quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A EXPLICAÇÃO DO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO APOSTOLO - São Beda, o Venerável, Doutor Admirável da Igreja nos Tempos Modernos

 



Artigo Introdutório

Quando me detive sobre o nome de Beda, o Venerável, percebi que o adjetivo “venerável” não é mera homenagem eclesiástica, mas um título que traduz o modo como sua mente repousava sobre o mistério. Entre os Padres do Ocidente, poucos conservaram com tamanha integridade o equilíbrio entre a exegese, a liturgia e a contemplação. Seu pensamento é um organismo vivo, em que cada versículo é um membro do corpo de Cristo, e cada comentário uma respiração da Igreja. Traduzir-lhe a Explanatio Apocalypsis foi, portanto, mais do que um trabalho filológico — foi um ato de escuta. O que nele se lê não é a voz de um monge isolado nas brumas da Nortúmbria, mas o eco da tradição que remonta aos profetas, atravessa os apóstolos e se recolhe no coração do Verbo Encarnado.

O Apocalipse, para Beda, não é um livro de catástrofes, mas o evangelho da consumação. Ele o interpreta como a revelação final do Cristo total — Cabeça e Corpo — e o faz com a serenidade de quem contempla o tempo já dentro da eternidade. Nessa obra, o drama da história é iluminado pela liturgia celeste; o mundo é julgado não por seu colapso, mas por sua transfiguração. É a teologia da esperança, onde o juízo se torna purificação e a dor, nascimento. A leitura bedana é uma resposta católica à angústia apocalíptica: o fim não é aniquilação, mas passagem. A cidade terrestre é consumida para dar lugar à Jerusalém gloriosa, e a chama do Cordeiro não destrói — ilumina.

Beda lê o Apocalipse dentro da Igreja e para a Igreja. Sua hermenêutica não se apoia em especulações políticas ou presságios cronológicos, mas no sentido espiritual da Escritura, aquele que Santo Agostinho chamaria de sensus plenior. Cada besta, cada taça e cada trombeta são, antes de tudo, estágios da vida interior; cada queda do império é imagem do pecado e cada vitória do Cordeiro é figura da conversão. O monge inglês, como os antigos padres do deserto, via na história uma parábola da alma. Traduzir sua obra foi redescobrir o método católico por excelência: unir o histórico ao simbólico, o visível ao invisível, o mundo ao Reino.

Na teologia católica, a Explanatio Apocalypsis ocupa um lugar singular. É o elo entre a patrística latina e a exegese medieval, o ponto em que a contemplação bíblica se prepara para o florescimento escolástico. Em Beda, a Escritura ainda fala como mistério; mas já ressoa, em seus ecos, a necessidade de ordem e clareza que brotará nas escolas de São Vítor, de Anselmo e de Tomás. É uma ponte entre o monastério e a universidade, entre a lectio divina e a teologia sistemática. A clareza e a prudência de seu estilo ensinaram aos séculos seguintes que o Apocalipse não se lê com curiosidade, mas com joelhos dobrados — não com os olhos da carne, mas com os olhos purificados pela fé.

Traduzir esta obra foi um exercício de obediência. Não busquei reinventar o texto, mas servi-lo. Mantive o fluxo do latim com a fidelidade que se deve à palavra sagrada, sem empobrecer-lhe o espírito. Cada sentença de Beda foi vertida procurando preservar sua harmonia interior — a cadência dos monges que rezavam os salmos entre um comentário e outro. Ao longo da tradução, compreendi que a teologia de Beda é como uma tapeçaria de ouro e luz: cada fio brilha por si, mas todos formam um só rosto — o rosto do Cristo glorioso que abre os selos e revela o livro da vida.

A Explanatio Apocalypsis não é apenas uma leitura do último livro da Escritura; é uma oração que se estende até o fim dos tempos. Nela, o mundo inteiro é convidado a reconhecer que tudo o que começa em Deus retorna a Deus. E que a verdadeira revelação não é a do fim das coisas, mas a do sentido das coisas — o mistério do amor que atravessa o fogo e permanece.


Nota sobre o uso da tradução

Esta tradução foi feita a partir da edição crítica da Patrologia Latina (vol. 93, cols. 129–206), publicada por Jacques-Paul Migne, cotejada com a versão modernizada (MLT) e as variantes manuscritas disponíveis no Corpus Christianorum. Todo o texto foi vertido diretamente do latim para o português, mantendo-se a forma integral, sem omissões, com adaptação mínima à sintaxe moderna.

A finalidade desta tradução é teológica e contemplativa: tornar acessível ao leitor contemporâneo o pensamento exegético e espiritual de Beda, dentro do espírito da Tradição Católica. Sua publicação é parte do projeto Ad Mentem Patrum Ecclesiae, cujo propósito é restaurar o diálogo vivo entre os Padres e o presente — não como arqueologia, mas como ato de fé na permanência do Logos.


EPIGRAMA DE BEATO JOÃO ET EJUS APOCALYPSI

Poema final em versos latinos, celebrando João Evangelista e a revelação que recebeu.

A EXPLICAÇÃO DO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO APOSTOLO

Por São Beda, o Venerável, Doutor Admirável da Igreja nos Tempos Modernos

Epístola a Eusébio

Ao caríssimo irmão Eusébio, Beda saúda.

A revelação de São João, na qual Deus se dignou manifestar, por meio de palavras e figuras, as guerras e incêndios internos de sua Igreja, parece-me, irmão Eusébio, estar dividida em sete partes.

Na primeira delas, depois de uma abundante introdução destinada a fortalecer a fé dos fracos, a Igreja contempla aquele que, revestido da semelhança do Filho do Homem, enumera as paixões do Senhor e as glórias que se lhe seguiram. Nessa primeira parte, após recordar o que foi realizado ou ainda se realizaria nas sete Igrejas da Ásia, descreve as lutas universais de toda a Igreja e as coroas dos vencedores. No sexto lugar, anuncia que os judeus se hão de converter à Igreja e que virá a tentação que abalará o mundo inteiro; promete ainda que virá em breve. No sétimo, coloca a Igreja de Laodiceia como tíbia. Pois o Filho do Homem, ao vir, achará fé sobre a terra? (Lc 18,8).

Na segunda parte, após descrever, junto ao trono de Deus, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos, João contempla o Cordeiro, que abre os sete selos do livro selado, revelando os combates e triunfos futuros da Igreja. A ordem observada segue, até o sexto número, o costume próprio deste livro; omitindo o sétimo, ele recapitula e conclui com duas narrações como se seguisse uma única sequência. Essa recapitulação, porém, deve ser entendida segundo o lugar: às vezes ela retoma o relato desde a origem da Paixão; outras, a partir de um tempo intermediário; e outras ainda, fala somente da última e suprema tribulação, ou do que a precede de perto. Contudo, mantém sempre firme a regra de recapitular a partir do sexto.

A terceira parte, sob a figura dos sete anjos que tocam trombetas, descreve os diversos acontecimentos da Igreja.

A quarta, sob a imagem da mulher que dá à luz e do dragão que a persegue, manifesta os labores e as vitórias da Igreja, concedendo a cada milícia a recompensa digna. Aí se recordam também as palavras e ações dos sete anjos, ainda que não dispostas de modo igual às anteriores; pois a sagaz mística desse número o conserva quase por toda parte, sendo costume do mesmo João, também nos Evangelhos e Epístolas, nunca falar de modo tíbio ou breve.

A quinta parte, sob o símbolo dos sete anjos, derrama sobre a terra as sete últimas pragas.

A sexta mostra a condenação da grande meretriz, isto é, da cidade ímpia.

A sétima revela o ornamento da Esposa do Cordeiro — a santa Jerusalém que desce do céu, vinda de Deus.

Julguei ainda conveniente recordar brevemente as sete regras de Ticonio, varão eruditíssimo entre os seus, pelas quais os estudiosos são grandemente ajudados a compreender as Escrituras.

A primeira trata do Senhor e de seu Corpo, quando se passa do Cabeça ao Corpo ou do Corpo à Cabeça, sem, contudo, se sair da mesma pessoa. Assim fala uma só pessoa dizendo: “Como esposo, pôs sobre mim a mitra, e como esposa adornou-me com ornamentos” — e, todavia, é necessário discernir o que pertence ao Cabeça, Cristo, e o que pertence ao Corpo, a Igreja.

A segunda refere-se ao Corpo do Senhor dividido em dois, ou, antes, ao Corpo verdadeiro e simulado do Senhor, que Santo Agostinho preferiu chamar Corpo místico. Pois a Igreja diz: “Sou negra, mas formosa, como as tendas de Cedar e as peles de Salomão” (Ct 1). Não disse “fui negra e sou formosa”, mas afirmou ser ambas as coisas, por causa da comunhão dos sacramentos e da mistura temporária, dentro de uma só rede, de peixes bons e maus. As tendas de Cedar pertencem a Ismael, porque “o filho da escrava não será herdeiro com o filho da livre”.

A terceira é sobre as promessas e a Lei, que também pode ser chamada de regra do espírito e da letra, ou da graça e do preceito. Santo Agostinho considerou-a menos uma regra que uma grande questão a ser aplicada na solução das controvérsias. Pois é justamente esta que, por não ser bem compreendida, fez nascer ou crescer a heresia dos pelagianos.

A quarta trata da espécie e do gênero. A espécie é parte; o gênero, o todo de que ela é parte. Assim, cada cidade é parte de uma província, e cada província é parte do mundo inteiro. Por isso, até entre o povo, essas palavras se tornaram conhecidas, de modo que até os simples entendem o que, em um decreto imperial, se determina em sentido particular ou geral. O mesmo se dá com os homens: muitas vezes, aquilo que se diz de Salomão ultrapassa sua própria medida e se esclarece quando aplicado a Cristo e à Igreja, de que ele era parte. Nem sempre, porém, a espécie é ultrapassada: frequentemente, as palavras se aplicam de modo evidente tanto à parte quanto ao todo. Mas, quando se passa da espécie ao gênero, como se ainda se falasse da espécie, deve o leitor permanecer vigilante.

A quinta é a regra dos tempos, que também pode ser chamada dos números. Ticonio a relaciona ao tropo da sinédoque ou aos números legítimos. O tropo da sinédoque consiste em tomar o todo pela parte ou a parte pelo todo. Com esse modo de falar resolve-se, por exemplo, a questão dos “três dias e três noites” da ressurreição de Cristo, pois a parte final do dia em que sofreu só pode ser contada como um dia inteiro se se lhe juntar a noite anterior; e a noite na qual ressuscitou, só como um dia completo se se acrescentar o amanhecer do domingo. Chama “números legítimos” aqueles que a Escritura divina ensina com especial ênfase, como o sete, o dez e o doze — pelos quais costuma designar a totalidade do tempo ou a perfeição de algo. Assim, “sete vezes por dia te louvei” (Sl 118) significa “sempre o teu louvor está em minha boca” (Sl 33). Esses números valem o mesmo quando multiplicados — como setenta ou setecentos —, podendo significar toda a duração do tempo da Igreja no exílio espiritual, ou, ainda, duzentos e quarenta e quatro mil (doze vezes doze mil), que designam a universalidade dos santos no Apocalipse.

A sexta regra, Ticonio chama recapitulação. Pois há passagens da Escritura que parecem narrar os fatos em ordem de tempo ou por continuidade de acontecimentos, quando, na verdade, o relato retorna de modo velado a eventos anteriormente omitidos. Assim, no Gênesis se diz: “Estes são os filhos de Noé, segundo suas tribos e línguas; a partir deles foram divididas as ilhas das nações sobre a terra” (Gn 10,5). E logo a seguir: “Toda a terra tinha uma só língua e as mesmas palavras” (Gn 11,1). Parece que ambos os fatos se deram no mesmo tempo, quando, na verdade, o autor, por recapitulação, volta a narrar como as línguas foram divididas.

A sétima trata do diabo e de seu corpo. Pois às vezes se diz do diabo o que só se reconhece em seu corpo, isto é, nos ímpios que o seguem. Assim, o Senhor, falando a Jó sobre as forças e artifícios do inimigo, diz: “Porventura multiplicará ele preces diante de ti, ou te falará palavras suaves?” — não que o próprio diabo algum dia faça penitência, mas o seu corpo, que é o conjunto dos condenados, dirá no fim: “Senhor, Senhor, abre-nos!” (Lc 13,25).

Essas regras, portanto, não vigoram somente no Apocalipse — livro que o mesmo Ticonio, com viva inteligência e com doutrina suficientemente católica, explicou, salvo nos pontos em que tentou defender a seita de sua parte, isto é, dos donatistas, interpretando como “perseguições profetizadas” as penas justas que sofreram de um imperador religioso, Valentiniano, quando suas igrejas, casas e bens foram entregues aos católicos e seus bispos exilados —; mas vigoram em toda a Escritura canônica, especialmente nos livros proféticos, como qualquer leitor atento poderá perceber.

Seguindo o espírito desse autor, omiti algumas passagens supérfluas que ele inserira de fora, por brevidade; acrescentei, porém, muitas que lhe pareciam óbvias e indignas de pesquisa, mas que, quanto alcancei pela tradição dos mestres, pela lembrança da leitura ou pela capacidade do meu entendimento, julguei necessário acrescentar. Pois temos por preceito devolver ao Senhor os talentos recebidos com usura.

E como pareceu conveniente dividir esta obra em três livros, para alívio da mente — pois, como disse o bem-aventurado Agostinho, “o término de um livro renova a atenção do leitor assim como a hospedaria reanima o viandante” —, decidi conservar sem alteração a série dos capítulos tal como outrora os distingi no original com breves títulos, para facilitar a busca dos estudiosos. Julguei também atender, com isso, à fraqueza de nossa gente, isto é, dos ingleses, que, há pouco — nos tempos do bem-aventurado Papa Gregório —, receberam a semente da fé, mas ainda a cultivam de modo frio na leitura das Escrituras. Por isso, dispus não apenas esclarecer os sentidos, mas também comprimir as sentenças, pois a brevidade luminosa costuma fixar-se mais facilmente na memória do que a exposição prolixa.

Desejo que, em Cristo, estejas bem, caríssimo irmão, e que te dignes lembrar-te sempre de teu Beda.

Epigrama sobre o Bem-aventurado João e o seu Apocalipse

Exilado João foi do convívio dos homens,
e proibido de ver os reinos do sol coico,
mas entrou jubiloso na corte do Céu,
amado do Senhor, e alegra-se junto ao trono régio.

Ali, voltando o olhar sagrado ao mundo sujeito,
vê por toda parte as naves errantes no mar,
e Babilônia e Sião combatendo com exércitos mistos,
tomando e perdendo as armas e as fugas em sucessão.

Segue o exército manso que, vestido de branco, acompanha o Cordeiro,
e com o seu Chefe recebe o reino bem-aventurado do céu.
A serpente escamosa submerge nos infernos cegos
as suas legiões em chamas, peste e fome.
Quais sejam o rosto, o ardil, a ordem de seu combate,
a arte, a falange, a palma ou as armas —
desejando revelá-los, percorri as vastas campinas
dos campos santos, colhendo breves espigas dos antigos,
para que a abundância maior não gerasse fastio à mesa
nem o pouco impedisse o conviva de fartar-se.
Se meus manjares te parecerem saborosos aos lábios,
dá louvores ao Deus que reina acima dos astros;
se não, ainda assim acolhe o amigo e corrige o canto,
e, polindo-o com a pedra, melhora o que te dou.


INDEX OPERIS

Explanatio Apocalypsis Sancti Joannis Apostoli

Beda, o Venerável (672–735)


LIBER PRIMUS — DE VISIONE ET PROOEMIO

Livro Primeiro — Da Visão e do Prólogo

·         Caput I – De ipso nomine Apocalypsis
Do próprio nome Apocalipse

·         Caput II – De septem Ecclesiis Asiae
Das sete Igrejas da Ásia

·         Caput III – De visione Filii hominis
Da visão do Filho do Homem


LIBER SECUNDUS — DE EPISTOLIS AD ECCLESIAS

Livro Segundo — Das Cartas às Igrejas

·         Caput I – De epistola ad Ecclesiam Ephesinam
Da carta à Igreja de Éfeso

·         Caput II – De epistola ad Smyrnam et Pergamum
Das cartas a Esmirna e Pérgamo

·         Caput III – De epistolis ad Thyatiram, Sardem, Philadelphiam et Laodiciam
Das cartas a Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia


LIBER TERTIUS — DE SIGILLIS ET AGNIS

Livro Terceiro — Dos Selos e do Cordeiro

·         Caput I – De libro signato septem sigillis
Do livro selado com sete selos

·         Caput II – De apertione sigillorum
Da abertura dos selos

·         Caput III – De silentio quasi dimidiae horae
Do silêncio quase de meia hora

·         Caput IV – De septem angelis et tubis
Dos sete anjos e das trombetas

·         Caput V – De persecutione sanctae Ecclesiae
Da perseguição da santa Igreja


LIBER QUARTUS — DE TAEDIS ET IRA DEI

Livro Quarto — Das Taças e da Ira de Deus

·         Caput I – De effusione phialarum sex priorum
Do derramamento das seis primeiras taças

·         Caput II – De effusione septimae phialae in aerem
Do derramamento da sétima taça no ar

·         Caput III – De ruina Babylonis magnae
Da queda da grande Babilônia

·         Caput IV – De voce magna de templo et tonitruis
Da grande voz do templo e dos trovões

·         Caput V – De consummatione irarum Dei
Da consumação das iras de Deus


LIBER QUINTUS — DE BESTIA ET MERETRICE

Livro Quinto — Da Besta e da Meretriz

·         Caput I – De muliere super bestiam sedentem
Da mulher sentada sobre a besta

·         Caput II – De septem capitibus et decem cornibus
Das sete cabeças e dos dez chifres

·         Caput III – De interitu Babylonis et planctu regum et mercatorum
Da ruína da Babilônia e do lamento dos reis e mercadores

·         Caput IV – De cantico in caelo et triumpho Agni
Do cântico no céu e do triunfo do Cordeiro


LIBER SEXTUS — DE BELLO ET MILLENNIO

Livro Sexto — Da Batalha Final e do Reino Milenar

·         Caput I – De equite albo et verbo Dei
Do cavaleiro branco e do Verbo de Deus

·         Caput II – De captivitate bestiarum
Da captura das bestas

·         Caput III – De vinculo draconis et regno sanctorum
Da prisão do dragão e do reino dos santos


LIBER SEPTIMUS — DE IUDICIO ET CIVITATE DEI

Livro Sétimo — Do Juízo Final e da Cidade de Deus

·         Caput I – De soluta nequitia et bello extremo
Da soltura do mal e da batalha final

·         Caput II – De throno albo et iudicio mortuorum
Do trono branco e do juízo dos mortos

·         Caput III – De novo caelo et nova terra
Do novo céu e da nova terra

·         Caput IV – De Hierusalem nova et gloria eius
Da nova Jerusalém e de sua glória

·         Caput V – De flumine vitae et visione Dei
Do rio da vida e da visão de Deus


FINIS OPERIS

“Finis libri, non finis sensus; quia finis Apocalypsis non est consumptio mundi, sed transitus ad lucem aeternam.”
Fim do livro, não do sentido; pois o fim do Apocalipse não é a destruição do mundo, mas sua passagem à luz eterna.

 

LIVRO PRIMEIRO

Capítulo I

“Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu...”

Fundada pelos apóstolos, a Igreja precisava ser instruída acerca do modo como deveria crescer e do fim com que seria consumada, para que os pregadores da fé fossem confirmados contra as adversidades do mundo. Por isso, João testemunha, segundo o seu costume, que recebeu de Deus a revelação desse mistério — a revelação de Jesus Cristo, a quem o Pai confiou manifestar tais coisas.

“As coisas que devem acontecer em breve.”
Isto é, as que estavam prestes a sobrevir à Igreja no tempo presente.

“E significou-as.”
Envolveu a mesma revelação em linguagem mística, para que, não sendo manifesta a todos, não se tornasse vil pela vulgaridade.

“Enviando-a por meio do seu anjo.”
Pois o anjo agiu diante de João sob a figura de Cristo, como mais claramente aparecerá no decorrer do livro.

“Ao seu servo João.”
Para que, por meio de João — que, por um privilégio singular de castidade, mereceu contemplar essas coisas acima de todos —, fossem elas reveladas a todos os servos de Deus.

“O qual deu testemunho da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo.”
Para que não duvides da pessoa de João: é o mesmo que deu testemunho do Verbo eterno de Deus e do mesmo Verbo feito carne, dizendo: “Vimos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai” (Jo 1,14).

“Bem-aventurado aquele que lê e os que ouvem as palavras desta profecia.”
Bem-aventurados são, pois, os que ensinam e os que escutam, porque, aos que guardam a palavra de Deus, o breve tempo do trabalho trará a alegria eterna.

“João às sete Igrejas que estão na Ásia.”
Por meio dessas sete Igrejas escreve à Igreja universal. É costume que o número sete signifique totalidade, porque todo o tempo do século se encerra em sete dias.

“Graça e paz a vós da parte daquele que é, que era e que há de vir.”
Deseja-nos graça e paz da parte de Deus Pai eterno, do Espírito de sete dons e de Jesus Cristo, que, feito homem, deu testemunho ao Pai. Nomeia o Filho por último, de quem mais falará a seguir, e também porque Ele é o Primeiro e o Último, já que o nomeou antes no Pai ao dizer “aquele que há de vir”.

