Nota
Introdutória sobre o Uso da Obra
Esta
tradução integral da obra Filosofia da Revelação, de Friedrich
Wilhelm Joseph Schelling, foi realizada a partir do texto
original, respeitando com rigor a ordem, a linguagem e o sentido filosófico do
autor. Não se trata de adaptação, resumo ou comentário, mas de restituição fiel
e fluida do pensamento, com o único propósito de tornar acessível, em língua
portuguesa, uma das culminâncias da metafísica moderna.
A
presente edição é de uso exclusivamente acadêmico e
filosófico, destinada ao estudo, reflexão e preservação da
tradição idealista alemã. Toda reprodução, venda ou utilização comercial deste
material é estritamente proibida. Seu conteúdo deve ser compreendido como bem
intelectual partilhado para fins de formação e investigação, nunca como produto
de mercado.
A
tradução aqui oferecida não pretende substituir as versões críticas, mas
complementá-las por meio de uma leitura integral, contínua e coerente com o
espírito original da obra. Seu objetivo é permitir que o leitor percorra, sem
interrupções, o movimento interno do pensamento schellinguiano — do fundamento
ao amor, do ser à revelação, do tempo à eternidade.
Este
trabalho foi conduzido sob a premissa de que a fidelidade não consiste em
literalidade servil, mas em transparência espiritual: conservar a respiração do
autor através de uma linguagem que se mantenha viva. A tradução é, portanto,
ato de contemplação e de escuta — o esforço de compreender o absoluto não
apenas como objeto de estudo, mas como presença que fala.
Qualquer
uso deste texto deve conservar o respeito pela integridade da obra, pela
intenção original de seu autor e pela finalidade filosófica de sua tradução.
Ler Schelling é penetrar um sistema que, mais do que explicar o mundo, procura
restituir-lhe o sentido. E traduzir Schelling é participar desse mesmo movimento:
o ser que se revela pela palavra e retorna, no silêncio, à sua origem.
A
Filosofia como Retorno: entre o Ser, o Amor e a Revelação
Quando
decidi percorrer as vinte e cinco lições de Schelling, percebi logo que não se
tratava de um sistema filosófico no sentido moderno, mas de uma jornada em
direção ao princípio. A Filosofia da Revelação não é um tratado que se
lê, mas uma travessia que se vive. Cada lição é uma etapa do ser em direção a
si mesmo, um movimento em que a razão, cansada de buscar fora, começa a
reconhecer que tudo o que procura já está dentro. É uma descida e uma ascensão,
um ir e vir entre a luz e o fundamento.
Schelling
não fala como quem pretende ensinar; fala como quem retorna. Ele mesmo parece
ter compreendido que a filosofia, se permanecer apenas no discurso, morre
sufocada no próprio raciocínio. É preciso que a palavra se converta em
respiração. E foi isso que ele fez: transformou o logos em pneuma. As primeiras
lições falam do ser que se oculta, da potência silenciosa que repousa em si
antes de qualquer mundo. Há nelas um rumor anterior à criação, como se o
próprio Deus respirasse antes de falar.
Mas,
aos poucos, a luz começa a se mover — o ser se divide para poder se conhecer. A
criação é esse momento em que a unidade se abre e, abrindo-se, cria o espaço da
consciência. O homem surge como o espelho onde o absoluto quer ver o próprio
rosto. E é aí que a liberdade aparece, não como dom, mas como abismo. Pois ser
livre é poder dizer não à origem, é poder interromper a harmonia. A queda é,
então, inevitável; e a história, uma longa tentativa de reconciliação.
Schelling
não trata o mal como algo estranho à divindade, mas como sombra necessária da
liberdade. O amor, para ser real, deve correr o risco da recusa. É nesse risco
que o ser se torna pessoal. E é também aí que a filosofia deixa de ser
especulação e se converte em drama. Cada lição posterior é o desenrolar dessa
tensão: o Deus que cria, o homem que cai, o Espírito que resgata. O absoluto
deixa de ser pura substância e se torna história.
A
metade da obra é o ponto da encarnação — o instante em que o eterno entra no
tempo. Tudo o que Schelling pensou antes converge ali: o verbo que se faz
carne, a luz que se faz visível, o ser que se torna rosto. Não é metáfora, é
ontologia viva. O mundo inteiro é reunido naquele ponto, onde a ideia se
entrega à dor e o infinito experimenta a finitude. A cruz, para Schelling, não
é símbolo, é estrutura: é o lugar em que o ser se reconcilia consigo mesmo, o
eixo que sustenta o universo entre o amor e o sofrimento.
As
lições seguintes mergulham no Espírito, e com elas o pensamento começa a
respirar novamente. O Espírito é a vida da revelação, o vínculo invisível que
transforma o acontecimento em consciência. É Ele quem recolhe o que foi
disperso, quem interioriza o que antes era externo. Tudo o que o Pai fundou e o
Filho revelou, o Espírito habita. E nesse habitar está a sabedoria: a revelação
deixa de ser fato e torna-se vida interior. É o momento em que o divino deixa
de ser distante e passa a ser íntimo.
Quando
Schelling chega à Trindade, não o faz como teólogo, mas como metafísico do
real. Ele compreende que o absoluto, para ser vivo, deve conter em si a relação
— o ser, a expressão e o amor que os une. A unidade sem relação seria morte; a
multiplicidade sem retorno, caos. A Trindade é, então, o coração pulsante do
ser. Tudo o que existe repete sua forma: o conhecer, o querer e o amar; o
fundamento, o verbo e o espírito. O mundo, o homem e Deus refletem o mesmo
ritmo: distinção sem ruptura, unidade sem fusão.
