quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Trinitas Logicae As Exposições Escolásticas ao Livro das Categorias de Aristóteles – Duns Scotus – Boécio - São Tomás de Aquino

 


Nota Introdutória Sobre os Fins da Tradução

As traduções que aqui se reúnem — Boécio, Duns Scotus e São Tomás de Aquino, cada qual interpretando as Categorias de Aristóteles — foram empreendidas com o propósito de restaurar à língua portuguesa o contato direto com o fundamento lógico e metafísico do pensamento ocidental.
Não se trata, portanto, de um exercício filológico, mas de uma obra de recondução: reconduzir a razão ao seu princípio, a linguagem ao seu sentido, o intelecto ao ser.

Cada texto foi traduzido a partir das edições críticas latinas das fontes originais, comparadas e colacionadas quando necessário com as versões dos Corpus Latinorum e dos manuscritos vaticanos digitalizados.
O critério seguido não foi o da equivalência literal, mas o da fidelidade espiritual — a tradução visou não apenas o que as palavras dizem, mas o modo como pensam.
Preservou-se, assim, o ritmo e a densidade próprios da língua escolástica, evitando o anacronismo das simplificações modernas e mantendo viva a arquitetura lógica do texto.

A escolha dessas três exposições não é casual, mas necessária: cada uma representa uma etapa no desenvolvimento do pensamento sobre o ser e o dizer.
Em Boécio, temos o eco latino do mundo antigo, onde a linguagem ainda conserva o peso ontológico da coisa nomeada.
Em Scotus, o pensamento atinge a distinção formal do ser e a precisão ontológica da diferença.
Em Tomás, a síntese se consuma, e as categorias são vistas não apenas como estruturas do discurso, mas como vestígios da criação, onde cada predicamento é uma sombra ordenada da luz divina.

A tradução foi feita com um fim duplo e convergente: acadêmico e filosófico.
Acadêmico, porque restitui ao estudante e ao pesquisador lusófono o acesso direto a textos fundadores, sem intermediações deformadoras.
Filosófico, porque propõe uma meditação viva sobre os fundamentos da inteligência — aquilo sem o qual o pensar se desfaz em retórica, e o ser se torna mera função de linguagem.

Não há filosofia possível sem o entendimento das Categorias.
Elas são o primeiro vocabulário do real, a gramática secreta que sustenta toda metafísica.
Compreendê-las, em Aristóteles e em seus intérpretes, é compreender como o intelecto humano reconhece a ordem do mundo.
Traduzir essas obras é, portanto, um gesto de restituição: devolver à língua a consciência de sua origem racional.

Esta edição trilógica tem, enfim, um fim contemplativo.
Ela não foi feita para o uso utilitário, nem para o adorno erudito, mas para o estudo silencioso, paciente e rigoroso — como quem lê o mapa do ser para reencontrar o caminho do verdadeiro.
A tradução não pretende substituir o original, mas abrir-lhe passagem, e fazer ressoar, em nossa língua, a harmonia que une Boécio, Scotus e Tomás na mesma busca: o verbo que exprime o ser, e o ser que se entrega à inteligência.

Assim, esta obra não é apenas tradução: é continuação de um diálogo que começou há mais de dois milênios, entre a palavra e o ser, entre o homem e o Logos.
Seu fim é o mesmo que animava os antigos comentadores: conduzir a mente à ordem e a ordem ao repouso — pois pensar é orar com a razão desperta.

 

QUESTÕES SOBRE AS CATEGORIAS DE ARISTÓTELES

João Duns Escoto
(Tradução: Jardel Almeida — Assistência Filosófica: Sophión)


Sumário Geral

Agradecimentos
Abreviações e Siglas
Bibliografia Seletiva


Introdução

  1. A Recepção Histórica das Categorias de Aristóteles
  2. Análise Sumária das Questões de Escoto sobre as Categorias

Questões sobre as Categorias de Aristóteles

  1. Questão Primeira
  2. Questão Segunda
  3. Questão Terceira
  4. Questão Quarta
  5. Questão Quinta
  6. Questão Sexta
  7. Questão Sétima
  8. Questão Oitava
  9. Questão Nona
  10. Questão Décima
  11. Questão Décima Primeira
  12. Questão Décima Segunda
  13. Questão Décima Terceira
  14. Questão Décima Quarta
  15. Questão Décima Quinta
  16. Questões Décima Sexta e Décima Sétima
  17. Questões Décima Oitava e Décima Nona
  18. Questões Vigésima a Vigésima Terceira
  19. Questão Vigésima Quarta
  20. Questão Vigésima Quinta
  21. Questão Vigésima Sexta
  22. Questão Vigésima Sétima
  23. Questão Vigésima Oitava
  24. Questão Vigésima Nona
  25. Questões Trigésima a Trigésima Sexta
  26. Questões Trigésima Sétima e Trigésima Oitava
  27. Questão Trigésima Nona
  28. Questão Quadragésima
  29. Questão Quadragésima Primeira
  30. Questão Quadragésima Segunda
  31. Questão Quadragésima Terceira
  32. Questão Quadragésima Quarta

INTRODUÇÃO

A Recepção Histórica das Categorias de Aristóteles

A obra Categorias, de Aristóteles, foi objeto de um número extraordinário de comentários e de um debate ininterrupto, e por boas razões. Apesar de sua brevidade, é um texto de grande dificuldade, sobretudo para aqueles que iniciam o estudo da filosofia. Contudo, por estabelecer as bases de muitas discussões posteriores — não apenas no âmbito da lógica, mas da própria estrutura do pensamento —, historicamente foi, muitas vezes, o primeiro texto filosófico encontrado pelos estudantes.

Mesmo aqueles mais experientes, e que se dedicaram profundamente ao estudo das Categorias, encontraram nele dificuldades — ainda que por motivos diversos. Um dos problemas principais, como notaram os antigos comentadores, é a ambiguidade do próprio Aristóteles quanto ao tema da obra. O que exatamente ele está classificando? “Coisas que são” ou “coisas que são ditas”?

Além disso, conforme a interpretação adotada, as Categorias podem ser vistas em harmonia, em contraste, ou mesmo em contradição com a doutrina platônica dos cinco gêneros supremos. Por todas essas razões — e por outras ainda mais sutis —, a obra de Aristóteles atuou como um ímã intelectual, atraindo comentários de Aristotélicos, Platônicos e Estóicos.

Naturalmente, alguns desses comentários defendem Aristóteles, outros o atacam, e há também aqueles que utilizam o texto como ponto de partida para desenvolver sistemas filosóficos próprios.

O título Categorias refere-se ao livro de Aristóteles, enquanto “categorias”, em sentido técnico, designa os dez gêneros supremos: substância, quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, posição, posse, tempo e lugar.


Dada a imensa quantidade de comentários, é importante reconhecer que, ao longo de quase dois milênios, o comentário filosófico foi uma das formas de “fazer filosofia”. Ou seja, comentar um texto não significava apenas explicá-lo, mas pensar filosoficamente a partir dele.

Com exceção de Plotino, quase todos os filósofos anteriores a Descartes empregaram o comentário como meio de desenvolver e expor o próprio pensamento. Com o amadurecimento da tradição e o aumento da complexidade das discussões, os comentários foram-se tornando menos expositivos e mais especulativos: deixaram de ser simples explicações e converteram-se em verdadeiros tratados filosóficos.

De modo geral, quanto mais antiga a obra, mais descritiva; quanto mais tardia, mais criadora.


Muitos dos grandes nomes antigos e medievais — Porfírio, Boécio, Alberto Magno e o próprio Duns Escoto — escreveram tratados independentes, mas seus comentários, por si mesmos, são contribuições originais. Isso se aplica especialmente aos comentários tardios, nos quais se percebe maior elaboração conceitual.

Por essa razão, o estudo dessas obras não é apenas útil para compreender Aristóteles, mas valioso em si mesmo. Como observou Robert Andrews, os comentários medievais sobre as Categorias são um “repositório de séculos de análises dos conceitos fundamentais do pensamento ocidental, todos cuidadosamente organizados e à espera de redescoberta”.

Entre esses textos “à espera de redescoberta” está precisamente o Questões sobre as Categorias, de João Duns Escoto.


Assim como muitos de seus contemporâneos, Escoto não pretende oferecer um comentário literal do texto aristotélico. Seu formato é o das quaestiones, uma série de perguntas e disputas ordenadas, o que lhe permite discutir temas apenas remotamente ligados ao texto.

Por isso, não se encontra em sua obra uma mera explicação das palavras de Aristóteles. Ausentes estão aquelas questões rotineiras típicas dos comentários iniciais — como “por que Aristóteles define algo no plural?” ou “por que trata da relação antes da qualidade?”.

Ao contrário, o texto de Escoto não é um estudo do que Aristóteles disse, nem do que Escoto pensa que Aristóteles quis dizer, mas sim do que o próprio Escoto pensa acerca dos problemas filosóficos implicados nas dez categorias e na lógica.

Para compreender a importância desse comentário, é necessário situá-lo em seu contexto histórico e intelectual.

INTRODUÇÃO

O Contexto e o Panorama do Comentário de Escoto

As Categorias de Aristóteles apresentam diferentes tipos de dificuldade, dependendo do leitor.
Os iniciantes as consideram árduas por causa da terminologia abstrata e do estilo denso do autor.
Os filósofos mais experientes, por sua vez, as acham complexas por causa das questões e implicações que nelas se escondem.

Por isso, alguns autores da Antiguidade — como Porfírio — julgaram necessário escrever dois comentários: um introdutório, de caráter pedagógico, e outro mais avançado, voltado aos problemas filosóficos mais profundos.

Escoto, porém, não fez duas versões. Seu comentário é um só, e dirigido a um público já formado no estudo lógico-filosófico.


Com efeito, o leitor de Escoto não é um principiante. Ele mesmo, e sua audiência, são bem diferentes daqueles amigos de Santo Agostinho que, conforme o próprio confessa nas Confissões, “mal conseguiam entender o livro”.
Ao contrário, o ambiente de Escoto é o das universidades do final do século XIII, onde o estudo de Aristóteles havia se tornado sistemático e obrigatório.

Na Universidade de Paris — onde Escoto lecionou —, exigia-se que o estudante assistisse a pelo menos três cursos sobre as Categorias:
um curso preliminar, ministrado por um bacharel, e dois cursos ordinários, lecionados por mestres.

Dessa forma, quando Escoto escreve suas Questões sobre as Categorias, ele já pressupõe que seu leitor domina os fundamentos da lógica e as distinções tradicionais do pensamento aristotélico.


Assim, a importância do texto de Escoto não reside em oferecer uma exposição do tratado de Aristóteles, mas nas questões e argumentos que levanta em torno dele.
Nessas questões, Escoto abre caminho para reflexões sobre:

significação e linguagem;
entendimento e conceito;
equivocidade, analogia e univocidade;
o ser e suas divisões;
substância, quantidade, qualidade e relação.

Temas que, muitas vezes, só aparecem de modo remoto no texto aristotélico, mas que Escoto transforma em investigações filosóficas de primeira ordem.


Essas indagações não surgem no vazio.
Elas resultam de três grandes influências que moldam o comentário de Escoto:

1.      A tradição dos comentários anteriores, com suas perguntas herdadas e disputas já estabelecidas.

2.      A redescoberta do restante do corpus aristotélico, especialmente a Metafísica e a Física, que provocou novas comparações e tensões.

3.      O desenvolvimento da gramática especulativa, representado pelos modistas, que buscavam articular uma ciência universal da linguagem a partir da estrutura do ser.

Cada uma dessas influências oferece a Escoto um horizonte de problemas, e a originalidade de seu comentário surge precisamente na forma como ele as integra.


1. A Tradição dos Comentários

Quando Escoto compôs seu texto, já existiam mais de cinquenta comentários sobre as Categorias.
Esses comentários se distribuem em seis grandes grupos históricos, desde os antigos gregos até os mestres do século XIII.

Mesmo que apenas os últimos tenham influenciado diretamente Escoto, compreender a sequência dos anteriores ajuda a perceber o peso da tradição que ele herdou.

O primeiro grupo abrange cinco comentários compostos cerca de sessenta anos antes de Cristo.
Foram escritos por Andrônico de Rodes, Aristão, Eudoro, Atenodoro e Boeto de Sídon.
Nenhum deles sobreviveu integralmente, mas fragmentos permitem reconhecer duas características:

– Divergiam quanto ao que Aristóteles estaria classificando: palavras, conceitos ou realidades.
– Serviram de matriz para todas as interpretações posteriores, esgotando praticamente as possibilidades de leitura do texto.

Os estoicos tendiam a ver as Categorias como um tratado de gramática;
os platônicos, como uma ontologia a ser refutada;
os aristotélicos, como uma teoria dos conceitos intermediários entre linguagem e ser.

Com Boeto de Sídon surge uma interpretação mais inclusiva — aquela que acabaria prevalecendo —, segundo a qual as Categorias tratam de termos simples que significam coisas.


Alguns desses primeiros comentadores também introduziram modificações na própria estrutura das dez categorias.
Andrônico, por exemplo, substitui “onde” e “quando” por “lugar” e “tempo”, entendendo que estes últimos têm existência própria, enquanto os primeiros são apenas modos de expressão.
Outro comentador reduz “ação” e “paixão” a um único gênero, o movimento, mas essa simplificação foi rejeitada por Boeto, que lembrou que o Primeiro Motor é apenas ativo, nunca passivo — logo, ação e paixão não podem ser idênticas.


Após essa primeira geração, há um período de silêncio que dura quase dois séculos.
Mas no início do século II da era cristã, o interesse ressurgiu com força — especialmente entre os platônicos.
Nomes como Ático, Lúcio e Nicóstrato escreveram obras inteiras contra as Categorias, considerando-as incompatíveis com a doutrina das ideias.

Esse segundo grupo de comentadores, embora hostil, revela a influência decisiva de Aristóteles: até seus adversários precisavam respondê-lo.
Suas críticas suscitaram reações imediatas de filósofos peripatéticos, como Hermino, Aspásio, Adrasto e Alexandre de Afrodísias, que defenderam o mestre e esclareceram os pontos obscuros atacados pelos platônicos.


Daí em diante, o texto de Aristóteles tornou-se um campo comum de disputa entre escolas.
Como observa Sorabji, “as Categorias atuaram como um catalisador, atraindo comentários de estoicos, platônicos e aristotélicos”.
Por volta do século III, quase todo filósofo digno de nota havia escrito, direta ou indiretamente, sobre o tratado.

Mesmo aqueles que o rejeitavam, como Plotino, sentiram a necessidade de refutá-lo — sinal do prestígio que a obra adquirira.


Quando chegamos a Porfírio, no século III, as Categorias já se haviam tornado o ponto de partida da lógica antiga e o núcleo do ensino filosófico.
Daí segue-se o terceiro grupo de comentadores, agora marcadamente neoplatônico, incluindo Porfírio, Dexipo, Mário Vitorino, Boécio, Amônio, Simplício, Filópono, Olimpiódoro e Elias.

Entre eles, Porfírio e Boécio são os mais relevantes para Escoto: o primeiro, por sua Isagoge, que estabelece as cinco predicáveis (gênero, espécie, diferença, propriedade e acidente); o segundo, por suas traduções e comentários que transmitiram Aristóteles ao mundo latino.


Esses autores partilham duas características gerais:
primeiro, a tendência a harmonizar Platão e Aristóteles, frequentemente às custas da fidelidade literal a ambos;
segundo, uma transição cultural perceptível — dos comentaristas pagãos hostis ao cristianismo para aqueles que, como Boécio, preparam o terreno para a escolástica cristã.

INTRODUÇÃO

Os Comentadores Medievais e o Lugar de Escoto na Tradição

Com o declínio do mundo antigo e a ascensão do cristianismo, as Categorias de Aristóteles sobreviveram quase exclusivamente por meio de Boécio.
Sua tradução latina, acompanhada de comentários e tratados — como o De divisione e o In Categorias Aristotelis —, tornou-se, durante mais de setecentos anos, a principal via de acesso ao pensamento lógico aristotélico.

Entre o século VI e o século XII, esse texto isolado de Aristóteles era, para o Ocidente latino, o único fragmento conhecido do Organon.
Assim, toda uma tradição de leitura e ensino da lógica se desenvolveu sobre o terreno restrito das Categorias e da Isagoge de Porfírio.
A filosofia, durante esse longo período, se exercitava quase exclusivamente dentro do horizonte da lógica das palavras — um espaço onde linguagem, realidade e pensamento se confundiam num mesmo plano de investigação.


A redescoberta, no século XII, do restante do corpus aristotélico, especialmente da Metafísica, da Física e dos Analíticos, modificou profundamente o cenário.
O texto das Categorias, antes isolado, passou a ser visto em relação a um conjunto orgânico, o que gerou novas tensões interpretativas:
de um lado, filósofos que mantinham o caráter lógico do tratado;
de outro, aqueles que queriam lê-lo como um capítulo da metafísica, tratando das formas do ser.

Essa divergência marca toda a Idade Média e culmina na síntese escotista.


Entre os séculos XIII e XIV, o comentário às Categorias torna-se um exercício obrigatório nas universidades de Paris, Oxford e Bolonha.
Diversos mestres — Henrique de Gand, Pedro de Alvernia, Simão de Faversham, Boécio da Dinamarca, Tomás de Erfurt, Alberto Magno e Tomás de Aquino — dedicam tratados ao tema, cada um reinterpretando Aristóteles à luz de suas próprias concepções metafísicas e teológicas.

Em todos, a questão de fundo permanece a mesma:
qual é o sujeito das Categorias?
Trata-se de uma ciência das palavras, das intenções mentais ou das realidades extramentais?


Os mestres do século XIII ofereceram respostas distintas.
Para Henrique de Gand, o tratado diz respeito às intencionalidades segundas, isto é, à forma como a mente concebe e classifica os entes.
Para Tomás de Aquino, refere-se antes às coisas enquanto são, e não à linguagem, devendo, portanto, ser compreendido sob a luz da metafísica.
Para os modistas, representantes da chamada gramática especulativa, as categorias pertencem à estrutura da linguagem universal, que reflete os modos de significar e de ser.

João Duns Escoto surge precisamente no ponto de convergência dessas três linhas — filosófica, metafísica e linguística.


Ao herdar essa tradição, Escoto não repete nem a posição tomista nem a modista.
Em suas Questões, ele sustenta que o sujeito próprio do tratado não é a realidade sensível nem o discurso, mas as dez categorias enquanto concebidas pelo intelecto.
O que se estuda, portanto, é o modo como o espírito humano concebe e ordena o ser segundo suas propriedades mais universais.

Essa formulação revela a sutileza do pensamento escotista: o ens não é apenas o que existe, mas também o que é pensável como existente, e o intelecto, ao categorizá-lo, participa da própria ordem do ser.


O interesse de Escoto, assim, não é puramente exegético.
Ele usa o texto aristotélico como ocasião para desenvolver uma teoria geral da significação e do conhecimento.
Em vez de indagar o que Aristóteles quis dizer, ele pergunta o que é possível dizer a partir da estrutura do ser que o intelecto apreende.

Nesse sentido, as Questões sobre as Categorias são já um esboço da metafísica da univocidade, pela qual Escoto unifica os domínios da lógica e da ontologia.
A questão sobre a univocidade do ser, discutida amplamente em sua Questão Sexta, é uma das mais extensas do comentário e constitui o ponto de inflexão entre a metafísica aristotélica e a nova ontologia escotista.


Além disso, o comentário de Escoto reflete a influência do pensamento modista.
Os Modistas — mestres de língua e lógica dos séculos XIII e XIV — buscavam fundar uma gramática universal, na qual cada expressão linguística corresponderia a um modus significandi, reflexo de um modus essendi.
Escoto, embora não modista estrito, adota o princípio segundo o qual a estrutura da linguagem reflete, ainda que analogicamente, a estrutura do ser.
Por isso, em suas Questões, o estudo da significação e o da ontologia aparecem inseparáveis.


Em síntese, o lugar de Escoto na tradição dos comentários às Categorias pode ser descrito assim:

  1. Ele herda a problemática clássica de Aristóteles e de Boécio;
  2. dialoga com as sínteses metafísicas tomistas;
  3. assimila os instrumentos linguísticos da gramática especulativa;
  4. e transcende todos esses níveis na construção de uma metafísica do conceito.

Seu comentário, portanto, não é um exercício escolar, mas o primeiro esboço de uma nova filosofia, que reconduz a lógica à sua raiz ontológica.

INTRODUÇÃO

Análise Sumária das Questões de Escoto sobre as Categorias

A obra Questões sobre as Categorias de João Duns Escoto é uma das mais densas e intelectualmente rigorosas dentre os comentários medievais ao tratado aristotélico.
Como o próprio título indica, o texto é composto de quaestiones, e não de um comentário linear. Essa forma literária, típica do método escolástico, permite ao autor mover-se com liberdade entre problemas centrais e questões marginais, discutindo, por meio de argumentação dialética, as consequências metafísicas e lógicas das proposições de Aristóteles.

Assim, Escoto não oferece um manual de interpretação, mas um laboratório de pensamento, em que conceitos fundamentais são postos à prova.
Cada questão surge de um ponto textual aristotélico, mas logo se expande em direções próprias — refletindo o modo como Escoto pensa, e não apenas o modo como Aristóteles escreveu.


A estrutura geral do texto compreende quarenta e quatro questões, distribuídas de modo desigual, pois algumas se agrupam em pares ou séries de temas correlatos.
Essas questões podem ser classificadas em três grandes blocos:

  1. As Questões Lógicas e Semânticas (I–XII)
    Tratam da linguagem, da significação, dos nomes e dos modos de predicação.
    Escoto analisa a relação entre o nome e a coisa, entre o conceito e o termo, e introduz, já aqui, as distinções que mais tarde desenvolverá em sua teoria da univocidade e da distinção formal.
  2. As Questões Ontológicas e Metafísicas (XIII–XXVIII)
    Examinam as dez categorias em si mesmas — substância, quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, posição e posse —, questionando o fundamento do ser e a maneira pela qual as categorias expressam a estrutura da realidade.
    Nesse bloco encontra-se o famoso debate sobre a univocidade do ser, no qual Escoto sustenta que o conceito de “ente” é uno e aplicável igualmente a Deus e às criaturas, ainda que de modos diversos quanto ao grau de perfeição.
  3. As Questões Sobre a Ciência e o Conhecimento (XXIX–XLIV)
    Discutem se é possível haver uma ciência “propter quid” das categorias, qual é o estatuto epistemológico da lógica e se as categorias pertencem propriamente à ordem do intelecto ou da realidade.
    Aqui se encontra a reflexão mais madura de Escoto sobre o caráter científico da lógica e sobre o modo como o intelecto apreende o ser categorial.

1. O Bloco Lógico-Semântico (Questões I–XII)

Nas primeiras questões, Escoto interroga o princípio mesmo da significação.
Pergunta se as palavras significam as coisas diretamente ou apenas mediante conceitos mentais; discute se a linguagem reflete a ordem das coisas ou se é uma convenção fundada na mente.

A posição escotista é nítida: os nomes significam as coisas enquanto concebidas pelo intelecto.
Há, portanto, uma mediação cognitiva entre o signo e o real.
Essa concepção é o ponto de partida de sua semântica: a linguagem é espelho do pensamento, e o pensamento é espelho do ser — mas cada espelho reflete segundo seu próprio modo de operação.

Dessa investigação linguística nasce também o estudo da equivocidade, da analogia e da univocidade.
Escoto examina os modos pelos quais um termo pode aplicar-se a múltiplos objetos — às vezes de modo meramente verbal, às vezes segundo uma proporção de semelhança, e às vezes segundo uma unidade conceitual real.
Essa análise prepara o caminho para a tese da univocidade do ente, que é o eixo da metafísica escotista.


2. O Bloco Ontológico e Metafísico (Questões XIII–XXVIII)

A segunda parte da obra volta-se àquilo que Aristóteles chama de os dez gêneros supremos do ser.
Escoto discute, em sequência, cada categoria, mas com uma liberdade especulativa muito maior que a dos comentadores anteriores.

  • Na questão sobre a substância, ele distingue entre substância primeira (o indivíduo) e substância segunda (a natureza comum). É aqui que aparece a semente de sua doutrina da natura communis — uma essência que é comum a muitos, mas não idêntica a nenhum indivíduo.
  • Na questão sobre a quantidade, ele investiga se a extensão espacial é um acidente real ou apenas um modo de apreensão intelectual.
  • Nas questões sobre qualidade e relação, examina como as propriedades inerentes e os vínculos entre seres participam do ser enquanto tal.
  • E na famosa questão sexta, detém-se longamente na natureza do ser enquanto ser, discutindo se o conceito de “ente” é uno ou análogo, e concluindo que é uno por univocidade conceitual.

A partir dessas análises, Escoto mostra que a metafísica deve começar não pela distinção entre Deus e o mundo, mas pela compreensão do que significa dizer “ser” de qualquer coisa — uma operação puramente intelectual, mas com fundamento ontológico.


3. O Bloco Epistemológico e Científico (Questões XXIX–XLIV)

As questões finais tratam do estatuto científico do conhecimento lógico e da possibilidade de uma ciência das categorias.
Aristóteles havia distinguido a ciência “propter quid”, que conhece pelas causas, da ciência “quia”, que conhece pelos efeitos.
Escoto pergunta: é possível conhecer as categorias “pelas causas”? Ou elas são antes princípios primeiros, conhecidos por intuição intelectual?

Sua resposta é que o estudo das categorias pertence à filosofia primeira, não como ciência empírica, mas como reflexão sobre as condições de inteligibilidade do ser.
Assim, a lógica, longe de ser mera técnica formal, é uma ciência reflexiva da estrutura ontológica que o intelecto apreende.


A Originalidade do Comentário

O que distingue o texto de Escoto dos comentários anteriores é o grau de interiorização filosófica.
Enquanto outros mestres tomam Aristóteles como autoridade a ser explicada, Escoto o toma como ocasião para um pensamento próprio.
A dialética das Questões serve-lhe como campo experimental de sua metafísica: a distinção formal entre essência e existência, a univocidade do ser, a teoria das intenções e a primazia do intelecto sobre a linguagem aparecem aqui em forma germinal.

Cada resposta é precedida por objeções, autoridades e distinções — a marca do método escolástico —, mas em cada uma se percebe a voz de um pensador que não repete, e sim reconstrói.


Valor e Lugar da Obra

As Questões sobre as Categorias não são um texto introdutório.
Elas pertencem ao período formativo de Escoto, provavelmente redigidas em Paris entre 1295 e 1300, quando o filósofo lecionava filosofia antes de se dedicar às questões teológicas.
Por isso, constituem um testemunho privilegiado do modo como o jovem Escoto organizava a relação entre lógica, gramática e metafísica.

O valor da obra não está apenas nas respostas, mas nas perguntas — porque nelas se delineia o horizonte da filosofia escotista: um pensamento que busca unir, num mesmo ato, o rigor lógico e a visão ontológica do ser.

QUESTÕES SOBRE AS CATEGORIAS DE ARISTÓTELES

QUESTÃO PRIMEIRA

Se as Categorias tratam das coisas, das palavras, ou das intenções do intelecto


Propõe-se, primeiramente, a dúvida acerca de qual é propriamente o sujeito das Categorias.
Pois é incerto se Aristóteles nelas trata das coisas exteriores, das palavras que as designam, ou antes das intenções intelectuais mediante as quais o entendimento humano concebe e ordena o ser.


1. Argumentos em favor de que Aristóteles trata das coisas

Primeiro, parece que o objeto do tratado são as coisas.
Com efeito, Aristóteles, ao enumerar as categorias, fala de “substância”, “quantidade”, “qualidade”, “relação” e outros modos de ser — e todos esses termos parecem designar realidades existentes fora da alma.
Além disso, ele distingue, entre as substâncias, aquelas que são primeiras e aquelas que são segundas, o que seria absurdo se estivesse falando apenas de palavras ou de conceitos mentais.
Portanto, parece que o tratado versa sobre as realidades em si, e não sobre os signos nem sobre os atos do intelecto.

Segundo, o próprio Aristóteles declara que “o que é” se diz de muitas maneiras, e que cada uma dessas maneiras é um gênero supremo do ser.
Ora, dizer que o ser se divide em gêneros é falar da estrutura ontológica da realidade.
Logo, o sujeito das Categorias não pode ser senão as próprias coisas enquanto existentes.


2. Argumentos em favor de que trata das palavras

Por outro lado, alguns sustentam que Aristóteles fala das palavras, e não das coisas.
Pois ele abre o tratado dizendo: “Das expressões, algumas são simples, outras compostas”.
Assim, parece que está tratando dos modos de expressão linguística, e que as categorias são, em última instância, modos de dizer.
Com efeito, o próprio termo “categoria” deriva do verbo grego katēgorein, que significa “predicar” ou “afirmar de algo”.
Logo, as categorias seriam modos de predicação — isto é, modos de dizer algo acerca de algo — e, portanto, pertencem à ordem do discurso, não à da realidade.


3. Argumentos em favor de que trata das intenções do intelecto

Outros, porém, opinam que Aristóteles trata das intenções do intelecto, ou seja, das concepções universais mediante as quais o espírito apreende e classifica os entes.
Pois as coisas exteriores não se dividem naturalmente em dez classes absolutas; é o intelecto que, ao conceber o ser sob diversos aspectos, institui as categorias.
Além disso, as categorias não se aplicam à substância divina, mas apenas às coisas concebidas como múltiplas e finitas, o que mostra que o objeto do tratado é o modo humano de conceber o ser, e não o ser em si.


4. Exame e distinção

Para resolver a questão, convém distinguir entre três ordens: a das coisas, a dos conceitos mentais e a das palavras.
Há entre elas uma correspondência natural: as palavras significam conceitos, e os conceitos representam coisas.
No entanto, cada ordem tem seu próprio ser e sua própria estrutura.

Aristóteles, ao escrever as Categorias, fala de “modos de ser” e de “modos de dizer”.
Essas expressões, tomadas isoladamente, poderiam referir-se tanto às realidades quanto às formas de enunciação.
Mas é manifesto que ele quer expor uma ciência das predicações simples, anterior à análise das proposições compostas, que é objeto do De Interpretatione.
Ora, a predicação simples é o ato pelo qual o intelecto une um conceito a outro — e, portanto, pertence à esfera das intenções intelectuais.

Logo, ainda que as palavras sejam o instrumento externo do discurso, e as coisas o seu fundamento último, o sujeito próprio das Categorias é o conceito enquanto ele mesmo é categorizável pelo intelecto.
Assim, o tratado não é gramatical nem puramente ontológico, mas lógico em sentido nobre: trata do modo como o entendimento concebe e ordena os diversos aspectos do ser.


5. Conclusão de Escoto

Digo, portanto, que as Categorias tratam das intenções primeiras, isto é, das concepções universais que o intelecto forma ao considerar o ente sob diversos modos possíveis.
Essas intenções são chamadas “primeiras” porque nelas o pensamento refere-se imediatamente às coisas, sem ainda refletir sobre si mesmo.
As “intenções segundas”, ao contrário, são aquelas pelas quais o intelecto considera seus próprios atos — como quando fala de gênero, espécie, predicado ou universalidade.

As Categorias pertencem à primeira ordem, pois investigam os modos de conceber o ente antes que o intelecto volte-se sobre si.
Assim, seu sujeito é o ente enquanto concebido (ens conceptum), e não o ente enquanto existente fora da alma.


6. Objeção e Resposta

Pode-se objetar: se o tratado trata das intenções do intelecto, então não haveria diferença entre as categorias de Aristóteles e as intenções segundas da lógica posterior.
Responde-se que há distinção:
as intenções segundas são produtos reflexivos, pelas quais a mente considera suas próprias operações;
as categorias, ao contrário, são formas primitivas de apreensão, pelas quais o intelecto concebe as coisas em sua diversidade fundamental.

Portanto, as categorias são ao mesmo tempo lógicas e reais: lógicas quanto ao modo de apreensão, reais quanto ao que é apreendido.
Elas constituem o primeiro horizonte do entendimento, o ponto de encontro entre o ser e o pensar.


7. Síntese final

Conclui-se, pois, que Aristóteles, ao escrever as Categorias, não teve em vista somente o mundo exterior nem tampouco o simples vocabulário humano, mas a estrutura da intelectualidade humana enquanto capaz de conceber o ser sob múltiplos modos universais.
Essas formas de concepção — substância, quantidade, qualidade, relação e as demais — são os primeiros espelhos do real na mente, as matrizes de toda significação possível.

Assim, as Categorias são o limiar entre lógica e ontologia, linguagem e ser: nelas, o intelecto descobre que conhecer é, antes de tudo, categorializar o real.

QUESTÃO SEGUNDA

Se as Categorias correspondem a realidades existentes nas coisas ou apenas a distinções concebidas pela mente


Propõe-se agora o segundo ponto de investigação:
Uma vez que se admitiu que o sujeito das Categorias é o ente enquanto concebido pelo intelecto, é necessário perguntar se as distinções entre as categorias têm fundamento real nas coisas ou se são apenas construções do pensamento.


1. Argumentos a favor de que as categorias são realidades existentes nas coisas

Primeiro, parece que as categorias correspondem a realidades efetivas.
Pois Aristóteles chama “categoria” aquilo sob o qual o ente pode ser classificado como substância, quantidade, qualidade, relação etc.; e é manifesto que tais distinções são observadas nas próprias coisas.
Por exemplo, a brancura de um corpo é realmente distinta da substância que a possui; a relação de paternidade é algo distinto da substância do pai; a quantidade — o tamanho, a extensão — não se confunde com o sujeito que a sustenta.

Logo, parece que as categorias são distinções ontológicas, e não meramente mentais.

Além disso, o intelecto não poderia conceber distinções onde nada houvesse que as fundasse.
Ora, toda operação do intelecto tem como base alguma semelhança ou diferença realmente percebida.
Portanto, se o intelecto distingue entre substância e acidente, é porque há, nas coisas, algo que legitima tal distinção.


2. Argumentos a favor de que são apenas distinções mentais

Em sentido contrário, parece que as categorias são apenas distinções do pensamento.
Com efeito, os mesmos entes podem ser considerados sob múltiplas categorias sem que algo neles se altere.
O homem, por exemplo, é uma substância enquanto ente em si; uma quantidade enquanto medido; uma qualidade enquanto sábio; uma relação enquanto pai; uma ação enquanto ensina; uma paixão enquanto aprende; e assim por diante.
Se todas essas diferenças fossem reais, o mesmo ente seria composto de múltiplas substâncias distintas — o que é absurdo.

Logo, as categorias não são coisas realmente diversas, mas modos diversos de apreender um mesmo ente.

Além disso, o intelecto humano é o princípio dessas distinções, pois ele é capaz de conceber o mesmo sujeito sob diversos aspectos.
Assim como um pintor pode representar uma mesma figura sob várias luzes e ângulos sem mudar a realidade representada, assim o intelecto distingue categorias sem multiplicar os seres.


3. Distinção preliminar

Para resolver a dificuldade, é preciso estabelecer uma distinção tripla:

  1. Há distinções que são meramente verbais, provenientes do uso da linguagem — como entre “homem” e “ser racional”.
  2. Outras são distinções do intelecto, fundadas na maneira como ele concebe — como entre “substância” e “essência”.
  3. E há distinções reais, nas quais uma coisa existe de modo independente da outra — como entre “substância” e “acidente”.

As categorias, contudo, não pertencem inteiramente a nenhum desses níveis isoladamente, mas atravessam os três: têm fundamento real nas coisas, são concebidas pela mente e expressas por palavras.
São, pois, distinções formais fundamentadas no real, e não criações arbitrárias do pensamento.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que as categorias são distinções formais com fundamento na realidade.
Isto é, não são realidades separadas, como se houvesse dez tipos de seres independentes, mas são aspectos realmente distintos no mesmo ente — distintos “formaliter”, não “realiter”.

Por exemplo, na substância “homem”, a natureza humana é uma só, mas nela distinguem-se formalmente os aspectos de substância, quantidade, qualidade, relação, e assim por diante.
Cada categoria expressa um modo formal de ser, que o intelecto apreende distintamente porque de fato há, na coisa, fundamentos que permitem essa distinção.

Assim, quando o intelecto concebe o homem como substância, considera-o enquanto ser em si; quando o concebe como qualidade, considera-o segundo a forma pela qual é tal ou tal; quando o concebe como relação, considera-o enquanto ordenado a outro.
Esses modos de consideração são fundados na realidade, ainda que só o intelecto possa distingui-los em ato.


5. Implicações metafísicas

Dessa posição segue-se que o mundo não é composto de dez tipos de entes independentes, mas de entes complexos, cuja inteligibilidade se desdobra em múltiplos aspectos formais.
As categorias, portanto, não são compartimentos ontológicos, mas aspectos inteligíveis do mesmo ser.

Esse princípio — o da distinção formal — será, mais tarde, um dos pilares da metafísica escotista.
Ele permite compreender como uma mesma realidade pode conter múltiplas formas inteligíveis sem que haja separação real entre elas, explicando, por exemplo, como em Deus podem coexistir atributos distintos sem composição.


6. Resposta às objeções

À objeção de que o intelecto poderia inventar as categorias sem base real, responde-se:
a mente humana não cria distinções a partir do nada, mas apenas as reconhece segundo modos que o próprio ser lhe oferece.
As categorias são, pois, formas do pensamento que correspondem a formas do ser — o intelecto não as produz, mas as descobre.

À objeção contrária, de que seriam substâncias múltiplas, responde-se:
a multiplicidade das categorias não multiplica as substâncias, pois não há distinção real absoluta entre elas, mas formal; uma só coisa pode ser apreendida sob muitos aspectos, sem que por isso deixe de ser una em sua essência.


7. Síntese final

Conclui-se que as categorias de Aristóteles são distinções formais fundadas na realidade:
não são meramente nomes, nem meros conceitos, nem realidades separadas;
são os modos pelos quais o ente, uno em sua substância, pode ser inteligido sob diversas razões formais do ser.

Assim, a mente humana, ao categorizar, não inventa divisões, mas exprime a estrutura inteligível do real.
As categorias são, portanto, a ponte entre a unidade do ser e a multiplicidade dos modos de inteligir.

QUESTÃO TERCEIRA

Se o número das Categorias é determinado pela própria natureza do ser, ou se depende de uma convenção do intelecto


Propõe-se agora a terceira questão: se as dez categorias são necessariamente tais e não outras, isto é, se Aristóteles as fixou conforme uma necessidade natural fundada no ser mesmo, ou se o número é resultado de uma classificação arbitrária do intelecto.


1. Argumentos a favor de que o número das categorias é natural e necessário

Primeiro, parece que as categorias são necessárias e naturais.
Pois Aristóteles, no Metafísica, afirma que o ser se diz de muitas maneiras, mas sempre dentro de certos gêneros supremos.
Ora, se há gêneros supremos, estes não podem multiplicar-se nem diminuir por decisão humana, mas derivam da própria estrutura do ser.
Portanto, as categorias são modos universais do ser, e o número delas é determinado pela natureza.

Além disso, as categorias correspondem aos modos fundamentais de predicação.
Mas predicar é o mesmo que afirmar algo acerca de algo — e há somente certos modos possíveis de tal afirmação.
Assim, o número das categorias é o reflexo necessário das maneiras pelas quais o ente pode ser afirmado.

Por fim, a experiência mostra que todas as coisas existentes podem ser referidas a alguma das dez categorias: nada escapa ao conjunto delas.
Logo, a divisão é natural e completa.


2. Argumentos a favor de que o número das categorias é arbitrário e convencional

Em sentido contrário, alguns afirmam que o número das categorias depende da convenção do intelecto.
Pois Aristóteles não demonstra por argumentos necessários que existam dez e apenas dez categorias; ele apenas as enumera.
Além disso, outros filósofos — como Plotino e Avicena — propuseram números diferentes, sem incorrer em contradição.
Logo, nada impede que se estabeleçam mais ou menos categorias conforme a escolha do pensador.

Ademais, as categorias parecem depender da forma como o intelecto concebe o ser: ele pode multiplicar ou reduzir suas distinções segundo os aspectos sob os quais considera a realidade.
Se é assim, o número das categorias não é natural, mas intelectual.


3. Exame preliminar

Para resolver a dificuldade, é preciso distinguir entre duas coisas:
– o fundamento ontológico das categorias, que está nas próprias coisas;
– e o modo de distinção, que é obra do intelecto.

O fundamento é natural, pois o ser se manifesta segundo aspectos realmente distintos — substância, quantidade, qualidade, relação, e assim por diante.
Mas o número exato desses aspectos depende da análise conceitual que o intelecto faz deles.

Assim, embora o ser se apresente de muitos modos, o intelecto pode reuni-los ou dividi-los conforme critérios de compreensão.
O número dez não é, portanto, absolutamente necessário como número, mas é adequado e suficiente para exprimir a totalidade dos modos de ser apreensíveis pelo entendimento humano.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o número das categorias é natural quanto ao fundamento, mas racional quanto à delimitação.
Isto é, a realidade contém modos diversos de ser, e essa diversidade não é invenção do intelecto; contudo, a classificação em exatamente dez gêneros é fruto de uma determinação conceitual conforme a capacidade do intelecto de distinguir e ordenar.

Aristóteles, ao fixar dez categorias, não o fez por convenção arbitrária, mas porque percebeu que toda predicação possível se reduz a um desses dez modos:
– ou diz respeito ao que a coisa é (substância);
– ou ao quanto ela é (quantidade);
– ou ao como ela é (qualidade);
– ou ao que ela é em relação a outro (relação);
– ou ao que ela faz (ação);
– ou ao que ela sofre (paixão);
– ou ao onde (lugar);
– ou ao quando (tempo);
– ou ao estar (posição);
– ou ao ter (posse).

Essa enumeração, embora não seja deduzida demonstrativamente, revela uma necessidade racional fundada na completude da experiência do ser.


5. Distinção escotista: necessidade formal e necessidade material

Escoto distingue entre necessidade formal e necessidade material.
Formalmente, o número dez não é necessário: poderia haver outro modo de agrupar as diferenças do ser.
Materialmente, porém, ele é necessário, porque o ser, considerado em sua totalidade, se apresenta sempre sob esses aspectos e sob nenhum outro.
Assim, o número é contingente enquanto forma de classificação, mas necessário enquanto expressão exaustiva da estrutura do real.

A razão disso está na própria analogia do ser: o intelecto humano, finito, apreende o ente não em sua unidade absoluta, mas segundo aspectos múltiplos e proporcionados à sua capacidade.
As dez categorias representam, pois, a medida natural do entendimento humano em face do ser.


6. Implicações metafísicas

Essa solução tem alcance mais amplo do que parece.
Ela significa que a multiplicidade do ser não é uma desordem nem um acidente da linguagem, mas a expressão necessária da riqueza da realidade.
O número dez, portanto, não é arbitrário, mas simbólico de uma totalidade completa e ordenada — uma “plenitudo entis” distribuída em dez modos fundamentais.

Ao mesmo tempo, Escoto reconhece que a distinção categorial é dependente do intelecto, o que reforça a ideia de que a mente humana participa do ser não como espelho passivo, mas como princípio ativo de ordenação.
A classificação das categorias é, nesse sentido, o primeiro ato criador do intelecto no domínio do conhecimento.


