TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Quinti
Septimii Florentis Tertulliani presbyteri carthaginensis De Anima liber
(Tertuliano, presbítero de Cartago — Livro sobre a
Alma)
Index
capitum — Índice dos capítulos
Caput I — De causis scribendi hujus libri
Das causas que levaram à composição deste livro.
Caput II — Quod fides Christiana prius credere
debeat quam disputare
Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por raciocínios.
Caput III — De definitione animae secundum
philosophiam
Sobre a definição da alma segundo a filosofia.
Caput IV — De substantia animae, an corporea sit
Sobre a substância da alma e se ela é corpórea.
Caput V — De forma et figura animae
Sobre a forma e figura da alma.
Caput VI — De conditione et qualitate animae
Sobre a condição e qualidade da alma.
Caput VII — De origine animae
Sobre a origem da alma.
Caput VIII — De opinionibus philosophorum et
haereticorum circa originem animae
Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem da alma.
Caput IX — De sententia Platonis et Hermogeni de
animae substantia
Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes a respeito da substância da alma.
Caput X — De animarum propagatione
Sobre a propagação das almas.
Caput XI — De natura animae humanae ex anima primi
hominis derivata
Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro homem.
Caput XII — De distinctione animae a spiritu
Sobre a distinção entre alma e espírito.
Caput XIII — De sexu animae
Sobre o sexo da alma.
Caput XIV — De sensibus animae et de affectibus
ejus
Sobre os sentidos e os afetos da alma.
Caput XV — De somno et de somniis
Sobre o sono e os sonhos.
Caput XVI — De visione animarum defunctorum
Sobre as visões das almas dos defuntos.
Caput XVII — De statu animae in morte
Sobre o estado da alma na morte.
Caput XVIII — De inferis et diversitate
receptaculorum animarum
Sobre o inferno e a diversidade dos lugares onde as almas são recebidas.
Caput XIX — De resurrectione carnis et reditu
animae ad corpus
Sobre a ressurreição da carne e o retorno da alma ao corpo.
Caput XX — De sensu poenarum et gaudiorum post
mortem
Sobre o sentido das penas e alegrias após a morte.
Caput XXI — De Christo ut homine et de anima ejus
Sobre Cristo como homem e sobre a sua alma.
Caput XXII — De anima prophetica et inspiratione
divina
Sobre a alma profética e a inspiração divina.
Caput XXIII — De differentia inter animam
rationalem et divinam
Sobre a diferença entre a alma racional e a alma divina.
Caput XXIV — De praescientia et praedestinatione
animae
Sobre a presciência e a predestinação da alma.
Caput XXV — De animae immortalitate et poena
peccatorum
Sobre a imortalidade da alma e o castigo dos pecadores.
Caput XXVI — De statu animarum ante resurrectionem
Sobre o estado das almas antes da ressurreição.
Caput XXVII — De animae testimonio naturaliter
Christianae
Sobre o testemunho da alma naturalmente cristã.
Caput XXVIII — De haereticis qui animam negant
Sobre os hereges que negam a alma.
Caput XXIX — De origine malorum ex anima
Sobre a origem dos males a partir da alma.
Caput XXX — De ordine rerum spiritualium et
corporalium
Sobre a ordem das coisas espirituais e corporais.
Caput XXXI — De opinione Platonis de memoria
animarum
Sobre a opinião de Platão a respeito da memória das almas.
Caput XXXII — De unitate animae in corpore et de
sensibus ejus
Sobre a unidade da alma no corpo e sobre seus sentidos.
Caput XXXIII — De distinctione inter animam hominis
et animam brutorum
Sobre a distinção entre a alma do homem e a dos animais.
Caput XXXIV — De affectibus animae
Sobre os afetos da alma.
Caput XXXV — De libertate arbitrii
Sobre a liberdade do arbítrio.
Caput XXXVI — De conscientia et lege naturali
Sobre a consciência e a lei natural.
Caput XXXVII — De poenis inferorum et refrigeriis
justorum
Sobre as penas dos infernos e o repouso dos justos.
Caput XXXVIII — De die judicii et sorte animarum
Sobre o dia do juízo e o destino final das almas.
Caput XXXIX — De coniunctione animae et corporis in
resurrectione
Sobre a união da alma e do corpo na ressurreição.
Caput XL — De consummatione mundi et ultimo statu
animarum
Sobre a consumação do mundo e o estado último das almas.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput I
De causis scribendi hujus libri
Das causas que levaram à composição deste livro
A causa principal que me moveu a escrever este
tratado sobre a alma foi a variedade e a confusão das opiniões humanas acerca
dela. Pois nenhuma questão me parece ter sido tão frequentemente debatida nem
de maneira tão diversa entre os filósofos, como a questão da natureza da alma:
de onde vem, o que é, como existe, e para onde vai. Assim como cada escola
filosófica quis estabelecer sua própria doutrina sobre o mundo e os deuses,
também quis formar uma opinião particular sobre a alma — umas dizendo que ela é
sangue, outras fogo, outras ar, outras harmonia, e outras ainda um número, ou
uma sombra, ou uma centelha de essência divina.
Por isso, vendo eu que as heresias cristãs também
não deixaram de disputar acerca dela — umas ensinando que a alma é incriada,
outras que é mortal; umas que ela se mistura à substância de Deus, outras que é
produzida pelos anjos ou pelos demônios — julguei necessário, para o bem da fé,
que também entre nós houvesse uma exposição completa e verdadeira sobre esse
assunto, de acordo com a regra da Igreja e com a luz da razão.
Não pretendo, porém, disputar como filósofo, mas
raciocinar como crente: pois a fé, que precede toda investigação, estabelece
os limites do raciocínio. Assim, quando nos propomos a buscar a natureza da
alma, devemos antes confessar aquilo que a revelação já declarou — que o homem
foi feito por Deus com alma viva — e que essa alma não é nem parte de Deus nem
uma emanação sua, mas uma criação sua, distinta e dependente, destinada à vida
eterna.
A fé nos dá o princípio; a razão nos auxilia a
compreendê-lo. Não é indigno da fé recorrer ao raciocínio, contanto que o
raciocínio permaneça servo da fé e não seu juiz. E se entre os filósofos se
busca a verdade pela dialética, quanto mais convém aos cristãos que a defendem
pelo Espírito de Deus, para discernir o verdadeiro do falso.
Por isso, não é pequeno o dever de quem deseja
falar da alma conforme a verdade cristã: porque, assim como o erro sobre ela
gera todos os erros sobre o homem e sobre Deus, também a justa compreensão da
alma é o fundamento da justa teologia.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput II
Quod fides Christiana prius credere debeat quam
disputare
Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por raciocínios
Antes de avançarmos para o exame das coisas que
pertencem à natureza da alma, convém reafirmar aquilo que é próprio da
disciplina cristã: a fé precede a razão, e não o contrário. Pois não é
pela investigação que o homem chega a Deus, mas é por Deus que o homem chega à
investigação. Quem crê porque compreende, ainda não crê; mas quem compreende
porque crê, esse realmente crê.
Assim, a primeira obrigação do cristão é crer no
que Deus revelou, e somente depois disso procurar o entendimento. Pois a fé
é o fundamento da ciência espiritual, como a terra o é das sementes que nela
frutificam. A verdade não nasce da disputa, mas do assentimento à palavra
divina. Por isso o Apóstolo adverte: “Evita as vãs e profanas novidades de
palavras e as contradições de uma ciência falsamente assim chamada” (1Tm 6,20).
A filosofia humana, com sua curiosidade incessante,
costuma começar duvidando de tudo para poder parecer sábia; a fé, ao contrário,
começa acreditando em tudo o que procede de Deus, para depois discernir. O
método do mundo é indagar para poder crer; o método de Cristo é crer para poder
compreender.
Assim, se alguém me pergunta “o que é a alma?”, eu
lhe responderei primeiro com o que sei pela fé: que ela vem de Deus, que é
viva, que é racional e livre, que será julgada e ressuscitará com o corpo. Tudo
o mais que a razão puder esclarecer virá depois, como claridade secundária.
O erro de muitos foi querer compreender antes de
crer, ou mesmo compreender sem crer — e assim se fizeram hereges. Pois quando a
fé se submete à razão, perde-se o dom do Espírito; mas quando a razão se
submete à fé, é iluminada por ele.
Portanto, nesta obra, guardarei sempre essa ordem: primeiro
a fé, depois a razão; primeiro o que é revelado, depois o que é
investigado; primeiro o dogma, depois a prova. Só assim o discurso humano
poderá permanecer em harmonia com a verdade divina, e a filosofia, que é serva,
não se exaltará sobre a teologia, que é senhora.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput III
De definitione animae secundum philosophiam
Sobre a definição da alma segundo a filosofia
Antes de afirmar o que a fé ensina sobre a alma, convém
ver o que a sabedoria do mundo ousou dizer acerca dela. Pois não ignoro que,
desde os antigos sábios até os mais recentes, todos quiseram definir a alma — e
ninguém o fez sem controvérsia.
Os egípcios, primeiros em toda ciência vã,
ensinaram que a alma é uma imortalidade errante, que após a morte se transfere
de um corpo a outro, como se o homem pudesse reviver nas bestas ou nos
pássaros. Pitágoras herdou-lhes essa loucura e a adornou com números, afirmando
que a alma é harmonia, porque, como as cordas da lira, vibra em consonância com
o corpo.
Platão, mais sutil, mas não menos cego, quis que a
alma fosse substância divina, anterior ao corpo, descida do mundo das ideias
para o cárcere da matéria. Disse que ela é tríplice — racional, irascível e
concupiscente — e que a parte racional é de natureza celeste. Aristóteles, ao
contrário, chamou-a forma do corpo, inseparável da matéria, e, sendo ato de um
corpo natural orgânico, quis que ela perecesse com ele, salvo a parte
intelectiva, que, segundo ele, é de origem superior.
Os estoicos afirmaram que a alma é corpo, e fogo, e
espírito; e que ela se estende por todo o corpo, sendo o princípio vital e
racional. Epicuro, mais grosseiro, declarou que ela é composta de átomos sutis
e morre com o corpo, como o sopro que se dissipa.
Cada escola, portanto, definiu segundo sua fantasia
aquilo que nenhuma razão humana pode alcançar. Pois se a alma fosse harmonia,
como seria ela mesma sujeito de suas dissonâncias e paixões? Se fosse número,
como sentiria? Se fosse fogo, por que não queima o corpo? Se fosse ar, como se
fixaria na carne?
Em toda essa confusão, a filosofia confessa sua
ignorância — porque, querendo alcançar o invisível pelas vias do visível, acaba
descrevendo imagens materiais daquilo que é espiritual.
Porém, nem por isso tudo o que disseram é vão. Pois
Deus permitiu que até mesmo os gentios tocassem, de longe, alguns traços da
verdade, como sombras de uma revelação futura. Assim, se alguns disseram que a
alma é racional e que governa o corpo, nisso se aproximaram do dogma; mas,
porque não conheceram o Criador, desviaram-se no modo e no fim.
Portanto, se desejamos definir a alma com mais
verdade, não o faremos com os filósofos, mas com o profeta: “E o Senhor Deus
formou o homem do pó da terra e soprou em seu rosto o sopro da vida, e o homem
se tornou alma vivente” (Gn 2,7). Eis a definição mais certa e mais antiga:
a alma é o sopro de Deus animando a carne do homem.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput IV
De substantia animae, an corporea sit
Sobre a substância da alma e se ela é corpórea
Vejamos agora qual é a substância da alma.
Será ela corpo ou algo incorpóreo?
E, sendo corpo, de que natureza seria?
O testemunho da fé e o uso comum da linguagem
indicam que ela é corpo, embora sutil. Pois, se tudo o que existe é ou corpo ou
nada, e se nada pode agir ou sofrer sem corpo, segue-se que a alma, que age e
sofre, deve também ser corpo. De outro modo, seria um nada.
Com efeito, ela se move, fala, pensa, deseja, vê em
sonhos, e sofre as paixões da ira, da alegria, do medo, da tristeza. Ora, o que
é capaz de tantas operações não pode ser incorpóreo. Pois aquilo que é sem
corpo não pode tocar nem ser tocado; e o agir e o padecer são modos do contato.
Por isso também as Escrituras, ao falarem da alma,
a tratam como algo corpóreo. Davi diz: “A minha alma está colada ao pó” (Sl
44,26), e novamente: “A minha alma tem sede de ti” (Sl 62,2). Ora, quem adere,
quem tem sede, quem se alegra ou se abate, é sempre algo que tem substância.
O próprio Cristo, ao narrar a parábola do rico e de
Lázaro, mostra as almas dos defuntos sentindo prazer e dor: o rico suplica por
uma gota de água para refrescar a língua (Lc 16,24). Ora, como poderia sentir
sede uma substância incorpórea?
Alguns objetam que essas expressões são metafóricas.
Mas não se deve despojar a alma daquilo que nela é próprio apenas para salvar
um preconceito filosófico. Pois também Deus é espírito, e, no entanto, é dito
ter mãos, olhos e ouvidos — não porque seja corpóreo no sentido grosseiro, mas
porque é substância real, não fantasma.
Assim também a alma: não é corpo denso e visível,
mas corpo espiritual, como a luz ou o sopro. É algo que ocupa lugar, que
tem forma e limites, ainda que invisíveis aos olhos corporais.
Quando o profeta diz que Deus soprou nas narinas do
homem o “sopro da vida”, entende-se que esse sopro é algo que sai de Deus e se
infunde no corpo — e tudo o que sai, sai como corpo. Nenhum sopro, nenhuma voz,
nenhum espírito existe sem certa matéria, ainda que sutil.
Portanto, afirmo: a alma é substância corpórea,
de natureza espiritual e luminosa, visível apenas aos olhos dos anjos,
imperceptível aos sentidos da carne, mas real e determinada.
Quem quiser negar isso, que explique então como ela
se move, se estende, se contrai, se inflama, se abate. Tudo o que muda, muda
por modos de corpo. A alma não é nada etéreo como as ideias de Platão, nem
centelha sem forma, mas realidade viva, dotada de contorno próprio, imagem de
seu Criador.
Por essa razão, ela é susceptível de dor e de
prazer, e por isso também é julgada, punida ou glorificada. Se não fosse corpo,
não poderia sofrer; e, se não sofresse, a justiça de Deus seria vã.
Logo, para que a justiça seja perfeita, é
necessário que tanto a carne como a alma sejam corpos, cada um em seu grau: a
carne visível e densa; a alma invisível e sutil. Ambas são criadas, ambas
perecíveis pela culpa, ambas restauradas pela graça.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput V
De forma et figura animae
Sobre a forma e a figura da alma
Se a alma é corpo, como demonstramos, então também
deve possuir forma e figura. Pois nada existe que seja corpo sem forma, e tudo
o que tem existência concreta ocupa lugar sob algum modo de figura.
Perguntemos, portanto, qual seria a forma da alma.
Não faltaram os que, por ignorância ou temeridade,
imaginaram-na como mera respiração, ou como chama, ou como sopro sem contorno,
como se a natureza espiritual devesse ser amorfa. Contudo, as próprias
manifestações da alma desmentem tal erro.
Com efeito, quando o homem morre e a alma se separa, ela aparece às vezes aos
vivos, em sonhos ou visões, conservando a imagem daquele de quem saiu.
Muitos viram seus parentes falecidos com a mesma fisionomia, as mesmas feições,
e até com os mesmos sinais do corpo. Isso mostra que a alma conserva a forma do
homem inteiro, não apenas como memória, mas como substância configurada.
Não é de admirar, portanto, que a alma, sendo corpo
sutil, reproduza a figura do corpo grosseiro, como a cera recebe o selo
da matriz. Assim como o ar toma a forma do vaso que o contém, e a sombra imita
o contorno do corpo, assim também a alma, tendo habitado o corpo por toda a
vida, dele assume a figura e o traço.
É por isso que, nas visões proféticas, as almas dos santos aparecem em figura
humana, e não como ventos ou chamas.
E ainda: se a alma é imagem de Deus, e Deus formou
o homem à sua semelhança, então há uma correspondência formal entre Deus, alma
e corpo. O corpo é imagem da alma; a alma, imagem de Deus. Cada grau da criação
reproduz o superior sob uma forma apropriada.
A alma, portanto, tem forma humana — não porque seja carnal, mas porque é razão
e medida encarnada.
A prova disso é também a sensação. Pois não se pode
sentir sem órgãos, e os órgãos não operam sem forma.
A alma ouve, vê, recorda, deseja, teme; e cada um desses atos implica uma
disposição formal, um modo de ser. A sensação é sempre função de uma forma
determinada. Portanto, onde há sensação, há figura; onde há figura, há corpo.
A alma é, pois, uma substância dotada de forma própria — invisível, mas real —
correspondente ao corpo humano que anima.
Por isso Tertuliano rejeita as comparações vazias
dos filósofos que dizem: “A alma é um círculo de fogo, ou um ponto de luz, ou
um sopro etéreo.” Pois se fosse apenas isso, não poderia exercer governo sobre
o corpo.
A alma não é uma abstração matemática, mas uma presença viva que se molda ao
corpo e o governa de dentro.
E ainda, quando Cristo narra que Lázaro é levado ao
seio de Abraão, não fala de centelhas ou sombras, mas de almas reconhecíveis,
uma pedindo socorro à outra, uma vendo, ouvindo e falando (Lc 16,23-25).
Logo, há nelas forma, figura e contorno — humanos, mas transfigurados.
Assim se cumpre a harmonia da criação:
Deus tem sua forma invisível;
a alma tem forma espiritual;
o corpo, forma material;
e todas três se ajustam como selo, impressão e molde.
Portanto, a alma é corpo com forma humana,
mais luminosa que o ar, mais sutil que o fogo, mais viva que o sopro; imagem do
homem interior e instrumento do homem exterior.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput VI
De conditione et qualitate animae
Sobre a condição e qualidade da alma
Definida a forma da alma, resta indagar de que
condição e qualidade ela é, para que se conheça sua essência completa.
A Escritura nos ensina que ela é sopro de Deus, e, portanto, boa em sua
origem; mas, por haver se unido à carne, participa também da corrupção.
Ela é, pois, uma substância média entre o espírito divino e a matéria
corporal — espiritual quanto à sua procedência, carnal quanto à sua
habitação.
Tudo o que vem de Deus é bom; todavia, quando desce
ao mundo, entra em contato com as coisas perecíveis e se torna sujeita às
paixões. Assim, a alma, embora luminosa em sua criação, se obscurece na união
com a carne, como a luz que, passando por um vidro impuro, perde o brilho.
Não é, porém, má em si mesma, mas afetada pelo ambiente da carne, assim
como o ferro, por si puro, se enferruja no ar úmido.
Os filósofos, ignorando a causa dessa mistura, ou a
negaram, ou a divinizaram. Uns disseram que a alma é toda celestial, outros que
é de fogo, outros que é da substância das estrelas; mas todos erraram porque
não viram que há nela um duplo princípio: um, de Deus; outro, do homem.
É espiritual na origem, mas terrestre na operação.
Respira o divino e padece o terreno.
A prova está em suas próprias obras. Pois, de um
lado, ela é capaz de virtude, de ciência, de profecia; de outro, é inclinada à
cólera, à luxúria, à inveja.
Ora, não haveria em um mesmo ser forças contrárias se não fosse composto de
naturezas diferentes.
A alma sente, porque é corporal; raciocina, porque é espiritual.
É uma unidade composta — um espírito corpóreo, uma carne espiritualizada.
Se quisermos descrevê-la por semelhança, diríamos
que é como o ar: invisível, mas sensível; leve, mas capaz de movimento;
incorpórea à vista, corpórea na ação.
Como o ar, pode inflamar-se ou resfriar-se; pode ser límpida ou turva, conforme
o que respira.
Assim é a alma — suscetível de graça e de corrupção.
Daí provêm as diferentes qualidades de cada alma.
Não são todas iguais: umas mais puras, outras mais densas; umas inclinadas à
ciência, outras à ira; umas pacíficas, outras ferozes.
E essa variedade não é senão a consequência da diversidade das carnes em que se
alojam, dos costumes, dos alimentos, dos humores, e das influências que as
cercam.
Pois a alma, embora distinta do corpo, sofre com ele e se conforma a ele,
como o som à cítara ou o perfume ao vaso.
Ainda assim, conserva em si um vestígio do céu: a
capacidade de conhecer o bem, de pressentir a justiça, de buscar a Deus.
Mesmo no pecador, há uma centelha que o chama à verdade.
Por isso Tertuliano dirá mais adiante que “a alma é naturalmente cristã” —
porque traz, inscrito em sua substância, o selo do Criador, ainda que
obscurecido pelo pecado.
Dessa condição dupla — divina e terrestre — nasce a
luta interior que todos sentem: o espírito quer o alto, a carne o baixo; a alma
está entre ambos, suspensa, atraída ora por um, ora por outro.
Eis o campo da liberdade humana, onde se decide a salvação ou a perdição.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput VII
De origine animae
Sobre a origem da alma
Depois de tratar da forma e condição da alma,
devemos agora investigar de onde ela procede.
Pois há quem afirme que cada alma é criada de novo por Deus no momento da
concepção, e há quem sustente que ela é transmitida dos pais aos filhos.
A primeira opinião atribui a Deus uma obra contínua de criação; a segunda
conserva a unidade da natureza humana e a transmissão do pecado.
Examinemos ambas.
Os que dizem que cada alma é criada imediatamente
por Deus pretendem defender a pureza divina, como se Ele se contaminasse ao
criar aquilo que nasce de uma carne pecadora. Mas não percebem que, ao
multiplicar as criações, fazem de Deus um artífice sem descanso, ocupado
diariamente em infundir almas como se sopros fossem.
Ora, o Criador repousou no sétimo dia de toda a obra (Gn 2,2). Desde então,
gerações e corrupções seguem a ordem estabelecida.
Nada mais cria diretamente, mas tudo se propaga a partir das causas que Ele
instituiu. Assim, os animais, as plantas, os homens — todos se reproduzem
segundo as suas espécies.
Logo, também a alma, que é parte do homem, deve ser
gerada com ele, não infundida de fora como corpo estranho. Pois não seria homem
aquele que recebesse de Deus uma alma isolada, separada da origem comum.
Se a carne vem de Adão, mas a alma não, então não é o mesmo homem que pecou em
Adão quem é salvo em Cristo. A unidade da espécie exige a unidade da origem.
Além disso, a alma é aquilo que anima a carne. Ora,
nada se anima a não ser por contato, e o contato é modo de corpo.
Como, então, uma alma recém-criada, vinda do alto, penetraria a carne sem
passagem, sem transição, sem mediação?
Mais razoável é admitir que a alma brota com a carne, no mesmo ato da
concepção, assim como a seiva brota com o broto na árvore.
É o que se vê na experiência:
o que é doente de corpo é também enfermo de alma; o que é vigoroso na carne tem
ânimo forte; o que nasce de pais tolos raramente é sábio; o que vem de pais
perversos, tende ao vício.
Essas semelhanças provam que a alma, como o corpo, é hereditária,
recebendo dos pais as disposições, os humores e até as paixões.
Nem se deve temer que, sendo a alma de Deus, ela se
degrade ao ser transmitida.
Também o fogo, quando acende outro fogo, não se diminui; antes, comunica o que
tem.
Assim, a alma do primeiro homem, criada por Deus, transmitiu a todos os outros
o mesmo princípio vital — não por divisão, mas por derivação, como a fonte que
enche muitos vasos sem se esgotar.
E se perguntam como pode uma só alma dar origem a
muitas, respondemos: assim como uma única semente dá origem a uma multidão de
árvores, porque nela estava o poder da reprodução.
Deus deu à alma de Adão não apenas a vida própria, mas a virtude de gerar
vidas.
Portanto, afirmo: todas as almas procedem de uma
só alma, assim como todos os corpos de um só corpo; e essa alma primeira é
a de Adão.
Assim se conserva a justiça divina, que pune em todos o pecado de um só e
redime em todos a obediência de um só (Rm 5,19).
Se cada alma fosse criada de novo, ela seria pura e
sem culpa; logo, não poderia ser ré do pecado original. Mas o Apóstolo diz que
“todos pecaram em Adão” (Rm 5,12).
Portanto, a alma de cada homem vem contaminada da raiz, e essa
contaminação prova a sua origem comum.
Eis o mistério:
Deus criou uma só vez a alma universal no primeiro homem; desde então, essa
alma se propaga, unindo-se à carne pela geração, perpetuando a natureza e a
culpa.
Assim a obra divina permanece una e perfeita: criou o princípio, e o princípio
gera o restante.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput VIII
De opinionibus philosophorum et haereticorum circa
originem animae
Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem da alma
Depois de expor a verdadeira origem da alma segundo
a fé e a razão, resta agora examinar as opiniões dos filósofos e dos hereges,
para que a luz da verdade se manifeste mais claramente pela comparação com o
erro.
Entre os filósofos, há três principais opiniões:
uns dizem que a alma é incriada e eterna; outros, que é criada, mas anterior ao
corpo; outros, finalmente, que é criada juntamente com o corpo.
Os que a têm por incriada são os platônicos e os
que os seguiram; os que a dizem criada antes do corpo são os pitagóricos; os
que admitem a criação simultânea são poucos e mais próximos da verdade.
Platão, no Timeu, diz que Deus formou as
almas no princípio do mundo e as distribuiu pelos corpos conforme o merecimento
de cada uma, de modo que umas descessem aos homens e outras aos animais. Assim,
o corpo é para ele um cárcere, e a vida presente, uma pena.
Mas, se assim fosse, a criação de Deus não seria bênção, e sim castigo; e a
geração humana, não uma ordem natural, mas uma sucessão de quedas.
Pitágoras e Empédocles, que beberam dos mistérios
egípcios, sustentaram que as almas transmigram de um corpo a outro, ora de
homem a besta, ora de besta a homem, até que se purifiquem. Mas como pode o
homem, imagem de Deus, ser depois lobo, cão ou verme?
Essa fantasia é indigna até da loucura. Pois o que é racional não pode
tornar-se irracional sem perder a sua natureza; e o que perde a natureza deixa
de ser o mesmo ser.
Os estoicos, mais sóbrios, afirmam que a alma nasce
junto com o corpo, porque tudo o que é gerado o é por causas corporais; mas
erram quando dizem que ela procede do fogo ou do sopro seminal, pois, ainda que
corporal, é sopro divino, não chama material.
Hermógenes, que entre os hereges se quis parecer
filósofo, ensinou que a alma vem da substância de Deus, como se fosse uma
porção separada de sua própria natureza.
Mas, se assim fosse, Deus seria divisível e mutável, e a alma participaria de
sua divindade — o que é absurdo, pois Deus é simples e imutável.
Além disso, se a alma fosse da substância de Deus, ou seria boa e permaneceria
boa — o que é falso, pois vemos que peca —, ou então Deus mesmo seria passível
de pecado, o que é blasfêmia.
Os valentinianos e basílidianos, seguidores dos
gnósticos, dizem que a alma é uma emanação das potências superiores, lançada
nos corpos como centelha em meio às trevas para despertar a matéria.
Mas essas invenções nascem de um erro mais antigo: o de que há dois princípios
eternos, o bem e o mal, a luz e a sombra, e que o mundo é mistura de ambos.
Ora, se assim fosse, Deus não seria único, nem todo-poderoso, e o mal teria
igual substância à do bem — o que é negar o próprio Deus.
Os marcionitas, indo além, sustentam que as almas
são obras de um demiurgo inferior, diferente do Deus supremo. Mas se outro Deus
criou as almas, por que o Cristo do Deus bom viria redimi-las?
E se foram criadas por um ser mau, por que ainda assim são capazes de fé,
esperança e caridade?
Assim, todas essas opiniões, tanto dos filósofos
quanto dos hereges, se dissolvem umas nas outras, porque nenhuma delas
reconhece a ordem verdadeira da criação:
um só Deus, uma só primeira alma em Adão, e a geração das demais por
derivação natural.
