Artigo Introdutório
A Voz que Pesa:
Sobre o “Livro das Dez Cargas de Isaías”, de Godefridus Admontensis
Há livros que são discursos, e há livros que
são vozes.
O Liber de Decem Oneribus Isaiae não
pertence à primeira espécie — não é uma obra feita de raciocínio ordenado, mas
de respiração profética.
Cada “onus”, cada peso, é uma inspiração que se transforma em palavra, um sopro
divino que se condensa em doutrina, e uma dor que se converte em visão.
Não se trata de um comentário exegético no sentido técnico, mas de um
itinerário espiritual: o profeta é, aqui, o mestre da ascese, e a profecia
torna-se uma escola de purificação.
Quando li Godefridus Admontensis pela primeira
vez, percebi que ele não escreve do tempo, mas de um ponto que o ultrapassa.
Sua voz vem do intervalo entre o silêncio de Deus e a inquietação dos homens —
um lugar onde o verbo não explica, mas pesa.
Esses dez pesos de Isaías são os dez estágios da alma que retorna a si mesma,
dez provas do espírito que atravessa a própria história interior.
Babilônia, Moab, Damasco, Egito, o Deserto do Mar, Duma, Arábia, o Vale da
Visão, Tiro e a Besta Meridiana — não são reinos antigos, mas estados da
consciência diante da luz.
Cada um deles é um modo do desvio, e ao mesmo tempo, um grau de purificação.
Traduzir essa obra é participar de sua
liturgia.
A linguagem de Godefridus é árdua, austera, feita de metáforas que se abrem
como feridas.
Não há suavidade em suas páginas; há juízo e compaixão, unidas num mesmo sopro.
Cada frase parece escrita sob tensão — tensão entre a graça e o pecado, entre o
silêncio e a voz, entre o humano e o divino.
Por isso, não se deve lê-lo como quem busca conhecimento, mas como quem se
deixa examinar.
A tradução, neste caso, não é apenas passagem de língua, mas descida de
espírito.
O latim monástico, duro e translúcido, impõe ao tradutor a penitência da
precisão: dizer o mesmo com menos ruído, conservar o fogo sem queimar a forma.
O Liber de
Decem Oneribus Isaiae é uma das obras mais significativas do monaquismo
intelectual do século XII.
Godefridus — abade de Admont, herdeiro de Hugo e Ricardo de São Vítor — soube
unir o rigor da teologia à vibração da profecia, traçando uma cartografia do
espírito.
Cada “onus” é um degrau do juízo interior: primeiro, a soberba do homem contra
Deus; depois, o prazer, a razão, o poder, o tumulto, o silêncio, a solidão, a
visão, a troca e, por fim, o orgulho espiritual.
As dez cargas são dez espelhos — e o último reflete o próprio leitor.
Se Duns Scotus é o Doutor da Subtilidade e
Tomás o Doutor da Ordem, Godefridus é o Doutor do Peso: ensina que a verdade
tem gravidade, e que o caminho da alma é uma sequência de pesos que se
transformam em asas.
Sua leitura de Isaías é, portanto, uma mística da purificação — uma escalada
inversa, onde a elevação é descenso.
Tudo desce: Deus desce para falar, o profeta desce para ouvir, e a alma desce
para ser levantada.
E no fim, quando cai a última cidade — Tiro, símbolo do comércio espiritual —,
a besta meridiana se ergue como sombra da própria luz.
A perfeição é provada pela claridade; a santidade é testada pela tentação da
glória.
É nesse ponto que Godefridus se revela teólogo do absoluto: sabe que o meio-dia
é o instante mais perigoso, e que só a humildade pode atravessar a luz sem se
cegar.
Esta tradução foi realizada a partir do texto
latino publicado na Patrologia Latina,
volume 174, edição de Migne, mantida em sua integridade conceitual e
estrutural.
O português aqui empregado busca preservar o rigor do pensamento e o tom orante
do original — evitando adornos excessivos, mas mantendo o ritmo contemplativo
que caracteriza a escrita monástica.
A obra foi traduzida e organizada com o propósito de tornar acessível ao leitor contemporâneo o itinerário espiritual
completo delineado por Godefridus, no qual a alma é conduzida do juízo
à liberdade, do peso à leveza.
Não é um texto para apressados.
O Liber de Decem Oneribus Isaiae exige
recolhimento, silêncio e, sobretudo, consentimento interior.
Quem o lê superficialmente encontrará apenas símbolos; quem o lê em espírito
encontrará a si mesmo.
Pois como diz o próprio autor ao final:
“Laudetur Christus, qui per onera prophetarum
nos ad libertatem spiritus educit.”
Seja louvado Cristo, que pelas cargas dos profetas nos conduz à liberdade do
espírito.
LIBER DE DECEM ONERIBUS ISAIAE
Prologus
Praefatio ad lectorem, exponens rationem tituli et intentionem spiritualem do
autor ao tratar dos "Onus" (ou "Cargas") do profeta Isaías.
Liber Primus — De Primo Onere: Onus Babylonis
Exegese
mística sobre Babilônia como símbolo do mundo e do vício, conforme Isaías XIII.
Inclui considerações sobre a soberba, a idolatria e a ruína do império.
Liber Secundus — De Secundo Onere: Onus Moab
Comentário
sobre Moab como figura da carne e do prazer sensível.
Aplica-se à vida ascética e ao combate espiritual.
Liber Tertius — De Tertio Onere: Onus Damasci
Trata da
corrupção espiritual e da duplicidade interior.
Damasco é interpretado como a inteligência desviada pela soberba.
Liber Quartus — De Quarto Onere: Onus Aegypti
Reflexão
sobre o Egito como imagem do mundo material e da falsa ciência.
Discussão sobre o poder temporal e sua relação com a sabedoria pervertida.
Liber Quintus — De Quinto Onere: Onus Desertae
Maris
Deserta
Maris (o deserto do mar) representa a confusão das nações.
O autor expõe a vaidade dos reinos humanos e a instabilidade do século.
Liber Sextus — De Sexto Onere: Onus Duma
Exposição
sobre o silêncio profético e o mistério do juízo.
Duma é tomada como figura do espírito que recusa ouvir a verdade.
Liber Septimus — De Septimo Onere: Onus Arabiae
Analisa o
deserto árabe como símbolo da solidão do coração sem graça.
Exorta à vigilância e à oração contínua.
Liber Octavus — De Octavo Onere: Onus Vallis
Visionis
Reflexão
sobre a “Vallis Visionis”, o vale da visão, como alegoria da Igreja terrena.
Explora a tensão entre revelação e cegueira espiritual.
Liber Nonus — De Nono Onere: Onus Tyri
Trata da
cidade de Tiro, símbolo da avareza e do comércio espiritual corrompido.
Contém longas meditações sobre a conversão das riquezas em obras de caridade.
Liber Decimus — De Decimo Onere: Onus Bestiae
Meridianae
A besta
do meio-dia é interpretada como o demônio do orgulho espiritual.
Encerramento com exortação à humildade e à perseverança na contemplação.