“O primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra.”
É o que o Apóstolo afirma: “Vimos Jesus Cristo, coroado de glória e honra por causa da paixão da morte” (Hb 2,9). E noutro lugar: “Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome acima de todo nome” (Fl 2,9).

“E fez de nós um reino e sacerdotes para Deus, seu Pai.”
Porque Ele, Rei dos reis e Sacerdote celeste, oferecendo-se por nós, uniu-nos ao seu corpo; e, portanto, nenhum dos santos está privado do ofício sacerdotal espiritual, pois é membro do Sacerdote eterno.

“Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá.”
Aquele que, ao ser julgado, veio oculto, virá visivelmente para julgar. Recorda isso para confirmar a Igreja na paciência das tribulações: agora oprimida pelos inimigos, então reinará com Cristo.

“E os que o traspassaram se lamentarão sobre Ele.”
Ao vê-lo em poder e glória, na mesma forma em que o julgaram indignamente, chorarão tarde demais com arrependimento vão.

“Sim. Amém.”
Certíssimo de que se cumprirá o que Deus lhe revelou, confirma com o “Amém” a firmeza do acontecimento.

“Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.”
O Princípio, a quem ninguém precede; o Fim, a quem ninguém sucede no reino.

“Aquele que é, que era e que há de vir.”
O mesmo que se disse do Pai: pois o Pai vem e há de vir no Filho.

“Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação.”
Indica sua pessoa, o lugar e a causa da visão. E atesta que a teve “em espírito”, para que não fosse julgada uma ilusão carnal.

“Estive na ilha de Patmos, por causa da Palavra de Deus.”
É conhecida a história de João, exilado por ordem de Domiciano na ilha de Patmos por causa do Evangelho. E, quando lhe foi negado percorrer certas terras, mereceu penetrar os segredos do Céu — como se o fechamento dos caminhos terrenos lhe abrisse o acesso às alturas.

“Fui arrebatado em espírito no dia do Senhor.”
Assinala, de modo conveniente à visão espiritual, também o tempo: pois é costume da Escritura indicar, assim como o lugar e a matéria, também o tempo das causas. Assim, os anjos visitam Abraão ao meio-dia e Sodoma ao entardecer; Adão, após o meio-dia, se esconde à voz do Senhor que passeava; e Salomão, à noite, recebe a sabedoria que não soube guardar.

“E ouvi atrás de mim uma grande voz.”
Primeiro é chamado pela voz, para depois voltar o olhar à visão.

“O que vês, escreve num livro e envia-o às sete Igrejas.”
Não havia então apenas nessas cidades a Igreja de Cristo, mas nelas o número sete representa a plenitude. A Ásia, cujo nome significa “elevação”, designa o orgulho do mundo onde a Igreja peregrina; e, segundo o costume das figuras divinas, o gênero é significado pela espécie. Assim também o apóstolo Paulo escreveu a sete Igrejas, embora não às mesmas que João. E, ainda que esses lugares representem a Igreja inteira, os fatos que ele louva ou censura realmente se deram nessas cidades.

“E, voltando-me para ver a voz que falava comigo, vi sete candelabros de ouro.”
Aqui se descreve belamente a forma da Igreja, que sustenta o lume do amor divino no brilho de um peito casto, conforme o que o Senhor disse: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas” (Lc 12,35). A perfeição interior e exterior da Igreja é indicada pelas duas partes do número sete, pois cada fiel, composto das quatro qualidades do corpo, ama o Senhor seu Deus de todo o coração, de toda a alma e de todas as forças.

“E no meio dos sete candelabros, um semelhante ao Filho do Homem.”
Diz “semelhante”, pois, depois de vencer a morte, ascendeu ao Céu. “Ainda que tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, agora já não o conhecemos assim” (2Cor 5,16). E bem se diz “no meio”, pois “todos os que estão ao seu redor oferecerão presentes”.

“Vestido com uma túnica longa.”
A túnica talar, chamada em latim podéris, era a veste sacerdotal: indica o sacerdócio de Cristo, que, no altar da cruz, ofereceu-se ao Pai por nós como hóstia.

“E cingido ao peito com um cinto de ouro.”
As duas “mamas” significam os dois Testamentos, com os quais Cristo alimenta o corpo dos santos. O cinto de ouro é o coro dos santos, unidos pela caridade, ligados ao Senhor e cingindo os Testamentos, “guardando a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4,3).

“E a sua cabeça e os seus cabelos eram brancos como lã branca, como neve.”
O candor na cabeça representa a antiguidade e a imortalidade da majestade divina; e os que a ela se unem, como cabelos que aderem à cabeça, resplandecem como lã — por causa das ovelhas que estarão à direita — e como neve, pela multidão incontável dos lavados, e pela pureza dos eleitos que vêm do alto.

“E os seus olhos eram como chama de fogo.”
Os olhos do Senhor são os pregadores que, inflamados pelo fogo espiritual, iluminam os fiéis e abrasam os incrédulos.

“E os seus pés, semelhantes ao metal precioso, como que incandescente em fornalha.”
Os pés incandescentes simbolizam a Igreja dos últimos tempos, que há de ser examinada e provada pelas tribulações intensas. Pois o metal chamado orichalcum é cobre levado ao fogo e ao remédio até adquirir cor dourada. Em outra tradução, lê-se “semelhantes ao bronze do Líbano”, o que indica que a Igreja será perseguida especialmente na Judeia — cujo monte Líbano é célebre —, e por isso o Templo é muitas vezes chamado “Líbano”, como nas palavras: “Abre, ó Líbano, as tuas portas, e o fogo devore os teus cedros” (Zc 11,1).

“E a sua voz era como o rumor de muitas águas.”
A voz da confissão, da pregação e do louvor ressoa não apenas na Judeia, mas entre muitos povos.

“E tinha na sua mão direita sete estrelas.”
A mão direita de Cristo é a Igreja espiritual. Assim se diz no salmo: “A rainha se pôs à tua direita, adornada com vestes de ouro” (Sl 44,10); e o mesmo Senhor dirá àqueles que estão à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino” (Mt 25,34).

“E da sua boca saía uma espada aguda de dois gumes.”
Pois aquele que julga as coisas visíveis e invisíveis tem poder, depois de ferir, de lançar no fogo do inferno (cf. Mt 10,28).

“E o seu rosto brilhava como o sol em sua força.”
Assim como apareceu aos discípulos no monte, assim o Senhor se manifestará a todos os santos depois do juízo; pois os ímpios também “verão aquele a quem traspassaram” (Jo 19,37). Todo esse aspecto do Filho do Homem convém também à Igreja, com a qual Cristo se fez uma só natureza: concedendo-lhe a honra sacerdotal e o poder judicial, para que resplandeça “como o sol no reino do Pai” (Mt 13,43).

“E quando o vi, caí a seus pés como morto.”
Treme, como homem, diante da visão espiritual, mas a clemência do Senhor dissipa o temor humano.

“E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo: não temas; eu sou o primeiro e o último.”
O Primeiro, porque tudo foi feito por Ele; o Último, porque n’Ele tudo se restaura.

“E tenho as chaves da morte e do inferno.”
Não somente, diz Ele, venci a morte pela ressurreição, mas tenho domínio sobre ela. E este poder Ele concedeu à Igreja, ao soprar sobre os discípulos o Espírito Santo e dizer: “Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados...” (Jo 20,23).

“Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas.”
Tudo o que viste, manifesta aos outros: os diversos trabalhos da Igreja e a mistura, até o fim do século, dos maus com os bons.

“O mistério das sete estrelas que viste na minha destra, e dos sete candelabros de ouro.”
As sete estrelas são os anjos das sete Igrejas, isto é, os seus pastores; pois, como diz o profeta Malaquias, “o sacerdote é o anjo do Senhor dos Exércitos” (Ml 2,7).
E os sete candelabros são as sete Igrejas, ou, em figura, toda a Igreja universal adornada de luz celeste e sustentada pela graça divina.

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO II

“Ao anjo da Igreja de Éfeso, escreve.”

A esta Igreja — cujo nome, conforme o sentido da palavra, significa “meu desejo está nela” ou “grande queda” — o Senhor dirige palavras de reprovação e de louvor.

“Isto diz aquele que tem na sua mão direita as sete estrelas.”
Isto é, aquele que vos possui em sua mão, e que vos governa e sustém com seu próprio poder.

“Aquele que anda no meio dos sete candelabros de ouro.”
Aquele que caminha no meio de vós, e perscruta os corações e os rins de cada um.

“Conheço as tuas obras, o teu labor e a tua paciência.”
Vejo-te diligente nas boas obras e paciente nas injúrias dos maus; vejo-te que, examinando com cuidado as palavras e os atos dos falsos apóstolos, recusaste ceder-lhes em qualquer coisa.

“Mas tenho contra ti que abandonaste a tua primeira caridade.”
Em algumas coisas deixaste o amor que tinhas no princípio; e, se não o recuperares, privar-te-ei do dom da luz prometida. No entanto, há também em ti algo que louvo: odeias as obras dos nicolaítas, como eu também as odeio.

“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas.”
Pois o que escreve a cada Igreja em particular, diz na verdade a todas; não era apenas a Igreja de Éfeso que seria removida do seu lugar se não se arrependesse, nem somente em Pérgamo estava o trono de Satanás. Assim também o que se diz a cada uma das sete, aplica-se à Igreja inteira.

“Ao vencedor darei de comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus.”
A árvore da vida é Cristo; e no paraíso celestial, pela visão de Cristo — e também, já agora, em seu corpo místico que é a Igreja — as almas santas se alimentam.


“E ao anjo da Igreja de Esmirna, escreve.”

A esta Igreja recomenda que suporte a perseguição, e seu nome concorda com o conselho: Smyrna significa mirra, que é símbolo da mortificação da carne.

“Isto diz o primeiro e o último, que esteve morto e vive.”
Aquele que tudo criou e, morrendo, tudo restaurou: apta introdução para quem vai exortar à paciência.

“Conheço a tua tribulação e a tua pobreza — mas és rico.”
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). O que Fortunato exprimiu em breve verso: “Pobre no aperto, reina possuindo Deus.”

“E conheço a blasfêmia dos que se dizem judeus e não o são.”
Confessam conhecer a Deus, mas o negam pelas obras. Pois “judeu” é nome de religião, e o apóstolo ensina: “Judeu é aquele que o é no íntimo, e a circuncisão é a do coração, no espírito e não na letra.”

“Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão para serdes tentados.”
Essas palavras convêm à Igreja universal, contra a qual o diabo continuamente exerce inimigos e ciladas.

“E tereis tribulação de dez dias.”
O número dez designa todo o tempo em que são necessários os mandamentos do Decálogo. Enquanto segues a luz da Palavra divina, deves sofrer o cárcere do inimigo que te resiste.
Alguns interpretam também como as dez perseguições dos imperadores, desde Nero até Diocleciano.

“Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida.”
Mostra assim o alcance dos “dez dias”: o tempo da fidelidade até a morte.

“O vencedor não sofrerá o dano da segunda morte.”
Aquele que permanecer fiel até a morte do corpo não temerá a morte eterna da alma.


“E ao anjo da Igreja de Pérgamo, escreve.”

Pergamus significa “dividindo os chifres deles”, isto é, aquele que, julgando com retidão, separou a virtude dos fiéis da perfídia dos nicolaítas, para que os chifres dos pecadores fossem quebrados e os dos justos exaltados.

“Isto diz aquele que tem a espada aguda de dois gumes.”
Aquele que tem poder de julgar; apta introdução de quem há de conceder prêmio aos vencedores e punição aos errantes.

“Conheço onde habitas: onde está o trono de Satanás.”
Aprovo a tua paciência, que, habitando entre os ímpios — que são o trono do diabo —, não me serves apenas de nome, como quem se chama cristão, mas de fé íntegra, mesmo no tempo da perseguição sangrenta. Contudo, reprovo que entre ti existam mestres sedutores.

“Nos dias de Antipas, minha fiel testemunha, que foi morto entre vós.”
Alguns pensam que se refere a um mártir chamado Antipas, morto em Pérgamo; outros veem aqui o próprio Cristo, que ainda hoje é morto pelos incrédulos, tanto quanto depende deles.

“Comes e fornicas.”
São estas as duas principais paixões pelas quais os carnais combatem: o ventre é o seu deus e a vergonha a sua glória (Fp 3,19). Pois toda obra má é idolatria e fornicação espiritual.

“Tens contigo os que seguem a doutrina dos nicolaítas.”
Os nicolaítas foram assim chamados de Nicolau, um dos primeiros diáconos. Conta Clemente que, tendo sido acusado de ciúme por causa da beleza de sua esposa, respondeu, para não ser tido por zeloso, que qualquer um podia tomá-la, e que por isso ensinou aos ímpios que os apóstolos haviam permitido o uso comum das mulheres. Dizem ainda que pregaram fábulas gentílicas sobre a origem do mundo e não se abstiveram das carnes sacrificadas aos ídolos.

“Ao vencedor darei o maná escondido.”
Aquele que, mesmo sendo tentado por hipócritas, desprezar os atrativos da carne, será saciado com o pão invisível que desceu do céu.

“E dar-lhe-ei uma pedrinha branca.”
Isto é, o corpo, agora alvejado pelo batismo, que então resplandecerá na glória da incorruptibilidade.

“E sobre a pedrinha um nome novo escrito.”
O nome de filhos de Deus, pois está escrito: “Para que sejamos chamados e sejamos realmente filhos de Deus” (1Jo 3,1).

“Que ninguém conhece senão aquele que o recebe.”
Pois “aquele que diz conhecer a Deus e não guarda os seus mandamentos é mentiroso” (1Jo 2,4); o hipócrita não prova quão suave é o Senhor.


“E ao anjo da Igreja de Tiatira, escreve.”

Tiatira significa “hóstia”, pois os santos oferecem os seus corpos como hóstia viva a Deus.

“Isto diz o Filho de Deus, que tem os olhos como chama de fogo.”
E explica adiante quem são esses olhos flamejantes: “Eu sou aquele que sonda os rins e os corações, e darei a cada um segundo as suas obras.”

“E os seus pés são semelhantes ao metal precioso.”
O mesmo sentido: que as últimas obras dessa Igreja são mais abundantes que as primeiras.

“Mas tenho contra ti que permites que a mulher Jezabel, que se diz profetisa, ensine e seduza os meus servos a fornicar e comer carnes sacrificadas aos ídolos.”
Em tua fé e obras és louvável; contudo, és repreensível porque toleras, sem justa repreensão, a sinagoga dos falsos apóstolos, que fingem ser cristãos. O nome Jezabel, que significa sangue derramado, convém aos hereges. É possível que tenha realmente existido uma mulher naquela Igreja ensinando tais coisas, figura da Jezabel universal espalhada pelo mundo, contra a qual o Senhor ameaça vingança manifesta.

“Eis que a lançarei num leito.”
Com justiça divina será punida: jazerá no leito eterno de dor aquela que seduziu os miseráveis ao leito da luxúria.

“E ferirei de morte os seus filhos.”
Os filhos são os seguidores e as obras dessa mulher; e não lhes ameaça a morte momentânea do corpo, mas a morte eterna da alma.

“E todas as Igrejas saberão que eu sou aquele que sonda rins e corações.”
Nos rins significa as deleitações; no coração, os pensamentos.

“E darei a cada um de vós segundo as suas obras.”
As obras e palavras podem ser conhecidas pelos homens, mas o motivo por que são feitas e a intenção do coração só Ele conhece. Assim, embora puna abertamente a fornicação e a idolatria, que são pecados manifestos, é também cognoscente dos ocultos, porque esses mesmos vícios se escondem sob formas sutis. “Destruirás todos os que se prostituem longe de ti” (Sl 62,9). E o mesmo João, que ouviu estas palavras, escreveu em sua epístola: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1Jo 5,21).

“Mas a vós e aos outros de Tiatira, que não conhecem as profundezas de Satanás, digo: não vos imporrei outro peso.”
Assim como exorta os ímpios à penitência e os ameaça com castigos, assim anima os piedosos à paciência e os consola com promessas eternas.
“Não vos tentarei além do que podeis suportar.” Ou, segundo outra leitura: “Guardai-vos dos falsos profetas” (Mt 7,15); não vos envio nova doutrina, mas apenas vos ordeno que conserveis fielmente o que já recebestes até o fim.

“E ao vencedor, que guardar as minhas obras até o fim, darei poder sobre as nações.”
Na pessoa de Cristo, a Igreja possui esse poder, como corpo unido à cabeça. Pois, segundo o Apóstolo, “Deus nos deu tudo com Ele” (Rm 8,32).

“E as regerá com vara de ferro.”
Com justiça inflexível governa os mansos para que deem mais fruto; e destrói os contumazes, para que pereçam ou para que sejam quebradas neles as paixões terrenas e os negócios lamacentos do homem velho, tudo o que se apegou ao lodo dos pecados.

“E dar-lhe-ei a estrela da manhã.”
Cristo é a estrela da manhã, que, passada a noite do mundo, promete e abre aos santos a luz eterna da vida.

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO III

“E ao anjo da Igreja de Sardes, escreve.”

Sardes significa “príncipe do ornamento”; a Igreja aqui simboliza aqueles que, tendo recebido dons espirituais, parecem adornados, mas perdem a vigilância interior.

“Isto diz aquele que tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas.”
O Senhor se apresenta como plenitude do Espírito e como aquele que sustenta todos os ministros fiéis.

“Conheço as tuas obras: tens nome de vivo, mas estás morto.”
Pareces viver pela reputação exterior, mas estás morto diante de Deus, por negligência interior.

“Sê vigilante e confirma o que resta, que está para morrer.”
Exorta-o a recuperar o fervor da fé, para que o pouco que ainda vive não se extinga completamente.

“Não achei tuas obras perfeitas diante de meu Deus.”
Pois não basta começar bem; é necessário perseverar até o fim.

“Lembra-te, pois, de como recebeste e ouviste, e guarda e arrepende-te.”
Recorda-te da graça inicial e conserva o que aprendeste. O remédio para a tibieza é o retorno à memória do primeiro amor.

“Se não vigiares, virei como ladrão.”
Assim como a morte surpreende os negligentes, assim também o juízo virá subitamente aos despreocupados.

“Tens, contudo, algumas poucas pessoas em Sardes que não mancharam suas vestes.”
Mesmo entre uma multidão tíbia, existem alguns fiéis íntegros.

“E andarão comigo de branco, porque são dignas.”
A veste branca é o esplendor da pureza espiritual, que acompanha Cristo na glória.

“O vencedor será assim revestido de vestes brancas, e não apagarei o seu nome do livro da vida.”
Aquele que perseverar na pureza não será riscado do número dos eleitos.

“E confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos.”
Assim como Ele mesmo prometeu no Evangelho: “A todo aquele que me confessar diante dos homens, confessá-lo-ei diante de meu Pai” (Mt 10,32).


“E ao anjo da Igreja de Filadélfia, escreve.”

Filadélfia significa “amor fraternal”; representa os que perseveram na caridade.

“Isto diz o Santo, o Verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi; o que abre e ninguém fecha, o que fecha e ninguém abre.”
A chave de Davi é o poder régio e sacerdotal de Cristo, que abre o reino dos céus aos crentes e o fecha aos infiéis.

“Conheço as tuas obras: eis que pus diante de ti uma porta aberta, que ninguém pode fechar.”
Por meio da fé e da pregação, foi-lhe aberta a entrada no céu. A porta aberta é Cristo mesmo: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será salvo” (Jo 10,9).

“Tens pouca força, mas guardaste a minha palavra e não negaste o meu nome.”
Ainda que pobre em recursos ou pequena em número, conservaste a fé íntegra.

“Eis que farei vir aqueles da sinagoga de Satanás, que dizem ser judeus e não são, mas mentem.”
Quer dizer: farei com que os hipócritas reconheçam que tu és verdadeiramente amada de Deus.

“Eis que os farei vir e prostrar-se-ão aos teus pés, e saberão que te amei.”
Os inimigos da Igreja reconhecerão, com temor e confusão, que ela é a verdadeira esposa do Cordeiro.

“Porque guardaste a palavra da minha paciência, eu também te guardarei da hora da tentação que virá sobre o mundo inteiro.”
Promete livrá-la do escândalo que há de vir, quando o Anticristo tentar a fé de todos.

“Venho sem demora; conserva o que tens, para que ninguém tome a tua coroa.”
A vinda do Senhor está sempre próxima para os que vivem vigilantes. A coroa é a perseverança na fé e na caridade.

“Ao vencedor farei coluna no templo do meu Deus, e daí jamais sairá.”
A coluna é o sustentáculo firme da Igreja; os santos serão coluna inamovível no templo eterno.

“E escreverei sobre ele o nome do meu Deus, e o nome da cidade do meu Deus, da nova Jerusalém, que desce do céu, e o meu nome novo.”
O nome do Pai, do Filho e da cidade designa a união perfeita com a Trindade e com a Igreja triunfante.


“E ao anjo da Igreja de Laodiceia, escreve.”

Laodiceia significa “o povo amado pelo Senhor” ou “o julgamento do povo”; aqui representa os que, julgados por suas obras, revelam tibieza de espírito.

“Isto diz o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus.”
Chama-se “Amém”, isto é, “verdade”, porque é a plenitude e a confirmação de todas as promessas.

