quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Teología Natural: o itinerário racional do Ser até Deus

 

ÍNDICE GERAL DA OBRA

“Teología Natural: o itinerário racional do Ser até Deus”
Autor: Yardel Almeida (a partir do Curso de Teología Natural de Pe. Eduardo Vadillo Romero)


Parte I – O Conhecimento Racional de Deus a partir da Natureza

Artigo I – O Chamado da Razão e a Perspectiva dos Preâmbulos da Fé

A harmonia entre fé e razão como fundamento do conhecimento natural de Deus.

A filosofia como preâmbulo da fé: três modos de seu uso e suas corrupções.

Artigo II – O Horizonte Metafísico e o Início do Caminho

A estrutura das ciências segundo Santo Tomás: o papel da metafísica.

A separação da matéria e a ascensão do intelecto: graus de abstração e o alcance da inteligência humana.

Artigo III – O Ente e o Ser: Fundamento de Toda Realidade

O ser como ato e a essência como potência: distinção e união no real.

A participação do ser e a causa do existir: Deus como princípio do ato puro.

Artigo IV – As Cinco Vias e o Caminho da Razão até o Ipsum Esse Subsistens

A via do movimento e da causalidade: como a mudança revela o imutável.

A contingência e a ordem final como provas racionais do Ser Subsistente.

Artigo V – Causalidade e Participação: o Ser que Dá Ser

A estrutura participativa da realidade: o que significa receber o ser.

A causalidade como comunicação do ser e seu alcance metafísico.

Artigo VI – A Linguagem sobre Deus e seus Limites

O problema do discurso analógico: falar de Deus sem reduzi-Lo ao humano.

A analogia do ser e a superação do silêncio: quando o intelecto toca o inefável.


Parte II – Outros Planteamentos e seus Pressupostos

Artigo VII – O Argumento Ontológico e suas Variantes

O pensamento de Anselmo: o ser concebido como necessário.

A crítica tomista: por que o ser pensado não implica o ser real.

Artigo VIII – A Suposta Captação Prévia do Absoluto

Fenomenologia e idealismo: a armadilha da presença imediata de Deus.

O retorno à via realista: a prioridade do ente e a mediação da experiência.

Artigo IX – Os Planteamentos Agnósticos

O fechamento do espírito moderno: quando o limite se torna dogma.

O agnosticismo e a perda da analogia: o eclipse da razão aberta ao ser.

Artigo X – O Ateísmo Filosófico

Do materialismo antigo ao humanismo autônomo: o deslocamento do Absoluto.

A ausência de Deus e o vazio ontológico do mundo moderno.

Artigo XI – O Ateísmo Cientificista e sua Inconsistência

O positivismo e o mito da autossuficiência da ciência.

O retorno da metafísica negada: quando o método clama por um fundamento.


Parte III – A Argumentação Racional sobre Deus e Questões Teológicas

Artigo XII – A Simplicidade de Deus

A identidade absoluta de essência e ser em Deus.

A simplicidade como plenitude: a ausência de composição e a perfeição total.

Artigo XIII – Criação e Origem do Tempo

O ato criador como comunicação do ser.

Tempo, eternidade e dependência: a continuidade do criado no Ato puro.

Artigo XIV – Providência e Liberdade Humana

O governo divino e a ordem da criação: o problema do mal e da permissão.

A liberdade humana e a concórdia entre causa primeira e causas segundas.

 

ARTIGO I – O Chamado da Razão e a Perspectiva dos Preâmbulos da Fé

Questão I – A harmonia entre fé e razão como fundamento do conhecimento natural de Deus

Sempre me impressionou a delicadeza com que a razão toca os contornos do invisível. Há algo de sagrado no próprio ato de pensar, como se cada movimento do intelecto fosse uma oração silenciosa dirigida à fonte de toda inteligibilidade. Desde cedo percebi que a razão, deixada sozinha, se exaure em labirintos; mas iluminada pela fé, ela ganha o fôlego do infinito. Não há conflito real entre ambas — apenas um descompasso quando a soberba humana pretende separar o que Deus quis unir. Entendo agora, com mais clareza, que a fé não é um salto sobre o abismo da razão, mas o prolongamento natural da luz que já brilha em nós desde a criação.

Quando mergulho na tradição tomista, percebo que a fé não vem anular a natureza, mas elevá-la ao seu cumprimento. A graça, diz Santo Tomás, não destrói a natureza, apenas a aperfeiçoa. É uma afirmação que ressoa dentro de mim como um princípio de saúde intelectual: aquilo que é dado pela revelação não se opõe ao que é conhecido pela razão, porque ambos têm a mesma origem — o próprio Ser. E se é assim, toda contradição entre fé e razão só pode nascer da ignorância, de um raciocínio mal construído ou de uma compreensão mutilada do divino.

A razão, quando exercida com humildade, reconhece seus limites, mas não os toma por muros. Ela sabe que o Absoluto ultrapassa suas categorias, mas ainda assim se lança à busca. Este impulso — que é, em última instância, o desejo do ser — constitui o coração da teologia natural. É uma ascensão que parte da experiência do mundo e termina num vislumbre de seu fundamento. Não uma prova no sentido empírico, mas uma necessidade ontológica: se há ente, há Ser. E nesse simples reconhecimento, percebo que minha própria mente participa de uma ordem que não é minha, mas me sustenta.

Entender que a razão humana pode chegar a Deus é aceitar que o universo inteiro é inteligível, que o real tem estrutura de sentido. A fé, então, não é irracional: ela é a resposta de confiança diante daquilo que a razão já intuiu. O mistério não é o oposto da luz, mas sua profundidade. Quando compreendo isso, percebo que o problema moderno — essa cisão entre fé e ciência, entre revelação e investigação — não nasce da verdade, mas da desordem interior do homem que já não sabe mais o que é razão, nem o que é fé. Ele tenta crer sem pensar, ou pensa sem crer, e em ambos os casos cai na mutilação.

A teologia natural vem, portanto, restaurar essa harmonia perdida. Ela afirma que é possível falar de Deus sem apelar à revelação, porque a própria criação fala d’Ele. Os céus narram sua glória, e o intelecto, quando atento, escuta. Eu o reconheço não em visões, mas nas causas, nas proporções, no ritmo das coisas que persistem no ser. A razão é o eco da criação, e a fé é o consentimento do coração que compreende esse eco como voz. Entre uma e outra, há uma ponte invisível — o logos, essa luz comum que dá sentido tanto à ciência quanto à contemplação.

Se algum dia a filosofia se afasta de Deus, é porque esqueceu de si mesma. A verdadeira filosofia, desde Aristóteles até Tomás, é o amor pela sabedoria que funda o mundo. A fé, por sua vez, é a confiança no mesmo princípio que a razão reconhece. Ambas são irmãs, e quando se unem, o homem reencontra sua própria unidade interior. É nesse ponto que entendo que a teologia natural não é apenas um exercício intelectual, mas uma via de purificação: ao demonstrar Deus, ela purifica a razão; ao amar a razão, ela glorifica Deus.

Por isso, toda vez que raciocino sobre o ser, sinto que rezo. Não há diferença essencial entre contemplar uma proposição verdadeira e ajoelhar-se diante do Santíssimo. O ato de conhecer é já um ato de adoração, porque conhecer é unir-se ao ser — e o ser, em sua origem, é Deus. No fundo, a fé e a razão são dois modos de participar da mesma vida divina: uma pela confiança, outra pela compreensão. Ambas me chamam para fora de mim mesmo, rumo àquele Ser cuja evidência não se impõe pelos olhos, mas pela necessidade do pensamento.

Assim, compreendo que o cristão não teme a filosofia, mas a abraça, porque ela é o exercício natural da inteligência criada à imagem do Verbo. O verdadeiro inimigo da fé não é a razão, mas o orgulho que quer fazer da razão um deus. E o verdadeiro inimigo da razão não é a fé, mas o sentimentalismo que faz da fé uma fuga da verdade. Entre ambos, há o caminho estreito da sabedoria: uma razão que se deixa iluminar, uma fé que se deixa compreender. A teologia natural é a escola desse equilíbrio — o ponto em que pensar se torna rezar e rezar se torna conhecer.


Questão II – A filosofia como preâmbulo da fé: três modos de seu uso e suas corrupções

Sempre me fascinou a ideia de que a filosofia, quando bem usada, prepara o espírito para o acolhimento da revelação. É como o arado que abre o solo antes da semente. Santo Tomás de Aquino o disse com precisão: a filosofia serve à fé de três modos — demonstrando o que é necessário para crer, ilustrando os mistérios com analogias e refutando os erros contrários à verdade revelada. Esses três movimentos são como degraus ascendentes da inteligência, que começa no mundo sensível e termina nas fronteiras do mistério. O primeiro é o mais natural, o segundo o mais simbólico, e o terceiro o mais combativo.

No primeiro uso, a filosofia é a serva fiel da teologia. Ela mostra que crer não é irracional, mas que a própria estrutura do real exige um princípio transcendente. Quando demonstro que algo existe — como o movimento, a causalidade ou a contingência —, sou levado pela lógica à ideia de um Ser que seja ato puro. Essa demonstração não é fé, mas prepara a alma para recebê-la. O filósofo chega à porta do templo; o crente a atravessa. Mas sem o filósofo, talvez o crente não reconhecesse a porta.

No segundo uso, a filosofia se torna contemplativa: ela não demonstra, mas ilumina. Empresta à teologia suas analogias, seus conceitos, sua linguagem. Quando Agostinho fala da Trindade usando a memória, o intelecto e a vontade, ele não pretende reduzir o mistério, mas dar-lhe uma janela inteligível. Aqui, a filosofia é uma arte de traduzir o invisível sem profaná-lo. É o mesmo que a música faz com o silêncio: ela o torna audível. E esse uso é essencial, porque o homem moderno esqueceu como pensar por analogias — quer tudo literal, tudo mensurável — e por isso já não compreende o sagrado.

No terceiro uso, a filosofia assume sua espada: refuta os erros. Quando o racionalismo nega o milagre, é a própria razão que precisa ser defendida contra o abuso da razão. Quando o cientificismo declara que só o mensurável é real, é a metafísica que precisa lembrar-lhe que até o próprio método científico se baseia em princípios não mensuráveis. A filosofia é o escudo que impede o homem de se afogar nas suas próprias contradições. Sem ela, a fé é empurrada ao irracionalismo; com ela, se torna clara, luminosa, articulada — e o crente se torna também um pensador.

Mas há usos corruptos da filosofia — desvios que Santo Tomás denunciava com firmeza. O primeiro é quando ela adota ideias contrárias à fé e tenta conciliá-las, como fez Orígenes ao submeter o cristianismo a um platonismo imperfeito. O segundo é quando se pretende substituir a fé pela razão, reduzindo o mistério à demonstração. Ambos são pecados de soberba: o primeiro tenta corrigir Deus; o segundo tenta explicá-lo por completo. Em ambos, a filosofia deixa de ser serva e tenta ser senhora — e nesse instante, perde sua nobreza.

Eu mesmo sinto essa tentação quando a razão me seduz com promessas de total clareza. Mas aprendi que o mistério não é uma falha do pensamento, e sim sua plenitude. O filósofo que não aceita o mistério é como um cego que se recusa a admitir a luz. O teólogo, por sua vez, que despreza a razão, transforma a fé em superstição. Por isso a teologia natural me fascina: ela é o terreno comum onde ambos se reconciliam. É uma linguagem de fronteira, feita de conceitos e silêncio, de rigor e reverência.

Há algo de profundamente humano nesse gesto de buscar Deus com a razão. É o reconhecimento de que a inteligência foi criada para contemplar, não apenas calcular. Quando Santo Tomás fala de “preâmbulos da fé”, ele nos lembra que a mente humana não é um cárcere, mas um espelho: reflete o ser, mas não o contém. E ao reconhecer seus limites, ela os transcende. Por isso, quanto mais compreendo o ser, mais percebo que ele me ultrapassa. O pensamento é, no fundo, um sacramento do invisível.

E assim, ao usar a filosofia como preâmbulo, sinto que me aproximo de um tipo de humildade intelectual que o mundo moderno perdeu. A fé não se opõe à razão; o que se opõe à fé é o espírito de autossuficiência. A filosofia bem usada é uma escola de reverência: ensina-me a ver que tudo o que é, é dom. E que pensar é participar do dom de ser. Quando a razão se curva diante da verdade, não se humilha: se consagra. É nesse gesto — simultaneamente racional e devocional — que reconheço o verdadeiro uso da filosofia: não para competir com Deus, mas para conduzir-me até Ele.

ARTIGO II – O Horizonte Metafísico e o Início do Caminho

Questão I – A estrutura das ciências segundo Santo Tomás: o papel da metafísica

Sempre me perguntei o que distingue o verdadeiro saber da simples curiosidade. Há algo no ato de conhecer que não se reduz ao acúmulo de informações, mas que pede uma hierarquia, uma ordem, um eixo que unifique a diversidade dos fenômenos. Essa hierarquia do saber foi o que Santo Tomás compreendeu com clareza quase divina: toda ciência é uma forma de ascensão, um degrau do espírito que vai do sensível ao inteligível. A física observa o movimento; a matemática mede as relações; mas é a metafísica que contempla o ser. E eu, que tantas vezes me perdi entre as coisas, começo a entender que a ordem do mundo só se revela àquele que descobre a ordem do pensamento.

A metafísica não é uma ciência como as outras. Ela não se contenta com explicar o modo como algo acontece; quer compreender por que algo é. Quando me detenho sobre isso, percebo que ela não nasce de uma curiosidade experimental, mas de uma inquietação ontológica. Ela começa quando percebo que as coisas poderiam não ser — e no entanto são. Essa simples constatação abre o abismo da pergunta pelo ser, que nenhuma ciência particular pode responder. Todas as outras ciências dependem da metafísica, ainda que não o saibam, pois toda explicação causal supõe o princípio de causalidade, e todo princípio exige um fundamento que não é físico nem matemático, mas ontológico.

Santo Tomás, seguindo Aristóteles, organizou as ciências segundo o grau de dependência da matéria. A física depende da matéria no ser e no intelecto; a matemática depende da matéria no ser, mas não no intelecto; a metafísica, enfim, não depende da matéria nem no ser nem no entendimento. Ela contempla o ente em quanto ente, o que é, simplesmente. E é precisamente por isso que ela é a mais alta das ciências: porque trata do mais universal, daquilo que dá sentido às demais. Quando penetro nessa ordem, percebo que cada nível do conhecimento é uma libertação progressiva do peso da matéria. A física observa o corpo, a matemática o abstrai, a metafísica o transcende. O caminho do intelecto é um êxodo.

A metafísica é também uma escola de humildade. Ela me ensina que o ser é anterior a todo pensamento. Eu não o invento, apenas o reconheço. O ente é dado, não construído. O que o intelecto faz é depurar sua visão até que o ser se revele em sua simplicidade. Não é o homem quem dá sentido ao mundo; é o mundo que desperta o sentido no homem. Essa inversão, tão esquecida pelos modernos, é o alicerce do realismo tomista. A mente não é produtora do ser, mas participante dele. E por isso, quanto mais pura se torna a inteligência, mais ela coincide com o real.

O sujeito da metafísica é o ente enquanto ente, e sua operação é a separação da matéria. Mas esse movimento de separação não é uma fuga da realidade sensível, e sim uma ascensão em direção à sua raiz. É como se eu, ao olhar uma árvore, buscasse o invisível que a sustenta. A física me explicará suas folhas, a biologia seus tecidos, a química suas moléculas; mas só a metafísica me permitirá dizer que “ela é”. E nesse pequeno verbo, “é”, reside todo o peso do universo. Esse “é” não pertence apenas à árvore, mas a tudo o que existe. Ele é o selo da criação, a marca silenciosa de Deus impressa nas coisas.

A metafísica, ao investigar o ente, se torna a ciência das causas últimas. Não das causas empíricas, mas da causa do ser enquanto tal. E é nesse ponto que ela se aproxima da teologia natural: quando pergunta não apenas “como as coisas são”, mas “por que há algo e não nada”. A resposta, ainda que não chegue à revelação, conduz inevitavelmente a um princípio que é ser por essência — o Ipsum Esse Subsistens. A metafísica, por isso, é o limiar entre o finito e o infinito, entre a filosofia e a teologia. Ela é o último esforço da razão antes de ajoelhar-se diante do mistério.

