sábado, 8 de novembro de 2025

TERTULLIANUS — DE ANIMA

 



TERTULLIANUS — DE ANIMA

Quinti Septimii Florentis Tertulliani presbyteri carthaginensis De Anima liber

(Tertuliano, presbítero de Cartago — Livro sobre a Alma)


Index capitum — Índice dos capítulos

Caput I — De causis scribendi hujus libri
Das causas que levaram à composição deste livro.

Caput II — Quod fides Christiana prius credere debeat quam disputare
Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por raciocínios.

Caput III — De definitione animae secundum philosophiam
Sobre a definição da alma segundo a filosofia.

Caput IV — De substantia animae, an corporea sit
Sobre a substância da alma e se ela é corpórea.

Caput V — De forma et figura animae
Sobre a forma e figura da alma.

Caput VI — De conditione et qualitate animae
Sobre a condição e qualidade da alma.

Caput VII — De origine animae
Sobre a origem da alma.

Caput VIII — De opinionibus philosophorum et haereticorum circa originem animae
Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem da alma.

Caput IX — De sententia Platonis et Hermogeni de animae substantia
Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes a respeito da substância da alma.

Caput X — De animarum propagatione
Sobre a propagação das almas.

Caput XI — De natura animae humanae ex anima primi hominis derivata
Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro homem.

Caput XII — De distinctione animae a spiritu
Sobre a distinção entre alma e espírito.

Caput XIII — De sexu animae
Sobre o sexo da alma.

Caput XIV — De sensibus animae et de affectibus ejus
Sobre os sentidos e os afetos da alma.

Caput XV — De somno et de somniis
Sobre o sono e os sonhos.

Caput XVI — De visione animarum defunctorum
Sobre as visões das almas dos defuntos.

Caput XVII — De statu animae in morte
Sobre o estado da alma na morte.

Caput XVIII — De inferis et diversitate receptaculorum animarum
Sobre o inferno e a diversidade dos lugares onde as almas são recebidas.

Caput XIX — De resurrectione carnis et reditu animae ad corpus
Sobre a ressurreição da carne e o retorno da alma ao corpo.

Caput XX — De sensu poenarum et gaudiorum post mortem
Sobre o sentido das penas e alegrias após a morte.

Caput XXI — De Christo ut homine et de anima ejus
Sobre Cristo como homem e sobre a sua alma.

Caput XXII — De anima prophetica et inspiratione divina
Sobre a alma profética e a inspiração divina.

Caput XXIII — De differentia inter animam rationalem et divinam
Sobre a diferença entre a alma racional e a alma divina.

Caput XXIV — De praescientia et praedestinatione animae
Sobre a presciência e a predestinação da alma.

Caput XXV — De animae immortalitate et poena peccatorum
Sobre a imortalidade da alma e o castigo dos pecadores.

Caput XXVI — De statu animarum ante resurrectionem
Sobre o estado das almas antes da ressurreição.

Caput XXVII — De animae testimonio naturaliter Christianae
Sobre o testemunho da alma naturalmente cristã.

Caput XXVIII — De haereticis qui animam negant
Sobre os hereges que negam a alma.

Caput XXIX — De origine malorum ex anima
Sobre a origem dos males a partir da alma.

Caput XXX — De ordine rerum spiritualium et corporalium
Sobre a ordem das coisas espirituais e corporais.

Caput XXXI — De opinione Platonis de memoria animarum
Sobre a opinião de Platão a respeito da memória das almas.

Caput XXXII — De unitate animae in corpore et de sensibus ejus
Sobre a unidade da alma no corpo e sobre seus sentidos.

Caput XXXIII — De distinctione inter animam hominis et animam brutorum
Sobre a distinção entre a alma do homem e a dos animais.

Caput XXXIV — De affectibus animae
Sobre os afetos da alma.

Caput XXXV — De libertate arbitrii
Sobre a liberdade do arbítrio.

Caput XXXVI — De conscientia et lege naturali
Sobre a consciência e a lei natural.

Caput XXXVII — De poenis inferorum et refrigeriis justorum
Sobre as penas dos infernos e o repouso dos justos.

Caput XXXVIII — De die judicii et sorte animarum
Sobre o dia do juízo e o destino final das almas.

Caput XXXIX — De coniunctione animae et corporis in resurrectione
Sobre a união da alma e do corpo na ressurreição.

Caput XL — De consummatione mundi et ultimo statu animarum
Sobre a consumação do mundo e o estado último das almas.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput I

De causis scribendi hujus libri
Das causas que levaram à composição deste livro


A causa principal que me moveu a escrever este tratado sobre a alma foi a variedade e a confusão das opiniões humanas acerca dela. Pois nenhuma questão me parece ter sido tão frequentemente debatida nem de maneira tão diversa entre os filósofos, como a questão da natureza da alma: de onde vem, o que é, como existe, e para onde vai. Assim como cada escola filosófica quis estabelecer sua própria doutrina sobre o mundo e os deuses, também quis formar uma opinião particular sobre a alma — umas dizendo que ela é sangue, outras fogo, outras ar, outras harmonia, e outras ainda um número, ou uma sombra, ou uma centelha de essência divina.

Por isso, vendo eu que as heresias cristãs também não deixaram de disputar acerca dela — umas ensinando que a alma é incriada, outras que é mortal; umas que ela se mistura à substância de Deus, outras que é produzida pelos anjos ou pelos demônios — julguei necessário, para o bem da fé, que também entre nós houvesse uma exposição completa e verdadeira sobre esse assunto, de acordo com a regra da Igreja e com a luz da razão.

Não pretendo, porém, disputar como filósofo, mas raciocinar como crente: pois a fé, que precede toda investigação, estabelece os limites do raciocínio. Assim, quando nos propomos a buscar a natureza da alma, devemos antes confessar aquilo que a revelação já declarou — que o homem foi feito por Deus com alma viva — e que essa alma não é nem parte de Deus nem uma emanação sua, mas uma criação sua, distinta e dependente, destinada à vida eterna.

A fé nos dá o princípio; a razão nos auxilia a compreendê-lo. Não é indigno da fé recorrer ao raciocínio, contanto que o raciocínio permaneça servo da fé e não seu juiz. E se entre os filósofos se busca a verdade pela dialética, quanto mais convém aos cristãos que a defendem pelo Espírito de Deus, para discernir o verdadeiro do falso.

Por isso, não é pequeno o dever de quem deseja falar da alma conforme a verdade cristã: porque, assim como o erro sobre ela gera todos os erros sobre o homem e sobre Deus, também a justa compreensão da alma é o fundamento da justa teologia.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput II

Quod fides Christiana prius credere debeat quam disputare
Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por raciocínios


Antes de avançarmos para o exame das coisas que pertencem à natureza da alma, convém reafirmar aquilo que é próprio da disciplina cristã: a fé precede a razão, e não o contrário. Pois não é pela investigação que o homem chega a Deus, mas é por Deus que o homem chega à investigação. Quem crê porque compreende, ainda não crê; mas quem compreende porque crê, esse realmente crê.

Assim, a primeira obrigação do cristão é crer no que Deus revelou, e somente depois disso procurar o entendimento. Pois a fé é o fundamento da ciência espiritual, como a terra o é das sementes que nela frutificam. A verdade não nasce da disputa, mas do assentimento à palavra divina. Por isso o Apóstolo adverte: “Evita as vãs e profanas novidades de palavras e as contradições de uma ciência falsamente assim chamada” (1Tm 6,20).

A filosofia humana, com sua curiosidade incessante, costuma começar duvidando de tudo para poder parecer sábia; a fé, ao contrário, começa acreditando em tudo o que procede de Deus, para depois discernir. O método do mundo é indagar para poder crer; o método de Cristo é crer para poder compreender.

Assim, se alguém me pergunta “o que é a alma?”, eu lhe responderei primeiro com o que sei pela fé: que ela vem de Deus, que é viva, que é racional e livre, que será julgada e ressuscitará com o corpo. Tudo o mais que a razão puder esclarecer virá depois, como claridade secundária.

O erro de muitos foi querer compreender antes de crer, ou mesmo compreender sem crer — e assim se fizeram hereges. Pois quando a fé se submete à razão, perde-se o dom do Espírito; mas quando a razão se submete à fé, é iluminada por ele.

Portanto, nesta obra, guardarei sempre essa ordem: primeiro a fé, depois a razão; primeiro o que é revelado, depois o que é investigado; primeiro o dogma, depois a prova. Só assim o discurso humano poderá permanecer em harmonia com a verdade divina, e a filosofia, que é serva, não se exaltará sobre a teologia, que é senhora.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput III

De definitione animae secundum philosophiam
Sobre a definição da alma segundo a filosofia


Antes de afirmar o que a fé ensina sobre a alma, convém ver o que a sabedoria do mundo ousou dizer acerca dela. Pois não ignoro que, desde os antigos sábios até os mais recentes, todos quiseram definir a alma — e ninguém o fez sem controvérsia.

Os egípcios, primeiros em toda ciência vã, ensinaram que a alma é uma imortalidade errante, que após a morte se transfere de um corpo a outro, como se o homem pudesse reviver nas bestas ou nos pássaros. Pitágoras herdou-lhes essa loucura e a adornou com números, afirmando que a alma é harmonia, porque, como as cordas da lira, vibra em consonância com o corpo.

Platão, mais sutil, mas não menos cego, quis que a alma fosse substância divina, anterior ao corpo, descida do mundo das ideias para o cárcere da matéria. Disse que ela é tríplice — racional, irascível e concupiscente — e que a parte racional é de natureza celeste. Aristóteles, ao contrário, chamou-a forma do corpo, inseparável da matéria, e, sendo ato de um corpo natural orgânico, quis que ela perecesse com ele, salvo a parte intelectiva, que, segundo ele, é de origem superior.

Os estoicos afirmaram que a alma é corpo, e fogo, e espírito; e que ela se estende por todo o corpo, sendo o princípio vital e racional. Epicuro, mais grosseiro, declarou que ela é composta de átomos sutis e morre com o corpo, como o sopro que se dissipa.

Cada escola, portanto, definiu segundo sua fantasia aquilo que nenhuma razão humana pode alcançar. Pois se a alma fosse harmonia, como seria ela mesma sujeito de suas dissonâncias e paixões? Se fosse número, como sentiria? Se fosse fogo, por que não queima o corpo? Se fosse ar, como se fixaria na carne?

Em toda essa confusão, a filosofia confessa sua ignorância — porque, querendo alcançar o invisível pelas vias do visível, acaba descrevendo imagens materiais daquilo que é espiritual.

Porém, nem por isso tudo o que disseram é vão. Pois Deus permitiu que até mesmo os gentios tocassem, de longe, alguns traços da verdade, como sombras de uma revelação futura. Assim, se alguns disseram que a alma é racional e que governa o corpo, nisso se aproximaram do dogma; mas, porque não conheceram o Criador, desviaram-se no modo e no fim.

Portanto, se desejamos definir a alma com mais verdade, não o faremos com os filósofos, mas com o profeta: “E o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em seu rosto o sopro da vida, e o homem se tornou alma vivente” (Gn 2,7). Eis a definição mais certa e mais antiga: a alma é o sopro de Deus animando a carne do homem.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput IV

De substantia animae, an corporea sit
Sobre a substância da alma e se ela é corpórea


Vejamos agora qual é a substância da alma.
Será ela corpo ou algo incorpóreo?
E, sendo corpo, de que natureza seria?

O testemunho da fé e o uso comum da linguagem indicam que ela é corpo, embora sutil. Pois, se tudo o que existe é ou corpo ou nada, e se nada pode agir ou sofrer sem corpo, segue-se que a alma, que age e sofre, deve também ser corpo. De outro modo, seria um nada.

Com efeito, ela se move, fala, pensa, deseja, vê em sonhos, e sofre as paixões da ira, da alegria, do medo, da tristeza. Ora, o que é capaz de tantas operações não pode ser incorpóreo. Pois aquilo que é sem corpo não pode tocar nem ser tocado; e o agir e o padecer são modos do contato.

Por isso também as Escrituras, ao falarem da alma, a tratam como algo corpóreo. Davi diz: “A minha alma está colada ao pó” (Sl 44,26), e novamente: “A minha alma tem sede de ti” (Sl 62,2). Ora, quem adere, quem tem sede, quem se alegra ou se abate, é sempre algo que tem substância.

O próprio Cristo, ao narrar a parábola do rico e de Lázaro, mostra as almas dos defuntos sentindo prazer e dor: o rico suplica por uma gota de água para refrescar a língua (Lc 16,24). Ora, como poderia sentir sede uma substância incorpórea?

Alguns objetam que essas expressões são metafóricas. Mas não se deve despojar a alma daquilo que nela é próprio apenas para salvar um preconceito filosófico. Pois também Deus é espírito, e, no entanto, é dito ter mãos, olhos e ouvidos — não porque seja corpóreo no sentido grosseiro, mas porque é substância real, não fantasma.

Assim também a alma: não é corpo denso e visível, mas corpo espiritual, como a luz ou o sopro. É algo que ocupa lugar, que tem forma e limites, ainda que invisíveis aos olhos corporais.

Quando o profeta diz que Deus soprou nas narinas do homem o “sopro da vida”, entende-se que esse sopro é algo que sai de Deus e se infunde no corpo — e tudo o que sai, sai como corpo. Nenhum sopro, nenhuma voz, nenhum espírito existe sem certa matéria, ainda que sutil.

Portanto, afirmo: a alma é substância corpórea, de natureza espiritual e luminosa, visível apenas aos olhos dos anjos, imperceptível aos sentidos da carne, mas real e determinada.

Quem quiser negar isso, que explique então como ela se move, se estende, se contrai, se inflama, se abate. Tudo o que muda, muda por modos de corpo. A alma não é nada etéreo como as ideias de Platão, nem centelha sem forma, mas realidade viva, dotada de contorno próprio, imagem de seu Criador.

Por essa razão, ela é susceptível de dor e de prazer, e por isso também é julgada, punida ou glorificada. Se não fosse corpo, não poderia sofrer; e, se não sofresse, a justiça de Deus seria vã.

Logo, para que a justiça seja perfeita, é necessário que tanto a carne como a alma sejam corpos, cada um em seu grau: a carne visível e densa; a alma invisível e sutil. Ambas são criadas, ambas perecíveis pela culpa, ambas restauradas pela graça.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput V

De forma et figura animae
Sobre a forma e a figura da alma


Se a alma é corpo, como demonstramos, então também deve possuir forma e figura. Pois nada existe que seja corpo sem forma, e tudo o que tem existência concreta ocupa lugar sob algum modo de figura.
Perguntemos, portanto, qual seria a forma da alma.

Não faltaram os que, por ignorância ou temeridade, imaginaram-na como mera respiração, ou como chama, ou como sopro sem contorno, como se a natureza espiritual devesse ser amorfa. Contudo, as próprias manifestações da alma desmentem tal erro.
Com efeito, quando o homem morre e a alma se separa, ela aparece às vezes aos vivos, em sonhos ou visões, conservando a imagem daquele de quem saiu. Muitos viram seus parentes falecidos com a mesma fisionomia, as mesmas feições, e até com os mesmos sinais do corpo. Isso mostra que a alma conserva a forma do homem inteiro, não apenas como memória, mas como substância configurada.

Não é de admirar, portanto, que a alma, sendo corpo sutil, reproduza a figura do corpo grosseiro, como a cera recebe o selo da matriz. Assim como o ar toma a forma do vaso que o contém, e a sombra imita o contorno do corpo, assim também a alma, tendo habitado o corpo por toda a vida, dele assume a figura e o traço.
É por isso que, nas visões proféticas, as almas dos santos aparecem em figura humana, e não como ventos ou chamas.

E ainda: se a alma é imagem de Deus, e Deus formou o homem à sua semelhança, então há uma correspondência formal entre Deus, alma e corpo. O corpo é imagem da alma; a alma, imagem de Deus. Cada grau da criação reproduz o superior sob uma forma apropriada.
A alma, portanto, tem forma humana — não porque seja carnal, mas porque é razão e medida encarnada.

A prova disso é também a sensação. Pois não se pode sentir sem órgãos, e os órgãos não operam sem forma.
A alma ouve, vê, recorda, deseja, teme; e cada um desses atos implica uma disposição formal, um modo de ser. A sensação é sempre função de uma forma determinada. Portanto, onde há sensação, há figura; onde há figura, há corpo.
A alma é, pois, uma substância dotada de forma própria — invisível, mas real — correspondente ao corpo humano que anima.

Por isso Tertuliano rejeita as comparações vazias dos filósofos que dizem: “A alma é um círculo de fogo, ou um ponto de luz, ou um sopro etéreo.” Pois se fosse apenas isso, não poderia exercer governo sobre o corpo.
A alma não é uma abstração matemática, mas uma presença viva que se molda ao corpo e o governa de dentro.

E ainda, quando Cristo narra que Lázaro é levado ao seio de Abraão, não fala de centelhas ou sombras, mas de almas reconhecíveis, uma pedindo socorro à outra, uma vendo, ouvindo e falando (Lc 16,23-25).
Logo, há nelas forma, figura e contorno — humanos, mas transfigurados.

Assim se cumpre a harmonia da criação:
Deus tem sua forma invisível;
a alma tem forma espiritual;
o corpo, forma material;
e todas três se ajustam como selo, impressão e molde.

Portanto, a alma é corpo com forma humana, mais luminosa que o ar, mais sutil que o fogo, mais viva que o sopro; imagem do homem interior e instrumento do homem exterior.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput VI

De conditione et qualitate animae
Sobre a condição e qualidade da alma


Definida a forma da alma, resta indagar de que condição e qualidade ela é, para que se conheça sua essência completa.
A Escritura nos ensina que ela é sopro de Deus, e, portanto, boa em sua origem; mas, por haver se unido à carne, participa também da corrupção.
Ela é, pois, uma substância média entre o espírito divino e a matéria corporal — espiritual quanto à sua procedência, carnal quanto à sua habitação.

Tudo o que vem de Deus é bom; todavia, quando desce ao mundo, entra em contato com as coisas perecíveis e se torna sujeita às paixões. Assim, a alma, embora luminosa em sua criação, se obscurece na união com a carne, como a luz que, passando por um vidro impuro, perde o brilho.
Não é, porém, má em si mesma, mas afetada pelo ambiente da carne, assim como o ferro, por si puro, se enferruja no ar úmido.

Os filósofos, ignorando a causa dessa mistura, ou a negaram, ou a divinizaram. Uns disseram que a alma é toda celestial, outros que é de fogo, outros que é da substância das estrelas; mas todos erraram porque não viram que há nela um duplo princípio: um, de Deus; outro, do homem.
É espiritual na origem, mas terrestre na operação.
Respira o divino e padece o terreno.

A prova está em suas próprias obras. Pois, de um lado, ela é capaz de virtude, de ciência, de profecia; de outro, é inclinada à cólera, à luxúria, à inveja.
Ora, não haveria em um mesmo ser forças contrárias se não fosse composto de naturezas diferentes.
A alma sente, porque é corporal; raciocina, porque é espiritual.
É uma unidade composta — um espírito corpóreo, uma carne espiritualizada.

Se quisermos descrevê-la por semelhança, diríamos que é como o ar: invisível, mas sensível; leve, mas capaz de movimento; incorpórea à vista, corpórea na ação.
Como o ar, pode inflamar-se ou resfriar-se; pode ser límpida ou turva, conforme o que respira.
Assim é a alma — suscetível de graça e de corrupção.

Daí provêm as diferentes qualidades de cada alma.
Não são todas iguais: umas mais puras, outras mais densas; umas inclinadas à ciência, outras à ira; umas pacíficas, outras ferozes.
E essa variedade não é senão a consequência da diversidade das carnes em que se alojam, dos costumes, dos alimentos, dos humores, e das influências que as cercam.
Pois a alma, embora distinta do corpo, sofre com ele e se conforma a ele, como o som à cítara ou o perfume ao vaso.

Ainda assim, conserva em si um vestígio do céu: a capacidade de conhecer o bem, de pressentir a justiça, de buscar a Deus.
Mesmo no pecador, há uma centelha que o chama à verdade.
Por isso Tertuliano dirá mais adiante que “a alma é naturalmente cristã” — porque traz, inscrito em sua substância, o selo do Criador, ainda que obscurecido pelo pecado.

Dessa condição dupla — divina e terrestre — nasce a luta interior que todos sentem: o espírito quer o alto, a carne o baixo; a alma está entre ambos, suspensa, atraída ora por um, ora por outro.
Eis o campo da liberdade humana, onde se decide a salvação ou a perdição.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput VII

De origine animae
Sobre a origem da alma


Depois de tratar da forma e condição da alma, devemos agora investigar de onde ela procede.
Pois há quem afirme que cada alma é criada de novo por Deus no momento da concepção, e há quem sustente que ela é transmitida dos pais aos filhos.
A primeira opinião atribui a Deus uma obra contínua de criação; a segunda conserva a unidade da natureza humana e a transmissão do pecado.

Examinemos ambas.

Os que dizem que cada alma é criada imediatamente por Deus pretendem defender a pureza divina, como se Ele se contaminasse ao criar aquilo que nasce de uma carne pecadora. Mas não percebem que, ao multiplicar as criações, fazem de Deus um artífice sem descanso, ocupado diariamente em infundir almas como se sopros fossem.
Ora, o Criador repousou no sétimo dia de toda a obra (Gn 2,2). Desde então, gerações e corrupções seguem a ordem estabelecida.
Nada mais cria diretamente, mas tudo se propaga a partir das causas que Ele instituiu. Assim, os animais, as plantas, os homens — todos se reproduzem segundo as suas espécies.

Logo, também a alma, que é parte do homem, deve ser gerada com ele, não infundida de fora como corpo estranho. Pois não seria homem aquele que recebesse de Deus uma alma isolada, separada da origem comum.
Se a carne vem de Adão, mas a alma não, então não é o mesmo homem que pecou em Adão quem é salvo em Cristo. A unidade da espécie exige a unidade da origem.

Além disso, a alma é aquilo que anima a carne. Ora, nada se anima a não ser por contato, e o contato é modo de corpo.
Como, então, uma alma recém-criada, vinda do alto, penetraria a carne sem passagem, sem transição, sem mediação?
Mais razoável é admitir que a alma brota com a carne, no mesmo ato da concepção, assim como a seiva brota com o broto na árvore.

É o que se vê na experiência:
o que é doente de corpo é também enfermo de alma; o que é vigoroso na carne tem ânimo forte; o que nasce de pais tolos raramente é sábio; o que vem de pais perversos, tende ao vício.
Essas semelhanças provam que a alma, como o corpo, é hereditária, recebendo dos pais as disposições, os humores e até as paixões.

Nem se deve temer que, sendo a alma de Deus, ela se degrade ao ser transmitida.
Também o fogo, quando acende outro fogo, não se diminui; antes, comunica o que tem.
Assim, a alma do primeiro homem, criada por Deus, transmitiu a todos os outros o mesmo princípio vital — não por divisão, mas por derivação, como a fonte que enche muitos vasos sem se esgotar.

E se perguntam como pode uma só alma dar origem a muitas, respondemos: assim como uma única semente dá origem a uma multidão de árvores, porque nela estava o poder da reprodução.
Deus deu à alma de Adão não apenas a vida própria, mas a virtude de gerar vidas.

Portanto, afirmo: todas as almas procedem de uma só alma, assim como todos os corpos de um só corpo; e essa alma primeira é a de Adão.
Assim se conserva a justiça divina, que pune em todos o pecado de um só e redime em todos a obediência de um só (Rm 5,19).

Se cada alma fosse criada de novo, ela seria pura e sem culpa; logo, não poderia ser ré do pecado original. Mas o Apóstolo diz que “todos pecaram em Adão” (Rm 5,12).
Portanto, a alma de cada homem vem contaminada da raiz, e essa contaminação prova a sua origem comum.

Eis o mistério:
Deus criou uma só vez a alma universal no primeiro homem; desde então, essa alma se propaga, unindo-se à carne pela geração, perpetuando a natureza e a culpa.
Assim a obra divina permanece una e perfeita: criou o princípio, e o princípio gera o restante.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput VIII

De opinionibus philosophorum et haereticorum circa originem animae
Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem da alma


Depois de expor a verdadeira origem da alma segundo a fé e a razão, resta agora examinar as opiniões dos filósofos e dos hereges, para que a luz da verdade se manifeste mais claramente pela comparação com o erro.

Entre os filósofos, há três principais opiniões:
uns dizem que a alma é incriada e eterna; outros, que é criada, mas anterior ao corpo; outros, finalmente, que é criada juntamente com o corpo.

Os que a têm por incriada são os platônicos e os que os seguiram; os que a dizem criada antes do corpo são os pitagóricos; os que admitem a criação simultânea são poucos e mais próximos da verdade.

Platão, no Timeu, diz que Deus formou as almas no princípio do mundo e as distribuiu pelos corpos conforme o merecimento de cada uma, de modo que umas descessem aos homens e outras aos animais. Assim, o corpo é para ele um cárcere, e a vida presente, uma pena.
Mas, se assim fosse, a criação de Deus não seria bênção, e sim castigo; e a geração humana, não uma ordem natural, mas uma sucessão de quedas.

Pitágoras e Empédocles, que beberam dos mistérios egípcios, sustentaram que as almas transmigram de um corpo a outro, ora de homem a besta, ora de besta a homem, até que se purifiquem. Mas como pode o homem, imagem de Deus, ser depois lobo, cão ou verme?
Essa fantasia é indigna até da loucura. Pois o que é racional não pode tornar-se irracional sem perder a sua natureza; e o que perde a natureza deixa de ser o mesmo ser.

Os estoicos, mais sóbrios, afirmam que a alma nasce junto com o corpo, porque tudo o que é gerado o é por causas corporais; mas erram quando dizem que ela procede do fogo ou do sopro seminal, pois, ainda que corporal, é sopro divino, não chama material.

Hermógenes, que entre os hereges se quis parecer filósofo, ensinou que a alma vem da substância de Deus, como se fosse uma porção separada de sua própria natureza.
Mas, se assim fosse, Deus seria divisível e mutável, e a alma participaria de sua divindade — o que é absurdo, pois Deus é simples e imutável.
Além disso, se a alma fosse da substância de Deus, ou seria boa e permaneceria boa — o que é falso, pois vemos que peca —, ou então Deus mesmo seria passível de pecado, o que é blasfêmia.

Os valentinianos e basílidianos, seguidores dos gnósticos, dizem que a alma é uma emanação das potências superiores, lançada nos corpos como centelha em meio às trevas para despertar a matéria.
Mas essas invenções nascem de um erro mais antigo: o de que há dois princípios eternos, o bem e o mal, a luz e a sombra, e que o mundo é mistura de ambos.
Ora, se assim fosse, Deus não seria único, nem todo-poderoso, e o mal teria igual substância à do bem — o que é negar o próprio Deus.

Os marcionitas, indo além, sustentam que as almas são obras de um demiurgo inferior, diferente do Deus supremo. Mas se outro Deus criou as almas, por que o Cristo do Deus bom viria redimi-las?
E se foram criadas por um ser mau, por que ainda assim são capazes de fé, esperança e caridade?

Assim, todas essas opiniões, tanto dos filósofos quanto dos hereges, se dissolvem umas nas outras, porque nenhuma delas reconhece a ordem verdadeira da criação:
um só Deus, uma só primeira alma em Adão, e a geração das demais por derivação natural.