Nas
lições vigésima quarta e vigésima quinta, Schelling volta-se ao próprio sentido
da filosofia. Ele a confronta com a teologia positiva, mostrando que ambas são
necessárias e, ao mesmo tempo, insuficientes quando separadas. A teologia
guarda o fato, mas se perde na letra; a filosofia busca o sentido, mas se perde
no orgulho. Entre ambas está o Espírito, que une fé e razão num mesmo gesto. A
revelação, vista por dentro, é o ponto de conciliação entre o saber e o crer. É
a luz que compreende o que a fé adora.
No
fim, quando fala do “fim da filosofia”, Schelling não propõe uma renúncia, mas
uma transfiguração. A razão não é abolida, mas convertida em contemplação. A
filosofia não termina, amadurece. O que era conceito torna-se vida; o que era
análise, torna-se comunhão. O saber deixa de querer explicar e passa a
agradecer. Nesse ponto, a filosofia é purificada pela fé, e a fé iluminada pela
filosofia. O que resta é o amor — o mesmo amor que estava no princípio e que
agora se reconhece em tudo.
Ao
percorrer essas vinte e cinco lições, compreendi que Schelling não queria
fundar um sistema, mas encerrar um ciclo. Seu pensamento começa no fundamento e
termina no silêncio; começa na essência e termina no rosto. O que ele chama de
revelação é o ser voltando a si através do homem. Cada ideia, cada imagem, cada
tensão é o movimento da divindade em busca de sua própria consciência. No
homem, Deus pensa; na revelação, Ele se lembra. E na filosofia, Ele volta a
respirar.
O
que há de mais grandioso nesse percurso é o modo como ele reconcilia os
contrários. Nada é negado: o finito é elevado, o tempo é incluído, o erro é
redimido. A revelação é a resposta divina ao próprio risco da liberdade. E
quando tudo retorna, não o faz como antes — o mundo volta a Deus transformado,
enriquecido pela experiência do amor. O absoluto, que no princípio era ser,
agora é consciência de ser.
Por
isso, a Filosofia
da Revelação não é livro para ser explicado, mas vivido. Ela não
fala apenas de Deus, mas do modo como Deus fala. E esse modo é o mesmo do
coração: silêncio que pensa, luz que ama. Em cada página, sente-se que o
pensamento quer tornar-se oração, e a oração, pensamento. O logos e o pneuma já
não se distinguem. Tudo respira um mesmo ritmo: a eternidade pronunciando o
tempo para poder amá-lo.
Termino
essa leitura com a impressão de que Schelling não conclui — recolhe. Seu fim é
o retorno. O ser volta ao seu princípio, e o silêncio torna-se a última
palavra. A revelação não é o contrário da filosofia, mas o seu destino. Tudo o
que a razão buscou, a revelação concede; tudo o que a fé esperou, a filosofia
confirma. No fim, não há mais teólogo nem filósofo, mas apenas o homem — esse
lugar em que o divino se lembra de si e, lembrando-se, ama.
E
assim compreendo que o círculo da revelação não é uma doutrina, mas uma
respiração: o ser saindo de si, o amor se dando, o espírito retornando. A luz
se revela no compreender, e o silêncio, no fim, é apenas o amor que se escuta.
ÍNDICE –
Filosofia da Revelação
(Philosophie der Offenbarung)
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling
Tradução integral de Jardel Almeida
Introdução
A necessidade de uma filosofia da revelação.
A limitação da razão e a abertura ao absoluto.
O sentido da revelação como ato interior da razão.
A unidade entre fé e saber.
Primeira
Parte – Fundamentos da Revelação
Lição I – O
conceito de revelação e sua possibilidade racional.
Lição II – A distinção entre revelação natural e sobrenatural.
Lição III – O ser divino como fundamento da possibilidade da revelação.
Lição IV – O eterno e o temporal: o ponto de intersecção entre Deus e o
mundo.
Lição V – A liberdade divina e o ato de criação.
Lição VI – A natureza como revelação exterior de Deus.
Lição VII – O homem como imagem interior da divindade.
Lição VIII – A queda como interrupção da transparência do ser.
Lição IX – O problema do mal e a necessidade da redenção.
Lição X – A revelação como restauração da unidade perdida.
Segunda
Parte – A História da Revelação
Lição XI – O mito e
a profecia como formas preparatórias.
Lição XII – A religião dos antigos e o seu caráter simbólico.
Lição XIII – O monoteísmo hebraico e a consciência histórica da
revelação.
Lição XIV – O papel da Lei e dos Profetas na preparação do absoluto.
Lição XV – A plenitude dos tempos: a encarnação como evento central.
Lição XVI – O Cristo histórico e o Cristo eterno.
Lição XVII – A ressurreição e a vitória do espírito sobre a natureza.
Lição XVIII – A Igreja como continuidade viva da revelação.
Lição XIX – A revelação e a história universal.
Terceira
Parte – A Forma Filosófica da Revelação
Lição XX – A
revelação como sistema: unidade do ser, do saber e do agir.
Lição XXI – A liberdade como condição última da verdade revelada.
Lição XXII – O Espírito Santo como princípio de interiorização.
Lição XXIII – A trindade como estrutura ontológica da revelação.
Lição XXIV – A filosofia da revelação e sua distinção da teologia
positiva.
Lição XXV – A revelação e o fim da filosofia.
Epílogo
O retorno do ser ao seu princípio.
A luz que se revela no compreender.
O silêncio do absoluto como última palavra.
Introdução
O
que chamo aqui de Filosofia da Revelação é o termo natural e
necessário de toda a filosofia que busca compreender o real em sua totalidade.
Pois se o pensamento quer ser verdadeiramente absoluto, não pode permanecer
apenas no domínio do ser enquanto tal; deve também compreender a maneira pela
qual o ser se manifesta — e essa manifestação suprema é a revelação. Toda
filosofia que não chega à revelação permanece inacabada; toda revelação que não
é compreendida filosoficamente fica cega e desfigurada.