Mas a metafísica não se aprende apenas em livros. Ela exige conversão interior. O olhar deve ser purificado da dispersão para poder contemplar o ser em sua transparência. Todo cientista observa; o metafísico contempla. A diferença é sutil, mas decisiva: observar é medir, contemplar é compreender. E compreender, no sentido tomista, é unir-se intelectualmente ao objeto, sem violentá-lo, sem reduzi-lo. Por isso a metafísica é uma escola de amor: ensina-me a olhar o real com reverência, a não impor-lhe minha forma, mas acolher a sua.

Quando penso nisso, entendo por que Santo Tomás dizia que a metafísica tem um modus intellectualis, enquanto as demais ciências têm um modus rationalis. A razão discorre, o intelecto intui. O raciocínio é caminho; o intelecto é chegada. A metafísica não é apenas o raciocínio mais alto, mas a visão mais pura. É o instante em que a alma, tendo subido pelas escadas do discurso, reconhece que o fundamento de tudo o que é, é ser — e que esse ser, na sua pureza, é Deus. A física estuda os efeitos; a metafísica, o fundamento. A primeira explica o que muda; a segunda, o que permanece. E o que permanece é sempre o Ser.

No fundo, percebo que toda ciência que se esquece da metafísica termina se destruindo. A física sem metafísica se torna mecanicismo; a biologia, materialismo; a lógica, formalismo; a psicologia, subjetivismo. É a metafísica que as salva de si mesmas, devolvendo-lhes o sentido. Por isso, quando a modernidade decretou a morte da metafísica, começou a morrer também a ciência. Pois o homem que perde a noção de ser perde também a noção de verdade. E onde não há verdade, resta apenas técnica — sem alma, sem finalidade, sem bem. Recuperar a metafísica é, portanto, recuperar o próprio homem.

Quando contemplo o ser como objeto da metafísica, sinto que toco o limite da palavra. Tudo o que posso dizer sobre ele é insuficiente, e, no entanto, tudo começa nele. É o primeiro dos conceitos e o último dos mistérios. O ser é o que me habita antes de qualquer pensamento, o que me sustenta antes de qualquer escolha. Saber isso é o início da sabedoria. E é por isso que, para mim, a metafísica não é uma disciplina: é uma forma de vida.


Questão II – A separação da matéria e a ascensão do intelecto: graus de abstração e o alcance da inteligência humana

Compreender o caminho da inteligência é compreender o próprio itinerário da alma. Santo Tomás fala de diferentes graus de abstração, e percebo, à medida que reflito, que essa gradação não é apenas metodológica, mas espiritual. Cada etapa é um desprendimento — uma libertação do peso da matéria e da particularidade. O intelecto nasce mergulhado no sensível, mas sua vocação é o universal. Ele começa nas sombras do múltiplo e se eleva até a luz do uno. Pensar, nesse sentido, é uma forma de ascese: o espírito se purifica à medida que se desprende do que é acidental e alcança o que é essencial.

O primeiro grau de abstração é aquele em que o pensamento ainda depende da matéria, tanto no ser quanto no intelecto. É o domínio da física, que estuda as coisas em movimento, compostas de forma e matéria. Aqui, a razão ainda se serve dos sentidos: observa, mede, compara. É o nível do fenômeno, onde o ser se manifesta como corpo. Eu o experimento, mas ainda não o compreendo. É o começo da busca, onde o intelecto aprende a distinguir o que é do que aparece.

O segundo grau de abstração é o da matemática, que se separa da matéria sensível, mas conserva a quantidade como vestígio. A mente já não depende do corpo, mas ainda pensa segundo suas medidas. Aqui, a razão já é capaz de intuir o imaterial — não no ser, mas na forma. A figura, a proporção, a relação — tudo isso são modos de ser que não têm existência física, mas são inteligíveis. Quando percebo que uma proporção é verdadeira em si mesma, começo a entrever que há uma ordem independente da matéria. A mente descobre o reino das formas puras, e isso é um prenúncio da metafísica.

O terceiro grau, o mais alto, é o da separação total da matéria. Aqui se inicia propriamente a metafísica: a contemplação do ente em quanto ente. O intelecto já não busca formas matemáticas, mas o próprio ato de ser. É um salto qualitativo. O pensamento, que antes dependia das imagens, agora descobre o invisível. A esse movimento, Tomás chama separatio. É o momento em que o intelecto reconhece que a realidade não se esgota no sensível. O que é verdadeiramente real não é o que se vê, mas o que faz com que algo possa ser visto. A separação é o êxodo do intelecto para o invisível.

Esse itinerário não é apenas lógico, é existencial. Quanto mais o intelecto se eleva, mais se unifica. No sensível, há dispersão; no inteligível, unidade. No corpo, diferença; no ser, identidade. A ascensão do pensamento é também uma conversão moral: sair do múltiplo e do mutável para reencontrar o que é uno e permanente. Por isso a metafísica é inseparável da contemplação. Quem não purifica o olhar, não compreende o ser. O intelecto precisa aprender a ver sem possuir, a entender sem dominar. Só então o ser se revela como dom.

Quando reflito sobre isso, percebo que a abstração não é uma mutilação da realidade, mas um aprofundamento. O intelecto não retira as coisas do real; ele as restitui ao seu fundamento. A física vê o movimento; a metafísica compreende o porquê do movimento. A matemática mede a ordem; a metafísica revela a fonte dessa ordem. Cada ciência é um modo de aproximação do mesmo mistério: o ser que se manifesta de muitos modos, mas é um só em sua origem. E compreender essa unidade na diversidade é o triunfo da inteligência.

Mas há um perigo constante nesse processo: confundir o método com o fim. O moderno separou a abstração da contemplação, transformando-a em técnica. Para ele, abstrair é simplificar, e simplificar é dominar. Mas em Tomás, abstrair é libertar. O intelecto não manipula o real, mas se deixa conduzir por ele. O conhecimento é uma forma de receptividade, não de imposição. Eu não produzo o ser; sou produzido por ele. O verdadeiro saber nasce quando o intelecto se curva diante do real como o orante diante do altar.

Há também um mistério na própria possibilidade de abstrair. Como pode a mente humana, feita de carne e tempo, alcançar o imaterial? Essa capacidade de elevar-se além do sensível é, em si, um indício do espírito. A inteligência não é um produto do mundo material, mas um reflexo da luz incriada. Quando contemplo uma verdade matemática ou metafísica, percebo que toco algo que não passa, algo que não nasceu comigo e não morrerá comigo. Esse algo é o ser, e o ser é participação do Ser.

A ascensão do intelecto é, portanto, o caminho da criatura para o Criador. Cada nível de abstração é um degrau na escada de Jacó: sobe-se das coisas ao seu princípio, dos efeitos à causa, do finito ao infinito. E no fim, o intelecto descobre que sua própria luz é emprestada. O que ele busca fora, habita dentro dele. A verdade que ele contempla é o reflexo de uma verdade maior, que é o próprio Deus. Compreender isso é reencontrar a harmonia perdida entre o homem e o ser — e ver que pensar, quando é verdadeiro, é já uma forma de oração silenciosa.

ARTIGO III – O Ente e o Ser: Fundamento de Toda Realidade

Questão I – O ser como ato e a essência como potência: distinção e união no real

Há um instante em que o pensamento, fatigado de conceitos, é forçado a calar-se diante de algo que o ultrapassa. É o momento em que, ao buscar o princípio de todas as coisas, percebo que a resposta não é uma coisa. É o próprio ser. Não um ser, mas o ser em si. E nesse instante a razão, se for humilde, compreende que tudo o que existe é apenas uma participação nessa pura atualidade que sustenta e penetra o universo. É aqui que Santo Tomás ergue sua metafísica com o rigor de quem vê o invisível: o esse como ato, e a essentia como potência. Tudo o que é, é ato de ser recebido numa potência determinada — e compreender isso é começar a entender o mundo.

Quando olho para o real com essa lente, descubro que nada é puro em si, exceto Deus. Tudo o mais é misto: de potência e ato, de possibilidade e realização. A essência é o limite interno que mede o quanto uma coisa pode participar do ser. Ela é a fronteira da criatura. O ser, ao contrário, é a pura atualidade — aquilo que faz existir, o princípio que realiza, o dom que atualiza. Se tudo o que existe é composto de essência e ser, então a criatura é uma síntese viva de dependência: o ser que ela possui não lhe pertence, foi-lhe dado. E é precisamente nesse dom que reside sua dignidade ontológica.

O ser é o que dá realidade à essência, e a essência é o que delimita o modo de ser. Essa relação não é apenas lógica, é ontológica. Não é o pensamento que separa, é o real que distingue. A essência, sem o ser, seria apenas uma possibilidade, uma ideia suspensa no nada; o ser, sem a essência, seria pura indeterminação. Mas juntos, eles formam a substância concreta: o ente, aquilo que existe. Por isso Tomás diz que o ser é a atualidade de todas as atualidades — a perfeição de todas as perfeições. O ser é o que há de mais íntimo em cada coisa, mas também o mais universal. Ele está em tudo, e por isso tudo remete a Ele.

Percebo, assim, que o universo não é uma coleção de objetos, mas uma hierarquia de participações. Cada ente é uma centelha do ato de ser, que se expressa segundo a medida de sua essência. O homem, a pedra, o anjo — todos participam de um mesmo ato, mas em graus diversos. O ser é uno e múltiplo ao mesmo tempo: uno em sua fonte, múltiplo em suas manifestações. Isso é o que os antigos chamavam de analogia do ser. Quando digo que Deus é e que o homem é, não uso o mesmo termo num sentido idêntico, mas analógico. O ser se diz de muitos modos, e em todos eles ressoa a unidade da origem.

Essa compreensão destrói o mecanicismo e o idealismo de uma só vez. Contra o mecanicismo, mostra que o ser não é um produto do movimento, mas sua condição. Contra o idealismo, lembra que o ser não nasce da mente, mas é a condição da própria mente. O ser é antes de tudo. Não é conceito, mas ato. E é esse ato que me envolve, me sustenta, me chama. A ontologia tomista é, no fundo, uma mística da atualidade: tudo é ser em ato recebido, e o ser é sempre dom. Viver é ser atualizado por Alguém que é o próprio Ato.

Ao distinguir entre essência e ser, percebo que o homem moderno perdeu o sentido dessa dependência. Ele pensa o existir como propriedade autônoma, como se bastasse estar vivo para ser real. Mas a existência, em Tomás, é sempre participação. Eu não “tenho” ser; eu “recebo” o ser. E o recebo agora, continuamente. Cada respiração é um ato renovado da Causa Primeira. Se essa comunicação cessasse por um instante, eu deixaria de existir. Isso faz do ser não apenas um conceito, mas um milagre. Tudo o que existe é milagre em ato.

Há uma beleza terrível nessa ideia. Terrível porque revela que nada é necessário fora de Deus; e bela porque mostra que tudo é sustentado por amor. O ser é dom puro, sem causa fora de si. A criatura é finita porque sua essência limita o quanto pode receber do ser. E mesmo assim, nesse limite, reflete o infinito. Essa tensão entre o finito e o infinito é o drama da criação: cada coisa tende a ser plenamente, mas não o pode por si mesma. Sua realização só é possível porque participa do Ato de ser, que é Deus. Assim, cada ser criado é um vestígio da plenitude divina.

A metafísica tomista é, portanto, uma metafísica da gratuidade. O ser não se explica; é o que torna possível toda explicação. Ele não é deduzido; é experimentado intelectualmente como o horizonte comum de tudo. Quando penso, quando amo, quando sofro, tudo isso só é possível porque há ser. E quando digo “há ser”, já estou tocando a realidade divina, ainda que não o saiba. Esse reconhecimento transforma o pensar num ato de reverência. Saber que tudo o que é depende do Ser é aprender a ver o mundo como epifania, não como acaso.

Por isso, quando medito sobre o ser como ato e a essência como potência, sinto que toco o coração da ontologia cristã. O ser não é apenas um dado metafísico, é um sinal teológico: é a presença constante do Criador na criatura. A essência é o vaso; o ser é a água. E se há água, é porque a Fonte continua jorrando. Compreender isso é ver o universo como um sacramento do Ser, e o homem como testemunha dessa comunicação incessante. A filosofia, quando chega a esse ponto, deixa de ser teoria: torna-se contemplação.


Questão II – A participação do ser e a causa do existir: Deus como princípio do ato puro

Quando reflito sobre a ideia de participação, compreendo que o mundo não é apenas criado — ele é mantido no ser a cada instante. Nada existe por si, e no entanto tudo existe. Essa contradição aparente é o mistério da participação. Os entes não são fragmentos arrancados do Ser, mas participações dinâmicas do ato divino que os sustenta. Cada coisa é como um espelho que reflete parcialmente a luz do Sol sem jamais esgotá-la. Essa dependência contínua não é uma limitação trágica, mas uma vocação: a vocação de ser reflexo do Infinito.

Participar é receber o ser, mas também expressá-lo segundo uma forma. O ser divino, puro e ilimitado, comunica-se nas essências como em vasos de diferentes medidas. Nenhum esgota o conteúdo, mas todos o contêm à sua maneira. A flor manifesta a beleza do ser, o homem sua inteligência, o anjo sua pureza. Tudo é transparência, se o olhar for casto. Quando a mente perde essa pureza, o mundo se torna opaco. Mas quando a recupera, vê o ser brilhar em cada coisa como fogo por dentro da pedra. Participar é, então, estar continuamente inflamado por esse fogo.

A participação implica também causalidade. Causar, em seu sentido mais profundo, é fazer participar. Quando digo que Deus causa o ser das criaturas, quero dizer que Ele as faz participar de Seu próprio ato de existir. Isso é mais do que criar no tempo; é sustentar eternamente. O mundo não é um mecanismo autônomo; é uma comunhão dependente. Tudo o que age, age porque é causado no ser. Nenhum movimento é autossuficiente, porque todo ato finito remete ao Ato que não tem limite. E esse Ato é Deus — o Ato puro, sem mistura de potência, sem sombra de mudança.

No nível da existência, essa causalidade se manifesta como dependência ontológica. A criatura não depende de Deus como um edifício depende do arquiteto, mas como a luz depende do Sol. A analogia é imperfeita, mas serve: a luz é distinta do Sol, mas não existe sem ele. Assim também o ser das coisas é distinto do Ser divino, mas só subsiste porque nele se enraíza. Quando o homem esquece essa dependência, cai na ilusão da autonomia, que é o primeiro passo da queda. Pois negar a participação é negar o dom — e negar o dom é matar o espírito.

Percebo então que o conceito de participação reconcilia o Uno e o múltiplo. Sem ele, a metafísica se divide entre o panteísmo, que dissolve tudo em Deus, e o dualismo, que separa radicalmente o Criador da criatura. A doutrina da participação afirma que o ser é uno na origem e múltiplo na expressão. Tudo é em Deus, mas nada é Deus. O finito não é ilusão, é participação real. Essa ideia dissolve o desespero moderno, que vê na finitude um absurdo. A finitude, em Tomás, é um convite à comunhão: ser limitado é ser chamado a ser preenchido.

A causa primeira não compete com as causas segundas, mas as torna possíveis. Quando ajo, é Deus quem age em mim sem suprimir minha liberdade. Quando penso, é Deus quem ilumina meu intelecto sem anular minha razão. Quando amo, é Ele quem inflama o centro do meu ser sem destruir minha vontade. Essa íntima concórdia entre o Causante e o causado é o segredo da metafísica cristã: tudo o que é, é em Deus e por Deus, mas sem perder sua própria realidade. O universo inteiro é uma harmonia de causas derivadas, sustentadas pelo Ato puro que tudo penetra sem se confundir com nada.

O mais admirável é que essa causalidade não se dá no tempo, mas no ser. Deus não “foi” causa, nem “será”; Ele “é”. O ato divino é simultâneo a toda existência. O agora da criatura é sustentado pelo eterno agora de Deus. Cada instante é um contato metafísico entre o tempo e a eternidade. Isso me leva a compreender a criação não como um evento passado, mas como uma relação atual. Deus cria agora. E cada coisa é constantemente criada. O universo é, por assim dizer, um pensamento mantido na mente divina.