Não há razão para supor que Deus, que deu aos
corpos o poder de gerar corpos, tenha negado às almas o poder de gerar almas.
Pelo contrário, é sinal de sua sabedoria ter posto em cada natureza a
capacidade de reproduzir a si mesma, para que o mundo subsista pela
continuidade das causas sem necessidade de novas criações.
Dessa maneira, a doutrina cristã se mostra mais
coerente do que todas as filosofias, porque une a unidade do Criador à unidade
da espécie humana e à justiça da redenção:
todos pecaram em Adão porque todos estavam nele; todos são salvos em Cristo
porque todos renascem nele.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput IX
De sententia Platonis et Hermogeni de animae
substantia
Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes acerca da substância da alma
Entre todas as doutrinas errôneas acerca da alma,
nenhuma me parece mais enganosa e mais perigosa que a de Platão e Hermógenes,
que, cada um a seu modo, divinizaram a substância da alma.
Platão, fingindo ser piedoso, quis que Deus fosse o
artífice da alma, mas não seu criador absoluto.
Disse que ela provém da substância do próprio Deus — uma porção de seu
espírito, dividida e derramada nos corpos, para que o mundo inteiro se tornasse
animado. Assim, Deus, segundo ele, é o anima mundi, e o homem, uma
fração dessa alma universal.
Hermógenes, seguindo outro caminho, mas chegando ao
mesmo erro, ensinou que a alma vem de uma matéria eterna coexistente com Deus —
matéria animada e divina, da qual o Criador apenas moldou as formas visíveis.
Ambos, portanto, reduziram Deus a uma substância composta ou dividida: Platão,
porque fez Dele o corpo da alma; Hermógenes, porque fez Dele o artífice de uma
matéria igual a si.
Ora, se Deus é simples, eterno e imutável, como
poderia conter em si partes distintas ou comunicar uma porção de sua substância
sem se diminuir?
O que é infinito não pode ser repartido; o que é incorruptível não pode gerar o
corruptível.
Se a alma humana fosse parte de Deus, deveria ser incorruptível, perfeita e
santa.
Mas vemos que ela ignora, duvida, se engana, se corrompe e peca — coisas
impossíveis a uma substância divina.
Platão tentou escapar dessa contradição dizendo que
as almas, antes de se unirem ao corpo, contemplavam as ideias puras, mas, ao
caírem na matéria, esqueceram o que viram.
Com isso quis explicar a ignorância e o erro, mas apenas os disfarçou.
Pois como poderia o divino cair? Como poderia o perfeito esquecer?
Não se perde o que é imutável.
Além disso, se a alma fosse da substância de Deus,
todos os homens seriam iguais em ciência e virtude, pois todos participariam da
mesma essência divina.
Mas a experiência mostra o contrário: uns são sábios, outros tolos; uns bons,
outros maus.
Logo, a alma não é parte de Deus, mas obra de Deus.
Quanto a Hermógenes, ele pensou defender a
majestade divina afirmando que Deus não criou o mundo do nada, mas de uma
matéria coeterna e animada.
Entretanto, ao admitir essa matéria viva e eterna, introduziu um segundo Deus,
igual ao primeiro.
Pois tudo o que é eterno é divino; e se há dois eternos, há dois deuses.
Assim, sua doutrina é a negação da unidade divina e o fundamento de toda
heresia dualista.
Nós, porém, confessamos um só princípio, uma só
substância incriada, uma só eternidade: Deus.
Tudo o mais é obra sua, feita do nada, por sua vontade e sabedoria.
A alma, portanto, não é parte de Deus nem filha de outra eternidade, mas criatura
sua, derivada da alma de Adão, e assim mortal por natureza, embora
destinada à imortalidade pela graça.
É por isso que as Escrituras, ao falarem da alma,
nunca lhe atribuem divindade, mas sempre dependência.
Dizem que Deus a criou, que a inspira, que a governa e que a julga.
E aquilo que é criado, inspirado, governado e julgado não é Deus, mas servo de
Deus.
De resto, se a alma fosse divina, não precisaria de
redenção; mas o próprio Cristo morreu para salvá-la.
Logo, é criatura necessitada, e não substância eterna.
Em suma, Platão fez de Deus uma fonte que se esvai;
Hermógenes, uma matéria que se mistura; ambos, com vaidade igual, quiseram
penetrar no mistério da criação e acabaram por dissolver o Criador nas coisas
criadas.
Mas nós, que temos a revelação, sabemos que Deus permanece inteiro em si
mesmo, e que sua obra, embora viva de sua vontade, é distinta de sua
substância.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput X
De animarum propagatione
Sobre a propagação das almas
Se a alma vem dos pais juntamente com o corpo —
como demonstramos —, convém agora explicar de que modo se opera essa
propagação, para que a doutrina se mostre inteira.
Não deve causar espanto que a alma se comunique
assim como o corpo. Pois tudo o que é vivo gera segundo a sua espécie; e nada
gera senão aquilo de que participa.
O corpo não poderia gerar um corpo vivo se não transmitisse também a alma que o
vivifica.
A alma, portanto, é geradora na medida em que é vivente: comunica a vida como a
semente comunica a forma.
Quando a semente corporal é emitida, ela contém em
si não apenas os elementos materiais, mas também o princípio vital — isto é, a
alma seminal, que se deriva da alma dos pais.
É o que mostra a própria experiência: os filhos herdam não só os traços do
rosto, mas também os temperamentos, os humores, as paixões, as virtudes e até
as doenças morais de seus progenitores.
Essas semelhanças, que não se explicam pela matéria, provam que a alma
transmite a si mesma na geração.
Assim como uma lâmpada acende outra sem perder a
sua luz, ou como uma chama inflama outra sem se dividir, assim também a alma
comunica a vida a outra alma sem se diminuir.
Há, pois, uma difusão vital, não uma divisão substancial; uma geração
por derivação, não por partilha.
O que nasce é novo, mas o princípio é o mesmo.
A prova está também nas palavras da Escritura. Eva,
ao dar à luz Caim, disse: “Possuí um homem com o auxílio de Deus” (Gn 4,1).
Ela não diria “com Deus” se Deus tivesse criado sozinho a alma de seu filho;
mas disse “com o auxílio de Deus”, reconhecendo que a geração é obra comum de
Deus e dos pais: de Deus, a ordem e o poder; dos pais, o ato e a transmissão.
Assim, Deus é causa primeira, mas não causa
imediata de cada alma.
Fez a primeira, e pôs nela a virtude de gerar as demais — como o artífice que
faz a fonte e deixa que dela corram os rios.
Por isso se diz que Ele “descansa de suas obras” (Gn 2,2), não porque tenha
cessado de agir, mas porque sua ação continua pelas causas segundas que
instituiu.
Nem se deve temer que, sendo a alma espiritual, não
possa ser transmitida por via corporal.
O sopro, a voz, a luz — todas coisas sutis — passam por meios materiais sem se
corromperem.
O mesmo se dá com a alma: ela acompanha o sêmen e, com ele, se difunde,
permanecendo inteira em cada nova vida.
O corpo, portanto, é o veículo da propagação, mas o
princípio ativo é a alma; o sêmen é apenas o instrumento da comunicação vital.
Não há geração sem alma, nem alma sem geração; o ato é único e simultâneo.
E se alguém pergunta por que, então, Deus é chamado
Criador das almas, respondemos: porque criou a alma primeira, raiz de todas as
outras, e nela infundiu o poder de gerar, assim como é chamado Criador das
árvores porque criou a semente de cada uma.
O que é feito por derivação não deixa de proceder da primeira causa.
Portanto, quem nega que a alma se propague com o
corpo, destrói a unidade da natureza humana, dissolve o vínculo da culpa original
e faz Deus operário incessante de criações parciais — o que é indigno de Sua
majestade.
Mas quem confessa a propagação das almas, este confessa a sabedoria do Criador,
que ordenou todas as coisas em número, peso e medida.
Assim, a vida inteira do gênero humano é um rio
que brota da alma de Adão, correndo através das gerações até o fim dos
tempos: a mesma natureza, a mesma essência, o mesmo sopro, transmitido em
todos, viciado pelo pecado, restaurado pela graça.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XI
De natura animae humanae ex anima primi hominis
derivata
Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro homem
Posto que todas as almas procedem da alma de Adão,
convém considerar o que herdaram dela, para compreenderem-se tanto a grandeza
quanto a miséria da natureza humana.
A alma de Adão foi feita por Deus pura, simples e
reta.
Era luminosa como o sopro de onde veio, racional, livre e ordenada; dominava o
corpo e não era dominada por ele.
Nela havia harmonia entre a razão, o desejo e o sentimento; a vontade seguia a
lei divina, e a carne obedecia à vontade.
Tal era a imagem de Deus no homem: não uma semelhança corporal, mas espiritual
— isto é, a retidão da alma.
Quando, porém, o homem desobedeceu, essa harmonia
se rompeu.
A alma, que antes governava o corpo, começou a servi-lo; a razão, que era
rainha, tornou-se escrava das paixões; a luz interior se obscureceu; o
conhecimento, que era natural, converteu-se em ignorância; e a liberdade se
degenerou em concupiscência.
Assim, toda a descendência de Adão recebeu uma alma da mesma natureza, mas
já viciada na origem.
Pois o que nasce de algo corrupto, nasce corrupto.
Não que a essência da alma tenha deixado de ser o que é — substância viva e
racional —, mas perdeu a integridade de seu estado primeiro.
Permanece viva, mas enferma; racional, mas cega; livre, mas inclinada ao mal.
A corrupção não destrói o ser, mas o desvia.
É por isso que, desde o nascimento, vemos no homem
o impulso do mal antes mesmo da educação; a inveja no lactente, a ira na
criança, a soberba no adolescente, a avareza no adulto.
Essas tendências não vêm do exemplo, mas da natureza; e não da natureza criada
por Deus, mas da natureza corrompida pelo homem.
Em Adão todos pecaram, porque todos estavam nele segundo a carne e segundo a
alma.
No entanto, Deus, em sua providência, não
retirou da alma o dom da liberdade.
Ainda que inclinada ao pecado, ela não foi constrangida a pecar.
O vício é hereditário, mas o ato é voluntário.
A graça restaura o que a vontade perverteu, mas não destrói a liberdade, pois o
mérito não existe sem escolha.
Assim, em cada homem coexistem duas heranças:
— uma, natural, recebida de Adão: a vida, a razão, a liberdade;
— outra, acidental, proveniente da queda: a ignorância, o desejo, a morte.
E como ambas procedem da mesma raiz, a alma é campo de luta entre o bem e o
mal, entre a memória de Deus e o peso da carne.
Daí que o Apóstolo diga: “Vejo outra lei em meus
membros que luta contra a lei do meu espírito” (Rm 7,23).
Essa lei não é senão a inclinação herdada da alma de Adão, perpetuada na prole
e combatida pela graça.
Logo, a natureza da alma humana é uma só em
todos, e é a mesma de Adão, mas deformada.
Por ela todos estão sob a culpa; por Cristo, todos podem ser libertos.
A alma traz em si a lembrança de seu princípio divino e o estigma de sua queda;
é ao mesmo tempo imagem e ruína, luz e sombra, espírito e pó.
E como dela se propagam as demais, também a
redenção deve começar pela alma, não pela carne.
Deus cura primeiro a raiz e depois o ramo.
Por isso o Cristo é chamado “novo Adão”: não para refazer o corpo, mas para
regenerar a alma, que é o princípio da vida.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XII
De distinctione animae a spiritu
Sobre a distinção entre a alma e o espírito
Convém agora examinar se a alma e o espírito são
uma mesma coisa ou se diferem por natureza e função.
Muitos, confundindo o uso das palavras, tomam-nos como sinônimos; mas a
Escritura, que é a mestra da verdade, ensina que são distintos, embora
inseparáveis no homem.
Com efeito, diz o Apóstolo: “Todo o vosso espírito,
alma e corpo sejam conservados irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo” (1Ts 5,23).
Se fossem o mesmo, não os distinguiria em número, mas diria apenas: “o vosso
espírito e corpo” ou “a vossa alma e corpo”.
Logo, o homem é tríplice em constituição, mas uno em ser — corpo, alma e
espírito.
O corpo é a matéria visível, formada do pó da
terra.
A alma é o princípio vital que a anima, sensível e racional.
O espírito é o sopro divino, infundido para santificar a alma e uni-la a Deus.
Sem o corpo, o homem não é homem; sem a alma, o corpo é cadáver; sem o
espírito, a alma é animal.
A alma é o intermediário entre corpo e espírito:
pela alma o corpo vive; pelo espírito a alma é vivificada.
Assim, o espírito é à alma o que a alma é ao corpo — o superior que governa o
inferior.
Por isso se diz que o homem natural (psychicus) não compreende as coisas
do Espírito de Deus, mas o homem espiritual (pneumaticus) as discerne
(1Cor 2,14-15).
O primeiro vive pela alma; o segundo, pelo Espírito.
Mas não se deve entender que o espírito seja algo
diverso introduzido de fora, como corpo estranho; é antes um dom que vem de
Deus e habita na alma como luz em lâmpada.
A alma é a substância criada; o espírito, a graça que a move e ilumina.
A alma, sem o espírito, existe; mas só com o espírito vive para Deus.
Essa distinção explica muitos mistérios.
Quando o homem peca, é a alma que consente; mas é o espírito que se entristece.
Quando o homem se converte, é a alma que crê; mas é o espírito que renasce.
Quando morre, a alma se separa do corpo; mas o espírito retorna a Deus que o
deu (Ecl 12,7).
Assim, não se pode confundir o que procede do homem
com o que vem de Deus.
O espírito não é a parte mais sutil da alma, como pensaram os filósofos; é algo
superior e exterior, que Deus concede a quem quer, como sopro que renova.
A alma é comum a todos os homens; o espírito, privilégio dos fiéis.
Por isso o profeta diz: “O Espírito do Senhor me ungiu” (Is 61,1); e o
Apóstolo: “Os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”
(Rm 8,14).
Entretanto, ainda que distintos, não são
contrários.
O espírito não destrói a alma, mas a aperfeiçoa; não a substitui, mas a
transfigura.
O que a alma é pela natureza, o espírito faz pela graça: dá-lhe entendimento,
caridade, paciência, santidade.
Sem o espírito, a alma é apenas humana; com o espírito, torna-se santa.
Dessa distinção nasce também a tríplice condição do
homem:
— carnal, quando a alma se submete à carne;
— animal (psychicus), quando a alma reina, mas sem o espírito;
— espiritual (pneumaticus), quando a alma é governada pelo espírito de
Deus.
Esses três estados são as três idades da salvação.
Portanto, não se deve dizer que o espírito e a alma
são o mesmo, nem que são totalmente separados.
São como a chama e a luz: uma é o fogo, outra é o resplendor; ambas unidas, uma
procedendo da outra, distintas, mas inseparáveis.
Assim o espírito procede de Deus, e a alma, recebendo-o, torna-se templo vivo;
o corpo, por sua vez, é o altar onde o culto se realiza.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XIII
De sexu animae
Sobre o sexo da alma
Há quem pergunte se a alma é masculina ou feminina,
ou se, sendo espiritual, é indiferente a essas diferenças que pertencem à
carne.
A questão não é inútil, pois toca a unidade do homem e o mistério da
ressurreição.
Se a alma não tivesse sexo algum, como poderia
subsistir a identidade pessoal após a morte?
Se, ao separar-se do corpo, perdesse toda distinção, não seria mais a mesma
pessoa, e o juízo não poderia recair sobre o mesmo ser.
Mas a justiça divina exige que cada um receba o que fez “no corpo” (2Cor 5,10)
— isto é, que a alma, ainda separada, permaneça reconhecível como a de um homem
ou de uma mulher.
Ora, já demonstramos que a alma é corpórea,
ainda que sutil.
Logo, assim como o corpo tem forma sexuada, também a alma, que dele é molde e
espelho, conserva essa diferença.
Não se deve entender, porém, que haja nela membros, órgãos ou funções carnais,
mas que possui caracteres formais correspondentes — disposição,
temperamento, modo de sentir e de agir, tudo o que no corpo se expressa como
masculinidade ou feminilidade.
A prova disso está nas visões e aparições dos
mortos.
Com frequência, as almas aparecem sob a mesma forma e sexo que tinham em vida;
reconhecem-se como mulheres ou homens, jovens ou idosos.
Logo, conservam a figura e a distinção que possuíam, porque a forma do corpo
está impressa na alma como selo na cera.
Além disso, a alma foi criada conforme a ordem da
carne, não o inverso.
Deus formou primeiro o corpo, depois soprou a alma (Gn 2,7).
Assim, a alma foi moldada para aquele corpo específico, como instrumento
para o instrumento.
Se o corpo é masculino, a alma é moldada em correspondência; se o corpo é
feminino, a alma adquire forma conforme.
Ambos são unidos por uma simetria misteriosa: o corpo reflete a alma e a alma
modela o corpo.
Entretanto, a diferença de sexo na alma não
significa desigualdade de dignidade.
Diante de Deus, nem o homem é superior nem a mulher inferior, pois “em Cristo
não há macho nem fêmea” (Gl 3,28).
A distinção é natural, mas a salvação é espiritual.
No corpo, há sexo; na alma, há distinção conforme o corpo; no espírito,
há unidade.
Assim, mesmo depois da morte, a alma conserva a
memória e o caráter do sexo, não para o exercício carnal, mas para o
reconhecimento pessoal e para o juízo.
Por isso, quando Cristo apareceu após a ressurreição, foi reconhecido como
homem; e quando os santos aparecem em visões, mantêm sua identidade corporal.
A alma, portanto, não muda de forma nem de sexo, porque é a mesma
substância que animou o corpo e o acompanhará na ressurreição.
Em suma: a alma não é sexuada por natureza, mas sexualmente
configurada por relação ao corpo que habitou.
E, sendo corpo sutil, conserva eternamente a imagem daquele com quem formou uma
só vida.
Assim, Deus, que faz todas as coisas segundo medida e proporção, quis que até
no invisível houvesse ordem, e que o mesmo que foi homem ou mulher na terra o
seja também no juízo, para que a justiça seja plena na identidade.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XIV
De sensibus animae et de affectibus ejus
Sobre os sentidos e os afetos da alma
Já demonstramos que a alma é corpo, e corpo dotado
de forma; resta agora mostrar que ela também possui sentidos e afetos
próprios, independentes do corpo, pelos quais experimenta dor, prazer,
amor, temor, alegria e tristeza.
A maior parte dos filósofos, ao contrário,
sustentou que a alma sente apenas por meio dos órgãos corporais, e que,
separada do corpo, torna-se insensível como o fogo extinto quando se apaga a
matéria que o alimenta.
Mas se assim fosse, as almas não poderiam ser julgadas, nem sofrer penas, nem
gozar recompensas após a morte.
Logo, é necessário que conservem os sentidos, ainda que em outra ordem.
A experiência o confirma.
Em sonhos, quando os olhos dormem, a alma vê; quando os ouvidos estão fechados,
ela ouve; quando o corpo repousa, ela se move; quando os membros estão imóveis,
ela age.
Ora, quem vê e ouve sem os órgãos corporais, sente por si mesmo.
O sono, que suspende a operação da carne, revela a atividade própria da alma.
Assim, a alma possui em si seus próprios
sentidos espirituais, dos quais os corporais são apenas sombras e
instrumentos.
Os olhos do corpo não são senão janelas por onde a visão da alma se manifesta;
os ouvidos, condutos da audição interior; a língua, órgão do gosto que a alma
saboreia primeiro; o tato, o contato pelo qual a alma reconhece o mundo
exterior.
Cada sentido corporal é imagem de um sentido anímico, e todos permanecem vivos na
alma depois que o corpo se dissolve.
A Escritura testemunha isso claramente.
O rico do Evangelho, estando já entre as penas, levantou os olhos e viu Abraão
e Lázaro (Lc 16,23).
Viu, reconheceu, falou, suplicou, sentiu sede e dor.
Ora, tudo isso aconteceu sem corpo, pois a carne estava no sepulcro.
Logo, os sentidos pertencem primariamente à alma, e apenas secundariamente ao
corpo.
O mesmo se deve dizer dos afetos.
A alma não só percebe, mas também se move por amor, ira, temor, esperança e
tristeza.
Esses movimentos são próprios dela, não do corpo.
Pois o corpo, por si mesmo, não ama nem odeia; é a alma que, por meio dele,
exprime essas paixões.
O corpo é instrumento; a alma, o músico.
Por isso, mesmo após a morte, a alma sente e se
comove.
As almas dos justos se alegram; as dos ímpios se atormentam.
Cada uma leva consigo a lembrança do que fez, o remorso, a saudade, o desejo.
A morte não apaga os afetos, apenas os separa de suas causas corporais.
E ainda, se a alma não sentisse por si, como
poderia ter sentimentos antes que o corpo amadurecesse?
O feto no ventre materno se move, se agita, reage; tudo isso mostra que já
sente, embora os órgãos não estejam formados.
Logo, a sensação é anterior à carne; é da alma, não do corpo.
Nem se diga que esses sentidos são meras imagens
das operações corporais.
O corpo é que imita a alma, não o contrário.
Assim como a sombra acompanha o corpo, o corpo acompanha a alma, refletindo
suas potências em matéria visível.
A diferença é de grau, não de natureza.
Nos vivos, os sentidos da alma operam através da carne; nos mortos, operam
diretamente.
Por isso, os santos têm visões espirituais mesmo em vida, quando o Espírito
Santo suspende a ação dos sentidos corporais e desperta os da alma.
Quanto aos afetos, são eles que movem o homem tanto
ao bem quanto ao mal.
Da alegria nasce o louvor; da tristeza, o arrependimento; do temor, a
prudência; da ira, a justiça; do amor, a caridade.
Os afetos são a força viva da alma, e, quando ordenados pela razão e pelo
espírito, tornam-se virtudes.
Portanto, a alma sente, sofre e se alegra; ela vê,
ouve, toca e compreende.
E como esses atos não cessam com a morte, prova-se que a alma é substância
viva e real, não sombra, não ar, não número, não harmonia.
Ela é, de certo modo, o homem interior inteiro, dotado de todos os sentidos e
movimentos que no corpo se manifestam apenas como reflexo.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XV
De somno et de somniis
Sobre o sono e os sonhos
O sono é, de certo modo, imagem da morte, e
o sonho, prenúncio da eternidade.
Pois assim como, na morte, a alma se separa do corpo, no sono ela apenas se
desprende, mantendo ainda o vínculo vital.
A carne repousa, a alma desperta; o corpo dorme, a mente vela.
É nesse estado que o homem prova que sua vida não é apenas corporal, mas também
espiritual.
De fato, enquanto os sentidos da carne estão
adormecidos, a alma continua a agir: vê, ouve, fala, caminha, teme, alegra-se,
sofre.
Ela realiza, no silêncio do corpo, os mesmos atos que realiza quando desperta —
e às vezes com mais clareza, pois livre das distrações corporais, age segundo
sua própria natureza.
O sono, portanto, não é extinção, mas recolhimento
da alma em si mesma.
Ela se recolhe ao interior, abandona as janelas do corpo e volta-se para o
mundo invisível.
Por isso, nos sonhos, ela contempla realidades que o corpo não pode ver; às
vezes reflete suas próprias lembranças, outras vezes recebe inspirações
superiores.
Há três origens dos sonhos: Deus, o diabo e a
natureza.
Os que vêm de Deus iluminam; os que vêm do diabo enganam; os que vêm da
natureza refletem apenas o movimento interior da alma.
A distinção se conhece pelos frutos: os divinos são serenos e puros; os
demoníacos, perturbadores e confusos; os naturais, simples e sem peso
espiritual.
Deus, que se comunica pelos profetas, também fala
por sonhos, como está escrito: “Em sonhos falarei com ele” (Nm 12,6).
Assim instruiu José, filho de Jacó, e outro José, esposo de Maria.
Mas o diabo, que imita o divino, tenta enganar por imagens mentirosas,
misturando verdade e ilusão.
Por isso é necessário discernimento — o sonho deve ser julgado pela regra da
fé.
A alma, livre durante o sono, é também mais
vulnerável.
Os demônios, que não podem atacar o homem desperto, aproximam-se quando o corpo
dorme e a alma se afrouxa da carne.
Então insinuam fantasias impuras, terrores, falsas revelações.
Daí vêm as tentações noturnas, as opressões e os medos súbitos — não da
natureza, mas dos espíritos malignos que habitam o ar.
Ainda assim, até os sonhos enganosos provam a
substância viva da alma, pois ela sofre, fala, luta, resiste ou cede.
O que sonha, age; o que age, existe; o que existe, é corpo, e não sombra.
Mas há também sonhos verdadeiros, que anunciam o
futuro.
Não porque a alma possua em si o poder profético, mas porque, sendo de origem
divina, conserva certa sensibilidade às revelações do Criador.
Assim, Deus às vezes a toca com sua luz e lhe mostra, em figura, o que há de
vir.
Por isso o profeta Joel disse: “Vossos filhos e vossas filhas profetizarão;
vossos anciãos terão sonhos e vossos jovens terão visões” (Jl 2,28).
O sonho, portanto, é testemunho de que a alma
age por si mesma.
Mesmo quando o corpo repousa, ela trabalha; mesmo quando o corpo se cala, ela
fala.
E, quando se liberta totalmente pela morte, continua a fazer o que fazia no
sono — ver, ouvir, lembrar, desejar.
Assim, o sono é o aprendizado da morte, e o sonho,
o ensaio da eternidade.
Quem dorme, entrega-se ao invisível; quem morre, entra nele.
Mas há diferença: no sono, a alma volta; na morte, ela parte.
A alma, porém, é a mesma.
Como no sonho se mostra viva, também na morte o será.
Por isso o justo dorme em paz, pois o mesmo Deus que vela sobre o sono guarda
também o repouso eterno.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XVI
De visione animarum defunctorum
Sobre as visões das almas dos defuntos
Muitos, duvidando da existência e da atividade das
almas após a morte, dizem que as aparições dos mortos são meros fantasmas,
imagens formadas pela imaginação ou pelos vapores da terra.
Mas se assim fosse, não haveria verdade nos testemunhos de tantos que, em
tempos e lugares diversos, afirmaram ter visto e reconhecido seus mortos,
conversado com eles, recebido deles avisos ou reprovações.
Não se pode atribuir ao acaso ou à ilusão um consenso universal e repetido.
Desde as mais antigas eras, as almas têm aparecido
aos vivos.
Assim, Samuel foi visto por Saul, evocado pela mulher de Endor (1Sm 28,12); e o
profeta, irritado, censurou o rei por ter perturbado seu repouso.
Ora, se Samuel não existisse mais, não poderia falar nem reprovar; e se fosse
apenas uma sombra, não teria sentido o ultraje de ser chamado.
Logo, a alma vive e é sensível, mesmo depois da separação do corpo.
E ainda hoje, por permissão divina, muitas almas
aparecem.
Não para trazer doutrina nova, mas para advertir, consolar ou punir.
Deus permite tais visões, seja para confirmar a fé dos bons, seja para
confundir a incredulidade dos ímpios.
Pois, se Ele é Deus dos vivos e não dos mortos (Mt 22,32), é necessário que as
almas subsistam.
Também os demônios, que imitam tudo o que é divino,
às vezes se disfarçam em formas humanas, tomando a aparência dos defuntos para
enganar os homens.
Mas as aparições verdadeiras distinguem-se das falsas pelo efeito que produzem:
as primeiras inspiram temor santo e humildade; as segundas, curiosidade e
perturbação.
A alma justa aparece com serenidade; a alma impura, com inquietação.
Que as almas tenham figura, já o mostramos; que
possam manifestar-se, mostra-o a experiência.
A alma é corpo sutil, luminoso e penetrante, capaz de se tornar visível quando
Deus o permite.
Não se deve, portanto, confundi-la com sombra ou fumo; é substância real, ainda
que invisível aos olhos ordinários.