Finis Operis
Laudetur Christus, qui per onera prophetarum
nos ad libertatem spiritus educit.
(“Seja
louvado Cristo, que pelas cargas dos profetas nos conduz à liberdade do
espírito.”)
Prólogo
Não sem grande temor empreendo falar das “cargas”
do profeta Isaías — esses fardos espirituais sob os quais repousa, oculta, a
profundeza da justiça divina. Pois cada “onus” que o profeta proclama é uma voz
carregada de peso, uma revelação de juízo, um prenúncio de purificação. O
profeta não fala ao vento, nem apenas ao povo de seu tempo, mas a todos os
séculos, a todas as almas que, por orgulho ou ignorância, tornaram-se
Babilônias, Moabs e Egiptos interiores.
O termo onus
não designa apenas um fardo, mas também um oráculo: um peso que o espírito de
Deus impõe ao coração do homem para que dele saia palavra viva. Assim, as dez
cargas de Isaías não são somente denúncias, mas degraus ascéticos — dez
purificações, dez degraus de desprendimento que conduzem o espírito da soberba
do mundo à humildade do Cristo.
Como outrora o decálogo expressava a lei da
ação, assim estes dez onera revelam a lei da conversão interior. O número dez
encerra a totalidade da prova, e o profeta, ao enumerá-las, exprime o
itinerário completo da alma sob o peso da luz divina.
A Babilônia representa o início da corrupção —
a alma tomada pela vaidade das coisas sensíveis. O Egito, o saber que se volta
contra o espírito. A Duma, o silêncio do desespero. Tiro, a riqueza
transformada em ídolo. E, finalmente, a Besta Meridiana, o demônio da presunção
que devora o justo ao meio-dia — quando pensa estar iluminado.
Todas essas imagens não são de reinos externos, mas de estados da alma que o
Espírito Santo revela para que, conhecendo seus pesos, o homem os deponha aos
pés da cruz.
Portanto, não se leia este livro como mera
exegese, mas como confissão espiritual. Cada onus é uma descida e uma ascensão,
uma dor e uma cura, uma ruína e uma promessa.
Quem o ler, não o leia apenas com os olhos, mas com o coração; pois Isaías não
fala à carne, mas ao espírito, e o espírito, quando tocado pela palavra, sente
o peso que o liberta.
Livro Primeiro — Da Primeira Carga: Onus
Babylonis
“Onus Babylonis, quod vidit Isaias filius Amos.”
(A carga de Babilônia, que viu Isaías, filho de
Amós.)
A palavra profética inicia-se com peso e visão:
peso, porque é juízo; visão, porque é revelação. O profeta não diz apenas o que
ouviu, mas o que viu — e ver, na linguagem dos santos, é penetrar o sentido
divino das coisas. Assim, Babilônia não é apenas uma cidade terrestre, mas a
figura de toda a confusão humana, da soberba erguida contra Deus.
Babilônia significa, em sua raiz, “confusão”.
Confusão das línguas, das vontades, dos amores e das inteligências. Ela nasce
quando o homem, esquecendo-se do princípio que o criou, quer edificar para si
mesmo um nome e uma torre que alcance o céu. É o símbolo da ciência sem
humildade, da técnica sem sabedoria, da civilização que busca a eternidade sem
o Eterno.
Deus pesa Babilônia — e esse peso é o
princípio do juízo. Tudo quanto o homem ergueu sobre o fundamento da vaidade
será abalado pela mão invisível da verdade. Pois não há torre que se sustente
sobre o orgulho, nem cidade que dure quando o amor próprio é seu arquiteto. O
Espírito Santo sopra, e as torres ruem, e o homem volta a falar outra língua —
a língua do arrependimento.
O profeta contempla o exército que vem do
oriente, “dos montes tenebrosos”, para destruir Babilônia. Essas nações não são
apenas povos terrenos, mas potências espirituais — os anjos da justiça, os
instrumentos da purificação divina. Eles não vêm para punir arbitrariamente,
mas para restaurar a ordem abalada pela soberba humana. O homem que edifica sua
própria glória será invadido pelo exército do Espírito, que derruba o falso
templo para reconstruir o verdadeiro.
Babilônia é também o coração do justo quando
este se entrega à multiplicidade dos pensamentos. Pois o coração, quando
disperso, torna-se cidade dividida: mil vozes, mil torres, mil intenções. É
nesse interior tumultuado que o Senhor envia sua palavra como raio, dissipando
as sombras e chamando a alma ao recolhimento. Cada um deve reconhecer sua
própria Babilônia — aquilo em si que é confuso, soberbo, dividido, impuro — e
ali permitir que o juízo de Deus opere.
“Caiu Babilônia, caiu!” — proclama Isaías. E a
repetição do verbo é a dupla libertação: da alma e do mundo, do exterior e do
interior. Cair duas vezes é morrer para si e para a aparência. O Espírito não
destrói por ódio, mas por amor: abate para reconstruir. A ruína é o primeiro
ato da graça. Pois nenhum edifício do homem pode conter a morada de Deus.
O profeta anuncia também o fim dos ídolos de
ouro e prata. Esses ídolos são as imagens do pensamento que o homem adora em
lugar da verdade: ideias absolutizadas, ciências erigidas em dogma, vaidades
espirituais que tomam o lugar da fé. Assim como os caldeus adoravam os astros,
também hoje muitos se prosternam diante das estrelas de sua própria razão. Mas
virá o dia em que essas luzes serão apagadas, e o sol espiritual, o Cristo,
nascerá sobre as ruínas da antiga cidade.
Babilônia é também figura da Igreja quando se
corrompe, quando as honras e as riquezas substituem a pureza da doutrina. Deus
pesa o templo com o mesmo peso com que pesa o império. Onde houver confusão,
haverá juízo. E, contudo, em meio à destruição, uma promessa permanece: “Ego
suscitabo in vobis Sion” — levantarei em vós uma nova Sião.
Pois do pó de Babilônia nasce o arrependimento, e do arrependimento nasce a
pureza. A alma que reconhece seu exílio encontra o caminho da pátria.
Não há verdadeiro espírito cristão que não
passe pela experiência da queda de Babilônia interior. Cada homem traz em si
uma torre erguida pela vaidade; e só quando ela desmorona, o coração se torna
morada do Verbo. Assim, a carga de Babilônia é o início da libertação — o peso
do juízo que se transforma em peso de glória.
Quem a suporta com paciência, verá o ouro da cidade purificado pelo fogo da
graça.
Livro Segundo — Da Segunda Carga: Onus Moab
“Onus Moab. Quia in nocte vastata est Ar, Moab
periit.”
(A carga de Moab. Porque, de noite, foi
devastada Ar, e Moab pereceu.)
O profeta fala novamente em carga — peso — e o
faz com uma dor que toca a própria misericórdia de Deus. Moab, descendente de
Lot, representa o homem que nasceu de uma origem legítima, mas degenerou no prazer.