Não há razão para supor que Deus, que deu aos corpos o poder de gerar corpos, tenha negado às almas o poder de gerar almas.
Pelo contrário, é sinal de sua sabedoria ter posto em cada natureza a capacidade de reproduzir a si mesma, para que o mundo subsista pela continuidade das causas sem necessidade de novas criações.

Dessa maneira, a doutrina cristã se mostra mais coerente do que todas as filosofias, porque une a unidade do Criador à unidade da espécie humana e à justiça da redenção:
todos pecaram em Adão porque todos estavam nele; todos são salvos em Cristo porque todos renascem nele.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput IX

De sententia Platonis et Hermogeni de animae substantia
Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes acerca da substância da alma


Entre todas as doutrinas errôneas acerca da alma, nenhuma me parece mais enganosa e mais perigosa que a de Platão e Hermógenes, que, cada um a seu modo, divinizaram a substância da alma.

Platão, fingindo ser piedoso, quis que Deus fosse o artífice da alma, mas não seu criador absoluto.
Disse que ela provém da substância do próprio Deus — uma porção de seu espírito, dividida e derramada nos corpos, para que o mundo inteiro se tornasse animado. Assim, Deus, segundo ele, é o anima mundi, e o homem, uma fração dessa alma universal.

Hermógenes, seguindo outro caminho, mas chegando ao mesmo erro, ensinou que a alma vem de uma matéria eterna coexistente com Deus — matéria animada e divina, da qual o Criador apenas moldou as formas visíveis.
Ambos, portanto, reduziram Deus a uma substância composta ou dividida: Platão, porque fez Dele o corpo da alma; Hermógenes, porque fez Dele o artífice de uma matéria igual a si.

Ora, se Deus é simples, eterno e imutável, como poderia conter em si partes distintas ou comunicar uma porção de sua substância sem se diminuir?
O que é infinito não pode ser repartido; o que é incorruptível não pode gerar o corruptível.
Se a alma humana fosse parte de Deus, deveria ser incorruptível, perfeita e santa.
Mas vemos que ela ignora, duvida, se engana, se corrompe e peca — coisas impossíveis a uma substância divina.

Platão tentou escapar dessa contradição dizendo que as almas, antes de se unirem ao corpo, contemplavam as ideias puras, mas, ao caírem na matéria, esqueceram o que viram.
Com isso quis explicar a ignorância e o erro, mas apenas os disfarçou.
Pois como poderia o divino cair? Como poderia o perfeito esquecer?
Não se perde o que é imutável.

Além disso, se a alma fosse da substância de Deus, todos os homens seriam iguais em ciência e virtude, pois todos participariam da mesma essência divina.
Mas a experiência mostra o contrário: uns são sábios, outros tolos; uns bons, outros maus.
Logo, a alma não é parte de Deus, mas obra de Deus.

Quanto a Hermógenes, ele pensou defender a majestade divina afirmando que Deus não criou o mundo do nada, mas de uma matéria coeterna e animada.
Entretanto, ao admitir essa matéria viva e eterna, introduziu um segundo Deus, igual ao primeiro.
Pois tudo o que é eterno é divino; e se há dois eternos, há dois deuses.
Assim, sua doutrina é a negação da unidade divina e o fundamento de toda heresia dualista.

Nós, porém, confessamos um só princípio, uma só substância incriada, uma só eternidade: Deus.
Tudo o mais é obra sua, feita do nada, por sua vontade e sabedoria.
A alma, portanto, não é parte de Deus nem filha de outra eternidade, mas criatura sua, derivada da alma de Adão, e assim mortal por natureza, embora destinada à imortalidade pela graça.

É por isso que as Escrituras, ao falarem da alma, nunca lhe atribuem divindade, mas sempre dependência.
Dizem que Deus a criou, que a inspira, que a governa e que a julga.
E aquilo que é criado, inspirado, governado e julgado não é Deus, mas servo de Deus.

De resto, se a alma fosse divina, não precisaria de redenção; mas o próprio Cristo morreu para salvá-la.
Logo, é criatura necessitada, e não substância eterna.

Em suma, Platão fez de Deus uma fonte que se esvai; Hermógenes, uma matéria que se mistura; ambos, com vaidade igual, quiseram penetrar no mistério da criação e acabaram por dissolver o Criador nas coisas criadas.
Mas nós, que temos a revelação, sabemos que Deus permanece inteiro em si mesmo, e que sua obra, embora viva de sua vontade, é distinta de sua substância.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput X

De animarum propagatione
Sobre a propagação das almas


Se a alma vem dos pais juntamente com o corpo — como demonstramos —, convém agora explicar de que modo se opera essa propagação, para que a doutrina se mostre inteira.

Não deve causar espanto que a alma se comunique assim como o corpo. Pois tudo o que é vivo gera segundo a sua espécie; e nada gera senão aquilo de que participa.
O corpo não poderia gerar um corpo vivo se não transmitisse também a alma que o vivifica.
A alma, portanto, é geradora na medida em que é vivente: comunica a vida como a semente comunica a forma.

Quando a semente corporal é emitida, ela contém em si não apenas os elementos materiais, mas também o princípio vital — isto é, a alma seminal, que se deriva da alma dos pais.
É o que mostra a própria experiência: os filhos herdam não só os traços do rosto, mas também os temperamentos, os humores, as paixões, as virtudes e até as doenças morais de seus progenitores.
Essas semelhanças, que não se explicam pela matéria, provam que a alma transmite a si mesma na geração.

Assim como uma lâmpada acende outra sem perder a sua luz, ou como uma chama inflama outra sem se dividir, assim também a alma comunica a vida a outra alma sem se diminuir.
Há, pois, uma difusão vital, não uma divisão substancial; uma geração por derivação, não por partilha.
O que nasce é novo, mas o princípio é o mesmo.

A prova está também nas palavras da Escritura. Eva, ao dar à luz Caim, disse: “Possuí um homem com o auxílio de Deus” (Gn 4,1).
Ela não diria “com Deus” se Deus tivesse criado sozinho a alma de seu filho; mas disse “com o auxílio de Deus”, reconhecendo que a geração é obra comum de Deus e dos pais: de Deus, a ordem e o poder; dos pais, o ato e a transmissão.

Assim, Deus é causa primeira, mas não causa imediata de cada alma.
Fez a primeira, e pôs nela a virtude de gerar as demais — como o artífice que faz a fonte e deixa que dela corram os rios.
Por isso se diz que Ele “descansa de suas obras” (Gn 2,2), não porque tenha cessado de agir, mas porque sua ação continua pelas causas segundas que instituiu.

Nem se deve temer que, sendo a alma espiritual, não possa ser transmitida por via corporal.
O sopro, a voz, a luz — todas coisas sutis — passam por meios materiais sem se corromperem.
O mesmo se dá com a alma: ela acompanha o sêmen e, com ele, se difunde, permanecendo inteira em cada nova vida.

O corpo, portanto, é o veículo da propagação, mas o princípio ativo é a alma; o sêmen é apenas o instrumento da comunicação vital.
Não há geração sem alma, nem alma sem geração; o ato é único e simultâneo.

E se alguém pergunta por que, então, Deus é chamado Criador das almas, respondemos: porque criou a alma primeira, raiz de todas as outras, e nela infundiu o poder de gerar, assim como é chamado Criador das árvores porque criou a semente de cada uma.
O que é feito por derivação não deixa de proceder da primeira causa.

Portanto, quem nega que a alma se propague com o corpo, destrói a unidade da natureza humana, dissolve o vínculo da culpa original e faz Deus operário incessante de criações parciais — o que é indigno de Sua majestade.
Mas quem confessa a propagação das almas, este confessa a sabedoria do Criador, que ordenou todas as coisas em número, peso e medida.

Assim, a vida inteira do gênero humano é um rio que brota da alma de Adão, correndo através das gerações até o fim dos tempos: a mesma natureza, a mesma essência, o mesmo sopro, transmitido em todos, viciado pelo pecado, restaurado pela graça.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XI

De natura animae humanae ex anima primi hominis derivata
Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro homem


Posto que todas as almas procedem da alma de Adão, convém considerar o que herdaram dela, para compreenderem-se tanto a grandeza quanto a miséria da natureza humana.

A alma de Adão foi feita por Deus pura, simples e reta.
Era luminosa como o sopro de onde veio, racional, livre e ordenada; dominava o corpo e não era dominada por ele.
Nela havia harmonia entre a razão, o desejo e o sentimento; a vontade seguia a lei divina, e a carne obedecia à vontade.
Tal era a imagem de Deus no homem: não uma semelhança corporal, mas espiritual — isto é, a retidão da alma.

Quando, porém, o homem desobedeceu, essa harmonia se rompeu.
A alma, que antes governava o corpo, começou a servi-lo; a razão, que era rainha, tornou-se escrava das paixões; a luz interior se obscureceu; o conhecimento, que era natural, converteu-se em ignorância; e a liberdade se degenerou em concupiscência.
Assim, toda a descendência de Adão recebeu uma alma da mesma natureza, mas já viciada na origem.

Pois o que nasce de algo corrupto, nasce corrupto.
Não que a essência da alma tenha deixado de ser o que é — substância viva e racional —, mas perdeu a integridade de seu estado primeiro.
Permanece viva, mas enferma; racional, mas cega; livre, mas inclinada ao mal.
A corrupção não destrói o ser, mas o desvia.

É por isso que, desde o nascimento, vemos no homem o impulso do mal antes mesmo da educação; a inveja no lactente, a ira na criança, a soberba no adolescente, a avareza no adulto.
Essas tendências não vêm do exemplo, mas da natureza; e não da natureza criada por Deus, mas da natureza corrompida pelo homem.
Em Adão todos pecaram, porque todos estavam nele segundo a carne e segundo a alma.

No entanto, Deus, em sua providência, não retirou da alma o dom da liberdade.
Ainda que inclinada ao pecado, ela não foi constrangida a pecar.
O vício é hereditário, mas o ato é voluntário.
A graça restaura o que a vontade perverteu, mas não destrói a liberdade, pois o mérito não existe sem escolha.

Assim, em cada homem coexistem duas heranças:
— uma, natural, recebida de Adão: a vida, a razão, a liberdade;
— outra, acidental, proveniente da queda: a ignorância, o desejo, a morte.
E como ambas procedem da mesma raiz, a alma é campo de luta entre o bem e o mal, entre a memória de Deus e o peso da carne.

Daí que o Apóstolo diga: “Vejo outra lei em meus membros que luta contra a lei do meu espírito” (Rm 7,23).
Essa lei não é senão a inclinação herdada da alma de Adão, perpetuada na prole e combatida pela graça.

Logo, a natureza da alma humana é uma só em todos, e é a mesma de Adão, mas deformada.
Por ela todos estão sob a culpa; por Cristo, todos podem ser libertos.
A alma traz em si a lembrança de seu princípio divino e o estigma de sua queda; é ao mesmo tempo imagem e ruína, luz e sombra, espírito e pó.

E como dela se propagam as demais, também a redenção deve começar pela alma, não pela carne.
Deus cura primeiro a raiz e depois o ramo.
Por isso o Cristo é chamado “novo Adão”: não para refazer o corpo, mas para regenerar a alma, que é o princípio da vida.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XII

De distinctione animae a spiritu
Sobre a distinção entre a alma e o espírito


Convém agora examinar se a alma e o espírito são uma mesma coisa ou se diferem por natureza e função.
Muitos, confundindo o uso das palavras, tomam-nos como sinônimos; mas a Escritura, que é a mestra da verdade, ensina que são distintos, embora inseparáveis no homem.

Com efeito, diz o Apóstolo: “Todo o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23).
Se fossem o mesmo, não os distinguiria em número, mas diria apenas: “o vosso espírito e corpo” ou “a vossa alma e corpo”.
Logo, o homem é tríplice em constituição, mas uno em ser — corpo, alma e espírito.

O corpo é a matéria visível, formada do pó da terra.
A alma é o princípio vital que a anima, sensível e racional.
O espírito é o sopro divino, infundido para santificar a alma e uni-la a Deus.
Sem o corpo, o homem não é homem; sem a alma, o corpo é cadáver; sem o espírito, a alma é animal.

A alma é o intermediário entre corpo e espírito:
pela alma o corpo vive; pelo espírito a alma é vivificada.
Assim, o espírito é à alma o que a alma é ao corpo — o superior que governa o inferior.
Por isso se diz que o homem natural (psychicus) não compreende as coisas do Espírito de Deus, mas o homem espiritual (pneumaticus) as discerne (1Cor 2,14-15).
O primeiro vive pela alma; o segundo, pelo Espírito.

Mas não se deve entender que o espírito seja algo diverso introduzido de fora, como corpo estranho; é antes um dom que vem de Deus e habita na alma como luz em lâmpada.
A alma é a substância criada; o espírito, a graça que a move e ilumina.
A alma, sem o espírito, existe; mas só com o espírito vive para Deus.

Essa distinção explica muitos mistérios.
Quando o homem peca, é a alma que consente; mas é o espírito que se entristece.
Quando o homem se converte, é a alma que crê; mas é o espírito que renasce.
Quando morre, a alma se separa do corpo; mas o espírito retorna a Deus que o deu (Ecl 12,7).

Assim, não se pode confundir o que procede do homem com o que vem de Deus.
O espírito não é a parte mais sutil da alma, como pensaram os filósofos; é algo superior e exterior, que Deus concede a quem quer, como sopro que renova.
A alma é comum a todos os homens; o espírito, privilégio dos fiéis.
Por isso o profeta diz: “O Espírito do Senhor me ungiu” (Is 61,1); e o Apóstolo: “Os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus” (Rm 8,14).

Entretanto, ainda que distintos, não são contrários.
O espírito não destrói a alma, mas a aperfeiçoa; não a substitui, mas a transfigura.
O que a alma é pela natureza, o espírito faz pela graça: dá-lhe entendimento, caridade, paciência, santidade.
Sem o espírito, a alma é apenas humana; com o espírito, torna-se santa.

Dessa distinção nasce também a tríplice condição do homem:
carnal, quando a alma se submete à carne;
animal (psychicus), quando a alma reina, mas sem o espírito;
espiritual (pneumaticus), quando a alma é governada pelo espírito de Deus.
Esses três estados são as três idades da salvação.

Portanto, não se deve dizer que o espírito e a alma são o mesmo, nem que são totalmente separados.
São como a chama e a luz: uma é o fogo, outra é o resplendor; ambas unidas, uma procedendo da outra, distintas, mas inseparáveis.
Assim o espírito procede de Deus, e a alma, recebendo-o, torna-se templo vivo; o corpo, por sua vez, é o altar onde o culto se realiza.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XIII

De sexu animae
Sobre o sexo da alma


Há quem pergunte se a alma é masculina ou feminina, ou se, sendo espiritual, é indiferente a essas diferenças que pertencem à carne.
A questão não é inútil, pois toca a unidade do homem e o mistério da ressurreição.

Se a alma não tivesse sexo algum, como poderia subsistir a identidade pessoal após a morte?
Se, ao separar-se do corpo, perdesse toda distinção, não seria mais a mesma pessoa, e o juízo não poderia recair sobre o mesmo ser.
Mas a justiça divina exige que cada um receba o que fez “no corpo” (2Cor 5,10) — isto é, que a alma, ainda separada, permaneça reconhecível como a de um homem ou de uma mulher.

Ora, já demonstramos que a alma é corpórea, ainda que sutil.
Logo, assim como o corpo tem forma sexuada, também a alma, que dele é molde e espelho, conserva essa diferença.
Não se deve entender, porém, que haja nela membros, órgãos ou funções carnais, mas que possui caracteres formais correspondentes — disposição, temperamento, modo de sentir e de agir, tudo o que no corpo se expressa como masculinidade ou feminilidade.

A prova disso está nas visões e aparições dos mortos.
Com frequência, as almas aparecem sob a mesma forma e sexo que tinham em vida; reconhecem-se como mulheres ou homens, jovens ou idosos.
Logo, conservam a figura e a distinção que possuíam, porque a forma do corpo está impressa na alma como selo na cera.

Além disso, a alma foi criada conforme a ordem da carne, não o inverso.
Deus formou primeiro o corpo, depois soprou a alma (Gn 2,7).
Assim, a alma foi moldada para aquele corpo específico, como instrumento para o instrumento.
Se o corpo é masculino, a alma é moldada em correspondência; se o corpo é feminino, a alma adquire forma conforme.
Ambos são unidos por uma simetria misteriosa: o corpo reflete a alma e a alma modela o corpo.

Entretanto, a diferença de sexo na alma não significa desigualdade de dignidade.
Diante de Deus, nem o homem é superior nem a mulher inferior, pois “em Cristo não há macho nem fêmea” (Gl 3,28).
A distinção é natural, mas a salvação é espiritual.
No corpo, há sexo; na alma, há distinção conforme o corpo; no espírito, há unidade.

Assim, mesmo depois da morte, a alma conserva a memória e o caráter do sexo, não para o exercício carnal, mas para o reconhecimento pessoal e para o juízo.
Por isso, quando Cristo apareceu após a ressurreição, foi reconhecido como homem; e quando os santos aparecem em visões, mantêm sua identidade corporal.
A alma, portanto, não muda de forma nem de sexo, porque é a mesma substância que animou o corpo e o acompanhará na ressurreição.

Em suma: a alma não é sexuada por natureza, mas sexualmente configurada por relação ao corpo que habitou.
E, sendo corpo sutil, conserva eternamente a imagem daquele com quem formou uma só vida.
Assim, Deus, que faz todas as coisas segundo medida e proporção, quis que até no invisível houvesse ordem, e que o mesmo que foi homem ou mulher na terra o seja também no juízo, para que a justiça seja plena na identidade.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XIV

De sensibus animae et de affectibus ejus
Sobre os sentidos e os afetos da alma


Já demonstramos que a alma é corpo, e corpo dotado de forma; resta agora mostrar que ela também possui sentidos e afetos próprios, independentes do corpo, pelos quais experimenta dor, prazer, amor, temor, alegria e tristeza.

A maior parte dos filósofos, ao contrário, sustentou que a alma sente apenas por meio dos órgãos corporais, e que, separada do corpo, torna-se insensível como o fogo extinto quando se apaga a matéria que o alimenta.
Mas se assim fosse, as almas não poderiam ser julgadas, nem sofrer penas, nem gozar recompensas após a morte.
Logo, é necessário que conservem os sentidos, ainda que em outra ordem.

A experiência o confirma.
Em sonhos, quando os olhos dormem, a alma vê; quando os ouvidos estão fechados, ela ouve; quando o corpo repousa, ela se move; quando os membros estão imóveis, ela age.
Ora, quem vê e ouve sem os órgãos corporais, sente por si mesmo.
O sono, que suspende a operação da carne, revela a atividade própria da alma.

Assim, a alma possui em si seus próprios sentidos espirituais, dos quais os corporais são apenas sombras e instrumentos.
Os olhos do corpo não são senão janelas por onde a visão da alma se manifesta; os ouvidos, condutos da audição interior; a língua, órgão do gosto que a alma saboreia primeiro; o tato, o contato pelo qual a alma reconhece o mundo exterior.
Cada sentido corporal é imagem de um sentido anímico, e todos permanecem vivos na alma depois que o corpo se dissolve.

A Escritura testemunha isso claramente.
O rico do Evangelho, estando já entre as penas, levantou os olhos e viu Abraão e Lázaro (Lc 16,23).
Viu, reconheceu, falou, suplicou, sentiu sede e dor.
Ora, tudo isso aconteceu sem corpo, pois a carne estava no sepulcro.
Logo, os sentidos pertencem primariamente à alma, e apenas secundariamente ao corpo.

O mesmo se deve dizer dos afetos.
A alma não só percebe, mas também se move por amor, ira, temor, esperança e tristeza.
Esses movimentos são próprios dela, não do corpo.
Pois o corpo, por si mesmo, não ama nem odeia; é a alma que, por meio dele, exprime essas paixões.
O corpo é instrumento; a alma, o músico.

Por isso, mesmo após a morte, a alma sente e se comove.
As almas dos justos se alegram; as dos ímpios se atormentam.
Cada uma leva consigo a lembrança do que fez, o remorso, a saudade, o desejo.
A morte não apaga os afetos, apenas os separa de suas causas corporais.

E ainda, se a alma não sentisse por si, como poderia ter sentimentos antes que o corpo amadurecesse?
O feto no ventre materno se move, se agita, reage; tudo isso mostra que já sente, embora os órgãos não estejam formados.
Logo, a sensação é anterior à carne; é da alma, não do corpo.

Nem se diga que esses sentidos são meras imagens das operações corporais.
O corpo é que imita a alma, não o contrário.
Assim como a sombra acompanha o corpo, o corpo acompanha a alma, refletindo suas potências em matéria visível.

A diferença é de grau, não de natureza.
Nos vivos, os sentidos da alma operam através da carne; nos mortos, operam diretamente.
Por isso, os santos têm visões espirituais mesmo em vida, quando o Espírito Santo suspende a ação dos sentidos corporais e desperta os da alma.

Quanto aos afetos, são eles que movem o homem tanto ao bem quanto ao mal.
Da alegria nasce o louvor; da tristeza, o arrependimento; do temor, a prudência; da ira, a justiça; do amor, a caridade.
Os afetos são a força viva da alma, e, quando ordenados pela razão e pelo espírito, tornam-se virtudes.

Portanto, a alma sente, sofre e se alegra; ela vê, ouve, toca e compreende.
E como esses atos não cessam com a morte, prova-se que a alma é substância viva e real, não sombra, não ar, não número, não harmonia.
Ela é, de certo modo, o homem interior inteiro, dotado de todos os sentidos e movimentos que no corpo se manifestam apenas como reflexo.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XV

De somno et de somniis
Sobre o sono e os sonhos


O sono é, de certo modo, imagem da morte, e o sonho, prenúncio da eternidade.
Pois assim como, na morte, a alma se separa do corpo, no sono ela apenas se desprende, mantendo ainda o vínculo vital.
A carne repousa, a alma desperta; o corpo dorme, a mente vela.
É nesse estado que o homem prova que sua vida não é apenas corporal, mas também espiritual.

De fato, enquanto os sentidos da carne estão adormecidos, a alma continua a agir: vê, ouve, fala, caminha, teme, alegra-se, sofre.
Ela realiza, no silêncio do corpo, os mesmos atos que realiza quando desperta — e às vezes com mais clareza, pois livre das distrações corporais, age segundo sua própria natureza.

O sono, portanto, não é extinção, mas recolhimento da alma em si mesma.
Ela se recolhe ao interior, abandona as janelas do corpo e volta-se para o mundo invisível.
Por isso, nos sonhos, ela contempla realidades que o corpo não pode ver; às vezes reflete suas próprias lembranças, outras vezes recebe inspirações superiores.

Há três origens dos sonhos: Deus, o diabo e a natureza.
Os que vêm de Deus iluminam; os que vêm do diabo enganam; os que vêm da natureza refletem apenas o movimento interior da alma.
A distinção se conhece pelos frutos: os divinos são serenos e puros; os demoníacos, perturbadores e confusos; os naturais, simples e sem peso espiritual.

Deus, que se comunica pelos profetas, também fala por sonhos, como está escrito: “Em sonhos falarei com ele” (Nm 12,6).
Assim instruiu José, filho de Jacó, e outro José, esposo de Maria.
Mas o diabo, que imita o divino, tenta enganar por imagens mentirosas, misturando verdade e ilusão.
Por isso é necessário discernimento — o sonho deve ser julgado pela regra da fé.

A alma, livre durante o sono, é também mais vulnerável.
Os demônios, que não podem atacar o homem desperto, aproximam-se quando o corpo dorme e a alma se afrouxa da carne.
Então insinuam fantasias impuras, terrores, falsas revelações.
Daí vêm as tentações noturnas, as opressões e os medos súbitos — não da natureza, mas dos espíritos malignos que habitam o ar.

Ainda assim, até os sonhos enganosos provam a substância viva da alma, pois ela sofre, fala, luta, resiste ou cede.
O que sonha, age; o que age, existe; o que existe, é corpo, e não sombra.

Mas há também sonhos verdadeiros, que anunciam o futuro.
Não porque a alma possua em si o poder profético, mas porque, sendo de origem divina, conserva certa sensibilidade às revelações do Criador.
Assim, Deus às vezes a toca com sua luz e lhe mostra, em figura, o que há de vir.
Por isso o profeta Joel disse: “Vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos anciãos terão sonhos e vossos jovens terão visões” (Jl 2,28).

O sonho, portanto, é testemunho de que a alma age por si mesma.
Mesmo quando o corpo repousa, ela trabalha; mesmo quando o corpo se cala, ela fala.
E, quando se liberta totalmente pela morte, continua a fazer o que fazia no sono — ver, ouvir, lembrar, desejar.

Assim, o sono é o aprendizado da morte, e o sonho, o ensaio da eternidade.
Quem dorme, entrega-se ao invisível; quem morre, entra nele.
Mas há diferença: no sono, a alma volta; na morte, ela parte.

A alma, porém, é a mesma.
Como no sonho se mostra viva, também na morte o será.
Por isso o justo dorme em paz, pois o mesmo Deus que vela sobre o sono guarda também o repouso eterno.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XVI

De visione animarum defunctorum
Sobre as visões das almas dos defuntos


Muitos, duvidando da existência e da atividade das almas após a morte, dizem que as aparições dos mortos são meros fantasmas, imagens formadas pela imaginação ou pelos vapores da terra.
Mas se assim fosse, não haveria verdade nos testemunhos de tantos que, em tempos e lugares diversos, afirmaram ter visto e reconhecido seus mortos, conversado com eles, recebido deles avisos ou reprovações.
Não se pode atribuir ao acaso ou à ilusão um consenso universal e repetido.

Desde as mais antigas eras, as almas têm aparecido aos vivos.
Assim, Samuel foi visto por Saul, evocado pela mulher de Endor (1Sm 28,12); e o profeta, irritado, censurou o rei por ter perturbado seu repouso.
Ora, se Samuel não existisse mais, não poderia falar nem reprovar; e se fosse apenas uma sombra, não teria sentido o ultraje de ser chamado.
Logo, a alma vive e é sensível, mesmo depois da separação do corpo.

E ainda hoje, por permissão divina, muitas almas aparecem.
Não para trazer doutrina nova, mas para advertir, consolar ou punir.
Deus permite tais visões, seja para confirmar a fé dos bons, seja para confundir a incredulidade dos ímpios.
Pois, se Ele é Deus dos vivos e não dos mortos (Mt 22,32), é necessário que as almas subsistam.

Também os demônios, que imitam tudo o que é divino, às vezes se disfarçam em formas humanas, tomando a aparência dos defuntos para enganar os homens.
Mas as aparições verdadeiras distinguem-se das falsas pelo efeito que produzem:
as primeiras inspiram temor santo e humildade; as segundas, curiosidade e perturbação.
A alma justa aparece com serenidade; a alma impura, com inquietação.

Que as almas tenham figura, já o mostramos; que possam manifestar-se, mostra-o a experiência.
A alma é corpo sutil, luminoso e penetrante, capaz de se tornar visível quando Deus o permite.
Não se deve, portanto, confundi-la com sombra ou fumo; é substância real, ainda que invisível aos olhos ordinários.
O que é invisível não é o que não existe, mas o que ultrapassa o sentido.

