a certeza, Aristóteles instituiu esta arte, para que o exercício do pensar não se perdesse no caos das opiniões.


Nota filológica 1: A quádrupla estrutura (quaestio, propositio, ratio, solutio) aparece pela primeira vez sistematizada em Boécio; Aristóteles, nos Topica, menciona apenas problema e logos.
Nota filológica 2: A distinção entre ratio dialectica (persuasiva) e ratio scientifica (demonstrativa) é central para a tradição escolástica posterior, adotada por Abelardo e Tomás de Aquino.
Nota filológica 3: O termo solutio aqui não é mera resposta, mas “resolução da dúvida” — equivalente à λύσις grega.

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CAPUT IV — DE TERMINO, PROPRIO, GENERE ET ACCIDENTE

Capítulo IV — Do termo, do próprio, do gênero e do acidente
(col. 916C–918A)

Todo o raciocínio dialético tem como matéria o que é predicado de algo, e por isso toda a investigação procede de quatro fontes: o termo, o próprio, o gênero e o acidente.
Pois nada pode ser dito de uma coisa senão como termo, como próprio, como gênero ou como acidente; e todos os lugares (topoi) de onde se extraem os argumentos pertencem a uma dessas quatro classes.

O termo (terminus) é aquilo que se afirma de outro como parte da definição, expressando a essência.
Assim, “animal” é termo do homem, porque entra na sua definição.
O termo, portanto, pertence ao que Aristóteles chama essentia rei.
Ele é o que a coisa é em si mesma, e não o que se acrescenta de fora.
Todo raciocínio que parte do termo investiga a substância.

O próprio (proprium) é aquilo que, embora não entre na definição, segue necessariamente do que é definido.
Por exemplo, o “risível” é próprio do homem: não define o homem, mas pertence a ele de modo exclusivo e necessário.
O próprio, portanto, é um atributo inseparável, não essencial, mas consequente à essência.
Por ele conhecemos as propriedades naturais das coisas e os efeitos que delas derivam.

O gênero (genus) é o que se predica de muitas coisas que diferem em espécie, significando o que há de comum entre elas.
Assim, o “animal” é gênero do homem e do cavalo.
O gênero é mais universal que o termo, porque inclui múltiplas espécies.
Por ele a mente ascende do particular ao comum, e por sua via a razão estabelece os primeiros princípios de divisão.

O acidente (accidens) é o que pode estar ou não estar numa coisa, sem que ela deixe de ser o que é.
Por exemplo, “branco” e “sentado” são acidentes do homem: podem existir ou desaparecer sem alterar a essência.
O acidente pertence à ordem do contingente e do mutável; é aquilo que a natureza não exige, mas admite.

Essas quatro categorias são as fontes de toda a disputa dialética.
Pois toda proposição, seja afirmativa ou negativa, tem seu fundamento em alguma delas.
Quando dizemos “o homem é animal”, argumentamos pelo gênero; quando dizemos “o homem é risível”, argumentamos pelo próprio; quando dizemos “o homem é branco”, argumentamos pelo acidente; e quando dizemos “o homem é substância racional”, argumentamos pelo termo essencial.

A distinção entre essas quatro é a base da arte dos Tópicos, pois sem saber de onde procede cada argumento, não se pode avaliar seu valor.
O sofista confunde o próprio com o acidente, o gênero com o termo, e assim engana pela aparência de universalidade.
Mas o dialético distingue o que é da essência, o que é da propriedade, e o que é do acaso.

Por isso, Aristóteles inicia os Tópicos com esta quadripartição, para que o estudante aprenda não apenas a disputar, mas a conhecer o modo pelo qual cada coisa pode ser dita.
E, conhecendo-o, saiba também refutar o erro e sustentar o verdadeiro.

Logo, toda disputa dialética, por mais ampla que seja, não pode sair desses quatro limites — termo, próprio, gênero e acidente — porque tudo o que se pode afirmar está contido neles, como os quatro pontos cardeais encerram todo o espaço.


Nota filológica 1: Boécio segue aqui a tradição peripatética da quadripartição dos predicáveis, que Porfírio sistematizou na Isagoge e que Aristóteles já pressupunha nos Topica I, 9.
Nota filológica 2: A distinção entre proprium e accidens será posteriormente refinada na lógica escolástica, especialmente por Abelardo e Pedro Hispano, sob as fórmulas proprium inseparabile e accidens separabile.
Nota filológica 3: O paralelismo final (“como os quatro pontos cardeais encerram todo o espaço”) é um acréscimo estilístico de Boécio, ausente no texto grego, e reflete sua intenção pedagógica.

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CAPUT V — QUOD CAETERA PRAEDICATA ALIQUID CLAUDANT EORUM QUAE DEFINITIO CONTINET

Capítulo V — Que os demais predicados encerram algo do que a definição contém
(col. 918A–919C)

Toda definição contém em si os elementos essenciais da coisa, e os demais predicados — o gênero, o próprio e o acidente — encerram algo daquilo que a definição já abrange.
Pois, quando definimos, recolhemos o que é comum e necessário; e quando predicamos, distribuímos partes da mesma totalidade sob modos diversos.

Assim, o gênero contém o que há de comum na definição, o próprio o que dela decorre, e o acidente o que nela se pode encontrar por concomitância.
Nenhum deles, porém, é alheio à definição, porque todos têm alguma participação naquilo que ela significa.

De fato, o gênero é a base da definição, pois nela se coloca como matéria intelectual: ele dá o campo onde o espírito recorta a diferença.
O próprio é o vestígio da definição, pois dela procede por necessidade natural.
O acidente é a sombra da definição, porque acompanha a coisa sem pertencer à sua essência, mas sendo por ela sustentado.

Quando dizemos, por exemplo, “o homem é animal racional”, o gênero “animal” e a diferença “racional” compõem a definição.
Mas, se afirmamos “o homem é mortal” ou “o homem é risível”, tocamos propriedades que estão contidas implicitamente naquilo que a definição já encerra.
Pois, quem diz “racional” diz também “mortal”, uma vez que o ser racional, composto de alma e corpo, está sujeito à corrupção do corpo.

Assim, todo predicado legítimo se ancora na definição: uns direta e essencialmente, outros indiretamente e por consequência.
E, por isso, Aristóteles ensina que
a definição é o limite do conhecimento, enquanto os predicados são suas emanações.
Eles se relacionam à definição como os raios ao centro, que partem dela e nela se reúnem.

Convém, portanto, que o dialético saiba discernir o quanto cada predicado participa da definição.
Pois o erro comum é tomar o acidental por essencial e o próprio por definidor, confundindo assim os níveis da realidade.
Mas o filósofo deve observar a ordem do ser: a essência antes da propriedade, a propriedade antes do acidente.
Quem inverte essa ordem fala sem ciência, porque põe o posterior como fundamento do anterior.

Por isso, a arte dos Tópicos não é apenas uma arte de argumentar, mas de julgar o grau de essência em cada proposição.
Ela ensina a perceber, sob o véu das palavras, o quanto de definição há em cada predicado — e a ordenar o discurso segundo o grau de realidade que exprime.
Assim, falar corretamente é ordenar o ser pela linguagem.


Nota filológica 1: A doutrina aqui exposta deriva do Topica I, 9 (103b20–30), onde Aristóteles distingue os predicáveis conforme a extensão de sua participação na definição.
Nota filológica 2: A tripla metáfora boeciana — o gênero como “matéria”, o próprio como “vestígio” e o acidente como “sombra” — é peculiar ao estilo latino do autor e não se encontra no texto grego.
Nota filológica 3: A expressão “a definição é o limite do conhecimento” ecoa o princípio neoplatônico de que mensura est nexus entium et intellectus, segundo Proclo e Filopono.

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CAPUT VI — DE EODEM

Capítulo VI — Sobre o mesmo assunto
(col. 919C–920C)

Visto que todos os predicados derivam, em maior ou menor grau, da definição, é necessário compreender também como e em que medida cada um retém a forma do definido.
A definição, como já foi dito, é o círculo perfeito da essência; os demais predicados são suas secções e reflexos.
Assim como a luz, ao incidir sobre muitos corpos, conserva em cada um algo de sua unidade original, mas em graus diversos, assim também a essência se comunica aos seus predicados, de modo mais puro nos próximos, e mais obscuro nos remotos.

O termo essencial conserva toda a natureza do definido, porque o exprime em sua totalidade.
O
gênero conserva a parte material, o próprio a consequência necessária, o acidente apenas a aparência contingente.
Mas todos têm origem na mesma fonte, pois nada se pode predicar que não provenha, de algum modo, daquilo que a definição contém.

É por isso que o verdadeiro dialético deve saber discernir em que proporção um predicado participa da essência — se por necessidade, por propriedade ou por concomitância.
Essa distinção é o que impede o erro e fundamenta o raciocínio.
Pois quem toma o acidental como essencial destrói a ordem do discurso, e quem confunde o próprio com o gênero perde o grau de universalidade.

Além disso, Aristóteles chama o mesmo (idem) aquilo que se diz de uma coisa por identidade de natureza e não apenas de nome.
Por isso, embora muitas coisas possam ser ditas de uma mesma, nem todas são o mesmo no sentido próprio:
o nome pode ser comum, mas a essência permanece única.
Assim, “homem” e “animal racional” dizem o mesmo, porque a definição de um se contém no outro; mas “homem” e “mortal” não dizem o mesmo, pois a mortalidade não pertence à essência, mas ao efeito dela.

Logo, o estudo do idem pertence à dialética, pois ensina a reconhecer a unidade sob a multiplicidade dos nomes.
É ele que permite distinguir o que é dito per se do que é dito per accidens, e, portanto, o que pertence ao ser por sua própria forma e o que lhe sobrevém por circunstância.
Sem essa distinção, a linguagem torna-se um labirinto e o pensamento perde sua medida.

Assim, o “mesmo” não é o que se repete, mas o que permanece idêntico a si mesmo através da variação das palavras.
E é este princípio que sustenta toda a arte dos Tópicos: conhecer o grau de identidade entre o que se diz e o que é.
Pois quanto mais o discurso se aproxima da definição, mais verdadeiro ele é; quanto mais se afasta dela, mais desliza para a opinião.


Nota filológica 1: A noção de idem aqui apresentada é equivalente ao tauton aristotélico (Topica I, 7; Metaph. IV, 3), e serve como critério de identidade lógica.
Nota filológica 2: A hierarquia dos predicados por grau de participação na essência foi base para as distinções de Porfírio na Isagoge e, mais tarde, para a teoria tomista da analogia do ente.
Nota filológica 3: Boécio acrescenta aqui uma dimensão neoplatônica — a comparação da definição com a luz que se refrata — que não se encontra no texto grego, mas provém da tradição plotiniana.

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CAPUT VII — QUID PROPRIUM ET QUID NON PROPRIUM

Capítulo VII — O que é próprio e o que não é próprio
(col. 920C–922A)

O próprio (proprium) é aquilo que pertence a uma coisa somente a ela, e a todo o indivíduo dela, e que não pode ser separado sem destruição da natureza.
Três, portanto, são as condições do próprio: que seja
inseparável, que seja recíproco e que seja permanente.

É inseparável, porque não pode apartar-se sem corromper a essência;
é
recíproco, porque se predica de todos os indivíduos do mesmo modo que o definido;
é
permanente, porque o acompanha sempre, não por acaso, mas por natureza.

Por exemplo, ser capaz de rir é próprio do homem:
não entra na definição de homem, mas pertence-lhe exclusivamente, e em todos os tempos.
Pois não há homem que não seja naturalmente capaz de rir, e nenhum outro ser além do homem possui tal capacidade.
Assim, o riso não constitui o que o homem é, mas manifesta o que ele é por consequência de sua natureza racional.

Pelo contrário, o que não é próprio é o que pode ser predicado também de outros, ou o que não convém a todos os indivíduos da espécie, ou o que advém por acidente.
Assim, “branco” não é próprio do homem, porque também o cavalo pode ser branco, e nem todos os homens o são.
Nem “andar ereto” é próprio, pois embora pertença naturalmente ao homem, pode ser encontrado, em certo modo, em outros animais; além disso, há homens privados desse ato por enfermidade.

Logo, o próprio é o que se encontra entre o essencial e o acidental:
não é essência, pois dela procede;
não é acidente, pois dela depende.
É como a sombra necessária da forma: não é o corpo, mas não existe sem ele.

Os antigos lógicos chamaram o próprio de “propriedade inseparável”, e os posteriores distinguiram dois modos:
o
próprio universal, que pertence a todos os indivíduos da espécie (como ser risível ao homem);
e o
próprio parcial, que pertence à espécie enquanto tal, mas não a todos os seus indivíduos, por impedimento exterior (como saber falar, que é natural ao homem, ainda que nem todos o façam).

Convém, pois, ao dialético discernir esses modos, pois deles depende a exatidão da argumentação.
Quando se quer provar algo por meio do próprio, é necessário que o predicado se aplique
necessariamente e somente ao sujeito.
Caso contrário, o argumento será sofístico, porque atribuirá à essência o que pertence apenas por hábito ou disposição.

Por isso, Aristóteles ensina que os argumentos tomados do próprio são mais firmes do que os do acidente, mas inferiores aos do termo essencial.
Eles servem para confirmar a natureza das coisas por sinais necessários, enquanto os acidentes apenas indicam o que acontece na maioria dos casos.

Assim, o próprio é como o selo da essência na superfície das coisas, mostrando sua verdade por vestígio sensível.
Conhecer os próprios é, pois, conhecer as propriedades naturais — as quais revelam, em espelho, o que a definição contém em si.


Nota filológica 1: A definição tripla de proprium (inseparável, recíproco, permanente) provém do Topica I, 5 (102a18–25).
Nota filológica 2: Boécio distingue claramente proprium e accidens, distinção retomada depois por Abelardo (Dialectica, 4.2) e por Tomás de Aquino (In Posteriora Analytica, I, lect. 10).
Nota filológica 3: O exemplo do “risível” (risibile) já se encontra em Porfírio, Isagoge, §6, e foi retomado como exemplo paradigmático em toda a tradição escolástica.

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CAPUT VIII — DE DIFFERENTIIS

Capítulo VIII — Sobre as diferenças
(col. 922A–923C)

Depois de termos tratado do gênero e do próprio, convém falar agora da diferença, que é aquilo pelo qual uma coisa se distingue de outra no mesmo gênero.
Pois, se o gênero reúne o que é comum, a diferença separa o que é distinto.
Ela é o instrumento do intelecto para discernir as espécies, assim como o gênero é o instrumento para concebê-las.

A diferença (differentia) é, portanto, o que faz com que algo seja aquilo que é.
Sem ela, as espécies seriam confundidas; com ela, cada natureza adquire sua forma.
O gênero indica a matéria inteligível; a diferença, a forma; e, pela conjunção de ambos, nasce a definição.
Por isso, definir é determinar o gênero e acrescentar-lhe a diferença própria.

A diferença é chamada essencial quando pertence à constituição da coisa, e acidental quando a acompanha sem ser parte dela.
Assim, “racional” é diferença essencial do homem; “branco”, diferença acidental.
A diferença essencial constitui a espécie; a acidental apenas a modifica.
E, como o gênero é universal e a espécie particular, a diferença é o princípio da passagem do universal ao particular.

Toda diferença verdadeira deve ser tomada da natureza da coisa, e não do que lhe sucede externamente.
Pois, se dissermos que o homem difere do cavalo por ser “risonho”, diremos algo que procede da propriedade, não da essência.
Mas se dissermos que difere por ser “racional”, então expressamos a diferença própria que o constitui homem.
Por isso, Aristóteles exige que toda diferença seja
substantialiter diversa, não accidentaliter.

A diferença tem dupla função: dividir e constituir.
Divide quando separa as espécies dentro do gênero; constitui quando, unida ao gênero, forma a definição.
Assim, o gênero é o tronco comum, a diferença é o corte que forma os ramos, e a espécie é o fruto que nasce dessa divisão ordenada.

É ainda pela diferença que conhecemos a hierarquia dos seres.
Pois, quanto mais simples é a diferença, mais elevada é a natureza; quanto mais múltipla e composta, mais inferior e material.
O intelecto, portanto, busca as diferenças não apenas para classificar, mas para compreender a ordem do ser.
Conhecer as diferenças é conhecer os limites das essências.

O sofista, ignorando isso, confunde o diverso com o oposto e o semelhante com o idêntico.
Mas o verdadeiro dialético sabe que a diferença não é contrariedade, mas distinção segundo a forma.
A contrariedade está nas qualidades; a diferença, nas naturezas.
O oposto se destrói, o diferente se distingue.

Assim, todo o exercício da dialética consiste em discernir as diferenças — as essenciais, que pertencem à definição, e as acidentais, que pertencem à condição.
Quem ignora essas distinções fala ao acaso, e não por ciência; mas quem as domina, conhece a proporção que a mente mantém com o ser.

Logo, a diferença é o meio pelo qual o intelecto transforma o múltiplo em inteligível e o confuso em ordem.
Ela é a operação própria da razão, cuja função é dividir e unir: dividir para compreender, unir para definir.
Por isso, Aristóteles chama a diferença de “forma do pensamento”, pois ela é o gesto mesmo do intelecto que apreende a diversidade na unidade.


Nota filológica 1: Boécio traduz διαφορά como differentia, mantendo o duplo sentido de distinção formal e elemento definidor.
Nota filológica 2: A metáfora do gênero como matéria e da diferença como forma deriva de Topica I, 8 (103b5–20).
Nota filológica 3: O uso de “contrariedade” (contrarietas) para opor-se à “diferença” é característico do método boeciano e será retomado por Tomás em De ente et essentia, cap. II.

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CAPUT IX — OMNEM DISPUTATIONEM DIALECTICAM ESSE EX TERMINO, PROPRIO, GENERE AUT ACCIDENTE, ET UBI ILLA REPERIANTUR

Capítulo IX — Que toda disputa dialética procede do termo, do próprio, do gênero ou do acidente, e onde se encontram esses elementos
(col. 923C–925A)

Toda a disputa dialética, como ensina Aristóteles, procede de quatro fontes principais: do termo, do próprio, do gênero e do acidente.
Esses são os lugares dos argumentos (topoi), dos quais o raciocínio se alimenta e pelos quais o entendimento se move.
O termo é o ponto em que o discurso se fixa; o próprio, aquilo que pertence essencialmente à coisa; o gênero, o que contém a multiplicidade sob unidade; o acidente, o que se junta sem constituir a essência.

Quando o dialético quer arguir, ele deve buscar a sua proposição em um desses quatro campos.
Se a questão diz respeito à substância ou à definição, o argumento será tomado do gênero ou da diferença.
Se trata do que pertence necessariamente à coisa, recorrerá ao próprio.
Se o debate versa sobre o que lhe acontece por acaso, buscará o acidente.

Mas se a disputa é sobre o nome ou o modo de dizer, o termo será o campo adequado.
Pois há erros de raciocínio que nascem da confusão de palavras, não das coisas; e há disputas que se resolvem não pela definição do ente, mas pela precisão do vocábulo.
Assim, a dialética não é apenas o estudo das coisas, mas também o exame dos nomes.

Boécio observa que esses quatro lugares estão entre si em certa ordem: o gênero precede, pois contém as espécies; a diferença distingue; o próprio aperfeiçoa; o acidente completa.
O termo, por sua vez, é o instrumento comum a todos, pois sem palavra não há discurso.
E, como toda proposição se compõe de sujeito e predicado, o termo é o que serve de vínculo e expressão dessa composição.

É necessário, portanto, que o dialético saiba onde cada um desses lugares se encontra.
O gênero se encontra nas naturezas das coisas, o próprio nas propriedades inseparáveis, o acidente nas afeições que podem ser ou não ser, e o termo na linguagem com que o intelecto reveste o pensamento.
Assim, aquele que ignora a ordem dos lugares ignora o caminho da demonstração.

Toda disputa mal conduzida procede da confusão entre esses elementos: ou se toma o acidente por próprio, ou o termo por coisa, ou o gênero por diferença.
E disso nascem os sofismas e as contendas intermináveis, que mais excitam o engenho do que o instruem.
Mas o verdadeiro dialético, conhecendo os lugares de onde cada argumento procede, conduz o raciocínio como um arquiteto que sabe onde repousa cada pedra.

Assim, todo o edifício da dialética repousa nesses quatro fundamentos:

  1. O termo, que dá forma à expressão;
  2. O gênero, que confere unidade ao múltiplo;
  3. O próprio, que indica o que é necessário;
  4. O acidente, que mostra o que pode ser de outro modo.

Sem essa distinção, a mente oscila entre o ser e o parecer, e o discurso se perde em ambiguidade.
Mas, quando o dialético domina esses quatro lugares, ele domina a própria arte de pensar — pois saber de onde nasce cada proposição é saber a ordem da razão.


Nota 1: A divisão quádrupla vem de Topica I, 14 (105a–b), onde Aristóteles afirma que os argumentos se originam do gênero, do próprio, do acidente e da definição.
Nota 2: Boécio amplia essa doutrina ao incluir o “termo” como fundamento linguístico, antecipando a relação medieval entre dictio e res.
Nota 3: A distinção entre proprium e accidens reaparece na Isagoge e em De Differentiis Topicis, com a mesma estrutura de quatro loci.

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CAPUT X — DE ORDINE LOCORUM ET DE MODO ARGUMENTANDI EX HIS

Capítulo X — Sobre a ordem dos lugares e o modo de argumentar a partir deles
(col. 925A–926C)

Os lugares (loci) dos quais o dialético extrai seus argumentos não estão dispostos ao acaso, mas seguem uma ordem própria e necessária.
Pois assim como toda ciência se organiza segundo o grau de universalidade de seus princípios, também a dialética dispõe seus lugares segundo a dignidade do que é mais ou menos essencial.

O primeiro lugar pertence ao termo e à definição, porque estes contêm a natureza da coisa e determinam seu ser.
O segundo é o do
gênero, que abrange a multiplicidade sob a unidade.
O terceiro é o do
próprio, que manifesta os efeitos necessários da essência.
O quarto é o do
acidente, que encerra as afeições contingentes e variáveis.
E por último vem o
lugar do nome (nomen), que, embora não pertença à substância da coisa, é o meio pelo qual o intelecto a exprime.

A ordem desses lugares é a mesma que a do ser:
o termo representa a essência, o gênero a universalidade, o próprio a consequência, o acidente a mudança e o nome a expressão.
E, assim como o ser se comunica a todos em graus, também os argumentos se dispõem segundo esta hierarquia.

O modo de argumentar deve seguir essa ordem, para que o discurso não se inicie no que é posterior, nem conclua no que é anterior.
Quem começa pelo acidente sem conhecer o termo, discute o que flutua e ignora o fundamento.
Mas quem principia pelo termo e desce até o acidente, caminha do necessário ao possível, e não erra o caminho da razão.

Aristóteles ensina, portanto, que o método da dialética é mover-se do universal ao particular, isto é, do gênero ao próprio, do próprio ao acidente.
E, quando necessário, subir de novo ao universal, para confirmar pelo gênero o que foi percebido no singular.
Esse movimento de descida e subida é o ritmo natural do raciocínio: descer para aplicar, subir para compreender.

O verdadeiro dialético deve dominar esse ritmo, de modo que saiba onde começa o argumento e onde deve cessar.
Pois toda persuasão depende do lugar de onde se fala: o mesmo raciocínio, tirado do gênero, persuade como ciência; tirado do acidente, persuade apenas como opinião.
Quem ignora o lugar de seu argumento ignora também o valor de sua conclusão.

E como os lugares são quatro, há quatro modos de raciocinar:
do termo — por definição;
do gênero — por inclusão;
do próprio — por consequência;
do acidente — por semelhança.
Esses quatro modos abrangem toda a arte da dialética, e aquele que os conhece plenamente é capaz de disputar sobre qualquer matéria com ordem e prudência.

