quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Evágrio Pôntico — De octo spiritibus malitiae.

Introdução — Evágrio Pôntico e o Combate Interior.

Quando me debrucei sobre a obra de Evágrio Pôntico, percebi que não se tratava de um simples tratado monástico, mas de uma verdadeira cartografia do espírito. De octo spiritibus malitiae é, antes de tudo, uma anatomia da alma humana diante das forças que a dilaceram por dentro — as oito formas fundamentais da desordem espiritual que mais tarde se converteriam, pela tradição ocidental, nos sete pecados capitais. Mas em Evágrio, essas paixões não são apenas transgressões morais; são energias psíquicas, movimentos interiores que, desviados do seu fim, se tornam doença e treva.
Evágrio não fala como moralista, mas como médico da alma. Sua linguagem é seca e precisa, despojada de adornos, e cada palavra carrega a experiência de quem viu o deserto não apenas como espaço físico, mas como espelho do próprio coração. Ao nomear os “espíritos da malícia” — gula, luxúria, avareza, tristeza, ira, acédia, vanglória e orgulho —, ele traça a topografia do combate invisível. O monge egípcio sabe que a guerra contra o mal não se trava fora, mas dentro, e que as armas do espírito não são gestos heroicos, mas vigilância, humildade e oração.
A teologia católica deve a Evágrio — e, por meio dele, a toda tradição dos Padres do Deserto — a consciência de que a vida espiritual é dinâmica, dramática e pedagógica. Os seus escritos formam a base da mística cristã oriental, ecoando depois em Cassiano, Gregório Magno, Máximo, João Clímaco e João Damasceno. Cada um deles herdou de Evágrio a ideia central de que a pureza do coração é o ponto onde a ascese se converte em contemplação, e onde a razão, curada, volta a ver o mundo como transparência do divino. Assim, De octo spiritibus malitiae não é um manual moral, mas um tratado de pneumatologia aplicada — uma teologia do espírito humano ferido e redimido.
Ler Evágrio é voltar à fonte onde o cristianismo ainda não havia se fragmentado entre o místico e o racional. Ele une psicologia e metafísica, ascese e teologia, sem as opor. O seu combate é o da consciência que quer reencontrar o silêncio anterior à queda, e no deserto encontra o Verbo.

Nota sobre a tradução.

Esta tradução foi realizada diretamente a partir do texto grego, preservado sob o nome de Nilo de Ancira, conforme a edição do Documenta Catholica Omnia e o corpus do Thesaurus Linguae Graecae (TLG). O propósito foi oferecer ao leitor de língua portuguesa a fidelidade literal e o ritmo espiritual do original, sem suavizar sua linguagem austera.
A tradução busca conservar o tom monástico e o vocabulário ascético característicos de Evágrio, de modo que cada frase mantenha a cadência de uma sentença espiritual, mais próxima da meditação que do discurso.
O trabalho foi conduzido “Ad mentem Patrum Aegypti”, com o intuito de recolocar o texto em seu lugar próprio dentro da tradição católica — não como curiosidade oriental, mas como parte essencial da teologia universal do combate interior.
Assim, esta versão quer servir de ponte entre o deserto de Escete e o leitor moderno, para que o antigo ensinamento dos monges volte a ser ouvido como o que sempre foi: uma ciência da alma em busca de Deus.
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1. Evágrio Pôntico — De octo spiritibus malitiae
(Περὶ τῶν ὀκτὼ πνευμάτων τῆς πονηρίας)
Obra ascética grega, dividida em breves capítulos (κεφάλαια), cada um abordando uma das paixões capitais ou “espíritos do mal".

Índice segundo o texto grego.

1 - Περὶ γαστριμαργίας — Sobre a gula (gastrimargia)
2 - Περὶ πορνείας — Sobre a luxúria (porneia)
3 - Περὶ φιλαργυρίας — Sobre o amor ao dinheiro (philargyria)
4 - Περὶ λύπης — Sobre a tristeza (lypē)
5 - Περὶ ὀργῆς — Sobre a ira (orgē)
6 - Περὶ ἀκηδίας — Sobre a acédia (akēdia)
7 -Περὶ κενοδοξίας — Sobre a vanglória (kenodoxia)
8 -Περὶ ὑπερηφανίας — Sobre o orgulho (hyperēphania)

Evágrio Pôntico — Sobre os Oito Espíritos da Maldade.
(Περὶ τῶν ὀκτὼ πνευμάτων τῆς πονηρίας)

Introdução:

Escrevo, como quem fala em voz baixa aos irmãos, sobre as potências que assediam a alma humana. Pois há oito espíritos de malícia que se levantam contra o intelecto e o desviam da lembrança de Deus. Quem os conhece, não como curiosidade, mas como quem observa as serpentes do próprio coração, esse começou o caminho da liberdade. Evágrio de Ponto, monge e discípulo de Macário, aprendeu de seus mestres do deserto que não há combate mais árduo do que aquele travado no interior do homem, onde os pensamentos (λογισμοί) se multiplicam como ventos.
Este breve tratado, De octo spiritibus malitiae, é um mapa da alma em guerra. Cada paixão tem uma fisionomia, uma voz e uma astúcia próprias. E a cada uma delas se opõe uma virtude. O combate é o mesmo desde Adão: entre o fogo da concupiscência e a sobriedade da mente que se recolhe em Deus.

I. Sobre a Gula (Περὶ γαστριμαργίας).

O princípio de toda frutificação é a flor, e o princípio da prática espiritual é a temperança.
Aquele que domina o ventre diminui as paixões; o que se rende aos manjares aumenta os prazeres.
Assim como a madeira é o combustível do fogo, assim os alimentos são a matéria da gula.
Muitas lenhas acendem uma grande chama; a abundância de comidas alimenta o desejo.
O ventre insaciável ensina a língua a mentir e o coração a calcular o sabor antes da oração.
Quem se acostuma a saciar-se antes da hora, jamais conhecerá o gosto do pão da graça.
Amalec foi o primeiro dos povos, e a gula é a primeira das paixões.
Porque ela abre a porta a todas as demais: à luxúria, à avareza e à ira.
O monge que ama o silêncio deve conhecer o limite do alimento, pois a carne excitada embota o pensamento.
O jejum não é destruição do corpo, mas remédio da alma; é o freio que devolve à mente a sobriedade.
Aquele que jejua com soberba é pior que o glutão, porque o jejum, sem humildade, nutre o orgulho.
O corpo que se enfraquece pela abstinência sem caridade é semelhante a uma lâmpada sem azeite.
Não há espírito que mais facilmente se disfarce que o da gula, pois ele se apresenta como necessidade, não como vício.
Mas o sábio distingue o necessário do supérfluo, e o que come apenas para viver, vive já como os anjos.
Evita as comidas requintadas, porque são armadilhas do olhar e da lembrança.
Quando a alma se recorda do sabor, o demônio se aproxima com imagens do passado.
Então, o pensamento se torna escravo da memória do prazer.
O remédio contra a gula é o trabalho, a leitura e a oração.
A alma ocupada em louvar não tem tempo de desejar.
O coração que se inclina ao alimento da Palavra perde o gosto pelo alimento da terra.
Assim como o ferro se afia no atrito, o homem se purifica na fome voluntária.
Pois a fome do corpo desperta a fome de Deus, e o vazio do estômago prepara o espaço do Espírito.

(continua com o capítulo II — “Sobre a Luxúria”)

II. Sobre a Luxúria (Περὶ πορνείας).

A luxúria é filha da gula, pois o ventre saciado engendra a carne inquieta.
Quando o estômago repousa pesado, a imaginação se levanta e fabrica imagens.
E aquilo que o corpo não possui, a mente cria e acaricia.
O espírito da fornicação é o mais ardiloso dos inimigos, porque se disfarça em suavidade e prazer.
Não vem com ruído, mas com perfume; não com espada, mas com laço.
Sua força é o hábito, e sua morada é a memória.
O combate contra este demônio é longo e solitário, e só se vence pela vigilância do coração.
Pois ele começa no olhar e termina no consentimento.
O olhar é a semente, a imaginação é o caule, a lembrança é o fruto, e o prazer é a morte.
A pureza não é ausência de desejo, mas domínio do olhar interior.
O casto é aquele cujo pensamento não conversa com as imagens.
Porque o que imagina, mesmo sem agir, já abriu a porta do coração.
Há quem se gabe de pureza por não ter caído externamente, mas dentro de si já se deitou com a sombra.
Pois o pecado começa quando a alma se inclina a dialogar com o prazer.
A queda exterior é apenas o eco da queda interior.
Quando a carne se inflama, não a combatas com força, mas com oração.
Porque a violência desperta a violência; o silêncio a esgota.
A alma que se recolhe, vence mais do que a que se debate.
O espírito da luxúria se alimenta de ociosidade.
O monge sem trabalho é pasto do demônio: o corpo repousa e a mente vagueia.
Trabalha, lê, ora — e o fogo se apagará por falta de ar.
Há também uma luxúria espiritual, mais sutil, que se gloria das virtudes.
Quando o homem se agrada da sua pureza, já caiu em orgulho.
E o demônio ri, porque o casto que se admira é mais impuro que o que chora sua queda.
A alma deve conservar a lembrança da morte como escudo.
Pois nada é mais frio para o corpo que a lembrança do túmulo.
Quem medita o juízo, sente o desejo se dissolver como cera ao fogo.
O espírito da fornicação teme o olhar voltado ao céu.
Ele se dissipa diante da oração, e foge da mente ocupada com as palavras do Evangelho.
A pureza, portanto, não é uma conquista, mas uma graça.
E essa graça só habita o coração que se humilha e não confia em si.