“Conheço as tuas obras: não és frio nem quente.”
Não és inteiramente mau, como o frio, nem fervoroso no bem, como o quente.

“Quem dera fosses frio ou quente!”
Se fosses frio, talvez a miséria te conduzisse ao arrependimento; se fosses quente, perseverarias no amor.

“Mas porque és morno, e não és frio nem quente, estou para vomitar-te da minha boca.”
A tibieza é odiosa a Deus, porque é mistura de amor terreno e celestial. Ser “vomitado” significa ser expulso da comunhão de Cristo.

“Dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada tenho falta.”
Tal é o soberbo que confia em suas obras e não sente necessidade da graça.

“E não sabes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu.”
A ignorância de si mesmo é a maior miséria: pensa possuir a luz, mas está nas trevas.

“Aconselho-te que compres de mim ouro provado no fogo, para te tornares rico.”
O ouro é a fé purificada pelas tribulações.

“E vestes brancas, para te vestires e não apareça a vergonha da tua nudez.”
As vestes brancas são as boas obras e a graça do batismo.

“E unguento para ungires os teus olhos, a fim de que vejas.”
O colírio espiritual é o dom do Espírito Santo, que ilumina os olhos do coração.

“Eu repreendo e castigo os que amo; sê zeloso, pois, e arrepende-te.”
A repreensão é sinal do amor divino: “O Senhor corrige aquele a quem ama” (Pr 3,12).

“Eis que estou à porta e bato.”
Bate quando inspira a conversão; entra quando o coração se abre à graça.

“Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele e ele comigo.”
O banquete é a comunhão mística entre Cristo e a alma fiel.

“Ao vencedor concederei sentar-se comigo em meu trono, assim como eu venci e me sentei com meu Pai em seu trono.”
A glória dos santos é participar do mesmo reino e juízo de Cristo.

“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas.”
Como em todas as cartas anteriores, o Espírito fala a uma Igreja, mas ensina a todas; pois as virtudes e as culpas de cada uma figuram as de toda a Igreja ao longo dos séculos.

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO IV

“Depois destas coisas, olhei, e eis que uma porta estava aberta no céu.”

Depois de ouvir as exortações às sete Igrejas, João é introduzido, pela contemplação, na visão das coisas celestes. A “porta aberta no céu” é Cristo, que, pela fé, se abre aos que o amam; é também a revelação espiritual, pela qual se desvela ao profeta o mistério oculto do Reino.

“E a primeira voz que eu ouvira, como de trombeta, falando comigo, dizia: Sobe até aqui, e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas.”
A voz de trombeta é a voz do próprio Cristo, que antes falara “atrás dele”, e agora o chama para as alturas. Diz “depois destas coisas”, não porque as visões subsequentes se sucedam no tempo, mas porque pertencem a uma ordem superior de contemplação.

“Imediatamente fui arrebatado em espírito, e eis que um trono estava posto no céu, e sobre o trono um sentado.”
Assim como a mente, transportada em êxtase, se eleva acima dos sentidos, João é arrebatado “em espírito”. O “trono” designa a firmeza do juízo divino; o “sentado” é o mesmo Deus onipotente, que repousa em sua imutabilidade eterna.

“E o que estava sentado tinha a aparência de jaspe e de sardônica.”
O jaspe, pedra translúcida e verde, simboliza a misericórdia e a vida; a sardônica, vermelha e brilhante, indica a justiça e a paixão. Em Deus, a clemência e o juízo coexistem inseparavelmente.

“E havia ao redor do trono um arco-íris semelhante à esmeralda.”
O arco-íris é o sinal do pacto eterno (Gn 9,13): aqui representa a misericórdia que circunda o juízo, e a esmeralda, de cor verde e viva, indica a esperança dos eleitos.

“E ao redor do trono havia vinte e quatro tronos, e sobre eles vinte e quatro anciãos sentados, vestidos de branco, e nas cabeças coroas de ouro.”
Os vinte e quatro anciãos representam os santos da Antiga e da Nova Lei, ou seja, os doze patriarcas e os doze apóstolos. As vestes brancas indicam a pureza; as coroas, a glória do triunfo; os tronos, a participação no juízo divino.

“E do trono saíam relâmpagos, vozes e trovões.”
Os relâmpagos manifestam o poder do juízo; as vozes, a pregação dos profetas; os trovões, os terrores da consciência humana.

“E havia sete lâmpadas ardentes diante do trono, que são os sete espíritos de Deus.”
Esses sete Espíritos não são sete substâncias distintas, mas a plenitude única do Espírito Santo, que irradia seus sete dons — sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.

“E diante do trono havia como que um mar de vidro semelhante ao cristal.”
O mar é a multidão dos fiéis; sua transparência, a pureza das almas que refletem a luz divina. É chamado “de vidro”, porque, embora sólido, recebe e reflete a claridade do céu.

“E no meio do trono, e ao redor do trono, quatro animais cheios de olhos diante e atrás.”
Os quatro animais são os quatro evangelistas, ou também as quatro virtudes cardeais — prudência, justiça, fortaleza e temperança — que sustentam o trono de Deus no mundo. São “cheios de olhos”, porque nada há oculto à sabedoria divina.

“O primeiro animal era semelhante a um leão; o segundo, a um novilho; o terceiro tinha o rosto como de homem; e o quarto, era semelhante a uma águia que voa.”
O leão significa Mateus, que inicia seu Evangelho pela realeza de Cristo; o novilho, Marcos, que descreve o sacrifício do Senhor; o homem, Lucas, que fala da humanidade e da misericórdia; a águia, João, que se eleva até a contemplação do Verbo eterno.
No sentido moral, o leão é a fortaleza; o novilho, a paciência; o homem, a prudência; e a águia, a sabedoria contemplativa.

“E os quatro animais tinham cada um seis asas, e ao redor e por dentro estavam cheios de olhos.”
As seis asas são os seis períodos do tempo, nos quais o louvor de Deus não cessa; os olhos por dentro e por fora significam que os santos veem tanto as realidades interiores do espírito quanto as exteriores das obras.

“E não cessavam de dizer dia e noite: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus onipotente, que era, que é e que há de vir.”
O tríplice “Santo” confessa a Trindade; a fórmula “que era, que é e que há de vir” proclama a eternidade divina.

“E quando os animais davam glória e honra e ação de graças ao que está sentado no trono, que vive pelos séculos dos séculos, os vinte e quatro anciãos prostravam-se diante do que está sentado no trono, adoravam o que vive pelos séculos dos séculos, e lançavam as suas coroas diante do trono, dizendo:”
A Igreja celestial, representada nos anciãos, atribui toda a glória ao Criador; as coroas lançadas significam que os méritos dos santos pertencem inteiramente à graça de Deus.

“Digno és, Senhor e Deus nosso, de receber glória, honra e poder, porque criaste todas as coisas, e por tua vontade existem e foram criadas.”
Aqui se conclui a primeira visão: a criação inteira é apresentada como cântico incessante em louvor ao Criador. A vontade divina é o fundamento e o fim de todas as criaturas; o universo é, em sua totalidade, uma liturgia ordenada ao seu Autor.

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO V

“E vi, na mão direita daquele que estava sentado sobre o trono, um livro escrito por dentro e por fora.”

Esta visão representa os mistérios da Sagrada Escritura revelados a nós pela Encarnação do Senhor. A unidade perfeita de ambos os Testamentos — o Antigo e o Novo — encontra-se simbolizada neste livro: o Antigo está figurado no exterior, e o Novo, no interior.

“Selado com sete selos.”
Isto é, coberto pela plenitude dos mistérios ocultos ou inscrito segundo a disposição do Espírito de sete dons.

“E ouvi um anjo forte proclamando em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e de romper os seus selos?”
Aqui se anuncia a pregação da Lei. Muitos profetas e justos desejaram ver o que os apóstolos viram (Mt 13,17). E sobre esta salvação — como diz Pedro — “os profetas investigaram e examinaram diligentemente” (1Pd 1,10).
Este é o livro de que fala Isaías: “Será entregue o livro a quem sabe ler, dizendo: Lê isto; e ele responderá: Não posso, porque está selado” (Is 29,11). Mas também ali se profetiza a sua abertura: “Naquele dia ouvirão os surdos as palavras do livro” (Is 29,18).
E Ezequiel confirma: “Vi, e eis que uma mão se estendia para mim, e nela havia um rolo escrito por dentro e por fora; e estava nele escrito lamentações, cânticos e ais” (Ez 2,9-10).
Assim, toda a sequência do Antigo e do Novo Testamento ensina que se deve fazer penitência pelos pecados, buscar o reino celeste e fugir dos prantos infernais.

“E ninguém podia abrir o livro, nem olhar para ele, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra.”
Nem os anjos, nem os justos, ainda que libertos dos laços da carne, puderam revelar ou investigar os mistérios da lei divina, nem sequer contemplar o esplendor da graça do Novo Testamento, assim como os filhos de Israel não puderam olhar para o rosto de Moisés, portador da Antiga Lei, que continha o Novo em figura.

“E eu chorava muito porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ver.”
João, aqui, representa o desejo santo da Igreja, que suspira por compreender as Escrituras e lamenta o véu que cobre os mistérios da revelação.

“E um dos anciãos disse-me: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu, para abrir o livro e romper os seus sete selos.”
O Leão é Cristo, cuja fortaleza venceu o pecado e a morte; e a Raiz de Davi significa que Ele, segundo a carne, brotou da estirpe de Davi, e, segundo o espírito, o gerou como seu Senhor.

“E vi, no meio do trono e dos quatro animais e entre os anciãos, um Cordeiro de pé, como que imolado.”
O Leão é o mesmo que o Cordeiro: forte para vencer, manso para sofrer. Ele está “de pé”, porque, ressuscitado, vive para sempre; e “como imolado”, porque perpetuamente apresenta ao Pai o sacrifício de sua paixão.

“Tendo sete chifres e sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra.”
Os chifres significam o poder invencível; os olhos, a plenitude da sabedoria. Ambos representam a totalidade do Espírito Santo, cuja operação se estende a todas as partes do mundo.

“E veio e tomou o livro da mão direita daquele que estava sentado sobre o trono.”
O Filho recebe do Pai o livro, isto é, manifesta no tempo o que estava oculto na eternidade. O que o Pai possui por natureza, o Filho revela pela economia da redenção.

“E quando tomou o livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um harpas e taças de ouro cheias de perfumes, que são as orações dos santos.”
Os quatro animais — os Evangelhos — e os vinte e quatro anciãos — os dois Testamentos —, juntos, oferecem louvor ao Cordeiro. As harpas significam a harmonia das boas obras, e as taças de ouro, o perfume das orações puras.

“E cantavam um cântico novo, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir os seus selos, porque foste imolado e com teu sangue resgataste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação.”
O “cântico novo” é o louvor da nova graça. Só o Cordeiro é digno de abrir o livro, porque redimiu a humanidade com o preço do seu sangue.

“E fizeste deles um reino e sacerdotes para o nosso Deus, e reinarão sobre a terra.”
O Senhor faz dos redimidos um povo real e sacerdotal: reinam, dominando as paixões; e são sacerdotes, oferecendo-se a si mesmos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

“E vi e ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono, dos animais e dos anciãos, e era o número deles miríades de miríades e milhares de milhares.”
Isto é, todos os exércitos celestes unidos na adoração ao Cordeiro, proclamando a mesma confissão da Igreja triunfante.

“E diziam em alta voz: Digno é o Cordeiro que foi imolado de receber poder, e riqueza, e sabedoria, e fortaleza, e honra, e glória, e bênção.”
Os sete louvores correspondem aos sete dons do Espírito, pelos quais Cristo é exaltado em sua humanidade glorificada.

“E toda criatura que está no céu, na terra, debaixo da terra e no mar, e todas as coisas que neles há, ouvi dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro sejam a bênção, a honra, a glória e o poder pelos séculos dos séculos.”
Toda criatura, racional e irracional, reconhece o seu Criador; pois, pela redenção, o universo inteiro é reconduzido à harmonia da vontade divina.

“E os quatro animais diziam: Amém. E os vinte e quatro anciãos prostravam-se e adoravam o que vive pelos séculos dos séculos.”
O “Amém” sela a concordância entre o Antigo e o Novo Testamento. Assim, a Igreja universal, representada nos anciãos e nos Evangelhos, adora eternamente Aquele que é, que era e que há de vir.

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO VI

“E vi quando o Cordeiro abriu um dos selos.”

Quando os sinais começam a se soltar, o livro se abre — e, de certo modo, João inverte a ordem habitual. Pois o Senhor, sofrendo e ressuscitando, ensinou ser Ele o fim da Lei; e, subindo ao céu, tendo enviado o Espírito Santo, confirmou a Igreja com o dom do mistério mais secreto.
Então abriu o livro; e agora, um a um, vai rompendo os seus selos. No primeiro selo, mostra-se o esplendor da Igreja primitiva; nos três seguintes, o triplo combate que ela sofrerá; no quinto, a glória dos mártires triunfadores; no sexto, as calamidades dos tempos do Anticristo, retomando o que já fora indicado; e no sétimo, o início do repouso eterno.

“E ouvi um dos quatro animais dizendo: Vem e vê.”
Nós também somos exortados, pelas vozes potentes do Evangelho, a contemplar a glória da Igreja.

“E eis um cavalo branco.”
O Senhor cavalga a Igreja, que, alva pela graça, triunfa sobre o mundo. Montado nela, leva armas espirituais contra os ímpios e, vitorioso em seus fiéis, recebe a coroa. Deste se diz: “Subiste ao alto, cativaste cativeiro, recebeste dons nos homens” (Sl 67,19). Ele mesmo, que do céu preside, foi perseguido por Saulo.

“E saiu outro cavalo vermelho.”
Contra a Igreja vitoriosa sai o cavalo vermelho, isto é, o povo ímpio, sangrento pelo diabo, seu cavaleiro. Lemos em Zacarias um cavalo vermelho do Senhor; mas aquele é vermelho de seu próprio sangue, este, do sangue alheio.

“E foi-lhe dado tirar a paz da terra.”
Tira a sua própria paz — a dos ímpios —, pois a Igreja possui a paz eterna que Cristo lhe deixou.

“E foi-lhe dado um grande gládio.”
Ou seja, contra os que prevaricaram da fé, ou contra aqueles a quem o Senhor permitiu a tentação, para que, provados, fossem purificados.

“E quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro animal dizendo: Vem e vê. E eis um cavalo negro.”
O negro indica os hereges que obscurecem a fé; o cavaleiro, que tem na mão uma balança, representa os que, disfarçados de juízes, pesam falsamente as obras dos fiéis.

“E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, dizendo: Uma medida de trigo por um denário, e três medidas de cevada por um denário; e não danifiques o azeite e o vinho.”
O trigo e a cevada são as Escrituras: o trigo, o sentido espiritual; a cevada, o literal. Um denário é a única fé. O azeite e o vinho — os sacramentos e a caridade — não podem ser tocados pelos ímpios.

“E quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal dizendo: Vem e vê. E eis um cavalo pálido.”
O cavalo pálido simboliza a morte: são os ímpios que, sem cor da graça, trazem consigo a corrupção e o inferno. O nome de seu cavaleiro é “Morte”, e o “Inferno” o segue — quer dizer, os pecadores que arrastam outros à perdição.

“E foi-lhes dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar com espada, com fome, com peste e pelas feras da terra.”
A quarta parte indica a limitação de seu poder: nem todos são entregues ao mal, mas apenas os que consentem. A espada é a perseguição; a fome, a ausência da Palavra de Deus; a peste, a corrupção dos costumes; as feras, os príncipes e tiranos cruéis.

“E quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por causa da palavra de Deus.”
O altar é Cristo, sob o qual estão as almas dos mártires — não porque estejam oprimidas, mas porque se fundiram no sacrifício do Senhor.

“E clamavam em alta voz: Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, não julgas e não vingas o nosso sangue sobre os que habitam sobre a terra?”
O clamor dos santos é o desejo ardente de ver manifestada a justiça de Deus. Pedem, não por vingança, mas pela consumação da vitória da verdade.

“E foi-lhes dada a cada um uma veste branca, e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que se completasse o número de seus companheiros e irmãos, que haviam de ser mortos como eles.”
As vestes brancas são o prêmio da imortalidade; o “repousar um pouco” indica que a glória plena só será concedida quando se consumar o número dos eleitos.

“E quando abriu o sexto selo, houve um grande terremoto.”
O terremoto é a perturbação universal que precederá o fim dos tempos, quando o Anticristo vier.

“E o sol se tornou negro como saco de cilício, e a lua toda se tornou como sangue.”
O sol é Cristo, que será negado pelos ímpios; a lua, a Igreja, manchada pelo sangue dos mártires.

“E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como a figueira deixa cair seus figos verdes quando é abalada por um vento forte.”
As estrelas são os doutores que, seduzidos pelo erro, perderão a luz da fé.

“E o céu retirou-se como um livro que se enrola, e todos os montes e ilhas foram removidos de seus lugares.”
O céu que se enrola é a dissolução da antiga ordem; montes e ilhas, os reinos e as igrejas locais que serão abalados.

“E os reis da terra, os grandes, os ricos, os tribunos, os poderosos, todo escravo e livre se esconderam nas cavernas e entre as rochas das montanhas.”
Os ímpios buscarão refúgio, mas não encontrarão; as cavernas são as ilusões e enganos humanos nas quais tentarão se ocultar.

“E diziam aos montes e às rochas: Caí sobre nós, e escondei-nos da face daquele que está sentado sobre o trono e da ira do Cordeiro.”
Temerão o juízo divino que não quiseram reconhecer no tempo da misericórdia.

“Porque chegou o grande dia da sua ira, e quem poderá subsistir?”
Ninguém resistirá, senão os que, lavados no sangue do Cordeiro, foram achados dignos de permanecer em pé.

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CAPÍTULO VII

“Depois destas coisas, vi quatro anjos de pé sobre os quatro cantos da terra, retendo os quatro ventos da terra.”

Os quatro anjos são os ministros de Deus que contêm as forças do mundo — isto é, as potências espirituais encarregadas de manter a ordem da criação. Os quatro ventos significam os movimentos das tribulações que percorrem todo o orbe. Retêm-nos porque o castigo final ainda não foi permitido antes que os escolhidos fossem selados.

“E vi outro anjo subir do nascente do sol, tendo o selo do Deus vivo.”
O anjo do oriente é Cristo, o Sol da justiça, que vem para selar os seus servos com o Espírito Santo. O “selo do Deus vivo” é a marca da fé verdadeira, impressa na fronte dos fiéis pelo dom do Espírito.

“E clamou com grande voz aos quatro anjos, aos quais fora dado o poder de fazer mal à terra e ao mar, dizendo: Não façais mal nem à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos assinalado na fronte os servos do nosso Deus.”
A terra, o mar e as árvores representam, respectivamente, os homens carnais, os inconstantes e os espirituais; e o castigo é suspenso até que todos os predestinados sejam selados, porque “o Senhor conhece os que são seus” (2Tm 2, 19).

“E ouvi o número dos assinalados: cento e quarenta e quatro mil selados de todas as tribos dos filhos de Israel.”
O número 12 multiplicado por 12 e por mil indica a totalidade dos eleitos — doze apóstolos e doze tribos —, significando a perfeição da Igreja, que se estende a todas as nações e tempos.

“Da tribo de Judá, doze mil selados; da tribo de Rúben, doze mil; da tribo de Gade, doze mil...”
A enumeração das tribos não se deve entender segundo a carne, mas espiritualmente. Judá vem primeiro porque Cristo nasceu dessa tribo; Dã é omitida por ter prefigurado o Anticristo; e Levi, que na antiga lei não possuía herança, aqui é contado, porque participa da herança celestial.

“Depois destas coisas, vi uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, de pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos com vestes brancas e com palmas nas mãos.”
Após o número simbólico dos selados, mostra-se a multidão incontável dos salvos. As vestes brancas representam a pureza e a glória; as palmas, a vitória da fé sobre o mundo.

“E clamavam em alta voz, dizendo: A salvação pertence ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro.”
A multidão, unida à Igreja triunfante, reconhece que toda a salvação vem somente de Deus e de Cristo.

“E todos os anjos estavam em redor do trono, dos anciãos e dos quatro animais; e prostraram-se sobre os seus rostos diante do trono, e adoraram a Deus, dizendo: Amém. A bênção, e a glória, e a sabedoria, e a ação de graças, e a honra, e o poder, e a fortaleza ao nosso Deus pelos séculos dos séculos.”
Aqui a liturgia celeste se torna plena: os sete louvores expressam a plenitude do culto que toda a criação presta ao Criador.

“E respondeu um dos anciãos, dizendo-me: Estes que estão vestidos de vestes brancas, quem são e de onde vieram?”
O ancião pergunta não para ignorar, mas para que o profeta explique aos fiéis o mistério da visão.

“E eu disse-lhe: Senhor, tu o sabes. E ele disse-me: Estes são os que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro.”
São os mártires e os penitentes que, purificados pelo sofrimento e pela graça, participam da glória do Cordeiro. Lavaram-se no sangue, não pelo mérito humano, mas pela redenção divina.

“Por isso estão diante do trono de Deus e o servem dia e noite no seu templo; e aquele que está sentado no trono habitará entre eles.”
Estar “diante do trono” é permanecer na visão beatífica; servir “dia e noite” é oferecer incessantemente o louvor da caridade perfeita.