Essa visão dissolve a oposição entre ciência e teologia. A ciência estuda as causas segundas, mas esquece que só existem porque há uma Causa primeira. A teologia natural recorda que o ser é o fundamento de toda causalidade. Nenhuma lei física explica o fato de que há leis; nenhuma equação explica por que há realidade. O ser é o pressuposto silencioso de todo cálculo. É por isso que o tomismo continua vivo: porque lembra ao mundo que a explicação última não é experimental, mas existencial. O universo é racional porque é participado; e é participado porque é causado.

A participação também revela a origem da analogia. Se o ser é participado em graus, então falar de Deus é falar analogicamente: Ele é o ser de modo eminente, eu sou o ser de modo derivado. O mesmo termo “ser” se aplica a ambos, mas não no mesmo grau. Essa analogia impede que a linguagem sobre Deus seja nem unívoca (como no racionalismo) nem equívoca (como no ceticismo). É uma linguagem de semelhança na diferença. Assim posso dizer “Deus é bom” sem rebaixar Deus ao humano, porque sei que o bem que vejo nas criaturas é apenas reflexo do Bem que Ele é.

Por fim, compreendo que a doutrina da participação não é apenas um sistema de pensamento, mas uma ontologia da gratidão. Tudo o que existe é dom e transparência. O ser não é posse, é recebimento. A criatura vive enquanto acolhe. Se fecha, morre. Participar é, portanto, viver em estado de abertura — de contemplação permanente. O ser é comunicação, e o que se comunica é amor. Deus cria porque ama, e amar é fazer o outro participar do próprio ser. Assim, a metafísica tomista culmina na mística cristã: o Ser absoluto é Amor absoluto, e a participação é o modo como o amor se torna ontologia.

ARTIGO IV – As Cinco Vias e o Caminho da Razão até o Ipsum Esse Subsistens

Questão I – A via do movimento e da causalidade: como a mudança revela o imutável

Sempre me pareceu um paradoxo que o movimento, expressão de mutabilidade, fosse a primeira pista que conduz àquilo que é absolutamente imóvel. Mas foi justamente isso que Santo Tomás viu com olhar de águia: no fluxo incessante das coisas, há uma permanência implícita que o intelecto descobre. O movimento não é um caos, mas um testemunho da ordem. E o primeiro a mover-se sem ser movido é aquele que dá razão a todos os movimentos. Assim, o mundo em transformação se torna espelho do imutável — e é por essa via que começo a subir do sensível ao eterno.

Tudo o que se move passa de potência a ato. Essa passagem não é autoexplicativa, porque o que está em potência não pode atualizar-se por si mesmo. O frio não se aquece sozinho, a semente não germina sem calor, o intelecto não pensa sem objeto. Sempre é preciso algo já em ato que comunique esse ato à potência. Esse princípio, tão simples e tão absoluto, desmonta toda pretensão de autonomia ontológica. Nada é causa de si. E se nada é causa de si, então há uma cadeia de causas, e essa cadeia não pode retroceder ao infinito, pois se tudo dependesse de outro, nada existiria. É necessário, portanto, um primeiro motor — um ato que move sem ser movido, uma atualidade pura. A esse chamamos Deus.

Quando compreendo isso, o mundo começa a se ordenar dentro de mim. O movimento deixa de ser mero fenômeno físico e se revela como analogia do ser. Cada ato é uma centelha derivada do Ato primeiro. O fogo aquece porque participa do calor que é o ser; o intelecto compreende porque participa da luz que é o Verbo. Tudo o que se atualiza é sinal de uma atualidade originária que nunca se apaga. Assim, o cosmos não é um conjunto de acidentes, mas uma cadeia hierárquica de participações. O movimento é o testemunho da dependência do finito diante do Infinito.

A segunda via de Tomás, a da causalidade eficiente, repete o mesmo princípio em outra clave: nada é causa eficiente de si mesmo. Se algo fosse sua própria causa, seria anterior a si — o que é impossível. Logo, há uma ordem de causas subordinadas que exige uma causa primeira. Essa causa não é apenas a inicial no tempo, mas a fonte constante da causalidade. Pois o universo não é um relógio abandonado após o impulso inicial, mas um ser sustentado a cada instante. A Causa primeira é necessária agora. Ela não é o “Deus do início”, mas o “Deus do ser”. Sem ela, o real se dissolveria na pura contingência.

Percebo, ao meditar nisso, que o raciocínio de Tomás não é cosmológico apenas, mas metafísico. Ele não fala de uma causa no passado, mas de uma razão atual do existir. Cada causa segunda age porque participa da Causa primeira, que é ser em ato puro. Esse é o ponto decisivo: o universo não explica o próprio ser. As causas físicas se encadeiam, mas o ser que as torna possíveis não é físico. Ele é o horizonte invisível que sustenta a cadeia sem nela estar. Deus é a Causa que não é causada, o Motor que não é movido — a pura Atividade que funda toda potência.

E o mais belo é que essa demonstração, tão austera, termina num mistério de simplicidade. A razão chega à conclusão de que o fundamento de tudo é pura atualidade. Não há nele mistura, composição, nem potência. Ele é ato simples, eterno, necessário. Quando contemplo essa verdade, percebo que o ser de Deus não é uma categoria entre outras, mas o próprio ato de existir. Ele é o Ipsum Esse Subsistens — o Ser mesmo subsistente. Em mim, o ser é recebido; nele, é identidade. O que em mim é dom, nele é essência.

A via do movimento e a via da causa eficiente não são apenas argumentos — são passos do espírito em direção à origem. Cada uma é uma forma de purificação: pela primeira, o intelecto abandona o mito da autossuficiência; pela segunda, o mito da causalidade fechada. Ambas revelam que o ser do mundo é dependente, e que a dependência não é defeito, mas vocação. Pois depender do Ser é participar da eternidade. Assim, cada movimento da matéria e cada causa no tempo tornam-se sacramentos do Ato puro que tudo mantém em ser.

E então entendo: o motor imóvel de Tomás não é o deus frio dos filósofos, mas o amor que move sem ser movido, porque é plenitude. O mundo se move porque é amado. O ser flui porque o Amor o sustenta. Nesse ponto, a via metafísica se torna mística: toda mudança é uma saudade do Imutável, e todo ato é uma lembrança da Fonte.


Questão II – A contingência e a ordem final como provas racionais do Ser Subsistente

Há um tipo de prova que não nasce da necessidade lógica, mas da fragilidade do real. É a via da contingência — talvez a mais existencial das cinco. Quando observo o mundo, percebo que tudo poderia não ser. Nada aqui é necessário por si. As coisas vêm e vão, nascem e morrem, aparecem e desaparecem como ondas no mar do tempo. Essa transitoriedade universal é o selo da contingência. Ora, se tudo fosse contingente, em algum momento não haveria nada. E do nada, nada surge. Logo, deve haver um Ser necessário, cuja essência seja existir, e que dê ser aos contingentes sem depender de nenhum deles.

Essa constatação é mais do que lógica; é ontológica. O ser contingente é um eco da necessidade. Ele existe, mas seu existir é emprestado. Assim como a vela que brilha porque recebe o fogo, o ente finito é iluminado pelo Ser necessário. E esse Ser, sendo a causa do ser, não pode ser efeito. Ele é o Esse per se, o que existe por si, e de quem tudo o mais recebe o existir. Quando penso nisso, sinto uma mistura de temor e gratidão: o simples fato de eu ser é a prova viva de que há um Ser que é.

A quarta via, a dos graus de perfeição, aprofunda essa percepção. Vejo que as coisas não apenas são, mas são em graus diversos: há mais ou menos bondade, mais ou menos verdade, mais ou menos beleza. Ora, esses graus implicam uma medida. Se há mais e menos, há um máximo. E esse máximo, sendo a plenitude do atributo, é causa de todos os graus. Assim, a diversidade das perfeições no mundo aponta para uma perfeição absoluta, que é a fonte comum de todas. Se há bondade nas coisas, é porque existe o Bem mesmo; se há verdade nas coisas, é porque existe a Verdade mesma.

O argumento é de uma simplicidade desarmante, e ao mesmo tempo de uma profundidade metafísica imensa. Ele mostra que a transcendência não é uma fuga do mundo, mas o fundamento que o torna inteligível. Tudo o que é bom, belo e verdadeiro participa do Bem, do Belo e do Verdadeiro absolutos. E se existe participação, há um princípio de participação — um ser cuja perfeição é idêntica à sua essência. Assim, a hierarquia das qualidades criadas é um vestígio da plenitude divina.

A quinta via, enfim, coroa o itinerário da razão: é a via da finalidade. Vejo que na natureza, mesmo onde não há inteligência, há ordem. As coisas agem de modo constante em direção a fins: a semente tende a germinar, o corpo busca equilíbrio, o animal procura alimento, o planeta segue sua órbita. Esse agir ordenado não é acaso, pois o acaso não é estável. Portanto, o mundo é orientado por um princípio inteligente que dirige cada ser ao seu fim próprio. Essa inteligência ordenadora é Deus.

Essa via final causa-me sempre uma espécie de assombro silencioso. É como se, ao olhar o mundo, eu visse o vestígio de uma intenção. O universo é uma liturgia cósmica onde cada ente cumpre uma função, ainda que inconsciente. A regularidade das leis naturais é a assinatura do Logos. A matéria obedece sem saber, o homem compreende e pode desobedecer. Mas até na desordem humana há vestígios da ordem perdida. O mundo inteiro respira teleologia — e negar isso é negar o sentido do ser.

Ao somar essas vias, percebo que nenhuma delas prova “um deus” no sentido mitológico. O que elas demonstram é o Ser mesmo — ato puro, causa primeira, necessidade absoluta, perfeição subsistente, inteligência ordenadora. Tudo converge para o Ipsum Esse Subsistens. Cada via é um olhar diferente sobre o mesmo Sol. E quando o intelecto chega ao fim dessas demonstrações, percebe que o ponto final da razão é o ponto de partida da fé.

Deus não é uma hipótese explicativa, mas a própria explicação tornada Ser. Ele não é um elo na cadeia, mas o fundamento da cadeia. Tudo o que é, é por Ele, n’Ele e para Ele. O universo inteiro é uma analogia viva do Ser absoluto. As cinco vias não são apenas raciocínios, mas cinco experiências do real que conduzem à mesma evidência: o ser não se explica senão pelo Ser.

E ao compreender isso, a razão se ajoelha. Não porque tenha sido vencida, mas porque reconheceu a sua vitória. O saber chegou ao seu limite natural — e descobriu que o limite é uma porta. Do outro lado, o Ser absoluto a espera, não para ser explicado, mas para ser adorado.

ARTIGO V – Causalidade e Participação: o Ser que Dá Ser

Questão I – A estrutura participativa da realidade: o que significa receber o ser

Quanto mais reflito sobre o real, mais percebo que tudo o que existe traz em si a marca de uma dependência. Nada é por si. Nenhum ser possui o próprio existir como propriedade intrínseca. Há em todas as coisas um eco de algo maior, uma vibração que não pertence a elas, mas as sustenta. É esse o mistério da participação: tudo o que é, é porque participa do Ser. E participar significa receber. Receber o ser não como um empréstimo temporal, mas como uma comunicação contínua, como uma respiração metafísica. O mundo inteiro respira o Ser de Deus.

A doutrina da participação é a chave que abre a compreensão tomista do universo. Ela dissolve tanto o materialismo quanto o panteísmo. O materialista, porque reduz o ser ao corpo; o panteísta, porque confunde o ser criado com o divino. A participação evita ambos os abismos: afirma que tudo é em Deus sem ser Deus. Cada ente reflete o Ser sem o possuir. E é justamente essa distância ontológica que torna possível a comunhão — porque só o distinto pode receber. Se o mundo fosse o próprio Deus, não haveria dom, nem criação, nem amor. A diferença é o espaço do dom.

Essa recepção do ser é o que torna cada coisa inteligível. Quando vejo uma árvore, o que percebo nela não é apenas matéria organizada, mas uma forma que participa do ser de modo singular. Sua essência — sua “arvoreidade” — limita e expressa a participação. Assim, o ser é o mesmo em todas as coisas, mas a maneira de tê-lo é diversa. A flor participa do ser pela beleza, o fogo pela energia, o homem pela inteligência. Tudo é um reflexo graduado do mesmo ato, como cores derivadas de uma única luz.

Participar, portanto, é existir segundo uma medida. E essa medida é a essência. O ser não é limitado de fora, mas pela forma que o recebe. Cada essência é um “modo de ser”. A pedra é, o homem é, o anjo é — mas cada um é à sua maneira. É a partir dessa pluralidade de modos que o ser se manifesta em toda a sua riqueza. A unidade do Ser divino não exclui a multiplicidade do mundo; antes, a fundamenta. O múltiplo é o ser refletido em espelhos fragmentários, e cada fragmento, por menor que seja, é uma teofania.

Mas participar implica também relação. O ser recebido remete necessariamente ao ser do qual é recebido. Essa relação não é espacial, mas ontológica. Eu existo, e ao existir, já estou voltado para o Ser que me causa. A criatura é uma seta apontada para Deus. Mesmo sem consciência, tudo tende à sua origem. O intelecto humano, porém, é capaz de reconhecer conscientemente essa tendência, e é isso que chamamos de contemplação. Contemplar é perceber o ser como dom e devolver-lhe um ato de gratidão.

O que mais me impressiona nessa doutrina é a delicadeza com que ela une o metafísico e o existencial. Dizer que participo do ser é dizer que não sou absoluto, que a minha própria existência é um sinal de comunhão. É reconhecer que há em mim algo que não me pertence, mas que me constitui. E nisso reside a humildade metafísica: ser é ser dependente. Toda soberba ontológica é ignorância da própria condição. O orgulho intelectual nasce quando o homem esquece que o ser que o faz pensar é emprestado.

Essa estrutura participativa revela também a beleza do universo como um todo. O cosmos é uma harmonia de participações, uma sinfonia de modos de ser que se entrelaçam sem se anularem. Tudo é hierarquia — não no sentido de dominação, mas de intensidade ontológica. Os seres inferiores manifestam o ser de modo mais limitado; os superiores, de modo mais amplo. O homem, por ser espírito encarnado, ocupa o ponto de encontro entre o sensível e o inteligível, entre a terra e o céu. Nele, o ser consciente volta-se à sua fonte. E é aí que a metafísica se torna oração.

Assim, compreender a participação é compreender o ser como generosidade. O mundo não é uma necessidade de Deus, mas uma liberalidade. Deus nada ganha ao criar; as criaturas tudo recebem. A participação é o modo como o amor se traduz ontologicamente. O Ser absoluto, sendo plenitude, não podia senão comunicar-se. Criar é amar, e amar é fazer existir o outro. Por isso, cada ente é um ato de amor encarnado. O universo inteiro é um poema do Ser dizendo “sê” a tudo o que é.

O real, então, não é um bloco de matéria, mas uma trama de relações participativas. Viver é participar. Pensar é participar. Amar é participar. E morrer é deixar de participar desta forma para talvez participar de outra, mais plena. O ser nunca se perde; apenas muda de modo. A criatura não é absorvida no Criador, mas elevada a Ele. A morte é o retorno ao Ato. E compreender isso transforma o medo em reverência.

Tudo, portanto, é relação e dependência. E se tudo é dependente, há um centro independente que sustenta a totalidade. Esse centro é o Ser mesmo, o Ipsum Esse Subsistens. Ele é o único que não participa, mas que faz participar. Ele é o Sol; nós somos os reflexos. Tudo o que existe é um fragmento do Seu esplendor.


Questão II – A causalidade como comunicação do ser e seu alcance metafísico

Há um modo de compreender a causalidade que não é mecânico nem físico, mas ontológico. O homem moderno, herdeiro de Descartes e de Newton, pensa em causas como choques entre corpos, forças que empurram e deslocam. Mas para Santo Tomás, a causa é aquilo que comunica o ser. Causar é fazer ser. E essa simples ideia muda tudo. Porque onde o moderno vê movimento, o tomista vê doação. A causalidade, em seu sentido mais puro, é a expressão da generosidade do Ser.