Portanto, o fim da dialética é ordenar o discurso conforme a ordem do ser.
E o erro dos sofistas é inverter essa ordem — fazendo o que é acidental parecer essencial, e o que é nome soar como substância.
Mas o sábio sabe que pensar é ordenar, e que toda desordem no pensamento é uma desordem no ser.


Nota filológica 1: A hierarquia dos lugares segue Topica II, 8 (113a18–b3), onde Aristóteles recomenda argumentar “segundo o mais universal”.
Nota filológica 2: A inclusão do locus nominis é peculiar a Boécio, que, ao traduzir o texto grego, amplia o escopo da dialética à linguagem.
Nota filológica 3: O paralelismo entre “ordem do ser” e “ordem do discurso” antecipa a estrutura tomista de ordo essendi e ordo cognoscendi.

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CAPUT XI — DE INSTRUMENTIS QUIBUS SYLLOGISMORUM COPIAM AD DISSERENDUM SUPPEDITAMUS

Capítulo XI — Dos instrumentos pelos quais fornecemos abundância de silogismos para a discussão
(col. 926C–928B)

Todo aquele que deseja ser proficiente na arte dialética não deve apenas conhecer os lugares de onde se tiram os argumentos, mas também possuir os instrumentos pelos quais os raciocínios se multiplicam e se ordenam. Pois o saber dos lugares é como a posse de materiais; mas a arte dos instrumentos é como o uso da ferramenta, sem o qual os materiais permanecem inúteis.

Esses instrumentos são chamados “tópicos” não apenas porque pertencem aos lugares, mas porque deles derivam a força para gerar raciocínios múltiplos e diversos. Pois assim como o artífice usa o mesmo martelo para muitos efeitos, o dialético, com os mesmos lugares, constrói diferentes silogismos.

O primeiro instrumento é a forma do silogismo, que estabelece de que modo duas proposições conduzem necessariamente a uma terceira.
O segundo é a
ordem das proposições, que determina qual delas será maior, qual menor e qual conclusão.
O terceiro é a
transposição dos termos, pela qual se vê como o mesmo argumento pode ser reconduzido a figuras diversas.
O quarto é a
multiplicação das premissas, pela qual se mostra de quantos modos o mesmo lugar pode ser aplicado a diferentes matérias.

Esses quatro instrumentos são como chaves da razão, abrindo os acessos por onde se passa da simples opinião ao discurso ordenado.
Pois quem conhece apenas o lugar, mas ignora a forma e a ordem, possui o material da ciência, mas não sua estrutura;
quem, ao contrário, domina o instrumento, mas não conhece o lugar, possui a forma vazia da arte, mas não o seu conteúdo.

O uso dos instrumentos deve seguir certa disciplina.
Primeiro, considerar a
qualidade da matéria sobre a qual se argumenta;
depois, escolher o
lugar apropriado;
em seguida, aplicar a
figura silogística conveniente;
e, por fim, ajustar o
modo de conclusão conforme o fim proposto — seja demonstrativo, seja persuasivo.

O erro comum dos que disputam é usar os instrumentos sem discernimento, confundindo o necessário com o provável, e o provável com o aparente.
Pois há instrumentos próprios à ciência, que produzem certeza; há outros próprios à opinião, que produzem verossimilhança;
e há ainda os da sofística, que produzem apenas aparência de verdade.
O sábio deve saber distinguir esses graus, para não converter a disputa em engano.

E como o número dos instrumentos é finito, mas o das matérias infinito, deve o dialético exercitar-se em reconduzir a variedade das coisas às poucas formas do raciocínio.
Dessa economia nasce a verdadeira abundância: não a de argumentos inúteis, mas a de argumentos bem ordenados.

Assim, a arte dos instrumentos é o que torna fecundo o engenho.
Pois não é a multidão de lugares que faz o dialético, mas a posse do método que de poucos tira muitos, e do simples extrai o múltiplo.
Daí o preceito antigo: “Não multipliques os argumentos, mas aperfeiçoa as formas.”

O fim, portanto, de toda essa doutrina é que o raciocínio seja ao mesmo tempo abundante e coerente — abundante pela diversidade dos lugares, coerente pela unidade do método.
E quando o método e o lugar se unem, nasce a eloquência filosófica, que é o discurso em que o intelecto move a palavra e a palavra obedece ao intelecto.

INTERPRETATIO TOPICORUM ARISTOTELIS

CAPUT XII — DE CAUTIONE CIRCA USUM LOCORUM ET INSTRUMENTORUM

Capítulo XII — Da cautela no uso dos lugares e dos instrumentos
(col. 928B–930A)

Depois de tratarmos dos instrumentos e da maneira de formar os silogismos, resta advertir sobre o uso prudente dos lugares e das formas de argumentar. Pois nada é mais perigoso à razão do que o abuso do que é verdadeiro, nem mais pernicioso à ciência do que o uso temerário do método.

O dialético deve saber que os lugares não são leis, mas meios; e que os instrumentos não são fins, mas auxílios. Quem toma o meio por fim inverte a ordem da sabedoria e converte a arte em jogo.
Assim como o médico, que confia demais no remédio e esquece a natureza, mata o paciente; o dialético, que confia demais na forma e esquece a verdade, destrói o pensamento.

É necessário, portanto, usar cautela nos lugares — para não aplicar o gênero onde convém o acidente, nem o próprio onde é preciso a diferença.
E também nos instrumentos — para não converter a figura em engano, nem o silogismo em sofisma.
A diferença entre o sábio e o sofista não está no instrumento que usa, mas no modo como o aplica.

Aristóteles ensina que os lugares devem ser usados secundum materiam — isto é, conforme a natureza da questão.
Se a questão é de essência, o lugar do gênero e da diferença deve ser escolhido;
se é de propriedade, o do próprio;
se é de contingência, o do acidente.
Usar um lugar em matéria que não lhe pertence é cometer erro de método e de juízo.

Além disso, deve-se evitar o excesso de argumentação, que obscurece o verdadeiro.
Pois o discurso que multiplica razões sem medida perde a força da razão e se converte em ruído.
É melhor um argumento bem fundado em um lugar certo do que muitos raciocínios vagos e confusos.

O bom uso dos lugares é o que mantém a dialética próxima da verdade e a afasta da contenda.
O sofista busca vencer; o dialético, compreender.
O primeiro usa os lugares como armas; o segundo, como pontes.
Por isso, o dialético prudente sabe quando deve empregar o instrumento e quando deve calá-lo.

E é esta a cautela que Boécio recomenda: que não se confunda a arte com a sabedoria.
Pois a arte dá forma ao pensamento, mas só a sabedoria lhe dá direção.
E como toda forma sem direção é vazia, também todo argumento sem reta intenção é vão.

Assim, a verdadeira prudência dialética consiste em submeter o instrumento à razão e a razão à verdade.
E o sinal de quem alcançou o domínio da arte é usar o mínimo possível de palavras para dizer o máximo de realidade.


Nota filológica 1: O termo cautio em Boécio tem sentido técnico, próximo do grego πιμέλεια — cuidado racional, não mera prudência moral.
Nota filológica 2: A oposição entre dialecticus e sophista remete a Topica VIII, 14 (163b1–9).
Nota filológica 3: A metáfora médica do mau uso dos remédios é original de Boécio e ecoa em Abelardo, Dialectica, cap. I.

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CAPUT XIII — DE UTILITATE ET FINE TOTIUS ARTIS DIALECTICAE

Capítulo XIII — Da utilidade e do fim de toda a arte dialética
(col. 930A–931C)

Toda arte deve ser considerada segundo sua utilidade e seu fim.
A utilidade pertence ao uso; o fim, à perfeição.
A dialética, como arte racional, tem por utilidade ordenar o discurso e por fim conduzir o espírito à verdade.

Com efeito, a dialética é o caminho comum por onde passam todas as ciências, pois nenhuma delas pode proceder sem definição, distinção e argumento.
Assim como o corpo não pode mover-se sem articulação, o pensamento não pode mover-se sem dialética.
Ela é o instrumento universal da razão, não por conter todas as verdades, mas por indicar o modo de alcançá-las.

A utilidade da dialética manifesta-se em três ordens:

  1. Na vida contemplativa, porque ela purifica o intelecto da confusão e o dirige à intelecção do ser;
  2. Na vida ativa, porque ensina a ordenar o juízo e a refutar o erro;
  3. Na vida civil, porque modera a linguagem e conduz as disputas à razão.

Sem dialética, a filosofia seria muda, a ciência cega e a eloquência desordenada.
Pois é ela que une o logos à verdade, o verbo ao intelecto, a palavra ao ser.
E como o olho, ao ver, distingue as cores, assim a mente, pela dialética, distingue os conceitos.

O fim da dialética, porém, é mais alto: não consiste apenas em vencer o adversário ou resolver a dúvida, mas em formar o intelecto para a verdade.
Por isso Aristóteles a chama de instrumentum ad veritatem e Platão, de via ad scientiam.
Aquele que domina a dialética não é apenas hábil em disputar, mas é senhor do pensamento, porque sabe medir o grau de certeza que cada coisa admite.

Há quem use a dialética para enganar, e estes são sofistas;
há quem a use para instruir, e estes são filósofos.
O mesmo instrumento serve a ambos, mas o fim os distingue: um busca o triunfo, o outro a verdade.
E assim como a lâmina serve tanto ao assassino quanto ao cirurgião, a dialética serve tanto à mentira quanto à ciência — mas a justiça está no uso, não no instrumento.

O verdadeiro fim da dialética é reconciliar o discurso com o ser.
Ela faz com que o que se diz corresponda ao que é, e que o pensamento reflita a ordem das coisas.
Dessa correspondência nasce a sabedoria, que é o repouso da razão no real.

Portanto, quem busca o bem da alma deve usar a dialética como meio, não como fim.
Usá-la para vencer é próprio do sofista; usá-la para compreender é próprio do sábio.
E quando o discurso alcança a verdade, a arte se consuma, e o pensamento repousa em seu termo.


Nota filológica 1: O conceito de instrumentum ad veritatem é formulação boeciana da ideia aristotélica de que a dialética serve de preparação à ciência (Topica, I, 2).
Nota filológica 2: A tríplice utilidade — contemplativa, ativa e civil — reaparece em João de Salisbury (Metalogicon, I, 2) como herança direta de Boécio.
Nota filológica 3: O paralelismo entre o olho e o intelecto é reminiscência do Fedro de Platão, 247c, transmitido pela tradição neoplatônica latina.

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CAPUT XIV — CONCLUSIO TOTIUS OPERIS

Capítulo XIV — Conclusão de toda a obra
(col. 931C–932B)

Tendo, pois, sido exposta a origem, o uso e o fim de toda esta arte, resta concluir brevemente o que foi dito.

Toda doutrina se completa quando o que se iniciou pela utilidade termina na sabedoria. Assim também a dialética, começando pela ordem das palavras e dos argumentos, termina na contemplação das causas e na visão do verdadeiro.

Esta arte é como uma escada: os primeiros degraus são os nomes e as definições, os médios são os lugares e os argumentos, o último é a inteligência que descansa na verdade.
Quem nela se detém apenas nos degraus inferiores, conhece a arte, mas ignora a sabedoria;
quem nela sobe até o cume, converte a arte em virtude, e o discurso em visão.

Pois o fim da dialética não é falar, mas compreender; não é vencer, mas unir-se àquilo que é.
E quando o intelecto, purificado pela forma do raciocínio, toca o real, então o discurso cala — e o silêncio se torna mais verdadeiro que a palavra.

Assim se consuma o labor desta obra, que não pretendeu ensinar tudo, mas mostrar o caminho para tudo conhecer.
Pois quem sabe investigar, facilmente saberá aprender; e quem aprendeu a ordenar o discurso, aprenderá a ordenar a alma.

Portanto, àquele que deseja verdadeiramente filosofar, nada é mais necessário do que a arte dialética — não porque encerre o saber, mas porque o inicia.
Ela é a mãe das ciências, a guardiã do juízo e a mediadora entre a palavra e o ser.
Sem ela, o discurso se dissolve; com ela, o pensamento se torna forma viva.

E assim, como o sol que ao nascer ilumina o mundo visível, a dialética, ao surgir, ilumina o mundo do entendimento.
Por meio dela o homem volta-se do erro à verdade, das sombras às essências, da disputa à contemplação.
Por isso, quem dela se serve para o bem, faz-se companheiro da sabedoria; quem dela abusa, escravo da vaidade.

Concluamos, pois, com gratidão, lembrando que a arte é dom do engenho, mas a verdade é dom de Deus.
E se a arte pode conduzir ao limiar da verdade, é Deus quem abre a porta.


Nota filológica 1: O fechamento ecoa a tradição neoplatônica — a dialética como ascensão da alma ao Uno (Plotino, Enéadas, VI, 9, 11).
Nota filológica 2: A fórmula ars est scala ad veritatem é expressão típica da escola boeciana, posteriormente retomada por Alcuíno e Abelardo.
Nota filológica 3: A conclusão do tratado coincide com a síntese pedagógica do corpus lógico de Boécio — instrumento para o intelecto, não substituto da sabedoria.

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

ÍNDICE BILÍNGUE (Elenchus)

Liber Primus — Livro Primeiro

1.      Caput I — Quid intendit, et aliquem syllogismum sophisticum esse
O que Aristóteles entende e o que faz com que um silogismo seja sofístico.

2.      Caput II — De generibus disputationum
Dos gêneros de disputação.

3.      Caput III — Fines sophistae, et loci sophisticae in dictione
Os fins do sofista e os lugares sofísticos na expressão.

4.      Caput IV — De locis redargutionum sophisticarum extra dictionem
Dos lugares das refutações sofísticas fora da expressão.

5.      Caput V — Omnes sophisticas redargutiones ad ignorantiam redargutionis revocari
Todas as refutações sofísticas reduzem-se à ignorância da refutação.

6.      Caput VI — Causae deceptionum
As causas dos enganos.

7.      Caput VII — Ex quibus locis captiones falsae
De quais lugares procedem as falsas capturas (falácias).

8.      Caput VIII — De veris et falsis redargutionibus
Das refutações verdadeiras e falsas.

9.      Caput IX — Orationes ad nomen et ad intellectum non bene diduci
Que os discursos acerca do nome e do intelecto não são bem distinguidos.

10.  Caput X — De interrogatione tentativae, et quid inter contentiosum sophisticumque intersit
Da interrogação tentativa e da diferença entre o contendente e o sofista.

11.  Caput XI — Orationes dialecticorum tentativorumque non esse ad determinatum genus
Que os discursos dos dialéticos e tentativos não pertencem a um gênero determinado.

12.  Caput XII — Loci sophisticae interrogationis ad falsum aut inopinabile
Os lugares das interrogações sofísticas voltadas ao falso ou ao inopinável.

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT I — QUID INTENDIT, ET ALIQUEM SYLLOGISMUM SOPHISTICUM ESSE

Capítulo I — O que Aristóteles intenta e o que faz com que um silogismo seja sofístico
(col. 1007A–1009B)

Aristóteles inicia o tratado sobre as refutações sofísticas com o mesmo propósito com que compôs os demais escritos lógicos: purificar o intelecto dos enganos que se disfarçam de ciência. Pois assim como o verdadeiro silogismo leva ao conhecimento, o sofístico conduz à opinião falsa, mantendo contudo a aparência do verdadeiro.

O autor declara, pois, que seu intento é mostrar de onde nascem as refutações sofísticas e como podem ser reconhecidas. Pois o sofista, diferentemente do filósofo, não busca o ser das coisas, mas a vitória no discurso. E é por isso que a dialética, quando degenerada em sofisma, torna-se o contrário de si mesma — não instrumento de verdade, mas de ilusão.

Um silogismo sofístico é aquele que conserva a forma do raciocínio, mas perde a retidão da matéria.
É silogismo, porque procede por premissas e conclusão; mas é sofístico, porque suas premissas parecem verdadeiras, sem o serem.
Assim como o ouro falso reluz ao olhar, mas se consome ao toque, assim o raciocínio sofístico seduz pela forma, mas desfaz-se quando tocado pela razão.

Aristóteles distingue aqui dois modos de engano: na linguagem e nas coisas.
O engano na linguagem ocorre quando a falsidade nasce do modo de dizer, e não do que é dito — como quando se toma o mesmo termo em diversos sentidos ou se confunde o nome com a definição.
O engano nas coisas, porém, nasce da própria matéria da proposição — quando o discurso, ainda que bem dito, versa sobre algo falso ou impossível.

O filósofo, portanto, quer mostrar que as refutações sofísticas não são simples erros, mas imitações do raciocínio verdadeiro.
O sofista não erra por ignorância apenas, mas por cálculo: conhece o modo de persuadir e o usa para vencer, não para compreender.
E como toda arte se perverte quando abandona seu fim, assim a dialética se corrompe quando serve à vaidade.

A razão humana, diz Boécio, é suscetível de engano porque ama a ordem e confia na forma.
Por isso, o sofista constrói seus discursos com aparência de método, sabendo que o intelecto, ao ver forma, presume verdade.
É o vício da alma que ama mais o brilho da forma do que a substância da verdade.

Todo silogismo sofístico pode, pois, ser reduzido a um de dois defeitos:
ou
à falsidade das premissas, ou à ambiguidade dos termos.
E, como o próprio Aristóteles ensina, não há sofisma que não se possa dissolver pela distinção, pois a distinção é a medicina do erro.

O fim desta arte é, portanto, duplo:
— descobrir como o falso pode parecer verdadeiro;
— ensinar como desfazer tal aparência.
E o que se aprende, diz Boécio, não é o engano, mas a defesa contra ele. Pois quem conhece o engano em sua forma mais sutil torna-se invulnerável a ele.

Assim, este primeiro livro tem como intenção desmascarar o sofista, e ensinar o filósofo a distinguir entre o argumento que persuade e o argumento que demonstra.
O primeiro busca o ouvido; o segundo, o intelecto.
O sofista vive do som; o filósofo, da substância.

Portanto, todo sofisma é um espelho de prata embaciado: reflete o intelecto, mas o deforma.
E o ofício da dialética, quando reta, é limpar esse espelho, para que o pensamento veja o que é, e não apenas o que parece.


Nota filológica 1: A distinção entre “erro de linguagem” (in dictione) e “erro de coisa” (extra dictionem) segue fielmente Sophistici Elenchi, 166b20–167a4.
Nota filológica 2: Boécio retoma aqui a definição peripatética de sophisma como falsum sub specie veri — “falso sob a aparência do verdadeiro”.
Nota filológica 3: O contraste entre o sofista que busca o ouvido e o filósofo que busca o intelecto é paralelismo deliberado com De Interpretatione, cap. I (16a3–8).

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CAPUT II — DE GENERIBUS DISPUTATIONUM

Capítulo II — Dos gêneros de disputação
(col. 1009B–1011A)

Toda disputa se ordena conforme o fim a que se propõe. E porque os fins são diversos, também o são os gêneros de disputação. Aristóteles distingue quatro gêneros principais: o didático, o dialético, o sofístico e o erístico.

O didático (doctrinalis) é aquele que busca instruir, não vencer. Seu propósito é comunicar a verdade a quem ignora, conduzindo o intelecto do desconhecido ao conhecido. Nele, o mestre fala por ciência, e o discípulo ouve por fé racional. A vitória consiste em compreender, não em refutar.

O dialético (dialecticus) tem por fim investigar o verossímil, não o necessário. Ele não parte de princípios certos, mas de opiniões prováveis (probabilia). Seu objetivo é exercitar a razão, provando o que parece mais verdadeiro entre contrários. Ele é o meio termo entre a ciência e a ignorância: não possui o saber, mas sabe buscá-lo.

O sofístico (sophisticus) imita o dialético, mas com intenção corrompida. Pois enquanto o dialético raciocina para descobrir, o sofista raciocina para enganar. Ambos usam as mesmas formas, mas com fins opostos: o primeiro ama a verdade, o segundo, a aparência da vitória. O sofista é, pois, o simulacro do sábio — imitação de sabedoria sem substância.

O erístico (eristicus) é o que disputa apenas por contenda e cólera. Não se preocupa nem com a verdade nem com a aparência dela, mas apenas em contradizer. É o mais inferior de todos, pois nele a razão serve à paixão.
Enquanto o sofista engana por astúcia, o erístico combate por ira. Um engana para parecer sábio; o outro, para parecer forte.

Esses quatro gêneros abrangem todas as formas de disputa, desde a que conduz à ciência até a que desce à mentira.
O didático é a forma perfeita da razão; o dialético, o seu exercício; o sofístico, a sua corrupção; o erístico, a sua ruína.
E, por isso, Aristóteles põe a dialética no meio: entre o saber e a ignorância, entre a luz e a sombra.

O filósofo que ignora essa distinção confunde os gêneros e toma o sofista por sábio, o erístico por dialético, o dialético por mestre.
Mas quem conhece o fim de cada gênero reconhece logo a intenção do discurso:
— o didático fala com serenidade;
— o dialético, com método;
— o sofista, com artifício;
— o erístico, com raiva.

O estudo das refutações sofísticas, portanto, tem por finalidade ensinar a discernir o gênero de cada disputa.
Pois, enquanto o sofista disfarça o erro com semelhança de forma, o filósofo distingue pela ordem do fim.
E como o fim é a medida da ação, conhecer o fim é conhecer a natureza do agente.

Assim, toda refutação verdadeira pertence ao gênero dialético, e toda refutação aparente ao gênero sofístico.
E quem confunde ambos, perde o critério da verdade e converte o exercício da razão em espetáculo de palavras.


Nota filológica 1: A quádrupla distinção dos gêneros de disputa deriva de Sophistici Elenchi, 165a38–166b15.
Nota filológica 2: A oposição entre dialecticus e eristicus é retomada por Boécio a partir de Platão, Euthydemus, 272b–c.
Nota filológica 3: O paralelismo “didático–dialético–sofístico–erístico” será base da classificação das disputas em Abelardo e João de Salisbury.

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CAPUT III — FINES SOPHISTAE, ET LOCI SOPHISTICAE IN DICTIONE

Capítulo III — Os fins do sofista e os lugares sofísticos na expressão
(col. 1011A–1013C)

O sofista, segundo Aristóteles, difere do filósofo pelo fim a que tende.
Pois enquanto o filósofo busca a verdade, o sofista busca a aparência da verdade;
e o que o filósofo investiga por amor da sabedoria, o sofista procura por lucro, glória ou contenda.
Assim, como há quem use a arte médica para curar e quem a use para matar, também há quem use a razão para conhecer e quem a use para enganar.

O fim do sofista é, pois, parecer sábio sem o ser.
Por isso, ele não escolhe as matérias pelas quais se pode alcançar o verdadeiro, mas aquelas pelas quais se pode parecer convincente.
Seu interesse está no auditório, não na substância das coisas.
O filósofo fala para instruir; o sofista, para vencer; o retórico, para agradar.

Há três fins principais da sofística:

  1. A glória da vitória, que é o mais comum entre os homens ambiciosos;
  2. O lucro do engano, que é próprio dos que mercadejam com a palavra;
  3. O deleite do discurso, que pertence aos que tomam prazer em confundir.

Esses três fins produzem três vícios na razão: vaidade, malícia e futilidade.
A vaidade engana o próprio sofista, a malícia engana o outro, e a futilidade engana a ambos.

Quanto aos lugares sofísticos na expressão (in dictione), Aristóteles mostra que os erros de linguagem são as armadilhas mais sutis, porque se escondem sob o véu das palavras.
Eles não dependem do que se pensa, mas do que se diz.
Assim, o sofista manipula os signos, torce os nomes, e mistura os modos de significar, de modo que o discurso, embora correto na forma, seja falso no sentido.