A
tarefa que me proponho não é, pois, a de inventar uma nova teologia, mas a de
mostrar que a revelação, longe de ser contrária à razão, é o seu cumprimento. A
razão humana, quando se eleva até a consciência de sua própria origem, descobre
que o ser absoluto não é uma essência imóvel, mas um ato — um ato de
autodoação, de comunicação. A filosofia, se for fiel ao que é, deve portanto
tornar-se filosofia da revelação, porque o ser em si mesmo é revelador.
Enquanto
a filosofia se mantém no plano da mera natureza, ela contempla a necessidade do
ser; quando se eleva à liberdade, contempla o espírito; mas somente na
revelação ela atinge o ponto em que a liberdade e a necessidade se reconciliam
na pessoa. A natureza é o fundamento; o espírito, a forma; a revelação, a
plenitude. Assim como o universo sensível manifesta o poder criador de Deus, a
revelação manifesta o seu amor consciente. A filosofia que ignora essa
manifestação última não alcança a unidade do todo.
A
filosofia moderna percorreu um longo caminho para chegar a esse reconhecimento.
Depois de ter tentado fundar tudo sobre o pensamento, descobriu que o
pensamento, isolado de seu princípio, se dissolve no nada. O idealismo, que
pretendia fazer do eu o centro do mundo, encontrou-se diante do abismo da
subjetividade. Era necessário reencontrar o absoluto, não como ideia, mas como
realidade viva. Esse reencontro só é possível se admitirmos que o absoluto se
revela — que Ele próprio quer ser conhecido.
A
revelação não é, portanto, um fato exterior, mas uma necessidade interior do
próprio ser divino. O absoluto, sendo amor, não pode permanecer oculto. O amor
é a força que o leva a comunicar-se. A criação é já uma forma de revelação, mas
ainda incompleta; nela o ser se manifesta sem consciência. Só na revelação
propriamente dita o ser absoluto se torna consciente em sua manifestação. O ápice
da criação é, assim, a liberdade — e o ápice da liberdade é o retorno da
criatura à sua origem por meio do conhecimento e do amor.
O
que se chama revelação histórica — as teofanias, os profetas, o Cristo — é
apenas o reflexo temporal dessa necessidade eterna. A filosofia da revelação
não nega o acontecimento histórico, mas o compreende a partir de sua raiz
ontológica. Ela mostra que o fato tem fundamento, que o evento tem sentido. O
que na história aparece como contingência é, na verdade, o desdobramento
necessário da essência divina. O cristianismo é a forma visível de uma verdade
eterna, o símbolo histórico de um princípio metafísico: o Deus que se dá.
A
filosofia, quando se torna filosofia da revelação, não abandona o rigor do
pensamento; ao contrário, o cumpre. Pois pensar o absoluto sem compreender sua
manifestação é permanecer fora dele. A revelação é o meio pelo qual o
pensamento alcança o real e o real se torna transparente ao pensamento. O que
era dualidade — ser e conhecer, infinito e finito, Deus e mundo — torna-se
relação viva. O verdadeiro sistema filosófico é aquele que inclui a revelação
como seu coroamento, não como apêndice teológico, mas como essência mesma do
real.
Essa
obra, portanto, não pretende provar a revelação como quem demonstra um teorema,
nem justificá-la como quem defende um dogma. Pretende mostrá-la como o que é: o
ato supremo do ser. A filosofia não inventa a revelação; reconhece-a. E
reconhecê-la é já participar dela. O pensar humano, quando atinge o ponto em
que compreende que o ser é amor, entra na própria luz da revelação. Nesse
instante, o saber deixa de ser busca e se converte em gratidão.
O
método desta filosofia não será o dedutivo nem o puramente histórico. Pois não
se trata de derivar a revelação de princípios lógicos, nem de recolher fatos
externos, mas de compreender a revelação em sua necessidade interior.
Partiremos do ser absoluto como princípio de toda realidade, mostraremos que
nele há uma potência de revelação, e seguiremos o desenvolvimento dessa
potência desde a criação até o espírito. Assim se delineia o caminho: do
fundamento ao ato, do ato à consciência, da consciência ao amor.
A
revelação é o ponto em que o ser se torna plenamente consciente de si. O
absoluto, que na natureza é poder e no espírito é liberdade, é na revelação
amor. O amor é a última palavra da filosofia, como é o primeiro movimento de
Deus. Por isso, toda ciência que não culmina no amor está incompleta. E todo
saber que não se torna vida é vão. A filosofia da revelação é, assim, o esforço
final da razão para compreender o amor e, compreendendo-o, ser transformada por
ele.
Não
é possível compreender a revelação permanecendo fora dela. O pensamento deve
entrar em sua própria origem. Aquele que filosofa sobre a revelação deve
fazê-lo não como espectador, mas como participante. Pois a revelação não é
objeto, é presença. Ela não se mostra aos que a analisam, mas aos que a
recebem. No entanto, é precisamente essa receptividade ativa que constitui o
mais alto exercício da razão: o saber que acolhe o ser.
Este
curso, portanto, não é apenas doutrina, mas caminho. Nele, procurarei mostrar
que o espírito humano, ao compreender a revelação, reencontra o sentido de sua
própria existência. O homem não é um acidente no cosmos, mas o lugar onde o
absoluto se reconhece. Toda a criação converge nele, e nele Deus se torna
consciente de si. A revelação é o momento dessa consciência recíproca — Deus no
homem, o homem em Deus.
Se
conseguirmos compreender isso, a filosofia terá alcançado o seu termo. Pois seu
fim não é construir sistemas, mas restaurar a unidade perdida entre saber e
ser. Quando o pensamento reencontra a vida, o círculo se fecha. E nesse ponto,
que é também o ponto de partida, começa a verdadeira sabedoria: aquela que não
se opõe à fé, mas a ilumina; aquela que não pretende explicar o mistério, mas
viver nele.
