Artigo Introdutório
Quando
me detive sobre o nome de Beda, o Venerável,
percebi que o adjetivo “venerável” não é mera homenagem eclesiástica, mas um
título que traduz o modo como sua mente repousava sobre o mistério. Entre os
Padres do Ocidente, poucos conservaram com tamanha integridade o equilíbrio
entre a exegese, a liturgia e a contemplação. Seu pensamento é um organismo
vivo, em que cada versículo é um membro do corpo de Cristo, e cada comentário
uma respiração da Igreja. Traduzir-lhe a Explanatio Apocalypsis foi, portanto,
mais do que um trabalho filológico — foi um ato de escuta. O que nele se lê não
é a voz de um monge isolado nas brumas da Nortúmbria, mas o eco da tradição que
remonta aos profetas, atravessa os apóstolos e se recolhe no coração do Verbo
Encarnado.
O
Apocalipse,
para Beda, não é um livro de catástrofes, mas o evangelho da consumação. Ele o
interpreta como a revelação final do Cristo total — Cabeça e Corpo — e o faz
com a serenidade de quem contempla o tempo já dentro da eternidade. Nessa obra,
o drama da história é iluminado pela liturgia celeste; o mundo é julgado não
por seu colapso, mas por sua transfiguração. É a teologia da esperança, onde o
juízo se torna purificação e a dor, nascimento. A leitura bedana é uma resposta
católica à angústia apocalíptica: o fim não é aniquilação, mas passagem. A
cidade terrestre é consumida para dar lugar à Jerusalém gloriosa, e a chama do
Cordeiro não destrói — ilumina.
Beda
lê o Apocalipse dentro da Igreja e para a Igreja. Sua hermenêutica não se apoia
em especulações políticas ou presságios cronológicos, mas no sentido espiritual
da Escritura, aquele que Santo Agostinho chamaria de sensus plenior.
Cada besta, cada taça e cada trombeta são, antes de tudo, estágios da vida
interior; cada queda do império é imagem do pecado e cada vitória do Cordeiro é
figura da conversão. O monge inglês, como os antigos padres do deserto, via na
história uma parábola da alma. Traduzir sua obra foi redescobrir o método
católico por excelência: unir o histórico ao simbólico, o visível ao invisível,
o mundo ao Reino.
Na
teologia católica, a Explanatio Apocalypsis ocupa um lugar singular.
É o elo entre a patrística latina e a exegese medieval, o ponto em que a
contemplação bíblica se prepara para o florescimento escolástico. Em Beda, a
Escritura ainda fala como mistério; mas já ressoa, em seus ecos, a necessidade
de ordem e clareza que brotará nas escolas de São Vítor, de Anselmo e de Tomás.
É uma ponte entre o monastério e a universidade, entre a lectio divina e a
teologia sistemática. A clareza e a prudência de seu estilo ensinaram aos
séculos seguintes que o Apocalipse não se lê com curiosidade, mas com joelhos
dobrados — não com os olhos da carne, mas com os olhos purificados pela fé.
Traduzir
esta obra foi um exercício de obediência. Não busquei reinventar o texto, mas
servi-lo. Mantive o fluxo do latim com a fidelidade que se deve à palavra
sagrada, sem empobrecer-lhe o espírito. Cada sentença de Beda foi vertida
procurando preservar sua harmonia interior — a cadência dos monges que rezavam
os salmos entre um comentário e outro. Ao longo da tradução, compreendi que a
teologia de Beda é como uma tapeçaria de ouro e luz: cada fio brilha por si,
mas todos formam um só rosto — o rosto do Cristo glorioso que abre os selos e
revela o livro da vida.
A
Explanatio
Apocalypsis não é apenas uma leitura do último livro da Escritura;
é uma oração que se estende até o fim dos tempos. Nela, o mundo inteiro é
convidado a reconhecer que tudo o que começa em Deus retorna a Deus. E que a
verdadeira revelação não é a do fim das coisas, mas a do sentido das coisas — o
mistério do amor que atravessa o fogo e permanece.
Nota sobre o uso da tradução
Esta
tradução foi feita a partir da edição crítica da Patrologia Latina
(vol. 93, cols. 129–206), publicada por Jacques-Paul Migne, cotejada com a
versão modernizada (MLT) e as variantes manuscritas disponíveis no Corpus
Christianorum. Todo o texto foi vertido diretamente do latim para o
português, mantendo-se a forma integral, sem omissões, com adaptação mínima à
sintaxe moderna.
A
finalidade desta tradução é teológica e contemplativa:
tornar acessível ao leitor contemporâneo o pensamento exegético e espiritual de
Beda, dentro do espírito da Tradição Católica. Sua publicação é parte do
projeto Ad
Mentem Patrum Ecclesiae, cujo propósito é restaurar o diálogo
vivo entre os Padres e o presente — não como arqueologia, mas como ato de fé na
permanência do Logos.
EPIGRAMA DE
BEATO JOÃO ET EJUS APOCALYPSI
Poema final em versos latinos, celebrando João
Evangelista e a revelação que recebeu.
A EXPLICAÇÃO DO APOCALIPSE DE
SÃO JOÃO APOSTOLO
Por São Beda, o
Venerável, Doutor Admirável da Igreja nos Tempos Modernos
Epístola a Eusébio
Ao caríssimo irmão Eusébio,
Beda saúda.
A revelação de São João, na
qual Deus se dignou manifestar, por meio de palavras e figuras, as guerras e
incêndios internos de sua Igreja, parece-me, irmão Eusébio, estar dividida em
sete partes.
Na primeira delas, depois de
uma abundante introdução destinada a fortalecer a fé dos fracos, a Igreja
contempla aquele que, revestido da semelhança do Filho do Homem, enumera as
paixões do Senhor e as glórias que se lhe seguiram. Nessa primeira parte, após
recordar o que foi realizado ou ainda se realizaria nas sete Igrejas da Ásia,
descreve as lutas universais de toda a Igreja e as coroas dos vencedores. No
sexto lugar, anuncia que os judeus se hão de converter à Igreja e que virá a
tentação que abalará o mundo inteiro; promete ainda que virá em breve. No
sétimo, coloca a Igreja de Laodiceia como tíbia. Pois o Filho do Homem, ao vir,
achará fé sobre a terra? (Lc 18,8).
Na segunda parte, após
descrever, junto ao trono de Deus, os quatro animais e os vinte e quatro
anciãos, João contempla o Cordeiro, que abre os sete selos do livro selado,
revelando os combates e triunfos futuros da Igreja. A ordem observada segue,
até o sexto número, o costume próprio deste livro; omitindo o sétimo, ele
recapitula e conclui com duas narrações como se seguisse uma única sequência.
Essa recapitulação, porém, deve ser entendida segundo o lugar: às vezes ela
retoma o relato desde a origem da Paixão; outras, a partir de um tempo
intermediário; e outras ainda, fala somente da última e suprema tribulação, ou
do que a precede de perto. Contudo, mantém sempre firme a regra de recapitular
a partir do sexto.
A terceira parte, sob a figura
dos sete anjos que tocam trombetas, descreve os diversos acontecimentos da
Igreja.
A quarta, sob a imagem da
mulher que dá à luz e do dragão que a persegue, manifesta os labores e as
vitórias da Igreja, concedendo a cada milícia a recompensa digna. Aí se
recordam também as palavras e ações dos sete anjos, ainda que não dispostas de
modo igual às anteriores; pois a sagaz mística desse número o conserva quase
por toda parte, sendo costume do mesmo João, também nos Evangelhos e Epístolas,
nunca falar de modo tíbio ou breve.
A quinta parte, sob o símbolo
dos sete anjos, derrama sobre a terra as sete últimas pragas.
A sexta mostra a condenação da
grande meretriz, isto é, da cidade ímpia.
A sétima revela o ornamento da
Esposa do Cordeiro — a santa Jerusalém que desce do céu, vinda de Deus.
Julguei ainda conveniente
recordar brevemente as sete regras de Ticonio, varão eruditíssimo entre os
seus, pelas quais os estudiosos são grandemente ajudados a compreender as
Escrituras.
A primeira trata do Senhor e de seu Corpo,
quando se passa do Cabeça ao Corpo ou do Corpo à Cabeça, sem, contudo, se sair
da mesma pessoa. Assim fala uma só pessoa dizendo: “Como esposo, pôs sobre mim a mitra, e como esposa
adornou-me com ornamentos” — e, todavia, é necessário discernir o
que pertence ao Cabeça, Cristo, e o que pertence ao Corpo, a Igreja.
A segunda refere-se ao Corpo do Senhor dividido em dois,
ou, antes, ao Corpo verdadeiro e simulado do Senhor, que Santo Agostinho
preferiu chamar Corpo místico. Pois a Igreja diz: “Sou negra, mas formosa, como as tendas de Cedar e as peles
de Salomão” (Ct 1). Não disse “fui negra e sou formosa”, mas
afirmou ser ambas as coisas, por causa da comunhão dos sacramentos e da mistura
temporária, dentro de uma só rede, de peixes bons e maus. As tendas de Cedar
pertencem a Ismael, porque “o filho da escrava não será herdeiro com o filho da
livre”.
A terceira é sobre as promessas e a Lei,
que também pode ser chamada de regra do espírito e da letra, ou da graça e do
preceito. Santo Agostinho considerou-a menos uma regra que uma grande questão a
ser aplicada na solução das controvérsias. Pois é justamente esta que, por não
ser bem compreendida, fez nascer ou crescer a heresia dos pelagianos.
A quarta trata da espécie e do gênero.
A espécie é parte; o gênero, o todo de que ela é parte. Assim, cada cidade é
parte de uma província, e cada província é parte do mundo inteiro. Por isso,
até entre o povo, essas palavras se tornaram conhecidas, de modo que até os
simples entendem o que, em um decreto imperial, se determina em sentido
particular ou geral. O mesmo se dá com os homens: muitas vezes, aquilo que se
diz de Salomão ultrapassa sua própria medida e se esclarece quando aplicado a
Cristo e à Igreja, de que ele era parte. Nem sempre, porém, a espécie é
ultrapassada: frequentemente, as palavras se aplicam de modo evidente tanto à
parte quanto ao todo. Mas, quando se passa da espécie ao gênero, como se ainda
se falasse da espécie, deve o leitor permanecer vigilante.
A quinta é a regra dos tempos, que
também pode ser chamada dos
números. Ticonio a relaciona ao tropo da sinédoque ou aos
números legítimos. O tropo da sinédoque consiste em tomar o todo pela parte ou
a parte pelo todo. Com esse modo de falar resolve-se, por exemplo, a questão
dos “três dias e três noites” da ressurreição de Cristo, pois a parte final do
dia em que sofreu só pode ser contada como um dia inteiro se se lhe juntar a
noite anterior; e a noite na qual ressuscitou, só como um dia completo se se
acrescentar o amanhecer do domingo. Chama “números legítimos” aqueles que a
Escritura divina ensina com especial ênfase, como o sete, o dez e o doze —
pelos quais costuma designar a totalidade do tempo ou a perfeição de algo.
Assim, “sete vezes por dia te louvei” (Sl 118) significa “sempre o teu louvor
está em minha boca” (Sl 33). Esses números valem o mesmo quando multiplicados —
como setenta ou setecentos —, podendo significar toda a duração do tempo da
Igreja no exílio espiritual, ou, ainda, duzentos e quarenta e quatro mil (doze
vezes doze mil), que designam a universalidade dos santos no Apocalipse.
A sexta regra, Ticonio chama recapitulação. Pois há
passagens da Escritura que parecem narrar os fatos em ordem de tempo ou por
continuidade de acontecimentos, quando, na verdade, o relato retorna de modo
velado a eventos anteriormente omitidos. Assim, no Gênesis se diz: “Estes são os filhos de Noé, segundo
suas tribos e línguas; a partir deles foram divididas as ilhas das nações sobre
a terra” (Gn 10,5). E logo a seguir: “Toda a terra tinha uma só língua e as mesmas palavras”
(Gn 11,1). Parece que ambos os fatos se deram no mesmo tempo, quando, na
verdade, o autor, por recapitulação, volta a narrar como as línguas foram
divididas.
A sétima trata do diabo e de seu corpo.
Pois às vezes se diz do diabo o que só se reconhece em seu corpo, isto é, nos
ímpios que o seguem. Assim, o Senhor, falando a Jó sobre as forças e artifícios
do inimigo, diz: “Porventura
multiplicará ele preces diante de ti, ou te falará palavras suaves?”
— não que o próprio diabo algum dia faça penitência, mas o seu corpo, que é o
conjunto dos condenados, dirá no fim: “Senhor,
Senhor, abre-nos!” (Lc 13,25).
Essas regras, portanto, não
vigoram somente no Apocalipse — livro que o mesmo Ticonio, com viva
inteligência e com doutrina suficientemente católica, explicou, salvo nos
pontos em que tentou defender a seita de sua parte, isto é, dos donatistas,
interpretando como “perseguições profetizadas” as penas justas que sofreram de
um imperador religioso, Valentiniano, quando suas igrejas, casas e bens foram
entregues aos católicos e seus bispos exilados —; mas vigoram em toda a
Escritura canônica, especialmente nos livros proféticos, como qualquer leitor
atento poderá perceber.
Seguindo o espírito desse
autor, omiti algumas passagens supérfluas que ele inserira de fora, por
brevidade; acrescentei, porém, muitas que lhe pareciam óbvias e indignas de
pesquisa, mas que, quanto alcancei pela tradição dos mestres, pela lembrança da
leitura ou pela capacidade do meu entendimento, julguei necessário acrescentar.
Pois temos por preceito devolver ao Senhor os talentos recebidos com usura.
E como pareceu conveniente
dividir esta obra em três livros, para alívio da mente — pois, como disse o
bem-aventurado Agostinho, “o término de um livro renova a atenção do leitor
assim como a hospedaria reanima o viandante” —, decidi conservar sem alteração
a série dos capítulos tal como outrora os distingi no original com breves
títulos, para facilitar a busca dos estudiosos. Julguei também atender, com
isso, à fraqueza de nossa gente, isto é, dos ingleses, que, há pouco — nos
tempos do bem-aventurado Papa Gregório —, receberam a semente da fé, mas ainda
a cultivam de modo frio na leitura das Escrituras. Por isso, dispus não apenas
esclarecer os sentidos, mas também comprimir as sentenças, pois a brevidade
luminosa costuma fixar-se mais facilmente na memória do que a exposição
prolixa.
Desejo que, em Cristo, estejas
bem, caríssimo irmão, e que te dignes lembrar-te sempre de teu Beda.
Epigrama sobre o
Bem-aventurado João e o seu Apocalipse
Exilado João foi do convívio
dos homens,
e proibido de ver os reinos do sol coico,
mas entrou jubiloso na corte do Céu,
amado do Senhor, e alegra-se junto ao trono régio.
Ali, voltando o olhar sagrado
ao mundo sujeito,
vê por toda parte as naves errantes no mar,
e Babilônia e Sião combatendo com exércitos mistos,
tomando e perdendo as armas e as fugas em sucessão.
Segue o exército manso que,
vestido de branco, acompanha o Cordeiro,
e com o seu Chefe recebe o reino bem-aventurado do céu.
A serpente escamosa submerge nos infernos cegos
as suas legiões em chamas, peste e fome.
Quais sejam o rosto, o ardil, a ordem de seu combate,
a arte, a falange, a palma ou as armas —
desejando revelá-los, percorri as vastas campinas
dos campos santos, colhendo breves espigas dos antigos,
para que a abundância maior não gerasse fastio à mesa
nem o pouco impedisse o conviva de fartar-se.
Se meus manjares te parecerem saborosos aos lábios,
dá louvores ao Deus que reina acima dos astros;
se não, ainda assim acolhe o amigo e corrige o canto,
e, polindo-o com a pedra, melhora o que te dou.
INDEX OPERIS
Explanatio Apocalypsis Sancti Joannis
Apostoli
Beda, o Venerável (672–735)
LIBER PRIMUS — DE VISIONE ET PROOEMIO
Livro Primeiro — Da Visão e do Prólogo
·
Caput I – De ipso nomine Apocalypsis
Do
próprio nome Apocalipse
·
Caput II – De septem Ecclesiis Asiae
Das
sete Igrejas da Ásia
·
Caput III – De visione Filii hominis
Da
visão do Filho do Homem
LIBER SECUNDUS — DE EPISTOLIS AD
ECCLESIAS
Livro Segundo — Das Cartas às Igrejas
·
Caput I – De epistola ad Ecclesiam
Ephesinam
Da
carta à Igreja de Éfeso
·
Caput II – De epistola ad Smyrnam et
Pergamum
Das
cartas a Esmirna e Pérgamo
·
Caput III – De epistolis ad Thyatiram,
Sardem, Philadelphiam et Laodiciam
Das
cartas a Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia
LIBER TERTIUS — DE SIGILLIS ET AGNIS
Livro Terceiro — Dos Selos e do Cordeiro
·
Caput I – De libro signato septem
sigillis
Do
livro selado com sete selos
·
Caput II – De apertione sigillorum
Da
abertura dos selos
·
Caput III – De silentio quasi dimidiae
horae
Do
silêncio quase de meia hora
·
Caput IV – De septem angelis et tubis
Dos
sete anjos e das trombetas
·
Caput V – De persecutione sanctae
Ecclesiae
Da
perseguição da santa Igreja
LIBER QUARTUS — DE TAEDIS ET IRA DEI
Livro Quarto — Das Taças e da Ira de
Deus
·
Caput I – De effusione phialarum sex
priorum
Do
derramamento das seis primeiras taças
·
Caput II – De effusione septimae phialae
in aerem
Do
derramamento da sétima taça no ar
·
Caput III – De ruina Babylonis magnae
Da
queda da grande Babilônia
·
Caput IV – De voce magna de templo et
tonitruis
Da
grande voz do templo e dos trovões
·
Caput V – De consummatione irarum Dei
Da
consumação das iras de Deus
LIBER QUINTUS — DE BESTIA ET MERETRICE
Livro Quinto — Da Besta e da Meretriz
·
Caput I – De muliere super bestiam
sedentem
Da
mulher sentada sobre a besta
·
Caput II – De septem capitibus et decem
cornibus
Das
sete cabeças e dos dez chifres
·
Caput III – De interitu Babylonis et
planctu regum et mercatorum
Da
ruína da Babilônia e do lamento dos reis e mercadores
·
Caput IV – De cantico in caelo et
triumpho Agni
Do
cântico no céu e do triunfo do Cordeiro
LIBER SEXTUS — DE BELLO ET MILLENNIO
Livro Sexto — Da Batalha Final e do
Reino Milenar
·
Caput I – De equite albo et verbo Dei
Do
cavaleiro branco e do Verbo de Deus
·
Caput II – De captivitate bestiarum
Da
captura das bestas
·
Caput III – De vinculo draconis et regno
sanctorum
Da
prisão do dragão e do reino dos santos
LIBER SEPTIMUS — DE IUDICIO ET CIVITATE
DEI
Livro Sétimo — Do Juízo Final e da
Cidade de Deus
·
Caput I – De soluta nequitia et bello extremo
Da
soltura do mal e da batalha final
·
Caput II – De throno albo et iudicio
mortuorum
Do
trono branco e do juízo dos mortos
·
Caput III – De novo caelo et nova terra
Do
novo céu e da nova terra
·
Caput IV – De Hierusalem nova et gloria
eius
Da
nova Jerusalém e de sua glória
·
Caput V – De flumine vitae et visione Dei
Do
rio da vida e da visão de Deus
FINIS OPERIS
“Finis libri, non finis sensus; quia
finis Apocalypsis non est consumptio mundi, sed transitus ad lucem aeternam.”
Fim
do livro, não do sentido; pois o fim do Apocalipse não é a destruição do mundo,
mas sua passagem à luz eterna.
LIVRO PRIMEIRO
Capítulo I
“Revelação de Jesus
Cristo, que Deus lhe concedeu...”
Fundada pelos apóstolos, a
Igreja precisava ser instruída acerca do modo como deveria crescer e do fim com
que seria consumada, para que os pregadores da fé fossem confirmados contra as
adversidades do mundo. Por isso, João testemunha, segundo o seu costume, que
recebeu de Deus a revelação desse mistério — a revelação de Jesus Cristo, a
quem o Pai confiou manifestar tais coisas.
“As coisas que devem
acontecer em breve.”
Isto é, as que estavam prestes a sobrevir à Igreja no tempo presente.
“E significou-as.”
Envolveu a mesma revelação em linguagem mística, para que, não sendo manifesta
a todos, não se tornasse vil pela vulgaridade.
“Enviando-a por meio do
seu anjo.”
Pois o anjo agiu diante de João sob a figura de Cristo, como mais claramente
aparecerá no decorrer do livro.
“Ao seu servo João.”
Para que, por meio de João — que, por um privilégio singular de castidade,
mereceu contemplar essas coisas acima de todos —, fossem elas reveladas a todos
os servos de Deus.
“O qual deu testemunho
da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo.”
Para que não duvides da pessoa de João: é o mesmo que deu testemunho do Verbo
eterno de Deus e do mesmo Verbo feito carne, dizendo: “Vimos a sua glória,
glória como do Unigênito do Pai” (Jo 1,14).
“Bem-aventurado aquele
que lê e os que ouvem as palavras desta profecia.”
Bem-aventurados são, pois, os que ensinam e os que escutam, porque, aos que
guardam a palavra de Deus, o breve tempo do trabalho trará a alegria eterna.
“João às sete Igrejas
que estão na Ásia.”
Por meio dessas sete Igrejas escreve à Igreja universal. É costume que o número
sete signifique totalidade, porque todo o tempo do século se encerra em sete dias.
“Graça e paz a vós da
parte daquele que é, que era e que há de vir.”
Deseja-nos graça e paz da parte de Deus Pai eterno, do Espírito de sete dons e
de Jesus Cristo, que, feito homem, deu testemunho ao Pai. Nomeia o Filho por
último, de quem mais falará a seguir, e também porque Ele é o Primeiro e o
Último, já que o nomeou antes no Pai ao dizer “aquele que há de vir”.
“O primogênito dentre
os mortos e o príncipe dos reis da terra.”
É o que o Apóstolo afirma: “Vimos Jesus Cristo, coroado de glória e honra por
causa da paixão da morte” (Hb 2,9). E noutro lugar: “Por isso Deus o exaltou e
lhe deu um nome acima de todo nome” (Fl 2,9).
“E fez de nós um reino
e sacerdotes para Deus, seu Pai.”