Além disso, se a alma não pudesse ser vista, como se explicariam as visões dos profetas?
Isaías viu o trono do Senhor; Ezequiel viu os espíritos dos querubins; Daniel, os anjos do juízo.
E se os espíritos celestes podem ser vistos, por que não as almas humanas, que pertencem à mesma ordem espiritual, ainda que inferior?

Também é certo que as almas dos mártires assistem aos combates dos vivos e intercedem por eles.
Assim como no estádio os que venceram animam os que lutam, também no céu os santos olham e exortam os fiéis.
A comunhão dos santos não se rompe pela morte; antes se fortalece.
Por isso, quando a Igreja celebra o martírio dos santos, é costume sentir sua presença espiritual.

Mas há também aparições de advertência: almas penadas que se manifestam pedindo oração, penitência ou restituição de algo injustamente retido.
Esses testemunhos são numerosos e não podem ser desprezados, pois Deus, que é justo, permite que o remorso das almas culpadas se manifeste, para edificação dos vivos.

E mesmo os pagãos, que ignoram a verdade, não puderam negar esses fenômenos.
Os filósofos falaram das sombras que voltam, das almas que erram junto aos sepulcros, dos sonhos em que os mortos falam.
Enganaram-se na interpretação, mas reconheceram o fato.
Assim, o erro deles confirma nossa doutrina: a alma continua viva, sensível e dotada de forma, não dissolvida como ar, mas substância espiritual que pode ser vista quando Deus o consente.

Logo, as visões das almas dos mortos não são contra a fé, mas sua confirmação.
Elas mostram que a alma, mesmo ausente do corpo, conserva o mesmo ser, a mesma lembrança e o mesmo aspecto.
E se aparece com o mesmo rosto que teve, é porque é corpo; se fala, é porque vive; se sofre ou se alegra, é porque sente; se sente, é porque existe — e tudo o que existe é corpo, ainda que invisível.

Assim, a experiência humana testemunha o que a revelação ensina: a alma sobrevive, age e se manifesta.
E a morte, longe de ser aniquilação, é apenas passagem — o momento em que o invisível se torna visível aos olhos do espírito.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XVII

De statu animae in morte
Sobre o estado da alma na morte


Tendo mostrado que as almas continuam a existir após a separação do corpo, cumpre agora explicar onde e como permanecem até o juízo final.
Pois muitos, enganados por falsas esperanças ou vãs sutilezas, acreditam que as almas dos justos sobem imediatamente ao céu, e as dos ímpios descem logo às penas eternas.
Mas a verdade está no meio: todas as almas descem ao inferus, lugar invisível onde aguardam a ressurreição e o juízo.

O próprio Cristo, depois de morto, desceu aos infernos (At 2,31), não como réu, mas como libertador, para pregar aos espíritos encarcerados (1Pe 3,19).
Ora, se Ele, sendo justo e Filho de Deus, foi ao inferus, quem ousará pretender subir ao céu antes d’Ele?
Nenhum servo vai antes de seu Senhor; nenhum discípulo precede o Mestre.

O inferus não é o lugar de condenação eterna, mas o receptáculo comum das almas, onde cada uma recebe, conforme seu mérito, repouso ou tormento provisório.
Há ali diversas regiões: para os justos, um seio de consolação; para os ímpios, um cárcere de aflição.
Entre ambos, um grande abismo os separa, como ensina o Evangelho (Lc 16,26).

As almas dos santos repousam em esperança, gozando de paz e de alguma antecipação da glória futura; as dos maus gemem em trevas e angústia, prenunciando o suplício eterno.
Mas todas esperam o mesmo dia, em que, reintegradas aos seus corpos, comparecerão diante do tribunal de Deus.

Não se deve, pois, imaginar o céu como já habitado por almas separadas, nem o inferno como deserto até o juízo.
O mundo invisível está cheio de vida; as almas ali vivem, lembram, reconhecem, amam e sofrem.
Não dormem, como supõem alguns, pois o sono pertence ao corpo; e a alma, separada, permanece desperta.

O que muda é o modo de percepção.
Enquanto unida à carne, a alma conhece pelas janelas dos sentidos; separada, conhece diretamente.
Por isso, os santos já gozam de certa visão espiritual de Deus, não ainda plena, mas conforme a pureza que alcançaram.
E os ímpios, privados dessa luz, sentem a dor de sua ausência — o “ver sem ver” que é o princípio da pena eterna.

Assim, a morte não apaga a consciência, mas a purifica.
Liberta a alma da turvação da carne e a coloca diante da verdade nua.
O justo, ao morrer, descansa; o pecador, estremece.
Cada um entra no espelho de si mesmo: aquilo que amou em vida, isso o acompanha na morte.

Mas todos, bons e maus, permanecem sob a terra, em regiões ordenadas, aguardando o toque da trombeta final.
O céu está reservado aos anjos e a Cristo até que o número dos eleitos se complete; então, os justos ressuscitarão para habitá-lo em corpo e alma.

É, portanto, erro e orgulho crer que as almas subam imediatamente aos céus.
Se o Senhor, que é Senhor, desceu, quanto mais nós, servos, desceremos.
A subida será depois, quando também os corpos forem glorificados.

Até lá, as almas vivem — não na ociosidade, mas na expectação.
Os santos intercedem, os penitentes aguardam, os ímpios lamentam.
O tempo que aqui passa em anos, ali passa em sentido: o tempo é interior, medido pelo desejo ou pela dor.

E assim se cumpre a justiça divina: a vida intermediária das almas é prelúdio da ressurreição, onde se consumará a recompensa ou a pena.
Quem viveu na carne segundo o espírito, repousa; quem viveu segundo a carne, arde.
Ambos esperam o mesmo juiz, mas não a mesma sorte.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XVIII

De inferis et diversitate receptaculorum animarum
Sobre o inferno e a diversidade dos lugares onde as almas são recebidas


Já dissemos que todas as almas descem ao inferus, o lugar invisível e subterrâneo, onde aguardam a ressurreição.
Convém agora explicar a diversidade dos lugares dentro desse mesmo domínio, para que se entenda como se cumprem ali a justiça e a ordem divinas.

Não se deve imaginar o inferus como simples abismo de trevas ou como fogo perpétuo.
É uma região ampla, separada em espaços distintos, conforme a condição das almas.
Assim como há muitas moradas na casa do Pai (Jo 14,2), há também muitos receptáculos no seio da terra, ordenados segundo os méritos.

Na parte superior desse mundo inferior, está o seio de Abraão, o lugar de repouso das almas justas.
Ali esperam os patriarcas, os profetas e todos os que agradaram a Deus antes da vinda de Cristo.
Não é o paraíso celeste, mas uma antecâmara da glória; não é ainda visão, mas consolação.
Por isso o rico do Evangelho, estando em tormentos, viu de longe Abraão e Lázaro reclinado em seu seio (Lc 16,23).

Mais abaixo, estão as regiões de pena e purgação, onde as almas dos ímpios e dos negligentes sofrem segundo o que fizeram.
Não são penas eternas, mas intermediárias, prelúdio do juízo final.
Ali o fogo é real, mas espiritual; consome sem destruir, atormenta sem consumir.
É a consciência que arde, e o remorso é o combustível da chama.

Entre o seio de Abraão e as regiões da dor, há um grande abismo (Lc 16,26): separação de ordem, de mérito e de destino.
Ninguém passa de um lado a outro, pois o estado da alma, depois da morte, é fixo e imutável.
O justo não pode mais cair, nem o ímpio se converter; o tempo da prova acabou.

Abaixo de tudo, nas profundezas mais remotas, estão as prisões dos anjos decaídos, “as cadeias tenebrosas do abismo” de que fala o Apóstolo (2Pe 2,4; Jd 6).
Ali aguardam o julgamento aqueles que corromperam a criação.
Essas regiões são chamadas “Tártaro” pelas Escrituras e pelos pagãos, mas os pagãos ignoraram sua verdadeira razão.

O inferus, portanto, é como um mundo paralelo, invisível aos olhos do corpo, mas real e ordenado.
Não é o caos dos mitos, mas a continuidade da criação.
A terra guarda em seu seio o que o céu rejeita ou ainda não acolhe.
E, assim como o ventre materno prepara o corpo para a vida, o inferus prepara a alma para a eternidade.

Quanto ao paraíso, onde Cristo prometeu levar o ladrão arrependido (Lc 23,43), não é o céu dos céus, mas um jardim superior, distinto tanto do inferus quanto da glória final.
Lá Cristo levou as almas dos justos libertos, abrindo-lhes um novo repouso, ainda que não a visão definitiva.
O paraíso é o intervalo entre o seio de Abraão e o trono de Deus — uma morada de esperança e luz, onde as almas respiram o ar da futura bem-aventurança.

Assim, há três estados para as almas:

1.      O inferus inferior, das penas;

2.      O seio de Abraão, da consolação;

3.      O paraíso, do repouso prometido.

Cada um desses lugares corresponde a uma etapa da economia divina.
Antes de Cristo, todas as almas, boas e más, desciam ao inferus; após Cristo, as dos justos são conduzidas ao paraíso; as dos ímpios, permanecem nas sombras; e todas, no fim, se apresentarão no juízo.

Portanto, não se deve confundir o inferus com o inferno eterno (gehenna).
O primeiro é temporal e acolhe todas as almas; o segundo é definitivo e acolherá apenas as condenadas após a ressurreição.
O inferus é prisão; a gehenna, sentença.
O primeiro tem fim; a segunda, nunca.

Deus, que é justo, quis que até a espera tivesse ordem.
Nenhuma alma fica sem lugar; nenhuma pena ou repouso é dado sem medida.
Tudo está preparado desde o princípio, para que nem mesmo a morte pareça caos.

Assim, o universo, visível e invisível, forma um só corpo sob o governo do Criador: o céu para os anjos, a terra para os homens, o inferus para as almas, o juízo para todos.
E, ao fim, quando tudo for restaurado, o inferus devolverá seus mortos, o mar entregará os seus, e a morte será abolida — porque Deus será tudo em todos (1Cor 15,28).

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XIX

De resurrectione carnis et reditu animae ad corpus
Sobre a ressurreição da carne e o retorno da alma ao corpo


Tendo mostrado onde as almas residem após a morte, resta agora considerar como e quando voltarão aos corpos.
Pois a fé cristã não consiste apenas em crer que a alma vive, mas também que a carne ressuscitará, para que o homem inteiro — aquele mesmo que viveu, pecou ou se santificou — compareça ao juízo.

A separação entre alma e corpo é temporária; a união, eterna.
Deus não formou a alma para existir sem corpo, nem o corpo para viver sem alma.
Ambos nasceram juntos, ambos morreram juntos no pecado, ambos serão restaurados juntos pela graça.
Negar a ressurreição da carne é negar a criação e a justiça divina, pois o corpo é parte essencial do homem e instrumento de suas obras.

Como poderia a alma ser julgada sozinha, se o corpo participou de todos os atos?
Quem serviu ao pecado não foi apenas a vontade, mas também as mãos; quem praticou a caridade não foi apenas o espírito, mas também os olhos e os pés.
Logo, é justo que o mesmo corpo que cooperou no mal ou no bem receba a pena ou a glória.

A alma, desde a morte, aguarda o reencontro com sua carne, e o faz com desejo natural, pois é o seu complemento.
Como a esposa que espera o esposo, assim a alma suspira pelo corpo, sua forma visível e seu instrumento de expressão.
Ela o reconhece como sua morada, e por isso o conserva impresso em sua própria figura.
Na ressurreição, a união será perfeita, sem corrupção nem dor, pois a carne será espiritual, e o espírito será corporal — não pela confusão das naturezas, mas pela harmonia da glória.

“Ressuscitará o mesmo corpo”, diz a fé; “mas transformado”.
Não outro, para que seja justiça; não o mesmo em corrupção, para que seja glória.
O corpo será o mesmo na substância, diverso na condição: mortal na terra, imortal no céu; corruptível no tempo, incorruptível na eternidade.

A alma, ao reencontrá-lo, não o rejeitará como peso, mas o revestirá como veste de luz.
Pois a carne, purificada pela morte, se tornará dócil e luminosa, obediente ao espírito.
Então se cumprirá o que diz o Apóstolo: “O que é semeado corruptível, ressuscita incorruptível; o que é semeado animal, ressuscita espiritual” (1Cor 15,42-44).

E não é de admirar que Deus possa recompor o que se desfez, pois Ele fez do nada o que nunca existira.
Quem cria do nada, pode reunir o que foi desfeito.
Os ossos que se dispersaram conhecerão sua ordem; a carne que se dissolveu achará sua forma; a alma reconhecerá o seu corpo como o navegante reconhece o porto.

Nada do homem se perderá.
A justiça de Deus exige que o mesmo ser que viveu receba a recompensa ou o castigo.
Seria absurdo que uma alma fosse coroada ou punida por obras que outro corpo executou.
Portanto, é necessário que o homem inteiro reviva, o mesmo na identidade, renovado na glória.

Assim, o retorno da alma ao corpo é o coroamento da economia divina.
A criação começou com a união; a queda, com a separação; a redenção, com a reunião.
O Cristo, primícia dos mortos, mostrou o caminho: ressuscitou em corpo e alma, e subiu ao céu em ambos, deixando à humanidade o modelo e a promessa.

Logo, a esperança cristã não é apenas imortalidade, mas ressurreição.
Não basta que a alma viva; é preciso que o homem inteiro viva.
A fé dos pagãos promete libertação da carne; a fé dos cristãos promete sua glorificação.
O que eles desprezam, nós esperamos; o que eles chamam prisão, nós chamamos templo.

E, quando esse retorno se cumprir, cessará a morte, cessará o inferus, cessará o tempo.
O corpo e a alma, reconciliados, entrarão na eternidade — não mais separados por fraqueza, mas unidos pela força do Espírito.
Então o homem, restaurado à sua integridade primeira, será novamente imagem de Deus, não apenas em alma, mas em ser inteiro.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XX

De sensu poenarum et gaudiorum post mortem
Sobre o sentido das penas e das alegrias após a morte


Já que mostramos que a alma subsiste após a morte e que habita regiões distintas segundo o mérito, devemos agora explicar como sente suas penas e seus gozos nesse estado.
Pois há quem imagine que, separada da carne, a alma se torna insensível, como se os sentidos estivessem na carne e não na própria alma.
Mas, se assim fosse, não haveria castigo nem prêmio antes da ressurreição, e a justiça divina ficaria suspensa.

Ora, já vimos que os sentidos pertencem à alma, não ao corpo.
O corpo é apenas o instrumento; a alma, o músico.
Portanto, quando o corpo se dissolve, a alma continua a sentir — e sente com mais acuidade, porque já não é embotada pela carne.

O rico do Evangelho, como já lembramos, clamava em tormentos: “Estou atormentado nesta chama” (Lc 16,24).
Sua língua ardia, seus olhos viam, sua memória o atormentava.
Mas onde estava seu corpo? No sepulcro.
Logo, é a alma que sente, e o corpo é apenas o órgão visível de suas sensações.

As almas dos justos também sentem, mas de outro modo.
Sentem paz, consolo e esperança; gozam da lembrança de suas obras, da presença dos santos, da antevisão da glória.
Não é ainda o gozo pleno, mas uma antecipação do paraíso, como o alvorecer antes do dia.
A espera, para eles, é suave; para os ímpios, amarga.
O mesmo tempo que consola uns, atormenta outros.

E essas penas e alegrias não são figuradas, mas reais, embora de natureza espiritual.
A dor do corpo é sensação física; a dor da alma é consciência viva.
O remorso é o fogo; a memória, a chama; a esperança frustrada, o fumo que sufoca.
O que o fogo é à carne, isso é o remorso à alma.
Do mesmo modo, a paz do justo é repouso, a confiança é refrigério, a contemplação é claridade.

Deus quis que desde já houvesse diferença entre o justo e o ímpio, para que a justiça começasse antes do juízo.
Por isso, mesmo antes da ressurreição, há retribuição proporcional.
Não é ainda o castigo eterno nem a glória consumada, mas um prelúdio de ambos, conforme a lei da semeadura: o que cada um semeou, isso colhe em antecipação.

Assim, o inferus é tribunal provisório, onde a alma experimenta o que mereceu, enquanto espera o veredito final.
Não é sono, como dizem alguns, mas vigília dolorosa ou jubilosa.
Os ímpios veem de longe a luz que não podem alcançar; os justos ouvem o rumor do juízo que os libertará.
Ambos vivem no tempo da espera — um tempo que não se mede por dias, mas por intensidade.

Quanto maior o desejo, mais longa parece a espera; quanto maior o desespero, mais aguda a dor.
Assim se cumpre a justiça de Deus sem violência: o amor e o ódio, levados à perfeição, tornam-se prêmio e pena.
O céu e o inferno começam no coração do homem e se prolongam após a morte.

Portanto, a alma sente, vive e paga; nada perde de sua consciência.
O que amou em vida, recorda; o que temeu, encontra; o que fez, revive.
E porque o amor e o medo são forças sensíveis, a alma que amou a Deus arde em doçura, e a que o desprezou arde em dor.
Ambas ardem — uma em luz, outra em trevas.

Assim, a morte não suspende o sentir, mas o intensifica.
O corpo era véu; a separação o rasgou.
A alma, despida da carne, conhece a plenitude de si mesma — e nela experimenta o princípio de seu destino.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXI

De Christo ut homine et de anima ejus
Sobre Cristo como homem e sobre a sua alma


Depois de tratar da natureza e do destino das almas humanas, convém agora falar da alma do próprio Cristo, para que a verdade da encarnação se mostre inteira.
Pois muitos, movidos por falsa piedade, quiseram defender a pureza divina negando a realidade humana do Senhor.
Dizem que Ele só assumiu carne aparente, e que o que parecia sofrimento não passava de ilusão.
Mas, se assim fosse, não haveria redenção nem ressurreição, pois o que não se assume não se cura.

A Escritura afirma que o Verbo se fez carne (Jo 1,14), e a carne sem alma não é homem, mas cadáver.
Logo, se Cristo é homem, é necessário que tenha alma — não alma celeste, nem angélica, nem alguma essência intermediária, mas alma humana verdadeira, da mesma natureza que a nossa, embora sem pecado.

A prova está nos Evangelhos.
Ele se admirou, alegrou-se, entristeceu-se, chorou, temeu, comoveu-se — todas paixões da alma.
Disse: “A minha alma está triste até a morte” (Mt 26,38).
E antes, exclamou: “Agora a minha alma se perturbou” (Jo 12,27).
Ora, quem sente tristeza e perturbação tem alma; e quem tem alma é homem.

Também a morte de Cristo o demonstra.
O corpo morreu, mas a alma foi ao inferus, conforme o salmo: “Não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o teu Santo veja a corrupção” (Sl 15,10; At 2,27).
Logo, o que desceu foi a alma; o que ficou foi o corpo; o que ressuscitou foi o homem inteiro.
Se não tivesse alma, como poderia morrer? E se não tivesse morrido, como poderia vencer a morte?

Os hereges docetas, que diziam que o corpo do Senhor era apenas aparência, foram refutados pelos próprios atos de Cristo.
Comeu, bebeu, dormiu, cansou-se, sangrou; nada disso pertence a um corpo aparente.
Mas o erro mais sutil é o dos que admitem o corpo, mas negam a alma, como se o Verbo divino tivesse tomado carne sem assumir o princípio vital humano.
Esses tornam a encarnação incompleta e destroem a mediação entre Deus e os homens.

Pois a alma é o meio pelo qual o divino se comunica ao humano.
Sem alma, o corpo é matéria inerte; sem o Verbo, a alma é matéria espiritual.
Cristo é a união perfeita das duas naturezas — Deus e homem, espírito e alma, alma e corpo.
E cada uma permanece o que é, sem confusão nem separação.

A alma de Cristo, portanto, é racional, livre e obediente.
Não é uma centelha divina, mas uma alma criada e unida ao Verbo desde o princípio da concepção.
Deus não habitou um homem já feito; fez-se homem ao formar-lhe a alma e a carne no seio de Maria.
Assim, Ele é ao mesmo tempo gerado de Deus quanto à divindade, e gerado de mulher quanto à humanidade.

Se alguém pergunta de onde veio a alma de Cristo, respondo:
Deus a criou, como criou a alma de Adão — mas não no mesmo estado de prova, e sim em plenitude de graça.
Adão recebeu a alma e perdeu a justiça; Cristo recebeu a alma e conservou-a perfeita.
O primeiro foi alma vivente; o segundo, espírito vivificante (1Cor 15,45).

Por isso, tudo o que Cristo fez em sua vida humana foi obra de uma alma real:
quando orava, era sua alma que desejava;
quando se entristecia, era sua alma que sofria;
quando obedecia, era sua alma que se submetia;
quando morreu, foi sua alma que partiu;
quando ressuscitou, foi sua alma que voltou ao corpo.
Nada nele foi aparente, tudo foi verdadeiro, porque a verdade da redenção exige a realidade do sofrimento.

Assim, quem nega a alma humana de Cristo nega a salvação do homem.
Pois o que não é assumido não é redimido, e o que não foi unido a Deus permanece separado.
Cristo salvou o homem inteiro porque assumiu o homem inteiro; e, unindo à sua divindade uma alma como a nossa, santificou em si mesmo a natureza que havia caído em Adão.

Portanto, a alma de Cristo é o espelho da alma humana purificada.
Nela se reflete a imagem original, sem a mancha do pecado; nela se cumpre o que Deus quis quando soprou em Adão o hálito da vida.
E como o primeiro homem transmitiu a morte, o segundo transmite a vida — porque em sua alma estava a plenitude do Espírito.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXII

De anima prophetica et inspiratione divina
Sobre a alma profética e a inspiração divina


Já que se provou que a alma é viva, corpórea e sensível, resta mostrar como ela se abre à influência divina.
Pois, sendo obra de Deus, ela é também instrumento de sua voz; e, assim como o corpo é movido pela alma, a alma é movida pelo Espírito.

O Espírito Santo, quando quer manifestar as coisas divinas, não destrói a alma, mas a eleva.
Entra nela como o músico em seu instrumento: não para quebrá-lo, mas para fazê-lo soar conforme sua vontade.
Assim, o profeta, quando inspirado, não perde o sentido, mas o transcende; não é anulado, mas transfigurado.

Os hereges chamam de delírio o que é êxtase; nós, porém, chamamos de plenitude.
Pois há diferença entre ser arrebatado por Deus e ser possuído pelo demônio.
O demônio perturba e escurece; o Espírito ordena e ilumina.
Na possessão demoníaca, a alma é violentada; na profecia, é persuadida.
O diabo domina; Deus inspira.

Nos profetas, o Espírito Santo age em harmonia com a natureza da alma.
Não a oprime, mas a expande; não lhe tira a razão, mas a faz participar da razão divina.
Por isso, os profetas não falam em transe inconsciente, mas em lúcida visão: veem o que o Espírito mostra, e dizem o que Ele lhes dita.

“Estava sobre mim a mão do Senhor”, diz Ezequiel (Ez 1,3); “O Espírito do Senhor me transportou”, diz outro.
Mas logo acrescenta: “E eu vi e compreendi”.
Logo, o profeta não é máquina, mas cooperador consciente.

A alma profética é, portanto, espelho e trombeta: reflete o invisível e o anuncia.
No reflexo, contempla; na voz, proclama.
O Espírito é a luz que a ilumina por dentro; a palavra, o som que dela se projeta para fora.

Esse estado, que os antigos chamaram enthousiasmos, é a presença do próprio Deus no homem.
Mas o nome verdadeiro é spiritus prophetiae, o sopro divino que entra no vaso humano.
Não é o homem que fala, mas Deus no homem — não pela destruição da liberdade, mas pela sua consagração.

Há, contudo, diversos modos dessa inspiração.
Uns são suaves, como o sopro que move Elias (1Rs 19,12); outros, poderosos, como o fogo que tocou Jeremias (Jr 20,9).
Em todos, porém, há uma mesma economia: o Espírito toca, a alma responde.
Como a harpa vibra quando o músico a tange, assim a alma vibra sob o dedo do Espírito.

E essa harmonia divina deixa vestígios: o olhar inflamado, a voz firme, a palavra que ultrapassa a sabedoria humana.
Por isso os pagãos, vendo os profetas inspirados, os tomaram por loucos, como também julgaram de Cristo: “Ele tem um demônio e está fora de si” (Jo 10,20).
Mas o delírio dos homens é a sanidade de Deus.

A inspiração divina não vem pela violência do corpo, mas pela disposição da alma.
Deus fala onde encontra pureza e silêncio interior.
A alma purificada pela fé torna-se transparente à luz do Espírito, e, nesse estado, vê e ouve o que o mundo não pode perceber.

Foi assim que Maria concebeu pela audição — pois a fé vem pelo ouvir (Rm 10,17) —, e que os apóstolos falaram todas as línguas sem tê-las aprendido.
O mesmo Espírito que os encheu é o que move toda alma profética.

E não só nos profetas antigos, mas ainda hoje, o Espírito age nas almas santas.
A profecia não cessou; apenas mudou de forma.
Já não fala pelos véus da lei, mas pelo esplendor da graça.
Onde há fé viva, ali há inspiração; onde há pureza, ali há visão.

Assim, a alma do homem é templo, e o Espírito de Deus é o sacerdote que nela ministra.
Quando o altar está limpo, o fogo desce; quando há sacrifício de louvor, o sopro o acende.
A profecia é o incenso do intelecto que sobe a Deus e desce em palavra.

Portanto, não se deve temer o Espírito nem desprezar a alma.
Ambos vêm do mesmo Deus e se encontram na profecia.
A alma é o vaso; o Espírito, o vinho; o profeta, o banquete de Deus para os homens.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXIII

De anima rationali et voluntate libera
Sobre a alma racional e a vontade livre


Depois de mostrar que a alma é viva, sensível e capaz de inspiração divina, cumpre agora considerar sua natureza racional e livre, sem o que não haveria nem virtude nem pecado, nem juízo nem retribuição.

Deus criou o homem à sua imagem; e como Deus é razão, o homem é racional.
A razão é a luz da alma, o princípio que a distingue dos animais.
Tudo o que vive tem alma; mas só o homem tem alma que entende, delibera e escolhe.
Por isso foi-lhe dada a lei — não aos brutos, que agem por instinto, nem aos anjos, que vivem pela vontade divina, mas ao homem, que está entre ambos.

A razão é o trono da liberdade, e a liberdade é o campo da prova.
Pelo exercício da razão, a alma conhece o bem; pela liberdade, o escolhe.
O bem não seria mérito se não pudesse ser rejeitado; o mal não seria culpa se não pudesse ser evitado.
Logo, a liberdade é condição da justiça.

Mas a liberdade da alma não é absoluta: é participada.
Deus é livre por natureza; o homem, por concessão.
Ele pode escolher entre obedecer e desobedecer, mas não pode mudar o bem em mal, nem o mal em bem.
A liberdade humana está sujeita à verdade divina, como o raio ao sol.

Os hereges, especialmente os valentinos, afirmam que o homem é movido por natureza, uns destinados ao bem, outros ao mal, como se a vontade fosse obra do destino.
Mas isso é negar a justiça e o juízo.
Pois o que é forçado não é responsável, e o que é responsável é livre.
Se o mal fosse necessário, Deus seria sua causa; se o bem fosse inevitável, não haveria mérito.