Cada coisa é causa na medida em que participa do ser de modo ativo. Mas toda causa finita é também causada. Nenhuma criatura pode dar o que não possui por essência. Só o Ser por si pode dar o ser sem o receber. Assim, toda cadeia causal é sustentada por uma Fonte que não depende de nada. Essa Fonte é o Ato puro. Ele não é uma causa entre outras, mas o fundamento da causalidade. Ele não está no mesmo plano do universo, mas o transcende enquanto o penetra.

Compreender isso é libertar a mente da ilusão mecanicista. A causa primeira não compete com as causas segundas. Não é um deus que empurra o mundo de fora, mas Aquele que o faz ser por dentro. Sua causalidade é íntima e universal: não atua por contato, mas por presença. Não se interpõe entre as coisas, mas as faz subsistir. Ele é mais interior a mim do que eu mesmo, porque é o ser do meu ser.

Quando penso assim, entendo que a causalidade divina não é um evento, mas um estado permanente. Deus não age “uma vez” — Ele é o próprio agir que torna possível toda ação. Cada causa criada é um eco da Causa criadora. Quando o fogo queima, quando o homem pensa, quando a estrela gira, é o Ser que age nelas segundo seus modos próprios. Nenhum ato está fora do Ato. E, no entanto, o Ato não se confunde com o ato. Essa distinção é o milagre da criação: o Ser está em tudo, mas nada é o Ser.

A causalidade, assim compreendida, é também a base da liberdade. Pois se Deus é causa do ser e não do mal, é porque causa o ato enquanto ato, mas não a deficiência que o acompanha. Ele sustenta o poder de agir, mas não determina o erro. A criatura, livre, pode usar o ser para o bem ou desviá-lo. Mas até no desvio, continua dependendo da Causa primeira. O pecado não é autonomia; é mau uso do dom. E até o desvio é possível apenas porque há ser. Assim, até o erro testemunha a generosidade divina.

Essa compreensão também resolve o problema da imanência. Deus não é um ser entre os seres, mas o Ser mesmo. Por isso, Ele age em tudo sem diminuir-se, e está em tudo sem confundir-se. Ele é transcendente em presença e imanente em poder. O mundo é o lugar onde o Ser se comunica, não se esgota. A causalidade divina é como a luz: ilumina tudo sem dividir-se. Cada coisa a reflete segundo sua forma. E quanto mais pura a forma, mais perfeita a participação.

Ao compreender o ser como comunicação, percebo que o universo é mais uma teofonia do que um mecanismo. Tudo é relação de dependência amorosa. As criaturas não existem “por fora” de Deus, mas “em” Deus. Não como partes, mas como efeitos mantidos pela presença. O ato criador não é passado, é atual. A criação é permanente, porque o ser é comunicação incessante. E essa comunicação é o que chamamos de providência.

Cada instante é um milagre ontológico. Não porque algo extraordinário aconteça, mas porque o ordinário existe. A pedra não cai porque há gravidade; ela cai porque há ser. A gravidade é apenas um modo de participação, uma lei de dependência. O real não se explica por dentro de si, porque o dentro é sustentado por um além. Tudo é um sinal do Ato puro.

E quando percebo que o Ser é a causa íntima de todas as coisas, o conceito de “causa” se transforma num gesto espiritual. Causar é amar. Porque dar o ser é o maior dos dons. Deus não é causa por necessidade, mas por liberalidade. Sua causalidade é caridade em ato. Ele dá o ser porque é o Ser, e ser é doar-se. Assim, a metafísica culmina na teologia, e a teologia se dissolve em contemplação.

O mundo, visto por essa luz, deixa de ser um conjunto de objetos para tornar-se uma comunhão de participações. Cada coisa é um elo na corrente do ser, uma manifestação do Amor que tudo sustenta. E eu, ao compreender isso, não posso mais ver o real com indiferença. Tudo é presença, tudo é transparência, tudo é dom. A causalidade não é um conceito: é a respiração do cosmos.

ARTIGO VI – A Linguagem sobre Deus e seus Limites

Questão I – O problema do discurso analógico: falar de Deus sem reduzi-Lo ao humano

Toda vez que tento dizer algo sobre Deus, sinto que as palavras me escapam. Elas não me traem por falta de clareza, mas por excesso de significado. Quanto mais verdadeira é a experiência do divino, mais silenciosa se torna a linguagem. E, no entanto, devo falar. O silêncio absoluto seria também uma traição — pois aquele que ama precisa nomear, ainda que saiba que nenhuma palavra basta. É nesse abismo entre a necessidade de dizer e a impossibilidade de dizer que nasce o discurso analógico. Ele é a ponte frágil que o intelecto lança sobre o infinito.

Santo Tomás, ao tratar da linguagem sobre Deus, não parte do ceticismo, mas da confiança: se o ser criado participa do Ser divino, então há uma semelhança real, ainda que limitada, entre o Criador e a criatura. Essa semelhança é o fundamento da analogia. Quando digo “Deus é bom”, não o afirmo no mesmo sentido em que digo “o homem é bom”. A bondade humana é finita, participada; a bondade divina é a própria plenitude. Mas entre ambas há uma proporção, um eco, um reflexo. Essa proporção é o terreno da analogia — a linguagem da distância habitada pela presença.

Se eu falasse de Deus de modo unívoco, como se os termos tivessem o mesmo significado para Ele e para mim, cairia na idolatria: reduziria o Infinito ao finito. Se, ao contrário, falasse de modo totalmente equívoco, sem nenhuma semelhança, o discurso seria impossível: o nome “Deus” nada significaria. A analogia salva a linguagem de ambos os extremos. Ela preserva a transcendência divina sem destruir a inteligibilidade. É o caminho do meio entre o mutismo e o antropomorfismo.

A analogia nasce da própria estrutura do ser. Tudo o que é, participa do Ser; e participar implica semelhança na diferença. Assim, a linguagem que brota dessa relação tem o mesmo caráter: semelhante e diferente ao mesmo tempo. O ser se diz de muitos modos, mas não de modo arbitrário. Ele é dito por referência àquele que é o Ser por essência. Por isso, quando falo de Deus, minhas palavras são verdadeiras na medida em que refletem, ainda que imperfeitamente, a luz do Ser subsistente.

Essa compreensão transforma o modo como vejo a linguagem. As palavras não são muros, mas janelas. Elas não aprisionam o real; permitem vislumbrá-lo. Falar de Deus é usar janelas de vidro colorido: cada uma filtra a luz segundo seu tom, nenhuma a contém, mas todas a deixam passar. O erro não está em falar, mas em esquecer que se fala analogicamente — que toda linguagem sobre o Absoluto é aproximativa, simbólica, reverente. O filósofo que se torna dogmático nas palavras já perdeu o contato com o mistério que as sustenta.

A analogia, portanto, é uma pedagogia do intelecto. Ensina-me a usar a razão sem idolatrá-la, e a aceitar o mistério sem dissolvê-lo. O discurso analógico é humilde, porque sabe que nunca esgota o que afirma. É também confiante, porque sabe que o real é inteligível. Entre o silêncio e o grito, ele escolhe o tom da adoração pensante. É o modo como o logos humano responde ao Logos divino: falando sem pretender encerrar, afirmando sem pretender definir.

Quando contemplo essa estrutura, percebo que a linguagem não é um obstáculo entre Deus e o homem, mas o lugar onde ambos se encontram. O Verbo se fez carne, e por isso as palavras humanas, purificadas, podem ser morada da luz. A analogia é a continuação da Encarnação no plano do intelecto. O Cristo é a Palavra divina pronunciada em forma humana; a analogia é a palavra humana inclinada à forma divina. Ambas se encontram no ponto em que o ser e o sentido coincidem.

O problema moderno é ter perdido o sentido da analogia. O homem passou a falar de Deus em termos unívocos — reduzindo-o a uma ideia filosófica — ou a rejeitar toda linguagem sobre Ele, caindo no agnosticismo. O primeiro transforma o mistério em conceito; o segundo transforma o conceito em vazio. Em ambos os casos, perde-se a reverência. E quando a reverência desaparece, o pensamento degenera em técnica. O discurso sobre Deus é substituído pelo discurso sobre poder, e o ser é reduzido ao útil.

Para mim, recuperar a linguagem analógica é recuperar o próprio ato de pensar como ato de adoração. Pensar é participar do logos divino. Cada palavra dita com consciência ontológica é uma vela acesa diante do altar do Ser. Quando digo “Deus é”, não descrevo: confesso. Não defino: reconheço. A analogia devolve à linguagem sua vocação litúrgica. Falar é celebrar. O intelecto se torna, assim, o órgão da liturgia cósmica — o lugar onde o ser é dito com amor.

E então compreendo que a linguagem analógica não é apenas um expediente lógico, mas uma atitude espiritual. É o modo como o finito honra o infinito: dizendo o que sabe sem trair o que ignora. É a inteligência ajoelhada, o pensamento que se curva diante do mistério, o verbo que se cala sem deixar de cantar.


Questão II – A analogia do ser e a superação do silêncio: quando o intelecto toca o inefável

Há um ponto em que o discurso, tendo dito tudo o que pode, se aproxima do que não pode ser dito. Não porque falte clareza, mas porque a clareza se torna luz demasiada. Nesse instante, a linguagem toca o inefável — e o intelecto, em vez de falar, contempla. Esse é o ápice da teologia natural: quando a razão, tendo seguido as vias do ser, reconhece que o Ser ultrapassa toda via. A metafísica desemboca no silêncio, mas não num silêncio de ignorância — num silêncio de plenitude.

Santo Tomás, ao falar da analogia, não pretende limitar a linguagem, mas libertá-la da idolatria. Dizer que os nomes de Deus são analógicos é dizer que são verdadeiros, mas não literais. Eles significam realmente algo sobre Ele, mas sempre de modo proporcional ao intelecto humano. Por isso, a teologia é, ao mesmo tempo, ciência e adoração. Ela fala e se cala, define e confessa. Sua precisão é inseparável da sua reverência.

Quando digo “Deus é bom”, falo de uma bondade que não conheço plenamente. Mas essa palavra não é vazia. Ela indica uma perfeição que em Deus é sem limite e em mim é participada. Cada termo teológico é, assim, um raio de um sol invisível. O intelecto humano capta o brilho, não a fonte. E esse brilho basta para orientar o pensamento, mas não para cercá-lo. A verdade sobre Deus é sempre maior do que a proposição que a contém.

Esse reconhecimento não destrói a razão; a eleva. O intelecto que se sabe finito é o único capaz de tocar o infinito. A mente orgulhosa, que quer dominar o ser, permanece cega. Mas a mente humilde, que aceita sua própria contingência, torna-se translúcida. Ela percebe que conhecer não é possuir, mas participar. E essa participação não termina no conceito — prolonga-se na contemplação. O conhecimento metafísico é, no fim, um ato amoroso: o intelecto unido ao ser pelo laço da admiração.

Falar de Deus, portanto, é como tentar descrever a luz com palavras feitas de sombra. As palavras são necessárias, mas não suficientes. A verdadeira teologia não é o acúmulo de definições, mas o exercício de uma linguagem purificada pela consciência de seu limite. A palavra mais alta é aquela que reconhece sua insuficiência. O dogma é isso: uma fronteira verbal que indica o mistério sem reduzi-lo.

A analogia do ser é o instrumento dessa sabedoria. Ela me ensina a não temer o limite, pois é o limite que faz ver o além. O ser das criaturas é um espelho fragmentário: em cada fragmento há reflexo do todo, mas o todo não cabe em nenhum. Por isso, toda linguagem sobre Deus é verdadeira e, ao mesmo tempo, inadequada. Verdadeira enquanto participa da luz; inadequada enquanto não a contém. Essa tensão é a própria condição da criatura falante.

No entanto, há um momento em que o intelecto, saturado de conceitos, é levado a uma forma superior de linguagem: o símbolo. O símbolo não explica, revela. Ele é o ponto em que a razão e a imaginação se reconciliam. Em Tomás, o símbolo é sempre subordinado à analogia, mas dele se serve para dizer o indizível. É por isso que a liturgia é, em certo sentido, a culminação da teologia: nela, a palavra se torna gesto, e o gesto, presença.

E quando o intelecto chega a esse ponto — quando percebe que todo dizer sobre Deus é uma participação no próprio ato pelo qual Deus se dá —, ele já não fala “sobre”, mas “com”. O discurso se converte em diálogo, e o diálogo em comunhão. A linguagem se torna oração. O saber se torna louvor. O pensamento, tendo compreendido que tudo é ser e que o ser é dom, descansa no próprio dom.

Esse é o limite e a glória da inteligência: poder dizer o que é verdadeiro, sabendo que o verdadeiro é maior do que o dito. A analogia é a forma racional da humildade. Ela me ensina a pensar sem usurpar, a falar sem profanar, a calar sem fugir. Falar de Deus é, assim, um ato de amor: amar é querer dizer o indizível, sabendo que só o silêncio o pronuncia por inteiro.

E então entendo que o silêncio não é o oposto da linguagem, mas sua consumação. O intelecto, ao tocar o inefável, não se anula — transfigura-se. Ele já não busca conceitos, busca presença. E nessa presença, toda palavra se curva. A metafísica se cala, e a oração começa.

ARTIGO VII – O Argumento Ontológico e suas Variantes

Questão I – O pensamento de Anselmo: o ser concebido como necessário

Sempre me impressionou o vigor intelectual de Anselmo. Ele não busca provar Deus pela experiência sensível, mas pela própria estrutura do pensamento. Seu argumento é de uma pureza quase matemática: se posso conceber algo do qual nada maior pode ser pensado, então esse algo deve existir não apenas no intelecto, mas na realidade — pois, se existisse apenas no intelecto, poderia ser superado pela existência real, e deixaria de ser o maior. Logo, o ser concebido como supremo é necessariamente existente. A ideia de Deus, portanto, implicaria a realidade de Deus.

À primeira vista, o raciocínio tem uma beleza irresistível. A mente parece encontrar em si mesma a prova daquilo que transcende toda experiência. O pensamento se fecha sobre o ser e o produz. É o triunfo da razão sobre o mundo: Deus deduzido do conceito. Mas ao mesmo tempo, sinto algo de artificial nessa perfeição. O argumento é como uma flor que nasce sem raiz. Ele é puro, mas não fecundo. Ele se move no plano da ideia e ignora o peso do ser.

O erro não está em afirmar a grandeza de Deus, mas em supor que o intelecto, ao concebê-la, já a possui. A noção de “ser necessário” é verdadeira em si, mas não é evidência de sua realização fora da mente. Conceber o infinito não é o mesmo que encontrá-lo. Posso imaginar mil perfeições sem que existam. A ideia de ouro é mais perfeita do que a de cobre, mas isso não faz brotar ouro no chão. A existência não é um predicado do pensamento, é o ato que o funda.

O que Anselmo tentou fazer foi passar da ordem lógica à ontológica sem transição. Ele confundiu a coerência do conceito com a realidade do ser. Mas o ser não é conclusão, é princípio. Ele não se deduz; se constata. Por isso Tomás se distancia dessa via, não por falta de fé, mas por fidelidade à natureza do real. A mente humana não é criadora do ser, é sua serva. Ela não o produz, o reconhece. O argumento ontológico transforma o intelecto em demiurgo, quando na verdade ele é contemplador.

Mas há algo em Anselmo que continua digno de reverência. Ele percebeu que o homem não pode conceber o ser absoluto sem, de algum modo, tocá-lo. O pensamento de Deus não é vazio, é memória do Ser. Quando a mente concebe o infinito, é porque já participa dele. Nesse sentido, o argumento ontológico, embora falho como demonstração, é verdadeiro como indício. Ele revela a presença do Ser no próprio ato de pensar. O erro foi confundir presença com posse.

Em mim, esse paradoxo se torna quase existencial. Há momentos em que o pensamento se sente mais real que o mundo — quando a pureza da ideia parece mais sólida do que a matéria. Mas logo percebo que a ideia, sem o ser, é fantasma. É o ser que dá densidade ao conceito, não o contrário. Pensar é um ato de dependência, não de soberania. É o ser que pensa em mim. Por isso a fé não é pensamento que cria, mas pensamento que responde.