Porque Ele, Rei dos reis e Sacerdote celeste, oferecendo-se por nós, uniu-nos
ao seu corpo; e, portanto, nenhum dos santos está privado do ofício sacerdotal
espiritual, pois é membro do Sacerdote eterno.
“Eis que vem com as
nuvens, e todo olho o verá.”
Aquele que, ao ser julgado, veio oculto, virá visivelmente para julgar. Recorda
isso para confirmar a Igreja na paciência das tribulações: agora oprimida pelos
inimigos, então reinará com Cristo.
“E os que o
traspassaram se lamentarão sobre Ele.”
Ao vê-lo em poder e glória, na mesma forma em que o julgaram indignamente, chorarão
tarde demais com arrependimento vão.
“Sim. Amém.”
Certíssimo de que se cumprirá o que Deus lhe revelou, confirma com o “Amém” a
firmeza do acontecimento.
“Eu sou o Alfa e o
Ômega, o Princípio e o Fim.”
O Princípio, a quem ninguém precede; o Fim, a quem ninguém sucede no reino.
“Aquele que é, que era
e que há de vir.”
O mesmo que se disse do Pai: pois o Pai vem e há de vir no Filho.
“Eu, João, vosso irmão
e companheiro na tribulação.”
Indica sua pessoa, o lugar e a causa da visão. E atesta que a teve “em
espírito”, para que não fosse julgada uma ilusão carnal.
“Estive na ilha de
Patmos, por causa da Palavra de Deus.”
É conhecida a história de João, exilado por ordem de Domiciano na ilha de
Patmos por causa do Evangelho. E, quando lhe foi negado percorrer certas
terras, mereceu penetrar os segredos do Céu — como se o fechamento dos caminhos
terrenos lhe abrisse o acesso às alturas.
“Fui arrebatado em
espírito no dia do Senhor.”
Assinala, de modo conveniente à visão espiritual, também o tempo: pois é costume
da Escritura indicar, assim como o lugar e a matéria, também o tempo das
causas. Assim, os anjos visitam Abraão ao meio-dia e Sodoma ao entardecer;
Adão, após o meio-dia, se esconde à voz do Senhor que passeava; e Salomão, à
noite, recebe a sabedoria que não soube guardar.
“E ouvi atrás de mim
uma grande voz.”
Primeiro é chamado pela voz, para depois voltar o olhar à visão.
“O que vês, escreve num
livro e envia-o às sete Igrejas.”
Não havia então apenas nessas cidades a Igreja de Cristo, mas nelas o número
sete representa a plenitude. A Ásia, cujo nome significa “elevação”, designa o
orgulho do mundo onde a Igreja peregrina; e, segundo o costume das figuras
divinas, o gênero é significado pela espécie. Assim também o apóstolo Paulo
escreveu a sete Igrejas, embora não às mesmas que João. E, ainda que esses
lugares representem a Igreja inteira, os fatos que ele louva ou censura
realmente se deram nessas cidades.
“E, voltando-me para
ver a voz que falava comigo, vi sete candelabros de ouro.”
Aqui se descreve belamente a forma da Igreja, que sustenta o lume do amor
divino no brilho de um peito casto, conforme o que o Senhor disse: “Estejam
cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas” (Lc 12,35). A perfeição
interior e exterior da Igreja é indicada pelas duas partes do número sete, pois
cada fiel, composto das quatro qualidades do corpo, ama o Senhor seu Deus de
todo o coração, de toda a alma e de todas as forças.
“E no meio dos sete
candelabros, um semelhante ao Filho do Homem.”
Diz “semelhante”, pois, depois de vencer a morte, ascendeu ao Céu. “Ainda que
tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, agora já não o conhecemos assim”
(2Cor 5,16). E bem se diz “no meio”, pois “todos os que estão ao seu redor
oferecerão presentes”.
“Vestido com uma túnica
longa.”
A túnica talar, chamada em latim podéris,
era a veste sacerdotal: indica o sacerdócio de Cristo, que, no altar da cruz,
ofereceu-se ao Pai por nós como hóstia.
“E cingido ao peito com
um cinto de ouro.”
As duas “mamas” significam os dois Testamentos, com os quais Cristo alimenta o
corpo dos santos. O cinto de ouro é o coro dos santos, unidos pela caridade,
ligados ao Senhor e cingindo os Testamentos, “guardando a unidade do Espírito
no vínculo da paz” (Ef 4,3).
“E a sua cabeça e os seus cabelos eram brancos como
lã branca, como neve.”
O candor na cabeça representa a antiguidade e a imortalidade da majestade
divina; e os que a ela se unem, como cabelos que aderem à cabeça, resplandecem
como lã — por causa das ovelhas que estarão à direita — e como neve, pela
multidão incontável dos lavados, e pela pureza dos eleitos que vêm do alto.
“E os seus olhos eram como chama de fogo.”
Os olhos do Senhor são os pregadores que, inflamados pelo fogo espiritual,
iluminam os fiéis e abrasam os incrédulos.
“E os seus pés, semelhantes ao metal precioso, como
que incandescente em fornalha.”
Os pés incandescentes simbolizam a Igreja dos últimos tempos, que há de ser
examinada e provada pelas tribulações intensas. Pois o metal chamado orichalcum
é cobre levado ao fogo e ao remédio até adquirir cor dourada. Em outra
tradução, lê-se “semelhantes ao bronze do Líbano”, o que indica que a Igreja
será perseguida especialmente na Judeia — cujo monte Líbano é célebre —, e por
isso o Templo é muitas vezes chamado “Líbano”, como nas palavras: “Abre, ó
Líbano, as tuas portas, e o fogo devore os teus cedros” (Zc 11,1).
“E a sua voz era como o rumor de muitas águas.”
A voz da confissão, da pregação e do louvor ressoa não apenas na Judeia, mas
entre muitos povos.
“E tinha na sua mão direita sete estrelas.”
A mão direita de Cristo é a Igreja espiritual. Assim se diz no salmo: “A rainha
se pôs à tua direita, adornada com vestes de ouro” (Sl 44,10); e o mesmo Senhor
dirá àqueles que estão à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o
reino” (Mt 25,34).
“E da sua boca saía uma espada aguda de dois
gumes.”
Pois aquele que julga as coisas visíveis e invisíveis tem poder, depois de
ferir, de lançar no fogo do inferno (cf. Mt 10,28).
“E o seu rosto brilhava como o sol em sua força.”
Assim como apareceu aos discípulos no monte, assim o Senhor se manifestará a
todos os santos depois do juízo; pois os ímpios também “verão aquele a quem
traspassaram” (Jo 19,37). Todo esse aspecto do Filho do Homem convém também à
Igreja, com a qual Cristo se fez uma só natureza: concedendo-lhe a honra
sacerdotal e o poder judicial, para que resplandeça “como o sol no reino do
Pai” (Mt 13,43).
“E quando o vi, caí a seus pés como morto.”
Treme, como homem, diante da visão espiritual, mas a clemência do Senhor
dissipa o temor humano.
“E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo: não
temas; eu sou o primeiro e o último.”
O Primeiro, porque tudo foi feito por Ele; o Último, porque n’Ele tudo se
restaura.
“E tenho as chaves da morte e do inferno.”
Não somente, diz Ele, venci a morte pela ressurreição, mas tenho domínio sobre
ela. E este poder Ele concedeu à Igreja, ao soprar sobre os discípulos o
Espírito Santo e dizer: “Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão
perdoados...” (Jo 20,23).
“Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são,
e as que hão de acontecer depois destas.”
Tudo o que viste, manifesta aos outros: os diversos trabalhos da Igreja e a
mistura, até o fim do século, dos maus com os bons.
“O mistério das sete estrelas que viste na minha
destra, e dos sete candelabros de ouro.”
As sete estrelas são os anjos das sete Igrejas, isto é, os seus pastores; pois,
como diz o profeta Malaquias, “o sacerdote é o anjo do Senhor dos Exércitos”
(Ml 2,7).
E os sete candelabros são as sete Igrejas, ou, em figura, toda a Igreja universal
adornada de luz celeste e sustentada pela graça divina.
LIVRO PRIMEIRO
CAPÍTULO II
“Ao anjo da Igreja de
Éfeso, escreve.”
A esta Igreja — cujo nome,
conforme o sentido da palavra, significa “meu
desejo está nela” ou “grande
queda” — o Senhor dirige palavras de reprovação e de louvor.
“Isto diz aquele que
tem na sua mão direita as sete estrelas.”
Isto é, aquele que vos possui em sua mão, e que vos governa e sustém com seu
próprio poder.
“Aquele que anda no
meio dos sete candelabros de ouro.”
Aquele que caminha no meio de vós, e perscruta os corações e os rins de cada
um.
“Conheço as tuas obras,
o teu labor e a tua paciência.”
Vejo-te diligente nas boas obras e paciente nas injúrias dos maus; vejo-te que,
examinando com cuidado as palavras e os atos dos falsos apóstolos, recusaste
ceder-lhes em qualquer coisa.
“Mas tenho contra ti
que abandonaste a tua primeira caridade.”
Em algumas coisas deixaste o amor que tinhas no princípio; e, se não o
recuperares, privar-te-ei do dom da luz prometida. No entanto, há também em ti
algo que louvo: odeias as obras dos nicolaítas, como eu também as odeio.
“Quem tem ouvidos, ouça
o que o Espírito diz às Igrejas.”
Pois o que escreve a cada Igreja em particular, diz na verdade a todas; não era
apenas a Igreja de Éfeso que seria removida do seu lugar se não se
arrependesse, nem somente em Pérgamo estava o trono de Satanás. Assim também o
que se diz a cada uma das sete, aplica-se à Igreja inteira.
“Ao vencedor darei de
comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus.”
A árvore da vida é Cristo; e no paraíso celestial, pela visão de Cristo — e
também, já agora, em seu corpo místico que é a Igreja — as almas santas se
alimentam.
“E ao anjo da Igreja de
Esmirna, escreve.”
A esta Igreja recomenda que
suporte a perseguição, e seu nome concorda com o conselho: Smyrna significa mirra, que é símbolo da
mortificação da carne.
“Isto diz o primeiro e
o último, que esteve morto e vive.”
Aquele que tudo criou e, morrendo, tudo restaurou: apta introdução para quem
vai exortar à paciência.
“Conheço a tua
tribulação e a tua pobreza — mas és rico.”
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt
5,3). O que Fortunato exprimiu em breve verso: “Pobre no aperto, reina
possuindo Deus.”
“E conheço a blasfêmia
dos que se dizem judeus e não o são.”
Confessam conhecer a Deus, mas o negam pelas obras. Pois “judeu” é nome de
religião, e o apóstolo ensina: “Judeu é aquele que o é no íntimo, e a
circuncisão é a do coração, no espírito e não na letra.”
“Eis que o diabo lançará
alguns de vós na prisão para serdes tentados.”
Essas palavras convêm à Igreja universal, contra a qual o diabo continuamente
exerce inimigos e ciladas.
“E tereis tribulação de
dez dias.”
O número dez designa todo o tempo em que são necessários os mandamentos do
Decálogo. Enquanto segues a luz da Palavra divina, deves sofrer o cárcere do
inimigo que te resiste.
Alguns interpretam também como as dez perseguições dos imperadores, desde Nero
até Diocleciano.
“Sê fiel até a morte, e
dar-te-ei a coroa da vida.”
Mostra assim o alcance dos “dez dias”: o tempo da fidelidade até a morte.
“O vencedor não sofrerá
o dano da segunda morte.”
Aquele que permanecer fiel até a morte do corpo não temerá a morte eterna da
alma.
“E ao anjo da Igreja de
Pérgamo, escreve.”
Pergamus significa “dividindo os chifres deles”, isto é, aquele
que, julgando com retidão, separou a virtude dos fiéis da perfídia dos
nicolaítas, para que os chifres dos pecadores fossem quebrados e os dos justos
exaltados.
“Isto diz aquele que
tem a espada aguda de dois gumes.”
Aquele que tem poder de julgar; apta introdução de quem há de conceder prêmio
aos vencedores e punição aos errantes.
“Conheço onde habitas:
onde está o trono de Satanás.”
Aprovo a tua paciência, que, habitando entre os ímpios — que são o trono do
diabo —, não me serves apenas de nome, como quem se chama cristão, mas de fé
íntegra, mesmo no tempo da perseguição sangrenta. Contudo, reprovo que entre ti
existam mestres sedutores.
“Nos dias de Antipas,
minha fiel testemunha, que foi morto entre vós.”
Alguns pensam que se refere a um mártir chamado Antipas, morto em Pérgamo;
outros veem aqui o próprio Cristo, que ainda hoje é morto pelos incrédulos,
tanto quanto depende deles.
“Comes e fornicas.”
São estas as duas principais paixões pelas quais os carnais combatem: o ventre
é o seu deus e a vergonha a sua glória (Fp 3,19). Pois toda obra má é idolatria
e fornicação espiritual.
“Tens contigo os que
seguem a doutrina dos nicolaítas.”
Os nicolaítas foram assim chamados de Nicolau, um dos primeiros diáconos. Conta
Clemente que, tendo sido acusado de ciúme por causa da beleza de sua esposa,
respondeu, para não ser tido por zeloso, que qualquer um podia tomá-la, e que
por isso ensinou aos ímpios que os apóstolos haviam permitido o uso comum das mulheres.
Dizem ainda que pregaram fábulas gentílicas sobre a origem do mundo e não se
abstiveram das carnes sacrificadas aos ídolos.
“Ao vencedor darei o
maná escondido.”
Aquele que, mesmo sendo tentado por hipócritas, desprezar os atrativos da
carne, será saciado com o pão invisível que desceu do céu.
“E dar-lhe-ei uma
pedrinha branca.”
Isto é, o corpo, agora alvejado pelo batismo, que então resplandecerá na glória
da incorruptibilidade.
“E sobre a pedrinha um
nome novo escrito.”
O nome de filhos de Deus, pois está escrito: “Para que sejamos chamados e
sejamos realmente filhos de Deus” (1Jo 3,1).
“Que ninguém conhece
senão aquele que o recebe.”
Pois “aquele que diz conhecer a Deus e não guarda os seus mandamentos é
mentiroso” (1Jo 2,4); o hipócrita não prova quão suave é o Senhor.
“E ao anjo da Igreja de
Tiatira, escreve.”
Tiatira significa “hóstia”, pois os santos oferecem os seus
corpos como hóstia viva a Deus.
“Isto diz o Filho de
Deus, que tem os olhos como chama de fogo.”
E explica adiante quem são esses olhos flamejantes: “Eu sou aquele que sonda os
rins e os corações, e darei a cada um segundo as suas obras.”
“E os seus pés são
semelhantes ao metal precioso.”
O mesmo sentido: que as últimas obras dessa Igreja são mais abundantes que as
primeiras.
“Mas tenho contra ti
que permites que a mulher Jezabel, que se diz profetisa, ensine e seduza os
meus servos a fornicar e comer carnes sacrificadas aos ídolos.”
Em tua fé e obras és louvável; contudo, és repreensível porque toleras, sem
justa repreensão, a sinagoga dos falsos apóstolos, que fingem ser cristãos. O
nome Jezabel, que
significa sangue derramado,
convém aos hereges. É possível que tenha realmente existido uma mulher naquela
Igreja ensinando tais coisas, figura da Jezabel universal espalhada pelo mundo,
contra a qual o Senhor ameaça vingança manifesta.
“Eis que a lançarei num
leito.”
Com justiça divina será punida: jazerá no leito eterno de dor aquela que
seduziu os miseráveis ao leito da luxúria.
“E ferirei de morte os
seus filhos.”
Os filhos são os seguidores e as obras dessa mulher; e não lhes ameaça a morte
momentânea do corpo, mas a morte eterna da alma.
“E todas as Igrejas
saberão que eu sou aquele que sonda rins e corações.”
Nos rins significa as deleitações; no coração, os pensamentos.
“E darei a cada um de
vós segundo as suas obras.”
As obras e palavras podem ser conhecidas pelos homens, mas o motivo por que são
feitas e a intenção do coração só Ele conhece. Assim, embora puna abertamente a
fornicação e a idolatria, que são pecados manifestos, é também cognoscente dos
ocultos, porque esses mesmos vícios se escondem sob formas sutis. “Destruirás
todos os que se prostituem longe de ti” (Sl 62,9). E o mesmo João, que ouviu
estas palavras, escreveu em sua epístola: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”
(1Jo 5,21).
“Mas a vós e aos outros
de Tiatira, que não conhecem as profundezas de Satanás, digo: não vos imporrei
outro peso.”
Assim como exorta os ímpios à penitência e os ameaça com castigos, assim anima
os piedosos à paciência e os consola com promessas eternas.
“Não vos tentarei além do que podeis suportar.” Ou, segundo outra leitura:
“Guardai-vos dos falsos profetas” (Mt 7,15); não vos envio nova doutrina, mas
apenas vos ordeno que conserveis fielmente o que já recebestes até o fim.
“E ao vencedor, que
guardar as minhas obras até o fim, darei poder sobre as nações.”
Na pessoa de Cristo, a Igreja possui esse poder, como corpo unido à cabeça.
Pois, segundo o Apóstolo, “Deus nos deu tudo com Ele” (Rm 8,32).
“E as regerá com vara
de ferro.”
Com justiça inflexível governa os mansos para que deem mais fruto; e destrói os
contumazes, para que pereçam ou para que sejam quebradas neles as paixões
terrenas e os negócios lamacentos do homem velho, tudo o que se apegou ao lodo
dos pecados.
“E dar-lhe-ei a estrela
da manhã.”
Cristo é a estrela da manhã, que, passada a noite do mundo, promete e abre aos
santos a luz eterna da vida.
LIVRO PRIMEIRO
CAPÍTULO III
“E ao anjo da Igreja de
Sardes, escreve.”
Sardes significa “príncipe do ornamento”; a Igreja aqui
simboliza aqueles que, tendo recebido dons espirituais, parecem adornados, mas
perdem a vigilância interior.
“Isto diz aquele que
tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas.”
O Senhor se apresenta como plenitude do Espírito e como aquele que sustenta
todos os ministros fiéis.
“Conheço as tuas obras:
tens nome de vivo, mas estás morto.”
Pareces viver pela reputação exterior, mas estás morto diante de Deus, por
negligência interior.
“Sê vigilante e
confirma o que resta, que está para morrer.”
Exorta-o a recuperar o fervor da fé, para que o pouco que ainda vive não se
extinga completamente.
“Não achei tuas obras
perfeitas diante de meu Deus.”
Pois não basta começar bem; é necessário perseverar até o fim.
“Lembra-te, pois, de
como recebeste e ouviste, e guarda e arrepende-te.”
Recorda-te da graça inicial e conserva o que aprendeste. O remédio para a
tibieza é o retorno à memória do primeiro amor.
“Se não vigiares, virei
como ladrão.”
Assim como a morte surpreende os negligentes, assim também o juízo virá
subitamente aos despreocupados.
“Tens, contudo, algumas
poucas pessoas em Sardes que não mancharam suas vestes.”
Mesmo entre uma multidão tíbia, existem alguns fiéis íntegros.
“E andarão comigo de
branco, porque são dignas.”
A veste branca é o esplendor da pureza espiritual, que acompanha Cristo na
glória.
“O vencedor será assim
revestido de vestes brancas, e não apagarei o seu nome do livro da vida.”
Aquele que perseverar na pureza não será riscado do número dos eleitos.
“E confessarei o seu
nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos.”
Assim como Ele mesmo prometeu no Evangelho: “A todo aquele que me confessar
diante dos homens, confessá-lo-ei diante de meu Pai” (Mt 10,32).
“E ao anjo da Igreja de
Filadélfia, escreve.”
Filadélfia significa “amor fraternal”; representa os que perseveram
na caridade.
“Isto diz o Santo, o
Verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi; o que abre e ninguém fecha, o que
fecha e ninguém abre.”
A chave de Davi é o poder régio e sacerdotal de Cristo, que abre o reino dos
céus aos crentes e o fecha aos infiéis.
“Conheço as tuas obras:
eis que pus diante de ti uma porta aberta, que ninguém pode fechar.”
Por meio da fé e da pregação, foi-lhe aberta a entrada no céu. A porta aberta é
Cristo mesmo: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será salvo” (Jo 10,9).
“Tens pouca força, mas
guardaste a minha palavra e não negaste o meu nome.”
Ainda que pobre em recursos ou pequena em número, conservaste a fé íntegra.
“Eis que farei vir
aqueles da sinagoga de Satanás, que dizem ser judeus e não são, mas mentem.”
Quer dizer: farei com que os hipócritas reconheçam que tu és verdadeiramente
amada de Deus.
“Eis que os farei vir e
prostrar-se-ão aos teus pés, e saberão que te amei.”
Os inimigos da Igreja reconhecerão, com temor e confusão, que ela é a
verdadeira esposa do Cordeiro.
“Porque guardaste a
palavra da minha paciência, eu também te guardarei da hora da tentação que virá
sobre o mundo inteiro.”
Promete livrá-la do escândalo que há de vir, quando o Anticristo tentar a fé de
todos.
“Venho sem demora;
conserva o que tens, para que ninguém tome a tua coroa.”
A vinda do Senhor está sempre próxima para os que vivem vigilantes. A coroa é a
perseverança na fé e na caridade.
“Ao vencedor farei
coluna no templo do meu Deus, e daí jamais sairá.”
A coluna é o sustentáculo firme da Igreja; os santos serão coluna inamovível no
templo eterno.
“E escreverei sobre ele
o nome do meu Deus, e o nome da cidade do meu Deus, da nova Jerusalém, que
desce do céu, e o meu nome novo.”
O nome do Pai, do Filho e da cidade designa a união perfeita com a Trindade e
com a Igreja triunfante.
“E ao anjo da Igreja de
Laodiceia, escreve.”
Laodiceia significa “o povo amado pelo Senhor” ou “o julgamento do povo”; aqui
representa os que, julgados por suas obras, revelam tibieza de espírito.
“Isto diz o Amém, a
Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus.”
Chama-se “Amém”, isto é, “verdade”, porque é a plenitude e a confirmação de
todas as promessas.
“Conheço as tuas obras:
não és frio nem quente.”
Não és inteiramente mau, como o frio, nem fervoroso no bem, como o quente.
“Quem dera fosses frio
ou quente!”
Se fosses frio, talvez a miséria te conduzisse ao arrependimento; se fosses
quente, perseverarias no amor.