7. Resposta às objeções

À primeira objeção, que dizia haver outros números possíveis, responde-se: é verdade que o número dez não é necessário em sua forma matemática, mas o é em sua função totalizadora.
Nenhum outro número exprimiria de modo tão completo e distinto todos os modos de ser.

À segunda, de que Aristóteles apenas enumerou, responde-se: a enumeração é fundada na experiência racional da totalidade dos modos de predicação.
Ainda que não haja demonstração a priori, há necessidade fundada na ordem do ser, que o intelecto reconhece como suficiente e irreduzível.


8. Síntese final

Conclui-se que o número das categorias é natural quanto ao conteúdo e racional quanto à forma.
A distinção entre dez gêneros do ser exprime, simultaneamente, a estrutura ontológica da realidade e o modo como o intelecto humano a compreende.

Assim, as categorias são necessárias não por imposição numérica, mas porque refletem a plenitude inteligível do ser, cuja diversidade formal só o número dez — símbolo de totalidade e proporção — é capaz de traduzir adequadamente.

QUESTÃO QUARTA

Se um mesmo ente pode ser incluído simultaneamente em mais de uma categoria


Propõe-se agora a dúvida seguinte: uma vez que as categorias parecem divisões supremas do ser, pergunta-se se um mesmo ente pode estar sob mais de uma categoria ou se cada uma é tão exclusiva que nada pode ser dito senão sob uma delas.


1. Argumentos a favor de que um mesmo ente pode estar em várias categorias

Primeiro, parece que um mesmo ente pode ser incluído sob mais de uma categoria.
Pois um mesmo homem é substância, qualidade, relação, ação e paixão:
é substância, enquanto é homem;
é qualidade, enquanto é sábio;
é relação, enquanto é pai;
é ação, enquanto ensina;
é paixão, enquanto aprende.

Logo, o mesmo sujeito é predicável segundo diversos gêneros.

Além disso, toda substância tem acidentes que nela existem e dependem dela.
Mas se esses acidentes são reais, e se o ente acidental e o ente substancial coexistem no mesmo sujeito, então uma única coisa contém múltiplos modos de ser.
Portanto, não há contradição em que algo pertença a várias categorias simultaneamente.


2. Argumentos a favor de que as categorias são mutuamente exclusivas

Por outro lado, parece que nenhuma coisa pode estar sob mais de uma categoria.
Pois Aristóteles ensina que as categorias são os gêneros supremos do ente, e os gêneros supremos são incomunicáveis.
Nada pode ser, ao mesmo tempo, substância e acidente, qualidade e quantidade, relação e ação.
Cada categoria é um gênero irredutível, e o que pertence a uma não pode ser reduzido a outra.

Além disso, se um mesmo ente pertencesse a várias categorias, então as categorias deixariam de ser divisões primeiras do ser e se tornariam meros modos secundários de predicação.
Mas Aristóteles afirma o contrário: elas são divisões primárias e completas.

Logo, é impossível que uma mesma coisa seja, ao mesmo tempo, substância e acidente, ou que esteja simultaneamente em mais de uma categoria.


3. Distinção preliminar

Para resolver a dificuldade, é necessário distinguir duas maneiras de se dizer “um mesmo ente”:

  1. Em sentido absoluto, quando se fala do ente segundo o que ele é em si mesmo — por exemplo, o homem enquanto substância.
  2. Em sentido relativo ou formal, quando se fala do ente segundo diferentes aspectos que nele se encontram — por exemplo, o homem enquanto branco, enquanto pai, enquanto operante.

No primeiro sentido, cada ente pertence a uma única categoria, pois o que ele é em si mesmo define seu gênero supremo.
No segundo sentido, o mesmo ente pode ser dito de muitos modos, conforme os acidentes e relações que nele estão fundados.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que as categorias são mutuamente exclusivas quanto ao ser próprio, mas compatíveis quanto aos modos de predicação.
Nenhum ente é simultaneamente substância e acidente em sua essência;
todavia, uma mesma realidade substancial pode conter em si múltiplos modos acidentais de ser, e cada um desses modos corresponde a uma categoria diversa.

Assim, o homem enquanto homem pertence à categoria da substância;
enquanto sábio, à da qualidade;
enquanto pai, à da relação;
enquanto ensina, à da ação;
enquanto é ensinado, à da paixão.

Esses modos não se confundem entre si nem se reduzem ao ser substancial, mas todos existem formalmente no mesmo sujeito.
Portanto, a exclusividade categorial vale apenas para a essência, não para os modos que nela residem.


5. Fundamento metafísico: a distinção formal

Essa compatibilidade se explica pela distinção formal que existe entre os aspectos de um mesmo ente.
Segundo Escoto, há distinção formal sempre que algo é uno em realidade, mas múltiplo em razão de conceito.
A substância e a qualidade do homem não são duas coisas separadas, mas dois aspectos formalmente distintos do mesmo ser.

Por essa razão, um ente pode participar de várias categorias sem contradição, porque os modos de ser são distintos formalmente, não realmente.
O ser categorial é uno segundo a realidade, múltiplo segundo a razão.


6. Implicações lógicas

Dessa doutrina segue-se uma consequência importante:
as categorias não são classes exclusivas, como pensariam os modernos, mas modos de inteligibilidade do mesmo ser.
Elas não se distribuem em compartimentos fechados, mas em perspectivas distintas sob as quais o intelecto apreende o real.

Assim, não é o mundo que se divide em dez compartimentos ontológicos, mas o intelecto que apreende o mundo sob dez razões formais distintas.
A exclusividade categorial é apenas uma exclusividade de razão: cada modo conceitual é distinto, embora todos coexistam na unidade do ente.


7. Resposta às objeções

À primeira objeção, que alegava que o homem é substância, relação e qualidade, responde-se: o homem é substância quanto ao que é, e qualidade ou relação quanto ao modo de ser.
Esses modos não se confundem, mas coexistem na mesma realidade substancial.

À segunda, que dizia serem os gêneros supremos incomunicáveis, responde-se: são incomunicáveis quanto à essência formal de cada um, mas não quanto ao sujeito que os sustenta.
Uma substância nunca se tornará qualidade, mas pode ter qualidades, ações e paixões, e assim participar de múltiplas categorias sem violar a incomunicabilidade dos gêneros.


8. Síntese final

Conclui-se, portanto, que as categorias são exclusivas quanto ao gênero essencial, mas comunicáveis quanto ao sujeito que as participa.
Cada coisa é, essencialmente, apenas uma — sua substância —, mas nela coexistem formalmente muitos modos de ser, e cada modo corresponde a uma categoria distinta.

As categorias, portanto, não são muros ontológicos que se separam, mas janelas do intelecto que se abrem sobre a unidade do real.
Por elas, o entendimento humano aprende que o ser é uno, mas dizível de muitos modos — e que a multiplicidade das categorias não destrói, antes revela, a plenitude do ser enquanto ser.

QUESTÃO QUINTA

Se as Categorias estão ordenadas hierarquicamente ou se são independentes entre si


Propõe-se agora a investigação:
As categorias de Aristóteles são dez gêneros supremos do ente.
Pergunta-se, pois, se entre elas existe alguma ordem ou subordinação, de modo que uma contenha ou dependa de outra, ou se todas são modos independentes e coordenados de significar o ser.


1. Argumentos a favor de que as categorias são hierarquicamente ordenadas

Primeiro, parece que há entre as categorias certa ordem de prioridade e posteridade.
Pois Aristóteles, ao descrevê-las, coloca a substância em primeiro lugar, e não por acaso, mas porque todas as demais categorias dependem dela.
A quantidade, a qualidade e a relação são acidentes da substância; a ação e a paixão pressupõem um sujeito que age e que sofre; o lugar e o tempo são condições externas da existência das substâncias.
Logo, há uma ordem natural de dependência, e a substância ocupa o grau supremo.

Além disso, nas coisas mesmas, o que é em si — per se ens — é anterior ao que é em outro — per aliud ens.
Mas o que é em si é a substância; o que é em outro é o acidente.
Logo, as categorias se ordenam segundo uma hierarquia que vai do ser em si ao ser em outro.

Por fim, Aristóteles afirma expressamente: “as outras categorias existem nas substâncias e se dizem delas”.
Logo, há uma dependência ontológica real.


2. Argumentos a favor de que as categorias são independentes

Em sentido contrário, parece que as categorias não estão subordinadas umas às outras.
Pois Aristóteles as apresenta como gêneros supremos, e os gêneros supremos são, por definição, incompreendidos em outro gênero.
Se uma categoria dependesse de outra, deixaria de ser suprema.

Além disso, o ser se diz de muitos modos, mas nenhum desses modos é redutível a outro: o modo de ser “substância” não é o mesmo que o de ser “qualidade” ou “relação”.
Logo, as categorias são coordenações, não subordinações.

E ainda: se houvesse hierarquia entre as categorias, poder-se-ia reduzir toda a realidade a uma única delas — o que anularia a diversidade ontológica que Aristóteles quis preservar.
Portanto, a ordem das categorias é de distinção, não de dependência.


3. Distinção preliminar

Para resolver a questão, é preciso distinguir dois tipos de ordem:

  1. Ordem ontológica, segundo a qual uma realidade depende de outra para existir;
  2. Ordem lógica ou conceitual, segundo a qual uma noção é mais universal ou mais fundamental que outra.

Sob o primeiro aspecto, há dependência: todas as categorias acidentais supõem a substância como sujeito no qual existem.
Sob o segundo, porém, não há subordinação, pois cada categoria exprime uma razão formal do ser que não se reduz às demais.

Logo, as categorias são hierarquicamente ordenadas quanto à existência, mas independentes quanto à inteligibilidade.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que há entre as categorias dupla relação:
– uma relação de fundação, pela qual certas categorias dependem de outras para existir;
– e uma relação de coordenação, pela qual todas expressam igualmente o ser sob razões diversas.

A substância é, sem dúvida, o primeiro entre os gêneros do ente, pois todas as demais categorias nela se fundam:
a quantidade está nela como medida do sujeito;
a qualidade, como disposição;
a relação, como ordenação a outro;
a ação e a paixão, como movimento e recepção que nela se realizam.

Mas essa prioridade é de ser, não de conceito.
A substância não contém formalmente as outras categorias; cada uma delas tem sua própria noção, irredutível e completa em si.

Assim, a hierarquia é real quanto ao modo de existir, mas não quanto à razão de inteligir.


5. Fundamento metafísico: ser em si e ser em outro

Escoto fundamenta essa distinção em sua famosa tese do ser unívoco.
O ser é dito univocamente de tudo o que é, ainda que diversamente quanto ao modo.
Dessa univocidade decorre que todas as categorias participam igualmente do conceito de ente:
o ser da substância e o ser do acidente são o mesmo ser quanto ao conceito, mas diferem formalmente quanto ao modo.

Logo, não há hierarquia essencial entre as categorias — todas participam do ser sob modos distintos, porém igualmente reais.
A substância é primeira apenas quanto à independência de existência, não quanto à dignidade do ser.


6. Implicações teológicas e ontológicas

Dessa doutrina nasce uma consequência notável:
se o ser é dito univocamente de substância e de acidente, então a analogia ontológica não destrói a unidade do ser, mas a manifesta em graus de dependência.
A realidade é uma totalidade articulada — não uma pirâmide hierárquica rígida, mas uma rede de modos interdependentes.

Essa visão aproxima a ontologia escotista de uma concepção dinâmica e formal da realidade: o ser é único em conceito, múltiplo em formas de atualização.
A substância não é o trono imutável das demais, mas o centro formal em torno do qual as outras categorias gravitam.


7. Resposta às objeções

À objeção de que Aristóteles colocou a substância em primeiro lugar, responde-se:
fez isso segundo a ordem do ser, não segundo a ordem do conceito.
A substância é primeira enquanto fundamento das outras, mas não é mais ente que elas.

À objeção contrária, de que todas são absolutamente independentes, responde-se:
isso é falso no plano ontológico, pois nenhuma qualidade, relação ou ação pode existir sem sujeito.
Mas é verdadeiro no plano conceitual: cada categoria tem razão formal própria e não se reduz a outra.


8. Síntese final

Conclui-se que as categorias são ordenadas quanto ao ser e coordenadas quanto ao conceito.
A substância é o princípio de existência das demais, mas todas participam igualmente do ser enquanto ser.
Nenhuma categoria contém a outra, ainda que umas dependam das outras para existir.

Assim, a estrutura categorial do real é ao mesmo tempo hierárquica e paritária: hierárquica na fundação ontológica, paritária na inteligibilidade unívoca.
Dessa síntese nasce a concepção escotista de mundo como unidade articulada do ser, onde tudo depende de tudo sem que nada perca sua dignidade própria.

QUESTÃO SEXTA

Se o conceito de ente é unívoco, análogo ou equívoco quando se aplica a Deus e às criaturas


Propõe-se agora a questão principal de toda a metafísica:
Sendo o “ente” aquilo que primeiro é concebido pelo intelecto, pergunta-se se o conceito de ente é uno e comum (univocum), ou se é apenas análogo ou equívoco, quando dito de Deus e das criaturas.


1. Argumentos de que o conceito de ente é equívoco

Primeiro, parece que o conceito de ente é equívoco.
Pois entre Deus e as criaturas há uma diferença infinita: Deus é ser por essência, e a criatura é ser por participação.
Logo, o termo “ente”, quando aplicado a ambos, não tem o mesmo significado.
É, pois, equívoco, assim como o termo “vida” quando se diz de Deus e de uma planta — o mesmo som, mas significados diversos.

Além disso, nenhum conceito unívoco pode estender-se do finito ao infinito sem perder precisão.
Mas o ser de Deus é infinito, e o ser criado é finito.
Portanto, o conceito de ente, se aplicado a ambos, não é unívoco, mas apenas uma semelhança verbal.


2. Argumentos de que o conceito de ente é análogo

Por outro lado, parece que o conceito de ente é análogo, não equívoco nem unívoco.
Pois Aristóteles disse que “o ser se diz de muitos modos, mas com relação a um primeiro”.
Assim, há uma analogia de atribuição: o ser das criaturas se ordena ao ser de Deus como o acidental se ordena ao substancial, ou o efeito à causa.

Além disso, a Sagrada Escritura fala de Deus e das criaturas com os mesmos nomes — bom, sábio, justo —, mas entende-se que tais nomes se dizem por analogia.
Logo, também o termo “ente” se diz de modo análogo: nem totalmente o mesmo, nem totalmente diverso.


3. Argumentos de que o conceito de ente é unívoco

Em contrário, parece que o conceito de ente é unívoco.
Pois o intelecto, ao conceber “ente”, não distingue imediatamente entre Deus e a criatura; concebe simplesmente “aquilo que é”.
Ora, o primeiro objeto do intelecto deve ser uno e comum, não dividido.
Se o conceito de ente fosse equívoco ou análogo, o entendimento não teria um primeiro objeto universal, e a ciência seria impossível.

Além disso, todas as ciências partem de princípios comuns, e o princípio mais universal de todos é o de não-contradição: “é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto”.
Mas esse princípio aplica-se igualmente a Deus e às criaturas.
Logo, deve haver um conceito comum de “ente” que abranja ambos.

Por fim, quando se diz que “Deus é um ente” e “a criatura é um ente”, o predicado “ente” é compreendido de modo semelhante; de outro modo, não haveria verdade nem falsidade possível no discurso teológico.
Logo, o conceito de ente é unívoco.


4. Exame preliminar

Para compreender a questão, é necessário distinguir entre univocidade de conceito e univocidade de natureza.
Ninguém afirma que Deus e a criatura tenham a mesma natureza — o que seria heresia —, mas apenas que o intelecto possui um mesmo conceito formal de ente, aplicável a ambos.

Assim, “unívoco” não significa “idêntico na realidade”, mas “uno quanto ao ato de significar”.
Quando o intelecto concebe “ente”, concebe algo que pode aplicar-se, sem contradição, a tudo o que existe ou pode existir, seja por essência, seja por participação.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o conceito de ente é unívoco quanto ao ato de significar, embora diverso quanto à perfeição do objeto.
Pois, se não fosse unívoco, seria impossível qualquer ciência sobre Deus.

Com efeito, toda demonstração exige um meio termo comum entre o sujeito e o predicado.
Mas se “ente” fosse equívoco, não haveria meio comum entre o ente criado e o incriado; e se fosse apenas análogo, o meio seria ambíguo.
Logo, a teologia, que raciocina do efeito à causa, ficaria sem fundamento.

A univocidade do ser é, portanto, condição de possibilidade de todo conhecimento teológico e metafísico.


6. Fundamentação metafísica

O ser, enquanto tal, não é gênero nem espécie, mas conceito transcendente, que se estende a tudo o que é.
Ora, o transcendente, por definição, não se multiplica por analogia, mas se comunica univocamente a tudo o que é ente.
Assim, “ser” não se diz por mera proporção, como a “saúde” se diz do corpo, do alimento e do clima;
diz-se por identidade de concepção formal, ainda que com diferença de grau no modo de realização.

Deus é ser infinito, a criatura é ser finito — mas o conceito formal de “ser” é o mesmo em ambos, pois em ambos significa “aquilo que é”.
A diferença não está no que é concebido, mas no modo de existir daquilo que é concebido.


7. Implicações epistemológicas

Se o conceito de ente não fosse unívoco, o intelecto humano não poderia apreender o real em sua totalidade, nem ascender de modo legítimo de um ser finito a um ser infinito.
A teologia natural se tornaria impossível, porque não haveria ponte conceitual entre o Criador e a criatura.

Mas como o conceito de ser é unívoco, o intelecto pode, a partir da experiência dos entes criados, conceber o ser enquanto tal, e assim elevar-se, por via analógica apenas na ordem da perfeição, mas unívoca na ordem do conceito, ao Ser primeiro e necessário.

A univocidade, portanto, não elimina a transcendência divina — ao contrário, a torna pensável.


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, que dizia haver diferença infinita, responde-se:
a diferença é de modo de ser, não de conceito de ser.
O ser de Deus é infinito, o da criatura é finito; mas ambos são ser, e o intelecto, ao concebê-los, apreende a noção comum de “ente”.

À segunda, de que um conceito não pode estender-se do finito ao infinito, responde-se:
pode, enquanto conceito formal, não material.
O intelecto não mede a grandeza do ser, mas concebe a noção de “ser” de modo indiferente a toda medida.

À terceira, de que a analogia é suficiente, responde-se:
a analogia pressupõe um conceito comum, ainda que aplicado de modo diverso.
Logo, sem univocidade formal, não há sequer analogia possível.


9. Consequências teológicas

Essa doutrina preserva a transcendência divina sem sacrificar a inteligibilidade da teologia.
Se o ser fosse equívoco, Deus seria incognoscível;
se fosse apenas análogo, toda linguagem teológica seria ambígua;
sendo unívoco, Deus é cognoscível em sua existência, ainda que não em sua essência.

Assim, o ser é o primeiro conceito do intelecto e o primeiro nome de Deus.
Dele derivam todos os outros transcendentais — unidade, verdade, bondade —, que se dizem igualmente de tudo o que é.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o conceito de ente é unívoco, comum a tudo o que é, tanto a Deus quanto às criaturas.
A diferença entre ambos não destrói, mas confirma essa univocidade, pois a infinita perfeição do ser divino e a finita limitação do ser criado são modos diversos do mesmo ser.

A univocidade do ser é, pois, o fundamento de toda ciência e de toda teologia:
ela é a ponte metafísica entre o finito e o infinito, entre o pensamento e o real, entre o homem e Deus.

Por ela, Escoto supera a oposição entre a analogia tomista e a equivocidade nominalista, estabelecendo uma metafísica em que o ser é uno no conceito, múltiplo na realização — um só ato inteligível que se diversifica sem se dividir.

QUESTÃO SÉTIMA

Se o ser é o primeiro objeto do intelecto humano


Propõe-se agora examinar se o intelecto, ao conhecer, tem por primeiro objeto o ente enquanto ente, ou se conhece antes algo mais determinado — por exemplo, o singular sensível, a essência, ou as espécies inteligíveis.


1. Argumentos de que o ser é o primeiro objeto do intelecto

Primeiro, parece que o ser é o primeiro objeto do intelecto.
Pois tudo o que é concebido pelo entendimento é concebido como algo que é.
Nada pode ser pensado sem que, de algum modo, seja afirmado como existente, real, ou possível.
Logo, o ser é a primeira noção implicada em todo ato de conhecer.

Além disso, o ser é o primeiro conhecido e o último a ser ignorado.
É o horizonte universal de toda intelecção: quem entende qualquer coisa, entende-a sob o aspecto de ser.
Portanto, o ser é o primeiro objeto formal do intelecto.

E mais: o princípio de não-contradição, que governa toda a razão, baseia-se na noção de ser — pois “é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo”.
Se esse princípio é primeiro, também o é o conceito de ser.


2. Argumentos de que o ser não é o primeiro objeto

Em sentido contrário, alguns sustentam que o ser não é o primeiro objeto do intelecto humano, mas o singular sensível.
Pois o homem conhece primeiramente por meio dos sentidos, e o intelecto abstrai das imagens sensíveis.
Logo, o primeiro objeto do intelecto é o phantasma, e não o ser em geral.

Além disso, o intelecto humano é finito e opera por abstração.
Ora, o ser enquanto ser é universalíssimo e não pode ser abstraído de nenhum gênero particular.
Logo, o intelecto humano não o alcança imediatamente, mas somente por reflexão.


3. Distinção preliminar

Para resolver a dificuldade, convém distinguir duas ordens de prioridade:
– uma prioridade no tempo ou de geração psicológica;
– outra prioridade na natureza ou em razão de inteligibilidade.

No tempo, o intelecto começa pelo singular sensível, pois dele extrai as espécies inteligíveis.
Mas em razão de inteligibilidade, o primeiro conhecido é o ser, porque tudo o mais é conhecido sob a condição de ser.

Assim, o ser é o primeiro objeto formal, ainda que o singular seja o primeiro objeto material.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o ser enquanto ser é o primeiro objeto do intelecto humano, tanto quanto à universalidade quanto à necessidade.
Pois o intelecto, por sua própria natureza, é potência ordenada ao ser — não a este ou àquele ente particular, mas ao ente enquanto tal.

O conhecimento sensível apreende o singular, o conhecimento intelectual apreende o ser.
Os sentidos dizem “isto é tal”, o intelecto diz “isto é”.
A afirmação do ser precede toda determinação.

O ser, portanto, não é um conceito derivado, mas o ato primeiro da razão: ele acompanha todo pensamento como sua luz originária.


5. Fundamento metafísico: o ser como transcendental

O ser é chamado transcendental porque ultrapassa todas as categorias.
Não pertence a nenhum gênero, mas a todos os abrange.
Logo, ele não é aprendido por comparação nem por abstração de algo mais universal, mas é o horizonte primitivo da inteligibilidade.

O intelecto não aprende o ser por meio de outro conceito;
pelo contrário, todos os outros conceitos são aprendidos à luz do ser.
Conhecer é, essencialmente, participar da inteligibilidade do ser.

Assim, a alma racional está ordenada ao ser como o olho à luz:
não porque veja a luz em si mesma, mas porque, pela luz, vê tudo o que é.


6. A relação entre o ser e os outros transcendentais

Do conceito de ser derivam todos os demais transcendentais:
a unidade, enquanto o ser é indiviso;
a verdade, enquanto o ser é conforme ao intelecto;
a bondade, enquanto o ser é apetecível;
e a coisa (res), enquanto o ser é determinado.

Mas nenhum desses transcendentais é anterior ao ser.
Eles o supõem como fundamento, e se distinguem dele apenas por uma diferença formal, não real.
Portanto, o ser é primeiro na ordem de concepção e de natureza.


7. Implicações epistemológicas

Dessa doutrina resulta que todo conhecimento, seja sensível, seja intelectual, é, em seu fundo, conhecimento do ser.
Mesmo o erro e a ilusão se movem dentro do horizonte do ser, pois só se erra ao afirmar ou negar algo como sendo.

O intelecto, portanto, não cria o conceito de ser: ele o encontra sempre já presente como condição de possibilidade de qualquer apreensão.
O ser é o “lumen naturale intellectus”, a luz natural do entendimento.

Assim, conhecer é atualizar uma potência ordenada desde o início ao ser — e ignorar é permanecer na sombra dessa luz.


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que o singular sensível é primeiro, responde-se:
é primeiro quanto à operação do sentido, mas não quanto à natureza do intelecto.
O sentido apreende o indivíduo; o intelecto apreende o universal do ser que nele se manifesta.

À segunda, de que o ser é demasiado universal, responde-se:
justamente por isso é primeiro, pois a universalidade é sinal de anterioridade no conceito.
O intelecto não parte de um gênero superior ao ser, porque nenhum há.
O ser é o termo último da abstração e o ponto primeiro da compreensão.


9. Consequências teológicas

A primazia do ser como objeto do intelecto funda a possibilidade da teologia natural.
Pois se o intelecto humano está ordenado ao ser enquanto tal, ele pode elevar-se do ser finito ao ser infinito, reconhecendo Deus como plenitude do ser.
A ascensão à teologia não é, portanto, salto, mas continuidade: o olhar que vê o ente é o mesmo que, purificado, pode ver o Ser por excelência.

Assim, o ser é a ponte ontológica entre a razão e a fé, entre a criatura e o Criador.


10. Síntese final

Conclui-se que o ser é o primeiro objeto do intelecto humano — não por precedência temporal, mas por prioridade de razão e natureza.
Tudo o que o homem conhece, conhece sob o aspecto de ser;
tudo o que ignora, ignora como ser não conhecido.

O ser é, portanto, a luz universal da inteligência, o “ato do inteligir” em seu grau mais puro.
A mente humana não pensa o ser: pensa dentro do ser, e só por ele pensa o que quer que seja.

Assim, toda filosofia é, em última análise, uma meditação sobre o ser —
e o intelecto humano, um espelho em que o ser se contempla a si mesmo.

QUESTÃO OITAVA

Se o conceito de ente é predicável univocamente de substância e de acidente


Propõe-se agora a investigação seguinte:
Uma vez admitido que o ser se diz de muitos modos, pergunta-se se o conceito de ser é unívoco ou apenas análogo quando se aplica à substância e ao acidente, ou seja, se ambos participam do ser em um mesmo sentido formal.


1. Argumentos de que o conceito de ser é equívoco entre substância e acidente

Primeiro, parece que o ser se diz equivocamente de substância e acidente.
Pois Aristóteles ensina que a substância é o que existe em si, e o acidente é o que existe em outro.
Logo, há diversidade radical de modo de existir, e portanto de significação.
Não se pode dizer que ambos são “entes” no mesmo sentido, já que um é sujeito e o outro é dependente.

Além disso, o ser da substância é necessário para o acidente, mas não o contrário;
portanto, o ser de um é principal e do outro é derivado.
Ora, o que é dito de modo principal e de modo derivado não é unívoco, mas analógico.


2. Argumentos de que o conceito de ser é análogo entre substância e acidente

Por outro lado, parece que o ser é análogo, não equívoco.
Pois há uma certa semelhança de ordem: o acidente, embora dependa da substância, participa de algum modo do ser.
Assim como a luz fraca é luz por participação, e não por essência, também o acidente é ente por participação no ser da substância.
Logo, há uma analogia de atribuição: o acidente se ordena à substância como o dependente ao fundamento.

Além disso, o ser se predica de substância e de acidente como o uno se predica de partes que estão em proporção.
Há, portanto, comunhão proporcional, não identidade de razão formal.


3. Argumentos de que o conceito de ser é unívoco

Em contrário, parece que o ser é unívoco entre substância e acidente.
Pois o intelecto, ao conceber o termo “ente”, não distingue entre o que é em si e o que é em outro; ele concebe simplesmente “aquilo que é”.
Logo, a noção de ser é a mesma, ainda que o modo de existir seja diverso.

Além disso, o princípio de não-contradição aplica-se igualmente à substância e ao acidente:
é impossível que uma substância seja e não seja, e igualmente impossível que uma qualidade seja e não seja.
Se o mesmo princípio vale para ambos, é porque o conceito de “ente” é comum e unívoco.

Por fim, toda ciência das coisas criadas pressupõe um conceito comum de ser, aplicável a substâncias e acidentes; sem ele, a ontologia e a lógica seriam impossíveis.
Logo, o ser é dito univocamente de ambos.


4. Exame preliminar

Para resolver a questão, é necessário distinguir duas ordens:
– a ordem do ser real, onde há diferença entre existir em si e existir em outro;
– e a ordem do ser concebido, onde o intelecto abstrai essas diferenças e concebe apenas o “ser enquanto ser”.

Na ordem real, a substância é anterior e o acidente é dependente;
na ordem conceitual, ambos são compreendidos sob uma noção comum de “ente”.
Logo, a univocidade é de conceito, não de modo de existir.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o conceito de ente é unívoco entre substância e acidente, porque o intelecto o apreende de modo indiferente a todas as modalidades de existência.

O ser que se diz de substância e o ser que se diz de acidente não são dois conceitos distintos, mas um só conceito formalmente idêntico — “aquilo que é” (id quod est).
A diversidade surge apenas quando se considera o modo de existir: o ser da substância é em si, o do acidente é em outro.
Mas essa diferença é de ordem modal, não conceitual.

O intelecto, ao conceber “ente”, não inclui em sua noção a referência ao sujeito nem a exclusão dele.
Por isso, o conceito é neutro e pode aplicar-se a ambos sem contradição.


6. Fundamento metafísico: distinção formal sem diversidade real

Escoto baseia sua posição em sua doutrina da distinção formal ex natura rei.
Há distinção formal quando algo é uno na realidade, mas contém em si razões distintas de inteligibilidade.
O ser enquanto predicado comum é formalmente distinto dos modos de ser que o especificam (em si, em outro), mas não realmente separado.

Assim, a substância e o acidente participam do ser de modo realmente dependente, porém formalmente unívoco.
Ambos são entes, não por analogia proporcional, mas por identidade de conceito formal: ambos “são”.


7. Implicações lógicas e ontológicas

Dessa doutrina resulta que o ser é transcendental em sentido pleno: nada escapa a ele, nem mesmo os modos dependentes do existir.
A substância é ser principal, o acidente é ser derivado, mas o conceito de ser é um só.

Essa univocidade não destrói a ordem do real; ao contrário, ela a torna inteligível.
Porque o intelecto pode apreender o mesmo conceito de ser em múltiplas condições, ele pode compreender a totalidade do real sob uma mesma luz metafísica.

A analogia tomista, ao contrário, limitaria a ciência: se o ser se dissesse por proporção e não por identidade formal, seria impossível formular proposições universais sobre o real.


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que a substância é em si e o acidente em outro, responde-se:
é verdade quanto ao modo de existir, mas o conceito de “ser” não inclui em si essa diferença.
Ele é concebido de maneira comum, podendo aplicar-se a ambos.

À segunda, de que o ser do acidente é derivado, responde-se:
a derivação é real, não conceitual.
O intelecto não concebe “ente por si” e “ente por outro” como dois conceitos, mas como uma só noção aplicada diversamente.

À objeção contrária, de que a analogia basta, responde-se:
a analogia supõe um conceito comum; se este fosse apenas proporcional, o discurso ontológico seria ambíguo.
Logo, só a univocidade formal garante a certeza do conhecimento do ser.


9. Consequências teológicas e filosóficas

Essa posição tem alcance teológico:
se o conceito de ser é unívoco entre substância e acidente, então é também unívoco entre o ser finito e o ser infinito.
A hierarquia do ser não é uma ruptura de conceito, mas uma gradação de modos de participação.

No plano filosófico, ela funda uma ontologia formal — uma ciência que trata do ser enquanto ser, independente de suas diferenças categóricas.
É a base do que Escoto chamará de metafísica transcendental, distinta tanto da metafísica aristotélica quanto da teologia sagrada.


10. Síntese final

Conclui-se que o conceito de ente é unívoco entre substância e acidente.
A diferença entre ambos é de ordem existencial, não de significação.
O ser é dito em um só sentido formal de tudo o que é, embora o modo de participação varie.

Assim, o intelecto humano possui um conceito comum de ser que atravessa todas as categorias e sustenta toda a inteligibilidade do mundo.
A substância é o ser principal; o acidente, o ser dependente;
mas o ser, enquanto tal, é uno, universal e unívoco.

Por essa via, Escoto reafirma sua tese fundamental:
a realidade é múltipla nos modos, una na inteligibilidade;
e o ser, comum a tudo o que existe, é o fundamento transcendente da razão e da ciência.

QUESTÃO OITAVA

Se o conceito de ente é unívoco em relação à substância e ao acidente


1. A dúvida proposta

Posto que o “ente” é o primeiro objeto do intelecto e se aplica universalmente a tudo o que é, pergunta-se agora se ele se predica de modo unívoco da substância e do acidente, ou se é análogo — como afirmam alguns —, visto que a substância existe em si e o acidente em outro.


2. Argumentos de que o ente é unívoco quanto à substância e ao acidente

Primeiro, parece que o conceito de ente é unívoco.
Pois o intelecto, ao conceber o “ente”, não distingue imediatamente entre o que é em si e o que é em outro; ele concebe simplesmente “aquilo que é”.
Ora, tanto a substância quanto o acidente são “algo que é”.
Logo, o conceito é o mesmo.

Além disso, o princípio de não-contradição aplica-se igualmente à substância e ao acidente: é impossível que uma substância seja e não seja, e igualmente impossível que uma qualidade seja e não seja.
Mas esse princípio se funda na noção de ser.
Logo, o ser é comum e unívoco a ambos.

E mais: quando afirmamos “a brancura é um acidente” e “o homem é uma substância”, usamos “é” no mesmo sentido de existência atual.
Logo, o termo “ente” conserva sua significação unívoca.


3. Argumentos de que o ente é apenas análogo

Por outro lado, parece que o ente se predica de modo análogo, e não unívoco.
Pois a substância tem o ser em si mesma, enquanto o acidente tem o ser em outro.
Logo, o modo de ser é essencialmente distinto, e o conceito de “ente” não pode ser o mesmo sem confusão.

Além disso, a substância é princípio e sujeito; o acidente é dependente e inerente.
Se o conceito de ser fosse o mesmo, não haveria razão suficiente para distinguir o que existe por si do que existe em outro.

Finalmente, se o ser fosse unívoco entre substância e acidente, então ambos pertenceriam a um mesmo gênero — o que é impossível, pois o ser não é gênero, e os gêneros supremos são mutuamente exclusivos.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, é preciso distinguir o conceito formal de ente e o modo de existir das coisas às quais ele se aplica.
O conceito formal de ente é o mesmo para todos os entes;
mas o modo de existência pelo qual esse conceito se realiza pode variar infinitamente.

Assim, o ser da substância é “em si”, o do acidente é “em outro”;
mas em ambos há a mesma razão formal de ser — a atualidade que distingue o real do nada.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o conceito de ente é unívoco em relação à substância e ao acidente, quanto à significação formal, ainda que diverso quanto ao modo de existir.

O intelecto, ao conceber “ente”, apreende um conceito comum que se aplica indiferentemente a tudo o que é — seja o que existe em si, seja o que existe em outro.
Essa univocidade não confunde a ordem das coisas, porque a diferença entre os modos de ser é real, não conceitual.

A substância é ente por si, o acidente é ente por outro, mas ambos são ente sob a mesma razão formal: aquilo que é.

Portanto, o ser é uno no conceito, múltiplo nas modalidades de existência.


6. Fundamento metafísico

A distinção entre substância e acidente não destrói a unidade formal do ser, porque essa unidade é transcendental.
O ser, enquanto ato puro de inteligibilidade, não pertence a nenhum gênero:
transcende-os a todos, aplicando-se igualmente a tudo o que participa da existência.

Dizer que o acidente “é em outro” não significa que ele seja menos ser, mas que o seu modo de participar do ser é dependente.
A dependência não anula a realidade — apenas a qualifica.

Assim, o ser não se divide entre “ser próprio” e “ser impróprio”, mas entre modos de ser — um autônomo, outro relativo.


7. Implicações lógicas

Dessa univocidade decorre que as categorias — todas as dez — participam do mesmo conceito de ser.
Nenhuma categoria possui um ser de natureza distinta, mas apenas um modo formal diferente de existência.

É, pois, possível predicar o “ente” de tudo o que se encontra nas categorias sem equívoco, pois todas as coisas têm parte na atualidade comum que é o ser.

Se não fosse assim, o raciocínio universal seria impossível: não poderíamos falar do “ente” em geral, nem formular princípios comuns à substância e ao acidente.


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, que dizia que a substância é em si e o acidente em outro, responde-se:
é verdade quanto ao modo de existir, mas não quanto ao conceito de ser.
O intelecto não abstrai o “em si” nem o “em outro” quando concebe o ente, mas apenas o fato de “ser”.

À segunda, de que o ser unívoco confundiria os gêneros, responde-se:
o ser não é gênero, e, portanto, não se aplica segundo a diferença específica, mas segundo a razão transcendente de atualidade.
Logo, a univocidade não confunde as categorias, apenas as unifica sob o horizonte do ser.


9. Síntese final

Conclui-se que o conceito de ente é unívoco em relação à substância e ao acidente.
O ser é uno quanto ao conceito e múltiplo quanto à realização.
A distinção entre os modos de ser — em si ou em outro — é real, mas não conceitual.

Assim, a univocidade do ser, afirmada entre Deus e as criaturas, estende-se igualmente às ordens intramundanas.
A realidade inteira, tanto divina quanto criada, substancial e acidental, constitui uma única esfera inteligível sob a noção de ser.

A diferença entre os entes não é ruptura da unidade, mas manifestação da fecundidade do ser.
Como o sol que ilumina tanto o ouro quanto o barro, o ser dá a cada um a sua atualidade sem deixar de ser o mesmo em sua luz.

QUESTÃO NONA

Se o ser é realmente distinto da essência nas coisas criadas


1. A dúvida proposta

Pergunta-se agora se, nas coisas criadas, o ser (esse) é realmente distinto da essência (quidditas, natura), ou se ambos são a mesma realidade considerada sob razões diferentes.


2. Argumentos de que o ser é distinto da essência

Primeiro, parece que o ser e a essência são realmente distintos.
Pois tudo aquilo que pode ser concebido sem contradição como possível, mas não existente, mostra que a existência não pertence à sua essência.
Ora, um homem pode ser concebido enquanto essência sem ser existente.
Logo, o ser é algo adicionado à essência, não parte dela.

Além disso, toda essência é algo comum e potencial; o ser, ao contrário, é ato e atualização.
Ora, o ato e a potência são realidades distintas.
Logo, o ser e a essência não se identificam.

E ainda: segundo Aristóteles, “o ser não é gênero”, pois se dissesse de todos igualmente, confundiria o que é e o modo de sê-lo.
Mas o ser, em cada coisa, é aquilo pelo qual a essência sai da potência para o ato.
Logo, o ser é um princípio realmente diverso da essência.


3. Argumentos de que o ser e a essência não são distintos

Em sentido contrário, parece que o ser e a essência não se distinguem realmente.
Pois, se fossem dois entes distintos, haveria entre eles uma composição, e a essência necessitaria de outro ser para existir, o que levaria a uma regressão infinita.
Logo, a essência e o ser são uma só coisa em realidade, diferindo apenas em razão.

Além disso, aquilo que é causa do ser de algo é o mesmo que o faz ser o que é.
Logo, se a essência e o ser fossem coisas diferentes, haveria duas causas do mesmo efeito.
Mas isso é impossível.

E ainda: em Deus, o ser e a essência são idênticos.
Ora, a distinção entre eles nas criaturas implicaria diversidade formal sem fundamento ontológico, o que destruiria a simplicidade da criação.
Logo, devem ser idênticos também nas criaturas, diferindo apenas segundo a razão do intelecto.


4. Distinção preliminar

Para resolver o problema, é preciso distinguir três níveis de diferença:

  1. Distinção real, quando duas coisas podem existir separadamente;
  2. Distinção formal, quando há uma diversidade de razão na mesma realidade;
  3. Distinção de razão apenas, quando a diferença nasce do ato do intelecto e não do ser das coisas.

Com base nisso, deve-se investigar se o ser e a essência nas criaturas se distinguem realmente (como dois entes), formalmente (como dois aspectos de um mesmo ente), ou apenas racionalmente (como duas concepções do intelecto sobre uma única realidade).


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o ser e a essência nas criaturas são formalmente distintos, mas não realmente separados.
Há neles uma diferença que não é mera operação do intelecto, mas que tampouco implica duas realidades subsistentes.

A essência é aquilo pelo qual algo é o que é; o ser é aquilo pelo qual algo é existente.
Ambos estão unidos na mesma coisa, mas sob razões formais diferentes.

Assim, a essência é potência ordenada ao ser, e o ser é ato de toda essência.
Mas essa potência e esse ato coexistem na mesma realidade, de modo que há entre eles distinção formal ex natura rei, não de razão apenas.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa distinção está na própria estrutura do ente criado.
Pois o ente criado participa do ser, mas não o é por essência: recebe o ser de outro.
Se o ser fosse idêntico à essência, o criado seria ser por si — o que é próprio apenas de Deus.

Portanto, nas criaturas, a essência é realmente capaz de existir sem existir de fato;
e o ser, quando recebido, não constitui nova substância, mas atualiza a essência na ordem do existir.

Assim, a distinção é necessária para explicar a contingência e a dependência do ser criado.


7. Implicações teológicas

Dessa distinção decorre a diferença radical entre Deus e criatura.
Em Deus, ser e essência são absolutamente idênticos — Ele é o Ser subsistente (ipsum esse subsistens).
Nas criaturas, o ser é participado e adicionado à essência.

Essa diferença é o fundamento de toda a metafísica da criação:
Deus é ato puro; a criatura é ato recebido, composto de potência (essência) e ato (ser).


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, que dizia que o homem pode ser concebido sem existir, responde-se:
isso mostra apenas que o ser não está incluído na definição formal da essência, não que seja realidade separada.
A distinção é formal, não real.

À segunda, de que o ato e a potência são distintos, responde-se:
é verdade quanto à noção, mas ambos pertencem à mesma coisa enquanto atualizável.
Assim, a essência é potência de ser, o ser é ato da essência, e ambos constituem um único ente composto.

À terceira, de que haveria regressão infinita, responde-se:
não há regressão porque o ser é ato simples que não requer outro ato para existir — ele é recebido, não composto.


9. Síntese final

Conclui-se, portanto, que nas criaturas o ser e a essência se distinguem formalmente, mas não realmente.
O ser é ato da essência, e a essência é potência para o ser.
Essa distinção é necessária para compreender a criação e a dependência da criatura em relação a Deus.

Em Deus, o ser é sua própria essência;
nas criaturas, o ser é participação finita do Ser divino, o que confere à criação o caráter de contingência e à teologia o princípio da diferença ontológica entre Criador e criado.

Assim, a essência é o “quid est”; o ser, o “quia est”;
e ambos, unidos, constituem o ente criado em sua totalidade.

QUESTÃO DÉCIMA

Se o ser é predicado univocamente dos transcendentais: unidade, verdade e bondade


1. A dúvida proposta

Uma vez estabelecido que o ser é comum e unívoco a tudo o que é, resta perguntar se os outros transcendentais — o uno, o verdadeiro e o bom — se predicam de modo idêntico ou diverso em relação ao ser.
Em outras palavras: há real distinção, distinção formal ou mera distinção de razão entre o ser e os transcendentais que dele se dizem?