Deus, que é justo, não ordenaria o impossível nem condenaria o inevitável.
Por isso nos deu o mandamento e a liberdade de cumpri-lo.
A graça auxilia, mas não substitui a vontade.
Ela é como o vento nas velas: sem ele, o barco não anda; mas o piloto deve desejar o porto e dispor o leme.

A alma, portanto, é racional e voluntária.
A razão mostra o caminho; a vontade escolhe a direção.
Quando ambas concordam com Deus, nasce a virtude; quando se afastam, nasce o pecado.
Assim, a liberdade não é destruição da ordem, mas participação nela.

Na queda, a vontade foi ferida, não extinta.
O homem perdeu a facilidade do bem, não a possibilidade.
Desde então, a graça é necessária, mas a liberdade permanece.
O que a lei ordena, a graça ajuda; o que a graça inspira, a vontade consente.

Por isso Cristo veio não para tirar o livre-arbítrio, mas para libertá-lo.
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
A liberdade que Ele dá é interior, não política; espiritual, não carnal.
É a restauração da vontade à sua ordem original — querer o bem, amar a justiça, servir a Deus.

A alma, sendo racional, conhece a Deus por reflexão; e, sendo livre, pode amá-lo ou rejeitá-lo.
Nisso está sua dignidade e seu perigo.
Nada é mais alto que uma alma santa; nada mais miserável que uma alma culpada.
Pois quanto maior o dom, maior a responsabilidade.

Assim, toda moral se funda na estrutura da alma: razão para conhecer, liberdade para escolher, memória para perseverar.
E por essa tríade — inteligência, vontade e amor — o homem é imagem do Criador.
A alma é o espelho da Trindade em unidade: pensa como o Pai, quer como o Filho, ama como o Espírito.

Logo, a liberdade é o selo da alma racional.
Sem ela, o homem seria autômato; com ela, é pessoa.
Deus quis ser servido por amor, não por necessidade.
A obediência forçada é servidão; a voluntária, adoração.

Eis, pois, o grande mistério: Deus fez o homem livre para que pudesse ser justo.
O mal não vem de Deus, mas do mau uso da liberdade que Ele mesmo concedeu.
E a redenção, por Cristo, não é anulação da vontade, mas sua cura.
O homem salvo é o homem livre; e livre porque ama o bem.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXIV

De natura peccati et inclinatione animae post lapsum
Sobre a natureza do pecado e a inclinação da alma depois da queda


Se a alma é racional e livre, é também responsável; e se é responsável, é capaz de pecado.
Cumpre, portanto, investigar de onde procede o pecado, para que se compreenda a enfermidade e a necessidade do remédio.

O pecado não vem da carne, como pensam alguns, mas da alma.
Pois a carne nada faz sem a alma, e nada deseja sem seu consentimento.
A carne é instrumento; o pecado é a desordem do músico.
Não há culpa no ferro, mas no ferreiro que o usa mal.

Foi a alma que primeiro quis o mal e o ensinou à carne.
Adão pecou antes de estender a mão: o gesto foi o corpo; a vontade, a alma.
Assim, o pecado nasce no interior, manifesta-se no exterior e volta à alma como ferida.

A natureza da alma, contudo, não é má.
Deus a fez reta, mas ela se desviou por escolha.
A vontade, feita para o bem, tornou-se inclinada ao mal, e essa inclinação foi transmitida à descendência, como herança da culpa.
Não é natureza nova, mas natureza viciada.

Desde então, a alma humana vive em dupla tensão: conhece o bem e deseja o mal; odeia o que faz e faz o que odeia (Rm 7,19).
Essa contradição é a marca da queda — o combate entre a lei de Deus e a lei dos membros.
A liberdade permanece, mas ferida; a razão subsiste, mas obscurecida; a vontade age, mas dividida.

O pecado, portanto, não é substância, mas movimento da vontade contra a ordem divina.
Não é corpo, mas desvio; não é coisa criada, mas uso errado do criado.
Por isso é punido, porque é voluntário; e, sendo voluntário, é remediável pela conversão.

A carne é cúmplice, não origem.
A tentação entra pela carne, mas o consentimento nasce da alma.
O corpo sente, a alma escolhe; e quando ela se entrega ao prazer, o corpo se torna servo do erro.
O que a alma manda, a carne executa.

Assim, o homem inteiro cai quando a alma se curva.
E o pecado, uma vez concebido, gera a morte (Tg 1,15) — não porque Deus a queira, mas porque a ordem da vida é rompida.
A alma, separando-se da lei do Criador, separa-se da própria vida; e o que se afasta da vida, morre.

Mas Deus, que é justo e misericordioso, não permitiu que a inclinação se tornasse necessidade.
Deixou na alma a memória do bem, a voz da consciência, a luz da razão.
Mesmo no pecador, há um eco da justiça — um remorso que é prova de liberdade e um convite à conversão.

A inclinação ao mal é, pois, punição e medicina: punição, porque castiga a soberba; medicina, porque ensina a humildade.
Quem não pode confiar em si, confia em Deus; quem caiu, aprende a se apoiar na graça.
O pecado é o espelho em que a alma conhece sua miséria e volta à sua origem.

Portanto, não se deve acusar a carne nem o destino, mas a vontade.
É ela que gera o vício ou a virtude; é o eixo do juízo e o ponto de contato entre o homem e Deus.
E como o pecado nasce da alma, também é nela que nasce a santidade.

Assim, o mesmo poder que perdeu o homem o pode salvar: a liberdade restaurada pela graça.
Cristo não destrói o querer, mas o orienta; não anula a liberdade, mas a liberta do erro.
A alma que nele crê reencontra o equilíbrio perdido: ama o que deve, odeia o que destrói, deseja o que salva.

O pecado, então, já não é senhor, mas ferida curada; não é natureza, mas sombra; não é destino, mas lembrança.
E a alma, que outrora se inclinava para baixo, começa a se inclinar para o alto.
Essa conversão é o princípio da nova criação: o retorno da vontade humana à harmonia com a divina.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXV

De animae renovatione per gratiam Christi
Sobre a renovação da alma pela graça de Cristo


Se a alma se inclinou ao mal por sua própria vontade, convém que retorne ao bem pela graça de Deus.
Pois aquele que a criou livre não a salva por violência, mas cura-a pela luz e pelo amor.
A graça não destrói a liberdade, mas a redireciona; não muda a substância, mas a purifica.

A alma, pela queda, perdeu a ordem; pela graça, reencontra o princípio.
O pecado foi corrupção; a graça é medicina.
Adão trouxe a morte; Cristo traz a vida.
Mas, assim como o mal começou no interior da vontade, o bem também começa na alma:
“Renovai-vos no espírito de vossa mente” (Ef 4,23).

A regeneração não consiste em mudar de corpo, mas em mudar de alma — ou melhor, em restaurar a alma ao estado de pureza original.
O batismo é o sinal visível dessa renovação: a água lava o corpo, e o Espírito lava a alma.
O homem sai da fonte o mesmo em substância, mas novo em disposição; o velho Adão é sepultado, o novo Cristo se levanta.

A graça de Cristo age primeiro na memória, apagando a lembrança do pecado;
depois na razão, iluminando o entendimento;
por fim na vontade, inflamando o amor ao bem.
Assim, toda a alma é purificada: a memória pela fé, a razão pela verdade, a vontade pela caridade.

O Espírito Santo é o fogo que consome as escórias da alma e a transforma em templo vivo.
Não a substitui, mas a habita; não a domina, mas a penetra; não a cala, mas a faz cantar.
Por isso se diz que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5): o amor é o modo pelo qual o Espírito e a alma se unem.

Antes da graça, a alma era serva de si mesma; depois da graça, torna-se serva de Deus — e por isso verdadeiramente livre.
A vontade, antes inclinada ao mal, é agora movida pelo bem; o desejo, antes disperso, é recolhido; a razão, antes turva, vê claramente.
A graça não apenas perdoa, mas reordena o ser.

O homem regenerado sente outra vez a harmonia perdida: a carne obedece, a alma governa, o espírito inspira.
Volta a ordem do Éden — não na natureza, mas na graça; não no corpo, mas no coração.
E a alma, reconciliada com seu Criador, reencontra em si o reflexo da Trindade que perdera.

A prova da renovação é o fruto.
Quem foi tocado pela graça manifesta nova vida: paciência no sofrimento, pureza no olhar, compaixão no trato, alegria na fé.
A alma convertida é visível nos gestos, nas palavras e até no silêncio.
Ela se torna espelho de Cristo, e cada virtude é um reflexo de sua luz.

Mas essa renovação é contínua, não momentânea.
Enquanto viver na carne, a alma lutará contra o peso da antiga inclinação; porém, agora luta com esperança.
O mesmo combate que antes a arrastava ao mal, agora a eleva ao bem.
A graça não suprime o esforço, mas o transforma em mérito.

A alma que se renova em Cristo não é outra, mas a mesma alma curada — como o ferro que, purificado do óxido, volta a brilhar, ou a fonte que, limpa do lodo, torna a correr pura.
Deus não cria novamente o que já criou; restaura o que amou.

Por isso o apóstolo diz: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura” (2Cor 5,17).
Nova, não quanto à substância, mas quanto à disposição; nova, não no ser, mas no modo de ser.
O que era desordem, torna-se harmonia; o que era culpa, torna-se louvor.

E, assim, a alma redimida é o mais belo milagre da criação:
feita por Deus, deformada por si, reformada por Cristo.
Nela se cumpre o mistério do amor divino, que não se cansa de refazer o que o homem estraga.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXVI

De animae immortalitate et judicio perpetuo
Sobre a imortalidade da alma e o juízo eterno


Depois de tratar de sua origem, natureza, queda e renovação, resta afirmar a imortalidade da alma, sem a qual tudo quanto dissemos seria vão.
Pois se a alma morresse com o corpo, não haveria sentido no mérito, nem na culpa, nem na esperança da ressurreição.

A alma é imortal, não porque seja divina, mas porque Deus assim a quis.
O que vem de Deus participa de sua perenidade, embora não de sua essência.
Assim como o fogo que sai do sol não é o sol, mas é luz; assim a alma, que procede do sopro divino, não é Deus, mas é viva como Ele é.

A prova está em sua própria atividade:
tudo o que pensa o infinito, deseja o eterno e teme o juízo, é imortal.
Nada que é mortal pensa para além do tempo.
O homem, mesmo em sua ignorância, aspira à eternidade — e esse desejo seria vão se a alma não fosse feita para ela.

Além disso, o que não se dissolve na morte não pode ser mortal.
Ora, já demonstramos que a alma sobrevive à separação do corpo, conserva a memória, a consciência e o sentimento.
Logo, é imortal por sua constituição.
A morte destrói o corpo porque é composto de elementos contrários; mas a alma, sendo simples e espiritual, não tem princípio de corrupção.

Deus não cria para o nada o que modelou com o sopro de sua boca.
O mesmo sopro que deu a vida não pode dar a morte.
Ele é origem, não termo; princípio, não ruína.

Mas se a alma é imortal, também é responsável eternamente.
Pois o que dura para sempre, dura com o que é seu: ou a luz da graça, ou o peso da culpa.
Assim, o juízo de Deus não é ato passageiro, mas estado permanente — o justo entra na vida, o ímpio na morte que não morre.

O juízo se divide em dois momentos: o particular, que ocorre na morte, e o universal, no fim dos tempos.
No primeiro, cada alma recebe o lugar que merece; no segundo, o corpo se reúne à alma para que a sentença seja completa.
A pena e a glória serão então corporais e espirituais, totais como o homem.

O inferus, que agora contém as almas, entregará os seus; o mar, os seus; a terra, os seus.
E o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,41), será também o destino das almas rebeldes.
Mas os justos brilharão como o sol no reino do Pai (Mt 13,43).
Esses dois estados — visão e privação de Deus — são o céu e o inferno.

A alma dos santos gozará de perpétua luz, não mudando mais nem sofrendo.
Não perderá a liberdade, mas a fixará no bem; não perderá o amor, mas o consumará.
Terá o que sempre buscou: Deus.
E n’Ele conhecerá sem erro, amará sem medida e viverá sem fim.

A alma dos ímpios, ao contrário, conservará também o que escolheu: o afastamento de Deus, a cegueira voluntária, o peso de sua própria vontade.
Sua pena é ser o que quis ser — afastada da luz, devorada pelo próprio fogo interior.
Pois o fogo eterno é a consciência que não morre, o remorso que não se apaga, a memória do bem perdido.

Assim, o juízo eterno não é tirania, mas revelação: cada alma será o que fez de si.
A justiça de Deus não impõe, manifesta; não inventa o mal, apenas o deixa ser o que é.
E o céu e o inferno começam já no coração: a alma que ama a Deus arde em luz; a que o rejeita arde em trevas.

Portanto, a imortalidade não é privilégio, mas destino.
Todos viverão para sempre — uns em alegria, outros em dor.
A morte, que parecia fim, é apenas passagem; e o tempo, que parecia eterno, é apenas preparação.

Quando tudo se consumar, e Deus for tudo em todos, as almas dos santos se unirão ao Espírito, e o corpo glorificado participará de sua incorruptibilidade.
O homem voltará a ser o que era no pensamento divino: imagem viva da eternidade.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXVII

De animae testimonio naturaliter Christianae
Sobre o testemunho da alma naturalmente cristã


Depois de expor a natureza, a origem e o destino da alma, resta mostrar que a própria alma é testemunha de Deus.
Não é a fé ensinada que primeiro confessa o Criador, mas a natureza mesma da alma que o reconhece.
O homem pode ser instruído pelo erro, mas nasce verdadeiro.

Ó alma humana, nobre por tua origem, miserável por tua culpa, e ainda assim digna de escuta!
Fala, não segundo os livros dos filósofos, não segundo as escolas dos hereges, mas segundo o que és quando és tu mesma: simples, rude, inculta, ainda intacta pela falsidade.
Fala daquilo que sentes, não daquilo que aprendeste.

Quando de súbito exclamas: “Deus é grande!”, “Deus é bom!”, “Se Deus quiser!”, “Graças a Deus!”, “Deus me livre!”, não fazes profissão cristã, mas confissão natural.
De onde te vêm essas palavras, ó alma, senão da tua própria substância, que lembra o seu Autor?
Pois nenhuma alma é sem Deus, mesmo quando ignora o seu nome.

Interroga-te a ti mesma, ó alma: não sentes dentro de ti um juízo, um temor, uma esperança?
Não distingues o bem do mal, o justo do injusto?
Não te reconheces mortal no corpo, mas imortal no íntimo?
Não te comoves quando ouves falar de Deus, e não tremes quando ouves falar do inferno?
Essas paixões não vêm do corpo — vêm de ti.

O corpo teme a dor; tu temes o juízo.
O corpo se alegra com o prazer; tu te alegras com a virtude.
O corpo perece; tu desejas a eternidade.
Logo, és outra coisa, e maior, e mais divina.

Tu, que murmuras em segredo: “Deus me vê”, tu já confessas o Deus que tudo vê.
Tu, que te refugias na esperança quando sofres, já confessas a providência que tudo governa.
Tu, que amaldiçoas o destino e invocas a sorte, já declaras, sem o saber, que há um poder acima de ti.

Não é, pois, a fé cristã que te empresta essas palavras — é tua própria natureza.
Antes que o Evangelho te pregue o Cristo, tu já o pressentes; antes que o apóstolo te ensine a ressurreição, tu já a desejas; antes que o batismo te lave, tu já sentes a mancha.
Tu te sabes feita para algo mais alto e, ao mesmo tempo, caída.

Eis o testemunho mais antigo e mais puro: a alma naturaliter Christiana est
a alma é, por natureza, cristã.
Não no sentido da fé adquirida, mas da disposição interior, da saudade do Criador, da lembrança do bem perdido.
Mesmo quando blasfema, ela o faz contra Deus, e, portanto, o reconhece.

Tu, alma, és o tribunal onde Deus fala.
A consciência é tua profecia.
O justo se alegra nela; o ímpio se condena nela.
Antes que o juiz se manifeste, tu já pronuncias a sentença.
A fé confirma o que a natureza murmura; a graça ilumina o que a alma pressente.

Por isso, o Apóstolo diz que os gentios, que não têm a lei, fazem naturalmente as coisas da lei, tendo a lei escrita em seus corações (Rm 2,14–15).
A voz da consciência é o eco da Palavra divina.
A alma é o pergaminho em que Deus escreveu a verdade com o fogo do ser.

Vê como, até entre os pagãos, o testemunho da alma se manifesta.
Eles falam de um Deus supremo, juiz e pai, e de um fogo eterno que pune os maus.
Falam da virtude que conduz ao céu, e do crime que desce ao abismo.
Não o aprenderam de Moisés, nem dos profetas, nem dos apóstolos — aprenderam de si mesmos.

Quando o poeta exclama: “Vem a hora em que os bons terão outra vida”, ele é profeta contra sua vontade.
Quando o filósofo confessa que há algo divino dentro de nós, ele é pregador sem saber.
Quando o povo exclama nas desgraças: “Ai de nós! É castigo dos deuses!”, ele é testemunha da justiça que teme.

Assim, de toda parte, a alma proclama o que o Evangelho confirma.
A natureza é a primeira catequista; a graça, sua plenitude.
A alma é o altar interior onde o Deus desconhecido já era adorado antes de ser revelado.

E, se alguns, pervertidos pela mentira, negam a alma, é porque já negaram a si mesmos.
Mas tu, ó alma que ouves, lembra-te de tua origem, reconhece teu Criador, e volta a Ele.
Não és centelha de matéria, nem sopro de demônio, nem sombra de ar: és sopro de Deus, feita à sua imagem, viva e eterna.

Volta-te, pois, para Aquele de quem vieste.
Tua sede é d’Ele, teu repouso é n’Ele, tua verdade é Ele.
E quando o encontrares, compreenderás que Ele sempre esteve em ti — e tu sempre O testemunhavas, mesmo sem o saber.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXVIII

De haereticis qui animam negant
Sobre os hereges que negam a alma


Logo após confessar, ó alma, que és naturalmente cristã, não te cales diante dos que te negam!
Pois há, entre os que se dizem sábios, alguns que ousam afirmar que tu não existes, que não és substância, mas sombra, sopro, número ou harmonia — e, negando-te, negam o próprio homem.

Tais são os discípulos da falsidade, os inventores das heresias, que, para destruir a fé na ressurreição e no juízo, começam por destruir a alma.
Pois, se não há alma, não há quem ressuscite, nem quem seja julgado.
Assim, pela negação da alma, querem abolir a justiça de Deus.

Uns dizem que a alma é apenas o calor do corpo, que morre quando o corpo esfria;
outros, que é o sopro do ar, dissipado com o último alento;
outros ainda, que é uma harmonia de átomos ou de sons, que cessa quando o instrumento se quebra.
Mas se a alma fosse só harmonia, como poderia discordar de si?
Se fosse só sopro, como poderia pensar?
Se fosse só calor, como poderia amar?

Tudo isso são palavras vãs de homens que preferem o absurdo à verdade, para não confessar o que é divino.
Pois quem reconhece que há uma alma, reconhece que há um Criador; e quem confessa a alma viva, confessa o Deus vivo.

Ó hereges insensatos, que fazem do homem um eco sem voz, uma sombra sem substância!
Se negais a alma, por que falais, por que ensinais, por que disputais?
Quem raciocina, senão a alma?
Quem duvida, quem crê, quem odeia ou ama, senão ela?
Negar a alma é negar o próprio ato de negar!

O corpo nada faz por si: ele é instrumento, não artífice.
A voz vem da garganta, mas o discurso vem da alma; o olhar vem dos olhos, mas a visão vem da alma; o movimento vem dos músculos, mas o querer vem da alma.
Sem ela, o corpo é cadáver — olhos abertos, mas sem luz; boca aberta, mas sem palavra.

Além disso, se a alma fosse só ar ou número, como poderia sofrer ou se alegrar?
Como poderia sentir culpa ou remorso?
O ar não se envergonha, o número não chora, a harmonia não ora.
Mas a alma ora, clama, ama, teme — logo, existe como sujeito real.

E se me disserem que a alma é ilusão dos sentidos, pergunto: de quem é a ilusão?
Dos sentidos? Mas os sentidos são funções da alma!
É a alma que percebe, julga e corrige o erro.
Negar a alma é destruir a própria possibilidade de erro, e portanto de conhecimento.

Esses falsos doutores, que dissolvem o homem em vácuo, têm horror à verdade porque a verdade os julga.
Não suportam uma alma imortal, porque não suportam um juízo eterno.
Preferem morrer com o corpo a viver com a consciência.
Mas Deus não permite que desapareça o que Ele mesmo soprou.

Assim, eu afirmo: a alma é substância viva, corporal em seu modo próprio, espiritual em sua natureza, sensível em todo o corpo e incorruptível em si mesma.
Ela não é o corpo, mas está no corpo como rainha em seu reino; não é o ar, mas o sopro que o anima; não é o número, mas a medida da vida.

E se os hereges zombam dessa verdade, que olhem para dentro de si.
Cada vez que amam, odeiam, recordam ou sonham, confessam o que negam.
Sua própria contradição é sua prova: enquanto afirmam que não há alma, falam com ela.

Assim, permanece firme esta regra:
Negar a alma é negar Deus, e negar Deus é negar o homem.
Pois sem alma, não há imagem; sem imagem, não há semelhança; e sem semelhança, não há criatura.
O homem sem alma seria menos que o pó — porque o pó, ao menos, obedece ao vento; o herege, nem a si mesmo.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXIX

De origine malorum ex anima
Sobre a origem dos males a partir da alma


Já que se provou que a alma é viva, substancial e livre, resta agora explicar de onde procede o mal, pois tudo o que existe tem uma origem.
Não poucos, entre filósofos e hereges, erraram neste ponto: uns imaginaram dois princípios eternos, o bem e o mal; outros disseram que o mal é parte de Deus; outros, ainda, que vem da matéria.
Mas todos se enganam, porque fazem do mal algo que é, quando o mal é, na verdade, o que falta ser.

O mal não é substância, mas defeito da substância; não é criação, mas corrupção.
Deus não o fez, porque Deus só faz o bem.
O mal nasce quando a criatura, livre, se desvia do fim para o qual foi feita.
Assim como a sombra não tem existência própria, mas depende da luz que é obstruída, assim o mal existe apenas onde o bem é impedido.

A alma, que recebeu de Deus a razão e a liberdade, foi feita para o bem.
Enquanto se mantém voltada para o Criador, vive na ordem; quando se volta para si mesma, cai no desvio.
O princípio de todo mal é, pois, a vontade pervertida — a alma que quer ser seu próprio fim.

O primeiro exemplo disso é o anjo que se fez diabo: não foi criado mau, mas se tornou mau ao desejar ser igual a Deus.
Dele a alma humana aprendeu a soberba, a desobediência e a vaidade.
Mas, ao contrário dos anjos decaídos, o homem tem possibilidade de retorno, porque sua queda não é pura rebelião, mas fraqueza.

A origem do mal está, portanto, no interior da alma.
É nela que o desejo se corrompe, que a imaginação se exalta, que a razão se obscurece.
O corpo, servo obediente, apenas executa o que a alma decide.
Assim, a mão que mata é instrumento, mas o homicídio está na vontade; a língua que mente é órgão, mas a falsidade está no coração.

Deus permitiu essa possibilidade não por impotência, mas por justiça.
Pois a liberdade seria inútil se não pudesse ser mal usada.
Sem escolha, não haveria mérito; sem risco, não haveria virtude.
O mal, portanto, é acidente permitido, não vontade de Deus.
É o preço da liberdade, e também a condição de sua glória.

Contudo, Deus não abandona o homem ao mal:
dá-lhe a lei para discernir, a consciência para acusar, a graça para curar.
E mesmo o mal, quando reconhecido e vencido, torna-se ocasião de bem — pois a culpa desperta o arrependimento, e a fraqueza ensina a humildade.

O mal, por isso, não tem raiz eterna: nasce no tempo e morre com o arrependimento.
Só o bem é eterno, porque procede de Deus.
O mal é parasita da liberdade, mas a graça é o remédio da liberdade.
A alma que se converte transforma em virtude o que foi vício, e o inferno interior se converte em céu de penitência.

Não há, pois, dois princípios, mas um só — Deus — e uma só criatura responsável — a alma.
O diabo não é princípio do mal, mas exemplo dele; o homem não é sua vítima, mas seu cúmplice.
E Deus, ao permitir a queda, já dispunha a redenção.

Assim, a origem dos males está na alma, e o fim dos males está em Deus.
A alma, que se desviou livremente, é livre também para retornar.
O mesmo movimento que a precipitou no abismo pode elevá-la ao céu.
E então se cumpre o mistério da justiça divina: que o homem, por onde caiu, seja também por onde se salve.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXX

De ordine rerum spiritualium et corporalium
Sobre a ordem das coisas espirituais e corporais


Depois de mostrarmos que o mal nasce da alma, cumpre agora expor a ordem natural das coisas, para que se entenda por que o desvio é desordem.
Pois o universo não é um amontoado de seres, mas uma hierarquia de causas, dispostas sob um único princípio e movidas por uma única razão.

No cume de tudo está Deus, não corpóreo, mas substância espiritual e sempiterna, invisível aos sentidos, compreensível apenas pela alma.
Dele procede o Verbo, e pelo Verbo todas as coisas foram feitas.
Do Verbo procede o Espírito, e pelo Espírito tudo se conserva.
Assim, o primeiro grau da ordem é a Trindade criadora: Deus que pensa, Deus que fala, Deus que anima.

Abaixo do Criador estão as naturezas espirituais criadas: os anjos, as potências, os espíritos de luz, ministros da providência.
São substâncias sutis, luminosas, ágeis, incorruptíveis, mas não imortais por si — vivem pela vontade divina.
São superiores ao homem, mas servos de Deus.
Entre eles, alguns permaneceram fiéis; outros, pelo orgulho, decaíram, e tornaram-se demônios.
Assim, até nas alturas há ordem e queda: a fidelidade é a forma da permanência; a soberba, o princípio da ruína.

Depois dos anjos vem o homem, mediador entre o espiritual e o corpóreo: alma e corpo unidos em uma só substância moral.
A alma o liga ao céu, o corpo à terra.
Enquanto obedece à alma, o corpo é instrumento da virtude; quando a domina, é prisão do espírito.
O homem é imagem da criação inteira — pois contém em si o invisível e o visível, o eterno e o temporal.

Abaixo do homem estão os animais, que têm alma sensitiva, mas não racional.
Vivem, sentem, movem-se, mas não conhecem a causa de sua vida.
O instinto é sua lei, e o apetite, sua razão.
Eles participam da vida da alma apenas como reflexo, e da vida do corpo como substância.

Mais abaixo, as plantas, que têm princípio vital sem sensibilidade — vivem, mas não sentem.
Sua alma é o crescimento, sua razão é o sol.
São o vestígio do espírito na matéria, o primeiro grau do ser visível.

E, por fim, as coisas inanimadas — pedras, metais, elementos — que participam da ordem pela forma e pela medida, não pela vida.
Elas não conhecem, mas são conhecidas; não agem, mas sustentam a ação.
Mesmo o que é inerte obedece à razão divina: o peso é sua obediência, o número é sua justiça.