“Mas porque és morno, e
não és frio nem quente, estou para vomitar-te da minha boca.”
A tibieza é odiosa a Deus, porque é mistura de amor terreno e celestial. Ser
“vomitado” significa ser expulso da comunhão de Cristo.
“Dizes: sou rico,
enriqueci-me e de nada tenho falta.”
Tal é o soberbo que confia em suas obras e não sente necessidade da graça.
“E não sabes que és
infeliz, miserável, pobre, cego e nu.”
A ignorância de si mesmo é a maior miséria: pensa possuir a luz, mas está nas
trevas.
“Aconselho-te que
compres de mim ouro provado no fogo, para te tornares rico.”
O ouro é a fé purificada pelas tribulações.
“E vestes brancas, para
te vestires e não apareça a vergonha da tua nudez.”
As vestes brancas são as boas obras e a graça do batismo.
“E unguento para
ungires os teus olhos, a fim de que vejas.”
O colírio espiritual é o dom do Espírito Santo, que ilumina os olhos do
coração.
“Eu repreendo e castigo
os que amo; sê zeloso, pois, e arrepende-te.”
A repreensão é sinal do amor divino: “O Senhor corrige aquele a quem ama” (Pr
3,12).
“Eis que estou à porta
e bato.”
Bate quando inspira a conversão; entra quando o coração se abre à graça.
“Se alguém ouvir a
minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele e ele comigo.”
O banquete é a comunhão mística entre Cristo e a alma fiel.
“Ao vencedor concederei
sentar-se comigo em meu trono, assim como eu venci e me sentei com meu Pai em
seu trono.”
A glória dos santos é participar do mesmo reino e juízo de Cristo.
“Quem tem ouvidos, ouça
o que o Espírito diz às Igrejas.”
Como em todas as cartas anteriores, o Espírito fala a uma Igreja, mas ensina a
todas; pois as virtudes e as culpas de cada uma figuram as de toda a Igreja ao
longo dos séculos.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO IV
“Depois destas coisas,
olhei, e eis que uma porta estava aberta no céu.”
Depois de ouvir as exortações
às sete Igrejas, João é introduzido, pela contemplação, na visão das coisas
celestes. A “porta aberta no céu” é Cristo, que, pela fé, se abre aos que o
amam; é também a revelação espiritual, pela qual se desvela ao profeta o
mistério oculto do Reino.
“E a primeira voz que
eu ouvira, como de trombeta, falando comigo, dizia: Sobe até aqui, e
mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas.”
A voz de trombeta é a voz do próprio Cristo, que antes falara “atrás dele”, e
agora o chama para as alturas. Diz “depois destas coisas”, não porque as visões
subsequentes se sucedam no tempo, mas porque pertencem a uma ordem superior de
contemplação.
“Imediatamente fui
arrebatado em espírito, e eis que um trono estava posto no céu, e sobre o trono
um sentado.”
Assim como a mente, transportada em êxtase, se eleva acima dos sentidos, João é
arrebatado “em espírito”. O “trono” designa a firmeza do juízo divino; o
“sentado” é o mesmo Deus onipotente, que repousa em sua imutabilidade eterna.
“E o que estava sentado
tinha a aparência de jaspe e de sardônica.”
O jaspe, pedra translúcida e verde, simboliza a misericórdia e a vida; a
sardônica, vermelha e brilhante, indica a justiça e a paixão. Em Deus, a
clemência e o juízo coexistem inseparavelmente.
“E havia ao redor do
trono um arco-íris semelhante à esmeralda.”
O arco-íris é o sinal do pacto eterno (Gn 9,13): aqui representa a misericórdia
que circunda o juízo, e a esmeralda, de cor verde e viva, indica a esperança
dos eleitos.
“E ao redor do trono
havia vinte e quatro tronos, e sobre eles vinte e quatro anciãos sentados,
vestidos de branco, e nas cabeças coroas de ouro.”
Os vinte e quatro anciãos representam os santos da Antiga e da Nova Lei, ou
seja, os doze patriarcas e os doze apóstolos. As vestes brancas indicam a
pureza; as coroas, a glória do triunfo; os tronos, a participação no juízo
divino.
“E do trono saíam
relâmpagos, vozes e trovões.”
Os relâmpagos manifestam o poder do juízo; as vozes, a pregação dos profetas;
os trovões, os terrores da consciência humana.
“E havia sete lâmpadas
ardentes diante do trono, que são os sete espíritos de Deus.”
Esses sete Espíritos não são sete substâncias distintas, mas a plenitude única
do Espírito Santo, que irradia seus sete dons — sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.
“E diante do trono
havia como que um mar de vidro semelhante ao cristal.”
O mar é a multidão dos fiéis; sua transparência, a pureza das almas que
refletem a luz divina. É chamado “de vidro”, porque, embora sólido, recebe e
reflete a claridade do céu.
“E no meio do trono, e
ao redor do trono, quatro animais cheios de olhos diante e atrás.”
Os quatro animais são os quatro evangelistas, ou também as quatro virtudes
cardeais — prudência, justiça, fortaleza e temperança — que sustentam o trono
de Deus no mundo. São “cheios de olhos”, porque nada há oculto à sabedoria
divina.
“O primeiro animal era
semelhante a um leão; o segundo, a um novilho; o terceiro tinha o rosto como de
homem; e o quarto, era semelhante a uma águia que voa.”
O leão significa Mateus, que inicia seu Evangelho pela realeza de Cristo; o
novilho, Marcos, que descreve o sacrifício do Senhor; o homem, Lucas, que fala
da humanidade e da misericórdia; a águia, João, que se eleva até a contemplação
do Verbo eterno.
No sentido moral, o leão é a fortaleza; o novilho, a paciência; o homem, a
prudência; e a águia, a sabedoria contemplativa.
“E os quatro animais
tinham cada um seis asas, e ao redor e por dentro estavam cheios de olhos.”
As seis asas são os seis períodos do tempo, nos quais o louvor de Deus não
cessa; os olhos por dentro e por fora significam que os santos veem tanto as
realidades interiores do espírito quanto as exteriores das obras.
“E não cessavam de
dizer dia e noite: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus onipotente, que era, que
é e que há de vir.”
O tríplice “Santo” confessa a Trindade; a fórmula “que era, que é e que há de
vir” proclama a eternidade divina.
“E quando os animais
davam glória e honra e ação de graças ao que está sentado no trono, que vive
pelos séculos dos séculos, os vinte e quatro anciãos prostravam-se diante do
que está sentado no trono, adoravam o que vive pelos séculos dos séculos, e
lançavam as suas coroas diante do trono, dizendo:”
A Igreja celestial, representada nos anciãos, atribui toda a glória ao Criador;
as coroas lançadas significam que os méritos dos santos pertencem inteiramente
à graça de Deus.
“Digno és, Senhor e
Deus nosso, de receber glória, honra e poder, porque criaste todas as coisas, e
por tua vontade existem e foram criadas.”
Aqui se conclui a primeira visão: a criação inteira é apresentada como cântico
incessante em louvor ao Criador. A vontade divina é o fundamento e o fim de
todas as criaturas; o universo é, em sua totalidade, uma liturgia ordenada ao
seu Autor.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO V
“E vi, na mão direita
daquele que estava sentado sobre o trono, um livro escrito por dentro e por
fora.”
Esta visão representa os
mistérios da Sagrada Escritura revelados a nós pela Encarnação do Senhor. A
unidade perfeita de ambos os Testamentos — o Antigo e o Novo — encontra-se
simbolizada neste livro: o Antigo está figurado no exterior, e o Novo, no
interior.
“Selado com sete
selos.”
Isto é, coberto pela plenitude dos mistérios ocultos ou inscrito segundo a
disposição do Espírito de sete dons.
“E ouvi um anjo forte
proclamando em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e de romper os seus
selos?”
Aqui se anuncia a pregação da Lei. Muitos profetas e justos desejaram ver o que
os apóstolos viram (Mt 13,17). E sobre esta salvação — como diz Pedro — “os
profetas investigaram e examinaram diligentemente” (1Pd 1,10).
Este é o livro de que fala Isaías: “Será entregue o livro a quem sabe ler,
dizendo: Lê isto; e ele responderá: Não posso, porque está selado” (Is 29,11).
Mas também ali se profetiza a sua abertura: “Naquele dia ouvirão os surdos as
palavras do livro” (Is 29,18).
E Ezequiel confirma: “Vi, e eis que uma mão se estendia para mim, e nela havia
um rolo escrito por dentro e por fora; e estava nele escrito lamentações,
cânticos e ais” (Ez 2,9-10).
Assim, toda a sequência do Antigo e do Novo Testamento ensina que se deve fazer
penitência pelos pecados, buscar o reino celeste e fugir dos prantos infernais.
“E ninguém podia abrir
o livro, nem olhar para ele, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra.”
Nem os anjos, nem os justos, ainda que libertos dos laços da carne, puderam
revelar ou investigar os mistérios da lei divina, nem sequer contemplar o
esplendor da graça do Novo Testamento, assim como os filhos de Israel não
puderam olhar para o rosto de Moisés, portador da Antiga Lei, que continha o
Novo em figura.
“E eu chorava muito
porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ver.”
João, aqui, representa o desejo santo da Igreja, que suspira por compreender as
Escrituras e lamenta o véu que cobre os mistérios da revelação.
“E um dos anciãos
disse-me: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu,
para abrir o livro e romper os seus sete selos.”
O Leão é Cristo, cuja fortaleza venceu o pecado e a morte; e a Raiz de Davi
significa que Ele, segundo a carne, brotou da estirpe de Davi, e, segundo o
espírito, o gerou como seu Senhor.
“E vi, no meio do trono
e dos quatro animais e entre os anciãos, um Cordeiro de pé, como que imolado.”
O Leão é o mesmo que o Cordeiro: forte para vencer, manso para sofrer. Ele está
“de pé”, porque, ressuscitado, vive para sempre; e “como imolado”, porque
perpetuamente apresenta ao Pai o sacrifício de sua paixão.
“Tendo sete chifres e
sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra.”
Os chifres significam o poder invencível; os olhos, a plenitude da sabedoria.
Ambos representam a totalidade do Espírito Santo, cuja operação se estende a
todas as partes do mundo.
“E veio e tomou o livro
da mão direita daquele que estava sentado sobre o trono.”
O Filho recebe do Pai o livro, isto é, manifesta no tempo o que estava oculto
na eternidade. O que o Pai possui por natureza, o Filho revela pela economia da
redenção.
“E quando tomou o
livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do
Cordeiro, tendo cada um harpas e taças de ouro cheias de perfumes, que são as
orações dos santos.”
Os quatro animais — os Evangelhos — e os vinte e quatro anciãos — os dois
Testamentos —, juntos, oferecem louvor ao Cordeiro. As harpas significam a
harmonia das boas obras, e as taças de ouro, o perfume das orações puras.
“E cantavam um cântico
novo, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir os seus selos, porque foste
imolado e com teu sangue resgataste para Deus homens de toda tribo, língua,
povo e nação.”
O “cântico novo” é o louvor da nova graça. Só o Cordeiro é digno de abrir o
livro, porque redimiu a humanidade com o preço do seu sangue.
“E fizeste deles um
reino e sacerdotes para o nosso Deus, e reinarão sobre a terra.”
O Senhor faz dos redimidos um povo real e sacerdotal: reinam, dominando as
paixões; e são sacerdotes, oferecendo-se a si mesmos em sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus.
“E vi e ouvi a voz de
muitos anjos ao redor do trono, dos animais e dos anciãos, e era o número deles
miríades de miríades e milhares de milhares.”
Isto é, todos os exércitos celestes unidos na adoração ao Cordeiro, proclamando
a mesma confissão da Igreja triunfante.
“E diziam em alta voz:
Digno é o Cordeiro que foi imolado de receber poder, e riqueza, e sabedoria, e
fortaleza, e honra, e glória, e bênção.”
Os sete louvores correspondem aos sete dons do Espírito, pelos quais Cristo é
exaltado em sua humanidade glorificada.
“E toda criatura que
está no céu, na terra, debaixo da terra e no mar, e todas as coisas que neles
há, ouvi dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro sejam a
bênção, a honra, a glória e o poder pelos séculos dos séculos.”
Toda criatura, racional e irracional, reconhece o seu Criador; pois, pela redenção,
o universo inteiro é reconduzido à harmonia da vontade divina.
“E os quatro animais
diziam: Amém. E os vinte e quatro anciãos prostravam-se e adoravam o que vive
pelos séculos dos séculos.”
O “Amém” sela a concordância entre o Antigo e o Novo Testamento. Assim, a
Igreja universal, representada nos anciãos e nos Evangelhos, adora eternamente
Aquele que é, que era e que há de vir.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO VI
“E vi quando o Cordeiro
abriu um dos selos.”
Quando os sinais começam a se
soltar, o livro se abre — e, de certo modo, João inverte a ordem habitual. Pois
o Senhor, sofrendo e ressuscitando, ensinou ser Ele o fim da Lei; e, subindo ao
céu, tendo enviado o Espírito Santo, confirmou a Igreja com o dom do mistério
mais secreto.
Então abriu o livro; e agora, um a um, vai rompendo os seus selos. No primeiro
selo, mostra-se o esplendor da Igreja primitiva; nos três seguintes, o triplo
combate que ela sofrerá; no quinto, a glória dos mártires triunfadores; no
sexto, as calamidades dos tempos do Anticristo, retomando o que já fora
indicado; e no sétimo, o início do repouso eterno.
“E ouvi um dos quatro
animais dizendo: Vem e vê.”
Nós também somos exortados, pelas vozes potentes do Evangelho, a contemplar a
glória da Igreja.
“E eis um cavalo
branco.”
O Senhor cavalga a Igreja, que, alva pela graça, triunfa sobre o mundo. Montado
nela, leva armas espirituais contra os ímpios e, vitorioso em seus fiéis,
recebe a coroa. Deste se diz: “Subiste ao alto, cativaste cativeiro, recebeste
dons nos homens” (Sl 67,19). Ele mesmo, que do céu preside, foi perseguido por
Saulo.
“E saiu outro cavalo
vermelho.”
Contra a Igreja vitoriosa sai o cavalo vermelho, isto é, o povo ímpio,
sangrento pelo diabo, seu cavaleiro. Lemos em Zacarias um cavalo vermelho do
Senhor; mas aquele é vermelho de seu próprio sangue, este, do sangue alheio.
“E foi-lhe dado tirar a
paz da terra.”
Tira a sua própria paz — a dos ímpios —, pois a Igreja possui a paz eterna que
Cristo lhe deixou.
“E foi-lhe dado um
grande gládio.”
Ou seja, contra os que prevaricaram da fé, ou contra aqueles a quem o Senhor
permitiu a tentação, para que, provados, fossem purificados.
“E quando abriu o
terceiro selo, ouvi o terceiro animal dizendo: Vem e vê. E eis um cavalo
negro.”
O negro indica os hereges que obscurecem a fé; o cavaleiro, que tem na mão uma
balança, representa os que, disfarçados de juízes, pesam falsamente as obras
dos fiéis.
“E ouvi uma voz no meio
dos quatro animais, dizendo: Uma medida de trigo por um denário, e três medidas
de cevada por um denário; e não danifiques o azeite e o vinho.”
O trigo e a cevada são as Escrituras: o trigo, o sentido espiritual; a cevada,
o literal. Um denário é a única fé. O azeite e o vinho — os sacramentos e a
caridade — não podem ser tocados pelos ímpios.
“E quando abriu o
quarto selo, ouvi a voz do quarto animal dizendo: Vem e vê. E eis um cavalo
pálido.”
O cavalo pálido simboliza a morte: são os ímpios que, sem cor da graça, trazem
consigo a corrupção e o inferno. O nome de seu cavaleiro é “Morte”, e o
“Inferno” o segue — quer dizer, os pecadores que arrastam outros à perdição.
“E foi-lhes dado poder
sobre a quarta parte da terra, para matar com espada, com fome, com peste e
pelas feras da terra.”
A quarta parte indica a limitação de seu poder: nem todos são entregues ao mal,
mas apenas os que consentem. A espada é a perseguição; a fome, a ausência da
Palavra de Deus; a peste, a corrupção dos costumes; as feras, os príncipes e
tiranos cruéis.
“E quando abriu o
quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por causa da
palavra de Deus.”
O altar é Cristo, sob o qual estão as almas dos mártires — não porque estejam
oprimidas, mas porque se fundiram no sacrifício do Senhor.
“E clamavam em alta
voz: Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, não julgas e não vingas o nosso sangue
sobre os que habitam sobre a terra?”
O clamor dos santos é o desejo ardente de ver manifestada a justiça de Deus.
Pedem, não por vingança, mas pela consumação da vitória da verdade.
“E foi-lhes dada a cada
um uma veste branca, e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo,
até que se completasse o número de seus companheiros e irmãos, que haviam de
ser mortos como eles.”
As vestes brancas são o prêmio da imortalidade; o “repousar um pouco” indica
que a glória plena só será concedida quando se consumar o número dos eleitos.
“E quando abriu o sexto
selo, houve um grande terremoto.”
O terremoto é a perturbação universal que precederá o fim dos tempos, quando o
Anticristo vier.
“E o sol se tornou
negro como saco de cilício, e a lua toda se tornou como sangue.”
O sol é Cristo, que será negado pelos ímpios; a lua, a Igreja, manchada pelo
sangue dos mártires.
“E as estrelas do céu
caíram sobre a terra, como a figueira deixa cair seus figos verdes quando é
abalada por um vento forte.”
As estrelas são os doutores que, seduzidos pelo erro, perderão a luz da fé.
“E o céu retirou-se
como um livro que se enrola, e todos os montes e ilhas foram removidos de seus
lugares.”
O céu que se enrola é a dissolução da antiga ordem; montes e ilhas, os reinos e
as igrejas locais que serão abalados.
“E os reis da terra, os
grandes, os ricos, os tribunos, os poderosos, todo escravo e livre se
esconderam nas cavernas e entre as rochas das montanhas.”
Os ímpios buscarão refúgio, mas não encontrarão; as cavernas são as ilusões e
enganos humanos nas quais tentarão se ocultar.
“E diziam aos montes e
às rochas: Caí sobre nós, e escondei-nos da face daquele que está sentado sobre
o trono e da ira do Cordeiro.”
Temerão o juízo divino que não quiseram reconhecer no tempo da misericórdia.
“Porque chegou o grande
dia da sua ira, e quem poderá subsistir?”
Ninguém resistirá, senão os que, lavados no sangue do Cordeiro, foram achados
dignos de permanecer em pé.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO VII
“Depois destas coisas,
vi quatro anjos de pé sobre os quatro cantos da terra, retendo os quatro ventos
da terra.”
Os quatro anjos são os
ministros de Deus que contêm as forças do mundo — isto é, as potências
espirituais encarregadas de manter a ordem da criação. Os quatro ventos
significam os movimentos das tribulações que percorrem todo o orbe. Retêm-nos
porque o castigo final ainda não foi permitido antes que os escolhidos fossem
selados.
“E vi outro anjo subir
do nascente do sol, tendo o selo do Deus vivo.”
O anjo do oriente é Cristo, o Sol da justiça, que vem para selar os seus servos
com o Espírito Santo. O “selo do Deus vivo” é a marca da fé verdadeira,
impressa na fronte dos fiéis pelo dom do Espírito.
“E clamou com grande
voz aos quatro anjos, aos quais fora dado o poder de fazer mal à terra e ao mar,
dizendo: Não façais mal nem à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que
tenhamos assinalado na fronte os servos do nosso Deus.”
A terra, o mar e as árvores representam, respectivamente, os homens carnais, os
inconstantes e os espirituais; e o castigo é suspenso até que todos os
predestinados sejam selados, porque “o Senhor conhece os que são seus” (2Tm 2,
19).
“E ouvi o número dos
assinalados: cento e quarenta e quatro mil selados de todas as tribos dos
filhos de Israel.”
O número 12 multiplicado por 12 e por mil indica a totalidade dos eleitos —
doze apóstolos e doze tribos —, significando a perfeição da Igreja, que se
estende a todas as nações e tempos.
“Da tribo de Judá, doze
mil selados; da tribo de Rúben, doze mil; da tribo de Gade, doze mil...”
A enumeração das tribos não se deve entender segundo a carne, mas
espiritualmente. Judá vem primeiro porque Cristo nasceu dessa tribo; Dã é
omitida por ter prefigurado o Anticristo; e Levi, que na antiga lei não possuía
herança, aqui é contado, porque participa da herança celestial.
“Depois destas coisas,
vi uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos,
povos e línguas, de pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos com
vestes brancas e com palmas nas mãos.”
Após o número simbólico dos selados, mostra-se a multidão incontável dos
salvos. As vestes brancas representam a pureza e a glória; as palmas, a vitória
da fé sobre o mundo.
“E clamavam em alta
voz, dizendo: A salvação pertence ao nosso Deus, que está assentado no trono, e
ao Cordeiro.”
A multidão, unida à Igreja triunfante, reconhece que toda a salvação vem
somente de Deus e de Cristo.
“E todos os anjos
estavam em redor do trono, dos anciãos e dos quatro animais; e prostraram-se
sobre os seus rostos diante do trono, e adoraram a Deus, dizendo: Amém. A
bênção, e a glória, e a sabedoria, e a ação de graças, e a honra, e o poder, e
a fortaleza ao nosso Deus pelos séculos dos séculos.”
Aqui a liturgia celeste se torna plena: os sete louvores expressam a plenitude
do culto que toda a criação presta ao Criador.
“E respondeu um dos
anciãos, dizendo-me: Estes que estão vestidos de vestes brancas, quem são e de
onde vieram?”
O ancião pergunta não para ignorar, mas para que o profeta explique aos fiéis o
mistério da visão.
“E eu disse-lhe:
Senhor, tu o sabes. E ele disse-me: Estes são os que vieram da grande
tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro.”
São os mártires e os penitentes que, purificados pelo sofrimento e pela graça,
participam da glória do Cordeiro. Lavaram-se no sangue, não pelo mérito humano,
mas pela redenção divina.
“Por isso estão diante
do trono de Deus e o servem dia e noite no seu templo; e aquele que está
sentado no trono habitará entre eles.”
Estar “diante do trono” é permanecer na visão beatífica; servir “dia e noite” é
oferecer incessantemente o louvor da caridade perfeita.
“Não terão mais fome,
nem sede, e o sol não cairá sobre eles, nem ardor algum.”
Isto é, não mais serão atormentados pelas necessidades ou tentações do corpo, nem
pelo calor das paixões.