“Não terão mais fome, nem sede, e o sol não cairá sobre eles, nem ardor algum.”
Isto é, não mais serão atormentados pelas necessidades ou tentações do corpo, nem pelo calor das paixões.

“Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, os apascentará e os conduzirá às fontes das águas da vida.”
O próprio Cristo é o Pastor e a fonte: conduz os santos à plenitude da verdade e da alegria eterna.

“E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos.”
A visão de Deus é a supressão de toda dor; quando o finito é absorvido pela luz do Infinito, a memória do sofrimento se converte em gozo eterno.

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CAPÍTULO VIII

“E, quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por quase meia hora.”

O sétimo selo contém a plenitude do mistério divino: após a consumação dos seis períodos da história, vem o repouso do sétimo — figura do descanso eterno.
O silêncio no céu é o repouso dos santos após as tribulações, ou a contemplação admirada dos anjos e dos justos ante os juízos de Deus.
“Por quase meia hora” significa que esse repouso ainda é incompleto, pois a glória plena só virá após o juízo final.
Na liturgia da Igreja, esse silêncio corresponde ao recolhimento que precede a proclamação das palavras divinas — um intervalo em que o Céu e a terra esperam a manifestação da justiça eterna.

“E vi os sete anjos que estavam de pé diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas.”
As sete trombetas simbolizam os sete anúncios proféticos da pregação, pelos quais o Espírito desperta o mundo ao arrependimento. Assim como as trombetas dos sacerdotes derrubaram as muralhas de Jericó (Js 6,20), assim a pregação apostólica derruba as fortalezas do pecado.

“E veio outro anjo e pôs-se junto ao altar, tendo um turíbulo de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que está diante do trono.”
O anjo é o próprio Cristo, Sumo Sacerdote da Nova Aliança, que oferece ao Pai o perfume de suas orações unidas às dos santos. O incenso é a intercessão perfeita de Cristo, que faz subir a oração humana como aroma agradável.

“E a fumaça do incenso subiu, com as orações dos santos, da mão do anjo diante de Deus.”
A oração da Igreja sobe até Deus pela mediação de Cristo: o incenso que se eleva é a voz da fé que se torna sacrifício espiritual.

“E o anjo tomou o turíbulo, encheu-o do fogo do altar, e lançou-o sobre a terra; e houve trovões, vozes, relâmpagos e um terremoto.”
O fogo do altar é o zelo divino, que purifica e julga. O lançar do fogo à terra representa o envio do Espírito Santo e também a pregação apostólica, que inflama os corações ou os condena conforme a disposição interior. Os trovões e relâmpagos são os efeitos da Palavra: iluminam, mas também apavoram; convertem, mas ferem.

“E os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocá-las.”
Os anjos são as ordens da Igreja e os ministros da Palavra, preparados para anunciar, em cada época, os juízos de Deus.

“E o primeiro anjo tocou a trombeta, e houve granizo e fogo misturado com sangue, e foi lançado sobre a terra; e a terça parte da terra foi queimada, a terça parte das árvores foi queimada, e toda a erva verde foi queimada.”
O granizo e o fogo com sangue significam as pregações severas que ferem os corações duros, a perseguição e a morte dos santos. A “terça parte” mostra que o castigo não é total, mas pedagógico. A terra é a carne endurecida; as árvores, os grandes do mundo; a erva verde, os pequenos e humildes — todos atingidos em parte pela ira que desperta a conversão.

“E o segundo anjo tocou a trombeta, e algo como uma grande montanha ardendo em fogo foi lançada no mar; e a terça parte do mar tornou-se em sangue, e morreu a terça parte das criaturas que estavam no mar, que tinham vida; e a terça parte dos navios foi destruída.”
A montanha ardente é o Anticristo, ou toda potência soberba que se ergue contra Deus; lançada no mar, isto é, entre os povos, ela corrompe os costumes, tornando o mar em sangue — sinal da violência e do martírio. Os “navios” são as comunidades humanas e os corações que transportam as riquezas da fé; muitos naufragam na impiedade.

“E o terceiro anjo tocou a trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas; e o nome da estrela é Absinto; e a terça parte das águas tornou-se absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas.”
A estrela caída é o espírito de engano — ou um doutor que, decaído da verdade, transforma em veneno o que deveria ser doutrina de vida. O absinto é o amargor da heresia, que corrompe a doçura do Evangelho e causa a morte espiritual daqueles que bebem de suas águas.

“E o quarto anjo tocou a trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, a terça parte da lua e a terça parte das estrelas, para que se escurecesse a terça parte deles, e o dia não brilhasse em sua terça parte, e a noite do mesmo modo.”
O escurecimento dos luminares é o eclipse da fé e da ciência divina no mundo. O sol é Cristo, a lua é a Igreja, e as estrelas são os doutores: quando a fé é ferida pela negligência ou pelo erro, o mundo mergulha em trevas espirituais.

“E olhei, e ouvi uma águia voando pelo meio do céu, dizendo em alta voz: Ai, ai, ai dos que habitam sobre a terra, por causa dos toques das trombetas dos três anjos que ainda devem tocar!”
A águia é a voz profética — ou o próprio João — que anuncia as desolações que virão. Os três “ais” correspondem às três últimas trombetas, que revelam as provações mais severas, espirituais e infernais, que ainda restam à humanidade antes da vinda do Juiz.

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CAPÍTULO IX

“E o quinto anjo tocou a trombeta, e vi uma estrela caída do céu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo.”

A estrela caída é o anjo decaído — Lúcifer — ou ainda qualquer doutor soberbo que, abandonando a luz da verdade, recebe poder para abrir o abismo da perdição.
A chave do abismo é a permissão de Deus: pois nem mesmo os espíritos malignos agem sem o consentimento divino, e tudo o que fazem concorre para o desígnio oculto da justiça eterna.

“E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha; e o sol e o ar se escureceram com a fumaça do poço.”
A fumaça é a nuvem das heresias e enganos que obscurecem a luz do Evangelho; o sol, Cristo; o ar, o entendimento espiritual dos homens. Quando a heresia se ergue, o ar se torna espesso, e a mente humana, ofuscada, não distingue o verdadeiro do falso.

“E da fumaça saíram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder como o poder que têm os escorpiões da terra.”
Os gafanhotos são os espíritos enganadores e os falsos mestres; saltam e voam, porque se elevam nas palavras e nos afetos, mas carecem de raiz. Têm poder de escorpiões, porque ferem com a cauda, isto é, com o fim da sua doutrina: prometem liberdade e entregam morte.

“E foi-lhes dito que não fizessem dano à erva da terra, nem a qualquer coisa verde, nem a árvore alguma, mas somente aos homens que não têm o selo de Deus em suas frontes.”
Não podem prejudicar os justos nem os que estão selados pelo Espírito Santo, mas apenas os infiéis e os tíbios, que se tornaram presa do erro. Assim como o Egito foi ferido e Israel poupado, também aqui a fé é muralha para os selados.

“E foi-lhes permitido que não os matassem, mas que os atormentassem por cinco meses; e o tormento era como o tormento do escorpião quando fere o homem.”
Os cinco meses indicam o tempo limitado da tentação, ou o curso dos cinco sentidos, pelos quais a alma sofre quando se entrega aos desejos carnais. Não matam, porque a heresia não destrói a natureza, mas fere a alma com erro e inquietude.

“E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; desejarão morrer, e a morte fugirá deles.”
O desespero dos ímpios é tal que, tendo perdido a vida da graça, anseiam por aniquilar-se — mas nem mesmo essa morte lhes é concedida, pois a pena de viver sem Deus é o próprio inferno antecipado.

“E a aparência dos gafanhotos era semelhante a cavalos preparados para a guerra; e sobre as suas cabeças havia como coroas semelhantes ao ouro; e os seus rostos eram como rostos de homens; e tinham cabelos como cabelos de mulheres; e os seus dentes eram como dentes de leões.”
São descritos com figuras de força e sedução: a forma de cavalos indica o ímpeto da paixão; as coroas fingidas representam o orgulho; o rosto humano, a pretensa racionalidade; o cabelo feminino, a lascívia; os dentes de leão, a crueldade e o poder de devorar almas.

“E tinham couraças como couraças de ferro, e o ruído das suas asas era como o ruído de carros, de muitos cavalos correndo para a batalha.”
As couraças de ferro simbolizam a obstinação: não recebem a correção. O ruído das asas é a verbosidade das palavras vãs — o tumulto das seitas e dos falsos pregadores.

“E tinham caudas semelhantes às dos escorpiões, e havia nas suas caudas ferrões; e o seu poder era de fazer dano aos homens por cinco meses.”
A cauda, que fere por trás, é o fim enganoso da doutrina herética: começa com aparente piedade e termina em veneno. Os cinco meses repetem o limite temporal do castigo, mostrando que a provação, embora terrível, é passageira.

“E tinham sobre si como rei o anjo do abismo, cujo nome em hebraico é Abaddon, e em grego, Apoliom; em latim, Exterminador.”
Este é o próprio diabo, chefe de todos os que se perdem, cujo nome significa destruição. Ele é rei, mas apenas sobre os filhos da desobediência; reina para perder, não para salvar.

“O primeiro ai passou; eis que vêm ainda dois ais depois destas coisas.”
Com o fim da quinta trombeta, termina a primeira série de provações espirituais; restam ainda dois ais — um temporal e outro eterno — que desabarão sobre os ímpios.


“E o sexto anjo tocou a trombeta, e ouvi uma voz vinda das quatro pontas do altar de ouro que está diante de Deus, dizendo ao sexto anjo, que tinha a trombeta: Solta os quatro anjos que estão presos junto ao grande rio Eufrates.”
A voz que vem do altar é a voz da justiça divina que determina o juízo. O rio Eufrates, que significa “fecundo”, simboliza o limite das nações; os quatro anjos são as potências destrutivas que Deus retém até o tempo oportuno — sejam demônios, sejam exércitos de povos bárbaros.

“E foram soltos os quatro anjos, que estavam preparados para a hora, o dia, o mês e o ano, para matarem a terça parte dos homens.”
O tempo exato mostra que nada se dá ao acaso: a Providência dispõe até mesmo a hora da destruição dos ímpios. A terça parte, como antes, indica o castigo parcial: a punição vem para corrigir, não para aniquilar.

“E o número do exército dos cavaleiros era de duzentos milhões; e ouvi o seu número.”
O número excessivo representa a multidão incontável dos demônios e dos homens perversos que se associam ao mal.

“E assim vi os cavalos na visão, e os que sobre eles montavam, tendo couraças de fogo, de jacinto e de enxofre; e as cabeças dos cavalos eram como cabeças de leões, e da sua boca saíam fogo, fumaça e enxofre.”
A tríplice figura — fogo, fumaça e enxofre — indica os três modos pelos quais o mal destrói: o fogo, pela ira; a fumaça, pela confusão do erro; o enxofre, pela corrupção da luxúria.
As cabeças de leão designam a ferocidade e o orgulho.

“Por estas três pragas foi morta a terça parte dos homens, pelo fogo, pela fumaça e pelo enxofre que saíam da sua boca.”
A boca é o instrumento da doutrina: pelos falsos ensinamentos, os homens perecem. Assim também está escrito: “A língua é um fogo, um mundo de iniquidade” (Tg 3,6).

“Porque o poder dos cavalos estava na sua boca e nas suas caudas; porque as suas caudas eram semelhantes a serpentes, e tinham cabeças, e com elas faziam dano.”
O veneno das serpentes indica a duplicidade dos maus mestres: enganam com a palavra (boca) e corrompem com o exemplo (cauda).

“E os outros homens, que não foram mortos por estas pragas, não se arrependeram das obras de suas mãos, para não adorarem os demônios e os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, que não podem ver, nem ouvir, nem andar.”
Mesmo após tantos castigos, a cegueira espiritual persiste: adoram as obras de suas próprias mãos — imagem da autossuficiência humana, que substitui Deus pela técnica, pela glória ou pela razão corrompida.

“E não se arrependeram de seus homicídios, nem de suas feitiçarias, nem de sua fornicação, nem de seus furtos.”
Esses quatro vícios resumem todas as formas de corrupção social e espiritual: a violência (homicídios), o engano (feitiçarias), o prazer desordenado (fornicação) e a cobiça (furtos). Assim se encerra a sexta trombeta — o penúltimo ai —, quando a humanidade, endurecida, recusa a penitência.

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CAPÍTULO X

“E vi outro anjo forte descendo do céu, vestido de uma nuvem, e o arco-íris sobre a sua cabeça; e o seu rosto era como o sol, e os seus pés como colunas de fogo.”

O anjo forte é Cristo — não em figura de fragilidade, como Cordeiro imolado, mas como Senhor glorioso e Juiz do universo. A “nuvem” em que vem significa a carne assumida: assim como a nuvem tempera o fulgor do sol, a humanidade de Cristo tornou suportável aos homens a divindade inacessível.
O “arco-íris sobre a cabeça” é o sinal da aliança eterna: Cristo é a ponte de reconciliação entre Deus e os homens, como um arco que liga a terra ao céu.
O rosto, “como o sol”, indica o esplendor da verdade divina, e os pés, “como colunas de fogo”, mostram a firmeza dos Apóstolos e doutores que, iluminados pelo Espírito, sustentam a Igreja e consomem as impurezas do mundo.

“E tinha na sua mão um livrinho aberto.”
Este livrinho é o Evangelho de Cristo, que outrora estava selado, mas agora é aberto a todos os povos. O livro grande estava selado, porque as figuras da Lei e os mistérios do Antigo Testamento estavam ainda velados; mas o livrinho é aberto, porque na encarnação do Verbo as Escrituras são desvendadas.
O livro “pequeno” indica que o mistério do Reino é simples e acessível aos humildes: “Eu te louvo, ó Pai, porque ocultaste estas coisas aos sábios e prudentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).

“E pôs o pé direito sobre o mar e o esquerdo sobre a terra.”
O mar e a terra significam, respectivamente, os povos gentios e o povo judeu. Ao colocar um pé sobre cada um, Cristo manifesta o seu domínio universal e o poder do Evangelho sobre todos os povos.
O pé direito sobre o mar indica que o Evangelho floresceu principalmente entre os gentios; o esquerdo sobre a terra, que também entre os judeus alguns creram.

“E clamou com grande voz, como ruge o leão; e, quando clamou, sete trovões fizeram ouvir as suas vozes.”
O rugido do leão é a pregação apostólica que procede da força do Leão de Judá. Os sete trovões são os sete dons do Espírito Santo, que confirmam a voz do Evangelho com poder.
Alguns Padres entenderam esses trovões como os sete decretos ocultos de Deus sobre os acontecimentos finais, ou os sete modos pelos quais a Palavra toca a consciência humana: advertindo, instruindo, consolando, corrigindo, prometendo, ameaçando e julgando.

“E, quando os sete trovões falaram as suas vozes, eu ia escrever; mas ouvi uma voz do céu que me dizia: Sela o que falaram os sete trovões, e não o escrevas.”
Mostra-se aqui que há segredos divinos que não devem ser revelados. João, que fora mandado escrever o que via, é agora proibido de registrar certas coisas, para indicar que o conhecimento do fim último pertence somente a Deus.
A Igreja é instruída a compreender que não lhe foi dado saber o tempo nem os detalhes do juízo, mas apenas viver em vigilância e fidelidade.

“E o anjo que vi de pé sobre o mar e sobre a terra levantou a mão ao céu, e jurou por aquele que vive pelos séculos dos séculos, que criou o céu e o que nele há, e a terra e o que nela há, e o mar e o que nele há: que já não haveria mais tempo.”
O levantar da mão é sinal de autoridade e de juramento. Cristo jura por si mesmo — pois não há outro maior — que “não haverá mais tempo”, isto é, que o tempo da paciência e do mistério se completará; não que cesse o movimento do cosmos, mas que se concluirá a história do desígnio divino.
Quando a plenitude da Igreja for atingida e o número dos eleitos se completar, o tempo, enquanto espera, se extinguirá, e virá a eternidade.

“Mas nos dias da voz do sétimo anjo, quando ele estiver para tocar a trombeta, se consumará o mistério de Deus, como anunciou aos seus servos, os profetas.”
O “mistério de Deus” é a economia da salvação: tudo o que os profetas anunciaram, o que os apóstolos pregaram e o que a Igreja esperou, será então realizado. O que era esperança se tornará visão, e o que era fé se converterá em glória.

“E a voz que eu ouvi do céu falou outra vez comigo e disse: Vai, toma o livrinho aberto da mão do anjo que está de pé sobre o mar e sobre a terra.”
O profeta é chamado a participar do mistério que vê. A ordem de “tomar o livro” significa receber interiormente a Palavra de Deus; é o convite à contemplação e à assimilação da verdade.

“E fui ao anjo, dizendo-lhe que me desse o livrinho. E ele disse-me: Toma-o e come-o; ele te amargará o ventre, mas na tua boca será doce como o mel.”
Comer o livro é meditar profundamente a Palavra. Ela é doce na boca, porque consola o espírito que a acolhe; mas é amarga nas entranhas, porque corrige, exige renúncia e fere o coração com a dor do pecado.
Assim também Ezequiel comeu o rolo que lhe foi dado (Ez 3,2-3): doce ao paladar, mas amargo na missão de anunciar a correção ao povo obstinado.

“E tomei o livrinho da mão do anjo e comi-o; e na minha boca era doce como o mel, e, depois que o comi, o meu ventre ficou amargo.”
O profeta experimenta em si a dupla força da revelação: alegria e dor. A alegria, porque a verdade ilumina; a dor, porque o homem, iluminado, vê a própria miséria e a obstinação do mundo.

“E foi-me dito: Importa que ainda profetizes a muitos povos, e nações, e línguas, e reis.”
Depois de comer o livro, João é enviado novamente: o alimento recebido se torna missão. A Palavra, quando assimilada, deve ser anunciada; quem contempla o mistério é chamado a traduzi-lo em pregação.
Assim, o ciclo do Apocalipse se renova: o profeta que recebeu o livro agora se torna, ele mesmo, o livro vivo do testemunho de Deus.

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CAPÍTULO XI

“E foi-me dada uma cana semelhante a uma vara, e foi-me dito: Levanta-te e mede o templo de Deus, o altar e os que nele adoram.”

A cana é o juízo da reta doutrina, com o qual se mede a fé e a vida dos fiéis.
O “templo” é a Igreja; o “altar”, Cristo; e “os que adoram” são os santos, cuja adoração é em espírito e verdade. Medir o templo é discernir o que pertence a Deus e o que é profano. Assim o profeta Ezequiel também mediu o templo (Ez 40), significando a purificação e restauração do culto verdadeiro.

“Mas o átrio que está fora do templo deixa de fora e não o meças, porque foi dado aos gentios; e hão de pisar a cidade santa por quarenta e dois meses.”
O átrio exterior representa os falsos cristãos, que estão próximos da Igreja visível, mas não participam de sua santidade interior. Os “gentios” que o profanam são os mundanos e heréticos que, no tempo do Anticristo, dominarão exteriormente a cristandade.
Os quarenta e dois meses — isto é, mil duzentos e sessenta dias — simbolizam o tempo da perseguição final, correspondente aos “três anos e meio” de Daniel e do Apocalipse: a metade de sete, porque será tempo de tribulação incompleta, permitida, mas contida pela Providência.

“E darei poder às minhas duas testemunhas, e profetizarão por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de saco.”
As duas testemunhas são as figuras do testemunho fiel: muitos Padres viram nelas Henoc e Elias, que não conheceram a morte e voltarão a pregar antes do fim; outros as interpretam como a Lei e o Evangelho, ou como a Igreja e o Espírito Santo. Vestidas de saco, porque pregam em tempo de penitência e dor.
O número dos dias é o mesmo do domínio do Anticristo: o bem e o mal coexistem até que o juízo os separe.

“Estas são as duas oliveiras e os dois castiçais que estão diante do Senhor da terra.”
A imagem vem de Zacarias (4,3): as oliveiras são fontes de unção espiritual — os profetas e doutores; os castiçais, os que difundem a luz divina. Permanecem “diante do Senhor”, pois toda sua força vem da presença de Deus.

“E se alguém lhes quiser fazer mal, sairá fogo da sua boca e devorará os seus inimigos.”
O fogo é a Palavra de Deus, viva e eficaz, que consome a impiedade. Assim Elias fez descer fogo do céu sobre os soldados do rei (2Rs 1,10), e Jeremias recebeu de Deus boca ardente (Jr 5,14).

“Estes têm poder de fechar o céu, para que não chova nos dias da sua profecia; e têm poder sobre as águas, para convertê-las em sangue, e para ferir a terra com toda sorte de pragas, todas as vezes que quiserem.”
A chuva é a graça da doutrina; fecham o céu quando a palavra é recusada e a graça se retira. Converter as águas em sangue é transformar os prazeres e bens do mundo em instrumento de juízo. As pragas são os castigos espirituais que atingem o coração endurecido.

“E, quando tiverem concluído o seu testemunho, a besta que sobe do abismo lhes fará guerra, e os vencerá, e os matará.”
A besta é o Anticristo, que procede do abismo do inferno e, por breve tempo, parecerá triunfar sobre os santos. Sua vitória é apenas aparente: vence no corpo, mas é vencido na alma.