2. Argumentos de que o ser e os transcendentais são idênticos

Primeiro, parece que o ser e os transcendentais são idênticos.
Pois tudo o que é, é uno, verdadeiro e bom.
Nada pode ser ente sem ser uno, porque o que é dividido em si mesmo não existe;
nem pode ser ente sem ser verdadeiro, porque é inteligível;
nem pode ser ente sem ser bom, porque é desejável.
Logo, ser, unidade, verdade e bondade são a mesma coisa sob aspectos distintos apenas de nome.

Além disso, toda distinção real requer composição, e o ser, enquanto ato de todos os atos, é simples.
Logo, em tudo o que é, esses transcendentais não constituem coisas diversas, mas aspectos do mesmo ser.


3. Argumentos de que o ser e os transcendentais são distintos

Por outro lado, parece que o ser, a unidade, a verdade e a bondade são distintos.
Pois o ser é o que atualiza; a unidade é o que exclui divisão;
a verdade é a conformidade com o intelecto;
a bondade é a conformidade com o apetite.
Logo, cada um tem razão própria e não se confunde com o ser em sentido absoluto.

Além disso, é possível conceber o ser sem referir-se à mente ou à vontade;
portanto, o ser não é o mesmo que o verdadeiro ou o bom.
Logo, há distinção, ao menos formal.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, deve-se distinguir três modos de diferença:

  1. Distinção real, quando duas coisas podem existir separadamente;
  2. Distinção formal ex natura rei, quando há uma diversidade de razão fundada na própria coisa, ainda que inseparável;
  3. Distinção de razão apenas, quando a diferença provém do modo como o intelecto considera.

O problema é, pois, determinar em qual dessas ordens se encontram os transcendentais.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que entre o ser e os transcendentais há distinção formal ex natura rei, mas não real.
Eles são a mesma realidade, mas sob razões formais distintas, cada uma fundada no próprio ser.

O ser (ens) significa o ato de existir;
a unidade (unum), a incomunicabilidade desse ato;
a verdade (verum), a conformidade ao intelecto divino ou criado;
a bondade (bonum), a conformidade ao apetite racional ou natural.

Essas noções não acrescentam nada ao ser, mas exprimem relações formais imanentes àquilo que é.
Logo, o ser é idêntico em realidade, porém formalmente diverso segundo as intenções transcendentais que o exprimem.


6. Fundamento metafísico: o ser como raiz de todos os transcendentais

O ser é o primeiro conceito do intelecto e o fundamento de todos os demais transcendentais.
Tudo o que é, é uno, porque o ser é ato indiviso;
é verdadeiro, porque o ser é inteligível;
é bom, porque o ser é fim e perfeição.

Essas três propriedades — indivisão, inteligibilidade e apetibilidade — não são acréscimos, mas modos de manifestação do ser.
Portanto, a multiplicidade dos transcendentais não destrói a unidade do ser, mas a revela em sua plenitude.


7. A ordem dos transcendentais

Entre os transcendentais, há uma ordem de origem formal:
o uno deriva imediatamente do ser, pois toda existência implica unidade;
o verdadeiro e o bom seguem o uno, pois dependem da relação do ente com o intelecto e com a vontade.

Assim, o ser é primeiro em natureza e conceito;
a unidade, primeira em consequência formal;
a verdade e a bondade, últimas em relação ao sujeito cognoscente e amante.

Mas todos permanecem no mesmo nível de transcendentalidade:
não pertencem a nenhum gênero, aplicam-se a tudo o que é, e não admitem contrariedade.


8. Implicações lógicas e teológicas

A doutrina escotista dos transcendentais funda uma visão simétrica e formal do real.
Em Deus, ser, unidade, verdade e bondade são idênticos sem distinção formal;
nas criaturas, são distintos formaliter, mas não realiter.

Por isso, o mundo é uma revelação graduada do ser divino:
cada ente é uma centelha de unidade, um fragmento de verdade e uma participação do bem.
Essas três notas — unidade, inteligibilidade e bondade — são as vestes formais pelas quais o ser se torna cognoscível e desejável.

Dessa doutrina nasce a ponte entre metafísica, lógica e ética:
o verdadeiro é o ser enquanto pode ser conhecido;
o bom é o ser enquanto pode ser amado;
e ambos encontram no ser a raiz comum de toda perfeição.


9. Resposta às objeções

À objeção de que a unidade, a verdade e a bondade são idênticas ao ser, responde-se:
são idênticas quanto à realidade, mas distintas quanto à razão formal.
O intelecto não multiplica o ser, mas reconhece nele diversas formalidades que preexistem na coisa.

À objeção contrária, de que são realidades diversas, responde-se:
a diversidade é formal, não real;
não há nelas composição de coisas, mas apenas diversidade de aspectos inteligíveis.

Assim, os transcendentais não são acidentes do ser, mas o próprio ser considerado sob razões diversas.


10. Síntese final

Conclui-se que o ser e os transcendentais — unidade, verdade e bondade — são formalmente distintos, mas realmente idênticos.
O ser é raiz; a unidade, forma de indivisão; a verdade, forma de conformidade; a bondade, forma de perfeição.

Tudo o que é, é uno, verdadeiro e bom — não por acréscimo, mas por necessidade ontológica.
O ser se desdobra em transcendência:
na unidade, ele é simples;
na verdade, é inteligível;
na bondade, é desejável.

Assim, o universo inteiro é a irradiação dessas três faces do mesmo ser —
a tríplice luz pela qual o ente se mostra, se entende e se ama.

QUESTÃO DÉCIMA PRIMEIRA

Se os transcendentais — ser, unidade, verdade e bondade — são reciprocamente conversíveis


1. A dúvida proposta

Pergunta-se agora se os transcendentais que acompanham o ser — o uno, o verdadeiro e o bom — são convertíveis entre si e com o próprio ser.
Ou seja, se tudo o que é uno é também verdadeiro e bom, e se o que é verdadeiro e bom é igualmente uno e ente.


2. Argumentos de que são reciprocamente convertíveis

Primeiro, parece que todos os transcendentais são convertíveis.
Pois nada pode ser ente sem ser uno: o que é dividido em si não existe.
Nada pode ser ente sem ser verdadeiro: pois o ser, enquanto ser, é inteligível.
Nada pode ser ente sem ser bom: pois o ser é perfeição e, portanto, apetecível.
Logo, o ser, o uno, o verdadeiro e o bom coincidem universalmente em tudo o que é.

Além disso, negar a conversão dos transcendentais seria admitir entes que não são nem verdadeiros nem bons, o que é absurdo, pois o ser, enquanto ato e perfeição, é necessariamente desejável e cognoscível.


3. Argumentos de que não são reciprocamente convertíveis

Por outro lado, parece que os transcendentais não são convertíveis.
Pois algo pode ser uno sem ser verdadeiro, como uma pedra indivisa, que não é verdadeira em sentido próprio;
ou verdadeiro sem ser bom, como o intelecto do malvado, que conhece o verdadeiro mas o aplica ao mal;
ou bom sem ser verdadeiro, como o prazer sensível, que é bom ao apetite mas não corresponde à razão.
Logo, não há conversão plena entre os transcendentais.

Além disso, o ser é absolutamente primeiro, enquanto o verdadeiro e o bom envolvem relação com o intelecto e a vontade.
Logo, o ser pode existir sem essa relação, e, portanto, não é conversível com os demais.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, é preciso distinguir dois modos de conversão:

  1. Conversão quanto à extensão (secundum extensionem): quando dois conceitos abrangem igualmente todos os entes, ainda que por razões diversas;
  2. Conversão quanto à significação (secundum significationem): quando significam a mesma razão formal.

Entre os transcendentais há conversão quanto à extensão, mas não quanto à significação.
Isto é, tudo o que é ente é uno, verdadeiro e bom;
mas o ser, o uno, o verdadeiro e o bom não significam a mesma coisa formalmente.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que os transcendentais são convertíveis quanto à extensão, mas formalmente distintos quanto à significação.
Pois cada um expressa uma razão formal fundada no mesmo ser:
– o ente designa o ato de existir;
– o uno, a indivisão desse ato;
– o verdadeiro, a conformidade com o intelecto;
– o bom, a conformidade com o apetite.

Assim, todos coincidem no mesmo sujeito — o ser —, mas diferem quanto ao aspecto formal sob o qual o ser é considerado.


6. Fundamento metafísico da conversão

A causa dessa conversão está na natureza do ser enquanto ato puro e indiviso.
O ser, por ser ato, é necessariamente uno; por ser ato inteligível, é verdadeiro; por ser ato perfeito, é bom.

Essas notas não acrescentam nada ao ser, mas o explicitam em suas dimensões fundamentais:
a unidade exprime o ser in se;
a verdade, o ser ad intellectum;
a bondade, o ser ad appetitum.

Portanto, não há ente que não seja uno, verdadeiro e bom, porque a própria noção de ente implica unidade, inteligibilidade e perfeição.


7. A hierarquia das razões formais

Ainda que convertíveis quanto à extensão, os transcendentais se ordenam entre si segundo uma hierarquia formal:

  1. O ser é o fundamento absoluto, raiz de todos os outros;
  2. O uno é o primeiro consequente, porque todo ser é necessariamente indiviso;
  3. O verdadeiro segue, porque a inteligibilidade supõe a unidade;
  4. O bom vem por último, porque o apetite deseja o ser já conhecido e uno.

Assim, o ser é anterior em natureza, mas não em extensão.
Em qualquer ente concreto, essas quatro dimensões coexistem inseparavelmente.


8. Implicações lógicas e teológicas

A conversão dos transcendentais é o fundamento da ordem racional e moral do universo.
Porque tudo o que é, é inteligível e apetecível, segue-se que a criação é intrinsecamente boa e verdadeira — reflexo da perfeição divina.

Em Deus, essa conversão é absoluta e sem distinção formal:
o ser divino é, em si, unidade, verdade e bondade.
Nas criaturas, há distinção formal, mas não real: nelas, os transcendentais se diversificam apenas segundo o modo de participação.

Por isso, dizer que algo “é” implica que é uno, verdadeiro e bom na medida em que participa do ser.
Toda corrupção é perda de unidade; toda ignorância é privação de verdade; todo mal é deficiência de bondade — e, portanto, diminuição do ser.


9. Resposta às objeções

À objeção de que uma pedra é una, mas não verdadeira, responde-se:
é verdadeira enquanto é conforme ao intelecto divino que a concebeu, ainda que não o seja enquanto objeto do intelecto humano.

À objeção de que o malvado conhece o verdadeiro sem o bom, responde-se:
conhece o verdadeiro quanto ao intelecto, mas o mal está na vontade, não no ser.
Enquanto é, o verdadeiro permanece bom; o mal não tem ser próprio, mas é privação do bem.

À objeção final, de que o ser é anterior ao verdadeiro e ao bom, responde-se:
é anterior quanto à razão formal, mas não quanto à extensão: não há ser sem inteligibilidade e sem perfeição.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que os transcendentais são reciprocamente convertíveis quanto à extensão, mas formalmente distintos quanto à significação.
Tudo o que é, é uno, verdadeiro e bom, porque o ser é indiviso, inteligível e perfeito.

Essas distinções não dividem o ser, mas o revelam sob aspectos complementares:
– o uno exprime o ser enquanto indiviso;
– o verdadeiro, o ser enquanto pensado;
– o bom, o ser enquanto amado.

Assim, o cosmos inteiro, em sua multiplicidade, é a manifestação simultânea da unidade, da verdade e da bondade do Ser.
A conversão dos transcendentais é a harmonia ontológica pela qual tudo o que existe participa, segundo sua medida, da simplicidade divina.

QUESTÃO DÉCIMA SEGUNDA

Se os transcendentais se incluem nas categorias ou se as transcendem


1. A dúvida proposta

Posto que os transcendentais — ser, unidade, verdade e bondade — se predicam de tudo o que é, resta indagar se eles pertencem a alguma das dez categorias ou se são conceitos que as ultrapassam.

A questão é de máxima importância:
se os transcendentais estivessem contidos nas categorias, seriam gêneros supremos;
se as ultrapassassem, seriam conceitos supracategóricos, fundamento mesmo de toda predicação.


2. Argumentos de que os transcendentais pertencem às categorias

Primeiro, parece que os transcendentais se incluem nas categorias.
Pois tudo o que é, é alguma substância ou acidente.
Logo, o ser e seus concomitantes — unidade, verdade e bondade — devem estar dentro das categorias, e não fora delas.

Além disso, as categorias são os modos supremos do ser;
se algo não estivesse contido nelas, não poderia ser.
Logo, o ser e o uno se dizem dentro das categorias como gêneros máximos.

E ainda: quando dizemos “o homem é substância”, “a brancura é qualidade”, falamos do ser como incluído sob essas divisões.
Portanto, o ser e os transcendentais pertencem às categorias.


3. Argumentos de que os transcendentais não pertencem às categorias

Por outro lado, parece que os transcendentais transcendem as categorias.
Pois o ser se diz igualmente de substância e de acidente, e não de uma só.
Ora, o que é comum a todos os gêneros não está em nenhum deles como parte.
Logo, o ser e seus transcendentais estão acima das categorias.

Além disso, Aristóteles ensina que as categorias são modos do ser;
mas o ser, enquanto se diz de todos os modos, não é um deles.
Logo, o ser é transcategorial.

O mesmo vale para a unidade, a verdade e a bondade, que acompanham o ser em toda parte.
Não há categoria do “uno” ou do “bom”; antes, todo ente, em qualquer categoria, é uno e bom.


4. Distinção preliminar

Para resolver a dificuldade, convém distinguir entre o ser transcendental e o ser categorial.

– O ser transcendental é o ser considerado universalmente, enquanto abrange tudo o que é, sem restrição de gênero ou modo.
– O ser categorial é o ser considerado sob uma determinada razão de gênero, como substância, quantidade, qualidade etc.

O ser transcendental é anterior e mais universal;
o categorial é posterior, determinado por uma das dez divisões do ente.

Logo, o ser e os transcendentais não se incluem nas categorias, mas as fundam e as sustentam.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o ser e os transcendentais não pertencem às categorias, mas as transcendem.
Pois as categorias são espécies de ser, e o ser é o gênero transcendental de todas.
O ser não é gênero lógico, mas princípio metafísico comum, do qual derivam todos os modos categóricos.

Assim como a luz não pertence às cores, mas as torna possíveis, o ser não pertence às categorias, mas as faz existir e inteligir.

Logo, as categorias são divisões do ser finito, enquanto o ser transcendental é indivisível e anterior a toda divisão.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é a distinção entre o ser enquanto conceito formal e o ser enquanto natureza realizada.
Enquanto conceito, o ser é indiferente a todos os modos de existir;
enquanto natureza realizada, ele se determina segundo as categorias.

Por isso, o ser transcendental é comum por natureza, mas diverso na realização.
É o mesmo conceito que se aplica a todos os gêneros, embora neles se diversifique por modos formais.

As categorias, portanto, não esgotam o ser, mas o expressam de forma múltipla e analítica.


7. Implicações lógicas e ontológicas

Essa distinção tem consequências decisivas:

  1. A metafísica não se identifica com a lógica categorial.
  2. O ser, enquanto transcendental, é objeto próprio da metafísica, e não da física ou da lógica.
  3. As categorias pertencem à ordem do ente finito, enquanto o ser transcendental é o fundamento da ordem criada e increada.

Assim, a metafísica é ciência do ser enquanto ser, e não de algum gênero do ser.
Por isso, Aristóteles, embora tenha classificado as categorias, não as tomou como princípio absoluto, mas como expressão do ser na diversidade do real.


8. A relação dos transcendentais com as categorias

Os transcendentais — unidade, verdade e bondade — acompanham o ser em todos os gêneros, mas não pertencem a nenhum.
São predicados transcategóricos:
a unidade se diz de toda substância, quantidade, qualidade e relação;
a verdade e a bondade se dizem igualmente de todas, conforme sua medida.

Eles são, pois, conversíveis com o ser, mas não confinados às categorias.
São como o horizonte comum que envolve e ilumina cada categoria sem pertencer a nenhuma.


9. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que tudo o que é é alguma categoria, responde-se:
tudo o que é é ente categorial quanto à existência concreta, mas ente transcendental quanto ao conceito universal.
Logo, o ser e os transcendentais, enquanto conceitos, estão acima das categorias.

À segunda, de que as categorias são modos do ser, responde-se:
justamente por isso o ser não está nelas — o princípio não pertence às suas próprias manifestações.

À terceira, de que o ser é dito como gênero, responde-se:
o ser não é gênero lógico, porque não possui diferença específica;
é antes o fundamento de toda diferença, o ato comum que precede qualquer distinção categorial.


10. Síntese final

Conclui-se que o ser e os transcendentais — unidade, verdade e bondade — não pertencem às categorias, mas as transcendem.
Eles são conceitos supremos e fundantes, que se aplicam igualmente a todas as categorias sem pertencer a nenhuma.

O ser é, portanto, o horizonte absoluto da inteligibilidade;
as categorias são as modulações do ser;
e os transcendentais são as propriedades universais que acompanham o ser em qualquer de suas manifestações.

Assim, a metafísica escotista se eleva acima da lógica aristotélica:
não se limita a classificar os entes, mas a compreender a ordem do ser em sua totalidade transcendental
a luz comum em que tudo o que é se unifica, se conhece e se ama.

QUESTÃO DÉCIMA TERCEIRA

Se o ser é finito ou infinito por si mesmo


1. A dúvida proposta

Posto que o ser é o primeiro objeto do intelecto e o conceito mais universal, resta indagar se o ser, enquanto tal, é finito ou infinito por natureza, ou se essas duas condições — finitude e infinitude — lhe são apenas modos que o determinam segundo os entes particulares.

A questão é de máxima importância, pois dela depende a distinção entre o ser divino, que é infinito, e o ser criado, que é finito.


2. Argumentos de que o ser é finito por si mesmo

Primeiro, parece que o ser é finito por si.
Pois o infinito, sendo o que não tem limite, não pode ser conhecido plenamente; mas o ser é o primeiro objeto do intelecto e, portanto, deve ser cognoscível.
Logo, o ser é finito, não infinito.

Além disso, o ser enquanto universal compreende em si todos os entes finitos; ora, o universal é um conceito limitado, não uma realidade sem termo.
Logo, o ser, enquanto tal, não é infinito, mas finito segundo sua compreensão.

E ainda: tudo o que é infinito não pode ser participado; o ser, porém, é participado por todas as coisas.
Logo, ele é finito em sua natureza, ainda que comunicado indefinidamente.


3. Argumentos de que o ser é infinito por si mesmo

Por outro lado, parece que o ser é infinito por si mesmo.
Pois o ser é ato puro e primeiro; e tudo o que é ato puro é ilimitado.
A limitação provém da potência e da recepção; mas o ser, enquanto ser, é pura atualidade.
Logo, ele é infinito por natureza.

Além disso, o ser não se limita a uma essência particular, mas se estende igualmente a todas as naturezas.
Logo, o ser, enquanto ser, não é circunscrito por gênero, diferença ou medida.
Portanto, ele é infinito formalmente.

E mais: toda limitação procede de algo distinto que restringe;
mas o ser é anterior a toda distinção.
Logo, não pode ser limitado por outro, pois nada existe fora do ser.
Portanto, o ser é, de si, infinito.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, convém distinguir duas noções de infinito:

  1. Infinito quantitativo, que significa ausência de limites externos, como no espaço ou no número;
  2. Infinito formal, que significa plenitude de ato, ausência de limitação intrínseca.

O primeiro é próprio das coisas extensas e divisíveis;
o segundo pertence à ordem metafísica, sendo o que é plenamente atual e sem potencialidade.

Logo, quando se pergunta se o ser é infinito por si, entende-se o infinito formal, não o quantitativo.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o ser, enquanto ser, é de si indiferente a finito e infinito, mas é infinito por excelência em Deus, e finito por participação nas criaturas.

O ser, em si mesmo considerado, não é nem limitado nem ilimitado;
é capaz de ambos os modos, conforme o sujeito em que se realiza.

Assim como a brancura pode existir mais ou menos intensamente segundo o corpo que a recebe,
assim o ser é infinito quando subsiste por si (em Deus)
e finito quando recebido em outro (na criatura).

Logo, a infinitude e a finitude são modos extrínsecos de participação do ser, não propriedades essenciais ao conceito de ser.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina está na distinção entre o ser como conceito comum e o ser como realidade subsistente.
Enquanto conceito, o ser é unívoco e comum;
enquanto realidade, é participado diversamente:
– no Criador, sem limite;
– na criatura, segundo medida finita.

Assim, o ser é formaliter infinitum em Deus —
porque é ato puro, ilimitado e subsistente —,
e receptum finitum nas criaturas —
porque é recebido em essências limitadas.

Portanto, a infinitude não é uma diferença do ser comum, mas um modo supremo de sua realização.


7. Implicações teológicas

Dessa doutrina decorre a distinção fundamental entre o Ser divino e o ser criado:
– Deus é infinito por natureza, não por participação;
– a criatura é finita por essência, porque recebe o ser de outro.

O ser infinito é o ser plenamente atual, não determinado por potência alguma;
o ser finito é o ser recebido e delimitado pela essência que o contém.

Assim, a infinitude não é mera negação de limites, mas plenitude positiva de ato, aquilo mesmo que define o ser de Deus.


8. A perfeição do infinito

Escoto afirma que o infinito formal é maior perfeição que o finito, porque contém em si toda atualidade sem restrição.
Por isso, é mais próprio chamar Deus de “o Ser Infinito” do que simplesmente “o Ser”:
pois o nome “infinito” indica, não uma privação, mas uma superabundância de ser.

A infinitude é, pois, a perfeição suprema do ser, sua plenitude absoluta, sua inteligibilidade e bondade levadas ao máximo.


9. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que o ser é cognoscível e o infinito não o é, responde-se:
o infinito formal é cognoscível em parte, não em sua totalidade;
conhece-se que ele é, não o que ele é plenamente.
Assim, o ser infinito é objeto de conhecimento por analogia e negação de limites.

À segunda, de que o ser universal é limitado, responde-se:
o conceito universal é limitado enquanto conceito, não enquanto realidade significada.
O ser, em sua significação, é ilimitado, embora o intelecto o compreenda de modo finito.

À terceira, de que o infinito não pode ser participado, responde-se:
o ser infinito em si não é participado, mas o ser como tal é participado finitamente;
a limitação não provém do ser, mas do recipiente.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o ser, enquanto conceito, é indiferente a finito e infinito;
mas na ordem real, o ser subsistente é infinito (em Deus),
e o ser participado é finito (nas criaturas).

O ser é, pois, infinito em potência formal e finito em ato recebido.
Deus é o Esse infinitum, plenitude de ato sem limitação;
a criatura é esse finitum, ato participado segundo medida.

A infinitude é, assim, a expressão máxima do ser:
o ser absoluto é infinito porque não tem essência distinta de seu existir;
o ser criado é finito porque sua essência limita o modo de ser que recebe.

QUESTÃO DÉCIMA QUARTA

Se o infinito é propriamente atributo de Deus


1. A dúvida proposta

Depois de se afirmar que o ser, em si mesmo, é indiferente à finitude e à infinitude, pergunta-se agora se o infinito é atributo próprio de Deus, e de que modo se deve compreender essa infinitude: se como negação de limites ou como plenitude positiva de ato.

Essa questão constitui o ápice da metafísica escotista, pois dela depende a distinção entre o Criador e a criatura — não apenas como diferença de grau, mas como diferença formal de modo de ser.


2. Argumentos de que o infinito é atributo próprio de Deus

Primeiro, parece que o infinito é atributo próprio de Deus.
Pois tudo o que é ato puro é ilimitado, e somente Deus é ato puro.
Logo, somente Ele é infinito.

Além disso, o infinito é o que não pode ser compreendido por outro, enquanto o finito é sempre circunscrito.
Ora, Deus é incompreensível por essência;
portanto, Ele é infinito por natureza.

E ainda: todo ser criado é limitado por sua essência, porque recebe o ser em medida determinada;
mas em Deus, essência e ser são idênticos.
Logo, o ser divino é sem medida, sem recepção, sem fronteira.


3. Argumentos contrários

Por outro lado, parece que o infinito não é atributo próprio de Deus.
Pois o infinito, sendo o que não tem termo, parece indeterminado e, portanto, imperfeito.
Ora, Deus é ato puríssimo e determinadíssimo;
logo, não se deve chamar infinito àquilo que é perfeitíssimo.

Além disso, se o infinito é aquilo que não pode ser mensurado, então o intelecto não o pode compreender;
mas o intelecto divino se compreende a si mesmo;
logo, Deus não pode ser dito infinito nesse sentido.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, convém distinguir dois modos de infinito:

  1. Infinito negativo, que é privação de limites e pertence àquilo que não está plenamente determinado;
  2. Infinito positivo ou formal, que é plenitude total de ato, superando qualquer determinação particular.

O primeiro pertence à matéria indeterminada;
o segundo, somente a Deus.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o infinito é propriamente atributo de Deus, não por negação, mas por afirmação supereminente de perfeição.
Deus é chamado infinito porque é ato absoluto e total, em quem não há potência alguma.

A infinitude divina não é ausência de limites por carência, mas ausência de limites por plenitude:
não porque Lhe falte determinação, mas porque nenhuma determinação o pode circunscrever.

Assim, o infinito é a expressão formal da essência divina, significando a ausência de toda restrição ontológica.


6. Fundamento metafísico

Toda limitação procede da composição entre ato e potência.
Ora, em Deus não há composição, mas pura identidade entre essência e existir.
Logo, n’Ele o ser é infinitamente atual, e sua infinitude é idêntica à sua simplicidade.

O ser infinito é o ato pleno, o ser total sem nenhuma participação;
o ser finito é o ato recebido, limitado pela essência que o contém.

Portanto, o infinito é o modo próprio do ser divino, e o finito o modo próprio do ser criado.


7. A perfeição do infinito

Escoto define o infinito como aquilo que é maior do que tudo o que se pode conceber.
Essa noção exprime uma perfeição positiva, não uma negação.
Pois o infinito não carece de termo: ele o supera.

Em Deus, a infinitude é a mesma coisa que a plenitude da bondade, da verdade e do ser.
Todas as perfeições finitas das criaturas se encontram n’Ele, sem limite, sem divisão e sem contrariedade.

Por isso, Deus é chamado o Infinito Absoluto, não como número sem fim, mas como totalidade que excede toda medida.


8. Consequências teológicas

Da infinitude divina derivam todas as demais perfeições:
– a onipotência, porque o poder infinito não pode ser limitado;
– a onisciência, porque o intelecto infinito conhece todas as coisas;
– a onipresença, porque o ser infinito não é contido por lugar algum;
– a simplicidade, porque nada pode acrescentar-se ao que é sem limite.

Assim, a teologia natural escotista faz da infinitude a chave de interpretação de todos os atributos divinos.


9. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que o infinito seria indeterminado e imperfeito, responde-se:
isso é verdadeiro apenas do infinito negativo, que implica privação;
não, porém, do infinito formal, que implica plenitude.

À segunda, de que o infinito não é cognoscível, responde-se:
é incompreensível ao intelecto criado, mas plenamente compreendido pelo intelecto divino, que é infinito como o seu ser.

Assim, a infinitude divina não implica ignorância, mas superabundância de inteligibilidade.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o infinito é atributo próprio e essencial de Deus.
Ele é infinito, não por carência de forma, mas por plenitude de ato;
não por indeterminação, mas por absoluta perfeição.

O ser divino é o ato infinito de existir, cuja essência é o próprio ser.
Tudo o que é finito participa d’Ele, mas nenhuma criatura O contém.

Assim, o infinito é o nome mais próprio de Deus,
porque designa não apenas o que Ele tem, mas o que Ele é
Esse infinitum, o Ser sem fronteiras, a plenitude que funda e transcende toda medida.

QUESTÃO DÉCIMA QUINTA

Se o infinito pode ser conhecido pelo intelecto criado


1. A dúvida proposta

Posto que o infinito é o atributo próprio de Deus, pergunta-se agora se o intelecto criado pode conhecê-lo — e, se sim, de que modo: por compreensão, por simples apreensão ou por participação.

A questão é decisiva: se o infinito pode ser conhecido plenamente, então o finito poderia abarcar o ilimitado;
se não pode, restaria perguntar como é possível, então, alguma visão de Deus.


2. Argumentos de que o infinito pode ser conhecido

Primeiro, parece que o infinito pode ser conhecido.
Pois aquilo que é, enquanto é, é inteligível.
Ora, Deus é o Ser supremo, e, portanto, é inteligível em grau máximo.
Logo, o infinito é cognoscível.

Além disso, os bem-aventurados veem a essência divina na glória;
ora, essa essência é o próprio infinito.
Logo, o intelecto criado pode conhecê-lo.

E ainda: o intelecto humano, mesmo nesta vida, conhece universalmente o ser, que é ilimitado em extensão conceitual.
Logo, em certo modo, ele já participa de um conhecimento do infinito.


3. Argumentos de que o infinito não pode ser conhecido

Por outro lado, parece que o infinito não pode ser conhecido.
Pois conhecer é compreender um objeto sob limites definidos;
mas o infinito, por definição, não tem limites.
Logo, não pode ser conhecido.

Além disso, entre o finito e o infinito não há proporção;
ora, toda cognição requer proporção entre sujeito e objeto.
Logo, o intelecto finito não pode conhecer o infinito.

E mais: o conhecimento é ato que se mede pelo poder do sujeito;
ora, o poder do intelecto criado é finito;
portanto, ele não pode ter como termo próprio o infinito.


4. Distinção preliminar

Para resolver a dificuldade, é preciso distinguir duas maneiras de conhecer:

  1. Conhecimento compreensivo, quando o intelecto abarca plenamente o objeto e o mede;
  2. Conhecimento intuitivo ou participativo, quando o intelecto é iluminado pelo objeto sem o abarcar.

O primeiro é próprio de Deus;
o segundo é possível à criatura pela participação na luz divina.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o infinito pode ser conhecido pelo intelecto criado, mas não pode ser compreendido.

Pode ser conhecido intuitivamente, na medida em que o intelecto é elevado pela graça e pela luz da glória (lumen gloriae), que o torna proporcionado ao objeto divino;
mas não pode ser conhecido compreensivamente, pois o infinito excede toda capacidade criada.

O intelecto criado vê, portanto, o próprio infinito, mas não infinitamente;
conhece o ser divino tal como ele é, mas não o conhece segundo o modo como ele se conhece a si mesmo.


6. Fundamento metafísico

A razão dessa possibilidade está no fato de que o infinito é plenitude positiva de ser e inteligibilidade.
Ora, quanto mais algo participa do ser, mais participa da inteligibilidade.
Logo, o intelecto criado pode conhecer o infinito por participação, pois o ser divino é luz e torna-se visível a quem participa de sua claridade.

Mas a razão da impossibilidade de compreendê-lo está na desproporção essencial:
o infinito é ato total; o intelecto criado é potência limitada.
A luz criada pode receber o brilho do infinito, mas não o conter.

Assim, o conhecimento do infinito é real e verdadeiro, mas não exaustivo.


7. Implicações teológicas

Daqui se segue a distinção entre visão e compreensão beatífica.
Na visão beatífica, o intelecto vê o próprio Deus, mas não o compreende plenamente.
É uma visão sem circunscrição: o olho criado vê o infinito como presença, não como medida.

Essa doutrina fundamenta a teologia da bem-aventurança:
o gozo dos santos é infinito em objeto, mas finito no modo da fruição.
Eles possuem tudo o que podem possuir, mas não tudo o que Deus é em si.

Assim, há perfeita felicidade, mas não exaustão da infinitude divina.


8. Consequências filosóficas

O intelecto humano, ainda neste estado mortal, conhece o infinito apenas por negação e eminência:
nega os limites do finito e afirma a plenitude absoluta do ser.
Esse conhecimento é abstrativo e analógico, não intuitivo.

Contudo, já nessa via negativa se manifesta o selo do infinito:
quanto mais o intelecto nega, mais se aproxima da luz que não pode conter.
O “não saber” torna-se o início da verdadeira ciência do divino.


9. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que conhecer é limitar, responde-se:
é verdade quanto ao conhecer compreensivo, mas não quanto ao conhecer participativo.
Pois a visão beatífica não limita o objeto, mas se submete a ele.

À segunda, de que não há proporção entre finito e infinito, responde-se:
há proporção por participação sobrenatural, estabelecida pelo lumen gloriae, que confere ao intelecto criado certa semelhança formal com o objeto divino.

À terceira, de que o poder criado é finito, responde-se:
é finito por natureza, mas elevado pela graça pode operar acima de si, sem destruir sua condição.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o infinito é cognoscível pelo intelecto criado, mas incompreensível.
Pode ser visto, não medido; pode ser amado, não contido.

O intelecto criado conhece o infinito por participação
na vida presente, pela fé e pela negação;
na glória, pela visão direta, mas não total.

Assim, entre o Criador e a criatura há união sem confusão:
a luz que ilumina não se esgota na mente que a recebe,
mas nela resplandece como reflexo de uma eternidade que não se mede.

QUESTÃO DÉCIMA SEXTA

Se o infinito é comunicável


1. A dúvida proposta

Posto que o infinito é o atributo próprio de Deus e que o intelecto criado pode conhecê-lo por participação, pergunta-se agora se o infinito pode ser comunicado — isto é, se pode ser participado realmente por alguma criatura, ou se permanece absolutamente intransmissível, sendo próprio somente do Criador.

A questão é decisiva porque dela depende a doutrina da encarnação e da graça, isto é, se o ser infinito pode unir-se ao finito sem destruição nem confusão.


2. Argumentos de que o infinito é comunicável

Primeiro, parece que o infinito é comunicável.
Pois tudo o que é bom é, por natureza, difusivo de si.
Ora, o infinito é o sumo bem;
logo, tende a comunicar-se.

Além disso, a própria criação é uma comunicação do ser.
Ora, o ser divino é infinito;
logo, o infinito se comunica, ao menos participativamente, nas criaturas.

E ainda: o homem é feito “à imagem e semelhança de Deus”;
ora, essa semelhança não pode derivar senão de alguma participação do infinito.


3. Argumentos de que o infinito não é comunicável

Por outro lado, parece que o infinito não é comunicável.
Pois o infinito é o que não pode ser limitado,
e toda participação implica limitação do participado.
Logo, o infinito, enquanto infinito, não pode ser participado.

Além disso, se o infinito se comunicasse, seria finito naquilo que é comunicado,
pois toda comunicação supõe medida.
Logo, o infinito não pode ser comunicado sem deixar de ser infinito.

E mais: se o infinito fosse participável, poderia haver muitos infinitos,
o que é absurdo, pois o infinito é único e indivisível.


4. Distinção preliminar

Para resolver a questão, convém distinguir duas formas de comunicação:

  1. Comunicação essencial, em que o ser se multiplica realmente no mesmo grau de perfeição (o que é impossível no infinito);
  2. Comunicação participativa, em que o ser infinito é participado de modo limitado por outro, sem divisão daquilo que é comunicado.

A primeira é impossível;
a segunda é o modo mesmo da criação e da graça.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o infinito não é comunicável essencialmente,
mas é comunicável participativamente.

Pois a essência infinita é absolutamente una e indivisível;
se fosse comunicada essencialmente, haveria muitos infinitos,
o que contradiria a simplicidade divina.

Entretanto, o infinito comunica-se por participação,
isto é, concede ser e perfeição às criaturas sem esgotar-se nem dividir-se.
Assim como o sol ilumina muitas coisas sem perder a sua luz,
assim o ser infinito comunica o ser finito sem diminuir-se.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa possibilidade está na distinção entre o modo de ser e a realidade do ser.
A realidade do ser é una e plena;
os modos são diversos segundo o recipiente.
Logo, o ser infinito é comunicado na criatura quanto à realidade do ser,
mas não quanto ao modo infinito de existir.

O ser divino permanece infinito em si,
ainda que o seu efeito seja finito em participação.

Por isso, o infinito é fontalmente comunicativo,
mas formalmente intransmissível:
é causa de tudo, mas não pode multiplicar-se fora de si mesmo.


7. Implicações teológicas

Daqui se segue que a criação não é uma emanação necessária,
mas um ato livre de comunicação do infinito.
Deus não se comunica por necessidade de natureza,
mas por liberalidade de amor.

Além disso, na união hipostática do Verbo encarnado,
o infinito não se comunica segundo a essência,
mas segundo a pessoa:
a natureza humana é assumida pelo infinito,
sem que o infinito se torne finito,
nem o finito se torne infinito por essência,
mas por união pessoal.

Assim, o mistério da Encarnação é o ponto máximo da comunicabilidade do infinito:
nele, o ser infinito toca o finito sem deixar de ser infinito.


8. A comunicabilidade na ordem da graça

Na ordem da graça, o infinito comunica-se de modo participativo às criaturas racionais.
A graça santificante é uma participação criada do ser divino,
não por essência, mas por semelhança formal.

Deus, ao comunicar a sua luz ao intelecto e o seu amor à vontade,
torna o homem partícipe do infinito,
não porque o homem se torne Deus,
mas porque é feito capaz de Deus (capax Dei).

Assim, o infinito se comunica por influxo de bondade,
sem dividir-se, e produz no finito uma semelhança real, porém limitada.


9. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que o infinito é indivisível, responde-se:
é indivisível quanto à essência,
mas difusivo quanto à causalidade.
Comunica-se não dividindo-se, mas fazendo participar.

À segunda, de que a comunicação limitaria o infinito, responde-se:
o limite está no recipiente, não no doador.
O infinito não se torna menor por ser participado;
é o finito que se torna maior por receber algo dele.

À terceira, de que haveria muitos infinitos, responde-se:
há muitos participados, mas um só infinito participado,
assim como há muitas luzes refletidas, mas um só sol.


10. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o infinito é comunicável participativamente, mas não essencialmente.
Ele é comunicável como causa, não como essência multiplicável;
difusivo de ser, mas imóvel em si mesmo.

O ser infinito é o princípio e fim de toda comunicação ontológica:
em Deus, plenitude sem limite;
nas criaturas, reflexo limitado dessa plenitude.

Assim, o infinito permanece uno e transcendente,
e, no entanto, tudo o que existe é participação dele
vestígio, imagem ou semelhança do Ser que é pura atualidade e pura generosidade.

QUESTÃO DÉCIMA SÉTIMA

Se há distinção real entre ato e potência no ser criado


1. Proposição do problema

Pergunta-se se no ser criado há distinção real entre ato e potência, ou se ambos se distinguem apenas pela razão, como modos conceituais de um mesmo princípio.

Essa questão é fundamental para a metafísica escotista, pois define a estrutura do finito: se o criado fosse ato puro, seria Deus; se fosse pura potência, não seria nada. Logo, a composição de ambos é o que o constitui como ente possível e participado.


2. Argumentos a favor da distinção real

Primeiro, parece que há distinção real entre ato e potência.
Pois o ato é o que determina; a potência é o que é determinado.
Ora, o determinante e o determinado não são idênticos.
Logo, distinguem-se realmente.

Além disso, em todas as mudanças há passagem da potência ao ato;
mas mudança é sucessão real.
Logo, potência e ato são distintos realmente.

E ainda: o ato é perfeição, a potência é capacidade.
Ora, perfeição e capacidade não se confundem senão no ser infinito,
onde potência e ato são idênticos por simplicidade absoluta.


3. Argumentos contrários

Por outro lado, parece que não há distinção real.
Pois tudo o que é no ente criado é finito;
ora, uma distinção real entre ato e potência introduziria duas realidades completas no mesmo sujeito, o que o multiplicaria indevidamente.
Logo, a distinção é apenas conceitual.

E mais: o ato e a potência referem-se ao mesmo princípio, o ser.
Ora, aquilo que é idêntico em fundamento, mas diverso apenas no modo de concepção, distingue-se só pela razão.


4. A distinção formal segundo Escoto

Para resolver a questão, é preciso compreender a diferença escotista entre distinção real, distinção formal ex natura rei, e distinção meramente lógica.

A distinção real separa coisas que podem existir uma sem a outra.
A distinção lógica é obra do intelecto, sem fundamento no ser.
A distinção formal ex natura rei, por sua vez, é anterior à operação do intelecto, mas não implica separação real — é distinção de formalidades, não de substâncias.

Escoto aplica esse terceiro modo à relação entre ato e potência:
há distinção formal entre eles no criado, fundada na natureza mesma do ser finito.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que no ser criado ato e potência se distinguem formalmente, não apenas conceitualmente.

Há, com efeito, no finito, duas formalidades intrínsecas:
uma pela qual ele é em potência para receber;
outra pela qual é em ato enquanto possui algo.

Essas formalidades não são separáveis,
mas tampouco idênticas:
a potência é ordem ao ato; o ato é atualização da potência.

Assim, não há uma composição de duas coisas,
mas uma unidade que contém duas perfeições formais realmente distintas na essência.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa distinção é o mesmo que define o finito:
o criado é limitado porque seu ato não é toda a sua potência,
nem sua potência é todo o seu ato.
Ele é, portanto, composto de possibilidade e atualização
um ser que tende, que pode, que se move entre o ser e o não ser.

Deus, pelo contrário, é ato puro, sem potência alguma,
porque nada lhe falta e nada pode ser-lhe acrescentado.
A distinção entre ato e potência é, pois, o sinal primeiro da criaturidade.


7. Síntese

Conclui-se que ato e potência se distinguem formalmente no ser criado,
de modo que nenhum deles é idêntico ao outro,
mas ambos constituem uma unidade essencial ordenada.
O ato limita e realiza a potência;
a potência abre-se ao ato e o recebe.

Assim, o ser finito é o ponto de intersecção entre a plenitude e a possibilidade —
uma unidade dual cuja estrutura exprime a dependência radical da criatura em relação ao Infinito.


QUESTÃO DÉCIMA OITAVA

Se o ser necessário difere realmente do ser contingente


1. Proposição do problema

Posto que a distinção entre ato e potência foi estabelecida, pergunta-se agora se o ser necessário difere realmente do ser contingente, ou se a diferença é apenas de razão ou modo de existência.

A questão prepara o caminho para a distinção entre o Criador e as criaturas, pois o necessário é o que não pode não ser, e o contingente é o que pode não ser.


2. Argumentos de que não há diferença real

Primeiro, parece que não há diferença real.
Pois ambos são igualmente “ser”.
Ora, o ser é dito univocamente de tudo o que é.
Logo, a diferença entre necessário e contingente é apenas modal.

Além disso, o ser necessário e o ser contingente não diferem quanto à essência do ser, mas quanto ao modo de existir.
Logo, não há diferença real, mas apenas de modo ou relação.


3. Argumentos de que há diferença real

Por outro lado, o ser necessário é de si mesmo,
enquanto o contingente é por outro.
Ora, aquilo que tem o ser por si mesmo e aquilo que o tem por outro
não podem ser idênticos realmente.

E ainda: o necessário é ato puro;
o contingente é potência ordenada ao ato.
Logo, distinguem-se realmente,
pois a relação de dependência pertence à essência do contingente.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o ser necessário e o ser contingente diferem realmente,
mas segundo uma diferença fundada na essência do ser.

O ser é dito univocamente,
mas não é formalmente idêntico em todos os seus modos.
Há no conceito de ser uma formalidade comum,
mas nela se incluem modos intrínsecos
ser por si, ser por outro; ser necessário, ser possível.