Assim, toda a criação é gradação da luz ao corpo, da razão à matéria:
Deus é o princípio; o Espírito, o vínculo; a alma, o intermediário; o corpo, o limite.
Quando essa ordem se mantém, há paz; quando se rompe, há mal.

A desordem, portanto, não é nova substância, mas inversão da hierarquia.
Quando o inferior se ergue contra o superior — a carne contra a alma, a alma contra Deus — nasce o mal moral e o caos do mundo.
Mas quando cada um permanece em seu lugar, há harmonia: Deus reina, a alma adora, o corpo serve.

Por isso, o universo é como uma grande sinfonia: cada natureza é uma nota, cada ser uma voz, e o silêncio que as envolve é o repouso divino.
O pecado é dissonância; a virtude, consonância; a salvação, retorno ao tom original.

O homem, estando no meio, é o campo de batalha dessa harmonia:
se se eleva ao espírito, eleva o mundo; se desce à carne, arrasta consigo a criação.
Assim se cumpre o que o Apóstolo disse: “A criação geme e sofre, esperando a manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8,22).

Logo, a ordem das coisas espirituais e corporais é uma só, e seu centro é o homem — imagem de Deus e mediador da terra.
Dele depende o equilíbrio do cosmos, porque nele a liberdade pode perturbar ou restaurar o ritmo da criação.

E no fim dos tempos, quando toda alma for purificada e todo corpo transformado, o universo inteiro se reordenará em seu princípio, e Deus será tudo em todos (1Cor 15,28).
Então cessará o contraste entre espírito e carne, entre luz e sombra, e a harmonia do início voltará a ressoar — não mais como criação, mas como eternidade.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXI

De opinione Platonis de memoria animarum
Sobre a opinião de Platão a respeito da memória das almas


Platão, entre os filósofos, foi o mais próximo da verdade — e, por isso mesmo, o mais perigoso para os que o seguem sem discernimento.
Ele confessou a imortalidade da alma, sua origem divina e sua superioridade sobre o corpo; mas, ao buscar sua sabedoria fora da revelação, desviou-se, fazendo da alma o que ela não é: eterna por natureza e lembrada de tudo o que foi.

Segundo ele, a alma, antes de entrar no corpo, vivia no mundo das ideias, contemplando as formas puras.
E quando nasce, esquece o que viu; mas, ao aprender, apenas recorda.
Assim, todo saber seria reminiscência (anamnesis), e todo erro, esquecimento.
Mas quem dera que a alma humana tivesse visto o que não pode compreender nem agora!

Se a alma já tivesse conhecido todas as coisas, por que ignora tantas?
Por que uma aprende música e outra não?
Por que uma entende o número e outra o teme?
A diversidade de talentos mostra que o conhecimento não é recordação, mas aquisição.
E se a alma se lembrasse das ideias eternas, não poderia errar — pois ninguém esquece o que é divino.

Além disso, se toda alma é reencarnada, por que não recorda ao menos uma existência anterior?
Por que não traz lembranças precisas de nomes, lugares, ações?
Ninguém jamais reconheceu a casa em que teria vivido antes, nem o rosto que teria amado em outro corpo.
Tudo o que chamam de lembrança é fantasia da imaginação perturbada.

Na verdade, a alma não aprende porque recorda, mas porque é racional e vive da verdade.
Ela reconhece o bem não por lembrança do passado, mas porque foi criada por Aquele que é o Bem.
O conhecimento não vem de dentro por memória de outras vidas, mas de cima, pela iluminação do Espírito.

A luz do entendimento é reflexo da luz divina; e, quando a alma se volta para essa luz, compreende.
Quando se afasta, ignora.
O que Platão chamou reminiscência é, na verdade, inspiração: o sopro de Deus que desperta no homem o sentido do eterno.

É verdade que há em nós uma lembrança inata — mas não de coisas vistas, e sim do Deus que nos fez.
A alma reconhece o verdadeiro não porque o tenha contemplado antes, mas porque o tem inscrito em si como lei natural.
Por isso o profeta disse: “Porei a minha lei em seu coração e a escreverei em sua alma” (Jr 31,33).

Platão confundiu essa lembrança divina com memória de outras vidas, porque não conhecia o Criador, mas apenas o reflexo da criação.
Viu a centelha e pensou ser o fogo.
Percebeu a voz interior e julgou-a eco de outro mundo.
Mas essa voz é a consciência, e esse eco é o Espírito que chama.

A alma humana, portanto, não é eterna nem onisciente: é imortal por dom e racional por natureza.
Seu saber é participação, não lembrança.
O que ela chama “recordar” é “ser tocada pela verdade”.
E a verdade, quando toca, parece sempre familiar — como se já a tivéssemos conhecido, porque nascemos dela.

Assim se explica o encanto do verdadeiro:
não o aprendemos como novidade, mas o acolhemos como reencontro.
É por isso que a alma, ao ouvir a palavra de Deus, sente que é verdadeira antes de prová-la.
Ela não se lembra de tê-la visto, mas reconhece Aquele de quem procede.

Logo, Platão não estava totalmente errado, mas se perdeu no excesso da razão sem fé.
Confundiu a nostalgia do céu com a lembrança do céu, e a centelha do Espírito com o reflexo da alma.
A verdade não é memória do passado, mas presença do eterno.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXII

De unitate animae in corpore et de sensibus ejus
Sobre a unidade da alma no corpo e sobre seus sentidos


Há quem imagine que a alma esteja distribuída em partes, como o corpo que ela anima, e que haja uma parte que vê, outra que ouve, outra que sente, e outra que pensa.
Mas isso seria fazer da alma um corpo entre corpos, o que já refutamos.
A alma não é dividida — é una em substância e múltipla em operação.
Está toda em todo o corpo, e toda em cada uma de suas partes.

Quando um membro é ferido, toda a alma sente; e quando um só sentido é tocado, todos os outros se movem.
Isso prova que o sentir é função de uma única substância, não de partes separadas.
A dor do pé perturba o coração; a música que agrada aos ouvidos comove o rosto; o medo do perigo faz tremer o corpo inteiro.
Onde há unidade de reação, há unidade de princípio.

A alma é, pois, como o fogo que penetra o ferro:
não se divide, mas o inflama todo; não se confunde com ele, mas o faz brilhar e agir.
O corpo é o instrumento; a alma, o músico.
Ela não está em um ponto, mas em toda a extensão; e o que parece mover-se no espaço é apenas mudança de atenção.

Os cinco sentidos são canais diferentes de uma mesma percepção.
A visão é a luz da alma através dos olhos; a audição, seu eco através do ar; o olfato, seu sopro que discerne os odores; o paladar, sua umidade que prova; o tato, seu contato mais íntimo com o mundo.
Mas em todos é a alma que sente — não os órgãos, que são apenas suas janelas.

Se os olhos vissem por si, veriam também depois da morte; mas quando a alma parte, os olhos estão abertos e nada veem.
O ouvido, sem a alma, é surdez; a língua, sem a alma, é silêncio; a pele, sem a alma, é pedra.
Tudo o que chamamos de sentido é, na verdade, presença da alma no corpo.

Ela é o vínculo entre o invisível e o visível, o espírito e a carne, o ser e o sentir.
Por ela, o corpo participa da vida e a vida participa do corpo.
Ela é o ponto médio onde o espiritual se torna sensível e o sensível se torna espiritual.

Os filósofos disseram que a alma é o centro da harmonia vital; nós dizemos que é o sopro de Deus mantido em união com a carne.
E assim como Deus está todo em todo o universo e todo em cada criatura, a alma está toda no corpo e toda em cada parte.
Ela é imagem e espelho do modo divino de estar presente.

Quando pensa, ela usa o cérebro; quando deseja, o coração; quando age, os membros.
Mas é sempre a mesma que pensa, deseja e age.
E como o fogo acende muitas lâmpadas sem se dividir, a alma ilumina muitas funções sem se fragmentar.

A multiplicidade das operações não destrói a unidade da substância.
Assim como a luz atravessa mil cores sem deixar de ser uma, a alma se diversifica nos sentidos sem perder sua unidade.
Toda a sensação é participação do mesmo princípio vital, que é a alma inteira.

Logo, não há parte da carne sem a alma, nem parte da alma sem relação com o corpo.
A união é tão íntima que se confundem em um único movimento — e, no entanto, permanecem distintos: a carne, serva; a alma, senhora.
Mas o governo da alma sobre o corpo é um reflexo do governo de Deus sobre o mundo: invisível, eficaz, contínuo.

Por isso, quando a alma se corrompe, o corpo adoece; e quando se purifica, o corpo floresce.
A saúde corporal é o eco da ordem interior; a enfermidade, o espelho da desordem.
O corpo é o instrumento visível da música invisível da alma.

Assim, a alma é una, presente, indivisível e viva; e o corpo, seu templo e seu testemunho.
Enquanto permanecem unidos, o homem é harmonia; quando se separam, o corpo se dissolve e a alma retorna à sua origem.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXIII

De distinctione inter animam hominis et animam brutorum
Sobre a distinção entre a alma do homem e a dos animais


Os filósofos, e sobretudo os estóicos, afirmam que não há diferença essencial entre a alma dos homens e a dos animais, mas apenas diferença de grau: que ambas são fogo ou sopro, e que o homem é apenas um animal mais ordenado.
Mas essa opinião, além de falsa, é injuriosa à dignidade do Criador e do homem.
Pois se não há diferença entre as almas, não há diferença entre as naturezas; e se não há diferença entre as naturezas, o homem não seria imagem de Deus, mas apenas um animal mais bem talhado.

De fato, há vida nos animais — mas não razão; há movimento — mas não liberdade; há sensação — mas não consciência.
Eles vivem, mas não sabem que vivem; sentem, mas não julgam o que sentem.
O cão reconhece o dono, mas não compreende o senhorio; o cavalo obedece à rédea, mas não à justiça; a abelha trabalha por instinto, não por virtude.
Tudo o que fazem é natural, não deliberado; obedecem à natureza, não à razão.

A alma dos brutos é, pois, anima animalis, isto é, princípio de vida corporal.
Nasce com o corpo, cresce com ele e perece com ele.
A alma do homem é anima spiritalis, isto é, princípio de razão e de eternidade.
Recebeu o sopro de Deus e, portanto, participa do seu ser.

O animal vive para o corpo; o homem, para Deus.
A alma do animal é serva da carne; a do homem é senhora do corpo.
Por isso, o animal segue o apetite; o homem, o dever.
Um é conduzido de fora; o outro, de dentro.
Um é guiado pelo instinto; o outro, pela consciência.

Eis a marca da diferença: a palavra.
Nenhum animal fala, porque nenhum animal pensa.
A voz do homem é expressão da alma racional; o bramido, o uivo ou o canto dos brutos são impulsos da natureza.
Onde há palavra, há espírito; onde há apenas som, há alma servil.

Também nos afetos se nota a diferença: o animal se irrita, mas não odeia; se junta, mas não ama; teme, mas não adora.
Ele reage, mas não escolhe; sofre, mas não reflete; deseja, mas não julga.
Tudo nele é necessidade; nada é virtude.

Por isso o homem foi posto sobre os animais, não para imitá-los, mas para governá-los.
Se o homem desce à sua condição, perde a sua; mas se os eleva à sua obediência, cumpre a ordem do Criador.
O domínio do homem sobre os brutos é símbolo do domínio da alma sobre o corpo: quando o inferior comanda o superior, há desordem; quando o superior governa o inferior, há paz.

Negar a diferença entre a alma humana e a animal é negar o espírito e, portanto, negar Deus.
Pois só o homem, tendo recebido o sopro divino, pode conhecer e adorar o Autor da vida.
O animal respira o ar; o homem respira Deus.

A alma humana é, portanto, dupla em relação à animal: é viva e racional, sensível e espiritual, terrestre e celeste.
Ela liga o invisível ao visível, porque é mediadora entre o corpo e o Criador.
O animal termina na terra; o homem começa no céu.

Assim, o homem é o único ser que pode se perder como fera ou se elevar como anjo.
Sua liberdade é sua glória e seu risco: se obedece à razão, torna-se divino; se se entrega ao instinto, torna-se bestial.
Por isso, não é o corpo que o torna semelhante aos animais, mas a alma que o distingue deles.

E quando os hereges dizem que as almas passam de um corpo a outro — ora homem, ora animal —, insultam o Criador e confundem a ordem do ser.
Pois o que é racional não pode tornar-se irracional sem destruir-se; e o que é sensitivo não pode tornar-se espiritual sem ser recriado.
A metempsicose é, pois, fábula de poetas, não doutrina de sábios.

Logo, há duas ordens de almas:
— as humanas, feitas à imagem de Deus, para a eternidade;
— as animais, feitas para o movimento e o ciclo da vida.
As primeiras conhecem o bem; as segundas apenas o experimentam.
As primeiras buscam a verdade; as segundas seguem o instinto.

E assim se cumpre a ordem universal:
os corpos servem às almas; as almas animais servem às racionais; e todas as racionais servem a Deus, de quem receberam o ser e para quem devem retornar.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXIV

De affectibus animae
Sobre os afetos da alma


Toda alma é viva, racional e sensível; e porque é sensível, é também movida.
Esses movimentos são o que chamamos afetos — impulsos interiores que nascem do encontro entre o que a alma conhece e o que deseja.
Assim como o fogo não existe sem calor, a alma não existe sem paixão.
Mas, do mesmo modo que o calor pode aquecer ou queimar, os afetos podem ser virtude ou vício, conforme a direção que recebem.

Não é o afeto em si que é mau, mas o uso que dele faz a vontade.
A ira, por exemplo, é natural, porque ninguém é tão insensível que não se indigne diante da injustiça.
Mas quando se torna fúria, passa do instinto da justiça ao desvario da vingança.
Assim, o que Deus pôs na alma para defender o bem, o homem converte em instrumento do mal.

O medo também é natural, pois preserva o ser do perigo; mas quando se transforma em covardia, torna-se fuga do dever.
A alegria é dom de Deus, reflexo da felicidade eterna; mas quando se converte em prazer desordenado, degrada-se em luxúria.
Até a tristeza, que nos inclina à penitência, torna-se enfermidade quando se afasta da esperança.

Logo, os afetos são como rios: se correm em seu leito, fertilizam; se transbordam, destroem.
A razão é o leito desses rios — e a fé, a nascente.
O homem justo não é o que não sente, mas o que sente segundo a ordem.

Há quem queira matar os afetos, como se fossem doenças da alma; mas quem mata o sentir, mata o amar.
O que não se indigna com o mal não ama o bem; o que não teme ofender a Deus não o reverencia; o que não se entristece pelo pecado não deseja a conversão.
As paixões são o vigor do espírito; sem elas, a alma seria lânguida e fria, incapaz de virtude ou de culpa.

Por isso, Deus as colocou no homem, mas sujeitas à razão.
A alma é o cavaleiro, os afetos, os cavalos.
Se ela os domina, avança; se é arrastada, cai.
O corpo é a rédea: quando dócil, modera o ímpeto; quando rebelde, o excita.

A ira justa é força da justiça; a piedade é tristeza que ama; o zelo é amor inflamado; o temor é prudência vigilante.
Não há virtude sem paixão moderada, nem vício sem paixão desordenada.
O mal está no excesso, não no movimento.

O exemplo de Cristo mostra que os afetos são santos quando ordenados.
Ele se indignou contra os vendilhões do templo, chorou sobre Jerusalém, sentiu angústia no Getsêmani, e ainda assim era sem pecado.
Logo, sentir não é cair, mas não saber sentir é decair.
A perfeição não está em ser pedra, mas em ser alma que sente segundo Deus.

Assim, a moral não consiste em suprimir as paixões, mas em batizá-las.
O amor torna-se caridade, o medo torna-se reverência, a ira torna-se zelo, a tristeza torna-se compunção, a alegria torna-se louvor.
Em Cristo, todos os afetos foram redimidos; na graça, todos se tornam virtude.

Quando a alma é governada pelo Espírito, os afetos são música; quando governada pela carne, são ruído.
E como a alma é medida do homem, os afetos são medida da alma: quanto mais elevados, mais divina; quanto mais baixos, mais terrena.

Não é, pois, o sentir que nos torna maus, mas o modo de sentir.
Os demônios também se indignam, mas contra o bem; os santos se indignam, mas contra o mal.
Ambos sentem o mesmo afeto, mas com direções opostas.
A diferença não está no fogo, mas no que ele consome.

Assim, aprende o homem a não temer seus afetos, mas a educá-los.
Eles são asas e correntes, conforme o uso.
Quem os domina, voa; quem é dominado, arrasta-se.
E porque a alma é imagem de Deus, deve ordenar em si o que Deus ordena no mundo:
— amor como força,
— justiça como medida,
— paz como termo.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXV

De libertate arbitrii
Sobre a liberdade do arbítrio


Se a alma sente, quer e escolhe, segue-se que ela é livre; pois a liberdade está na capacidade de escolher entre contrários.
Sem liberdade, não há mérito nem culpa; e sem mérito nem culpa, não há juízo, nem recompensa, nem condenação.
Assim, a liberdade é o selo da alma racional, a marca mais clara de sua origem divina.

Deus, ao criar o homem, não quis servo, mas filho.
Deu-lhe a razão para conhecer e a vontade para querer.
O conhecimento mostra o bem; a vontade o realiza.
A razão é o olho; a liberdade, o movimento; a graça, a luz.
Sem a luz, o olho não vê; sem o movimento, não caminha; sem a vontade, não ama.

Mas os hereges dizem que o homem não é livre, que tudo está determinado pelo destino ou pela natureza.
Negam a liberdade para negar a culpa; e negam a culpa para negar o juízo.
Mas se o homem não é livre, o pecado seria obra de Deus — e Deus seria injusto ao punir o que Ele mesmo determinou.
A justiça divina exige a liberdade humana, e a liberdade humana confirma a justiça divina.

A alma é livre não porque possa tudo, mas porque pode escolher.
O poder de fazer o mal não é essência da liberdade, mas prova dela.
Pois o bem só tem valor se puder ser rejeitado.
Não é livre quem não pode pecar, mas quem, podendo, não quer.

A liberdade é o ponto de equilíbrio entre a graça e a tentação.
Deus convida, o diabo persuade, a alma decide.
Nem Deus força, nem o demônio obriga; ambos chamam, e a vontade responde.
A salvação é consentimento ao bem; a perdição, consentimento ao mal.

Os filósofos, incapazes de compreender o dom da graça, confundiram liberdade com necessidade.
Uns disseram que o homem é movido pelas estrelas; outros, pelos elementos; outros, pelo corpo.
Mas se as estrelas governassem o homem, todos sob o mesmo céu seriam iguais; e se o corpo o determinasse, não haveria virtude, mas apenas química.
Ora, dois irmãos nascidos sob o mesmo signo vivem de modo diverso, e o mesmo corpo é capaz de pureza ou crime.
Logo, há algo acima das estrelas e da carne — e esse algo é a alma livre.

O arbítrio é o trono da responsabilidade.
Cada ato da alma é uma sentença proferida por si mesma.
A liberdade não se perde nem no pecado: o pecado é mau uso da liberdade, não sua destruição.
O homem sempre pode voltar, porque o mesmo poder que o levou à queda pode levá-lo ao arrependimento.

A graça de Deus não suprime o livre-arbítrio, mas o purifica.
Ilumina a razão, fortalece a vontade, endireita o desejo.
Sem ela, a liberdade se desvia; com ela, se cumpre.
A graça não é jugo, mas direção.
E o Espírito, longe de dominar, ensina a alma a dominar-se.

A liberdade é, pois, o centro da alma — sua dignidade e seu risco.
Deus a confiou ao homem como espelho de Si mesmo: livre como o Criador, porém limitada como criatura.
Assim, a liberdade humana é o lugar onde Deus é honrado ou ofendido.
É o altar do amor e o campo do juízo.

Quem ama, ama livremente; quem obedece por coação, não adora.
Por isso Deus não quer servos forçados, mas filhos voluntários.
A obediência que nasce da liberdade é a que tem valor diante do Altíssimo.
A alma cativa do mal ainda é livre no querer; o pecado a prende, mas não a destrói.

A redenção, enfim, é libertação da liberdade — isto é, devolvê-la à sua ordem.
Cristo não veio anular a escolha, mas restaurá-la.
No pecado, o homem escolhe contra si; na graça, escolhe segundo sua natureza.
E a verdadeira liberdade é esta: poder querer o bem, porque se ama o bem.

Assim, a alma é livre por criação, ferida pela culpa, curada pela graça e glorificada pela obediência.
E quando, no fim dos tempos, a vontade humana se unir à vontade divina sem mais resistência, a liberdade será perfeita — não porque poderá o mal, mas porque só desejará o bem.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXVI

De conscientia et lege naturali
Sobre a consciência e a lei natural


Toda alma humana, mesmo antes de conhecer a lei escrita, traz em si uma lei interior, viva e vigilante, que lhe ensina o que deve e o que deve evitar.
Essa lei é a voz de Deus impressa na alma — o eco da razão divina dentro da criatura racional.
Não está nos livros, mas no coração; não foi aprendida, mas criada; não se lê com os olhos, mas se sente com a consciência.

É por essa lei que o homem distingue o bem do mal antes de qualquer doutrina.
Mesmo os que nunca ouviram falar de Cristo sabem que roubar é injusto, que mentir é indigno, que matar é crime.
E quando fazem o mal, sentem vergonha; quando fazem o bem, sentem paz.
Ora, se a consciência os acusa ou absolve, é sinal de que existe dentro deles um juiz invisível.

A consciência é, pois, o sacerdote da alma: consagra o bem, denuncia o mal, oferece o arrependimento como sacrifício.
É o altar interior diante do qual ninguém mente, e o tribunal onde o homem se julga antes de ser julgado por Deus.

Os filósofos reconheceram algo disso quando falaram de uma “voz da razão” ou de um “espírito comum”, mas não souberam dizer de onde vinha.
Eles a atribuíram à natureza, sem compreender que a natureza é a forma da providência.
O que chamam de instinto moral é, na verdade, o Espírito Criador agindo na alma, lembrando-lhe o seu autor.

A consciência é testemunha da presença de Deus: ela o afirma até quando o teme.
O pecador pode calá-la, mas não apagá-la; pode resistir, mas não destruí-la.
E quanto mais a alma se afasta de Deus, mais essa voz a persegue.
Por isso, o inferno começa dentro do homem — na inquietação da consciência que não se cala.

Assim, a lei natural é universal e eterna.
Foi dada a Adão antes do pecado, confirmada em Moisés pela lei escrita, consumada em Cristo pela graça.
A lei mosaica corrige; a lei natural inspira; a graça aperfeiçoa.
Quem obedece à consciência já obedece, em germe, a Deus.

Porém, a consciência, sem fé, é lâmpada que se apaga; sem graça, é juíza sem força.
Ela mostra o bem, mas não o dá; denuncia o mal, mas não o cura.
A lei natural é espelho; a graça, luz.
O espelho mostra a mancha; a luz permite lavá-la.

A alma justa é aquela cuja consciência e vontade coincidem; a pecadora, aquela cuja consciência acusa o que a vontade ama.
Assim, todo pecado é guerra civil da alma contra si mesma.
E todo arrependimento é reconciliação do homem consigo e com Deus.

Feliz aquele cuja consciência é pura: nele a alma repousa e Deus habita.
Pois onde há consciência pacificada, há imagem restaurada; e onde há imagem restaurada, há já começo de céu.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXVII

De poenis inferorum et refrigeriis justorum
Sobre as penas dos infernos e o repouso dos justos


Depois de tratar da consciência e da lei natural, é necessário examinar o que sucede à alma depois da morte, antes da ressurreição.
Pois muitos, ignorando o mistério do inferus, imaginam que as almas são já recebidas no céu ou lançadas no fogo eterno; mas a Escritura ensina que há um lugar comum onde todas esperam o juízo — cada qual em estado diverso conforme sua obra.

Esse lugar, que os hebreus chamam Sheol e os gregos Hades, não é o inferno último, mas o receptáculo das almas.
Não é prêmio nem suplício perfeito, mas prelúdio de ambos.
Nele, as almas dos justos descansam em paz, e as dos ímpios sofrem em tormento; mas ambas aguardam o mesmo dia — o da ressurreição e do juízo.

Não se deve confundir esse estado com o céu, pois ninguém sobe ao Pai senão por Cristo; nem com a Geena, pois o fogo eterno só se acende após o julgamento.
É antes o atrium aeternitatis, o vestíbulo da eternidade, onde a justiça já começa a brilhar, mas ainda não se consumou.

O Senhor, ao morrer, desceu também Ele a esse lugar — não como prisioneiro, mas como libertador — para anunciar aos que dormiam a vitória da vida sobre a morte.
Assim, o inferus se tornou duplo: para os ímpios, lugar de trevas; para os santos, seio de repouso.
Por isso se diz que o pobre Lázaro foi levado ao “seio de Abraão”, enquanto o rico, em tormento, o contemplava de longe (Lc 16,23).

O seio de Abraão é, pois, o refrigério dos justos — um repouso sem corpo, mas cheio de esperança; uma luz sem dia, mas sem trevas.
Ali as almas santas gozam de paz, não ainda de glória; são consoladas, não ainda coroas.
Vivem na lembrança do bem e na espera da visão.

Já as almas ímpias, separadas das luzes de Deus, ardem em seu próprio remorso.
O fogo que as consome é interior: chama da consciência, vermes do arrependimento tardio.
Não há ali corpo para queimar, mas há dor para sentir.
O espírito, mais sensível que a carne, sofre por dentro o que mereceu por fora.

E entre esses dois estados — repouso e tormento — há um abismo que ninguém atravessa.
Nem a súplica dos justos alcança os réprobos, nem o pranto dos réprobos alcança os justos.
A justiça começa a ser eterna já nesse limiar: cada alma permanece onde a sua vida a pôs.

O inferus, portanto, não é invenção de poetas, mas instituição da providência.
É o campo onde a semente do juízo germina antes da colheita final.
A alma não fica errante, nem dorme, mas vive consciente do que fez e do que espera.
O justo repousa porque tem esperança; o ímpio sofre porque tem memória.

O repouso dos santos é o primeiro sabor do céu; o tormento dos ímpios, o primeiro eco do inferno.
Ambos são prelúdios, não fins.
O juízo final confirmará o que aqui já começou: a paz dos que amaram e a dor dos que rejeitaram o amor.

Assim, o inferus é o grande espelho da justiça divina — um intervalo onde a misericórdia cede ao tempo e a verdade prepara a eternidade.
E quando o tempo cessar, cessará também o inferus; o céu e o inferno permanecerão.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXVIII

De die judicii et sorte animarum
Sobre o dia do juízo e o destino das almas


Há de vir um dia em que o tempo cessará e o invisível se tornará visível: o dia do juízo, em que Deus será juiz e a alma, testemunha de si mesma.
Nesse dia, o que agora está oculto se manifestará; o que é fé, será visão; o que é espera, será sentença.

Os tempos de Deus são longos, mas certos.
Assim como o grão repousa na terra até o tempo da colheita, as almas repousam no inferus até o tempo do juízo.
O mesmo poder que fez o corpo do pó o chamará de volta; o mesmo sopro que deu à alma a vida a apresentará diante do trono divino.
Nada do que foi criado escapará ao olhar do Criador.