É a carne que, tendo recebido a bênção da criação, faz dela instrumento de sua
própria corrupção. Moab não é o estrangeiro absoluto, mas o próximo corrompido
— aquele que teve a verdade à porta, mas preferiu o vinho do mundo ao pão do
espírito.
A noite da devastação de Ar, cidade principal
de Moab, é a noite da tentação. Ar significa “cidade da terra”; sua ruína
noturna é a queda da alma no momento em que adormece na vigilância. O pecado
raramente vem sob a luz do dia: ele se insinua na obscuridade da distração e do
deleite. Assim, a destruição de Moab é símbolo do colapso interior do homem que
se entrega à carne, transformando o dom em prisão.
O profeta chora sobre Moab, e o faz como quem
lamenta um irmão. Pois Deus não se compraz com a perda dos seus, mas se dói com
ela. O Espírito Santo inspira a compaixão até nos oráculos de destruição. A ira
de Deus é, na verdade, a sombra de seu amor rejeitado. O peso de Moab é o peso
da dor divina diante de uma alma que escolhe o abismo.
Moab habitava em planícies férteis, regadas
por águas doces. O texto sagrado diz que “suas vinhas floresciam até Jazer, e o
perfume do vinho enchia as nações”. Essas vinhas são as delícias sensíveis que
embriagam o homem e o fazem esquecer sua origem. A embriaguez de Moab é a
figura da concupiscência: não apenas o vício da carne, mas todo amor
desordenado do mundo, toda complacência nas potências perecíveis. O vinho de
Moab é o prazer que promete força e produz fraqueza; é a alegria que turva o
juízo e adormece a consciência.
Deus pesa Moab, e o encontra leve. Pois diante
da balança eterna, só o amor puro tem peso. As lágrimas do profeta são o
reflexo da justiça divina: ele chora porque vê o que poderia ter sido e não
foi. Moab representa também o homem religioso que se perdeu em sua própria
sensibilidade — aquele que transforma o fervor em deleite, a oração em emoção,
o jejum em vanglória. O pecado espiritual é mais sutil que o carnal, e o mais
grave dos prazeres é o prazer de parecer santo.
Quando Isaías anuncia que as águas de Dimon se
encherão de sangue, quer dizer que aquilo que era fonte de prazer tornar-se-á
fonte de dor. Todo gozo que não se eleva à caridade termina por corromper-se em
sua própria amargura. O homem que faz da carne sua pátria verá sua pátria
convertida em deserto. Pois o corpo, quando amado acima do espírito, torna-se
inimigo; e aquilo que era companheiro se converte em tirano.
A ruína de Moab, portanto, é purificação. É a
carne que retorna ao pó, para que o espírito volte ao alto. O profeta vê o povo
de Moab fugindo de suas cidades, chorando pelos campos, rasgando as vestes — e
cada gesto é um símbolo da alma penitente. O rasgar das vestes é o rompimento
com o orgulho; o pranto é o batismo interior do arrependimento; a fuga é o
movimento da alma que se liberta do antigo império dos sentidos.
Moab, em seu fim, é chamado a subir à montanha
de Sião. Pois até o mais decaído tem uma promessa. A carne, quando purificada,
torna-se templo; o desejo, quando ordenado, torna-se força. Não há prazer mais
puro que o do amor santo, nem alegria mais profunda que a do corpo reconciliado
com o espírito. Deus não quer aniquilar Moab, mas convertê-lo em oferenda:
fazer de sua terra fecunda um jardim da graça.
Assim termina o segundo peso: Onus Moab, o fardo do prazer.
Babilônia fora o fardo da soberba; Moab é o da carne. A primeira queda é da
mente que quer ser deusa; a segunda, do corpo que quer ser rei. Mas de ambos
nasce a lição: só quem se despoja do que ama mal poderá amar verdadeiramente.
E o espírito, uma vez liberto de Moab, aprende a sobriedade — a embriaguez do
Espírito Santo, que não corrompe, mas ilumina.
Livro Terceiro — Da Terceira Carga: Onus
Damasci
“Onus Damasci. Ecce, Damasci tolletur de
civitate, et erit ruinae acervus.”
(A carga de Damasco. Eis que Damasco será
removida de sua cidade e se tornará um montão de ruínas.)
Depois da soberba de Babilônia e do deleite de
Moab, o profeta levanta o véu sobre Damasco, que simboliza a corrupção do
entendimento. Se Babilônia é o orgulho da vontade e Moab o desregramento do
desejo, Damasco é o erro da inteligência — a mente que se exalta em sutilezas e
se aparta da simplicidade da verdade divina.
Toda heresia, toda presunção teológica, toda razão que quer subjugar o mistério
tem seu berço em Damasco.
O nome Damasco significa “ensanguentada” ou
“impetuosa”, e isso indica a violência com que o pensamento, separado da fé, se
volta contra o próprio espírito. A mente humana, quando deixa de ser serva da
verdade e pretende ser sua senhora, torna-se uma espada em mãos cegas. O sangue
que corre é o das próprias certezas destruídas. Assim, o oráculo anuncia a
ruína da cidade como metáfora do colapso do intelecto não iluminado.
O homem moderno, que adora sua razão e
desdenha o mistério, é o herdeiro de Damasco. Ele constrói palácios de lógica,
mas neles o espírito definha. Ele acumula fórmulas, mas esquece o Verbo. Tudo o
que raciocina sem orar converte-se em ruína; e o saber que não se inclina
diante do ser é o mais sutil dos abismos. Damasco é, pois, o símbolo do pensamento
autônomo — não do uso da razão, mas de sua idolatria.
O profeta diz: “Cessará o regnum de Damasco e
o resto de Aram será como a glória dos filhos de Israel.” Isso significa que a
sabedoria natural, uma vez purificada, deve ser integrada à sabedoria revelada.
Deus não destrói o intelecto: Ele o converte. A mente que outrora buscava
dominar o mistério será convidada a contemplá-lo. O que era presunção torna-se
humildade; o que era erro, torna-se iluminação.
Pois não há juízo de Deus que não vise à restauração da ordem original.
Damasco é também imagem da alma dividida entre
fé e dúvida. Quantas vezes o coração crê, mas a razão resiste! Quantas vezes o
espírito se ajoelha, mas o intelecto permanece de pé! Essa divisão interior é o
verdadeiro peso do profeta: o fardo da inteligência que ainda não se
reconciliou com o amor. Por isso Isaías fala de ruína — não apenas de
destruição externa, mas do colapso interior que prepara a conversão.
A cidade precisa ruir para que o templo seja edificado.
O oráculo descreve Damasco cercada por
rebanhos e despojada de seus muros. É a imagem da mente exposta, sem defesa,
quando Deus a visita. A razão humana, ao ser tocada pela luz da graça, vê ruir
suas muralhas conceituais; e então percebe que todo o seu edifício era feito de
areia. Mas esse desnudamento é salvação. Só o intelecto despido pode receber a
luz.
A sabedoria divina não se revela ao sábio, mas ao humilde que se deixa
desarmar.