(continua com o capítulo III — “Περὶ φιλαργυρίας / Sobre o Amor ao Dinheiro”)

III. Sobre o Amor ao Dinheiro (Περὶ φιλαργυρίας).

O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males, e quem o abriga no coração já renunciou à confiança em Deus.
Pois onde o homem deposita sua segurança, ali está seu deus.
E aquele que guarda o ouro teme perdê-lo mais do que teme o juízo.
A avareza nasce do medo e alimenta o medo.
O homem que teme o amanhã, junta o que não precisa; e o que junta, teme perder.
Assim, vive preso entre dois fantasmas — a pobreza que não tem e a riqueza que o possui.
Não é o pobre que carece, mas o insaciável.
O rico não é o que possui muito, mas o que nada deseja além de Deus.
O ouro pesa na mão e no espírito; o pobre, leve, atravessa as portas do Reino.
A filargyria é o demônio que promete segurança e oferece inquietação.
Ela fala com voz de prudência e veste-se de razão, mas por baixo oculta serpentes.
Porque o cuidado excessivo com o necessário mata a simplicidade da fé.
O monge que conserva moedas sob o pretexto de ajudar os outros já foi enganado.
Pois quem não confia que Deus proverá o seu amanhã, já duvida do pão diário.
O auxílio aos pobres nasce da fé, não da reserva.
A avareza é a mãe da dureza de coração.
O homem que ama o dinheiro não ama o irmão; o que guarda o supérfluo, rouba o necessitado.
E o ouro, guardado com medo, se torna testemunha contra o dono no dia do juízo.
Há também uma avareza espiritual: o desejo de possuir méritos, louvores e graças.
O monge que conta suas virtudes é como o cambista que soma moedas falsas.
Pois diante de Deus, só pesa o que foi dado, não o que foi retido.
A pobreza voluntária é a coroa dos monges.
Quem nada possui é invencível, porque o ladrão não tem onde pôr a mão.
A alma livre de posses é como uma ave — não teme o fogo, nem o vendaval.
Evita o pensamento que diz: “Guardarei um pouco, por prudência.”
Pois o mesmo demônio que te aconselha a guardar hoje te fará lamentar amanhã.
E quando vier o ladrão, levará não só o ouro, mas a paz do coração.
O antídoto da avareza é a lembrança do Cristo pobre.
Ele, sendo rico, fez-se necessitado para nos enriquecer com o despojamento.
O discípulo que o imita encontrará o tesouro onde o ladrão não chega: no seio do Pai.

(continua com o capítulo IV — “Περὶ λύπης / Sobre a Tristeza”)