“Porque o Cordeiro, que
está no meio do trono, os apascentará e os conduzirá às fontes das águas da
vida.”
O próprio Cristo é o Pastor e a fonte: conduz os santos à plenitude da verdade
e da alegria eterna.
“E Deus enxugará toda lágrima
de seus olhos.”
A visão de Deus é a supressão de toda dor; quando o finito é absorvido pela luz
do Infinito, a memória do sofrimento se converte em gozo eterno.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO VIII
“E, quando o Cordeiro
abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por quase meia hora.”
O sétimo selo contém a
plenitude do mistério divino: após a consumação dos seis períodos da história,
vem o repouso do sétimo — figura do descanso eterno.
O silêncio no céu é o repouso dos santos após as tribulações, ou a contemplação
admirada dos anjos e dos justos ante os juízos de Deus.
“Por quase meia hora” significa que esse repouso ainda é incompleto, pois a
glória plena só virá após o juízo final.
Na liturgia da Igreja, esse silêncio corresponde ao recolhimento que precede a
proclamação das palavras divinas — um intervalo em que o Céu e a terra esperam
a manifestação da justiça eterna.
“E vi os sete anjos que
estavam de pé diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas.”
As sete trombetas simbolizam os sete anúncios proféticos da pregação, pelos
quais o Espírito desperta o mundo ao arrependimento. Assim como as trombetas
dos sacerdotes derrubaram as muralhas de Jericó (Js 6,20), assim a pregação
apostólica derruba as fortalezas do pecado.
“E veio outro anjo e
pôs-se junto ao altar, tendo um turíbulo de ouro; e foi-lhe dado muito incenso,
para oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que
está diante do trono.”
O anjo é o próprio Cristo, Sumo Sacerdote da Nova Aliança, que oferece ao Pai o
perfume de suas orações unidas às dos santos. O incenso é a intercessão
perfeita de Cristo, que faz subir a oração humana como aroma agradável.
“E a fumaça do incenso
subiu, com as orações dos santos, da mão do anjo diante de Deus.”
A oração da Igreja sobe até Deus pela mediação de Cristo: o incenso que se
eleva é a voz da fé que se torna sacrifício espiritual.
“E o anjo tomou o
turíbulo, encheu-o do fogo do altar, e lançou-o sobre a terra; e houve trovões,
vozes, relâmpagos e um terremoto.”
O fogo do altar é o zelo divino, que purifica e julga. O lançar do fogo à terra
representa o envio do Espírito Santo e também a pregação apostólica, que
inflama os corações ou os condena conforme a disposição interior. Os trovões e
relâmpagos são os efeitos da Palavra: iluminam, mas também apavoram; convertem,
mas ferem.
“E os sete anjos que
tinham as sete trombetas prepararam-se para tocá-las.”
Os anjos são as ordens da Igreja e os ministros da Palavra, preparados para
anunciar, em cada época, os juízos de Deus.
“E o primeiro anjo
tocou a trombeta, e houve granizo e fogo misturado com sangue, e foi lançado
sobre a terra; e a terça parte da terra foi queimada, a terça parte das árvores
foi queimada, e toda a erva verde foi queimada.”
O granizo e o fogo com sangue significam as pregações severas que ferem os
corações duros, a perseguição e a morte dos santos. A “terça parte” mostra que
o castigo não é total, mas pedagógico. A terra é a carne endurecida; as
árvores, os grandes do mundo; a erva verde, os pequenos e humildes — todos atingidos
em parte pela ira que desperta a conversão.
“E o segundo anjo tocou
a trombeta, e algo como uma grande montanha ardendo em fogo foi lançada no mar;
e a terça parte do mar tornou-se em sangue, e morreu a terça parte das
criaturas que estavam no mar, que tinham vida; e a terça parte dos navios foi
destruída.”
A montanha ardente é o Anticristo, ou toda potência soberba que se ergue contra
Deus; lançada no mar, isto é, entre os povos, ela corrompe os costumes,
tornando o mar em sangue — sinal da violência e do martírio. Os “navios” são as
comunidades humanas e os corações que transportam as riquezas da fé; muitos
naufragam na impiedade.
“E o terceiro anjo
tocou a trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e
caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas; e o nome da
estrela é Absinto; e a terça parte das águas tornou-se absinto, e muitos homens
morreram das águas, porque se tornaram amargas.”
A estrela caída é o espírito de engano — ou um doutor que, decaído da verdade,
transforma em veneno o que deveria ser doutrina de vida. O absinto é o amargor
da heresia, que corrompe a doçura do Evangelho e causa a morte espiritual
daqueles que bebem de suas águas.
“E o quarto anjo tocou
a trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, a terça parte da lua e a terça
parte das estrelas, para que se escurecesse a terça parte deles, e o dia não
brilhasse em sua terça parte, e a noite do mesmo modo.”
O escurecimento dos luminares é o eclipse da fé e da ciência divina no mundo. O
sol é Cristo, a lua é a Igreja, e as estrelas são os doutores: quando a fé é
ferida pela negligência ou pelo erro, o mundo mergulha em trevas espirituais.
“E olhei, e ouvi uma
águia voando pelo meio do céu, dizendo em alta voz: Ai, ai, ai dos que habitam
sobre a terra, por causa dos toques das trombetas dos três anjos que ainda
devem tocar!”
A águia é a voz profética — ou o próprio João — que anuncia as desolações que
virão. Os três “ais” correspondem às três últimas trombetas, que revelam as
provações mais severas, espirituais e infernais, que ainda restam à humanidade
antes da vinda do Juiz.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO IX
“E o quinto anjo tocou
a trombeta, e vi uma estrela caída do céu na terra; e foi-lhe dada a chave do
poço do abismo.”
A estrela caída é o anjo decaído
— Lúcifer — ou ainda qualquer doutor soberbo que, abandonando a luz da verdade,
recebe poder para abrir o abismo da perdição.
A chave do abismo é a permissão de Deus: pois nem mesmo os espíritos malignos
agem sem o consentimento divino, e tudo o que fazem concorre para o desígnio
oculto da justiça eterna.
“E abriu o poço do
abismo, e subiu fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha; e o sol e
o ar se escureceram com a fumaça do poço.”
A fumaça é a nuvem das heresias e enganos que obscurecem a luz do Evangelho; o
sol, Cristo; o ar, o entendimento espiritual dos homens. Quando a heresia se
ergue, o ar se torna espesso, e a mente humana, ofuscada, não distingue o
verdadeiro do falso.
“E da fumaça saíram
gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder como o poder que têm os
escorpiões da terra.”
Os gafanhotos são os espíritos enganadores e os falsos mestres; saltam e voam,
porque se elevam nas palavras e nos afetos, mas carecem de raiz. Têm poder de
escorpiões, porque ferem com a cauda, isto é, com o fim da sua doutrina:
prometem liberdade e entregam morte.
“E foi-lhes dito que
não fizessem dano à erva da terra, nem a qualquer coisa verde, nem a árvore
alguma, mas somente aos homens que não têm o selo de Deus em suas frontes.”
Não podem prejudicar os justos nem os que estão selados pelo Espírito Santo,
mas apenas os infiéis e os tíbios, que se tornaram presa do erro. Assim como o
Egito foi ferido e Israel poupado, também aqui a fé é muralha para os selados.
“E foi-lhes permitido
que não os matassem, mas que os atormentassem por cinco meses; e o tormento era
como o tormento do escorpião quando fere o homem.”
Os cinco meses indicam o tempo limitado da tentação, ou o curso dos cinco
sentidos, pelos quais a alma sofre quando se entrega aos desejos carnais. Não
matam, porque a heresia não destrói a natureza, mas fere a alma com erro e
inquietude.
“E naqueles dias os
homens buscarão a morte, e não a acharão; desejarão morrer, e a morte fugirá
deles.”
O desespero dos ímpios é tal que, tendo perdido a vida da graça, anseiam por
aniquilar-se — mas nem mesmo essa morte lhes é concedida, pois a pena de viver
sem Deus é o próprio inferno antecipado.
“E a aparência dos
gafanhotos era semelhante a cavalos preparados para a guerra; e sobre as suas
cabeças havia como coroas semelhantes ao ouro; e os seus rostos eram como
rostos de homens; e tinham cabelos como cabelos de mulheres; e os seus dentes
eram como dentes de leões.”
São descritos com figuras de força e sedução: a forma de cavalos indica o
ímpeto da paixão; as coroas fingidas representam o orgulho; o rosto humano, a
pretensa racionalidade; o cabelo feminino, a lascívia; os dentes de leão, a
crueldade e o poder de devorar almas.
“E tinham couraças como
couraças de ferro, e o ruído das suas asas era como o ruído de carros, de
muitos cavalos correndo para a batalha.”
As couraças de ferro simbolizam a obstinação: não recebem a correção. O ruído
das asas é a verbosidade das palavras vãs — o tumulto das seitas e dos falsos
pregadores.
“E tinham caudas
semelhantes às dos escorpiões, e havia nas suas caudas ferrões; e o seu poder
era de fazer dano aos homens por cinco meses.”
A cauda, que fere por trás, é o fim enganoso da doutrina herética: começa com
aparente piedade e termina em veneno. Os cinco meses repetem o limite temporal
do castigo, mostrando que a provação, embora terrível, é passageira.
“E tinham sobre si como
rei o anjo do abismo, cujo nome em hebraico é Abaddon, e em grego, Apoliom; em
latim, Exterminador.”
Este é o próprio diabo, chefe de todos os que se perdem, cujo nome significa
destruição. Ele é rei, mas apenas sobre os filhos da desobediência; reina para
perder, não para salvar.
“O primeiro ai passou;
eis que vêm ainda dois ais depois destas coisas.”
Com o fim da quinta trombeta, termina a primeira série de provações
espirituais; restam ainda dois ais — um temporal e outro eterno — que desabarão
sobre os ímpios.
“E o sexto anjo tocou a
trombeta, e ouvi uma voz vinda das quatro pontas do altar de ouro que está
diante de Deus, dizendo ao sexto anjo, que tinha a trombeta: Solta os quatro
anjos que estão presos junto ao grande rio Eufrates.”
A voz que vem do altar é a voz da justiça divina que determina o juízo. O rio
Eufrates, que significa “fecundo”, simboliza o limite das nações; os quatro
anjos são as potências destrutivas que Deus retém até o tempo oportuno — sejam
demônios, sejam exércitos de povos bárbaros.
“E foram soltos os
quatro anjos, que estavam preparados para a hora, o dia, o mês e o ano, para
matarem a terça parte dos homens.”
O tempo exato mostra que nada se dá ao acaso: a Providência dispõe até mesmo a
hora da destruição dos ímpios. A terça parte, como antes, indica o castigo
parcial: a punição vem para corrigir, não para aniquilar.
“E o número do exército
dos cavaleiros era de duzentos milhões; e ouvi o seu número.”
O número excessivo representa a multidão incontável dos demônios e dos homens
perversos que se associam ao mal.
“E assim vi os cavalos
na visão, e os que sobre eles montavam, tendo couraças de fogo, de jacinto e de
enxofre; e as cabeças dos cavalos eram como cabeças de leões, e da sua boca
saíam fogo, fumaça e enxofre.”
A tríplice figura — fogo, fumaça e enxofre — indica os três modos pelos quais o
mal destrói: o fogo, pela ira; a fumaça, pela confusão do erro; o enxofre, pela
corrupção da luxúria.
As cabeças de leão designam a ferocidade e o orgulho.
“Por estas três pragas
foi morta a terça parte dos homens, pelo fogo, pela fumaça e pelo enxofre que
saíam da sua boca.”
A boca é o instrumento da doutrina: pelos falsos ensinamentos, os homens
perecem. Assim também está escrito: “A língua é um fogo, um mundo de
iniquidade” (Tg 3,6).
“Porque o poder dos
cavalos estava na sua boca e nas suas caudas; porque as suas caudas eram
semelhantes a serpentes, e tinham cabeças, e com elas faziam dano.”
O veneno das serpentes indica a duplicidade dos maus mestres: enganam com a
palavra (boca) e corrompem com o exemplo (cauda).
“E os outros homens,
que não foram mortos por estas pragas, não se arrependeram das obras de suas
mãos, para não adorarem os demônios e os ídolos de ouro, de prata, de bronze,
de pedra e de madeira, que não podem ver, nem ouvir, nem andar.”
Mesmo após tantos castigos, a cegueira espiritual persiste: adoram as obras de
suas próprias mãos — imagem da autossuficiência humana, que substitui Deus pela
técnica, pela glória ou pela razão corrompida.
“E não se arrependeram
de seus homicídios, nem de suas feitiçarias, nem de sua fornicação, nem de seus
furtos.”
Esses quatro vícios resumem todas as formas de corrupção social e espiritual: a
violência (homicídios), o engano (feitiçarias), o prazer desordenado
(fornicação) e a cobiça (furtos). Assim se encerra a sexta trombeta — o
penúltimo ai —, quando a humanidade, endurecida, recusa a penitência.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO X
“E vi outro anjo forte
descendo do céu, vestido de uma nuvem, e o arco-íris sobre a sua cabeça; e o
seu rosto era como o sol, e os seus pés como colunas de fogo.”
O anjo forte é Cristo — não em
figura de fragilidade, como Cordeiro imolado, mas como Senhor glorioso e Juiz
do universo. A “nuvem” em que vem significa a carne assumida: assim como a
nuvem tempera o fulgor do sol, a humanidade de Cristo tornou suportável aos
homens a divindade inacessível.
O “arco-íris sobre a cabeça” é o sinal da aliança eterna: Cristo é a ponte de reconciliação
entre Deus e os homens, como um arco que liga a terra ao céu.
O rosto, “como o sol”, indica o esplendor da verdade divina, e os pés, “como
colunas de fogo”, mostram a firmeza dos Apóstolos e doutores que, iluminados
pelo Espírito, sustentam a Igreja e consomem as impurezas do mundo.
“E tinha na sua mão um
livrinho aberto.”
Este livrinho é o Evangelho de Cristo, que outrora estava selado, mas agora é
aberto a todos os povos. O livro grande estava selado, porque as figuras da Lei
e os mistérios do Antigo Testamento estavam ainda velados; mas o livrinho é
aberto, porque na encarnação do Verbo as Escrituras são desvendadas.
O livro “pequeno” indica que o mistério do Reino é simples e acessível aos
humildes: “Eu te louvo, ó Pai, porque ocultaste estas coisas aos sábios e
prudentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).
“E pôs o pé direito
sobre o mar e o esquerdo sobre a terra.”
O mar e a terra significam, respectivamente, os povos gentios e o povo judeu.
Ao colocar um pé sobre cada um, Cristo manifesta o seu domínio universal e o
poder do Evangelho sobre todos os povos.
O pé direito sobre o mar indica que o Evangelho floresceu principalmente entre
os gentios; o esquerdo sobre a terra, que também entre os judeus alguns creram.
“E clamou com grande
voz, como ruge o leão; e, quando clamou, sete trovões fizeram ouvir as suas
vozes.”
O rugido do leão é a pregação apostólica que procede da força do Leão de Judá.
Os sete trovões são os sete dons do Espírito Santo, que confirmam a voz do
Evangelho com poder.
Alguns Padres entenderam esses trovões como os sete decretos ocultos de Deus
sobre os acontecimentos finais, ou os sete modos pelos quais a Palavra toca a
consciência humana: advertindo, instruindo, consolando, corrigindo, prometendo,
ameaçando e julgando.
“E, quando os sete
trovões falaram as suas vozes, eu ia escrever; mas ouvi uma voz do céu que me
dizia: Sela o que falaram os sete trovões, e não o escrevas.”
Mostra-se aqui que há segredos divinos que não devem ser revelados. João, que
fora mandado escrever o que via, é agora proibido de registrar certas coisas,
para indicar que o conhecimento do fim último pertence somente a Deus.
A Igreja é instruída a compreender que não lhe foi dado saber o tempo nem os
detalhes do juízo, mas apenas viver em vigilância e fidelidade.
“E o anjo que vi de pé
sobre o mar e sobre a terra levantou a mão ao céu, e jurou por aquele que vive
pelos séculos dos séculos, que criou o céu e o que nele há, e a terra e o que
nela há, e o mar e o que nele há: que já não haveria mais tempo.”
O levantar da mão é sinal de autoridade e de juramento. Cristo jura por si
mesmo — pois não há outro maior — que “não haverá mais tempo”, isto é, que o
tempo da paciência e do mistério se completará; não que cesse o movimento do
cosmos, mas que se concluirá a história do desígnio divino.
Quando a plenitude da Igreja for atingida e o número dos eleitos se completar,
o tempo, enquanto espera, se extinguirá, e virá a eternidade.
“Mas nos dias da voz do
sétimo anjo, quando ele estiver para tocar a trombeta, se consumará o mistério
de Deus, como anunciou aos seus servos, os profetas.”
O “mistério de Deus” é a economia da salvação: tudo o que os profetas
anunciaram, o que os apóstolos pregaram e o que a Igreja esperou, será então
realizado. O que era esperança se tornará visão, e o que era fé se converterá
em glória.
“E a voz que eu ouvi do
céu falou outra vez comigo e disse: Vai, toma o livrinho aberto da mão do anjo
que está de pé sobre o mar e sobre a terra.”
O profeta é chamado a participar do mistério que vê. A ordem de “tomar o livro”
significa receber interiormente a Palavra de Deus; é o convite à contemplação e
à assimilação da verdade.
“E fui ao anjo,
dizendo-lhe que me desse o livrinho. E ele disse-me: Toma-o e come-o; ele te
amargará o ventre, mas na tua boca será doce como o mel.”
Comer o livro é meditar profundamente a Palavra. Ela é doce na boca, porque
consola o espírito que a acolhe; mas é amarga nas entranhas, porque corrige,
exige renúncia e fere o coração com a dor do pecado.
Assim também Ezequiel comeu o rolo que lhe foi dado (Ez 3,2-3): doce ao
paladar, mas amargo na missão de anunciar a correção ao povo obstinado.
“E tomei o livrinho da
mão do anjo e comi-o; e na minha boca era doce como o mel, e, depois que o
comi, o meu ventre ficou amargo.”
O profeta experimenta em si a dupla força da revelação: alegria e dor. A
alegria, porque a verdade ilumina; a dor, porque o homem, iluminado, vê a
própria miséria e a obstinação do mundo.
“E foi-me dito: Importa
que ainda profetizes a muitos povos, e nações, e línguas, e reis.”
Depois de comer o livro, João é enviado novamente: o alimento recebido se torna
missão. A Palavra, quando assimilada, deve ser anunciada; quem contempla o
mistério é chamado a traduzi-lo em pregação.
Assim, o ciclo do Apocalipse se renova: o profeta que recebeu o livro agora se
torna, ele mesmo, o livro vivo do testemunho de Deus.
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO XI
“E foi-me dada uma cana
semelhante a uma vara, e foi-me dito: Levanta-te e mede o templo de Deus, o
altar e os que nele adoram.”
A cana é o juízo da reta
doutrina, com o qual se mede a fé e a vida dos fiéis.
O “templo” é a Igreja; o “altar”, Cristo; e “os que adoram” são os santos, cuja
adoração é em espírito e verdade. Medir o templo é discernir o que pertence a
Deus e o que é profano. Assim o profeta Ezequiel também mediu o templo (Ez 40),
significando a purificação e restauração do culto verdadeiro.
“Mas o átrio que está
fora do templo deixa de fora e não o meças, porque foi dado aos gentios; e hão
de pisar a cidade santa por quarenta e dois meses.”
O átrio exterior representa os falsos cristãos, que estão próximos da Igreja
visível, mas não participam de sua santidade interior. Os “gentios” que o
profanam são os mundanos e heréticos que, no tempo do Anticristo, dominarão exteriormente
a cristandade.
Os quarenta e dois meses — isto é, mil duzentos e sessenta dias — simbolizam o
tempo da perseguição final, correspondente aos “três anos e meio” de Daniel e
do Apocalipse: a metade de sete, porque será tempo de tribulação incompleta,
permitida, mas contida pela Providência.
“E darei poder às
minhas duas testemunhas, e profetizarão por mil duzentos e sessenta dias,
vestidas de saco.”
As duas testemunhas são as figuras do testemunho fiel: muitos Padres viram
nelas Henoc e Elias,
que não conheceram a morte e voltarão a pregar antes do fim; outros as
interpretam como a Lei e o
Evangelho, ou como a Igreja
e o Espírito Santo. Vestidas de saco, porque pregam em tempo de
penitência e dor.
O número dos dias é o mesmo do domínio do Anticristo: o bem e o mal coexistem
até que o juízo os separe.
“Estas são as duas
oliveiras e os dois castiçais que estão diante do Senhor da terra.”
A imagem vem de Zacarias (4,3): as oliveiras são fontes de unção espiritual —
os profetas e doutores; os castiçais, os que difundem a luz divina. Permanecem
“diante do Senhor”, pois toda sua força vem da presença de Deus.
“E se alguém lhes
quiser fazer mal, sairá fogo da sua boca e devorará os seus inimigos.”
O fogo é a Palavra de Deus, viva e eficaz, que consome a impiedade. Assim Elias
fez descer fogo do céu sobre os soldados do rei (2Rs 1,10), e Jeremias recebeu
de Deus boca ardente (Jr 5,14).
“Estes têm poder de
fechar o céu, para que não chova nos dias da sua profecia; e têm poder sobre as
águas, para convertê-las em sangue, e para ferir a terra com toda sorte de
pragas, todas as vezes que quiserem.”
A chuva é a graça da doutrina; fecham o céu quando a palavra é recusada e a
graça se retira. Converter as águas em sangue é transformar os prazeres e bens
do mundo em instrumento de juízo. As pragas são os castigos espirituais que
atingem o coração endurecido.
“E, quando tiverem
concluído o seu testemunho, a besta que sobe do abismo lhes fará guerra, e os
vencerá, e os matará.”
A besta é o Anticristo, que procede do abismo do inferno e, por breve tempo,
parecerá triunfar sobre os santos. Sua vitória é apenas aparente: vence no
corpo, mas é vencido na alma.
“E os seus corpos
jazerão na praça da grande cidade, que espiritualmente se chama Sodoma e Egito,
onde também o seu Senhor foi crucificado.”
A “grande cidade” é o mundo infiel — Sodoma, pela luxúria; Egito, pela
idolatria; Jerusalém, pela hipocrisia. Nela o Senhor foi crucificado e nela
seus servos são perseguidos.