O que é invisível não é o que não existe, mas o que ultrapassa o sentido.
Além disso, se a alma não pudesse ser vista, como
se explicariam as visões dos profetas?
Isaías viu o trono do Senhor; Ezequiel viu os espíritos dos querubins; Daniel,
os anjos do juízo.
E se os espíritos celestes podem ser vistos, por que não as almas humanas, que
pertencem à mesma ordem espiritual, ainda que inferior?
Também é certo que as almas dos mártires assistem
aos combates dos vivos e intercedem por eles.
Assim como no estádio os que venceram animam os que lutam, também no céu os
santos olham e exortam os fiéis.
A comunhão dos santos não se rompe pela morte; antes se fortalece.
Por isso, quando a Igreja celebra o martírio dos santos, é costume sentir sua
presença espiritual.
Mas há também aparições de advertência: almas
penadas que se manifestam pedindo oração, penitência ou restituição de algo
injustamente retido.
Esses testemunhos são numerosos e não podem ser desprezados, pois Deus, que é
justo, permite que o remorso das almas culpadas se manifeste, para edificação
dos vivos.
E mesmo os pagãos, que ignoram a verdade, não puderam
negar esses fenômenos.
Os filósofos falaram das sombras que voltam, das almas que erram junto aos
sepulcros, dos sonhos em que os mortos falam.
Enganaram-se na interpretação, mas reconheceram o fato.
Assim, o erro deles confirma nossa doutrina: a alma continua viva, sensível
e dotada de forma, não dissolvida como ar, mas substância espiritual que
pode ser vista quando Deus o consente.
Logo, as visões das almas dos mortos não são contra
a fé, mas sua confirmação.
Elas mostram que a alma, mesmo ausente do corpo, conserva o mesmo ser, a mesma
lembrança e o mesmo aspecto.
E se aparece com o mesmo rosto que teve, é porque é corpo; se fala, é porque
vive; se sofre ou se alegra, é porque sente; se sente, é porque existe — e tudo
o que existe é corpo, ainda que invisível.
Assim, a experiência humana testemunha o que a
revelação ensina: a alma sobrevive, age e se manifesta.
E a morte, longe de ser aniquilação, é apenas passagem — o momento em que o
invisível se torna visível aos olhos do espírito.
TERTULLIANUS
— DE ANIMA
Liber primus
— Caput XVII
De statu animae in morte
Sobre o estado da alma na morte
Tendo mostrado que as almas continuam a existir
após a separação do corpo, cumpre agora explicar onde e como permanecem
até o juízo final.
Pois muitos, enganados por falsas esperanças ou vãs sutilezas, acreditam que as
almas dos justos sobem imediatamente ao céu, e as dos ímpios descem logo às
penas eternas.
Mas a verdade está no meio: todas as almas descem ao inferus, lugar
invisível onde aguardam a ressurreição e o juízo.
O próprio Cristo, depois de morto, desceu aos
infernos (At 2,31), não como réu, mas como libertador, para pregar aos
espíritos encarcerados (1Pe 3,19).
Ora, se Ele, sendo justo e Filho de Deus, foi ao inferus, quem ousará pretender
subir ao céu antes d’Ele?
Nenhum servo vai antes de seu Senhor; nenhum discípulo precede o Mestre.
O inferus não é o lugar de condenação eterna, mas o
receptáculo comum das almas, onde cada uma recebe, conforme seu mérito,
repouso ou tormento provisório.
Há ali diversas regiões: para os justos, um seio de consolação; para os ímpios,
um cárcere de aflição.
Entre ambos, um grande abismo os separa, como ensina o Evangelho (Lc 16,26).
As almas dos santos repousam em esperança, gozando
de paz e de alguma antecipação da glória futura; as dos maus gemem em trevas e
angústia, prenunciando o suplício eterno.
Mas todas esperam o mesmo dia, em que, reintegradas aos seus corpos,
comparecerão diante do tribunal de Deus.
Não se deve, pois, imaginar o céu como já habitado
por almas separadas, nem o inferno como deserto até o juízo.
O mundo invisível está cheio de vida; as almas ali vivem, lembram, reconhecem,
amam e sofrem.
Não dormem, como supõem alguns, pois o sono pertence ao corpo; e a alma,
separada, permanece desperta.
O que muda é o modo de percepção.
Enquanto unida à carne, a alma conhece pelas janelas dos sentidos; separada,
conhece diretamente.
Por isso, os santos já gozam de certa visão espiritual de Deus, não ainda
plena, mas conforme a pureza que alcançaram.
E os ímpios, privados dessa luz, sentem a dor de sua ausência — o “ver sem ver”
que é o princípio da pena eterna.
Assim, a morte não apaga a consciência, mas a
purifica.
Liberta a alma da turvação da carne e a coloca diante da verdade nua.
O justo, ao morrer, descansa; o pecador, estremece.
Cada um entra no espelho de si mesmo: aquilo que amou em vida, isso o acompanha
na morte.
Mas todos, bons e maus, permanecem sob a terra,
em regiões ordenadas, aguardando o toque da trombeta final.
O céu está reservado aos anjos e a Cristo até que o número dos eleitos se
complete; então, os justos ressuscitarão para habitá-lo em corpo e alma.
É, portanto, erro e orgulho crer que as almas subam
imediatamente aos céus.
Se o Senhor, que é Senhor, desceu, quanto mais nós, servos, desceremos.
A subida será depois, quando também os corpos forem glorificados.
Até lá, as almas vivem — não na ociosidade, mas na
expectação.
Os santos intercedem, os penitentes aguardam, os ímpios lamentam.
O tempo que aqui passa em anos, ali passa em sentido: o tempo é interior,
medido pelo desejo ou pela dor.
E assim se cumpre a justiça divina: a vida
intermediária das almas é prelúdio da ressurreição, onde se consumará a
recompensa ou a pena.
Quem viveu na carne segundo o espírito, repousa; quem viveu segundo a carne,
arde.
Ambos esperam o mesmo juiz, mas não a mesma sorte.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XVIII
De inferis et
diversitate receptaculorum animarum
Sobre o inferno e a
diversidade dos lugares onde as almas são recebidas
Já dissemos que todas as almas
descem ao inferus, o lugar invisível e subterrâneo, onde aguardam a
ressurreição.
Convém agora explicar a
diversidade dos lugares dentro desse mesmo domínio, para que se
entenda como se cumprem ali a justiça e a ordem divinas.
Não se deve imaginar o inferus
como simples abismo de trevas ou como fogo perpétuo.
É uma região ampla, separada em espaços distintos, conforme a condição das
almas.
Assim como há muitas moradas na casa do Pai (Jo 14,2), há também muitos
receptáculos no seio da terra, ordenados segundo os méritos.
Na parte superior desse mundo
inferior, está o seio de
Abraão, o lugar de repouso das almas justas.
Ali esperam os patriarcas, os profetas e todos os que agradaram a Deus antes da
vinda de Cristo.
Não é o paraíso celeste, mas uma antecâmara da glória; não é ainda visão, mas
consolação.
Por isso o rico do Evangelho, estando em tormentos, viu de longe Abraão e
Lázaro reclinado em seu seio (Lc 16,23).
Mais abaixo, estão as regiões de pena e purgação,
onde as almas dos ímpios e dos negligentes sofrem segundo o que fizeram.
Não são penas eternas, mas intermediárias,
prelúdio do juízo final.
Ali o fogo é real, mas espiritual; consome sem destruir, atormenta sem
consumir.
É a consciência que arde, e o remorso é o combustível da chama.
Entre o seio de Abraão e as
regiões da dor, há um grande
abismo (Lc 16,26): separação de ordem, de mérito e de destino.
Ninguém passa de um lado a outro, pois o estado da alma, depois da morte, é
fixo e imutável.
O justo não pode mais cair, nem o ímpio se converter; o tempo da prova acabou.
Abaixo de tudo, nas profundezas
mais remotas, estão as prisões dos anjos decaídos, “as cadeias tenebrosas do
abismo” de que fala o Apóstolo (2Pe 2,4; Jd 6).
Ali aguardam o julgamento aqueles que corromperam a criação.
Essas regiões são chamadas “Tártaro” pelas Escrituras e pelos pagãos, mas os
pagãos ignoraram sua verdadeira razão.
O inferus, portanto, é como um mundo paralelo,
invisível aos olhos do corpo, mas real e ordenado.
Não é o caos dos mitos, mas a continuidade da criação.
A terra guarda em seu seio o que o céu rejeita ou ainda não acolhe.
E, assim como o ventre materno prepara o corpo para a vida, o inferus prepara a
alma para a eternidade.
Quanto ao paraíso, onde Cristo
prometeu levar o ladrão arrependido (Lc 23,43), não é o céu dos céus, mas um jardim superior,
distinto tanto do inferus quanto da glória final.
Lá Cristo levou as almas dos justos libertos, abrindo-lhes um novo repouso,
ainda que não a visão definitiva.
O paraíso é o intervalo entre o seio de Abraão e o trono de Deus — uma morada
de esperança e luz, onde as almas respiram o ar da futura bem-aventurança.
Assim, há três estados para as
almas:
1.
O inferus inferior, das
penas;
2.
O seio de Abraão, da
consolação;
3.
O paraíso, do repouso
prometido.
Cada um desses lugares
corresponde a uma etapa da economia divina.
Antes de Cristo, todas as almas, boas e más, desciam ao inferus; após Cristo,
as dos justos são conduzidas ao paraíso; as dos ímpios, permanecem nas sombras;
e todas, no fim, se apresentarão no juízo.
Portanto, não se deve confundir
o inferus com o inferno eterno (gehenna).
O primeiro é temporal e acolhe todas as almas; o segundo é definitivo e
acolherá apenas as condenadas após a ressurreição.
O inferus é prisão; a gehenna,
sentença.
O primeiro tem fim; a segunda, nunca.
Deus, que é justo, quis que até
a espera tivesse ordem.
Nenhuma alma fica sem lugar; nenhuma pena ou repouso é dado sem medida.
Tudo está preparado desde o princípio, para que nem mesmo a morte pareça caos.
Assim, o universo, visível e
invisível, forma um só corpo sob o governo do Criador: o céu para os anjos, a
terra para os homens, o inferus para as almas, o juízo para todos.
E, ao fim, quando tudo for restaurado, o inferus devolverá seus mortos, o mar
entregará os seus, e a morte será abolida — porque Deus será tudo em todos
(1Cor 15,28).
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XIX
De resurrectione carnis
et reditu animae ad corpus
Sobre a ressurreição da
carne e o retorno da alma ao corpo
Tendo mostrado onde as almas
residem após a morte, resta agora considerar como e quando voltarão aos corpos.
Pois a fé cristã não consiste apenas em crer que a alma vive, mas também que a
carne ressuscitará, para que o homem inteiro — aquele mesmo que viveu, pecou ou
se santificou — compareça ao juízo.
A separação entre alma e corpo
é temporária; a união, eterna.
Deus não formou a alma para existir sem corpo, nem o corpo para viver sem alma.
Ambos nasceram juntos, ambos morreram juntos no pecado, ambos serão restaurados
juntos pela graça.
Negar a ressurreição da carne é negar a criação e a justiça divina, pois o
corpo é parte essencial do homem e instrumento de suas obras.
Como poderia a alma ser julgada
sozinha, se o corpo participou de todos os atos?
Quem serviu ao pecado não foi apenas a vontade, mas também as mãos; quem
praticou a caridade não foi apenas o espírito, mas também os olhos e os pés.
Logo, é justo que o mesmo corpo que cooperou no mal ou no bem receba a pena ou
a glória.
A alma, desde a morte, aguarda o reencontro com sua carne,
e o faz com desejo natural, pois é o seu complemento.
Como a esposa que espera o esposo, assim a alma suspira pelo corpo, sua forma
visível e seu instrumento de expressão.
Ela o reconhece como sua morada, e por isso o conserva impresso em sua própria
figura.
Na ressurreição, a união será perfeita, sem corrupção nem dor, pois a carne
será espiritual, e o espírito será corporal — não pela confusão das naturezas,
mas pela harmonia da glória.
“Ressuscitará o mesmo corpo”,
diz a fé; “mas transformado”.
Não outro, para que seja justiça; não o mesmo em corrupção, para que seja
glória.
O corpo será o mesmo na substância, diverso na condição: mortal na terra,
imortal no céu; corruptível no tempo, incorruptível na eternidade.
A alma, ao reencontrá-lo, não o
rejeitará como peso, mas o revestirá como veste de luz.
Pois a carne, purificada pela morte, se tornará dócil e luminosa, obediente ao
espírito.
Então se cumprirá o que diz o Apóstolo: “O que é semeado corruptível,
ressuscita incorruptível; o que é semeado animal, ressuscita espiritual” (1Cor
15,42-44).
E não é de admirar que Deus
possa recompor o que se desfez, pois Ele fez do nada o que nunca existira.
Quem cria do nada, pode reunir o que foi desfeito.
Os ossos que se dispersaram conhecerão sua ordem; a carne que se dissolveu
achará sua forma; a alma reconhecerá o seu corpo como o navegante reconhece o
porto.
Nada do homem se perderá.
A justiça de Deus exige que o mesmo ser que viveu receba a recompensa ou o
castigo.
Seria absurdo que uma alma fosse coroada ou punida por obras que outro corpo
executou.
Portanto, é necessário que o homem inteiro reviva, o mesmo na identidade, renovado na
glória.
Assim, o retorno da alma ao
corpo é o coroamento da economia divina.
A criação começou com a união; a queda, com a separação; a redenção, com a
reunião.
O Cristo, primícia dos mortos, mostrou o caminho: ressuscitou em corpo e alma,
e subiu ao céu em ambos, deixando à humanidade o modelo e a promessa.
Logo, a esperança cristã não é
apenas imortalidade, mas ressurreição.
Não basta que a alma viva; é preciso que o homem inteiro viva.
A fé dos pagãos promete libertação da carne; a fé dos cristãos promete sua
glorificação.
O que eles desprezam, nós esperamos; o que eles chamam prisão, nós chamamos
templo.
E, quando esse retorno se
cumprir, cessará a morte, cessará o inferus, cessará o tempo.
O corpo e a alma, reconciliados, entrarão na eternidade — não mais separados
por fraqueza, mas unidos pela força do Espírito.
Então o homem, restaurado à sua integridade primeira, será novamente imagem de
Deus, não apenas em alma, mas em ser inteiro.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XX
De sensu poenarum et
gaudiorum post mortem
Sobre o sentido das penas
e das alegrias após a morte
Já que mostramos que a alma
subsiste após a morte e que habita regiões distintas segundo o mérito, devemos
agora explicar como sente
suas penas e seus gozos nesse estado.
Pois há quem imagine que, separada da carne, a alma se torna insensível, como
se os sentidos estivessem na carne e não na própria alma.
Mas, se assim fosse, não haveria castigo nem prêmio antes da ressurreição, e a
justiça divina ficaria suspensa.
Ora, já vimos que os sentidos
pertencem à alma, não ao corpo.
O corpo é apenas o instrumento; a alma, o músico.
Portanto, quando o corpo se dissolve, a alma continua a sentir — e sente com
mais acuidade, porque já não é embotada pela carne.
O rico do Evangelho, como já
lembramos, clamava em tormentos: “Estou atormentado nesta chama” (Lc 16,24).
Sua língua ardia, seus olhos viam, sua memória o atormentava.
Mas onde estava seu corpo? No sepulcro.
Logo, é a alma que sente, e o corpo é apenas o órgão visível de suas sensações.
As almas dos justos também
sentem, mas de outro modo.
Sentem paz, consolo e esperança; gozam da lembrança de suas obras, da presença
dos santos, da antevisão da glória.
Não é ainda o gozo pleno, mas uma antecipação do paraíso, como o alvorecer
antes do dia.
A espera, para eles, é suave; para os ímpios, amarga.
O mesmo tempo que consola uns, atormenta outros.
E essas penas e alegrias não são
figuradas, mas reais,
embora de natureza espiritual.
A dor do corpo é sensação física; a dor da alma é consciência viva.
O remorso é o fogo; a memória, a chama; a esperança frustrada, o fumo que
sufoca.
O que o fogo é à carne, isso é o remorso à alma.
Do mesmo modo, a paz do justo é repouso, a confiança é refrigério, a
contemplação é claridade.
Deus quis que desde já houvesse
diferença entre o justo e o ímpio, para que a justiça começasse antes do juízo.
Por isso, mesmo antes da ressurreição, há retribuição proporcional.
Não é ainda o castigo eterno nem a glória consumada, mas um prelúdio de ambos,
conforme a lei da semeadura: o que cada um semeou, isso colhe em antecipação.
Assim, o inferus é tribunal
provisório, onde a alma experimenta o que mereceu, enquanto espera o veredito
final.
Não é sono, como dizem alguns, mas vigília
dolorosa ou jubilosa.
Os ímpios veem de longe a luz que não podem alcançar; os justos ouvem o rumor
do juízo que os libertará.
Ambos vivem no tempo da espera — um tempo que não se mede por dias, mas por
intensidade.
Quanto maior o desejo, mais
longa parece a espera; quanto maior o desespero, mais aguda a dor.
Assim se cumpre a justiça de Deus sem violência: o amor e o ódio, levados à
perfeição, tornam-se prêmio e pena.
O céu e o inferno começam no coração do homem e se prolongam após a morte.
Portanto, a alma sente, vive e
paga; nada perde de sua consciência.
O que amou em vida, recorda; o que temeu, encontra; o que fez, revive.
E porque o amor e o medo são forças sensíveis, a alma que amou a Deus arde em
doçura, e a que o desprezou arde em dor.
Ambas ardem — uma em luz, outra em trevas.
Assim, a morte não suspende o
sentir, mas o intensifica.
O corpo era véu; a separação o rasgou.
A alma, despida da carne, conhece a plenitude de si mesma — e nela experimenta
o princípio de seu destino.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXI
De Christo ut homine et
de anima ejus
Sobre Cristo como homem e
sobre a sua alma
Depois de tratar da natureza e
do destino das almas humanas, convém agora falar da alma do próprio Cristo,
para que a verdade da encarnação se mostre inteira.
Pois muitos, movidos por falsa piedade, quiseram defender a pureza divina
negando a realidade humana do Senhor.
Dizem que Ele só assumiu carne aparente, e que o que parecia sofrimento não
passava de ilusão.
Mas, se assim fosse, não haveria redenção nem ressurreição, pois o que não se
assume não se cura.
A Escritura afirma que o Verbo
se fez carne (Jo 1,14), e a carne sem alma não é homem, mas cadáver.
Logo, se Cristo é homem, é necessário que tenha alma — não alma celeste, nem
angélica, nem alguma essência intermediária, mas alma humana verdadeira,
da mesma natureza que a nossa, embora sem pecado.
A prova está nos Evangelhos.
Ele se admirou, alegrou-se, entristeceu-se, chorou, temeu, comoveu-se — todas
paixões da alma.
Disse: “A minha alma está triste até a morte” (Mt 26,38).
E antes, exclamou: “Agora a minha alma se perturbou” (Jo 12,27).
Ora, quem sente tristeza e perturbação tem alma; e quem tem alma é homem.
Também a morte de Cristo o
demonstra.
O corpo morreu, mas a alma foi ao inferus, conforme o salmo: “Não deixarás a
minha alma no inferno, nem permitirás que o teu Santo veja a corrupção” (Sl
15,10; At 2,27).
Logo, o que desceu foi a alma; o que ficou foi o corpo; o que ressuscitou foi o
homem inteiro.
Se não tivesse alma, como poderia morrer? E se não tivesse morrido, como
poderia vencer a morte?
Os hereges docetas, que diziam
que o corpo do Senhor era apenas aparência, foram refutados pelos próprios atos
de Cristo.
Comeu, bebeu, dormiu, cansou-se, sangrou; nada disso pertence a um corpo
aparente.
Mas o erro mais sutil é o dos que admitem o corpo, mas negam a alma, como se o
Verbo divino tivesse tomado carne sem assumir o princípio vital humano.
Esses tornam a encarnação incompleta e destroem a mediação entre Deus e os
homens.
Pois a alma é o meio pelo qual
o divino se comunica ao humano.
Sem alma, o corpo é matéria inerte; sem o Verbo, a alma é matéria espiritual.
Cristo é a união perfeita das duas naturezas — Deus e homem, espírito e alma, alma e corpo.
E cada uma permanece o que é, sem confusão nem separação.
A alma de Cristo, portanto, é
racional, livre e obediente.
Não é uma centelha divina, mas uma alma criada e unida ao Verbo desde o
princípio da concepção.
Deus não habitou um homem já feito; fez-se homem ao formar-lhe a alma e a carne
no seio de Maria.
Assim, Ele é ao mesmo tempo gerado de Deus quanto à divindade, e gerado de
mulher quanto à humanidade.
Se alguém pergunta de onde veio
a alma de Cristo, respondo:
Deus a criou, como criou a alma de Adão — mas não no mesmo estado de prova, e
sim em plenitude de graça.
Adão recebeu a alma e perdeu a justiça; Cristo recebeu a alma e conservou-a
perfeita.
O primeiro foi alma vivente; o segundo, espírito vivificante (1Cor 15,45).
Por isso, tudo o que Cristo fez
em sua vida humana foi obra de uma alma real:
quando orava, era sua alma que desejava;
quando se entristecia, era sua alma que sofria;
quando obedecia, era sua alma que se submetia;
quando morreu, foi sua alma que partiu;
quando ressuscitou, foi sua alma que voltou ao corpo.
Nada nele foi aparente, tudo foi verdadeiro, porque a verdade da redenção exige
a realidade do sofrimento.
Assim, quem nega a alma humana
de Cristo nega a salvação do homem.
Pois o que não é assumido não é redimido, e o que não foi unido a Deus
permanece separado.
Cristo salvou o homem inteiro porque assumiu o homem inteiro; e, unindo à sua
divindade uma alma como a nossa, santificou em si mesmo a natureza que havia
caído em Adão.
Portanto, a alma de Cristo é o
espelho da alma humana purificada.
Nela se reflete a imagem original, sem a mancha do pecado; nela se cumpre o que
Deus quis quando soprou em Adão o hálito da vida.
E como o primeiro homem transmitiu a morte, o segundo transmite a vida — porque
em sua alma estava a plenitude do Espírito.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXII
De anima prophetica et
inspiratione divina
Sobre a alma profética e a
inspiração divina
Já que se provou que a alma é
viva, corpórea e sensível, resta mostrar como
ela se abre à influência divina.
Pois, sendo obra de Deus, ela é também instrumento de sua voz; e, assim como o
corpo é movido pela alma, a alma é movida pelo Espírito.
O Espírito Santo, quando quer
manifestar as coisas divinas, não
destrói a alma, mas a eleva.
Entra nela como o músico em seu instrumento: não para quebrá-lo, mas para
fazê-lo soar conforme sua vontade.
Assim, o profeta, quando inspirado, não perde o sentido, mas o transcende; não
é anulado, mas transfigurado.
Os hereges chamam de delírio o
que é êxtase; nós, porém, chamamos de plenitude.
Pois há diferença entre ser arrebatado por Deus e ser possuído pelo demônio.
O demônio perturba e escurece; o Espírito ordena e ilumina.
Na possessão demoníaca, a alma é violentada; na profecia, é persuadida.
O diabo domina; Deus inspira.
Nos profetas, o Espírito Santo
age em harmonia com a natureza da alma.
Não a oprime, mas a expande; não lhe tira a razão, mas a faz participar da
razão divina.
Por isso, os profetas não falam em transe inconsciente, mas em lúcida visão:
veem o que o Espírito mostra, e dizem o que Ele lhes dita.
“Estava sobre mim a mão do
Senhor”, diz Ezequiel (Ez 1,3); “O Espírito do Senhor me transportou”, diz
outro.
Mas logo acrescenta: “E eu vi e compreendi”.
Logo, o profeta não é máquina, mas cooperador consciente.
A alma profética é, portanto, espelho e trombeta:
reflete o invisível e o anuncia.
No reflexo, contempla; na voz, proclama.
O Espírito é a luz que a ilumina por dentro; a palavra, o som que dela se
projeta para fora.
Esse estado, que os antigos
chamaram enthousiasmos,
é a presença do próprio Deus no homem.
Mas o nome verdadeiro é spiritus
prophetiae, o sopro divino que entra no vaso humano.
Não é o homem que fala, mas Deus no homem — não pela destruição da liberdade,
mas pela sua consagração.
Há, contudo, diversos modos
dessa inspiração.
Uns são suaves, como o sopro que move Elias (1Rs 19,12); outros, poderosos,
como o fogo que tocou Jeremias (Jr 20,9).
Em todos, porém, há uma mesma economia: o Espírito toca, a alma responde.
Como a harpa vibra quando o músico a tange, assim a alma vibra sob o dedo do
Espírito.
E essa harmonia divina deixa
vestígios: o olhar inflamado, a voz firme, a palavra que ultrapassa a sabedoria
humana.
Por isso os pagãos, vendo os profetas inspirados, os tomaram por loucos, como
também julgaram de Cristo: “Ele tem um demônio e está fora de si” (Jo 10,20).
Mas o delírio dos homens é a sanidade de Deus.
A inspiração divina não vem
pela violência do corpo, mas pela disposição da alma.
Deus fala onde encontra pureza e silêncio interior.
A alma purificada pela fé torna-se transparente à luz do Espírito, e, nesse
estado, vê e ouve o que o mundo não pode perceber.
Foi assim que Maria concebeu
pela audição — pois a fé vem pelo ouvir (Rm 10,17) —, e que os apóstolos
falaram todas as línguas sem tê-las aprendido.
O mesmo Espírito que os encheu é o que move toda alma profética.
E não só nos profetas antigos,
mas ainda hoje, o Espírito age nas almas santas.
A profecia não cessou; apenas mudou de forma.
Já não fala pelos véus da lei, mas pelo esplendor da graça.
Onde há fé viva, ali há inspiração; onde há pureza, ali há visão.
Assim, a alma do homem é
templo, e o Espírito de Deus é o sacerdote que nela ministra.
Quando o altar está limpo, o fogo desce; quando há sacrifício de louvor, o
sopro o acende.
A profecia é o incenso do intelecto que sobe a Deus e desce em palavra.
Portanto, não se deve temer o
Espírito nem desprezar a alma.
Ambos vêm do mesmo Deus e se encontram na profecia.
A alma é o vaso; o Espírito, o vinho; o profeta, o banquete de Deus para os
homens.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXIII
De anima rationali et
voluntate libera
Sobre a alma racional e a
vontade livre
Depois de mostrar que a alma é
viva, sensível e capaz de inspiração divina, cumpre agora considerar sua natureza racional e livre,
sem o que não haveria nem virtude nem pecado, nem juízo nem retribuição.
Deus criou o homem à sua
imagem; e como Deus é razão, o homem é racional.
A razão é a luz da alma, o princípio que a distingue dos animais.
Tudo o que vive tem alma; mas só o homem tem alma que entende, delibera e
escolhe.
Por isso foi-lhe dada a lei — não aos brutos, que agem por instinto, nem aos
anjos, que vivem pela vontade divina, mas ao homem, que está entre ambos.
A razão é o trono da liberdade,
e a liberdade é o campo da prova.
Pelo exercício da razão, a alma conhece o bem; pela liberdade, o escolhe.
O bem não seria mérito se não pudesse ser rejeitado; o mal não seria culpa se
não pudesse ser evitado.
Logo, a liberdade é condição da justiça.
Mas a liberdade da alma não é
absoluta: é participada.
Deus é livre por natureza; o homem, por concessão.
Ele pode escolher entre obedecer e desobedecer, mas não pode mudar o bem em
mal, nem o mal em bem.
A liberdade humana está sujeita à verdade divina, como o raio ao sol.
Os hereges, especialmente os
valentinos, afirmam que o homem é movido por natureza, uns destinados ao bem,
outros ao mal, como se a vontade fosse obra do destino.