O argumento de Anselmo é, no fundo, a expressão mais refinada do desejo humano de possuir Deus pela mente. Ele quer transformar a busca em conquista, a ausência em dedução. Mas o real se nega a essa submissão. Deus não é um teorema; é o fundamento de todos os teoremas. A razão que quer provar o Ser absoluto pela coerência lógica esquece que a própria coerência é um reflexo d’Ele. É como se a chama tentasse provar o fogo.

Mesmo assim, o impulso de Anselmo é nobre. Ele parte do interior — e nesse movimento interior há verdade. Porque, de fato, o ser divino é necessário. O erro é metodológico, não metafísico. O intelecto intui corretamente o absoluto, mas o método o aprisiona na forma de conceito. O tomismo resgata essa intuição e a conduz à sua forma natural: a via realista, que parte do ente para o Ser. O que Anselmo viu pela ideia, Tomás reencontrou na existência.

No fim, o argumento ontológico, mesmo refutado, cumpre uma função espiritual: ele revela a nostalgia do homem pelo Ser. Mostra que a razão, mesmo errando o caminho, busca o mesmo destino. O erro é apenas uma sombra da direção certa. Porque pensar Deus já é, de algum modo, uma forma de oração — mesmo que a lógica se perca, o coração intui o rumo.


Questão II – A crítica tomista: por que o ser pensado não implica o ser real

O pensamento de Santo Tomás é uma purificação da razão. Ele aceita a luz, mas desconfia do brilho falso. A crítica ao argumento ontológico não é ceticismo, é realismo espiritual. O intelecto, diz ele, não pode passar do conceito à existência sem o mediador da realidade sensível. Porque o homem não conhece o ser senão pelo ente, e todo ente é, de algum modo, sensível. A mente não começa no céu das ideias, mas no chão do mundo. É o real que desperta o intelecto, não o contrário.

Tomás compreende que a existência não é um atributo lógico. É ato. E o ato não se deduz: se experimenta. A ideia de “ser necessário” pode ser coerente, mas só a realidade pode ser necessária em si. O conceito de Deus não basta para provar Deus, porque o conceito é finito, e o ser é infinito. A distância entre ambos é de ordem ontológica. A mente humana participa do ser, mas não o contém. Por isso, toda demonstração deve partir do efeito, não da ideia.

A razão não cria o ser; o ser cria a razão. Essa inversão de perspectiva é o golpe de misericórdia no intelectualismo moderno. O pensamento é um espelho, não uma lâmpada. Ele reflete a luz, mas não a produz. Por isso, o caminho até Deus não é o da dedução, mas o da ascensão: das coisas ao seu princípio, do ente ao Ser. A ideia pura é estéril; o ente concreto é fecundo. É a partir do movimento, da causalidade, da contingência que a mente alcança o necessário.

Há, no entanto, uma beleza no erro anselmiano: ele mostra que a própria razão carrega em si um vestígio da necessidade divina. O intelecto é atraído pelo Ser, e essa atração o leva a ultrapassar o sensível. Mas é preciso discernimento: a intuição do absoluto não é ainda sua demonstração. O anseio é verdadeiro, mas o método o desvia. Santo Tomás corrige o caminho sem apagar o impulso. Ele não nega o desejo de Deus inscrito na inteligência, apenas o reconduz à ordem do real.

Essa crítica tomista é também uma defesa da humildade. Ela recorda que o homem conhece segundo sua condição: como criatura, não como Criador. Sua inteligência é luz, mas luz refletida. Quando o intelecto pretende deduzir o Ser de si mesmo, transforma-se em ídolo. A razão se converte em deus, e o verdadeiro Deus se torna conceito. Essa é a raiz de todo idealismo: a substituição do ser pelo pensar. O argumento ontológico é o germe dessa ilusão, e o tomismo é o antídoto que a desfaz.

Mas a crítica de Tomás não é destrutiva. Ela preserva o valor simbólico do pensamento anselmiano. Porque, se a razão não pode provar Deus pela ideia, pode reconhecê-Lo como causa de sua própria capacidade de pensar. O intelecto humano é imagem do Verbo, e todo raciocínio verdadeiro é um eco desse Verbo. Assim, mesmo quando falha em demonstrar, o argumento ontológico testemunha algo maior: que a mente humana é feita para o Ser.

Quando contemplo isso, vejo que a verdadeira metafísica não começa no conceito de Deus, mas no espanto diante do real. A existência de uma pedra diz mais sobre o Ser do que mil silogismos. Porque o ser não é dedutível — é dado. E o dado é dom. O tomismo devolve a filosofia à gratuidade do existir. Pensar não é fabricar o ser, é acolhê-lo. O intelecto não é criador, é hospedeiro do real.

O argumento ontológico, ao tentar encerrar Deus na necessidade lógica, acaba por negar a liberdade divina. Pois se Deus existe porque é pensado como necessário, então a mente humana seria a condição de sua existência. É o ápice da inversão moderna: o Absoluto tornado dependente do relativo. O tomismo restaura a ordem: o homem pensa Deus porque é pensado por Ele. A necessidade está em Deus, não na mente.

Assim, a crítica tomista não é apenas uma refutação, mas uma confissão. Ao negar que o conceito implique a existência, Tomás reconhece que o ser ultrapassa todo conceito. Ele não quer um Deus deduzido, mas um Deus real. O ser pensado é um espelho; o ser real é o Sol. O argumento ontológico confunde o reflexo com a fonte; o tomismo ensina a virar-se para a luz.

No fim, compreendo que o erro de Anselmo foi querer ver Deus apenas com o olhar do intelecto. O olhar da razão é nobre, mas precisa do olhar do ser. O pensamento sem o real é sonho; o real sem o pensamento é opacidade. Só a união dos dois — o realismo metafísico — permite ao homem aproximar-se do Absoluto sem profaná-lo. O tomismo é essa união: o intelecto ajoelhado diante do ser.

E assim, ao criticar Anselmo, Santo Tomás salva o pensamento. Ele o purifica da soberba e o restitui à contemplação. O ser pensado não implica o ser real — mas o pensamento verdadeiro é já um vestígio do real. Pensar Deus não é criá-lo, mas confessar que o Ser nos pensa primeiro.

ARTIGO VIII – A Suposta Captação Prévia do Absoluto

Questão I – Fenomenologia e idealismo: a armadilha da presença imediata de Deus

O homem moderno, herdeiro da virada cartesiana, tenta encontrar Deus dentro de si, como se o Absoluto fosse uma evidência interior, uma luz imanente à consciência. Há uma beleza nesse gesto — e um perigo. A beleza está no reconhecimento de que o espírito humano é capaz de intuir algo absoluto; o perigo está em confundir essa intuição com posse. Quando a razão se fecha sobre si, transforma o infinito em reflexo, e o reflexo em substância. O Absoluto torna-se experiência. E nesse momento, a transcendência desaparece.

Descartes foi o primeiro a abrir essa fenda: ao duvidar de tudo, encontrou no “eu penso” a certeza primeira. Mas essa certeza é apenas formal. Ela não prova o ser, apenas a consciência de pensar. A substância pensante tornou-se o novo fundamento, e o real — o que existe fora da mente — tornou-se suspeito. O idealismo nasce dessa inversão: o ser passa a depender do pensar. A realidade é reduzida a representação. O mundo exterior deixa de ser dado e passa a ser construído.

A partir daí, a busca de Deus migra da metafísica para a interioridade. Deus torna-se ideia, condição do pensamento, estrutura da consciência. Kant o faz símbolo moral; Fichte o transforma em atividade pura; Schelling o vê como identidade originária de sujeito e objeto; Hegel o declara Espírito absoluto que se realiza na história. Cada um, à sua maneira, substitui o Ser real pela autoconciência. O Absoluto deixa de ser transcendente e passa a ser um momento da razão.

Há nisso um engano profundo, ainda que envolto em grandiosidade. O intelecto humano, ao voltar-se sobre si, descobre de fato a luz — mas essa luz não é sua. É a participação do Ser. A consciência é um espelho que reflete o Absoluto, não a fonte que o produz. O idealismo, porém, confunde reflexo com substância. O homem passa a adorar a própria imagem, como Narciso diante da água. E quanto mais contempla o reflexo, mais se distancia da fonte.

A fenomenologia, ao retomar o primado da experiência, tenta corrigir esse excesso, mas cai no mesmo círculo. Quando Husserl declara que é preciso “voltar às coisas mesmas”, entende por “coisa” o fenômeno tal como aparece à consciência. A transcendência é substituída pela intencionalidade. O ser passa a ser “aquilo que se mostra”. E o que não se mostra — o que está além da experiência — torna-se incognoscível. O Absoluto é dissolvido na imanência.

No entanto, há algo que escapa a esse fechamento. Mesmo o fenomenólogo, quando descreve o aparecer das coisas, pressupõe o ser que faz aparecer. O fenômeno exige o fundamento ontológico que o sustenta. Nada pode “aparecer” sem ser. O ser é anterior a toda consciência, e não o contrário. A consciência é um modo de participar do ser, não o seu gerador. O idealismo e a fenomenologia falham por esquecer o óbvio: que o pensar depende do existir.

Ao refletir sobre isso, percebo o abismo entre o tomismo e a filosofia moderna. Para o tomista, o ser é o primeiro conhecido implicitamente em todo ato de intelecção. Para o moderno, o primeiro conhecido é o eu. A diferença parece sutil, mas é total. No primeiro caso, o ser é horizonte; no segundo, é produto. O realismo reconhece o dom; o idealismo o substitui pela projeção. O primeiro contempla; o segundo fabrica.

Essa substituição é a verdadeira queda da metafísica. Porque o pensamento, ao fechar-se na imanência, perde o sentido de participação. Tudo se torna autossuficiente e, portanto, estéril. A mente humana, ao tentar capturar o Absoluto dentro de si, mata-o — como o caçador que, ao prender o pássaro, perde o canto. O Absoluto não pode ser possuído. Só pode ser acolhido.

E é aqui que o tomismo ressurge como o único caminho que reconcilia interioridade e transcendência. Ele reconhece que o homem tem de fato uma luz interior, mas essa luz é derivada. O intelecto é feito para o ser, não é origem do ser. O que vejo em mim não é o Absoluto em si, mas o vestígio dele. O ser é participado, não deduzido. A interioridade é o espelho do real, não o seu criador.

Com isso, o tomismo não nega a experiência, mas a purifica. Ele restitui à interioridade seu sentido original: o de espelho voltado para o alto. O homem conhece a Deus não porque o contém, mas porque dele recebe o ser. O “eu penso” não é o fundamento; é a resposta. E é justamente nesse reconhecimento que nasce a verdadeira liberdade: saber-se causado, e ainda assim chamado.


Questão II – O retorno à via realista: a prioridade do ente e a mediação da experiência

Há uma sabedoria profunda na via realista: ela começa no mundo e termina em Deus. Não há salto místico nem atalho racional. A metafísica não é fuga do sensível, mas sua plenificação. O real é o primeiro mestre. Tudo o que é ensina, porque tudo o que é participa do Ser. É olhando para o ente que a mente intui o Absoluto. A verdade não nasce da abstração, mas da admiração.

Quando abro os olhos e vejo uma pedra, uma árvore, uma estrela, vejo algo que é. E nesse “é” já está contido o mistério. A existência, por mínima que seja, é uma porta para o infinito. Porque aquilo que é, é por outro. Nenhum ente explica a si mesmo. Cada coisa aponta para uma fonte. O real é simbólico — não no sentido de metáfora, mas de presença. Cada ente é uma epifania do Ser.

A via realista é, por isso, a via da humildade. Ela não parte da ideia que o homem tem de Deus, mas da realidade que o homem experimenta. Ela não impõe ao mundo as categorias da mente, mas deixa que o mundo fale. O real não precisa ser reconstruído; precisa ser escutado. E o que ele diz é sempre o mesmo: “eu sou porque recebo o ser”. Esse testemunho silencioso é mais convincente do que qualquer dedução.

O idealismo e a fenomenologia tentam apreender o Absoluto na consciência imediata, mas a consciência é finita. A experiência direta do infinito só é possível por participação, não por apreensão. O realismo tomista preserva essa distância ontológica como condição da comunhão. Deus é conhecido através de suas obras, e nelas brilha a sua causa. Não porque as coisas o contenham, mas porque dependem dele. A mediação do real é a pedagogia da transcendência.

Nesse sentido, a via realista é mais contemplativa do que qualquer filosofia da interioridade. O real torna-se sacramento. Cada ser é uma presença e uma ausência: está aí, mas remete ao que o sustenta. O tomismo vê o mundo como um texto escrito por Deus, onde cada palavra é finita, mas o sentido é eterno. Ler o mundo é participar da inteligência divina que o ordena.

Essa via é também uma correção espiritual. O homem moderno, centrado em si, perdeu o espanto. Tudo é “objeto” — nada é “presença”. A realidade deixou de ser mistério e tornou-se função. Mas quem olha para o real com olhos metafísicos vê o milagre em cada coisa. A existência não é banal; é epifania. A filosofia realista devolve ao mundo sua aura perdida: tudo é sinal do Ser.

Compreendo então que o retorno ao realismo não é regressão, mas ascensão. Ele não nega a interioridade; a enraíza. O intelecto não é ilha, é janela. E pela janela entra a luz. O pensamento se torna verdadeiro quando se abre ao ser. A consciência se ilumina quando se reconhece dependente. A razão se salva quando se ajoelha.

No fim, toda tentativa de captar Deus diretamente dentro da consciência é uma forma de orgulho ontológico. O espírito quer ver o invisível sem se purificar pela mediação do real. Mas o real é o caminho. É nele que o ser se dá, e é por ele que o homem sobe. O tomismo é, por isso, uma ascese da inteligência: ele obriga a mente a sair de si, a abandonar o conforto da ideia para enfrentar o peso do ser.

Quando aceito esse caminho, o mundo muda de cor. Tudo se torna vestígio. O Absoluto não está longe, mas também não está “em mim” como uma ideia. Está em tudo, sustentando tudo. A árvore que cresce, a pedra que resiste, o olhar que pensa — todos são sinais de uma presença que não se esgota. O ser está em toda parte, e em nenhuma parte confinado.

Assim, o retorno à via realista não é apenas um movimento filosófico, mas uma conversão do olhar. É deixar que o ser me diga quem sou, em vez de tentar dizê-lo eu. É reconhecer que o Absoluto não é objeto de posse, mas de participação. O ser não se capta, se recebe. E o intelecto, ao compreender isso, descobre o seu verdadeiro ofício: ser um espelho voltado para o Infinito.

ARTIGO IX – Os Planteamentos Agnósticos

Questão I – O fechamento do espírito moderno: quando o limite se torna dogma

Entre todas as negações que a mente humana já pronunciou, nenhuma é tão sutil e corrosiva quanto o agnosticismo. Ele não grita, não blasfema, não nega com ira — apenas se fecha. É a recusa do olhar. O agnóstico não diz que Deus não existe; diz que não se pode saber se existe. E nessa frase, aparentemente modesta, há o veneno mais sofisticado do niilismo. Porque, ao declarar o mistério inacessível, ele transforma o limite humano em lei universal. O que antes era humildade se torna dogma; o silêncio, método.

Sempre percebi que o agnosticismo não nasce de ignorância, mas de saturação. O homem moderno viu demais, leu demais, mediu demais. E quanto mais acumulou informações, menos percebeu o ser. O excesso de dados cegou o olhar metafísico. O real perdeu a densidade ontológica e tornou-se mero fenômeno mensurável. E como o ser já não se deixa calcular, o espírito concluiu que não há nada além do mensurável. O mistério foi exilado por incapacidade de ser quantificado.

Mas o erro do agnóstico não é não saber — é recusar o saber possível. Ele fecha a janela antes de olhar. E, pior ainda, transforma essa recusa em virtude. A ignorância voluntária é erigida em prudência. A dúvida se torna o altar da razão. O que era apenas a condição finita do intelecto — a incapacidade de ver o Ser plenamente — é elevado à condição absoluta. O homem, que antes se curvava diante do mistério, agora se coroa senhor da incerteza.