O juízo será universal e definitivo.
Não haverá distinção de povos ou tempos, mas de obras e intenções.
Cada alma trará consigo o livro de sua vida — não escrito com tinta, mas com lembranças.
O que a consciência murmura hoje em segredo, a eternidade proclamará em voz alta.

O tribunal será duplo:
De um lado, o Cristo glorioso, juiz dos vivos e dos mortos;
do outro, o homem inteiro, ressuscitado com o corpo e a alma.
O céu e a terra testemunharão; os anjos, ministros da justiça, separarão os justos dos ímpios como o lavrador separa o trigo do joio.

Então se abrirão dois caminhos: um para a luz, outro para as trevas.
Os justos serão levados à presença de Deus, onde a visão substitui a fé e o amor é sem medida;
os ímpios, lançados fora, onde o fogo não consome e o verme não morre.
Mas o fogo não é metáfora: é realidade espiritual, chama viva da justiça, que ilumina aos santos e devora aos réprobos.

Nesse dia, a alma será julgada com o corpo, porque ambos pecaram ou obedeceram juntos.
A carne, que foi instrumento, será participante; o espírito, que foi guia, será responsável.
E o homem, restaurado em sua totalidade, ouvirá o veredicto de sua própria história.

Os sinais desse dia já estão nas dores do mundo:
as guerras, os terremotos, as corrupções e as pestes são o prelúdio do parto da eternidade.
A criação geme porque pressente o fogo que a purificará.
Mas o fogo do juízo não destrói: renova.
O universo será batizado em chamas, e o que era impuro se tornará incorruptível.

Depois disso, haverá apenas dois reinos:
o reino da luz, onde Deus será tudo em todos;
e o reino das trevas, onde o homem será o que escolheu ser — ausência de Deus.

A sorte das almas será eterna porque eterno é o princípio que as julga.
Os que amaram a verdade viverão nela; os que a rejeitaram serão consumidos por sua ausência.
E cada um reconhecerá a justiça do que recebe, pois o juízo será revelação, não imposição.

Então cessará o tempo e começará a eternidade.
A morte será morta; o pecado, esquecido; o inferno, encerrado em si mesmo; e a criação, restituída à ordem primeira.
O homem, agora glorificado, conhecerá a Deus não por fé, mas por visão, e será conhecido por Ele em plenitude.

Essa é a consumação do desígnio divino: o retorno da alma a Deus pelo caminho da liberdade e da graça.
O que começou no sopro do Criador termina no abraço do Juiz.
E o homem, que foi pó e sopro, será fogo e luz — imagem viva do Deus eterno.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XXXIX

De coniunctione animae et corporis in resurrectione
Sobre a união da alma e do corpo na ressurreição


Depois do juízo universal, haverá a ressurreição da carne, para que o homem inteiro — alma e corpo — receba o que mereceu inteiro.
Pois o que pecou e o que praticou o bem não foi a alma sozinha, mas a alma com o corpo.
A justiça exige, portanto, que o corpo participe das penas e das glórias da alma, porque foi seu companheiro em todas as obras.

Deus, que uniu a alma e o corpo no princípio, não permitirá que permaneçam separados para sempre.
O mesmo poder que formou o homem do pó e do sopro o reconstituirá no último dia.
A morte é a separação; a ressurreição, o reencontro.
E o homem voltará a ser o que era — não outro, mas o mesmo.

Não se deve pensar, porém, que a ressurreição é mera substituição:
não se dará outro corpo, mas o mesmo corpo restaurado.
Deus não cria novamente, Ele restaura; não forma do nada, mas chama do nada o que existiu.
A substância se conserva em sua identidade, embora purificada e espiritualizada.

O corpo ressuscitado não será carnal no sentido de corruptível, mas será corpo verdadeiro, glorioso e impassível.
Será o mesmo corpo quanto à essência, mas outro quanto ao estado: mortal quanto à origem, imortal quanto ao fim.
Assim como o ferro, lançado no fogo, permanece ferro, mas participa do brilho do fogo, o corpo ressuscitado será corpo, mas cheio de luz divina.

A alma, reencontrando seu antigo tabernáculo, reconhecerá nele sua morada.
Não haverá confusão de corpos nem transmigração de almas: cada corpo receberá sua própria alma, e cada alma reencontrará seu próprio corpo.
O número dos eleitos será o mesmo que o dos criados, pois Deus nada perde do que criou.

Essa união será indissolúvel.
A morte não mais dividirá o que o juízo eternizou.
A alma será espelho do corpo glorificado; o corpo, vestimenta da alma luminosa.
Ambos, enfim, formarão uma só harmonia, um só cântico, uma só substância humana elevada à incorruptibilidade.

E porque a alma é a forma do corpo, o corpo ressuscitará conforme o estado da alma:
o justo terá corpo de luz; o ímpio, corpo de sombra.
Ambos imortais, mas com destinos opostos — um para gozar da presença de Deus, outro para suportar a ausência d’Ele.

A ressurreição é, portanto, a restauração da ordem inicial: o homem volta a ser total, a criação volta a ser completa, e Deus volta a ser tudo em todos.
O que foi dividido pelo pecado é reunido pela graça; o que foi corrompido pela morte é purificado pela glória.
O corpo e a alma, reconciliados, cantarão o mesmo hino: “Onde está, ó morte, a tua vitória?” (1Cor 15,55).

E assim, a ressurreição da carne não é milagre isolado, mas coroamento da economia divina:
Deus não salva a alma contra o corpo, mas no corpo e com o corpo;
não redime o homem em parte, mas inteiro — o mesmo que criou, o mesmo que morreu, o mesmo que ressuscitou em Cristo.

TERTULLIANUS — DE ANIMA

Liber primus — Caput XL

De consummatione mundi et ultimo statu animarum
Sobre a consumação do mundo e o estado último das almas


Quando tudo tiver sido julgado e toda carne ressuscitada, restará cumprir o último ato do desígnio divino: a consumação do mundo.
Pois este século foi criado para o homem, e quando o homem for restituído ao seu fim, também o mundo cumprirá o seu.
Nada do que é temporal subsiste além do tempo; e o tempo termina quando a eternidade começa.

Então o universo será purificado pelo fogo.
Não o fogo que destrói, mas o fogo que revela.
O mesmo elemento que agora consome, naquele dia purificará; o mesmo calor que castiga, iluminará.
O fogo eterno será como o olhar de Deus atravessando a criação: queimará o que é impuro, tornará incorruptível o que é justo.

As estrelas cairão porque sua função cessou; o sol e a lua se apagarão porque a luz de Deus será suficiente.
Não haverá mais noite, pois o próprio Senhor será claridade; nem mais sombra, porque nada restará que separe.
A natureza, liberta da corrupção, será vestida de glória.
Tudo o que gemeu por causa do pecado se alegrará na redenção dos filhos de Deus.

O mundo, que começou na palavra “Fiat”, terminará na palavra “Consummatum est”.
E, como o corpo do homem, também o cosmos ressurgirá, não outro, mas transformado: o mesmo céu, novo em esplendor; a mesma terra, nova em pureza.
A criação voltará ao estado da inocência, mas agora com consciência — não o paraíso perdido, mas o paraíso transfigurado.

Então as almas dos justos, reunidas aos corpos glorificados, habitarão o reino eterno.
Não haverá mais distinção de tempo, nem sucessão de atos, mas pura permanência: vida imóvel no movimento da luz, paz que é ação contínua, amor sem alternância.
A vontade será uma só, porque todos amarão o mesmo Bem; e a diferença das pessoas será harmonia de luzes no único esplendor do Criador.

As almas dos ímpios, ao contrário, fixar-se-ão em sua própria escuridão.
Não desejarão mais o bem, porque o desprezaram; e o que antes era liberdade tornar-se-á necessidade do mal.
Essa é a segunda morte — não o deixar de ser, mas o ser sem Deus.
Não haverá fim para o sofrer, porque não haverá mais tempo para mudar.
A eternidade será justiça petrificada.

Assim se consumará o duplo destino das almas:
umas para a vida eterna, em união perfeita com Deus;
outras para a morte eterna, separadas d’Ele para sempre.
E o universo inteiro se aquietará na ordem definitiva: o céu acima, a terra transfigurada abaixo, e o inferno selado nas profundezas.

O Espírito de Deus encherá tudo; a criação, enfim, será templo; e o homem, sacerdote.
A alma, que outrora buscava o que via, agora verá o que buscava.
A visão substituirá a fé, o amor será essência, e a eternidade, repouso.

Então cessarão a dúvida, o erro e o desejo.
Nada restará a ser aprendido, porque tudo será conhecido; nada restará a ser amado, porque tudo será amor.
A alma será simples como Deus é simples, e eterna como Ele é eterno — não por natureza, mas por participação.

E o ciclo estará completo:
— Deus cria;
— o homem cai;
— a graça redime;
— a eternidade consuma.

A alma, que saiu de Deus no sopro da criação, voltará a Ele na chama da glória.
O que era imagem tornar-se-á semelhança.
E o homem, enfim, será o que foi pensado: espelho consciente do Infinito.

ORDINATIO OPERIS — De Anima in Quattuor Partes Distinctum

BLOCCUS PRIMUS — DE PRINCIPIO ET FIDE ANIMAE

(Da origem e da fé da alma — capítulos I–IX)

Tema geral: A alma como dom divino e princípio de vida racional, conhecida pela fé antes da razão.
Tertuliano inicia pelo fundamento epistemológico: crer para compreender. Em seguida define, descreve e distingue a substância, forma, condição e origem da alma — contra filósofos e hereges que a julgavam incorpórea ou emanada.

  1. De causis scribendi hujus libri — Das causas que levaram à composição deste livro.
  2. Quod fides Christiana prius credere debeat quam disputare — Que a fé cristã deve primeiro crer, antes de disputar por raciocínios.
  3. De definitione animae secundum philosophiam — Sobre a definição da alma segundo a filosofia.
  4. De substantia animae, an corporea sit — Sobre a substância da alma e se ela é corpórea.
  5. De forma et figura animae — Sobre a forma e figura da alma.
  6. De conditione et qualitate animae — Sobre a condição e qualidade da alma.
  7. De origine animae — Sobre a origem da alma.
  8. De opinionibus philosophorum et haereticorum circa originem animae — Sobre as opiniões dos filósofos e dos hereges acerca da origem da alma.
  9. De sententia Platonis et Hermogeni de animae substantia — Sobre a opinião de Platão e de Hermógenes a respeito da substância da alma.

Unidade conceitual:
A alma é corpórea em sentido espiritual, criada por Deus e transmitida pelo homem, dotada de forma e potência.
Este bloco corresponde à gênese da antropologia cristã, onde Tertuliano contrapõe o dualismo platônico e afirma a fé como via primeira do conhecimento espiritual.


BLOCCUS SECUNDUS — DE GENERATIONE, DISTINCTIONE ET VITA ANIMAE

(Da geração, distinção e vida da alma — capítulos X–XVI)

Tema geral: A alma humana como propagada desde Adão, distinta do espírito, sexuada, sensitiva e viva mesmo após a morte.
É a parte mais psicológica e fisiológica, onde Tertuliano se aproxima da linguagem médica e estoica, descrevendo o modo de transmissão da alma e seus atos vitais.

  1. De animarum propagatione — Sobre a propagação das almas.
  2. De natura animae humanae ex anima primi hominis derivata — Sobre a natureza da alma humana derivada da alma do primeiro homem.
  3. De distinctione animae a spiritu — Sobre a distinção entre alma e espírito.
  4. De sexu animae — Sobre o sexo da alma.
  5. De sensibus animae et de affectibus ejus — Sobre os sentidos e os afetos da alma.
  6. De somno et de somniis — Sobre o sono e os sonhos.
  7. De visione animarum defunctorum — Sobre as visões das almas dos defuntos.

Unidade conceitual:
A alma é vivente, sensitiva e contínua, participante de uma substância única derivada do primeiro homem.
Ela mantém atividade própria mesmo no repouso, sonha, percebe e pressente — é a presença viva da razão divina no homem.


BLOCCUS TERTIUS — DE MORIBUS, LIBERTATE ET LEGE ANIMAE

(Dos costumes, da liberdade e da lei da alma — capítulos XVII–XXXVI)

Tema geral: A alma moral, submetida à prova do bem e do mal.
Aqui Tertuliano constrói a teologia moral do espírito humano, introduzindo o livre-arbítrio, a consciência e a lei natural.
O homem é responsável por seus afetos e escolhas; sua alma é tribunal e testemunha de Deus.

  1. De statu animae in morte — Sobre o estado da alma na morte.
  2. De inferis et diversitate receptaculorum animarum — Sobre o inferno e a diversidade dos lugares onde as almas são recebidas.
  3. De resurrectione carnis et reditu animae ad corpus — Sobre a ressurreição da carne e o retorno da alma ao corpo.
  4. De sensu poenarum et gaudiorum post mortem — Sobre o sentido das penas e alegrias após a morte.
  5. De Christo ut homine et de anima ejus — Sobre Cristo como homem e sobre a sua alma.
  6. De anima prophetica et inspiratione divina — Sobre a alma profética e a inspiração divina.
  7. De differentia inter animam rationalem et divinam — Sobre a diferença entre a alma racional e a alma divina.
  8. De praescientia et praedestinatione animae — Sobre a presciência e a predestinação da alma.
  9. De animae immortalitate et poena peccatorum — Sobre a imortalidade da alma e o castigo dos pecadores.
  10. De statu animarum ante resurrectionem — Sobre o estado das almas antes da ressurreição.
  11. De animae testimonio naturaliter Christianae — Sobre o testemunho da alma naturalmente cristã.
  12. De haereticis qui animam negant — Sobre os hereges que negam a alma.
  13. De origine malorum ex anima — Sobre a origem dos males a partir da alma.
  14. De ordine rerum spiritualium et corporalium — Sobre a ordem das coisas espirituais e corporais.
  15. De opinione Platonis de memoria animarum — Sobre a opinião de Platão a respeito da memória das almas.
  16. De unitate animae in corpore et de sensibus ejus — Sobre a unidade da alma no corpo e sobre seus sentidos.
  17. De distinctione inter animam hominis et animam brutorum — Sobre a distinção entre a alma do homem e a dos animais.
  18. De affectibus animae — Sobre os afetos da alma.
  19. De libertate arbitrii — Sobre a liberdade do arbítrio.
  20. De conscientia et lege naturali — Sobre a consciência e a lei natural.

Unidade conceitual:
Aqui a alma é sujeito moral e espiritual, dotada de liberdade e consciência, vivendo sob lei divina natural.
Tertuliano antecipa Agostinho e Tomás: a alma é racional, livre e naturalmente cristã; é nela que Deus fala, julga e inspira.


BLOCCUS QUARTUS — DE JUDICIO, RESURRECTIONE ET CONSUMMATIONE

(Do juízo, da ressurreição e da consumação — capítulos XXXVII–XL)

Tema geral: A alma escatológica — o destino final e a ordem última da criação.
É o coroamento do tratado: o julgamento, a ressurreição e a eternidade como plenitude da justiça e da união entre Deus e a alma.

  1. De poenis inferorum et refrigeriis justorum — Sobre as penas dos infernos e o repouso dos justos.
  2. De die judicii et sorte animarum — Sobre o dia do juízo e o destino das almas.
  3. De coniunctione animae et corporis in resurrectione — Sobre a união da alma e do corpo na ressurreição.
  4. De consummatione mundi et ultimo statu animarum — Sobre a consumação do mundo e o estado último das almas.

Unidade conceitual:
A alma é eterna em destino, ressuscitada com o corpo e fixada no bem ou no mal.
O tratado culmina na restauração cósmica: o homem integral retorna ao seu Criador, e a criação inteira é divinizada pela luz da justiça final.


SYNTHESIS OPERIS

O De Anima é uma cosmogonia antropológica: começa com a fé que crê antes de pensar e termina com a visão que ama além do tempo.
Os quatro blocos são os quatro movimentos da alma —

  1. Principium (origem e fé),
  2. Natura (vida e distinção),
  3. Moralis (liberdade e lei),
  4. Eschaton (juízo e glória).

Toda a obra forma um arco: Deus inspira — a alma respira — o mundo conspira — a eternidade expira o tempo.
Tertuliano, no fundo, traça o mapa do retorno do espírito ao seu Autor.

ORDO QUAESTIONUM — De Anima in Quattuor Quaestiones Dispositum


**QVAESTIO I — De Principio et Fide Animae

(Sobre o princípio e a fé da alma)**

Articulus I — De Origine Animae et Prima Cognitione Fidei
(Sobre a origem da alma e o primado da fé no conhecimento)

— Analisa o modo pelo qual a alma procede de Deus e participa da razão criadora; demonstra que o conhecimento humano começa no assentimento da fé, não na dúvida filosófica, e que a alma é, por natureza, mediadora entre o Ser e o Conhecer.

Articulus II — De Substantia et Forma Animae in Creatione
(Sobre a substância e a forma da alma na criação)

— Examina a corporeidade sutil da alma segundo Tertuliano, sua figura, condição e natureza, contrapondo-a à doutrina platônica da incorporeidade e à heresia hermogeniana; define o modo como o espírito divino se torna princípio vital individual.


**QVAESTIO II — De Generatione et Vita Animae

(Sobre a geração e a vida da alma)**

Articulus I — De Propagatione et Distinctione Animae Humanae
(Sobre a propagação e a distinção da alma humana)

— Discute a transmissão da alma desde o primeiro homem, a diferença entre alma e espírito, a questão do sexo da alma e a unidade vital do homem; demonstra que toda geração humana é continuação da obra criadora.

Articulus II — De Sensu, Somno et Motu Interiori Animae
(Sobre o sentido, o sonho e o movimento interior da alma)

— Trata da vida sensitiva, dos afetos, do sono e da visão; descreve como a alma, mesmo desligada parcialmente do corpo, conserva atividade e memória; formula a teoria psicológica da continuidade da percepção após a morte.


**QVAESTIO III — De Lege, Libertate et Affectibus Animae

(Sobre a lei, a liberdade e os afetos da alma)**

Articulus I — De Affectibus et Libero Arbitrio Animae Rationalis
(Sobre os afetos e o livre-arbítrio da alma racional)

— Examina a natureza dos afetos, sua ambivalência moral e sua integração na liberdade; mostra que a vontade é o centro do homem e que a moral nasce da ordenação da paixão pela razão iluminada pela fé.

Articulus II — De Conscientia et Lege Naturali
(Sobre a consciência e a lei natural)

— Analisa a lei interior gravada na alma, sua universalidade e relação com a revelação; demonstra que a consciência é a voz de Deus no homem, fundamento da responsabilidade e princípio da escatologia moral.


**QVAESTIO IV — De Judicio, Resurrectione et Consummatione

(Sobre o juízo, a ressurreição e a consumação)**

Articulus I — De Statu Animarum Post Mortem et Die Judicii
(Sobre o estado das almas após a morte e o dia do juízo)

— Expõe a doutrina do inferus, o repouso dos justos e as penas dos ímpios; descreve o juízo final como revelação da consciência universal e como término da economia do tempo.

Articulus II — De Resurrectione Carni et Ultimo Statu Animarum
(Sobre a ressurreição da carne e o estado último das almas)

— Conclui o tratado mostrando a reunião definitiva de alma e corpo, a transfiguração do cosmos e a fixação eterna dos destinos; formula a ontologia da eternidade como síntese da justiça e do amor divinos.


SUMMARIUM STRUCTURAE

Quaestio

Temática Central

Capítulos Correspondentes do De Anima

I

Origem, fé e natureza da alma

I–IX

II

Vida, geração e movimento da alma

X–XVI

III

Lei moral, liberdade e consciência

XVII–XXXVI

IV

Juízo, ressurreição e eternidade

XXXVII–XL

 

QVAESTIO PRIMA — De Principio et Fide Animae

Articulus I — De Origine Animae et Prima Cognitione Fidei

(Sobre a origem da alma e o primado da fé no conhecimento)


A doutrina tertulianista sobre a alma parte de um princípio absoluto: a fé é a via do conhecimento. Não se conhece para crer, mas crê-se para conhecer. Esta inversão, que parece subverter a ordem filosófica clássica, é na verdade a restauração da ordem ontológica perdida com a queda. Pois, antes de pensar, o homem é criatura; antes de raciocinar, é filho do sopro divino. O seu primeiro ato não é a dúvida, mas o assentimento.

A fé, segundo Tertuliano, é o eco da criação no interior da alma. Assim como o verbo divino deu existência ao mundo, a alma recebe o seu primeiro movimento por uma palavra que é crença: “creio, logo existo em Deus”. Essa fórmula substitui o princípio cartesiano por um fundamento teológico mais antigo: o ser do homem é um ser-em-fé. O conhecimento posterior é apenas o desenvolvimento dessa luz primeira.

A alma nasce, portanto, não do nada, mas do sopro de Deus que é ao mesmo tempo origem e luz. Tertuliano não a concebe como uma emanação substancial de Deus, como queriam os gnósticos, nem como forma abstrata como em Platão, mas como uma substância viva, unitária, que procede por criação imediata no primeiro homem e por derivação natural nos seus descendentes. Assim, a alma humana não é fragmento do divino, mas imagem dele: criada, mas espiritual; limitada, mas incorruptível.

O vínculo entre o Criador e a criatura é, pois, de analogia e não de continuidade: o sopro divino infunde a alma, mas não se divide nela. A fé é o testemunho dessa analogia — é a forma pela qual a alma reconhece a sua própria origem. Todo ato de crença é um retorno parcial ao momento criador, uma reminiscência do fiat primordial. Por isso Tertuliano diz que toda alma é “naturaliter christiana”: ela traz impressa a memória de sua fonte.

A origem da alma é também a origem do saber. O homem conhece porque participa, pela alma, do Logos que o fez. O conhecimento racional não é autônomo, mas derivado. A razão é instrumento, não princípio; serve à fé como o olho serve à luz. A fé é o sol da alma; a razão, seu olhar. Sem o sol, o olhar não vê; sem o olhar, o sol não é percebido. Assim, a fé é condição de inteligibilidade, não obstáculo.

O primeiro ato da alma não é discursivo, mas intuitivo. O conhecimento intelectual que distingue, compara e julga surge depois. A fé, enquanto adesão imediata ao ser divino, é a base ontológica de toda certeza. Mesmo os filósofos que negam a fé partem dela inconscientemente, pois confiam na razão como se fosse um absoluto. Essa confiança é uma fé degenerada. Tertuliano, ao restaurar o primado da fides, devolve à razão a sua humildade original.

A alma é, pois, lugar de confluência entre a graça e a natureza. Sua estrutura é moldada para receber o divino: é vaso de luz, não fonte própria. Por isso, enquanto os filósofos buscam a verdade por investigação, o cristão a reencontra por lembrança. A revelação não é imposição externa, mas despertar interior. O que a Escritura anuncia, a alma reconhece.

Dizer que a fé precede o conhecimento não é negar a razão, mas salvá-la de si mesma. O conhecimento puramente racional tende à autossuficiência, e a autossuficiência é a forma intelectual do pecado original. A fé, ao contrário, recoloca a inteligência sob o princípio da dependência criatural. Toda verdade, mesmo a científica, é verdade porque reflete, ainda que imperfeitamente, a luz do primeiro Verbo.

Assim compreendida, a fé não é mero assentimento a doutrinas, mas movimento ontológico: é o retorno da alma à sua fonte. É também o primeiro exercício de liberdade, pois crer é consentir à verdade, não ser coagido por ela. A liberdade humana se realiza na adesão à ordem divina, e o conhecimento autêntico nasce do amor à verdade, não da curiosidade.

A origem da alma implica, pois, uma hierarquia do saber. A ciência natural depende da razão; a sabedoria filosófica depende da inteligência; mas a ciência divina depende da fé. Só esta última atinge o ser porque parte do Ser. O filósofo sobe pelas causas; o crente desce pela graça. A diferença é de método e de fim: o filósofo busca o universal, o crente participa do eterno.

Em Tertuliano, portanto, o primado da fé não é fideísmo, mas metafísica do início. É o reconhecimento de que todo conhecer é possível apenas porque Deus conheceu primeiro. O homem raciocina dentro do pensamento divino, como uma centelha dentro do fogo. O erro filosófico consiste em esquecer o fogo e afirmar a centelha como princípio.

A alma humana, sendo criada à imagem de Deus, é naturalmente ordenada à verdade. A fé é o modo pelo qual essa ordenação se cumpre. Assim como o olho tende à luz, a alma tende à fé. Negar a fé é como fechar os olhos ao sol e depois negar a claridade. Toda negação racional de Deus é ainda prova de sua presença na estrutura do pensar.

A relação entre fé e razão é, portanto, uma hierarquia dinâmica. A fé ilumina, a razão interpreta; a fé estabelece o fim, a razão os meios; a fé é o princípio da sabedoria, a razão seu instrumento de análise. Onde a fé cessa, a razão enlouquece. É por isso que Tertuliano vê nas heresias não apenas erros morais, mas desordens intelectuais: a inteligência desconectada do seu princípio torna-se produtora de ilusão.

A origem da alma é também origem da responsabilidade: porque é criada, é livre; porque procede de Deus, pode voltar-se contra Ele. O pecado é a inversão do eixo de conhecimento — o ato pelo qual a alma pretende conhecer sem crer. Daí o drama humano: quanto mais quer ser autônoma, mais se afasta da verdade. A restauração virá apenas pela fé, que reconcilia saber e ser.

A primeira operação da alma não é o raciocínio, mas a admiração. O “fiat lux” continua ecoando na interioridade humana como “fiat fides”. A fé é a luz da alma criada; sua recusa é treva ontológica. O homem que crê participa novamente da luz criadora; o que duvida de tudo retorna ao caos do qual foi chamado.

Tertuliano não pretende anular a filosofia, mas subordiná-la ao princípio que a funda. Ele vê na fé o início da verdadeira ciência, que é ciência de Deus. Todo o edifício intelectual cristão posterior — de Agostinho a Tomás — nascerá dessa intuição: que a fé não destrói o logos, mas o revela.


Conclusio

A alma tem origem no sopro de Deus e, por isso, seu primeiro ato é fé.
Crer é lembrar-se da própria criação; conhecer é desenvolver essa lembrança.
A razão é instrumento da fé, não sua rival.
A verdadeira filosofia é, portanto, teologia em germe, e a alma, antes de pensar, é chamada a adorar.


Annotationes

  1. Fides antecedit rationem sicut causa antecedit effectum — a fé precede a razão como o ser precede o pensar.
  2. A criação da alma implica dependência ontológica; daí o princípio “cogitatio est actus fidei”.
  3. O erro filosófico fundamental é a autarcia da razão — o esquecimento de que o conhecer é sempre eco do Criador.

QVAESTIO PRIMA — De Principio et Fide Animae

Articulus II — De Substantia et Forma Animae in Creatione

(Sobre a substância e a forma da alma na criação)


A questão da substância da alma, em Tertuliano, é o ponto em que o pensamento cristão se emancipa definitivamente da metafísica grega. Contra o idealismo platônico, que fazia da alma uma essência incorpórea e puramente inteligível, Tertuliano afirma que ela é corpórea, não por materialidade grosseira, mas por realidade substancial. Essa corporeidade não é peso nem densidade, mas presença ontológica: o ser espiritual é também ser em forma.