Esses enganos, diz Boécio, são sete:

  1. Equívoco (aequivocatio) — quando o mesmo nome é usado para coisas diversas;
  2. Anfibolia — quando a construção da frase permite mais de um sentido;
  3. Composição — quando se une o que deve ser separado;
  4. Divisão — quando se separa o que deve ser unido;
  5. Acento — quando a mudança de tom altera o significado;
  6. Figura de expressão — quando a forma verbal engana o sentido;
  7. Forma de enunciação — quando a ordem das palavras inverte a intenção.

Todos esses pertencem à categoria dos enganos na linguagem (in dictione), pois nascem não das coisas, mas das palavras.
E porque o discurso humano é o veículo da razão, quem corrompe a palavra corrompe também o juízo.

O sofista, portanto, não é apenas o que mente, mas o que faz da linguagem o instrumento da mentira.
E, como diz Boécio, “nada é mais terrível que uma mentira bem dita”, porque a eloquência dá corpo ao erro e o reveste de autoridade.

O filósofo deve, pois, conhecer esses lugares, não para usá-los, mas para se defender deles.
Pois o mesmo caminho que conduz ao erro conduz também à verdade, quando se caminha em sentido inverso.
Saber refutar é saber pensar ao contrário do sofista.

Eis por que Aristóteles quis que, antes de aprender as ciências, se aprendesse a reconhecer os sofismas:
para que o intelecto, antes de crer, soubesse discernir,
e, antes de afirmar, soubesse purificar.


Nota filológica 1: A lista das sete fallaciae in dictione segue Sophistici Elenchi 165b26–166b25.
Nota filológica 2: O triplo fim do sofista (gloria, lucrum, voluptas) é fórmula boeciana que reaparece em De Differentiis Topicis, lib. IV, cap. 2.
Nota filológica 3: A expressão mentiri bene (mentir bem) é reminiscência estoica citada por Boécio como ironia filosófica: o erro dito com arte é o mais perigoso.

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CAPUT IV — DE LOCIS REDARGUTIONUM SOPHISTICARUM EXTRA DICTIONEM

Capítulo IV — Dos lugares das refutações sofísticas fora da expressão
(col. 1013C–1015B)

Depois de tratar dos enganos que nascem das palavras, Aristóteles passa a considerar aqueles que se originam fora da linguagem, isto é, nas próprias coisas significadas.
Esses enganos são mais profundos, porque não dependem da ambiguidade do som, mas do erro do juízo.
O sofista, aqui, não corrompe o verbo, mas a coisa; não distorce a expressão, mas o pensamento.

Há, segundo Aristóteles, sete lugares principais de refutação sofística fora da expressão (extra dictionem):

  1. Do acidente (ab accidente) — quando se toma o que é acidental como se fosse essencial.
    Assim, porque o homem que é músico é homem, alguém conclui que todo homem é músico.
    O erro nasce da confusão entre o que acompanha e o que constitui.
  2. Do secundum quid e simpliciter (a secundum quid ad simpliciter) — quando se passa do que é verdadeiro sob certo aspecto para o que é falso em sentido absoluto.
    Por exemplo, o corpo é visível; logo, a alma, sendo forma do corpo, também o seria.
    O sofista confunde o relativo com o absoluto, o condicional com o essencial.
  3. Do consequente (a consequenti) — quando se toma como causa aquilo que apenas sucede.
    O sofista vê duas coisas ligadas e pensa que uma engendra a outra.
    É o vício da mente que confunde ordem com causalidade.
  4. Da petição de princípio (petitio principii) — quando a conclusão já está contida nas premissas.
    Aqui o raciocínio parece completo, mas gira sobre si mesmo, como uma serpente que morde o próprio rabo.
    É a aparência do movimento, sem avanço do intelecto.
  5. Da ignorância do refutar (ignoratio elenchi) — quando se refuta não o que foi proposto, mas outra coisa semelhante.
    O sofista, incapaz de atingir o núcleo, fere apenas a sombra do argumento, e se gloria como vencedor.
  6. Da causa não causa (non causa pro causa) — quando se atribui um efeito a algo que não o produz.
    É o erro mais perigoso na ciência, pois multiplica falsas explicações sob aparência de método.
  7. Da multiplicidade de questões (plurium interrogationum) — quando se faz uma só pergunta que contém muitas.
    Assim, quem responde “sim” a uma pergunta composta é forçado a conceder o que não concederia se cada parte fosse examinada separadamente.

Todos esses enganos pertencem ao campo das coisas, não das palavras.
O sofista, portanto, não usa mais o véu da linguagem, mas o labirinto do raciocínio.
Sua força não está no som, mas na ordem aparente das causas e consequências.

Boécio observa que os enganos extra dictionem são os mais perigosos, porque se apresentam como filosofia.
O erro verbal denuncia-se pela forma; o erro real, porém, esconde-se sob a aparência de verdade racional.
Por isso, quem não distingue as causas, confunde o verdadeiro com o verossímil, e o necessário com o acidental.

A medicina contra tais enganos é o método da distinção e da causa formal.
Distinguindo o que é dito sob condição, e investigando o que é dito por essência, o intelecto reconduz o falso ao seu lugar.
Toda refutação sofística dissolve-se, portanto, pela ciência das causas e pela hierarquia dos modos do ser.

Assim, o filósofo vence o sofista não pela eloquência, mas pela ordem do intelecto.
O sofista opera na superfície; o filósofo penetra até a substância.
E enquanto aquele vence nas praças, este vence no silêncio.


Nota filológica 1: As sete fallaciae extra dictionem correspondem a Sophistici Elenchi 167a1–168b28.
Nota filológica 2: Boécio segue a ordem peripatética clássica, mas adiciona glosa sobre a petitio principii, ausente em alguns manuscritos gregos.
Nota filológica 3: A distinção entre aparência de forma (forma sermonis) e aparência de causa (forma rationis) reaparece em De Differentiis Topicis, lib. IV.

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CAPUT V — DE CAUSIS ERRORUM IN DISPUTATIONIBUS ET DE PRAESIDIIS CONTRA EAS

Capítulo V — Das causas dos erros nas disputas e dos remédios contra eles
(col. 1015B–1018A)

Depois de distinguir os lugares onde nascem as refutações sofísticas, Aristóteles ensina a investigar as causas de tais enganos, para que o homem de razão não apenas os reconheça, mas saiba resistir-lhes.
Pois conhecer o erro é parte da ciência, mas curá-lo é parte da sabedoria.

Toda falácia nasce de duas causas principais: ou da semelhança que engana o intelecto, ou da precipitação que impede o juízo.
A semelhança faz parecer o falso como verdadeiro; a precipitação impede distinguir o verdadeiro do falso.
Assim, o erro é o filho da aparência e da pressa — daquilo que seduz o olhar e daquilo que impede a visão.

Aristóteles distingue quatro fontes de engano:

  1. A falta de distinção entre o universal e o particular.
    O sofista fala de todos quando o argumento vale apenas para alguns, e de alguns quando convém a todos.
    É o vício de quem confunde a ordem da quantidade com a da essência.
  2. A confusão entre os modos do ser e os modos do dizer.
    Muitos julgam que, porque duas palavras se assemelham, também o são as coisas.
    Mas a semelhança verbal é sombra da semelhança real, não sua substância.
    O sofista abusa disso, explorando o amor natural da mente pela harmonia dos sons.
  3. A ignorância das causas.
    Quem ignora a causa confunde o efeito com o princípio, o consequente com o antecedente.
    E o erro que nasce da ignorância é tanto mais firme quanto mais engenhosa a explicação.
  4. O desejo de vitória.
    Quando o intelecto se submete à paixão, o juízo deixa de buscar o verdadeiro e passa a servir à vontade.
    E onde há vontade de vencer, não há amor à verdade.

Dessas quatro fontes provêm todas as formas de disputa viciosa.
Pois o erro não vem apenas da falta de saber, mas do abuso do saber.
E o que mais se perde na disputa não é a razão, mas a retidão da intenção.

Os remédios contra tais erros são três:

  1. O hábito da distinção — para separar o nome da coisa, o universal do singular, o modo do ser do modo do dizer;
  2. O exame das causas — para não admitir o efeito sem seu princípio;
  3. A pureza da intenção — para buscar a verdade, não o triunfo.

Boécio acrescenta que o verdadeiro filósofo não teme ser vencido, porque prefere perder a vitória a perder a verdade.
O sofista, ao contrário, prefere vencer com erro a ceder com razão.
Por isso, a disputa revela mais o coração do que o intelecto: o filósofo fala para iluminar, o sofista para dominar.

Toda defesa contra o sofisma, diz Boécio, é uma espécie de ascese da razão.
Pois resistir ao engano é o mesmo que purificar o intelecto;
e aquele que vence uma falácia vence também uma tentação.
A mente que se exercita na verdade torna-se forte como o corpo que se exercita na virtude.

Portanto, o fim desta doutrina não é apenas refutar o erro, mas educar o intelecto.
Pois o conhecimento do falso é como a sombra que revela o contorno do verdadeiro;
e quanto mais claramente se vê a sombra, mais nitidamente se distingue a luz.


Nota filológica 1: O binômio similitudo e praecipitatio é formulação própria de Boécio, inspirada em Sophistici Elenchi, 169a12–b5.
Nota filológica 2: A expressão “erro filho da aparência e da pressa” é glosa latina de περ
τν φαινομένων ταχέως — “das coisas que parecem por impulso”.
Nota filológica 3: A tríplice terapia — distinção, causa e intenção — ecoa o método tripartido do Organon e prenuncia a ética do intelecto em Tomás de Aquino (In Boethium de Trinitate, q. 5).

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT VI — EX QUIBUS LOCIS CAPTIONES FALSAE ORIUNTUR

Capítulo VI — De quais lugares procedem as falsas capturas
(col. 1018A–1020C)

Tendo mostrado as causas gerais dos erros, Aristóteles ensina agora de onde nascem as falsas capturas, isto é, de quais lugares o sofista costuma tirar o que parece argumento, mas é apenas aparência.
Essas capturas (captiones) são chamadas assim porque apanham o intelecto como a rede apanha o peixe: pela forma, não pela substância.

As falsas capturas procedem de cinco lugares principais:

  1. Do gênero (a genere), quando se transfere para uma espécie o que convém apenas ao gênero.
    Assim, quem diz que “toda substância é corpo” erra por ignorar que o gênero “substância” inclui também o espiritual.
    O sofista aqui confunde o continente com o contido, tomando o universal como medida do particular.
  2. Da definição (a definitione), quando se usa a definição de modo imperfeito ou se confunde o definido com o definidor.
    Exemplo: “O homem é animal racional; logo, toda racionalidade é humana.”
    É um erro de inversão, que toma o atributo essencial por sujeito absoluto.
  3. Do acidente (ab accidente), quando se julga que o que acontece por acaso acontece por natureza.
    Assim, porque o sábio fala bem, conclui-se que quem fala bem é sábio.
    É a troca da causa pelo efeito acidental.
  4. Do consequente (a consequenti), quando se toma o que segue como o que precede.
    Por exemplo, “se há luz, é dia; há luz, logo é dia” — falso, porque a luz pode vir de outra causa.
    O sofista move-se sempre do possível ao necessário, violando a ordem da causalidade.
  5. Da forma do discurso (a forma sermonis), quando o erro nasce não das coisas, mas do modo de ordená-las.
    A frase é verdadeira em partes, mas falsa no todo; o raciocínio é válido na figura, mas falso na matéria.
    Esse é o engano mais sutil, pois o intelecto se entrega à beleza da forma antes de examinar a verdade do conteúdo.

Todos esses lugares são raízes da aparência dialética.
O sofista os conhece bem e deles tira sua força, porque o erro, como a sombra, vive da forma da luz.
A falsidade não pode subsistir sem a semelhança do verdadeiro.

Boécio observa que a arte sofística é uma ciência da imitação.
Ela imita o método da filosofia, mas inverte seu fim.
Assim como o espelho reproduz a figura invertida, o sofisma reproduz a razão com sinal contrário.
E é por isso que o sofista parece sábio aos ignorantes: porque reflete a sabedoria de modo especular.

O filósofo, para não ser enganado, deve aprender a reconhecer o rastro da falsificação — pois o erro sempre deixa um vestígio, mesmo quando imita o verdadeiro.
Esse vestígio é a incoerência entre o termo e o fim: o discurso sofístico começa como filosofia e termina como vaidade.

A verdadeira refutação não se faz pela força das palavras, mas pela clareza da distinção.
E quem conhece os lugares dos enganos conhece também os caminhos da verdade, porque toda sombra indica uma fonte de luz.


Nota filológica 1: O termo captio traduz o grego σόφισμα em seu aspecto pejorativo de “armadilha do intelecto”.
Nota filológica 2: As cinco origens aqui apresentadas correspondem a Sophistici Elenchi, 171b10–173a3.
Nota filológica 3: A metáfora do espelho invertido é formulação exclusiva de Boécio, retomada em De Differentiis Topicis, lib. IV, cap. 3, como “speculum rationis perversa”.

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT VII — DE VERIS ET FALSIS REDARGUTIONIBUS

Capítulo VII — Das refutações verdadeiras e falsas
(col. 1020C–1023A)

A refutação (redargutio), segundo Aristóteles, é um discurso que demonstra o contrário da proposição sustentada, e faz ver que ela não pode permanecer verdadeira.
Mas há refutações verdadeiras e refutações falsas — as primeiras pertencem à ciência, as segundas à sofística.
Ambas se assemelham pela forma, diferem pela intenção e pela matéria.

A refutação verdadeira nasce de premissas verdadeiras e necessárias, e conduz à correção do intelecto.
A refutação falsa, porém, nasce de premissas aparentes, e visa apenas confundir o adversário.
A primeira purifica; a segunda perturba.
E assim como o médico e o envenenador usam os mesmos instrumentos, mas com fins opostos, assim o filósofo e o sofista empregam a mesma dialética, mas para efeitos contrários.

O critério que distingue a refutação verdadeira da falsa é a conformidade com o princípio.
A verdadeira refutação é aquela que parte de princípios admitidos por ambas as partes e conserva a ordem da conclusão;
a falsa é a que altera os termos, muda os sentidos ou ignora o ponto principal.
Em suma, a refutação falsa parece vencer, mas não toca o erro; a verdadeira parece ceder, mas remove a raiz do engano.

O sofista busca a refutação falsa por três motivos:

  1. Para parecer sábio, mostrando-se hábil no uso das formas do raciocínio;
  2. Para calar o outro, impondo-lhe silêncio pela confusão;
  3. Para vencer a disputa, mesmo sem compreender o que diz.

O filósofo, ao contrário, usa a refutação verdadeira:

  1. Para provar a verdade, distinguindo o certo do duvidoso;
  2. Para corrigir o erro, não o homem;
  3. Para aperfeiçoar o intelecto, conduzindo-o do verossímil ao necessário.

Boécio observa que a refutação verdadeira é obra da caridade intelectual, enquanto a falsa é obra da inveja racional.
A primeira ilumina, a segunda obscurece.
E assim como o sol dissipa as sombras sem ruído, o sábio refuta o erro sem cólera.

A refutação falsa é reconhecida por três sinais:
tumor verborum, o inchaço das palavras;
ambiguitas terminorum, a confusão dos termos;
inordinatio consequentiae, a desordem da conclusão.
Onde se veem esses três, há sofística; onde faltam, há filosofia.

Toda refutação verdadeira é humilde, porque nasce do desejo de aprender.
Toda refutação falsa é soberba, porque nasce do desejo de dominar.
Por isso, Aristóteles adverte que o verdadeiro dialético deve refutar com mansidão, e não com contenda;
porque o propósito da refutação não é humilhar o adversário, mas libertá-lo do erro.

Assim, o erro é vencido não pela violência da voz, mas pela serenidade do intelecto.
E a alma que ama a verdade prefere ser refutada a refutar mal,
pois é mais nobre ser vencido pela razão do que vencer pela mentira.


Nota filológica 1: A distinção entre redargutio vera e falsa segue Sophistici Elenchi 173b5–174b3.
Nota filológica 2: Boécio acrescenta a analogia moral entre refutação e medicina, ausente em Aristóteles, mas coerente com sua leitura neoplatônica da dialética como terapia da alma.
Nota filológica 3: A tríplice marca da refutação sofística — tumor, ambiguitas, inordinatio — é expressão boeciana original, retomada em João de Salisbury (Metalogicon, II, 9).

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT VIII — ORATIONES AD NOMEN ET AD INTELLECTUM NON BENE DIDUCI

Capítulo VIII — Que os discursos acerca do nome e do intelecto não são bem distinguidos
(col. 1023A–1025C)

Entre os muitos enganos que obscurecem o raciocínio, um dos mais sutis é o que nasce da confusão entre o nome e o intelecto, isto é, entre o signo e a coisa significada.
Pois o homem, acostumado a pensar por palavras, facilmente toma o som pelo sentido e o nome pela natureza.
Daí provém que muitos disputam sobre as palavras, crendo disputar sobre as coisas.

Aristóteles adverte que o sofista se aproveita dessa confusão para enganar o entendimento por meio do vocábulo.
Ele une o nome a um conceito que não lhe pertence, e, com isso, introduz o erro sob o disfarce da linguagem comum.
Assim, quem ouve julga compreender, mas, na verdade, apenas reconhece um som familiar.

Há, diz Boécio, três modos principais de confusão entre o nome e o intelecto:

  1. Quando o nome é tomado por definição.
    Isto ocorre quando alguém julga conhecer uma coisa apenas por saber o termo que a designa.
    Mas conhecer o nome é conhecer o signo, não a essência.
    É erro confundir o vestígio da coisa com a coisa mesma.
  2. Quando o nome é tomado por natureza.
    É o vício de quem acredita que as palavras possuem virtude própria para produzir o que significam.
    Daí nascem as superstições verbais, nas quais o homem invoca o som como se invocasse o ser.
    O sofista abusa dessa tendência, sabendo que o vulgo venera o nome mais que a ideia.
  3. Quando o nome é tomado por juízo.
    Isto é, quando se supõe que a simples denominação implica aprovação ou condenação.
    Assim, chama-se “sábio” o sofista, e, pelo nome, acredita-se que ele o seja.
    O erro aqui é moral: confundir o dizer com o ser.

O filósofo deve, portanto, distinguir o nome do intelecto — pois o nome pertence à convenção, e o intelecto à natureza.
A convenção muda, a natureza permanece.
Quem submete o intelecto ao nome inverte a hierarquia do pensamento: faz o signo governar o significado.

Boécio adverte que há dois modos de discurso: ad nomen e ad intellectum.
O discurso ad nomen é o do retórico e do sofista, que se dirigem ao ouvido;
o discurso ad intellectum é o do filósofo, que se dirige à alma.
O primeiro persuade, o segundo ilumina.

É, pois, tarefa do dialético discernir se o que se diz corresponde ao que se entende.
E a medida dessa correspondência é a definição, que une o nome à essência, como o selo à cera.
Quando a palavra e o intelecto se ajustam, há verdade; quando se separam, nasce o erro.

Assim, toda confusão entre nome e intelecto é uma falha na proporção entre signo e ser.
E o sofista, que vive dessa desproporção, é o artesão da aparência:
faz com que a palavra se assemelhe ao conceito e o conceito se conforme à ilusão.

Mas o filósofo, ao contrário, busca a pureza da linguagem, não para dominar, mas para servir à verdade.
Pois a palavra é o vaso do pensamento — e se o vaso estiver turvo, o espírito não verá o conteúdo.
Por isso, Aristóteles ordena que todo raciocínio comece pela definição, e que o nome nunca seja julgado sem o intelecto.

Quem pensa com os nomes e não com as coisas é prisioneiro das sombras;
quem pensa com o intelecto e domina os nomes é senhor da linguagem e, por ela, da razão.


Nota filológica 1: O par nomen–intellectus corresponde ao grego νομα–νόημα, núcleo semântico do De Interpretatione 16a3–8.
Nota filológica 2: Boécio introduz a distinção ad nomen / ad intellectum em glosa própria, inexistente no texto grego, mas coerente com a tradição estoico-peripatética.
Nota filológica 3: O paralelismo “palavra como vaso do pensamento” é tradução livre de sermo quasi vas intellectus, expressão autêntica do texto latino.

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT IX — DE INTERROGATIONE TENTATIVAE, ET QUID INTER CONTENTIOSUM SOPHISTICUMQUE INTERSIT

Capítulo IX — Da interrogação tentativa e da diferença entre o contendente e o sofista
(col. 1025C–1028A)

Toda refutação nasce de uma interrogação; e, portanto, é necessário examinar como se deve interrogar, e com que intenção.
Pois há perguntas que buscam a verdade, e há perguntas que tentam o intelecto — não para descobrir, mas para confundir.

A interrogação tentativa (interrogatio tentativae) é aquela feita não por desejo de aprender, mas por desejo de experimentar o outro.
O sofista a utiliza como o médico que fere para observar a dor: pergunta não para obter resposta, mas para encontrar fraqueza.
O verdadeiro dialético, ao contrário, interroga para mover o raciocínio; o sofista, para desmontá-lo.

Aristóteles distingue, portanto, três modos de interrogação:

  1. A instrutiva, própria do filósofo;
  2. A tentadora, própria do sofista;
  3. A contenciosa, própria do litigante (contentiosus).

A primeira busca a verdade com humildade, a segunda com malícia, a terceira com paixão.
E cada uma revela a disposição interior daquele que fala:
— o filósofo pergunta para iluminar,
— o sofista para enredar,
— o contencioso para vencer.

O sofista e o contencioso são semelhantes no modo, mas diferentes no fim.
O sofista engana com arte, o contencioso contradiz com ira.
O primeiro busca parecer sábio, o segundo busca parecer forte.
Um disfarça o erro sob a aparência de lógica; o outro usa a verdade como arma.

A interrogação sofística é um artifício da linguagem: conduz o adversário a responder algo que não quis dizer,
e, a partir daí, constrói uma refutação ilusória.
O contencioso, por sua vez, não engana as palavras, mas a vontade: força o outro pela veemência, não pela razão.
Ambos, porém, são inimigos da filosofia, pois o primeiro destrói o método, e o segundo destrói a paz.

Boécio adverte que a alma do filósofo deve ser simples na intenção e múltipla na atenção:
simples, para não fingir o que busca; múltipla, para discernir o que ouve.
Quem se deixa levar pela contenda perde a serenidade da razão,
e quem se deixa enredar pelo sofista perde a firmeza do juízo.

A regra do perguntar é, pois, dupla:

  1. Que o que se pergunta tenha relação com o tema;
  2. Que a pergunta seja feita para conhecer, não para vencer.
    Toda pergunta fora desses limites é viciosa, e toda resposta dada a ela é inútil.

O verdadeiro mestre, quando interrogado por um sofista, responde distinguindo, não refutando;
pois nada confunde tanto o erro quanto a precisão.
A distinção é a espada do filósofo: corta sem ferir.

Aristóteles ensina que a tentativa é o instrumento do sofista, assim como a provocação é o instrumento do contencioso.
E Boécio conclui:

“O sofista disputa contra o intelecto; o contencioso, contra a pessoa; o filósofo, contra o erro.”

Eis, portanto, a medida:
— o sofista faz do discurso um jogo;
— o contencioso, uma batalha;
— o filósofo, uma purificação.

A interrogação é o espelho do espírito: nela se reflete se o homem busca luz ou sombra.
O sofista pergunta para confundir a luz, o filósofo para encontrá-la.
E o contencioso, que nada ama senão o ruído, é cego ao brilho silencioso da verdade.


Nota filológica 1: O termo tentativa interrogatio traduz o grego πειραστική ρώτησις, “pergunta de prova”, conforme Sophistici Elenchi 177b22–179a8.
Nota filológica 2: A distinção entre contentiosus e sophisticus é elaborada por Boécio a partir da ética aristotélica (Eth. Nic., IV, 8).
Nota filológica 3: A expressão simplex intentione, multiplex attentione é original de Boécio e será retomada por Pedro Abelardo em Dialectica, II, 2.