A
filosofia da revelação é, em suma, a reconciliação do espírito consigo mesmo.
Nela, a razão reconhece que sua própria luz vem de uma fonte que a ultrapassa,
e essa fonte é o amor eterno que se revela. Por isso, o seu fim não é o
silêncio da ignorância, mas o repouso da contemplação. E quando a filosofia
chegar a esse repouso, compreenderemos que toda busca foi, desde o início, uma
recordação do que já possuíamos: a presença do divino no coração do ser.
Primeira
Lição – O conceito de revelação e sua possibilidade racional
A filosofia, em seu esforço por
compreender o ser, chega inevitavelmente a um ponto em que toda dedução se
detém. O pensamento, em sua pura imanência, esgota o que é possível construir a
partir de si mesmo, e encontra diante de si um limite que não é apenas lógico,
mas ontológico. Esse limite não é a negação do pensar, mas o vestígio de uma realidade
que o pensamento não produz, mas à qual ele pertence desde o princípio.
Chamamos a esse encontro — onde o finito descobre a presença do infinito — o
limiar da revelação.
A revelação, por conseguinte,
não é uma intrusão arbitrária na ordem do saber, nem uma exceção imposta ao
curso da razão. Ela é, ao contrário, o cumprimento da própria razão, o seu ato
supremo. Quando a razão reconhece o seu ponto de origem como algo que não lhe é
dado por si mesma, ela não abdica do pensar: ela o consuma. Pois o que se
revela à razão não lhe é estranho; é o próprio fundamento que a torna possível.
Deus não é o objeto de uma
dedução, mas o princípio que possibilita toda dedução. Por isso, a revelação
não deve ser concebida como uma comunicação externa entre dois seres separados
— Deus e o homem —, mas como o despertar interior do princípio divino no
espírito humano. O que se chama “revelação” não é, em última instância, senão o
ser voltando a si mesmo na consciência.
A razão, enquanto se move
apenas em suas formas, está condenada a permanecer em abstrações; mas quando é
tocada pelo absoluto, torna-se viva. É nesse sentido que a revelação não se
opõe à filosofia: ela é a filosofia levada ao ponto em que o saber torna-se
experiência, e a ideia converte-se em presença. Aquele que compreende a
revelação não a explica, mas participa dela.
O erro fundamental das
filosofias modernas consiste em buscar no homem o que só pode provir de Deus. A
consciência humana não é o princípio do ser, mas seu espelho. Tudo o que nela
aparece tem o caráter de derivação. Por isso, toda tentativa de construir o
absoluto a partir do relativo é condenada à esterilidade: o que nasce do finito
jamais alcança o infinito. O que a razão deve fazer não é criar, mas reconhecer
o que já é.
Mas como compreender
racionalmente essa possibilidade de uma revelação? Se a razão é finita, como
pode abrir-se ao infinito sem se dissolver nele? Eis o mistério que a filosofia
da revelação procura decifrar. A razão é finita, sim, quanto à sua forma, mas
infinita quanto à sua origem. O que nela é limitado aponta para o ilimitado que
a sustenta. Assim, quando a razão reconhece seus próprios limites, ela não se
destrói — ela retorna à fonte de onde procede.
A revelação, portanto, não é um
acontecimento externo, datado, que se impõe de fora. É o ato eterno pelo qual o
fundamento absoluto se faz conhecer no tempo. É o ser que, permanecendo o que
é, se manifesta no devir. É o eterno que se comunica ao temporal sem deixar de
ser eterno. Todo instante de verdade é, sob esse aspecto, uma pequena
revelação, uma irrupção do eterno na consciência finita.
Em termos metafísicos,
poder-se-ia dizer que a revelação é a passagem do ser em si para o ser para
nós. Não há dois seres — um oculto e outro manifesto —, mas um único ser que,
permanecendo idêntico a si, se revela em graus diversos de inteligibilidade. A
natureza é o primeiro grau dessa revelação, o homem o segundo, e o espírito que
conhece o absoluto é o terceiro e mais alto.
O mundo não é uma criação
exterior a Deus, mas a expressão de sua vontade de se manifestar. Por isso, a
revelação é o princípio de toda realidade. Tudo o que existe é, em algum grau,
uma revelação de Deus. E é por isso que compreender o mundo é já, em certo
sentido, compreender a revelação. A diferença entre a filosofia da natureza e a
filosofia da revelação é apenas de nível: a primeira trata da manifestação
inconsciente do divino; a segunda, da manifestação consciente e livre.
No homem, a revelação atinge
seu ponto de viragem. Pois nele o fundamento absoluto não apenas se manifesta,
mas se reconhece. O homem é o ponto em que Deus se torna consciente de si no
finito. Através dele, o eterno adquire voz, e o invisível se faz palavra. O que
chamamos “razão” é, portanto, o órgão da revelação.
Mas essa revelação não é
automática, nem garantida. Ela exige liberdade. O ser humano pode tanto
abrir-se à luz quanto fechá-la em si. E aqui começa o drama da história
espiritual: a revelação como dom pode ser acolhida ou rejeitada. A fé é o ato
pelo qual a razão reconhece, sem provas, o fundamento que a sustenta. A
descrença é o fechamento da razão sobre si mesma, a recusa de ver aquilo que a
torna possível.
Assim, a filosofia da revelação
é também uma filosofia da liberdade. Pois apenas o livre pode acolher o
revelado. A revelação não se impõe, ela se oferece; não força, mas convida. E é
precisamente nessa reciprocidade entre o infinito que se dá e o finito que
consente que se estabelece o verdadeiro vínculo entre Deus e o homem.
Por isso, toda filosofia que
ignora a revelação ignora também a liberdade. O que resta é um sistema
mecânico, onde o ser se torna cálculo e o espírito, engrenagem. Só na revelação
— entendida como o evento em que a razão e o ser se reencontram — é que o
pensamento humano se eleva de volta à sua origem e o saber torna-se vida.