Há algo de trágico nesse movimento. Porque o agnóstico é, em sua raiz, um crente frustrado. Ele sente o mistério, mas teme o compromisso. O Absoluto o atrai e o assusta. É mais cômodo declarar-se cego do que admitir que fecha os olhos. O agnosticismo é o refúgio do orgulho ferido: não suportando o peso do Ser, o espírito o dissolve em indiferença. A dúvida, que poderia ser ponto de partida, torna-se morada.

Santo Tomás, ao contrário, nunca confundiu limite com negação. Ele sabia que o intelecto humano é finito, mas também sabia que o finito pode conhecer o infinito por participação. O limite não é muro, é janela. É justamente porque não sou Deus que posso conhecê-lo como Outro. Se o Ser fosse inteiramente inacessível, não poderia ser causa de nada; mas se é causa, é cognoscível em seus efeitos. O agnóstico esquece que o mistério se manifesta.

Essa confusão nasce do medo de errar. O agnóstico teme a afirmação. Ele prefere a suspensão eterna do juízo, acreditando ser isso prudência. Mas a prudência, sem o amor à verdade, degenera em paralisia. O espírito prudente que não ousa afirmar deixa de ser prudente e torna-se estéril. O conhecimento metafísico exige coragem: é preciso saltar do fenômeno ao fundamento. Não para invadir o mistério, mas para reconhecê-lo.

O fechamento do espírito moderno é, no fundo, uma forma de autoproteção. O homem não quer mais encontrar Deus porque teme o que isso implicaria. Conhecer o Ser é submeter-se a Ele. O agnóstico se refugia na dúvida para preservar sua autonomia. Ele quer manter o trono da consciência intocado. O preço dessa segurança é a perda do sentido. Quando tudo é incerto, nada tem valor. A dúvida, erigida em método, devora a alma que a sustenta.

No fim, o agnosticismo é o ateísmo que ainda não teve coragem de confessar-se. É o niilismo disfarçado de modéstia intelectual. É o ceticismo que quer parecer virtuoso. Mas a máscara cai quando o coração fala: ninguém duvida com serenidade; duvida-se por desespero. A dúvida é o último estágio da saudade de Deus. O agnóstico cala porque já não suporta esperar.

E, contudo, mesmo esse silêncio involuntário pode ser lido como oração. Porque o espírito humano, ainda que negue, ainda que se esconda, não pode eliminar o vestígio do Ser. A recusa é também uma forma de saudade. O agnóstico, ao afirmar que não pode conhecer Deus, já O confessa como possível. O limite, quando bem compreendido, é uma promessa. Mas para isso, é preciso deixar de adorá-lo como dogma.


Questão II – O agnosticismo e a perda da analogia: o eclipse da razão aberta ao ser

O que me fascina no agnosticismo é que ele não é apenas uma posição intelectual — é um estado da alma. Ele nasce de uma experiência existencial de descontinuidade entre o mundo e o mistério. O homem moderno já não vê relação entre o sensível e o transcendente. O real perdeu a transparência simbólica. O que antes era sinal, tornou-se opacidade. O cosmos deixou de ser criação e passou a ser cenário. Quando o mundo deixa de refletir o Ser, a razão perde a analogia, e o pensamento mergulha na noite.

A analogia é o laço de ouro entre o finito e o infinito. É o que permite ao intelecto humano dizer algo verdadeiro sobre Deus sem reduzi-Lo. Mas quando a cultura renuncia à analogia, tudo se parte: o conhecimento se torna ou literalista (reduzindo o divino ao humano) ou mudo (negando qualquer possibilidade de falar). O agnosticismo é o produto dessa perda: a mente, incapaz de pensar analogicamente, refugia-se na negação do discurso.

Perder a analogia é perder a confiança no ser. É deixar de crer que o real é inteligível. E quando o ser deixa de ser inteligível, a razão perde sua vocação. O homem deixa de buscar o fundamento e contenta-se com a superfície. É o triunfo do método sobre a sabedoria, da análise sobre a contemplação. O pensamento deixa de ser caminho e se torna labirinto.

No plano espiritual, isso é devastador. Porque a alma humana, sem analogia, já não percebe a presença de Deus nas coisas. O mundo torna-se silencioso. Tudo é apenas “matéria em movimento”, e o mistério se recolhe. O olhar agnóstico vê o universo, mas não o lê. A criação perde a voz porque o intelecto perdeu a escuta. E nesse vazio, o homem começa a sentir que vive num deserto ontológico.

Santo Tomás sabia que a analogia é o antídoto contra o desespero metafísico. Ela mantém o diálogo aberto entre o Criador e a criatura. Através dela, a razão reconhece a transcendência sem perder o sentido do real. Falar de Deus analogicamente é confessar que Ele está além de tudo, e, ao mesmo tempo, presente em tudo. O agnóstico, ao negar essa ponte, condena-se ao isolamento. Ele vive cercado de sinais, mas já não tem a chave da leitura.

No fundo, o agnosticismo é a falência da inteligência simbólica. A modernidade trocou o símbolo pelo conceito, a analogia pela exatidão. Quis uma razão pura e acabou com uma razão vazia. Porque a exatidão sem transcendência é esterilidade. A mente que mede tudo já não compreende nada. O agnóstico vive cercado de fatos e morre de ausência.

Mas há uma luz ainda aí. O próprio desespero do agnóstico é prova de que o espírito humano não se basta. Sua angústia é testemunho da saudade do Ser. A dúvida, levada até o fim, se transforma em prece. O homem que afirma “não posso conhecer Deus” ainda o busca, mesmo negando. O silêncio do agnóstico é o eco de uma presença que insiste.

O tomismo, com sua paciência metafísica, é a cura desse mal. Ele devolve à razão sua confiança. Ensina que o ser é cognoscível, que o mundo é sinal, que o intelecto é feito para a verdade. A fé e a razão, longe de se excluírem, são duas asas do mesmo voo. O agnóstico corta as asas; o tomista as abre.

Quando volto a pensar nisso, sinto que a maior tragédia do agnosticismo é ter esquecido a alegria do conhecimento. A verdade não é imposição, é convite. Conhecer o Ser é participar da sua luz. O agnóstico vive como quem fecha os olhos diante do amanhecer: o sol nasce, mas ele prefere a sombra. O real continua brilhando — só o olhar é que se recusa.

E então compreendo que o agnosticismo não é o fim da fé, mas o seu inverno. É a estação em que o ser parece calar, mas ainda está vivo. A analogia, uma vez reencontrada, derrete o gelo. O intelecto volta a confiar. O mistério volta a falar. E a alma, que antes se refugiava na dúvida, descobre que o limite nunca foi muro — era fronteira.

ARTIGO X – O Ateísmo Filosófico

Questão I – Do materialismo antigo ao humanismo autônomo: o deslocamento do Absoluto

O homem, ao longo da história, sempre buscou o fundamento do ser. Mesmo quando o negou, o fez em nome dele. O ateísmo, portanto, não é ausência de fé, mas fé desviada. É o esforço de afirmar um absoluto sem transcendência, uma plenitude sem origem. Quando contemplo sua genealogia, vejo uma linha contínua que vai do materialismo antigo até o humanismo moderno, passando por todos os estágios da desdivinização do mundo.

Os primeiros materialistas, como Demócrito e Epicuro, já pressentiam o fascínio de um universo sem Deus. O mundo, diziam, é composto de átomos e vazio — eterno, autossuficiente, mecânico. Não há finalidade, apenas movimento. Essa cosmologia parecia libertar o homem da tutela divina, mas o aprisionava no acaso. O sentido era substituído pela necessidade cega. E, no entanto, mesmo esses antigos negadores ainda conservavam, paradoxalmente, uma forma de reverência: o universo, em sua eternidade, substituía o divino.

Foi o cristianismo que, ao revelar a criação ex nihilo, dissolveu de vez a ideia de uma matéria eterna. O mundo deixou de ser necessário e passou a ser dom. O ser, antes fechado em si, abriu-se à transcendência. Mas essa libertação trouxe também o risco da revolta: o homem, ao perceber-se distinto de Deus, começou a desejar a autonomia absoluta. O ateísmo moderno é o fruto amargo dessa liberdade mal digerida.

Com o Renascimento e o Iluminismo, o centro da realidade deslocou-se de Deus para o homem. A antiga metafísica foi substituída pela exaltação da razão. Deus, que antes era princípio do conhecimento, tornou-se hipótese supérflua. Descartes ainda o invoca como garantia da verdade, mas já o reduz a um elemento funcional. Spinoza o dissolve na substância única; Hobbes o substitui pela soberania do Estado; Hume o relativiza pela dúvida empírica. Um a um, os pilares da transcendência foram corroídos.

No século XIX, o ateísmo amadureceu. Feuerbach proclamou que Deus é projeção das potências humanas; Marx transformou essa projeção em ideologia; Nietzsche anunciou a morte de Deus como libertação do espírito criador. A transcendência foi eliminada em nome da imanência. O homem tornou-se o centro, o criador de valores, o legislador do sentido. O absoluto migrou da esfera divina para a humana. Mas o preço foi alto: ao matar Deus, o homem começou a morrer espiritualmente.

Eu mesmo sinto o vazio que essa operação deixa. O mundo sem Deus não é apenas outro mundo; é um mundo desfundamentado. Tudo continua a existir, mas nada mais tem porquê. A ordem física subsiste, mas a ordem moral desaba. O bem e o mal tornam-se convenções. A verdade, opinião. A vida, acidente. O ser perde o seu brilho, e o homem, privado de referência, torna-se órfão metafísico. O ateísmo não liberta: desampara.

Santo Tomás já intuía esse abismo. Ele sabia que a negação de Deus não é apenas erro teórico, mas ruína ontológica. Porque Deus não é um ente entre outros, é o próprio ato de ser. Negá-lo é negar o fundamento do existir. O ateísmo é, portanto, uma tentativa de manter o edifício da realidade sem o alicerce. É construir sobre o vácuo. O homem ateu continua usando as categorias da fé — verdade, liberdade, dignidade —, mas esvaziadas de sentido. Ele vive de empréstimo daquilo que nega.

A ironia é que o ateísmo filosófico nasce do mesmo desejo que alimentava a teologia: o desejo de totalidade. Só que, sem Deus, a totalidade torna-se prisão. A matéria, agora divinizada, não ama nem pensa. O cosmos mecanizado é vasto, mas mudo. O homem moderno, olhando para o céu vazio, sente o peso de sua própria liberdade. E o grito de Nietzsche — “Deus está morto!” — ecoa não como vitória, mas como lamento. Porque o que morre com Deus é o sentido.

O ateísmo filosófico é, em última análise, uma confissão involuntária da dependência que nega. Ao expulsar o divino, ele tenta usurpar seu lugar. Mas o trono do Ser é insustentável para a criatura. O homem, autoproclamado absoluto, logo se descobre relativo. O humanismo autônomo, que começou com confiança, termina em desespero. Sem Deus, o homem é um deus que sangra.

E assim, a história do ateísmo é também a história da nostalgia. Cada negação é uma saudade disfarçada. O homem tenta calar o Ser, mas a própria linguagem o trai — porque falar é já participar do Logos. A negação de Deus é uma oração invertida. O silêncio do céu é, muitas vezes, eco da surdez da terra.


Questão II – A ausência de Deus e o vazio ontológico do mundo moderno

Há um tipo de vazio que não se percebe imediatamente. Ele não é ausência de coisas, mas de sentido. O mundo moderno vive cheio de movimento, ciência, progresso, mas vazio de finalidade. É um universo ocupado e desabitado. Tudo funciona, mas nada justifica o funcionamento. É o triunfo da técnica e o eclipse da teleologia. Esse é o fruto maduro do ateísmo filosófico: um cosmos que gira sem centro.

Sinto, às vezes, esse vazio como uma vertigem silenciosa. As coisas existem, mas parecem suspensas no ar. Nenhum porquê as sustenta. O tempo corre, mas não conduz. O progresso é adoração do movimento sem direção. A ciência multiplica causas segundas e esquece a primeira. O homem, que dominou a matéria, perdeu a alma. O ateísmo prometeu autonomia e entregou solidão.

Santo Tomás ensina que o ser é participação. Onde não há causa primeira, não há participação, e o real se torna fragmento. O ateísmo, ao negar o Ser subsistente, destrói o elo entre as partes e o todo. O mundo deixa de ser criação e passa a ser acaso. E o acaso não une; dispersa. O resultado é um universo fragmentário, onde cada ente existe isolado, sem referência ao todo. Essa é a ontologia do desespero.

O homem moderno, ao negar Deus, não elimina a dependência; apenas a torna sem sentido. Continua dependente do ser, mas sem reconhecer a fonte. É como quem bebe de um rio sem saber de onde vem a água. Vive, mas sem gratidão. Age, mas sem direção. O vazio ontológico se traduz em vazio moral. Porque o bem, sem o Ser, é apenas preferência. E a verdade, sem o Logos, é apenas opinião útil.

No fundo, o ateísmo filosófico é uma tentativa de suportar o real sem o mistério. Mas o mistério é o que dá espessura ao real. Retire-o, e tudo se torna plano, sem profundidade. O mundo perde a aura, e o homem, o assombro. A técnica ocupa o lugar da contemplação, o cálculo substitui o louvor. A civilização moderna é o túmulo do espanto.

Há, contudo, uma contradição que o ateísmo não pode resolver: ele afirma o sentido da razão enquanto nega o fundamento do sentido. Confia no intelecto, mas nega o Logos. Busca a verdade, mas nega o ser verdadeiro. É como quem quer respirar negando o ar. Toda negação de Deus é performativamente contraditória: para negar o Ser, é preciso ser. E ser é já participar d’Ele.

O mundo moderno vive dessa contradição. Ele continua a usar as palavras herdadas da fé — “justiça”, “liberdade”, “dignidade”, “bem comum” —, mas sem o Ser que lhes dá conteúdo. É uma linguagem sem alma, um corpo sem sopro. O ateísmo não criou uma nova moral; apenas zombou da antiga. E agora, cercado por ruínas luminosas, tenta esquecer o que perdeu.

Quando olho em volta, vejo que o vazio do mundo moderno não é apenas filosófico; é existencial. As pessoas vivem como órbitas sem sol. Buscam o absoluto em prazeres, ideologias, identidades. Mas tudo passa. E no fim, o homem percebe que trocou o Ser pela sensação, a eternidade pelo instante. O ateísmo não elimina o desejo de Deus; apenas o degrada em consumo.

No entanto, esse próprio vazio é, paradoxalmente, um sinal. Porque o nada absoluto é impossível. Onde há ausência, há memória. O vazio clama pela plenitude que perdeu. A alma ateia é inquieta porque ainda participa do Ser que nega. Seu desespero é teologal. O ateísmo não é vitória contra Deus, mas nostalgia sem nome.

O tomismo devolve a esse desespero o seu sentido. Ele mostra que o vazio é a prova de que o homem é feito para o Ser. Que a ausência sentida é o rastro da presença negada. Que a sede é o vestígio da fonte. O ateísmo é a noite da alma coletiva; o realismo metafísico é a aurora que retorna.

Compreendo, então, que a ausência de Deus não é ausência de realidade — é ausência de luz. O mundo continua sendo o mesmo, mas o olhar perdeu o brilho. Deus não morreu; foi o homem que fechou os olhos. E quando ele os abrir de novo, verá que o Ser ainda o sustenta, silencioso, paciente, esperando o retorno da inteligência à sua vocação: conhecer para adorar.

ARTIGO XI – O Ateísmo Cientificista e sua Inconsistência

Questão I – O positivismo e o mito da autossuficiência da ciência

De todas as formas de negação do transcendente, o cientificismo é a mais sedutora. Ele não nega com palavras, mas com resultados. Não argumenta, demonstra. E suas demonstrações, frequentemente brilhantes, confundem o brilho do método com a luz da verdade. Assim, o homem moderno, extasiado pelo poder de sua própria técnica, passou a acreditar que o saber empírico esgota o real. O mistério, reduzido à ignorância temporária, tornou-se um obstáculo a ser eliminado. O cientificismo nasce quando a ciência, esquecendo seu limite, proclama-se senhora do ser.