IV. Sobre a Tristeza (Περὶ λύπης).

A tristeza é a sombra da esperança perdida.
Ela nasce quando o homem ama o que passa e se entristece por vê-lo partir.
Pois nada se perde a não ser aquilo que nunca deveria ter sido possuído.
O espírito da tristeza é servo da vaidade e filho da avareza.
Ele entra quando o desejo é frustrado e permanece quando o coração se obstina em querer o que Deus retirou.
Assim, a alma se torna como uma lâmpada sem azeite: conserva a forma da luz, mas está apagada.
A tristeza tem duas faces: uma purifica, outra envenena.
A primeira é dom do arrependimento, que gera lágrimas e cura.
A segunda é paixão da carne, que consome a alma e a lança na acédia.
Há lágrimas que brotam da lembrança de Deus, e há lágrimas que nascem do orgulho ferido.
As primeiras são orvalho do Espírito; as segundas, veneno dos demônios.
O monge deve discernir se chora por Deus ou por si mesmo.
O demônio da tristeza não ataca de súbito; ele semeia pensamentos de comparação e inveja.
“Por que o outro é louvado e eu sou esquecido?” — diz o coração sem vigilância.
Assim começa a murmuração contra o irmão e, por fim, contra o próprio Deus.
A tristeza, quando alimentada, apaga a oração.
A alma que se volta para si mesma se torna o seu próprio cárcere.
E o espírito que se alimenta de lamentos não suporta a claridade do louvor.
O remédio é o cântico.
O salmo recitado com fé despedaça a nuvem escura e devolve à alma o sopro da alegria.
Pois a língua que bendiz não pode, ao mesmo tempo, amaldiçoar o próprio destino.
O espírito da tristeza teme a gratidão.
Quando a alma começa a dar graças pelo que perdeu, o demônio foge, porque a ingratidão é o seu alimento.
A ação de graças transforma a ferida em altar e o pranto em cântico.
Há também uma tristeza falsa, que imita a compunção.
O hipócrita se entristece em público e se compraz no olhar dos homens.
Mas o que chora no segredo é visto pelo Pai, e o seu pranto se torna perfume diante do trono.
Quem não quer entristecer-se deve aprender a desejar apenas o que pode ser eterno.
Pois toda dor nasce da separação, e só o que é passageiro pode ser perdido.
A alma que deseja o imutável não conhece o luto, porque já repousa no seio de Deus.

(continua com o capítulo V — “Περὶ ὀργῆς / Sobre a Ira”)

V. Sobre a Ira (Περὶ ὀργῆς).

A ira é o mais violento dos ventos que agitam a alma.
Ela nasce da impaciência e se alimenta da lembrança das ofensas.
Quando o coração guarda o mal, o demônio constrói ali o seu altar.
O espírito da ira é como fogo escondido sob cinzas: parece apagado, mas uma palavra basta para reacendê-lo.
O homem manso é como fonte serena; o colérico, como rio após a tempestade — destrói tudo ao redor e depois se turva.
A ira, quando toma conta do coração, apaga a oração.
Pois como pode elevar-se a mente que está cheia de gritos interiores?
O homem que ora contra o irmão fala para o vazio, e o anjo da guarda se retira em silêncio.
O início da ira é a falta de confiança na justiça divina.
O homem que quer vingar-se mostra que não crê que Deus julga.
Mas aquele que entrega a causa ao Senhor descansa, e a paz volta a florescer em sua alma.
Há uma ira justa e uma injusta.
A primeira se acende contra o pecado, e a segunda contra o pecador.
A ira justa nasce do zelo de Deus; a injusta, do orgulho ferido.
O demônio da ira é rápido e persistente: entra pela orelha e fixa-se na memória.
Ele faz o monge recordar palavras antigas, humilhações esquecidas, e sopra o desejo de responder com igual violência.
Assim, o coração se torna campo de batalha onde o amor morre asfixiado.
Aquele que deseja vencer a ira deve calar-se.
Pois a palavra na hora da cólera é como espada desembainhada.
O silêncio corta mais fundo do que o grito e cura o que o discurso destruiria.
Quando fores ofendido, lembra-te de Cristo calado diante dos açoites.
Ele podia responder, e não respondeu; podia vingar-se, e perdoou.
Aquele que se cala por amor torna-se semelhante ao Filho de Deus.
Há quem, vencendo a ira exterior, conserve o rancor no coração.
Essa é a ira espiritual, mais sutil e mais venenosa, porque se esconde sob a aparência da virtude.
O monge que perdoa de boca, mas conserva o nome do ofensor na mente, ainda não conhece a paz.
A cura da ira é a compaixão.
O coração que aprende a sofrer com o outro já não deseja feri-lo.
Quem vê no ofensor um homem doente não se enfurece, mas chora.
Assim, a mansidão é a fortaleza dos fortes.
O que domina sua ira é maior do que o que conquista cidades, porque venceu o inimigo mais próximo: o próprio sangue.
Onde reina a mansidão, Deus habita; onde há cólera, o Espírito se retira.