Esses modos são distintos formaliter ex natura rei,
isto é, antes de qualquer operação do intelecto.


5. Fundamento metafísico

O ser necessário é aquele cujo ato é inseparável de sua essência;
o ser contingente é aquele cuja essência não implica a existência.
No primeiro, o existir é essência;
no segundo, o existir é recebido.

Assim, no necessário, ato e ser coincidem;
no contingente, ato e potência se conjugam.
A distinção real entre ambos funda-se na dependência ontológica:
o contingente remete causalmente ao necessário como à sua origem.


6. Consequências filosóficas

Dessa distinção nasce a hierarquia do real.
O necessário é o fundamento absoluto — o ser que não depende.
O contingente é o ser participado — o que existe por influxo e conservação.

A cadeia do ser, portanto, não é uma continuidade indiferenciada,
mas uma ordem de dependências,
em que tudo o que é contingente exige, como razão última, um ser cuja essência é o próprio existir.

Essa é a base da prova escotista da existência de Deus,
pois somente o ser necessário explica a atualidade do possível.


7. Síntese final

Conclui-se, portanto, que há diferença real entre o ser necessário e o ser contingente,
não quanto ao conceito geral de ser, mas quanto ao modo intrínseco de existir.

O necessário é ato puro, cuja essência implica existência.
O contingente é potência realizada, cuja essência apenas permite existir.

Ambos participam univocamente do ser,
mas distinguem-se formalmente quanto ao modo de possuí-lo.


8. Epílogo

Dessa dupla questão resulta o núcleo da ontologia escotista:
todo o ser criado é composto de ato e potência,
e por isso é contingente;
só Deus é necessário, porque é ato puro e infinito.

Assim, a estrutura do real reflete a distância entre o Ser subsistente e o ser participado —
distância que é, ao mesmo tempo, comunhão e diferença,
espelho da relação eterna entre Criador e criatura.

QUESTÕES DÉCIMA NONA A VIGÉSIMA TERCEIRA

Sobre os acidentes e sua relação com a substância


1. Introdução geral

Depois de tratar do ser enquanto transcendental e da diferença entre o finito e o infinito, Escoto volta-se agora ao ser enquanto categorial, perguntando como ele se multiplica nos modos do real: substância e acidentes.
Essas questões analisam se os acidentes são realidades distintas da substância, se existem verdadeiramente, e qual é sua dependência ontológica.

O tema central é o estatuto ontológico do acidente — se é apenas uma modificação da substância ou um ente verdadeiro e próprio, ainda que dependente.


QUESTÃO DÉCIMA NONA

Se o acidente possui ser verdadeiro


2. Argumentos de que o acidente não possui ser verdadeiro

Primeiro, parece que o acidente não tem ser verdadeiro.
Pois o ser é o que subsiste por si;
ora, o acidente não subsiste, mas existe em outro.
Logo, não é propriamente ente.

Além disso, o acidente depende da substância para existir;
ora, o que depende de outro não é plenamente ser, mas uma disposição ou modificação do ser.

E ainda: o ser é indivisível;
mas o acidente divide o ser em categorias derivadas;
portanto, o acidente é apenas um modo do ser, não o ser propriamente.


3. Argumentos de que o acidente possui ser verdadeiro

Por outro lado, parece que o acidente possui ser verdadeiro.
Pois aquilo que é causado e conservado por Deus possui ser real;
ora, os acidentes são causados e conservados por Deus.
Logo, são entes, ainda que dependentes.

Além disso, o acidente é termo de geração e corrupção —
a brancura começa e cessa, a ciência nasce e se perde —,
e nada que é termo de mudança é pura negação.
Logo, o acidente é algo real.


4. A posição de Escoto

Digo, portanto, que o acidente possui ser verdadeiro,
mas ser dependente.

Ele não é pura negação, mas realidade ontológica secundária,
existindo não per se, mas in alio.
O acidente tem ser próprio, mas não subsistência própria.

Assim, há uma diferença formal entre ser absolutamente e ser em outro:
o primeiro é o ser da substância;
o segundo, o ser do acidente.
Ambos são entes verdadeiros, mas o segundo é ente relativo e participado.


QUESTÃO VIGÉSIMA

Se o acidente se distingue realmente da substância


1. Argumentos pela distinção real

Parece que há distinção real entre substância e acidente.
Pois a substância pode subsistir sem certo acidente,
mas o acidente não pode subsistir sem a substância.
Logo, o acidente é coisa distinta.

Além disso, a mudança acidental mostra separação real:
um mesmo sujeito pode perder uma cor e adquirir outra,
logo, o acidente é algo realmente diverso.


2. Argumentos contrários

Por outro lado, parece que não há distinção real.
Pois o acidente não tem ser fora da substância;
se fosse realmente distinto, poderia subsistir, o que é falso.

E ainda: tudo o que é real é ser;
ora, o ser do acidente não é outro senão o ser da substância,
participado de modo diferente.
Logo, não há duas realidades, mas um mesmo ser em modos diversos.


3. Posição de Escoto

Digo, portanto, que substância e acidente se distinguem formalmente, mas não realmente.

Há entre elas uma distinção ex natura rei, não meramente lógica,
porque o ser acidental é dependente, o substancial é absoluto;
mas ambos compõem uma mesma unidade ontológica no sujeito.

A substância é o ser que sustenta;
o acidente, o ser sustentado.
Ambos coexistem na mesma realidade,
mas sob razões formais distintas:
uma é causa de sustentação, a outra de determinação.


QUESTÃO VIGÉSIMA PRIMEIRA

Se os acidentes são modos reais da substância


1. Argumentos de que os acidentes são apenas modos

Parece que os acidentes são apenas modos da substância.
Pois não têm existência separada,
nem alteram a essência substancial.
Logo, são apenas modos de aparecer.

Além disso, o mesmo sujeito permanece idêntico enquanto muda de acidentes;
ora, se o acidente fosse coisa distinta, haveria multiplicação real do ser.
Logo, é simples modificação.


2. Argumentos de que os acidentes são entes reais

Por outro lado, os acidentes têm propriedades próprias:
são gerados, corrompidos, medidos e classificados.
Logo, não são apenas modos lógicos, mas realidades ontológicas dependentes.

Além disso, um acidente pode ser causa de outro —
a figura causa beleza, o calor causa secura —,
o que não seria possível se fossem meros modos.


3. Posição de Escoto

Digo, portanto, que os acidentes são entes reais,
mas de realidade diminuta,
isto é, dependente da substância.

São modos reais, mas não meramente conceituais:
têm esse proprium in alio, ser próprio em outro.
São entes em sentido derivado,
assim como a luz no ar é real, mas não subsistente.

Portanto, os acidentes são realidades verdadeiras,
mas cuja essência é ser no outro e pelo outro.


QUESTÃO VIGÉSIMA SEGUNDA

Se os acidentes subsistem na substância ou são inerentes como formas


1. Posição escotista

Os acidentes são formas reais inerentes,
não partes nem potências da substância,
mas qualificações ativas, que atualizam e especificam o sujeito.

Eles estão na substância como o ato no potencial,
não como o corpo no espaço.
Sua presença é intrínseca e formal,
não extrínseca ou local.

Por isso, a substância é o princípio de ser;
o acidente, o princípio de determinação e manifestação.


QUESTÃO VIGÉSIMA TERCEIRA

Se há uma hierarquia entre os acidentes


1. Doutrina de Escoto

Sim, há hierarquia real entre os acidentes.
Os acidentes que se aproximam mais da forma substancial —
como a figura, o calor, a cor —,
possuem maior realidade do que os que são meramente relacionais ou extrínsecos.

Entre os acidentes, qualidade é o mais nobre,
pois é o que mais participa da forma e do ato;
a quantidade é inferior, pois está mais próxima da matéria;
a relação é a mais frágil, pois depende duplamente de outro —
do sujeito e do termo.


2. Síntese final das cinco questões

Das Questões XIX a XXIII resulta que:

  1. O acidente possui ser real, mas dependente;
  2. Ele se distingue formalmente da substância, não realmente;
  3. É modo ontológico verdadeiro, não simples aparência;
  4. Inere formalmente na substância, não como corpo em corpo, mas como ato em potência;
  5. ordem e hierarquia entre os acidentes, conforme sua proximidade com o ato.

Assim, o ser acidental não é ilusão, mas expressão derivada do ser substancial.
Tudo o que é, mesmo na ordem da mudança, participa de algum modo do ato puro,
e a própria contingência das formas é sinal da difusão do ser.

QUESTÃO VIGÉSIMA QUARTA

Se os acidentes podem existir sem a substância


1. A dúvida proposta

Depois de se estabelecer que o acidente é ente verdadeiro, embora dependente, pergunta-se agora se ele pode existir sem a substância, isto é, se pode conservar o seu ser próprio por virtude divina, sem o sujeito no qual ordinariamente inere.

O problema, à primeira vista, parece contraditório:
se o acidente é aquilo que existe in alio, como poderia existir sine alio?
Mas a teologia sacramental obriga a examinar essa possibilidade.


2. Argumentos de que os acidentes não podem existir sem a substância

Primeiro, parece que os acidentes não podem existir sem a substância.
Pois o acidente é definido como “aquilo que está em outro”;
ora, o que está em outro não pode subsistir sem esse outro.

Além disso, o ser do acidente é o ser da substância,
como o brilho é o ser da luz;
se a substância desaparece, o acidente perece com ela.

E ainda: admitir o contrário destruiria a definição aristotélica de acidente,
pois tornaria o que é dependente algo independente,
e, portanto, substância.


3. Argumentos de que os acidentes podem existir sem a substância

Por outro lado, parece que os acidentes podem existir sem a substância,
ao menos por virtude divina.

Pois Deus é causa imediata de todo ser;
ora, Ele pode conservar diretamente o ser de algo sem o concurso da causa segunda.
Logo, pode conservar o acidente sem a substância.

Além disso, na Eucaristia, após a consagração,
a substância do pão e do vinho é convertida no Corpo e Sangue de Cristo,
e, no entanto, as espécies — cor, sabor, peso — permanecem.
Ora, essas espécies são acidentes;
logo, existem sem a substância por poder divino.

E ainda: o ser acidental não é pura relação com a substância,
mas realidade dependente;
se Deus remove a dependência, pode conservar a realidade.


4. Distinção preliminar

Convém distinguir entre dependência essencial e dependência natural.

– A dependência essencial é aquela sem a qual a coisa deixa de ser o que é;
– A dependência natural é a que se funda em uma ordem ordinária de causas,
mas que pode ser suspensa por poder superior.

Ora, a dependência do acidente em relação à substância
é natural, não essencial;
pois o ser do acidente é criado e conservado por Deus,
não pela substância.

Logo, por poder divino, a dependência natural pode ser suspensa,
sem que a definição de acidente seja destruída,
porque o milagre não muda a essência, apenas a ordem natural.


5. A posição de Escoto

Digo, portanto, que os acidentes podem existir sem a substância,
por virtude divina,
ainda que não por natureza criada.

Por natureza, o acidente depende do sujeito para existir;
mas Deus, que é causa imediata de todo ser,
pode conservar no ser aquilo que ordinariamente exige um suporte.

Assim, quando a substância é removida por conversão sacramental,
os acidentes permanecem — não por subsistência própria,
mas por conservação sobrenatural do ser acidental.

Essa conservação não transforma o acidente em substância,
mas o mantém no ser sine subiecto,
isto é, sem o sujeito criado que antes o sustentava.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa possibilidade está na distinção entre o fundamento ontológico e a causa eficiente.
A substância é fundamento natural do ser acidental,
mas Deus é sua causa eficiente primeira.
Ora, o efeito pode ser conservado por sua causa primeira
mesmo quando o fundamento segundo é removido.

Assim, os acidentes não têm em si razão de subsistência,
mas têm ser próprio recebido;
e aquilo que é recebido pode ser mantido pelo doador sem o intermediário.

Logo, não há contradição intrínseca
em um acidente existir sem a substância,
desde que sustentado pela causa primeira.


7. Implicações teológicas

Daqui decorre a explicação metafísica da Presença Real:
na Eucaristia, os acidentes do pão e do vinho permanecem sem a substância,
não por natureza, mas por milagre.
A essência do pão desaparece,
mas Deus conserva as espécies acidentais
como sinais visíveis e verdadeiros da presença de Cristo.

Portanto, o milagre eucarístico não é mera aparência:
os acidentes existem realmente,
embora sem sujeito natural.

Essa doutrina preserva simultaneamente
a verdade da definição aristotélica de acidente
e a veracidade da fé católica na transubstanciação.


8. Resposta às objeções

À primeira objeção, de que o acidente é o que existe em outro, responde-se:
a definição continua válida quanto à natureza,
mas a ordem natural é suspensa por intervenção divina.

À segunda, de que o ser do acidente é o ser da substância, responde-se:
isso é verdadeiro por dependência, não por identidade;
o ser do acidente é participado,
e pode ser mantido pelo mesmo Deus que o concedeu.

À terceira, de que o acidente se tornaria substância, responde-se:
não se torna substância porque não recebe a capacidade de subsistir,
mas apenas o ato de permanecer no ser.
Ele continua acidente,
mas acidente sustentado por Deus sem o concurso da substância.


9. Síntese final

Conclui-se, portanto, que os acidentes podem existir sem a substância,
não por poder da natureza, mas por virtude divina,
que conserva no ser aquilo que ordinariamente depende de outro.

Essa possibilidade não destrói a ordem das causas,
mas a eleva:
Deus, que é o Ser absoluto,
pode comunicar e sustentar o ser sem intermediários.

Assim, os acidentes, embora naturalmente relativos,
podem subsistir sobrenaturalmente —
não como substâncias, mas como sinais reais do poder criador
e da presença divina que ultrapassa a natureza sem negá-la.

QUESTÃO VIGÉSIMA QUINTA

Se os acidentes permanecem numericamente os mesmos após a mudança substancial


1. Proposição do problema

Depois de se estabelecer que os acidentes podem existir sem a substância, pergunta-se agora se são numericamente os mesmos antes e depois da conversão substancial, ou se são apenas semelhantes ou novamente criados por virtude divina.

A dificuldade é grande, pois parece impossível que aquilo que é “no sujeito” permaneça o mesmo quando o sujeito desaparece.


2. Argumentos de que não permanecem os mesmos

Primeiro, parece que não permanecem numericamente os mesmos.
Pois toda identidade numérica requer o mesmo fundamento de ser;
ora, o ser do acidente é o ser da substância;
se a substância é removida, o fundamento desaparece.
Logo, o acidente que permanece não é o mesmo, mas outro, criado por Deus.

Além disso, o ser numérico é indivisível;
mas a conversão substancial destrói o termo anterior.
Logo, não há continuidade de identidade, mas substituição milagrosa.

E ainda: o acidente depende essencialmente da substância para existir;
se a substância é removida, o acidente não pode conservar a mesma individuação,
pois a individuação é formalmente do sujeito.


3. Argumentos de que permanecem os mesmos

Por outro lado, parece que os acidentes permanecem numericamente os mesmos.
Pois a Igreja ensina que as espécies do pão e do vinho permanecem após a consagração;
ora, permanecer implica identidade, não mera semelhança.

Além disso, a Escritura e a Tradição falam de uma conservação, não de uma nova criação;
e Deus, que é causa do ser, não multiplica os entes sem necessidade.

E ainda: o ser acidental é conservado por Deus no mesmo ato de existência,
de modo que não há novo ato criador,
mas continuidade de conservação sob novo modo.


4. A distinção escotista

Escoto distingue entre identidade formal, identidade numérica, e identidade de conservação.

Identidade formal é quando as mesmas determinações qualitativas permanecem,
ainda que o sujeito mude.

Identidade numérica é a permanência do mesmo ser individual sem interrupção do ato de existir.

Identidade de conservação é quando Deus mantém o mesmo efeito sem o mesmo fundamento,
por poder imediato e sobrenatural.

No caso eucarístico, a identidade é de conservação, não de natureza.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que os acidentes permanecem numericamente os mesmos,
não por força da substância,
mas por virtude conservadora de Deus.

Não são recriados,
pois não há necessidade de nova criação onde já existe ser atual;
nem são apenas semelhantes,
pois seria negar a continuidade do milagre eucarístico.

Deus conserva os mesmos acidentes
com o mesmo ato de ser que possuíam antes,
retirando apenas o fundamento substancial natural.

Assim, a conversão não implica destruição dos acidentes,
mas simples mudança do modo de sustentação:
do ser “em outro” passam a ser “por outro”,
isto é, por Deus diretamente.


6. Fundamento metafísico

O princípio de individuação dos acidentes não é a substância,
mas o próprio ato de ser recebido.
Ora, esse ato permanece conservado pelo poder divino.
Logo, a individuação dos acidentes permanece a mesma.

A mudança substancial afeta o sujeito,
mas não o termo da conservação divina,
que é o mesmo efeito mantido sem o mesmo suporte.

Assim, os acidentes são numericamente os mesmos,
porque o ato de ser é o mesmo,
ainda que a relação de dependência tenha mudado de natureza criada para divina.


7. Consequências teológicas

Dessa tese decorre a explicação precisa da permanência das espécies eucarísticas.
As espécies são os mesmos acidentes que antes pertenciam ao pão e ao vinho,
agora sustentados imediatamente por Deus.

Essa permanência garante a verdade dos sentidos,
a realidade do milagre
e a consistência ontológica da transubstanciação.

Não há multiplicação de seres,
mas conservação sobrenatural de um mesmo ser acidental,
como sinal visível da presença invisível.


8. Resposta às objeções

À objeção de que o acidente depende da substância, responde-se:
a dependência é natural, não absoluta;
Deus pode suspendê-la e conservar o mesmo ser sem o mesmo fundamento.

À objeção de que a individuação vem do sujeito, responde-se:
a individuação vem do ato de ser,
e esse ato permanece o mesmo enquanto Deus o sustenta.

À objeção de que haveria contradição entre ser “em outro” e ser “sem outro”, responde-se:
o acidente conserva a natureza de “ser em outro”,
mas sem o exercício desse modo;
é como um hábito que permanece sem operação.


9. Síntese final

Conclui-se, portanto, que os acidentes permanecem numericamente os mesmos
após a mudança substancial,
não por virtude natural, mas pela conservação divina,
sem nova criação nem simples semelhança.

Assim, o mesmo ato de ser acidental,
que antes era sustentado pela substância criada,
passa a ser sustentado imediatamente por Deus.

A identidade eucarística é, portanto, identidade real de conservação,
fundada no mesmo ser participado e mantido.

QUESTÃO VIGÉSIMA SEXTA

Se a relação entre o acidente e o sujeito é real ou apenas lógica


1. Proposição do problema

Depois de demonstrado que os acidentes são entes verdadeiros e que podem, por virtude divina, subsistir sem a substância, resta perguntar qual é a natureza da relação entre o acidente e o sujeito.
Trata-se de saber se essa relação é uma realidade metafísica que liga dois entes distintos, ou apenas um modo lógico de o intelecto conceber a dependência de um em outro.

A resposta determina o estatuto ontológico de toda relação de inerência — e, por consequência, a estrutura da própria realidade criada.


2. Argumentos de que a relação é apenas lógica

Primeiro, parece que a relação entre o acidente e o sujeito é apenas lógica, e não real.
Pois toda relação real exige dois entes realmente distintos;
ora, o acidente e a substância não têm existência separada, mas uma mesma unidade de ser, de modo que não há entre eles dois termos reais independentes.
Logo, a relação não é real, mas uma construção do intelecto.

Além disso, a relação é um modo de predicação, e os modos de predicação pertencem ao intelecto, não à coisa.
Logo, a relação de inerência é lógica, não ontológica.

E ainda: o acidente não “age” sobre a substância, nem a substância “age” sobre o acidente,
mas um é princípio de sustentação e o outro de determinação;
portanto, não há real vínculo causal, apenas dependência conceitual.


3. Argumentos de que a relação é real

Por outro lado, parece que a relação é real.
Pois a dependência é algo mais do que uma operação do intelecto:
é condição do ser do acidente, sem a qual ele não pode existir.

Além disso, a relação é proporcional à realidade dos termos que une;
ora, tanto a substância quanto o acidente são reais;
logo, também a relação entre eles deve sê-lo.

E ainda: se a relação fosse apenas lógica, a dependência ontológica do acidente seria ilusória,
e a distinção entre o que subsiste e o que é sustentado seria apenas verbal,
o que contradiz a experiência metafísica do ser finito.


4. Distinção escotista entre relação de razão e relação real

Escoto distingue três ordens de relação:

  1. Relação de razão pura (relatio rationis) — fundada apenas no intelecto, sem correspondência no ser;
  2. Relação real secundum quid — fundada em uma ordem de dependência, mas sem reciprocidade causal;
  3. Relação real simpliciter — fundada em causalidade mútua ou em oposição real dos termos.

A relação entre acidente e sujeito pertence ao segundo tipo:
é real quanto ao fundamento (porque o acidente realmente depende da substância),
mas não real quanto à reciprocidade (porque a substância não depende do acidente).

Logo, trata-se de uma relação real de dependência unilateral — um laço ontológico assimétrico.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a relação entre o acidente e o sujeito é real,
mas não recíproca.

O acidente é realmente ordenado ao sujeito,
porque sua essência inclui o ser “em outro”.
Essa ordenação não é mera operação do intelecto,
mas estrutura do próprio ser acidental.

A substância, porém, não está realmente ordenada ao acidente;
sua relação ao acidente é apenas de razão
porque a substância pode existir sem ele,
e não se altera em sua essência pela presença ou ausência dos acidentes.

Assim, há relação real do acidente para com a substância,
mas apenas relação lógica da substância para com o acidente.


6. Fundamento metafísico

O fundamento da relação real está no modo de ser dependente do acidente.
Todo ente cuja essência implica referência a outro
possui uma relação real de ordenação.

Ora, o acidente é tal que seu ser é “em outro”,
isto é, em dependência atual.
Essa dependência, sendo intrínseca ao ser do acidente,
é realidade formal, não mera construção mental.

Por isso, mesmo quando Deus conserva os acidentes sem o sujeito,
conserva neles essa ordenação essencial,
ainda que o termo da relação (a substância) tenha sido removido.

A relação subsiste como razão formal de dependência,
não exercida, mas real na natureza do acidente.


7. Consequências filosóficas

Dessa doutrina resulta que a estrutura da realidade criada
é tecida por relações reais de dependência unilateral.

Cada ente finito é “em outro”, “por outro” e “para outro”;
por isso, a relação não é mero artifício lógico,
mas a própria forma da finitude.

A substância é centro de sustentação dos acidentes,
assim como Deus é o centro de sustentação das substâncias.
Em ambos os casos, a relação de dependência é real em um dos termos,
e apenas conceitual no outro:
a criatura depende realmente de Deus,
mas Deus não depende realmente da criatura.

Assim, o modo de ser do acidente espelha o modo de ser da criação —
um “ser em relação” que, embora dependente, é real.


8. Síntese final

Conclui-se que a relação entre o acidente e o sujeito é real,
formalmente intrínseca ao acidente,
assimétrica quanto à reciprocidade,
e expressiva da estrutura do ser finito.

Ela é real, porque funda-se na essência mesma do acidente;
é unilateral, porque só o acidente depende do sujeito;
é metafísica, porque expressa o modo de ser da criatura.

Assim, a relação entre acidente e sujeito é o espelho mais puro da criação:
o ser que, não sendo por si, é sustentado no ser —
um vínculo de dependência ontológica que manifesta, na ordem criada,
a analogia da dependência universal do ser finito em relação ao Infinito.

QUESTÃO VIGÉSIMA SÉTIMA

Se a relação enquanto categoria é um ente real ou de razão


1. A dúvida proposta

Depois de tratar da relação entre o acidente e o sujeito, pergunta-se agora se a relação em si — enquanto categoria — é algo real nas coisas ou apenas uma construção do intelecto, dependente de como concebemos os entes correlatos.

A questão é decisiva para a metafísica e a lógica, pois determina se as relações pertencem à estrutura ontológica do real ou apenas à estrutura intencional do pensamento.


2. Argumentos de que a relação é de razão apenas

Primeiro, parece que a relação é somente de razão.
Pois toda relação exige dois termos correlatos.
Ora, esses dois termos, considerados em si, já são completos na sua essência;
logo, a relação nada acrescenta à realidade deles, mas apenas ao modo de concebê-los juntos.

Além disso, uma relação pode ser destruída sem que os sujeitos se alterem:
Socrates e Platão permanecem os mesmos, ainda que cessem de ser “amigos”;
logo, a relação não é algo real, mas um conceito do intelecto.

E ainda: as relações multiplicam-se infinitamente segundo as comparações que o intelecto pode fazer;
ora, o infinito não pode existir realmente nas coisas criadas;
logo, as relações são apenas entes de razão.


3. Argumentos de que a relação é real

Por outro lado, parece que a relação é real.
Pois, segundo Aristóteles, “relativo é aquilo cuja essência consiste em referir-se a outro”.
Ora, o que pertence à essência é real, não fictício.
Logo, a relação, sendo essencial a muitos entes, deve ser real.

Além disso, a relação de causa e efeito é fundamento de toda causalidade;
ora, a causalidade é real, não apenas pensada.
Logo, a relação que une causa e efeito é real.

E ainda: a relação é princípio de distinção e de ordem no universo.
Se fosse apenas conceitual, a ordem das coisas seria ilusão do intelecto.


4. A distinção escotista

Para resolver a questão, Escoto distingue três níveis de relação:

  1. Relação puramente lógica (relatio rationis) — surge da comparação mental de conceitos, sem fundamento ontológico;
  2. Relação real de razão fundada (fundamentum in re) — tem fundamento nas coisas, embora dependa da operação do intelecto para ser explicitada;
  3. Relação real propriamente dita (relatio realis) — é intrínseca à natureza das coisas e coexistente com elas.

Segundo Escoto, nem todas as relações são reais no mesmo grau:
algumas são apenas de razão, outras são formalmente reais.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a relação enquanto categoria é real,
mas em duplo sentido:
real quanto ao fundamento nas coisas,
e formalmente distinta quanto ao modo de concepção.

Toda relação que se funda numa verdadeira ordem ontológica —
como a de causa e efeito, de substância e acidente, de potência e ato —
é real em sentido próprio.

Já as relações que dependem apenas da comparação mental —
como “igualdade” entre medidas, “semelhança” entre cores,
ou “diferença” entre entes incomunicáveis —
são de razão, ainda que tenham fundamento real.

Assim, a relação é misto de real e de intencional:
real quanto ao fundamento, intencional quanto ao exercício.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa posição está na doutrina da distinção formal ex natura rei.
A relação não é uma coisa separada das substâncias correlatas,
mas uma formalidade distinta nelas —
uma maneira intrínseca de serem o que são em referência a outro.

Por isso, dizer que algo é relativo não é atribuir-lhe uma nova essência,
mas reconhecer que sua essência inclui ordem a outro ser.
Essa ordem é real, ainda que sua enunciação dependa do intelecto.

Assim, a relação não é mera ficção,
mas um modo formal de ser
real na coisa, embora conhecido por via de comparação.


7. Consequências filosóficas

Daqui se segue que a relação é o princípio da ordem universal.
Nenhum ser criado é absolutamente isolado;
tudo é relativo em algum grau, porque tudo participa do ser,
e o ser, enquanto uno, é comunicável e ordenável.

As relações reais fundam a estrutura do cosmos,
as relações de razão fundam a estrutura da ciência.
Uma é ontológica, outra é epistêmica;
mas ambas derivam do mesmo princípio —
a participação do ser no ser.

Assim, o mundo é tecido de relações reais,
e o intelecto as reflete segundo o seu modo próprio.


8. Resposta às objeções

À objeção de que a relação é apenas conceitual, responde-se:
é verdade quanto às relações que não têm fundamento real,
como “maior” ou “menor” em termos comparativos,
mas falso quanto às que derivam de dependência causal.

À objeção de que as relações multiplicam-se infinitamente, responde-se:
a multiplicação é no intelecto, não nas coisas;
as relações reais são limitadas aos vínculos ontológicos efetivos.

À objeção de que os sujeitos não se alteram quando a relação cessa, responde-se:
a cessação não suprime o sujeito, mas a ordenação real que existia entre eles.
A relação é real enquanto vínculo atual;
quando esse vínculo desaparece, a realidade correlativa se extingue,
sem que se altere a essência do sujeito.


9. Síntese final

Conclui-se, portanto, que a relação enquanto categoria é ente real,
mas de modo relativo e fundado.
Ela não é substância, mas também não é pura ficção;
é modo de ser em referência,
que exprime no plano ontológico a dependência e a ordem dos entes.

Toda relação tem fundamento real nas coisas correlatas,
ainda que sua explicitação dependa do intelecto.
Assim, o ser relacional é o elo entre a metafísica e a lógica,
entre o real e o pensado,
entre o Uno e o múltiplo.

QUESTÃO VIGÉSIMA OITAVA

Se a anterioridade e a simultaneidade são realidades nas coisas ou apenas modos de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se as noções de anterior e posterior, bem como as de simultâneo, correspondem a algo real nas coisas, ou se são apenas construções mentais que o intelecto forma ao comparar entes entre si.
A questão toca o núcleo da metafísica aristotélica: se o tempo e a ordem são dimensões da realidade ou operações do pensamento.


2. Argumentos de que são apenas de razão

Primeiro, parece que o anterior e o simultâneo são de razão apenas.
Pois onde não há mudança, não há tempo, e sem tempo não há anterior nem posterior.
Ora, o tempo é medido pelo movimento, e o movimento só é percebido pelo intelecto que o compara.
Logo, a anterioridade é apenas modo de conceber, não realidade nas coisas.

Além disso, a simultaneidade pressupõe a noção de “agora”, que é ponto indivisível.
Mas o “agora” é conceito do intelecto, não coisa existente.
Logo, o simultâneo não é real, mas dependente da mente.


3. Argumentos de que são realidades ontológicas

Por outro lado, parece que o anterior e o simultâneo são realidades reais.
Pois a natureza das coisas está ordenada, e onde há ordem há anterioridade e posterioridade.

Além disso, o tempo não cria o antes e o depois, mas mede o que já é ordenado.
Logo, a anterioridade pertence às próprias coisas em sua constituição.

E ainda: em toda causalidade há uma ordem real de princípio e consequência,
na qual o anterior é causa e o posterior, efeito.
Essa relação não é mental, mas real.


4. A distinção escotista

Escoto distingue entre três ordens de anterioridade:

  1. Segundo o tempo, quando um ser começa a existir antes de outro.
  2. Segundo a natureza, quando um ser é causa ou condição do outro.
  3. Segundo a razão, quando a mente concebe um antes e um depois entre conceitos simultâneos.

Dessas, somente a terceira é puramente de razão;
as duas primeiras são reais.

Assim, a anterioridade temporal e natural é real,
mas a anterioridade lógica é de razão.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a anterioridade e a simultaneidade têm fundamento real nas coisas,
ainda que sua distinção formal dependa da operação do intelecto.

O antes e o depois existem na realidade como ordem de dependência,
pois aquilo que causa é realmente anterior ao causado.

A simultaneidade, por sua vez, é real quando há mutua implicação de existência,
como entre espécies de um mesmo gênero que coexistem sem se causarem.

A distinção mental apenas explicita uma ordem que já está na realidade.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é que o ser criado é ordenado.
Toda criatura existe em relação a outra —
umas como causas, outras como efeitos, outras como coexistentes.

Assim, a ordem do ser é anterior à ordem do pensamento.
A mente apenas reflete o que já é real,
como um espelho que apreende o encadeamento das coisas.

A simultaneidade, por isso, não é ficção,
mas reflexo da coexistência real de substâncias e acidentes
em um mesmo instante do ser.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se, portanto, que a anterioridade e a simultaneidade são realidades fundadas nas coisas,
não meras abstrações da mente.

A anterioridade temporal exprime a sucessão real dos entes móveis;
a anterioridade natural, a dependência causal;
e a simultaneidade, a coexistência ontológica sem dependência.

O intelecto concebe essas ordens, mas não as cria:
apenas lhes dá nome e distinção.

Assim, o antes e o depois são modos reais do ser,
e o simultâneo é sua harmonia no tempo e na eternidade.

QUESTÃO VIGÉSIMA NONA

Se a definição de movimento de Aristóteles é suficiente


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a definição de Aristóteles — “movimento é o ato do ente em potência, enquanto em potência” — é suficiente para explicar a natureza do movimento.
Alguns sustentam que não, pois parece contraditório dizer que o ato é do que ainda não é ato.
Outros defendem que sim, desde que se entenda que o ato é imperfeito e incompleto.


2. Argumentos de que a definição é insuficiente

Primeiro, parece que a definição é insuficiente,
pois o ato é perfeição e a potência é imperfeição.
Mas o movimento é passagem da imperfeição à perfeição,
não perfeição de uma imperfeição.
Logo, o ato não pode definir o movimento.

Além disso, o ato é algo permanente,
mas o movimento é transitório e contínuo;
portanto, o ato não pode exprimir a essência do movimento.

E ainda: a definição parece confundir o ato com o termo do movimento.
Pois se o ato é da potência enquanto potência, o movimento seria o mesmo que o princípio de operação, não o processo.


3. Argumentos de que a definição é suficiente

Por outro lado, a definição é suficiente.
Pois o movimento é ato, mas ato incompleto.
Não é o ato pleno da forma, mas o ato da potência em via de atualização.

Além disso, Aristóteles não diz “ato de potência”, mas “ato do ente em potência enquanto tal”,
isto é, ato que convém a algo que ainda é potência.
Logo, exprime o meio-termo entre o ser em potência e o ser em ato.

E ainda: todo movimento é realidade atual — o que muda, muda realmente —,
mas é também inacabado — o que muda ainda não terminou de mudar.
A definição capta justamente esse duplo aspecto.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três modos de ato:

  1. Ato em sentido pleno — perfeição da forma subsistente (como a alma no corpo);
  2. Ato incompleto — realização parcial da potência (como o aquecer em processo);
  3. Ato metafórico — aquilo que apenas tende ao ato sem possuí-lo ainda.

O movimento pertence ao segundo modo:
é ato real, mas incompleto,
porque a potência está em processo de ser atualizada.

Assim, a definição aristotélica é verdadeira se se entende “ato” não como perfeição final, mas como atualização progressiva.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a definição de Aristóteles é suficiente,
desde que se entenda que o ato do ente em potência é ato em via de atualização.

O movimento é realização transitiva da potência,
um ser entre o não-ser e o ser,
um “ato móvel” que possui o ser imperfeito enquanto caminha para o perfeito.

Assim, o movimento é simultaneamente ato e potência
ato quanto ao presente, potência quanto ao futuro.

Essa duplicidade é a razão pela qual o movimento é o mais perfeito dos inacabados
e o mais imperfeito dos perfeitos.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é que o ser não se divide apenas em ato e potência,
mas em graus de atualização.
O movimento é o elo entre os extremos —
a linha de passagem que une o poder e a realização.

Deus é ato puro; a matéria é potência pura;
o movimento é a ponte ontológica entre ambos.

Sem movimento, não haveria processo de ser;
sem processo, não haveria tempo;
e sem tempo, não haveria mundo.


7. Síntese final

Conclui-se que a definição de Aristóteles é suficiente,
porque exprime a essência do movimento como ato real da potência enquanto potência,
isto é, como realidade em trânsito.

O movimento é ato imperfeito
não a forma consumada, mas a atualização em progresso.

Por isso, o movimento é ser,
mas ser incompleto;
ato, mas ato em devir;
potência, mas potência atualizada.

QUESTÃO TRIGÉSIMA

Se o tempo é número do movimento segundo o anterior e o posterior


1. A dúvida proposta

Depois de ter sido definido o movimento, pergunta-se agora se o tempo é realmente número do movimento segundo o anterior e o posterior, conforme Aristóteles define na Física, ou se essa definição é apenas metafórica, pois o tempo parece ser algo diverso tanto do número quanto do movimento.

A questão é central para a metafísica do devir, pois envolve a relação entre o ser, o movimento e a duração.


2. Argumentos de que o tempo não é número do movimento

Primeiro, parece que o tempo não é número do movimento.
Pois o número é coisa estável e determinada, enquanto o movimento é contínuo e indeterminado.
Logo, o tempo, sendo inseparável do movimento, não pode ser número, que implica fixidez.

Além disso, o número é abstraído pelo intelecto, mas o tempo é percebido pelos sentidos;
logo, não é número formal, mas algo real.

E ainda: o número mede a quantidade discreta;
o movimento é contínuo;
logo, o tempo, que mede o movimento, deve ser contínuo, não numérico.


3. Argumentos de que o tempo é número do movimento

Por outro lado, parece que o tempo é realmente número do movimento segundo o anterior e o posterior.
Pois o tempo mede o movimento pela sucessão;
e toda medição supõe número.
Logo, o tempo é número, enquanto mede.

Além disso, o antes e o depois só são conhecidos na contagem dos instantes;
ora, contar é numerar;
logo, o tempo é número.

E ainda: o tempo não é o próprio movimento, mas a medida dele;
e toda medida é número de alguma coisa mensurável.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três aspectos no tempo:

  1. O fundamento real, que é o próprio movimento contínuo;
  2. O aspecto formal de medida, que é o número;
  3. O modo de apreensão, que é intelectual e comparativo.

Dessa forma, o tempo é número quanto à formalidade de medição,
mas é movimento quanto ao fundamento ontológico.

Não é puro número — porque tem ser real;
nem puro movimento — porque mede o movimento.

É, portanto, um meio entre o real e o racional,
um número enquanto medindo e um movimento enquanto fluindo.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que o tempo é número do movimento segundo o anterior e o posterior,
não por identidade absoluta, mas por proporção formal.

O tempo não é o número em si, mas aquilo que se comporta como número,
isto é, o movimento enquanto ordenado e mensurável.

A alma, ao perceber o antes e o depois no movimento,
constitui o tempo como medida sucessiva.
Assim, o tempo é real quanto ao fundamento,
mas relativo ao intelecto quanto à numeração.

Deus, que é ato puro e eterno, não está no tempo,
porque em seu ser não há sucessão;
mas as criaturas, sendo móveis, participam do tempo como condição de seu vir-a-ser.


6. Fundamento metafísico

O tempo é o ato do movimento enquanto mensurável.
Todo movimento é contínuo e ordenado;
essa ordenação, quando percebida, constitui o tempo.

O instante (nunc) é o limite do tempo, não sua parte.
Ele une o anterior e o posterior como o ponto une as partes da linha.

Assim, o tempo é o movimento enquanto divisível por instantes,
e o número é o modo de apreender essa divisibilidade.

O intelecto não cria o tempo, mas o reconhece ao numerar o movimento.


7. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o tempo é número do movimento segundo o anterior e o posterior,
mas não número absoluto, e sim número vivente,
isto é, sucessão mensurada pelo intelecto que acompanha o movimento real.

O tempo é, portanto,
– real quanto ao fundamento,
– racional quanto ao modo,
– e relacional quanto à essência.

É o ritmo do ser em trânsito,
a medida da potência em ato,
o espelho da finitude em seu devir.

QUESTÃO TRIGÉSIMA PRIMEIRA

Se o tempo é infinito em ato ou apenas em potência


1. Proposição da questão

Depois de ter definido o tempo como número do movimento, pergunta-se se esse número é infinito em ato — isto é, se há um tempo real e infinito já existente — ou apenas infinito em potência, enquanto pode ser sempre aumentado.
A questão toca a fronteira entre a física e a metafísica: o que é a infinitude quando aplicada ao devir?


2. Argumentos de que o tempo é infinito em ato

Primeiro, parece que o tempo é infinito em ato.
Pois não há primeiro instante antes do qual não haja outro, nem último instante depois do qual não haja outro;
logo, há infinitude atual de momentos.

Além disso, o movimento do céu é eterno e sem interrupção;
ora, o tempo é número do movimento celeste;
logo, se o movimento é eterno, o tempo também o é — e, portanto, infinito em ato.

E ainda: todo instante é atual; mas se há infinitos instantes atuais, o tempo é infinito em ato.


3. Argumentos de que o tempo é infinito apenas em potência

Por outro lado, parece que o tempo é infinito apenas em potência.
Pois o infinito atual é impossível em toda ordem de seres finitos.
Mas o tempo pertence ao mundo finito, que é criação.
Logo, sua infinitude é apenas potencial.

Além disso, o tempo existe sucessivamente, não simultaneamente;
o que existe sucessivamente não é todo de uma vez;
logo, não é infinito em ato, mas apenas em potência de acréscimo.

E ainda: o tempo passado não existe, o futuro ainda não existe, e o presente não dura;
logo, não há infinitude atual, mas apenas possibilidade indefinida de sucessão.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois sentidos de infinito:

  1. Infinito de extensão, que existe todo de uma vez (como se fosse um todo atual);
  2. Infinito de adição, que nunca se completa, mas sempre pode aumentar.

O primeiro pertence somente a Deus,
o segundo pertence ao tempo e ao movimento.

Assim, o tempo é infinito em potência,
porque sempre pode ser aumentado, mas nunca é todo simultaneamente.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que o tempo é infinito apenas em potência,
pois o infinito atual é incompatível com o modo de ser do sucessivo.

Nenhum instante contém outro; cada instante se dissolve ao nascer;
logo, o tempo é fluxo contínuo que nunca está todo de uma vez.

Porém, é potencialmente infinito,
porque nada impede que sempre haja um novo instante,
e assim o tempo não pode ter fim enquanto houver movimento.

O tempo é, portanto, indefinido, mas não infinito
não todo, mas sempre todo-em-vir-a-ser.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é a distinção entre o infinito per se e o infinito per accidens.
O infinito per se é plenitude do ser (Deus);
o infinito per accidens é progressão sem termo (o tempo).

O tempo participa da infinitude apenas por via de sucessão:
é imagem móvel da eternidade,
onde o ser não é simultâneo, mas passageiro.

Assim, o tempo é espelho quebrado da eternidade:
cada fragmento é atual, mas o todo é apenas possível.


7. Síntese final

Conclui-se, portanto, que o tempo é infinito em potência, não em ato.
Em cada instante, ele é finito;
em sua continuidade, é indefinidamente extensível.

Deus é o infinito atual;
o tempo é a sombra móvel desse infinito,
o vestígio da eternidade no devir.

Assim, o tempo é a perpetuidade do inacabado —
sempre nascendo, jamais completo,
perseguindo o ato sem jamais possuí-lo.

QUESTÃO TRIGÉSIMA SEGUNDA

Se o todo é anterior à parte, e de que modo o ser se divide


1. Proposição da questão

Pergunta-se se o todo é anterior à parte, e em que sentido pode dizer-se que o ser é divisível em partes sem deixar de ser uno.
A questão surge ao considerar que tudo o que é composto pode ser decomposto; logo, o ser parece múltiplo em sua própria unidade.


2. Argumentos de que o todo é anterior à parte

Primeiro, parece que o todo é anterior à parte.
Pois a parte, enquanto parte, não existe senão no todo.
A mão, separada do corpo, não é mão senão equivocamente;
logo, o todo é causa formal e final da parte.

Além disso, o conhecimento das partes depende do todo:
somente compreendemos a natureza de um membro quando o referimos ao corpo a que pertence.
Portanto, o todo é anterior segundo a razão e segundo a natureza.