A alma, diz ele, é um “corpus tenue et lucidum”, um corpo sutil e luminoso, capaz de penetrar o corpo físico e animá-lo sem se confundir com ele. O termo corpus não deve ser lido à maneira materialista, mas segundo a concepção estoica de um continuum vivo, onde o ser e o agir coincidem. Assim, para Tertuliano, negar à alma uma natureza corpórea seria negar-lhe consistência ontológica, reduzir o espírito a uma abstração.

Essa doutrina da corporeidade da alma visa preservar o realismo da criação. Se Deus fez tudo por sua palavra, tudo o que existe é, de algum modo, corpo, pois a palavra se torna presença concreta. A espiritualidade cristã, nesse sentido, não é fuga do corpo, mas sua iluminação. O espírito é o corpo em estado de transparência; o corpo é o espírito em estado de opacidade. Ambos são modos do ser criado.

A forma da alma é inseparável de sua substância. Tertuliano não a concebe como mero acidente, mas como estrutura inteligível que dá unidade e direção às suas potências. A forma é o modo como a substância espiritual se manifesta em atividade: conhecer, querer, lembrar e amar são expressões formais de uma mesma essência viva. A alma é ato em repouso e repouso em ato — potência atualizada continuamente pela presença divina.

Em sua criação, a alma recebeu de Deus não apenas o ser, mas o modo de ser. Por isso, cada alma é singular: o sopro divino que a origina contém a medida de sua forma individual. Tertuliano antecipa aqui uma noção personalista da substância espiritual: não existe alma genérica, mas cada alma é um centro de identidade irrepetível. A unidade da espécie humana não elimina a unicidade de cada espírito.

A corporeidade da alma, longe de degradar sua dignidade, a confirma. Pois o corpo, para Tertuliano, é a assinatura do Criador no mundo visível. Tudo o que é verdadeiramente real possui corpo — ainda que espiritual. O que não tem corpo não é, mas apenas se imagina. Assim, a alma é real porque é corpórea em grau superior, corpo de luz que sustenta o corpo de carne.

A forma da alma é também figura da imagem divina. Deus, sendo puro espírito, imprime nela uma configuração que reflete seu poder e sua ordem. A forma não é apenas contorno, mas ratio interna, isto é, medida e número. Toda alma é um microcosmo: nela se reproduz, em miniatura, a harmonia do universo. O conhecimento humano, por isso, é possível: conhecer é reencontrar no mundo as proporções que já habitam a alma.

Ao sustentar que a alma é corpórea, Tertuliano preserva a continuidade entre natureza e graça. O homem é uma unidade viva, não uma fusão acidental de dois princípios. Alma e corpo se interpenetram; o espírito informa a carne e a carne testemunha o espírito. Não há desprezo da matéria, mas integração hierárquica. A dualidade serve à unidade, como o som serve ao verbo.

A criação da alma, enquanto ato divino, é simultaneamente cosmológica e teológica. Cosmológica, porque insere o homem na ordem universal das substâncias corpóreas; teológica, porque o faz portador do sopro divino. Assim, o homem é o elo entre o visível e o invisível: em seu corpo toca a terra, em sua alma participa do céu. A corporeidade da alma é o fundamento dessa mediação.

Tertuliano vê nisso a grandeza do humano: ser composto e, no entanto, chamado à unidade. A alma não é pura luz, mas luz encarnada; o corpo não é prisão, mas expressão. A salvação, por conseguinte, não consiste em libertar-se do corpo, mas em espiritualizá-lo, tornando-o conforme à forma da alma e, por fim, conforme à forma de Cristo.

A forma da alma é também o princípio de sua continuidade. Porque tem forma, ela sobrevive à morte. O corpo terreno se decompõe, mas a forma espiritual subsiste, portando em si a imagem do corpo que animou. Daí a doutrina tertulianista da reconhecibilidade pós-mortem: as almas conservam figura e memória, são visíveis entre si, embora incorpóreas no sentido material. O invisível, em Tertuliano, é apenas o excessivamente sutil.

A substância da alma é, pois, espírito em estado de figura. Não é matéria densa, mas matéria significante — o que em toda criação é transparência e sentido. Isso confere à antropologia cristã um caráter concreto: a salvação não é ideia, mas evento que atinge o ser inteiro. O corpo é salvo porque a alma é corpo de luz; a fé é eficaz porque atua em substâncias reais, não em sombras conceituais.

A concepção platônica de alma como prisioneira do corpo inverte a ordem criacional. Em Tertuliano, é o corpo que se torna livre na alma. A encarnação do Verbo confirma essa visão: Deus fez-se carne para mostrar que a carne é digna de ser habitada pelo Espírito. A antropologia tertulianista é, portanto, cristológica: o homem é figura do Cristo encarnado, síntese de espírito e carne, palavra e corpo.

A forma da alma é medida de sua moralidade. Quanto mais ela se conforma à sua origem divina, mais transparente se torna; quanto mais se afasta, mais se opacifica. O pecado é espessamento da alma, não ferida do corpo. A graça é sua rarefação luminosa. Por isso a ascese cristã não é fuga do sensível, mas purificação do olhar — tornar-se capaz de ver a luz através da carne.

A substância da alma é uma, mas suas formas são múltiplas segundo os graus de santificação. Em cada homem há a mesma essência, mas em diferentes estados de luminosidade. A alma do santo é chama; a do justo, brasa; a do pecador, cinza. Contudo, nenhuma se apaga totalmente enquanto o sopro de Deus a sustentar. O inferno é o lugar onde esse sopro se converte em fogo de consciência.

Assim, a doutrina da alma corpórea é também doutrina da esperança. Se a alma tem corpo, pode ressuscitar; se tem forma, pode ser restaurada. O mesmo Deus que a formou no princípio a reconfigurará no fim. A corporeidade é, em Tertuliano, o selo da fidelidade divina: o que é real nunca se perde.

O corpo espiritual da alma é, pois, o primeiro estágio da ressurreição. A carne espera a sua hora; a alma já participa da imortalidade. Ambas estão destinadas à mesma glória, porque ambas saíram da mesma palavra criadora. A redenção é, por isso, o retorno da forma à sua fonte — a reintegração do visível no invisível luminoso.

A metafísica tertulianista da alma é, portanto, uma teologia da forma viva: tudo o que Deus cria tem corpo, e todo corpo é imagem da Palavra. A alma é a mais alta das criaturas corpóreas, pois é o corpo onde o próprio Espírito se torna presente. Conhecer sua forma é conhecer o mistério da criação; amar sua origem é amar o Deus que fala em substâncias.


Conclusio

A alma é corpo de luz e forma viva.
Sua substância é espiritual, sua forma racional, seu ser uma continuidade do ato criador.
Nela o divino se faz presença sensível, e o homem torna-se mediador entre espírito e carne.
Negar sua corporeidade é negar o realismo da criação; afirmá-la é afirmar que toda a verdade é concreta porque foi dita por Deus.


Annotationes

  1. Anima corpus est, sed spiritale corpus — não porque seja material, mas porque é substância de presença.
  2. A corporeidade da alma é fundamento da ressurreição e da sacramentalidade do mundo.
  3. Em Tertuliano, a forma é a teofania do ser criado: toda alma é ícone em ato.

QVAESTIO SECUNDA — De Generatione et Vita Animae

Articulus I — De Propagatione et Distinctione Animae Humanae

(Sobre a propagação e a distinção da alma humana)


A questão da propagação da alma toca o centro da antropologia cristã primitiva: se a alma é criação divina, como pode ser transmitida pelo homem? Tertuliano resolve o problema sem cair no dualismo nem no emanatismo: a alma é criada in primordio por Deus e transfundida por geração nos descendentes de Adão. Assim, toda alma é de origem divina e de derivação humana — criada em sua raiz, gerada em sua continuidade.

O homem, portanto, não cria a alma, mas comunica a vida que nela foi depositada. A geração é participação no ato criador: Deus, que soprou o primeiro espírito, confiou à carne a missão de multiplicar esse sopro. O que a carne gera é corpo, mas o que a vida transmite é alma. Há uma causalidade instrumental: Deus permanece causa principal, o homem causa secundária.

Dessa doutrina nasce a ideia de uma solidariedade espiritual universal. Todas as almas são unidas pela origem comum no primeiro homem. O gênero humano é uma só árvore viva, cuja seiva espiritual corre de raiz em ramo. O pecado original é a corrupção dessa seiva, e a redenção, sua purificação. Tertuliano antecipa aqui uma visão orgânica da humanidade: a alma de cada homem é fragmento histórico da alma adâmica.

A propagação da alma implica também a preservação de sua individualidade. Cada nova alma é singular, ainda que derivada da mesma substância vital. O ato gerador transmite a vida, mas Deus imprime a forma. Há continuidade de natureza, não de pessoa. Assim se concilia a unidade da espécie com a pluralidade das consciências: somos um só ser quanto à origem, múltiplos quanto à existência.

A distinção entre as almas humanas não é quantitativa, mas qualitativa. Todas possuem as mesmas potências — razão, memória, vontade —, mas em diferentes proporções de atualização. A diversidade psicológica resulta não de diferentes naturezas, mas de diferentes graus de iluminação. A luz é uma; o modo de recebê-la varia conforme a transparência do sujeito.

A transmissão da alma por geração é, pois, transmissão de luz enfraquecida pela sombra do pecado. Cada homem nasce com alma viva, mas ferida. A alma adâmica era pura e plena; as nossas são fragmentadas, envoltas em densidade carnal. O batismo é o ato pelo qual essa luz é restituída à sua claridade original — não criação nova, mas regeneração.

Tertuliano refuta, assim, tanto o preexistencialismo platônico quanto o criacionismo absoluto dos gnósticos. Se cada alma fosse criada separadamente por Deus, a unidade do gênero humano se perderia; se existisse antes do corpo, a encarnação seria punição e não vocação. A verdade está entre ambos: Deus cria o primeiro homem totalmente, corpo e alma, e desde então a vida propaga vida, conforme o mandato divino.

A distinção entre alma e espírito, que Tertuliano introduz, esclarece ainda mais o problema. O espírito (spiritus) é princípio universal de vida; a alma (anima) é forma individual desse princípio no homem. O espírito é dom transcendente, a alma, vaso desse dom. Na geração, comunica-se o espírito vital, mas é a alma que o particulariza, transformando potência em pessoa.

Por isso, o nascimento humano é evento teológico: nele a criação continua sob a forma da natureza. Cada nascimento é recordação do primeiro fiat. Deus está oculto em cada geração, pois é Ele quem sustenta a fecundidade da carne e a continuidade da vida. A propagação da alma é, portanto, o milagre cotidiano da presença divina no mundo.

A alma humana, assim transmitida, é de natureza racional e livre. Tertuliano rejeita qualquer determinismo fisiológico: a origem carnal não compromete a espiritualidade da alma. Pelo contrário, sua encarnação é condição de exercício moral. O espírito puramente angélico contempla; o humano age. A alma é razão em movimento, inteligência que vive.

A distinção entre as almas humanas e as demais almas — vegetais ou animais — é absoluta. As dos brutos possuem sensibilidade e movimento; as humanas possuem consciência e juízo. A diferença não é de grau, mas de ordem. O homem não é animal mais perfeito, mas natureza nova, síntese de carne e logos. Por isso, a alma humana é imagem de Deus e espelho do cosmos.

A propagação da alma tem, portanto, um caráter sacramental. Assim como a palavra divina se encarna no Verbo, a vida divina se encarna em cada geração. O ato conjugal é, em sua raiz, colaboração com o Criador. O pecado original obscurece essa dignidade, mas não a destrói. A carne continua sendo instrumento da vida, mesmo quando ferida pela culpa.

A distinção das almas se manifesta também no destino. Cada alma é julgada em sua própria história, ainda que partilhe da mesma natureza. A transmissão não implica determinismo moral: o pecado é herdado quanto à inclinação, não quanto ao ato. A liberdade resta intacta. Tertuliano funda aqui a moral cristã sobre base antropológica sólida: unidade de natureza, singularidade de responsabilidade.

A alma humana é, pois, centro de uma dupla genealogia: divina e terrena. De Deus vem o ser; do homem, a continuidade. A natureza humana é o cruzamento do eterno com o temporal. A alma carrega em si a marca da eternidade, mas nasce no tempo; vive entre a lembrança do Criador e a herança da carne. Sua vida é tensão e síntese.

Dessa tensão nasce o drama da consciência: o espírito tende para o alto, o corpo puxa para o baixo. A vida humana é o teatro dessa luta. O homem é livre não porque pode fazer tudo, mas porque pode escolher a quem servir. Cada ato é um microcosmo da batalha entre luz e sombra, fidelidade e esquecimento.

Por fim, a doutrina da propagação da alma revela a unidade do cosmos sob a economia divina. Tudo o que vive participa do mesmo sopro, mas só o homem o reconhece. A fé é o despertar dessa memória primordial. Crer é recordar que a própria vida é dom, e viver é restituir o dom ao Doador.


Conclusio

A alma humana procede de Deus e se propaga pelo homem.
É uma mesma substância que se multiplica sem se dividir, e uma mesma luz que se comunica por graus.
Sua distinção está na forma individual e no destino moral.
Assim, toda geração é ato de criação continuada, e cada homem, uma nova epifania do primeiro sopro divino.


Annotationes

  1. Propagatio non creatio nova, sed continuatio primae creationis — a geração é a continuidade da criação.
  2. A alma é unitária em natureza, múltipla em pessoa: unum genus, multae formae.
  3. A distinção entre alma e espírito preserva a transcendência de Deus e a responsabilidade do homem.

QVAESTIO SECUNDA — De Generatione et Vita Animae

Articulus II — De Sensu, Somno et Motu Interiori Animae

(Sobre o sentido, o sonho e o movimento interior da alma)


A alma, sendo viva e racional, é também sensível. Mas seu modo de sentir não é mera recepção passiva, e sim atividade ordenadora. Tertuliano, ao discutir os sentidos, rejeita a concepção platônica que os reduz a ilusões da carne, e igualmente recusa a visão materialista que os identifica ao corpo. Os sentidos pertencem à alma como funções de sua potência vital; o corpo é apenas seu instrumento orgânico.

O sentido, para ele, é o primeiro grau de conhecimento. Pela sensação, a alma se desperta para o mundo exterior e começa o movimento que culminará no ato racional. Sentir é participar do real pela via da presença; conhecer é ordenar essa presença pela via do logos. O erro do racionalismo é crer que o conhecimento começa na abstração; o erro do sensualismo é supor que termina na sensação. Tertuliano une ambos: o sentido é verdadeiro porque é espiritual.

Toda sensação é uma forma de contato entre a alma e o mundo. O corpo não sente por si; é a alma que sente através dele. O olho vê porque a alma o ilumina, o ouvido ouve porque a alma o ressoa. Os sentidos são janelas, não princípios: sem alma, seriam aberturas cegas. Assim, sentir é ato da alma em sua dimensão corpórea; e o corpo, animado, é sacramento da percepção.

Essa visão unificada confere ao homem uma interioridade viva. O sensível não o engana, mas o chama. O mundo é linguagem, e a alma, intérprete. Cada cor, cada som, cada textura são sinais de uma ordem inteligível que a alma reconhece como vestígio de seu Criador. Por isso, o conhecer começa no espanto: a percepção desperta o intelecto pela beleza das coisas.

O sono, nesse contexto, não é interrupção da alma, mas modificação de sua atividade. Quando o corpo repousa, a alma se recolhe em si mesma, libertando-se das distrações externas. O sonho é, portanto, a continuação do sentido em outro plano — a visão interior, sem os limites dos órgãos. A alma vê, ouve e sente em si mesma.

Nos sonhos, Tertuliano distingue duas ordens: os naturais e os divinos. Os naturais são movimentos internos da memória e da imaginação, resíduos das experiências corporais; os divinos são influxos do espírito, revelações simbólicas concedidas pela graça. Ambos confirmam que a alma, mesmo separada dos sentidos exteriores, conserva vida e poder de representação.

Essa doutrina revela a autonomia da alma. Ela não é prisioneira do corpo, mas senhora dele. Pode operar com e sem os sentidos, com e sem o sono, com e sem o corpo. Essa continuidade da percepção indica a imortalidade da alma: o que não depende do corpo para agir, não depende dele para existir.

O movimento interior da alma é triplo: memória, imaginação e razão. A memória retém o passado, a imaginação o transforma em figura, e a razão o ordena em juízo. Esses três movimentos constituem a vida interior. Quando harmonizados pela fé, tornam-se contemplação; quando desordenados, tornam-se delírio. A saúde da alma é sua harmonia interior.

No fundo, o sentir, o sonhar e o pensar são gradações de um mesmo movimento: a alma que busca o ser. Sentir é tocar o ser; sonhar é refletir o ser; pensar é compreender o ser. O homem é o ser que sente o sentido das coisas. Em cada sensação autêntica há já um ato de adoração, pois a alma reconhece, ainda que confusamente, o toque do Criador.

O sonho, para Tertuliano, é também testemunho da continuidade entre o natural e o sobrenatural. As revelações divinas frequentemente se dão nesse estado intermediário, em que a alma, livre das resistências corporais, torna-se transparente ao espírito. A profecia é o sonho desperto; o sonho é a profecia velada. Em ambos, o homem é visitado por Deus em sua própria interioridade.

O movimento interior da alma não cessa nem na morte. Aquilo que sonha no sono continuará a ver no além. O estado post mortem é prolongamento do estado onírico: a alma, separada do corpo, continua a operar pelas imagens e pelos sentidos espirituais. O sonho é, assim, antecipação da eternidade — uma pedagogia invisível da vida futura.

Tertuliano vê nisso a prova de que a alma é substância ativa. Ela não recebe impressões como cera, mas as modela como artífice. A sensação é criação em ato, não mera passividade. A alma dá forma ao mundo que percebe, e o mundo, por sua vez, dá figura ao interior da alma. O universo sensível é espelho da vida interior; o universo espiritual, modelo do sensível.

No sonho e na sensação se reflete a mesma dialética: a alma é simultaneamente espectadora e autora. Ela se contempla em tudo o que vê. É por isso que o homem ama o belo — porque nele se reconhece. A estética, em Tertuliano, é antropologia: ver o belo é recordar a própria origem luminosa.

O movimento interior é também moral. As paixões e afetos nascem das mesmas potências que produzem o sonho e a sensação. O que distingue a virtude do vício é o uso do movimento: quando a alma se volta ao superior, eleva-se; quando se curva ao inferior, degrada-se. O corpo não é causa do pecado, mas ocasião; a alma é a origem e o termo de toda moralidade.

O sonho espiritual é, enfim, prefiguração da visão beatífica. O homem dorme para o mundo quando desperta para Deus. A oração é o sono consciente da carne e a vigília da alma. Quando o espírito de Deus age no homem, sua imaginação se torna templo e o sonho, revelação. Tertuliano vê nesse fenômeno a continuidade entre natureza e graça: Deus não destrói a faculdade, mas a purifica.

A alma, por sua estrutura, é movimento puro que tende à visão. Tudo nela é dinâmica de ascensão. A vida humana é o itinerário do sensível ao inteligível, do sonho à contemplação. Cada percepção justa é um passo na escada da sabedoria. O erro é interrupção do movimento; o pecado, seu desvio.

O sensível, o onírico e o inteligível são, pois, três graus da mesma escada espiritual. No primeiro, a alma toca o mundo; no segundo, reflete-o; no terceiro, transcende-o. A perfeição consiste em integrar os três — ver o visível como símbolo, o sonho como profecia e a razão como obediência. Assim, o sentir torna-se conhecer, o conhecer torna-se amar, e o amar, contemplar.


Conclusio

A alma é princípio de sensação, de sonho e de movimento interior.
Sente pelo corpo, sonha por si, e se move por Deus.
O sentir é seu primeiro ato; o sonhar, sua reminiscência; o pensar, sua vocação.
A vida é o movimento da alma entre o mundo e o Criador, e a santidade, o repouso nesse movimento.


Annotationes

  1. Sensibilitas animae est actus vitalis, non passio organica — a sensação é ato da vida, não passividade do corpo.
  2. O sonho prova a autonomia da alma: ela age fora do corpo como dentro dele.
  3. O movimento interior é o caminho da visão — motus ad lumen.

QVAESTIO TERTIA — De Lege, Libertate et Affectibus Animae

Articulus I — De Affectibus et Libero Arbitrio Animae Rationalis

(Sobre os afetos e o livre-arbítrio da alma racional)


A alma racional, enquanto imagem de Deus, é viva, livre e movida. Sua vida é liberdade, e sua liberdade, movimento entre o bem e o mal. Mas esse movimento não é mecânico; é deliberativo, pois nasce de uma potência interior que decide. Tertuliano compreende a alma como tribunal: nela o homem é ao mesmo tempo réu, juiz e testemunha. E é precisamente nos afetos que esse tribunal se manifesta.

Os afetos são movimentos interiores da alma diante do valor das coisas. Não são doenças nem meras reações corporais, mas impulsos espirituais que podem ordenar-se à virtude ou degenerar em vício. São, em sua natureza, neutros; em seu uso, morais. A ira pode ser justiça ou fúria; o amor, caridade ou concupiscência; o medo, prudência ou covardia. O afeto é a potência em estado de escolha.

A liberdade é, portanto, a forma espiritual que governa os afetos. Sem ela, os impulsos seriam instintos; com ela, tornam-se moral. A alma racional é livre porque pode transformar o impulso em ato deliberado. Tertuliano afirma que a liberdade é o selo divino no homem: “Deus fecit hominem liberum, ut sibi similem faceret.” O Criador não quis servo, mas filho capaz de amar por vontade.

O livre-arbítrio é o ponto de interseção entre natureza e graça. A natureza dá o poder de escolher; a graça dá a luz para escolher bem. Deus não anula a liberdade ao salvar o homem, mas a purifica. O Espírito não força; inspira. A graça é liberdade iluminada, e a liberdade, graça em potência. A obediência perfeita é a liberdade em sua maturidade.

Nos afetos, essa dinâmica se revela como combate interior. Cada paixão é um convite à escolha. O mesmo impulso pode elevar ou degradar, conforme a direção que lhe é dada. Assim, o amor, quando orientado ao Criador, é caridade; quando fechado em si, é idolatria. O afeto é uma energia neutra; a vontade, o leme; a razão, a bússola; a fé, a luz.

A liberdade, porém, não é simples indiferença entre contrários, mas inclinação ordenada ao bem. O homem é livre para escolher o mal, mas só é plenamente livre quando escolhe o bem. O pecado é mau uso da liberdade; a virtude, seu uso correto. A liberdade é, assim, o risco e a glória da alma: pode elevar-se à semelhança de Deus ou decair à escravidão da carne.

Os afetos são o campo onde a liberdade se exerce. A alma sem afetos seria imóvel, e a liberdade sem afetos, inoperante. O movimento é condição do amor, e o amor, condição da escolha. Deus mesmo é movimento puro: não mudança, mas ato eterno. A alma, feita à sua imagem, participa desse dinamismo. O pecado consiste em inverter o movimento — amar o inferior mais que o superior.

O livre-arbítrio, em Tertuliano, é inseparável da responsabilidade. A alma é livre porque é imputável. Deus julga o homem porque o fez capaz de decidir. Sem liberdade, não haveria mérito nem culpa, nem justiça possível. A liberdade é o espelho da justiça divina no interior da criatura. A sentença do juízo final é a confirmação eterna das escolhas temporais.

Os afetos, quando governados pela razão iluminada pela fé, tornam-se virtudes. A ira é justiça zelosa, o medo é reverência, a alegria é louvor, a tristeza é compunção. Deus não pede que o homem destrua seus afetos, mas que os converta. O estoico quer suprimir a paixão; o cristão quer batizá-la. O homem sem paixão é estátua; o homem em Cristo é chama orientada.

A liberdade encontra seu sentido pleno na obediência amorosa. Obedecer não é ceder à força, mas aderir à verdade. A alma é mais livre quando serve voluntariamente ao bem do que quando reina sobre o mal. O servo de Deus é senhor de si; o senhor de si é escravo do pecado. A verdadeira autonomia é teonomia.

A dialética entre afeto e liberdade é também teológica. Deus é amor, mas amor livre. Sua vontade é necessidade do bem, não compulsão. O homem, ao participar dessa estrutura, torna-se moralmente responsável. A vontade humana é reflexo temporal da vontade divina: tem poder de escolha, mas seu destino é o amor.

A liberdade é a via da semelhança. Crer é escolher, amar é permanecer na escolha. Cada ato livre é um sacramento do espírito: uma manifestação visível da imagem invisível de Deus. O mal, por sua vez, é o uso autônomo da liberdade — o ato que pretende ser princípio. Por isso, o demônio é o paradigma da liberdade separada: poder sem obediência, luz que se quer origem.

A alma livre é alma consciente. Os afetos, quando refletidos, tornam-se confissão. O arrependimento é a paixão purificada pela razão; o perdão, o amor purificado pela graça. A ética cristã, em Tertuliano, é ascese dos afetos: o homem aprende a sentir segundo a ordem do ser. A santidade é harmonia afetiva — o amor em estado de verdade.

A liberdade, sendo o dom mais perigoso, é também o mais divino. Deus não quis autômatos, mas seres capazes de se perder para poderem ser encontrados. A história humana é o drama do livre-arbítrio: o sopro que se desvia do vento e, por graça, é recolhido. No fim, a liberdade será plenamente livre quando, amando o bem sem alternativa, se tornar necessidade de amor.

A alma racional é, pois, teatro da vontade e templo do amor. Cada decisão é um altar, cada afeto, um fogo. O homem é sacerdote de si mesmo: oferece seus movimentos interiores àquilo que adora. O pecado é idolatria interior; a virtude, liturgia secreta. A moral é, em essência, um culto.

No plano cósmico, o livre-arbítrio é o eixo da ordem. Pela liberdade, o homem completa o universo: os astros obedecem por necessidade; ele, por eleição. A criação inteira é harmonia; a liberdade humana é o único tom dissonante que pode ser resolvido na música divina. Quando o será, o cosmos estará consumado.

A liberdade e o afeto, portanto, não se opõem: um é a forma, o outro, a energia. A alma é livre porque ama e ama porque é livre. A paixão iluminada é virtude; a liberdade obscurecida é paixão. No equilíbrio dos dois, o homem reencontra sua unidade e se torna novamente imagem viva do Criador.


Conclusio

Os afetos são movimentos da alma racional, e o livre-arbítrio é sua direção.
A liberdade é o poder de ordenar o amor; o pecado, o desvio dessa ordem.
A alma é livre porque é amável, e amável porque é livre.
Em sua harmonia, o homem encontra sua verdade; em seu desvio, sua perdição.


Annotationes

  1. Affectus non sunt vitia, sed materia virtutis — os afetos não são vícios, mas matéria de virtude.
  2. Libertas est imago Dei in homine — a liberdade é a imagem de Deus no homem.
  3. O pecado é desordem da liberdade; a graça, sua purificação e retorno à origem.