O profeta lamenta também que “as cidades de
Aroer estejam desertas e se deitem em pastos onde repousam os rebanhos.” O
espírito humano, depois de sua queda racional, entra num estado de silêncio
fértil. O deserto de Damasco não é apenas ruína: é campo aberto para a escuta.
A inteligência, purificada do ruído de si mesma, torna-se pasto do Verbo.
Aquele que antes falava demais, agora cala; e em seu silêncio o Logos habita.
Assim, a terceira carga é o fardo da mente
soberba, o peso do raciocínio que se volta contra o princípio. Damasco
representa a ciência sem caridade, a teologia sem oração, o intelecto sem
humildade.
Quem passa por esse peso aprende a pensar de novo — não por força da razão, mas
por luz do espírito. Pois Deus não quer escravos ignorantes, mas sábios
adoradores.
O verdadeiro conhecimento é aquele que termina em silêncio; e o silêncio,
quando habitado por Deus, é sabedoria.
Livro Quarto — Da Quarta Carga: Onus Aegypti
“Onus Aegypti. Ecce Dominus ascendit super nubem
levem et ingredietur Aegyptum.”
(A carga do Egito. Eis que o Senhor vem sobre
uma nuvem leve e entrará no Egito.)
Depois de Babilônia, Moab e Damasco, o profeta
dirige o olhar ao Egito — figura complexa e profunda, pois nele se condensam o
esplendor da sabedoria humana e a escravidão do espírito. Babilônia fora o
símbolo da soberba, Moab o do deleite, Damasco o da razão corrompida; o Egito é
o do poder do mundo aliado à ciência sem luz. É a representação do homem que
tudo sabe, mas esquece o fim; que domina as causas, mas ignora o sentido.
O Egito é a sabedoria sem transcendência, a política sem justiça, o cálculo sem
caridade.
Isaías vê o Senhor vindo “sobre uma nuvem
leve” — imagem da encarnação, pois a nuvem é a carne puríssima que o Verbo
assume, leve porque sem pecado. Ao entrar no Egito, o Senhor penetra o
território da ciência mundana para santificá-la. Assim como outrora José e
Maria desceram com o Menino à terra dos faraós, também agora o Cristo entra
misticamente na inteligência humana para libertá-la do jugo da idolatria.
A “entrada do Senhor no Egito” é o evento interior em que a graça visita o
saber e o converte.
O Egito é célebre por seus sábios,
encantadores e magos. Representa o intelecto que tenta imitar o divino por meio
de artifício. Mas o profeta anuncia que “os ídolos do Egito tremerão diante do
seu rosto.” Isto é: toda ciência fundada sobre o orgulho vacilará quando
confrontada com a luz da verdade.
A sabedoria humana, quando isolada, é magia; e a magia, quando aperfeiçoada, é
idolatria da própria mente. O Senhor não destrói o saber, mas o purifica —
quebra os ídolos para restaurar o templo.
O Egito é também o império da força temporal,
do governo sem Deus. “Confundam-se os conselhos de seus príncipes”, diz o
profeta, “e o espírito de vertigem se derrame sobre eles.” A confusão dos
conselheiros é o juízo sobre o poder que se crê autônomo. Quando o Estado se
faz deus, a história se torna seu castigo. Todo império que ignora o Espírito
cai sob o peso de sua própria razão política.
O Egito é o mundo moderno antes de nascer: o regime do cálculo e da técnica sem
graça.
Mas há no oráculo uma luz escondida: “Naquele
dia haverá um altar do Senhor no meio da terra do Egito.” A promessa revela que
até o saber profano pode tornar-se lugar de culto, se for purificado. A mesma
inteligência que antes produzia ídolos pode oferecer incenso ao verdadeiro Deus.
O altar no Egito é o coração convertido dentro do mundo — o espaço onde a
ciência se curva e a força se entrega.
Não se trata de destruir o Egito, mas de convertê-lo em templo.
O Senhor “fere o Egito para curá-lo”. Eis o
paradoxo divino: o golpe é medicina. A ferida é o início da graça.
A mente ferida pela impotência de compreender o infinito abre-se ao mistério.
O poder, frustrado em sua onipotência, descobre a necessidade da fé.
O sofrimento intelectual — a experiência da insuficiência do saber — é o
princípio da sabedoria verdadeira.
O Egito é também o símbolo da alma quando
volta ao cativeiro. Cada vez que o homem, iluminado pela fé, retorna às
seguranças do mundo, repete a escravidão de Israel. Deus o visita então com
seca espiritual: “As águas do rio secarão, e o Nilo se tornará vil.” O Nilo é o
fluxo do conhecimento natural; sua secura representa a aridez que acomete o
espírito quando o saber não conduz mais à verdade.
Mas essa secura é salutar: é o esvaziamento necessário para que o rio da graça
possa brotar.
O profeta anuncia, por fim, uma misteriosa
tríplice aliança: “Naquele dia haverá uma via do Egito à Assíria, e Israel será
o terceiro entre eles.”
O Egito representa a sabedoria natural, a Assíria a força das nações, e Israel
a fé. A união dos três é a visão do mundo reconciliado: ciência, poder e
religião reunidos sob a luz de Deus. É o destino escatológico do saber humano:
deixar de ser domínio para tornar-se serviço.
A cidade da técnica converter-se-á em mosteiro da contemplação; e o Egito,
outrora cativeiro, será pátria da luz.
Assim se encerra o quarto peso — Onus Aegypti, o fardo do saber e do poder.
Depois da confusão, da carne e da mente, surge o império do cálculo.
Mas até o Egito será visitado: a ciência profana, purificada pela encarnação,
servirá à fé; e o poder, reconciliado com a sabedoria, encontrará sua medida na
justiça.
Pois o Senhor não destrói o mundo: Ele o atravessa, e, ao atravessá-lo, o
redime.
Livro Quinto — Da Quinta Carga: Onus Desertae
Maris
“Onus desertae maris. Sicut procella percurrit a
deserto, venit de terra horribili.”
(A carga do deserto do mar. Como a tempestade
que vem do deserto, assim vem de uma terra terrível.)
O profeta agora se volta para uma das imagens
mais misteriosas de toda a sequência: o Deserto
do Mar — expressão paradoxal, onde o que é árido se une ao que é
abundante, e o que é silêncio se mistura ao que é ruído.
Para Godefridus Admontensis, o
“desertum maris” é a imagem da confusão
universal, o mundo entregue às
suas próprias forças, quando a ordem divina é esquecida e os impérios
tornam-se ondas sobre areia.
O “mar” representa a instabilidade das nações,
o fluxo incessante dos povos e dos tempos; o “deserto” é o vazio espiritual que
habita o coração humano. Assim, o deserto do mar é o mundo moderno em sua essência profética: uma humanidade
saturada de movimento e vazia de sentido, rica em técnica e pobre em sabedoria,
unida na comunicação e dispersa no espírito.
Isaías vê uma “tempestade que vem do deserto”
— é a irrupção do juízo sobre os impérios.
O profeta sente “o coração tremer e as dores me tomarem como as de uma mulher
em parto”; pois a confusão do mundo não é apenas castigo, é também nascimento.