3. Argumentos de que a parte é anterior ao todo

Por outro lado, parece que a parte é anterior.
Pois o todo é constituído pelas partes, e não o contrário.
Sem partes, não há todo; logo, o ser das partes é condição do ser do todo.

Além disso, a parte pode subsistir virtualmente, ainda que o todo se desfaça.
Assim, a parte é potencialmente anterior, enquanto princípio constitutivo.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três modos de anterioridade entre todo e parte:

  1. Segundo a natureza formal, o todo é anterior, pois dá razão de unidade às partes;
  2. Segundo a natureza material, as partes são anteriores, pois constituem o todo;
  3. Segundo a razão lógica, nenhum é absolutamente anterior, pois a noção de parte implica o todo, e a de todo implica a parte.

Assim, o todo é anterior quanto à forma, e posterior quanto à matéria.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que o todo é anterior à parte segundo a forma,
mas posterior segundo a composição.

No ser simples (como na substância primeira), o todo e a parte são apenas distinções de razão;
no ser composto (como no corpo), há anterioridade real das partes materiais,
mas anterioridade formal do todo enquanto unidade significada.

Assim, o ser, em sua integridade, é simultaneamente uno e dividido
uno quanto à essência, múltiplo quanto à composição.

A divisão não destrói a unidade, mas a manifesta sob diversos aspectos.


6. Fundamento metafísico

O fundamento é que toda unidade finita é composta,
seja de ato e potência, de essência e existência, ou de matéria e forma.

Portanto, o todo e a parte são relações reais,
não meras construções mentais.

A mente apreende o todo como síntese de perfeições,
e a parte como limite dessa síntese.

A relação entre ambos é de dependência recíproca:
a parte sem o todo é imperfeita;
o todo sem a parte é incompleto.

Somente em Deus, ato puro e simplicidade absoluta,
não há distinção entre todo e parte,
pois nele o ser é unidade sem composição.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se, portanto, que o todo é anterior à parte segundo a forma,
posterior segundo a matéria,
e simultâneo segundo a razão.

O ser é divisível em potência, mas uno em ato;
é composto em suas manifestações, mas simples em sua essência.

Assim, o todo e a parte são como luz e raio:
um mesmo ser, diverso apenas no modo de participação.

QUESTÃO TRIGÉSIMA TERCEIRA

Se a unidade é algo real nas coisas ou apenas de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a unidade, enquanto categoria ou atributo do ser, é algo realmente existente nas coisas ou apenas de razão, ou seja, uma operação do intelecto que concebe a diversidade sob um conceito comum.

A dificuldade nasce do fato de que o ser é uno por si mesmo, mas o intelecto é quem o concebe como “uno”. Assim, deve-se indagar se o “uno” é um aspecto do ser ou um modo de concebê-lo.


2. Argumentos de que a unidade é apenas de razão

Primeiro, parece que a unidade é de razão apenas.
Pois a unidade não acrescenta nada ao ser, mas apenas o nega como múltiplo;
ora, a negação é operação do intelecto, não realidade nas coisas.
Logo, o uno é concepção mental, não coisa real.

Além disso, tudo o que é uno é também ser;
ora, o ser é dito univocamente de tudo o que é;
logo, a unidade não é algo além do ser, mas apenas modo de concebê-lo.

E ainda: o intelecto pode dividir e reunir os entes sem mudar a realidade;
logo, a unidade está na mente, não nas coisas.


3. Argumentos de que a unidade é real

Por outro lado, parece que a unidade é real.
Pois aquilo que é fundamento da individuação é real;
ora, a unidade é fundamento da individuação;
logo, é real.

Além disso, o ser e o uno são convertíveis;
logo, o uno é tão real quanto o ser.

E ainda: toda pluralidade é composta de unidades;
mas a pluralidade é real;
logo, também a unidade deve sê-lo.


4. A distinção escotista

Escoto distingue entre unidade transcendental e unidade numérica.

– A unidade transcendental é a inseparabilidade do ser consigo mesmo — aquilo pelo qual o ente é indiviso em si e distinto de outro;
– A unidade numérica é a medida da distinção entre os indivíduos de uma mesma espécie.

A primeira é real formalmente e coextensiva ao ser;
a segunda é acidental, dependente da matéria e da individuação.

Assim, a unidade é real quanto ao ser transcendental,
e de razão quanto ao número e comparação.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a unidade é real,
mas não acrescenta realidade ao ser — é antes sua inseparabilidade formal.

O ser é uno não por adição, mas por exclusão da divisão.
A unidade não é qualidade, mas caráter negativo-formal do ser,
pelo qual ele é indiviso em si mesmo.

Por isso, a unidade não é um novo ente,
mas a formalidade pela qual todo ente é idêntico a si mesmo.

Quando o intelecto concebe o “uno”, não cria nada,
mas reconhece no ser o que já está ali como sua própria coesão.


6. Fundamento metafísico

O fundamento da unidade é o próprio ser enquanto indiviso.
O ser e o uno são convertíveis porque ambos exprimem a mesma realidade sob razão diversa:
o ser quanto à atualidade,
o uno quanto à indivisão.

Assim, a unidade é propriedade transcendental do ser,
não um acidente nem mera abstração.

Toda diversidade nasce da limitação do ser;
toda unidade procede da plenitude.
Deus é unidade absoluta porque é ato puro sem divisão.


7. Síntese final

Conclui-se que a unidade é real formalmente,
convertível com o ser e inseparável dele,
ainda que o intelecto a distinga como razão própria.

Há, portanto, dois modos de unidade:

  1. A unidade transcendental, que é real e inerente a todo ente;
  2. A unidade numérica, que é modo de razão fundado na individuação material.

A primeira pertence ao ser enquanto tal;
a segunda, à multiplicidade dos entes finitos.

Assim, a unidade é o selo do ser —
a permanência do mesmo em si,
a forma invisível pela qual o real é indiviso e distinto.

QUESTÃO TRIGÉSIMA QUARTA

Se a pluralidade deriva da unidade ou apenas de uma divisão de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a pluralidade é algo real, derivado da unidade, ou se é apenas uma operação da mente, que divide conceitualmente o que é uno na realidade.
A dificuldade provém do fato de que toda pluralidade parece pressupor a unidade:
se algo é “muitos”, é porque cada um dos muitos é “um”.
Logo, a pluralidade depende da unidade, mas deve-se indagar se o faz realmente ou apenas por abstração mental.


2. Argumentos de que a pluralidade é de razão apenas

Primeiro, parece que a pluralidade é de razão apenas.
Pois, segundo Aristóteles, “o ser é dito de modo uno e multívoco”.
Ora, o uno pertence à essência do ser, mas o múltiplo pertence à relação entre entes.
Logo, a pluralidade não é real, mas relacional e mental.

Além disso, toda pluralidade é resultado de comparação.
Comparar é ato do intelecto; logo, a pluralidade nasce do intelecto, não das coisas.

E ainda: a unidade é indivisão; a pluralidade é divisão;
mas a divisão é ato da mente, não da natureza;
logo, a pluralidade é de razão.


3. Argumentos de que a pluralidade é real

Por outro lado, parece que a pluralidade é real.
Pois o mundo não seria múltiplo se o múltiplo não tivesse ser real.
As coisas não são diversas apenas em pensamento, mas em natureza.

Além disso, a pluralidade é fundamento da distinção entre os entes;
ora, a distinção é real — pois uma pedra não é um homem, nem o homem é um anjo.
Logo, a pluralidade é real.

E ainda: a pluralidade procede da unidade por diversificação formal,
assim como a luz se difunde em muitos raios sem deixar de ser luz.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois modos de pluralidade:

  1. Pluralidade transcendental, fundada na diferença real dos entes;
  2. Pluralidade lógica, fundada na operação do intelecto que multiplica conceitos.

A primeira é real, pois nasce da diversidade de formas e essências;
a segunda é de razão, pois é apenas modo de compreender essa diversidade.

Assim, a pluralidade não é mera ficção, mas tem fundamento real,
ainda que sua explicitação dependa da mente.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a pluralidade deriva realmente da unidade,
não por oposição absoluta, mas por distinção formal.

A unidade é raiz do ser;
a pluralidade é seu modo de difusão e comunicação.

Todo ente é uno em si, múltiplo em sua comunicabilidade.
Deus é unidade pura e fonte de toda pluralidade;
as criaturas são pluralidade derivada da unidade primeira.

A pluralidade, portanto, é real quanto ao fundamento,
e de razão quanto à apreensão.


6. Fundamento metafísico

O fundamento está na doutrina da univocidade do ser:
o ser é dito de muitos de modo uno e não equívoco.

Portanto, o ser é uno em conceito, mas múltiplo em sujeitos.
A pluralidade surge como consequência necessária da participação do ser em múltiplos entes.

O intelecto não cria a pluralidade; ele a reconhece ao distinguir formalidades reais no ser.
Essas formalidades são múltiplas não por oposição, mas por distinção de perfeições.

Assim, a pluralidade é o modo de expansão da unidade,
o reflexo da abundância do ser nas criaturas.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a pluralidade deriva realmente da unidade,
enquanto a unidade é princípio e a pluralidade, efeito.

Mas a pluralidade não é contrária à unidade:
é seu desdobramento e expressão.

No plano lógico, a mente multiplica conceitos;
no plano real, Deus multiplica os entes.

Assim, a pluralidade é real pela criação,
formal pela distinção,
e mental pela apreensão.

A unidade é o ser enquanto indiviso;
a pluralidade é o ser enquanto difuso.

O uno é raiz; o múltiplo, fruto.
O primeiro pertence à eternidade; o segundo, ao tempo.

QUESTÃO TRIGÉSIMA QUINTA

Se a diferença é algo real nas coisas ou apenas de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a diferença, pela qual um ente é distinguido de outro dentro do mesmo gênero, é algo real nas coisas ou de razão apenas.
Pois, se a diferença fosse apenas de razão, não haveria diversidade essencial;
se fosse real, dever-se-ia explicar como pode existir pluralidade formal dentro de uma mesma essência.


2. Argumentos de que a diferença é apenas de razão

Primeiro, parece que a diferença é de razão apenas.
Pois o gênero é comum e indiferente; a diferença é o modo como o intelecto delimita esse comum.
Logo, a diferença é operação mental, não realidade distinta.

Além disso, se a diferença fosse real, deveria ser um ente diverso do gênero,
e então o composto seria duplo — o que levaria à multiplicação infinita de entidades formais.

E ainda: toda diferença é tomada em relação ao intelecto que concebe distinções;
ora, essa relação é intencional, não ontológica;
logo, a diferença é de razão.


3. Argumentos de que a diferença é real

Por outro lado, parece que a diferença é real.
Pois, se não houvesse diferença real entre homem e cavalo,
ambos seriam o mesmo em essência, o que é absurdo.

Além disso, o gênero não existe sem a diferença,
assim como a matéria não existe sem a forma.
Ora, a forma é real; logo, a diferença, que corresponde à forma, também o é.

E ainda: a diferença é princípio de distinção entre espécies reais;
ora, as espécies são realidades distintas;
logo, a diferença é real.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três níveis de diferença:

  1. Diferença lógica, que é a distinção puramente mental entre conceitos;
  2. Diferença formal, que é distinção real ex natura rei, mas sem separação existencial;
  3. Diferença essencial, que é distinção completa entre naturezas diversas.

A diferença específica, que distingue homem de animal,
é formal, não meramente lógica nem essencial.
Ela existe nas coisas como realidade distinta formalmente, ainda que inseparável.

Assim, a diferença é real formalmente, e de razão apenas quanto à apreensão.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a diferença é algo real formalmente,
pois sem ela não há multiplicidade de espécies.

A diferença específica é fundamento real de distinção,
embora não exista separada, mas unida ao gênero numa única essência.

O intelecto abstrai o gênero e a diferença,
mas não os inventa — apenas os distingue conforme a estrutura real da coisa.

Assim, a diferença é real na essência,
distinta formalmente e concebida racionalmente.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina está na teoria da distinção formal ex natura rei.
Entre o gênero e a diferença há distinção real formal, não total;
isto é, são formalidades distintas dentro do mesmo ser.

A essência composta — como “animal racional” — contém duas formalidades inseparáveis:
a animalidade (comunidade de vida sensitiva) e a racionalidade (intelecto e vontade).

Ambas são reais, mas unidas sem divisão;
distintas quanto à formalidade, idênticas quanto ao ser.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a diferença é real formalmente, mas concebida pela razão.
O gênero e a diferença não são dois entes, mas dois aspectos do mesmo ente.

A diferença é, portanto, forma da forma,
princípio de individuação formal e fundamento da diversidade das espécies.

Assim, a distinção entre homem e cavalo, entre espírito e corpo,
não é pura abstração, mas diferença formal inscrita na natureza das coisas.

O intelecto apenas a reconhece,
pois a realidade é composta de formalidades distintas, não de entes separados.

QUESTÃO TRIGÉSIMA SEXTA

Se a identidade é algo real nas coisas ou apenas de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a identidade, pela qual uma coisa é dita a mesma que si mesma ou outra distinta, é real nas coisas ou somente de razão.
Pois dizer que “A é A” parece uma tautologia intelectual; contudo, a permanência do ser requer uma forma real de identidade.


2. Argumentos de que a identidade é de razão apenas

Primeiro, parece que a identidade é de razão apenas,
pois consiste na comparação de algo consigo mesmo,
e comparação é ato do intelecto, não da natureza.

Além disso, toda proposição idêntica é produto do pensamento;
logo, a identidade é modo lógico de apreensão, não coisa real.

E ainda: nada pode ser realmente idêntico a si,
porque não há duas realidades nas quais possa haver identidade;
assim, a identidade não é coisa, mas simples negação de diferença.


3. Argumentos de que a identidade é real

Por outro lado, parece que a identidade é real,
pois sem identidade não haveria permanência do ente.
Se a identidade fosse apenas de razão,
uma substância não poderia permanecer a mesma através do tempo.

Além disso, a identidade é fundamento da verdade e da causalidade:
o que age permanece o mesmo enquanto age;
o que muda totalmente deixa de ser causa.
Logo, a identidade é princípio real de continuidade.


4. A distinção escotista

Escoto distingue duas espécies de identidade:

  1. Identidade numérica, que é indivisão total e pertence ao ente singular;
  2. Identidade formal, que é unidade de forma em diversos sujeitos (por exemplo, a humanidade em vários homens).

A primeira é real e absoluta;
a segunda é formal, fundada em distinções reais, mas não separáveis.

Assim, há identidade real em ato (na substância singular)
e identidade formal de razão (na natureza comum).


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a identidade é real quanto ao fundamento,
ainda que concebida pela razão.

Pois o ser é idêntico a si mesmo não porque o intelecto o compare,
mas porque é indiviso e constante em seu ato de ser.

A identidade é o selo interno do ser —
sua continuidade na existência e sua invariância na essência.

O intelecto reconhece essa unidade sob forma de juízo,
mas não a cria; apenas exprime a unidade real do ente consigo mesmo.


6. Fundamento metafísico

O fundamento da identidade é a indivisão do ser em si.
Tudo o que é, é uno e idêntico a si enquanto permanece no mesmo ato.

A diversidade surge da limitação e da mudança;
a identidade, da plenitude e da constância do ser.

Assim, há identidade real na substância,
formal na espécie,
e lógica no conceito.

A identidade divina é perfeita —
Deus é o mesmo Ser em ato puro,
imutável e idêntico eternamente a Si mesmo.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a identidade é real no ser e formal no intelecto.
Ela não é mero artifício da razão, mas fundamento ontológico do ente.

O ser é idêntico a si mesmo enquanto indiviso,
e o intelecto apenas traduz essa indivisão em forma de juízo.

Assim, a identidade é a unidade que persiste na mudança,
a continuidade do ser sob o fluxo do tempo.

Na criatura, é reflexo da fidelidade do ser;
em Deus, é a eternidade do Mesmo.

QUESTÕES TRIGÉSIMA SÉTIMA E TRIGÉSIMA OITAVA

Se a relação é algo real nas coisas, e se pode haver relação sem correlação


1. Proposição da questão

Pergunta-se, primeiro, se a relação é algo que existe realmente nas coisas,
ou se é apenas uma concepção mental pela qual o intelecto compara um ente com outro.
E, em segundo lugar, se é possível haver relação sem correlação,
isto é, se algo pode ser relativo sem que outro o seja reciprocamente.

A dificuldade é dupla:
pois, de um lado, toda relação parece depender do ato do intelecto;
de outro, a ordem real das coisas implica relações ontológicas —
como entre causa e efeito, substância e acidente, Criador e criatura.


2. Argumentos de que a relação é de razão apenas

Primeiro, parece que a relação é de razão apenas.
Pois, segundo Aristóteles, o relativo é aquilo cuja essência consiste em relação a outro.
Mas a essência depende da comparação do intelecto;
logo, a relação é operação mental.

Além disso, a relação não acrescenta nada à realidade do sujeito,
mas apenas o refere a outro;
logo, não é algo real, mas conceitual.

E ainda: toda relação supõe o conhecimento de dois termos;
ora, tal conhecimento pertence ao intelecto;
logo, a relação é de razão.


3. Argumentos de que a relação é real

Por outro lado, parece que a relação é real.
Pois, se a relação fosse apenas de razão,
não haveria ordem real entre causa e efeito, nem proporção entre todo e parte.

Além disso, as relações matemáticas (igualdade, proporção)
existem independentemente do pensamento;
logo, há relações reais.

E ainda: a dependência do ser criado em relação ao Criador
é realidade metafísica, não mera concepção.
Logo, há relações reais.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três modos de relação:

  1. Relação de razão, cuja origem está apenas no intelecto (como “pai de si mesmo” ou “semelhança de ideias”);
  2. Relação real passiva, fundada numa alteração real em um dos termos (como o conhecimento do conhecido para o cognoscente);
  3. Relação real ativa, fundada numa ordem ontológica de dependência (como causa e efeito).

Assim, nem toda relação é puramente de razão nem toda é real:
umas são fundadas no ser, outras fundadas no conhecer.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a relação é real nas coisas,
quando há entre os entes uma ordem de dependência ontológica,
mas de razão apenas, quando a referência procede unicamente da operação do intelecto.

A relação real não acrescenta nova substância,
mas um modo de ser fundado em ordem ou proporção verdadeira.

Assim, a relação entre Deus e o mundo é real do lado do mundo,
mas apenas de razão do lado de Deus,
pois Ele é causa sem sofrer relação passiva.

De modo semelhante, entre criatura e criatura,
há relações reais fundadas em causalidade ou proporção,
e mentais quando dependem apenas de comparação.


6. Sobre a correlação

Quanto à segunda questão — se pode haver relação sem correlação —,
digo que, em Deus, há relação sem correlação real:
Deus é relativo ao mundo como causa,
mas o mundo não é correlativo a Ele do mesmo modo,
porque a relação divina é de conhecimento e vontade, não de dependência.

Entre criaturas, porém, toda relação real supõe correlação,
pois o fundamento é sempre uma ordem bilateral —
como o maior e o menor, o senhor e o servo, o pai e o filho.

No entanto, o intelecto pode conceber unilateralmente,
e, nesse caso, há relação de razão sem correlação real.


7. Fundamento metafísico

O fundamento da relação é a ordem do ser.
Toda realidade é ordenada segundo graus de perfeição e dependência.
A relação exprime essa ordem, quer no plano natural, quer no inteligível.

Por isso, a relação é intermediária entre o ser absoluto e o ser de razão:
não é substância nem mera ideia,
mas modo real do ser em referência a outro.

Em Deus, as relações são subsistentes —
as pessoas divinas distinguem-se apenas por relações reais de origem;
logo, a relação, em seu grau supremo, é ato puro.


8. Síntese e conclusão

Conclui-se, portanto, que a relação é real
quando se funda em dependência ontológica,
e de razão quando resulta de simples comparação.

Há, pois, três ordens de relação:
Divina, subsistente e eterna;
Natural, real e proporcional;
Lógica, mental e representativa.

A relação é o vínculo invisível da criação —
o meio pelo qual o ser se reflete no outro sem perder-se de si.

A realidade é tecida de relações:
Deus ao mundo, o todo às partes, o intelecto ao conhecido.
Negar a realidade da relação seria negar a ordem do ser.

QUESTÃO TRIGÉSIMA NONA

Se a quantidade é realmente distinta da substância ou apenas um modo dela


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a quantidade, isto é, o “quanto” das coisas, é uma realidade distinta da substância, ou se é apenas um modo segundo o qual o intelecto concebe a substância sob medida e extensão.
A dúvida nasce porque a quantidade parece ter ser próprio — já que se diz “o corpo é grande”, “a linha é longa” —, e, contudo, parece também inseparável da substância corpórea.


2. Argumentos de que a quantidade é distinta da substância

Primeiro, parece que a quantidade é realmente distinta.
Pois a substância pode permanecer a mesma enquanto a quantidade muda —
um corpo pode crescer ou diminuir sem deixar de ser o mesmo corpo.
Logo, a quantidade não é a substância, mas um acidente real que a modifica.

Além disso, Aristóteles coloca a quantidade como uma das dez categorias,
distinta da substância, da qualidade e da relação.
Logo, tem ser próprio.

E ainda: as partes quantitativas de um corpo — como comprimento, largura e profundidade — são divisíveis e numeráveis;
mas a substância, enquanto tal, é indivisível.
Logo, há distinção real entre ambas.


3. Argumentos de que a quantidade não é distinta da substância

Por outro lado, parece que a quantidade não é realmente distinta da substância.
Pois não há quantidade sem corpo, nem corpo sem quantidade;
logo, ambas constituem uma única realidade.

Além disso, a quantidade não tem ato de ser próprio,
mas o mesmo ser da substância.
Logo, é apenas modo dela, não coisa distinta.

E ainda: se a quantidade fosse realmente distinta,
o corpo teria duas existências — uma substancial e outra quantitativa —,
o que é impossível.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois modos de distinção entre a quantidade e a substância:

  1. Distinção real e total, como entre duas coisas completas (por exemplo, entre alma e corpo);
  2. Distinção formal ex natura rei, como entre duas formalidades inseparáveis de um mesmo ser (por exemplo, entre natureza e propriedade).

A relação entre quantidade e substância é da segunda espécie:
distinção formal, mas não separação real.

A quantidade é uma formalidade distinta, fundada na substância corpórea,
pela qual o corpo é extenso, mensurável e divisível.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a quantidade é formalmente distinta da substância,
não como coisa adicionada, mas como modo intrínseco de ser do corpo.

O ser corpóreo implica extensão, mas a extensão não é sua essência formal;
é o modo pelo qual o corpo é presente em partes e divisível.

Assim, a quantidade é real quanto ao fundamento,
formalmente diversa quanto à noção,
e inseparável quanto ao ser.

O corpo é substância em ato e quantidade em modo.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa distinção está no caráter composto da matéria.
Toda substância corpórea é ato de uma matéria extensa;
essa extensão é o aspecto quantitativo do ser material.

A quantidade é, portanto, acidente necessário,
que exprime a maneira de existir da substância corpórea no espaço.

A substância dá o ser;
a quantidade dá o modo de presença e coexistência das partes.

A primeira é princípio de realidade;
a segunda, de ordem e medida.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a quantidade é formalmente distinta da substância,
fundada realmente nela,
e inseparável em sua existência natural.

Não é puro modo mental,
porque sem quantidade não há corpo;
nem é substância,
porque depende inteiramente dela.

É, pois, o modo pelo qual a substância corpórea é divisível e mensurável,
a expressão espacial do ser material.

Assim, a quantidade é a imagem criada da ordem:
o ser sob medida,
a substância sob proporção.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA

Se a quantidade é divisível ao infinito


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a quantidade corpórea pode ser dividida ao infinito, ou se existe em toda substância um mínimo físico ou natural, indivisível em partes menores.
A dúvida é antiga, pois os filósofos afirmaram tanto a infinitude da divisão quanto a existência de átomos.

Escoto, aqui, busca conciliar a razão com a experiência sensível, mantendo a posição aristotélica segundo a qual a divisibilidade é potencial, não atual.


2. Argumentos de que a quantidade é divisível ao infinito em ato

Primeiro, parece que a quantidade é divisível ao infinito em ato.
Pois em qualquer linha, sempre se pode conceber um ponto médio, e entre dois pontos, outro ponto;
logo, não há último termo da divisão.

Além disso, se a quantidade é contínua,
e o contínuo é aquilo cujas partes têm um limite comum,
então não há partes últimas,
mas apenas divisões indefinidamente possíveis.

E ainda: se se admitir um mínimo indivisível,
a continuidade desaparece,
pois o que não tem partes não pode tocar outro por continuidade.


3. Argumentos de que a quantidade não é divisível ao infinito em ato

Por outro lado, parece que a quantidade não é divisível ao infinito em ato.
Pois o infinito atual é impossível nas coisas finitas.
Se a quantidade fosse atualmente infinita em suas partes,
o corpo seria infinito, o que é absurdo.

Além disso, a experiência mostra que a divisão cessa em certo ponto:
a matéria não é infinitamente separável,
mas tem limites de composição e resistência.

E ainda: o ato de dividir é sucessivo;
o que é sucessivo não pode ser completado ao infinito;
logo, o infinito só pode ser potencial.


4. A distinção escotista

Escoto distingue duas espécies de infinito:

  1. Infinito atual, que existe todo de uma vez e é próprio apenas de Deus;
  2. Infinito potencial, que consiste na possibilidade indefinida de acréscimo ou divisão.

A quantidade é infinita em potência,
porque pode ser dividida sempre mais,
mas nunca ao ponto de conter infinitas partes realmente existentes.

Assim, o contínuo é divisível in infinitum,
mas nunca infinitum in actu.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a quantidade é divisível ao infinito em potência, mas não em ato.
Pois a divisibilidade pertence à natureza do contínuo,
mas a infinitude atual é incompatível com a finitude da criatura.

A razão mostra que em toda parte há meio,
mas não que haja infinitas partes atualmente existentes.
O intelecto pode conceber a divisão indefinidamente,
mas o ser não comporta atualidade infinita de partes.

Logo, a infinitude da divisão é modo de possibilidade, não de existência.


6. Fundamento metafísico

O fundamento está na natureza composta da matéria e da forma.
A forma dá unidade ao corpo;
a matéria, extensão e divisibilidade.
Mas essa divisibilidade é limitada pela unidade formal.

Assim, a divisibilidade não é destrutiva,
mas potencial: um corpo pode ser sempre dividido,
mas nunca será composto de infinitas partes reais.

O infinito potencial é espelho do poder divino:
sempre possível de mais,
nunca completo em ato.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a quantidade é divisível ao infinito em potência, mas não em ato.
Ela comporta divisão indefinida,
mas jamais infinitude realizada.

O contínuo é um ser em tensão:
um entre o indivisível e o múltiplo,
imagem do devir e da medida.

Assim, o infinito matemático é obra do intelecto,
mas o infinito físico é apenas virtual,
manifestando na matéria a capacidade de extensão sem termo,
sem jamais possuir infinitude real.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA

Se a continuidade é real nas coisas ou apenas de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a continuidade — pela qual a quantidade é dita sem interrupção ou divisão — pertence realmente à natureza do corpo, ou se é apenas uma concepção mental pela qual o intelecto une partes distintas sob um só conceito.

A dificuldade provém do fato de que o contínuo parece exigir uma indivisão real entre partes,
e, contudo, a própria noção de parte implica separabilidade.


2. Argumentos de que a continuidade é apenas de razão

Primeiro, parece que a continuidade é de razão apenas.
Pois o intelecto é quem une o que percebe como separado,
assim como concebe uma linha como unidade quando, na realidade, ela é composta de pontos distintos.

Além disso, o contínuo é definido pela ausência de separação;
ora, a ausência é negação, e a negação não é coisa, mas modo de apreensão.
Logo, a continuidade não é real, mas conceitual.

E ainda: se a continuidade fosse real, deveria existir um vínculo físico indivisível entre partes;
mas tal vínculo nunca é percebido empiricamente,
sendo, portanto, produto do pensamento.


3. Argumentos de que a continuidade é real

Por outro lado, parece que a continuidade é real.
Pois a extensão corporal é contínua, e o corpo é realidade natural, não mental.
Logo, a continuidade pertence à coisa.

Além disso, a resistência dos corpos depende de sua coesão contínua;
se não houvesse continuidade real, o corpo não poderia agir nem sofrer.

E ainda: a geometria, embora conceitual, mede algo real —
a linha, o plano e o sólido — que só têm sentido se a continuidade for real.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois tipos de continuidade:

  1. Continuidade real física, que é a indivisão efetiva das partes na natureza,
    fundada na unidade da forma e na coesão da matéria;
  2. Continuidade lógica ou geométrica, que é a indivisão apenas quanto à concepção,
    fundada na abstração do intelecto ao considerar a extensão sem matéria.

A primeira pertence ao corpo natural;
a segunda, à ciência matemática.

Assim, há continuidade real nas coisas,
mas o modo de concebê-la é intelectual.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a continuidade é real nas coisas,
pois pertence à essência do corpo ser uno por contato interno,
não apenas por concepção externa.

O corpo é contínuo porque sua matéria, sob uma mesma forma,
constitui unidade física sem intervalos.

A continuidade é, portanto, modo de ser da quantidade,
fundado na natureza real do corpo,
não mera abstração do intelecto.

O intelecto abstrai o conceito de continuidade,
mas não o inventa — apenas reconhece a coesão real que a matéria possui.


6. Fundamento metafísico

O fundamento da continuidade é a unidade formal da substância material.
A forma dá coesão à matéria,
fazendo que as partes coexistam sem separação atual.

Essa unidade física é distinta da unidade lógica:
a primeira pertence ao ser;
a segunda, ao pensar.

O contínuo é, pois, a tradução ontológica da unidade da forma no domínio da quantidade.

Por isso, onde há corpo, há continuidade;
onde há ruptura, há corrupção do corpo.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a continuidade é real nas coisas,
fundada na unidade da forma e na coesão da matéria,
ainda que seja conhecida pela razão.

O contínuo é o corpo em sua presença indivisa,
a totalidade da extensão enquanto unida sob um mesmo ato de ser.

A razão o concebe como relação de partes;
a natureza o possui como realidade indivisa.

Assim, o contínuo é o símbolo da encarnação do ser na matéria:
uma e mesma unidade que se estende em multiplicidade sem romper-se.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA SEGUNDA

Se o ponto, a linha e a superfície existem realmente nas coisas ou apenas de razão


1. Proposição da questão

Pergunta-se se as entidades matemáticas simples — o ponto, a linha e a superfície — têm existência real nas coisas naturais,
ou se são apenas concepções do intelecto que abstrai aspectos quantitativos da matéria corpórea.

A dificuldade é antiga, pois Aristóteles já afirmava que tais entes não existem separados, mas apenas “como em potência” nas coisas contínuas.
Escoto, aqui, procura conciliar a precisão geométrica com a ontologia realista.


2. Argumentos de que existem realmente

Primeiro, parece que o ponto, a linha e a superfície existem realmente nas coisas.
Pois toda divisão real do corpo termina em limites reais;
ora, esses limites são pontos, linhas e superfícies.
Logo, tais entes são reais.

Além disso, a superfície é o que separa o corpo de outro corpo;
mas a separação é física, não apenas mental.
Logo, a superfície é realidade corpórea.

E ainda: a linha é o limite da superfície, e o ponto o limite da linha;
logo, se a superfície é real, também o são a linha e o ponto.


3. Argumentos de que são apenas de razão

Por outro lado, parece que o ponto, a linha e a superfície são apenas de razão.
Pois nada pode existir sem quantidade tridimensional;
ora, o ponto e a linha carecem de extensão;
logo, não podem existir realmente nas coisas materiais.

Além disso, o ponto é indivisível,
mas toda realidade física é divisível;
logo, o ponto não pertence à natureza da matéria, mas ao modo intelectual de concebê-la.

E ainda: se houvesse pontos e linhas reais,
os corpos seriam compostos de indivisíveis,
o que destruiria a continuidade e a extensão.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois modos de ser:

  1. Ser real na natureza, que pertence às coisas existentes independentemente do intelecto;
  2. Ser de razão com fundamento real, que pertence às concepções mentais que têm correspondência objetiva nas coisas.

Assim, o ponto, a linha e a superfície não existem realmente,
mas têm fundamento real:
o ponto é o limite do lugar;
a linha, o limite da superfície;
a superfície, o limite do corpo.

Esses limites não têm ser próprio,
mas são modos terminais da quantidade,
reais quanto ao fundamento, conceituais quanto à apreensão.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que o ponto, a linha e a superfície não existem realmente,
mas são entidades de razão fundadas em realidades físicas.

Eles não são seres, mas limites do ser quantitativo.
Não possuem existência fora da mente,
mas a mente os abstrai legitimamente a partir da realidade contínua do corpo.

A geometria, portanto, não é ficção,
mas ciência dos modos ideais fundados no real.


6. Fundamento metafísico

O fundamento está na natureza do contínuo físico.
A matéria é contínua em ato,
e suas partes são unidas por limites potenciais, não atuais.

Quando o intelecto considera esses limites isoladamente,
cria a noção de ponto, linha e superfície —
não como seres separados,
mas como limites inteligíveis do ser extenso.

Assim, a geometria é abstração realista:
ela não cria o ser, mas o mede sob razão ideal.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que o ponto, a linha e a superfície não existem realmente,
mas como entes de razão com fundamento real.

São limites conceituais da quantidade contínua,
meios pelos quais o intelecto apreende a extensão e suas divisões.

O ponto é o limite indivisível;
a linha, a unificação de pontos potenciais;
a superfície, o termo do corpo.

A natureza não contém pontos reais,
mas contém razões de limite que a mente abstrai.

Assim, o ponto é o nada com posição,
a linha é o nada com direção,
e a superfície é o nada com fronteira —
não inexistentes, mas existindo como modos ideais da realidade mensurável.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA TERCEIRA

Se a qualidade é algo realmente distinto da substância, ou apenas um modo de ser


1. Proposição da questão

Pergunta-se se a qualidade, pela qual dizemos que algo é “branco”, “quente”, “sábio” ou “justo”, é realmente distinta da substância,
ou se é apenas um modo de manifestação pelo qual a substância é conhecida e se relaciona com o intelecto.

A dúvida nasce do fato de que as qualidades parecem mudar sem destruir o sujeito —
por exemplo, o corpo permanece o mesmo, embora mude de cor ou temperatura —,
mas também do fato de que nenhuma qualidade parece existir separadamente do sujeito.


2. Argumentos de que a qualidade é distinta da substância

Primeiro, parece que a qualidade é realmente distinta.
Pois a substância pode subsistir sem certas qualidades,
como o corpo sem cor, ou a alma sem ciência.
Logo, a qualidade é acidente, não essência.

Além disso, Aristóteles coloca a qualidade como uma das dez categorias,
distinta da substância e da quantidade.
Logo, é um gênero de ser próprio, não mera modificação mental.

E ainda: as qualidades se alteram,
mas a substância permanece a mesma;
logo, não são idênticas, mas realmente distintas.


3. Argumentos de que a qualidade não é distinta

Por outro lado, parece que a qualidade não é realmente distinta,
mas o próprio modo de ser da substância.

Pois a cor não é algo além da superfície corpórea,
nem a ciência algo além do ato intelectual.
Logo, a qualidade não é um ente acrescentado,
mas a própria substância em certo modo de operação.

Além disso, o acidente não tem ser próprio,
mas o ser do sujeito;
ora, o que tem o mesmo ser não é realmente distinto,
mas formalmente diverso.

E ainda: se houvesse real distinção,
haveria múltiplos entes em um só,
o que é contrário à simplicidade substancial.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três graus de distinção entre substância e qualidade:

  1. Distinção real total, como entre dois entes independentes;
  2. Distinção formal ex natura rei, como entre aspectos inseparáveis da mesma realidade;
  3. Distinção de razão apenas, quando o intelecto separa conceitualmente o que é idêntico em ser.

A qualidade, em relação à substância, pertence ao segundo tipo:
é formalmente distinta, mas não separada realmente.

É um modo intrínseco de ser do sujeito,
fundado na sua potência e operação,
e não um ente acrescido.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que a qualidade é formalmente distinta da substância,
não como coisa que se adiciona,
mas como modo de perfeição intrínseca pelo qual a substância se determina a um ato próprio.

A qualidade é o ser do sujeito sob razão determinada:
a cor é o corpo enquanto visível;
o calor, enquanto atuante;
a ciência, enquanto o intelecto está em ato segundo.

Logo, a qualidade não tem existência separada,
mas tem formalidade distinta e real fundamento.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é que toda substância finita é determinada por modos reais de perfeição,
que não alteram seu ser essencial,
mas o completam quanto à operação.

A qualidade exprime a atualidade própria do sujeito
sua capacidade de agir e ser percebido.

Assim, há quatro gêneros principais de qualidade:

  1. Hábito e disposição (como virtudes e ciências);
  2. Potência natural (como força e calor);
  3. Paixão ou afeição (como forma sensível ou cor);
  4. Forma da figura (como proporção ou harmonia).

Todas são modos reais do sujeito,
não entes separados.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que a qualidade é formalmente distinta da substância,
fundada nela e inseparável dela,
mas real quanto ao modo de perfeição.

Ela não é substância, porque depende do sujeito;
não é pura razão, porque tem fundamento real.

É o ato próprio do ser corpóreo e espiritual,
a sua luz e sua manifestação.

A qualidade é, portanto, o brilho do ser,
a expressão da forma na aparência,
a tradução do ato em figura sensível.

Assim, como a quantidade exprime o ser sob medida,
a qualidade o exprime sob forma.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA QUARTA

Se as qualidades podem subsistir sem o sujeito


1. Proposição da questão

Pergunta-se se é possível que as qualidades, que são acidentes e modos do ser, permaneçam sem a substância em que residem,
isto é, se podem subsistir por si ou se dependem de modo absoluto do sujeito.

A questão é de grande importância, pois dela depende a compreensão da transubstanciação eucarística,
na qual, segundo a fé, as espécies sensíveis — cor, forma, sabor e quantidade — permanecem sem a substância do pão e do vinho.


2. Argumentos de que as qualidades não podem subsistir sem o sujeito

Primeiro, parece que as qualidades não podem subsistir sem o sujeito,
pois o acidente não tem ser próprio, mas o ser do sujeito.
Se o sujeito é destruído, o acidente perde o fundamento do seu ser.

Além disso, a qualidade é modo de ser da substância;
ora, um modo não pode existir sem aquilo de que é modo.
Logo, não pode subsistir separadamente.

E ainda: nada é conhecido nem age senão enquanto existe;
ora, a qualidade não tem existência por si,
mas somente enquanto inerente à substância.
Logo, não subsiste sem ela.


3. Argumentos de que as qualidades podem subsistir sem o sujeito

Por outro lado, parece que as qualidades podem subsistir sem o sujeito,
pois, segundo o dogma, nas espécies eucarísticas permanecem a cor, o sabor e a figura do pão,
embora a substância tenha sido convertida.

Além disso, a quantidade, que é também acidente,
é admitida como subsistente sem o sujeito pela mesma razão.
Logo, a qualidade, que depende da quantidade, pode igualmente subsistir.

E ainda: a onipotência divina pode conservar o ser do acidente sem o sujeito,
porque o ser do acidente é participado, e Deus pode conservá-lo sem mediação.


4. A distinção escotista

Escoto distingue três modos de dependência:

  1. Dependência essencial, quando algo não pode existir sem seu fundamento (como o calor sem corpo);
  2. Dependência natural, quando algo não existe sem o outro, mas pode sê-lo por milagre (como a luz sem o sol);
  3. Dependência de razão, quando a mente concebe separadamente o que na realidade é inseparável.

Assim, as qualidades dependem essencialmente da substância segundo a ordem natural,
mas podem ser conservadas sem o sujeito por virtude divina,
sem contradição lógica, pois sua essência não implica contradição sem o suporte,
mas apenas impossibilidade de existir por natureza.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que as qualidades não podem subsistir por natureza sem o sujeito,
mas podem subsistir por milagre,
mantidas por Deus no mesmo ser que possuíam enquanto inerentes.

A essência da qualidade não exige união física,
mas dependência de ser.
Logo, Deus pode conservar o ser do acidente,
ainda que o sujeito natural tenha sido removido.

Assim se explica que nas espécies eucarísticas
permaneçam as qualidades sensíveis do pão e do vinho,
sem que haja contradição entre fé e razão.

O milagre não cria novo ser,
mas conserva um ser acidental fora do modo comum de existência.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa possibilidade está na distinção formal entre ser e modo de ser.
O acidente tem ser participado;
se esse ser for conservado pela causa primeira,
não há contradição em sua permanência sem o sujeito.

O vínculo entre substância e acidente é de dependência natural,
não de necessidade absoluta.
Deus pode suspender essa dependência,
mantendo a qualidade em sua atualidade própria.

Assim, a separação não destrói o acidente,
mas altera sua condição de inerência.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que as qualidades não podem subsistir sem o sujeito por natureza,
mas podem subsistir sem ele por milagre,
pela virtude da causa primeira que conserva o ser de todas as coisas.

A qualidade, enquanto acidente, é modo do ser;
mas o ser, enquanto participado, pode ser conservado independentemente do modo comum de inesse.

Assim, as qualidades podem existir sem sujeito por poder divino,
não como substâncias,
mas como acidentes sustentados imediatamente por Deus.

A ordem natural exige que o modo dependa daquilo de que é modo;
a ordem sobrenatural mostra que o ser é dependente apenas de Deus.

Assim, a metafísica do acidente culmina na teologia do milagre:
o que não pode ser por natureza, pode sê-lo pela liberdade do Ser absoluto.

QUESTÃO QUADRAGÉSIMA QUINTA

Se há qualidades nas substâncias espirituais, e de que modo diferem das qualidades corporais


1. Proposição da questão

Pergunta-se se nas substâncias espirituais — como os anjos e a alma racional — existem qualidades de modo análogo às do corpo,
ou se toda perfeição nelas é substancial e não acidental.

A dificuldade nasce porque os espíritos, sendo simples e imateriais,
não parecem admitir qualidades que impliquem variação ou passividade,
como cor, calor ou forma.
Contudo, neles se reconhecem graus de sabedoria, virtude e potência,
que parecem ter o caráter de qualidades.


2. Argumentos de que há qualidades nas substâncias espirituais

Primeiro, parece que há qualidades nas substâncias espirituais.
Pois Aristóteles define qualidade como “aquilo segundo o qual o sujeito é dito de certo modo”.
Ora, a alma é dita sábia, justa, virtuosa;
logo, possui qualidades.

Além disso, os anjos diferem entre si por perfeições acidentais —
uns são mais iluminados, outros mais poderosos;
logo, há neles qualidade real.

E ainda: o intelecto humano adquire ciência e hábito,
que são modos permanentes do ser racional;
logo, a qualidade espiritual é tão real quanto a corporal.


3. Argumentos de que não há qualidades espirituais

Por outro lado, parece que não há qualidades nas substâncias espirituais.
Pois a qualidade é acidente que implica mudança;
ora, o espírito é imutável por natureza.
Logo, não pode possuir qualidades reais.

Além disso, toda qualidade requer um sujeito material,
no qual possa residir como forma em potência;
mas o espírito é ato puro e indivisível;
logo, nele não há qualidade.