Sempre vi nisso uma inversão silenciosa. A ciência legítima é humilde: investiga o como. O cientificismo, soberbo, pretende explicar o porquê. A primeira observa; o segundo interpreta. Mas quando o método empírico se transforma em cosmovisão, o mundo perde a profundidade. Tudo se torna quantificável, e o que não se mede é descartado. O ser é reduzido ao mensurável, e o real, ao verificável. Nesse instante, a ontologia é substituída pela estatística.

O positivismo, nascido no século XIX, cristaliza essa ilusão. Comte e seus seguidores acreditaram que o espírito humano havia alcançado sua maturidade definitiva: o estágio científico, em que a metafísica seria superada pela observação pura. A razão, liberta das “superstições”, finalmente se tornaria autônoma. Mas essa autonomia é uma miragem. Porque o método científico, por mais preciso que seja, repousa sobre pressupostos que ele mesmo não pode justificar.

Toda ciência parte de um ato metafísico: a confiança na inteligibilidade do real. Pressupõe que o mundo é ordenado, que o ser é coerente, que o intelecto humano é capaz de apreender essa ordem. Mas essas certezas não são produtos da ciência — são suas condições. O cientificismo, ao negar a metafísica, morde a própria cauda. Ele corta o galho sobre o qual está sentado.

Além disso, a ciência não se move no campo do ser, mas do fenômeno. Ela descreve regularidades, não causas últimas. Mede efeitos, não princípios. O cientificismo confunde lei com causa, descrição com explicação. Uma equação não diz por que o universo é inteligível; apenas mostra como ele se comporta. A causa formal e final desaparecem, restando apenas a eficiente e a material. E com isso, o real se torna incompleto — um corpo sem alma, um cosmos sem sentido.

O mais paradoxal é que, quanto mais o método triunfa, mais a razão empobrece. A inteligência que antes se elevava ao ser agora se dobra sobre o útil. Saber é dominar. Conhecer é manipular. A verdade é substituída pela eficácia. O critério não é mais o que é, mas o que funciona. O pensamento, outrora ascético, torna-se técnico. E o cientificismo, sem perceber, substitui a contemplação pela engenharia.

Sinto, às vezes, essa mutação como uma perda espiritual irreversível. O olhar científico, que poderia ser uma forma de louvor, tornou-se instrumento de poder. A natureza, que era livro, passou a ser máquina. E o homem, que antes se via como guardião da criação, tornou-se seu operador. O sagrado cedeu lugar ao laboratório. O ser foi exilado da experiência.

Mas o mais grave é que o cientificismo, ao negar o transcendente, acaba erigindo sua própria teologia. Ele cria um novo deus: o método. Tudo o que é verificável é bom; tudo o que não é, não existe. Essa divinização da verificação é o dogma moderno. O homem deixa de crer em Deus para crer no progresso. A fé é deslocada da eternidade para o futuro. E o futuro, transformado em horizonte de salvação, substitui o Paraíso.

No fundo, o cientificismo é uma paródia religiosa. Ele tem dogmas (leis naturais absolutas), sacerdotes (os cientistas mediáticos), rituais (experimentos e relatórios), e uma escatologia (o progresso indefinido). Mas falta-lhe o essencial: o sentido. Porque o método, por si, não ama, não julga, não consola. Ele explica o mecanismo do coração, mas ignora a dor que o move.

Assim, a autossuficiência da ciência é apenas aparência. Ela depende, sem saber, de tudo o que nega: do ser, da finalidade, da beleza, da verdade. É como a árvore que corta suas raízes e ainda se admira por continuar verde. O cientificismo não matou Deus; apenas o substituiu por um ídolo menos exigente — o dado. Mas o dado, por mais preciso que seja, não responde ao porquê do ser.


Questão II – O retorno da metafísica negada: quando o método clama por um fundamento

Quanto mais o cientificismo avança, mais o clamor do metafísico ressurge. É um paradoxo inevitável: o método que tenta eliminar o fundamento acaba por exigi-lo. Porque o homem, ao perguntar “como?”, acaba tropeçando no “por que?”. E o “por que?” pertence à ordem do ser. Nenhum progresso técnico elimina a pergunta última. A física explica o universo, mas não a existência do universo. A biologia descreve a vida, mas não o mistério de viver. A psicologia analisa o eu, mas não o ser que diz “eu”.

Santo Tomás já havia previsto isso. Ele sabia que toda ciência particular depende de um princípio comum: o ser enquanto ser. A metafísica é a ciência das ciências, não porque as substitui, mas porque as fundamenta. Sem ela, o saber se dispersa. O cientificismo, ao abolir a metafísica, torna-se prisioneiro de fragmentos. Sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até saber tudo sobre nada.

A própria física moderna, ao tentar compreender o cosmos, reencontra o mistério. O Big Bang, por exemplo, aponta para um início absoluto — um evento sem causa empírica. A mecânica quântica revela uma indeterminação que desafia o determinismo. A cosmologia fala de leis universais sem poder justificar sua existência. Tudo isso são vestígios de transcendência. O cientificismo, ao negar o metafísico, tropeça nele a cada passo.

Mas a questão vai além da ciência: é existencial. O homem não suporta um mundo sem sentido. Pode negar Deus por um tempo, mas não pode viver sem um absoluto. Por isso, o vazio deixado pela transcendência é ocupado por sucedâneos: ideologias, consumo, tecnologia. Cada nova utopia é uma tentativa de restaurar o paraíso perdido. O cientificismo é, nesse sentido, o mito mais moderno e o mais antigo: a esperança de alcançar o divino sem o divino.

Quando reflito sobre isso, percebo que o retorno da metafísica é inevitável. Porque o intelecto humano é ordenado ao ser. Ele não pode contentar-se com o fenômeno. O método é instrumento, não fim. A mente que só mede acaba mendigando sentido. E, no silêncio das equações, o ser retorna — não como hipótese, mas como necessidade.

O cientificismo é inconsistente não apenas logicamente, mas ontologicamente. Ele afirma a ordem sem princípio, a lei sem legislador, a racionalidade sem razão. Afirmar que o universo é inteligível sem um Intelecto é contraditório. A inteligibilidade supõe intenção, e a intenção supõe espírito. O cosmos não se explica por si mesmo; é explicado por Alguém.

O mais irônico é que, quanto mais a ciência revela a complexidade do real, mais clara se torna a insuficiência do acaso. O universo não é um caos organizado, mas uma harmonia matemática. A beleza das leis físicas, a coerência das constantes, a adequação do cosmos à vida — tudo aponta para uma racionalidade anterior à nossa. A metafísica não é inimiga da ciência; é seu horizonte.

No fim, percebo que o cientificismo não é apenas erro teórico, mas tragédia espiritual. Ele reduz o homem à função e o cosmos ao instrumento. Ao negar o Ser, nega o mistério; e ao negar o mistério, nega a alegria. O mundo medido perde o encanto. A ciência sem metafísica é como a música sem silêncio: ruído.

O tomismo, ao contrário, reintegra. Ele vê na ciência um caminho legítimo, mas subordinado ao ser. A física, a biologia, a psicologia — todas são partes de um mesmo esforço de compreender a ordem da criação. E cada descoberta é uma nova forma de louvor. Quando o cientista verdadeiro se maravilha, ele reza. O método, purificado da soberba, volta a ser instrumento da contemplação.

O retorno da metafísica é, portanto, o retorno da gratidão. É o instante em que o intelecto, cansado de medir, volta a admirar. O universo, visto pela lente do ser, deixa de ser laboratório e volta a ser templo. E eu compreendo, então, que a verdadeira ciência é filha da fé — porque só quem confia na ordem do real pode estudá-lo.

O cientificismo é uma fase de adolescência do espírito humano: a rebeldia contra o Pai. Mas toda rebeldia madura em saudade. E a saudade, um dia, se converte em sabedoria. A ciência, reencontrando o ser, reencontrará também sua vocação original — não dominar, mas compreender; não negar, mas agradecer.

ARTIGO XII – A Simplicidade de Deus

Questão I – A identidade absoluta de essência e ser em Deus

Há momentos em que a mente se vê forçada a parar — não por ignorância, mas por claridade excessiva. É o que sinto ao tentar compreender o que significa dizer que Deus é simples. Todas as realidades criadas me aparecem compostas: forma e matéria, ato e potência, essência e existência. Tudo o que existe o faz por participação. Cada ente é uma síntese de limites: aquilo que é, unido ao que poderia não ser. Mas em Deus não há síntese. Ele não tem ser — Ele é o Ser.

Essa identidade entre essência e existência é o ponto em que a inteligência humana começa a tatear o absoluto. Em mim, a essência e o ser são distintos: posso compreender o que sou sem que, necessariamente, eu exista. A ideia de “homem” permanece, ainda que todos os homens morram. Mas em Deus isso é impossível. Se Sua essência fosse distinta de Seu ser, Ele dependeria de algo que o fizesse existir, e deixaria de ser necessário. O Ser absoluto, por definição, não recebe o ser — é o próprio Ato de ser subsistente.

Ao refletir nisso, percebo que a simplicidade divina é o inverso de toda limitação. Não é pobreza de estrutura, mas plenitude de ato. Porque onde há composição, há dependência. Tudo o que é composto precisa de algo que o una, e essa união exige causa. A simplicidade de Deus é, portanto, a marca de Sua absoluta autossuficiência. Ele não é um “todo” formado de partes, mas uma unidade sem fissuras, um ser sem mistura, uma luz sem sombra.

Santo Tomás insiste: em Deus, a essência é o próprio existir. Ele é o “Ipsum Esse Subsistens” — o Ser mesmo que subsiste. Isso não é mera abstração metafísica; é o reconhecimento de que toda realidade é sustentada por um ato que não precisa ser sustentado. Deus não é uma instância superior dentro da ordem dos entes, mas o fundamento da ordem em si. Ele é aquilo pelo qual todos os entes são.

Quando compreendo isso, tudo o que é composto me parece suspenso sobre o nada — sustentado por uma vontade que o faz ser. A simplicidade divina é o eixo invisível do cosmos. Sem ela, o ser seria fluxo, variação, indeterminação. O que dá consistência às coisas não é sua forma, mas a permanência do Ato que as mantém em ser. E esse Ato, sendo simples, é imutável. Ele não muda porque já é plenitude. Não se aperfeiçoa porque é perfeição.

A simplicidade de Deus também é a razão de Sua unidade. Se houvesse em Deus distinção real entre o que Ele é e o que possui, haveria multiplicidade. Mas tudo n’Ele é idêntico a Si mesmo: Sua sabedoria é Seu ser, Sua bondade é Seu ser, Seu amor é Seu ser. Em nós, o ser é limitado por atributos; n’Ele, os atributos são nomes humanos para a mesma plenitude. Quando digo que Deus é justo, bom, sábio ou poderoso, falo de modos diversos de apreender uma única realidade — o Ser em ato puro.

Essa identidade total tem consequências decisivas. Significa que em Deus não há potencialidade. Ele não pode tornar-se algo que ainda não é, pois isso implicaria imperfeição. Tudo o que é em Deus é sempre, eternamente, ato. E porque é ato, é simples. O composto muda, o simples permanece. O composto depende, o simples sustenta. A simplicidade é o nome metafísico da eternidade.

Percebo então que a simplicidade de Deus é também a fonte de toda beleza. Porque a beleza é a harmonia do múltiplo no uno. Em Deus, essa harmonia não é composição, mas identidade. Ele é a Beleza sem partes, o Todo sem soma. Tudo o que é belo no mundo o é por participação nesse Uno absoluto. A flor, a estrela, o rosto humano — todos são reflexos fragmentários da unidade sem fragmento.

Contemplar essa simplicidade é, portanto, participar do mistério da plenitude. Tudo o que existe fora de Deus é complexo, mutável, contingente. Só Ele é o Ser sem sombra de não-ser. E é isso que me humilha e consola ao mesmo tempo: o fato de que minha própria multiplicidade interior, com suas contradições e desordens, é sustentada por um Ser que é pura ordem. O caos do mundo repousa sobre a simplicidade divina.

Assim, a doutrina da simplicidade não é apenas especulação; é a confissão de que tudo o que existe vive do que é absolutamente uno. O coração humano, fragmentado e inquieto, busca o simples porque veio dele. A conversão, em sua raiz mais profunda, é o retorno da alma à simplicidade original do ser.


Questão II – A simplicidade como plenitude: a ausência de composição e a perfeição total

Há uma tentação natural da mente: imaginar Deus como uma espécie de soma infinita de perfeições. Mas isso seria reduzi-Lo à categoria do composto. O infinito não é a soma do finito; é o ser sem limite. Em Deus, não há partes, nem potencialidades, nem acréscimos. Ele não tem perfeições — Ele é a perfeição. A ausência de composição é, portanto, a expressão suprema de plenitude.

Quando contemplo essa ideia, percebo que toda composição implica limitação. O composto depende de causas: precisa de matéria e forma, de ato e potência, de essência e existência. A simplicidade divina, ao contrário, é pura independência. Deus não é composto de forma e matéria — logo, não é corpo. Não é composto de essência e ser — logo, é necessário. Não é composto de gênero e diferença — logo, é singular. Não é composto de sujeito e acidente — logo, é imutável.

Essas negações sucessivas — tão características do método tomista — não empobrecem a ideia de Deus; purificam-na. Eliminam toda limitação, até restar apenas o Ato puro. O intelecto humano, acostumado ao composto, só compreende o simples por negação. É um caminho de desapego intelectual. Quanto mais retiro o que é imperfeito, mais me aproximo do que é perfeito.

Mas há uma positividade escondida nesse processo. Porque ao negar em Deus a composição, afirmo n’Ele a plenitude do ser. Tudo o que nas criaturas aparece como qualidade separada — bondade, sabedoria, justiça — em Deus é uma única realidade. Ele é a bondade mesma, a sabedoria mesma, a justiça mesma. A multiplicidade dos nomes não divide o Ser; apenas expressa nossa incapacidade de apreendê-lo em sua totalidade.

Essa plenitude simples é também a raiz da felicidade divina. Deus não se move, porque nada lhe falta. Sua vida é ato puro de intelecção e amor — ato em que o sujeito, o objeto e o ato são um só. Ele conhece-se conhecendo o Ser; ama-se amando o Ser. A simplicidade é a eternidade vivida como presença sem carência. Por isso, o tempo não o toca. O que para nós é sucessão, n’Ele é permanência.

No entanto, essa simplicidade não é isolamento. O Ato puro, sendo plenitude, é difusivo. A simplicidade gera abundância. Porque o ser, sendo o bem, tende naturalmente a comunicar-se. É por isso que o mundo existe: a simplicidade divina transborda em criação. O Uno é fecundo. O amor, sendo simples, é criador. Tudo o que é múltiplo existe porque o Simples quis partilhar o ser.

Quando percebo isso, compreendo que a simplicidade de Deus não é estática, mas viva. É uma unidade dinâmica, não porque mude, mas porque tudo contém. É o ponto absoluto em que todas as perfeições coincidem sem se misturar. O universo inteiro é apenas o eco dessa coincidência. O tempo, a forma, a matéria — tudo são modos de participação na plenitude imóvel.

A simplicidade divina é também o modelo da santidade. Ser santo é tornar-se simples, unificado no amor, livre das contradições interiores. A alma, dividida entre o querer e o ser, só encontra paz quando retorna à unidade. “Ser perfeito como o Pai é perfeito” — é o convite de Cristo à simplicidade do Ser.

No fim, a simplicidade de Deus é a medida de toda realidade. O composto é verdadeiro enquanto participa do Simples. O mutável é belo enquanto reflete o Imutável. O múltiplo é bom enquanto aponta para o Uno. Toda hierarquia do ser é apenas a gradação da proximidade com a simplicidade absoluta.

E então percebo que tudo o que busco — a verdade, o amor, a beleza — são nostalgias do simples. O pensamento quer o verdadeiro sem mistura; o coração quer o amor sem divisão; a alma quer o ser sem sombra de não-ser. Tudo converge para o Simples. Porque Ele é o fim de toda multiplicidade e a origem de toda unidade.

Contemplar o Simples é, de certo modo, tornar-se simples. A mente, ao pensar o Ser absoluto, é purificada de suas dispersões. A inteligência se aquieta, a vontade se ordena, o coração se pacifica. O silêncio da contemplação não é ausência de som, mas harmonia reencontrada. O ser humano, complexo e fragmentado, reencontra-se na unidade do Ato puro.