“E homens de diversos
povos, tribos, línguas e nações verão seus corpos por três dias e meio, e não
permitirão que sejam sepultados.”
Os três dias e meio simbolizam o curto tempo de aparente derrota da verdade: o
mesmo número fracionário do domínio do mal. Não são sepultados, porque os
ímpios se regozijam em sua morte e zombam da fé.
“E os habitantes da
terra se alegrarão sobre eles e se regozijarão, e enviarão presentes uns aos
outros, porque estes dois profetas atormentaram os que habitam sobre a terra.”
Os mundanos se regozijam quando a voz profética se cala, porque a verdade lhes
é incômoda. A alegria deles é o sinal de sua cegueira; celebram a queda da luz
como vitória da noite.
“E depois daqueles três
dias e meio, o espírito de vida vindo de Deus entrou neles, e puseram-se de pé,
e grande temor caiu sobre os que os viram.”
A ressurreição das testemunhas representa o triunfo final da Igreja e da
verdade. O “espírito de vida” é a graça que reanima os santos, e o “temor” dos
ímpios é o reconhecimento tardio da justiça divina.
“E ouviram uma grande
voz do céu, dizendo-lhes: Subi cá. E subiram ao céu em uma nuvem, e os seus
inimigos os viram.”
O arrebatamento simboliza a glorificação dos justos: a nuvem é o veículo da
ascensão espiritual, e o olhar impotente dos inimigos é a derrota do orgulho
humano diante da glória de Deus.
“E naquela hora houve
um grande terremoto, e caiu a décima parte da cidade, e foram mortos no
terremoto sete mil homens; e os restantes ficaram atemorizados e deram glória
ao Deus do céu.”
O terremoto é o abalo do mundo pelo juízo divino. A “décima parte” caída indica
que nem todos perecem, mas apenas o número suficiente para despertar o temor. O
resto, atemorizado, converte-se: o castigo torna-se instrumento de
misericórdia.
“O segundo ai passou;
eis que o terceiro ai vem depressa.”
O segundo ai é a grande perseguição e o martírio das testemunhas; o terceiro é
o juízo final, que se aproxima.
“E o sétimo anjo tocou
a trombeta, e houve grandes vozes no céu, dizendo: O reino do mundo passou a
ser do nosso Senhor e do seu Cristo, e Ele reinará pelos séculos dos séculos.”
Aqui se consuma o mistério: o poder do mundo é suplantado pelo domínio de Deus.
O “reino deste mundo” — fragmentado e passageiro — cede lugar ao Reino eterno
de Cristo.
“E os vinte e quatro
anciãos, que estão sentados diante de Deus em seus tronos, prostraram-se sobre
seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus
onipotente, que és, e que eras, porque tomaste o teu grande poder e começaste a
reinar.”
Os vinte e quatro anciãos — as doze tribos e os doze apóstolos — representam a
totalidade do povo eleito. Dão graças porque o poder de Deus, que sempre
existiu, agora se manifesta em plenitude.
“E iraram-se as nações,
e veio a tua ira, e o tempo dos mortos para serem julgados, e o de dares o
galardão aos teus servos, os profetas e os santos, e aos que temem o teu nome,
pequenos e grandes, e de destruir os que destroem a terra.”
Este é o juízo final: a ira de Deus contra os ímpios e o prêmio dos justos.
“Destruir os que destroem a terra” é purificar o mundo da corrupção dos que o
tornaram sepulcro.
“E abriu-se o templo de
Deus no céu, e apareceu a arca do seu testamento no templo, e houve relâmpagos,
vozes, trovões, terremoto e grande saraiva.”
O templo aberto é a revelação do céu, e a arca do testamento é Cristo, em quem
se cumpre toda promessa. Os relâmpagos e trovões são os sinais da presença
divina, que, agora sem véus, se manifesta em glória e justiça.
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO I
“E apareceu no céu um
grande sinal: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e na
cabeça uma coroa de doze estrelas.”
A mulher é a Igreja,
resplandecente pela presença de Cristo, o Sol da justiça. Está vestida de sol
porque reveste-se da luz da fé e da caridade divinas. A lua sob os pés
significa o domínio sobre o mutável e o terreno — a Igreja pisa o que muda,
permanece firme sobre o que passa.
A coroa de doze estrelas é a plenitude do testemunho apostólico: as doze tribos
espirituais da nova Israel. A mulher celeste é a comunidade dos fiéis, mas
também a figura da Virgem Maria, em quem a Igreja encontra o seu arquétipo.
“E estando grávida,
gritava com as dores de parto e sofria tormentos para dar à luz.”
A Igreja gera Cristo em seus membros — por isso geme em dores de parto. As
dores são as tribulações, perseguições e lutas internas; mas o fruto é a
conversão das almas. Maria sofreu corporalmente ao dar à luz o Verbo feito
carne; a Igreja sofre espiritualmente ao dar Cristo ao mundo.
“E apareceu outro sinal
no céu: eis um grande dragão vermelho, tendo sete cabeças e dez chifres, e
sobre as cabeças sete diademas.”
O dragão é o diabo e, ao mesmo tempo, o império da impiedade. Vermelho pelo
sangue e pela fúria, tem sete cabeças porque ataca em toda plenitude de
malícia; dez chifres, porque exerce poder sobre o mundo inteiro. Os sete
diademas simbolizam os reinos terrenos corrompidos pela soberba.
A luta entre a mulher e o dragão é a história da salvação: a graça contra a
força, o espírito contra a carne.
“E a sua cauda arrastou
a terça parte das estrelas do céu e lançou-as sobre a terra.”
As estrelas são os anjos decaídos — ou os homens que, tendo recebido luz,
perderam-na por orgulho. Lançados à terra, tornam-se amantes do que é terreno.
A “terça parte” indica número incompleto, pois o diabo nunca possui domínio
total sobre a criação.
“E o dragão pôs-se
diante da mulher que estava para dar à luz, para devorar o seu filho quando o
tivesse dado à luz.”
Desde o princípio, o inimigo busca destruir o Cristo — no nascimento de Jesus
por meio de Herodes, e depois em cada fiel recém-nascido pela fé. O dragão
aguarda para devorar o fruto, mas o poder divino o impede.
“E deu à luz um filho
varão, que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi
arrebatado para Deus e para o seu trono.”
O “filho varão” é Cristo, e também cada membro fiel que vence o mundo pela
força da fé. A vara de ferro é a justiça inflexível do juízo.
O arrebatamento ao trono significa a ascensão de Cristo e, por extensão, o
triunfo da Igreja espiritual — pois o que é gerado pela graça não permanece no mundo,
mas é elevado ao céu.
“E a mulher fugiu para
o deserto, onde tem um lugar preparado por Deus, para que ali a sustentem por
mil duzentos e sessenta dias.”
O deserto é o estado peregrino da Igreja neste mundo — lugar de solidão,
provação e alimento espiritual. Os mil duzentos e sessenta dias representam
novamente o tempo simbólico da luta entre o bem e o mal, a metade do ciclo
perfeito dos sete tempos.
A Igreja é sustentada por Deus na aridez, alimentada com o pão do céu e
escondida do olhar dos perseguidores.
“E houve uma batalha no
céu: Miguel e os seus anjos lutavam contra o dragão; e o dragão e os seus anjos
pelejavam.”
Esta guerra é a luta invisível entre a verdade e o erro, entre a fé e a
rebelião. Miguel — cujo nome significa Quem
como Deus? — é o símbolo da hierarquia angélica e da Igreja
militante. Cada vitória espiritual é uma participação nesta guerra celeste.
“Mas não prevaleceram,
nem mais se achou o seu lugar no céu.”
O diabo é expulso da presença de Deus — isto é, perde o domínio espiritual
sobre as almas redimidas. O “céu” aqui é o coração purificado, onde o mal não
pode habitar.
“E foi precipitado o
grande dragão, a antiga serpente, chamada diabo e satanás, que engana todo o
mundo; foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.”
É o mesmo adversário do Gênesis, agora desmascarado: a serpente que enganou Eva
é o dragão que persegue a Igreja. A “terra” é o domínio do homem carnal, onde o
mal encontra abrigo.
“E ouvi uma grande voz
no céu, que dizia: Agora veio a salvação, e o poder, e o reino do nosso Deus, e
a autoridade do seu Cristo; porque foi lançado fora o acusador de nossos
irmãos, o que os acusava diante do nosso Deus dia e noite.”
Aqui se celebra a vitória pascal. O acusador é vencido pelo sangue do Cordeiro
e pelo testemunho dos santos. O título “acusador” recorda o papel de Satanás
como aquele que distorce a justiça; sua queda marca a instauração definitiva do
Reino de Cristo.
“E eles o venceram pelo
sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram, e não amaram a sua
vida até à morte.”
O sangue do Cordeiro é a força da redenção; o testemunho dos mártires é a
aplicação viva desse sangue na história. “Não amaram a sua vida até à morte” —
a verdadeira vitória é o desprezo do mundo por amor de Deus.
“Por isso alegrai-vos,
ó céus, e vós que neles habitais! Ai da terra e do mar, porque o diabo desceu a
vós com grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta.”
O diabo, sabendo-se derrotado, intensifica a sua ação: o desespero de sua ruína
torna-se fúria contra os homens. O “pouco tempo” é o tempo da Igreja militante
— breve à luz da eternidade, mas intenso em provações.
“E, quando o dragão viu
que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho varão.”
O ódio contra a Igreja é o reflexo do ódio contra Cristo. Desde os primeiros
séculos até o fim, a perseguição é o selo da verdade.
“E foram dadas à mulher
duas asas de grande águia, para que voasse ao deserto, ao seu lugar, onde é
sustentada fora da presença da serpente, por um tempo, e tempos, e metade de um
tempo.”
As duas asas são a fé e a caridade, que elevam a alma acima do mundo. O “tempo,
tempos e metade de um tempo” é o mesmo símbolo trinitário da duração da
tribulação: três e meio, metade do sete, indicando a incompletude do mal.
“E a serpente lançou de
sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para a fazer arrebatar pela
corrente.”
A água é a torrente de falsas doutrinas e perseguições, com as quais o inimigo
tenta submergir a Igreja.
“Mas a terra ajudou a
mulher, e a terra abriu a sua boca e engoliu o rio que o dragão lançara de sua
boca.”
A “terra” aqui é a humanidade simples e fiel — o povo que, mesmo sem poder,
recebe e acolhe a verdade, impedindo que o engano triunfe. Assim Deus utiliza
até as realidades do mundo para proteger os seus.
“E o dragão irou-se
contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua descendência, aos que
guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus.”
A descendência da mulher são todos os fiéis — os santos, os confessores, os
mártires —, os quais o dragão não pode vencer, mas persegue até o fim dos
tempos.
“E o dragão pôs-se
sobre a areia do mar.”
A “areia do mar” são as multidões inconstantes e mundanas, nas quais o mal
busca fundar o seu império. Daqui surgirá, no capítulo seguinte, a besta que
sobe do mar — a personificação política e visível do poder anticrístico.
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO II
“E vi subir do mar uma
besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez
diademas, e sobre as suas cabeças nomes de blasfêmia.”
A besta que sobe do mar é o
império do Anticristo, que nasce da agitação dos povos — o mar representa as
nações tumultuosas. As sete cabeças são a totalidade dos reinos sobre os quais
ele exerce domínio, e os dez chifres, as potências menores que o sustentam.
Os nomes de blasfêmia indicam que seu poder se ergue contra Deus, atribuindo a
si mesmo o que pertence ao Criador.
“E a besta que vi era
semelhante a um leopardo, e os seus pés como de urso, e a sua boca como boca de
leão.”
O leopardo, o urso e o leão são símbolos dos impérios anteriores descritos por
Daniel (Dn 7): a Babilônia, a Pérsia e a Grécia. Assim, o Anticristo reúne em
si a ferocidade, a astúcia e a soberba de todos os reinos ímpios precedentes.
“E o dragão deu-lhe o
seu poder, o seu trono e grande autoridade.”
O dragão, isto é, o diabo, transmite à besta o domínio sobre o mundo visível —
não por criação, mas por usurpação. A autoridade satânica é a permissão de
enganar os que não receberam o selo de Deus.
“E uma de suas cabeças
parecia ferida de morte, mas a sua ferida mortal foi curada; e toda a terra se
maravilhou após a besta.”
A cabeça ferida é a antiga idolatria, que parecia morta após o advento de
Cristo, mas revive na adoração das potências humanas e do poder político. O
mundo admira a besta porque prefere o visível ao invisível.
“E adoraram o dragão
que deu poder à besta, e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta?
e quem poderá pelejar contra ela?”
Os ímpios, fascinados pelo brilho da força e pela eficácia material, prestam
culto àquilo que tem poder aparente. É a adoração do sucesso e da violência — a
idolatria do poder, sob o disfarce da necessidade.
“E foi-lhe dada uma
boca que proferia grandes coisas e blasfêmias, e foi-lhe dado poder para agir
por quarenta e dois meses.”
A boca são os falsos doutores e pregadores do erro, cuja eloquência seduz. O
tempo — quarenta e dois meses — é o mesmo dos mil duzentos e sessenta dias: o
período simbólico da perseguição final, limitado pela Providência.
“E abriu a sua boca em
blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, do seu tabernáculo e dos
que habitam no céu.”
A blasfêmia contra Deus é a negação de sua transcendência; contra o
tabernáculo, a profanação da Igreja; contra os habitantes do céu, a perseguição
aos santos e à fé verdadeira.
“E foi-lhe permitido
fazer guerra aos santos e vencê-los, e foi-lhe dado poder sobre toda tribo,
povo, língua e nação.”
A vitória é aparente — apenas temporal. O Anticristo domina externamente, mas
os santos vencem interiormente pela perseverança. O domínio universal da besta
é o retrato da globalização do erro e da uniformização do pecado.
“E todos os que habitam
sobre a terra a adorarão, cujos nomes não estão escritos no livro da vida do
Cordeiro.”
Os que pertencem ao mundo — isto é, aos desejos e ambições terrenas — rendem-se
à besta. O “livro da vida” é a predestinação divina: quem ama a verdade não
será enganado.
“Se alguém tem ouvidos,
ouça: Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada,
convém que seja morto à espada. Aqui está a paciência e a fé dos santos.”
É um chamado à perseverança: a lei da retribuição divina é justa e inevitável.
A paciência e a fé são as únicas armas que vencem o poder terreno.
“E vi outra besta subir
da terra, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro, e falava como o
dragão.”
Esta segunda besta representa o poder
pseudo-espiritual do Anticristo — a corrupção religiosa, a
mentira revestida de piedade. Os dois chifres semelhantes aos do cordeiro
simbolizam a aparência de Cristo e da Igreja, mas a voz é do dragão: fala com
astúcia diabólica, prometendo salvação terrena.
“E exerce todo o poder
da primeira besta na sua presença, e faz com que a terra e os que nela habitam
adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada.”
Esta besta age como profeta do império anticrístico, legitimando o poder
político com autoridade falsa — uma religião a serviço do Estado e do engano.
“E faz grandes sinais,
de modo que até fogo faz descer do céu à terra à vista dos homens.”
Os falsos milagres são os prodígios do engano: interpretações, tecnologias ou
fenômenos que parecem divinos, mas visam confundir a fé. O “fogo do céu” é a
imitação diabólica da inspiração divina.
“E engana os que
habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi permitido fazer na presença
da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta
que recebeu a ferida da espada e viveu.”
A “imagem da besta” é o culto à própria humanidade deificada — a idolatria da
razão, da ciência ou do poder. O homem fabrica seu ídolo à sua própria
semelhança.
“E foi-lhe concedido
dar espírito à imagem da besta, para que a imagem falasse e fizesse que fossem
mortos todos os que não adorassem a imagem da besta.”
O “espírito” da imagem é a força da propaganda e da mentira — o sistema de
controle que impõe unanimidade. Os que não adoram são perseguidos, pois a
verdade não tolera o consenso do erro.
“E faz que a todos,
pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, lhes seja posto um sinal
na mão direita ou na fronte.”
O sinal é a marca do conformismo: na mão, o agir segundo o mundo; na fronte, o
pensar segundo o mundo. Trata-se de uma servidão espiritual universal — a
inversão do selo de Deus dado aos justos.
“E ninguém possa
comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, o nome da besta ou o número
do seu nome.”
Aqui se descreve o domínio total do Anticristo: o comércio, a política e a
cultura subordinados à ideologia única. Quem não participa do sistema é
excluído. O “comprar e vender” simboliza a troca de bens e valores — a vida
social reduzida à submissão.
“Aqui há sabedoria.
Aquele que tem entendimento calcule o número da besta; porque é número de
homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.”
O número da besta — 666 — é o símbolo da perfeição corrompida. Se o sete é o
número da plenitude divina, o seis, repetido três vezes, representa a tentativa
humana de substituir Deus por si mesma. É o ciclo do orgulho: o homem erigido
como centro, a tríplice negação da Trindade.
Assim se cumpre o mistério da impiedade, que se exalta acima de tudo o que se
chama Deus.
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO III
“E olhei, e eis que o
Cordeiro estava sobre o monte Sião, e com ele cento e quarenta e quatro mil,
que tinham o seu nome e o nome de seu Pai escrito nas suas frontes.”
O Cordeiro sobre o monte Sião é
Cristo na glória da Igreja triunfante. O monte Sião representa a altura da fé e
da contemplação; estar “sobre o monte” significa estar acima das vaidades
terrenas.
Os cento e quarenta e quatro mil são o mesmo número simbólico já mencionado: doze
multiplicado por doze e por mil, expressão da totalidade dos eleitos. O nome
nas frontes indica a confissão pública da fé, e o nome do Pai, a filiação
divina que os torna semelhantes ao Filho.
“E ouvi uma voz do céu,
como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi a voz de
harpistas que tocavam as suas harpas.”
A voz do céu é o cântico dos santos; o som de muitas águas é a harmonia das
nações redimidas; o trovão é o poder da verdade divina; e os harpistas são as
almas que louvam a Deus com obras e melodias espirituais.
“E cantavam como um
cântico novo diante do trono, e diante dos quatro animais e dos anciãos; e
ninguém podia aprender aquele cântico senão os cento e quarenta e quatro mil
que foram comprados da terra.”
O cântico novo é o louvor da nova criação — a alegria dos redimidos que
experimentaram o poder da graça. Só os que foram “comprados da terra” podem
cantá-lo, porque apenas quem foi libertado das paixões entende o som da
liberdade.
Não é um cântico de palavras, mas de vida: é a harmonia entre a vontade humana
e a vontade divina.
“Estes são os que não
se contaminaram com mulheres, porque são virgens.”
Não se trata apenas da virgindade corporal, mas da pureza espiritual: não se
uniram às falsas doutrinas nem se corromperam pelo amor do mundo. A castidade
do coração é o desapego interior que torna a alma livre para Deus.
Os virgens são imagem da Igreja pura e indivisa — a esposa fiel que aguarda o
Esposo.
“Estes são os que
seguem o Cordeiro para onde quer que vá.”
Seguir o Cordeiro é conformar-se à sua humildade, ao seu sofrimento e à sua
glória. Os santos não seguem Cristo apenas quando Ele é exaltado, mas também
quando é humilhado. Caminham com Ele no sacrifício e na cruz, para estarem com
Ele na ressurreição.
“Estes foram comprados
dentre os homens como primícias para Deus e para o Cordeiro.”
As “primícias” são os primeiros frutos da redenção — símbolo da humanidade
santificada. Representam todos os que, por amor, se consagram totalmente a
Deus, antecipando na terra a colheita final do céu.
“E na sua boca não se
achou engano; porque são irrepreensíveis diante do trono de Deus.”
A pureza da boca é a pureza da doutrina e da intenção. Não há falsidade
naqueles que louvam com sinceridade e vivem segundo a verdade. Ser irrepreensível
diante do trono é viver na transparência da luz divina, sem duplicidade.
“E vi outro anjo voando
pelo meio do céu, tendo o evangelho eterno, para o anunciar aos que habitam
sobre a terra, e a toda nação, tribo, língua e povo.”
Este anjo representa a missão apostólica, ou o próprio Espírito Santo que anima
a pregação do Evangelho. “Voando pelo meio do céu” indica a rapidez e a
universalidade da mensagem — elevada, visível e sonora sobre o mundo.
O Evangelho é chamado “eterno” porque é imutável e permanece enquanto o mundo
passa.
“Dizendo em alta voz:
Temei a Deus e dai-lhe glória, porque é vinda a hora do seu juízo; e adorai
aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas.”
O temor de Deus é o princípio da sabedoria. Dar-lhe glória é reconhecer sua
soberania e origem de todas as coisas. O anjo chama à conversão antes do juízo
— é o último apelo da graça à humanidade.
“E outro anjo seguiu,
dizendo: Caiu, caiu Babilônia, aquela grande cidade, porque deu a beber a todas
as nações do vinho da ira da sua fornicação.”
Babilônia é o mundo corrupto — o sistema da soberba e da luxúria espiritual.
Sua queda é certa, ainda que pareça gloriosa. O “vinho da fornicação” é a
sedução do prazer e da idolatria, que embriaga as nações com falsas promessas
de felicidade.
“E o terceiro anjo
seguiu-os, dizendo em alta voz: Se alguém adorar a besta e a sua imagem, e
receber o sinal na fronte ou na mão, também ele beberá do vinho da ira de Deus,
que foi preparado sem mistura no cálice da sua indignação.”
Aqui se anuncia o destino dos que se aliam ao poder anticrístico. O cálice da
ira de Deus é a justiça pura, sem mistura de misericórdia — a retribuição
final.
“E será atormentado com
fogo e enxofre diante dos santos anjos e diante do Cordeiro; e a fumaça do seu
tormento sobe pelos séculos dos séculos; e não têm repouso nem de dia nem de
noite os que adoram a besta e a sua imagem.”
O tormento eterno não é mera punição, mas o reflexo do estado de alma que se
fecha à graça. A ausência de repouso é o estado permanente da consciência que
perdeu a paz de Deus.
“Aqui está a paciência
dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé de Jesus.”
A paciência é a fortaleza da fé. Enquanto os ímpios buscam o prazer imediato,
os santos perseveram no tempo da prova, confiando no juízo de Deus.
“E ouvi uma voz do céu
que me dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no
Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas
obras os seguem.”