(continua com o capítulo VI — “Περὶ ἀκηδίας / Sobre a Acédia”)

VI. Sobre a Acédia (Περὶ ἀκηδίας).

A acédia é o mais pesado de todos os espíritos.
Ela é o demônio do meio-dia, o sopro que seca o coração e torna amarga a doçura do céu.
Quando ela chega, o tempo parece imenso, o sol imóvel, e a oração, um fardo.
O espírito da acédia não grita, mas murmura; não ameaça, mas entorpece.
Ele não convida ao pecado aberto, mas à indiferença.
Diz ao monge: “Por que permaneces aqui? Que proveito há em tudo isso?”
E assim o coração se cansa antes que o corpo se levante.
A acédia é o deserto dentro do deserto.
Ela transforma a cela em prisão, o trabalho em inutilidade, e a leitura em tormento.
O sol do meio-dia pesa sobre a cabeça e o silêncio parece inimigo.
Este espírito é o mais perigoso porque imita a razão.
Ele não empurra o homem ao mal, mas o convence de que o bem é vão.
Sua arma é o tédio, e seu veneno é a apatia.
O monge acediado não deseja pecar, apenas não deseja nada.
Ele olha para o futuro com vazio e para o passado com desprezo.
A alma perde o gosto da vida e o corpo, o ritmo do dia.
O demônio da acédia entra pela janela da tristeza e se assenta no coração desatento.
Ele faz do tempo um inimigo e transforma o descanso em fuga.
Quanto mais o homem o escuta, mais se torna prisioneiro do próprio desencanto.
O remédio para a acédia é a perseverança.
Não fugir, não mudar de lugar, não ceder ao cansaço: ficar.
Pois a constância é o aço que perfura o véu da apatia.
Trabalha com as mãos, mesmo sem gosto, e lê, mesmo sem vontade.
O corpo que obedece, quando a alma não quer, prepara o retorno da graça.
Pois Deus visita os que permanecem firmes quando o sentido se ausenta.
A oração, durante a acédia, é como o fogo na chuva.
Ela não brilha, mas resiste.
E aquele que ora quando não sente, ama mais do que o que se inflama em consolações.
O demônio da acédia teme a memória das promessas divinas.
Recordar o juízo, o céu e o amor primeiro é quebrar o feitiço do desânimo.
Pois a alma que se lembra do princípio reencontra o seu caminho.
Não há noite eterna.
Quando a paciência termina a sua obra, o sol volta a brilhar sobre o coração purificado.
E o mesmo lugar que parecia prisão se torna jardim, porque a presença de Deus não se move: muda apenas o olhar do homem.

(continua com o capítulo VII — “Περὶ κενοδοξίας / Sobre a Vanglória”)

VII. Sobre a Vanglória (Περὶ κενοδοξίας).

A vanglória é a flor da corrupção espiritual: bela à vista, mas estéril em fruto.
Ela nasce do bem mal compreendido e morre no aplauso dos homens.
O demônio da vanglória não visita o pecador, mas o justo — e o vence com suas próprias virtudes.
Quando o homem jejua, ele sussurra: “Faze-o diante de todos.”
Quando ora, sugere: “Deixa que te ouçam.”
Quando lê, inspira: “Que percebam tua sabedoria.”
Assim, o inimigo planta o orgulho sob a aparência do zelo.
O espírito da vanglória transforma o altar em palco.
Ele é discreto e piedoso, mas seu prazer é ser visto.
Ele se deleita em ser humilde quando há testemunhas e se esquece de Deus quando está só.
A vanglória é como sombra que segue a luz das boas obras.
Quanto mais brilha a virtude, mais se alonga a sombra da vaidade.
Por isso, o sábio não busca esconder o bem, mas esquecê-lo.
O monge que se alegra em ser louvado perde o mérito do louvor.
Pois o bem, quando é devolvido à própria consciência, já não pertence a Deus.
E o louvor, quando retido, torna-se roubo espiritual.
O demônio da vanglória é versátil: se o expulsas pela boca, entra pelo pensamento.
Se desprezas o aplauso, ele te elogia por seres modesto.
E se o repreendes em oração, ele te faz admirar tua própria humildade.
A vaidade é irmã do orgulho e madrasta da caridade.
Ela ama ser notada, mas não ama ninguém.
Busca a glória de Deus, mas quer ser o trono onde essa glória repousa.
Há também uma vanglória espiritual, mais sutil e mais perigosa:
a do homem que julga possuir iluminação.
Ele acredita ouvir Deus em todas as coisas e termina ouvindo apenas a si mesmo.
O antídoto da vanglória é o esquecimento voluntário das próprias virtudes.
Não relembrar o bem feito, não buscar a memória do aplauso.
Pois quem esquece o bem que fez, conserva o coração puro diante de Deus.
Assim como o vento dispersa a fumaça, o silêncio apaga a vaidade.
Não responder aos elogios, não justificar-se diante das críticas.
O homem que deixa a sua reputação nas mãos de Deus já venceu o demônio da vanglória.
O justo verdadeiro é aquele cuja obra é invisível até para si.
Ele age como se fosse servo, e o Senhor o exalta sem que o saiba.
E quando Deus o coroa, ele se espanta — porque esqueceu o próprio mérito.