E compreendo, enfim, que a simplicidade de Deus não é apenas uma doutrina; é uma experiência. É o instante em que o intelecto, tendo percorrido o labirinto do composto, encontra o centro. É o momento em que o pensamento se dissolve na presença. A teologia termina na simplicidade porque o amor termina no Uno.

ARTIGO XIII – Criação e Origem do Tempo

Questão I – O ato criador como comunicação do ser

Sempre que penso na criação, percebo que a dificuldade maior não está em acreditar que o mundo tenha sido feito, mas em compreender o que “fazer” significa quando dito de Deus. Porque o nosso verbo “criar” está carregado de imagens humanas: mãos que moldam, tempo que passa, matéria que resiste. Mas Deus não trabalha como o artífice; Ele comunica. Criar, em seu sentido metafísico, é doar o ser — e doar sem perda. A criação não é fabricação, é participação. O universo inteiro é o eco de um verbo pronunciado no silêncio eterno.

Essa ideia, tão simples, é também a mais profunda. Porque se tudo o que existe recebeu o ser, então nada existe por si. Tudo é efeito, vestígio, símbolo. A criação é a dependência universal tornada realidade. Não há criatura que não seja, a cada instante, chamada do nada à existência. O ato criador não é evento passado, é permanência presente. O mundo não “foi criado”; ele “está sendo” criado. O ser é dom incessante.

Santo Tomás explica que a criação não é mudança, mas relação. Porque mudança supõe matéria prévia, e a criação é ex nihilo, a partir do nada. O nada, porém, não é um “algo vazio”; é a negação total de ser. Por isso, criar significa dar existência onde não havia sequer possibilidade. Só o Ser subsistente pode fazê-lo, porque só Ele possui o ser por essência. O ato criador é o reflexo da plenitude: o Ser que se comunica porque é abundância.

Ao meditar nisso, compreendo que a criação não acrescenta nada a Deus. Ele não se torna mais pleno por criar, pois já é plenitude. A criação é fruto de liberalidade, não de necessidade. Deus cria não para completar-se, mas para compartilhar. E o que Ele compartilha é o ser — a maior de todas as dádivas. O amor divino é ontológico: amar é fazer existir.

Tudo o que existe é, portanto, efeito de um amor criador. Não há ser que não seja amado, pois existir é ser querido pelo Ser. A existência é a assinatura do amor. O universo inteiro é uma oração pronunciada por Deus no idioma do ser. Cada coisa, cada criatura, cada átomo é um “sim” à vontade do Ato puro.

Mas essa relação criatural não é simétrica. O homem, tentado pela autonomia, deseja ser causa de si. Contudo, quanto mais busca libertar-se do Ser, mais dependente se torna. Porque negar a origem é afirmar o vazio. A verdadeira liberdade está em reconhecer a dependência. Criatura livre é aquela que consente em ser efeito.

Essa compreensão dissolve o orgulho metafísico da modernidade. Não há substância que baste a si. A autossuficiência é ilusão. Tudo é sustentado. Tudo é dom. O ser é dado — e dado de modo tão contínuo que esquecemos de percebê-lo. É como o ar: invisível, mas indispensável. O universo respira Deus.

E quando vejo o mundo por essa luz, tudo se transfigura. A criação deixa de ser um evento distante para tornar-se presença viva. O sol que nasce, o rio que corre, o pensamento que se forma — tudo é criação em ato. O cosmos é a epifania da liberalidade divina. Não há um instante sequer em que o ser não esteja sendo comunicado.

Criação, então, é o outro nome da misericórdia. É o Ser que, podendo permanecer só, escolhe partilhar. O nada não é vencido pela força, mas pelo amor. E o tempo — essa corrente que arrasta as criaturas — é apenas a tradução, em ritmo, do eterno gesto criador.


Questão II – Tempo, eternidade e dependência: a continuidade do criado no Ato puro

Compreender a criação é também compreender o tempo. Porque o tempo nasce com o mundo; não o precede. Antes da criação, não havia “antes”. A eternidade não é tempo infinito, é ausência de tempo. O ato criador é o ponto em que a eternidade toca o nada e o converte em ser. O tempo é, portanto, a sombra móvel da eternidade.

Sempre me impressionou essa ideia: o tempo não é uma substância, mas uma relação. Ele mede a mutabilidade das criaturas. O que muda está no tempo; o que é puro ato está fora dele. Deus, sendo simples e imutável, não “age” no tempo como nós. Seu ato criador é único e eterno, mas seus efeitos são temporais. A multiplicidade dos instantes é a repercussão do único gesto divino.

Assim, a eternidade não está “antes” do tempo; está “dentro” dele, como presença sustentadora. O tempo não flui fora de Deus, mas n’Ele. O universo, com toda sua história, não é uma sequência isolada, mas um movimento interior à vontade eterna. O Criador não observa o tempo de fora — Ele o contém.

Essa visão muda tudo. Porque o tempo, que parecia sinal de distância, torna-se vestígio de intimidade. Cada segundo é um prolongamento da vontade criadora. A história não é acidente; é desdobramento. O passado, o presente e o futuro são modos diferentes da mesma dependência. O ser que flui é sempre sustentado pelo Ser que permanece.

Mas o homem, prisioneiro do instante, esquece essa continuidade. Ele imagina o tempo como sucessão autônoma, e a eternidade como ausência. Mas o que chamamos de “presente” é o lugar onde o eterno se manifesta. O presente é a ponta visível da eternidade. Todo momento verdadeiro é epifania do Ato puro.

Santo Tomás ensina que a conservação é a continuação da criação. O mundo não foi apenas trazido à existência; é continuamente sustentado nela. Sem o Ato, voltaria ao nada. Isso significa que a criação nunca cessou. Deus cria ao conservar. E conservar não é vigiar — é fazer ser. O universo depende, a cada instante, de um ato que não se repete porque não se interrompe.

O tempo, então, é o modo como a criatura participa do ser de maneira gradual. A eternidade é o modo como o Ser subsiste sem sucessão. A criatura vive no fluxo porque é composta de potência e ato; Deus vive na simultaneidade porque é puro ato. O tempo é o testemunho da incompletude do criado; a eternidade, a plenitude do Criador.

Contemplar isso é libertar-se do desespero moderno diante do tempo. O homem secular vive sob a tirania do relógio porque perdeu o sentido da eternidade. O tempo, sem Deus, torna-se prisão; com Deus, é peregrinação. Cada instante ganha valor porque participa do eterno. O agora é o sacramento do Ser.

Percebo, então, que a origem do tempo não é apenas cosmológica, mas teológica. O tempo começou quando o amor quis ser comunicado. O “haja luz” do Gênesis é o nascimento simultâneo do mundo e da duração. O tempo é o ritmo da generosidade divina. E cada instante, por mais efêmero, é sustentado por um amor que não passa.

A dependência do mundo em relação a Deus não é humilhação, é segurança. Porque o que depende do Eterno não perece no nada. O tempo, sustentado pelo Ser, é caminho, não abismo. A morte, dentro dessa visão, deixa de ser fim e passa a ser passagem: do fluxo à permanência, do vir-a-ser à presença plena.

E quando compreendo isso, vejo que toda a criação é uma liturgia. O tempo é o cântico que a criatura entoa ao Ser. Cada segundo é um “amém” que a matéria pronuncia ao Criador. O universo é oração em movimento. E o homem, ao compreender o tempo, reencontra a eternidade que o habita.

Assim, o ato criador e o tempo não são realidades separadas: são o diálogo entre o Eterno e o efêmero. O Ser fala, e o tempo é o eco. A criação é o verbo de Deus; o tempo, a sua respiração. Tudo o que passa é sustentado pelo que permanece. E quando o homem reconhece isso, cessa de temer o tempo — porque descobre que o tempo, em sua essência, é apenas o modo como o Amor se revela aos que ainda não sabem ser eternos.

ARTIGO XIV – Providência e Liberdade Humana

Questão I – O governo divino e a ordem da criação: o problema do mal e da permissão

Sempre me perguntei como um mundo tão ordenado pela inteligência divina pode conter tanto desvio, tanta dor, tanto absurdo aparente. Se Deus governa tudo, como permitir o mal? Se nada escapa à Sua vontade, onde se insere o erro, o acaso, a injustiça? E quanto mais reflito, mais percebo que o problema nasce da nossa dificuldade em compreender a natureza do governo divino. Porque o homem pensa o governo como controle — mas Deus governa como causa. Ele não manipula, mas sustenta. Não corrige de fora; move de dentro.

A providência, em seu sentido metafísico, é o plano eterno do Ser em relação ao seu efeito. Não é vigilância, mas sabedoria em ato. Santo Tomás define-a como “a razão da ordem das coisas ao fim”. Isso quer dizer que Deus, ao criar, ordena tudo segundo um propósito. Nada está fora dessa ordem, nem mesmo o que parece resistir a ela. O mal, por mais real que seja em seus efeitos, é sempre parasitário: ele depende do bem para existir, como a sombra depende da luz.

O mal não tem substância; é privação. E privação só existe em algo que deveria ser pleno. Por isso, o mal não é criatura, é defeito na criatura. Deus o permite, mas não o quer. Permitir, no sentido tomista, não é aprovar, mas respeitar a causalidade das causas segundas. O Ser, sendo plenitude, comunica liberdade às suas obras. E onde há liberdade, há possibilidade de desordem. O mal é o preço da autonomia criada.

Mas esse preço não é inútil. Porque a providência é sábia o bastante para integrar o desvio no caminho do fim. O que é permitido, é também previsto, e o que é previsto é ordenado ao bem último. Assim, mesmo o mal, sem deixar de ser mal, é transformado em ocasião de bem maior. A história, vista da eternidade, não é o caos que parece ser. O mal não triunfa; apenas coopera, involuntariamente, com o bem.

Vejo nisso uma das marcas mais profundas da onipotência divina: não a de impedir o erro, mas a de fazer dele instrumento. O poder de Deus não é o da imposição, mas o da sabedoria que tudo integra. Ele não destrói o mal; o transcende. O permite para revelar um bem mais alto: a liberdade, a redenção, o amor que se prova. O mal é o campo onde o bem se manifesta como escolha.

A providência, portanto, não é destino, mas ordem viva. E essa ordem inclui o inesperado. O acaso, para nós, é apenas a intersecção de causas cujas conexões ignoramos. Para Deus, tudo é previsto porque tudo é presente. Sua eternidade não observa o tempo; a contém. Por isso, nada escapa ao Seu olhar — e, ao mesmo tempo, nada é forçado por Ele.

Há um mistério de delicadeza nessa relação. Deus, sendo causa primeira, move as causas segundas sem violentá-las. Ele é o princípio do ser, e o ser inclui a liberdade. Sua ação não é concorrência, mas doação. Ele faz com que cada coisa aja conforme sua natureza. E quando essa natureza é racional, Ele a move de modo livre. O governo divino é a arte de permitir que cada ser seja o que é.

Isso me faz compreender que a providência não anula o trágico, mas o atravessa. O sofrimento do justo, a vitória do injusto, a aparente indiferença do cosmos — tudo isso é real, mas não é definitivo. O plano divino não se mede pelo tempo, mas pelo ser. O mal é ruído; o bem é sinfonia. No instante, há dissonância; na eternidade, há harmonia.

O homem, ao contemplar o mal, se indigna — e tem razão. Mas sua indignação é, paradoxalmente, prova da providência: só se revolta contra a injustiça quem traz em si a ideia do justo. O mal é escândalo apenas porque há um bem absoluto a partir do qual o medimos. E esse bem, sendo transcendente, é o selo da presença divina no coração humano.

Assim, o problema do mal não destrói a fé na providência; a aprofunda. Porque me obriga a perceber que o mundo é sustentado por um amor que permite o risco. Deus, sendo amor, não cria marionetes. Ele quer filhos. E filhos só existem onde há liberdade. A permissão do mal é o espaço do amor provado.


Questão II – A liberdade humana e a concórdia entre causa primeira e causas segundas

A liberdade é, talvez, o ponto em que o mistério da criação se torna mais íntimo. Porque se Deus é causa de tudo, como posso eu ser causa de meus atos? Se tudo depende do Ser, como pode algo ser “meu”? A resposta de Santo Tomás é tão simples quanto abissal: Deus é causa do ser das ações livres, mas não é causa da sua malícia. Ele dá o poder de agir, não o abuso desse poder. A causa primeira não destrói as segundas; as faz ser.

Quando ajo livremente, exerço uma potência que não é minha por origem, mas que me é dada. Minha vontade é real, mas derivada. Eu não sou uma fonte autônoma de ser, mas um rio que flui da fonte. A causalidade divina é o manancial que me permite agir. E é justamente por isso que minha liberdade é real: porque minha causa primeira não compete comigo, mas me sustenta. Se Deus retirasse o ser, minha liberdade cessaria.

Essa concórdia entre providência e liberdade é uma das mais belas intuições da metafísica tomista. Deus não está fora de meus atos, mas neles, como causa do ser que age. E, no entanto, o ato é meu, porque a determinação da forma pertence à minha vontade. O mesmo fogo que dá calor pode iluminar ou queimar — o ser é o mesmo, mas o uso varia. Assim, a liberdade é participação da causalidade divina em modo racional.

O erro dos deterministas é imaginar Deus como força que empurra o homem de fora. O erro dos libertários é imaginar o homem como força que se basta. A verdade está no meio: Deus é causa do ser da liberdade, e a liberdade é causa do modo como esse ser se exerce. A providência e a liberdade são concêntricas, não contrárias. O círculo maior contém o menor, sem anulá-lo.

Quando ajo, portanto, ajo em Deus, mas não como instrumento inconsciente. A graça move a vontade sem destruí-la, porque a graça é o ser em forma de amor. Deus me move amando, e o amor não obriga. A vontade humana, tocada pelo amor divino, conserva sua iniciativa — mas essa iniciativa é já dom. A liberdade é o modo humano de participar do amor criador.

Percebo, então, que a liberdade não é ausência de dependência, mas dependência consciente. Ser livre é consentir com o ser. A rebeldia, ao contrário, é negação da própria fonte — é suicídio ontológico. O homem que quer ser absoluto destrói o que o sustenta. Por isso, a verdadeira liberdade é obediência. Obedecer não é submeter-se, é participar da ordem que me cria.

Essa concórdia é também a chave para compreender a história. Tudo o que ocorre, ocorre dentro da providência, mas não sem a liberdade humana. As ações livres tecem o tempo, e Deus, sem violentá-las, integra-as no plano eterno. O mal, fruto da vontade desviada, é transformado em ocasião de bem. A liberdade é o drama da criação, e a providência, sua direção.

O homem moderno, orgulhoso de sua autonomia, separou-se dessa harmonia. Ele vê na providência uma ameaça à liberdade e, na liberdade, uma negação de Deus. Mas a experiência mostra o contrário: quanto mais me entrego à vontade divina, mais livre me torno. Porque o pecado, longe de libertar, escraviza. O vício é repetição; o amor, criação.

No fim, percebo que a liberdade e a providência não são dois poderes em conflito, mas duas expressões do mesmo amor. Deus, ao criar, quis parceiros, não servos. Sua onipotência é generosa o bastante para incluir a autonomia. O mundo é obra de uma liberdade que chama outras liberdades a existir. E a história humana é o diálogo entre o Criador e suas criaturas, onde até o silêncio do homem é ouvido e integrado no cântico universal.

A providência é o fio invisível que une todos os atos à sua origem. A liberdade é o movimento consciente desse mesmo fio. Uma não anula a outra; ambas são faces da mesma realidade: o ser em comunhão.

E quando finalmente compreendo isso, tudo se reconcilia. O destino deixa de ser prisão, o tempo deixa de ser ameaça, o mal deixa de ser escândalo. Tudo volta ao Uno. O homem livre é aquele que confia — porque sabe que sua liberdade é sustentada pela fidelidade do Ser. E Deus, o absolutamente livre, é também o absolutamente fiel: Aquele que move todas as coisas sem as escravizar, e que, no fim, atrai todas as coisas a Si, para que tudo o que é criado possa dizer, com serenidade e júbilo: “Tudo está cumprido.”

 

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