Segunda
Lição – A distinção entre revelação natural e sobrenatural
Toda revelação, em seu sentido
mais amplo, é a manifestação do absoluto. A questão, porém, é saber se essa
manifestação se realiza apenas nas formas naturais ou se, além destas, existe
um modo superior, livre e consciente, pelo qual o absoluto se comunica ao
espírito. É esse discernimento que define a diferença entre revelação natural e
sobrenatural.
A revelação natural é a
transparência do divino na criação. A natureza, em todas as suas formas, é o
vestígio da presença de Deus no ser. Ela fala de um princípio que ordena, que
dá forma e medida, e cuja racionalidade silenciosa ressoa nas leis do mundo.
Essa revelação, porém, é muda — ou, melhor dizendo, é simbólica. A natureza
manifesta o poder, mas não a intenção; revela a sabedoria, mas não o amor. É o
rosto de Deus enquanto necessidade, não enquanto liberdade.
A revelação sobrenatural, ao
contrário, é a irrupção da liberdade divina na consciência humana. Ela não se
dá nas formas fixas do cosmos, mas no movimento interior do espírito. Não é o
Deus que cria, mas o Deus que fala; não o princípio que estrutura, mas o que se
comunica. Se a natureza é o verbo ainda velado, a revelação sobrenatural é o
verbo tornado palavra viva.
Ambas, no entanto, procedem do
mesmo fundamento. O erro dos racionalistas foi negar a segunda, pretendendo
reduzir toda a revelação à natureza. O erro dos místicos foi negar a primeira,
rejeitando a ordem do mundo como se fosse obstáculo ao divino. A verdade, como
sempre, está na unidade: o natural e o sobrenatural são dois momentos de uma
única autocomunicação do ser. O primeiro é o modo em que o divino se dá como
fundamento; o segundo, como consciência.
Deus se revela primeiro naquilo
que é necessário, depois naquilo que é livre. A revelação natural é o ser ainda
inconsciente de si; a sobrenatural é o ser que desperta, que se reconhece e se
diz. Por isso, não há ruptura entre ambas, mas gradação. A revelação
sobrenatural não destrói a natural: cumpre-a. O mesmo Deus que fala nas leis do
cosmos é o que fala, mais tarde, na voz dos profetas e na palavra do Verbo
encarnado.
A filosofia da revelação deve,
portanto, reconhecer o contínuo entre natureza e espírito. O mundo visível é a
primeira escritura do divino; o homem é sua leitura viva. Toda a natureza é
figura, mas só o espírito é interpretação. A revelação, tomada em seu conjunto,
é o desdobramento dessa leitura: o absoluto escrevendo-se na matéria e, em
seguida, pronunciando-se na liberdade.
Se o natural é o corpo da
revelação, o sobrenatural é sua alma. No primeiro, Deus se manifesta como
potência; no segundo, como presença. O natural mostra o que Deus faz; o
sobrenatural mostra quem Ele é. Nessa distinção repousa a diferença entre a
sabedoria e o amor: a sabedoria ordena o mundo, o amor o redime.
É importante compreender,
porém, que o sobrenatural não significa o irracional. Ao contrário, ele é a
razão em seu grau mais alto, aquela que não se encerra em si, mas reconhece sua
origem e destino no divino. A revelação sobrenatural não nega a razão: dá-lhe
conteúdo. Pois se a razão é forma, a revelação é a vida que a preenche.
O espírito humano participa das
duas ordens: pela sensibilidade, pertence ao natural; pela liberdade, ao
sobrenatural. Essa duplicidade é o selo de sua grandeza e o sinal de sua
tragédia. Pois o homem pode escolher permanecer apenas na revelação natural —
isto é, viver no mundo como se a natureza bastasse —, ou abrir-se ao chamado da
revelação superior, onde o ser se manifesta não mais como força, mas como
palavra.
Toda a história humana é o
drama dessa passagem. O mito, a arte, a religião, a filosofia — todos são
degraus pelos quais a revelação natural se transforma em sobrenatural. O que
era símbolo converte-se em discurso, o que era instinto torna-se consciência. O
homem, ao compreender, completa a criação.
Por isso, a revelação
sobrenatural não pode ser compreendida como um milagre no sentido vulgar. Ela
não é o rompimento das leis naturais, mas a sua transfiguração. O milagre é o
natural visto de dentro, no instante em que o fundamento se mostra através da
forma. O sobrenatural é o natural reconhecido como símbolo.
Em última instância, a
distinção entre o natural e o sobrenatural é apenas pedagógica. Para o
absoluto, não há tal diferença: tudo é revelação. Mas para o homem, cuja
consciência se desenvolve no tempo, essa distinção é necessária. O espírito
precisa passar da natureza à liberdade, do símbolo à verdade, da imagem à
presença.
Assim, a filosofia da revelação
não separa o céu da terra, mas os reconcilia. Mostra que o ser divino não está
ausente do mundo, mas oculto nele, à espera de ser reconhecido. E que o homem,
ao compreender essa unidade, torna-se ele próprio o espaço onde o natural e o
sobrenatural se encontram. Pois é no interior do espírito humano que a criação
se escuta e responde a si mesma.
Terceira
Lição – O ser divino como fundamento da possibilidade da revelação
Toda revelação supõe um
fundamento que a torne possível. Se o absoluto se revela, é porque a revelação
pertence à sua própria natureza. Não é algo que lhe seja exterior ou acidental,
mas expressão de seu próprio ser. A primeira tarefa da filosofia da revelação
é, portanto, compreender o ser divino não apenas como causa do mundo, mas como
aquele que, por essência, tende a manifestar-se.