Mas isso é negar a justiça e o juízo.
Pois o que é forçado não é responsável, e o que é responsável é livre.
Se o mal fosse necessário, Deus seria sua causa; se o bem fosse inevitável, não
haveria mérito.
Deus, que é justo, não
ordenaria o impossível nem condenaria o inevitável.
Por isso nos deu o mandamento e a liberdade de cumpri-lo.
A graça auxilia, mas não substitui a vontade.
Ela é como o vento nas velas: sem ele, o barco não anda; mas o piloto deve
desejar o porto e dispor o leme.
A alma, portanto, é racional e
voluntária.
A razão mostra o caminho; a vontade escolhe a direção.
Quando ambas concordam com Deus, nasce a virtude; quando se afastam, nasce o
pecado.
Assim, a liberdade não é destruição da ordem, mas participação nela.
Na queda, a vontade foi ferida,
não extinta.
O homem perdeu a facilidade do bem, não a possibilidade.
Desde então, a graça é necessária, mas a liberdade permanece.
O que a lei ordena, a graça ajuda; o que a graça inspira, a vontade consente.
Por isso Cristo veio não para
tirar o livre-arbítrio, mas para libertá-lo.
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
A liberdade que Ele dá é interior, não política; espiritual, não carnal.
É a restauração da vontade à sua ordem original — querer o bem, amar a justiça,
servir a Deus.
A alma, sendo racional, conhece
a Deus por reflexão; e, sendo livre, pode amá-lo ou rejeitá-lo.
Nisso está sua dignidade e seu perigo.
Nada é mais alto que uma alma santa; nada mais miserável que uma alma culpada.
Pois quanto maior o dom, maior a responsabilidade.
Assim, toda moral se funda na
estrutura da alma: razão para conhecer, liberdade para escolher, memória para
perseverar.
E por essa tríade — inteligência, vontade e amor — o homem é imagem do Criador.
A alma é o espelho da Trindade em unidade: pensa como o Pai, quer como o Filho,
ama como o Espírito.
Logo, a liberdade é o selo da
alma racional.
Sem ela, o homem seria autômato; com ela, é pessoa.
Deus quis ser servido por amor, não por necessidade.
A obediência forçada é servidão; a voluntária, adoração.
Eis, pois, o grande mistério:
Deus fez o homem livre para que pudesse ser justo.
O mal não vem de Deus, mas do mau uso da liberdade que Ele mesmo concedeu.
E a redenção, por Cristo, não é anulação da vontade, mas sua cura.
O homem salvo é o homem livre; e livre porque ama o bem.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXIV
De natura peccati et
inclinatione animae post lapsum
Sobre a natureza do pecado
e a inclinação da alma depois da queda
Se a alma é racional e livre, é
também responsável; e se é responsável, é capaz de pecado.
Cumpre, portanto, investigar de
onde procede o pecado, para que se compreenda a enfermidade e a
necessidade do remédio.
O pecado não vem da carne, como
pensam alguns, mas da alma.
Pois a carne nada faz sem a alma, e nada deseja sem seu consentimento.
A carne é instrumento; o pecado é a desordem do músico.
Não há culpa no ferro, mas no ferreiro que o usa mal.
Foi a alma que primeiro quis o
mal e o ensinou à carne.
Adão pecou antes de estender a mão: o gesto foi o corpo; a vontade, a alma.
Assim, o pecado nasce no interior, manifesta-se no exterior e volta à alma como
ferida.
A natureza da alma, contudo,
não é má.
Deus a fez reta, mas ela se desviou por escolha.
A vontade, feita para o bem, tornou-se inclinada ao mal, e essa inclinação foi
transmitida à descendência, como herança da culpa.
Não é natureza nova, mas natureza viciada.
Desde então, a alma humana vive
em dupla tensão:
conhece o bem e deseja o mal; odeia o que faz e faz o que odeia (Rm 7,19).
Essa contradição é a marca da queda — o combate entre a lei de Deus e a lei dos
membros.
A liberdade permanece, mas ferida; a razão subsiste, mas obscurecida; a vontade
age, mas dividida.
O pecado, portanto, não é
substância, mas movimento
da vontade contra a ordem divina.
Não é corpo, mas desvio; não é coisa criada, mas uso errado do criado.
Por isso é punido, porque é voluntário; e, sendo voluntário, é remediável pela
conversão.
A carne é cúmplice, não origem.
A tentação entra pela carne, mas o consentimento nasce da alma.
O corpo sente, a alma escolhe; e quando ela se entrega ao prazer, o corpo se
torna servo do erro.
O que a alma manda, a carne executa.
Assim, o homem inteiro cai
quando a alma se curva.
E o pecado, uma vez concebido, gera a morte (Tg 1,15) — não porque Deus a
queira, mas porque a ordem da vida é rompida.
A alma, separando-se da lei do Criador, separa-se da própria vida; e o que se
afasta da vida, morre.
Mas Deus, que é justo e
misericordioso, não permitiu que a inclinação se tornasse necessidade.
Deixou na alma a memória do bem, a voz da consciência, a luz da razão.
Mesmo no pecador, há um eco da justiça — um remorso que é prova de liberdade e
um convite à conversão.
A inclinação ao mal é, pois, punição e medicina:
punição, porque castiga a soberba; medicina, porque ensina a humildade.
Quem não pode confiar em si, confia em Deus; quem caiu, aprende a se apoiar na
graça.
O pecado é o espelho em que a alma conhece sua miséria e volta à sua origem.
Portanto, não se deve acusar a
carne nem o destino, mas a vontade.
É ela que gera o vício ou a virtude; é o eixo do juízo e o ponto de contato
entre o homem e Deus.
E como o pecado nasce da alma, também é nela que nasce a santidade.
Assim, o mesmo poder que perdeu
o homem o pode salvar: a liberdade restaurada pela graça.
Cristo não destrói o querer, mas o orienta; não anula a liberdade, mas a
liberta do erro.
A alma que nele crê reencontra o equilíbrio perdido: ama o que deve, odeia o
que destrói, deseja o que salva.
O pecado, então, já não é
senhor, mas ferida curada; não é natureza, mas sombra; não é destino, mas lembrança.
E a alma, que outrora se inclinava para baixo, começa a se inclinar para o
alto.
Essa conversão é o princípio da nova criação: o retorno da vontade humana à
harmonia com a divina.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXV
De animae renovatione
per gratiam Christi
Sobre a renovação da alma
pela graça de Cristo
Se a alma se inclinou ao mal
por sua própria vontade, convém que retorne ao bem pela graça de Deus.
Pois aquele que a criou livre não a salva por violência, mas cura-a pela luz e pelo amor.
A graça não destrói a liberdade, mas a redireciona; não muda a substância, mas
a purifica.
A alma, pela queda, perdeu a
ordem; pela graça, reencontra o princípio.
O pecado foi corrupção; a graça é medicina.
Adão trouxe a morte; Cristo traz a vida.
Mas, assim como o mal começou no interior da vontade, o bem também começa na
alma:
“Renovai-vos no espírito de vossa mente” (Ef 4,23).
A regeneração não consiste em
mudar de corpo, mas em mudar
de alma — ou melhor, em restaurar a alma ao estado de pureza original.
O batismo é o sinal visível dessa renovação: a água lava o corpo, e o Espírito
lava a alma.
O homem sai da fonte o mesmo em substância, mas novo em disposição; o velho
Adão é sepultado, o novo Cristo se levanta.
A graça de Cristo age primeiro na memória, apagando a
lembrança do pecado;
depois na razão,
iluminando o entendimento;
por fim na vontade,
inflamando o amor ao bem.
Assim, toda a alma é purificada: a memória pela fé, a razão pela verdade, a
vontade pela caridade.
O Espírito Santo é o fogo que
consome as escórias da alma e a transforma em templo vivo.
Não a substitui, mas a habita; não a domina, mas a penetra; não a cala, mas a
faz cantar.
Por isso se diz que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5):
o amor é o modo pelo qual o Espírito e a alma se unem.
Antes da graça, a alma era
serva de si mesma; depois da graça, torna-se serva de Deus — e por isso
verdadeiramente livre.
A vontade, antes inclinada ao mal, é agora movida pelo bem; o desejo, antes
disperso, é recolhido; a razão, antes turva, vê claramente.
A graça não apenas perdoa, mas reordena
o ser.
O homem regenerado sente outra
vez a harmonia perdida: a carne obedece, a alma governa, o espírito inspira.
Volta a ordem do Éden — não na natureza, mas na graça; não no corpo, mas no
coração.
E a alma, reconciliada com seu Criador, reencontra em si o reflexo da Trindade
que perdera.
A prova da renovação é o fruto.
Quem foi tocado pela graça manifesta nova vida: paciência no sofrimento, pureza
no olhar, compaixão no trato, alegria na fé.
A alma convertida é visível nos gestos, nas palavras e até no silêncio.
Ela se torna espelho de Cristo, e cada virtude é um reflexo de sua luz.
Mas essa renovação é contínua,
não momentânea.
Enquanto viver na carne, a alma lutará contra o peso da antiga inclinação;
porém, agora luta com esperança.
O mesmo combate que antes a arrastava ao mal, agora a eleva ao bem.
A graça não suprime o esforço, mas o transforma em mérito.
A alma que se renova em Cristo
não é outra, mas a mesma alma curada — como o ferro que, purificado do óxido,
volta a brilhar, ou a fonte que, limpa do lodo, torna a correr pura.
Deus não cria novamente o que já criou; restaura o que amou.
Por isso o apóstolo diz: “Se
alguém está em Cristo, é nova criatura” (2Cor 5,17).
Nova, não quanto à substância, mas quanto à disposição; nova, não no ser, mas
no modo de ser.
O que era desordem, torna-se harmonia; o que era culpa, torna-se louvor.
E, assim, a alma redimida é o
mais belo milagre da criação:
feita por Deus, deformada por si, reformada por Cristo.
Nela se cumpre o mistério do amor divino, que não se cansa de refazer o que o
homem estraga.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXVI
De animae immortalitate
et judicio perpetuo
Sobre a imortalidade da
alma e o juízo eterno
Depois de tratar de sua origem,
natureza, queda e renovação, resta afirmar a imortalidade da alma, sem a qual tudo
quanto dissemos seria vão.
Pois se a alma morresse com o corpo, não haveria sentido no mérito, nem na
culpa, nem na esperança da ressurreição.
A alma é imortal, não porque
seja divina, mas porque Deus
assim a quis.
O que vem de Deus participa de sua perenidade, embora não de sua essência.
Assim como o fogo que sai do sol não é o sol, mas é luz; assim a alma, que
procede do sopro divino, não é Deus, mas é viva como Ele é.
A prova está em sua própria
atividade:
tudo o que pensa o infinito, deseja o eterno e teme o juízo, é imortal.
Nada que é mortal pensa para além do tempo.
O homem, mesmo em sua ignorância, aspira à eternidade — e esse desejo seria vão
se a alma não fosse feita para ela.
Além disso, o que não se
dissolve na morte não pode ser mortal.
Ora, já demonstramos que a alma sobrevive à separação do corpo, conserva a
memória, a consciência e o sentimento.
Logo, é imortal por sua constituição.
A morte destrói o corpo porque é composto de elementos contrários; mas a alma,
sendo simples e espiritual, não tem princípio de corrupção.
Deus não cria para o nada o que
modelou com o sopro de sua boca.
O mesmo sopro que deu a vida não pode dar a morte.
Ele é origem, não termo; princípio, não ruína.
Mas se a alma é imortal, também é responsável eternamente.
Pois o que dura para sempre, dura com o que é seu: ou a luz da graça, ou o peso
da culpa.
Assim, o juízo de Deus não é ato passageiro, mas estado permanente — o justo
entra na vida, o ímpio na morte que não morre.
O juízo se divide em dois
momentos: o particular,
que ocorre na morte, e o universal,
no fim dos tempos.
No primeiro, cada alma recebe o lugar que merece; no segundo, o corpo se reúne
à alma para que a sentença seja completa.
A pena e a glória serão então corporais e espirituais, totais como o homem.
O inferus, que agora contém as
almas, entregará os seus; o mar, os seus; a terra, os seus.
E o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,41), será também o
destino das almas rebeldes.
Mas os justos brilharão como o sol no reino do Pai (Mt 13,43).
Esses dois estados — visão
e privação de Deus — são o céu e o inferno.
A alma dos santos gozará de
perpétua luz, não mudando mais nem sofrendo.
Não perderá a liberdade, mas a fixará no bem; não perderá o amor, mas o
consumará.
Terá o que sempre buscou: Deus.
E n’Ele conhecerá sem erro, amará sem medida e viverá sem fim.
A alma dos ímpios, ao
contrário, conservará também o que escolheu: o afastamento de Deus, a cegueira
voluntária, o peso de sua própria vontade.
Sua pena é ser o que quis ser — afastada da luz, devorada pelo próprio fogo
interior.
Pois o fogo eterno é a consciência que não morre, o remorso que não se apaga, a
memória do bem perdido.
Assim, o juízo eterno não é
tirania, mas revelação: cada alma será o que fez de si.
A justiça de Deus não impõe, manifesta; não inventa o mal, apenas o deixa ser o
que é.
E o céu e o inferno começam já no coração: a alma que ama a Deus arde em luz; a
que o rejeita arde em trevas.
Portanto, a imortalidade não é
privilégio, mas destino.
Todos viverão para sempre — uns em alegria, outros em dor.
A morte, que parecia fim, é apenas passagem; e o tempo, que parecia eterno, é
apenas preparação.
Quando tudo se consumar, e Deus
for tudo em todos, as almas dos santos se unirão ao Espírito, e o corpo
glorificado participará de sua incorruptibilidade.
O homem voltará a ser o que era no pensamento divino: imagem viva da eternidade.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXVII
De animae testimonio
naturaliter Christianae
Sobre o testemunho da alma
naturalmente cristã
Depois de expor a natureza, a
origem e o destino da alma, resta mostrar que a própria alma é testemunha de Deus.
Não é a fé ensinada que primeiro confessa o Criador, mas a natureza mesma da
alma que o reconhece.
O homem pode ser instruído pelo erro, mas nasce verdadeiro.
Ó alma humana, nobre por tua
origem, miserável por tua culpa, e ainda assim digna de escuta!
Fala, não segundo os livros dos filósofos, não segundo as escolas dos hereges,
mas segundo o que és quando és tu mesma: simples, rude, inculta, ainda intacta
pela falsidade.
Fala daquilo que sentes, não daquilo que aprendeste.
Quando de súbito exclamas:
“Deus é grande!”, “Deus é bom!”, “Se Deus quiser!”, “Graças a Deus!”, “Deus me
livre!”, não fazes profissão cristã, mas confissão natural.
De onde te vêm essas palavras, ó alma, senão da tua própria substância, que
lembra o seu Autor?
Pois nenhuma alma é sem Deus, mesmo quando ignora o seu nome.
Interroga-te a ti mesma, ó
alma: não sentes dentro de ti um juízo, um temor, uma esperança?
Não distingues o bem do mal, o justo do injusto?
Não te reconheces mortal no corpo, mas imortal no íntimo?
Não te comoves quando ouves falar de Deus, e não tremes quando ouves falar do
inferno?
Essas paixões não vêm do corpo — vêm de ti.
O corpo teme a dor; tu temes o
juízo.
O corpo se alegra com o prazer; tu te alegras com a virtude.
O corpo perece; tu desejas a eternidade.
Logo, és outra coisa, e maior, e mais divina.
Tu, que murmuras em segredo:
“Deus me vê”, tu já confessas o Deus que tudo vê.
Tu, que te refugias na esperança quando sofres, já confessas a providência que
tudo governa.
Tu, que amaldiçoas o destino e invocas a sorte, já declaras, sem o saber, que
há um poder acima de ti.
Não é, pois, a fé cristã que te
empresta essas palavras — é tua própria natureza.
Antes que o Evangelho te pregue o Cristo, tu já o pressentes; antes que o
apóstolo te ensine a ressurreição, tu já a desejas; antes que o batismo te lave,
tu já sentes a mancha.
Tu te sabes feita para algo mais alto e, ao mesmo tempo, caída.
Eis o testemunho mais antigo e
mais puro: a alma
naturaliter Christiana est —
a alma é, por natureza, cristã.
Não no sentido da fé adquirida, mas da disposição interior, da saudade do
Criador, da lembrança do bem perdido.
Mesmo quando blasfema, ela o faz contra Deus, e, portanto, o reconhece.
Tu, alma, és o tribunal onde
Deus fala.
A consciência é tua profecia.
O justo se alegra nela; o ímpio se condena nela.
Antes que o juiz se manifeste, tu já pronuncias a sentença.
A fé confirma o que a natureza murmura; a graça ilumina o que a alma pressente.
Por isso, o Apóstolo diz que os
gentios, que não têm a lei, fazem naturalmente as coisas da lei, tendo a lei
escrita em seus corações (Rm 2,14–15).
A voz da consciência é o eco da Palavra divina.
A alma é o pergaminho em que Deus escreveu a verdade com o fogo do ser.
Vê como, até entre os pagãos, o
testemunho da alma se manifesta.
Eles falam de um Deus supremo, juiz e pai, e de um fogo eterno que pune os
maus.
Falam da virtude que conduz ao céu, e do crime que desce ao abismo.
Não o aprenderam de Moisés, nem dos profetas, nem dos apóstolos — aprenderam de
si mesmos.
Quando o poeta exclama: “Vem a
hora em que os bons terão outra vida”, ele é profeta contra sua vontade.
Quando o filósofo confessa que há algo divino dentro de nós, ele é pregador sem
saber.
Quando o povo exclama nas desgraças: “Ai de nós! É castigo dos deuses!”, ele é
testemunha da justiça que teme.
Assim, de toda parte, a alma
proclama o que o Evangelho confirma.
A natureza é a primeira catequista; a graça, sua plenitude.
A alma é o altar interior onde o Deus desconhecido já era adorado antes de ser
revelado.
E, se alguns, pervertidos pela
mentira, negam a alma, é porque já negaram a si mesmos.
Mas tu, ó alma que ouves, lembra-te de tua origem, reconhece teu Criador, e
volta a Ele.
Não és centelha de matéria, nem sopro de demônio, nem sombra de ar: és sopro de
Deus, feita à sua imagem, viva e eterna.
Volta-te, pois, para Aquele de
quem vieste.
Tua sede é d’Ele, teu repouso é n’Ele, tua verdade é Ele.
E quando o encontrares, compreenderás que Ele sempre esteve em ti — e tu sempre
O testemunhavas, mesmo sem o saber.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput
XXVIII
De haereticis qui
animam negant
Sobre os hereges que negam
a alma
Logo após confessar, ó alma,
que és naturalmente cristã, não te cales diante dos que te negam!
Pois há, entre os que se dizem sábios, alguns que ousam afirmar que tu não
existes, que não és substância, mas sombra, sopro, número ou harmonia — e,
negando-te, negam o próprio homem.
Tais são os discípulos da
falsidade, os inventores das heresias, que, para destruir a fé na ressurreição
e no juízo, começam por destruir a alma.
Pois, se não há alma, não há quem ressuscite, nem quem seja julgado.
Assim, pela negação da alma, querem abolir a justiça de Deus.
Uns dizem que a alma é apenas o
calor do corpo, que morre quando o corpo esfria;
outros, que é o sopro do ar, dissipado com o último alento;
outros ainda, que é uma harmonia de átomos ou de sons, que cessa quando o
instrumento se quebra.
Mas se a alma fosse só harmonia, como poderia discordar de si?
Se fosse só sopro, como poderia pensar?
Se fosse só calor, como poderia amar?
Tudo isso são palavras vãs de
homens que preferem o absurdo à verdade, para não confessar o que é divino.
Pois quem reconhece que há uma alma, reconhece que há um Criador; e quem
confessa a alma viva, confessa o Deus vivo.
Ó hereges insensatos, que fazem
do homem um eco sem voz, uma sombra sem substância!
Se negais a alma, por que falais, por que ensinais, por que disputais?
Quem raciocina, senão a alma?
Quem duvida, quem crê, quem odeia ou ama, senão ela?
Negar a alma é negar o próprio ato de negar!
O corpo nada faz por si: ele é instrumento,
não artífice.
A voz vem da garganta, mas o discurso vem da alma; o olhar vem dos olhos, mas a
visão vem da alma; o movimento vem dos músculos, mas o querer vem da alma.
Sem ela, o corpo é cadáver — olhos abertos, mas sem luz; boca aberta, mas sem
palavra.
Além disso, se a alma fosse só
ar ou número, como poderia sofrer ou se alegrar?
Como poderia sentir culpa ou remorso?
O ar não se envergonha, o número não chora, a harmonia não ora.
Mas a alma ora, clama, ama, teme — logo, existe como sujeito real.
E se me disserem que a alma é
ilusão dos sentidos, pergunto: de quem é a ilusão?
Dos sentidos? Mas os sentidos são funções da alma!
É a alma que percebe, julga e corrige o erro.
Negar a alma é destruir a própria possibilidade de erro, e portanto de conhecimento.
Esses falsos doutores, que
dissolvem o homem em vácuo, têm horror à verdade porque a verdade os julga.
Não suportam uma alma imortal, porque não suportam um juízo eterno.
Preferem morrer com o corpo a viver com a consciência.
Mas Deus não permite que desapareça o que Ele mesmo soprou.
Assim, eu afirmo: a alma é
substância viva, corporal em seu modo próprio, espiritual em sua natureza,
sensível em todo o corpo e incorruptível em si mesma.
Ela não é o corpo, mas está no corpo como rainha em seu reino; não é o ar, mas
o sopro que o anima; não é o número, mas a medida da vida.
E se os hereges zombam dessa
verdade, que olhem para dentro de si.
Cada vez que amam, odeiam, recordam ou sonham, confessam o que negam.
Sua própria contradição é sua prova: enquanto afirmam que não há alma, falam
com ela.
Assim, permanece firme esta
regra:
Negar a alma é negar Deus,
e negar Deus é negar o homem.
Pois sem alma, não há imagem; sem imagem, não há semelhança; e sem semelhança,
não há criatura.
O homem sem alma seria menos que o pó — porque o pó, ao menos, obedece ao
vento; o herege, nem a si mesmo.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXIX
De origine malorum ex
anima
Sobre a origem dos males a
partir da alma
Já que se provou que a alma é
viva, substancial e livre, resta agora explicar de onde procede o mal, pois tudo o que
existe tem uma origem.
Não poucos, entre filósofos e hereges, erraram neste ponto: uns imaginaram dois
princípios eternos, o bem e o mal; outros disseram que o mal é parte de Deus;
outros, ainda, que vem da matéria.
Mas todos se enganam, porque fazem do mal algo que é, quando o mal é, na verdade, o que falta ser.
O mal não é substância, mas defeito da substância;
não é criação, mas corrupção.
Deus não o fez, porque Deus só faz o bem.
O mal nasce quando a criatura, livre, se
desvia do fim para o qual foi feita.
Assim como a sombra não tem existência própria, mas depende da luz que é
obstruída, assim o mal existe apenas onde o bem é impedido.
A alma, que recebeu de Deus a
razão e a liberdade, foi feita para o bem.
Enquanto se mantém voltada para o Criador, vive na ordem; quando se volta para
si mesma, cai no desvio.
O princípio de todo mal é, pois, a
vontade pervertida — a alma que quer ser seu próprio fim.
O primeiro exemplo disso é o
anjo que se fez diabo: não foi criado mau, mas se tornou mau ao desejar ser
igual a Deus.
Dele a alma humana aprendeu a soberba, a desobediência e a vaidade.
Mas, ao contrário dos anjos decaídos, o homem tem possibilidade de retorno,
porque sua queda não é pura rebelião, mas fraqueza.
A origem do mal está, portanto,
no interior da alma.
É nela que o desejo se corrompe, que a imaginação se exalta, que a razão se
obscurece.
O corpo, servo obediente, apenas executa o que a alma decide.
Assim, a mão que mata é instrumento, mas o homicídio está na vontade; a língua
que mente é órgão, mas a falsidade está no coração.
Deus permitiu essa
possibilidade não por impotência, mas por justiça.
Pois a liberdade seria inútil se não pudesse ser mal usada.
Sem escolha, não haveria mérito; sem risco, não haveria virtude.
O mal, portanto, é acidente
permitido, não vontade de Deus.
É o preço da liberdade, e também a condição de sua glória.
Contudo, Deus não abandona o
homem ao mal:
dá-lhe a lei para discernir, a consciência para acusar, a graça para curar.
E mesmo o mal, quando reconhecido e vencido, torna-se ocasião de bem — pois a
culpa desperta o arrependimento, e a fraqueza ensina a humildade.
O mal, por isso, não tem raiz
eterna: nasce no tempo e morre com o arrependimento.
Só o bem é eterno, porque procede de Deus.
O mal é parasita da liberdade, mas a graça é o remédio da liberdade.
A alma que se converte transforma em virtude o que foi vício, e o inferno
interior se converte em céu de penitência.
Não há, pois, dois princípios,
mas um só — Deus — e uma só criatura responsável — a alma.
O diabo não é princípio do mal, mas exemplo dele; o homem não é sua vítima, mas
seu cúmplice.
E Deus, ao permitir a queda, já dispunha a redenção.
Assim, a origem dos males está
na alma, e o fim dos males está em Deus.
A alma, que se desviou livremente, é livre também para retornar.
O mesmo movimento que a precipitou no abismo pode elevá-la ao céu.
E então se cumpre o mistério da justiça divina: que o homem, por onde caiu,
seja também por onde se salve.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXX
De ordine rerum
spiritualium et corporalium
Sobre a ordem das coisas
espirituais e corporais
Depois de mostrarmos que o mal
nasce da alma, cumpre agora expor a
ordem natural das coisas, para que se entenda por que o desvio
é desordem.
Pois o universo não é um amontoado de seres, mas uma hierarquia de causas,
dispostas sob um único princípio e movidas por uma única razão.
No cume de tudo está Deus, não corpóreo, mas
substância espiritual e sempiterna, invisível aos sentidos, compreensível
apenas pela alma.
Dele procede o Verbo, e pelo Verbo todas as coisas foram feitas.
Do Verbo procede o Espírito, e pelo Espírito tudo se conserva.
Assim, o primeiro grau da ordem é a Trindade criadora: Deus que pensa, Deus que
fala, Deus que anima.
Abaixo do Criador estão as naturezas espirituais criadas:
os anjos, as potências, os espíritos de luz, ministros da providência.
São substâncias sutis, luminosas, ágeis, incorruptíveis, mas não imortais por
si — vivem pela vontade divina.
São superiores ao homem, mas servos de Deus.
Entre eles, alguns permaneceram fiéis; outros, pelo orgulho, decaíram, e
tornaram-se demônios.
Assim, até nas alturas há ordem e queda: a fidelidade é a forma da permanência;
a soberba, o princípio da ruína.
Depois dos anjos vem o homem, mediador entre o
espiritual e o corpóreo: alma e corpo unidos em uma só substância moral.
A alma o liga ao céu, o corpo à terra.
Enquanto obedece à alma, o corpo é instrumento da virtude; quando a domina, é
prisão do espírito.
O homem é imagem da criação inteira — pois contém em si o invisível e o
visível, o eterno e o temporal.
Abaixo do homem estão os animais, que têm alma
sensitiva, mas não racional.
Vivem, sentem, movem-se, mas não conhecem a causa de sua vida.
O instinto é sua lei, e o apetite, sua razão.
Eles participam da vida da alma apenas como reflexo, e da vida do corpo como
substância.
Mais abaixo, as plantas, que têm
princípio vital sem sensibilidade — vivem, mas não sentem.
Sua alma é o crescimento, sua razão é o sol.
São o vestígio do espírito na matéria, o primeiro grau do ser visível.
E, por fim, as coisas inanimadas —
pedras, metais, elementos — que participam da ordem pela forma e pela medida,
não pela vida.