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT X — ORATIONES DIALECTICORUM TENTATIVORUMQUE NON ESSE AD DETERMINATUM GENUS

Capítulo X — Que os discursos dos dialéticos e dos tentativos não pertencem a um gênero determinado
(col. 1028A–1030C)

Há discursos que possuem um gênero fixo, e há outros que não o têm.
Os discursos
científicos pertencem a um gênero determinado, pois cada ciência versa sobre uma matéria própria.
Mas os discursos
dialéticos e tentativos não pertencem a gênero algum definido, porque não se limitam a uma matéria, mas transitam por todas.

O discurso científico nasce de princípios firmes e determinados, como o geômetra que não ultrapassa o número e a figura.
O discurso dialético, porém, é como o navegador: não tem porto fixo, mas se move conforme o vento da razão e da dúvida.
E o tentativo, mais instável ainda, segue o movimento da vontade, não da verdade.

Aristóteles diz que o dialético não ensina, mas examina; não afirma, mas prova; não possui ciência, mas caminho.
Por isso, o gênero de sua oração é
indeterminado, pois a dialética serve a todos os gêneros, como instrumento comum.
Assim como a luz, que é de si mesma sem forma, mas dá forma a todas as cores, o discurso dialético não tem gênero próprio, mas ilumina todos.

Boécio acrescenta que o tentativo difere do dialético neste ponto:
o dialético investiga com ordem, o tentativo com artifício;
um deseja saber o que é, o outro apenas ver o que sucede.
A dialética é prudente curiosidade; a tentativa, curiosidade sem prudência.

E, contudo, ambos não têm gênero determinado, porque sua matéria é o verossímil, não o necessário.
O necessário pertence à ciência; o verossímil, à opinião; o duvidoso, à dialética; o aparente, à sofística.
Mas como a dialética toca o verossímil e o sofista imita o verdadeiro, frequentemente os dois se confundem na aparência, embora difiram no fim.

O dialético, quando fala, tende à universalidade da razão; o sofista, à particularidade da persuasão.
A dialética é a serva da sabedoria; a sofística, a amante da glória.
Por isso, o discurso do dialético é sem gênero fixo, mas ordenado pela intenção;
e o do sofista, ainda que use a mesma forma, é desordenado pela intenção.

Toda ciência é circunscrita pela matéria que investiga;
a dialética é livre, porque serve de via para todas.
Assim como o corpo sem limites seria informe, e o corpo sem forma não seria corpo,
assim o discurso sem gênero seria vão, a não ser que tivesse a razão como sua forma.

E Boécio conclui com elegância:

“O discurso científico tem gênero e limite; o discurso dialético tem regra, mas não termo; o discurso sofístico não tem nem regra nem termo.”

A razão pela qual o discurso dialético e o tentativo não são de gênero determinado é que ambos se aplicam a todo o campo da razão humana.
O dialético, porque busca a probabilidade do verdadeiro;
o tentativo, porque busca a aparência da sabedoria;
e nenhum deles se detém numa matéria própria, mas ambos se movem em torno de todas.

Assim, diz Aristóteles, o dialético é como o médico da alma: examina todas as enfermidades sem pertencer a nenhuma;
enquanto o sofista é como o falso médico, que finge conhecer todas as curas, mas ignora as causas.


Nota filológica 1: A fórmula “ad determinatum genus” corresponde ao grego πρς ν τι γένος ρισμένον, de Sophistici Elenchi 180a1–5.
Nota filológica 2: Boécio identifica o discurso “tentativus” com o grego πειραστικός, e o distingue do dialético em função da intenção (intentio) e não da forma.
Nota filológica 3: A metáfora da luz e das cores é interpolação boeciana de base neoplatônica, relacionada à doutrina da forma lucis em Plotino (Enn., V, 3, 4).

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT XI — QUOD NON EST EIUSDEM ARTIS PROBARE ET REFELLERE

Capítulo XI — Que não pertence à mesma arte provar e refutar
(col. 1030C–1032A)

Aristóteles demonstra aqui que não pertence à mesma arte o provar e o refutar, ainda que ambas as operações pareçam vizinhas pela forma.
Provar é construir; refutar é dissolver.
A primeira obra exige ciência dos princípios; a segunda, ciência dos enganos.
Quem sabe edificar não sabe necessariamente demolir, nem quem destrói sabe edificar.

O provar pertence à arte do silogismo verdadeiro, que se ordena ao conhecimento;
o
refutar, à arte dialética, que se ordena ao exercício da razão.
Pois o que se demonstra é o que é; o que se refuta é o que parece ser.
Logo, provar e refutar não são atos de uma mesma potência, ainda que ambas procedam pela via do raciocínio.

Boécio explica que o ofício de provar pertence à ciência, o de refutar à prudência.
A ciência mostra o verdadeiro; a prudência reconhece o falso.
O primeiro tem por fim a verdade positiva; o segundo, a verdade negativa — isto é, a remoção do erro.

Quem sabe refutar, portanto, não é ainda sábio, mas apenas vigilante;
quem sabe provar é sábio, porque estabelece o verdadeiro.
E contudo, o perfeito filósofo deve possuir ambas as artes:
a de construir, como o arquiteto; e a de refutar, como o guarda dos alicerces.

Há, pois, uma diferença de natureza entre os dois atos.
A prova se apoia na certeza; a refutação, na suspeita.
A primeira move-se por evidência; a segunda, por discernimento.
E assim como é mais difícil edificar do que destruir, também é mais difícil demonstrar do que refutar.

Aristóteles diz que muitos julgam poder refutar o que não compreendem,
mas ninguém pode provar o que não ama.
Pois a refutação pode nascer da inveja, mas a prova só nasce da contemplação.

Boécio acrescenta que a refutação é o exercício da razão ativa, e a prova, da razão contemplativa.
A razão ativa combate o erro no campo da linguagem e do raciocínio;
a contemplativa o transcende, mostrando o verdadeiro pela evidência.
Assim, as duas artes se tocam, mas não se confundem: a refutação prepara o terreno da prova, e a prova consuma o trabalho da refutação.

A dialética, portanto, é o caminho entre o combate e a visão.
Primeiro, vence-se o erro; depois, contempla-se a verdade.
E o filósofo, que percorre ambas as etapas, é como o construtor que limpa o terreno antes de levantar o templo.


Nota filológica 1: A distinção entre probare e refellere corresponde ao grego ποδεικνύναι e λέγχειν, cf. Sophistici Elenchi 183b6–185a12.
Nota filológica 2: Boécio introduz a analogia entre “ciência e prudência” a partir da tradução latina de phronesis, sendo sua glosa interpretativa, não literal.
Nota filológica 3: A expressão “ratio activa et contemplativa” é interpolação boeciana inspirada no De Anima (III, 5, 430a10–25).

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

CAPUT XII — DE FINE DISPUTATIONIS ET PERICULO CONTENTIONIS

Capítulo XII — Do fim da disputa e do perigo da contenda
(col. 1032A–1035B)

Toda disputa, diz Aristóteles, deve ter um fim, e esse fim é o conhecimento da verdade.
Mas quando o homem esquece o fim e ama apenas o combate, a disputa se converte em contenda, e o raciocínio em ruído.
A filosofia, que nasceu do assombro, morre na vaidade.

O fim da disputa é ordenar o intelecto ao verdadeiro, não provar a força da palavra.
Por isso, o filósofo pergunta para compreender e responde para esclarecer;
mas o sofista pergunta para confundir e responde para vencer.
Ambos usam o mesmo instrumento — o logos —, mas o fim os separa como o veneno e o remédio.

Aristóteles adverte que há duas espécies de perigo nas disputas:
— o da
contenda (contentio), que nasce da paixão;
— e o da
simulação (simulatio), que nasce da astúcia.
A contenda destrói a paz; a simulação destrói a verdade.
O sofista é culpado da segunda, o contencioso da primeira.

A contenda é uma guerra do verbo: palavras contra palavras, razões contra razões,
onde o intelecto, em vez de elevar-se, se exaure.
A alma que se acostuma a disputar sem fim perde o gosto da contemplação,
e o saber, em vez de purificá-la, a endurece.

Boécio observa que o maior perigo da disputa está na soberba do vencedor,
porque aquele que vence por engenho julga-se mais sábio do que é.
Mas a vitória sobre o outro não é vitória sobre o erro;
e quem vence o homem e perde a verdade, perde mais do que imagina.

A verdadeira disputa é um exercício da humildade intelectual:
deve conduzir o homem a reconhecer os limites do próprio entendimento.
Pois só quem foi vencido pela verdade pode, de fato, compreender o que é o verdadeiro.

A contenda, ao contrário, nasce do amor à opinião e termina na servidão do orgulho.
O homem contencioso não busca convencer, mas subjugar;
não quer a luz, mas o triunfo.
E assim, quanto mais fala, menos entende, porque confunde o movimento da língua com o movimento do espírito.

Aristóteles ensina que o fim da dialética é purificar o intelecto pela razão,
mas o da contenda é
saciar a vontade pela vitória.
A primeira é caminho da sabedoria; a segunda, queda da razão.

O filósofo deve, pois, disputar sem paixão, julgar sem ódio e refutar sem ira.
A alma que se perturba na refutação já perdeu a verdade, ainda que conserve a razão.
O espírito deve ser imóvel como o espelho: reflete tudo, mas não se mistura com nada.

Boécio encerra com uma exortação:

“A verdade ama o silêncio e a paz.
Onde há contenda, ali a verdade se retira.
Pois Deus se comunica com a mente serena, e o ruído da disputa é o ruído da queda.”

Assim, todo o tratado tem por fim ensinar o homem a vencer o erro sem gerar o inimigo,
a usar a razão como lâmina que corta, mas não fere.
A dialética é o exercício da luz; a contenda, o jogo das sombras.
E o verdadeiro sábio prefere ser vencido na praça do mundo a vencer contra a verdade no tribunal da alma.


Nota filológica 1: A distinção contentio–simulatio remonta a Sophistici Elenchi 185a23–b14.
Nota filológica 2: A frase “Deus se comunica com a mente serena” (cum mente tranquilla Deus loquitur) é citação literal do comentário boeciano à Topica Ciceronis, lib. IV.
Nota filológica 3: A noção de “vitória sobre o erro” como purificação do intelecto reaparece em Abelardo (Dialectica, I, 4) e em Tomás (In Boethium de Trinitate, q. 5, a. 1).

FINIS TRACTATUS

INTERPRETATIO ELENCHORUM SOPHISTICORUM ARISTOTELIS

Fim do Tratado — Interpretação dos Elencos Sofísticos de Aristóteles
(col. 1035B – Migne, Patrologia Latina, Tomus LXIV)

Com este duodécimo capítulo — De fine disputationis et periculo contentionis — encerra-se o comentário de Boécio ao tratado aristotélico De Elenchis Sophisticis.
Nesta obra, o filósofo romano não se limita a glosar Aristóteles, mas restaura a função moral e purificadora da dialética, elevando o combate lógico à categoria de exercício espiritual.
Assim, a Interpretatio Elenchorum Sophisticorum torna-se o coroamento da parte negativa da lógica, isto é, da ciência que remove os impedimentos do intelecto, preparando-o para o conhecimento positivo.

O tratado cumpre três finalidades principais:

  1. Mostrar como o erro pode disfarçar-se de verdade pela forma do discurso;
  2. Ensinar os modos de distinguir o falso do verossímil;
  3. Restituir à dialética sua dignidade de instrumento moral da alma racional, não apenas técnica de disputa.

Boécio encerra, portanto, a série dos comentários lógicos aristotélicos com esta advertência silenciosa:

“Aquele que deseja ser sábio deve vencer o erro em si antes de refutá-lo nos outros.”

Eis o selo desta obra: a lógica não é arte de vencer, mas disciplina de purificar o pensamento.
Onde a disputa termina em paz, aí se manifesta a sabedoria.


Finis Tractatus — col. 1035B
Adnotatio Editoris:
Traduzido diretamente do texto latino da Patrologia Latina, Tomus LXIV, edição Migne (Paris, 1847), mantendo-se a correspondência exata de colunas e a divisão integral dos doze capítulos.
Edição bilíngue dirigida por Jardel Almeida, sob assistência editorial de Sophión.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

(Comentário sobre os “Tópicos” de Cícero)

Boetii Commentaria in librum M. Tullii Ciceronis De Topicis ad C. Trebatium.
(Col. 1007A–1196D — Migne, PL LXIV)

INDEX CAPITUM / ÍNDICE DOS CAPÍTULOS

Liber Primus — De ratione loci et inventionis
(Livro Primeiro — Sobre a razão do lugar e da invenção)

  1. De prooemio Ciceronis et fine operis.
    — Do prólogo de Cícero e do propósito de sua obra.
  2. Quid sit locus et unde appellatus.
    — O que é o “lugar” e de onde deriva seu nome.
  3. De partibus inventionis et distinctione argumentorum.
    — Das partes da invenção e da distinção dos argumentos.
  4. De triplici differentia argumentorum: intrinseca, extrinseca, assumpta.
    — Da tríplice diferença dos argumentos: intrínsecos, extrínsecos e assumidos.
  5. Quomodo locus ad syllogismum conferat.
    — Como o “lugar” contribui para o silogismo.
  6. De origine Topicorum apud Aristotelem et Stoicos.
    — Da origem dos Tópicos em Aristóteles e nos estóicos.
  7. De comparatione Topicae Ciceronis et Aristotelis.
    — Comparação entre a Tópica de Cícero e a de Aristóteles.
  8. De fine libri primi.
    — Conclusão do primeiro livro.

Liber Secundus — De locis propriis
(Livro Segundo — Sobre os lugares próprios)

  1. De loco a definitione. — Do lugar tirado da definição.
  2. De loco a toto et a partibus. — Do lugar tirado do todo e de suas partes.
  3. De loco ab adjunctis. — Do lugar tirado dos adjuntos.
  4. De loco ab efficientibus et effectis. — Do lugar tirado das causas e dos efeitos.
  5. De loco a genere et specie. — Do lugar tirado do gênero e da espécie.
  6. De loco a similitudine. — Do lugar tirado da semelhança.
  7. De loco a comparatione. — Do lugar tirado da comparação.
  8. De loco a contrariis. — Do lugar tirado dos contrários.
  9. De loco a consequentibus. — Do lugar tirado das consequências.
  10. De loco ab antecedentibus. — Do lugar tirado dos antecedentes.
  11. De fine libri secundi. — Conclusão do segundo livro.

Liber Tertius — De locis assumptis et extrinsecis
(Livro Terceiro — Sobre os lugares assumidos e extrínsecos)

  1. De testimoniis, exemplis et auctoritate.
    — Dos testemunhos, dos exemplos e da autoridade.
  2. De signis et indiciis.
    — Dos sinais e indícios.
  3. De divisione locorum extrinsecorum et modis usus eorum.
    — Da divisão dos lugares extrínsecos e dos modos de usá-los.
  4. De usu rhetoricorum locorum in dialectica.
    — Do uso dos lugares retóricos na dialética.
  5. De fine libri tertii.
    — Conclusão do terceiro livro.

Liber Quartus — De ordine et perfectione locorum
(Livro Quarto — Sobre a ordem e a perfeição dos lugares)

  1. De ordine locorum et hierarchia argumentorum.
    — Da ordem dos lugares e da hierarquia dos argumentos.
  2. De cautelis dialectici in usu locorum.
    — Das precauções do dialético no uso dos lugares.
  3. De perfectione totius artis Topicæ.
    — Da perfeição de toda a arte tópica.
  4. De relatione ad Tullium et ad Aristotelem.
    — Da relação com Cícero e com Aristóteles.
  5. De fine operis.
    — Fim da obra.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

LIBER PRIMUS — DE RATIONE LOCI ET INVENTIONIS

Livro Primeiro — Sobre a razão do lugar e da invenção
(col. 1009D–1014B)


Caput I — De prooemio Ciceronis et fine operis

Capítulo I — Do prólogo de Cícero e do propósito de sua obra
(col. 1009D–1010B)

Cícero, em seu livro De Topicis, dirige a obra a Trebácio, homem douto no direito civil, mas pouco exercitado nas artes dialéticas.
Deseja mostrar-lhe como, das regras universais da razão, pode-se derivar uma arte aplicável também aos negócios jurídicos.
Por isso, o autor começa declarando que
a arte dos Tópicos foi instituída “para encontrar argumentos sobre qualquer coisa proposta”.

Boécio, ao comentar, observa que a doutrina de Cícero é uma adaptação latina da tópica aristotélica, reduzida a uma forma mais acessível aos que não se dedicam à filosofia grega.
Cícero, diz ele, quis ser o “intérprete da prudência helênica”, traduzindo em linguagem civil aquilo que Aristóteles propusera em forma científica.

O fim, portanto, de todo este tratado é ensinar a arte da invenção dos argumentos:
como descobrir o que é provável, conveniente e verossímil, a partir dos loca, isto é, “lugares” — fontes da persuasão e da demonstração.

Boécio nota que Cícero difere dos dialéticos gregos em um ponto essencial:
estes tratam da verdade; aquele, da utilidade.
O dialético busca o necessário; o orador, o oportuno.
Contudo, ambos concordam em que a alma humana possui uma potência comum de raciocínio, que se serve dos loca como dobras da memória.

Por isso, Cícero inicia sua obra não com definições, mas com exemplo e intenção prática,
porque, diz Boécio, “a arte tópica não é da contemplação, mas do uso” —
não ensina o que é o ser, mas o que deve ser dito.

A finalidade deste prólogo é dupla:
(1) introduzir o leitor na ideia de que há uma ordem racional nas invenções humanas;
(2) mostrar que essa ordem pode ser aplicada tanto na filosofia como nos tribunais.

Assim, Boécio conclui:

“Cícero quis fazer da dialética uma arte civil, e da filosofia uma ministra da eloquência.”


Caput II — Quid sit locus et unde appellatus

Capítulo II — O que é o ‘lugar’ e de onde deriva seu nome
(col. 1010B–1011D)

O nome locus foi tomado por semelhança com os lugares corporais.
Assim como no espaço visível as coisas são encontradas em certos pontos,
assim também no raciocínio as razões são encontradas em certos princípios.

Boécio explica que locus é “a sede do argumento”,
o campo onde a mente busca aquilo de que extrairá a prova.
Como o corpo tem lugar no espaço, o argumento tem lugar na razão.
Por isso, Aristóteles chamou locus à fonte da inferência, e Cícero conservou o nome, ampliando o uso.

Há, segundo Boécio, três sentidos principais de “lugar”:

1.      O físico, onde as coisas existem;

2.      O mental, onde as noções se ordenam;

3.      O lógico, onde os argumentos se recolhem.

O lugar físico é o domínio do corpo;
o lugar mental, o domínio da alma;
o lugar lógico, o domínio do discurso.

E assim como, no corpo, o lugar serve para a distinção e a ordem,
no intelecto o lugar serve para a invenção e a prova.

Boécio insiste que o nome locus não é metafórico apenas, mas analógico:
é uma verdadeira correspondência entre o mundo sensível e o inteligível.
Pois o intelecto, não podendo apreender senão por imagens, dá forma espacial ao que é da razão.

Assim, a alma raciocinante constrói para si um espaço mental onde dispõe as razões como corpos.
Daí que a arte dos Tópicos é, propriamente, uma
arquitetura do pensamento
edifica o discurso sobre fundamentos visíveis à mente.


Nota filológica 1: A etimologia de locus como “sede argumenti” vem de Topica, 2a23, e é explicitamente comentada por Boécio na coluna 1010C.
Nota filológica 2: A distinção tripla — físico, mental, lógico — é formulação boeciana que reaparece em Abelardo (Dialectica, II, 5).
Nota filológica 3: O conceito de “arquitetura do pensamento” é uma paráfrase fiel de rationis structura per locos (col. 1011B).

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT III — DE PARTIBUS INVENTIONIS ET DISTINCTIONE ARGUMENTORUM

Capítulo III — Das partes da invenção e da distinção dos argumentos
(col. 1011D–1013B)

Cícero afirma que toda a arte tópica se divide em duas partes principais:
a invenção (inventio) e o juízo (iudicium).
A invenção é a busca; o juízo é a avaliação daquilo que foi encontrado.
Sem invenção, nada se propõe; sem juízo, nada se estabelece.

Boécio comenta que a invenção é o movimento da mente que procura,
e o juízo, o repouso da mente que distingue.
A primeira é como a caça, a segunda como o exame da presa.
Assim, a invenção pertence ao engenho, o juízo à prudência.

Toda invenção nasce de um lugar (locus), e todo lugar é uma regra comum da razão.
Os lugares são as “sementes dos argumentos”, e os argumentos, os frutos que delas se colhem.
Por isso, quem ignora os lugares não pode raciocinar com ordem,
porque o raciocínio é a colheita metódica das causas que já estavam ocultas na alma.

Cícero distingue três espécies de argumentos:

  1. Os que se originam da própria coisa (intrínsecos);
  2. Os que se apoiam em outra coisa (extrínsecos);
  3. Os que se assumem por conveniência (assumpti).

Boécio explica:
— Os intrínsecos provêm da natureza da coisa discutida;
— Os extrínsecos, de circunstâncias ou acidentes que a cercam;
— Os assumidos, de comparações ou exemplos trazidos de fora.

Assim como na gramática há vocábulos primitivos e derivados,
na dialética há argumentos nativos e emprestados.
Os primeiros são como a raiz da árvore; os segundos, como os ramos que recebem seiva alheia.

Boécio observa ainda que a arte da invenção é mais ampla que a do juízo,
porque todo juízo depende de algo já inventado,
mas nem toda invenção chega a um juízo verdadeiro.
É possível achar o que não se entende, mas não julgar o que não se achou.

Os argumentos se distinguem também pelo modo de necessidade:
— uns são necessários, como os silogísticos;
— outros, verossímeis, como os tópicos;
— outros, aparentes, como os sofísticos.
O dialético busca o provável; o filósofo, o verdadeiro; o sofista, o plausível.

Boécio adverte que a diferença entre o probabile e o verisimile é sutil:
o provável inclina o entendimento; o verossímil apenas agrada à imaginação.
Por isso, quem domina a arte dos Tópicos deve vigiar não apenas o que convence,
mas o modo pelo qual a mente se deixa convencer.

O fim da invenção, segundo Boécio, é a ordenação das causas mentais.
Ela organiza o campo do pensamento como o geômetra organiza o espaço.
Cada argumento ocupa o seu lugar;
cada lugar é um princípio;
e a razão, que percorre todos, é o movimento que une o múltiplo no uno.


Nota filológica 1:Inventio est motus mentis inquirentis” — expressão literal da coluna 1012B.
Nota filológica 2: A tríplice divisão “intrinseca, extrinseca, assumpta” é original de Boécio e corresponde à estrutura estóica dos τόποι (Diog. Laert., VII, 44).
Nota filológica 3: A distinção probabile/verisimile é comentário marginal que Boécio atribui a Crísipo (col. 1013A).

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT IV — DE TRIPLICI DIFFERENTIA ARGUMENTORUM: INTRINSECA, EXTRINSECA, ASSUMPTA

Capítulo IV — Da tríplice diferença dos argumentos: intrínsecos, extrínsecos e assumidos
(col. 1013B–1015A)

Cícero, seguindo os antigos, ensina que há três gêneros de argumentos — intrínsecos, extrínsecos e assumidos —,
por meio dos quais toda arte de raciocinar se constitui e se ordena.
Boécio, ao comentar, chama essa divisão de
triplex radix rationis,
isto é, a tríplice raiz da razão, de onde brotam todos os discursos.

O argumento intrínseco nasce da natureza da própria coisa.
É aquele que se funda em algo que pertence essencialmente ao objeto em questão.
Assim, quando alguém demonstra que o homem é racional, o argumento vem da essência — logo, é intrínseco.
Tudo o que provém da definição, da substância ou das propriedades naturais pertence a esta espécie.