Deus não aniquila o mar: Ele o agita até que dele surja uma nova terra.
O deserto do mar é o campo do parto escatológico, onde o velho mundo se consome
para dar lugar ao Reino.
O oráculo fala também de Babilônia, de novo, mas agora já caída.
A cidade da soberba torna-se espuma sobre as ondas. “Ascendit Dominus ad
dissolvendam Babylonem.”
Isso significa que o poder humano, quando se separa da sabedoria, se destrói
por excesso de movimento — ele dissolve a si mesmo.
Os impérios — econômicos, políticos ou espirituais — que se sustentam sobre o
fluxo perpétuo e o progresso infinito acabarão tragados por suas próprias marés.
Assim, o deserto do mar é a alegoria da civilização
do fluxo, onde tudo se move e nada permanece, onde a mudança é adorada
como deus.
O profeta observa que “as sentinelas estão
sobre as torres de vigia, e uma voz clama: cecidit, cecidit Babylon.”
As sentinelas são os espíritos vigilantes — monges, profetas, doutores — que
mantêm a fé no meio da confusão.
Eles veem as ruínas, mas também a promessa; anunciam a queda, mas esperam a
aurora.
São os guardiões da interioridade num mundo entregue à exterioridade.
Pois, mesmo no deserto do mar, o Espírito ergue atalaia: a consciência que
vigia, a Igreja que resiste, o justo que ora no meio da tormenta.
O “onusto do mar” é o próprio homem
contemporâneo: carregado de bens, mas esvaziado de ser; cheio de informações,
mas sedento de sabedoria.
O comércio incessante, que Tiro simbolizará mais tarde, já aqui se anuncia: o
espírito transformado em mercadoria, a alma em instrumento.
O deserto do mar é o mundo globalizado
antes do nome, o império da simultaneidade sem comunhão, da abundância
sem substância, da voz sem silêncio.
E o profeta vê tudo isso como uma tempestade divina: não mero caos humano, mas
purificação providencial.
O Senhor “quebra as imagens, abate as colunas
e faz cessar os clamores das nações.”
É a crise dos falsos deuses — o colapso das idolatrias seculares, científicas e
espirituais.
Quando o homem não mais distingue o Criador da criatura, Deus o entrega à
própria multiplicidade, para que, cansado do movimento, busque o repouso eterno.
O deserto do mar é o cansaço de Deus no
coração do homem: a aridez que prepara a conversão.
Mas há um mistério de esperança no centro da
tormenta.
O profeta vê um mensageiro que vem correndo, e diz: “Super montem Sion
annuntiabo pacem.”
Mesmo no mar desértico, há um caminho que leva à montanha — a via do espírito
que atravessa o mundo sem pertencer a ele.
A alma que conserva a fé em meio às ondas torna-se como a arca no dilúvio:
pequeno refúgio da eternidade dentro da história.
O deserto do mar é, pois, o campo de prova da paciência dos santos.
Assim termina o quinto peso — Onus Desertae Maris, o fardo da confusão das
nações e da civilização sem alma.
Babilônia caiu, mas o mar permanece; Moab se dissipou, mas o prazer ressurge;
Damasco se converteu, mas a razão insiste; o Egito foi ferido, mas ainda
governa o mundo.
E agora o profeta contempla o todo — o redemoinho universal das potências
humanas sem eixo, o ruído de mil impérios que se erguem e se consomem.
Mas no centro da tormenta, uma luz persiste: a “nuvem leve” do Cristo, sobre o
mar.
Ela não impõe silêncio às ondas — apenas lhes dá sentido.
Livro Sexto — Da Sexta Carga: Onus Duma
“Onus Duma. Clamat ad me de Seir: Custos, quid
de nocte? Custos, quid de nocte?”
(A carga de Duma. Uma voz clama a mim desde
Seir: Vigia, que há da noite? Vigia, que há da noite?)
Duma significa “silêncio”, e neste nome repousa
o mistério mais profundo de toda a série dos pesos.
Se Babilônia representava o tumulto da soberba e o Egito a ciência do mundo,
Duma é o oposto deles: é o silêncio da alma
diante do abismo de Deus, o ponto em que todo saber cessa, toda
palavra se curva e todo ruído se dissolve na espera.
É o oráculo da noite — o peso da ausência, da demora e da obscuridade
espiritual.
A voz que clama desde Seir é a alma inquieta,
vinda da montanha do esforço humano, perguntando ao vigia: “Que há da noite?” —
isto é, quando cessará a escuridão, quando virá a aurora, quando Deus se deixará
ver?
Mas o vigia, que é o profeta, responde: “Vem a manhã, e ainda é noite.”
O sentido é duplo: há sempre luz que desponta, mas o homem ainda não está
pronto para vê-la.
O silêncio de Deus não é ausência, mas pedagogia. A demora divina é o modo como
o eterno educa o tempo.
Em Duma, Deus fala calando.
O silêncio é a última palavra do Espírito quando a criatura já não suporta mais
sons.
A alma que atravessou Babilônia, Moab, Damasco, Egito e o Deserto do Mar — isto
é, que venceu a soberba, o prazer, a razão, o poder e o tumulto — chega agora
ao limite da escuta, onde não há
mais nada a compreender, apenas a permanecer.
A purificação do intelecto não basta: é preciso purificar também a linguagem.
“Custos, quid de nocte?” — é o grito da oração
sem resposta.
E o profeta, no entanto, permanece sobre o muro, firme, imóvel, vigiando.
A noite não é punição, mas condição do amor.
Pois só quem ama em trevas conhece a luz verdadeira.
A fé que vive da evidência não é fé, mas visão; e Deus, ao retirar sua presença
sensível, convida o homem à pureza do amor sem garantia.
O silêncio de Duma é o lugar onde o profeta
deixa de ser orador e se torna vigia.
Não fala, observa; não explica, espera.
A sabedoria monástica de Godefridus reconhece aqui o ponto culminante da ascese:
o recolhimento total, o repouso da vontade, o “non loqui de Deo sed tacere in
Deo” — não falar de Deus, mas calar em Deus.
O verdadeiro silêncio não é ausência de som, mas presença de mistério.
E esse mistério é o próprio Cristo oculto no coração.
O vigia responde: “Vem a manhã, e ainda é
noite; se queres perguntar, torna a vir.”
Assim fala o Espírito à alma que busca com impaciência.
A manhã vem — há progresso — mas cada luz traz nova obscuridade.
Pois quanto mais o homem se aproxima de Deus, mais o infinito se revela como
mistério.
O progresso espiritual é um aprofundamento da noite: de luz em luz, até a
escuridão inacessível.
Por isso, o convite final — “volta e vem” — é o chamado à perseverança.
Não há fim para a busca; a vigilância é eterna.
Duma é também figura do tempo presente: o
silêncio da profecia antes do Juízo.
Entre a voz do Antigo Testamento e o Verbo feito carne, há o intervalo do
silêncio.