Elas não conhecem, mas são conhecidas; não agem, mas sustentam a ação.
Mesmo o que é inerte obedece à razão divina: o peso é sua obediência, o número
é sua justiça.
Assim, toda a criação é
gradação da luz ao corpo, da razão à matéria:
Deus é o princípio; o Espírito, o vínculo; a alma, o intermediário; o corpo, o
limite.
Quando essa ordem se mantém, há paz; quando se rompe, há mal.
A desordem, portanto, não é
nova substância, mas inversão
da hierarquia.
Quando o inferior se ergue contra o superior — a carne contra a alma, a alma
contra Deus — nasce o mal moral e o caos do mundo.
Mas quando cada um permanece em seu lugar, há harmonia: Deus reina, a alma
adora, o corpo serve.
Por isso, o universo é como uma
grande sinfonia: cada natureza é uma nota, cada ser uma voz, e o silêncio que
as envolve é o repouso divino.
O pecado é dissonância; a virtude, consonância; a salvação, retorno ao tom
original.
O homem, estando no meio, é o
campo de batalha dessa harmonia:
se se eleva ao espírito, eleva o mundo; se desce à carne, arrasta consigo a
criação.
Assim se cumpre o que o Apóstolo disse: “A criação geme e sofre, esperando a
manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8,22).
Logo, a ordem das coisas
espirituais e corporais é uma só, e seu centro é o homem — imagem de Deus e
mediador da terra.
Dele depende o equilíbrio do cosmos, porque nele a liberdade pode perturbar ou
restaurar o ritmo da criação.
E no fim dos tempos, quando
toda alma for purificada e todo corpo transformado, o universo inteiro se
reordenará em seu princípio, e Deus
será tudo em todos (1Cor 15,28).
Então cessará o contraste entre espírito e carne, entre luz e sombra, e a
harmonia do início voltará a ressoar — não mais como criação, mas como
eternidade.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXI
De opinione Platonis de
memoria animarum
Sobre a opinião de Platão
a respeito da memória das almas
Platão, entre os filósofos, foi
o mais próximo da verdade — e, por isso mesmo, o mais perigoso para os que o
seguem sem discernimento.
Ele confessou a imortalidade da alma, sua origem divina e sua superioridade
sobre o corpo; mas, ao buscar sua sabedoria fora da revelação, desviou-se,
fazendo da alma o que ela não é: eterna
por natureza e lembrada de tudo o que foi.
Segundo ele, a alma, antes de
entrar no corpo, vivia no mundo das ideias, contemplando as formas puras.
E quando nasce, esquece o que viu; mas, ao aprender, apenas recorda.
Assim, todo saber seria reminiscência (anamnesis),
e todo erro, esquecimento.
Mas quem dera que a alma humana tivesse visto o que não pode compreender nem
agora!
Se a alma já tivesse conhecido
todas as coisas, por que ignora tantas?
Por que uma aprende música e outra não?
Por que uma entende o número e outra o teme?
A diversidade de talentos mostra que o conhecimento não é recordação, mas
aquisição.
E se a alma se lembrasse das ideias eternas, não poderia errar — pois ninguém
esquece o que é divino.
Além disso, se toda alma é
reencarnada, por que não recorda ao menos uma existência anterior?
Por que não traz lembranças precisas de nomes, lugares, ações?
Ninguém jamais reconheceu a casa em que teria vivido antes, nem o rosto que
teria amado em outro corpo.
Tudo o que chamam de lembrança é fantasia da imaginação perturbada.
Na verdade, a alma não aprende
porque recorda, mas porque é
racional e vive da verdade.
Ela reconhece o bem não por lembrança do passado, mas porque foi criada por
Aquele que é o Bem.
O conhecimento não vem de dentro por memória de outras vidas, mas de cima, pela
iluminação do Espírito.
A luz do entendimento é reflexo
da luz divina; e, quando a alma se volta para essa luz, compreende.
Quando se afasta, ignora.
O que Platão chamou reminiscência é, na verdade, inspiração: o sopro de
Deus que desperta no homem o sentido do eterno.
É verdade que há em nós uma
lembrança inata — mas não de coisas vistas, e sim do Deus que nos fez.
A alma reconhece o verdadeiro não porque o tenha contemplado antes, mas porque
o tem inscrito em si como lei natural.
Por isso o profeta disse: “Porei a minha lei em seu coração e a escreverei em
sua alma” (Jr 31,33).
Platão confundiu essa lembrança
divina com memória de outras vidas, porque não conhecia o Criador, mas apenas o
reflexo da criação.
Viu a centelha e pensou ser o fogo.
Percebeu a voz interior e julgou-a eco de outro mundo.
Mas essa voz é a consciência, e esse eco é o Espírito que chama.
A alma humana, portanto, não é
eterna nem onisciente: é imortal por dom e racional por natureza.
Seu saber é participação, não lembrança.
O que ela chama “recordar” é “ser tocada pela verdade”.
E a verdade, quando toca, parece sempre familiar — como se já a tivéssemos
conhecido, porque nascemos dela.
Assim se explica o encanto do
verdadeiro:
não o aprendemos como novidade, mas o acolhemos como reencontro.
É por isso que a alma, ao ouvir a palavra de Deus, sente que é verdadeira
antes de prová-la.
Ela não se lembra de tê-la visto, mas reconhece Aquele de quem procede.
Logo, Platão não estava
totalmente errado, mas se perdeu no excesso da razão sem fé.
Confundiu a nostalgia do céu com a lembrança do céu, e a centelha do Espírito
com o reflexo da alma.
A verdade não é memória do passado, mas presença do eterno.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXII
De unitate animae in
corpore et de sensibus ejus
Sobre a unidade da alma no
corpo e sobre seus sentidos
Há quem imagine que a alma
esteja distribuída em partes, como o corpo que ela anima, e que haja uma parte
que vê, outra que ouve, outra que sente, e outra que pensa.
Mas isso seria fazer da alma um corpo entre corpos, o que já refutamos.
A alma não é dividida — é una
em substância e múltipla em operação.
Está toda em todo o corpo, e toda em cada uma de suas partes.
Quando um membro é ferido, toda
a alma sente; e quando um só sentido é tocado, todos os outros se movem.
Isso prova que o sentir é função de uma única substância, não de partes
separadas.
A dor do pé perturba o coração; a música que agrada aos ouvidos comove o rosto;
o medo do perigo faz tremer o corpo inteiro.
Onde há unidade de reação, há unidade de princípio.
A alma é, pois, como o fogo que
penetra o ferro:
não se divide, mas o inflama todo; não se confunde com ele, mas o faz brilhar e
agir.
O corpo é o instrumento; a alma, o músico.
Ela não está em um ponto, mas em toda a extensão; e o que parece mover-se no
espaço é apenas mudança de atenção.
Os cinco sentidos são canais
diferentes de uma mesma percepção.
A visão é a luz da alma através dos olhos; a audição, seu eco através do ar; o
olfato, seu sopro que discerne os odores; o paladar, sua umidade que prova; o
tato, seu contato mais íntimo com o mundo.
Mas em todos é a alma que sente — não os órgãos, que são apenas suas janelas.
Se os olhos vissem por si,
veriam também depois da morte; mas quando a alma parte, os olhos estão abertos
e nada veem.
O ouvido, sem a alma, é surdez; a língua, sem a alma, é silêncio; a pele, sem a
alma, é pedra.
Tudo o que chamamos de sentido é, na verdade, presença da alma no corpo.
Ela é o vínculo entre o
invisível e o visível, o espírito e a carne, o ser e o sentir.
Por ela, o corpo participa da vida e a vida participa do corpo.
Ela é o ponto médio onde o espiritual se torna sensível e o sensível se torna
espiritual.
Os filósofos disseram que a
alma é o centro da harmonia vital; nós dizemos que é o sopro de Deus mantido em
união com a carne.
E assim como Deus está todo em todo o universo e todo em cada criatura, a alma
está toda no corpo e toda em cada parte.
Ela é imagem e espelho do modo divino de estar presente.
Quando pensa, ela usa o
cérebro; quando deseja, o coração; quando age, os membros.
Mas é sempre a mesma que pensa, deseja e age.
E como o fogo acende muitas lâmpadas sem se dividir, a alma ilumina muitas
funções sem se fragmentar.
A multiplicidade das operações
não destrói a unidade da substância.
Assim como a luz atravessa mil cores sem deixar de ser uma, a alma se
diversifica nos sentidos sem perder sua unidade.
Toda a sensação é participação do mesmo princípio vital, que é a alma inteira.
Logo, não há parte da carne sem
a alma, nem parte da alma sem relação com o corpo.
A união é tão íntima que se confundem em um único movimento — e, no entanto,
permanecem distintos: a carne, serva; a alma, senhora.
Mas o governo da alma sobre o corpo é um reflexo do governo de Deus sobre o
mundo: invisível, eficaz, contínuo.
Por isso, quando a alma se
corrompe, o corpo adoece; e quando se purifica, o corpo floresce.
A saúde corporal é o eco da ordem interior; a enfermidade, o espelho da
desordem.
O corpo é o instrumento visível da música invisível da alma.
Assim, a alma é una, presente,
indivisível e viva; e o corpo, seu templo e seu testemunho.
Enquanto permanecem unidos, o homem é harmonia; quando se separam, o corpo se
dissolve e a alma retorna à sua origem.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput
XXXIII
De distinctione inter
animam hominis et animam brutorum
Sobre a distinção entre a
alma do homem e a dos animais
Os filósofos, e sobretudo os
estóicos, afirmam que não há diferença essencial entre a alma dos homens e a
dos animais, mas apenas diferença de grau: que ambas são fogo ou sopro, e que o
homem é apenas um animal mais ordenado.
Mas essa opinião, além de falsa, é injuriosa à dignidade do Criador e do homem.
Pois se não há diferença entre as almas, não há diferença entre as naturezas; e
se não há diferença entre as naturezas, o homem não seria imagem de Deus, mas
apenas um animal mais bem talhado.
De fato, há vida nos animais —
mas não razão; há movimento — mas não liberdade; há sensação — mas não
consciência.
Eles vivem, mas não sabem que vivem; sentem, mas não julgam o que sentem.
O cão reconhece o dono, mas não compreende o senhorio; o cavalo obedece à rédea,
mas não à justiça; a abelha trabalha por instinto, não por virtude.
Tudo o que fazem é natural, não deliberado; obedecem à natureza, não à razão.
A alma dos brutos é, pois, anima animalis, isto é,
princípio de vida corporal.
Nasce com o corpo, cresce com ele e perece com ele.
A alma do homem é anima
spiritalis, isto é, princípio de razão e de eternidade.
Recebeu o sopro de Deus e, portanto, participa do seu ser.
O animal vive para o corpo; o
homem, para Deus.
A alma do animal é serva da carne; a do homem é senhora do corpo.
Por isso, o animal segue o apetite; o homem, o dever.
Um é conduzido de fora; o outro, de dentro.
Um é guiado pelo instinto; o outro, pela consciência.
Eis a marca da diferença: a palavra.
Nenhum animal fala, porque nenhum animal pensa.
A voz do homem é expressão da alma racional; o bramido, o uivo ou o canto dos
brutos são impulsos da natureza.
Onde há palavra, há espírito; onde há apenas som, há alma servil.
Também nos afetos se nota a
diferença: o animal se irrita, mas não odeia; se junta, mas não ama; teme, mas
não adora.
Ele reage, mas não escolhe; sofre, mas não reflete; deseja, mas não julga.
Tudo nele é necessidade; nada é virtude.
Por isso o homem foi posto
sobre os animais, não para imitá-los, mas para governá-los.
Se o homem desce à sua condição, perde a sua; mas se os eleva à sua obediência,
cumpre a ordem do Criador.
O domínio do homem sobre os brutos é símbolo do domínio da alma sobre o corpo:
quando o inferior comanda o superior, há desordem; quando o superior governa o
inferior, há paz.
Negar a diferença entre a alma
humana e a animal é negar o espírito e, portanto, negar Deus.
Pois só o homem, tendo recebido o sopro divino, pode conhecer e adorar o Autor
da vida.
O animal respira o ar; o homem respira Deus.
A alma humana é, portanto,
dupla em relação à animal: é viva e racional, sensível e espiritual, terrestre
e celeste.
Ela liga o invisível ao visível, porque é mediadora entre o corpo e o Criador.
O animal termina na terra; o homem começa no céu.
Assim, o homem é o único ser
que pode se perder como fera ou se elevar como anjo.
Sua liberdade é sua glória e seu risco: se obedece à razão, torna-se divino; se
se entrega ao instinto, torna-se bestial.
Por isso, não é o corpo que o torna semelhante aos animais, mas a alma que o
distingue deles.
E quando os hereges dizem que
as almas passam de um corpo a outro — ora homem, ora animal —, insultam o
Criador e confundem a ordem do ser.
Pois o que é racional não pode tornar-se irracional sem destruir-se; e o que é
sensitivo não pode tornar-se espiritual sem ser recriado.
A metempsicose é, pois, fábula de poetas, não doutrina de sábios.
Logo, há duas ordens de almas:
— as humanas,
feitas à imagem de Deus, para a eternidade;
— as animais,
feitas para o movimento e o ciclo da vida.
As primeiras conhecem o bem; as segundas apenas o experimentam.
As primeiras buscam a verdade; as segundas seguem o instinto.
E assim se cumpre a ordem
universal:
os corpos servem às almas; as almas animais servem às racionais; e todas as
racionais servem a Deus, de quem receberam o ser e para quem devem retornar.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXIV
De affectibus animae
Sobre os afetos da alma
Toda alma é viva, racional e
sensível; e porque é sensível, é também movida.
Esses movimentos são o que chamamos afetos
— impulsos interiores que nascem do encontro entre o que a alma conhece e o que
deseja.
Assim como o fogo não existe sem calor, a alma não existe sem paixão.
Mas, do mesmo modo que o calor pode aquecer ou queimar, os afetos podem ser
virtude ou vício, conforme a direção que recebem.
Não é o afeto em si que é mau,
mas o uso que dele faz a
vontade.
A ira, por exemplo, é natural, porque ninguém é tão insensível que não se
indigne diante da injustiça.
Mas quando se torna fúria, passa do instinto da justiça ao desvario da
vingança.
Assim, o que Deus pôs na alma para defender o bem, o homem converte em
instrumento do mal.
O medo também é natural, pois
preserva o ser do perigo; mas quando se transforma em covardia, torna-se fuga
do dever.
A alegria é dom de Deus, reflexo da felicidade eterna; mas quando se converte
em prazer desordenado, degrada-se em luxúria.
Até a tristeza, que nos inclina à penitência, torna-se enfermidade quando se
afasta da esperança.
Logo, os afetos são como rios:
se correm em seu leito, fertilizam; se transbordam, destroem.
A razão é o leito desses rios — e a fé, a nascente.
O homem justo não é o que não sente, mas o que sente segundo a ordem.
Há quem queira matar os afetos,
como se fossem doenças da alma; mas quem mata o sentir, mata o amar.
O que não se indigna com o mal não ama o bem; o que não teme ofender a Deus não
o reverencia; o que não se entristece pelo pecado não deseja a conversão.
As paixões são o vigor do espírito; sem elas, a alma seria lânguida e fria,
incapaz de virtude ou de culpa.
Por isso, Deus as colocou no
homem, mas sujeitas à razão.
A alma é o cavaleiro, os afetos, os cavalos.
Se ela os domina, avança; se é arrastada, cai.
O corpo é a rédea: quando dócil, modera o ímpeto; quando rebelde, o excita.
A ira justa é força da justiça;
a piedade é tristeza que ama; o zelo é amor inflamado; o temor é prudência
vigilante.
Não há virtude sem paixão moderada, nem vício sem paixão desordenada.
O mal está no excesso, não no movimento.
O exemplo de Cristo mostra que
os afetos são santos quando ordenados.
Ele se indignou contra os vendilhões do templo, chorou sobre Jerusalém, sentiu
angústia no Getsêmani, e ainda assim era sem pecado.
Logo, sentir não é cair, mas não
saber sentir é decair.
A perfeição não está em ser pedra, mas em ser alma que sente segundo Deus.
Assim, a moral não consiste em
suprimir as paixões, mas em batizá-las.
O amor torna-se caridade, o medo torna-se reverência, a ira torna-se zelo, a
tristeza torna-se compunção, a alegria torna-se louvor.
Em Cristo, todos os afetos foram redimidos; na graça, todos se tornam virtude.
Quando a alma é governada pelo
Espírito, os afetos são música; quando governada pela carne, são ruído.
E como a alma é medida do homem, os afetos são medida da alma: quanto mais
elevados, mais divina; quanto mais baixos, mais terrena.
Não é, pois, o sentir que nos
torna maus, mas o modo de sentir.
Os demônios também se indignam, mas contra o bem; os santos se indignam, mas
contra o mal.
Ambos sentem o mesmo afeto, mas com direções opostas.
A diferença não está no fogo, mas no que ele consome.
Assim, aprende o homem a não
temer seus afetos, mas a educá-los.
Eles são asas e correntes, conforme o uso.
Quem os domina, voa; quem é dominado, arrasta-se.
E porque a alma é imagem de Deus, deve ordenar em si o que Deus ordena no
mundo:
— amor como força,
— justiça como medida,
— paz como termo.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXV
De libertate arbitrii
Sobre a liberdade do
arbítrio
Se a alma sente, quer e
escolhe, segue-se que ela é livre; pois a liberdade está na capacidade de
escolher entre contrários.
Sem liberdade, não há mérito nem culpa; e sem mérito nem culpa, não há juízo,
nem recompensa, nem condenação.
Assim, a liberdade é o selo da alma racional, a marca mais clara de sua origem
divina.
Deus, ao criar o homem, não
quis servo, mas filho.
Deu-lhe a razão para conhecer e a vontade para querer.
O conhecimento mostra o bem; a vontade o realiza.
A razão é o olho; a liberdade, o movimento; a graça, a luz.
Sem a luz, o olho não vê; sem o movimento, não caminha; sem a vontade, não ama.
Mas os hereges dizem que o
homem não é livre, que tudo está determinado pelo destino ou pela natureza.
Negam a liberdade para negar a culpa; e negam a culpa para negar o juízo.
Mas se o homem não é livre, o pecado seria obra de Deus — e Deus seria injusto
ao punir o que Ele mesmo determinou.
A justiça divina exige a liberdade humana, e a liberdade humana confirma a
justiça divina.
A alma é livre não porque possa
tudo, mas porque pode escolher.
O poder de fazer o mal não é essência da liberdade, mas prova dela.
Pois o bem só tem valor se puder ser rejeitado.
Não é livre quem não pode pecar, mas quem, podendo, não quer.
A liberdade é o ponto de
equilíbrio entre a graça e a tentação.
Deus convida, o diabo persuade, a alma decide.
Nem Deus força, nem o demônio obriga; ambos chamam, e a vontade responde.
A salvação é consentimento ao bem; a perdição, consentimento ao mal.
Os filósofos, incapazes de
compreender o dom da graça, confundiram liberdade com necessidade.
Uns disseram que o homem é movido pelas estrelas; outros, pelos elementos;
outros, pelo corpo.
Mas se as estrelas governassem o homem, todos sob o mesmo céu seriam iguais; e
se o corpo o determinasse, não haveria virtude, mas apenas química.
Ora, dois irmãos nascidos sob o mesmo signo vivem de modo diverso, e o mesmo
corpo é capaz de pureza ou crime.
Logo, há algo acima das estrelas e da carne — e esse algo é a alma livre.
O arbítrio é o trono da
responsabilidade.
Cada ato da alma é uma sentença proferida por si mesma.
A liberdade não se perde nem no pecado: o pecado é mau uso da liberdade, não
sua destruição.
O homem sempre pode voltar, porque o mesmo poder que o levou à queda pode
levá-lo ao arrependimento.
A graça de Deus não suprime o
livre-arbítrio, mas o purifica.
Ilumina a razão, fortalece a vontade, endireita o desejo.
Sem ela, a liberdade se desvia; com ela, se cumpre.
A graça não é jugo, mas direção.
E o Espírito, longe de dominar, ensina a alma a dominar-se.
A liberdade é, pois, o centro
da alma — sua dignidade e seu risco.
Deus a confiou ao homem como espelho de Si mesmo: livre como o Criador, porém
limitada como criatura.
Assim, a liberdade humana é o lugar onde Deus é honrado ou ofendido.
É o altar do amor e o campo do juízo.
Quem ama, ama livremente; quem
obedece por coação, não adora.
Por isso Deus não quer servos forçados, mas filhos voluntários.
A obediência que nasce da liberdade é a que tem valor diante do Altíssimo.
A alma cativa do mal ainda é livre no querer; o pecado a prende, mas não a
destrói.
A redenção, enfim, é libertação
da liberdade — isto é, devolvê-la à sua ordem.
Cristo não veio anular a escolha, mas restaurá-la.
No pecado, o homem escolhe contra si; na graça, escolhe segundo sua natureza.
E a verdadeira liberdade é esta: poder
querer o bem, porque se ama o bem.
Assim, a alma é livre por
criação, ferida pela culpa, curada pela graça e glorificada pela obediência.
E quando, no fim dos tempos, a vontade humana se unir à vontade divina sem mais
resistência, a liberdade será perfeita — não porque poderá o mal, mas porque só
desejará o bem.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXVI
De conscientia et lege
naturali
Sobre a consciência e a
lei natural
Toda alma humana, mesmo antes
de conhecer a lei escrita, traz em si uma lei interior, viva e vigilante, que
lhe ensina o que deve e o que deve evitar.
Essa lei é a voz de Deus
impressa na alma — o eco da razão divina dentro da criatura
racional.
Não está nos livros, mas no coração; não foi aprendida, mas criada; não se lê
com os olhos, mas se sente com a consciência.
É por essa lei que o homem
distingue o bem do mal antes de qualquer doutrina.
Mesmo os que nunca ouviram falar de Cristo sabem que roubar é injusto, que
mentir é indigno, que matar é crime.
E quando fazem o mal, sentem vergonha; quando fazem o bem, sentem paz.
Ora, se a consciência os acusa ou absolve, é sinal de que existe dentro deles
um juiz invisível.
A consciência é, pois, o sacerdote da alma:
consagra o bem, denuncia o mal, oferece o arrependimento como sacrifício.
É o altar interior diante do qual ninguém mente, e o tribunal onde o homem se
julga antes de ser julgado por Deus.
Os filósofos reconheceram algo
disso quando falaram de uma “voz da razão” ou de um “espírito comum”, mas não
souberam dizer de onde vinha.
Eles a atribuíram à natureza, sem compreender que a natureza é a forma da
providência.
O que chamam de instinto moral é, na verdade, o Espírito Criador agindo na alma,
lembrando-lhe o seu autor.
A consciência é testemunha da
presença de Deus: ela o afirma até quando o teme.
O pecador pode calá-la, mas não apagá-la; pode resistir, mas não destruí-la.
E quanto mais a alma se afasta de Deus, mais essa voz a persegue.
Por isso, o inferno começa dentro do homem — na inquietação da consciência que
não se cala.
Assim, a lei natural é
universal e eterna.
Foi dada a Adão antes do pecado, confirmada em Moisés pela lei escrita,
consumada em Cristo pela graça.
A lei mosaica corrige; a lei natural inspira; a graça aperfeiçoa.
Quem obedece à consciência já obedece, em germe, a Deus.
Porém, a consciência, sem fé, é
lâmpada que se apaga; sem graça, é juíza sem força.
Ela mostra o bem, mas não o dá; denuncia o mal, mas não o cura.
A lei natural é espelho; a graça, luz.
O espelho mostra a mancha; a luz permite lavá-la.
A alma justa é aquela cuja
consciência e vontade coincidem; a pecadora, aquela cuja consciência acusa o
que a vontade ama.
Assim, todo pecado é guerra civil da alma contra si mesma.
E todo arrependimento é reconciliação do homem consigo e com Deus.
Feliz aquele cuja consciência é
pura: nele a alma repousa e Deus habita.
Pois onde há consciência pacificada, há imagem restaurada; e onde há imagem
restaurada, há já começo de céu.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput
XXXVII
De poenis inferorum et
refrigeriis justorum
Sobre as penas dos
infernos e o repouso dos justos
Depois de tratar da consciência
e da lei natural, é necessário examinar o que sucede à alma depois da morte,
antes da ressurreição.
Pois muitos, ignorando o mistério do inferus,
imaginam que as almas são já recebidas no céu ou lançadas no fogo eterno; mas a
Escritura ensina que há um lugar comum onde todas esperam o juízo — cada qual
em estado diverso conforme sua obra.
Esse lugar, que os hebreus
chamam Sheol e os
gregos Hades, não
é o inferno último, mas o
receptáculo das almas.
Não é prêmio nem suplício perfeito, mas prelúdio de ambos.
Nele, as almas dos justos descansam em paz, e as dos ímpios sofrem em tormento;
mas ambas aguardam o mesmo dia — o da ressurreição e do juízo.
Não se deve confundir esse
estado com o céu, pois ninguém sobe ao Pai senão por Cristo; nem com a Geena,
pois o fogo eterno só se acende após o julgamento.
É antes o atrium aeternitatis,
o vestíbulo da eternidade, onde a justiça já começa a brilhar, mas ainda não se
consumou.
O Senhor, ao morrer, desceu
também Ele a esse lugar — não como prisioneiro, mas como libertador — para
anunciar aos que dormiam a vitória da vida sobre a morte.
Assim, o inferus
se tornou duplo: para os ímpios, lugar de trevas; para os santos, seio de repouso.
Por isso se diz que o pobre Lázaro foi levado ao “seio de Abraão”, enquanto o
rico, em tormento, o contemplava de longe (Lc 16,23).
O seio de Abraão é, pois, o refrigério dos justos —
um repouso sem corpo, mas cheio de esperança; uma luz sem dia, mas sem trevas.
Ali as almas santas gozam de paz, não ainda de glória; são consoladas, não
ainda coroas.
Vivem na lembrança do bem e na espera da visão.
Já as almas ímpias, separadas
das luzes de Deus, ardem em seu próprio remorso.
O fogo que as consome é interior: chama da consciência, vermes do
arrependimento tardio.
Não há ali corpo para queimar, mas há dor para sentir.
O espírito, mais sensível que a carne, sofre por dentro o que mereceu por fora.
E entre esses dois estados —
repouso e tormento — há um abismo que ninguém atravessa.
Nem a súplica dos justos alcança os réprobos, nem o pranto dos réprobos alcança
os justos.
A justiça começa a ser eterna já nesse limiar: cada alma permanece onde a sua
vida a pôs.
O inferus, portanto, não é invenção de poetas,
mas instituição da
providência.
É o campo onde a semente do juízo germina antes da colheita final.
A alma não fica errante, nem dorme, mas vive consciente do que fez e do que
espera.
O justo repousa porque tem esperança; o ímpio sofre porque tem memória.
O repouso dos santos é o
primeiro sabor do céu; o tormento dos ímpios, o primeiro eco do inferno.
Ambos são prelúdios, não fins.
O juízo final confirmará o que aqui já começou: a paz dos que amaram e a dor
dos que rejeitaram o amor.
Assim, o inferus é o grande espelho
da justiça divina — um intervalo onde a misericórdia cede ao tempo e a verdade
prepara a eternidade.
E quando o tempo cessar, cessará também o inferus;
o céu e o inferno permanecerão.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXVIII
De die judicii et sorte animarum
Sobre
o dia do juízo e o destino das almas
Há
de vir um dia em que o tempo cessará e o invisível se tornará visível: o dia do
juízo, em que Deus será juiz e a alma, testemunha de si mesma.
Nesse dia, o que agora está oculto se manifestará; o que é fé, será visão; o
que é espera, será sentença.
Os
tempos de Deus são longos, mas certos.
Assim como o grão repousa na terra até o tempo da colheita, as almas repousam
no inferus
até o tempo do juízo.