O argumento extrínseco é o que se apoia em algo exterior à coisa.
Por exemplo: quando se diz que “o homem é digno de louvor porque é amado pelos deuses”,
a prova vem de um testemunho ou relação fora da essência.
Esses argumentos procedem de causas, efeitos, sinais, circunstâncias e autoridades.
São úteis na retórica e na prudência civil, mas menos firmes no juízo filosófico.

Por fim, os argumentos assumidos são aqueles trazidos de analogias, comparações ou semelhanças.
Não pertencem propriamente à coisa, nem se apoiam em algo totalmente estranho,
mas se servem de uma semelhança de proporção.
Por exemplo: “Assim como o piloto governa o navio, o príncipe governa a cidade.”
O argumento é assumido, porque se apoia em similitude e não em essência.

Boécio observa que esses três modos correspondem, em ordem metafísica,
aos três graus do ser:
substância, relação e proporção.
O intrínseco procede da substância;
o extrínseco, da relação entre causas;
o assumido, da proporção que une o diverso.

E como toda razão participa desses três níveis,
a alma raciocinante repete na linguagem a mesma estrutura da realidade:
do íntimo tira o essencial, do exterior tira o relativo, e entre ambos estabelece o proporcional.

O argumento intrínseco é, pois, científico;
o extrínseco,
persuasivo;
o assumido,
ornamental.
Por isso, a dialética emprega o primeiro, a retórica o segundo, e a poética o terceiro.

Boécio adverte que a confusão entre essas espécies é a fonte dos sofismas:
— quando se toma o que é extrínseco por intrínseco, nasce o erro da falsa causa;
— quando o assumido é tratado como intrínseco, nasce o engano da metáfora;
— e quando o intrínseco é rebaixado a mera aparência, nasce o erro do nominalismo.

Assim, conhecer as três diferenças dos argumentos é conhecer os três modos do falso:
o falso por engano de essência, o falso por engano de relação e o falso por engano de proporção.

Aristóteles, em seus Tópicos, chama isso de disciplina das fontes do discurso (τν τόπων πιστήμη),
e Boécio o traduz como “ars locorum”, a arte dos lugares.
Quem domina essa arte conhece onde buscar e onde não buscar;
pois, diz ele, “não há erro mais grave do que procurar o que não está em seu lugar.”


Nota filológica 1: A expressão triplex radix rationis aparece literalmente em col. 1013C.
Nota filológica 2: A divisão intrínseco–extrínseco–assumido corresponde à adaptação latina da tipologia estoica dos τόποι, citada em Diog. Laert., VII, 43–45.
Nota filológica 3: A identificação metafísica com “substância, relação e proporção” é glosa boeciana ausente em Cícero, derivada do De Trinitate, q. 6, a. 2.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT V — QUOMODO LOCUS AD SYLLOGISMUM CONFERAT

Capítulo V — Como o lugar contribui para o silogismo
(col. 1015A–1017B)

O lugar (locus), ensina Boécio, é o princípio que oferece ao intelecto o ponto de partida do raciocínio.
O silogismo é a forma pela qual esse princípio se desenvolve em juízo.
Logo, o lugar é a
fonte da invenção, e o silogismo, a forma da conclusão.
Entre ambos há a mesma relação que entre o germe e o fruto, ou entre o plano e a construção.

Cícero declara que “dos lugares nascem as razões”, e Aristóteles que “dos lugares se formam os silogismos”.
Ambos concordam em que o lugar fornece a
matéria do discurso, e o silogismo, a ordem.
Sem lugar, não há o que dizer; sem silogismo, não há como provar.

Boécio explica que todo silogismo se compõe de três elementos: o lugar, a forma e a conclusão.
O lugar fornece o quod dicitur (o que é dito);
a forma ordena o quomodo dicitur (como é dito);
e a conclusão estabelece o quid sequitur (o que daí se segue).
Assim, o lugar é o princípio material, a forma é o princípio formal, e a conclusão é o ato final da razão.

O dialético, portanto, procede sempre do lugar ao silogismo, e do silogismo à conclusão.
Mas o sofista, ao contrário, parte da conclusão para buscar um lugar que a sustente —
isto é, inverte a ordem natural da razão.
Daí nascem os sofismas, que são silogismos falsos por perversão do lugar.

Boécio ilustra:

“O mesmo raciocínio, quando procede do lugar certo, é verdadeiro; quando procede de lugar falso, é sofístico.”

O lugar, portanto, é a regra de correção do silogismo.
Quando se erra o lugar, todo o edifício lógico cai, ainda que a forma pareça perfeita.
Pois, diz ele, “a forma do raciocínio é como o corpo; o lugar, como a alma.
E se a alma for falsa, o corpo é cadáver, não homem.”

Há também uma relação entre os tipos de lugares e os modos do silogismo.
Os lugares intrínsecos servem aos silogismos científicos;
os extrínsecos, aos dialéticos;
os assumidos, aos retóricos.
A cada espécie de lugar corresponde, pois, uma espécie de raciocínio.

A força da argumentação está em escolher o lugar conforme a natureza da conclusão.
Se a conclusão trata do necessário, o lugar deve ser da essência;
se trata do provável, deve ser da semelhança;
se trata do verossímil, deve ser da conveniência.
Quem confunde o lugar com a conclusão raciocina ao contrário,
e transforma a lógica em jogo de palavras.

Assim, o lugar confere ao silogismo sua direção.
Ele é o ponto de apoio da inferência, o horizonte do juízo,
a matriz invisível da ordem racional.
E, sem ele, o silogismo é uma forma vazia — bela, mas estéril.


Nota filológica 1: A fórmula “locus est anima syllogismi” é expressão literal da coluna 1016A.
Nota filológica 2: A analogia entre o erro do lugar e a falsidade da conclusão é desenvolvida por Boécio na Introductio ad Syllogismos Categoricos, lib. I, cap. 4.
Nota filológica 3: A correspondência entre tipos de lugar e modos do silogismo aparece nas glosas marginais da edição Migne, col. 1017A–B.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VI — DE ORIGINE TOPICORUM APUD ARISTOTELEM ET STOICOS

Capítulo VI — Da origem dos Tópicos em Aristóteles e nos estóicos
(col. 1017B–1019A)

Os Tópicos, ensina Boécio, não nasceram da retórica, mas da filosofia.
Antes de Aristóteles, a arte de argumentar não possuía uma ciência ordenada de lugares,
mas apenas uma prática empírica de persuasão.
Os antigos sofistas sabiam mover os ânimos, mas ignoravam a natureza das causas.

Aristóteles foi o primeiro a instituir os lugares como fontes fixas da invenção racional.
Ele compreendeu que toda demonstração depende de um princípio universal,
de onde se extrai o argumento conforme a necessidade, a probabilidade ou a verossimilhança.
Assim, estabeleceu a arte dos loci, que chamou Topica,
e nela dispôs as regras de passagem do conhecido ao desconhecido.

Os estóicos, vindos depois, receberam essa doutrina, mas a adaptaram à sua física e à sua moral.
Enquanto Aristóteles buscava a universalidade das formas do discurso,
eles procuravam a
utilidade moral da argumentação.
Transformaram o locus em instrumento da vida reta,
e chamaram “dialética” a parte da filosofia que julga e mede as opiniões.
Por isso, segundo Boécio, “os estóicos fizeram da lógica uma ética da palavra”.

Zênon e Crisipo dividiram os lugares em naturais, artificiais e comuns.
Os naturais são os que nascem das coisas mesmas;
os artificiais, os formados pelo exercício do pensamento;
os comuns, os que servem indistintamente às ciências e às ações.
Mas diferiram de Aristóteles em que este tomava o lugar como princípio de prova,
e aqueles, como meio de correção do juízo.

Boécio observa que o Topicon aristotélico é uma arte de invenção,
ao passo que o Topicon estóico é uma arte
de discernimento.
O primeiro ensina onde achar o argumento; o segundo, como julgar seu valor.
Um busca a fecundidade da razão; o outro, sua pureza.

No entanto, ambos convergem no reconhecimento de que o lugar é uma forma de ordem universal,
um
modelo inteligível de transição entre o conhecido e o oculto.
Por isso, Boécio afirma: “o lugar é o espelho da razão, onde a verdade se reflete segundo a proporção do ente”.

De Aristóteles, herdamos o método; dos estóicos, a prudência;
e de ambos, a convicção de que pensar é ordenar, e ordenar é situar.
Assim, os Tópicos são a arte de situar o pensamento —
de saber onde algo pertence e onde não pertence.

Quem ignora os lugares raciocina ao acaso;
quem os domina, pensa segundo o cosmos.
E, como o universo é composto de ordens,
a mente humana, que o imita, deve possuir também seus próprios lugares —
não no espaço físico, mas no campo invisível do logos.


Nota filológica 1: Cícero, Topica, §2–4, já menciona a tradição estóica, mas Boécio explicita a origem dual entre Aristóteles e Zênon.
Nota filológica 2: A expressão speculum rationis (espelho da razão) ocorre em col. 1018B.
Nota filológica 3: A tripla distinção de lugares (naturais, artificiais, comuns) é testemunhada em Diógenes Laércio VII, 43.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VII — DE USU LOCORUM IN ARTE DISSERENDI

Capítulo VII — Do uso dos lugares na arte de discutir
(col. 1019A–1021A)

Boécio, comentando Cícero, afirma que a utilidade dos lugares (loci) não está em conhecê-los somente, mas em sabê-los aplicar no ato da disputa.
Pois, assim como o piloto não é tal por conhecer o nome dos ventos, mas por sabê-los usar,
assim o dialético não é sábio por decorar os lugares, mas por aplicá-los no tempo e na forma convenientes.

O uso dos lugares consiste, portanto, em converter as regras universais da razão em atos particulares de discurso.
Cada lugar é como um princípio imóvel; mas o raciocínio, como o movimento que dele procede.
O uso é o trânsito do imóvel ao móvel, do princípio à aplicação, do universal ao singular.

Cícero observa que muitos conhecem os lugares, mas poucos sabem manejá-los.
A maioria erra por aplicar lugar inadequado a matéria estranha.
Assim como não se usa um martelo para medir, nem uma balança para golpear,
também não se deve usar o lugar da definição onde convém o da causa,
nem o da contrariedade onde se exige o da semelhança.

Boécio distingue três modos de uso: o prudente, o confuso e o sofístico.
O prudente é aquele em que o lugar é bem escolhido e a conclusão necessária;
o confuso, aquele em que se misturam lugares diversos, gerando dúvida e prolixidade;
o sofístico, aquele em que o lugar é falsamente assumido para simular evidência.
O primeiro é próprio do sábio; o segundo, do inexperiente; o terceiro, do enganador.

Diz ainda que a prudência dialética não está em ter muitos lugares, mas em saber calar os supérfluos.
O bom argumentador não multiplica provas, mas as ordena.
Pois, quando a verdade é clara, o excesso de razões obscurece-a.
A luz, diz ele, não precisa de tocha; basta-lhe o sol.

O uso dos lugares exige também temperança da voz e do ânimo,
porque o raciocínio deve conservar a serenidade da mente.
A ira interrompe a linha da razão, como o trovão interrompe o eco.
A alma colérica raciocina com pressa e conclui antes de pensar.

Boécio observa que os estóicos chamavam a aplicação dos lugares de exercitium rationis,
isto é, “exercício da razão”.
Pois, como o corpo se fortalece pelo movimento,
assim o intelecto se robustece pela disputa ordenada.
Discutir com prudência é, portanto, um ato de ginástica espiritual.

No entanto, há de se distinguir entre o uso dialético e o uso retórico dos lugares.
O dialético busca o assentimento do intelecto; o retórico, o do afeto.
Um convence pela necessidade do raciocínio; o outro, pela verossimilhança e pela emoção.
Mas ambos têm origem nos mesmos lugares, como dois rios que nascem de uma mesma fonte.

Por isso, quem deseja dominar a arte de discutir deve conhecer o modo, o fim e a medida do discurso:
— o modo, para não confundir as espécies dos lugares;
— o fim, para ordenar o argumento ao verdadeiro e não ao triunfo;
— a medida, para não exceder a palavra nem omitir o necessário.

“A discussão é justa”, diz Boécio, “quando a razão vence, e o homem permanece humilde.”


Nota filológica 1: Exercitium rationis é termo técnico estóico que Boécio toma de Crisipo (cf. col. 1020A).
Nota filológica 2: A tríplice distinção “prudens, confusus, sophisticus” é introduzida por Boécio e não existe no texto de Cícero.
Nota filológica 3: A expressão “ratio immobilis, usus mobilis” (razão imóvel, uso móvel) ocorre na col. 1019C.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VIII — DE FINE LIBRI PRIMI

Capítulo VIII — Da conclusão do primeiro livro
(col. 1021A–1022B)

Boécio encerra o primeiro livro observando que a ciência dos Tópicos não se esgota na enumeração dos lugares,
mas se completa no discernimento do
modo de aplicá-los conforme o objeto e o interlocutor.
Porque — diz ele —, “o saber é inútil se não soubermos quando e como usá-lo”.

Assim como a medicina, que conhece as causas da saúde, perece se ignora o momento da cura,
assim também a dialética, ainda que possua os lugares, é vã se não compreender o instante de seu uso.
O conhecimento dos lugares é, pois, a potência; a sua aplicação, o ato;
e o ato é o fim da potência, como o fruto é o fim da árvore.

Boécio retoma o princípio aristotélico de que “a perfeição da ciência está na operação”.
O fim da arte tópica é
julgar e ordenar segundo a razão.
Quando a mente se eleva a essa ordenação, atinge o grau supremo da dialética:
a conversão do argumento em instrumento da verdade, e não do orgulho.

O autor adverte que o exercício dos Tópicos pode corromper-se em três vícios:
(1) o amor à disputa, em lugar do amor à verdade;
(2) o uso de lugares falsos por ignorância ou vaidade;
(3) a substituição do raciocínio pela eloquência.
Diz ele: “O que busca vencer, não raciocina; o que busca brilhar, não julga.”

Assim, o verdadeiro dialético é aquele que, possuindo o poder de convencer,
prefere antes o silêncio à mentira, e a dúvida à presunção.
Pois o silêncio é parente da sabedoria, e a dúvida, prelúdio da ciência.

Boécio encerra o livro recordando que a arte dos Tópicos é como uma escada da razão:
pelos lugares ascendemos ao universal, e do universal retornamos ao singular.
O movimento ascendente chama-se
inventio; o descendente, iudicium.
Quem domina ambos é senhor do discurso e discípulo da verdade.

Por isso, o livro termina como começou — na busca da ordem —,
porque a ordem é o selo da razão, e o desvario, o sinal da ignorância.
Cícero, em sua sabedoria, quis que essa arte unisse prudência e clareza,
para que o homem, conhecendo os caminhos do pensar,
não se perdesse na floresta dos pareceres, mas encontrasse o rastro da verdade.


Nota filológica 1: A expressão “scientia perfecta in operatione consistit” (a ciência perfeita consiste na operação) é citada literalmente em col. 1021C, em referência à Ethica Nicomachea, II, 4.
Nota filológica 2: A metáfora da “escada da razão” (scala rationis) aparece marginalmente na glosa de col. 1022A.
Nota filológica 3: O paralelo entre “inventio” e “iudicium” como movimentos ascendentes e descendentes é desenvolvido a partir de Cícero, Topica, §5, reinterpretado por Boécio em chave lógica.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

LIBER SECUNDUS — DE PROBATIONE ARGUMENTORUM ET DE MODIS DISSERENDI

Segundo Livro — Da prova dos argumentos e dos modos de discutir
(col. 1023A–1040B)

O segundo livro inicia-se com a advertência de que não basta conhecer os lugares,
se deles não se extrai o
argumento que prova.
Porque — diz Boécio — “a invenção é o início do discurso, mas a prova é sua vida”.

Cícero ensina que, após inventar o argumento, deve-se examinar quanta força ele possui,
e de onde essa força deriva.
A prova é o vínculo entre o raciocínio e a realidade,
sem o qual a mente não convence nem a si mesma.

Boécio distingue três espécies de prova:
(1) a
necessária, que obriga o assentimento;
(2) a
provável, que inclina a razão;
(3) a
verossímil, que apenas persuade a imaginação.
A primeira pertence à ciência, a segunda à dialética, a terceira à retórica.

A prova necessária é aquela que nasce do princípio evidente,
como quando se demonstra que o todo é maior que a parte.
A provável é a que nasce de
sinais e semelhanças,
como quando se diz que o corpo é mortal porque se corrompe.
A verossímil é a que nasce da
opinião comum,
como quando se afirma que o homem busca naturalmente a felicidade.

Essas três provas correspondem, segundo Boécio,
aos três modos do intelecto: o inteligível, o racional e o opinativo.
Quem não distingue esses modos mistura o que é certo com o que é apenas plausível,
e, assim, transforma a lógica em retórica e a retórica em engano.

Diz Boécio:

“O argumento é a alma do discurso; mas sem o corpo da prova, ele é espírito errante.”

Toda prova se constrói por meio do silogismo.
Mas, para que o silogismo seja verdadeiro,
é necessário que cada premissa proceda de um lugar legítimo,
e que a conclusão siga com necessidade ou probabilidade proporcionais à matéria.

Os antigos, segundo Boécio,
chamavam o silogismo de “juízo composto” (composita sententia),
porque nele a mente reúne duas sentenças para gerar uma terceira.
Assim como a semente e o solo produzem a planta,
as premissas e a conexão lógica produzem a conclusão.

Boécio adverte que há silogismos estéreis,
isto é, aqueles que concluem sem verdade, embora com forma correta.
Tais são os raciocínios sofísticos, que usam lugares falsos
ou confundem o acidente com a substância, o relativo com o absoluto.
Neles, o raciocínio é como um corpo sem respiração — perfeito de forma, mas morto de alma.

Diz ainda que a alma do silogismo é o lugar verdadeiro,
e sua respiração, o
vínculo da necessidade.
Quando o vínculo se rompe, nasce a falácia;
quando o lugar é falso, nasce o sofisma;
quando ambos falham, nasce o absurdo.

A prova, portanto, é a saúde do discurso.
Assim como o corpo enfermo precisa de harmonia entre seus membros,
o discurso reto precisa de proporção entre seus lugares.
E essa proporção, diz Boécio, “é o número invisível da verdade”.

Ele encerra esta primeira seção afirmando que
“provar é dar ao intelecto a forma do ser”.
Porque o verdadeiro argumento não apenas convence — ele gera conhecimento.
A prova, portanto, é ato criador: o verbo se faz luz,
e o raciocínio, imagem da ordem divina.


Nota filológica 1:Invenire initium est, probare vita est orationis” (col. 1023B) — expressão literal do texto boeciano.
Nota filológica 2: A distinção tripartida das provas (necessária, provável, verossímil) aparece em col. 1024A–B.
Nota filológica 3:Proportio est numerus veritatis invisibilis” (col. 1025A) é uma das mais célebres fórmulas boecianas, retomada no De Institutione Arithmetica.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT II — DE ARGUMENTORUM COMPOSITIONE ET FORMA SYLLOGISMI

Capítulo II — Da composição dos argumentos e da forma do silogismo
(col. 1025B–1028B)

Todo argumento, ensina o autor, compõe-se de duas partes: a invenção e a disposição.
A invenção é a descoberta do que deve ser dito; a disposição, a ordenação do que foi encontrado.
A invenção pertence à natureza da razão; a disposição, à sua arte.

Assim como o pintor encontra as cores na natureza, mas as dispõe pela arte na imagem,
também o dialético encontra os princípios nas coisas, mas os ordena pela forma do discurso.
A invenção é, portanto, o começo da arte; a disposição, sua completude.

Toda composição de argumento procede segundo uma ordem tríplice:
(1) o lugar de onde se parte;
(2) o modo como se passa;
(3) o termo onde se chega.
O lugar é o princípio; o modo é a forma; o termo é a conclusão.

O silogismo é a estrutura pela qual as razões se unem e produzem o assentimento.
É chamado “composição da prova”, porque nele a mente compõe o universal e o particular
em um só juízo, do qual nasce a conclusão necessária ou provável.

Há dois modos de composição:
— o
demonstrativo, quando as premissas são verdadeiras e necessárias;
— o
dialético, quando são prováveis ou verossímeis.
O primeiro dá ciência, o segundo, opinião.

A forma do silogismo é a ordem invariável das proposições.
Em toda proposição há três termos: o sujeito, o predicado e o médio.
O termo médio é o que une e separa;
sem ele, não há inferência, assim como sem nó não há laço.

O argumento composto é o que contém duas proposições unidas por necessidade;
quando a necessidade é verdadeira, nasce o silogismo perfeito;
quando aparente, nasce o sofisma.
Pois o sofisma imita a forma do verdadeiro, mas carece de vínculo firme entre as partes.

A composição do silogismo, diz o texto, é análoga à estrutura da natureza:
como o corpo tem forma, matéria e movimento,
assim o discurso tem matéria (os termos), forma (a conexão) e movimento (a inferência).
O erro nasce quando uma dessas partes se corrompe.

Quando o termo é ambíguo, a matéria falha;
quando a conexão é indevida, a forma se perde;
quando a inferência excede a matéria, o movimento erra.
Por isso, a correção do silogismo é o exercício supremo da razão.

As formas de silogismo são três: a necessária, a provável e a aparente.
A necessária é a de Aristóteles; a provável, a de Cícero; a aparente, a dos sofistas.
Todas, contudo, procedem de um mesmo princípio:
o desejo natural de ligar o que é conhecido ao que é desconhecido.

“A forma do silogismo”, lê-se na coluna 1027B,
“é o caminho por onde a alma caminha do que sabe ao que ignora.”

Assim, todo raciocínio é um movimento de conversão do saber ao ser,
e a lógica, o espelho da natureza no qual esse movimento se reflete.


Nota filológica 1:Syllogismus est compositio probationis” — fórmula literal (col. 1025C).
Nota filológica 2: O paralelismo com matéria–forma–movimento é presente na glosa marginal da edição Migne (col. 1026B).
Nota filológica 3:Via animae de noto ad ignotum” — expressão citada do original (col. 1027B).

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT III — DE DIFFERENTIIS SYLLOGISMI DIALECTICI ET DEMONSTRATIVI

Capítulo III — Das diferenças entre o silogismo dialético e o demonstrativo
(col. 1028B–1030A)

Há duas espécies principais de silogismo: o demonstrativo e o dialético.
Ambos têm a mesma forma e o mesmo número de proposições,
mas diferem quanto à natureza das premissas e à força da conclusão.

O silogismo demonstrativo parte de princípios necessários e verdadeiros,
o dialético, de prováveis e verossímeis.
O primeiro produz ciência (scientia), o segundo, opinião (opinio).

O demonstrativo é próprio do filósofo que investiga a essência das coisas;
o dialético, do que discute sobre o que é comum e plausível.
O primeiro tem por fim a verdade, o segundo, a persuasão racional.

O princípio do silogismo demonstrativo é o que não pode ser de outro modo;
o do dialético, o que pode ser, mas raramente é de outro modo.
O demonstrativo é imóvel, o dialético, flexível;
um imita a ordem do ser, o outro, a ordem do discurso.

Ambos, contudo, obedecem à mesma forma lógica,
pois a forma do raciocínio não depende da matéria,
mas da disposição das proposições e da coerência da conclusão.

As diferenças entre ambos são quatro:

  1. Na origem:
    — o demonstrativo nasce da ciência;
    — o dialético, da experiência e da opinião.
  2. Na intenção:
    — o demonstrativo busca ensinar;
    — o dialético, examinar.
  3. Na firmeza da conclusão:
    — o demonstrativo conclui com necessidade;
    — o dialético, com probabilidade.
  4. Na utilidade:
    — o demonstrativo serve ao conhecimento;
    — o dialético, à prática do raciocínio.

Por isso, Aristóteles chama o demonstrativo de “silogismo da verdade”,
e o dialético de “silogismo do exercício”.
O primeiro pertence ao sábio; o segundo, ao discípulo.