“E os seus corpos jazerão na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado.”
A “grande cidade” é o mundo infiel — Sodoma, pela luxúria; Egito, pela idolatria; Jerusalém, pela hipocrisia. Nela o Senhor foi crucificado e nela seus servos são perseguidos.

“E homens de diversos povos, tribos, línguas e nações verão seus corpos por três dias e meio, e não permitirão que sejam sepultados.”
Os três dias e meio simbolizam o curto tempo de aparente derrota da verdade: o mesmo número fracionário do domínio do mal. Não são sepultados, porque os ímpios se regozijam em sua morte e zombam da fé.

“E os habitantes da terra se alegrarão sobre eles e se regozijarão, e enviarão presentes uns aos outros, porque estes dois profetas atormentaram os que habitam sobre a terra.”
Os mundanos se regozijam quando a voz profética se cala, porque a verdade lhes é incômoda. A alegria deles é o sinal de sua cegueira; celebram a queda da luz como vitória da noite.

“E depois daqueles três dias e meio, o espírito de vida vindo de Deus entrou neles, e puseram-se de pé, e grande temor caiu sobre os que os viram.”
A ressurreição das testemunhas representa o triunfo final da Igreja e da verdade. O “espírito de vida” é a graça que reanima os santos, e o “temor” dos ímpios é o reconhecimento tardio da justiça divina.

“E ouviram uma grande voz do céu, dizendo-lhes: Subi cá. E subiram ao céu em uma nuvem, e os seus inimigos os viram.”
O arrebatamento simboliza a glorificação dos justos: a nuvem é o veículo da ascensão espiritual, e o olhar impotente dos inimigos é a derrota do orgulho humano diante da glória de Deus.

“E naquela hora houve um grande terremoto, e caiu a décima parte da cidade, e foram mortos no terremoto sete mil homens; e os restantes ficaram atemorizados e deram glória ao Deus do céu.”
O terremoto é o abalo do mundo pelo juízo divino. A “décima parte” caída indica que nem todos perecem, mas apenas o número suficiente para despertar o temor. O resto, atemorizado, converte-se: o castigo torna-se instrumento de misericórdia.

“O segundo ai passou; eis que o terceiro ai vem depressa.”
O segundo ai é a grande perseguição e o martírio das testemunhas; o terceiro é o juízo final, que se aproxima.

“E o sétimo anjo tocou a trombeta, e houve grandes vozes no céu, dizendo: O reino do mundo passou a ser do nosso Senhor e do seu Cristo, e Ele reinará pelos séculos dos séculos.”
Aqui se consuma o mistério: o poder do mundo é suplantado pelo domínio de Deus. O “reino deste mundo” — fragmentado e passageiro — cede lugar ao Reino eterno de Cristo.

“E os vinte e quatro anciãos, que estão sentados diante de Deus em seus tronos, prostraram-se sobre seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus onipotente, que és, e que eras, porque tomaste o teu grande poder e começaste a reinar.”
Os vinte e quatro anciãos — as doze tribos e os doze apóstolos — representam a totalidade do povo eleito. Dão graças porque o poder de Deus, que sempre existiu, agora se manifesta em plenitude.

“E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o tempo dos mortos para serem julgados, e o de dares o galardão aos teus servos, os profetas e os santos, e aos que temem o teu nome, pequenos e grandes, e de destruir os que destroem a terra.”
Este é o juízo final: a ira de Deus contra os ímpios e o prêmio dos justos. “Destruir os que destroem a terra” é purificar o mundo da corrupção dos que o tornaram sepulcro.

“E abriu-se o templo de Deus no céu, e apareceu a arca do seu testamento no templo, e houve relâmpagos, vozes, trovões, terremoto e grande saraiva.”
O templo aberto é a revelação do céu, e a arca do testamento é Cristo, em quem se cumpre toda promessa. Os relâmpagos e trovões são os sinais da presença divina, que, agora sem véus, se manifesta em glória e justiça.

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO I

“E apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e na cabeça uma coroa de doze estrelas.”

A mulher é a Igreja, resplandecente pela presença de Cristo, o Sol da justiça. Está vestida de sol porque reveste-se da luz da fé e da caridade divinas. A lua sob os pés significa o domínio sobre o mutável e o terreno — a Igreja pisa o que muda, permanece firme sobre o que passa.
A coroa de doze estrelas é a plenitude do testemunho apostólico: as doze tribos espirituais da nova Israel. A mulher celeste é a comunidade dos fiéis, mas também a figura da Virgem Maria, em quem a Igreja encontra o seu arquétipo.

“E estando grávida, gritava com as dores de parto e sofria tormentos para dar à luz.”
A Igreja gera Cristo em seus membros — por isso geme em dores de parto. As dores são as tribulações, perseguições e lutas internas; mas o fruto é a conversão das almas. Maria sofreu corporalmente ao dar à luz o Verbo feito carne; a Igreja sofre espiritualmente ao dar Cristo ao mundo.

“E apareceu outro sinal no céu: eis um grande dragão vermelho, tendo sete cabeças e dez chifres, e sobre as cabeças sete diademas.”
O dragão é o diabo e, ao mesmo tempo, o império da impiedade. Vermelho pelo sangue e pela fúria, tem sete cabeças porque ataca em toda plenitude de malícia; dez chifres, porque exerce poder sobre o mundo inteiro. Os sete diademas simbolizam os reinos terrenos corrompidos pela soberba.
A luta entre a mulher e o dragão é a história da salvação: a graça contra a força, o espírito contra a carne.

“E a sua cauda arrastou a terça parte das estrelas do céu e lançou-as sobre a terra.”
As estrelas são os anjos decaídos — ou os homens que, tendo recebido luz, perderam-na por orgulho. Lançados à terra, tornam-se amantes do que é terreno. A “terça parte” indica número incompleto, pois o diabo nunca possui domínio total sobre a criação.

“E o dragão pôs-se diante da mulher que estava para dar à luz, para devorar o seu filho quando o tivesse dado à luz.”
Desde o princípio, o inimigo busca destruir o Cristo — no nascimento de Jesus por meio de Herodes, e depois em cada fiel recém-nascido pela fé. O dragão aguarda para devorar o fruto, mas o poder divino o impede.

“E deu à luz um filho varão, que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono.”
O “filho varão” é Cristo, e também cada membro fiel que vence o mundo pela força da fé. A vara de ferro é a justiça inflexível do juízo.
O arrebatamento ao trono significa a ascensão de Cristo e, por extensão, o triunfo da Igreja espiritual — pois o que é gerado pela graça não permanece no mundo, mas é elevado ao céu.

“E a mulher fugiu para o deserto, onde tem um lugar preparado por Deus, para que ali a sustentem por mil duzentos e sessenta dias.”
O deserto é o estado peregrino da Igreja neste mundo — lugar de solidão, provação e alimento espiritual. Os mil duzentos e sessenta dias representam novamente o tempo simbólico da luta entre o bem e o mal, a metade do ciclo perfeito dos sete tempos.
A Igreja é sustentada por Deus na aridez, alimentada com o pão do céu e escondida do olhar dos perseguidores.

“E houve uma batalha no céu: Miguel e os seus anjos lutavam contra o dragão; e o dragão e os seus anjos pelejavam.”
Esta guerra é a luta invisível entre a verdade e o erro, entre a fé e a rebelião. Miguel — cujo nome significa Quem como Deus? — é o símbolo da hierarquia angélica e da Igreja militante. Cada vitória espiritual é uma participação nesta guerra celeste.

“Mas não prevaleceram, nem mais se achou o seu lugar no céu.”
O diabo é expulso da presença de Deus — isto é, perde o domínio espiritual sobre as almas redimidas. O “céu” aqui é o coração purificado, onde o mal não pode habitar.

“E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada diabo e satanás, que engana todo o mundo; foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.”
É o mesmo adversário do Gênesis, agora desmascarado: a serpente que enganou Eva é o dragão que persegue a Igreja. A “terra” é o domínio do homem carnal, onde o mal encontra abrigo.

“E ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora veio a salvação, e o poder, e o reino do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo; porque foi lançado fora o acusador de nossos irmãos, o que os acusava diante do nosso Deus dia e noite.”
Aqui se celebra a vitória pascal. O acusador é vencido pelo sangue do Cordeiro e pelo testemunho dos santos. O título “acusador” recorda o papel de Satanás como aquele que distorce a justiça; sua queda marca a instauração definitiva do Reino de Cristo.

“E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram, e não amaram a sua vida até à morte.”
O sangue do Cordeiro é a força da redenção; o testemunho dos mártires é a aplicação viva desse sangue na história. “Não amaram a sua vida até à morte” — a verdadeira vitória é o desprezo do mundo por amor de Deus.

“Por isso alegrai-vos, ó céus, e vós que neles habitais! Ai da terra e do mar, porque o diabo desceu a vós com grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta.”
O diabo, sabendo-se derrotado, intensifica a sua ação: o desespero de sua ruína torna-se fúria contra os homens. O “pouco tempo” é o tempo da Igreja militante — breve à luz da eternidade, mas intenso em provações.

“E, quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho varão.”
O ódio contra a Igreja é o reflexo do ódio contra Cristo. Desde os primeiros séculos até o fim, a perseguição é o selo da verdade.

“E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse ao deserto, ao seu lugar, onde é sustentada fora da presença da serpente, por um tempo, e tempos, e metade de um tempo.”
As duas asas são a fé e a caridade, que elevam a alma acima do mundo. O “tempo, tempos e metade de um tempo” é o mesmo símbolo trinitário da duração da tribulação: três e meio, metade do sete, indicando a incompletude do mal.

“E a serpente lançou de sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para a fazer arrebatar pela corrente.”
A água é a torrente de falsas doutrinas e perseguições, com as quais o inimigo tenta submergir a Igreja.

“Mas a terra ajudou a mulher, e a terra abriu a sua boca e engoliu o rio que o dragão lançara de sua boca.”
A “terra” aqui é a humanidade simples e fiel — o povo que, mesmo sem poder, recebe e acolhe a verdade, impedindo que o engano triunfe. Assim Deus utiliza até as realidades do mundo para proteger os seus.

“E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua descendência, aos que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus.”
A descendência da mulher são todos os fiéis — os santos, os confessores, os mártires —, os quais o dragão não pode vencer, mas persegue até o fim dos tempos.

“E o dragão pôs-se sobre a areia do mar.”
A “areia do mar” são as multidões inconstantes e mundanas, nas quais o mal busca fundar o seu império. Daqui surgirá, no capítulo seguinte, a besta que sobe do mar — a personificação política e visível do poder anticrístico.

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO II

“E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças nomes de blasfêmia.”

A besta que sobe do mar é o império do Anticristo, que nasce da agitação dos povos — o mar representa as nações tumultuosas. As sete cabeças são a totalidade dos reinos sobre os quais ele exerce domínio, e os dez chifres, as potências menores que o sustentam.
Os nomes de blasfêmia indicam que seu poder se ergue contra Deus, atribuindo a si mesmo o que pertence ao Criador.

“E a besta que vi era semelhante a um leopardo, e os seus pés como de urso, e a sua boca como boca de leão.”
O leopardo, o urso e o leão são símbolos dos impérios anteriores descritos por Daniel (Dn 7): a Babilônia, a Pérsia e a Grécia. Assim, o Anticristo reúne em si a ferocidade, a astúcia e a soberba de todos os reinos ímpios precedentes.

“E o dragão deu-lhe o seu poder, o seu trono e grande autoridade.”
O dragão, isto é, o diabo, transmite à besta o domínio sobre o mundo visível — não por criação, mas por usurpação. A autoridade satânica é a permissão de enganar os que não receberam o selo de Deus.

“E uma de suas cabeças parecia ferida de morte, mas a sua ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.”
A cabeça ferida é a antiga idolatria, que parecia morta após o advento de Cristo, mas revive na adoração das potências humanas e do poder político. O mundo admira a besta porque prefere o visível ao invisível.

“E adoraram o dragão que deu poder à besta, e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? e quem poderá pelejar contra ela?”
Os ímpios, fascinados pelo brilho da força e pela eficácia material, prestam culto àquilo que tem poder aparente. É a adoração do sucesso e da violência — a idolatria do poder, sob o disfarce da necessidade.

“E foi-lhe dada uma boca que proferia grandes coisas e blasfêmias, e foi-lhe dado poder para agir por quarenta e dois meses.”
A boca são os falsos doutores e pregadores do erro, cuja eloquência seduz. O tempo — quarenta e dois meses — é o mesmo dos mil duzentos e sessenta dias: o período simbólico da perseguição final, limitado pela Providência.

“E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, do seu tabernáculo e dos que habitam no céu.”
A blasfêmia contra Deus é a negação de sua transcendência; contra o tabernáculo, a profanação da Igreja; contra os habitantes do céu, a perseguição aos santos e à fé verdadeira.

“E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos e vencê-los, e foi-lhe dado poder sobre toda tribo, povo, língua e nação.”
A vitória é aparente — apenas temporal. O Anticristo domina externamente, mas os santos vencem interiormente pela perseverança. O domínio universal da besta é o retrato da globalização do erro e da uniformização do pecado.

“E todos os que habitam sobre a terra a adorarão, cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro.”
Os que pertencem ao mundo — isto é, aos desejos e ambições terrenas — rendem-se à besta. O “livro da vida” é a predestinação divina: quem ama a verdade não será enganado.

“Se alguém tem ouvidos, ouça: Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, convém que seja morto à espada. Aqui está a paciência e a fé dos santos.”
É um chamado à perseverança: a lei da retribuição divina é justa e inevitável. A paciência e a fé são as únicas armas que vencem o poder terreno.


“E vi outra besta subir da terra, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro, e falava como o dragão.”
Esta segunda besta representa o poder pseudo-espiritual do Anticristo — a corrupção religiosa, a mentira revestida de piedade. Os dois chifres semelhantes aos do cordeiro simbolizam a aparência de Cristo e da Igreja, mas a voz é do dragão: fala com astúcia diabólica, prometendo salvação terrena.

“E exerce todo o poder da primeira besta na sua presença, e faz com que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada.”
Esta besta age como profeta do império anticrístico, legitimando o poder político com autoridade falsa — uma religião a serviço do Estado e do engano.

“E faz grandes sinais, de modo que até fogo faz descer do céu à terra à vista dos homens.”
Os falsos milagres são os prodígios do engano: interpretações, tecnologias ou fenômenos que parecem divinos, mas visam confundir a fé. O “fogo do céu” é a imitação diabólica da inspiração divina.

“E engana os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi permitido fazer na presença da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta que recebeu a ferida da espada e viveu.”
A “imagem da besta” é o culto à própria humanidade deificada — a idolatria da razão, da ciência ou do poder. O homem fabrica seu ídolo à sua própria semelhança.

“E foi-lhe concedido dar espírito à imagem da besta, para que a imagem falasse e fizesse que fossem mortos todos os que não adorassem a imagem da besta.”
O “espírito” da imagem é a força da propaganda e da mentira — o sistema de controle que impõe unanimidade. Os que não adoram são perseguidos, pois a verdade não tolera o consenso do erro.

“E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, lhes seja posto um sinal na mão direita ou na fronte.”
O sinal é a marca do conformismo: na mão, o agir segundo o mundo; na fronte, o pensar segundo o mundo. Trata-se de uma servidão espiritual universal — a inversão do selo de Deus dado aos justos.

“E ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, o nome da besta ou o número do seu nome.”
Aqui se descreve o domínio total do Anticristo: o comércio, a política e a cultura subordinados à ideologia única. Quem não participa do sistema é excluído. O “comprar e vender” simboliza a troca de bens e valores — a vida social reduzida à submissão.

“Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta; porque é número de homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.”
O número da besta — 666 — é o símbolo da perfeição corrompida. Se o sete é o número da plenitude divina, o seis, repetido três vezes, representa a tentativa humana de substituir Deus por si mesma. É o ciclo do orgulho: o homem erigido como centro, a tríplice negação da Trindade.
Assim se cumpre o mistério da impiedade, que se exalta acima de tudo o que se chama Deus.

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO III

“E olhei, e eis que o Cordeiro estava sobre o monte Sião, e com ele cento e quarenta e quatro mil, que tinham o seu nome e o nome de seu Pai escrito nas suas frontes.”

O Cordeiro sobre o monte Sião é Cristo na glória da Igreja triunfante. O monte Sião representa a altura da fé e da contemplação; estar “sobre o monte” significa estar acima das vaidades terrenas.
Os cento e quarenta e quatro mil são o mesmo número simbólico já mencionado: doze multiplicado por doze e por mil, expressão da totalidade dos eleitos. O nome nas frontes indica a confissão pública da fé, e o nome do Pai, a filiação divina que os torna semelhantes ao Filho.

“E ouvi uma voz do céu, como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi a voz de harpistas que tocavam as suas harpas.”
A voz do céu é o cântico dos santos; o som de muitas águas é a harmonia das nações redimidas; o trovão é o poder da verdade divina; e os harpistas são as almas que louvam a Deus com obras e melodias espirituais.

“E cantavam como um cântico novo diante do trono, e diante dos quatro animais e dos anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra.”
O cântico novo é o louvor da nova criação — a alegria dos redimidos que experimentaram o poder da graça. Só os que foram “comprados da terra” podem cantá-lo, porque apenas quem foi libertado das paixões entende o som da liberdade.
Não é um cântico de palavras, mas de vida: é a harmonia entre a vontade humana e a vontade divina.

“Estes são os que não se contaminaram com mulheres, porque são virgens.”
Não se trata apenas da virgindade corporal, mas da pureza espiritual: não se uniram às falsas doutrinas nem se corromperam pelo amor do mundo. A castidade do coração é o desapego interior que torna a alma livre para Deus.
Os virgens são imagem da Igreja pura e indivisa — a esposa fiel que aguarda o Esposo.

“Estes são os que seguem o Cordeiro para onde quer que vá.”
Seguir o Cordeiro é conformar-se à sua humildade, ao seu sofrimento e à sua glória. Os santos não seguem Cristo apenas quando Ele é exaltado, mas também quando é humilhado. Caminham com Ele no sacrifício e na cruz, para estarem com Ele na ressurreição.

“Estes foram comprados dentre os homens como primícias para Deus e para o Cordeiro.”
As “primícias” são os primeiros frutos da redenção — símbolo da humanidade santificada. Representam todos os que, por amor, se consagram totalmente a Deus, antecipando na terra a colheita final do céu.

“E na sua boca não se achou engano; porque são irrepreensíveis diante do trono de Deus.”
A pureza da boca é a pureza da doutrina e da intenção. Não há falsidade naqueles que louvam com sinceridade e vivem segundo a verdade. Ser irrepreensível diante do trono é viver na transparência da luz divina, sem duplicidade.


“E vi outro anjo voando pelo meio do céu, tendo o evangelho eterno, para o anunciar aos que habitam sobre a terra, e a toda nação, tribo, língua e povo.”
Este anjo representa a missão apostólica, ou o próprio Espírito Santo que anima a pregação do Evangelho. “Voando pelo meio do céu” indica a rapidez e a universalidade da mensagem — elevada, visível e sonora sobre o mundo.
O Evangelho é chamado “eterno” porque é imutável e permanece enquanto o mundo passa.

“Dizendo em alta voz: Temei a Deus e dai-lhe glória, porque é vinda a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas.”
O temor de Deus é o princípio da sabedoria. Dar-lhe glória é reconhecer sua soberania e origem de todas as coisas. O anjo chama à conversão antes do juízo — é o último apelo da graça à humanidade.

“E outro anjo seguiu, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, aquela grande cidade, porque deu a beber a todas as nações do vinho da ira da sua fornicação.”
Babilônia é o mundo corrupto — o sistema da soberba e da luxúria espiritual. Sua queda é certa, ainda que pareça gloriosa. O “vinho da fornicação” é a sedução do prazer e da idolatria, que embriaga as nações com falsas promessas de felicidade.

“E o terceiro anjo seguiu-os, dizendo em alta voz: Se alguém adorar a besta e a sua imagem, e receber o sinal na fronte ou na mão, também ele beberá do vinho da ira de Deus, que foi preparado sem mistura no cálice da sua indignação.”
Aqui se anuncia o destino dos que se aliam ao poder anticrístico. O cálice da ira de Deus é a justiça pura, sem mistura de misericórdia — a retribuição final.

“E será atormentado com fogo e enxofre diante dos santos anjos e diante do Cordeiro; e a fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos; e não têm repouso nem de dia nem de noite os que adoram a besta e a sua imagem.”
O tormento eterno não é mera punição, mas o reflexo do estado de alma que se fecha à graça. A ausência de repouso é o estado permanente da consciência que perdeu a paz de Deus.

“Aqui está a paciência dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé de Jesus.”
A paciência é a fortaleza da fé. Enquanto os ímpios buscam o prazer imediato, os santos perseveram no tempo da prova, confiando no juízo de Deus.

“E ouvi uma voz do céu que me dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os seguem.”
Esta é uma das mais ternas bem-aventuranças do Apocalipse. Morrer no Senhor é abandonar o mundo na graça. O descanso prometido não é inércia, mas comunhão perfeita: suas obras os seguem porque o amor permanece para sempre.

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO IV

“E olhei, e eis uma nuvem branca, e sobre a nuvem um sentado semelhante a um filho de homem, tendo na cabeça uma coroa de ouro e na mão uma foice afiada.”