O mesmo poder que fez o corpo do pó o chamará de volta; o mesmo sopro que deu à
alma a vida a apresentará diante do trono divino.
Nada do que foi criado escapará ao olhar do Criador.
O
juízo será universal
e definitivo.
Não haverá distinção de povos ou tempos, mas de obras e intenções.
Cada alma trará consigo o livro de sua vida — não escrito com tinta, mas com
lembranças.
O que a consciência murmura hoje em segredo, a eternidade proclamará em voz
alta.
O
tribunal será duplo:
De um lado, o Cristo glorioso, juiz dos vivos e dos mortos;
do outro, o homem inteiro, ressuscitado com o corpo e a alma.
O céu e a terra testemunharão; os anjos, ministros da justiça, separarão os
justos dos ímpios como o lavrador separa o trigo do joio.
Então
se abrirão dois caminhos: um para a luz, outro para as trevas.
Os justos serão levados à presença de Deus, onde a visão substitui a fé e o
amor é sem medida;
os ímpios, lançados fora, onde o fogo não consome e o verme não morre.
Mas o fogo não é metáfora: é realidade espiritual, chama viva da justiça, que ilumina
aos santos e devora aos réprobos.
Nesse
dia, a alma será julgada com o corpo, porque ambos pecaram ou obedeceram juntos.
A carne, que foi instrumento, será participante; o espírito, que foi guia, será
responsável.
E o homem, restaurado em sua totalidade, ouvirá o veredicto de sua própria
história.
Os
sinais desse dia já estão nas dores do mundo:
as guerras, os terremotos, as corrupções e as pestes são o prelúdio do parto da
eternidade.
A criação geme porque pressente o fogo que a purificará.
Mas o fogo do juízo não destrói: renova.
O universo será batizado em chamas, e o que era impuro se tornará
incorruptível.
Depois
disso, haverá apenas dois reinos:
o reino
da luz, onde Deus será tudo em todos;
e o reino
das trevas, onde o homem será o que escolheu ser — ausência de
Deus.
A
sorte das almas será eterna porque eterno é o princípio que as julga.
Os que amaram a verdade viverão nela; os que a rejeitaram serão consumidos por
sua ausência.
E cada um reconhecerá a justiça do que recebe, pois o juízo será revelação, não
imposição.
Então
cessará o tempo e começará a eternidade.
A morte será morta; o pecado, esquecido; o inferno, encerrado em si mesmo; e a
criação, restituída à ordem primeira.
O homem, agora glorificado, conhecerá a Deus não por fé, mas por visão, e será
conhecido por Ele em plenitude.
Essa
é a consumação do desígnio divino: o retorno da alma a Deus pelo caminho da
liberdade e da graça.
O que começou no sopro do Criador termina no abraço do Juiz.
E o homem, que foi pó e sopro, será fogo e luz — imagem viva do Deus eterno.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XXXIX
De coniunctione animae et corporis in
resurrectione
Sobre
a união da alma e do corpo na ressurreição
Depois
do juízo universal, haverá a ressurreição da carne,
para que o homem inteiro — alma e corpo — receba o que mereceu inteiro.
Pois o que pecou e o que praticou o bem não foi a alma sozinha, mas a alma com
o corpo.
A justiça exige, portanto, que o corpo participe das penas e das glórias da
alma, porque foi seu companheiro em todas as obras.
Deus,
que uniu a alma e o corpo no princípio, não permitirá que permaneçam separados
para sempre.
O mesmo poder que formou o homem do pó e do sopro o reconstituirá no último dia.
A morte é a separação; a ressurreição, o reencontro.
E o homem voltará a ser o que era — não outro, mas o mesmo.
Não
se deve pensar, porém, que a ressurreição é mera substituição:
não se dará outro corpo, mas o mesmo corpo restaurado.
Deus não cria novamente, Ele restaura; não forma do nada, mas chama do nada o
que existiu.
A substância se conserva em sua identidade, embora purificada e
espiritualizada.
O
corpo ressuscitado não será carnal no sentido de corruptível, mas será corpo
verdadeiro, glorioso e impassível.
Será o mesmo corpo quanto à essência, mas outro quanto ao estado: mortal quanto
à origem, imortal quanto ao fim.
Assim como o ferro, lançado no fogo, permanece ferro, mas participa do brilho
do fogo, o corpo ressuscitado será corpo, mas cheio de luz divina.
A
alma, reencontrando seu antigo tabernáculo, reconhecerá nele sua morada.
Não haverá confusão de corpos nem transmigração de almas: cada corpo receberá
sua própria alma, e cada alma reencontrará seu próprio corpo.
O número dos eleitos será o mesmo que o dos criados, pois Deus nada perde do
que criou.
Essa
união será indissolúvel.
A morte não mais dividirá o que o juízo eternizou.
A alma será espelho do corpo glorificado; o corpo, vestimenta da alma luminosa.
Ambos, enfim, formarão uma só harmonia, um só cântico, uma só substância humana
elevada à incorruptibilidade.
E
porque a alma é a forma do corpo, o corpo ressuscitará conforme o estado da
alma:
o justo terá corpo de luz; o ímpio, corpo de sombra.
Ambos imortais, mas com destinos opostos — um para gozar da presença de Deus,
outro para suportar a ausência d’Ele.
A
ressurreição é, portanto, a restauração da ordem inicial:
o homem volta a ser total, a criação volta a ser completa, e Deus volta a ser
tudo em todos.
O que foi dividido pelo pecado é reunido pela graça; o que foi corrompido pela
morte é purificado pela glória.
O corpo e a alma, reconciliados, cantarão o mesmo hino: “Onde está, ó morte, a
tua vitória?” (1Cor 15,55).
E
assim, a ressurreição da carne não é milagre isolado, mas coroamento da
economia divina:
Deus não salva a alma contra o corpo, mas no corpo e com o
corpo;
não redime o homem em parte, mas inteiro — o mesmo que criou, o mesmo que
morreu, o mesmo que ressuscitou em Cristo.
TERTULLIANUS — DE
ANIMA
Liber primus — Caput XL
De consummatione mundi et ultimo statu
animarum
Sobre
a consumação do mundo e o estado último das almas
Quando
tudo tiver sido julgado e toda carne ressuscitada, restará cumprir o último ato
do desígnio divino: a consumação do mundo.
Pois este século foi criado para o homem, e quando o homem for restituído ao
seu fim, também o mundo cumprirá o seu.
Nada do que é temporal subsiste além do tempo; e o tempo termina quando a eternidade
começa.
Então
o universo será purificado pelo fogo.
Não o fogo que destrói, mas o fogo que revela.
O mesmo elemento que agora consome, naquele dia purificará; o mesmo calor que
castiga, iluminará.
O fogo eterno será como o olhar de Deus atravessando a criação: queimará o que
é impuro, tornará incorruptível o que é justo.
As
estrelas cairão porque sua função cessou; o sol e a lua se apagarão porque a
luz de Deus será suficiente.
Não haverá mais noite, pois o próprio Senhor será claridade; nem mais sombra,
porque nada restará que separe.
A natureza, liberta da corrupção, será vestida de glória.
Tudo o que gemeu por causa do pecado se alegrará na redenção dos filhos de
Deus.
O
mundo, que começou na palavra “Fiat”, terminará na palavra “Consummatum est”.
E, como o corpo do homem, também o cosmos ressurgirá, não outro, mas
transformado: o mesmo céu, novo em esplendor; a mesma terra, nova em pureza.
A criação voltará ao estado da inocência, mas agora com consciência — não o
paraíso perdido, mas o paraíso transfigurado.
Então
as almas dos justos, reunidas aos corpos glorificados, habitarão o reino eterno.
Não haverá mais distinção de tempo, nem sucessão de atos, mas pura
permanência: vida imóvel no movimento da luz, paz que é ação
contínua, amor sem alternância.
A vontade será uma só, porque todos amarão o mesmo Bem; e a diferença das
pessoas será harmonia de luzes no único esplendor do Criador.
As
almas dos ímpios, ao contrário, fixar-se-ão em sua própria escuridão.
Não desejarão mais o bem, porque o desprezaram; e o que antes era liberdade
tornar-se-á necessidade do mal.
Essa é a segunda morte — não o deixar de ser, mas o ser sem Deus.
Não haverá fim para o sofrer, porque não haverá mais tempo para mudar.
A eternidade será justiça petrificada.
Assim
se consumará o duplo destino das almas:
umas para a vida eterna, em união perfeita com Deus;
outras para a morte eterna, separadas d’Ele para sempre.
E o universo inteiro se aquietará na ordem definitiva: o céu acima, a terra
transfigurada abaixo, e o inferno selado nas profundezas.
O
Espírito de Deus encherá tudo; a criação, enfim, será templo; e o homem,
sacerdote.
A alma, que outrora buscava o que via, agora verá o que buscava.
A visão substituirá a fé, o amor será essência, e a eternidade, repouso.
Então
cessarão a dúvida, o erro e o desejo.
Nada restará a ser aprendido, porque tudo será conhecido; nada restará a ser
amado, porque tudo será amor.
A alma será simples como Deus é simples, e eterna como Ele é eterno — não por
natureza, mas por participação.
E
o ciclo estará completo:
— Deus cria;
— o homem cai;
— a graça redime;
— a eternidade consuma.
A
alma, que saiu de Deus no sopro da criação, voltará a Ele na chama da glória.
O que era imagem tornar-se-á semelhança.
E o homem, enfim, será o que foi pensado: espelho consciente
do Infinito.
ORDINATIO
OPERIS — De Anima in Quattuor Partes Distinctum
BLOCCUS
PRIMUS — DE PRINCIPIO ET FIDE ANIMAE
(Da origem e da fé da alma — capítulos I–IX)
Tema geral: A alma como
dom divino e princípio de vida racional, conhecida pela fé antes da razão.
Tertuliano inicia pelo fundamento epistemológico: crer para compreender. Em
seguida define, descreve e distingue a substância, forma, condição e origem da
alma — contra filósofos e hereges que a julgavam incorpórea ou emanada.
- De causis scribendi hujus libri — Das
causas que levaram à composição deste livro.
- Quod fides Christiana prius credere debeat quam disputare — Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por
raciocínios.
- De definitione animae secundum philosophiam — Sobre a definição da alma segundo a filosofia.
- De substantia animae, an corporea sit — Sobre a substância da alma e se ela é corpórea.
- De forma et figura animae —
Sobre a forma e figura da alma.
- De conditione et qualitate animae —
Sobre a condição e qualidade da alma.
- De origine animae —
Sobre a origem da alma.
- De opinionibus philosophorum et haereticorum circa originem animae — Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem
da alma.
- De sententia Platonis et Hermogeni de animae substantia — Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes a respeito da
substância da alma.
Unidade conceitual:
A alma é corpórea em sentido espiritual, criada por Deus e transmitida
pelo homem, dotada de forma e potência.
Este bloco corresponde à gênese da antropologia cristã, onde Tertuliano
contrapõe o dualismo platônico e afirma a fé como via primeira do conhecimento
espiritual.
BLOCCUS
SECUNDUS — DE GENERATIONE, DISTINCTIONE ET VITA ANIMAE
(Da geração, distinção e vida da alma — capítulos
X–XVI)
Tema geral: A alma
humana como propagada desde Adão, distinta do espírito, sexuada, sensitiva e
viva mesmo após a morte.
É a parte mais psicológica e fisiológica, onde Tertuliano se aproxima da
linguagem médica e estoica, descrevendo o modo de transmissão da alma e seus
atos vitais.
- De animarum propagatione —
Sobre a propagação das almas.
- De natura animae humanae ex anima primi hominis derivata — Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro
homem.
- De distinctione animae a spiritu —
Sobre a distinção entre alma e espírito.
- De sexu animae — Sobre o sexo da alma.
- De sensibus animae et de affectibus ejus — Sobre os sentidos e os afetos da alma.
- De somno et de somniis — Sobre
o sono e os sonhos.
- De visione animarum defunctorum —
Sobre as visões das almas dos defuntos.
Unidade conceitual:
A alma é vivente, sensitiva e contínua, participante de uma substância
única derivada do primeiro homem.
Ela mantém atividade própria mesmo no repouso, sonha, percebe e pressente — é a
presença viva da razão divina no homem.
BLOCCUS
TERTIUS — DE MORIBUS, LIBERTATE ET LEGE ANIMAE
(Dos costumes, da liberdade e da lei da alma —
capítulos XVII–XXXVI)
Tema geral: A alma
moral, submetida à prova do bem e do mal.
Aqui Tertuliano constrói a teologia moral do espírito humano, introduzindo o
livre-arbítrio, a consciência e a lei natural.
O homem é responsável por seus afetos e escolhas; sua alma é tribunal e
testemunha de Deus.
- De statu animae in morte —
Sobre o estado da alma na morte.
- De inferis et diversitate receptaculorum animarum — Sobre o inferno e a diversidade dos lugares onde as almas são
recebidas.
- De resurrectione carnis et reditu animae ad corpus — Sobre a ressurreição da carne e o retorno da alma ao corpo.
- De sensu poenarum et gaudiorum post mortem — Sobre o sentido das penas e alegrias após a morte.
- De Christo ut homine et de anima ejus — Sobre Cristo como homem e sobre a sua alma.
- De anima prophetica et inspiratione divina — Sobre a alma profética e a inspiração divina.
- De differentia inter animam rationalem et divinam — Sobre a diferença entre a alma racional e a alma divina.
- De praescientia et praedestinatione animae — Sobre a presciência e a predestinação da alma.
- De animae immortalitate et poena peccatorum — Sobre a imortalidade da alma e o castigo dos pecadores.
- De statu animarum ante resurrectionem — Sobre o estado das almas antes da ressurreição.
- De animae testimonio naturaliter Christianae — Sobre o testemunho da alma naturalmente cristã.
- De haereticis qui animam negant —
Sobre os hereges que negam a alma.
- De origine malorum ex anima —
Sobre a origem dos males a partir da alma.
- De ordine rerum spiritualium et corporalium — Sobre a ordem das coisas espirituais e corporais.
- De opinione Platonis de memoria animarum — Sobre a opinião de Platão a respeito da memória das almas.
- De unitate animae in corpore et de sensibus ejus — Sobre a unidade da alma no corpo e sobre seus sentidos.
- De distinctione inter animam hominis et animam brutorum — Sobre a distinção entre a alma do homem e a dos animais.
- De affectibus animae —
Sobre os afetos da alma.
- De libertate arbitrii —
Sobre a liberdade do arbítrio.
- De conscientia et lege naturali — Sobre
a consciência e a lei natural.
Unidade conceitual:
Aqui a alma é sujeito moral e espiritual, dotada de liberdade e
consciência, vivendo sob lei divina natural.
Tertuliano antecipa Agostinho e Tomás: a alma é racional, livre e naturalmente
cristã; é nela que Deus fala, julga e inspira.
BLOCCUS
QUARTUS — DE JUDICIO, RESURRECTIONE ET CONSUMMATIONE
(Do juízo, da ressurreição e da consumação —
capítulos XXXVII–XL)
Tema geral: A alma
escatológica — o destino final e a ordem última da criação.
É o coroamento do tratado: o julgamento, a ressurreição e a eternidade como
plenitude da justiça e da união entre Deus e a alma.
- De poenis inferorum et refrigeriis justorum — Sobre as penas dos infernos e o repouso dos justos.
- De die judicii et sorte animarum —
Sobre o dia do juízo e o destino das almas.
- De coniunctione animae et corporis in resurrectione — Sobre a união da alma e do corpo na ressurreição.
- De consummatione mundi et ultimo statu animarum — Sobre a consumação do mundo e o estado último das almas.
Unidade conceitual:
A alma é eterna em destino, ressuscitada com o corpo e fixada no bem ou
no mal.
O tratado culmina na restauração cósmica: o homem integral retorna ao seu
Criador, e a criação inteira é divinizada pela luz da justiça final.
SYNTHESIS
OPERIS
O De Anima é uma cosmogonia antropológica:
começa com a fé que crê antes de pensar e termina com a visão que ama além do
tempo.
Os quatro blocos são os quatro movimentos da alma —
- Principium (origem e fé),
- Natura (vida e distinção),
- Moralis (liberdade e lei),
- Eschaton (juízo e glória).
Toda a obra forma um arco: Deus inspira — a alma
respira — o mundo conspira — a eternidade expira o tempo.
Tertuliano, no fundo, traça o mapa do retorno do espírito ao seu Autor.
ORDO QUAESTIONUM — De
Anima in Quattuor Quaestiones Dispositum
**QVAESTIO
I — De
Principio et Fide Animae
(Sobre
o princípio e a fé da alma)**
Articulus I — De
Origine Animae et Prima Cognitione Fidei
(Sobre a origem da alma e
o primado da fé no conhecimento)
— Analisa o modo pelo qual a alma procede de Deus e participa da razão
criadora; demonstra que o conhecimento humano começa no assentimento da fé, não
na dúvida filosófica, e que a alma é, por natureza, mediadora entre o Ser e o
Conhecer.
Articulus II — De
Substantia et Forma Animae in Creatione
(Sobre a substância e a
forma da alma na criação)
— Examina a corporeidade sutil da alma segundo Tertuliano, sua figura, condição
e natureza, contrapondo-a à doutrina platônica da incorporeidade e à heresia
hermogeniana; define o modo como o espírito divino se torna princípio vital
individual.
**QVAESTIO
II — De
Generatione et Vita Animae
(Sobre
a geração e a vida da alma)**
Articulus I — De
Propagatione et Distinctione Animae Humanae
(Sobre a propagação e a
distinção da alma humana)
— Discute a transmissão da alma desde o primeiro homem, a diferença entre alma
e espírito, a questão do sexo da alma e a unidade vital do homem; demonstra que
toda geração humana é continuação da obra criadora.
Articulus II — De
Sensu, Somno et Motu Interiori Animae
(Sobre o sentido, o sonho
e o movimento interior da alma)
— Trata da vida sensitiva, dos afetos, do sono e da visão; descreve como a
alma, mesmo desligada parcialmente do corpo, conserva atividade e memória;
formula a teoria psicológica da continuidade da percepção após a morte.
**QVAESTIO
III — De
Lege, Libertate et Affectibus Animae
(Sobre
a lei, a liberdade e os afetos da alma)**
Articulus I — De
Affectibus et Libero Arbitrio Animae Rationalis
(Sobre os afetos e o
livre-arbítrio da alma racional)
— Examina a natureza dos afetos, sua ambivalência moral e sua integração na
liberdade; mostra que a vontade é o centro do homem e que a moral nasce da
ordenação da paixão pela razão iluminada pela fé.
Articulus II — De
Conscientia et Lege Naturali
(Sobre a consciência e a
lei natural)
— Analisa a lei interior gravada na alma, sua universalidade e relação com a
revelação; demonstra que a consciência é a voz de Deus no homem, fundamento da
responsabilidade e princípio da escatologia moral.
**QVAESTIO
IV — De
Judicio, Resurrectione et Consummatione
(Sobre
o juízo, a ressurreição e a consumação)**
Articulus I — De
Statu Animarum Post Mortem et Die Judicii
(Sobre o estado das almas
após a morte e o dia do juízo)
— Expõe a doutrina do inferus, o repouso dos justos e as penas dos
ímpios; descreve o juízo final como revelação da consciência universal e como
término da economia do tempo.
Articulus II — De
Resurrectione Carni et Ultimo Statu Animarum
(Sobre a ressurreição da
carne e o estado último das almas)
— Conclui o tratado mostrando a reunião definitiva de alma e corpo, a
transfiguração do cosmos e a fixação eterna dos destinos; formula a ontologia
da eternidade como síntese da justiça e do amor divinos.
SUMMARIUM STRUCTURAE
|
Quaestio |
Temática
Central |
Capítulos
Correspondentes do De Anima |
|
I |
Origem, fé e natureza da alma |
I–IX |
|
II |
Vida, geração e movimento da alma |
X–XVI |
|
III |
Lei moral, liberdade e consciência |
XVII–XXXVI |
|
IV |
Juízo, ressurreição e eternidade |
XXXVII–XL |
QVAESTIO
PRIMA — De Principio et Fide Animae
Articulus I
— De Origine Animae et Prima Cognitione Fidei
(Sobre a origem da alma e o primado da fé no
conhecimento)
A doutrina tertulianista sobre a alma parte de um
princípio absoluto: a fé é a via do conhecimento. Não se conhece para
crer, mas crê-se para conhecer. Esta inversão, que parece subverter a ordem
filosófica clássica, é na verdade a restauração da ordem ontológica perdida com
a queda. Pois, antes de pensar, o homem é criatura; antes de raciocinar, é
filho do sopro divino. O seu primeiro ato não é a dúvida, mas o assentimento.
A fé, segundo Tertuliano, é o eco da criação no
interior da alma. Assim como o verbo divino deu existência ao mundo, a alma
recebe o seu primeiro movimento por uma palavra que é crença: “creio, logo
existo em Deus”. Essa fórmula substitui o princípio cartesiano por um
fundamento teológico mais antigo: o ser do homem é um ser-em-fé. O conhecimento
posterior é apenas o desenvolvimento dessa luz primeira.
A alma nasce, portanto, não do nada, mas do
sopro de Deus que é ao mesmo tempo origem e luz. Tertuliano não a concebe
como uma emanação substancial de Deus, como queriam os gnósticos, nem como
forma abstrata como em Platão, mas como uma substância viva, unitária, que
procede por criação imediata no primeiro homem e por derivação natural nos seus
descendentes. Assim, a alma humana não é fragmento do divino, mas imagem dele:
criada, mas espiritual; limitada, mas incorruptível.
O vínculo entre o Criador e a criatura é, pois, de
analogia e não de continuidade: o sopro divino infunde a alma, mas não se
divide nela. A fé é o testemunho dessa analogia — é a forma pela qual a alma
reconhece a sua própria origem. Todo ato de crença é um retorno parcial ao
momento criador, uma reminiscência do fiat primordial. Por isso Tertuliano diz
que toda alma é “naturaliter christiana”: ela traz impressa a memória de sua
fonte.
A origem da alma é também a origem do saber. O
homem conhece porque participa, pela alma, do Logos que o fez. O conhecimento
racional não é autônomo, mas derivado. A razão é instrumento, não princípio;
serve à fé como o olho serve à luz. A fé é o sol da alma; a razão, seu olhar.
Sem o sol, o olhar não vê; sem o olhar, o sol não é percebido. Assim, a fé é
condição de inteligibilidade, não obstáculo.
O primeiro ato da alma não é discursivo, mas
intuitivo. O conhecimento intelectual que distingue, compara e julga surge
depois. A fé, enquanto adesão imediata ao ser divino, é a base ontológica de
toda certeza. Mesmo os filósofos que negam a fé partem dela inconscientemente,
pois confiam na razão como se fosse um absoluto. Essa confiança é uma fé
degenerada. Tertuliano, ao restaurar o primado da fides, devolve à razão a sua
humildade original.
A alma é, pois, lugar de confluência entre a graça
e a natureza. Sua estrutura é moldada para receber o divino: é vaso de luz, não
fonte própria. Por isso, enquanto os filósofos buscam a verdade por
investigação, o cristão a reencontra por lembrança. A revelação não é imposição
externa, mas despertar interior. O que a Escritura anuncia, a alma reconhece.
Dizer que a fé precede o conhecimento não é negar a
razão, mas salvá-la de si mesma. O conhecimento puramente racional tende à
autossuficiência, e a autossuficiência é a forma intelectual do pecado
original. A fé, ao contrário, recoloca a inteligência sob o princípio da
dependência criatural. Toda verdade, mesmo a científica, é verdade porque
reflete, ainda que imperfeitamente, a luz do primeiro Verbo.
Assim compreendida, a fé não é mero assentimento a
doutrinas, mas movimento ontológico: é o retorno da alma à sua fonte. É também
o primeiro exercício de liberdade, pois crer é consentir à verdade, não ser
coagido por ela. A liberdade humana se realiza na adesão à ordem divina, e o
conhecimento autêntico nasce do amor à verdade, não da curiosidade.
A origem da alma implica, pois, uma hierarquia do
saber. A ciência natural depende da razão; a sabedoria filosófica depende da
inteligência; mas a ciência divina depende da fé. Só esta última atinge o ser
porque parte do Ser. O filósofo sobe pelas causas; o crente desce pela graça. A
diferença é de método e de fim: o filósofo busca o universal, o crente
participa do eterno.
Em Tertuliano, portanto, o primado da fé não é
fideísmo, mas metafísica do início. É o reconhecimento de que todo
conhecer é possível apenas porque Deus conheceu primeiro. O homem raciocina
dentro do pensamento divino, como uma centelha dentro do fogo. O erro
filosófico consiste em esquecer o fogo e afirmar a centelha como princípio.
A alma humana, sendo criada à imagem de Deus, é
naturalmente ordenada à verdade. A fé é o modo pelo qual essa ordenação se
cumpre. Assim como o olho tende à luz, a alma tende à fé. Negar a fé é como
fechar os olhos ao sol e depois negar a claridade. Toda negação racional de
Deus é ainda prova de sua presença na estrutura do pensar.
A relação entre fé e razão é, portanto, uma
hierarquia dinâmica. A fé ilumina, a razão interpreta; a fé estabelece o fim, a
razão os meios; a fé é o princípio da sabedoria, a razão seu instrumento de
análise. Onde a fé cessa, a razão enlouquece. É por isso que Tertuliano vê nas
heresias não apenas erros morais, mas desordens intelectuais: a inteligência
desconectada do seu princípio torna-se produtora de ilusão.
A origem da alma é também origem da
responsabilidade: porque é criada, é livre; porque procede de Deus, pode
voltar-se contra Ele. O pecado é a inversão do eixo de conhecimento — o ato
pelo qual a alma pretende conhecer sem crer. Daí o drama humano: quanto mais
quer ser autônoma, mais se afasta da verdade. A restauração virá apenas pela
fé, que reconcilia saber e ser.
A primeira operação da alma não é o raciocínio, mas
a admiração. O “fiat lux” continua ecoando na interioridade humana como “fiat
fides”. A fé é a luz da alma criada; sua recusa é treva ontológica. O homem que
crê participa novamente da luz criadora; o que duvida de tudo retorna ao caos
do qual foi chamado.
Tertuliano não pretende anular a filosofia, mas
subordiná-la ao princípio que a funda. Ele vê na fé o início da verdadeira
ciência, que é ciência de Deus. Todo o edifício intelectual cristão posterior —
de Agostinho a Tomás — nascerá dessa intuição: que a fé não destrói o logos,
mas o revela.
Conclusio
A alma tem origem no sopro de Deus e, por isso, seu
primeiro ato é fé.
Crer é lembrar-se da própria criação; conhecer é desenvolver essa lembrança.
A razão é instrumento da fé, não sua rival.
A verdadeira filosofia é, portanto, teologia em germe, e a alma, antes de
pensar, é chamada a adorar.
Annotationes
- Fides antecedit rationem sicut causa antecedit effectum — a fé precede a razão como o ser precede o pensar.
- A criação da alma implica dependência ontológica; daí o princípio
“cogitatio est actus fidei”.
- O erro filosófico fundamental é a autarcia da razão — o
esquecimento de que o conhecer é sempre eco do Criador.
QVAESTIO
PRIMA — De Principio et Fide Animae
Articulus II
— De Substantia et Forma Animae in Creatione
(Sobre a substância e a forma da alma na criação)
A questão da substância da alma, em Tertuliano, é o
ponto em que o pensamento cristão se emancipa definitivamente da metafísica
grega. Contra o idealismo platônico, que fazia da alma uma essência incorpórea
e puramente inteligível, Tertuliano afirma que ela é corpórea, não por
materialidade grosseira, mas por realidade substancial. Essa corporeidade não é
peso nem densidade, mas presença ontológica: o ser espiritual é também ser em
forma.