Esta é uma das mais ternas bem-aventuranças do Apocalipse. Morrer no Senhor é
abandonar o mundo na graça. O descanso prometido não é inércia, mas comunhão
perfeita: suas obras os seguem porque o amor permanece para sempre.
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO IV
“E olhei, e eis uma
nuvem branca, e sobre a nuvem um sentado semelhante a um filho de homem, tendo
na cabeça uma coroa de ouro e na mão uma foice afiada.”
A nuvem branca é a Igreja
glorificada, na qual o Filho do Homem aparece revestido de sua humanidade
purificada. A brancura simboliza a pureza e a fé, e o trono sobre as nuvens
indica o juízo universal.
A coroa de ouro é a realeza incorruptível de Cristo; a foice afiada, a justiça
que separa o trigo do joio. A imagem alude ao momento em que o Senhor ceifará o
mundo, recolhendo os frutos maduros da fé.
“E outro anjo saiu do
templo, clamando com grande voz ao que estava assentado sobre a nuvem: Lança a
tua foice e ceifa, porque é vinda a hora de ceifar, porque a seara da terra
está madura.”
O anjo que sai do templo é a
oração da Igreja, pedindo o cumprimento das promessas divinas. A hora de ceifar
é o tempo do juízo, quando o bem e o mal serão finalmente separados.
A seara madura são os santos perfeitos, preparados pela graça; a maturidade é o
estado de plenitude da virtude. O trigo, pela paciência, amadureceu ao calor do
sol das tribulações.
“E aquele que estava
assentado sobre a nuvem lançou a sua foice sobre a terra, e a terra foi
ceifada.”
A ceifa é o recolhimento dos
eleitos. Cristo, com sua palavra, recolhe as almas purificadas para o celeiro
eterno. “A terra foi ceifada”, isto é, o tempo cessou, e o campo da história
foi encerrado.
O ato único da ceifa representa o juízo dos justos: cada espiga cortada é uma
alma colhida na eternidade.
“E outro anjo saiu do
templo que está no céu, também tendo uma foice afiada.”
Este anjo simboliza a ação da
justiça divina que se estende também aos ímpios. A foice é a sentença —
instrumento de separação e destruição.
“E outro anjo saiu do
altar, que tinha poder sobre o fogo, e clamou com grande voz ao que tinha a
foice afiada, dizendo: Lança a tua foice afiada e vindima os cachos da vinha da
terra, porque as suas uvas estão maduras.”
O anjo que sai do altar é a
representação da ira divina — o altar é o lugar do sacrifício, e o fogo, a
santidade que consome o mal.
A vinha da terra é a humanidade ímpia, que se encheu do vinho da sua própria
corrupção. As uvas maduras são os pecados consumados, que chegaram à plenitude
do juízo.
Assim como a seara dos santos é recolhida para a glória, a vindima dos ímpios é
colhida para a perdição.
“E o anjo lançou a sua
foice na terra, e vindimou a vinha da terra, e lançou-a no grande lagar da ira
de Deus.”
O lagar é a imagem terrível do
juízo. As uvas lançadas nele representam as almas que se fecharam à graça e
agora são esmagadas pela justiça. O “lagar da ira de Deus” é o lugar onde a
falsidade e a soberba são despedaçadas pela verdade eterna.
No mesmo gesto em que a foice ceifa os bons, ela vindima os maus: é um só
juízo, mas com dois efeitos — glória e condenação.
“E o lagar foi pisado fora
da cidade, e saiu sangue do lagar até os freios dos cavalos, por mil e
seiscentos estádios.”
Ser “fora da cidade” significa
estar fora da Jerusalém celeste — a exclusão dos ímpios da comunhão divina.
O sangue até os freios dos cavalos é a plenitude da vingança espiritual: atinge
até os chefes e potências do mundo (“os cavalos”), porque nenhuma força humana
pode resistir à justiça divina.
O número mil e seiscentos
(quatro vezes quatrocentos) simboliza a totalidade das quatro partes do mundo:
o juízo se estende a toda a terra, abrangendo o orbe inteiro.
Beda observa que, segundo
Ticonius, o mesmo Senhor é tanto ceifeiro quanto vindimador: um único juízo,
que para uns é glória e para outros perdição.
O “sangue que sai do lagar” é a retribuição dos mártires — a vitória final da
justiça divina sobre o sangue inocente derramado no mundo.
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO I
“E vi outro sinal no
céu, grande e admirável: sete anjos, que tinham as sete últimas pragas, porque
nelas se consumou a ira de Deus.”
O “sinal grande e admirável” é
a manifestação da justiça divina.
Os sete anjos
representam a totalidade dos ministros da justiça — não apenas seres celestes,
mas também os instrumentos terrenos por meio dos quais Deus realiza o juízo.
As sete pragas
não são acidentes isolados, mas o conjunto completo das purificações que
encerram a história.
Consumando-se nelas a ira de Deus, entende-se que o juízo atinge sua plenitude:
não restará mais obstáculo à manifestação da misericórdia final.
“E vi como que um mar
de vidro misturado com fogo; e os que venceram a besta, e a sua imagem, e o
número do seu nome, estavam sobre o mar de vidro, tendo harpas de Deus.”
O mar de vidro é a imagem da
eternidade divina — translúcida, imutável, serena.
O fogo misturado indica o juízo: a santidade que purifica e consome o mal.
Os vencedores da besta são os mártires e os confessores, que permaneceram fiéis
em meio à perseguição.
Estão “sobre o mar” porque triunfaram sobre as ondas do tempo; têm “harpas de
Deus” porque seus louvores são harmonia perfeita entre alma e graça.
“E cantavam o cântico
de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e
maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso; justos e verdadeiros
são os teus caminhos, ó Rei das nações.”
O cântico de Moisés recorda a
libertação do Egito — figura da redenção; o cântico do Cordeiro celebra a
libertação espiritual.
Ambos convergem: o Antigo e o Novo Testamento unem-se no louvor do mesmo Deus.
Os caminhos de Deus são “justos e verdadeiros” porque conduzem à salvação mesmo
através do castigo; a justiça, em Beda, é inseparável da veracidade — Deus pune
para restaurar a ordem do amor.
“Quem não temerá,
Senhor, e não glorificará o teu nome? Porque só tu és santo; porque todas as
nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus juízos se manifestaram.”
O temor aqui é reverência, não
pavor.
Quando os juízos de Deus se tornam visíveis, as nações reconhecem a sua
santidade.
A adoração universal não é imediata, mas profética: descreve o momento em que
toda a criação será restituída ao louvor, quando o mal tiver sido aniquilado.
“E depois destas coisas
olhei, e abriu-se o templo do tabernáculo do testemunho no céu; e saíram do
templo os sete anjos, que tinham as sete pragas, vestidos de linho puro e
resplandecente, e cingidos com cintos de ouro pelos peitos.”
O templo aberto significa o
desvelar do mistério divino.
O “tabernáculo do testemunho” é a lei eterna — agora plenamente revelada na
economia da graça.
Os anjos vestidos de linho representam a pureza da justiça: o linho é a virtude
incorruptível, a santidade que julga sem paixão.
Os cintos de ouro são a sabedoria e a caridade, que dirigem a execução do
juízo.
“E um dos quatro
animais deu aos sete anjos sete taças de ouro, cheias da ira de Deus, que vive
pelos séculos dos séculos.”
Um dos quatro animais — símbolo
dos evangelistas — entrega as taças, indicando que o juízo procede da mesma
verdade que o Evangelho anuncia.
As taças são de ouro porque o castigo de Deus é puro: não nasce de cólera
humana, mas da santidade eterna.
A ira de Deus é sua justiça em ato, não perturbação, mas ordem restabelecida.
“E o templo se encheu
de fumaça da glória de Deus e do seu poder; e ninguém podia entrar no templo
até que se consumassem as sete pragas dos sete anjos.”
A fumaça é o símbolo do
mistério inacessível: a presença divina que vela a si mesma.
Ninguém pode entrar no templo enquanto o juízo está em curso — porque, durante
o castigo, a compreensão dos desígnios de Deus é suspensa.
Somente quando as pragas forem consumadas — isto é, quando o mal for
inteiramente expurgado — se abrirá novamente o caminho da contemplação.
Assim Beda conclui este
capítulo: as sete taças, embora terríveis, são instrumentos de purificação, e o
fechamento do templo significa o silêncio de Deus antes do advento da nova
Jerusalém.
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO II
“E ouvi uma grande voz
do templo, dizendo aos sete anjos: Ide e derramai sobre a terra as sete taças
da ira de Deus.”
A “voz do templo” é a ordem
direta de Deus, que governa os acontecimentos da história por meio de seus
ministros.
O templo, já aberto no capítulo anterior, manifesta agora sua energia: o juízo
divino passa do mistério à execução.
As sete taças correspondem, de modo paralelo, às sete trombetas, mas com
sentido mais interior — se as trombetas anunciam, as taças consomam.
“E foi o primeiro e
derramou a sua taça sobre a terra; e fez-se uma úlcera má e maligna nos homens
que tinham o sinal da besta e que adoravam a sua imagem.”
A terra simboliza a
natureza humana endurecida; o derramamento da primeira taça indica o juízo
sobre os que se firmam nas coisas terrenas.
A “úlcera maligna” é a corrupção interior da consciência — não castigo físico,
mas infecção espiritual.
Esses homens trazem o sinal da besta: isto é, agem (mão) e pensam (fronte)
segundo o mundo.
A úlcera é o remorso sem arrependimento, a ferida moral que não cicatriza
porque a alma recusa a graça.
Beda observa que, assim como as
pragas do Egito começaram por feridas visíveis, aqui o juízo começa por uma
chaga interior: a mente pervertida e o coração insensível.
“E o segundo anjo
derramou a sua taça no mar, e este se tornou como sangue de morto, e morreu
toda alma vivente que estava no mar.”
O mar representa o
conjunto dos povos e nações — o mundo em sua instabilidade e multiplicidade.
Transformar-se “em sangue de morto” significa a total corrupção da vida social
e política: quando a caridade morre, as águas da convivência tornam-se
pútridas.
A “morte de toda alma vivente” é a extinção da vitalidade espiritual: as
civilizações, afastadas de Deus, permanecem agitadas, mas sem alma.
O sangue de morto não pulsa — é
a imagem exata da humanidade que conserva aparência de movimento, mas está
espiritualmente inerte.
“E o terceiro anjo
derramou a sua taça nos rios e nas fontes das águas; e se tornaram em sangue.”
Os rios e fontes são os doutores e
pregadores — as correntes do ensinamento divino.
O juízo recai aqui sobre a doutrina falsificada: quando a Palavra é manipulada,
as fontes da vida tornam-se veneno.
O sangue simboliza o uso da religião para fins terrenos, o esvaziamento da
verdade sob o peso das paixões.
Beda vê nisso o castigo próprio
dos falsos mestres: o que deveriam oferecer como água de sabedoria, transmitem
como sangue de morte.
Assim se cumpre o que diz o profeta: “Os teus príncipes se tornaram rebeldes, e
os teus companheiros, ladrões” (Is 1,23).
“E ouvi o anjo das
águas dizer: Tu és justo, Senhor, que és e que eras, o Santo, porque julgaste
estas coisas; porque derramaram o sangue dos santos e dos profetas, e tu lhes
deste sangue a beber; dignos são disso.”
O “anjo das águas” é a voz da
razão divina que governa os juízos: ele reconhece a justiça da retribuição.
Os que corromperam a doutrina — isto é, as águas — agora bebem o sangue que
derramaram: sofrerão na própria medida do mal que causaram.
O sangue dos profetas e dos santos clama do solo da história, e a vingança
divina consiste em converter o erro em seu próprio castigo.
“E ouvi outro do altar
dizer: Sim, Senhor Deus Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos.”
O “outro do altar” é a voz dos
mártires — aqueles cujas almas estão sob o altar (cf. Ap 6,9).
Eles confirmam o juízo de Deus, pois sua própria morte se torna testemunho da
verdade.
Assim, o altar responde ao templo: o sacrifício confirma a justiça.
Com estas três taças, diz Beda,
Deus revela o triplo aspecto da decadência humana:
1.
Na
terra — corrupção
da carne e das obras;
2.
No
mar — corrupção
das sociedades e impérios;
3.
Nos
rios e fontes —
corrupção da doutrina e da fé.
Tudo o que é humano — ação,
ordem e pensamento — é atingido quando o homem substitui Deus por si mesmo.
Mas mesmo aqui a ira é medicinal: o juízo corrige o que o amor não conseguiu
curar.
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO III
“E o quarto anjo
derramou a sua taça sobre o sol; e foi-lhe permitido que abrasasse os homens
com fogo.”
O sol simboliza a
inteligência e a ciência — o poder de iluminar.
Quando o juízo o atinge, a luz natural, privada da graça, torna-se instrumento
de soberba.
O mesmo fogo que deveria iluminar, passa a queimar.
Assim, os homens são castigados pela própria razão: em vez de conduzir à
verdade, ela se converte em idolatria do pensamento.
Beda observa que o sol é Cristo
para os justos, mas orgulho para os soberbos: os que rejeitam a humildade da fé
são feridos pelo fogo da própria sabedoria.
Deus permite que a luz natural se transforme em chama devastadora — imagem dos
tempos em que o saber humano se volta contra o Criador.
“E os homens foram
abrasados com grande calor, e blasfemaram o nome de Deus, que tem poder sobre
estas pragas, e não se arrependeram para lhe darem glória.”
O “grande calor” é a
exasperação das paixões intelectuais — a febre da vanglória e da presunção.
Em vez de se converterem, os homens blasfemam: culpam a Deus pela dor que é
fruto de seu próprio desvio.
Não se arrependem, porque a mente inflamada pelo orgulho já não reconhece o
erro; e assim o fogo exterior reflete o incêndio interior.
Para Beda, este é o castigo
mais sutil: o saber que não conduz à humildade torna-se a causa da perdição.
O intelecto sem fé transforma-se em deserto ardente — luz sem frescor, ciência
sem sabedoria.
“E o quinto anjo
derramou a sua taça sobre o trono da besta; e o seu reino se fez tenebroso; e
os homens mordiam as suas línguas de dor.”
O trono da besta é o
domínio espiritual do erro — a estrutura de poder que sustenta o império da
impiedade.
O derramamento da taça sobre ele indica o colapso do sistema de mentiras que o
mundo construiu.
As trevas que o invadem são a confusão universal: o juízo atinge o centro da
falsa sabedoria e desarticula as forças do mal.
“Morder a língua” significa o
desespero dos enganadores: a palavra, antes instrumento de dominação, torna-se
causa de tormento.
Os mesmos que enganavam pelas palavras são agora punidos pela própria boca.
Beda nota que o castigo é proporcional:
o poder que blasfemou pela língua é ferido na língua; a besta que iludiu pela
aparência da luz é mergulhada em trevas.
“E blasfemaram o Deus
do céu, por causa das suas dores e das suas chagas, e não se arrependeram das
suas obras.”
Mesmo mergulhados nas trevas,
os ímpios persistem no ódio à luz.
Blasfemam porque sentem a dor da perda, mas não buscam a causa — o afastamento
de Deus.
As “chagas” são as feridas espirituais que eles mesmos infligiram à alma:
paixões, vícios, idolatria.
O não-arrependimento é o selo
final do endurecimento.
Assim se cumpre o mistério da iniquidade: o coração que resiste à correção
transforma o castigo em motivo de nova revolta.
Beda conclui este trecho
observando que a quarta
taça (sobre o sol) atinge a inteligência, e a quinta (sobre o trono da
besta) atinge a autoridade
— isto é, o espírito e o poder.
O juízo divino corrige primeiro o erro do pensamento, depois o erro das
estruturas.
E quando o sol e o trono — intelecto e poder — se corrompem, resta apenas a purificação
final das trevas que antecede a vinda da luz eterna.
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO IV
“E o sexto anjo
derramou a sua taça sobre o grande rio Eufrates, e a sua água secou, para que
se preparasse o caminho dos reis que vêm do oriente.”
O Eufrates, que no Antigo
Testamento delimitava a terra prometida, representa aqui o limite entre o povo
de Deus e as nações inimigas.
Secar-se o rio significa a remoção das barreiras — a revelação dos segredos do
coração humano e a permissão divina para que o mal se manifeste em plenitude
antes de ser destruído.
Beda explica que o oriente (ab
ortu solis) é Cristo, e os “reis que vêm do oriente” são os santos
e doutores, iluminados pelo Sol da Justiça, que marcham espiritualmente contra
o império das trevas.
Mas, no sentido oposto, também pode significar os exércitos do erro, libertos
para a última tentação. Assim, o mesmo “secar” do rio abre dois caminhos: um
para a fé que avança, outro para o mal que se revela.
“E vi saírem da boca do
dragão, e da boca da besta, e da boca do falso profeta, três espíritos imundos,
semelhantes a rãs.”
Os três espíritos imundos
são as três formas do engano final:
1.
O
erro diabólico (boca do dragão),
que nega a Deus e o transcendente;
2.
O
poder político corruptor (boca
da besta), que se ergue como deus da terra;
3.
A
falsidade religiosa (boca do
falso profeta), que imita a fé para conduzir à idolatria.
As rãs vivem tanto na água
quanto na terra — símbolo dos homens de duplicidade, que aparentam piedade, mas
amam o mundo.
Seu coaxar incessante é o discurso vazio das ideologias e heresias que
perturbam a paz dos fiéis.
Beda comenta que, no fim dos
tempos, essas três vozes se unirão: filosofia sem sabedoria, poder sem justiça
e religião sem santidade.
“Porque são espíritos
de demônios, que fazem prodígios, os quais vão aos reis de toda a terra, para
os congregar para a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso.”
Os falsos prodígios são os
sinais do engano espiritual — não milagres verdadeiros, mas manipulações do
medo e do desejo.
Os demônios se dirigem aos “reis da terra”, isto é, às potências do mundo, para
arrastá-los à guerra contra Deus.
Beda vê aqui o sentido místico do Armagedon:
não um campo geográfico, mas o teatro
espiritual da história, onde o homem deve decidir a quem
servirá.
O “grande dia” é o tempo do juízo — o momento em que a verdade se manifestará e
cada um será visto como é.
“Eis que venho como
ladrão; bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para que não
ande nu e não se vejam as suas vergonhas.”
O Senhor interrompe a narração
com esta advertência direta: o verdadeiro campo de batalha é o coração.
Vigiar é conservar a fé desperta; guardar as vestes é manter a pureza batismal
e a integridade da alma.
A nudez é a perda da graça, e a vergonha é o autoconhecimento do pecado.
Beda sublinha que o ladrão não vem para roubar, mas para surpreender — a
imprevisibilidade da vinda do Juiz é o teste da vigilância dos santos.
“E os congregou no
lugar que em hebraico se chama Armagedon.”
Armagedon (Har-Megiddo) significa “monte da congregação”
ou “monte da destruição”.
Beda interpreta-o espiritualmente: é o ponto culminante da história, onde o bem
e o mal se confrontam — a colina da decisão, imagem da cruz.
Ali Cristo venceu, e ali o Anticristo será derrotado.
Cada alma, diz ele, tem seu próprio Armagedon: o lugar interior onde Deus exige
a escolha final.
Com o derramamento da sexta
taça, o cenário está preparado para o juízo supremo.
As barreiras caíram, os espíritos foram libertos, os reinos se uniram em
confusão.
Mas, sob a superfície do caos, Deus prepara a consumação da vitória: o mal se
revela para ser vencido, e a verdade se recolhe para reinar.
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO V
“E o sétimo anjo
derramou a sua taça no ar; e saiu uma grande voz do templo do trono, dizendo:
Está feito.”
O ar é o domínio do
inimigo: “o príncipe da potestade do ar”, como diz o Apóstolo (Ef 2,2).
Derramar a taça sobre o ar é abater o poder invisível das trevas — a destruição
das forças espirituais que sustentam o império da mentira.
A voz que sai do trono proclama a consumação: “Está feito”. É o eco do “Consummatum est” da
cruz, repetido agora sobre toda a criação.
Tudo o que fora anunciado e figurado se cumpre. A história chega ao ponto em
que o mistério da iniquidade se revela para ser vencido.
“E houve relâmpagos,
vozes e trovões; e houve um grande terremoto, tal, que nunca tinha havido desde
que há homens sobre a terra, tão grande terremoto, tão forte.”
Os relâmpagos são os sinais
espirituais; as vozes,
os testemunhos dos profetas; os trovões,
os juízos manifestos.
O terremoto
é a convulsão universal das instituições humanas: tudo o que era estável se
abala quando o juízo divino intervém.
Beda entende que este abalo não é apenas natural, mas simbólico: é o
estremecimento das almas quando Deus fala, a dissolução dos reinos da terra
diante da manifestação do Cristo juiz.
“E a grande cidade foi
dividida em três partes, e as cidades das nações caíram; e lembrou-se Deus da
grande Babilônia, para lhe dar o cálice do vinho da indignação da sua ira.”
A grande cidade é a
Babilônia — isto é, o mundo apóstata, a civilização construída sobre a soberba.
Dividir-se em três partes significa o desmantelamento completo: o poder
religioso, o político e o econômico se corrompem mutuamente até ruírem.
As “cidades das nações” são as estruturas secundárias do mesmo império — todos
os sistemas que imitavam Babilônia compartilham o mesmo destino.
O “cálice do vinho” é a retribuição exata: o mundo que embriagou as nações com
sua idolatria é agora forçado a beber o fruto de sua própria corrupção.
“E toda a ilha fugiu, e
os montes não se acharam.”
As ilhas representam os
homens isolados em suas próprias razões; os montes, os grandes poderes e saberes
humanos.
Quando o juízo chega, nem o isolamento nem a altivez resistem: o orgulho e a
falsa segurança desaparecem.
Beda comenta que até mesmo as obras aparentemente firmes da sabedoria humana —
filosofia, impérios, instituições — se desfarão como sombras ao amanhecer do
juízo eterno.
“E caiu do céu sobre os
homens uma grande saraiva, como de um talento cada uma; e os homens blasfemaram
de Deus por causa da praga da saraiva, porque a sua praga era mui grande.”
A saraiva é a palavra
divina, dura e penetrante, que golpeia os corações obstinados.
As pedras de “um talento” indicam a gravidade do juízo: o peso da verdade que
cai sobre os que zombaram da graça.
Mas mesmo feridos, os ímpios blasfemam — incapazes de reconhecer o castigo como
misericórdia.
Beda observa que a mesma palavra que ilumina os justos fere os ímpios: o
Evangelho é chuva para uns e saraiva para outros, conforme o estado da alma.