Deus prepara a plenitude pela ausência, e o mundo geme no escuro até que o Sol
nasça do alto.
Assim também na alma: entre a promessa e o cumprimento há uma noite, e essa
noite é Duma.
O silêncio, porém, não é vazio, mas gestação.
A noite é grávida de luz, e o coração que se cala diante de Deus está sendo
fecundado pelo Verbo.
Nada é mais terrível nem mais doce que esse silêncio: nele a alma sente a
proximidade do eterno e a distância de tudo o que ama.
E quando já não pode suportar o peso da ausência, descobre que a ausência é Ele
mesmo — presente em forma de espera.
O onus Duma é, portanto, o peso do silêncio divino: a prova dos
santos e o repouso dos sábios.
É o ponto onde a contemplação se torna oração pura e o espírito repousa em
vigilância.
Quem suporta essa noite encontrará, ao amanhecer, não uma visão passageira, mas
a própria luz que não se põe.
Pois quando cessa a voz do homem, começa a palavra de Deus.
Livro Sétimo — Da Sétima Carga: Onus Arabiae
“Onus Arabiae. In saltu dormietis, in itineribus
Dedanitarum.”
(A carga da Arábia. Dormireis no deserto, nos
caminhos dos dedanitas.)
A profecia se volta agora para a Arábia — o deserto ardente, símbolo da solidão
espiritual e da vigilância fatigante.
Depois do silêncio de Duma, o profeta contempla a alma que permanece desperta
no ermo, exposta à secura e à prova.
Enquanto Duma era o silêncio de Deus,
a Arábia é o silêncio do homem diante de
Deus — o esforço contínuo de vigiar, de permanecer fiel em meio ao
vazio.
“Dormireis no deserto.”
Não é o sono do repouso, mas o cansaço da fidelidade.
O justo dorme em meio às areias, mas seu coração vela; o corpo desfalece, mas o
espírito observa.
A Arábia é o campo do combate interior, onde o inimigo não vem de fora, mas das
profundezas da alma.
O homem que entrou em Duma e suportou o silêncio divino é agora provado pela
persistência: o deserto é a segunda face da noite.
O profeta anuncia que “os habitantes da terra
de Tema trarão água aos que têm sede e pão aos que fugiram.”
Tema, cujo nome significa “plenitude do meio-dia”, representa as almas que já
receberam alguma luz e auxiliam os peregrinos.
No caminho do deserto, ninguém se sustenta sozinho; até o eremita precisa do
consolo invisível dos santos.
Assim, Deus não abandona os que vigiam: envia-lhes Tema, a luz fraterna, o
sopro que refresca no meio da secura.
O deserto árabe é também imagem da Igreja
peregrina, que atravessa o mundo entre as areias do tempo e o fogo das
tentações.
Não há muros, não há sombra, não há abrigo — apenas o sol do juízo e o vento da
provação.
E no entanto, é nesse espaço de desolação que o Espírito Santo habita de modo
mais puro, pois onde tudo falta, tudo é dom.
A carência torna-se sacramento: a falta é o modo como Deus se faz presente ao
vigilante.
O oráculo prossegue: “Intra annum, sicut annus
mercenarii, deficiet omnis gloria Cedar.”
Em um ano, como o ano de um mercenário, desaparecerá toda a glória de Cedar.
Cedar era uma tribo nômade, descendente de Ismael, famosa por suas tendas
negras e suas caravanas de incenso.
Simboliza o orgulho da vida nômade, a autossuficiência do espírito que confia
em sua própria mobilidade.
O profeta anuncia que essa glória passará — o homem não pode viver eternamente
errante.
O deserto é caminho, não morada.
A vida espiritual que se contenta em vagar, sem encontrar repouso no Absoluto,
se esgota como areia levada pelo vento.
Mas há uma doçura escondida nessa profecia
severa.
O deserto que destrói as glórias humanas é também o lugar do encontro.
Ali, onde não há ruído, a voz de Deus soa como brisa leve.
A alma que tudo perdeu encontra o essencial: aprende que a verdadeira glória
não está em Cedar, mas em Sião.
E quando o corpo desaba, o espírito desperta.
A Arábia é o campo onde o homem aprende a distinção entre o necessário e o
supérfluo.
Os “dedanitas”, de quem fala o profeta, são
mercadores errantes.
Eles simbolizam os pensamentos e afetos que percorrem incessantemente o coração.
“Nos caminhos dos dedanitas dormireis”: isto é, vigiareis entre pensamentos
dispersos, tentados por lembranças, imagens e desejos.
O monge que vive no deserto sabe que o inimigo não é o mundo, mas a imaginação.
Por isso, Godefridus adverte: quem quer vencer na Arábia deve aprender a orar com sobriedade, a transformar os
pensamentos em incenso e o cansaço em sacrifício.
O Onus
Arabiae é o peso da perseverança.
Não há nele visões, nem vozes, nem consolações: apenas o vento e o sol, e a
certeza de que Deus está além do horizonte.
O espírito que suporta o calor sem sombra é o mesmo que, mais tarde, verá o
oásis eterno.
A prova do deserto é a escola do paraíso.
A Arábia é também figura do tempo escatológico
— o fim dos tempos, quando o mundo terá sede de fé e os santos serão poucos.
“Dormireis no deserto”: o cristianismo, nesse tempo, parecerá adormecido, mas
em seu sono estará a semente da ressurreição.
A noite de Duma prepara o deserto de Arábia; o silêncio prepara a resistência.
E quando todos os Cedares tiverem passado, restará apenas o Nome.
Assim termina o sétimo peso — Onus Arabiae, o fardo da solidão e da
vigilância.
A alma que o suporta torna-se sentinela perpétua: não busca mais luz, mas
fidelidade; não exige mais consolo, mas presença.
Quem atravessou o deserto com amor já não teme a noite nem a seca — porque sabe
que o próprio deserto é o caminho de Deus.
Livro Oitavo — Da Oitava Carga: Onus Vallis
Visionis
“Onus vallis visionis. Quid tibi ergo, quia
ascendisti tota in tecta?”
(A carga do vale da visão. Que tens tu, que
subiste toda aos telhados?)
A profecia chega agora ao vale da visão, uma das expressões mais
enigmáticas e profundas de Isaías.
Depois do silêncio de Duma e da solidão da Arábia, o profeta volta os olhos ao
mundo visível — não ao deserto, mas ao vale,
onde a humanidade habita, trabalha, constrói e reza.
Mas este vale, chamado “da visão”, é ao mesmo tempo lugar da revelação e da cegueira.
Pois é aqui, no meio das coisas visíveis, que Deus fala — e é também aqui que o
homem mais facilmente o esquece.
O vale da visão é a Igreja terrena, onde a luz divina toca as sombras
humanas.
É o espaço entre o alto e o baixo, entre o céu e a terra, entre a promessa e o
cumprimento.
E por isso é um lugar de mistura: fé e dúvida, revelação e erro, santidade e
pecado convivem lado a lado.
O profeta contempla esse paradoxo e sente o peso de sua dor.