Deus não é um princípio imóvel
que permanece oculto, mas um ser cuja perfeição se cumpre no aparecer. O
ocultamento e a manifestação não são, nele, dois estados opostos, mas dois
momentos eternos de uma mesma vida. O divino é, ao mesmo tempo, aquilo que é em
si e aquilo que se comunica. Revelar-se é seu modo de existir. Por isso, o
mistério de Deus não é o de um segredo impenetrável, mas o de uma luz que se
torna visível apenas à medida que se dá.
A possibilidade da revelação
está, assim, fundada na própria estrutura do ser absoluto. O que é plenamente
em si mesmo não necessita sair de si, mas justamente por ser plenitude,
irradia. A luz não precisa de algo fora dela para brilhar — o brilho é sua
natureza. Assim também, o absoluto, por ser infinitamente afirmativo, é por
essência revelante. A revelação é a exteriorização necessária do que é
eternamente interior.
Se o divino permanecesse
fechado sobre si, não haveria criação, nem mundo, nem consciência. A existência
seria impossível, pois tudo o que é procede desse movimento original de
autocomunicação. O ser é, em sua raiz, a autodoação de Deus. Por isso,
compreender o ser é compreender a revelação: o existir é já revelação, e o
pensamento que o reconhece é apenas o eco consciente desse ato primordial.
Contudo, é preciso distinguir
entre dois modos da revelação divina: o ser em si e o ser para outro. O
primeiro é o modo eterno da divindade, sua vida intratrinitária, na qual o
absoluto se conhece a si mesmo como unidade de liberdade e necessidade. O
segundo é o modo temporal, no qual o divino se manifesta ao que dele deriva. O
primeiro é o fundamento metafísico da revelação; o segundo, sua realização
histórica.
A filosofia que ignora essa
distinção cai em um de dois erros: ou concebe Deus apenas como princípio lógico
— um ser abstrato sem vida —, ou o reduz a um ente do mundo, confundindo o
criador com a criatura. No primeiro caso, perde-se o mistério; no segundo, a
transcendência. A verdadeira filosofia da revelação evita ambos, mostrando que
o absoluto é ao mesmo tempo transcendente e imanente, fonte e presença.
O ser divino é liberdade
absoluta, e a revelação é o exercício dessa liberdade. A liberdade, em Deus,
não é arbitrariedade, mas potência de dar-se. Só o livre pode manifestar-se sem
necessidade. O que é escravo de si não pode comunicar-se. Assim, a revelação é
o ato supremo da liberdade divina — o momento em que o absoluto, sem perder a
si mesmo, decide ser outro, decide aparecer.
Nesse sentido, o fundamento da
revelação não é a necessidade lógica, mas o amor. Pois só o amor deseja
manifestar-se. A razão cria leis; o amor cria presença. O amor é a lógica viva
do ser. O que o intelecto chama de contradição — o infinito que se faz finito,
o eterno que entra no tempo — o amor o realiza sem contradição, porque nele o
impossível é natural. O amor é o modo pelo qual o absoluto suporta a diferença
sem perder a unidade.
Assim, a revelação é o amor do
ser por si mesmo em sua forma consciente. Deus ama o que cria, porque vê em
tudo o reflexo de seu próprio ser. O mundo é o espelho no qual o divino
contempla a si mesmo. A revelação é esse olhar divino que atravessa o espelho e
retorna à sua origem. Por isso, nada existe fora de Deus; tudo é a sua presença
sob véus.
A possibilidade da revelação
depende, portanto, de que o ser divino contenha em si não apenas unidade, mas
também alteridade. O absoluto, se fosse pura identidade, jamais poderia
revelar-se. É necessário que, em seu interior, haja relação — que o Um contenha
a possibilidade do Outro. Essa relação é a vida trinitária, na qual o Pai é o
fundamento, o Filho é a revelação, e o Espírito é o vínculo entre ambos.
A Trindade não é uma construção
teológica posterior, mas o modo ontológico do ser divino. Sem ela, não há
explicação racional da revelação. Pois é apenas porque em Deus há uma relação
viva entre o que se manifesta e o que é manifesto, que o mundo e a consciência
podem existir. A vida divina é a revelação em si; a história é a revelação para
nós.
Toda criatura participa dessa
estrutura. O homem, enquanto ser livre, é imagem do Filho; enquanto capaz de
amor, é animado pelo Espírito; enquanto fundamento de sua própria existência,
reflete o Pai. Por isso, o homem é o ponto onde a revelação se torna recíproca:
Deus se manifesta no homem, e o homem reconhece Deus em si.
Compreender o ser divino como
fundamento da revelação é, assim, compreender o ser como diálogo. Nada é
isolado: tudo é relação, tudo é palavra. A existência é uma linguagem, e a
filosofia, quando atinge o seu cume, torna-se escuta. Não se trata mais de
deduzir o absoluto, mas de ouvir sua voz silenciosa que fala em todas as
coisas.
A filosofia da revelação, ao
contrário da metafísica fechada, não parte do nada, mas do dom. O ser não é uma
proposição, mas um chamado. E a resposta a esse chamado é o próprio pensamento
humano, que, ao compreender, cumpre a revelação. Pois compreender é participar
— e participar é já revelar.
Assim, o fundamento da
possibilidade da revelação não é apenas a natureza de Deus, mas a estrutura
mesma do ser, que é comunicante. Tudo o que existe, existe porque foi dito. E a
palavra originária — o Verbo — continua a ressoar, chamando tudo o que é à
consciência de que é.
Quarta
Lição – O eterno e o temporal: o ponto de intersecção entre Deus e o mundo
Toda revelação é, em última
instância, a aparição do eterno no tempo. Mas para compreender isso
filosoficamente, é preciso antes compreender o que é o tempo. Pois o tempo não
é apenas uma medida do movimento ou uma forma da percepção; é a própria
condição da revelação. O tempo é o véu sob o qual o eterno se manifesta.