Assim se encerra o derramamento
das sete taças.
O ar, símbolo do império do mal, é purificado; a terra, o mar e as fontes foram
julgadas; o trono da besta foi destruído; o rio Eufrates secou; e a Babilônia
caiu.
Tudo o que era oculto se tornou manifesto, e a ira de Deus — isto é, sua
justiça — atingiu o fim para o qual sempre se ordenou: restaurar a ordem do
amor.
Epístola a Eusébio
Prólogo Geral
“À vós, meu caríssimo irmão
Eusébio, saúda Beda.”
A Revelação de São João, na qual Deus se dignou revelar, em figuras e palavras,
as batalhas e incêndios internos de sua Igreja, parece-me dividida em sete
partes.
Na primeira, após uma longa
introdução destinada a fortalecer a fé dos frágeis, a Igreja contempla aquele
que é semelhante ao Filho do Homem — Cristo em sua glória. Depois de tratar das
sete Igrejas da Ásia, o texto descreve as lutas e vitórias da Igreja universal.
Na segunda, sob a visão do
Cordeiro abrindo os sete selos, revela os futuros conflitos e triunfos da
Igreja.
Na terceira, sob o som das sete
trombetas, são narrados os diversos acontecimentos e provações que ela deve
suportar.
Na quarta, sob a figura da
mulher que dá à luz e do dragão que a persegue, são mostradas as lutas e
vitórias espirituais.
Na quinta, as sete últimas
pragas derramadas pelos sete anjos simbolizam o juízo total sobre a terra.
Na sexta, vem a condenação da grande meretriz,
isto é, da cidade ímpia, a Babilônia mística.
E, finalmente, na sétima,
aparece a Esposa do
Cordeiro, a Jerusalém celeste descendo de Deus.
Assim, o livro progride do
combate à consumação, do sofrimento à glória.
LIVRO QUINTO — CAPÍTULO
PRIMEIRO
A QUEDA DA GRANDE
MERETRIZ
“E veio um dos sete anjos que
tinham as sete taças, e falou comigo, dizendo: Vem, e mostrar-te-ei o
julgamento da grande meretriz, que está sentada sobre muitas águas.”
A meretriz é a imagem da cidade apóstata, o mundo
que traiu a fé e prostituiu-se com os reis da terra.
As “muitas águas” são os povos e nações que lhe obedecem; pois a falsidade
domina pela sedução e pela multiplicação das vozes.
Beda interpreta esta mulher como a Babilônia
espiritual, isto é, a sociedade humana quando abandona o Deus
verdadeiro e adora o poder, a riqueza e o prazer.
“Com ela se
prostituíram os reis da terra, e os habitantes da terra se embriagaram com o
vinho da sua fornicação.”
Os reis da terra são as
autoridades humanas que pactuam com o erro.
O vinho é
a doutrina perversa — doce na aparência, mas venenosa no espírito.
A embriaguez simboliza o fascínio das ideologias e dos ídolos que prometem
liberdade e produzem servidão.
Beda nota que a prostituição espiritual é o oposto da virgindade da Igreja:
quem troca a fidelidade da fé por alianças com o mundo torna-se infiel ao
Esposo divino.
“E levou-me em espírito
a um deserto, e vi uma mulher sentada sobre uma besta escarlate, cheia de nomes
de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres.”
O deserto representa a
esterilidade espiritual — ausência de graça.
A besta escarlate
é o império do Anticristo, sustentado pelo sangue dos mártires e pela idolatria
das nações.
As sete cabeças
são os sete reinos sucessivos que dominaram o mundo; os dez chifres, os poderes
subordinados que se levantarão no fim.
Os “nomes de blasfêmia” são as doutrinas que usurpam o nome de Deus para
justificar o pecado.
Beda insiste que a besta não é apenas política, mas teológica: ela representa o
sistema total de negação — a inteligência divorciada do Logos.
“E a mulher estava
vestida de púrpura e de escarlata, adornada de ouro, pedras preciosas e
pérolas, tendo na mão um cálice de ouro cheio de abominações e da imundícia da
sua fornicação.”
A pompa exterior simboliza o
fascínio da aparência: o ouro e as pedras preciosas são os ornamentos da
falsidade.
O cálice de ouro
é a máscara da religião mundana — bela por fora, corrupta por dentro.
Beda diz que esta é a corrupção do sagrado: quando o culto serve ao poder e a
beleza se torna instrumento de engano.
O vinho do cálice é a mentira doce que embriaga o mundo inteiro.
“E na sua fronte estava
escrito um nome: Mistério, Babilônia, a grande, a mãe das prostituições e das
abominações da terra.”
A fronte indica a
consciência; o nome “Mistério” mostra que o mal, para se perpetuar, se oculta
sob o véu do sagrado.
A “mãe das abominações” é a fonte de todas as idolatrias — a cultura que
substitui Deus por si mesma.
Beda observa que a palavra mysterium
aqui é usada ironicamente: não o mistério da fé, mas o mistério da iniquidade.
É a inversão diabólica do sacramento — o anti-sacramento do mundo.
“E vi que a mulher
estava embriagada do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus; e
quando a vi, admirei-me com grande admiração.”
A embriaguez com o sangue dos
santos significa o gozo cruel da perseguição.
A Babilônia se alimenta da destruição dos justos, pois a sua estabilidade
depende de silenciar a verdade.
Beda interpreta a “admiração” de João não como espanto de curiosidade, mas de
dor e assombro diante do mistério do mal permitido por Deus — o mesmo espanto
de quem contempla o poder da injustiça prosperando por um tempo.
“E o anjo me disse: Por
que te admiras? Eu te direi o mistério da mulher e da besta que a traz.”
Aqui começa a interpretação
angélica, que Beda entende como a iluminação do Espírito sobre o discernimento
da história.
A besta é o poder temporal; a mulher, o espírito mundano que o seduz.
Ambos formam uma aliança sacrílega: o trono e o altar unidos contra o Cordeiro.
O anjo revela que essa união, embora pareça invencível, carrega em si o germe
da própria ruína.
Conclusão do Capítulo I
A meretriz é, pois, o espelho
do mundo quando se aparta da verdade.
Ela representa todas as formas de idolatria política, cultural e espiritual.
Mas a sua condenação já está decretada: o cálice que ela oferece será aquele
que ela própria beberá.
E a Igreja, purificada pela perseguição, surgirá como a verdadeira Esposa do
Cordeiro, vestida não de púrpura, mas de luz.
LIVRO QUINTO
CAPÍTULO II
O Mistério das Cabeças
e dos Chifres
“A besta que viste foi,
e não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição; e os habitantes da terra,
cujos nomes não estão escritos no livro da vida, se admirarão vendo a besta que
era, e não é, e será.”
A besta, diz Beda, representa a
sucessão dos impérios do mundo, cujo poder nasce, declina e ressurge — mas
sempre com a mesma natureza interior.
Ela “foi”, quando
dominava pela força bruta; “não
é”, quando parece domesticada sob aparência de justiça; e “será”, quando, no fim,
retoma sua fúria sob o império do Anticristo.
O abismo
de onde ela sobe é o esquecimento de Deus; e sua perdição, o juízo final.
Os homens que se admiram dela são os que não têm o nome inscrito no livro da
vida — os que julgam o poder segundo a aparência e não segundo a verdade.
“Aqui há sentido que
tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes sobre os quais está sentada a
mulher, e são também sete reis.”
Os sete montes, nota Beda,
aludem à cidade de Roma, edificada sobre sete colinas, mas também à totalidade
dos reinos humanos.
Cada monte é um estágio da soberba do mundo.
O número sete indica plenitude: a história inteira do poder terreno, do Egito a
Roma, manifesta a mesma lei de ascensão e queda.
Mas o texto acrescenta: “são também sete reis.”
Beda interpreta esses reis não apenas como monarcas, mas como espíritos de dominação:
1.
o
império da carne,
2.
o
império da curiosidade,
3.
o
império da razão sem fé,
4.
o
império da glória,
5.
o
império da violência,
6.
o
império do erro espiritual,
7.
e,
por fim, o império do Anticristo.
Cada um é sucessor do outro,
mas todos partilham a mesma raiz: o orgulho que se levanta contra Deus.
“Cinco caíram, um
existe, o outro ainda não veio; e, quando vier, deve permanecer pouco tempo.”
Beda lê esta sentença como a
chave da visão.
Os cinco caídos
representam os impérios passados — Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia.
O que “existe” é Roma, o sexto; e o que “ainda não veio” é o reino do
Anticristo, o sétimo, que surgirá por breve tempo.
Mas a interpretação espiritual
é mais profunda:
os “cinco caídos” são também as potências interiores já vencidas pela graça;
o “que existe” é a soberba ainda presente no mundo e na alma;
o “que há de vir” é a rebelião final — a apostasia universal, quando o homem
tentará sentar-se no trono de Deus.
“E a besta que era e
não é, é também o oitavo, e é dos sete, e vai à perdição.”
O oitavo simboliza a
paródia da eternidade.
É o retorno cíclico do mal sob nova forma: o poder que se repete em toda era,
como se tivesse ressuscitado.
É “dos sete”, porque contém em si todos os anteriores; é a totalidade da
corrupção humana.
Mas vai à perdição — pois o número oito, que na Escritura é símbolo da
ressurreição, aqui se inverte e se torna o sinal do juízo.
Assim, diz Beda, a besta imita
o Cristo até nos números: quer ter sua própria oitava, seu próprio domingo
eterno — o eterno retorno do orgulho.
“E os dez chifres que
viste são dez reis, que ainda não receberam reino, mas receberão poder como
reis, por uma hora, juntamente com a besta.”
Os dez chifres são os
reinos fragmentários que sucedem ao império unificado — os poderes menores que,
no fim, se unirão sob a influência do Anticristo.
“Uma hora” indica a brevidade e a simultaneidade de seu domínio: não durarão,
mas agirão de comum acordo na perseguição aos santos.
Beda entende esses dez reis como a multiplicação das potências do erro: o mundo
dividido em sistemas, cada um sustentando o mesmo espírito anticrístico.
“Estes têm um mesmo
intento, e entregarão o seu poder e autoridade à besta.”
Quando o juízo se aproxima, a
divisão aparente do mundo converte-se em unidade do mal.
Todos os poderes, antes rivais, se alinham num mesmo propósito: negar o Cristo.
É o falso ecumenismo do erro, a convergência das ideologias sob uma paz
ilusória.
Beda nota que, assim como o Espírito Santo unifica os fiéis, o espírito da
besta unifica os ímpios.
“Estes pelejarão contra
o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, porque é Senhor dos senhores e Rei dos
reis; e os que estão com ele são chamados, escolhidos e fiéis.”
A batalha final é desigual
desde o princípio: o Cordeiro vence não pela força, mas pela verdade.
Os santos o acompanham, não como exércitos de armas, mas como testemunhas de
luz.
“Chamados” pela graça, “escolhidos” pela fé e “fiéis” pela perseverança — esta
tríplice nota é, para Beda, o verdadeiro número da salvação.
Enquanto os dez chifres representam a totalidade do erro, os três atributos —
chamada, eleição, fidelidade — representam a totalidade da santidade.
“E disse-me o anjo: As
águas que viste, onde se assenta a meretriz, são povos, multidões, nações e
línguas.”
As águas são a
instabilidade das multidões humanas.
A Babilônia vive da fluidez, da constante agitação dos povos — quanto mais
instável o mundo, mais forte sua influência.
Beda vê nisso a imagem do caos social e moral que precede o juízo: o homem
dissolvido em massa, a pessoa perdida na torrente.
E sobre esse mar agitado, a meretriz se assenta — a cultura mundana que domina
pelo fascínio e pelo medo.
“E os dez chifres e a
besta odiarão a meretriz, e a despojarão, e a comerão, e a queimarão com fogo.”
Aqui se revela a ironia divina
do juízo: o mal destrói a si mesmo.
Os poderes que sustentavam a Babilônia se voltam contra ela.
A mentira devora a mentira; o sistema implode.
Beda comenta: “Deus permite
que o próprio erro consuma o erro, para que a verdade se manifeste sem
esforço.”
O fogo é o símbolo da purificação que consome o império da vaidade.
Conclusão do Capítulo
II
As sete cabeças, os dez chifres
e a mulher formam um único drama — a história inteira do poder humano sem Deus.
No fim, a besta odeia a mulher que a montava: o poder destrói a própria cultura
que o alimentava.
É o círculo perfeito da corrupção: o mundo termina como começou — amando o
próprio nada.
Mas sobre essas ruínas se ergue
o Cordeiro, cuja vitória não tem ruído, porque é interior.
O império das bestas passa; o Reino do Verbo permanece.
LIVRO QUINTO
CAPÍTULO III
A Ruína da Babilônia
“E depois destas coisas
vi descer do céu outro anjo, que tinha grande poder; e a terra foi iluminada
com a sua glória.”
O anjo que desce do céu é a
manifestação visível do juízo divino — uma luz espiritual que revela o que
estava oculto.
A terra iluminada
representa a humanidade despertada: quando Deus decide julgar, a consciência do
mundo se acende, e nada mais permanece escondido.
A glória do anjo é a justiça de Deus que, por um instante, tudo torna transparente.
“E clamou fortemente
com grande voz, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, a grande! e se tornou morada de
demônios, e guarida de todo espírito imundo, e esconderijo de toda ave imunda e
aborrecível.”
A repetição — “caiu, caiu” — indica a
queda completa, no corpo e na alma.
A Babilônia é a civilização que recusou a luz e tornou-se habitação das trevas.
Beda comenta que, no fim, toda cultura fundada sobre a mentira degenera em
superstição e desespero.
As “aves imundas” são os pensamentos e doutrinas que pairam sobre os mortos
espirituais; os “demônios” são os vícios que, uma vez expulsos, retornam para
ocupar a casa vazia.
“Porque todas as nações
beberam do vinho da ira da sua fornicação, e os reis da terra se prostituíram
com ela, e os mercadores da terra se enriqueceram com a abundância de suas
delícias.”
Aqui Beda faz uma distinção
profunda:
– As nações
simbolizam o povo simples, embriagado pela ilusão dos prazeres;
– Os reis,
o poder político e intelectual que pactuou com o erro;
– Os mercadores,
a elite econômica e cultural que fez do vício um mercado.
O “vinho da fornicação” é o gosto pelo prazer transformado em ideologia — a
economia do pecado, onde tudo é vendido e comprado, inclusive as almas.
“E ouvi outra voz do
céu, dizendo: Saí dela, povo meu, para que não sejais participantes dos seus
pecados, e para que não recebais das suas pragas.”
É o chamado eterno da separação
espiritual.
“Saí dela” — não fisicamente, mas pela conversão interior.
Beda interpreta este versículo como o juízo presente em cada época: toda vez
que a Igreja se mundaniza, Deus chama um remanescente a sair.
A fuga da Babilônia é a pureza da fé no meio da corrupção — o êxodo da alma
fiel.
“Porque os seus pecados
se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das suas iniquidades.”
O “lembrar-se” de Deus não é
esquecimento anterior, mas momento da execução: o juízo não é súbito, é a
maturação da paciência divina.
Os pecados acumulados até o céu simbolizam o limite do perdão — não em Deus,
mas no homem, quando ele se torna incapaz de receber a misericórdia.
“Dai-lhe como ela vos
deu, e pagai-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice que encheu,
enchei-lhe o dobro.”
O dobro é o símbolo da
retribuição perfeita.
A Babilônia, que ofereceu o cálice da mentira, recebe o cálice da verdade — mas
como fogo.
Beda observa que a justiça divina não é vingança, mas simetria: cada ato volta
à sua origem.
O cálice do prazer retorna como cálice de amargura.
“Quanto se glorificou e
em delícias esteve, tanto tormento e pranto lhe dai; porque diz em seu coração:
Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei pranto.”
A soberba da Babilônia é a
ilusão de autossuficiência.
“Não sou viúva” — isto é, não dependo de Deus.
Por isso o castigo é proporcional: quanto mais se glorificou, mais
profundamente será humilhada.
A falsa alegria se converterá em lamento, e o orgulho em confusão.
“Por isso num mesmo dia
virão as suas pragas: morte, pranto e fome; e será queimada no fogo, porque é
forte o Senhor Deus que a julga.”
O “mesmo dia” significa a
súbita reversão dos destinos.
A morte é a ruína do corpo político, o pranto é a perda da glória, a fome é a
secura espiritual.
O fogo é o juízo final, e o verbo “julga” (judicat)
indica presente contínuo: Deus está julgando sempre, e o fim apenas revela o
que já se cumpria em silêncio.
“E chorarão e se
lamentarão sobre ela os reis da terra, que se prostituíram com ela e viveram em
delícias, quando virem a fumaça do seu incêndio.”
Os reis choram não por
arrependimento, mas por perda.
Lamentam o fim do sistema que os sustentava.
Beda nota com ironia que o mundo lamenta a destruição do próprio veneno, e o
faz em distância — “de longe” — porque teme partilhar das pragas.
É o lamento do egoísmo, não da contrição.
“E os mercadores da
terra chorarão e se lamentarão sobre ela, porque ninguém mais compra as suas
mercadorias.”
O comércio da corrupção chegou
ao fim.
As “mercadorias” são as paixões vendidas como bens — prazeres, poder, falsas
ciências.
A Babilônia cai, e com ela a economia do pecado.
Beda aplica aqui uma interpretação espiritual notável: quando a alma se
converte, o demônio perde o comércio de suas ilusões — não há mais comprador.
“E os mercadores das
mercadorias de ouro, e de prata, e de pedras preciosas, e de pérolas, e de
linho fino, e de púrpura, e de seda, e de escarlata...”
Esta enumeração, diz Beda, não
descreve o luxo material, mas os vícios espirituais mascarados de virtudes.
O ouro é o orgulho; a prata, a vanglória; as pedras, o prazer; o linho fino, a
hipocrisia da aparência; a púrpura e a escarlata, o sangue dos justos usado
como ornamento.
O mundo reveste o pecado com a linguagem da beleza, e por isso o juízo começa
pela estética da mentira.
Conclusão do Capítulo
III
A queda de Babilônia é o juízo
universal de todos os sistemas que se fizeram deuses.
Reis, mercadores e povos — todos os que venderam a verdade por lucro —
lamentam, mas não se convertem.
Enquanto isso, a Igreja purificada se alegra: da ruína do império da carne
nasce a liberdade dos filhos de Deus.
A justiça de Deus é luz: não
destrói o mundo, revela-o tal como é.
E o lamento das nações é o eco do inferno — o pranto do orgulho quando se vê
vencido pelo Cordeiro.
LIVRO QUINTO
CAPÍTULO IV
O Cântico no Céu e o
Triunfo do Cordeiro
“E depois destas coisas
ouvi como que uma grande voz de uma grande multidão no céu, dizendo: Aleluia!
Salvação, e glória, e honra, e poder pertencem ao nosso Deus; porque
verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande meretriz que
corrompia a terra com a sua fornicação, e vingou o sangue dos seus servos das
mãos dela.”
O cântico do céu é o
contraponto ao lamento da terra.
Enquanto os reis e mercadores choram a perda de Babilônia, o céu celebra a
libertação da Igreja.
O “Aleluia”,
diz Beda, é a palavra da eternidade — a língua própria dos bem-aventurados, em
que toda dor é transfigurada em louvor.
Os juízos de Deus são declarados “verdadeiros e justos” porque revelam a
harmonia secreta entre a justiça e a misericórdia.
O sangue dos servos é vingado não por ódio, mas por restituição da ordem: os
mártires recebem glória onde antes havia humilhação.
“E disseram segunda
vez: Aleluia! E a sua fumaça sobe pelos séculos dos séculos.”
A repetição do Aleluia indica a
plenitude da vitória — o eco do cântico que não se extingue.
A fumaça
da Babilônia, que antes era símbolo de ruína, torna-se agora sinal de
purificação: o mal consumido é memória da justiça.
Beda observa que “subir pelos séculos dos séculos” não é continuidade do
castigo, mas permanência do testemunho.
A destruição do erro é eterna, como eterna é a luz que dela nasce.
“E os vinte e quatro
anciãos e os quatro animais prostraram-se e adoraram a Deus que está assentado
sobre o trono, dizendo: Amém, Aleluia.”
Os vinte e quatro anciãos
são as duas alianças — doze patriarcas e doze apóstolos —, a totalidade da
revelação;
os quatro animais
são os evangelistas, sustentáculos da Palavra.
Todos se prostram, porque a história se conclui: nada resta senão adorar.
O “Amém” sela o cumprimento das promessas; o “Aleluia” abre o louvor eterno.
Beda nota que a combinação dessas duas palavras é o ápice da liturgia celeste —
consentimento e alegria em unidade perfeita.
“E saiu uma voz do
trono, dizendo: Louvai ao nosso Deus, vós todos os seus servos, e vós que o
temeis, pequenos e grandes.”
O convite vem do próprio trono
— isto é, do coração da divindade.
“Pequenos e grandes” abrange toda a hierarquia da graça: desde os simples fiéis
até os doutores e mártires.
Ninguém está excluído do cântico, porque a glória de Deus se manifesta tanto na
pequenez quanto na majestade.
Beda vê aqui a Igreja celeste chamando a Igreja peregrina: o louvor dos santos
é convite à santificação dos vivos.
“E ouvi como que a voz
de uma grande multidão, e como a voz de muitas águas, e como a voz de fortes
trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso.”
A tríplice imagem — multidão,
águas e trovões — indica as três ordens do universo glorificado:
– a multidão
dos santos;
– as águas
da sabedoria;
– os trovões
da majestade divina.
O coro universal proclama o reinado de Deus — não futuro, mas presente: “regnavit”.
Beda insiste que aqui o verbo está no perfeito: o Reino já se consumou, o tempo
cessou.
É o instante em que o ser retorna à sua fonte e o poder humano é abolido.
“Regozijemo-nos e
alegremo-nos, e demos-lhe glória, porque vindas são as bodas do Cordeiro, e a
sua esposa já se aprontou.”
As bodas são o símbolo
máximo da união entre Cristo e a Igreja.
O juízo da meretriz prepara o casamento da Esposa: a purificação antecede a
comunhão.
A Esposa “já se aprontou” porque foi lavada no sangue do Cordeiro — a santidade
da Igreja é dom, não conquista.
Beda escreve: “O mesmo amor
que julgou a meretriz, adornou a Esposa.”
“E foi-lhe dado que se
vestisse de linho fino, puro e resplandecente; porque o linho fino são as
justiças dos santos.”