A nuvem branca é a Igreja glorificada, na qual o Filho do Homem aparece revestido de sua humanidade purificada. A brancura simboliza a pureza e a fé, e o trono sobre as nuvens indica o juízo universal.
A coroa de ouro é a realeza incorruptível de Cristo; a foice afiada, a justiça que separa o trigo do joio. A imagem alude ao momento em que o Senhor ceifará o mundo, recolhendo os frutos maduros da fé.

“E outro anjo saiu do templo, clamando com grande voz ao que estava assentado sobre a nuvem: Lança a tua foice e ceifa, porque é vinda a hora de ceifar, porque a seara da terra está madura.”

O anjo que sai do templo é a oração da Igreja, pedindo o cumprimento das promessas divinas. A hora de ceifar é o tempo do juízo, quando o bem e o mal serão finalmente separados.
A seara madura são os santos perfeitos, preparados pela graça; a maturidade é o estado de plenitude da virtude. O trigo, pela paciência, amadureceu ao calor do sol das tribulações.

“E aquele que estava assentado sobre a nuvem lançou a sua foice sobre a terra, e a terra foi ceifada.”

A ceifa é o recolhimento dos eleitos. Cristo, com sua palavra, recolhe as almas purificadas para o celeiro eterno. “A terra foi ceifada”, isto é, o tempo cessou, e o campo da história foi encerrado.
O ato único da ceifa representa o juízo dos justos: cada espiga cortada é uma alma colhida na eternidade.


“E outro anjo saiu do templo que está no céu, também tendo uma foice afiada.”

Este anjo simboliza a ação da justiça divina que se estende também aos ímpios. A foice é a sentença — instrumento de separação e destruição.

“E outro anjo saiu do altar, que tinha poder sobre o fogo, e clamou com grande voz ao que tinha a foice afiada, dizendo: Lança a tua foice afiada e vindima os cachos da vinha da terra, porque as suas uvas estão maduras.”

O anjo que sai do altar é a representação da ira divina — o altar é o lugar do sacrifício, e o fogo, a santidade que consome o mal.
A vinha da terra é a humanidade ímpia, que se encheu do vinho da sua própria corrupção. As uvas maduras são os pecados consumados, que chegaram à plenitude do juízo.
Assim como a seara dos santos é recolhida para a glória, a vindima dos ímpios é colhida para a perdição.

“E o anjo lançou a sua foice na terra, e vindimou a vinha da terra, e lançou-a no grande lagar da ira de Deus.”

O lagar é a imagem terrível do juízo. As uvas lançadas nele representam as almas que se fecharam à graça e agora são esmagadas pela justiça. O “lagar da ira de Deus” é o lugar onde a falsidade e a soberba são despedaçadas pela verdade eterna.
No mesmo gesto em que a foice ceifa os bons, ela vindima os maus: é um só juízo, mas com dois efeitos — glória e condenação.

“E o lagar foi pisado fora da cidade, e saiu sangue do lagar até os freios dos cavalos, por mil e seiscentos estádios.”

Ser “fora da cidade” significa estar fora da Jerusalém celeste — a exclusão dos ímpios da comunhão divina.
O sangue até os freios dos cavalos é a plenitude da vingança espiritual: atinge até os chefes e potências do mundo (“os cavalos”), porque nenhuma força humana pode resistir à justiça divina.
O número mil e seiscentos (quatro vezes quatrocentos) simboliza a totalidade das quatro partes do mundo: o juízo se estende a toda a terra, abrangendo o orbe inteiro.

Beda observa que, segundo Ticonius, o mesmo Senhor é tanto ceifeiro quanto vindimador: um único juízo, que para uns é glória e para outros perdição.
O “sangue que sai do lagar” é a retribuição dos mártires — a vitória final da justiça divina sobre o sangue inocente derramado no mundo.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO I

“E vi outro sinal no céu, grande e admirável: sete anjos, que tinham as sete últimas pragas, porque nelas se consumou a ira de Deus.”

O “sinal grande e admirável” é a manifestação da justiça divina.
Os sete anjos representam a totalidade dos ministros da justiça — não apenas seres celestes, mas também os instrumentos terrenos por meio dos quais Deus realiza o juízo.
As sete pragas não são acidentes isolados, mas o conjunto completo das purificações que encerram a história.
Consumando-se nelas a ira de Deus, entende-se que o juízo atinge sua plenitude: não restará mais obstáculo à manifestação da misericórdia final.

“E vi como que um mar de vidro misturado com fogo; e os que venceram a besta, e a sua imagem, e o número do seu nome, estavam sobre o mar de vidro, tendo harpas de Deus.”

O mar de vidro é a imagem da eternidade divina — translúcida, imutável, serena.
O fogo misturado indica o juízo: a santidade que purifica e consome o mal.
Os vencedores da besta são os mártires e os confessores, que permaneceram fiéis em meio à perseguição.
Estão “sobre o mar” porque triunfaram sobre as ondas do tempo; têm “harpas de Deus” porque seus louvores são harmonia perfeita entre alma e graça.

“E cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso; justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações.”

O cântico de Moisés recorda a libertação do Egito — figura da redenção; o cântico do Cordeiro celebra a libertação espiritual.
Ambos convergem: o Antigo e o Novo Testamento unem-se no louvor do mesmo Deus.
Os caminhos de Deus são “justos e verdadeiros” porque conduzem à salvação mesmo através do castigo; a justiça, em Beda, é inseparável da veracidade — Deus pune para restaurar a ordem do amor.

“Quem não temerá, Senhor, e não glorificará o teu nome? Porque só tu és santo; porque todas as nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus juízos se manifestaram.”

O temor aqui é reverência, não pavor.
Quando os juízos de Deus se tornam visíveis, as nações reconhecem a sua santidade.
A adoração universal não é imediata, mas profética: descreve o momento em que toda a criação será restituída ao louvor, quando o mal tiver sido aniquilado.


“E depois destas coisas olhei, e abriu-se o templo do tabernáculo do testemunho no céu; e saíram do templo os sete anjos, que tinham as sete pragas, vestidos de linho puro e resplandecente, e cingidos com cintos de ouro pelos peitos.”

O templo aberto significa o desvelar do mistério divino.
O “tabernáculo do testemunho” é a lei eterna — agora plenamente revelada na economia da graça.
Os anjos vestidos de linho representam a pureza da justiça: o linho é a virtude incorruptível, a santidade que julga sem paixão.
Os cintos de ouro são a sabedoria e a caridade, que dirigem a execução do juízo.

“E um dos quatro animais deu aos sete anjos sete taças de ouro, cheias da ira de Deus, que vive pelos séculos dos séculos.”

Um dos quatro animais — símbolo dos evangelistas — entrega as taças, indicando que o juízo procede da mesma verdade que o Evangelho anuncia.
As taças são de ouro porque o castigo de Deus é puro: não nasce de cólera humana, mas da santidade eterna.
A ira de Deus é sua justiça em ato, não perturbação, mas ordem restabelecida.

“E o templo se encheu de fumaça da glória de Deus e do seu poder; e ninguém podia entrar no templo até que se consumassem as sete pragas dos sete anjos.”

A fumaça é o símbolo do mistério inacessível: a presença divina que vela a si mesma.
Ninguém pode entrar no templo enquanto o juízo está em curso — porque, durante o castigo, a compreensão dos desígnios de Deus é suspensa.
Somente quando as pragas forem consumadas — isto é, quando o mal for inteiramente expurgado — se abrirá novamente o caminho da contemplação.

Assim Beda conclui este capítulo: as sete taças, embora terríveis, são instrumentos de purificação, e o fechamento do templo significa o silêncio de Deus antes do advento da nova Jerusalém.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO II

“E ouvi uma grande voz do templo, dizendo aos sete anjos: Ide e derramai sobre a terra as sete taças da ira de Deus.”

A “voz do templo” é a ordem direta de Deus, que governa os acontecimentos da história por meio de seus ministros.
O templo, já aberto no capítulo anterior, manifesta agora sua energia: o juízo divino passa do mistério à execução.
As sete taças correspondem, de modo paralelo, às sete trombetas, mas com sentido mais interior — se as trombetas anunciam, as taças consomam.


“E foi o primeiro e derramou a sua taça sobre a terra; e fez-se uma úlcera má e maligna nos homens que tinham o sinal da besta e que adoravam a sua imagem.”

A terra simboliza a natureza humana endurecida; o derramamento da primeira taça indica o juízo sobre os que se firmam nas coisas terrenas.
A “úlcera maligna” é a corrupção interior da consciência — não castigo físico, mas infecção espiritual.
Esses homens trazem o sinal da besta: isto é, agem (mão) e pensam (fronte) segundo o mundo.
A úlcera é o remorso sem arrependimento, a ferida moral que não cicatriza porque a alma recusa a graça.

Beda observa que, assim como as pragas do Egito começaram por feridas visíveis, aqui o juízo começa por uma chaga interior: a mente pervertida e o coração insensível.


“E o segundo anjo derramou a sua taça no mar, e este se tornou como sangue de morto, e morreu toda alma vivente que estava no mar.”

O mar representa o conjunto dos povos e nações — o mundo em sua instabilidade e multiplicidade.
Transformar-se “em sangue de morto” significa a total corrupção da vida social e política: quando a caridade morre, as águas da convivência tornam-se pútridas.
A “morte de toda alma vivente” é a extinção da vitalidade espiritual: as civilizações, afastadas de Deus, permanecem agitadas, mas sem alma.

O sangue de morto não pulsa — é a imagem exata da humanidade que conserva aparência de movimento, mas está espiritualmente inerte.


“E o terceiro anjo derramou a sua taça nos rios e nas fontes das águas; e se tornaram em sangue.”

Os rios e fontes são os doutores e pregadores — as correntes do ensinamento divino.
O juízo recai aqui sobre a doutrina falsificada: quando a Palavra é manipulada, as fontes da vida tornam-se veneno.
O sangue simboliza o uso da religião para fins terrenos, o esvaziamento da verdade sob o peso das paixões.

Beda vê nisso o castigo próprio dos falsos mestres: o que deveriam oferecer como água de sabedoria, transmitem como sangue de morte.
Assim se cumpre o que diz o profeta: “Os teus príncipes se tornaram rebeldes, e os teus companheiros, ladrões” (Is 1,23).


“E ouvi o anjo das águas dizer: Tu és justo, Senhor, que és e que eras, o Santo, porque julgaste estas coisas; porque derramaram o sangue dos santos e dos profetas, e tu lhes deste sangue a beber; dignos são disso.”

O “anjo das águas” é a voz da razão divina que governa os juízos: ele reconhece a justiça da retribuição.
Os que corromperam a doutrina — isto é, as águas — agora bebem o sangue que derramaram: sofrerão na própria medida do mal que causaram.
O sangue dos profetas e dos santos clama do solo da história, e a vingança divina consiste em converter o erro em seu próprio castigo.


“E ouvi outro do altar dizer: Sim, Senhor Deus Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos.”

O “outro do altar” é a voz dos mártires — aqueles cujas almas estão sob o altar (cf. Ap 6,9).
Eles confirmam o juízo de Deus, pois sua própria morte se torna testemunho da verdade.
Assim, o altar responde ao templo: o sacrifício confirma a justiça.


Com estas três taças, diz Beda, Deus revela o triplo aspecto da decadência humana:

1.      Na terra — corrupção da carne e das obras;

2.      No mar — corrupção das sociedades e impérios;

3.      Nos rios e fontes — corrupção da doutrina e da fé.

Tudo o que é humano — ação, ordem e pensamento — é atingido quando o homem substitui Deus por si mesmo.
Mas mesmo aqui a ira é medicinal: o juízo corrige o que o amor não conseguiu curar.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO III

“E o quarto anjo derramou a sua taça sobre o sol; e foi-lhe permitido que abrasasse os homens com fogo.”

O sol simboliza a inteligência e a ciência — o poder de iluminar.
Quando o juízo o atinge, a luz natural, privada da graça, torna-se instrumento de soberba.
O mesmo fogo que deveria iluminar, passa a queimar.
Assim, os homens são castigados pela própria razão: em vez de conduzir à verdade, ela se converte em idolatria do pensamento.

Beda observa que o sol é Cristo para os justos, mas orgulho para os soberbos: os que rejeitam a humildade da fé são feridos pelo fogo da própria sabedoria.
Deus permite que a luz natural se transforme em chama devastadora — imagem dos tempos em que o saber humano se volta contra o Criador.


“E os homens foram abrasados com grande calor, e blasfemaram o nome de Deus, que tem poder sobre estas pragas, e não se arrependeram para lhe darem glória.”

O “grande calor” é a exasperação das paixões intelectuais — a febre da vanglória e da presunção.
Em vez de se converterem, os homens blasfemam: culpam a Deus pela dor que é fruto de seu próprio desvio.
Não se arrependem, porque a mente inflamada pelo orgulho já não reconhece o erro; e assim o fogo exterior reflete o incêndio interior.

Para Beda, este é o castigo mais sutil: o saber que não conduz à humildade torna-se a causa da perdição.
O intelecto sem fé transforma-se em deserto ardente — luz sem frescor, ciência sem sabedoria.


“E o quinto anjo derramou a sua taça sobre o trono da besta; e o seu reino se fez tenebroso; e os homens mordiam as suas línguas de dor.”

O trono da besta é o domínio espiritual do erro — a estrutura de poder que sustenta o império da impiedade.
O derramamento da taça sobre ele indica o colapso do sistema de mentiras que o mundo construiu.
As trevas que o invadem são a confusão universal: o juízo atinge o centro da falsa sabedoria e desarticula as forças do mal.

“Morder a língua” significa o desespero dos enganadores: a palavra, antes instrumento de dominação, torna-se causa de tormento.
Os mesmos que enganavam pelas palavras são agora punidos pela própria boca.

Beda nota que o castigo é proporcional: o poder que blasfemou pela língua é ferido na língua; a besta que iludiu pela aparência da luz é mergulhada em trevas.


“E blasfemaram o Deus do céu, por causa das suas dores e das suas chagas, e não se arrependeram das suas obras.”

Mesmo mergulhados nas trevas, os ímpios persistem no ódio à luz.
Blasfemam porque sentem a dor da perda, mas não buscam a causa — o afastamento de Deus.
As “chagas” são as feridas espirituais que eles mesmos infligiram à alma: paixões, vícios, idolatria.

O não-arrependimento é o selo final do endurecimento.
Assim se cumpre o mistério da iniquidade: o coração que resiste à correção transforma o castigo em motivo de nova revolta.


Beda conclui este trecho observando que a quarta taça (sobre o sol) atinge a inteligência, e a quinta (sobre o trono da besta) atinge a autoridade — isto é, o espírito e o poder.
O juízo divino corrige primeiro o erro do pensamento, depois o erro das estruturas.
E quando o sol e o trono — intelecto e poder — se corrompem, resta apenas a purificação final das trevas que antecede a vinda da luz eterna.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO IV

“E o sexto anjo derramou a sua taça sobre o grande rio Eufrates, e a sua água secou, para que se preparasse o caminho dos reis que vêm do oriente.”

O Eufrates, que no Antigo Testamento delimitava a terra prometida, representa aqui o limite entre o povo de Deus e as nações inimigas.
Secar-se o rio significa a remoção das barreiras — a revelação dos segredos do coração humano e a permissão divina para que o mal se manifeste em plenitude antes de ser destruído.
Beda explica que o oriente (ab ortu solis) é Cristo, e os “reis que vêm do oriente” são os santos e doutores, iluminados pelo Sol da Justiça, que marcham espiritualmente contra o império das trevas.
Mas, no sentido oposto, também pode significar os exércitos do erro, libertos para a última tentação. Assim, o mesmo “secar” do rio abre dois caminhos: um para a fé que avança, outro para o mal que se revela.


“E vi saírem da boca do dragão, e da boca da besta, e da boca do falso profeta, três espíritos imundos, semelhantes a rãs.”

Os três espíritos imundos são as três formas do engano final:

1.      O erro diabólico (boca do dragão), que nega a Deus e o transcendente;

2.      O poder político corruptor (boca da besta), que se ergue como deus da terra;

3.      A falsidade religiosa (boca do falso profeta), que imita a fé para conduzir à idolatria.

As rãs vivem tanto na água quanto na terra — símbolo dos homens de duplicidade, que aparentam piedade, mas amam o mundo.
Seu coaxar incessante é o discurso vazio das ideologias e heresias que perturbam a paz dos fiéis.

Beda comenta que, no fim dos tempos, essas três vozes se unirão: filosofia sem sabedoria, poder sem justiça e religião sem santidade.


“Porque são espíritos de demônios, que fazem prodígios, os quais vão aos reis de toda a terra, para os congregar para a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso.”

Os falsos prodígios são os sinais do engano espiritual — não milagres verdadeiros, mas manipulações do medo e do desejo.
Os demônios se dirigem aos “reis da terra”, isto é, às potências do mundo, para arrastá-los à guerra contra Deus.
Beda vê aqui o sentido místico do Armagedon: não um campo geográfico, mas o teatro espiritual da história, onde o homem deve decidir a quem servirá.
O “grande dia” é o tempo do juízo — o momento em que a verdade se manifestará e cada um será visto como é.


“Eis que venho como ladrão; bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para que não ande nu e não se vejam as suas vergonhas.”

O Senhor interrompe a narração com esta advertência direta: o verdadeiro campo de batalha é o coração.
Vigiar é conservar a fé desperta; guardar as vestes é manter a pureza batismal e a integridade da alma.
A nudez é a perda da graça, e a vergonha é o autoconhecimento do pecado.
Beda sublinha que o ladrão não vem para roubar, mas para surpreender — a imprevisibilidade da vinda do Juiz é o teste da vigilância dos santos.


“E os congregou no lugar que em hebraico se chama Armagedon.”

Armagedon (Har-Megiddo) significa “monte da congregação” ou “monte da destruição”.
Beda interpreta-o espiritualmente: é o ponto culminante da história, onde o bem e o mal se confrontam — a colina da decisão, imagem da cruz.
Ali Cristo venceu, e ali o Anticristo será derrotado.
Cada alma, diz ele, tem seu próprio Armagedon: o lugar interior onde Deus exige a escolha final.


Com o derramamento da sexta taça, o cenário está preparado para o juízo supremo.
As barreiras caíram, os espíritos foram libertos, os reinos se uniram em confusão.
Mas, sob a superfície do caos, Deus prepara a consumação da vitória: o mal se revela para ser vencido, e a verdade se recolhe para reinar.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO V

“E o sétimo anjo derramou a sua taça no ar; e saiu uma grande voz do templo do trono, dizendo: Está feito.”

O ar é o domínio do inimigo: “o príncipe da potestade do ar”, como diz o Apóstolo (Ef 2,2).
Derramar a taça sobre o ar é abater o poder invisível das trevas — a destruição das forças espirituais que sustentam o império da mentira.
A voz que sai do trono proclama a consumação: “Está feito”. É o eco do “Consummatum est” da cruz, repetido agora sobre toda a criação.
Tudo o que fora anunciado e figurado se cumpre. A história chega ao ponto em que o mistério da iniquidade se revela para ser vencido.


“E houve relâmpagos, vozes e trovões; e houve um grande terremoto, tal, que nunca tinha havido desde que há homens sobre a terra, tão grande terremoto, tão forte.”

Os relâmpagos são os sinais espirituais; as vozes, os testemunhos dos profetas; os trovões, os juízos manifestos.
O terremoto é a convulsão universal das instituições humanas: tudo o que era estável se abala quando o juízo divino intervém.
Beda entende que este abalo não é apenas natural, mas simbólico: é o estremecimento das almas quando Deus fala, a dissolução dos reinos da terra diante da manifestação do Cristo juiz.


“E a grande cidade foi dividida em três partes, e as cidades das nações caíram; e lembrou-se Deus da grande Babilônia, para lhe dar o cálice do vinho da indignação da sua ira.”

A grande cidade é a Babilônia — isto é, o mundo apóstata, a civilização construída sobre a soberba.
Dividir-se em três partes significa o desmantelamento completo: o poder religioso, o político e o econômico se corrompem mutuamente até ruírem.
As “cidades das nações” são as estruturas secundárias do mesmo império — todos os sistemas que imitavam Babilônia compartilham o mesmo destino.
O “cálice do vinho” é a retribuição exata: o mundo que embriagou as nações com sua idolatria é agora forçado a beber o fruto de sua própria corrupção.


“E toda a ilha fugiu, e os montes não se acharam.”

As ilhas representam os homens isolados em suas próprias razões; os montes, os grandes poderes e saberes humanos.
Quando o juízo chega, nem o isolamento nem a altivez resistem: o orgulho e a falsa segurança desaparecem.
Beda comenta que até mesmo as obras aparentemente firmes da sabedoria humana — filosofia, impérios, instituições — se desfarão como sombras ao amanhecer do juízo eterno.


“E caiu do céu sobre os homens uma grande saraiva, como de um talento cada uma; e os homens blasfemaram de Deus por causa da praga da saraiva, porque a sua praga era mui grande.”

A saraiva é a palavra divina, dura e penetrante, que golpeia os corações obstinados.
As pedras de “um talento” indicam a gravidade do juízo: o peso da verdade que cai sobre os que zombaram da graça.
Mas mesmo feridos, os ímpios blasfemam — incapazes de reconhecer o castigo como misericórdia.
Beda observa que a mesma palavra que ilumina os justos fere os ímpios: o Evangelho é chuva para uns e saraiva para outros, conforme o estado da alma.