O ser absoluto, enquanto tal, é
eterno — não no sentido de uma duração infinita, mas no de uma presença sem
sucessão. O eterno é o agora absoluto, onde não há antes nem depois, princípio
nem fim. Mas o absoluto não permanece isolado nesse repouso: ele é, em sua
essência, vida. E a vida implica manifestação. Por isso, o tempo não é o oposto
do eterno, mas o modo como o eterno se mostra.
O tempo é a forma do aparecer
do eterno. Ele é o reflexo da eternidade na consciência finita. Quando o eterno
se volta para fora de si — não por necessidade, mas por amor —, o resultado
desse movimento é o tempo. O tempo é a imagem móvel do eterno; é a eternidade
em processo. Não há, pois, oposição entre ambos, mas correspondência.
O erro de muitas filosofias
consistiu em separar o temporal do eterno, como se um anulasse o outro. Ora, se
o temporal fosse totalmente distinto, jamais poderia conter revelação alguma;
se o eterno fosse totalmente separado, jamais poderia manifestar-se. A verdade
está no ponto em que ambos se cruzam — na intersecção onde o ser eterno entra
no devir sem deixar de ser o que é.
Esse ponto é o coração do
mundo, o centro invisível em torno do qual tudo se move. O mundo, como criação,
não é a negação de Deus, mas o lugar de sua visibilidade. O tempo não é a fuga
do ser, mas sua respiração. Cada instante é uma centelha do eterno que se
consome no fluxo, e é essa combustão que dá sentido à história.
No entanto, essa manifestação
implica um paradoxo: o eterno deve velar-se para poder aparecer. O absoluto,
que é sem forma, deve aceitar a forma. O infinito deve suportar o limite. E é
nesse consentimento — no consentimento do ser em ser visto — que o tempo nasce.
O tempo é o sacrifício do eterno. É o modo como o ser absoluto consente em não
ser apenas para si, mas também para outro.
No interior desse mistério se
encontra o fundamento de toda revelação. Pois a revelação é o movimento pelo
qual o eterno se comunica ao temporal sem se degradar. Esse movimento não é
mecânico, mas livre; não é um fluxo de causalidade, mas um ato de amor. O
eterno, ao entrar no tempo, não se divide: ele o transfigura.
A natureza é a primeira
expressão desse cruzamento. Ela é o tempo do ser inconsciente de si. Suas leis,
seus ciclos e suas metamorfoses são o reflexo da eternidade sob o véu da
necessidade. O que na natureza aparece como destino, na consciência aparece
como liberdade. O homem é o ponto onde o tempo se abre para o eterno e o eterno
se reconhece no tempo.
É no homem que o ser divino
reencontra sua imagem. Ele é o espelho vivo em que o eterno se vê no devir.
Assim, o homem não é um ser meramente temporal, mas o nó onde o tempo e a
eternidade se cruzam. Quando pensa, ele se eleva ao eterno; quando age, ele o
manifesta no tempo. Por isso, compreender o homem é compreender o ponto em que
o absoluto toca o mundo.
Deus não cria o tempo como algo
alheio a si; Ele mesmo é o fundamento do tempo. O tempo nasce da liberdade
divina, do ato pelo qual o ser decide manifestar-se. E porque o ato é livre, o
tempo é real: não mera aparência, mas dimensão ontológica da revelação. O que
aparece no tempo é o próprio ser se doando.
O instante é, nesse sentido, o
símbolo mais puro da revelação. Ele é o ponto em que o tempo toca a eternidade.
Cada instante autêntico é uma abertura, um clarão, um “agora” que participa do
ser absoluto. Viver espiritualmente é perceber esses instantes não como
fragmentos que passam, mas como janelas pelas quais o eterno se manifesta.
Na história, essa intersecção
entre o eterno e o temporal encontra sua expressão suprema na Encarnação. Pois
ali o eterno não apenas toca o tempo, mas habita nele. O Verbo se faz carne: o
sentido torna-se presença, o ser torna-se história. Tudo o que é finito
adquire, então, possibilidade de transfiguração. O tempo é redimido, e o devir
deixa de ser mera passagem para tornar-se caminho.
A filosofia da revelação,
portanto, vê o tempo não como queda, mas como dom. O tempo é o espaço da
resposta. Deus se revela, e o homem responde. O diálogo entre ambos — o eterno
que chama, o temporal que escuta — constitui o sentido profundo da existência.
O que chamamos história é a memória viva dessa conversação entre o Criador e o
criado.
Assim, o ponto de intersecção
entre o eterno e o temporal não é uma ideia abstrata, mas uma realidade vivida.
Ele está em toda parte onde há verdade, amor e liberdade. Pois a verdade é a
luz do eterno no tempo; o amor é o vínculo que os une; e a liberdade é o lugar
onde ambos se encontram. O homem é esse lugar.
Em sua consciência, Deus
encontra tempo; em sua liberdade, o tempo encontra Deus. É por isso que a
revelação não é apenas um fato divino, mas também humano. O eterno se
manifesta, e o homem é o espelho que o reflete — e, nesse reflexo, o próprio
Deus se contempla.
No fim, compreender o tempo é
compreender a revelação: o eterno que desce ao temporal para que o temporal se
eleve ao eterno. É o círculo do ser — não um círculo fechado, mas uma espiral
que ascende. Cada instante em que o espírito se abre à luz é uma nova
intersecção. O tempo torna-se então transparência, e o mundo, sacramento.
Quinta
Lição – A liberdade divina e o ato de criação
A liberdade é o mistério do
ser. Sem ela, o absoluto seria uma abstração imóvel, um princípio lógico sem
vida; e o mundo, uma simples derivação mecânica. Mas onde há liberdade, há
movimento, e onde há movimento, há revelação. É pela liberdade que o ser divino
se manifesta. Assim, a criação não é uma necessidade imposta a Deus, mas o ato
livre pelo qual Ele escolhe ser para outro sem deixar de ser em si.