“Que tens tu, Jerusalém”, diz ele, “que subiste toda aos telhados?”
Isto é: por que te exaltas em tua própria visão, por que transformas a luz
recebida em glória própria?
A vaidade espiritual é a mais sutil das trevas.
A “visão” de que fala Isaías não é a visão de
Deus, mas a da cidade que se contempla a si mesma.
A Igreja, quando se volta para o mundo, vê o mundo; mas quando começa a
contemplar-se como espetáculo, deixa de ver o divino.
É o pecado da autovisão: a religião que se torna imagem, o templo que vira
teatro, a fé que se converte em cultura.
Por isso o profeta chora: “plorabo amaritudine; nolite consolari me, quoniam
vastata est vallis visionis.”
(“Chorarei com amargura; não me consoleis, pois foi destruído o vale da visão.”)
Chora a corrupção interior do sagrado, a transformação do olhar em orgulho.
O vale é chamado “da visão” porque Deus
realmente se manifesta nele — mas de modo velado.
É o lugar das mediações, dos sacramentos, dos sinais.
A Igreja militante vive dessa tensão: vê, mas não plenamente; ouve, mas em
parte.
Sua glória está em crer no invisível, não em possuir o visível.
Quando ela quer ver tudo, perde a fé; quando aceita ver pela sombra, é
iluminada.
Assim, a “carga do vale” é o fardo de crer em meio à aparência.
O profeta repreende: “Repleti estis gaudio,
immolatis vitulos, occiditis oves, comeditis carnes et bibitis vinum:
manducemus et bibamus, cras enim moriemur.”
É a crítica à alegria sem vigilância — a celebração do culto transformado em
festa do mundo.
O povo, cercado por inimigos, continua bebendo e dançando.
A alegria sem arrependimento é a caricatura da esperança.
No vale da visão, a festa pode ser máscara da morte.
Deus responde: “Non delebitur iniquitas haec
vobis, donec moriamini.”
Não se apagará esta culpa até que morrais.
É o juízo sobre a religião exterior, sobre o formalismo espiritual que recita o
nome de Deus mas não o adora.
O vale da visão é o centro da história da salvação: o ponto em que a luz toca a
terra e o homem decide se a acolhe ou a reflete.
A Igreja, enquanto peregrina, vive nessa encruzilhada.
Quando é fiel, torna-se Sião; quando se exalta, converte-se em Jerusalém
mundana.
Mas há uma promessa escondida na dor do
profeta.
Deus suscitará “Eliacim filium Helciae”, o servo fiel que abrirá e ninguém
fechará, que fechará e ninguém abrirá.
Eliacim é figura de Cristo, o novo guardião do templo, o único capaz de
restaurar a pureza da visão.
Ele é o mediador entre o alto e o baixo, o vale e o monte, a sombra e a luz.
Nele, a “visão” torna-se verdadeira, porque é cruz: o ponto onde o olhar humano
e o olhar divino se encontram.
O vale da visão é, portanto, a condição da
Igreja até o fim dos tempos:
ver e não ver, conhecer e ignorar, possuir e desejar.
É também o retrato da alma iluminada, que já provou o sabor da contemplação mas
ainda vive entre as distrações do mundo.
Seu fardo é manter a fidelidade à luz em meio às sombras, e suportar o
contraste sem se desesperar.
Pois a fé madura não foge da ambiguidade: santifica-a.
Assim termina o oitavo peso — Onus Vallis Visionis, o fardo da visão e da
cegueira.
A alma que o compreende já não confunde brilho com luz, nem confia em sua
própria claridade.
Sabe que o verdadeiro ver é adorar, e que o vale, por mais baixo que pareça, é
o lugar onde Deus passa.
A luz eterna se revela apenas a quem suporta a sombra do tempo.
Livro Nono — Da Nona Carga: Onus Tyri
“Onus Tyri. Ululate, naves maris, quia devastata
est domus unde veniebatis.”
(A carga de Tiro. Uivai, ó navios do mar, pois
está destruída a casa de onde vinheis.)
A voz do profeta ergue-se agora sobre o mar —
não o deserto de antes, mas o mar das
transações, o domínio do comércio e das trocas, onde o espírito do
homem se torna moeda.
Tiro, a cidade fenícia das riquezas e do luxo, é o símbolo do mercado da alma, da civilização que
transforma tudo em objeto, até mesmo o sagrado.
Depois do vale da visão, onde a fé foi corrompida pela ostentação, vem Tiro,
onde o dom é corrompido pelo cálculo.
É a espiritualização da economia e a mercantilização da graça.
O profeta clama: “Uivai, naves do mar!” —
porque os instrumentos do comércio lamentam a ruína de sua fonte.
As naves representam as potências humanas — o intelecto, a arte, a técnica, a
palavra — que transportam bens de um a outro, e que, quando o coração se
corrompe, tornam-se veículos de vaidade.
Tiro é o símbolo da civilização quando esta substitui o amor pela troca e a
dádiva pela equivalência.
A lei do dom é substituída pela lei do lucro.
“Transite ad Tharsis, ululate, habitatores
insulae.”
A mensagem é universal: o juízo atinge todas as ilhas, todos os mercados, todas
as nações que se gloriam em seus portos e alianças.
O império do comércio é o império da dispersão.
E o Espírito Santo, pela boca de Isaías, anuncia a ruína não apenas material,
mas espiritual da cidade que fez do ouro seu oráculo.
Tiro é o coração mercantil do mundo, e seu colapso é o sinal de que o amor deixou de ser princípio de unidade.
O profeta pergunta: “Quis cogitavit hoc super
Tyrum, coronatam, cujus negotiatores principes, cujus institores gloriosi
terrae?”
Quem pensou isto contra Tiro, a coroada, cujos mercadores são príncipes e cujos
traficantes são os nobres da terra?
A resposta é terrível e consoladora: o
Senhor dos Exércitos.
Porque Deus é ciumento de seu amor, e quando o homem o vende, Ele destrói o
mercado.
O juízo de Tiro é a purificação do amor.
Nenhum dom pode ser vendido sem que o doador seja ofendido.
A cidade fenícia representa o espírito que
vive de trocas espirituais — o homem que oferece virtudes para receber
louvores, que pratica a piedade para ganhar crédito, que multiplica obras para
colher estima.
A economia do mérito é a forma mais sutil de idolatria.
Deus pesa Tiro não pelo número de suas mercadorias, mas pela intenção com que
as oferece.
E quando encontra a caridade reduzida a comércio, decreta a ruína.
A corrupção de Tiro é o juízo sobre toda religião que transforma o altar em
mercado.
“Expandit Dominus manum suam super mare, et
conturbavit regna.”
O gesto divino atinge o mar — isto é, o sistema universal de trocas — e o
perturba.
As nações perdem o sentido da medida; a abundância torna-se miséria; a riqueza,
servidão.
O comércio, que prometia comunhão, produz solidão.
O homem que troca tudo perde a capacidade de doar, e quem não sabe mais doar já
não sabe mais amar.