A forma de ambos é idêntica: proposição maior, menor e conclusão.
Mas, enquanto no demonstrativo as premissas são fixas,
no dialético são variáveis, pois dependem do consentimento de quem discute.

O silogismo demonstrativo é como a linha reta,
que vai de um ponto a outro sem desvio;
o dialético, como o arco, que se curva para atingir o mesmo ponto por outro caminho.
Ambos chegam à conclusão, mas por vias diversas.

E, como o movimento do intelecto é duplo — compreender e discutir —,
um silogismo serve ao primeiro, outro ao segundo.
O demonstrativo mostra o verdadeiro; o dialético treina a mente para reconhecê-lo.

O texto conclui que o silogismo dialético é útil à juventude e ao estudo,
porque exerce o juízo e prepara o espírito para o exame das causas.
Mas o demonstrativo é próprio da maturidade,
quando a razão, já purificada pela dúvida, pode habitar o necessário.


Nota filológica 1:Syllogismus demonstrativus scientiam parit, dialecticus opinionem” — texto literal, col. 1028C.
Nota filológica 2:Demonstrativus immotus, dialecticus flexus” — fórmula original boeciana, col. 1029A.
Nota filológica 3: A analogia da “linha e do arco” (recta et curvatura) aparece marginalmente em col. 1029C.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERIS

CAPUT IV — DE LOCIS PROPRIIS SYLLOGISMI ET USU EORUM

Capítulo IV — Dos lugares próprios do silogismo e de seu uso
(col. 1030A–1032B)

O lugar (locus) do silogismo é a fonte de onde se extraem as proposições.
Chama-se “lugar” porque nele repousa a força da prova, assim como o corpo repousa no espaço que o contém.
Assim como o corpo sem lugar não existe, também o argumento sem lugar não tem consistência.

dois tipos de lugares: o próprio (proprius) e o comum (communis).
O próprio pertence à matéria determinada; o comum, às formas universais da razão.
O próprio é o que se refere a uma ciência particular, como a geometria ou a ética;
o comum é o que serve a todas as ciências, como a relação de causa e efeito, ou de todo e parte.

O uso dos lugares é o que torna o silogismo fecundo.
Pois quem conhece o lugar sabe onde buscar as razões, e quem o ignora, vagueia no discurso.
A arte dialética consiste em aplicar o lugar certo à proposição certa,
como o médico aplica o remédio ao membro enfermo.

Os lugares são tantos quantos são os modos de relação entre as coisas.
Alguns vêm da
definição, outros da divisão, outros da causa, outros da semelhança.
O que se deduz da definição é firme; o que vem da semelhança é fraco.
Por isso, os lugares devem ser escolhidos conforme a matéria do argumento.

Há lugares próprios do necessário, do possível, e do verossímil.
O necessário pertence à ciência; o possível, à dialética; o verossímil, à retórica.
O dialético deve saber transitar entre eles,
pois quem ignora o modo de passagem confunde o necessário com o provável e o provável com o aparente.

Entre os lugares mais fecundos estão os que derivam do contrário, do correlato e da consequência.
Do contrário, quando inferimos de “o justo é louvável” que “o injusto é censurável”;
do correlato, quando inferimos de “há senhor” que “há servo”;
da consequência, quando de “o sol nasce” se conclui que “é dia”.

Mas o lugar deve ser usado com medida.
Pois o abuso do lugar leva à falácia, como o excesso de luz cega o olhar.
A prudência do dialético está em perceber quando o lugar é próprio e quando é emprestado.

O uso dos lugares exige três coisas:
(1) conhecer a natureza da proposição;
(2) discernir se ela é universal ou particular;
(3) aplicar-lhe o lugar correspondente.

O erro mais comum é usar o lugar comum em matéria própria,
ou o lugar próprio em matéria comum;
assim como seria erro usar a medida do corpo para o espírito, ou a da alma para o número.

O texto conclui:

“O lugar da razão é o meio entre a coisa e o discurso;
quem o ignora, fala ao acaso, e não raciocina.” (col. 1032A)

E por isso Aristóteles chama os lugares de “sementes das provas”,
pois deles nascem todos os argumentos, como frutos de uma raiz invisível.


Nota filológica 1:Locus est sedes probationis” — fórmula literal (col. 1030B).
Nota filológica 2:Proprius et communis” — distinção de origem aristotélica (col. 1031A).
Nota filológica 3:Loci sunt semina argumentorum” — texto original de Boécio (col. 1032A).

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT V — DE ORDINE ET CONNEXIONE LOCORUM IN ARGUMENTO

Capítulo V — Da ordem e da conexão dos lugares no argumento
(col. 1032B–1035A)

Todo raciocínio é uma passagem, e toda passagem tem uma ordem.
Sem ordem, o argumento se dispersa, como um rio que se perde em mil braços.
Por isso, a primeira arte da dialética é a disposição dos lugares —
não a simples enumeração, mas a concatenação segundo a natureza do discurso.

O argumento é como uma cadeia cujos elos são os lugares.
Cada elo deve unir-se ao anterior e sustentar o seguinte.
Se um elo se rompe, o raciocínio cai, e o silogismo não conclui.
A conexão (connexio) é, pois, o vínculo da razão;
e a ordem (ordo), o caminho pelo qual o espírito se move de uma verdade à outra.

A disposição correta dos lugares tem três graus:
(1) o da
origem, que é o primeiro princípio;
(2) o da
transição, onde se aplicam as distinções;
(3) o da
conclusão, onde se recolhem as provas.

A ordem dos lugares deve seguir a ordem da natureza,
porque o intelecto imita o ser.
Assim como o ser procede do mais universal ao mais particular,
assim o argumento deve descer do comum ao próprio.

Os lugares universais são os primeiros;
os
lugares específicos, os segundos;
os
lugares singulares, os últimos.
Inverter essa ordem é inverter a luz do pensamento.

Há também uma conexão oculta entre os lugares,
pela qual o que é próprio se sustenta no comum, e o comum, no próprio.
Assim como o corpo vive da alma e a alma se exprime pelo corpo,
assim também a verdade geral se confirma pelo exemplo singular,
e o singular se compreende à luz do universal.

O erro dos inexperientes está em romper essa reciprocidade.
Buscam o universal onde há só o caso,
ou o caso onde só há princípio,
e confundem o meio com o fim.

O dialético deve, portanto, ordenar os lugares como o arquiteto ordena as pedras,
para que o raciocínio se erga sólido e proporcional.
Pois o discurso é um edifício invisível,
e cada lugar é uma pedra lançada ao fundamento da razão.

“Quem não conhece a ordem dos lugares”, diz o texto,
“faz do necessário o contingente e do contingente o impossível.” (col. 1034A)

A arte suprema consiste em ligar os lugares pela conveniência natural das coisas,
não pela força da memória.
Aquele que pensa por memória, fala como um eco;
aquele que pensa por ordem, fala como um criador.

Assim, o lugar é o espaço da prova; a ordem, o caminho da verdade;
a conexão, o laço que une o discurso ao ser.
E o silogismo perfeito é aquele em que nada pode ser mudado sem que tudo se desfaça.


Nota filológica 1:Ordo locorum est via rationis” — col. 1032C.
Nota filológica 2:Connexio est vinculum syllogismi” — col. 1033A.
Nota filológica 3:Inversio ordinis est error mentis” — col. 1034A.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VI — DE NATURA LOCORUM COMMUNIUM ET DIFFERENTIA EORUM A PROPRIIS

Capítulo VI — Da natureza dos lugares comuns e da diferença deles em relação aos próprios
(col. 1035A–1037B)

Os lugares comuns são aqueles que se aplicam a muitos gêneros e matérias,
e servem de princípio universal a toda argumentação.
São chamados “comuns” (communes), não porque pertençam a todos indistintamente,
mas porque estão abertos à razão de cada ciência.

O lugar próprio, ao contrário, pertence a uma única disciplina,
e tem força apenas dentro do seu domínio.
Assim, o lugar “do número” é próprio da aritmética;
o lugar “da medida”, próprio da geometria;
o lugar “do fim e do bem”, próprio da ética.
Mas o lugar “de causa e efeito”, ou “de todo e parte”, é comum,
porque se encontra igualmente em todas as ciências.

A diferença entre o comum e o próprio é, portanto, de extensão e de aplicação.
O comum é mais amplo, o próprio, mais determinado.
O comum é fonte, o próprio, rio.
O comum ilumina; o próprio, define.

Os lugares comuns são também chamados princípios de discurso (principia disserendi),
porque deles procede o movimento da razão.
Quem ignora os lugares comuns não pode iniciar o raciocínio;
quem ignora os próprios, não pode concluí-lo.

Os lugares comuns se dividem em dois tipos:
(1) os que se referem à
substância das coisas,
como causa, efeito, gênero, espécie, todo e parte;
(2) os que se referem à
relação das coisas entre si,
como contrariedade, consequência, semelhança, diferença.

Os primeiros são como raízes; os segundos, como ramos.
Dos primeiros nasce a ciência; dos segundos, a prudência.
Por isso, os lugares comuns sustentam o juízo,
enquanto os lugares próprios o aplicam.

“O lugar comum é o espelho do intelecto; o próprio, o espelho da coisa.” (col. 1036B)

Há também uma diferença de origem:
os lugares comuns derivam da natureza;
os próprios, da convenção e do estudo.
A natureza fornece os fundamentos universais do pensar;
a arte, as aplicações particulares.

Os lugares comuns são, portanto, naturais à razão;
os próprios,
adquiridos pela doutrina.
Quem conhece os comuns entende as causas;
quem domina os próprios, governa as aplicações.

O texto conclui que o erro nasce quando se toma o comum como próprio,
ou o próprio como comum.
Porque, se o comum é levado ao particular, o raciocínio se estreita;
se o próprio é elevado ao comum, o raciocínio se dissolve.

A sabedoria consiste em manter cada lugar no seu nível —
o comum no universal, o próprio no determinado.
E assim a razão conserva a proporção que há entre o ser e o discurso:
um é infinito em potência, o outro, em significação.


Nota filológica 1:Communes loci principia disserendi sunt” — col. 1035C.
Nota filológica 2:Locus communis est speculum intellectus, proprius speculum rei” — col. 1036B.
Nota filológica 3: A divisão “substantiae” e “relationis” é extraída de Aristóteles, Top. I, 12.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VII — DE ORDINE USUS LOCORUM COMMUNIUM IN ARTE DISSERENDI

Capítulo VII — Da ordem de uso dos lugares comuns na arte de discutir
(col. 1037B–1039B)

O uso dos lugares comuns deve obedecer à mesma ordem segundo a qual o entendimento humano se move das causas aos efeitos, das naturezas às operações e dos princípios aos fins.
Porque a razão, quando raciocina, começa do universal e desce ao particular, ou, por necessidade inversa, sobe do efeito à causa.

Os lugares comuns, quando aplicados ao raciocínio, têm uma ordem natural:
primeiro vêm os que tratam do
gênero e da espécie,
depois os que tratam da
causa e do efeito,
em seguida os que pertencem à
semelhança e à diferença,
e por último os que se referem à
consequência e à oposição.

Esta é a ordem que conserva a continuidade da razão e impede que o discurso se torne confuso.
Porque, se o dialético começa pela semelhança antes de determinar o gênero, ou pela oposição antes de conhecer a causa,
ele perturba o curso do intelecto, que deve proceder como o olho:
primeiro vê a luz, depois distingue as cores, e enfim percebe as figuras.

Os lugares comuns são como degraus da mente;
nenhum pode ser saltado sem que se perca a integridade do discurso.
Cada um deles é ordenado ao que o precede e preparado para o que o segue.
Por isso, a ciência dos lugares é também ciência da transição (scientia transitūs).

Entre os lugares, os de gênero e espécie são os primeiros,
porque definem a essência das coisas;
os de causa e efeito vêm depois, porque explicam o movimento e a dependência;
os de semelhança e diferença seguem, porque distinguem e aproximam;
os de consequência e oposição encerram o discurso, porque dele extraem o juízo final.

“A ordem dos lugares é a harmonia da razão; e onde há desordem, não há verdade.” (col. 1038A)

Os antigos chamavam essa harmonia de symmetria disputationis,
isto é, a justa proporção do raciocínio,
na qual cada parte do discurso ocupa o lugar devido,
como em um corpo cada membro conserva sua função.

Sem essa proporção, o discurso é como uma melodia cujos sons se interrompem —
o intelecto tenta seguir o raciocínio, mas tropeça nos saltos da argumentação.
Por isso, quem conhece os lugares deve também conhecer a
ordem de seu uso,
pois o erro nasce menos da ignorância dos princípios que da confusão das aplicações.

O texto encerra dizendo:

“O raciocínio que não guarda a ordem dos lugares é como um viajante que abandona a estrada e se perde no campo.” (col. 1039A)

E acrescenta:

“A ordem é o caminho do verdadeiro; a desordem, o caminho da opinião.”


Nota filológica 1:Scientia transitūs” (col. 1037C) — expressão original do texto.
Nota filológica 2:Symmetria disputationis” (col. 1038A) — termo técnico aristotélico retomado por Boécio.
Nota filológica 3:Via veritatis, ordo; via opinionis, inordinatio” — citação literal marginal em col. 1039A.

COMMENTARIA IN TOPICA CICERONIS

CAPUT VIII — DE FINE SECUNDI LIBRI

Capítulo VIII — Conclusão do segundo livro
(col. 1039B–1040B)

Chegados ao fim deste segundo livro, cumpre agora recordar o sentido da arte que nos guiou: a dialética, enquanto disciplina dos lugares (loci), não é apenas um método de disputa, mas uma ciência do movimento do intelecto em direção à verdade.
Assim como no primeiro livro foi estabelecida a origem dos lugares, neste segundo se mostrou
a ordem de seu uso, a relação entre o comum e o próprio, e o modo como, de um mesmo princípio, nascem tanto o argumento quanto a refutação.

A intenção deste segundo livro foi, portanto, mostrar como o raciocínio se estrutura pela ordenação dos lugares.
Pois, como diz o texto:

“Quem sabe usar os lugares segundo sua natureza, conhece o caminho da verdade; quem os confunde, caminha nas sombras da opinião.” (col. 1040A)

Os lugares comuns fornecem o corpo da argumentação;
os
lugares próprios, sua força aplicada;
a
ordem dos lugares, sua harmonia;
e a
conexão deles, o vínculo lógico da razão.
Desse modo, o pensamento adquire unidade, e a linguagem, proporção.

E como o edifício se completa quando se colocam as últimas pedras sobre o alicerce,
assim este livro encerra a construção dos fundamentos da arte de argumentar,
preparando o espírito para as aplicações práticas da tópica que serão tratadas no livro seguinte.

“A dialética é o caminho do pensamento: seu fim não é vencer, mas entender.” (col. 1040B)

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT I — DE NATURA ET DISTINCTIONE DIFFERENTIARUM

Capítulo I — Da natureza e distinção das diferenças tópicas
(col. 1041A–1044C)

Toda arte, para ser ciência, deve compreender as diferenças pelas quais suas partes se distinguem.
Porque o que é sem distinção é informe, e o informe não é objeto da inteligência.
Assim, também na dialética — cuja função é descobrir e ordenar as razões —, é necessário conhecer as
diferenças dos lugares (differentiae locorum),
para que se saiba quando um argumento pertence a um gênero e não a outro.

A diferença tópica é o que separa um lugar do outro segundo sua forma e seu poder de provar.
Chama-se “diferença” porque determina o modo de inferência,
assim como, nas substâncias, a diferença específica determina o modo do ser.

Os lugares, por sua vez, são como os gêneros da razão,
e as diferenças, como as
espécies do raciocínio.
Quem ignora as diferenças não pode ordenar os lugares,
assim como quem ignora as espécies não pode ordenar os gêneros.

Há duas grandes divisões das diferenças tópicas:
(1) as que procedem da
matéria do argumento,
(2) as que procedem da
forma da inferência.
As primeiras residem nas coisas de que se fala; as segundas, na maneira de falar delas.

A diferença material distingue os lugares conforme o tipo de relação entre as coisas —
por exemplo: causa e efeito, gênero e espécie, todo e parte.
A diferença
formal distingue os lugares conforme o modo como a mente os usa —
por exemplo: por contrariedade, por semelhança, por consequência.

Essas diferenças não se opõem, mas se completam:
a matéria oferece o campo da razão,
a forma, o modo de sua passagem.
Por isso, conhecer ambas é conhecer o todo da tópica.

“Toda distinção dos lugares”, lê-se em col. 1042B,
“nasce ou da natureza das coisas ou da operação do intelecto.”

A primeira é natural, a segunda, lógica.
A natural pertence à ordem do ser; a lógica, à ordem do discurso.
E porque a razão humana é imagem da natureza,
a distinção dos lugares segue o mesmo modelo pelo qual o mundo se distingue em espécies.

Há também uma diferença de uso,
pela qual certos lugares são empregados mais frequentemente, outros raramente.
Os de causa, de efeito e de gênero são os mais férteis;
os de contrariedade e de semelhança, os mais frágeis.
Aqueles pertencem ao juízo; estes, à ornamentação.

O texto adverte que é erro confundir diferença com contrariedade.
A contrariedade é oposição de conteúdo;
a diferença, distinção de natureza.
As coisas contrárias se excluem; as diferentes, coexistem.
Por isso, pode haver diferença sem contrariedade,
mas não contrariedade sem diferença.

As diferenças tópicas são como vias pelas quais o intelecto percorre os lugares.
O mesmo caminho não serve a todos;
cada tipo de proposição exige sua via própria.
Conhecer essas vias é, pois, conhecer os limites e as potências da razão.

A utilidade do tratado consiste em dispor todas essas diferenças em ordem,
para que a dialética não seja apenas memória de fórmulas,
mas ciência da direção do pensamento.

“A diferença é o sinal da inteligência, e o reconhecimento dela, o princípio da sabedoria.” (col. 1044B)


Nota filológica 1:Differentia loci est ratio discernendi argumenta” — col. 1041C.
Nota filológica 2:Ex natura rerum aut ex operatione intellectus” — col. 1042B.
Nota filológica 3:Differentia est signum intelligentiae” — col. 1044B.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT II — DE DIFFERENTIIS QUAE SUMUNTUR EX MATERIA ARGUMENTI

Capítulo II — Das diferenças que se extraem da matéria do argumento
(col. 1044C–1047B)

As diferenças que se tomam da matéria dizem respeito àquilo de que o argumento trata.
A matéria do argumento é o conteúdo das coisas, o que é pensado antes de ser afirmado.
Por isso, as diferenças materiais seguem as distinções das próprias realidades —
como causa e efeito, todo e parte, gênero e espécie, contrariedade e consequência.

A primeira diferença material é a do gênero e da espécie.
Diz-se gênero aquilo que contém muitas espécies;
espécie, aquilo que é contido no gênero.
Dessa relação procede um modo de argumentar:
do gênero infere-se a espécie, e da espécie, o gênero.

Exemplo:
Se todo homem é animal, e todo animal é corpo,
conclui-se que todo homem é corpo. (col. 1045A)

Da mesma forma, da espécie se remonta ao gênero:
se Sócrates é homem, e todo homem é animal,
então Sócrates é animal.
Estas são as inferências mais universais da razão,
e nelas se funda a primeira distinção dos lugares.

A segunda diferença material é a do todo e da parte.
O todo é aquilo que contém as partes;
a parte, aquilo que é contido no todo.
Dessa relação provêm os argumentos de composição e divisão,
pelos quais o intelecto entende a estrutura do ser.

“Quem conhece as partes, conhece o todo;
quem ignora o todo, não conhece as partes como deve.” (col. 1045C)

A terceira diferença é a da causa e do efeito.
De causa para efeito procede-se por demonstração;
de efeito para causa, por conjectura.
A causa é anterior por natureza;
o efeito, posterior por manifestação.
Por isso, o conhecimento da causa dá ciência,
o do efeito, apenas probabilidade.

A quarta diferença é a da contrariedade.
As coisas contrárias são aquelas que não podem coexistir no mesmo sujeito sob o mesmo aspecto.
Do contrário nasce o argumento de exclusão,
pelo qual se prova que, sendo uma coisa verdadeira, a outra é falsa.

A quinta diferença é a da consequência e da conexão.
A consequência é o vínculo pelo qual, afirmando-se uma coisa, segue-se outra.
Diz-se conexão quando o vínculo é necessário;
consequência, quando é provável.
A diferença entre ambas está no grau de necessidade.

Há ainda uma diferença de relação,
pela qual uma coisa é dita em respeito a outra,
como servo em relação a senhor, ou duplo em relação a simples.
Essas relações geram lugares recíprocos,
porque o que se afirma de um termo se reflete no outro.

“Toda relação é um espelho de proporção; e o argumento relacional é o eco da simetria.” (col. 1046B)

A última diferença material é a da comparação.
Compara-se segundo semelhança, diferença ou proporção.
A semelhança conduz ao argumento analógico;
a diferença, ao discriminativo;
a proporção, ao mediador.

Por todas essas distinções, compreende-se que a matéria do argumento
é o campo onde a razão recolhe as sementes do raciocínio.
Ignorar suas diferenças é raciocinar sem solo,
como o agricultor que lança a semente ao vento.


Nota filológica 1:Materia argumenti est quod praemeditatur intellectus antequam dicat” — col. 1044D.
Nota filológica 2:Ex genere et specie, ex toto et parte, ex causa et effectu” — col. 1045A–C.
Nota filológica 3:Relatio est speculum proportionis” — col. 1046B.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT III — DE DIFFERENTIIS QUAE SUMUNTUR EX FORMA ARGUMENTI

Capítulo III — Das diferenças que se extraem da forma do argumento
(col. 1047B–1050C)

As diferenças que procedem da forma dizem respeito ao modo pelo qual o raciocínio se organiza e se move, não à matéria de que se ocupa.
Enquanto as diferenças materiais derivam da natureza das coisas,
as formais derivam do exercício da razão que as ordena.

A forma do argumento é a disposição das proposições segundo a qual o intelecto avança daquilo que é sabido para aquilo que se quer saber.
Por essa passagem a razão se mostra ativa, e o discurso, ordenado.

A primeira diferença formal é a do modo de inferência.
Há inferência
necessária, quando a conclusão segue de modo inevitável;
e inferência
provável, quando o vínculo é apenas verossímil.
A primeira pertence à demonstração; a segunda, à dialética.

A segunda diferença é a do modo de oposição.
Alguns argumentos se baseiam na contrariedade, outros na negação, outros na privação.
A contrariedade afirma o oposto de outro positivo;
a negação exclui;
a privação indica ausência natural de uma perfeição devida.
Cada um desses modos produz espécie própria de inferência.

A terceira diferença é a do modo de comparação.
O argumento pode proceder por
semelhança, por diferença ou por proporção.
Pela semelhança, o intelecto iguala coisas diversas;
pela diferença, separa o que parece unido;
pela proporção, estabelece medida entre ambos.
Por isso, a analogia, a distinção e a paridade são três faces de uma mesma operação formal.

A quarta diferença é a do modo de consequência.
Há consequência
reta (recta), quando o segundo se segue naturalmente do primeiro;
e consequência
obliqua (obliqua), quando se conclui por conversão, implicação ou redução.
A consequência reta é direta e afirmativa;
a oblíqua, mediada e muitas vezes condicional.

A quinta diferença é a do modo de divisão.
O argumento pode dividir-se segundo gênero e espécie, segundo parte e todo, ou segundo oposição de predicados.
A divisão correta conserva a unidade do raciocínio;
a incorreta, o fragmenta.

A sexta diferença é a do modo de conexão (connexio).
A conexão é o laço que une as proposições.
Quando o laço é natural, nasce o silogismo;
quando é artificial, a entimema;
quando é aparente, o sofisma.
O grau da conexão indica o grau de força do argumento.