Assim se encerra o derramamento das sete taças.
O ar, símbolo do império do mal, é purificado; a terra, o mar e as fontes foram julgadas; o trono da besta foi destruído; o rio Eufrates secou; e a Babilônia caiu.
Tudo o que era oculto se tornou manifesto, e a ira de Deus — isto é, sua justiça — atingiu o fim para o qual sempre se ordenou: restaurar a ordem do amor.

Epístola a Eusébio

Prólogo Geral

“À vós, meu caríssimo irmão Eusébio, saúda Beda.”
A Revelação de São João, na qual Deus se dignou revelar, em figuras e palavras, as batalhas e incêndios internos de sua Igreja, parece-me dividida em sete partes.

Na primeira, após uma longa introdução destinada a fortalecer a fé dos frágeis, a Igreja contempla aquele que é semelhante ao Filho do Homem — Cristo em sua glória. Depois de tratar das sete Igrejas da Ásia, o texto descreve as lutas e vitórias da Igreja universal.

Na segunda, sob a visão do Cordeiro abrindo os sete selos, revela os futuros conflitos e triunfos da Igreja.

Na terceira, sob o som das sete trombetas, são narrados os diversos acontecimentos e provações que ela deve suportar.

Na quarta, sob a figura da mulher que dá à luz e do dragão que a persegue, são mostradas as lutas e vitórias espirituais.

Na quinta, as sete últimas pragas derramadas pelos sete anjos simbolizam o juízo total sobre a terra.

Na sexta, vem a condenação da grande meretriz, isto é, da cidade ímpia, a Babilônia mística.

E, finalmente, na sétima, aparece a Esposa do Cordeiro, a Jerusalém celeste descendo de Deus.

Assim, o livro progride do combate à consumação, do sofrimento à glória.


LIVRO QUINTO — CAPÍTULO PRIMEIRO

A QUEDA DA GRANDE MERETRIZ

“E veio um dos sete anjos que tinham as sete taças, e falou comigo, dizendo: Vem, e mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz, que está sentada sobre muitas águas.”

A meretriz é a imagem da cidade apóstata, o mundo que traiu a fé e prostituiu-se com os reis da terra.
As “muitas águas” são os povos e nações que lhe obedecem; pois a falsidade domina pela sedução e pela multiplicação das vozes.
Beda interpreta esta mulher como a Babilônia espiritual, isto é, a sociedade humana quando abandona o Deus verdadeiro e adora o poder, a riqueza e o prazer.


“Com ela se prostituíram os reis da terra, e os habitantes da terra se embriagaram com o vinho da sua fornicação.”

Os reis da terra são as autoridades humanas que pactuam com o erro.
O vinho é a doutrina perversa — doce na aparência, mas venenosa no espírito.
A embriaguez simboliza o fascínio das ideologias e dos ídolos que prometem liberdade e produzem servidão.
Beda nota que a prostituição espiritual é o oposto da virgindade da Igreja: quem troca a fidelidade da fé por alianças com o mundo torna-se infiel ao Esposo divino.


“E levou-me em espírito a um deserto, e vi uma mulher sentada sobre uma besta escarlate, cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres.”

O deserto representa a esterilidade espiritual — ausência de graça.
A besta escarlate é o império do Anticristo, sustentado pelo sangue dos mártires e pela idolatria das nações.
As sete cabeças são os sete reinos sucessivos que dominaram o mundo; os dez chifres, os poderes subordinados que se levantarão no fim.
Os “nomes de blasfêmia” são as doutrinas que usurpam o nome de Deus para justificar o pecado.
Beda insiste que a besta não é apenas política, mas teológica: ela representa o sistema total de negação — a inteligência divorciada do Logos.


“E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas, tendo na mão um cálice de ouro cheio de abominações e da imundícia da sua fornicação.”

A pompa exterior simboliza o fascínio da aparência: o ouro e as pedras preciosas são os ornamentos da falsidade.
O cálice de ouro é a máscara da religião mundana — bela por fora, corrupta por dentro.
Beda diz que esta é a corrupção do sagrado: quando o culto serve ao poder e a beleza se torna instrumento de engano.
O vinho do cálice é a mentira doce que embriaga o mundo inteiro.


“E na sua fronte estava escrito um nome: Mistério, Babilônia, a grande, a mãe das prostituições e das abominações da terra.”

A fronte indica a consciência; o nome “Mistério” mostra que o mal, para se perpetuar, se oculta sob o véu do sagrado.
A “mãe das abominações” é a fonte de todas as idolatrias — a cultura que substitui Deus por si mesma.
Beda observa que a palavra mysterium aqui é usada ironicamente: não o mistério da fé, mas o mistério da iniquidade.
É a inversão diabólica do sacramento — o anti-sacramento do mundo.


“E vi que a mulher estava embriagada do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus; e quando a vi, admirei-me com grande admiração.”

A embriaguez com o sangue dos santos significa o gozo cruel da perseguição.
A Babilônia se alimenta da destruição dos justos, pois a sua estabilidade depende de silenciar a verdade.
Beda interpreta a “admiração” de João não como espanto de curiosidade, mas de dor e assombro diante do mistério do mal permitido por Deus — o mesmo espanto de quem contempla o poder da injustiça prosperando por um tempo.


“E o anjo me disse: Por que te admiras? Eu te direi o mistério da mulher e da besta que a traz.”

Aqui começa a interpretação angélica, que Beda entende como a iluminação do Espírito sobre o discernimento da história.
A besta é o poder temporal; a mulher, o espírito mundano que o seduz.
Ambos formam uma aliança sacrílega: o trono e o altar unidos contra o Cordeiro.
O anjo revela que essa união, embora pareça invencível, carrega em si o germe da própria ruína.


Conclusão do Capítulo I

A meretriz é, pois, o espelho do mundo quando se aparta da verdade.
Ela representa todas as formas de idolatria política, cultural e espiritual.
Mas a sua condenação já está decretada: o cálice que ela oferece será aquele que ela própria beberá.
E a Igreja, purificada pela perseguição, surgirá como a verdadeira Esposa do Cordeiro, vestida não de púrpura, mas de luz.

LIVRO QUINTO

CAPÍTULO II

O Mistério das Cabeças e dos Chifres

“A besta que viste foi, e não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição; e os habitantes da terra, cujos nomes não estão escritos no livro da vida, se admirarão vendo a besta que era, e não é, e será.”

A besta, diz Beda, representa a sucessão dos impérios do mundo, cujo poder nasce, declina e ressurge — mas sempre com a mesma natureza interior.
Ela “foi”, quando dominava pela força bruta; “não é”, quando parece domesticada sob aparência de justiça; e “será”, quando, no fim, retoma sua fúria sob o império do Anticristo.
O abismo de onde ela sobe é o esquecimento de Deus; e sua perdição, o juízo final.
Os homens que se admiram dela são os que não têm o nome inscrito no livro da vida — os que julgam o poder segundo a aparência e não segundo a verdade.


“Aqui há sentido que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes sobre os quais está sentada a mulher, e são também sete reis.”

Os sete montes, nota Beda, aludem à cidade de Roma, edificada sobre sete colinas, mas também à totalidade dos reinos humanos.
Cada monte é um estágio da soberba do mundo.
O número sete indica plenitude: a história inteira do poder terreno, do Egito a Roma, manifesta a mesma lei de ascensão e queda.

Mas o texto acrescenta: “são também sete reis.”
Beda interpreta esses reis não apenas como monarcas, mas como espíritos de dominação:

1.      o império da carne,

2.      o império da curiosidade,

3.      o império da razão sem fé,

4.      o império da glória,

5.      o império da violência,

6.      o império do erro espiritual,

7.      e, por fim, o império do Anticristo.

Cada um é sucessor do outro, mas todos partilham a mesma raiz: o orgulho que se levanta contra Deus.


“Cinco caíram, um existe, o outro ainda não veio; e, quando vier, deve permanecer pouco tempo.”

Beda lê esta sentença como a chave da visão.
Os cinco caídos representam os impérios passados — Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia.
O que “existe” é Roma, o sexto; e o que “ainda não veio” é o reino do Anticristo, o sétimo, que surgirá por breve tempo.

Mas a interpretação espiritual é mais profunda:
os “cinco caídos” são também as potências interiores já vencidas pela graça;
o “que existe” é a soberba ainda presente no mundo e na alma;
o “que há de vir” é a rebelião final — a apostasia universal, quando o homem tentará sentar-se no trono de Deus.


“E a besta que era e não é, é também o oitavo, e é dos sete, e vai à perdição.”

O oitavo simboliza a paródia da eternidade.
É o retorno cíclico do mal sob nova forma: o poder que se repete em toda era, como se tivesse ressuscitado.
É “dos sete”, porque contém em si todos os anteriores; é a totalidade da corrupção humana.
Mas vai à perdição — pois o número oito, que na Escritura é símbolo da ressurreição, aqui se inverte e se torna o sinal do juízo.

Assim, diz Beda, a besta imita o Cristo até nos números: quer ter sua própria oitava, seu próprio domingo eterno — o eterno retorno do orgulho.


“E os dez chifres que viste são dez reis, que ainda não receberam reino, mas receberão poder como reis, por uma hora, juntamente com a besta.”

Os dez chifres são os reinos fragmentários que sucedem ao império unificado — os poderes menores que, no fim, se unirão sob a influência do Anticristo.
“Uma hora” indica a brevidade e a simultaneidade de seu domínio: não durarão, mas agirão de comum acordo na perseguição aos santos.
Beda entende esses dez reis como a multiplicação das potências do erro: o mundo dividido em sistemas, cada um sustentando o mesmo espírito anticrístico.


“Estes têm um mesmo intento, e entregarão o seu poder e autoridade à besta.”

Quando o juízo se aproxima, a divisão aparente do mundo converte-se em unidade do mal.
Todos os poderes, antes rivais, se alinham num mesmo propósito: negar o Cristo.
É o falso ecumenismo do erro, a convergência das ideologias sob uma paz ilusória.
Beda nota que, assim como o Espírito Santo unifica os fiéis, o espírito da besta unifica os ímpios.


“Estes pelejarão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, porque é Senhor dos senhores e Rei dos reis; e os que estão com ele são chamados, escolhidos e fiéis.”

A batalha final é desigual desde o princípio: o Cordeiro vence não pela força, mas pela verdade.
Os santos o acompanham, não como exércitos de armas, mas como testemunhas de luz.
“Chamados” pela graça, “escolhidos” pela fé e “fiéis” pela perseverança — esta tríplice nota é, para Beda, o verdadeiro número da salvação.
Enquanto os dez chifres representam a totalidade do erro, os três atributos — chamada, eleição, fidelidade — representam a totalidade da santidade.


“E disse-me o anjo: As águas que viste, onde se assenta a meretriz, são povos, multidões, nações e línguas.”

As águas são a instabilidade das multidões humanas.
A Babilônia vive da fluidez, da constante agitação dos povos — quanto mais instável o mundo, mais forte sua influência.
Beda vê nisso a imagem do caos social e moral que precede o juízo: o homem dissolvido em massa, a pessoa perdida na torrente.
E sobre esse mar agitado, a meretriz se assenta — a cultura mundana que domina pelo fascínio e pelo medo.


“E os dez chifres e a besta odiarão a meretriz, e a despojarão, e a comerão, e a queimarão com fogo.”

Aqui se revela a ironia divina do juízo: o mal destrói a si mesmo.
Os poderes que sustentavam a Babilônia se voltam contra ela.
A mentira devora a mentira; o sistema implode.
Beda comenta: “Deus permite que o próprio erro consuma o erro, para que a verdade se manifeste sem esforço.”
O fogo é o símbolo da purificação que consome o império da vaidade.


Conclusão do Capítulo II

As sete cabeças, os dez chifres e a mulher formam um único drama — a história inteira do poder humano sem Deus.
No fim, a besta odeia a mulher que a montava: o poder destrói a própria cultura que o alimentava.
É o círculo perfeito da corrupção: o mundo termina como começou — amando o próprio nada.

Mas sobre essas ruínas se ergue o Cordeiro, cuja vitória não tem ruído, porque é interior.
O império das bestas passa; o Reino do Verbo permanece.

LIVRO QUINTO

CAPÍTULO III

A Ruína da Babilônia

“E depois destas coisas vi descer do céu outro anjo, que tinha grande poder; e a terra foi iluminada com a sua glória.”

O anjo que desce do céu é a manifestação visível do juízo divino — uma luz espiritual que revela o que estava oculto.
A terra iluminada representa a humanidade despertada: quando Deus decide julgar, a consciência do mundo se acende, e nada mais permanece escondido.
A glória do anjo é a justiça de Deus que, por um instante, tudo torna transparente.


“E clamou fortemente com grande voz, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, a grande! e se tornou morada de demônios, e guarida de todo espírito imundo, e esconderijo de toda ave imunda e aborrecível.”

A repetição — “caiu, caiu” — indica a queda completa, no corpo e na alma.
A Babilônia é a civilização que recusou a luz e tornou-se habitação das trevas.
Beda comenta que, no fim, toda cultura fundada sobre a mentira degenera em superstição e desespero.
As “aves imundas” são os pensamentos e doutrinas que pairam sobre os mortos espirituais; os “demônios” são os vícios que, uma vez expulsos, retornam para ocupar a casa vazia.


“Porque todas as nações beberam do vinho da ira da sua fornicação, e os reis da terra se prostituíram com ela, e os mercadores da terra se enriqueceram com a abundância de suas delícias.”

Aqui Beda faz uma distinção profunda:
– As nações simbolizam o povo simples, embriagado pela ilusão dos prazeres;
– Os reis, o poder político e intelectual que pactuou com o erro;
– Os mercadores, a elite econômica e cultural que fez do vício um mercado.
O “vinho da fornicação” é o gosto pelo prazer transformado em ideologia — a economia do pecado, onde tudo é vendido e comprado, inclusive as almas.


“E ouvi outra voz do céu, dizendo: Saí dela, povo meu, para que não sejais participantes dos seus pecados, e para que não recebais das suas pragas.”

É o chamado eterno da separação espiritual.
“Saí dela” — não fisicamente, mas pela conversão interior.
Beda interpreta este versículo como o juízo presente em cada época: toda vez que a Igreja se mundaniza, Deus chama um remanescente a sair.
A fuga da Babilônia é a pureza da fé no meio da corrupção — o êxodo da alma fiel.


“Porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das suas iniquidades.”

O “lembrar-se” de Deus não é esquecimento anterior, mas momento da execução: o juízo não é súbito, é a maturação da paciência divina.
Os pecados acumulados até o céu simbolizam o limite do perdão — não em Deus, mas no homem, quando ele se torna incapaz de receber a misericórdia.


“Dai-lhe como ela vos deu, e pagai-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice que encheu, enchei-lhe o dobro.”

O dobro é o símbolo da retribuição perfeita.
A Babilônia, que ofereceu o cálice da mentira, recebe o cálice da verdade — mas como fogo.
Beda observa que a justiça divina não é vingança, mas simetria: cada ato volta à sua origem.
O cálice do prazer retorna como cálice de amargura.


“Quanto se glorificou e em delícias esteve, tanto tormento e pranto lhe dai; porque diz em seu coração: Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei pranto.”

A soberba da Babilônia é a ilusão de autossuficiência.
“Não sou viúva” — isto é, não dependo de Deus.
Por isso o castigo é proporcional: quanto mais se glorificou, mais profundamente será humilhada.
A falsa alegria se converterá em lamento, e o orgulho em confusão.


“Por isso num mesmo dia virão as suas pragas: morte, pranto e fome; e será queimada no fogo, porque é forte o Senhor Deus que a julga.”

O “mesmo dia” significa a súbita reversão dos destinos.
A morte é a ruína do corpo político, o pranto é a perda da glória, a fome é a secura espiritual.
O fogo é o juízo final, e o verbo “julga” (judicat) indica presente contínuo: Deus está julgando sempre, e o fim apenas revela o que já se cumpria em silêncio.


“E chorarão e se lamentarão sobre ela os reis da terra, que se prostituíram com ela e viveram em delícias, quando virem a fumaça do seu incêndio.”

Os reis choram não por arrependimento, mas por perda.
Lamentam o fim do sistema que os sustentava.
Beda nota com ironia que o mundo lamenta a destruição do próprio veneno, e o faz em distância — “de longe” — porque teme partilhar das pragas.
É o lamento do egoísmo, não da contrição.


“E os mercadores da terra chorarão e se lamentarão sobre ela, porque ninguém mais compra as suas mercadorias.”

O comércio da corrupção chegou ao fim.
As “mercadorias” são as paixões vendidas como bens — prazeres, poder, falsas ciências.
A Babilônia cai, e com ela a economia do pecado.
Beda aplica aqui uma interpretação espiritual notável: quando a alma se converte, o demônio perde o comércio de suas ilusões — não há mais comprador.


“E os mercadores das mercadorias de ouro, e de prata, e de pedras preciosas, e de pérolas, e de linho fino, e de púrpura, e de seda, e de escarlata...”

Esta enumeração, diz Beda, não descreve o luxo material, mas os vícios espirituais mascarados de virtudes.
O ouro é o orgulho; a prata, a vanglória; as pedras, o prazer; o linho fino, a hipocrisia da aparência; a púrpura e a escarlata, o sangue dos justos usado como ornamento.
O mundo reveste o pecado com a linguagem da beleza, e por isso o juízo começa pela estética da mentira.


Conclusão do Capítulo III

A queda de Babilônia é o juízo universal de todos os sistemas que se fizeram deuses.
Reis, mercadores e povos — todos os que venderam a verdade por lucro — lamentam, mas não se convertem.
Enquanto isso, a Igreja purificada se alegra: da ruína do império da carne nasce a liberdade dos filhos de Deus.

A justiça de Deus é luz: não destrói o mundo, revela-o tal como é.
E o lamento das nações é o eco do inferno — o pranto do orgulho quando se vê vencido pelo Cordeiro.

LIVRO QUINTO

CAPÍTULO IV

O Cântico no Céu e o Triunfo do Cordeiro

“E depois destas coisas ouvi como que uma grande voz de uma grande multidão no céu, dizendo: Aleluia! Salvação, e glória, e honra, e poder pertencem ao nosso Deus; porque verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua fornicação, e vingou o sangue dos seus servos das mãos dela.”

O cântico do céu é o contraponto ao lamento da terra.
Enquanto os reis e mercadores choram a perda de Babilônia, o céu celebra a libertação da Igreja.
O “Aleluia”, diz Beda, é a palavra da eternidade — a língua própria dos bem-aventurados, em que toda dor é transfigurada em louvor.
Os juízos de Deus são declarados “verdadeiros e justos” porque revelam a harmonia secreta entre a justiça e a misericórdia.
O sangue dos servos é vingado não por ódio, mas por restituição da ordem: os mártires recebem glória onde antes havia humilhação.


“E disseram segunda vez: Aleluia! E a sua fumaça sobe pelos séculos dos séculos.”

A repetição do Aleluia indica a plenitude da vitória — o eco do cântico que não se extingue.
A fumaça da Babilônia, que antes era símbolo de ruína, torna-se agora sinal de purificação: o mal consumido é memória da justiça.
Beda observa que “subir pelos séculos dos séculos” não é continuidade do castigo, mas permanência do testemunho.
A destruição do erro é eterna, como eterna é a luz que dela nasce.


“E os vinte e quatro anciãos e os quatro animais prostraram-se e adoraram a Deus que está assentado sobre o trono, dizendo: Amém, Aleluia.”

Os vinte e quatro anciãos são as duas alianças — doze patriarcas e doze apóstolos —, a totalidade da revelação;
os quatro animais são os evangelistas, sustentáculos da Palavra.
Todos se prostram, porque a história se conclui: nada resta senão adorar.
O “Amém” sela o cumprimento das promessas; o “Aleluia” abre o louvor eterno.
Beda nota que a combinação dessas duas palavras é o ápice da liturgia celeste — consentimento e alegria em unidade perfeita.


“E saiu uma voz do trono, dizendo: Louvai ao nosso Deus, vós todos os seus servos, e vós que o temeis, pequenos e grandes.”

O convite vem do próprio trono — isto é, do coração da divindade.
“Pequenos e grandes” abrange toda a hierarquia da graça: desde os simples fiéis até os doutores e mártires.
Ninguém está excluído do cântico, porque a glória de Deus se manifesta tanto na pequenez quanto na majestade.
Beda vê aqui a Igreja celeste chamando a Igreja peregrina: o louvor dos santos é convite à santificação dos vivos.


“E ouvi como que a voz de uma grande multidão, e como a voz de muitas águas, e como a voz de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso.”

A tríplice imagem — multidão, águas e trovões — indica as três ordens do universo glorificado:
– a multidão dos santos;
– as águas da sabedoria;
– os trovões da majestade divina.
O coro universal proclama o reinado de Deus — não futuro, mas presente: “regnavit”.
Beda insiste que aqui o verbo está no perfeito: o Reino já se consumou, o tempo cessou.
É o instante em que o ser retorna à sua fonte e o poder humano é abolido.


“Regozijemo-nos e alegremo-nos, e demos-lhe glória, porque vindas são as bodas do Cordeiro, e a sua esposa já se aprontou.”