E ainda: se houvesse qualidades nos anjos,
haveria neles composição acidental,
o que contradiz sua simplicidade substancial.


4. A distinção escotista

Escoto distingue dois modos de qualidade:

  1. Qualidade passiva ou física, que implica mutação e depende da matéria (como calor, cor, peso);
  2. Qualidade ativa ou formal, que exprime perfeição do ato e reside na potência intelectual ou volitiva (como sabedoria, amor, virtude).

Nas substâncias espirituais, há qualidade apenas no segundo sentido
isto é, como perfeição formal, não como acidente material.

Essas qualidades não alteram o ser,
mas o elevam em intensidade e ato.


5. Posição de Escoto

Digo, portanto, que há qualidades nas substâncias espirituais,
mas de modo mais nobre e simples que nas corporais.

Elas não são acidentes de composição,
mas atos secundários da essência,
pelos quais o espírito se aperfeiçoa em operação e conhecimento.

A qualidade espiritual é forma na forma,
não algo adicionado,
mas o brilho intensivo do ser em ato.

Assim, a sabedoria no anjo é qualidade,
mas não mutável;
a caridade na alma é hábito,
mas fundado na liberdade e não na matéria.


6. Fundamento metafísico

O fundamento dessa doutrina é que toda criatura finita, ainda que espiritual, tem potência,
e toda potência é aperfeiçoável por ato.
A qualidade espiritual é, pois, a medida da atualidade em cada natureza racional.

Enquanto as qualidades corporais dizem respeito à extensão,
as espirituais dizem respeito à intensidade do ser.

Elas não se multiplicam por divisão,
mas por grau de luminosidade, pureza e ato.

Assim, no espírito, a qualidade é o modo pelo qual a essência participa mais perfeitamente do ser e da verdade.


7. Síntese e conclusão

Conclui-se que há qualidades nas substâncias espirituais,
mas de ordem formal e intensiva,
não material nem passiva.

Elas não são acidentes externos,
mas modos intrínsecos de perfeição,
fundados na potência do intelecto e da vontade.

Nos anjos, a qualidade é luz inteligível;
na alma, é hábito e virtude;
em ambos, é ato que mede a distância entre o ser criado e o Ser absoluto.

Assim, a qualidade espiritual é a expressão da liberdade e do amor,
a cor invisível do espírito,
a figura do ser na claridade da inteligência.

A matéria tem qualidades por composição;
o espírito, por intensidade.
A primeira é variedade na unidade;
a segunda, unidade em graus de perfeição.

FINIS OPERIS

Síntese e Encerramento do Tratado sobre as Categorias de Aristóteles
(João Duns Escoto – Tradução e Estudo de Jardel Almeida, Assistência Filosófica: Sophión)


No decurso deste tratado, Duns Escoto percorreu o itinerário mais radical que a razão humana ousou traçar sobre o ser criado.
Partindo das categorias aristotélicas — os modos primeiros da realidade sensível — ele as purificou pela via da distinção formal, elevando-as da mera classificação lógica à estrutura ontológica do ente enquanto ente.

A investigação que começa com a simples pergunta “o que é ser?” termina, portanto, não na definição, mas na visão hierárquica do real: do corpo à alma, da quantidade à qualidade, da forma visível à luz inteligível.


I. O Ser e a Diferença

No início, o Doutor Sutil demonstrou que o ser não é unívoco nem puramente equívoco, mas analógico:
um mesmo ato que se diversifica segundo graus de perfeição.
A diferença, então, não é negação nem separação, mas o ritmo da distinção formal pelo qual as naturezas se multiplicam sem ruptura.

Assim, a ontologia escotista nasce da reconciliação do múltiplo com o uno:
o real é uma pluralidade formal que se unifica em ato sob um mesmo ser participado.


II. A Identidade e a Relação

Do problema da diferença, Escoto passa à identidade, mostrando que ela é a indivisão do ser em si mesmo.
Não é produto da razão, mas fundamento metafísico da permanência.
A identidade é o selo da criação: cada ente é um reflexo da constância divina, uma faísca do Mesmo no fluxo do tempo.

Dessa unidade deriva a relação, a mais sutil das categorias,
pois revela que o ser não é isolado, mas ordenado.
Toda criatura é um “em relação a” — ao outro, ao todo, e, por fim, ao Criador.
Na relação se exprime a ordem do cosmos, a harmonia da multiplicidade sob o olhar do Uno.


III. A Quantidade e a Continuidade

Na sequência, a quantidade manifesta o ser sob medida,
como o espaço da presença e da coexistência.
A extensão corpórea não é acréscimo, mas modo intrínseco de existir no espaço.

A divisibilidade revela a tensão entre finitude e infinitude:
a matéria é infinitamente divisível em potência, mas jamais em ato,
porque o infinito pleno pertence apenas a Deus.

A continuidade é a expressão do ser enquanto indiviso em suas partes,
imagem da unidade substancial que sustenta a diversidade física.
Nos limites ideais — ponto, linha, superfície — o intelecto apreende a sombra geométrica do real,
os confins entre o ser e o conceito, entre o visível e o inteligível.


IV. A Qualidade e a Luz do Espírito

A qualidade é o esplendor do ser.
Se a quantidade exprime o corpo sob medida,
a qualidade o exprime sob forma e perfeição.
Ela é o modo como a essência se manifesta e age —
não algo adicionado, mas a irradiação intrínseca da forma.

As qualidades, por natureza, dependem da substância,
mas podem subsistir por poder divino —
como nas espécies eucarísticas, em que a cor e o sabor permanecem sem o pão.
O milagre eucarístico é a confirmação teológica da metafísica escotista:
Deus é o Ser que conserva o ser mesmo fora do modo natural de ser.

Por fim, nas substâncias espirituais,
a qualidade já não é acidente, mas intensidade:
um modo formal de perfeição,
grau de sabedoria, pureza e amor.
O corpo possui qualidades por composição;
o espírito, por luminosidade.

Assim, a qualidade espiritual é a figura invisível da alma,
o brilho interno da forma que participa da Luz incriada.


V. A Unidade do Todo

Com isso, Duns Escoto fecha o círculo das categorias.
O que em Aristóteles era apenas um inventário lógico,
em Escoto torna-se uma cosmologia da criação.

Tudo o que existe é participado;
tudo o que participa é ordenado;
tudo o que é ordenado remete ao Ato puro,
em quem cessam as distinções e se unifica a multiplicidade.

A ontologia escotista é, pois, uma metafísica da dependência e da perfeição:
cada ser é finito, mas portador de infinitude potencial;
cada forma é limitada, mas aberta ao Absoluto.

O universo é, assim, um degrau do ser,
um itinerário de retorno ao Princípio,
no qual a diferença, a relação, a quantidade e a qualidade
não são separações, mas modos do mesmo Ser em comunicação consigo mesmo.


VI. Conclusão

No cume deste tratado, o ser já não é pensado como substância isolada,
mas como comunhão hierárquica de formas.
O intelecto humano, ao compreender as categorias,
não as inventa, mas as reconhece —
como quem contempla a ordem eterna refletida nas coisas.

Assim, o sistema escotista termina onde começou:
no mistério do Ser uno e múltiplo,
que a razão distingue e a fé adora.

O filósofo, portanto, não fecha o livro:
ele o eleva ao invisível,
onde a categoria cessa e o ser se revela como luz sem limite —
Deus como o Primeiro Princípio e o Último Fim.

Boethius – Commentarius in Categoriae Aristotelis

(Comentário às Categorias de Aristóteles)

Estrutura Geral da Obra

1.      Prooemium (Prólogo)

o    A finalidade da lógica e o papel das Categorias.

o    A relação entre vox, conceptus e res (palavra, conceito e coisa).

o    A lógica como instrumento do saber (organon).

2.      Caput I – De Substantia

o    Definição de substância.

o    Diferença entre substância primeira e segunda.

o    Exemplos: homem, cavalo, essência.

o    O princípio da identidade e permanência.

3.      Caput II – De Quantitate

o    O número, a extensão e o tempo como espécies de quantidade.

o    A quantidade como “mensura do ser”.

4.      Caput III – De Qualitate

o    A forma e a disposição.

o    Hábito e disposição como espécies de qualidade.

o    A qualidade como ordo perfectionis.

5.      Caput IV – De Relatione

o    A natureza da relação e sua dependência da substância.

o    Relação recíproca e relação de razão.

o    A ordem do ser como fundamento do relativo.

6.      Caput V – De Actione et Passione

o    Agir e padecer como modos do movimento.

o    A causalidade como relação de potência e ato.

7.      Caput VI – De Ubi et Quando

o    O lugar e o tempo como modos acidentais do ser.

o    A diferença entre ser “aqui” e ser “então”.

8.      Caput VII – De Habitu et Situ

o    Posição, hábito e disposição exterior.

o    A ordem do corpo em relação ao todo.

9.      Caput VIII – De Oppositione

o    Os quatro gêneros de oposição: contrariedade, privação, contradição, correlação.

o    Unidade e diferença lógica.

10.  Caput IX – De Finibus Praedicamentorum

o    A unidade das categorias.

o    A relação entre predicamento e predicável.

o    O retorno de todos os modos do ser à substância.

PRÓLOGO (PROOEMIUM)

Toda filosofia tem por fim a contemplação da verdade; mas, entre as partes da filosofia, é à lógica que cabe o ofício de ordenar a via pela qual o intelecto atinge o verdadeiro.
Pois, assim como a arte da navegação não é o próprio navegar, mas o saber conduzir o navio ao porto, assim também a lógica não é a ciência das coisas, mas a ciência dos instrumentos pelos quais o espírito alcança a ciência das coisas.

Ora, o primeiro desses instrumentos é a palavra (vox), não enquanto som, mas enquanto significante de um conceito mental (conceptus mentis); e o conceito, por sua vez, representa uma realidade (res).
Daí decorre uma tríplice ordem: a das coisas que são, a dos conceitos que as refletem, e a das palavras que exprimem esses conceitos.

Entre essas três ordens, a lógica ocupa o meio: ela não trata das coisas mesmas, como a física, nem do ser primeiro, como a metafísica, mas das razões pelas quais o intelecto formula juízos verdadeiros sobre o ser.

Por isso Aristóteles, no início do Organon, tratou primeiro dos nomes e proposições (De Interpretatione), e logo depois dos predicamentos, isto é, das categorias, que são os modos primordiais de significar o ser.


A palavra categoria designa tanto o ato de predicar quanto o modo de predicação.
Assim, quando dizemos “o homem é animal”, o termo “animal” é predicado do sujeito “homem”; e essa forma de predicação pertence à categoria da substância.
Mas quando dizemos “o homem é branco”, predicamos algo de modo acidental, o que pertence à categoria da qualidade.

Logo, as categorias são os gêneros supremos da predicação, pelos quais toda coisa que é pode ser dita.
Elas abrangem tanto a essência quanto os modos de ser, e por isso constituem o fundamento de toda ontologia e de toda linguagem.


Boécio então resume:

“Aristóteles, ao escrever as Categorias, não pretendeu somente ensinar o modo de falar corretamente, mas mostrar de que modos o ser mesmo pode ser dito. Pois, sendo o discurso imagem do pensamento, e o pensamento imagem do ser, segue-se que as diferenças do discurso correspondem às diferenças do ser.”

Assim, estudar as categorias é compreender o esqueleto ontológico da realidade, e não apenas uma técnica de classificação lógica.

CAPÍTULO I — DE SUBSTANTIA

(Sobre a Substância)

A primeira e mais digna das categorias é a substância, pois ela é o fundamento de tudo o que é e o sujeito de tudo o que se predica.
Tudo o que existe ou é substância, ou pertence de algum modo à substância.
Sem a substância, nada poderia ser dito nem pensado, porque ela é o princípio do ser (principium essendi), assim como o ponto é o princípio da linha.


1. Definição de substância

Chama-se substância aquilo que subsiste em si mesmo e não está em outro como em sujeito.
Assim, o homem, o cavalo, a pedra são substâncias, porque existem por si;
mas a brancura, o calor ou a doçura não são substâncias, porque existem em outro.

A substância é, portanto, o ente primeiro e principal,
do qual tudo o mais se diz e no qual tudo o mais se funda.


2. Substância primeira e segunda

As substâncias primeiras são os indivíduos concretos — este homem, este cavalo, esta árvore —,
que não se predicam de nada, mas de que tudo o mais se predica.
As substâncias segundas são as naturezas universais — o homem, o animal —,
que não subsistem separadamente, mas significam a essência comum presente em muitos.

A substância primeira é o sujeito real do ser;
a segunda é a razão universal pela qual o intelecto conhece o que o sujeito é.

Assim, a primeira responde à pergunta quid est quod est (“o que é o que é”);
a segunda, à pergunta quidditas eius (“qual é a essência dele”).


3. As propriedades da substância

A substância é o que permanece sob a mudança (substat mutationi).
Pois, quando dizemos “o homem se tornou branco”, a brancura vem e vai,
mas o homem permanece.

Ela é, portanto, o sujeito da geração e da corrupção:
nenhuma mudança seria concebível sem algo que permanece.

Além disso, a substância não admite mais ou menos,
pois não se intensifica nem diminui:
ou é, ou não é.
O que admite graus pertence aos acidentes.


4. A relação entre substância e forma

A substância, em sentido próprio, é matéria e forma unidas,
pois nem a matéria sem forma, nem a forma sem matéria,
constituem o ente natural completo.

A forma dá o ato e a determinação;
a matéria, a possibilidade e a individuação.

A substância é, assim, o composto de potência e ato,
onde o ser se realiza como unidade concreta.

“Substantia est illud quod est et quod substat,
actus materiae et formae unitas.”
(A substância é aquilo que é e que subsiste: a unidade do ato e da matéria-forma.)


5. A hierarquia das substâncias

Há graus na substância:

  1. As substâncias corporais, compostas de matéria e forma, sujeitas à mudança;
  2. As substâncias espirituais, formas puras, imutáveis e simples;
  3. A substância divina, ato puro, princípio de todas as demais.

As duas primeiras são criadas e participam do ser;
a última é o próprio ser por essência.

Assim, o nome “substância” aplica-se analogicamente:
no corpo, como sujeito de acidentes;
no espírito, como sujeito de atos;
em Deus, como ser absoluto e subsistente.


6. Substância e conhecimento

A substância, enquanto tal, não é plenamente conhecida pelos sentidos,
pois o sentido apreende os acidentes.
Somente o intelecto penetra a essência,
distinguindo o que subsiste do que aparece.

Por isso, Boécio afirma:

“Os sentidos percebem o mutável; o intelecto apreende o permanente.”

O conhecimento das substâncias é, portanto, metafísico e racional,
enquanto o dos acidentes é sensível e imediato.


7. Conclusão

A substância é o fundamento e a raiz de todas as categorias.
Tudo o que se diz — quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, hábito, posição —
é dito de algo que é substância.

Sem ela, nada pode ser afirmado nem negado.
Ela é o “ser do ente”, o que permanece sob a variedade das aparências.

“Substantia est quod substat, et sine quo nihil est.”
(A substância é aquilo que está por baixo, e sem o qual nada é.)

CAPÍTULO II — DE QUANTITATE

(Sobre a Quantidade)

Depois da substância, que é o fundamento de todo o ser, Aristóteles coloca a quantidade (quantitas), pela qual as coisas são ditas grandes ou pequenas, longas ou breves, múltiplas ou simples.
A substância é o ser em si; a quantidade, o ser sob medida.
Ela não cria o ser, mas o ordena, tornando-o mensurável e divisível.


1. Definição de quantidade

Chama-se quantidade aquilo que pode ser medido, seja em partes contínuas, seja em partes discretas.
Assim, o corpo é quantidade contínua, e o número, quantidade discreta.

A quantidade, portanto, é o modo pelo qual o ente é determinado segundo extensão ou número.
Ela é o que faz com que o ente, permanecendo o mesmo em substância, possa ser dito maior ou menor.

“Quantitas est modus substantiae secundum extensionem vel numerum.”
(A quantidade é o modo da substância segundo a extensão ou o número.)


2. As espécies de quantidade

A quantidade divide-se em contínua e discreta.

  1. A contínua é aquela cujas partes têm um limite comum,
    como a linha, a superfície, o corpo, o tempo e o lugar.
    Ela é mensurável pela continuidade, e não pela soma.
  2. A discreta é aquela cujas partes são separadas,
    como o número e a fala.
    É mensurável pela contagem, e não pela extensão.

A contínua é própria dos corpos;
a discreta, própria dos entes inteligíveis e dos atos da razão.


3. A quantidade e a divisibilidade

A essência da quantidade é ser divisível em partes.
Pois, se não pudesse ser dividida, não seria quantidade, mas unidade simples.
Entretanto, a divisibilidade não destrói a unidade:
o contínuo é uno, ainda que composto de partes potencialmente separáveis.

Assim, a unidade é o termo da quantidade,
e a quantidade é a manifestação da unidade no espaço.

“Unum est terminus quantitatis;
per quantitatem unitas fit visibilis.”
(A unidade é o termo da quantidade; pela quantidade a unidade torna-se visível.)


4. O número como medida

O número é a medida universal da quantidade.
Tudo o que é corpóreo ou inteligível pode ser comparado numericamente,
porque o número é o símbolo da proporção e o espelho da ordem.

A matemática, portanto, é a ciência da quantidade abstrata:
ela não trata de corpos, mas das relações de medida que o intelecto abstrai do corpo.
A razão humana, ao numerar, repete a harmonia do ser,
pois o número é a forma do múltiplo sob a unidade.


5. A continuidade e o tempo

Entre as espécies de quantidade contínua, a mais sutil é o tempo,
porque ele mede não o corpo, mas o movimento.
O tempo é a quantidade do devir,
a extensão do antes e do depois.

Por isso, ele não é substância,
mas modo quantitativo da mudança.
O corpo mede o espaço; o movimento mede o tempo.

A eternidade, por sua vez, não é quantidade,
mas ausência de quantidade, pois é ato puro sem sucessão.


6. A quantidade e a perfeição

A quantidade, sendo medida, não aumenta a perfeição do ser,
mas o torna compreensível e finito.
Quanto maior a quantidade, mais extensa a realidade,
mas não necessariamente mais perfeita.

A perfeição está na forma;
a quantidade, na limitação da forma.
Ela é o sinal da finitude e, ao mesmo tempo, o instrumento da ordem.

Assim, as coisas espirituais são mais perfeitas justamente porque não são quantas,
mas quanto à intensidade do ser, não quanto à extensão.


7. Conclusão

A quantidade é o limite do ser criado:
ela determina o quanto algo é,
sem determinar o que algo é.

Ela é o meio pelo qual o intelecto mede o mundo,
mas também o véu que impede a criatura de ser infinita.

No universo, a quantidade é o vestígio da sabedoria divina —
a proporção, o ritmo e a harmonia da criação,
pela qual o múltiplo não se dissolve e o uno não se perde.

“Mensura est vestigium sapientiae Dei.”
(A medida é o vestígio da sabedoria de Deus.)

CAPÍTULO III — DE QUALITATE

(Sobre a Qualidade)

A qualidade segue imediatamente à quantidade, pois, uma vez que as coisas são mensuráveis, tornam-se também determinadas segundo a forma pela qual são o que são.
A quantidade diz respeito ao “quanto”; a qualidade, ao “como”.
Ela é o modo segundo o qual a substância possui ser e se distingue das demais, não por extensão, mas por perfeição.


1. Definição de qualidade

Chama-se qualidade aquilo segundo o qual o ente é tal qual é.
Assim, o homem é racional, o fogo é quente, o ouro é reluzente.
Ela não cria o ser, mas determina o modo de ser, e por isso é dita “forma do ato”.

“Qualitas est secundum quam aliquid dicitur quale.”
(Qualidade é aquilo segundo o qual algo é dito ser tal como é.)

A qualidade é, portanto, a impressão da forma sobre a substância — o selo da essência sobre a matéria.


2. As quatro espécies de qualidade

Segundo Aristóteles e confirmando a tradição latina,
a qualidade se divide em quatro gêneros principais:

  1. Hábito e disposição (habitus et dispositio);
  2. Potência natural e impotência (potentia et impotentia);
  3. Paixão ou afeição sensível (passio vel affectio);
  4. Forma e figura (forma et figura).

Cada um desses modos exprime uma face da presença da forma no ser,
ora como estabilidade, ora como potência, ora como aparência.


3. Hábito e disposição

O hábito é uma qualidade difícil de mudar, adquirida por repetição e permanência,
como a virtude, a ciência ou a habilidade.
A disposição, ao contrário, é qualidade transitória e mutável,
como a saúde, o calor ou o frio do corpo.

O hábito é o ato estável do ser racional;
a disposição, o estado passageiro do corpo e da alma.

Assim, o hábito pertence ao espírito;
a disposição, à matéria.

“Habitus est qualitas animae rationalis; dispositio, corporis naturalis.”
(O hábito é qualidade da alma racional; a disposição, do corpo natural.)


4. Potência e impotência

A potência é a capacidade natural de agir ou padecer,
enquanto a impotência é a limitação ou privação dessa capacidade.
Ambas expressam o modo como a natureza se encontra em ordem ao ato.

A potência é princípio de movimento;
a qualidade, o modo segundo o qual o movimento se realiza.

Toda natureza é dita boa ou má conforme sua potência é perfeita ou deficiente.
Por isso, a potência é qualidade enquanto é forma do poder de operar.


5. Paixão ou afeição sensível

A paixão (passio) é a qualidade pela qual um sujeito se modifica ao ser afetado por outro,
como a brancura que se imprime sobre a parede,
ou o calor que penetra o ferro.

Ela é o sinal da receptividade da matéria
mostra que o ser corpóreo é passivo e capaz de sofrer alterações.

A paixão, contudo, não destrói o sujeito,
mas manifesta sua capacidade de mudar sem deixar de ser.

Assim, a paixão é o modo visível da mutabilidade,
e a causa pela qual as coisas corporais se tornam perceptíveis.


6. Forma e figura

A figura é a qualidade pela qual o corpo possui término e distinção.
A forma, em sentido amplo, é o princípio de inteligibilidade de toda coisa.

No corpo, a figura é a ordem das partes sob a unidade do todo;
no espírito, a forma é o modelo segundo o qual o ser é compreendido.

A figura torna o corpo belo;
a forma torna o ser inteligível.

“Forma est species intelligibilis; figura est species visibilis.”
(A forma é a espécie inteligível; a figura, a espécie visível.)


7. A relação entre qualidade e substância

A substância é o que é;
a qualidade, o modo como é.
Sem qualidade, o ser seria indeterminado,
puro existir sem fisionomia.

A qualidade é o que faz o ser ser próprio de si mesmo
a marca da diferença ontológica,
a irradiação da essência sobre o fenômeno.

Ela é o “rosto” da substância,
e o brilho da forma na matéria.


8. Conclusão

A qualidade é o elo entre o ser e o aparecer.
Ela traduz a essência em experiência,
a natureza em presença.

Enquanto a quantidade mede,
a qualidade significa;
enquanto a primeira limita,
a segunda expressa.

Na criação, a qualidade é o signo da beleza,
porque é por ela que o ser se manifesta ordenado e luminoso.

“Per qualitatem res pulchrae sunt.”
(Pelas qualidades as coisas são belas.)

CAPÍTULO IV — DE RELATIONE

(Sobre a Relação)

Depois da substância, da quantidade e da qualidade, segue-se a relação, que consiste não no que o ente é em si mesmo, mas no modo como é em comparação com outro.
A relação não designa uma essência, mas uma ordem;
não é um ser completo, mas um modo do ser em referência.


1. Definição de relação

A relação é aquilo segundo o qual uma coisa é dita estar em respeito a outra.
Assim, o pai é pai pelo filho; o mestre é mestre pelo discípulo;
a causa é causa do efeito, e o efeito do princípio que o produz.

Portanto, a relação não é uma natureza isolada,
mas o fundamento de uma dependência mútua.

“Relatio est ordo unius ad alterum.”
(Relação é a ordenação de um ente a outro.)


2. A relação natural e a relação de razão

Nem toda relação é real do mesmo modo.
relações naturais, que existem realmente nas coisas,
e relações de razão, que existem apenas no pensamento.

A relação natural é aquela fundada na própria constituição do ser,
como a dependência da parte para o todo, do corpo para o lugar, do efeito para a causa.
A relação de razão é aquela que nasce do modo de conhecer,
como quando o intelecto compara o semelhante e o dissemelhante,
sem que haja verdadeira dependência real.

Assim, quando dizemos que uma coisa é “igual a outra”,
o intelecto estabelece uma comparação;
mas quando dizemos que “a luz ilumina o ar”,
a relação é natural, porque o ato de iluminar depende da luz.


3. Relações mútuas e unilaterais

Toda relação é ou recíproca, ou não recíproca.

É recíproca quando ambos os termos se referem um ao outro —
como o duplo e o metade, o pai e o filho, o mestre e o discípulo.
É não recíproca quando a referência existe de um lado apenas —
como o conhecimento em relação ao conhecido,
pois o intelecto se refere ao objeto, mas o objeto não se refere ao intelecto,
a menos que seja conhecido.

As relações mútuas pertencem à ordem da simetria;
as unilaterais, à ordem da dependência.


4. Relação e substância

A relação não altera a substância,
mas exprime a ordem das substâncias entre si.
O mesmo ente pode ser relativo sob múltiplos aspectos,
sem multiplicar sua essência.

O homem, enquanto pai, é relativo ao filho;
enquanto cidadão, ao Estado;
enquanto criatura, a Deus.
E, no entanto, é o mesmo homem,
a mesma substância, sob diversos modos de ordenação.

A relação é, pois, o modo da coexistência universal
a lei pela qual o ser não está só.


5. Relação e número

A relação tem afinidade com o número,
pois o número é medida da proporção,
e a proporção é relação.

Toda relação implica comparação,
e toda comparação supõe medida.
Por isso, a matemática é o espelho mais puro da ordem relacional do ser.

Mas a relação metafísica é superior,
porque não mede quantidades, mas perfeições:
o mais e o menos de bondade, de verdade, de ser.


6. Relação e causa

Entre todas as relações, a mais alta é a causal:
a que liga o princípio ao efeito.
Nela, a dependência é real e ontológica:
a causa comunica o ser, e o efeito o recebe.

Toda criatura, enquanto criada, é relativa a Deus;
não como termo de comparação, mas como dependência de ser.

“Creatura ad Deum est relatio realis; Deus ad creaturam, relatio rationis.”
(A criatura tem relação real a Deus; Deus, relação apenas de razão à criatura.)

Assim se preserva a transcendência divina:
Deus não muda por relacionar-se,
mas as criaturas são relativas porque d’Ele dependem.


7. Relação e conhecimento

O intelecto conhece as coisas por relação,
pois todo saber é um retorno do sujeito ao objeto.
Mas essa relação cognitiva é dupla:
de um lado, o intelecto se ordena ao conhecido;
de outro, o conhecido se torna presente no intelecto.

Assim, o ato de conhecer é o espelho da relação ontológica:
é ser-em-outro sem perder o ser em si.


8. Conclusão

A relação é o tecido invisível do universo,
o modo pelo qual o ser se multiplica sem se dividir.
Por ela, tudo o que é se ordena, tudo o que é múltiplo participa da unidade.

A substância é o fundamento;
a quantidade, a medida;
a qualidade, a forma;
mas a relação é a harmonia de todas.

Ela é o princípio da comunhão ontológica,
e o sinal de que o ser criado é, por natureza, ser-com-outro.

“Per relationem universum in seipso concordat.”
(Pela relação, o universo concorda consigo mesmo.)

CAPÍTULO V — DE ACTIONE ET PASSIONE

(Sobre a Ação e a Paixão)

A quinta e a sexta categoria — ação e paixão — pertencem a um mesmo princípio: o do movimento.
Pois todo movimento é simultaneamente ato daquele que age e recepção naquele que sofre.
O agir e o padecer são, portanto, dois aspectos de uma mesma operação, distinta apenas quanto ao sujeito e ao termo.


1. Definição de ação

Chama-se ação o ato pelo qual uma substância move ou transforma outra.
Ela é o exercício da potência ativa,
a passagem do poder de agir à sua realização.

Assim, o fogo aquece, o sol ilumina, o intelecto entende.
Em cada caso, há um princípio ativo que comunica a outro a perfeição que possui.

“Actio est motus a principio agente ad rem patiens.”
(Ação é o movimento que procede do princípio agente até a coisa que padece.)


2. Definição de paixão

A paixão (passio) é o termo correspondente da ação:
é o recebimento da forma proveniente do agente.
Ela não é destruição, mas atualização da potência passiva do ser que recebe.

Assim, o ferro aquecido padece do fogo,
não no sentido de perder-se, mas de receber um novo modo de ser — o calor.

Portanto, a paixão é a receptividade do ato,
não a negação dele.

“Passio est susceptio formae ab agente.”
(Paixão é a recepção da forma proveniente do agente.)


3. A reciprocidade entre ação e paixão

Nenhuma ação é sem paixão,
e nenhuma paixão sem ação.
Mas não são idênticas, pois diferem quanto ao sujeito.

No agente, há ato e princípio;
no paciente, recepção e termo.

Contudo, ambos participam de um mesmo movimento:
o agente age porque tem forma em ato;
o paciente padece porque tem potência para recebê-la.

Assim, no universo, toda causalidade é comunicação de forma:
do mais perfeito ao menos perfeito,
do ato à potência,
do princípio ao fim.


4. Ação natural e ação voluntária

Há duas espécies de ação:

  1. Natural, quando procede da forma própria do agente, como o fogo que aquece;
  2. Voluntária, quando procede da razão e da vontade, como o homem que fala ou constrói.

A primeira pertence à natureza;
a segunda, ao espírito.

Ambas têm o mesmo fundamento metafísico — a passagem do poder ao ato —,
mas diferem quanto à origem:
na natureza, o ato segue necessariamente a forma;
no espírito, segue o juízo e a deliberação.


5. Ação e causa eficiente

A ação é o sinal mais manifesto da causalidade eficiente.
Pois o que age é causa de ser em outro.

Através da ação, o agente imprime sua forma sobre o paciente,
e o mundo se ordena como corrente de causas e efeitos.

No ser criado, toda ação é derivada;
em Deus, a ação é idêntica ao ser:
Seu agir é Sua essência, e Sua essência é Seu ato.

“In Deo actio est ipsa essentia.”
(Em Deus, a ação é a própria essência.)

Assim, a ação divina é sem paixão,
pois o que é ato puro nada recebe — só comunica.


6. Paixão e mutabilidade

A paixão é o sinal da finitude do ser.
Tudo o que padece, muda;
tudo o que muda, é imperfeito.

Mas a mutabilidade não é mal em si:
é a condição pela qual o ser criado progride de potência em ato.
Padece, portanto, não para corromper-se,
mas para atualizar-se segundo sua natureza.

Assim, o corpo sofre para adquirir forma;
a alma sofre para adquirir virtude.
A paixão é o movimento da criatura em direção à perfeição.


7. Ação e paixão na ordem moral

No homem, ação e paixão adquirem sentido moral.
Pois agir é escolher;
e sofrer é aprender pela experiência do outro.

A virtude consiste em agir conforme a razão,
e suportar conforme a ordem da razão.
Quando o agir é reto e o padecer é aceito,
a alma se torna semelhante ao princípio divino,
que age sem desordem e padece sem perda.


8. Conclusão

A ação é o brilho da potência em ato;
a paixão, a abertura da potência ao ato.

O universo é movimento contínuo entre ambos:
nada age sem comunicar, nada padece sem transformar.

A ação é o sopro da causa;
a paixão, a respiração da criatura.
E quando ambos se encontram na harmonia perfeita,
o ser temporal reflete o ato eterno.

“Actio et passio in mundo sunt vestigia aeterni motus Dei.”
(A ação e a paixão no mundo são vestígios do movimento eterno de Deus.)

CAPÍTULO VI — DE UBI ET QUANDO

(Sobre o Lugar e o Tempo)

A seguir vêm duas categorias que, embora distintas, se correspondem: o lugar (ubi) e o tempo (quando).
Ambas não designam o que algo é, mas onde e quando é; não indicam essência, mas situação.
Assim como a substância responde à pergunta “o que é?”, e a quantidade à “quanto?”, o lugar e o tempo respondem às perguntas “onde está?” e “quando está?”.


1. O lugar (ubi)

O lugar é a disposição do corpo em relação aos limites do espaço.
Ele não é algo que existe por si, mas um modo da presença corpórea.

Dizemos que o corpo está “aqui” (hic), não porque o “aqui” seja um ente, mas porque a presença do corpo determina o aqui.

“Ubi non est substantia, sed ordo substantiae ad spatium.”
(O lugar não é substância, mas a ordem da substância em relação ao espaço.)

O lugar é, portanto, a posição do ser extenso sob um ponto de referência, o limite do corpo continente em relação ao contido.


2. O lugar e o corpo

Todo corpo ocupa um lugar, mas o lugar não é corpo.
Pois o corpo é aquilo que preenche; o lugar é o que contém sem preencher.

O lugar é como o molde do corpo;
o corpo, como a impressão do lugar.
E, contudo, ambos não se separam:
não há corpo sem lugar, nem lugar sem corpo.

Assim, o “onde” pertence à ordem da quantidade, mas é acidente distinto:
a quantidade mede a extensão; o lugar, a posição da extensão.


3. O movimento local

Do lugar nasce o movimento local,
que é o primeiro e mais simples dos movimentos.
Pois o mover-se é mudar de lugar,
e toda mudança começa pela translação.

Mas o movimento não é apenas passagem espacial:
ele é imagem do devir universal,
figura visível da passagem do ser da potência ao ato.

“Motus localis est imago totius mutationis.”
(O movimento local é a imagem de toda mudança.)

Assim, o deslocar-se no espaço é símbolo da mutação ontológica —
é o ser que se exercita em deixar de estar “aqui” para estar “alhures”.


4. O tempo (quando)

O tempo é o outro modo pelo qual o ser finito é situado,
não segundo o espaço, mas segundo a sucessão.
Ele é o número do movimento segundo o antes e o depois.

O tempo não é corpo nem substância,
mas medida do movimento;
e como toda medida, existe por relação ao que mede.

“Tempus est mensura motus, non ens sed numerus entis.”
(O tempo é a medida do movimento, não um ente, mas o número do ente.)

O tempo, portanto, não é coisa,
mas a ordem dos atos do ser mutável.


5. O tempo e a alma

A alma humana é a medida do tempo,
porque é nela que se distinguem o antes e o depois.
Sem alma, o tempo não seria percebido;
sem movimento, não seria contado.

Por isso, o tempo é meio termo entre o ser e o conhecer:
real quanto à ordem do mundo,
intelectual quanto à sua apreensão.

O tempo é o espelho do espírito no devir,
onde o que foi e o que será se encontram como memória e expectativa.


6. O tempo e a eternidade

A eternidade não é um tempo sem fim,
mas a ausência de tempo.
Pois onde não há antes nem depois, não há sucessão.
A eternidade é o presente total e imóvel de Deus,
no qual o tempo é apenas uma imagem desdobrada.

Assim, o “quando” é próprio do finito,
e a eternidade, do infinito.

“Aeternitas est totum simul.”
(A eternidade é o todo simultâneo.)

O tempo é o círculo;
a eternidade, o ponto imóvel que o sustenta.


7. O lugar e o tempo como condições da criatura

O lugar e o tempo são os limites da criação,
pois toda criatura é situada e sucessiva.

O corpo é limitado pelo espaço;
a alma, pelo tempo;
Deus, por nenhum.

Ambos — espaço e tempo — são como o tecido do universo,
onde o ser criado se move, aparece e passa.
Mas aquele que os criou é fora do lugar e do tempo,
pois é o mesmo Ser que dá ser a ambos.


8. Conclusão

O lugar e o tempo são, portanto, os modos acidentais da presença,
as condições sob as quais o ser participa da ordem cósmica.

O lugar é o “aqui” do corpo;
o tempo é o “agora” da alma.
Ambos são o horizonte da finitude.

O universo inteiro é, assim, um grande “onde” e um grande “quando”,
um espelho móvel do Ser imutável que o sustenta.

“In Deo neque ubi est, neque quando; sed ipse est locus et tempus omnium.”
(Em Deus não há nem lugar nem tempo; Ele é o lugar e o tempo de todas as coisas.)

CAPÍTULO VII — DE HABITU ET SITU

(Sobre o Hábito e a Posição)

Depois do lugar e do tempo, seguem duas categorias próximas — hábito (habitus) e posição (situs).
Ambas dizem respeito ao corpo enquanto ordenado no espaço, mas diferem:
o habitus exprime o que o corpo possui; o situs, o modo como ele está disposto.


1. O hábito (habitus)

O hábito é o que cobre, reveste ou adorna o corpo.
Assim, diz-se que alguém está vestido, armado, calçado, coroado.
O hábito é, portanto, uma relação exterior de posse:
não pertence à essência do ser, mas à sua aparência sensível.

“Habitus est exterior possessio, quae substantiae advenit.”
(O hábito é uma posse exterior que advém à substância.)

O hábito é acidental, mas significativo,
pois revela a intenção ou o estado daquele que o possui:
a toga distingue o magistrado; a armadura, o soldado;
o manto, o monge.

Assim, o hábito é sinal visível de uma função invisível.


2. O hábito e o corpo

O corpo é o sujeito natural do hábito,
pois somente o que é extenso pode ser revestido.
Mas também se fala de “hábito” na alma,
quando se refere à disposição estável de suas potências —
como o hábito da virtude ou da ciência.

Portanto, há um hábito exterior (vestimenta, instrumentos)
e um hábito interior (disposição estável da alma).

Ambos são acidentais,
mas o segundo é mais nobre,
porque é forma da perfeição racional.

“Habitus corporis transit, habitus animi manet.”
(O hábito do corpo passa, o da alma permanece.)


3. O hábito e a ordem social

O hábito, enquanto sinal visível,
é também meio de ordem e distinção social.
Ele marca a hierarquia, a dignidade e a função.

Não é apenas vestimenta, mas símbolo da posição do ser no cosmos humano.
A toga do magistrado, o véu da virgem, o hábito do monge —
todos indicam uma conformação entre o exterior e o interior,
entre a aparência e a alma.

Boécio vê nisso o reflexo da própria ordem cósmica,
em que o ser se reveste de formas para manifestar sua perfeição.


4. A posição (situs)

A posição (situs) é o arranjo das partes do corpo em relação ao todo.
Ela expressa a ordenação espacial da substância,
como estar deitado, sentado, inclinado, ereto.

A posição é o modo pelo qual o corpo ocupa o espaço,
não quanto ao lugar, mas quanto à orientação interna das partes.

“Situs est ordo partium in corpore secundum locum.”
(A posição é a ordem das partes no corpo segundo o lugar.)

A posição manifesta a estabilidade da forma:
o corpo, para ser reconhecido, deve ter partes ordenadas e proporcionais.
Sem situs, o corpo seria informe;
sem ordem, seria caos.


5. Posição e movimento

A posição está entre o repouso e o movimento:
ela é o limite entre o que muda e o que permanece.

Enquanto o movimento muda o lugar,
a posição conserva o equilíbrio.
Por isso, a posição é o princípio do repouso ordenado.

Na natureza, o situs exprime a sabedoria da forma:
as raízes voltam-se para baixo,
os ramos para cima,
os olhos para a luz,
os pés para o solo.

Nada está ao acaso;
tudo tem posição conforme a finalidade.


6. O hábito e a posição na ordem espiritual

Na alma, há também habitus e situs.
O hábito é o que a alma possui — virtude, ciência, graça.
A posição é o modo como ela se ordena — humildade, adoração, recolhimento.

A posição espiritual é o situs interior:
a atitude do ser diante do Bem.
Erguer-se para Deus é posição da alma reta;
curvar-se ao vício é posição invertida.

Assim, a física dos corpos reflete a moral dos espíritos.


7. Conclusão

O hábito e a posição são os acidentes da forma manifesta.
Um mostra o que o ser possui;
o outro, como ele está disposto.

Ambos pertencem à ordem da figura e da aparência,
mas servem à verdade,
pois sem eles o ser não seria reconhecível no mundo sensível.

O hábito é o véu do ser;
a posição, o gesto da forma.
E juntos, revelam a harmonia entre o exterior e o interior,
entre o corpo que aparece e a alma que ordena.

“Per habitum et situm corpus fit expressio animae.”
(Pelo hábito e pela posição, o corpo torna-se expressão da alma.)

CAPÍTULO VIII — DE OPPOSITIONE

(Sobre a Oposição)

Nenhum conceito pode ser formado sem distinção,
e nenhuma distinção sem oposição.
Pois conhecer é distinguir;
e distinguir é pôr algo contra algo.

Por isso, Aristóteles, ao tratar das categorias, introduz também a oposição (oppositio),
pela qual o intelecto reconhece o ser e o não-ser,
o um e o outro,
a luz e a sombra.

A oposição é, portanto, o fundamento lógico da diferença,
sem a qual não há ciência nem discurso.


1. Definição de oposição

Chama-se oposição o conflito de afirmações ou naturezas que não podem existir juntas no mesmo sujeito,
ou que, por sua essência, se excluem mutuamente.

“Oppositio est contrariarum rerum inter se exclusio.”
(Oposição é a exclusão recíproca das coisas contrárias.)

A oposição não é um ser, mas uma relação de exclusão,
pela qual o intelecto apreende a diferença entre os modos do ser.


2. As quatro espécies de oposição

Toda oposição se reduz a quatro gêneros principais:

  1. Contrariedade (contrarietas);
  2. Privação e posse (privatio et habitus);
  3. Contradição (contradictio);
  4. Relação (relatio ad invicem).

Essas quatro espécies abrangem tanto o plano lógico quanto o ontológico,
pois o ser se manifesta por diferenças e contrários.


3. Contrariedade

A contrariedade é a oposição entre dois extremos de uma mesma ordem,
dos quais um é a máxima afirmação e o outro a máxima negação de uma qualidade.

Assim, o quente e o frio, o bem e o mal, o branco e o negro.
Não podem coexistir no mesmo sujeito sob o mesmo aspecto,
mas admitem graus intermediários,
como o morno entre o quente e o frio.

A contrariedade é, portanto, oposição de extremos dentro do mesmo gênero.

“Contraria sunt quae in eodem genere maxima distant.”
(São contrários os que, num mesmo gênero, mais distam entre si.)

Ela é o princípio do movimento e da geração:
do conflito dos contrários nasce o devir.


4. Privação e posse

A privação é a ausência de uma forma que naturalmente deveria estar presente;
a posse, sua presença efetiva.

A cegueira é privação da visão;
a vista, sua posse.

Essa oposição é mais radical,
porque o privado é impotente para aquilo de que carece.

Ela introduz no ser a noção de falta,
pela qual se explica a corrupção e o mal físico.

Mas mesmo a privação tem sentido positivo:
revela que o ser é limitado,
e que a perfeição só é compreendida pela sua ausência.


5. Contradição

A contradição é a oposição entre o ser e o não-ser do mesmo sujeito,
no mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
É o princípio do pensamento verdadeiro,
pois toda verdade nasce da afirmação de um termo e da negação de seu oposto.

“Contradictoria simul vera esse non possunt.”
(Os contraditórios não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo.)

O intelecto opera pela contradição:
dizer “é” ou “não é”.
Entre ambos não há meio;
ou o ser é afirmado, ou é negado.