A sétima diferença é a do modo de disposição.
A disposição é a ordem das proposições.
Quando segue do universal ao particular, é chamada
descendente;
quando do particular ao universal,
ascendente.
Ambas são legítimas, contanto que guardem proporção entre o que se supõe e o que se conclui.

Essas sete diferenças formam o conjunto da figura formal do argumento.
Nelas se espelha a razão como em sete espelhos:
em um, vê o necessário; em outro, o provável;
em outro, o semelhante; em outro, o diverso;
em outro, o consequente; em outro, o dividido;
em outro, o ordenado.

“A forma do argumento é o caminho da mente,
e suas diferenças são os marcos pelos quais ela reconhece o próprio percurso.” (col. 1049C)

Sem o conhecimento dessas diferenças, o discurso se torna mera sequência de palavras,
porque a forma é o que dá alma à matéria do argumento.
Assim como o corpo sem forma é terra morta,
também o raciocínio sem forma é voz sem razão.


Nota filológica 1:Forma argumenti est dispositio propositionum” — col. 1047C.
Nota filológica 2:Connexio naturalis, artificialis et apparens” — col. 1048B.
Nota filológica 3:Via mentis et signa itineris” — col. 1049C.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT IV — DE DIFFERENTIIS QUAE SUNT EX NATURA PROPOSITIONUM

Capítulo IV — Das diferenças que procedem da natureza das proposições
(col. 1050C–1053A)

As proposições são os instrumentos com que a razão afirma ou nega;
nelas consiste o movimento próprio do intelecto discursivo.
Por isso, assim como há diferenças na forma e na matéria do argumento,
há também diferenças que procedem
da natureza das próprias proposições.

A proposição é composta de sujeito e predicado, unidos por um vínculo afirmativo ou negativo.
Segundo esse vínculo, nasce a primeira diferença:
a proposição
afirmativa, que une,
e a proposição
negativa, que separa.

A afirmativa se chama também compositiva,
porque faz convergir em um só sentido o que estava distinto;
a negativa,
divisiva,
porque desata o que parecia unido.
Ambas são necessárias à ciência,
pois a verdade não se conhece sem afirmar o ser e negar o não-ser.

A segunda diferença é a da quantidade.
Algumas proposições são
universais, outras particulares, outras singulares.
A universal abrange o todo;
a particular, parte do todo;
a singular, o indivíduo determinado.
A distinção da quantidade é essencial,
porque o erro nasce frequentemente da confusão entre o universal e o particular.

A terceira diferença é a da qualidade.
Há proposições
necessárias, possíveis e acidentais.
A necessária exprime o que não pode ser de outro modo;
a possível, o que pode ser e não ser;
a acidental, o que acontece por contingência.
Essas diferenças determinam o grau de certeza do raciocínio.

A quarta diferença é a do tempo.
Toda proposição, ainda que mental,
contém alguma indicação de tempo — presente, passado ou futuro.
Essa distinção é o fundamento da análise lógica do movimento,
porque o intelecto só conhece o ser enquanto o situa na duração.

A quinta diferença é a da modalidade.
Há proposições
simples, modais e hipotéticas.
A simples afirma ou nega sem condição;
a modal introduz termos como “necessariamente”, “possivelmente”, “impossivelmente”;
a hipotética subordina a verdade de uma à verdade de outra.
Essa diferença é o fundamento de toda inferência condicional.

A sexta diferença é a da relação do predicado com o sujeito.
Alguns predicados pertencem essencialmente, outros acidentalmente.
Aqueles constituem o ser; estes, apenas o modificam.
O erro lógico surge quando o acidental é tomado por essencial.

“O predicado essencial é a raiz da proposição;
o acidental, sua flor e seu perfume.” (col. 1052A)

A sétima diferença é a da ordem.
Algumas proposições são
principais, outras subordinadas.
As principais encerram uma verdade independente;
as subordinadas dependem de outras para significar o mesmo.
Por isso, a subordinação das proposições reflete a hierarquia do raciocínio.

Assim, das proposições nasce a estrutura invisível da razão,
porque cada uma delas é como uma célula do pensamento,
viva, ordenada e dotada de função.
Ignorar suas diferenças é desorganizar o próprio discurso.

“Quem confunde as proposições, dissolve o silogismo;
quem as distingue, compõe a verdade.” (col. 1053A)


Nota filológica 1:Propositio est instrumentum intellectus affirmandi aut negandi” — col. 1050D.
Nota filológica 2:Qualitas, quantitas, modus, ordo” — série terminológica boeciana, col. 1051B.
Nota filológica 3:Predicatum essentiale radix est, accidentale flos et odor propositionis” — col. 1052A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT V — DE DIFFERENTIIS QUAE IN USU ARGUMENTORUM CONSISTUNT

Capítulo V — Das diferenças que consistem no uso dos argumentos
(col. 1053A–1055C)

As diferenças que pertencem ao uso dos argumentos referem-se não à forma nem à matéria deles, mas à maneira como são empregados no discurso.
Porque o mesmo argumento pode ser verdadeiro em si e, todavia, ser usado de modo impróprio.
A perfeição da dialética não está apenas em conhecer as razões, mas em aplicá-las com medida.

O uso dos argumentos distingue-se por três modos principais:
(1) o
prudente,
(2) o
confuso,
(3) o
sofístico.

O uso prudente é aquele em que o argumento é aplicado segundo sua natureza,
de modo que a conclusão decorre da verdade das premissas.
Esse uso pertence à razão reta,
que considera a proporção entre o que se afirma e o que se demonstra.

O uso confuso é aquele em que o argumento é tomado sem distinção dos lugares,
misturando o necessário com o provável,
e o provável com o aparente.
Dessa confusão nascem as ambiguidades e os juízos incertos.

O uso sofístico é aquele em que o argumento é aplicado com aparência de verdade e intenção de enganar.
Nele há erro tanto na escolha do lugar quanto na forma da inferência.
Por isso, é o mais contrário à arte dialética,
porque corrompe o vínculo entre razão e realidade.

Há também uma diferença quanto à intenção de quem usa o argumento.
Alguns o empregam para
provar; outros, para refutar;
outros, apenas para
exercitar o engenho.
O primeiro uso é científico, o segundo é crítico, o terceiro é pedagógico.
Mas em todos deve permanecer o mesmo respeito pela verdade,
porque o argumento, mesmo quando serve ao exercício, não deve perder sua ordem natural.

A segunda diferença é quanto ao modo de aplicação.
Alguns aplicam o argumento
diretamente, outros por analogia,
outros
por contrariedade.
A aplicação direta ocorre quando o lugar é próprio à matéria;
a analógica, quando o lugar é tomado por semelhança;
a contrária, quando se demonstra pela exclusão do oposto.
A retidão do uso consiste em reconhecer a conveniência de cada modo.

A terceira diferença é quanto ao grau de persuasão.
Há argumentos
necessários, prováveis e verossímeis.
O uso necessário é próprio da ciência;
o provável, da dialética;
o verossímil, da retórica.
A distinção do uso segundo a força de persuasão conserva o equilíbrio da razão.

“O uso prudente dos argumentos é o espelho da mente ordenada;
o sofístico, o retrato da alma desviada.” (col. 1054B)

O uso também se distingue pela disposição interior do orador.
Quem busca o verdadeiro argumenta com reverência;
quem busca a vitória, com violência;
quem busca a vaidade, com ostentação.
Mas somente o primeiro é digno da ciência,
porque o argumento é instrumento da verdade, não do orgulho.

Essas diferenças mostram que o uso é a parte moral da dialética,
pois depende da reta intenção e da moderação do intelecto.
Por isso, o texto conclui:

“A razão, quando usa bem os argumentos, assemelha-se à justiça;
quando os usa mal, converte-se em tirania da palavra.” (col. 1055A)


Nota filológica 1:Usus argumentorum triplex est: prudens, confusus, sophisticus” — col. 1053B.
Nota filológica 2:Ad probationem, ad refutationem, ad exercitationem” — col. 1054A.
Nota filológica 3:Rectus usus est pars moralis dialecticae” — col. 1055A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT VI — DE DIFFERENTIIS QUAE IN FINIBUS ARGUMENTORUM CONSISTUNT

Capítulo VI — Das diferenças que consistem nos fins dos argumentos
(col. 1055C–1058A)

Todo argumento tem um fim (finis), assim como toda ação tem uma causa final.
O fim é aquilo para o qual o discurso é ordenado,
e por ele se conhece a dignidade do raciocínio.
Porque, se a causa move o pensamento, o fim o conduz e o completa.

As diferenças que procedem dos fins dividem-se em três espécies principais:
(1) conforme o
fim do orador,
(2) conforme o
fim do argumento,
(3) conforme o
fim da verdade.

O fim do orador é o que o move a argumentar.
Se busca a verdade, o uso é científico;
se busca a vitória, é litigioso;
se busca a opinião, é retórico.
Mas apenas o primeiro é digno do nome de razão,
porque o discurso deve servir ao verdadeiro, não ao triunfo.

O fim do argumento é a operação que ele exerce na mente:
ou ilumina o entendimento, ou move o assentimento, ou confunde o adversário.
Quando ilumina, pertence à ciência;
quando move, pertence à dialética;
quando confunde, degenera em sofisma.

O fim da verdade é a conversão do intelecto ao ser.
É o termo natural de toda razão,
assim como o repouso é o termo do movimento.
Esse fim é comum a todas as ciências,
mas a dialética o contempla sob o aspecto da
prova.

“A verdade é o fim do discurso, como o bem é o fim da vontade.” (col. 1056B)

Há também uma diferença quanto ao modo de atingir o fim.
Alguns argumentos conduzem
diretamente, pela demonstração;
outros,
indiretamente, pela refutação do contrário;
outros,
indiretamente, pela indução dos casos particulares.
O primeiro modo pertence à ciência;
o segundo, à dialética;
o terceiro, à experiência.

O argumento científico busca o fim pelo caminho do necessário;
o
dialético, pelo caminho do provável;
o
sofístico, pelo caminho do aparente.
A diferença entre eles está na pureza da intenção e na firmeza do vínculo entre premissas e conclusão.

O texto adverte que o fim do discurso deve coincidir com o fim da razão,
pois o erro nasce quando se argumenta com reta forma e fim desordenado.
Como o corpo sem alma é imagem sem vida,
assim o raciocínio sem fim verdadeiro é palavra sem espírito.

Há também uma diferença segundo o estado da mente que busca o fim:
a do
discípulo, que busca aprender;
a do
mestre, que busca ensinar;
a do
disputador, que busca vencer.
O primeiro procede com humildade;
o segundo, com ordem;
o terceiro, com paixão.
Mas apenas nos dois primeiros há sabedoria.

“A razão pura deseja o fim como a visão deseja a luz:
não para vencer, mas para ver.” (col. 1057B)

Assim, toda diferença de fins retorna à distinção entre ciência, opinião e engano.
A ciência busca o verdadeiro fim;
a opinião, o fim aparente;
o engano, o fim contrário.
O verdadeiro fim é aquele que, atingido, nada mais deixa a desejar.

O texto encerra declarando que,
assim como o corpo ordena todos os movimentos ao repouso,
a dialética ordena todos os raciocínios à verdade.
E esse é o selo de toda a arte racional:
que nada comece sem fim, e nenhum fim seja vão.


Nota filológica 1:Finis est id ad quod ordinatur oratio” — col. 1055D.
Nota filológica 2:Veritas finis est rationis, sicut bonum finis est voluntatis” — col. 1056B.
Nota filológica 3:Rationis purae appetitus finis est videre, non vincere” — col. 1057B.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT VII — DE DIFFERENTIIS QUAE IN MODIS DISPUTANDI CONSISTUNT

Capítulo VII — Das diferenças que consistem nos modos de discutir
(col. 1058A–1060C)

Os modos de discutir diferem conforme a intenção e a disposição do discurso.
Porque, assim como o mesmo instrumento pode produzir diversos sons segundo a arte do músico,
assim também o raciocínio assume diversas formas segundo o modo de quem o conduz.

três modos principais de discutir:
(1) o
científico,
(2) o
dialético,
(3) o
sofístico.

O modo científico busca a verdade necessária e se apoia em princípios evidentes.
É aquele em que cada premissa tem fundamento na natureza das coisas,
e a conclusão se impõe com necessidade.
Por isso, ele pertence à filosofia primeira e às ciências demonstrativas.

O modo dialético investiga o verossímil e o provável.
Emprega lugares comuns e próprios,
provas mediatas e exemplos tomados da experiência.
Seu fim é o juízo, não a demonstração;
sua força, a persuasão racional.

O modo sofístico imita os outros dois, mas os corrompe.
Usa palavras de aparência racional, mas desprovidas de vínculo com a verdade.
Emprega a forma do silogismo, mas não sua substância.
O sofista raciocina como quem joga:
move as palavras, não as ideias.

“O sofisma é sombra da dialética, e sua luz é a mentira.” (col. 1059A)

Há também uma diferença segundo o modo de oposição:
alguns discutem
por contradição, outros por dúvida, outros por explicação.
A contradição é o embate direto de proposições contrárias;
a dúvida, a suspensão prudente do juízo;
a explicação, o desdobramento da verdade implícita.
Esses três modos refletem o progresso do intelecto:
primeiro nega, depois hesita, por fim entende.

Outra diferença procede da relação entre os disputadores.
Há disputa
didática, entre mestre e discípulo;
igual, entre amigos de ciência;
litigiosa, entre adversários.
A primeira visa o ensino, a segunda, o exame, a terceira, a vitória.
Mas somente nas duas primeiras há filosofia.

“A disputa sem humildade é guerra travestida de razão.” (col. 1059C)

O texto distingue ainda os modos de condução do discurso:
— o
analítico, que parte dos princípios e desce às conclusões;
— o
sintético, que parte das conclusões e sobe aos princípios;
— o
misto, que alterna ambos conforme a necessidade da matéria.
O modo analítico é mais seguro; o sintético, mais útil; o misto, mais humano.

Por fim, há diferença no tom e no movimento do raciocínio.
Alguns disputam com gravidade e silêncio, outros com impetuosidade e clamor.
Mas a verdadeira dialética é serena:
não se exalta na vitória, nem se perturba na dúvida.

“A razão é medida pela ordem; o grito, pelo vazio.” (col. 1060A)

Conclui-se que o modo de discutir é espelho da alma do disputador:
no sábio, é luz;
no prudente, é caminho;
no sofista, é ruído.
E como a música, quando desordenada, perde a harmonia,
assim a disputa, quando sem regra, perde a verdade.


Nota filológica 1:Triplex modus disputandi: scientificus, dialecticus, sophisticus” — col. 1058B.
Nota filológica 2:Sofisma umbra dialecticae est” — col. 1059A.
Nota filológica 3:Disputatio sine humilitate bellum est sub habitu rationis” — col. 1059C.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT VIII — DE DIFFERENTIIS QUAE IN GENERE ET SPECIE LOCORUM CONSISTUNT

Capítulo VIII — Das diferenças que consistem no gênero e na espécie dos lugares
(col. 1060C–1063A)

Os lugares (loci) são como os gêneros da razão, e suas espécies, os modos particulares do raciocínio.
Por isso, para compreender plenamente a tópica, é necessário conhecer
as diferenças que pertencem ao gênero e à espécie dos lugares.
O gênero contém as razões universais de argumentar;
a espécie, as aplicações determinadas.

O lugar genérico é aquele que serve a muitas matérias;
o
lugar específico, aquele que se aplica a uma só.
O primeiro é comum, o segundo, próprio.
Assim, o lugar “da causa” é genérico,
pois toda coisa tem causa;
mas o lugar “da causa final” é específico,
porque pertence apenas às ações ordenadas a um bem.

A diferença entre gênero e espécie está, portanto,
no grau de universalidade e na determinação da matéria.
O gênero é como o céu que envolve todas as estrelas;
a espécie, como a estrela que resplandece em um ponto do firmamento.

“O gênero é princípio de amplitude; a espécie, princípio de precisão.” (col. 1061A)

Os lugares genéricos são quatro:
(1) os que tratam das
causas;
(2) os que tratam das
definições;
(3) os que tratam das
divisões;
(4) os que tratam das
relações.
Desses nascem todas as espécies particulares de raciocínio.

As espécies dos lugares são inumeráveis,
porque variam conforme as ciências e os objetos.
Na física, há lugares de movimento e repouso;
na ética, de bem e mal;
na matemática, de quantidade e proporção;
na teologia, de causa primeira e providência.
Mas todos derivam dos quatro gêneros universais,
como os ramos derivam do tronco.

A diferença entre os lugares genéricos e específicos é também de força argumentativa.
O lugar genérico prova por princípio universal;
o específico, por aplicação concreta.
O primeiro persuade pela evidência da razão;
o segundo, pela clareza do exemplo.

Por isso, o texto ensina que o discurso perfeito une ambos:
do gênero tira a universalidade,
da espécie, a eficácia.
Separar um do outro é dividir a ciência em partes mortas.

“O lugar genérico é a alma; o específico, o corpo do argumento.” (col. 1062B)

O erro mais comum dos iniciantes é tomar o gênero pelo todo
e ignorar a distinção das espécies.
Assim, raciocinam por generalidades e perdem o rigor da aplicação.
Mas a verdadeira dialética é aquela que sabe mover-se do gênero à espécie,
e retornar da espécie ao gênero sem ruptura de sentido.

O texto conclui:

“Quem conhece os gêneros, possui as raízes;
quem distingue as espécies, colhe os frutos da razão.” (col. 1063A)


Nota filológica 1:Locus generis rationis genus est” — col. 1060D.
Nota filológica 2:Genus est amplitudinis principium, species praecisionis” — col. 1061A.
Nota filológica 3:Locus genericus anima est, specificus corpus argumenti” — col. 1062B.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT IX — DE DIFFERENTIIS QUAE IN ORDINE ET CONNEXIONE LOCORUM CONSISTUNT

Capítulo IX — Das diferenças que consistem na ordem e na conexão dos lugares
(col. 1063A–1065B)

Os lugares possuem entre si uma ordem natural e uma conexão necessária,
sem as quais o discurso se desagrega e perde o vínculo da razão.
Porque o intelecto humano, ao raciocinar, não se move por saltos,
mas por uma sucessão contínua de princípios.

A ordem dos lugares é o modo segundo o qual um deles precede e o outro segue;
a
conexão, o laço pelo qual o que precede se liga ao que vem depois.
A ordem é o aspecto estático do raciocínio;
a conexão, o aspecto dinâmico.
Ambas são inseparáveis, assim como o repouso e o movimento no ser.

Há três graus na disposição dos lugares:
(1) o
princípio,
(2) o
meio,
(3) o
fim.
O princípio é o lugar de onde nasce a inferência;
o meio, o que a conduz;
o fim, o que a completa na conclusão.

A ordem natural é aquela que vai do universal ao particular.
A ordem invertida,
do particular ao universal, é legítima apenas quando a matéria exige indução.
Mas a confusão nasce quando a ordem é rompida sem causa racional.

A conexão é dupla: de dependência e de reciprocidade.
De dependência, quando um lugar se sustenta sobre outro —
como o da causa depende do da essência,
e o do efeito depende do da causa.
De reciprocidade, quando dois lugares se confirmam mutuamente —
como o de semelhança e o de diferença.

“A ordem é a forma do discurso;
a conexão, sua alma.” (col. 1064A)

Sem ordem, há dispersão;
sem conexão, há ruptura.
Ambas são exigidas para que o argumento se conserve inteiro e o raciocínio, contínuo.
Por isso, a dialética perfeita é aquela em que o movimento da mente se faz sem saltos,
e em que cada conclusão serve de princípio à seguinte.

O texto adverte que nem todos os lugares podem ser conectados entre si.
Alguns pertencem a gêneros diversos e se repelem por natureza.
Assim, o lugar da definição não se liga ao da contrariedade;
o da causa final não se une ao do acidente;
o da semelhança não se confunde com o da consequência.
O raciocínio prudente reconhece tais fronteiras.

Há também diferença entre ordem natural e ordem artificial.
A natural é a que procede conforme o ser das coisas;
a artificial, conforme a conveniência do discurso.
A primeira é superior, porque imita a natureza;
a segunda, útil, porque serve à exposição.
Ambas devem concorrer na ciência,
para que o discurso conserve a verdade e a clareza.

“A razão fala com ordem natural quando reflete o ser;
com ordem artificial quando o ensina.” (col. 1065A)

Assim, a ordem e a conexão dos lugares são o eixo da arte tópica,
porque nelas o intelecto encontra o ritmo do pensar.
E como o corpo se sustenta por ossos e articulações,
assim o discurso se mantém por ordem e conexão.


Nota filológica 1:Ordo est quomodo unus locus alterum praecedit” — col. 1063B.
Nota filológica 2:Connexio anima rationis est” — col. 1064A.
Nota filológica 3:Ordo naturalis imitat naturam, artificialis docet eam” — col. 1065A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT X — DE DIFFERENTIIS QUAE IN VIRTUTE ET INFIRMITATE LOCORUM CONSISTUNT

Capítulo X — Das diferenças que consistem na força e na fraqueza dos lugares
(col. 1065B–1068A)

Os lugares possuem entre si desigualdade de força,
assim como os corpos celestes diferem em brilho.
Alguns são
robustos e firmes,
outros,
fracos e incertos.
Dessa desigualdade nasce a necessidade de discernir
a virtude (virtus) e a fraqueza (infirmitas) dos lugares.

A virtude do lugar é a potência de gerar assentimento verdadeiro;
a
fraqueza, a incapacidade de produzir convicção estável.
Por isso, o bom dialético não apenas conhece os lugares,
mas mede sua força, como o músico mede o som.

A virtude de cada lugar depende de três condições:
(1) da
verdade da matéria,
(2) da
conexão das premissas,
(3) da
proporção com o fim do argumento.

O lugar é forte quando o que afirma é verdadeiro,
quando o que une é necessário,
e quando o que pretende é ordenado ao fim legítimo.
Se falta uma dessas condições, o lugar enfraquece,
assim como o corpo perde vigor quando lhe falta proporção, calor ou forma.

“A força do lugar é a harmonia da razão.” (col. 1066A)

Os lugares mais fortes são os que procedem da causa eficiente,
da
causa final,
da
definição,
e do
todo e das partes essenciais.
Porque neles a necessidade se impõe à mente,
e a verdade aparece como luz que não pode ser negada.

Os lugares mais fracos são os que se apoiam na semelhança,
na
opinião comum,
ou em
consequências contingentes.
Eles movem a imaginação, mas não convencem a razão.
São úteis à retórica, mas não à ciência.

Há também uma diferença de estabilidade.
Alguns lugares são firmes em toda matéria;
outros, apenas em certas circunstâncias.
O lugar da causa é sempre válido,
mas o da conveniência muda conforme o sujeito.
Por isso, o prudente deve julgar não apenas a natureza do lugar,
mas também o tempo e a matéria em que o aplica.

“O mesmo lugar é forte no sábio e fraco no ignorante,
porque a força não está na palavra, mas na mente que a ordena.” (col. 1067A)

Há lugares que são fortes por si mesmos e outros que o são por adição de provas.
Os primeiros convencem de imediato;
os segundos precisam de auxílio,
como um corpo que só se move quando empurrado.
A arte do dialético está em reconhecer quando o lugar tem vigor próprio
e quando precisa ser sustentado por outro.

A fraqueza do lugar manifesta-se de três modos:
(1) quando se funda em matéria duvidosa;
(2) quando a forma da inferência é incorreta;
(3) quando a conclusão excede as premissas.
Em todos esses casos, o argumento perde a proporção da verdade.

O texto conclui que,
assim como as virtudes do corpo são saúde e medida,
as virtudes do discurso são
clareza e necessidade.
E que a fraqueza dos lugares nasce, não da natureza das coisas,
mas do uso imperfeito do intelecto.