Assim, Tiro cai não por pobreza, mas por saturação.
Mas a profecia não termina na destruição.
“Et erit in finem septuaginta annorum, et erit quasi canticum meretricis.”
Durante setenta anos, Tiro viverá como uma meretriz — símbolo da alma que, após
se prostituir com o mundo, conserva ainda a nostalgia do primeiro amor.
A prostituta é lembrança viva do dom traído: busca o amor, mas o busca
vendendo-se.
No entanto, ao fim dos setenta anos, o profeta anuncia que o Senhor visitará
Tiro e converterá seu ganho em santificação.
As riquezas se tornarão oferendas, o comércio, caridade, e o luxo, adorno do
templo.
A economia será redimida pela graça.
“Omercium ejus sanctificabitur Domino.”
(“Seu comércio será santificado ao Senhor.”)
O sentido é grandioso: aquilo que foi meio de corrupção tornar-se-á instrumento
de redenção.
A inteligência, a técnica, a arte — tudo o que serviu à vaidade — será
purificado e posto a serviço da glória divina.
Tiro não será destruída para sempre, mas transfigurada.
Deus não rejeita o poder de criar e trocar: apenas o converte.
O verdadeiro comércio é o da caridade — dar e receber no amor.
Assim termina o nono peso — Onus Tyri, o fardo do comércio e da
conversão.
Babilônia fora a soberba do poder; Moab, a embriaguez da carne; Damasco, a
corrupção do intelecto; Egito, a ciência do mundo; Deserta Maris, a confusão
das nações; Duma, o silêncio divino; Arábia, a vigilância no ermo; Vallis
Visionis, a ambiguidade da fé visível; e Tiro, enfim, é o mundo material transfigurado em mercado
espiritual.
Mas o último fardo ainda falta — o mais interior, o mais sutil e o mais
terrível: o Onus Bestiae Meridianae,
o peso do orgulho espiritual, o demônio do meio-dia.
Livro Décimo — Da Décima Carga: Onus Bestiae
Meridianae
“Onus bestiae meridianae. In terra tribulationis
et angustiae, leonis et leonisculi, viperae et aspidis volantis, portantes super
humeros juvenum divitias suas.”
(A carga da besta do meio-dia. Na terra da
tribulação e da angústia, do leão e do leãozinho, da víbora e da áspide alada,
levam sobre os ombros dos jovens suas riquezas.)
Este último oráculo é o mais terrível e o mais
luminoso.
As nove cargas anteriores mostraram o caminho da alma através dos vícios
exteriores e interiores — da soberba, do prazer, da razão, do poder, da
confusão, do silêncio, da solidão, da visão e do comércio.
Agora, o profeta contempla o perigo final
dos justos: o da luz excessiva, o da santidade tentada pela própria
claridade.
A “besta do meio-dia” é o demônio da
presunção espiritual, aquele que não se oculta nas sombras, mas se
disfarça de luz.
É a tentação do meio-dia — o instante em que o sol está mais alto e o homem crê
já não precisar de sombra.
O “meio-dia” representa o auge da vida
espiritual, o estado de pureza e contemplação.
Mas é também o momento em que a alma, esquecendo que toda luz é dom, começa a
julgar-se fonte.
Então surge a besta: uma figura composta de leão e serpente, força e sutileza
unidas — imagem perfeita do orgulho iluminado.
O justo, que suportou as trevas e venceu os vícios, agora é provado pela
própria luz.
Não há tentação mais perigosa que a do santo.
O texto fala de uma “terra de tribulação e de
angústia”, onde a besta habita.
É o interior da alma purificada, agora visitada por assaltos sutis: vaidade de
virtude, complacência nas próprias graças, prazer em ser visto como iluminado.
Os “leões” e “leõezinhos” são os impulsos de domínio espiritual; as “víboras” e
“áspides aladas” são as insinuações do intelecto que se glorifica da própria
penetração.
Mesmo o orante, se não vigia, pode transformar a contemplação em espelho — e
perder Deus enquanto o contempla.
“Levantam sobre os ombros dos jovens suas
riquezas.”
Os jovens são as potências da alma — memória, entendimento e vontade — que
carregam o peso do orgulho.
As riquezas são as virtudes acumuladas, agora transformadas em carga.
Tudo o que foi ganho torna-se fardo quando o homem o chama de “meu”.
A virtude, quando não é oferecida a Deus, torna-se veneno; a pureza, quando é
admirada, torna-se idolatria.
A besta do meio-dia devora os justos que se crêem justos.
Isaías vê também os mensageiros que descem ao
Egito pedindo socorro, levando presentes a Faraó.
O Egito, outrora símbolo da ciência mundana, é aqui o refúgio da alma
espiritual que, sentindo a secura da luz, busca conforto humano.
É a recaída sutil: o espírito, cansado da exigência da graça, volta-se às
consolações da razão, da vaidade, do mundo.
É o retorno ao Egito interior — a tentativa de domesticar o mistério.
Mas o profeta adverte: “In vanum et frustra misistis legatos.”
Tudo é vão: Deus não permite que o iluminado volte às sombras.
A “besta meridiana” é, portanto, o próprio ego
espiritual, o eu revestido de luz.
É Lúcifer em forma de anjo, o intelectual convertido em falso profeta, o
contemplativo que se adora em sua oração.
O perigo do meio-dia é o da perfeição sem humildade.
O calor da graça, quando não temperado pelo temor, se converte em chama que
consome.
Assim, o décimo peso é o mais pesado: porque pesa sobre o espírito mesmo que já
está elevado.
Contudo, o profeta vê uma promessa secreta.
O Senhor não deixa perecer os que caem na luz.
A mesma claridade que fere purifica; a mesma queda que humilha salva.
Deus permite ao justo sentir a tentação da besta para que saiba que sua
santidade é graça, não mérito.
A ferida da luz cura o orgulho das trevas.
Por isso o juízo do meio-dia é também uma misericórdia: é o golpe final que
destrói o último ídolo — o do próprio eu.
Godefridus, seguindo os Padres, interpreta
essa besta como o último inimigo da alma antes da união com Deus.
Não é o demônio exterior, mas o reflexo interior do amor próprio.
A alma deve descer do meio-dia ao crepúsculo da humildade, para encontrar o sol
verdadeiro no ocaso — pois o sol de Deus nasce quando o do homem se põe.
O “descanso meridiano” dos Cânticos não é repouso do orgulho, mas mergulho na
sombra do Amado.
O justo vence a besta não com luz, mas com sombra — a sombra da cruz.
Assim, o décimo e último peso encerra o
itinerário completo da alma:
do caos à ordem, da carne ao espírito, do mundo à contemplação, da luz à
humildade.
A besta meridiana é o guardião da porta final, o limite entre a graça e a
glória.
Só quem suporta seu rugido e seu silêncio entra na paz do Eterno.
Finis Operis
Laudetur Christus, qui per onera
prophetarum nos ad libertatem spiritus educit.
(“Seja louvado Cristo, que pelas cargas dos profetas nos conduz à
liberdade do espírito.”)
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