Assim, a contradição é a raiz da lógica do ser,
pois define a impossibilidade da coexistência do verdadeiro e do falso.


6. Relação recíproca

A oposição relativa é aquela pela qual dois termos se determinam mutuamente,
como o mestre e o discípulo, o senhor e o servo, o maior e o menor.

Aqui não há exclusão, mas correlação:
um só existe em virtude do outro.

É oposição de dependência, não de destruição.
Os relativos são opostos em razão,
mas concordes no ser.

“Relativa simul sunt et opponuntur.”
(Os relativos coexistem e se opõem ao mesmo tempo.)

Essa oposição é o reflexo mais elevado da harmonia do cosmos,
onde toda distinção implica unidade proporcional.


7. A função da oposição no intelecto

O intelecto humano compreende por oposição.
Conhecer o ser é concebê-lo diante do não-ser;
entender a luz é distingui-la das trevas;
afirmar a verdade é negar o erro.

Toda definição contém um elemento de exclusão:
“homem” se define por negar o irracional;
“alma racional” se distingue do “corpo” pelo que lhe falta.

Assim, o pensamento é essencialmente dialético:
mover-se entre os opostos para descobrir o meio da verdade.


8. Conclusão

A oposição é o limite do pensamento e o princípio da ordem.
Sem ela, o ser seria confuso e o intelecto, cego.

Nos contrários, o mundo se equilibra;
nas privações, o finito se reconhece;
nas contradições, a verdade se defende;
nas relações, o todo se harmoniza.

O universo é feito de oposições que se compõem,
como a música de notas distintas que formam um só acorde.

“Per oppositionem res sunt distinctae, per concordiam unum universum.”
(Pela oposição as coisas são distintas; pela concordância, o universo é uno.)

CAPÍTULO IX — DE FINIBUS PRAEDICAMENTORUM

(Sobre os Limites das Categorias)

Chegamos, por fim, ao limite e à unidade de todas as categorias.
Tudo o que é dito ou pensado se reduz a esses modos de predicação: substância, quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, hábito, posição.
Nada pode ser afirmado fora deles,
pois eles abrangem todas as maneiras pelas quais o ser se manifesta e se torna inteligível.


1. A unidade das categorias

As categorias não são realidades independentes,
mas modos de significar o ser.
Elas não dividem o ser realmente,
mas segundo o modo como o intelecto o apreende.

“Praedicamenta non dividunt ens secundum rem, sed secundum rationem.”
(As categorias não dividem o ente segundo a coisa, mas segundo a razão.)

Assim, todas convergem para um mesmo princípio — a substância,
que é o suporte e o fundamento de tudo o que pode ser dito.

Sem substância, não há quantidade a medir,
nem qualidade a distinguir,
nem relação a ordenar,
nem ação ou paixão que se realize.

As demais categorias são, portanto, acidentes do ser,
e a substância é seu sujeito universal.


2. A relação entre os predicamentos

As categorias formam uma hierarquia.

  • A substância está no ápice, como princípio do ser;
  • A quantidade determina sua medida;
  • A qualidade, sua forma e distinção;
  • A relação, sua ordem para o outro;
  • A ação e a paixão, seu movimento e causalidade;
  • O lugar e o tempo, seu modo de presença;
  • O hábito e a posição, sua configuração no mundo sensível.

Todas dependem umas das outras,
mas apenas a substância existe em si;
as demais, em outro.

“Substantia per se est; cetera in ipsa sunt.”
(A substância é por si; as demais estão nela.)


3. A analogia do ser

As categorias mostram que o ser não é unívoco,
isto é, não se diz de todas as coisas da mesma maneira.
Mas também não é equívoco,
pois há entre todos os modos de ser uma analogia e proporção.

O ser se diz de muitos modos,
mas sempre em referência a um primeiro: a substância.

“Ens dicitur multipliciter, sed semper ad unum.”
(O ser se diz de muitos modos, mas sempre em relação a um só.)

Assim, a analogia é a chave da metafísica:
ela une o que é diverso sem confundir,
e distingue sem separar.


4. A função das categorias na ciência

As categorias são o alfabeto da realidade.
Com elas, o intelecto compõe todos os juízos e demonstrações.
Elas permitem ordenar o conhecimento,
distinguir o necessário do acidental,
o essencial do relativo,
o real do conceitual.

Sem as categorias, o discurso seria um ruído sem forma;
com elas, torna-se linguagem do ser.

Boécio afirma que as categorias não são apenas instrumentos da lógica,
mas vestígios da ordem divina impressa nas coisas.

Pois se há proporção, número e medida,
é porque o Criador as dispôs segundo Sua sabedoria.


5. O limite do pensamento categorial

As categorias, porém, têm limite.
Elas exprimem apenas o ser criado e finito.
O Ser absoluto, que é Deus,
não pertence a nenhuma categoria,
pois é fora de toda predicação.

“Deus non est in praedicamento.”
(Deus não está em nenhuma categoria.)

Deus não é substância entre as substâncias,
nem qualidade entre as qualidades,
mas o próprio Ser,
do qual todas as categorias recebem a possibilidade de ser.

Assim, as categorias pertencem à ciência humana,
mas não à natureza divina.
Elas descrevem a ordem da criação,
não o mistério do Criador.


6. Conclusão geral

Conclui-se, portanto, que as dez categorias são os dez modos
pelos quais o ser pode ser dito, compreendido e nomeado.
Elas são o mapa da inteligibilidade,
não o limite do real.

A substância é o eixo;
os acidentes, as irradiações;
o intelecto, o espelho;
e Deus, o princípio e o fim de todos.

A lógica das categorias é, assim, o reflexo da ordem ontológica,
e esta, por sua vez, o reflexo da sabedoria divina.

“Per praedicamenta intellectus ascendit ab ente ad Ipsum Esse.”
(Por meio das categorias, o intelecto ascende do ente ao próprio Ser.)


Epílogo

Eis, pois, o círculo completo do pensamento:
da substância ao acidente,
do ser ao dizer,
do dizer ao compreender,
do compreender ao Uno.

As categorias não são o fim do saber,
mas o seu limiar —
a linguagem pela qual o homem,
mesmo na finitude de sua razão,
participa da luz do Ser eterno.

“Omnia in Deo sunt, non per praedicamenta, sed per unitatem.”
(Tudo está em Deus, não segundo as categorias, mas segundo a unidade.)

EPÍLOGO GERAL — FINIS OPERIS

(Conclusão do Comentário às Categorias de Aristóteles)

Todo o caminho da razão começa com o ser e termina na unidade.
As categorias, que à primeira vista parecem apenas formas de classificação lógica, são, em verdade, os degraus pelos quais o intelecto humano ascende da multiplicidade das coisas à simplicidade do ser.
Nelas, o espírito aprende a discernir o que é essencial do que é acidental, o que subsiste do que depende, o que permanece do que passa.
São como janelas abertas sobre o edifício invisível da realidade, por onde a luz da ordem se faz inteligível.

A substância é o fundamento, o primeiro chão da existência.
Nela repousa o sentido de todas as outras categorias,
pois tudo o que se diz — quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, hábito e posição —
só é dito de algo que é.
A substância é, pois, o ponto imóvel sobre o qual o ser se levanta e o pensamento repousa.

A quantidade ensina à razão que o ser pode ser medido;
a qualidade, que pode ser belo e distinto;
a relação, que nenhum ser está só;
a ação e a paixão, que o ser é movimento e comunicação;
o lugar e o tempo, que o ser é presença e devir;
o hábito e a posição, que o ser tem forma e ordem.

E no entanto, todas essas distinções, tão necessárias ao discurso,
não dividem a unidade profunda do ser,
assim como as cores não dividem a luz de onde provêm.
O intelecto as estabelece para compreender,
mas a verdade última transcende o próprio modo de compreender.

Pois Deus não está em nenhuma categoria,
nem pode ser dito substância, nem qualidade, nem relação,
senão de modo analógico e participativo.
Ele é o Esse Ipsum, o Ser por essência,
que dá às categorias a possibilidade de existir e de significar.

O filósofo, portanto, deve usar as categorias como degraus, não como muros.
Elas guiam a razão até os confins da multiplicidade,
mas, no limiar do Uno, silenciam.
Ali onde a palavra não alcança e o conceito não divide,
começa o verdadeiro conhecimento — aquele que os antigos chamavam intellectus,
e que os santos chamaram contemplatio.

Boécio encerra assim o seu comentário com o reconhecimento de que a sabedoria humana,
mesmo em seu mais alto rigor lógico,
é apenas um reflexo da sabedoria divina.
A ordem das palavras espelha a ordem das coisas,
e a ordem das coisas é imagem da mente criadora.

“Ordo verborum imago est ordinis rerum; ordo rerum imago est ordinis Dei.”
(A ordem das palavras é imagem da ordem das coisas; e a ordem das coisas, imagem da ordem de Deus.)


Conclusão Final

Tudo o que é, é dito sob um nome;
e todo nome aponta, em última instância, para o Nome que não pode ser dito.
As categorias são os nomes do ser criado;
mas acima delas está o Inefável,
que é princípio, meio e fim de todo o pensar.

Assim se cumpre o círculo da razão:
começa nas coisas, sobe ao ser, e termina no Silêncio.

“Omnis ratio in silentio Dei consummatur.”
(Toda razão se consuma no silêncio de Deus.)

Finis Operis.

ARTIGO SUPLEMENTAR — DE PRAEDICABILIBUS

(Sobre os Modos de Predicação)

Toda ciência e todo discurso se fundam no ato de predicar, isto é, no dizer algo de algo.
Mas não se pode predicar de qualquer modo, pois o que se diz pode expressar a essência, a diferença, a propriedade ou o acidente daquilo de que se fala.
Por isso, os antigos estabeleceram cinco modos fundamentais de predicação — os praedicabilia —, pelos quais o intelecto distingue e ordena os conceitos do ser.


1. O gênero (genus)

O gênero é aquilo que se predica de muitos, diferentes segundo a espécie, mas idênticos quanto à essência comum.
Assim, “animal” é gênero de homem, cavalo e leão: todos são animais, embora se diferenciem em espécie.

O gênero responde à pergunta “O que é em comum?” (quid commune est).
Ele é o primeiro grau da universalidade, pois contém sob si as espécies.

“Genus est quod de pluribus specie differentibus praedicatur, in quid.”
(Gênero é aquilo que se predica de muitos, diferentes em espécie, segundo o que são.)

O gênero é a matéria lógica do conceito:
indica o campo de pertencimento de uma natureza.


2. A espécie (species)

A espécie é aquilo que se predica de muitos diferentes apenas segundo o número, mas idênticos na essência específica.
Assim, “homem” é espécie: diz-se de Sócrates, Platão, Aristóteles e de todo indivíduo humano.

A espécie responde à pergunta “O que é?” (quid est).
Ela é o termo médio entre o gênero e o indivíduo: universal quanto à forma, particular quanto à determinação.

“Species est quod de pluribus numero differentibus praedicatur, in quid.”
(Espécie é o que se predica de muitos, diferentes em número, segundo o que são.)

Enquanto o gênero mostra a comunidade do ser,
a espécie mostra sua determinação essencial.


3. A diferença (differentia)

A diferença é o que distingue uma espécie de outra dentro do mesmo gênero.
Ela é o sinal da forma específica, o traço que dá contorno à essência.

Assim, a “racionalidade” distingue o homem dos outros animais;
a “sensibilidade”, o animal do vegetal.

“Differentia est per quam species sub eodem genere discernuntur.”
(Diferença é aquilo pelo qual as espécies sob o mesmo gênero se distinguem.)

A diferença é a causa formal da definição,
pois sem ela o gênero seria indeterminado.
Diz-se, portanto, que o gênero fornece a matéria lógica,
e a diferença, a forma lógica da definição.


4. A propriedade (proprium)

A propriedade é o atributo que pertence a toda uma espécie e somente a ela,
embora não constitua sua essência.
Assim, “rir” é próprio do homem:
todos os homens podem rir, e só os homens,
mas o riso não é o que faz o homem ser homem.

A propriedade é o sinal inseparável da essência,
como o brilho é da chama ou a luz é do sol.

“Proprium est quod convenit soli alicui speciei et omni, et semper.”
(Propriedade é o que convém somente a uma espécie, a todos os indivíduos dela, e sempre.)

Ela é o vestígio da essência na operação,
a expressão acidental da natureza essencial.


5. O acidente (accidens)

O acidente é aquilo que pode estar ou não estar no sujeito, sem destruir-lhe a essência.
Assim, a brancura, a altura, o calor, o movimento — todos podem mudar sem que o homem deixe de ser homem.

“Accidens est quod potest adesse et abesse praeter corruptionem subjecti.”
(Acidente é o que pode estar presente ou ausente sem que o sujeito se corrompa.)

O acidente é o sinal da mutabilidade e contingência das coisas.
Enquanto a essência permanece, o acidente muda;
é ele que faz a variedade do mundo sensível.

Mas mesmo o acidente não é inútil:
é o modo pelo qual a forma essencial se manifesta no tempo e na aparência.


6. A ordem dos predicáveis

Os cinco predicáveis formam a escala do conhecimento lógico:

  1. O gênero dá o campo universal;
  2. A espécie determina a essência;
  3. A diferença especifica a forma;
  4. A propriedade manifesta a natureza;
  5. O acidente exprime a aparência.

Por meio deles, a mente humana sobe da multiplicidade à essência,
e, descendo, aplica a essência ao indivíduo.

Assim, a definição perfeita une gênero e diferença;
a descrição perfeita, propriedade e acidente.

“Genus et differentia constituunt definitionem; proprium et accidens perficiunt cognitionem.”
(O gênero e a diferença constituem a definição; a propriedade e o acidente completam o conhecimento.)


7. Conclusão do tratado dos predicáveis

Os cinco predicáveis, junto das dez categorias,
completam a estrutura da lógica universal.
As categorias dizem o modo de ser;
os predicáveis, o modo de dizer.

Ambas são imagens da mesma ordem —
a primeira ontológica, a segunda racional.

E como a alma humana é mediadora entre o ser e o verbo,
essas duas ordens se unem na palavra,
que é, para Boécio, o sinal mais puro do intelecto.

“Sermo est nexus entis et intelligibilis.”
(A palavra é o laço entre o ser e o inteligível.)

Com isso, o pensamento boeciano se encerra:
das coisas à linguagem, da linguagem ao sentido,
e do sentido ao Ser primeiro, que é princípio de toda significação.


Epílogo final dos Praedicabilia

A lógica, quando se eleva ao seu cume,
torna-se metafísica.
Pois ao ordenar as palavras, o intelecto participa da própria ordem do ser;
e ao compreender as distinções do ser, pressente a unidade de sua causa.

O filósofo que conhece as categorias e os predicáveis
não possui apenas a técnica do raciocínio,
mas a arte de reconhecer a sabedoria que estrutura o cosmos.

Assim, o círculo se fecha:
do ens ao dicibile,
do dicibile ao intelligibile,
e do intelligibile ao Esse Ipsum,
em quem todas as distinções cessam,
e todo pensamento encontra repouso.

“Finis scientiae est unitas.”
(O fim da ciência é a unidade.)

Finis Operis Logici.

ÍNDICE GERAL — IN LIBRUM PRAEDICAMENTORUM EXPOSITIO

(Comentário de São Tomás de Aquino às Categorias de Aristóteles)

Proemium (Prólogo)

  1. Sobre o objetivo das Categorias.
  2. A ordem do livro no conjunto do Organon.
  3. A relação entre a lógica, a linguagem e o ser.
  4. Por que Aristóteles inicia a filosofia pela lógica.

Capítulo I — Da Natureza das Categorias

  1. O que são as categorias (quid sunt praedicamenta).
  2. Diferença entre categorias e predicáveis.
  3. As categorias como modos de significar o ser (modi significandi ens).
  4. O princípio da analogia do ser e a relação com a substância.

Capítulo II — Da Substância

  1. Definição de substância primeira e segunda.
  2. Por que a substância é o primeiro predicamento.
  3. A substância como sujeito de predicação e de existência.
  4. A dependência dos acidentes.
  5. A substância divina e a substância criada.

Capítulo III — Da Quantidade

  1. Natureza e espécies da quantidade.
  2. O número e a continuidade.
  3. A quantidade como mensuração do ser corporal.
  4. Relação entre quantidade e divisibilidade.
  5. O limite do matemático em relação ao metafísico.

Capítulo IV — Da Qualidade

  1. As quatro espécies de qualidade segundo Aristóteles.
  2. Hábito e disposição.
  3. Potência e impotência.
  4. Paixão e figura.
  5. A qualidade como princípio de distinção e perfeição.
  6. A analogia entre qualidade sensível e qualidade moral.

Capítulo V — Da Relação

  1. A relação como ordem de um ser a outro.
  2. Relações reais e relações de razão.
  3. Relação e analogia.
  4. A relação entre Criador e criatura.
  5. O ser relativo e o ser absoluto.

Capítulo VI — Da Ação e da Paixão

  1. A ação como atualização do agente.
  2. A paixão como recepção da forma.
  3. O vínculo entre ato e potência.
  4. A ação divina e o agir criado.
  5. O movimento como ato do ente em potência.

Capítulo VII — Do Lugar e do Tempo

  1. O lugar como ordem do corpo no espaço.
  2. O tempo como número do movimento.
  3. A presença e a duração.
  4. O contraste entre tempo e eternidade.
  5. A finitude das criaturas situadas.

Capítulo VIII — Do Hábito e da Posição

  1. Diferença entre posse e disposição.
  2. O hábito como modo de revestimento e posse.
  3. A posição como ordem das partes no corpo.
  4. O sentido espiritual do hábito e da posição.

Capítulo IX — Da Oposição

  1. As espécies de oposição.
  2. Contrariedade, contradição, privação e relação.
  3. A oposição como fundamento da distinção.
  4. A oposição e o princípio de não contradição.

Capítulo X — Dos Limites das Categorias

  1. A subordinação de todas à substância.
  2. O alcance lógico e metafísico das categorias.
  3. A analogia do ser e o retorno à unidade.
  4. Por que Deus não está em nenhum predicamento.

Epílogo Geral — De Ordine Rationis ad Ens

(Sobre a Ordem da Razão em relação ao Ser)

  1. A lógica como imagem da ordem ontológica.
  2. O intelecto como mediador entre o ser e o dizer.
  3. As categorias como espelho da criação.
  4. A consumação do saber na unidade do Ser.

PRÓLOGO (PROOEMIUM)

(Sobre o objetivo e a ordem das Categorias)

Toda ciência humana começa no conhecimento das coisas por meio de signos.
E como a mente não pode atingir imediatamente a natureza das coisas, necessita de uma via ordenada — uma disciplina que ensine a pensar, a definir, a afirmar e a negar corretamente.
Esta ciência é chamada lógica, porque ensina a razão (logos) a proceder segundo o próprio modo do intelecto.

A lógica é, portanto, instrumento da filosofia (organon philosophiae),
não fim, mas meio: prepara a mente para as ciências da natureza, da moral e do ser.
Por isso, Aristóteles a colocou no início de toda a série de suas obras, como porta de entrada para o saber universal.


1. A finalidade das Categorias

O primeiro livro da lógica aristotélica é o das Categorias,
no qual o Filósofo ensina os modos fundamentais de significar o ente.
Com efeito, tudo o que se pode dizer ou pensar pertence a algum desses modos,
pois o discurso nada mais é do que o reflexo da estrutura do ser.

Assim como o ser se divide em substância e acidentes,
assim também as palavras se dividem conforme os modos de significar o que é.
Logo, conhecer as categorias é conhecer os modos da realidade segundo a razão.

“Praedicamenta sunt modi significandi ens.”
(As categorias são modos de significar o ser.)

Por isso, quem ignora as categorias fala confusamente,
pois não distingue o essencial do acidental, o próprio do relativo, o ato da potência.
Mas quem as compreende adquire o princípio de toda distinção lógica e metafísica.


2. O lugar das Categorias no Organon

As Categorias ocupam o primeiro lugar entre os livros lógicos,
porque nelas se aprende o que deve ser dito, antes de aprender como deve ser dito.
Nos tratados seguintes — De Interpretatione, Analytica Priora, Analytica Posteriora, Topica e Sophistici Elenchi —, Aristóteles mostra o processo do raciocínio;
mas aqui, nas Categorias, ele mostra os termos primeiros do pensamento.

O Organon inteiro é um caminho ordenado:

  • primeiro, as Categorias, sobre os nomes e os modos de ser;
  • depois, o De Interpretatione, sobre as proposições;
  • em seguida, os Analíticos, sobre a demonstração;
  • os Tópicos, sobre a argumentação provável;
  • e, por fim, os Sofísticos, sobre as falácias e enganos.

Assim, a lógica começa onde o ser se diz e termina onde o erro se desfaz.


3. A relação entre o ser, o pensar e o dizer

Entre o ser e o dizer há uma correspondência mediada pelo intelecto.
O intelecto concebe o ser e, ao concebê-lo, o expressa por meio de palavras.
As palavras são, pois, sinais do pensamento, e o pensamento é imagem do ser.

“Voces significant conceptus mentis, et conceptus rerum similitudines.”
(As palavras significam os conceitos da mente, e os conceitos, as semelhanças das coisas.)

Logo, a lógica, embora trate de signos, é uma ciência reflexiva do ser.
Pois tudo o que se pensa, mesmo quando tratado segundo a linguagem,
refere-se ao modo de ser daquilo que é pensado.

Assim, o estudo das categorias é o primeiro exercício da metafísica,
pois nela se aprende de que maneiras o ser pode ser dito
sem confundir o que existe em si com o que existe em outro.


4. Por que Aristóteles inicia a filosofia pela lógica

Aristóteles inicia pela lógica porque a mente humana é discursiva.
Não apreendemos o ser todo de uma vez,
mas por partes e distinções.
E para que o pensamento caminhe com ordem,
é necessário conhecer primeiro os princípios de seu movimento —
os modos de predicação, de afirmação e de negação.

A lógica é, portanto, a ordem do pensar que prepara a ordem do ser conhecido.
Ela não cria a verdade, mas a reflete com pureza.

“Logica est scientia directiva actus rationis.”
(A lógica é a ciência que dirige o ato da razão.)

Por isso, Tomás conclui o prólogo dizendo:
aquele que dominar a ciência das categorias
terá aprendido não apenas a falar corretamente,
mas a pensar conforme a estrutura do real
e assim, estará pronto para subir da lógica à metafísica,
do nome ao ente, e do ente ao princípio do Ser.

CAPÍTULO I — DA NATUREZA DAS CATEGORIAS

(De Natura Praedicamentorum)


1. O que são as categorias

As categorias são os modos universais pelos quais o ente pode ser dito.
Pois, como toda proposição afirma ou nega algo de algo,
é necessário que os termos de que se compõe o discurso
sejam ordenados segundo certos gêneros supremos de significação.

Esses gêneros são chamados praedicamenta, porque tudo o que é dito (praedicatur)
pertence necessariamente a um deles.
Assim, quando dizemos “o homem é animal”,
o predicado “animal” pertence ao gênero de substância;
quando dizemos “o homem é branco”,
pertence ao gênero de qualidade;
quando dizemos “o homem está em Roma”,
pertence ao gênero de lugar.

“Praedicamenta sunt genera prima rerum, secundum quae omne ens significatur.”
(As categorias são os primeiros gêneros das coisas, segundo os quais todo ente é significado.)

Logo, as categorias não são invenções do discurso,
mas correspondem aos modos reais segundo os quais o ser existe e é conhecido.


2. Diferença entre categorias e predicáveis

Convém distinguir entre categorias e predicáveis (praedicabilia).

Os predicáveis — gênero, espécie, diferença, próprio e acidente —
referem-se ao modo como algo é dito de outro dentro da estrutura do conceito.
As categorias, ao contrário, referem-se ao modo como o próprio ser é dito em sua totalidade.

Assim, quando digo “homem é animal”, falo do gênero (predicável);
mas quando digo “animal é substância”, falo do modo de ser (categoria).

Os predicáveis pertencem à ordem lógica do conceito;
as categorias, à ordem ontológica da significação.

Por isso, as categorias são mais universais:
tudo o que se pode predicar, seja gênero ou espécie,
pertence a uma das dez categorias.

“Praedicabilia ordinantur ad intellectum; praedicamenta ad rem.”
(Os predicáveis ordenam-se ao intelecto; as categorias, à coisa mesma.)


3. As categorias como modos de significar o ser

Aristóteles diz que o ser se diz de muitos modos,
e cada um desses modos é uma categoria.
Assim, o ser se diz como substância,
ou como quantidade,
ou como qualidade,
ou como relação,
e assim sucessivamente.

Mas o ser, ainda que se diga de muitos modos,
é sempre um só na sua fonte.
Os modos não dividem o ser realmente,
mas segundo as formas de significação que o intelecto abstrai da realidade.

“Ens non dividitur realiter per praedicamenta, sed secundum rationes significandi.”
(O ente não é realmente dividido pelas categorias, mas segundo as razões de significação.)

As categorias, portanto, não são naturezas separadas,
mas expressões diversas do mesmo ser considerado sob ângulos distintos:
como subsistente, mensurável, qualificado, ordenado, ativo, passivo, situado e disposto.


4. O princípio da analogia do ser

Como o ser é dito de muitos modos, mas sempre em relação a um primeiro — a substância —,
diz-se que o ser é análogo (ens analogum).
Não é unívoco, pois não se diz do mesmo modo de todas as coisas;
nem equívoco, pois não se diz de modo totalmente diverso;
mas proporcional, conforme a ordem das categorias entre si.

Assim, o ser da substância é o ser por excelência,
enquanto o ser dos acidentes é ser por relação à substância.

“Alia sunt entia per se, alia per aliud.”
(Alguns são entes por si, outros por outro.)

A analogia, portanto, é o laço que mantém unidade na diversidade das categorias.
Sem ela, o ser se dispersaria; com ela, o múltiplo retorna ao uno.


5. O papel das categorias na ciência

Toda ciência humana procede pela divisão e definição.
Mas só se pode dividir aquilo cujos modos foram previamente conhecidos.
As categorias, portanto, são o fundamento do método científico:
delimitam os gêneros supremos a partir dos quais toda definição se compõe.

Por exemplo, ao definir “homem”, tomamos o gênero (animal, substância animada)
e a diferença (racional): ambos estão contidos nas categorias de substância e qualidade.
Logo, a definição mesma se constrói a partir das categorias.

As categorias são, assim, a gramática metafísica do real:
ensinam a razão a falar segundo a ordem do ser.


6. Conclusão

As categorias não são apenas formas lógicas,
mas o reflexo do modo como o ser se oferece à inteligência.
Nelas, o intelecto humano aprende a ver que pensar é participar da ordem do ser,
e que o discurso, quando é verdadeiro, é imagem dessa ordem.

Por isso, São Tomás chama as categorias de “espelhos do real” (specula entis):
por meio delas, a mente se educa para reconhecer a diferença entre o que é em si e o que é por outro.

“Praedicamenta docent mentem discernere modum essendi ab eo quod est.”
(As categorias ensinam a mente a discernir o modo de ser daquilo que é.)

CAPÍTULO II — DE SUBSTANTIA

(Sobre a Substância)


1. A prioridade da substância

Entre todos os modos do ser, o primeiro é a substância,
porque tudo o que existe ou é substância, ou existe em uma substância.
Ela é o fundamento e o sujeito de todos os acidentes,
assim como o alicerce sustenta o edifício.

“Substantia est primum inter praedicamenta, quia omnia alia in ipsa fundantur.”
(A substância é a primeira entre as categorias, porque todas as outras nela se fundamentam.)

A razão dessa prioridade é dupla:
primeiro, porque ela é o sujeito do ser (subiectum essendi);
segundo, porque é o sujeito da predicação (subiectum praedicationis).

Nada pode ser predicado senão de algo que existe;
e nada existe senão como substância ou em uma substância.


2. Definição de substância

Chama-se substância aquilo que existe em si e não em outro.
Ela é o que subsiste, o que possui o ser por si mesma.
Ao contrário, os acidentes não subsistem, mas in-esse — existem “em outro”.

“Substantia est cui competit esse non in alio, sed in seipso.”
(Substância é aquilo a que compete existir, não em outro, mas em si mesma.)

Essa definição exprime o núcleo da ontologia tomista:
a substância é sujeito e portadora do ato de ser (actus essendi).
Ela não é o próprio ser, mas aquilo que tem o ser.
O ser pertence-lhe como ato; a essência, como potência.

Assim, na substância criada, há composição:
o que algo é (quidditas), e o fato de ser (esse).


3. Substâncias primeiras e segundas

A substância se divide em primeira e segunda.

  • A substância primeira é o indivíduo concreto, o hoc aliquid:
    Sócrates, esta árvore, este cavalo.
    Ela é sujeito de predicação, mas não se predica de nada.
  • A substância segunda é a natureza ou essência comum:
    o homem, o cavalo, o animal.
    Ela não subsiste separadamente,
    mas é o conceito universal pelo qual o intelecto conhece o que as substâncias primeiras são.

“Prima substantia est quae nec de alio praedicatur, nec in alio est; secunda, quae de pluribus dicitur.”
(A primeira substância é aquela que não se predica de outra nem está em outra; a segunda, a que se diz de muitos.)

A primeira possui o ser;
a segunda, a inteligibilidade do ser.

A primeira é princípio da existência;
a segunda, princípio da ciência.


4. A relação entre substância e acidentes

Os acidentes não existem senão na substância,
assim como a cor no corpo e o saber na alma.
Eles são “o modo de ser da substância”,
mas não o ser mesmo.

A substância é o que sustenta;
os acidentes, o que varia.
Ela é o centro da unidade; eles, o ornamento da multiplicidade.

“Accidentia sunt modi essendi substantiae.”
(Os acidentes são modos de ser da substância.)

Os acidentes dependem da substância tanto no existir quanto no ser conhecidos,
pois conhecemos os sujeitos pelos seus acidentes,
como conhecemos a alma por seus atos.

Mas a substância é mais nobre,
porque tem o ser em si,
enquanto o acidente o tem apenas por participação.


5. A substância divina e a criada

Há, contudo, uma diferença essencial entre a substância criada e a divina.

A substância criada tem o ser recebido —
não é o próprio ser, mas algo que tem o ser.
Em Deus, ao contrário, essência e ser são idênticos:
Ele é o próprio ato de ser subsistente.

“In Deo idem est esse et quod est; in creatura autem aliud est esse, aliud quod est.”
(Em Deus, o ser é idêntico ao que é; na criatura, o ser é distinto do que é.)

Daí que Deus não é uma substância entre outras,
mas o fundamento de todas as substâncias.
Ele está além de toda categoria,
porque nelas se ordena apenas o ser finito e participado.

Assim, quando dizemos que Deus é substância,
falamos analogicamente:
não segundo o gênero,
mas segundo a excelência daquilo de que toda substância participa.


6. O ato e a potência na substância

Toda substância finita é composta de potência e ato:
a potência, como capacidade de ser;
o ato, como realização desse ser.

A matéria é potência; a forma, ato.
Mas a forma não é o ser, e sim o princípio que ordena o ser.
Por isso, o ser é ato último,
e a substância é o sujeito do ato de ser.

Assim, a filosofia de Aristóteles é elevada por Tomás à luz do ser criado:
a substância não é apenas sujeito de acidentes,
mas participação do Ser subsistente.


7. Conclusão

A substância é o primeiro e mais nobre dos modos do ser.
Nela, o ente se constitui, e a partir dela os demais modos se dizem.
Ela é o “núcleo metafísico do real”: o que existe por si,
enquanto tudo o mais existe por ela.

“Substantia est radix entis; cetera sunt rami.”
(A substância é a raiz do ser; os demais, ramos.)

Por isso, conhecer a substância é compreender o próprio fundamento do mundo,
e ver que todo ente, sendo, clama por Aquele que é o Ser mesmo —
pois em cada substância criada ressoa, como eco do primeiro princípio,
o nome que em todas as línguas significa o mesmo: “Ego sum qui sum.”

CAPÍTULO III — DE QUANTITATE

(Sobre a Quantidade)


1. Natureza da quantidade

A quantidade é o modo segundo o qual a substância corpórea se torna mensurável e divisível.
Ela não é o ser mesmo da substância, mas a condição sob a qual a substância pode ser conhecida segundo dimensão.

“Quantitas est mensura substantiae corporae secundum extensionem partium.”
(A quantidade é a medida da substância corporal segundo a extensão de suas partes.)

O ser espiritual não possui quantidade, porque não se divide;
mas o ser corporal só é corpo porque possui partes ordenadas no espaço.

Assim, a quantidade é o primeiro acidente do corpo,
o que o torna sensível e visível,
e por isso, o mais evidente aos sentidos, embora não o mais nobre ao intelecto.


2. Espécies de quantidade

A quantidade é de duas espécies:
a contínua e a discreta.

  • A quantidade contínua é aquela cujas partes têm um limite comum,
    como a linha, a superfície, o corpo, o tempo e o lugar.
    Nela, as partes se tocam sem se separar.
  • A quantidade discreta é aquela cujas partes são distintas e separadas,
    como o número e a palavra.
    Nela, a unidade é mental, não física.

“Continuae partes cohaerent; discretae mente colliguntur.”
(As partes da contínua se unem; as da discreta, o intelecto as reúne.)

A quantidade contínua pertence ao domínio da natureza;
a discreta, ao domínio da razão.
O corpo tem extensão; o intelecto, contagem.


3. A relação entre quantidade e substância

A quantidade não constitui a substância,
mas a determina segundo o modo sensível.
Pois a substância é aquilo que é;
a quantidade, o modo como é extenso.

O corpo não é corpo por ser grande,
mas por ter partes quantitativas unidas sob uma forma.
Se a forma se retira, o corpo se dissolve,
mas a quantidade permanece como vestígio da unidade perdida.

“Forma dat esse; quantitas dat terminum essendi.”
(A forma dá o ser; a quantidade dá o limite do ser.)

Assim, a quantidade é o limite da corporeidade:
ela torna o ser finito e ordenado,
mas não lhe confere a existência.


4. O número e a continuidade

O número é a forma mais pura da quantidade,
porque abstrai da matéria e da extensão física.
É a medida pela qual o intelecto compreende a ordem da natureza.

“Numerus est mensura secundum quam ratio comprehendit multitudinem.”
(O número é a medida segundo a qual a razão compreende a multiplicidade.)

O número é espiritual,
ainda que tenha origem no sensível.
Ele traduz no intelecto a harmonia que o Criador imprimiu no mundo,
pois “todas as coisas dispôs com medida, número e peso”.

A continuidade, por sua vez, é o modo quantitativo próprio da matéria:
torna o corpo um, visível e extenso,
mas sujeito à divisão e à mutabilidade.


5. A divisibilidade como sinal da finitude

Tudo o que tem quantidade é divisível,
e tudo o que é divisível é finito.
Por isso, a quantidade é sinal da imperfeição do ser criado,
pois o finito só é finito porque é limitado por outro.

Deus não tem quantidade, porque é simples e infinito;
mas deu à criação o número e a medida,
para que, pela ordem do múltiplo, o intelecto humano reconheça a perfeição do uno.

“In creaturis numerus est vestigium sapientiae; in Deo, simplicitas est ipsa sapientia.”
(Nas criaturas, o número é vestígio da sabedoria; em Deus, a simplicidade é a própria sabedoria.)

Assim, a quantidade é a imagem da limitação,
mas também o caminho da ordem e da proporção.


6. O limite do matemático

O matemático considera a quantidade em abstração,
sem a forma substancial nem a matéria corruptível.
Mas essa abstração é de razão, não de realidade.
Na coisa mesma, a quantidade nunca existe separada da forma nem da matéria.

Portanto, a matemática é ciência intermediária:
nem puramente natural, nem puramente metafísica.
Ela trata daquilo que é comum entre o sensível e o inteligível: a medida.

O matemático vê o número;
o físico, o corpo;
o metafísico, o ser que é tanto corpo quanto número,
e que, acima de ambos, participa da unidade.


7. Conclusão

A quantidade é o primeiro véu do ser sensível.
Por ela, o ser se manifesta à percepção,
mas também se esconde sob o limite.

Ela mede o que é visível, mas não mede o que é real em plenitude.
O número, a extensão, o tempo e o espaço
são os sinais exteriores da sabedoria interior do Ser.

Por isso, São Tomás conclui:
quem contempla a ordem da quantidade,
vê, como em espelho,
a sombra da unidade que a excede.

“Mensurae mundi ducunt mentem ad immensum.”
(As medidas do mundo conduzem a mente ao Imenso.)

CAPÍTULO IV — DE QUALITATE

(Sobre a Qualidade)


1. A noção geral de qualidade

Depois da quantidade, Aristóteles coloca a qualidade,
porque, uma vez que a substância possui medida e extensão,
é necessário considerar como ela é.
Pois dizer “o que algo é” pertence à substância;
dizer “como algo é” pertence à qualidade.

“Qualitas est secundum quam aliquid dicitur quale.”
(Qualidade é aquilo segundo o qual algo é dito ser tal como é.)

A qualidade, portanto, é o modo formal do ser,
a disposição pela qual a substância adquire figura, perfeição e distinção.
Ela é o ato pelo qual o ser, permanecendo o mesmo,
se torna belo, ordenado e reconhecível.


2. As quatro espécies de qualidade

Aristóteles distingue quatro gêneros principais de qualidade:

  1. Hábito e disposição (habitus et dispositio);
  2. Potência e impotência natural (potentia et impotentia);
  3. Paixão ou afecção sensível (passio vel affectio);
  4. Figura e forma externa (figura et forma).

Cada uma delas expressa um aspecto diferente da presença da forma no ser.


3. Hábito e disposição

O hábito é uma qualidade estável e difícil de mudar,
adquirida por repetição ou pela natureza perfeita.
A disposição é uma qualidade mais frágil e passageira,
que muda com o tempo ou com o estado do corpo e da alma.

A virtude é um hábito; a saúde, uma disposição.
O hábito pertence à alma racional,
a disposição, à natureza corporal.

“Habitus est qualitas stabilis et difficilis mobilis; dispositio vero facilis mutationis.”
(O hábito é uma qualidade estável e de difícil mudança; a disposição, de fácil alteração.)

Por isso, o hábito é sinal de forma aperfeiçoada,
enquanto a disposição é sinal de forma incompleta.


4. Potência e impotência natural

A potência é a capacidade natural de agir ou sofrer;
a impotência, a incapacidade de fazê-lo.

Essas qualidades pertencem às potências ativas e passivas das coisas.
Assim, o calor é potência de aquecer;
a secura, potência de endurecer.
Já o frio ou a umidade, quando impedem essas operações,
são impotências relativas.

A potência é princípio de movimento;
a impotência, limite desse movimento.

“Potentia est principium actionis; impotentia, privatio eius.”
(A potência é o princípio da ação; a impotência, sua privação.)

Na alma, a potência é espiritual —
é o poder de conhecer e amar.
No corpo, é natural —
é o poder de mover e sofrer.


5. Paixão e afecção sensível

A paixão (passio) é uma qualidade pela qual o sujeito se altera pela presença de outro.
Quando o ferro se aquece, sofre a paixão do fogo;
quando a alma se entristece, sofre a paixão do mal percebido.

Ela é o sinal da receptividade da matéria,
pois nada sofre senão o que é capaz de receber a forma de outro.

“Passio est motus patientis a praesente agente.”
(Paixão é o movimento do paciente causado pela presença do agente.)

As paixões corporais são sinais da sensibilidade;
as paixões da alma, movimentos da vontade.
Ambas pertencem à ordem da qualidade,
porque exprimem o modo de afeição e de reação do ser.


6. Figura e forma externa

A figura é a qualidade pela qual o corpo possui término e proporção;
a forma externa, o modo visível da beleza.

Ela é o sinal da ordem da forma na matéria,
pois o que é informe não é reconhecível,
e o que é desordenado não é belo.

“Figura est terminus corporis, per quem forma apparet.”
(A figura é o limite do corpo, pelo qual a forma se manifesta.)

Na natureza, tudo tem figura conforme a sua finalidade:
as asas são para o voo, as raízes para o sustento, o olhar para a luz.
A figura é, portanto, o reflexo visível da inteligência ordenadora.


7. A relação entre qualidade e substância

A qualidade é inseparável da substância,
pois é pela qualidade que a substância se torna perceptível e distinta.
Mas, embora dependa dela, não é o mesmo que ela.
A substância é o ser; a qualidade, o modo do ser.

Na alma, a qualidade manifesta a perfeição da forma racional;
no corpo, manifesta a harmonia das partes.
Por isso, a qualidade é meio-termo entre o ser e o aparecer:
é a transparência da forma no ente.

“Qualitas est splendor formae in substantia.”
(A qualidade é o esplendor da forma na substância.)


8. Qualidade moral e qualidade física

Tomás distingue ainda a qualidade física da moral.
A primeira se refere ao corpo e à natureza;
a segunda, à alma e à virtude.

A qualidade moral é mais nobre,
porque ordena o ser racional à sua finalidade própria — o bem.
A virtude é, assim, a forma perfeita da qualidade:
é o hábito estável de agir conforme a razão e o fim último.

“Virtus est qualitas boni operis, secundum rationem rectam.”
(A virtude é a qualidade do bom agir, segundo a reta razão.)


9. Conclusão

A qualidade é o princípio da distinção, da perfeição e da beleza.
Pela quantidade, o ser se mede;
pela qualidade, o ser se revela.

Ela é o ato pelo qual o mundo se torna inteligível,
a harmonia pela qual o corpo e a alma manifestam a ordem do Criador.

Assim, todas as qualidades são vestígios da forma primeira,
na qual não há distinção entre o ser e o bem.

“In Deo qualitas est ipsa essentia; in creaturis, splendor eius.”
(Em Deus, a qualidade é a própria essência; nas criaturas, seu esplendor.)

CAPÍTULO V — DE RELATIONE

(Sobre a Relação)


1. O conceito de relação

A relação é o modo de ser pelo qual algo se ordena a outro.
Ela não exprime o que algo é em si, mas em referência a outro.

“Relatio est ordo unius ad aliud.”
(Relação é a ordem de um ser a outro.)

Assim, o pai é pai em relação ao filho,
o dobro é dobro em relação à metade,
a causa é causa em relação ao efeito.

A relação, portanto, é o vínculo da realidade:
por ela, o múltiplo se ordena e o distinto se comunica.
Sem relação, nada seria cognoscível,
pois o conhecimento é o ato pelo qual o intelecto se refere ao objeto.


2. Relações reais e relações de razão

As relações são de dois tipos: reais e de razão.

  • A relação real (relatio realis) existe na própria coisa,
    quando a ordem entre dois entes tem fundamento ontológico.
    Assim, o calor se relaciona realmente com o fogo,
    e o filho com o pai.
  • A relação de razão (relatio rationis) existe apenas no intelecto,
    quando a ordem é concebida, mas não existe na realidade.
    Por exemplo, o gênero em relação à espécie,
    ou a esquerda e a direita no espaço absoluto.

“Relatio realis fundatur in re; relatio rationis in apprehensione intellectus.”
(A relação real funda-se na coisa; a de razão, na apreensão do intelecto.)

A diferença entre ambas está no fundamento do ser relativo:
se ele depende de uma causa real, é relação real;
se apenas do modo de pensar, é relação de razão.