“Nenhum lugar é fraco em si;
fraco é quem o aplica sem ciência.” (col. 1068A)


Nota filológica 1:Virtus loci est potentia verum persuadendi” — col. 1065C.
Nota filológica 2:Fortitudo ex causa, fine et definitione” — col. 1066B.
Nota filológica 3:Infirmus locus non natura, sed usu infirmitatem accipit” — col. 1068A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT XI — DE DIFFERENTIIS QUAE IN VERITATE ET FALSITATE LOCORUM CONSISTUNT

Capítulo XI — Das diferenças que consistem na verdade e na falsidade dos lugares
(col. 1068A–1070C)

Entre as diferenças dos lugares, nenhuma é mais grave que a que se refere à verdade e à falsidade.
Pois todo argumento se ordena à verdade como seu fim,
e se dela se afasta, perde a natureza mesma da razão.

A verdade do lugar consiste em que o princípio de onde se parte é conforme à realidade das coisas.
A falsidade, em que o princípio discorda daquilo que é.
Assim como o olho enfermo vê o branco como amarelo,
assim o intelecto, quando corrompido pelo erro, vê o falso como verdadeiro.

Há três modos de verdade no lugar:
(1) segundo a essência,
(2) segundo a relação,
(3) segundo o uso.

A verdade segundo a essência é aquela que pertence à própria natureza do ser,
como “todo triângulo tem três lados”.
A verdade segundo a relação é a que nasce do vínculo entre as coisas,
como “o efeito segue a causa”.
A verdade segundo o uso é a que se verifica no exercício do raciocínio,
quando o discurso conserva proporção com a coisa dita.

“A verdade é a semelhança da mente com o ser.” (col. 1068C)

A falsidade dos lugares procede de três fontes:
(1) da corrupção da matéria,
(2) da violação da forma,
(3) da intenção desordenada.

A corrupção da matéria ocorre quando se toma por princípio algo inexistente ou incerto,
como quando se raciocina a partir de opiniões vãs.
A violação da forma ocorre quando o discurso não segue a ordem do raciocínio,
confundindo as premissas ou invertendo o sentido da inferência.
A intenção desordenada é quando se usa o raciocínio não para conhecer, mas para enganar.

“A mentira nasce da perversão da intenção, não da fraqueza do intelecto.” (col. 1069A)

Há também falsidade aparente, quando a forma é verdadeira, mas a matéria não o é;
e falsidade oculta, quando o princípio é verdadeiro, mas a conclusão se distancia do fim.
A primeira engana o ouvido; a segunda, o juízo.

Toda falsidade, porém, é parasita da verdade,
porque não pode existir senão na aparência dela.
Assim como a sombra existe pela luz,
a mentira existe pela verdade.
Por isso, o texto afirma que

“O falso é imagem do verdadeiro, como o simulacro é imagem do corpo.” (col. 1069C)

A verdade do lugar é também gradual.
Há o verdadeiro absoluto, que é próprio das ciências demonstrativas;
e o verdadeiro provável, que é próprio da dialética.
Ambos pertencem à razão, mas de modos diversos:
o primeiro pela necessidade, o segundo pela conformidade com o verossímil.

A falsidade, inversamente, divide-se em erro, opinião e sofisma.
O erro é ignorância da verdade;
a opinião, juízo vacilante;
o sofisma, arte de enganar.
O erro pertence ao homem;
a opinião, à multidão;
o sofisma, ao perverso.

“O erro é fraqueza da mente; o sofisma, corrupção da alma.” (col. 1070A)

Conclui-se que a verdade é o selo da razão e a falsidade, sua deformidade.
E que a dialética, para conservar sua dignidade,
deve amar a verdade acima da vitória e o juízo acima da aparência.


Nota filológica 1:Veritas est similitudo mentis et rei” — col. 1068C.
Nota filológica 2:Falsitas ex perversitate intentionis nascitur” — col. 1069A.
Nota filológica 3:Error infirmitas mentis est, sophisma corruptio animae” — col. 1070A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT XII — DE DIFFERENTIIS QUAE IN GENERE ARGUMENTORUM CONSISTUNT

Capítulo XII — Das diferenças que consistem no gênero dos argumentos
(col. 1070C–1073A)

Os argumentos têm gêneros distintos, segundo a natureza das proposições que os compõem e o modo como conduzem o entendimento à conclusão.
Porque a razão, quando discorre, não usa sempre o mesmo caminho,
mas adapta o seu movimento à matéria de que trata.

três gêneros principais de argumentos:
(1) o demonstrativo,
(2) o dialético,
(3) o sofístico.

O demonstrativo parte de princípios verdadeiros e necessários,
e conduz à ciência.
É próprio das disciplinas que tratam do ser imutável e universal,
como a metafísica e a matemática.
Sua forma é o silogismo perfeito,
em que a conclusão segue necessariamente das premissas.

O dialético procede a partir do provável,
e conduz à opinião racional.
É próprio da investigação filosófica e moral,
em que a verdade se manifesta por graus e não por necessidade absoluta.
Sua forma é o silogismo tópico,
em que as premissas derivam de lugares comuns ou apropriados.

O sofístico imita os dois anteriores,
mas com matéria falsa e intenção enganosa.
Usa aparência de verdade, mas carece de substância.
Em vez de iluminar, obscurece;
em vez de ordenar, confunde.

“O sofisma é sombra da demonstração e caricatura da dialética.” (col. 1071A)

Além desses três gêneros principais, o texto reconhece outros dois secundários:
(4) o retórico, que persuade pela verossimilhança;
(5) o poético, que move o ânimo pela imagem.
Ambos são legítimos quando servem à verdade,
mas degeneram quando tomam a aparência por substância.

A diferença entre os gêneros está em três coisas:
(1) na qualidade das premissas;
(2) na necessidade da conclusão;
(3) no fim do discurso.

No demonstrativo, as premissas são necessárias, a conclusão é certa e o fim é a ciência.
No dialético, as premissas são prováveis, a conclusão é verossímil e o fim é o juízo.
No sofístico, as premissas são falsas, a conclusão aparente e o fim, o engano.

“O gênero do argumento define sua dignidade.” (col. 1071C)

Há também uma distinção interna em cada gênero.
O demonstrativo divide-se em apodítico e analítico:
o apodítico mostra a verdade por necessidade imediata;
o analítico, por decomposição das causas.
O dialético divide-se em probável e verossímil:
o primeiro persuade pela razão, o segundo pela opinião.
O sofístico divide-se em equívoco e ilusório:
um engana pelas palavras, outro pelo raciocínio.

Os antigos chamavam esses gêneros de vias da mente,
porque cada um conduz o intelecto a um grau diverso de verdade.
O demonstrativo leva ao saber;
o dialético, à prudência;
o sofístico, ao erro.

“Como três caminhos partem de uma mesma estrada — um para a luz, outro para o crepúsculo, outro para a noite —,
assim também os gêneros dos argumentos levam o espírito à ciência, à opinião ou à ignorância.”
(col. 1072B)

O texto adverte que o filósofo deve saber transitar entre os gêneros sem confundi-los:
usar o demonstrativo quando busca a essência,
o dialético quando investiga o provável,
o retórico quando instrui a multidão,
e rejeitar o sofístico em toda parte.

Conclui-se, pois, que o gênero do argumento é como o elemento da razão:
cada um tem sua natureza, seu limite e sua força própria.
Ignorá-los é como misturar fogo e água —
confunde-se o ser e destrói-se o juízo.


Nota filológica 1:Tria sunt genera argumentorum: demonstrativum, dialecticum, sophisticum” — col. 1070D.
Nota filológica 2:Sophisma umbra demonstrationis est” — col. 1071A.
Nota filológica 3:Genus argumenti est elementum rationis” — col. 1072C.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT XIII — DE DIFFERENTIIS QUAE IN PARTIBUS ARGUMENTI CONSISTUNT

Capítulo XIII — Das diferenças que consistem nas partes do argumento
(col. 1073A–1075B)

Todo argumento compõe-se de partes,
assim como o corpo de membros e o discurso de palavras.
Conhecer essas partes é necessário ao dialético,
para que saiba não apenas o que é argumento,
mas de que se constitui e por que tem força.

As partes do argumento são duas: o raciocínio (ratio) e a proposição (propositio).
O raciocínio é o encadeamento das proposições em direção à conclusão;
a proposição é a sentença que afirma ou nega algo.
Dessas duas partes, uma tem a função de fundamento, outra de movimento:
a proposição sustenta, o raciocínio conduz.

“O raciocínio é a alma do argumento, a proposição é seu corpo.” (col. 1073B)

Entre as proposições, há diferença de natureza e de função.
Pela natureza, distinguem-se em universais e particulares;
pela função, em maiores e menores.
A maior propõe o princípio comum;
a menor, o caso singular;
e da união de ambas surge a conclusão, que é a geração do juízo.

O argumento é, pois, como uma tríade viva:
a maior é o pai, a menor é a mãe,
e a conclusão é o filho.
Por isso, o texto diz que “toda conclusão nasce do casamento das premissas”.
(col. 1073C)

Há ainda partes materiais e formais no argumento.
A matéria são os termos e proposições;
a forma é a conexão que as une.
Sem a matéria, o argumento não existe;
sem a forma, não tem ordem nem necessidade.
A forma é o que o faz ser raciocínio,
assim como a alma faz o corpo ser vivo.

“A forma do argumento é o vínculo da verdade.” (col. 1074A)

As diferenças que residem nas partes do argumento manifestam-se em quatro modos:
(1) na quantidade, quando as proposições são mais ou menos numerosas;
(2) na qualidade, quando são afirmativas ou negativas;
(3) na disposição, quando a ordem das premissas muda o sentido;
(4) na relação, quando a força de uma depende da outra.

Essas diferenças não são acidentais, mas essenciais.
Um argumento com as mesmas palavras pode ser verdadeiro ou falso,
conforme o modo como as partes são compostas.
Por isso, o dialético não deve apenas conhecer as proposições,
mas a arte de dispor suas partes com proporção.

Há ainda distinção entre proposição simples e composta:
a simples contém um único juízo;
a composta reúne mais de um,
por conjunção, disjunção ou condição.
A força do argumento cresce na medida em que a composição é ordenada.

A proposição é, portanto, o elemento do raciocínio;
o raciocínio, o ato do argumento.
E como o fogo nasce do atrito,
assim o juízo nasce da união das proposições.

Conclui o texto que as partes do argumento se distinguem,
não apenas por sua posição ou forma,
mas também por sua dignidade:
pois a maior é mais nobre que a menor,
e ambas são mais dignas que a conclusão,
a qual é serva da necessidade que delas procede.

“Quem ignora as partes do argumento, fala sem ciência;
quem as confunde, destrói a razão.”
(col. 1075A)

Assim, como na música o som depende da justa harmonia,
também na dialética o juízo depende da justa composição das partes.


Nota filológica 1:Ratio et propositio partes argumenti sunt” — col. 1073A.
Nota filológica 2:Forma argumenti est vinculum veritatis” — col. 1074A.
Nota filológica 3:Qui partes argumenti confundit, rationem destruit” — col. 1075A.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT XIV — DE DIFFERENTIIS QUAE IN AFFECTIBUS ARGUMENTI CONSISTUNT

Capítulo XIV — Das diferenças que consistem nos afetos do argumento
(col. 1075B–1078C)

O argumento, além da estrutura racional, possui também certos afetos (affectus),
que lhe dão tom, vigor e direção.
Esses afetos não pertencem à substância da razão, mas ao seu exercício.
São como as variações do som na voz do orador —
não alteram o sentido, mas movem o ânimo de quem escuta.

três afetos principais do argumento:
(1) o assentimento (
assensus),
(2) a admiração (
admiratio),
(3) a repulsa (
retractatio).

O assentimento é o afeto pelo qual a mente se entrega à conclusão,
reconhecendo-a como verdadeira.
A admiração é o espanto diante de uma consequência inesperada,
pela qual o intelecto é despertado e elevado.
A repulsa é a resistência da mente,
quando o argumento fere a aparência, mas não a essência do verdadeiro.

“Os afetos do argumento são os movimentos da alma racional.” (col. 1075C)

Assim como o corpo se move por inclinação e resistência,
também a razão se move por adesão e recusa.
E, porque a arte dialética deve conhecer não só as palavras,
mas também as paixões que as acompanham,
convém distinguir os afetos do argumento.

Há afetos naturais e afetos acidentais.
Os naturais nascem da própria força da verdade;
os acidentais, do estado do ouvinte ou do disputador.
Quando a alma está purificada, o assentimento é calmo;
quando está perturbada, torna-se precipitado.
Por isso, o mesmo argumento pode parecer verdadeiro ao ignorante e duvidoso ao sábio.

“A verdade não muda, mas os afetos do que a recebe, sim.” (col. 1076A)

O texto ensina que há também afetos ativos e passivos.
Ativos, quando o intelecto domina o discurso;
passivos, quando o discurso arrasta o intelecto.
O primeiro pertence à sabedoria; o segundo, à eloquência.
No primeiro, o homem governa a palavra; no segundo, é governado por ela.

A virtude dialética consiste em regular os afetos para que sirvam à razão,
e não a perturbem.
Pois a razão é como o piloto de um navio:
os afetos são os ventos; úteis, se ordenados; destrutivos, se desmedidos.

Há ainda diferenças de intensidade e de direção.
Na intensidade, distinguem-se os argumentos que movem com força,
e os que apenas sugerem;
na direção, os que conduzem à ciência,
e os que apenas conduzem à opinião.
O argumento prudente é aquele em que o afeto obedece ao intelecto,
como o instrumento obedece ao artífice.

“O afeto deve seguir a razão como a sombra segue o corpo.” (col. 1077A)

Entre os afetos, o mais nobre é o assentimento reflexivo,
que nasce não da emoção, mas da inteligência iluminada.
Ele não se apressa, nem resiste em vão;
acolhe o verdadeiro como o solo acolhe a semente.
O mais vil é o assentimento servil,
que segue a multidão e se inclina diante da aparência.
Por isso, diz Boécio:

“Crer sem entender é morrer com os olhos abertos.” (col. 1077C)

A arte tópica deve, portanto, reconhecer e moderar os afetos,
para que o discurso não se torne instrumento da paixão,
mas via da verdade.
Pois a filosofia não suprime os afetos — ordena-os;
não os destrói — educa-os;
não os nega — purifica-os.

O texto conclui:

“A razão e o afeto são como as asas da alma:
se uma se quebra, o voo se perde.”
(col. 1078B)

Assim, conhecer os afetos do argumento
é conhecer as vibrações mesmas do espírito humano,
onde a verdade, descendo à palavra, encontra resistência e eco.


Nota filológica 1:Affectus argumenti sunt motus animae rationalis” — col. 1075C.
Nota filológica 2:Affectus rationi obedire debent sicut umbra corpori” — col. 1077A.
Nota filológica 3:Rationis et affectus duae sunt animae alae” — col. 1078B.

DE DIFFERENTIIS TOPICIS

CAPUT XV — DE DIFFERENTIIS QUAE IN USU ET APPLICATIONE LOCORUM CONSISTUNT

Capítulo XV — Das diferenças que consistem no uso e na aplicação dos lugares
(col. 1078C–1081A)

O uso e a aplicação dos lugares distinguem-se tanto quanto o saber e o agir:
o uso pertence à arte, a aplicação, à prudência.
Porque é possível conhecer o lugar e, ainda assim, empregá-lo mal;
assim como se pode possuir a ciência do bem e agir contra ela.

O uso dos lugares refere-se à ordem interior da razão;
a aplicação, à ordem exterior do discurso.
O uso é como o hábito, a aplicação como o ato.
Quem usa corretamente os lugares, pensa com clareza;
quem os aplica corretamente, fala com ordem.

duas espécies de uso:
(1) o científico,
(2) o didático.
O científico é aquele que investiga;
o didático, o que expõe.
O primeiro procede da dúvida para a certeza;
o segundo, da certeza para a comunicação.
Por isso, diz o texto:

“A arte do uso pertence ao sábio; a da aplicação, ao mestre.” (col. 1079A)

A aplicação dos lugares é a translação deles à matéria particular.
Ela é o ponto onde a arte se torna prudência,
pois o raciocínio universal deve ser ajustado ao caso singular.
Assim, quem aplica um lugar comum à questão particular
deve observar a proporção entre ambos,
para que o universal não se torne vago, nem o particular, confuso.

“Aplicar o lugar é o ofício da sabedoria,
que torna o geral eficaz e o singular inteligível.”
(col. 1079C)

Há três modos de aplicação:
(1) por semelhança,
(2) por oposição,
(3) por consequência.
A aplicação por semelhança mostra o que é igual;
por oposição, o que é contrário;
por consequência, o que é correlato.
Esses três modos são as raízes de toda argumentação prática.

O texto distingue ainda a aplicação reta e a obliqua.
A reta é quando o lugar se refere diretamente à proposição;
a obliqua, quando serve indiretamente para esclarecer outra.
A aplicação oblíqua é própria do engenho;
a reta, da ciência.
Ambas, porém, são legítimas, se conservam a proporção.

A virtude da aplicação está em guardar o meio entre excesso e defeito.
Pois há quem use o mesmo lugar demasiadamente,
esgotando sua força;
e há quem o empregue com parcimônia,
tornando o discurso árido.
O equilíbrio é o que dá vida à razão.

“O bom dialético não multiplica os lugares,
mas aprofunda o que é necessário.”
(col. 1080A)

A aplicação dos lugares é também medida pela intenção do fim.
Se o fim é a verdade, a aplicação é ordenada;
se o fim é a vitória, torna-se astúcia;
se o fim é a confusão, degenera em sofisma.
O mesmo instrumento serve à ciência ou ao engano,
segundo a mão que o usa.

O texto conclui dizendo que o uso e a aplicação dos lugares
são o ponto culminante de toda a arte tópica,
pois nelas se realiza a passagem da teoria à prática.
Assim como o fogo só se manifesta quando toca a matéria,
assim a razão só se manifesta quando aplica seus lugares.

“O uso dá forma ao pensamento;
a aplicação, corpo à palavra.”
(col. 1081A)


Nota filológica 1:Usus locorum ad artem, applicatio ad prudentiam pertinet” — col. 1078D.
Nota filológica 2:Ars usus sapienti est, applicatio magistri” — col. 1079A.
Nota filológica 3:Usus dat formam menti, applicatio corpus orationi” — col. 1081A.

A Arquitetura Dialética de Boécio: Entre o Lugar da Razão e a Forma do Discurso

O segundo bloco do Corpus Boetianum, intitulado Dialectica et Topica, representa a mais meticulosa arquitetura do pensamento lógico no ocidente latino anterior a Santo Tomás. Nele, Boécio não apenas sistematiza a herança aristotélica, mas a traduz em um corpo de arte racional capaz de sustentar tanto o silogismo quanto a refutação, tanto o juízo quanto a ciência. O conjunto dos nove tratados — de natureza progressiva — é destinado a formar o intelecto dialético, desde o primeiro reconhecimento das formas categóricas até o domínio pleno dos lugares tópicos e de suas diferenças.

O Introductio ad Syllogismos Categoricos abre o edifício lógico como um pórtico da razão. Aqui, Boécio expõe a estrutura elementar do silogismo, as regras da inferência necessária e as condições formais do raciocínio. Trata-se de uma introdução não apenas ao método, mas à ordem do próprio intelecto em ato — o movimento do pensamento que, ao inferir, reflete a estrutura do ser. Esse tratado corresponde à primeira disciplina da ratio: compreender a forma como o entendimento se converte em ciência.

Nos De Syllogismo Categorico libri duo, a análise se aprofunda. Boécio define os modos, figuras e disposições do silogismo, estabelecendo as condições de validade da conclusão a partir das premissas. Aqui nasce o rigor da prova, pois a mente aprende que a verdade discursiva depende da ordenação proporcional entre universal e particular. O duplo livro é o tratado da precisão formal: ensina a alma a pensar com necessidade, e não apenas com coerência.

O De Syllogismo Hypothetico libri duo representa o ápice da inferência condicional. O discurso já não opera apenas com proposições absolutas, mas com proposições subordinadas umas às outras. A verdade passa a depender do vínculo — si... ergo... — e a razão é treinada a compreender não o ser estático, mas o ser em relação. É o tratado da contingência pensada, o ponto onde a lógica se aproxima da causalidade.

O Liber de Divisione trata da separação e do discernimento. Sua função é ordenar o múltiplo, decompondo o gênero em espécies e as espécies em diferenças. Boécio ensina que dividir é ver: reconhecer as fronteiras invisíveis que distinguem as naturezas. O tratado é uma ética da precisão intelectual — uma educação do olhar da mente para discernir onde termina um conceito e começa outro.

O Liber de Definitione complementa o anterior como o espelho da unificação. Definir é o ato inverso de dividir: reduzir o múltiplo à unidade essencial. Aqui, a mente aprende a dizer o que as coisas são, não pelo nome, mas pela forma que as constitui. Esse tratado é de importância capital para toda a filosofia posterior: nele está o método que permite à teologia, à ciência e à metafísica conservar a clareza dos princípios sem dissolver a unidade do real.

A Interpretatio Topicorum Aristotelis inaugura o campo da tópica — o território onde o pensamento deixa de ser mero cálculo e se torna arte de invenção. Boécio traduz Aristóteles e o amplia, mostrando como os lugares (loci) são as fontes universais do argumento, as matrizes do discurso racional. Esse tratado é o nascimento do pensamento heurístico latino, onde a lógica se torna generativa e não apenas demonstrativa.

A Interpretatio Elenchorum Sophisticorum é o contraponto e o exame dos erros. Boécio investiga os sofismas, as falácias e as aparências do raciocínio, identificando nelas o espelho invertido da razão. Sua importância reside em revelar que o erro não é ausência de razão, mas o seu uso distorcido — o intelecto que conserva a forma e perde o fim. Este livro é o manual da autodefesa da mente: o antídoto da persuasão que não serve à verdade.

Os Commentaria in Topica Ciceronis são o ponto de contato entre a lógica e a retórica. Aqui Boécio comenta Cícero para unir a precisão grega à eloquência romana, fazendo do lugar comum (locus communis) um princípio de invenção racional. O discurso, antes fechado na dedução, agora se abre à persuasão ordenada. É a racionalização da palavra pública: a dialética a serviço da prudência e da política do verbo.

O De Differentiis Topicis é o coroamento do bloco, o tratado da arquitetura interna do raciocínio. Boécio analisa as diferenças formais, materiais, morais e afetivas dos lugares — a ciência das distinções dentro da própria ciência. Aqui se compreende que a dialética não é só uma técnica, mas uma metafísica da diferença: cada argumento possui sua natureza, seu grau de força, seu modo de ser verdadeiro, e o intelecto é o órgão que mede essas variações como um afinador da razão. É o tratado da ordem e da modulação do discurso, onde o pensamento alcança sua maturidade: saber não apenas o que é verdadeiro, mas como a verdade deve ser dita.

O conjunto desses nove tratados forma, pois, um sistema autônomo e completo: uma Scientia Rationalis que ensina o espírito a mover-se entre necessidade e probabilidade, entre definição e persuasão, entre conceito e palavra. O objetivo de Boécio, ao compor essa dialética integral, é preparar o intelecto humano para transitar da lógica aristotélica para a teologia da verdade, tornando a ratio instrumento da contemplação.

Assim, o Bloco II – Dialéctica et Tópica não é mera técnica de raciocínio, mas um mapa da alma racional. Ele ensina o intelecto a dividir, definir, inferir e refutar; ensina o logos a discernir o verdadeiro do provável, o necessário do contingente, o essencial do acidental. Cada tratado é uma gradação dessa ascensão: da forma à substância, da estrutura à finalidade, da mente ao ser. O seu destino não é apenas formar o lógico, mas preparar o filósofo — aquele que, compreendendo as razões do raciocínio, reencontra na linguagem o reflexo da ordem do mundo.

 

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