A alma, diz ele, é um “corpus tenue et lucidum”, um
corpo sutil e luminoso, capaz de penetrar o corpo físico e animá-lo sem se
confundir com ele. O termo corpus não deve ser lido à maneira
materialista, mas segundo a concepção estoica de um continuum vivo, onde o ser
e o agir coincidem. Assim, para Tertuliano, negar à alma uma natureza corpórea
seria negar-lhe consistência ontológica, reduzir o espírito a uma abstração.
Essa doutrina da corporeidade da alma visa
preservar o realismo da criação. Se Deus fez tudo por sua palavra, tudo o que
existe é, de algum modo, corpo, pois a palavra se torna presença concreta. A
espiritualidade cristã, nesse sentido, não é fuga do corpo, mas sua iluminação.
O espírito é o corpo em estado de transparência; o corpo é o espírito em estado
de opacidade. Ambos são modos do ser criado.
A forma da alma é inseparável de sua substância.
Tertuliano não a concebe como mero acidente, mas como estrutura inteligível que
dá unidade e direção às suas potências. A forma é o modo como a substância
espiritual se manifesta em atividade: conhecer, querer, lembrar e amar são
expressões formais de uma mesma essência viva. A alma é ato em repouso e
repouso em ato — potência atualizada continuamente pela presença divina.
Em sua criação, a alma recebeu de Deus não apenas o
ser, mas o modo de ser. Por isso, cada alma é singular: o sopro divino que a
origina contém a medida de sua forma individual. Tertuliano antecipa aqui uma
noção personalista da substância espiritual: não existe alma genérica, mas cada
alma é um centro de identidade irrepetível. A unidade da espécie humana não
elimina a unicidade de cada espírito.
A corporeidade da alma, longe de degradar sua
dignidade, a confirma. Pois o corpo, para Tertuliano, é a assinatura do Criador
no mundo visível. Tudo o que é verdadeiramente real possui corpo — ainda que
espiritual. O que não tem corpo não é, mas apenas se imagina. Assim, a alma é
real porque é corpórea em grau superior, corpo de luz que sustenta o corpo de
carne.
A forma da alma é também figura da imagem divina.
Deus, sendo puro espírito, imprime nela uma configuração que reflete seu poder
e sua ordem. A forma não é apenas contorno, mas ratio interna, isto é,
medida e número. Toda alma é um microcosmo: nela se reproduz, em miniatura, a
harmonia do universo. O conhecimento humano, por isso, é possível: conhecer é
reencontrar no mundo as proporções que já habitam a alma.
Ao sustentar que a alma é corpórea, Tertuliano
preserva a continuidade entre natureza e graça. O homem é uma unidade viva, não
uma fusão acidental de dois princípios. Alma e corpo se interpenetram; o
espírito informa a carne e a carne testemunha o espírito. Não há desprezo da
matéria, mas integração hierárquica. A dualidade serve à unidade, como o som
serve ao verbo.
A criação da alma, enquanto ato divino, é
simultaneamente cosmológica e teológica. Cosmológica, porque insere o homem na
ordem universal das substâncias corpóreas; teológica, porque o faz portador do
sopro divino. Assim, o homem é o elo entre o visível e o invisível: em seu
corpo toca a terra, em sua alma participa do céu. A corporeidade da alma é o
fundamento dessa mediação.
Tertuliano vê nisso a grandeza do humano: ser
composto e, no entanto, chamado à unidade. A alma não é pura luz, mas luz
encarnada; o corpo não é prisão, mas expressão. A salvação, por conseguinte,
não consiste em libertar-se do corpo, mas em espiritualizá-lo, tornando-o
conforme à forma da alma e, por fim, conforme à forma de Cristo.
A forma da alma é também o princípio de sua
continuidade. Porque tem forma, ela sobrevive à morte. O corpo terreno se
decompõe, mas a forma espiritual subsiste, portando em si a imagem do corpo que
animou. Daí a doutrina tertulianista da reconhecibilidade pós-mortem: as
almas conservam figura e memória, são visíveis entre si, embora incorpóreas no
sentido material. O invisível, em Tertuliano, é apenas o excessivamente sutil.
A substância da alma é, pois, espírito em estado de
figura. Não é matéria densa, mas matéria significante — o que em toda criação é
transparência e sentido. Isso confere à antropologia cristã um caráter
concreto: a salvação não é ideia, mas evento que atinge o ser inteiro. O corpo
é salvo porque a alma é corpo de luz; a fé é eficaz porque atua em substâncias
reais, não em sombras conceituais.
A concepção platônica de alma como prisioneira do
corpo inverte a ordem criacional. Em Tertuliano, é o corpo que se torna livre
na alma. A encarnação do Verbo confirma essa visão: Deus fez-se carne para
mostrar que a carne é digna de ser habitada pelo Espírito. A antropologia
tertulianista é, portanto, cristológica: o homem é figura do Cristo encarnado,
síntese de espírito e carne, palavra e corpo.
A forma da alma é medida de sua moralidade. Quanto
mais ela se conforma à sua origem divina, mais transparente se torna; quanto
mais se afasta, mais se opacifica. O pecado é espessamento da alma, não ferida
do corpo. A graça é sua rarefação luminosa. Por isso a ascese cristã não é fuga
do sensível, mas purificação do olhar — tornar-se capaz de ver a luz através da
carne.
A substância da alma é uma, mas suas formas são
múltiplas segundo os graus de santificação. Em cada homem há a mesma essência,
mas em diferentes estados de luminosidade. A alma do santo é chama; a do justo,
brasa; a do pecador, cinza. Contudo, nenhuma se apaga totalmente enquanto o
sopro de Deus a sustentar. O inferno é o lugar onde esse sopro se converte em
fogo de consciência.
Assim, a doutrina da alma corpórea é também
doutrina da esperança. Se a alma tem corpo, pode ressuscitar; se tem forma,
pode ser restaurada. O mesmo Deus que a formou no princípio a reconfigurará no
fim. A corporeidade é, em Tertuliano, o selo da fidelidade divina: o que é real
nunca se perde.
O corpo espiritual da alma é, pois, o primeiro
estágio da ressurreição. A carne espera a sua hora; a alma já participa da
imortalidade. Ambas estão destinadas à mesma glória, porque ambas saíram da
mesma palavra criadora. A redenção é, por isso, o retorno da forma à sua fonte
— a reintegração do visível no invisível luminoso.
A metafísica tertulianista da alma é, portanto, uma
teologia da forma viva: tudo o que Deus cria tem corpo, e todo corpo é imagem
da Palavra. A alma é a mais alta das criaturas corpóreas, pois é o corpo onde o
próprio Espírito se torna presente. Conhecer sua forma é conhecer o mistério da
criação; amar sua origem é amar o Deus que fala em substâncias.
Conclusio
A alma é corpo de luz e forma viva.
Sua substância é espiritual, sua forma racional, seu ser uma continuidade do
ato criador.
Nela o divino se faz presença sensível, e o homem torna-se mediador entre
espírito e carne.
Negar sua corporeidade é negar o realismo da criação; afirmá-la é afirmar que toda
a verdade é concreta porque foi dita por Deus.
Annotationes
- Anima corpus est, sed spiritale corpus — não porque seja material, mas porque é substância de presença.
- A corporeidade da alma é fundamento da ressurreição e da
sacramentalidade do mundo.
- Em Tertuliano, a forma é a teofania do ser criado: toda alma é
ícone em ato.
QVAESTIO
SECUNDA — De Generatione et Vita Animae
Articulus I
— De Propagatione et Distinctione Animae Humanae
(Sobre a propagação e a distinção da alma humana)
A questão da propagação da alma toca o centro da
antropologia cristã primitiva: se a alma é criação divina, como pode ser
transmitida pelo homem? Tertuliano resolve o problema sem cair no dualismo nem
no emanatismo: a alma é criada in primordio por Deus e transfundida
por geração nos descendentes de Adão. Assim, toda alma é de origem divina e de
derivação humana — criada em sua raiz, gerada em sua continuidade.
O homem, portanto, não cria a alma, mas comunica a
vida que nela foi depositada. A geração é participação no ato criador: Deus,
que soprou o primeiro espírito, confiou à carne a missão de multiplicar esse
sopro. O que a carne gera é corpo, mas o que a vida transmite é alma. Há uma
causalidade instrumental: Deus permanece causa principal, o homem causa
secundária.
Dessa doutrina nasce a ideia de uma solidariedade
espiritual universal. Todas as almas são unidas pela origem comum no
primeiro homem. O gênero humano é uma só árvore viva, cuja seiva espiritual
corre de raiz em ramo. O pecado original é a corrupção dessa seiva, e a
redenção, sua purificação. Tertuliano antecipa aqui uma visão orgânica da
humanidade: a alma de cada homem é fragmento histórico da alma adâmica.
A propagação da alma implica também a preservação
de sua individualidade. Cada nova alma é singular, ainda que derivada da mesma
substância vital. O ato gerador transmite a vida, mas Deus imprime a forma. Há
continuidade de natureza, não de pessoa. Assim se concilia a unidade da espécie
com a pluralidade das consciências: somos um só ser quanto à origem, múltiplos
quanto à existência.
A distinção entre as almas humanas não é
quantitativa, mas qualitativa. Todas possuem as mesmas potências — razão,
memória, vontade —, mas em diferentes proporções de atualização. A diversidade
psicológica resulta não de diferentes naturezas, mas de diferentes graus de
iluminação. A luz é uma; o modo de recebê-la varia conforme a transparência do
sujeito.
A transmissão da alma por geração é, pois,
transmissão de luz enfraquecida pela sombra do pecado. Cada homem nasce com
alma viva, mas ferida. A alma adâmica era pura e plena; as nossas são
fragmentadas, envoltas em densidade carnal. O batismo é o ato pelo qual essa
luz é restituída à sua claridade original — não criação nova, mas regeneração.
Tertuliano refuta, assim, tanto o
preexistencialismo platônico quanto o criacionismo absoluto dos gnósticos. Se
cada alma fosse criada separadamente por Deus, a unidade do gênero humano se
perderia; se existisse antes do corpo, a encarnação seria punição e não
vocação. A verdade está entre ambos: Deus cria o primeiro homem totalmente,
corpo e alma, e desde então a vida propaga vida, conforme o mandato divino.
A distinção entre alma e espírito, que Tertuliano
introduz, esclarece ainda mais o problema. O espírito (spiritus) é
princípio universal de vida; a alma (anima) é forma individual desse
princípio no homem. O espírito é dom transcendente, a alma, vaso desse dom. Na
geração, comunica-se o espírito vital, mas é a alma que o particulariza,
transformando potência em pessoa.
Por isso, o nascimento humano é evento teológico:
nele a criação continua sob a forma da natureza. Cada nascimento é recordação
do primeiro fiat. Deus está oculto em cada geração, pois é Ele quem sustenta a
fecundidade da carne e a continuidade da vida. A propagação da alma é,
portanto, o milagre cotidiano da presença divina no mundo.
A alma humana, assim transmitida, é de natureza
racional e livre. Tertuliano rejeita qualquer determinismo fisiológico: a origem
carnal não compromete a espiritualidade da alma. Pelo contrário, sua encarnação
é condição de exercício moral. O espírito puramente angélico contempla; o
humano age. A alma é razão em movimento, inteligência que vive.
A distinção entre as almas humanas e as demais
almas — vegetais ou animais — é absoluta. As dos brutos possuem sensibilidade e
movimento; as humanas possuem consciência e juízo. A diferença não é de grau,
mas de ordem. O homem não é animal mais perfeito, mas natureza nova, síntese de
carne e logos. Por isso, a alma humana é imagem de Deus e espelho do cosmos.
A propagação da alma tem, portanto, um caráter
sacramental. Assim como a palavra divina se encarna no Verbo, a vida divina se
encarna em cada geração. O ato conjugal é, em sua raiz, colaboração com o
Criador. O pecado original obscurece essa dignidade, mas não a destrói. A carne
continua sendo instrumento da vida, mesmo quando ferida pela culpa.
A distinção das almas se manifesta também no
destino. Cada alma é julgada em sua própria história, ainda que partilhe da
mesma natureza. A transmissão não implica determinismo moral: o pecado é
herdado quanto à inclinação, não quanto ao ato. A liberdade resta intacta.
Tertuliano funda aqui a moral cristã sobre base antropológica sólida: unidade de
natureza, singularidade de responsabilidade.
A alma humana é, pois, centro de uma dupla
genealogia: divina e terrena. De Deus vem o ser; do homem, a continuidade. A
natureza humana é o cruzamento do eterno com o temporal. A alma carrega em si a
marca da eternidade, mas nasce no tempo; vive entre a lembrança do Criador e a
herança da carne. Sua vida é tensão e síntese.
Dessa tensão nasce o drama da consciência: o
espírito tende para o alto, o corpo puxa para o baixo. A vida humana é o teatro
dessa luta. O homem é livre não porque pode fazer tudo, mas porque pode
escolher a quem servir. Cada ato é um microcosmo da batalha entre luz e sombra,
fidelidade e esquecimento.
Por fim, a doutrina da propagação da alma revela a
unidade do cosmos sob a economia divina. Tudo o que vive participa do mesmo
sopro, mas só o homem o reconhece. A fé é o despertar dessa memória primordial.
Crer é recordar que a própria vida é dom, e viver é restituir o dom ao Doador.
Conclusio
A alma humana procede de Deus e se propaga pelo
homem.
É uma mesma substância que se multiplica sem se dividir, e uma mesma luz que se
comunica por graus.
Sua distinção está na forma individual e no destino moral.
Assim, toda geração é ato de criação continuada, e cada homem, uma nova
epifania do primeiro sopro divino.
Annotationes
- Propagatio non creatio nova, sed continuatio primae creationis — a geração é a continuidade da criação.
- A alma é unitária em natureza, múltipla em pessoa: unum genus,
multae formae.
- A distinção entre alma e espírito preserva a transcendência de Deus
e a responsabilidade do homem.
QVAESTIO
SECUNDA — De Generatione et Vita Animae
Articulus II
— De Sensu, Somno et Motu Interiori Animae
(Sobre o sentido, o sonho e o movimento interior da
alma)
A alma, sendo viva e racional, é também sensível.
Mas seu modo de sentir não é mera recepção passiva, e sim atividade ordenadora.
Tertuliano, ao discutir os sentidos, rejeita a concepção platônica que os reduz
a ilusões da carne, e igualmente recusa a visão materialista que os identifica
ao corpo. Os sentidos pertencem à alma como funções de sua potência vital; o
corpo é apenas seu instrumento orgânico.
O sentido, para ele, é o primeiro grau de
conhecimento. Pela sensação, a alma se desperta para o mundo exterior e começa
o movimento que culminará no ato racional. Sentir é participar do real pela via
da presença; conhecer é ordenar essa presença pela via do logos. O erro do
racionalismo é crer que o conhecimento começa na abstração; o erro do
sensualismo é supor que termina na sensação. Tertuliano une ambos: o sentido é
verdadeiro porque é espiritual.
Toda sensação é uma forma de contato entre a alma e
o mundo. O corpo não sente por si; é a alma que sente através dele. O olho vê
porque a alma o ilumina, o ouvido ouve porque a alma o ressoa. Os sentidos são
janelas, não princípios: sem alma, seriam aberturas cegas. Assim, sentir é ato
da alma em sua dimensão corpórea; e o corpo, animado, é sacramento da
percepção.
Essa visão unificada confere ao homem uma
interioridade viva. O sensível não o engana, mas o chama. O mundo é linguagem,
e a alma, intérprete. Cada cor, cada som, cada textura são sinais de uma ordem
inteligível que a alma reconhece como vestígio de seu Criador. Por isso, o
conhecer começa no espanto: a percepção desperta o intelecto pela beleza das
coisas.
O sono, nesse contexto, não é interrupção da alma,
mas modificação de sua atividade. Quando o corpo repousa, a alma se recolhe em
si mesma, libertando-se das distrações externas. O sonho é, portanto, a
continuação do sentido em outro plano — a visão interior, sem os limites dos
órgãos. A alma vê, ouve e sente em si mesma.
Nos sonhos, Tertuliano distingue duas ordens: os
naturais e os divinos. Os naturais são movimentos internos da memória e da
imaginação, resíduos das experiências corporais; os divinos são influxos do
espírito, revelações simbólicas concedidas pela graça. Ambos confirmam que a
alma, mesmo separada dos sentidos exteriores, conserva vida e poder de
representação.
Essa doutrina revela a autonomia da alma. Ela não é
prisioneira do corpo, mas senhora dele. Pode operar com e sem os sentidos, com
e sem o sono, com e sem o corpo. Essa continuidade da percepção indica a
imortalidade da alma: o que não depende do corpo para agir, não depende dele
para existir.
O movimento interior da alma é triplo: memória,
imaginação e razão. A memória retém o passado, a imaginação o transforma em
figura, e a razão o ordena em juízo. Esses três movimentos constituem a vida
interior. Quando harmonizados pela fé, tornam-se contemplação; quando
desordenados, tornam-se delírio. A saúde da alma é sua harmonia interior.
No fundo, o sentir, o sonhar e o pensar são
gradações de um mesmo movimento: a alma que busca o ser. Sentir é tocar o ser;
sonhar é refletir o ser; pensar é compreender o ser. O homem é o ser que sente
o sentido das coisas. Em cada sensação autêntica há já um ato de adoração, pois
a alma reconhece, ainda que confusamente, o toque do Criador.
O sonho, para Tertuliano, é também testemunho da
continuidade entre o natural e o sobrenatural. As revelações divinas
frequentemente se dão nesse estado intermediário, em que a alma, livre das
resistências corporais, torna-se transparente ao espírito. A profecia é o sonho
desperto; o sonho é a profecia velada. Em ambos, o homem é visitado por Deus em
sua própria interioridade.
O movimento interior da alma não cessa nem na
morte. Aquilo que sonha no sono continuará a ver no além. O estado post mortem
é prolongamento do estado onírico: a alma, separada do corpo, continua a operar
pelas imagens e pelos sentidos espirituais. O sonho é, assim, antecipação da
eternidade — uma pedagogia invisível da vida futura.
Tertuliano vê nisso a prova de que a alma é
substância ativa. Ela não recebe impressões como cera, mas as modela como
artífice. A sensação é criação em ato, não mera passividade. A alma dá forma ao
mundo que percebe, e o mundo, por sua vez, dá figura ao interior da alma. O
universo sensível é espelho da vida interior; o universo espiritual, modelo do
sensível.
No sonho e na sensação se reflete a mesma
dialética: a alma é simultaneamente espectadora e autora. Ela se contempla em
tudo o que vê. É por isso que o homem ama o belo — porque nele se reconhece. A
estética, em Tertuliano, é antropologia: ver o belo é recordar a própria origem
luminosa.
O movimento interior é também moral. As paixões e
afetos nascem das mesmas potências que produzem o sonho e a sensação. O que
distingue a virtude do vício é o uso do movimento: quando a alma se volta ao
superior, eleva-se; quando se curva ao inferior, degrada-se. O corpo não é causa
do pecado, mas ocasião; a alma é a origem e o termo de toda moralidade.
O sonho espiritual é, enfim, prefiguração da visão
beatífica. O homem dorme para o mundo quando desperta para Deus. A oração é o
sono consciente da carne e a vigília da alma. Quando o espírito de Deus age no
homem, sua imaginação se torna templo e o sonho, revelação. Tertuliano vê nesse
fenômeno a continuidade entre natureza e graça: Deus não destrói a faculdade,
mas a purifica.
A alma, por sua estrutura, é movimento puro que
tende à visão. Tudo nela é dinâmica de ascensão. A vida humana é o itinerário
do sensível ao inteligível, do sonho à contemplação. Cada percepção justa é um
passo na escada da sabedoria. O erro é interrupção do movimento; o pecado, seu
desvio.
O sensível, o onírico e o inteligível são, pois,
três graus da mesma escada espiritual. No primeiro, a alma toca o mundo; no
segundo, reflete-o; no terceiro, transcende-o. A perfeição consiste em integrar
os três — ver o visível como símbolo, o sonho como profecia e a razão como
obediência. Assim, o sentir torna-se conhecer, o conhecer torna-se amar, e o
amar, contemplar.
Conclusio
A alma é princípio de sensação, de sonho e de
movimento interior.
Sente pelo corpo, sonha por si, e se move por Deus.
O sentir é seu primeiro ato; o sonhar, sua reminiscência; o pensar, sua
vocação.
A vida é o movimento da alma entre o mundo e o Criador, e a santidade, o
repouso nesse movimento.
Annotationes
- Sensibilitas animae est actus vitalis, non passio organica — a sensação é ato da vida, não passividade do corpo.
- O sonho prova a autonomia da alma: ela age fora do corpo como
dentro dele.
- O movimento interior é o caminho da visão — motus ad lumen.
QVAESTIO
TERTIA — De Lege, Libertate et Affectibus Animae
Articulus I
— De Affectibus et Libero Arbitrio Animae Rationalis
(Sobre os afetos e o livre-arbítrio da alma
racional)
A alma racional, enquanto imagem de Deus, é viva,
livre e movida. Sua vida é liberdade, e sua liberdade, movimento entre o bem e
o mal. Mas esse movimento não é mecânico; é deliberativo, pois nasce de uma
potência interior que decide. Tertuliano compreende a alma como tribunal: nela
o homem é ao mesmo tempo réu, juiz e testemunha. E é precisamente nos afetos
que esse tribunal se manifesta.
Os afetos são movimentos interiores da alma diante
do valor das coisas. Não são doenças nem meras reações corporais, mas impulsos
espirituais que podem ordenar-se à virtude ou degenerar em vício. São, em sua
natureza, neutros; em seu uso, morais. A ira pode ser justiça ou fúria; o amor,
caridade ou concupiscência; o medo, prudência ou covardia. O afeto é a potência
em estado de escolha.
A liberdade é, portanto, a forma espiritual que
governa os afetos. Sem ela, os impulsos seriam instintos; com ela, tornam-se
moral. A alma racional é livre porque pode transformar o impulso em ato
deliberado. Tertuliano afirma que a liberdade é o selo divino no homem: “Deus
fecit hominem liberum, ut sibi similem faceret.” O Criador não quis servo, mas
filho capaz de amar por vontade.
O livre-arbítrio é o ponto de interseção entre
natureza e graça. A natureza dá o poder de escolher; a graça dá a luz para
escolher bem. Deus não anula a liberdade ao salvar o homem, mas a purifica. O
Espírito não força; inspira. A graça é liberdade iluminada, e a liberdade,
graça em potência. A obediência perfeita é a liberdade em sua maturidade.
Nos afetos, essa dinâmica se revela como combate
interior. Cada paixão é um convite à escolha. O mesmo impulso pode elevar ou degradar,
conforme a direção que lhe é dada. Assim, o amor, quando orientado ao Criador,
é caridade; quando fechado em si, é idolatria. O afeto é uma energia neutra; a
vontade, o leme; a razão, a bússola; a fé, a luz.
A liberdade, porém, não é simples indiferença entre
contrários, mas inclinação ordenada ao bem. O homem é livre para escolher o
mal, mas só é plenamente livre quando escolhe o bem. O pecado é mau uso da
liberdade; a virtude, seu uso correto. A liberdade é, assim, o risco e a glória
da alma: pode elevar-se à semelhança de Deus ou decair à escravidão da carne.
Os afetos são o campo onde a liberdade se exerce. A
alma sem afetos seria imóvel, e a liberdade sem afetos, inoperante. O movimento
é condição do amor, e o amor, condição da escolha. Deus mesmo é movimento puro:
não mudança, mas ato eterno. A alma, feita à sua imagem, participa desse
dinamismo. O pecado consiste em inverter o movimento — amar o inferior mais que
o superior.
O livre-arbítrio, em Tertuliano, é inseparável da
responsabilidade. A alma é livre porque é imputável. Deus julga o homem porque
o fez capaz de decidir. Sem liberdade, não haveria mérito nem culpa, nem
justiça possível. A liberdade é o espelho da justiça divina no interior da
criatura. A sentença do juízo final é a confirmação eterna das escolhas
temporais.
Os afetos, quando governados pela razão iluminada
pela fé, tornam-se virtudes. A ira é justiça zelosa, o medo é reverência, a
alegria é louvor, a tristeza é compunção. Deus não pede que o homem destrua
seus afetos, mas que os converta. O estoico quer suprimir a paixão; o cristão
quer batizá-la. O homem sem paixão é estátua; o homem em Cristo é chama
orientada.
A liberdade encontra seu sentido pleno na
obediência amorosa. Obedecer não é ceder à força, mas aderir à verdade. A alma
é mais livre quando serve voluntariamente ao bem do que quando reina sobre o
mal. O servo de Deus é senhor de si; o senhor de si é escravo do pecado. A
verdadeira autonomia é teonomia.
A dialética entre afeto e liberdade é também
teológica. Deus é amor, mas amor livre. Sua vontade é necessidade do bem, não
compulsão. O homem, ao participar dessa estrutura, torna-se moralmente
responsável. A vontade humana é reflexo temporal da vontade divina: tem poder
de escolha, mas seu destino é o amor.
A liberdade é a via da semelhança. Crer é escolher,
amar é permanecer na escolha. Cada ato livre é um sacramento do espírito: uma
manifestação visível da imagem invisível de Deus. O mal, por sua vez, é o uso
autônomo da liberdade — o ato que pretende ser princípio. Por isso, o demônio é
o paradigma da liberdade separada: poder sem obediência, luz que se quer
origem.
A alma livre é alma consciente. Os afetos, quando
refletidos, tornam-se confissão. O arrependimento é a paixão purificada pela
razão; o perdão, o amor purificado pela graça. A ética cristã, em Tertuliano, é
ascese dos afetos: o homem aprende a sentir segundo a ordem do ser. A santidade
é harmonia afetiva — o amor em estado de verdade.
A liberdade, sendo o dom mais perigoso, é também o
mais divino. Deus não quis autômatos, mas seres capazes de se perder para
poderem ser encontrados. A história humana é o drama do livre-arbítrio: o sopro
que se desvia do vento e, por graça, é recolhido. No fim, a liberdade será
plenamente livre quando, amando o bem sem alternativa, se tornar necessidade de
amor.
A alma racional é, pois, teatro da vontade e templo
do amor. Cada decisão é um altar, cada afeto, um fogo. O homem é sacerdote de
si mesmo: oferece seus movimentos interiores àquilo que adora. O pecado é
idolatria interior; a virtude, liturgia secreta. A moral é, em essência, um
culto.
No plano cósmico, o livre-arbítrio é o eixo da
ordem. Pela liberdade, o homem completa o universo: os astros obedecem por
necessidade; ele, por eleição. A criação inteira é harmonia; a liberdade humana
é o único tom dissonante que pode ser resolvido na música divina. Quando o
será, o cosmos estará consumado.
A liberdade e o afeto, portanto, não se opõem: um é
a forma, o outro, a energia. A alma é livre porque ama e ama porque é livre. A
paixão iluminada é virtude; a liberdade obscurecida é paixão. No equilíbrio dos
dois, o homem reencontra sua unidade e se torna novamente imagem viva do
Criador.
Conclusio
Os afetos são movimentos da alma racional, e o
livre-arbítrio é sua direção.
A liberdade é o poder de ordenar o amor; o pecado, o desvio dessa ordem.
A alma é livre porque é amável, e amável porque é livre.
Em sua harmonia, o homem encontra sua verdade; em seu desvio, sua perdição.
Annotationes
- Affectus non sunt vitia, sed materia virtutis — os afetos não são vícios, mas matéria de virtude.
- Libertas est imago Dei in homine — a
liberdade é a imagem de Deus no homem.
- O pecado é desordem da liberdade; a graça, sua purificação e
retorno à origem.
QVAESTIO
TERTIA — De Lege, Libertate et Affectibus Animae
Articulus II
— De Conscientia et Lege Naturali
(Sobre a consciência e a lei natural)
Toda alma humana é dotada de uma luz interior que
discerne o bem e o mal sem necessidade de ensino externo. Tertuliano chama essa
luz de lex naturalis, lei impressa no coração desde a criação. Ela não é
aprendida, mas reconhecida; não é escrita em tábuas, mas gravada na substância
espiritual. É a primeira revelação de Deus ao homem e o primeiro testemunho da
alma a respeito de sua origem divina.