O linho fino é a pureza
interior — as obras feitas na luz da fé.
O verbo “foi-lhe dado” (datum
est) mostra que a virtude é graça, não mérito autônomo.
O resplendor do linho é a manifestação das obras santas diante de Deus: os atos
ocultos se tornam luminosos.
Assim, a veste da Esposa é tecida com o próprio tecido de sua fidelidade.
“E disse-me o anjo:
Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro.
E disse-me: Estas são as verdadeiras palavras de Deus.”
A ceia das bodas é o
banquete escatológico — a plenitude da comunhão divina.
Ser “chamado” é já participar da bem-aventurança: o convite é a própria graça.
Beda identifica aqui a transfiguração da Eucaristia: o sacramento terrestre se
cumpre na realidade eterna.
As “verdadeiras palavras” são aquelas que não passam: o anúncio da felicidade
definitiva dos justos.
“E eu caí aos seus pés
para o adorar; e ele disse-me: Olha, não faças tal; sou teu conservo e de teus
irmãos que têm o testemunho de Jesus; adora a Deus; porque o testemunho de
Jesus é o espírito da profecia.”
João, tomado pela visão, tenta
adorar o anjo; mas o anjo o corrige — não há intermediário entre o servo e o
Senhor.
O “testemunho de Jesus” é o sentido último de toda profecia: Cristo é o centro
de toda revelação.
Beda nota com elegância: “O
anjo recusa o culto porque não quer interromper a linha do amor que sobe direto
ao Trono.”
Aqui termina a visão da Esposa e começa a do Guerreiro — o mesmo Cordeiro que é
também Verbo de Deus.
Conclusão do Capítulo
IV
Com este cântico, a história
humana atinge o limiar da eternidade.
O mal foi julgado, a mentira dissolvida, e a Esposa está pronta.
O céu inteiro canta, e o verbo de Deus prepara-se para descer — não mais como
sacrificado, mas como Rei e Juiz.
Beda encerra dizendo:
“O Aleluia que começa aqui não
terá fim, pois o amor do Cordeiro é o repouso dos santos.”
LIVRO SEXTO
CAPÍTULO I
O Cavaleiro do Cavalo
Branco
“E vi o céu aberto, e
eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e
Verdadeiro, e julga e peleja com justiça.”
O céu aberto é o
desvelamento da verdade divina, e o cavalo
branco, a Igreja militante sob a direção de Cristo.
A cor branca indica pureza e vitória; o cavaleiro é o Verbo de Deus — o mesmo
Cordeiro que agora aparece como Rei e Juiz.
O título Fiel e Verdadeiro
designa a constância divina: Ele é fiel às promessas e verdadeiro na execução
dos juízos.
Julga com justiça porque vê os corações; peleja não com armas, mas com o poder
da Palavra.
“E os seus olhos eram
como chama de fogo, e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome
escrito que ninguém sabia, senão ele mesmo.”
Os olhos como fogo são o
olhar que penetra todos os segredos: nada escapa à visão do Verbo.
Os muitos diademas
representam as múltiplas coroas da glória divina — soberania sobre todos os
reinos do ser.
O nome secreto
é a essência inefável de Deus: só Ele se conhece perfeitamente.
Beda comenta: “O nome que
ninguém sabe é a plenitude da divindade, inacessível à criatura, ainda que
vista na glória.”
“E estava vestido de
uma veste tingida em sangue; e o seu nome é: o Verbo de Deus.”
A veste tingida em sangue
é a humanidade redimida — o corpo místico de Cristo marcado pela paixão.
O Verbo de Deus
é o nome manifesto, contraposto ao nome oculto: o Logos que se revelou na
carne.
Beda vê nisso a síntese de toda teologia: o Deus invisível se torna visível na
Palavra encarnada; o mistério do juízo é o mesmo da Encarnação.
“E seguiam-no os
exércitos que há no céu, em cavalos brancos, vestidos de linho fino, branco e
puro.”
Os exércitos celestes são
os santos — os justos glorificados que participam do triunfo do Verbo.
Os cavalos brancos
indicam as almas purificadas, dóceis à vontade de Deus.
O linho fino
é a santidade, já explicada no capítulo anterior como “as justiças dos santos”.
O Cristo, diz Beda, não vence sozinho: a vitória de Deus é comunhão, é o coro
dos que amaram até o fim.
“E da sua boca saía uma
espada aguda, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com vara de ferro;
e pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-Poderoso.”
A espada é a palavra que
corta — o juízo do Verbo, mais penetrante que lâmina alguma.
As nações feridas
são as consciências despertadas: o castigo é revelação.
A vara de ferro
simboliza a inflexibilidade da justiça: Cristo não governa por consenso, mas
pela verdade.
O lagar é
o mesmo já visto na ceifa do Livro Terceiro — a separação final entre o puro e
o impuro, o amor e o orgulho.
Beda nota: “A espada que fere
é a mesma que cura; o lagar que esmaga é o mesmo que purifica.”
“E no seu manto e na
sua coxa tem escrito este nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”
A coxa — parte da força —
indica o poder gerador da divindade.
O nome escrito no manto e na coxa mostra que a glória de Cristo é visível tanto
na carne (manto) quanto na potência divina (coxa).
Ele é Rei dos reis porque domina o visível; Senhor dos senhores porque governa
o invisível.
O duplo título é a síntese do tempo e da eternidade — domínio total do Logos
sobre o ser.
CAPÍTULO II
A Derrota das Bestas
“E vi um anjo que
estava no sol, e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voam pelo
meio do céu: Vinde, ajuntai-vos para a grande ceia de Deus.”
O anjo no sol é a luz do
juízo — a clareza total que convida os elementos da criação a testemunhar o
desfecho da história.
As aves
simbolizam os espíritos contemplativos que participam do triunfo de Deus.
A ceia de Deus
é o banquete do juízo: a reunião universal dos destinos.
Beda escreve: “O mesmo mundo
que serviu de mesa para o pecado será mesa para a justiça.”
“Para que comais a
carne dos reis, e a carne dos capitães, e a carne dos fortes, e a carne dos
cavalos e dos que sobre eles se assentam.”
É a imagem terrível da queda
dos poderosos.
A “carne” significa o que é corruptível; ser devorado é ser reduzido à verdade.
Beda interpreta esta cena como a aniquilação do orgulho: as potências do mundo
são entregues à sua própria fraqueza — a verdade as consome.
“E vi a besta e os reis
da terra e os seus exércitos reunidos para fazer guerra àquele que estava
assentado sobre o cavalo e ao seu exército.”
O último combate é o confronto
entre a mentira total e a verdade absoluta.
A besta e seus exércitos são todas as estruturas do mal — políticas,
intelectuais e espirituais — reunidas para impedir a manifestação de Cristo.
Mas sua derrota é imediata, porque o poder do Verbo não luta, apenas se revela.
Beda diz: “Quando a luz
aparece, as trevas não são vencidas — desaparecem.”
“E a besta foi presa, e
com ela o falso profeta, que fazia diante dela os sinais com que enganava os
que receberam o sinal da besta e adoraram a sua imagem; estes dois foram
lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.”
A prisão é a impotência do mal
diante da verdade.
O lago de fogo
é o juízo eterno — não o castigo físico, mas a fixação definitiva da vontade
perversa.
Beda nota que a besta e o falso profeta são lançados “vivos”: não cessam de
existir, mas permanecem eternamente na autodestruição.
É o “fogo da consciência”, a visão do bem perdido, que é o verdadeiro inferno.
“E os demais foram
mortos com a espada que saía da boca daquele que estava assentado sobre o
cavalo; e todas as aves se fartaram das suas carnes.”
A espada da boca é
novamente a Palavra — mata o erro pela revelação da verdade.
As “aves fartas” são os espíritos justos saciados de contemplar a justiça
divina.
O triunfo é total: o mal é desmascarado, e o bem, manifestado em plenitude.
CAPÍTULO III
A Prisão do Dragão e o
Reino dos Santos
“E vi descer do céu um
anjo, que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na mão; e prendeu o
dragão, a antiga serpente, que é o diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos.”
O anjo é Cristo ou o poder
da sua Igreja.
A cadeia é
a graça que limita a ação do inimigo.
Os mil anos
não são número cronológico, mas símbolo da totalidade do tempo entre a primeira
e a segunda vinda de Cristo.
Durante esse período, Satanás está preso — isto é, o Evangelho impede que ele
engane as nações como antes.
Beda ensina que este é o reino
espiritual de Cristo, já presente na Igreja.
“E vi tronos, e
assentaram-se sobre eles, e foi-lhes dado o poder de julgar; e vi as almas
daqueles que foram degolados por causa do testemunho de Jesus, e que não
adoraram a besta nem a sua imagem.”
Os tronos são os lugares de
honra concedidos aos mártires e confessores.
Eles reinam com Cristo porque participaram da sua cruz.
O juízo que exercem é o discernimento da verdade: a glória dos santos é
iluminar o mundo com a justiça divina.
Aqueles que não adoraram a besta são os que resistiram ao conformismo
espiritual — as consciências incorruptíveis.
“E viveram e reinaram
com Cristo mil anos. Mas os outros mortos não reviveram até que os mil anos se
acabaram. Esta é a primeira ressurreição.”
A primeira ressurreição é
a regeneração pela graça — o renascimento interior.
Os que vivem com Cristo são os que, já nesta vida, ressuscitaram do pecado.
Os “outros mortos” são os que permanecem na escuridão do erro até o juízo
final.
Beda identifica aqui o verdadeiro milênio: a era da Igreja, em que Cristo reina
invisivelmente nas almas dos justos.
“Bem-aventurado e santo
aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes a segunda morte não
tem poder.”
A segunda morte é a
separação eterna de Deus.
Quem já ressuscitou espiritualmente pela fé não pode mais ser vencido por ela.
Esta é a promessa definitiva: o domínio do pecado foi destruído, e a vida
eterna começou no coração dos fiéis.
Conclusão do Livro
Sexto
O dragão está preso, as bestas
foram lançadas ao fogo, e os santos reinam com Cristo.
Beda conclui que este é o “sábado da história” — o tempo entre a vitória do
Calvário e o juízo final.
Não é repouso ocioso, mas contemplação ativa: a Igreja, em meio às tribulações,
vive já a antecipação da eternidade.
“O milênio”, escreve ele, “é o
tempo em que o Senhor reina em seus eleitos, e em que a fé subjuga o mundo —
até que venha a luz sem ocaso.”
LIVRO SÉTIMO
CAPÍTULO I
A Soltura do Dragão e o
Juízo Final
“E, acabando-se os mil
anos, Satanás será solto de sua prisão, e sairá a enganar as nações que estão
sobre os quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de ajuntá-los para a
batalha; o número deles é como a areia do mar.”
Beda explica que a soltura do dragão
representa a última provação da Igreja, quando o poder do erro, antes contido,
será liberado para testar a fidelidade dos santos.
“Gogue e Magogue” são os nomes simbólicos dos povos do engano universal — não
um povo único, mas toda humanidade entregue à ilusão final.
A “areia do mar” indica a vastidão sem unidade: multidões incontáveis e,
contudo, vazias de sentido.
O demônio é solto, mas não vitorioso — sai para cumprir sua própria derrota.
“E subiram sobre a
largura da terra, e cercaram o arraial dos santos e a cidade amada; mas desceu
fogo do céu e os devorou.”
O arraial dos santos é a
Igreja fiel; a cidade
amada, a comunhão dos justos.
A última perseguição se manifesta como cerco espiritual — o ódio do mundo
contra a verdade.
Mas o “fogo do céu” é a intervenção direta de Deus: não destruição física, mas
a luz que consome o engano.
Beda comenta: “O fogo que
devora os ímpios é o mesmo que ilumina os justos — chama do mesmo amor, sentida
de modo oposto.”
“E o diabo, que os
enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde está a besta e o falso
profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre.”
Aqui se encerra o ciclo do mal.
O diabo é lançado no mesmo destino das bestas: o lago de fogo — símbolo da
impotência eterna, da consciência que jamais alcança o bem.
O tormento “de dia e de noite” é o eterno movimento sem repouso — a vida sem
Deus.
Beda vê nisso a definição do inferno: a privação do amor, a ausência que nunca
se resolve.
CAPÍTULO II
O Trono Branco e o
Julgamento dos Mortos
“E vi um grande trono
branco, e o que estava assentado sobre ele, de cuja presença fugiu a terra e o
céu; e não se achou lugar para eles.”
O trono branco é a pureza
do juízo divino.
A terra e o céu que fogem não são aniquilados, mas transfigurados — a criação
antiga cede lugar à nova.
Nada de impuro permanece diante do olhar do Juiz.
Beda comenta: “Branco é o
trono porque o juízo de Deus é luz sem sombra.”
“E vi os mortos,
grandes e pequenos, que estavam diante de Deus; e abriram-se os livros; e
abriu-se outro livro, que é o da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas
que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras.”
Os livros são as
consciências humanas — cada um lê a própria história à luz da verdade.
O livro da vida
é Cristo mesmo, no qual estão escritos os nomes dos que O amaram.
As obras
não são apenas atos exteriores, mas intenções: tudo o que o homem quis, pensou
e amou.
O juízo, para Beda, é revelação: Deus não condena, o homem se reconhece.
“E o mar entregou os
mortos que nele havia; e a morte e o inferno entregaram os mortos que neles
havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras.”
O mar, a morte e o inferno são as três
dimensões do esquecimento humano: o tempo, o corpo e o espírito separados da
graça.
Tudo é restituído — nada fica oculto.
A plenitude do juízo é o recolhimento de tudo o que o pecado havia dispersado.
“E a morte e o inferno
foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte.”
Aqui se cumpre a grande
inversão: a própria morte morre.
A “segunda morte” é o estado fixo do afastamento de Deus; o “lago de fogo” é o
limite onde o mal se consome.
Beda escreve: “Quando a morte
é lançada no fogo, o que resta é apenas vida — pois tudo o que não é Deus deixa
de ser.”
“E aquele que não foi
achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.”
Ser lançado fora é o resultado
natural de não querer estar dentro.
O juízo, longe de ser imposição, é a manifestação da liberdade: cada alma vai
para onde sempre quis estar.
O livro da vida contém os que desejaram a verdade — e a verdade, finalmente, os
acolhe.
CAPÍTULO III
O Novo Céu e a Nova
Terra
“E vi um novo céu e uma
nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra passaram; e o mar já não
existe.”
O novo céu é a
inteligência iluminada; a nova
terra, o corpo espiritualizado.
O mar que não existe mais
é o símbolo do tumulto e da divisão — o fim da instabilidade e do medo.
Beda interpreta esta passagem como o cumprimento da oração do Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso Reino”
— isto é, o universo reconciliado em Deus.
“E eu, João, vi a santa
cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu, de Deus, adereçada como uma esposa
ataviada para o seu marido.”
A nova Jerusalém é a
Igreja gloriosa, adornada pela caridade e pela sabedoria.
Desce do céu — não é construída de baixo para cima, mas concedida de cima para
baixo.
É a união perfeita do divino e do criado, da graça e da natureza.
Beda nota: “A Esposa desce
porque o amor de Deus é sempre o primeiro movimento.”
“E ouvi uma grande voz
do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, e com eles
habitará, e eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles, e será o
seu Deus.”
O tabernáculo de Deus com os homens
é o mistério da Encarnação agora consumado em plenitude.
Não há mais mediação, nem templo, nem véu: Deus é presença imediata.
A distinção entre céu e terra se dissolve — toda criação se torna morada da
Trindade.
“E Deus limpará de seus
olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor,
porque já as primeiras coisas são passadas.”
Esta é, para Beda, a definição
da eternidade: a vida sem perda.
As lágrimas são enxugadas porque o próprio Deus se faz consolação.
A morte cessa, porque o amor é infinito.
Nada mais passa — tudo permanece.
O tempo foi curado.
CAPÍTULO IV
A Jerusalém Celeste
“E veio um dos sete
anjos que tinham as sete taças... e mostrou-me a esposa, a mulher do Cordeiro.
E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-me a grande cidade,
a santa Jerusalém, que descia do céu de Deus, tendo a glória de Deus.”
A cidade e a esposa são uma só
realidade: a comunhão dos santos.
O monte alto
é o estado da contemplação, onde a alma vê sem mediações.
A glória que ela reflete não é sua, mas de Deus — a cidade é espelho da
divindade.
Beda vê nisso a realização da bem-aventurança: “ver a Deus em todos e todos em
Deus”.
“E tinha um muro grande
e alto, e tinha doze portas... e sobre as portas, doze anjos, e nomes
inscritos, que são das doze tribos dos filhos de Israel.”
O muro é a verdade; as doze portas, os
apóstolos; os anjos,
as virtudes que guardam a entrada.
O número doze expressa plenitude e ordem — a totalidade da salvação.
Ninguém entra sem passar pela caridade apostólica.
Beda comenta: “O muro é alto,
porque a verdade é invencível; é transparente, porque nada oculta senão o
mistério da luz.”
“E a cidade era de ouro
puro, semelhante a vidro límpido.”
O ouro é a caridade
incorruptível; o vidro
límpido, a pureza intelectual.
A união das duas substâncias simboliza a sabedoria perfeita — amor
transparente.
Nada na cidade é opaco: cada ser reflete o Todo.
“E o fundamento do muro
da cidade estava adornado de toda pedra preciosa.”
As pedras são os dons do
Espírito Santo, que sustentam a estrutura da eternidade.
Cada virtude, purificada pela prova, se torna luz sólida.
Beda escreve: “O que na terra
era luta, no céu é forma; o que era virtude, é agora substância.”
“E a cidade não
necessita de sol, nem de lua, para lhe darem luz, porque a glória de Deus a
ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada.”
Aqui a visão atinge seu ápice.
O Cordeiro-Luz
é o centro da Jerusalém celeste — o Logos que ilumina tudo por dentro.
Não há mais noite, porque não há mais sombra do pecado.
Deus é a própria claridade do ser.
Beda conclui: “O sol e a lua
passam, porque toda luz criada se recolhe na Luz increada.”
CAPÍTULO V
O Rio da Vida e a Visão
Beatífica
“E mostrou-me um rio
puro de água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do
Cordeiro.”
O rio da vida é o Espírito
Santo, procedente do Pai e do Filho, que eternamente vivifica a cidade.
A água cristalina
simboliza o conhecimento direto de Deus — sem mediação nem sombra.
A Trindade é aqui vista em ato: o trono (Pai), o Cordeiro (Filho) e o rio
(Espírito) formam a circulação eterna do Amor.
“E no meio da praça da
cidade, e de um e de outro lado do rio, estava a árvore da vida, que produz
doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a
saúde das nações.”
A árvore da vida é Cristo,
cuja humanidade glorificada comunica vida a todos.
Os doze frutos
são as virtudes perfeitas; as folhas,
os exemplos dos santos.
A saúde das nações é a cura da divisão: toda diversidade se reconcilia na
unidade do amor.
“E ali nunca mais
haverá maldição; e nela estará o trono de Deus e do Cordeiro; e os seus servos
o servirão, e verão a sua face, e o seu nome estará em suas frontes.”
A visão da face de Deus é
o fim último da alma — a bem-aventurança perfeita.
O nome na fronte
significa a completa identificação do homem com Deus — o intelecto divinizado.
Servir e ver são uma só coisa: ação e contemplação se fundem.
Beda afirma: “No céu, o amor é
o ato da visão; e ver a Deus é amá-lo sem cessar.”
“E não haverá mais
noite ali, e não necessitarão de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor
Deus os alumia, e reinarão pelos séculos dos séculos.”
Aqui termina a Revelação: o
Reino é eterno, a luz é perene, o amor é infinito.
Não há noite, porque não há ignorância; não há lâmpada, porque não há
intermediário.
O homem se torna o que contemplou — reflexo da própria Luz.
Conclusão do Livro
Sétimo
Beda encerra sua Explanatio com estas
palavras:
“A Jerusalém que João viu
descer é a Igreja que Deus quis desde o princípio; o que para nós é futuro,
para Ele é presente.
O fim da profecia é o mesmo que o princípio da criação: o Verbo habitando entre
os homens.”
Assim, a história se fecha no
mesmo gesto com que começou:
o Logos pronunciando-se sobre o caos — agora não mais para criar o mundo, mas
para criá-lo novamente na luz eterna.
FINIS OPERIS
“Et ostendit mihi fluvium
aquae vitae, splendidum tamquam crystallum, procedentem de throno Dei et Agni.”
— Beda Venerabilis, Explanatio
Apocalypsis, VII, 5
Nesta obra se cumpre o
itinerário espiritual do Apocalipse — não como prenúncio de destruição, mas
como revelação da unidade entre juízo e amor.
Em cada visão, o Venerável Beda não procura o terror, mas o sentido: o mundo,
purificado pela palavra, retorna ao seu princípio.
A besta, a cidade, os reis e os exércitos, todos se dissolvem diante da luz do
Cordeiro — o mesmo Verbo que, no princípio, dissera “Fiat lux”, agora pronuncia
o “Consummatum est” da história.
A tradução integral aqui
apresentada manteve o pulso do texto latino, conservando-lhe a gravidade
litúrgica e a cadência simbólica.
Cada imagem, cada figura, cada juízo de Beda é, em sua essência, um degrau da
ascensão da mente — do intelecto ferido pela queda ao intelecto pacificado na
visão.
O fim da profecia é o repouso
da mente em Deus.
O Apocalipse, assim compreendido, não termina em catástrofe, mas em
nupcialidade.
É o reencontro da criação com seu Criador, da inteligência com a Verdade, da
Palavra com o Silêncio.
E como escreve o próprio Beda,
encerrando sua obra:
“Finis libri, non finis
sensus; quia finis Apocalypsis non est consumptio mundi, sed transitus ad lucem
aeternam.”
— “Fim do livro, não do sentido; pois o fim do Apocalipse não é a destruição do
mundo, mas sua passagem à luz eterna.”
Explanatio Apocalypsis
Sancti Joannis Apostoli
Autor: Beda, o Venerável
(672–735)
Tradução integral e estudo introdutório: Jardel
Almeida
Assistência filosófica: Sophión
Base textual: Patrologia
Latina, vol. 93
Edição: Ad mentem Patrum
Ecclesiae
Ano e local: 2025 — Ad
mentem Thomae et Scoti
Selo Editorial: “S” — Sophión, Logos Encerrado
Símbolo do intelecto que se curva diante do Mistério.

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