3. Relação e conhecimento

O ato de conhecer é, por natureza, relacional.
Pois o intelecto, ao conhecer, se ordena ao conhecido.
E, de modo inverso, a coisa conhecida se torna presente no intelecto como objeto.

Assim, há uma dupla relação:
uma do intelecto para o objeto (ad rem),
outra do objeto para o intelecto (ad mentem).

A primeira é real, porque a mente realmente se move em direção ao ser;
a segunda é de razão, porque a coisa, ao ser conhecida,
não se altera realmente por isso.

“Relatio cognitionis realis est ex parte cognoscentis; non autem ex parte cogniti.”
(A relação do conhecimento é real no conhecedor, não no conhecido.)

Essa distinção é central para toda epistemologia tomista:
ela permite compreender que o intelecto é receptivo do ser,
sem modificar o ser que conhece.


4. Relação e causalidade

Toda causalidade é um tipo de relação.
A causa ordena-se ao efeito como princípio;
o efeito, à causa como dependente.

A relação causal é, portanto, assimétrica:
há nela prioridade e posteridade.
Mas mesmo assim, é uma unidade ordenada,
pois a causa só é causa se houver efeito,
e o efeito só é efeito se houver causa.

“Causa et effectus mutuam habent habitudinem, sed non aequalem.”
(Causa e efeito possuem uma relação mútua, mas não igual.)

Por isso, a relação é o elo entre o ato e a potência:
liga o princípio ao término,
a origem ao fim.


5. Relação e analogia

A relação é também o fundamento da analogia,
porque todas as coisas se ordenam entre si segundo proporção.
O bem se relaciona ao belo,
a verdade ao ser,
a criatura ao Criador.

Toda analogia é, em essência, uma relação de proporção.
Por meio dela, o intelecto ascende do sensível ao inteligível,
do finito ao infinito,
e reconhece no múltiplo a unidade do princípio.

“Analogia est relatio proportionis unius ad alterum.”
(A analogia é a relação de proporção de um a outro.)

Assim, toda metafísica é uma ciência relacional:
ela busca compreender as proporções pelas quais o real se ordena.


6. Relação e a Trindade

No mais alto grau da realidade, a relação é o próprio ser subsistente —
pois em Deus, as relações são a essência.

O Pai é relação ao Filho,
o Filho ao Pai,
o Espírito Santo, relação do Amor que procede de ambos.

Essas relações são reais e subsistentes,
porque nelas não há distinção de substância,
mas apenas de origem e de referência.

“In divinis relationes sunt ipsae personae.”
(Nas realidades divinas, as relações são as próprias pessoas.)

Aqui se revela a perfeição da relatio:
no criado, ela é acidente;
em Deus, ela é essência.
Na criatura, ela une;
em Deus, ela é a unidade mesma manifestada na distinção.


7. Relação e ser criado

Toda criatura traz em si a marca da relação,
porque tudo o que é criado é de outro e para outro.
Nenhum ser finito é isolado:
o sol ilumina, a terra sustenta, a alma conhece, o corpo serve.

O ser criado é, por sua própria condição, relacional —
procede do Criador e tende ao fim que o Criador ordenou.

“Omnis creatura est relatio ad Deum, sicut effectus ad causam.”
(Toda criatura é relação para com Deus, como o efeito para com a causa.)

Assim, a ordem do universo é a expressão visível da relação invisível
que todas as coisas têm com o seu princípio.


8. Conclusão

A relação é o modo mais universal do ser,
pois nada existe senão em referência a algo.
Ela é o laço da realidade e o reflexo da ordem divina.

No mundo, é o princípio de proporção e harmonia;
na alma, é o movimento do amor e do conhecimento;
em Deus, é a própria vida trinitária.

“Relatio est nexus entis multiplicis ad unitatem primi.”
(A relação é o vínculo do ser múltiplo com a unidade do primeiro.)

Assim, quem compreende a relação compreende o universo como comunhão,
e vê que o ser não é solidão, mas comunicação —
um espelho da Trindade, onde o amor é o nome supremo do vínculo.

CAPÍTULO VI — DE ACTIONE ET PASSIONE

(Sobre a Ação e a Paixão)


1. O lugar da ação e da paixão entre as categorias

Depois da relação, Aristóteles coloca a ação e a paixão,
porque, após conhecer que o ser se ordena a outro,
é preciso considerar como esse ordenamento se realiza —
isto é, como algo atua e como algo é afetado.

“Actio et passio sunt modi essendi entis secundum motum.”
(A ação e a paixão são modos de ser do ente segundo o movimento.)

Ambas pertencem ao domínio do movimento (motus),
que é o ato do ente em potência, enquanto tal.
Por isso, a ação e a paixão são correlativas:
onde há um agir, há um sofrer;
onde há uma causalidade, há uma receptividade.


2. Ação como atualização do agente

A ação (actio) é o ato do agente enquanto causa de algo fora de si.
Ela exprime a perfeição da forma em comunicação:
o ser que possui algo em si o difunde para outro.

Assim, o fogo aquece, o intelecto compreende, a vontade ama.
Cada ação é uma participação do bem,
pois o bem, enquanto tal, é difusivo de si mesmo (bonum diffusivum sui).

“Actio est perfectio agentis, prout eius forma transit in aliud.”
(A ação é a perfeição do agente, na medida em que sua forma passa a outro.)

A ação é, portanto, o sinal do ser em ato.
Pelo agir, o ente manifesta sua plenitude:
agir é o ser em movimento, o ser comunicado.


3. A paixão como recepção do ato

A paixão (passio) é o ato do paciente enquanto recebe algo do agente.
Ela é a impressão do ato de outro sobre o sujeito.

“Passio est actus patientis, prout movetur ab alio.”
(Paixão é o ato do paciente, enquanto é movido por outro.)

Toda paixão supõe potência e receptividade.
O que é puro ato não sofre;
o que é pura potência não age, mas é passivamente disposto.

A paixão, portanto, é a via pela qual o ser finito se aperfeiçoa,
pois recebe aquilo que lhe falta.
Assim, o intelecto sofre ao ser iluminado pela verdade,
e a vontade sofre ao ser atraída pelo bem.


4. A reciprocidade entre ação e paixão

A ação e a paixão são distintas quanto ao sujeito,
mas coincidem quanto ao ato.
Pois o mesmo movimento que sai do agente entra no paciente.

Assim, quando o fogo aquece a água,
a ação do fogo e a paixão da água são o mesmo movimento,
visto de dois lados diferentes.

“Eadem est actio in agente et passio in patiente, secundum idem motum.”
(A mesma é a ação no agente e a paixão no paciente, segundo o mesmo movimento.)

Essa unidade mostra que o universo é um sistema de comunicações:
nada age isoladamente, nada sofre sem relação.
Toda ação é participação da energia primeira;
toda paixão é abertura à recepção dessa energia.


5. Ação e potência

A ação é a atualização da potência,
isto é, o momento em que o possível se torna real.
Mas nem toda potência se atualiza por si;
é preciso um agente que já esteja em ato.

Por isso, o ato é anterior à potência,
e toda causalidade depende, em última instância,
de um ato que não depende de outro ato —
do Ato Puro (Actus Purus), que é Deus.

“Omnis actio reducitur ad actum primum, qui est actus purus.”
(Toda ação se reduz ao primeiro ato, que é o ato puro.)

Assim, o movimento do mundo não é autônomo,
mas sustentado pelo princípio imóvel que o causa sem ser causado.


6. A ação divina

Em Deus, há ação sem paixão.
Pois Ele age por essência, não por movimento.
Sua ação é o próprio ser,
e o efeito não O modifica,
porque Ele é ato infinito e simples.

“Deus movet omnia, ipse non movetur.”
(Deus move todas as coisas, e Ele mesmo não se move.)

Por isso, diz Tomás:
em Deus, o ato de criar não é mudança,
mas presença eterna do ser que comunica o ser.
Criar não é um movimento temporal,
mas o resplandecer do ser sobre o nada.


7. A ação e a paixão nas criaturas

Nas criaturas, porém, toda ação envolve alguma paixão.
O corpo que move se desgasta;
a mente que conhece se altera;
a vontade que ama se inflama.

No ser criado, agir e sofrer se entrelaçam,
porque nada finito comunica sem também receber.
Somente o Ser Infinito é ato puro:
todos os demais são, de algum modo, pacientes de sua própria ação.

“In creaturis agere et pati concomitantur, propter compositionem potentiae et actus.”
(Nas criaturas, agir e sofrer se acompanham, por causa da composição de potência e ato.)

Essa composição é a marca da finitude:
o movimento é, ao mesmo tempo, imperfeição e caminho para a perfeição.


8. O sentido espiritual da ação e da paixão

Na alma humana, a ação e a paixão tomam forma moral e espiritual.
A ação é o exercício da virtude;
a paixão, o campo da purificação.

Agir segundo a razão é participar do ato divino;
sofrer segundo a caridade é participar da paixão do Verbo.

Assim, até o sofrer pode ser ato,
quando o sujeito consente livremente no bem.
E toda ação pode ser paixão,
quando a alma se entrega ao amor que a move.

“Amor facit pati voluntarie.”
(O amor faz sofrer voluntariamente.)

No amor divino, agir e sofrer se confundem:
é o mesmo fogo que ilumina e consome.


9. Conclusão

A ação e a paixão são o coração do dinamismo do ser.
Elas revelam que tudo o que existe é movimento,
e que todo movimento tende a um repouso superior —
o repouso do ato perfeito.

No homem, elas se elevam ao plano espiritual,
onde o agir se torna caridade,
e o sofrer, redenção.

“Actio et passio in Deo sunt vita; in homine, via.”
(A ação e a paixão em Deus são vida; no homem, caminho.)

Assim, aquele que compreende o sentido do agir e do sofrer
já toca o segredo da criação:
o universo inteiro é um vasto ato de amor —
a ação pela qual o Ser comunica a si mesmo,
e a paixão pela qual a criatura retorna ao seu princípio.

CAPÍTULO VII — DE LOCO ET TEMPORE

(Sobre o Lugar e o Tempo)


1. O lugar como ordem dos corpos

O lugar (locus) é o primeiro dos acidentes externos do corpo,
pois nada corpóreo existe sem ocupar um espaço determinado.

“Locus est ordo corporis continentis ad contentum.”
(Lugar é a ordem do corpo continente em relação ao corpo contido.)

O lugar não é uma substância, nem um recipiente vazio,
mas a relação de posição entre o corpo e o todo que o contém.
Assim, o corpo não está “no espaço” como algo em um vaso,
mas “em lugar” enquanto ordenado a outros corpos.

Aristóteles define-o como o limite interior do corpo continente,
onde o corpo contido repousa.
Tomás o interpreta como uma ordem natural,
pela qual cada ser ocupa o sítio conveniente à sua forma.

“In loco est secundum convenientiam naturae.”
(Está em seu lugar o que corresponde à conveniência de sua natureza.)

O fogo, leve, tende para o alto;
a pedra, pesada, para baixo.
A alma, embora sem lugar, inclina-se espiritualmente para o superior.


2. O lugar e o movimento

O lugar é o princípio e o termo do movimento local.
Todo deslocamento é a passagem de um lugar para outro,
e, portanto, supõe a distinção e a continuidade dos espaços.

O movimento, assim, revela que o lugar é real,
mas relativo: o mesmo corpo, mudando de posição,
mantém sua substância, mas altera sua relação.

“Locus non mutatur nisi secundum ordinem ad corpora circumstantia.”
(O lugar muda somente segundo a ordem aos corpos circundantes.)

Portanto, o lugar é relações ordenadas, não matéria extensa.
Ele é como a geometria viva do mundo,
onde cada ser é simultaneamente limite e medida do outro.


3. O tempo como número do movimento

O tempo (tempus) é a medida do movimento segundo o antes e o depois.
Não é uma substância nem uma forma,
mas o número do movimento percebido pela alma.

“Tempus est numerus motus secundum prius et posterius.”
(Tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois.)

O tempo nasce do encontro de duas realidades:
o movimento das coisas e a consciência que o conta.
Sem o movimento, não haveria antes e depois;
sem o intelecto, não haveria número.

Logo, o tempo existe no movimento das coisas e no intelecto que mede.
Ele é a imagem móvel da eternidade,
porque conserva no fluxo o vestígio do permanente.


4. O tempo e a mutabilidade das criaturas

Tudo o que é criado existe no tempo,
porque toda criatura é mudável e sucessiva.
Ser no tempo significa ser não pleno,
ser que se adquire pouco a pouco.

“Esse temporale est esse successive acquisitum.”
(O ser temporal é um ser adquirido sucessivamente.)

O tempo é, assim, sinal da finitude:
o que é perfeito não se move no tempo,
porque já possui plenamente o que é.

Deus, sendo ato puro, é eterno
não porque dure infinitamente,
mas porque está fora da sucessão,
simultaneamente presente a todo o tempo.

“In aeternitate est totum simul; in tempore, nunc fluens.”
(Na eternidade há um todo simultâneo; no tempo, um agora fluente.)


5. O agora e a continuidade temporal

O agora (nunc) é o ponto do tempo,
assim como o lugar é o ponto do espaço.
Mas, diferentemente do ponto geométrico,
o agora se move com o fluxo do tempo.

Por isso, o tempo é contínuo:
não é uma soma de instantes,
mas a passagem ordenada do movimento.

O agora é o limite entre o passado e o futuro;
nele, o ser toca o que já foi e o que ainda não é.
E é justamente nessa transição que o ser humano habita —
entre a memória e a esperança.

“Homo est animal temporale, in nunc fluente constitutum.”
(O homem é o animal temporal, constituído no agora que flui.)


6. O contraste entre tempo e eternidade

O tempo mede o movimento das coisas criadas;
a eternidade mede o repouso do ser divino.
Entre ambas há um meio-termo: a aeviternidade,
própria das substâncias espirituais criadas (anjos e almas).

“Aevum est medium inter tempus et aeternitatem.”
(O aevum é o meio entre o tempo e a eternidade.)

O tempo é como o rio que corre;
a eternidade, como o oceano imóvel;
o aevum, como a fonte em que o fluxo nasce da quietude.

A criatura racional participa de todos:
vive no tempo, aspira ao eterno, e possui, em sua alma,
a centelha do aevum que não passa.


7. O lugar e o tempo como medidas do ser criado

Lugar e tempo são as duas medidas do ser corporal:
um segundo a extensão, outro segundo a sucessão.
Ambos limitam, ordenam e tornam cognoscível o finito.

“Per locum et tempus determinatur creatura ad ordinem universi.”
(Pelo lugar e pelo tempo a criatura é determinada à ordem do universo.)

Nada criado escapa a essas duas condições:
tudo está em algum lugar e em algum tempo.
Somente Deus está em todo lugar e em todo tempo,
não por estar circunscrito, mas por sustentar tudo.

Assim, o lugar e o tempo são como a sombra do Ser:
indicadores da presença do Eterno no mutável.


8. Conclusão

O lugar é a ordem do corpo no espaço;
o tempo, a ordem do movimento na sucessão.
Ambos revelam a condição do ser finito:
circunscrito e mutável, mas ordenado e inteligível.

O lugar fixa; o tempo conduz.
O primeiro mostra a presença do ser; o segundo, seu caminho.
E ambos, unidos, compõem o teatro da criação,
onde o ser, medido e movido, reflete o eterno ato do Criador.

“Deus est locus et tempus omnium, non quasi contentus, sed continens.”
(Deus é o lugar e o tempo de todas as coisas, não como contido, mas como aquele que as contém.)

Assim, contemplar o espaço e o tempo é ver o contorno da eternidade —
a presença silenciosa do Ser em cada instante e em cada parte do mundo.

CAPÍTULO VIII — DE HABITU ET SITU

(Sobre o Hábito e a Posição)


1. Natureza geral do hábito e da posição

Depois do lugar e do tempo, Aristóteles trata do hábito e da posição,
porque, uma vez conhecido o modo segundo o qual o ser está no espaço e no tempo,
é preciso compreender como ele se dispõe neles.

“Habitus et situs ad ordinem partium vel rerum pertinent.”
(O hábito e a posição pertencem à ordem das partes ou das coisas.)

Ambos são modos de disposição:
o hábito, de posse e revestimento;
a posição, de ordem e ordenamento.

Eles manifestam a harmonia ou a desordem do ser composto,
mostrando como as partes se unem em um todo.


2. O hábito como posse e revestimento

O termo habitus vem de habere, “ter”.
No sentido mais simples, indica aquilo que alguém tem
como uma veste, uma armadura, uma propriedade.

“Habitus est quo aliquid circumdatur vel ornatur.”
(Hábito é aquilo de que algo se reveste ou com que se adorna.)

O hábito é, portanto, um modo de relação de posse,
um acidente que exprime o estado exterior da substância.
O homem vestido, o cavaleiro armado, o sábio que possui um livro —
todos são ditos “ter um hábito”.

Mas, por extensão e analogia, o termo também designa o estado interior da alma,
quando ela “possui” virtudes ou vícios,
isto é, disposições estáveis de agir.

Assim, o hábito exterior é símbolo do interior:
o manto cobre o corpo, como a virtude cobre a alma.

“Habitus exterior est figura interioris dispositionis.”
(O hábito exterior é a figura da disposição interior.)


3. O hábito moral e o hábito físico

O hábito físico é uma posse material,
como o corpo tem suas vestes, suas armas, ou um instrumento.
O hábito moral é uma posse espiritual,
pela qual a alma se reveste de virtude ou de vício.

Ambos pertencem à categoria de habere,
mas diferem pelo sujeito:
um tem por sujeito o corpo, outro a alma racional.

“Habitus corporalis est instrumentum; habitus moralis est forma animi.”
(O hábito corporal é um instrumento; o hábito moral, uma forma da alma.)

A alma virtuosa é dita “bem vestida”,
a alma viciosa, “mal trajada”.
E assim, o hábito moral é, em sentido metafísico,
o revestimento da forma segundo o bem.


4. A posição como ordem das partes

A posição (situs) é o modo de ser pelo qual as partes de um corpo
estão dispostas umas em relação às outras.

“Situs est ordo partium in loco.”
(Posição é a ordem das partes no lugar.)

Ela se refere à figura e à postura:
sentado, deitado, em pé — todos são modos de posição.
Mas, em sentido mais profundo, a posição revela a ordem interior do ser:
pois o que tem as partes bem ordenadas é estável e harmonioso.

A desordem do sítio é sinal da corrupção da forma,
assim como a má postura do corpo é reflexo da confusão da alma.

“Rectitudo situs exprimit ordinem animae; distortio, eius corruptionem.”
(A retidão da posição exprime a ordem da alma; a distorção, sua corrupção.)


5. A posição na natureza e no cosmos

Em toda a natureza há situs,
pois tudo está ordenado segundo medida, número e peso.
Os astros, as sementes, os membros do corpo —
cada um ocupa o lugar que lhe convém, segundo a proporção da forma.

O mundo é, assim, uma posição cósmica:
um grande corpo onde cada parte tem seu lugar e sua função.

“Universum est situs ordinatissimus partium sub uno principio.”
(O universo é a posição ordenadíssima das partes sob um único princípio.)

A posição é, portanto, a imagem espacial da sabedoria divina,
pela qual o múltiplo se dispõe no uno sem confusão.


6. O simbolismo espiritual da posição

Na vida espiritual, o situs assume um significado mais elevado:
estar de pé significa vigilância;
ajoelhar-se, adoração;
prostrar-se, humildade.

A postura do corpo é figura da atitude da alma diante de Deus.
Por isso, os antigos chamavam o orante de stans coram Deo
“aquele que está em pé diante de Deus”,
não por orgulho, mas por prontidão interior.

“Situs corporis figurat situm cordis.”
(A posição do corpo figura a posição do coração.)

O corpo curvado indica contrição;
o corpo ereto, confiança;
o corpo ajoelhado, entrega.
O situs, assim, é o espelho visível da alma invisível.


7. A unidade entre hábito e posição

O hábito e a posição estão ligados:
o hábito mostra o que se possui;
a posição, como se está ordenado em relação a isso.

Ambos são expressões do estado do ser composto,
reflexos da relação entre forma e matéria,
entre interior e exterior,
entre alma e corpo.

“Habitus refertur ad possessionem; situs ad ordinem.”
(O hábito refere-se à posse; a posição, à ordem.)

Juntos, eles tornam o ser visível,
não apenas no que tem, mas no modo como é.


8. Conclusão

O hábito e a posição são os sinais do estado e da ordem.
O primeiro indica o que o ser adquiriu;
o segundo, como o ser se dispõe.

No corpo, revelam a forma;
na alma, revelam a disposição moral;
no universo, revelam a harmonia divina.

Assim, até os menores acidentes —
a veste, o gesto, o lugar de cada membro —
participam da sabedoria do Criador,
que dispôs todas as coisas com ordem e beleza.

“Ordo est pulchritudo in motu et in quiete.”
(A ordem é a beleza tanto no movimento quanto no repouso.)

E quem aprende a ver o hábito e a posição como espelhos dessa ordem,
descobre que até o gesto mais simples do corpo
é uma reverência silenciosa ao Logos que o criou.

CAPÍTULO IX — DE OPPOSITIONE

(Sobre a Oposição)


1. A necessidade da oposição

O intelecto conhece por distinção.
E não há distinção sem oposição.
Por isso, Aristóteles, depois de tratar do modo como as coisas se dispõem (no hábito e na posição),
passa a tratar de como se diferenciam.

“Oppositio est maxima diversitas.”
(A oposição é a máxima diversidade.)

A oposição é a raiz da contrariedade,
e também o fundamento da ordem do discurso.
Pois, como o ser é múltiplo, e o intelecto o apreende por comparação,
é necessário que haja contradição, diferença e distância,
para que a mente possa discernir o que é e o que não é.


2. As quatro espécies de oposição

Aristóteles distingue quatro gêneros de oposição,
que abrangem todos os modos de diversidade:

  1. Contrariedade (contrarietas);
  2. Contradição (contradictio);
  3. Privação e posse (privatio et habitus);
  4. Relação (relatio).

“Omnis oppositio ad unum istorum reducitur.”
(Toda oposição se reduz a um desses gêneros.)

Cada uma expressa um modo distinto pelo qual o ser se diferencia e se ordena.


3. A contrariedade

A contrariedade é a oposição entre dois extremos do mesmo gênero,
que não podem coexistir no mesmo sujeito sob o mesmo aspecto.

Assim, branco e negro, quente e frio, bem e mal.
São contrários porque pertencem ao mesmo campo de predicação,
mas se excluem mutuamente.

“Contraria sunt quae circa idem et secundum idem maxima distant.”
(Os contrários são os que, em relação ao mesmo e sob o mesmo aspecto, estão mais distantes.)

A contrariedade é, portanto, o princípio do movimento:
pois entre contrários há passagem,
e o vir-a-ser é a transição de um para outro.

O universo, em seu dinamismo, vive da contrariedade:
a luz e a sombra, o calor e o frio, a vida e a morte —
em todos há tensão e retorno.

Mas a sabedoria divina governa os contrários,
fazendo deles harmonia dos opostos, não guerra eterna.

“Ex contrariis fit pulchritudo mundi.”
(Da oposição dos contrários nasce a beleza do mundo.)


4. A contradição

A contradição é a oposição entre o ser e o não ser,
ou entre uma afirmação e sua negação direta.

“Contradictoria sunt quae simul esse non possunt, nec simul non esse.”
(Os contraditórios são os que não podem ser simultaneamente verdadeiros nem simultaneamente falsos.)

Ela é a oposição absoluta,
sem meio termo: “é” ou “não é”.
Enquanto a contrariedade admite gradação,
a contradição é excludente.

No plano lógico, ela é o princípio de toda verdade:
pois pensar corretamente é não confundir o ser com o não ser.

“Principium contradictionis est fundamentum omnis certitudinis.”
(O princípio da contradição é o fundamento de toda certeza.)

Assim, a contradição, longe de ser destrutiva,
é a garantia da unidade da razão.
Sem ela, nada poderia ser afirmado,
porque tudo seria indeterminado.


5. Privação e posse

A privação e o hábito (ou posse) são uma espécie de contrariedade imperfeita.
Pois entre ter e não ter há oposição,
mas uma das partes implica carência natural da outra.

Assim, a cegueira é privação da visão;
mas não de qualquer visão, e sim daquela que convém por natureza a um ser que deve ver.

“Privatio opponitur habitui secundum potentiam naturalem.”
(A privação se opõe à posse segundo a potência natural.)

Essa oposição pertence mais à ordem da natureza do que à da lógica.
Pois revela que o ser pode carecer de algo que lhe é próprio,
sem por isso perder totalmente o ser.

Na criatura, toda limitação é forma de privação:
não há imperfeição absoluta,
mas falta relativa de plenitude.


6. A relação como oposição

A relação é também uma forma de oposição,
pois implica uma ordem entre dois.
Pai e filho, mestre e discípulo, senhor e servo —
são opostos relativos, que só existem pela referência recíproca.

“Relativa sunt opposita secundum respectum mutuum.”
(Os relativos são opostos segundo uma referência mútua.)

Mas, diferentemente dos contrários,
os relativos não se excluem —
eles se implicam.
Não há pai sem filho, nem superior sem inferior.

A relação é, pois, a oposição reconciliada,
a dualidade que se conserva na unidade.


7. O princípio de não contradição

A oposição encontra seu limite no princípio de não contradição.
Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo,
no mesmo sentido e sob o mesmo aspecto.

Esse princípio não é apenas lógico, mas ontológico:
ele exprime a ordem interna do ser.

“Non est simul affirmare et negare idem de eodem.”
(Não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo o mesmo de um mesmo.)

É o primeiro dos princípios da razão,
porque deriva do próprio ato de ser.
Se o ser pudesse coincidir com o não ser,
a realidade seria puro nada, e o pensamento, absurdo.


8. A oposição como reflexo da ordem do ser

A oposição, portanto, não destrói o ser;
ela o constitui, enquanto o torna distinto e inteligível.
Sem diferença, não haveria forma;
sem forma, não haveria ser.

A oposição é, assim, a condição da unidade ordenada:
o limite que define cada coisa e a torna reconhecível.

“Per oppositionem fit distinctio; per distinctionem, ordo; per ordinem, pulchritudo.”
(Pela oposição vem a distinção; pela distinção, a ordem; pela ordem, a beleza.)

No mundo criado, a oposição é sinal da pluralidade;
no Criador, é superada na simplicidade do Uno.

O ser absoluto não tem contrário:
Ele é o princípio que unifica todos os opostos
e lhes dá sentido na harmonia da totalidade.


9. Conclusão

A oposição é o espelho da diferença,
e a diferença, o caminho da inteligência.
Ela faz o ser múltiplo e o pensamento discernível.

Nos contrários, há tensão;
na contradição, certeza;
na privação, carência;
na relação, reciprocidade.

E, acima de todas, há a unidade que tudo reconcilia:
a Sabedoria que dispõe os opostos em ordem,
como notas contrárias que formam um mesmo acorde.

“Opposita non sunt adversa Deo, sed instrumenta ordinis eius.”
(Os opostos não são contrários a Deus, mas instrumentos de sua ordem.)

Assim, compreender a oposição é penetrar o segredo da criação:
que o ser se revela na diferença,
e que o contraste das coisas é a linguagem da harmonia universal.

CAPÍTULO X — DE LIMITIBUS PRAEDICAMENTORUM

(Dos Limites das Categorias)


1. A subordinação das categorias à substância

Todas as categorias se ordenam à substância como ao seu princípio.
Pois cada uma delas exprime um modo do ser que depende de algo que subsiste.

“Praedicamenta alia dicuntur de substantia sicut de subiecto.”
(As demais categorias se dizem da substância como de seu sujeito.)

Assim, a quantidade é o modo segundo o qual a substância é mensurável;
a qualidade, segundo o qual é tal ou qual;
a relação, segundo o qual se ordena a outro;
a ação e a paixão, segundo o qual se move;
o lugar e o tempo, segundo o qual está;
o hábito e a posição, segundo o qual se dispõe;
a oposição, segundo o qual se distingue.

Todas, portanto, dependem da substância,
como acidentes que manifestam a forma do ser subsistente.

“Substantia est radix et principium aliorum praedicamentorum.”
(A substância é a raiz e o princípio das demais categorias.)

Sem substância, nada poderia ser sujeito de predicação,
nem haveria permanência sob a multiplicidade das formas.


2. O alcance lógico e metafísico das categorias

As categorias pertencem primeiramente à ordem lógica,
pois nascem da reflexão do intelecto sobre os modos de significar o ser.
Mas, em sentido derivado, têm também alcance metafísico,
pois exprimem não apenas modos de falar, mas modos de existir.

“Praedicamenta sunt rationes significandi, fundatae in diversitate rerum.”
(As categorias são razões de significar, fundadas na diversidade das coisas.)

O lógico considera-as enquanto modos do discurso;
o metafísico, enquanto imagens da estrutura do real.
Ambos os sentidos convergem,
porque a palavra verdadeira é o reflexo do ser verdadeiro.

Assim, as categorias são pontes entre o intelecto e a realidade,
onde a linguagem encontra sua raiz ontológica.


3. A analogia do ser

Como o ser se diz de muitos modos, mas sempre em relação a um primeiro,
as categorias se unem na analogia do ser.

“Analogia entis est nexus praedicamentorum.”
(A analogia do ser é o vínculo das categorias.)

O ser não é gênero,
porque não se predica univocamente de tudo,
mas é dito de modo proporcional:
a substância é ente por si;
os acidentes, por referência a ela.

Assim, há entre as categorias ordem de dependência e de semelhança:
cada uma participa do ser de maneira distinta,
mas todas remetem à unidade do ato de ser.


4. O limite das categorias: o ser divino

As categorias se aplicam às coisas criadas,
porque nelas o ser é composto e participado.
Mas Deus não entra em nenhum predicamento,
porque n’Ele o ser é simples, subsistente e absoluto.

“Deus non est in praedicamento, quia non habet esse receptum.”
(Deus não está em nenhum predicamento, porque não tem o ser recebido.)

Ele não é substância entre as substâncias,
nem qualidade entre as qualidades,
nem relação entre as relações.
Ele é o Ser mesmo, que dá existência a tudo o que é.

As categorias medem o ser finito;
Deus é a medida de todas as medidas.

“Ipse est mensura sine mensura, locus sine loco, tempus sine tempore.”
(Ele é medida sem medida, lugar sem lugar, tempo sem tempo.)

Por isso, toda linguagem sobre Deus é analógica e negativa:
dizemos o que Ele é, apenas por participação do que n’Ele é puro.


5. A finalidade das categorias

O fim último do estudo das categorias não é multiplicar distinções,
mas compreender a ordem do ser segundo a razão e a realidade.

O intelecto, ao conhecer os modos de predicação,
reconhece também sua própria limitação:
tudo o que diz é dito dentro do horizonte do ser finito.

As categorias são, pois, espelhos do cosmos,
mas não da essência divina.
São os degraus da escada lógica,
pela qual a mente sobe até o limiar do mistério.

“Per praedicamenta ratio ascendit ad ens commune, non ad ipsum Esse subsistens.”
(Por meio das categorias, a razão ascende ao ser comum, não ao Ser subsistente em si.)


6. A superação do categorial na teologia

A teologia começa onde a lógica termina.
Quando o intelecto reconhece que o ser absoluto não cabe em categorias,
nasce a ciência sagrada,
que fala de Deus não como de um ente entre outros,
mas como do fundamento de todo o ser.

Em Deus, não há gênero, espécie, diferença, nem acidente;
há apenas simplicidade pura,
na qual todas as perfeições estão contidas eminentemente.

“In Deo est omnis plenitudo sine compositione.”
(Em Deus há toda plenitude sem composição.)

Assim, as categorias são como círculos concêntricos,
cujo centro é o Ser incriado —
o ponto onde toda distinção se dissolve em unidade.


7. Conclusão

As categorias são a gramática do ser criado.
Elas mostram como a razão ordena o real,
mas também como o real transcende a razão.

Na substância, o ser é;
na quantidade, é mensurável;
na qualidade, é tal;
na relação, é ordenado;
na ação, é agente;
na paixão, é paciente;
no lugar e no tempo, é circunscrito;
no hábito e na posição, é disposto;
na oposição, é distinto.

Mas acima de tudo isso está o Ser absoluto,
que não é “algo”, mas o “Aquele que é”.

“Ego sum qui sum” — fórmula que dissolve toda categoria,
pois n’Ele o nome, o ser e o dizer são uma só coisa.

Assim conclui Tomás:
a filosofia, ao ordenar o ser, prepara o espírito para a teologia;
e a teologia, ao contemplar o Ser, restitui o intelecto à sua origem.

“Finis scientiae est contemplatio Entis primi, extra omnem praedicationem.”
(O fim da ciência é a contemplação do Ser primeiro, além de toda predicação.)

EPÍLOGO GERAL — DE ORDINE RATIONIS AD ENS

(Sobre a Ordem da Razão em Relação ao Ser)


1. O fim da lógica é o princípio do ser

Toda a investigação lógica tem por fim conduzir o intelecto ao real.
A razão, enquanto discorre, busca o repouso da visão:
pois pensar é caminhar; contemplar é chegar.

“Omnis ratio tendit ad quietem in veritate.”
(Toda razão tende ao repouso na verdade.)

Assim, o estudo das categorias é o primeiro movimento da mente
rumo à ordem das coisas.
Mas, tendo aprendido a distinguir os modos de significar,
a razão reconhece que todo significado repousa no ser.

A palavra é como o vestígio do ser no som;
e o ser é como o eco da palavra eterna.


2. O intelecto como espelho do ser

A mente humana é feita à imagem do ser,
porque tem em si o poder de conhecer, distinguir e ordenar.
Assim como o mundo é múltiplo e harmonioso,
também o intelecto possui multiplicidade de conceitos,
mas tende à unidade da verdade.

“Intellectus est similitudo entis.”
(O intelecto é semelhança do ser.)

Quando o intelecto conhece, ele participa do próprio ato de ser.
Pois conhecer é tornar presente o ser conhecido.
O pensamento, portanto, não é sombra do real,
mas sua repetição espiritual.

O saber não acrescenta nada ao ser,
mas o reflete no espelho da alma.


3. O ser como medida da razão

A razão não cria a verdade,
mas é medida por ela.
Assim como o olhar não cria a luz,
mas se abre para ela,
assim o intelecto se conforma ao ser que o excede.

“Mensura intellectus est ens.”
(A medida do intelecto é o ser.)

Toda ciência é justa quando o pensamento se ordena à realidade,
e toda falsidade nasce quando o discurso se volta sobre si mesmo.

A lógica, portanto, é um exercício de humildade:
ensina o homem a pensar conforme o que é,
não conforme o que deseja.


4. A palavra e o ser

A palavra humana (verbum mentis)
é imagem participada do Verbo divino (Verbum Dei).
Pois assim como Deus expressa a Si mesmo gerando o Filho,
a alma expressa a verdade concebendo o pensamento.

“Verbum hominis est imago Verbi aeterni.”
(A palavra do homem é imagem da Palavra eterna.)

A lógica das categorias, vista desse modo,
é mais do que ciência das formas do discurso:
é teologia do verbo.
Cada conceito verdadeiro é uma pequena encarnação do Logos,
uma centelha de sentido descida ao intelecto humano.


5. O retorno da razão ao princípio

O caminho da razão começa no som,
passa pela ideia,
e termina na contemplação do ser.

“Ratio nascitur in voce, vivit in intellectu, perficitur in sapientia.”
(A razão nasce na voz, vive no intelecto e se aperfeiçoa na sabedoria.)

As categorias foram o primeiro passo desse caminho:
elas ensinaram o intelecto a distinguir, ordenar, conceituar.
Mas agora, ao fim do percurso,
a mente descobre que todo o múltiplo repousa no uno,
e que toda distinção é um reflexo da simplicidade divina.

Assim, a lógica retorna à metafísica,
e a metafísica se abre na contemplação do Ser que é.


6. A sabedoria como unidade entre o pensar e o ser

O homem sábio é aquele cujo pensamento
é conforme à estrutura do real.
Ele não fala por palavras vazias,
mas por verbo ordenado ao ser.

“Sapientia est conformitas intellectus cum ordine entis.”
(Sabedoria é a conformidade do intelecto com a ordem do ser.)

A sabedoria é, portanto, o coroamento da lógica:
a unificação de todas as distinções no princípio da unidade.

E, nessa unidade, o pensamento já não busca,
mas contempla;
já não divide, mas descansa;
já não mede, mas é medido pelo eterno.


7. A contemplação final do Ser

A razão humana é finita,
mas tende infinitamente ao Ser.
Por isso, seu movimento não é circular, mas ascendente:
cada verdade descoberta é um degrau
rumo à luz que não tem termo.

“Finis rationis est silentium sapientiae.”
(O fim da razão é o silêncio da sabedoria.)

No silêncio do ser, cessam as categorias,
as distinções, os nomes, as medidas.
Tudo retorna à fonte de onde procede:
ao Ser primeiro, simples, inefável.


8. Conclusão final

O caminho das Categorias é o caminho da razão:
do som ao conceito, do conceito ao ser, do ser ao Absoluto.
É o itinerário do intelecto humano,
que, iluminado pela luz natural,
aprende a ver no múltiplo a unidade,
e na unidade, o reflexo do Infinito.

“Per praedicamenta docemur ordinem rerum; per sapientiam, ordinem esse ipsum.”
(Pelas categorias aprendemos a ordem das coisas; pela sabedoria, a ordem do próprio ser.)

Assim termina o livro:
onde a análise se torna contemplação,
e o discurso, oração.

No limite da linguagem, o intelecto ouve o silêncio do Ser,
e entende que pensar é já participar de Deus,
pois toda verdade é uma centelha do Verbo,
e todo ser, um vestígio de Sua luz.


Finis Operis.

SÍNTESE FINAL — AS CATEGORIAS E O HORIZONTE DO SER

Toda filosofia verdadeira começa pelo espanto diante do ser, e termina na humildade do pensamento diante daquilo que o excede. Entre o primeiro lampejo da inteligência e o último silêncio da contemplação, o espírito humano precisa aprender a ordenar o que vê, nomear o que pensa, distinguir o que existe — e é neste aprender a ordenar que nasce a ciência das Categorias. Aristóteles as dispôs como quem coloca degraus sob os pés da mente: dez modos do ser, dez portas para o mundo, dez caminhos pelos quais o intelecto traduz em palavras o que é.

Mas compreender as Categorias não é exercício de gramática, é gesto de iniciação. Elas são a cartografia do real, o mapa ontológico que mostra ao homem os limites e os alcances de sua razão. É por elas que o discurso se torna imagem do ser, e o pensamento, medida da verdade. E é por isso que cada uma das três grandes vozes — Boécio, Scotus e Tomás — se deteve diante desse mesmo texto de Aristóteles, não para repeti-lo, mas para revelar, em três tons distintos, a mesma estrutura do universo: o ser, o pensar e o dizer unidos por uma mesma ordem.

Boécio foi o primeiro a escutar o eco latino das Categorias. Entre o fim da Antiguidade e o alvorecer da Idade Média, ele traduziu a voz do Estagirita como quem salva uma arca de sabedoria antes do naufrágio. Em Boécio, o problema é o da significação: como a mente humana, ao falar, toca o real sem destruí-lo? Ele compreende as Categorias como o espelho do mundo inteligível refletido na linguagem, e nelas encontra a harmonia tripla de toda filosofia — as coisas, os conceitos e as palavras. Sua leitura é o alicerce lógico do Ocidente: o mundo pode ser pensado porque o verbo é imagem do ser.

Séculos depois, Duns Scotus recolhe esse edifício e o refina até o limite da precisão. Onde Boécio via correspondência, Scotus vê distinção formal: ele percebe que entre o ser e seus modos há uma diferença mais sutil que a do nome, mas menos que a da substância — a diferença formal, a articulação interior do real. Para ele, as Categorias não são apenas modos de dizer o ser, mas modos do próprio ser enquanto inteligível. Sua leitura é o gesto de quem disseca a ontologia com a ponta da razão aguda, buscando a unidade transcendental que subsiste por baixo da multiplicidade dos predicamentos. O Doutor Sutil mostra que o ser se diz de muitos modos, mas é sempre o mesmo ato que pulsa sob todas as diferenças: ens est quod habet esse.

Por fim, em São Tomás, o círculo se fecha e se eleva. A mente que Boécio havia instruído e Scotus havia refinado, em Tomás se converte em contemplação. Ele não lê as Categorias como estrutura da linguagem, nem apenas como arquitetura do ser, mas como participação na ordem divina. Cada predicamento é um reflexo do ato de ser que procede de Deus; cada distinção, uma reverência ao Uno. A substância, a quantidade, a qualidade, a relação — tudo é ordenado segundo a analogia do ser, e todo o múltiplo é imagem degradada da simplicidade do Ato Puro. Em Tomás, as Categorias cessam de ser apenas lógica e tornam-se liturgia: o pensamento ajoelha-se diante da realidade e vê, na ordem do mundo, o vestígio do Verbo.

Três comentários, três tons, três idades da razão:
Boécio, o tradutor da ordem; Scotus, o anatomista do ser; Tomás, o contemplador do princípio.
Unidos, eles formam a tríplice ascensão do intelecto: da voz à ideia, da ideia ao ser, do ser a Deus.

Compreender as Categorias é compreender o próprio ato de pensar. É saber que toda palavra é um limite, e que dentro de cada limite vibra um eco do infinito. O homem que ignora as Categorias fala, mas não sabe o que diz; pensa, mas não sabe o que pensa. Pois antes de se perguntar o que é o bem, o belo ou a alma, é preciso saber como o ser se diz. A mente que não domina essa gramática do real permanece cega no templo da razão.

As Categorias são o alfabeto da ontologia: cada predicamento é uma letra do livro do mundo, e juntos eles formam o discurso silencioso do ser. Conhecê-las é entrar no ritmo pelo qual o universo se ordena, é alinhar o pensamento ao sopro que sustenta as coisas. Boécio ensinou a palavra a corresponder; Scotus ensinou a razão a discernir; Tomás ensinou o espírito a adorar. E a partir deles, todo o pensar humano, se ainda deseja ser verdadeiro, deve atravessar novamente essa tríplice escada — falar conforme o ser, pensar conforme a verdade, e repousar conforme o Uno.

A tríade de Boécio, Scotus e Tomás é, portanto, mais que uma sucessão histórica: é uma sinfonia metafísica, um tríplice espelho no qual o intelecto se reconhece enquanto criatura. Nela, a lógica toca o limiar da teologia, e o discurso, fatigado de si, reencontra sua origem no Verbo eterno.

Por isso, o estudo das Categorias não é apenas o início da filosofia — é seu batismo. Todo o resto deriva daí: as ciências, as doutrinas, as disputas, as esperanças. Pois é nesse primeiro gesto — distinguir o que é, do que é dito, e do que é pensado — que o homem reencontra a imagem de Deus em sua própria razão.

E quando, ao fim desse caminho, o intelecto aprende a ver que o nome, o ser e o pensar são uma só coisa no princípio, ele compreende enfim o que os três doutores ensinaram com linguagens diversas: que a lógica é o vestíbulo da metafísica, e a metafísica, o vestíbulo da visão. Pois a última categoria é o silêncio — o silêncio do Ser que não se predica, mas se revela.

 

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