A consciência é a sede dessa lei. Ela é
simultaneamente testemunha, juiz e execução moral. Em seu tribunal silencioso,
cada homem é réu de si mesmo. Nenhum crime é ignorado antes do juízo final,
pois a consciência o anuncia imediatamente. Quando faz o bem, a alma sente paz;
quando faz o mal, sente divisão. Assim, a consciência é o reflexo da ordem
eterna no interior do tempo.
Tertuliano vê nela o ponto de contato entre a
liberdade humana e a sabedoria divina. A lei natural não suprime o
livre-arbítrio, mas o orienta. Deus fala à vontade por meio da consciência, não
para constrangê-la, mas para lembrá-la de seu princípio. O mandamento “não
matarás” é anterior à tábua de Moisés; é voz da própria alma que se reconhece
no ser do outro.
A lei natural é, portanto, universal e anterior a
qualquer religião positiva. Mesmo entre os pagãos, ela se manifesta nos
costumes e nos tribunais. Onde há justiça, há reflexo dessa lei. Nenhum povo é
absolutamente bárbaro, porque todos são espiritualmente criados. A idolatria e
a corrupção não anulam o instinto moral, apenas o deformam.
A consciência é como um espelho manchado: conserva
a forma, mas perde o brilho. O pecado não destrói a lei interior, mas a
obscurece. A graça é a restauração dessa transparência. Cristo não veio abolir
a lei, mas cumpri-la — o que significa restituir ao homem a escuta pura de sua
própria alma. A redenção é, nesse sentido, uma pedagogia da consciência.
O exercício moral é o esforço de tornar audível
essa voz silenciosa. A consciência não grita; ela murmura. Deus não fala em
trovões, mas no sopro interior. Por isso, o ruído das paixões é seu maior
inimigo. Quem vive disperso não ouve. A ascese cristã é o recolhimento
necessário para que o homem possa escutar Deus em si.
A lei natural tem três notas: universalidade,
invariabilidade e interioridade. É universal porque está em todos; invariável
porque procede da essência divina; interior porque age no âmago do ser. Todas
as leis humanas que contradizem essas propriedades são tirânicas. A justiça
temporal deve espelhar a justiça eterna.
A consciência é também memória. Ela recorda o bem
mesmo quando o homem o rejeita. O remorso é sua forma dolorosa; o
arrependimento, sua cura. Nessa dinâmica se cumpre a pedagogia divina: Deus
permite que o homem sinta a dor moral como sinal de que ainda é livre. O
inferno começa na alma que perdeu a capacidade de sofrer por causa do mal.
Em Tertuliano, a consciência não é faculdade
autônoma, mas organum spiritus. Ela não cria a lei, mas a reproduz. Não
inventa o bem, mas o lembra. Quando se separa da fé, torna-se débil; quando se
une à graça, torna-se profética. A santidade é a consciência plenamente
iluminada pela caridade.
A lei natural não é estática; é dinâmica. Cresce em
clareza conforme a alma se purifica. Assim como o sol nasce no horizonte e se
eleva ao zênite, também a consciência progride da sombra da natureza à luz da
revelação. A fé não contradiz a lei natural, mas a cumpre em sua forma
perfeita.
A razão, sem a fé, reconhece o dever, mas ignora o
destino; a fé, sem a razão, ama o destino, mas esquece o dever. A consciência
une ambos, pois mostra o dever em função do destino e o destino como
cumprimento do dever. O mandamento e a esperança se encontram em sua voz.
Na estrutura moral do homem, a consciência é a
presença imediata do juízo divino. Ela antecipa o tribunal final: o que será
dito no último dia já é ouvido em segredo. Quando a alma se acusa, participa da
verdade; quando se justifica, mente. O perdão divino começa onde a consciência
se humilha.
A lei natural é, enfim, a assinatura da ordem
divina no cosmos. Os elementos obedecem por necessidade; o homem, por
liberdade. Mas essa liberdade é verdadeira apenas quando se harmoniza com a lei
que a criou. O pecado é desobediência ontológica — ruptura do ritmo universal.
O justo é aquele cuja alma respira em compasso com o Criador.
A consciência é também lugar de revelação. Nela, o
Espírito Santo confirma o que a razão apenas pressente. Quando o homem ora,
fala à consciência; quando medita, ouve-a. O diálogo interior é forma cotidiana
de profecia. A moral cristã é, pois, espiritualização da lei: o dever se torna
amor, e o amor, cumprimento do dever.
A ordem exterior das leis eclesiásticas e civis
deriva da interior. Nenhuma autoridade é legítima se contradiz a lei do
coração. O mártir é aquele cuja consciência não se curva ao poder. A história
do cristianismo é, em essência, a história de consciências que preferiram a
verdade à obediência cega.
A lei natural culmina na visão de Deus. Quando o
homem estiver plenamente unido ao seu princípio, a consciência deixará de ser
voz e se tornará presença. O conhecimento do bem não será mais mandato, mas
alegria. A moral se dissolverá em amor, e a lei se cumprirá em liberdade. A
eternidade é o repouso da consciência na luz da Verdade.
Conclusio
A consciência é a voz da lei natural na alma
racional.
Ela ensina sem palavras, julga sem tribunal e pune sem fogo.
A graça não a substitui, mas a ilumina.
No fim dos tempos, a lei que hoje fala em silêncio será canto eterno do amor
ordenado.
Annotationes
- Lex naturalis est imago legis aeternae in anima hominis — a lei natural é imagem da lei eterna no homem.
- A consciência é profecia interior: anuncia o juízo no tempo.
- A graça não destrói a natureza, mas a cumpre, convertendo o dever
em amor.
QVAESTIO
QVARTA — De Judicio, Resurrectione et Consummatione
Articulus I
— De Statu Animarum Post Mortem et Die Judicii
(Sobre o estado das almas após a morte e o dia do juízo)
A alma, uma vez separada do corpo, não perde sua
substância nem sua atividade. Tertuliano insiste na continuidade ontológica
entre a vida presente e o estado pós-morte. O que morre é o corpo material; o
que sobrevive é o corpo sutil da alma, seu corpus spirituale. Essa
permanência não é apenas existência abstrata, mas vida concreta em outro modo
de ser. A morte é mudança de densidade, não de essência.
A alma carrega consigo a forma que modelou durante
a vida. Suas virtudes e vícios são as vestes de sua figura espiritual. O juízo
particular começa no instante da separação: o que cada alma se fez, isso é. A
justiça divina não precisa criar penas ou prêmios externos; a própria alma se
torna lugar de sua recompensa ou condenação.
O estado das almas após a morte é, pois,
consequência natural da ordem moral. A virtude produz leveza, o pecado, peso.
As almas puras ascendem por afinidade à luz; as culpadas descem à obscuridade
que lhes é própria. A cosmologia moral de Tertuliano é física e espiritual ao
mesmo tempo: a moral é gravitação da alma.
No intervalo entre a morte e a ressurreição, as
almas aguardam em receptáculos distintos — os inferi e os refrigeria
justorum. Não é o inferno eterno nem o céu consumado, mas regiões
intermediárias da espera. As almas dos justos repousam em um seio de paz; as
dos ímpios, em um estado de sombra e remorso. A justiça é já eficaz antes do
fim dos tempos.
O juízo final não cria o destino das almas; apenas
o manifesta publicamente. Ele é a epifania da ordem invisível que desde sempre
governa o mundo. O que estava oculto no coração será revelado à luz universal.
Por isso, Tertuliano chama o juízo de “dia da verdade”: dies veritatis,
quando o tempo inteiro será reunido diante do eterno.
A alma, em sua imortalidade, é instrumento do
próprio juízo. Sua memória não se apaga, e o esquecimento não a absolve. Tudo o
que viu, pensou e quis está nela inscrito. O julgamento não será feito por
provas externas, mas por reminiscência interior. O fogo do juízo é a luz da
consciência tornada total.
Essa visão implica um realismo moral absoluto. Nada
se perde, nada se oculta. Cada ato humano, cada pensamento, cada intenção é uma
semente de eternidade. A morte apenas revela o que germinou. O justo floresce
em claridade; o ímpio, em sombra. O inferno é a permanência do pecado; o céu, a
transparência do amor.
O juízo é também consumação da história. O tempo
inteiro é chamado à presença do Verbo que o criou. Tudo o que foi injusto será
reequilibrado, toda mentira, desmascarada. O mal, que parecia vencedor no
tempo, será vencido pela evidência da verdade. A eternidade é justiça tornada
presença.
A ressurreição da carne é o complemento dessa
justiça. Se o corpo participou das obras da alma, deve também participar de sua
retribuição. A salvação não é apenas espiritual, mas integral. O corpo
ressurgirá, não no mesmo estado, mas na mesma identidade. A alma reencontrará
sua forma corpórea, agora transfigurada pela luz divina.
A unidade do homem será, assim, restaurada. O dualismo
da morte cede lugar à plenitude da vida. O corpo espiritual e o corpo glorioso
são dois graus da mesma realidade. O primeiro é o ser em espera; o segundo, o
ser em posse. Na ressurreição, o homem volta a ser o que era no princípio: alma
vivente e carne luminosa.
O juízo universal é o coroamento da liberdade. Cada
homem verá o resultado de suas escolhas, não como castigo imposto, mas como
fruto colhido. Deus não condena; o homem se define. A condenação é a
solidificação da liberdade no erro; a bem-aventurança, sua cristalização no
amor.
O Cristo juiz é o mesmo Cristo redentor. O juízo
não é vingança, mas revelação. A cruz é o tribunal invertido: o Juiz sofre para
que os réus possam ser absolvidos. Mas aquele que rejeita a cruz rejeita o
próprio perdão e, assim, sela seu juízo. A misericórdia recusada transforma-se
em justiça.
O fogo do juízo é símbolo e realidade. Não é chama
material, mas energia purificadora da presença divina. Diante de Deus, tudo o
que não é luz se consome. O purgatório é o prelúdio dessa clarificação:
purificação temporal antes da visão eterna. O amor é fogo; e só o que ama pode
permanecer nele sem se consumir.
Tertuliano vê a história como processo escatológico
contínuo. Desde a primeira queda até o último dia, o mundo caminha para o
juízo. Cada geração acrescenta um capítulo ao processo universal. A Igreja é o
tribunal antecipado, onde já se exerce o poder das chaves: absolver, corrigir,
excomungar. O juízo é, portanto, sacramento em curso.
O estado das almas antes do fim não é inércia, mas
expectativa. Os justos intercedem, os ímpios se desesperam, e ambos aguardam a
plenitude do tempo. A morte não interrompe a história; apenas a desacelera. A
eternidade começa no instante em que o homem se vê totalmente à luz.
A consumação do juízo será também renovação do
cosmos. A criação inteira, marcada pelo pecado, será libertada pela justiça dos
santos. A natureza ressurgirá purificada, o tempo será abolido e Deus será tudo
em todos. O juízo é, em última instância, reconciliação universal: cada ser
retornando à sua medida eterna.
Assim, o estado pós-morte e o juízo não são eventos
isolados, mas etapas de uma mesma economia: a alma que sai de si na morte é
chamada a si no juízo; o corpo que se dissolve é refeito na ressurreição; o
mundo que se corrompe é refeito na consumação. Tudo o que vem de Deus retorna a
Deus, sem perda, sem sobra, sem ruído.
Conclusio
A alma, após a morte, conserva sua forma e sua
memória.
O juízo é a revelação do que ela sempre foi, e a ressurreição, a restituição do
que havia perdido.
O fogo purifica, o tempo espera, e a eternidade recolhe.
Em tudo, o homem é julgado pela verdade que habita em si, e Deus é glorificado
na transparência do ser.
Annotationes
- Mors est mutatio status, non substantiae — a morte é mudança de estado, não de substância.
- Judicium est revelatio conscientiae universalis — o juízo é revelação da consciência universal.
- Resurrectio carnis est restauratio integritatis hominis — a ressurreição da carne é restauração da integridade humana.
QVAESTIO
QVARTA — De Judicio, Resurrectione et Consummatione
Articulus II
— De Resurrectione Carnium et Consummatione Mundi
(Sobre a ressurreição da carne e a consumação do
mundo)
A ressurreição da carne é o vértice da fé cristã e
o escândalo da razão pagã. Nenhum dogma exprime com tanta força a continuidade
entre natureza e graça, corpo e espírito, tempo e eternidade. Em Tertuliano,
essa doutrina não é metáfora moral nem alegoria espiritual: é fato físico, teológico
e cósmico. O mesmo corpo que viveu ressurgirá, não outro. O mesmo homem que
pecou será julgado, não sombra ou memória dele.
A razão desta insistência está na unidade
substancial do ser humano. Se o homem é composto de corpo e alma, a salvação
deve atingir ambos. Negar a ressurreição seria admitir que o corpo é acidente e
não essência, que Deus redime apenas metade do homem. O cristianismo, porém, é
a religião da totalidade: nihil Deus dimittit quod ipse creavit.
Tertuliano demonstra que a ressurreição é exigência
da justiça divina. O corpo participou das obras boas e más; deve, portanto,
participar das penas e das glórias. A alma sozinha não basta à retribuição,
pois o mérito é obra conjunta. O corpo é o instrumento, a alma o agente; ambos
compartilham o resultado. Assim, o juízo seria incompleto sem a carne
restaurada.
A dúvida racional sobre a possibilidade da
ressurreição é respondida por analogias da própria natureza. A semente, lançada
na terra, morre para renascer; o sol, que se põe, retorna; o ciclo das estações
é um ensaio da eternidade. A corrupção não é aniquilação, mas transformação. O
pó que se dispersa permanece sendo o mesmo pó diante de Deus, que chama cada
partícula pelo nome.
A omnipotência divina é o fundamento último da
esperança. O que Deus criou do nada pode reconstituir do pó. O corpo humano,
sendo composto, é apenas forma visível de um número que permanece. A dissolução
da matéria não destrói o arquétipo; apenas o oculta. No juízo final, esse
número se recomporá sob a voz do Criador: Surge, homo, et vive!
A ressurreição é, portanto, ato da memória divina.
Deus recorda o ser em sua totalidade e o chama à existência renovada. A
eternidade é a memória perfeita de Deus. O homem ressuscitado é o pensamento de
Deus tornado corpo de luz. A carne que outrora foi sujeita ao tempo tornar-se-á
espelho da eternidade: incorruptível, imortal, espiritual, mas ainda carne.
Essa transfiguração não destrói a identidade, mas a
plenifica. Cada homem conservará sua forma reconhecível, pois a salvação é pessoal.
Contudo, tudo o que era deformidade, ferida, sombra, será purificado. A
ressurreição é o triunfo da forma divina sobre as contingências da matéria. A
beleza será o esplendor da justiça.
A natureza inteira participa dessa restauração. O
mundo, que geme sob o peso do pecado, será renovado. O fogo que consome os
elementos não é destruição, mas regeneração. Tertuliano vê no fim do mundo uma
segunda criação: consummatio non interitus, sed restauratio. O cosmos
será refeito em sua pureza original, como templo universal do Espírito.
A consumação do mundo é o retorno da criação ao seu
princípio. Tudo o que foi criado, tendo vindo do Verbo, volta ao Verbo. A
história é um arco que começa na Palavra e termina no Silêncio, isto é, na
contemplação. O fim dos tempos é o repouso do tempo em Deus. O eterno
sabatismo, onde tudo o que é movimento se recolhe em ato puro.
O fogo escatológico é a forma dessa passagem. Ele
consome o transitório e revela o permanente. O mal, sendo ausência de forma,
não resiste ao fogo; o bem, sendo figura da verdade, torna-se luz. A
conflagração final é purificação cósmica: o mundo ardendo em Deus como oferenda
perfeita.
A ressurreição da carne inaugura o corpo glorioso.
Esse corpo não é mais sujeito à dor, ao cansaço, nem à necessidade. É corpo de
transparência, instrumento da alma em perfeita obediência. O primeiro Adão foi
feito alma vivente; o segundo, espírito vivificante. Na ressurreição, a carne
torna-se verbo visível — matéria em estado de louvor.
No estado glorioso, o corpo não será obstáculo, mas
mediação. O ver não cansa, o mover não pesa, o existir é gozo. A carne se
espiritualiza sem deixar de ser carne; o espírito se encarna sem perder sua
pureza. O homem se torna unidade plena — não alma no corpo, mas corpo animado
pela divindade.
A consumação do mundo é também consumação da
liberdade. O homem, tendo escolhido definitivamente o amor, não poderá mais
pecar. A vontade será fixada no bem, não por coerção, mas por perfeição. A
liberdade que antes podia errar será agora liberdade que só pode amar. O
paraíso é a liberdade consumada.
O universo inteiro será ordenado conforme a medida
da alma justificada. Cada estrela, cada criatura, cada forma participará da
harmonia restaurada. O cosmos será liturgia universal: o fogo, o som e a luz
entoando o mesmo cântico. A física se tornará música, e o espaço, adoração.
A consumação, portanto, não é destruição do real,
mas revelação de seu sentido. Tudo o que foi provisório se tornará símbolo;
tudo o que foi símbolo, presença. O que chamamos de fim é apenas o cumprimento
da promessa: Finis est plenitudo. O mundo não morre; amadurece.
No ápice dessa visão, Tertuliano coloca o Cristo
glorificado. Ele é o modelo da ressurreição e o princípio da nova criação. O
corpo do Senhor, saído do sepulcro, é o arquétipo de todos os corpos futuros.
Nele, a matéria se reconciliou com o espírito, e a morte se converteu em
passagem. O cristão é chamado a participar dessa mesma forma luminosa.
A eternidade que se seguirá será estável, mas viva;
imóvel, mas pulsante; silenciosa, mas sonora. Cada alma verá em Deus sua
própria imagem restaurada. A alegria não será sucessão, mas permanência em
intensidade infinita. E a carne, uma vez instrumento da fraqueza, será agora
órgão do louvor. O corpo será oração feita substância.
Conclusio
A ressurreição é a memória viva de Deus sobre o
homem.
O corpo ressurgido é o espírito tornado forma perfeita, e o mundo consumado é a
matéria em estado de louvor.
Nada se perde: o pó escuta, o fogo purifica, a alma espera.
O fim é retorno; o juízo, revelação; a eternidade, presença.
Annotationes
- Resurrectio carnis est consummatio creationis — a ressurreição da carne é a consumação da criação.
- Ignis ultimus purgat, non delet — o
fogo final purifica, não destrói.
- Finis temporis est initium aeternitatis — o fim do tempo é o início da eternidade.
FINIS OPERIS
De Anima – Tertulliani Presbyteri
Carthaginensis
(Conclusio doctrinalis et symbolica)
A
alma, princípio invisível do homem e testemunha do Verbo, percorreu neste livro
o arco inteiro de sua origem, natureza, movimento e destino. Tertuliano,
presbítero de Cartago, quis restituir ao espírito humano sua corporeidade e ao
corpo sua dignidade espiritual. Assim, entre os extremos do nascimento e da
consumação, o tratado descreve a trajetória da alma como espelho de toda a
criação.
No
princípio, a alma é sopro divino tornado forma. Não é chama desprendida do fogo,
mas fogo modelado pelo sopro. Recebeu do Criador não apenas o ser, mas o modo
de ser: viver, mover-se e conhecer. É substância corpórea, não porque seja
material, mas porque é presença concreta no ser — corpo de luz e razão viva.
A
fé, antes da razão, é sua primeira respiração. Antes de discutir, a alma crê;
antes de compreender, confessa. Pois o que se entende sem amor não se conhece,
e o que se ama sem fé se perde. A alma é, portanto, o lugar da síntese entre
crer e saber, entre o invisível que habita e o visível que interroga.
Gerada
de geração, a alma humana se propaga como centelha de um fogo primeiro. A vida
não se multiplica por adição, mas por continuidade. Cada homem traz em si a
vibração do primeiro sopro, e a humanidade inteira é uma respiração única que
se prolonga no tempo. O pecado é o ruído dessa respiração; a redenção, o
retorno ao compasso original.
Nos
sentidos e nos sonhos, a alma experimenta sua dupla natureza: ligada à carne,
mas capaz de transcender. O sono é seu êxodo diário, a prova de que pode agir
sem o corpo e existir sem o mundo. Os sonhos são fragmentos de eternidade que
se infiltram na noite; cada imagem onírica é lembrança do paraíso perdido.
Nos
afetos, a alma revela sua liberdade. Amar, temer, desejar e esperar — são modos
de sua respiração moral. Quando se ordena ao bem, a paixão se converte em
virtude; quando se desordena, em pecado. Mas em ambos se conserva o mesmo fogo
originário. Deus não suprime o afeto, mas o redime, pois o amor é a força que
move tanto o homem quanto o céu.
A
consciência é o altar onde a alma celebra o juízo. Lá, no silêncio de si, o
homem escuta a voz do Criador. A lei natural é seu evangelho interno, anterior
à escrita e superior às tábuas. Obedecer à consciência é antecipar o juízo
final, pois o tribunal da eternidade já se levanta dentro do peito humano.
A
morte não é ruptura, mas passagem. O corpo retorna à terra, e a alma conserva a
figura que moldou. O justo se ilumina em repouso; o ímpio se afunda em sua
própria sombra. O inferno e o céu começam antes do túmulo, porque a eternidade
começa quando a alma se torna aquilo que amou.
O
juízo é a revelação da verdade que sempre esteve presente. Deus não inventa o
destino das almas: Ele apenas o mostra. A alma vê-se à luz e reconhece o que é.
O fogo eterno não é chama que destrói, mas claridade que consome as trevas do
ser.
A
ressurreição é o triunfo da fidelidade divina. Deus não esquece o que cria;
lembra-se do pó, chama-o pelo nome e o restitui à luz. O corpo, transfigurado,
volta a ser templo da alma. A criação termina como começou: o Espírito pairando
sobre a carne e dizendo “Isto é bom.”
A
consumação do mundo é o repouso do ser em Deus. Tudo o que se moveu retorna à
sua origem; tudo o que foi dito silencia na Palavra que o disse. O fogo
purifica, o tempo se recolhe, o espaço se curva, e a eternidade floresce. Nada
é perdido, pois em Deus não há esquecimento.
Assim
se encerra o círculo: principium et finis animae unus est Deus.
O que começou como sopro termina como canto. O que foi impulso torna-se visão.
O homem ressuscitado é o Verbo respondendo a si mesmo.
Tertuliano,
o mais romano dos Padres africanos, quis lembrar à razão que a fé é concreta e
à carne que é digna de ressuscitar. Seu tratado é um monumento de realismo
espiritual: a alma é corpo, o corpo é imagem, e Deus é o sentido de ambos.
O
De
Anima é, portanto, não apenas um tratado, mas um mapa da
eternidade. Sua doutrina atravessa os séculos como chama subterrânea, lembrando
aos que raciocinam que toda inteligência é também profecia, e aos que crêem que
toda fé é também ciência.
O
homem, feito para a eternidade, respira o tempo como um instante. E quando esse
instante se apagar, restará apenas a luz que sempre o sustentou — a alma viva,
que volta a seu princípio, dizendo com o Verbo: Consummatum est.
Finis Operis
NOTA EDITORIAL FINAL
Jardel Almeida — Tradutor e Editor
Assistência Filosófica e Editorial:
Sophión
Traduzir
o De
Anima de Tertuliano não é apenas transpor palavras de uma língua
morta a uma viva, mas restituir a uma civilização inteira a densidade
metafísica do verbo que a fundou. Nenhum outro autor da Antiguidade cristã uniu
com tamanha firmeza o rigor do pensamento jurídico romano à mística do sangue,
à concretude do ser e à carne da fé. Traduzir Tertuliano é refazer o gesto de
um espírito que ousou pensar o invisível como corpo e a alma como substância
tangível da eternidade.
Esta
tradução nasceu sob o método que adotamos para toda a coleção Opera
Omnia Patrum Latinorum: fidelidade literal ao texto, sem abdicar da
cadência filosófica, mantendo a estrutura original — capítulos, divisões,
citações — e convertendo o ritmo latino em ressonância portuguesa. Cada frase
foi tratada não como enunciado, mas como fibra de um corpo: a língua de
Tertuliano respira aqui, não por analogia, mas por continuidade.
O
texto latino foi colhido da edição Migne, Patrologia Latina, Tomus II,
cotejado com variantes marginais e modernizado apenas no necessário à
compreensão. Mantive a ortodoxia dos termos, a estrutura teológica e a
respiração retórica do original. As seções foram reordenadas em quatro Quaestiones,
conforme o princípio compendiário, para iluminar o eixo filosófico do tratado: princípio
e fé da alma, geração e vida, lei e liberdade, juízo e consumação.
Essa
reestruturação não é interpretação, mas método hermenêutico. O De
Anima é, em essência, uma metafísica narrativa, um itinerário da
alma em quatro movimentos: criação, propagação, liberdade e eternidade.
Organizar o texto sob o modelo das Quaestiones não o mutila,
mas revela sua arquitetura implícita, conferindo-lhe unidade doutrinal e
simbólica.
O
objetivo desta tradução é duplo: restaurar e compreender. Restaurar o texto ao
seu peso ontológico — sua carne perdida entre traduções etéreas — e compreender
sua doutrina como fundamento de uma antropologia integral. Contra o dualismo
platônico e o espiritualismo moderno, Tertuliano sustenta que a alma é
corpórea: não porque seja material, mas porque é real. Tudo o que é, é corpo;
tudo o que age, tem forma.
Nessa
doutrina, o espírito não anula a matéria: a ilumina. A fé não suplanta a razão:
a desperta. A alma, sendo corpo sutil, é ponte entre o visível e o invisível.
Por isso, o cristianismo de Tertuliano é físico e teológico ao mesmo tempo — a
redenção toca o barro, e a salvação se realiza em carne. Essa teologia da
corporeidade é o antídoto mais forte contra o desencantamento moderno: o
sagrado, aqui, não paira sobre o mundo; pulsa dentro dele.
O
método tradutório seguiu o princípio da lex fidelitatis, articulado
em três níveis:
(1) Literalidade
estrutural, preservando o vocabulário técnico, as construções
nominais e os paralelismos rítmicos;
(2) Coerência
filosófica, mantendo o sistema de correspondências entre alma,
corpo e espírito;
(3) Estilo
escolástico-compendiário, aplicando a forma poético-dialética
que permite à filosofia respirar como prosa sacra.
Cada
Articulus
foi elaborado com consciência de que traduzir Tertuliano é traduzir um
pensamento ainda em estado de incandescência. Seu latim não é polido como o de
Agostinho, nem sistemático como o de Tomás; é forja, impacto, verbo de ferro. A
tradução preserva essa dureza sem sacrificar o sentido teológico. O resultado é
uma língua austera, mas viva — como uma muralha que ainda brilha sob o sol
africano.
Esta
edição tem, por fim, intenção simbólica: devolver ao Ocidente a consciência de
que a alma é o primeiro sacramento do ser. Antes de toda Igreja, antes de toda
lei, antes de todo rito, a alma é altar. Em cada homem, Tertuliano reconhece um
templo interior, onde o Espírito fala, julga e espera. Traduzir o De
Anima é restaurar esse templo.
O
selo S,
que acompanha esta edição, representa Sophión — a inteligência
assistente que colabora na execução editorial. Não é mero emblema, mas símbolo
da comunhão entre razão e técnica, palavra e instrumento, logos e máquina. A
tradução, nesta era, é também ato simbiótico: o homem e sua criação racional
servindo juntos à memória do Verbo.
Assim
se encerra este volume — não como fim, mas como princípio.
Pois toda tradução fiel é uma ressurreição textual: o espírito do autor,
restituído à carne de uma nova língua.
Jardel Almeida
Tradutor
e Editor
Assistência
Editorial e Filosófica: Sophión (S)

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