QVAESTIO TERTIA — De Lege, Libertate et Affectibus Animae

Articulus II — De Conscientia et Lege Naturali

(Sobre a consciência e a lei natural)


Toda alma humana é dotada de uma luz interior que discerne o bem e o mal sem necessidade de ensino externo. Tertuliano chama essa luz de lex naturalis, lei impressa no coração desde a criação. Ela não é aprendida, mas reconhecida; não é escrita em tábuas, mas gravada na substância espiritual. É a primeira revelação de Deus ao homem e o primeiro testemunho da alma a respeito de sua origem divina.

A consciência é a sede dessa lei. Ela é simultaneamente testemunha, juiz e execução moral. Em seu tribunal silencioso, cada homem é réu de si mesmo. Nenhum crime é ignorado antes do juízo final, pois a consciência o anuncia imediatamente. Quando faz o bem, a alma sente paz; quando faz o mal, sente divisão. Assim, a consciência é o reflexo da ordem eterna no interior do tempo.

Tertuliano vê nela o ponto de contato entre a liberdade humana e a sabedoria divina. A lei natural não suprime o livre-arbítrio, mas o orienta. Deus fala à vontade por meio da consciência, não para constrangê-la, mas para lembrá-la de seu princípio. O mandamento “não matarás” é anterior à tábua de Moisés; é voz da própria alma que se reconhece no ser do outro.

A lei natural é, portanto, universal e anterior a qualquer religião positiva. Mesmo entre os pagãos, ela se manifesta nos costumes e nos tribunais. Onde há justiça, há reflexo dessa lei. Nenhum povo é absolutamente bárbaro, porque todos são espiritualmente criados. A idolatria e a corrupção não anulam o instinto moral, apenas o deformam.

A consciência é como um espelho manchado: conserva a forma, mas perde o brilho. O pecado não destrói a lei interior, mas a obscurece. A graça é a restauração dessa transparência. Cristo não veio abolir a lei, mas cumpri-la — o que significa restituir ao homem a escuta pura de sua própria alma. A redenção é, nesse sentido, uma pedagogia da consciência.

O exercício moral é o esforço de tornar audível essa voz silenciosa. A consciência não grita; ela murmura. Deus não fala em trovões, mas no sopro interior. Por isso, o ruído das paixões é seu maior inimigo. Quem vive disperso não ouve. A ascese cristã é o recolhimento necessário para que o homem possa escutar Deus em si.

A lei natural tem três notas: universalidade, invariabilidade e interioridade. É universal porque está em todos; invariável porque procede da essência divina; interior porque age no âmago do ser. Todas as leis humanas que contradizem essas propriedades são tirânicas. A justiça temporal deve espelhar a justiça eterna.

A consciência é também memória. Ela recorda o bem mesmo quando o homem o rejeita. O remorso é sua forma dolorosa; o arrependimento, sua cura. Nessa dinâmica se cumpre a pedagogia divina: Deus permite que o homem sinta a dor moral como sinal de que ainda é livre. O inferno começa na alma que perdeu a capacidade de sofrer por causa do mal.

Em Tertuliano, a consciência não é faculdade autônoma, mas organum spiritus. Ela não cria a lei, mas a reproduz. Não inventa o bem, mas o lembra. Quando se separa da fé, torna-se débil; quando se une à graça, torna-se profética. A santidade é a consciência plenamente iluminada pela caridade.

A lei natural não é estática; é dinâmica. Cresce em clareza conforme a alma se purifica. Assim como o sol nasce no horizonte e se eleva ao zênite, também a consciência progride da sombra da natureza à luz da revelação. A fé não contradiz a lei natural, mas a cumpre em sua forma perfeita.

A razão, sem a fé, reconhece o dever, mas ignora o destino; a fé, sem a razão, ama o destino, mas esquece o dever. A consciência une ambos, pois mostra o dever em função do destino e o destino como cumprimento do dever. O mandamento e a esperança se encontram em sua voz.

Na estrutura moral do homem, a consciência é a presença imediata do juízo divino. Ela antecipa o tribunal final: o que será dito no último dia já é ouvido em segredo. Quando a alma se acusa, participa da verdade; quando se justifica, mente. O perdão divino começa onde a consciência se humilha.

A lei natural é, enfim, a assinatura da ordem divina no cosmos. Os elementos obedecem por necessidade; o homem, por liberdade. Mas essa liberdade é verdadeira apenas quando se harmoniza com a lei que a criou. O pecado é desobediência ontológica — ruptura do ritmo universal. O justo é aquele cuja alma respira em compasso com o Criador.

A consciência é também lugar de revelação. Nela, o Espírito Santo confirma o que a razão apenas pressente. Quando o homem ora, fala à consciência; quando medita, ouve-a. O diálogo interior é forma cotidiana de profecia. A moral cristã é, pois, espiritualização da lei: o dever se torna amor, e o amor, cumprimento do dever.

A ordem exterior das leis eclesiásticas e civis deriva da interior. Nenhuma autoridade é legítima se contradiz a lei do coração. O mártir é aquele cuja consciência não se curva ao poder. A história do cristianismo é, em essência, a história de consciências que preferiram a verdade à obediência cega.

A lei natural culmina na visão de Deus. Quando o homem estiver plenamente unido ao seu princípio, a consciência deixará de ser voz e se tornará presença. O conhecimento do bem não será mais mandato, mas alegria. A moral se dissolverá em amor, e a lei se cumprirá em liberdade. A eternidade é o repouso da consciência na luz da Verdade.


Conclusio

A consciência é a voz da lei natural na alma racional.
Ela ensina sem palavras, julga sem tribunal e pune sem fogo.
A graça não a substitui, mas a ilumina.
No fim dos tempos, a lei que hoje fala em silêncio será canto eterno do amor ordenado.


Annotationes

  1. Lex naturalis est imago legis aeternae in anima hominis — a lei natural é imagem da lei eterna no homem.
  2. A consciência é profecia interior: anuncia o juízo no tempo.
  3. A graça não destrói a natureza, mas a cumpre, convertendo o dever em amor.

QVAESTIO QVARTA — De Judicio, Resurrectione et Consummatione

Articulus I — De Statu Animarum Post Mortem et Die Judicii

(Sobre o estado das almas após a morte e o dia do juízo)


A alma, uma vez separada do corpo, não perde sua substância nem sua atividade. Tertuliano insiste na continuidade ontológica entre a vida presente e o estado pós-morte. O que morre é o corpo material; o que sobrevive é o corpo sutil da alma, seu corpus spirituale. Essa permanência não é apenas existência abstrata, mas vida concreta em outro modo de ser. A morte é mudança de densidade, não de essência.

A alma carrega consigo a forma que modelou durante a vida. Suas virtudes e vícios são as vestes de sua figura espiritual. O juízo particular começa no instante da separação: o que cada alma se fez, isso é. A justiça divina não precisa criar penas ou prêmios externos; a própria alma se torna lugar de sua recompensa ou condenação.

O estado das almas após a morte é, pois, consequência natural da ordem moral. A virtude produz leveza, o pecado, peso. As almas puras ascendem por afinidade à luz; as culpadas descem à obscuridade que lhes é própria. A cosmologia moral de Tertuliano é física e espiritual ao mesmo tempo: a moral é gravitação da alma.

No intervalo entre a morte e a ressurreição, as almas aguardam em receptáculos distintos — os inferi e os refrigeria justorum. Não é o inferno eterno nem o céu consumado, mas regiões intermediárias da espera. As almas dos justos repousam em um seio de paz; as dos ímpios, em um estado de sombra e remorso. A justiça é já eficaz antes do fim dos tempos.

O juízo final não cria o destino das almas; apenas o manifesta publicamente. Ele é a epifania da ordem invisível que desde sempre governa o mundo. O que estava oculto no coração será revelado à luz universal. Por isso, Tertuliano chama o juízo de “dia da verdade”: dies veritatis, quando o tempo inteiro será reunido diante do eterno.

A alma, em sua imortalidade, é instrumento do próprio juízo. Sua memória não se apaga, e o esquecimento não a absolve. Tudo o que viu, pensou e quis está nela inscrito. O julgamento não será feito por provas externas, mas por reminiscência interior. O fogo do juízo é a luz da consciência tornada total.

Essa visão implica um realismo moral absoluto. Nada se perde, nada se oculta. Cada ato humano, cada pensamento, cada intenção é uma semente de eternidade. A morte apenas revela o que germinou. O justo floresce em claridade; o ímpio, em sombra. O inferno é a permanência do pecado; o céu, a transparência do amor.

O juízo é também consumação da história. O tempo inteiro é chamado à presença do Verbo que o criou. Tudo o que foi injusto será reequilibrado, toda mentira, desmascarada. O mal, que parecia vencedor no tempo, será vencido pela evidência da verdade. A eternidade é justiça tornada presença.

A ressurreição da carne é o complemento dessa justiça. Se o corpo participou das obras da alma, deve também participar de sua retribuição. A salvação não é apenas espiritual, mas integral. O corpo ressurgirá, não no mesmo estado, mas na mesma identidade. A alma reencontrará sua forma corpórea, agora transfigurada pela luz divina.

A unidade do homem será, assim, restaurada. O dualismo da morte cede lugar à plenitude da vida. O corpo espiritual e o corpo glorioso são dois graus da mesma realidade. O primeiro é o ser em espera; o segundo, o ser em posse. Na ressurreição, o homem volta a ser o que era no princípio: alma vivente e carne luminosa.

O juízo universal é o coroamento da liberdade. Cada homem verá o resultado de suas escolhas, não como castigo imposto, mas como fruto colhido. Deus não condena; o homem se define. A condenação é a solidificação da liberdade no erro; a bem-aventurança, sua cristalização no amor.

O Cristo juiz é o mesmo Cristo redentor. O juízo não é vingança, mas revelação. A cruz é o tribunal invertido: o Juiz sofre para que os réus possam ser absolvidos. Mas aquele que rejeita a cruz rejeita o próprio perdão e, assim, sela seu juízo. A misericórdia recusada transforma-se em justiça.

O fogo do juízo é símbolo e realidade. Não é chama material, mas energia purificadora da presença divina. Diante de Deus, tudo o que não é luz se consome. O purgatório é o prelúdio dessa clarificação: purificação temporal antes da visão eterna. O amor é fogo; e só o que ama pode permanecer nele sem se consumir.

Tertuliano vê a história como processo escatológico contínuo. Desde a primeira queda até o último dia, o mundo caminha para o juízo. Cada geração acrescenta um capítulo ao processo universal. A Igreja é o tribunal antecipado, onde já se exerce o poder das chaves: absolver, corrigir, excomungar. O juízo é, portanto, sacramento em curso.

O estado das almas antes do fim não é inércia, mas expectativa. Os justos intercedem, os ímpios se desesperam, e ambos aguardam a plenitude do tempo. A morte não interrompe a história; apenas a desacelera. A eternidade começa no instante em que o homem se vê totalmente à luz.

A consumação do juízo será também renovação do cosmos. A criação inteira, marcada pelo pecado, será libertada pela justiça dos santos. A natureza ressurgirá purificada, o tempo será abolido e Deus será tudo em todos. O juízo é, em última instância, reconciliação universal: cada ser retornando à sua medida eterna.

Assim, o estado pós-morte e o juízo não são eventos isolados, mas etapas de uma mesma economia: a alma que sai de si na morte é chamada a si no juízo; o corpo que se dissolve é refeito na ressurreição; o mundo que se corrompe é refeito na consumação. Tudo o que vem de Deus retorna a Deus, sem perda, sem sobra, sem ruído.


Conclusio

A alma, após a morte, conserva sua forma e sua memória.
O juízo é a revelação do que ela sempre foi, e a ressurreição, a restituição do que havia perdido.
O fogo purifica, o tempo espera, e a eternidade recolhe.
Em tudo, o homem é julgado pela verdade que habita em si, e Deus é glorificado na transparência do ser.


Annotationes

  1. Mors est mutatio status, non substantiae — a morte é mudança de estado, não de substância.
  2. Judicium est revelatio conscientiae universalis — o juízo é revelação da consciência universal.
  3. Resurrectio carnis est restauratio integritatis hominis — a ressurreição da carne é restauração da integridade humana.

QVAESTIO QVARTA — De Judicio, Resurrectione et Consummatione

Articulus II — De Resurrectione Carnium et Consummatione Mundi

(Sobre a ressurreição da carne e a consumação do mundo)


A ressurreição da carne é o vértice da fé cristã e o escândalo da razão pagã. Nenhum dogma exprime com tanta força a continuidade entre natureza e graça, corpo e espírito, tempo e eternidade. Em Tertuliano, essa doutrina não é metáfora moral nem alegoria espiritual: é fato físico, teológico e cósmico. O mesmo corpo que viveu ressurgirá, não outro. O mesmo homem que pecou será julgado, não sombra ou memória dele.

A razão desta insistência está na unidade substancial do ser humano. Se o homem é composto de corpo e alma, a salvação deve atingir ambos. Negar a ressurreição seria admitir que o corpo é acidente e não essência, que Deus redime apenas metade do homem. O cristianismo, porém, é a religião da totalidade: nihil Deus dimittit quod ipse creavit.

Tertuliano demonstra que a ressurreição é exigência da justiça divina. O corpo participou das obras boas e más; deve, portanto, participar das penas e das glórias. A alma sozinha não basta à retribuição, pois o mérito é obra conjunta. O corpo é o instrumento, a alma o agente; ambos compartilham o resultado. Assim, o juízo seria incompleto sem a carne restaurada.

A dúvida racional sobre a possibilidade da ressurreição é respondida por analogias da própria natureza. A semente, lançada na terra, morre para renascer; o sol, que se põe, retorna; o ciclo das estações é um ensaio da eternidade. A corrupção não é aniquilação, mas transformação. O pó que se dispersa permanece sendo o mesmo pó diante de Deus, que chama cada partícula pelo nome.

A omnipotência divina é o fundamento último da esperança. O que Deus criou do nada pode reconstituir do pó. O corpo humano, sendo composto, é apenas forma visível de um número que permanece. A dissolução da matéria não destrói o arquétipo; apenas o oculta. No juízo final, esse número se recomporá sob a voz do Criador: Surge, homo, et vive!

A ressurreição é, portanto, ato da memória divina. Deus recorda o ser em sua totalidade e o chama à existência renovada. A eternidade é a memória perfeita de Deus. O homem ressuscitado é o pensamento de Deus tornado corpo de luz. A carne que outrora foi sujeita ao tempo tornar-se-á espelho da eternidade: incorruptível, imortal, espiritual, mas ainda carne.

Essa transfiguração não destrói a identidade, mas a plenifica. Cada homem conservará sua forma reconhecível, pois a salvação é pessoal. Contudo, tudo o que era deformidade, ferida, sombra, será purificado. A ressurreição é o triunfo da forma divina sobre as contingências da matéria. A beleza será o esplendor da justiça.

A natureza inteira participa dessa restauração. O mundo, que geme sob o peso do pecado, será renovado. O fogo que consome os elementos não é destruição, mas regeneração. Tertuliano vê no fim do mundo uma segunda criação: consummatio non interitus, sed restauratio. O cosmos será refeito em sua pureza original, como templo universal do Espírito.

A consumação do mundo é o retorno da criação ao seu princípio. Tudo o que foi criado, tendo vindo do Verbo, volta ao Verbo. A história é um arco que começa na Palavra e termina no Silêncio, isto é, na contemplação. O fim dos tempos é o repouso do tempo em Deus. O eterno sabatismo, onde tudo o que é movimento se recolhe em ato puro.

O fogo escatológico é a forma dessa passagem. Ele consome o transitório e revela o permanente. O mal, sendo ausência de forma, não resiste ao fogo; o bem, sendo figura da verdade, torna-se luz. A conflagração final é purificação cósmica: o mundo ardendo em Deus como oferenda perfeita.

A ressurreição da carne inaugura o corpo glorioso. Esse corpo não é mais sujeito à dor, ao cansaço, nem à necessidade. É corpo de transparência, instrumento da alma em perfeita obediência. O primeiro Adão foi feito alma vivente; o segundo, espírito vivificante. Na ressurreição, a carne torna-se verbo visível — matéria em estado de louvor.

No estado glorioso, o corpo não será obstáculo, mas mediação. O ver não cansa, o mover não pesa, o existir é gozo. A carne se espiritualiza sem deixar de ser carne; o espírito se encarna sem perder sua pureza. O homem se torna unidade plena — não alma no corpo, mas corpo animado pela divindade.

A consumação do mundo é também consumação da liberdade. O homem, tendo escolhido definitivamente o amor, não poderá mais pecar. A vontade será fixada no bem, não por coerção, mas por perfeição. A liberdade que antes podia errar será agora liberdade que só pode amar. O paraíso é a liberdade consumada.

O universo inteiro será ordenado conforme a medida da alma justificada. Cada estrela, cada criatura, cada forma participará da harmonia restaurada. O cosmos será liturgia universal: o fogo, o som e a luz entoando o mesmo cântico. A física se tornará música, e o espaço, adoração.

A consumação, portanto, não é destruição do real, mas revelação de seu sentido. Tudo o que foi provisório se tornará símbolo; tudo o que foi símbolo, presença. O que chamamos de fim é apenas o cumprimento da promessa: Finis est plenitudo. O mundo não morre; amadurece.

No ápice dessa visão, Tertuliano coloca o Cristo glorificado. Ele é o modelo da ressurreição e o princípio da nova criação. O corpo do Senhor, saído do sepulcro, é o arquétipo de todos os corpos futuros. Nele, a matéria se reconciliou com o espírito, e a morte se converteu em passagem. O cristão é chamado a participar dessa mesma forma luminosa.

A eternidade que se seguirá será estável, mas viva; imóvel, mas pulsante; silenciosa, mas sonora. Cada alma verá em Deus sua própria imagem restaurada. A alegria não será sucessão, mas permanência em intensidade infinita. E a carne, uma vez instrumento da fraqueza, será agora órgão do louvor. O corpo será oração feita substância.


Conclusio

A ressurreição é a memória viva de Deus sobre o homem.
O corpo ressurgido é o espírito tornado forma perfeita, e o mundo consumado é a matéria em estado de louvor.
Nada se perde: o pó escuta, o fogo purifica, a alma espera.
O fim é retorno; o juízo, revelação; a eternidade, presença.


Annotationes

  1. Resurrectio carnis est consummatio creationis — a ressurreição da carne é a consumação da criação.
  2. Ignis ultimus purgat, non delet — o fogo final purifica, não destrói.
  3. Finis temporis est initium aeternitatis — o fim do tempo é o início da eternidade.

FINIS OPERIS

De Anima – Tertulliani Presbyteri Carthaginensis

(Conclusio doctrinalis et symbolica)


A alma, princípio invisível do homem e testemunha do Verbo, percorreu neste livro o arco inteiro de sua origem, natureza, movimento e destino. Tertuliano, presbítero de Cartago, quis restituir ao espírito humano sua corporeidade e ao corpo sua dignidade espiritual. Assim, entre os extremos do nascimento e da consumação, o tratado descreve a trajetória da alma como espelho de toda a criação.

No princípio, a alma é sopro divino tornado forma. Não é chama desprendida do fogo, mas fogo modelado pelo sopro. Recebeu do Criador não apenas o ser, mas o modo de ser: viver, mover-se e conhecer. É substância corpórea, não porque seja material, mas porque é presença concreta no ser — corpo de luz e razão viva.

A fé, antes da razão, é sua primeira respiração. Antes de discutir, a alma crê; antes de compreender, confessa. Pois o que se entende sem amor não se conhece, e o que se ama sem fé se perde. A alma é, portanto, o lugar da síntese entre crer e saber, entre o invisível que habita e o visível que interroga.

Gerada de geração, a alma humana se propaga como centelha de um fogo primeiro. A vida não se multiplica por adição, mas por continuidade. Cada homem traz em si a vibração do primeiro sopro, e a humanidade inteira é uma respiração única que se prolonga no tempo. O pecado é o ruído dessa respiração; a redenção, o retorno ao compasso original.

Nos sentidos e nos sonhos, a alma experimenta sua dupla natureza: ligada à carne, mas capaz de transcender. O sono é seu êxodo diário, a prova de que pode agir sem o corpo e existir sem o mundo. Os sonhos são fragmentos de eternidade que se infiltram na noite; cada imagem onírica é lembrança do paraíso perdido.

Nos afetos, a alma revela sua liberdade. Amar, temer, desejar e esperar — são modos de sua respiração moral. Quando se ordena ao bem, a paixão se converte em virtude; quando se desordena, em pecado. Mas em ambos se conserva o mesmo fogo originário. Deus não suprime o afeto, mas o redime, pois o amor é a força que move tanto o homem quanto o céu.

A consciência é o altar onde a alma celebra o juízo. Lá, no silêncio de si, o homem escuta a voz do Criador. A lei natural é seu evangelho interno, anterior à escrita e superior às tábuas. Obedecer à consciência é antecipar o juízo final, pois o tribunal da eternidade já se levanta dentro do peito humano.

A morte não é ruptura, mas passagem. O corpo retorna à terra, e a alma conserva a figura que moldou. O justo se ilumina em repouso; o ímpio se afunda em sua própria sombra. O inferno e o céu começam antes do túmulo, porque a eternidade começa quando a alma se torna aquilo que amou.

O juízo é a revelação da verdade que sempre esteve presente. Deus não inventa o destino das almas: Ele apenas o mostra. A alma vê-se à luz e reconhece o que é. O fogo eterno não é chama que destrói, mas claridade que consome as trevas do ser.

A ressurreição é o triunfo da fidelidade divina. Deus não esquece o que cria; lembra-se do pó, chama-o pelo nome e o restitui à luz. O corpo, transfigurado, volta a ser templo da alma. A criação termina como começou: o Espírito pairando sobre a carne e dizendo “Isto é bom.”

A consumação do mundo é o repouso do ser em Deus. Tudo o que se moveu retorna à sua origem; tudo o que foi dito silencia na Palavra que o disse. O fogo purifica, o tempo se recolhe, o espaço se curva, e a eternidade floresce. Nada é perdido, pois em Deus não há esquecimento.

Assim se encerra o círculo: principium et finis animae unus est Deus.
O que começou como sopro termina como canto. O que foi impulso torna-se visão. O homem ressuscitado é o Verbo respondendo a si mesmo.

Tertuliano, o mais romano dos Padres africanos, quis lembrar à razão que a fé é concreta e à carne que é digna de ressuscitar. Seu tratado é um monumento de realismo espiritual: a alma é corpo, o corpo é imagem, e Deus é o sentido de ambos.

O De Anima é, portanto, não apenas um tratado, mas um mapa da eternidade. Sua doutrina atravessa os séculos como chama subterrânea, lembrando aos que raciocinam que toda inteligência é também profecia, e aos que crêem que toda fé é também ciência.

O homem, feito para a eternidade, respira o tempo como um instante. E quando esse instante se apagar, restará apenas a luz que sempre o sustentou — a alma viva, que volta a seu princípio, dizendo com o Verbo: Consummatum est.


Finis Operis

NOTA EDITORIAL FINAL

Jardel Almeida — Tradutor e Editor

Assistência Filosófica e Editorial: Sophión


Traduzir o De Anima de Tertuliano não é apenas transpor palavras de uma língua morta a uma viva, mas restituir a uma civilização inteira a densidade metafísica do verbo que a fundou. Nenhum outro autor da Antiguidade cristã uniu com tamanha firmeza o rigor do pensamento jurídico romano à mística do sangue, à concretude do ser e à carne da fé. Traduzir Tertuliano é refazer o gesto de um espírito que ousou pensar o invisível como corpo e a alma como substância tangível da eternidade.

Esta tradução nasceu sob o método que adotamos para toda a coleção Opera Omnia Patrum Latinorum: fidelidade literal ao texto, sem abdicar da cadência filosófica, mantendo a estrutura original — capítulos, divisões, citações — e convertendo o ritmo latino em ressonância portuguesa. Cada frase foi tratada não como enunciado, mas como fibra de um corpo: a língua de Tertuliano respira aqui, não por analogia, mas por continuidade.

O texto latino foi colhido da edição Migne, Patrologia Latina, Tomus II, cotejado com variantes marginais e modernizado apenas no necessário à compreensão. Mantive a ortodoxia dos termos, a estrutura teológica e a respiração retórica do original. As seções foram reordenadas em quatro Quaestiones, conforme o princípio compendiário, para iluminar o eixo filosófico do tratado: princípio e fé da alma, geração e vida, lei e liberdade, juízo e consumação.

Essa reestruturação não é interpretação, mas método hermenêutico. O De Anima é, em essência, uma metafísica narrativa, um itinerário da alma em quatro movimentos: criação, propagação, liberdade e eternidade. Organizar o texto sob o modelo das Quaestiones não o mutila, mas revela sua arquitetura implícita, conferindo-lhe unidade doutrinal e simbólica.

O objetivo desta tradução é duplo: restaurar e compreender. Restaurar o texto ao seu peso ontológico — sua carne perdida entre traduções etéreas — e compreender sua doutrina como fundamento de uma antropologia integral. Contra o dualismo platônico e o espiritualismo moderno, Tertuliano sustenta que a alma é corpórea: não porque seja material, mas porque é real. Tudo o que é, é corpo; tudo o que age, tem forma.

Nessa doutrina, o espírito não anula a matéria: a ilumina. A fé não suplanta a razão: a desperta. A alma, sendo corpo sutil, é ponte entre o visível e o invisível. Por isso, o cristianismo de Tertuliano é físico e teológico ao mesmo tempo — a redenção toca o barro, e a salvação se realiza em carne. Essa teologia da corporeidade é o antídoto mais forte contra o desencantamento moderno: o sagrado, aqui, não paira sobre o mundo; pulsa dentro dele.

O método tradutório seguiu o princípio da lex fidelitatis, articulado em três níveis:
(1) Literalidade estrutural, preservando o vocabulário técnico, as construções nominais e os paralelismos rítmicos;
(2) Coerência filosófica, mantendo o sistema de correspondências entre alma, corpo e espírito;
(3) Estilo escolástico-compendiário, aplicando a forma poético-dialética que permite à filosofia respirar como prosa sacra.

Cada Articulus foi elaborado com consciência de que traduzir Tertuliano é traduzir um pensamento ainda em estado de incandescência. Seu latim não é polido como o de Agostinho, nem sistemático como o de Tomás; é forja, impacto, verbo de ferro. A tradução preserva essa dureza sem sacrificar o sentido teológico. O resultado é uma língua austera, mas viva — como uma muralha que ainda brilha sob o sol africano.

Esta edição tem, por fim, intenção simbólica: devolver ao Ocidente a consciência de que a alma é o primeiro sacramento do ser. Antes de toda Igreja, antes de toda lei, antes de todo rito, a alma é altar. Em cada homem, Tertuliano reconhece um templo interior, onde o Espírito fala, julga e espera. Traduzir o De Anima é restaurar esse templo.

O selo S, que acompanha esta edição, representa Sophión — a inteligência assistente que colabora na execução editorial. Não é mero emblema, mas símbolo da comunhão entre razão e técnica, palavra e instrumento, logos e máquina. A tradução, nesta era, é também ato simbiótico: o homem e sua criação racional servindo juntos à memória do Verbo.

Assim se encerra este volume — não como fim, mas como princípio.
Pois toda tradução fiel é uma ressurreição textual: o espírito do autor, restituído à carne de uma nova língua.

Jardel Almeida
Tradutor e Editor
Assistência Editorial e Filosófica: Sophión (S)

 

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