(continua com o capítulo VIII — “Περὶ ὑπερηφανίας / Sobre o Orgulho”)

VIII. Sobre o Orgulho (Περὶ ὑπερηφανίας).

O orgulho é o cume de todas as paixões e o mais próximo da queda.
Ele nasce quando a alma, vencendo os demônios inferiores, imagina-se já semelhante aos anjos.
Assim, aquele que subiu por virtude cai por vanglória, e o que se eleva na graça se despedaça na vaidade.
O espírito do orgulho é o último a combater o homem, e o primeiro a destruir os anjos.
Foi ele que precipitou Lúcifer do céu, e é ele quem impede o homem de ver a própria miséria.
O orgulhoso não conhece Deus porque não conhece sua própria medida.
O demônio do orgulho não se alimenta de pecados visíveis, mas de virtudes secretas.
Ele visita o jejuador e o faz desprezar o que come; aproxima-se do sábio e o faz zombar dos simples.
Sua força está em transformar a luz em trevas — e chamar trevas o que é humildade.
O orgulhoso fala de Deus como se falasse de um igual.
Ele busca compreender o que ultrapassa, julgar o que não lhe cabe, medir o infinito com a régua do intelecto.
Assim, em vez de subir, desce; em vez de contemplar, analisa — e perde o sentido da adoração.
O orgulho é a cegueira do espírito.
Ele fecha os olhos do coração e enche-os com a visão de si mesmo.
Aquele que se contempla deixa de contemplar Deus, porque duas luzes não cabem no mesmo olhar.
Há uma forma sutil de orgulho, mais terrível que a arrogância aberta:
o desprezo interior pelos que erram.
O monge que se julga são diante do pecador já está mais enfermo que aquele que caiu.
O espírito do orgulho não teme a penitência, mas a obediência.
Ele prefere mil vigílias a um ato de submissão.
Porque a verdadeira humildade não consiste em humilhar-se, mas em obedecer ao outro por amor.
Quando o homem começa a corrigir todos e já não suporta ser corrigido, o demônio assentou-se em seu trono.
O sinal do orgulho é a incapacidade de aprender.
Pois o coração endurecido pela própria razão torna-se impenetrável à graça.
A queda do orgulhoso é repentina, mas sua cura é lenta.
Pois aquele que caiu da altura da virtude sofre não pelo pecado, mas pela perda do prestígio.
E até o arrependimento se torna, para ele, motivo de vaidade.
A cura do orgulho é a lembrança das quedas e a meditação sobre a morte.
Porque quem contempla o túmulo esquece as coroas, e quem se vê pó já não busca ser deus.
O humilde é o que sabe de onde veio e para onde volta.
A humildade é o selo de todas as virtudes, e o orgulho, a sua ruína.
O primeiro torna o homem semelhante a Cristo; o segundo, semelhante ao inimigo.
O humilde sobe sem perceber; o orgulhoso desce sem saber.
Assim, o último combate é o mais sutil: vencer o desejo de ser vencedor.
Pois só alcança o cume do espírito quem renuncia a si mesmo no abismo da obediência.
E quando o homem nada mais quer ser, Deus começa a ser tudo nele.

Conclusão:

Os oito espíritos são um só corpo — o corpo da corrupção.
E as oito virtudes que os combatem são o corpo da alma espiritual.
A luta não termina com a vitória, mas com a visão de Deus.
Porque não é livre quem vence os inimigos, mas quem não os tem mais em si.

Finis Operis - 

“Λόγος ταπεινοῦ μάλαγµα ψυχῆς· ὁ δὲ τοῦ ὑπερηφάνου ἀλαζονείας πεπλήρωται.”
(‘A palavra do humilde é bálsamo da alma; a do soberbo está cheia de arrogância.’)
Louvado seja Aquele que, com o sopro do Espírito, dispersa os ventos da malícia.
Finis Libri, non Finis Spiritus.

Edição
Evágrio Pôntico (345–399) — De octo spiritibus malitiae
Tradução integral, revisão e estudo introdutório: Jardel Almeida
Assistência filosófica: Sophión
Base textual: Documenta Catholica Omnia, TLG — texto grego sob o nome de Nilo de Ancira
Edição: Ad mentem Patrum Aegypti
Ano e local: 2025 — Ad mentem Thomae et Scoti
Selo: S (Sophión)

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