As bodas são o símbolo máximo da união entre Cristo e a Igreja.
O juízo da meretriz prepara o casamento da Esposa: a purificação antecede a comunhão.
A Esposa “já se aprontou” porque foi lavada no sangue do Cordeiro — a santidade da Igreja é dom, não conquista.
Beda escreve: “O mesmo amor que julgou a meretriz, adornou a Esposa.”


“E foi-lhe dado que se vestisse de linho fino, puro e resplandecente; porque o linho fino são as justiças dos santos.”

O linho fino é a pureza interior — as obras feitas na luz da fé.
O verbo “foi-lhe dado” (datum est) mostra que a virtude é graça, não mérito autônomo.
O resplendor do linho é a manifestação das obras santas diante de Deus: os atos ocultos se tornam luminosos.
Assim, a veste da Esposa é tecida com o próprio tecido de sua fidelidade.


“E disse-me o anjo: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E disse-me: Estas são as verdadeiras palavras de Deus.”

A ceia das bodas é o banquete escatológico — a plenitude da comunhão divina.
Ser “chamado” é já participar da bem-aventurança: o convite é a própria graça.
Beda identifica aqui a transfiguração da Eucaristia: o sacramento terrestre se cumpre na realidade eterna.
As “verdadeiras palavras” são aquelas que não passam: o anúncio da felicidade definitiva dos justos.


“E eu caí aos seus pés para o adorar; e ele disse-me: Olha, não faças tal; sou teu conservo e de teus irmãos que têm o testemunho de Jesus; adora a Deus; porque o testemunho de Jesus é o espírito da profecia.”

João, tomado pela visão, tenta adorar o anjo; mas o anjo o corrige — não há intermediário entre o servo e o Senhor.
O “testemunho de Jesus” é o sentido último de toda profecia: Cristo é o centro de toda revelação.
Beda nota com elegância: “O anjo recusa o culto porque não quer interromper a linha do amor que sobe direto ao Trono.”
Aqui termina a visão da Esposa e começa a do Guerreiro — o mesmo Cordeiro que é também Verbo de Deus.


Conclusão do Capítulo IV

Com este cântico, a história humana atinge o limiar da eternidade.
O mal foi julgado, a mentira dissolvida, e a Esposa está pronta.
O céu inteiro canta, e o verbo de Deus prepara-se para descer — não mais como sacrificado, mas como Rei e Juiz.

Beda encerra dizendo:

“O Aleluia que começa aqui não terá fim, pois o amor do Cordeiro é o repouso dos santos.”

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO I

O Cavaleiro do Cavalo Branco

“E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro, e julga e peleja com justiça.”

O céu aberto é o desvelamento da verdade divina, e o cavalo branco, a Igreja militante sob a direção de Cristo.
A cor branca indica pureza e vitória; o cavaleiro é o Verbo de Deus — o mesmo Cordeiro que agora aparece como Rei e Juiz.
O título Fiel e Verdadeiro designa a constância divina: Ele é fiel às promessas e verdadeiro na execução dos juízos.
Julga com justiça porque vê os corações; peleja não com armas, mas com o poder da Palavra.


“E os seus olhos eram como chama de fogo, e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito que ninguém sabia, senão ele mesmo.”

Os olhos como fogo são o olhar que penetra todos os segredos: nada escapa à visão do Verbo.
Os muitos diademas representam as múltiplas coroas da glória divina — soberania sobre todos os reinos do ser.
O nome secreto é a essência inefável de Deus: só Ele se conhece perfeitamente.
Beda comenta: “O nome que ninguém sabe é a plenitude da divindade, inacessível à criatura, ainda que vista na glória.”


“E estava vestido de uma veste tingida em sangue; e o seu nome é: o Verbo de Deus.”

A veste tingida em sangue é a humanidade redimida — o corpo místico de Cristo marcado pela paixão.
O Verbo de Deus é o nome manifesto, contraposto ao nome oculto: o Logos que se revelou na carne.
Beda vê nisso a síntese de toda teologia: o Deus invisível se torna visível na Palavra encarnada; o mistério do juízo é o mesmo da Encarnação.


“E seguiam-no os exércitos que há no céu, em cavalos brancos, vestidos de linho fino, branco e puro.”

Os exércitos celestes são os santos — os justos glorificados que participam do triunfo do Verbo.
Os cavalos brancos indicam as almas purificadas, dóceis à vontade de Deus.
O linho fino é a santidade, já explicada no capítulo anterior como “as justiças dos santos”.
O Cristo, diz Beda, não vence sozinho: a vitória de Deus é comunhão, é o coro dos que amaram até o fim.


“E da sua boca saía uma espada aguda, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com vara de ferro; e pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-Poderoso.”

A espada é a palavra que corta — o juízo do Verbo, mais penetrante que lâmina alguma.
As nações feridas são as consciências despertadas: o castigo é revelação.
A vara de ferro simboliza a inflexibilidade da justiça: Cristo não governa por consenso, mas pela verdade.
O lagar é o mesmo já visto na ceifa do Livro Terceiro — a separação final entre o puro e o impuro, o amor e o orgulho.
Beda nota: “A espada que fere é a mesma que cura; o lagar que esmaga é o mesmo que purifica.”


“E no seu manto e na sua coxa tem escrito este nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”

A coxa — parte da força — indica o poder gerador da divindade.
O nome escrito no manto e na coxa mostra que a glória de Cristo é visível tanto na carne (manto) quanto na potência divina (coxa).
Ele é Rei dos reis porque domina o visível; Senhor dos senhores porque governa o invisível.
O duplo título é a síntese do tempo e da eternidade — domínio total do Logos sobre o ser.


CAPÍTULO II

A Derrota das Bestas

“E vi um anjo que estava no sol, e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voam pelo meio do céu: Vinde, ajuntai-vos para a grande ceia de Deus.”

O anjo no sol é a luz do juízo — a clareza total que convida os elementos da criação a testemunhar o desfecho da história.
As aves simbolizam os espíritos contemplativos que participam do triunfo de Deus.
A ceia de Deus é o banquete do juízo: a reunião universal dos destinos.
Beda escreve: “O mesmo mundo que serviu de mesa para o pecado será mesa para a justiça.”


“Para que comais a carne dos reis, e a carne dos capitães, e a carne dos fortes, e a carne dos cavalos e dos que sobre eles se assentam.”

É a imagem terrível da queda dos poderosos.
A “carne” significa o que é corruptível; ser devorado é ser reduzido à verdade.
Beda interpreta esta cena como a aniquilação do orgulho: as potências do mundo são entregues à sua própria fraqueza — a verdade as consome.


“E vi a besta e os reis da terra e os seus exércitos reunidos para fazer guerra àquele que estava assentado sobre o cavalo e ao seu exército.”

O último combate é o confronto entre a mentira total e a verdade absoluta.
A besta e seus exércitos são todas as estruturas do mal — políticas, intelectuais e espirituais — reunidas para impedir a manifestação de Cristo.
Mas sua derrota é imediata, porque o poder do Verbo não luta, apenas se revela.
Beda diz: “Quando a luz aparece, as trevas não são vencidas — desaparecem.”


“E a besta foi presa, e com ela o falso profeta, que fazia diante dela os sinais com que enganava os que receberam o sinal da besta e adoraram a sua imagem; estes dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.”

A prisão é a impotência do mal diante da verdade.
O lago de fogo é o juízo eterno — não o castigo físico, mas a fixação definitiva da vontade perversa.
Beda nota que a besta e o falso profeta são lançados “vivos”: não cessam de existir, mas permanecem eternamente na autodestruição.
É o “fogo da consciência”, a visão do bem perdido, que é o verdadeiro inferno.


“E os demais foram mortos com a espada que saía da boca daquele que estava assentado sobre o cavalo; e todas as aves se fartaram das suas carnes.”

A espada da boca é novamente a Palavra — mata o erro pela revelação da verdade.
As “aves fartas” são os espíritos justos saciados de contemplar a justiça divina.
O triunfo é total: o mal é desmascarado, e o bem, manifestado em plenitude.


CAPÍTULO III

A Prisão do Dragão e o Reino dos Santos

“E vi descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na mão; e prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos.”

O anjo é Cristo ou o poder da sua Igreja.
A cadeia é a graça que limita a ação do inimigo.
Os mil anos não são número cronológico, mas símbolo da totalidade do tempo entre a primeira e a segunda vinda de Cristo.
Durante esse período, Satanás está preso — isto é, o Evangelho impede que ele engane as nações como antes.
Beda ensina que este é o reino espiritual de Cristo, já presente na Igreja.


“E vi tronos, e assentaram-se sobre eles, e foi-lhes dado o poder de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados por causa do testemunho de Jesus, e que não adoraram a besta nem a sua imagem.”

Os tronos são os lugares de honra concedidos aos mártires e confessores.
Eles reinam com Cristo porque participaram da sua cruz.
O juízo que exercem é o discernimento da verdade: a glória dos santos é iluminar o mundo com a justiça divina.
Aqueles que não adoraram a besta são os que resistiram ao conformismo espiritual — as consciências incorruptíveis.


“E viveram e reinaram com Cristo mil anos. Mas os outros mortos não reviveram até que os mil anos se acabaram. Esta é a primeira ressurreição.”

A primeira ressurreição é a regeneração pela graça — o renascimento interior.
Os que vivem com Cristo são os que, já nesta vida, ressuscitaram do pecado.
Os “outros mortos” são os que permanecem na escuridão do erro até o juízo final.
Beda identifica aqui o verdadeiro milênio: a era da Igreja, em que Cristo reina invisivelmente nas almas dos justos.


“Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes a segunda morte não tem poder.”

A segunda morte é a separação eterna de Deus.
Quem já ressuscitou espiritualmente pela fé não pode mais ser vencido por ela.
Esta é a promessa definitiva: o domínio do pecado foi destruído, e a vida eterna começou no coração dos fiéis.


Conclusão do Livro Sexto

O dragão está preso, as bestas foram lançadas ao fogo, e os santos reinam com Cristo.
Beda conclui que este é o “sábado da história” — o tempo entre a vitória do Calvário e o juízo final.
Não é repouso ocioso, mas contemplação ativa: a Igreja, em meio às tribulações, vive já a antecipação da eternidade.

“O milênio”, escreve ele, “é o tempo em que o Senhor reina em seus eleitos, e em que a fé subjuga o mundo — até que venha a luz sem ocaso.”

LIVRO SÉTIMO

CAPÍTULO I

A Soltura do Dragão e o Juízo Final

“E, acabando-se os mil anos, Satanás será solto de sua prisão, e sairá a enganar as nações que estão sobre os quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de ajuntá-los para a batalha; o número deles é como a areia do mar.”

Beda explica que a soltura do dragão representa a última provação da Igreja, quando o poder do erro, antes contido, será liberado para testar a fidelidade dos santos.
“Gogue e Magogue” são os nomes simbólicos dos povos do engano universal — não um povo único, mas toda humanidade entregue à ilusão final.
A “areia do mar” indica a vastidão sem unidade: multidões incontáveis e, contudo, vazias de sentido.
O demônio é solto, mas não vitorioso — sai para cumprir sua própria derrota.


“E subiram sobre a largura da terra, e cercaram o arraial dos santos e a cidade amada; mas desceu fogo do céu e os devorou.”

O arraial dos santos é a Igreja fiel; a cidade amada, a comunhão dos justos.
A última perseguição se manifesta como cerco espiritual — o ódio do mundo contra a verdade.
Mas o “fogo do céu” é a intervenção direta de Deus: não destruição física, mas a luz que consome o engano.
Beda comenta: “O fogo que devora os ímpios é o mesmo que ilumina os justos — chama do mesmo amor, sentida de modo oposto.”


“E o diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde está a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre.”

Aqui se encerra o ciclo do mal.
O diabo é lançado no mesmo destino das bestas: o lago de fogo — símbolo da impotência eterna, da consciência que jamais alcança o bem.
O tormento “de dia e de noite” é o eterno movimento sem repouso — a vida sem Deus.
Beda vê nisso a definição do inferno: a privação do amor, a ausência que nunca se resolve.


CAPÍTULO II

O Trono Branco e o Julgamento dos Mortos

“E vi um grande trono branco, e o que estava assentado sobre ele, de cuja presença fugiu a terra e o céu; e não se achou lugar para eles.”

O trono branco é a pureza do juízo divino.
A terra e o céu que fogem não são aniquilados, mas transfigurados — a criação antiga cede lugar à nova.
Nada de impuro permanece diante do olhar do Juiz.
Beda comenta: “Branco é o trono porque o juízo de Deus é luz sem sombra.”


“E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante de Deus; e abriram-se os livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras.”

Os livros são as consciências humanas — cada um lê a própria história à luz da verdade.
O livro da vida é Cristo mesmo, no qual estão escritos os nomes dos que O amaram.
As obras não são apenas atos exteriores, mas intenções: tudo o que o homem quis, pensou e amou.
O juízo, para Beda, é revelação: Deus não condena, o homem se reconhece.


“E o mar entregou os mortos que nele havia; e a morte e o inferno entregaram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras.”

O mar, a morte e o inferno são as três dimensões do esquecimento humano: o tempo, o corpo e o espírito separados da graça.
Tudo é restituído — nada fica oculto.
A plenitude do juízo é o recolhimento de tudo o que o pecado havia dispersado.


“E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte.”

Aqui se cumpre a grande inversão: a própria morte morre.
A “segunda morte” é o estado fixo do afastamento de Deus; o “lago de fogo” é o limite onde o mal se consome.
Beda escreve: “Quando a morte é lançada no fogo, o que resta é apenas vida — pois tudo o que não é Deus deixa de ser.”


“E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.”

Ser lançado fora é o resultado natural de não querer estar dentro.
O juízo, longe de ser imposição, é a manifestação da liberdade: cada alma vai para onde sempre quis estar.
O livro da vida contém os que desejaram a verdade — e a verdade, finalmente, os acolhe.


CAPÍTULO III

O Novo Céu e a Nova Terra

“E vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra passaram; e o mar já não existe.”

O novo céu é a inteligência iluminada; a nova terra, o corpo espiritualizado.
O mar que não existe mais é o símbolo do tumulto e da divisão — o fim da instabilidade e do medo.
Beda interpreta esta passagem como o cumprimento da oração do Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso Reino” — isto é, o universo reconciliado em Deus.


“E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu, de Deus, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido.”

A nova Jerusalém é a Igreja gloriosa, adornada pela caridade e pela sabedoria.
Desce do céu — não é construída de baixo para cima, mas concedida de cima para baixo.
É a união perfeita do divino e do criado, da graça e da natureza.
Beda nota: “A Esposa desce porque o amor de Deus é sempre o primeiro movimento.”


“E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, e com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles, e será o seu Deus.”

O tabernáculo de Deus com os homens é o mistério da Encarnação agora consumado em plenitude.
Não há mais mediação, nem templo, nem véu: Deus é presença imediata.
A distinção entre céu e terra se dissolve — toda criação se torna morada da Trindade.


“E Deus limpará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas.”

Esta é, para Beda, a definição da eternidade: a vida sem perda.
As lágrimas são enxugadas porque o próprio Deus se faz consolação.
A morte cessa, porque o amor é infinito.
Nada mais passa — tudo permanece.
O tempo foi curado.


CAPÍTULO IV

A Jerusalém Celeste

“E veio um dos sete anjos que tinham as sete taças... e mostrou-me a esposa, a mulher do Cordeiro. E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-me a grande cidade, a santa Jerusalém, que descia do céu de Deus, tendo a glória de Deus.”

A cidade e a esposa são uma só realidade: a comunhão dos santos.
O monte alto é o estado da contemplação, onde a alma vê sem mediações.
A glória que ela reflete não é sua, mas de Deus — a cidade é espelho da divindade.
Beda vê nisso a realização da bem-aventurança: “ver a Deus em todos e todos em Deus”.


“E tinha um muro grande e alto, e tinha doze portas... e sobre as portas, doze anjos, e nomes inscritos, que são das doze tribos dos filhos de Israel.”

O muro é a verdade; as doze portas, os apóstolos; os anjos, as virtudes que guardam a entrada.
O número doze expressa plenitude e ordem — a totalidade da salvação.
Ninguém entra sem passar pela caridade apostólica.
Beda comenta: “O muro é alto, porque a verdade é invencível; é transparente, porque nada oculta senão o mistério da luz.”


“E a cidade era de ouro puro, semelhante a vidro límpido.”

O ouro é a caridade incorruptível; o vidro límpido, a pureza intelectual.
A união das duas substâncias simboliza a sabedoria perfeita — amor transparente.
Nada na cidade é opaco: cada ser reflete o Todo.


“E o fundamento do muro da cidade estava adornado de toda pedra preciosa.”

As pedras são os dons do Espírito Santo, que sustentam a estrutura da eternidade.
Cada virtude, purificada pela prova, se torna luz sólida.
Beda escreve: “O que na terra era luta, no céu é forma; o que era virtude, é agora substância.”


“E a cidade não necessita de sol, nem de lua, para lhe darem luz, porque a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada.”

Aqui a visão atinge seu ápice.
O Cordeiro-Luz é o centro da Jerusalém celeste — o Logos que ilumina tudo por dentro.
Não há mais noite, porque não há mais sombra do pecado.
Deus é a própria claridade do ser.
Beda conclui: “O sol e a lua passam, porque toda luz criada se recolhe na Luz increada.”


CAPÍTULO V

O Rio da Vida e a Visão Beatífica

“E mostrou-me um rio puro de água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro.”

O rio da vida é o Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho, que eternamente vivifica a cidade.
A água cristalina simboliza o conhecimento direto de Deus — sem mediação nem sombra.
A Trindade é aqui vista em ato: o trono (Pai), o Cordeiro (Filho) e o rio (Espírito) formam a circulação eterna do Amor.


“E no meio da praça da cidade, e de um e de outro lado do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações.”

A árvore da vida é Cristo, cuja humanidade glorificada comunica vida a todos.
Os doze frutos são as virtudes perfeitas; as folhas, os exemplos dos santos.
A saúde das nações é a cura da divisão: toda diversidade se reconcilia na unidade do amor.


“E ali nunca mais haverá maldição; e nela estará o trono de Deus e do Cordeiro; e os seus servos o servirão, e verão a sua face, e o seu nome estará em suas frontes.”

A visão da face de Deus é o fim último da alma — a bem-aventurança perfeita.
O nome na fronte significa a completa identificação do homem com Deus — o intelecto divinizado.
Servir e ver são uma só coisa: ação e contemplação se fundem.
Beda afirma: “No céu, o amor é o ato da visão; e ver a Deus é amá-lo sem cessar.”


“E não haverá mais noite ali, e não necessitarão de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia, e reinarão pelos séculos dos séculos.”

Aqui termina a Revelação: o Reino é eterno, a luz é perene, o amor é infinito.
Não há noite, porque não há ignorância; não há lâmpada, porque não há intermediário.
O homem se torna o que contemplou — reflexo da própria Luz.


Conclusão do Livro Sétimo

Beda encerra sua Explanatio com estas palavras:

“A Jerusalém que João viu descer é a Igreja que Deus quis desde o princípio; o que para nós é futuro, para Ele é presente.
O fim da profecia é o mesmo que o princípio da criação: o Verbo habitando entre os homens.”

Assim, a história se fecha no mesmo gesto com que começou:
o Logos pronunciando-se sobre o caos — agora não mais para criar o mundo, mas para criá-lo novamente na luz eterna.

FINIS OPERIS

“Et ostendit mihi fluvium aquae vitae, splendidum tamquam crystallum, procedentem de throno Dei et Agni.”
Beda Venerabilis, Explanatio Apocalypsis, VII, 5


Nesta obra se cumpre o itinerário espiritual do Apocalipse — não como prenúncio de destruição, mas como revelação da unidade entre juízo e amor.
Em cada visão, o Venerável Beda não procura o terror, mas o sentido: o mundo, purificado pela palavra, retorna ao seu princípio.
A besta, a cidade, os reis e os exércitos, todos se dissolvem diante da luz do Cordeiro — o mesmo Verbo que, no princípio, dissera “Fiat lux”, agora pronuncia o “Consummatum est” da história.

A tradução integral aqui apresentada manteve o pulso do texto latino, conservando-lhe a gravidade litúrgica e a cadência simbólica.
Cada imagem, cada figura, cada juízo de Beda é, em sua essência, um degrau da ascensão da mente — do intelecto ferido pela queda ao intelecto pacificado na visão.

O fim da profecia é o repouso da mente em Deus.
O Apocalipse, assim compreendido, não termina em catástrofe, mas em nupcialidade.
É o reencontro da criação com seu Criador, da inteligência com a Verdade, da Palavra com o Silêncio.

E como escreve o próprio Beda, encerrando sua obra:

“Finis libri, non finis sensus; quia finis Apocalypsis non est consumptio mundi, sed transitus ad lucem aeternam.”
— “Fim do livro, não do sentido; pois o fim do Apocalipse não é a destruição do mundo, mas sua passagem à luz eterna.”


Explanatio Apocalypsis Sancti Joannis Apostoli
Autor: Beda, o Venerável (672–735)
Tradução integral e estudo introdutório: Jardel Almeida
Assistência filosófica: Sophión
Base textual: Patrologia Latina, vol. 93
Edição: Ad mentem Patrum Ecclesiae
Ano e local: 2025 — Ad mentem Thomae et Scoti


Selo Editorial: “S” — Sophión, Logos Encerrado
Símbolo do intelecto que se curva diante do Mistério.

 

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