Não há contradição maior do que
imaginar a criação como um processo necessário. O necessário é aquilo que não
pode ser de outro modo; o livre é o que contém em si a possibilidade da
diferença. Ora, a revelação — e com ela a criação — só é possível onde há
liberdade. O Deus que se manifesta por necessidade não seria um Deus vivo, mas
uma essência automática. O absoluto de Schelling não é o Uno inerte dos
neoplatônicos, mas o Espírito que se move, que ama, que age.
Antes de toda criação, há no
ser divino uma tensão originária — não de oposição, mas de plenitude que deseja
comunicar-se. A liberdade de Deus não é escolha entre alternativas, mas
superabundância de ser. Ele é tão pleno que não pode não se dar. Esse “não
poder não dar-se” não é necessidade, mas potência de amor. Assim como a luz
irradia porque é luz, o absoluto cria porque é liberdade.
A criação é, portanto, a forma
visível da liberdade divina. O mundo é o espelho onde a liberdade se contempla.
E porque a liberdade é amor, a criação não é o produto de um cálculo, mas de
uma generosidade. O ser absoluto não cria por carência, mas por doação. Tudo o
que existe é dom.
Mas se a criação é livre, por
que existe o mal? Como pode o ato perfeito produzir imperfeição? Schelling
responde: a liberdade, por essência, implica a possibilidade do desvio. O mal
não é criação de Deus, mas o risco inerente à liberdade comunicada às
criaturas. Pois Deus, ao criar o livre, concede-lhe não apenas o ser, mas o
poder de dizer não ao ser. E esse poder, ainda que usado contra o Criador, é
sinal de sua grandeza.
Deus não quis autômatos, mas
seres capazes de comunhão. E a comunhão verdadeira só é possível entre livres.
A liberdade é, portanto, o selo divino no homem, o vestígio da origem no
finito. Ao concedê-la, Deus não perde o controle do mundo — Ele o eleva. Pois é
apenas na liberdade do outro que o amor pode ser respondido.
A criação é o primeiro diálogo
entre o ser absoluto e o ser finito. No “haja” da criação está o primeiro
chamado; na existência do mundo está a primeira resposta. A natureza, em sua
harmonia silenciosa, é a obediência inconsciente do criado. O homem, ao
compreender, torna-se a obediência consciente. E a história, como totalidade, é
o processo dessa resposta que o ser finito oferece ao infinito.
Deus cria o mundo não fora de
si, mas em si. Pois nada pode existir fora do absoluto. O ato criador não é,
portanto, uma expulsão, mas uma emanação livre. A criação não está separada do
Criador; é a expressão da sua vida interior. Em cada coisa criada vibra um eco
do ser divino, e em cada ser consciente desperta a nostalgia de retornar à
fonte.
Mas o ato criador não é um
evento temporal; é eterno. Não houve um “antes” em que Deus não criasse. A
criação é o reflexo constante do ato eterno do ser. O tempo é apenas a imagem
dessa eternidade em devir. Por isso, o mundo não é uma obra acabada, mas uma
criação contínua. Deus cria sempre, e o ser criado subsiste porque a vontade
criadora o sustenta a cada instante.
Na liberdade divina reside o
segredo dessa continuidade. O absoluto não age uma vez e retira-se: Ele
permanece presente em sua obra. A criação é o gesto perpétuo de sua liberdade.
Cada instante é um novo ato criador, cada ser, uma nova palavra pronunciada no
silêncio da eternidade.
A verdadeira metafísica não é a
do ser fixo, mas a do ser que se doa. E essa doação não é uma perda, mas a
própria realização do absoluto. Pois o ser que não se comunica é incompleto; o
ser que se revela cumpre sua essência. A criação é a alegria de Deus
tornando-se mundo.
A liberdade divina é também a
chave para compreender a relação entre necessidade e graça. Em Deus, ambas
coincidem: a necessidade é o que Ele é; a liberdade, o modo como Ele é. A
necessidade é o ser; a liberdade, o amor. A criação surge desse encontro — da
necessidade que se oferece, do amor que se faz ser.
O mundo é, portanto, a forma
visível do amor divino. O homem, sua palavra consciente. O cosmos, o templo
onde a liberdade se torna visível. E o tempo, o altar sobre o qual o ser se
oferece a si mesmo, continuamente.
Assim, a criação não é um
acidente do absoluto, mas o desdobramento de sua vida. O ser cria porque é
livre, e é livre porque é amor. A liberdade divina é a raiz da revelação, o
primeiro ato em que o invisível se torna presença. Sem liberdade, não haveria
mundo, nem espírito, nem história. Com ela, tudo se torna possível — inclusive
o retorno. Pois aquele que cria livremente pode também redimir livremente.
E é nesse ponto que a filosofia
da revelação encontra seu verdadeiro sentido: compreender o mundo como
expressão da liberdade divina, e a história como o caminho de volta do criado
ao Criador. A revelação é o eco da criação, e a criação, o gesto inaugural da
revelação. Tudo o que existe é chamado — e toda resposta é revelação.
Sexta
Lição – A natureza como revelação exterior de Deus
A criação, enquanto ato livre,
não se limita a dar existência ao mundo; ela o organiza como expressão visível
da divindade. A natureza é, por isso, a primeira revelação de Deus — aquela em
que o ser se manifesta sem consciência, mas com plenitude de forma. Nela, o
espírito divino repousa, como o artista em sua obra, e cada parte da criação é
uma centelha de sua sabedoria silenciosa.
Ver a natureza como simples
mecanismo é negar-lhe o sentido. A ciência pode medir suas leis, mas a
filosofia busca compreender sua origem. E essa origem não é um cálculo, mas um
ato de revelação. O mundo não é apenas obra de Deus, mas o próprio gesto de
Deus no espaço. A matéria é o verbo tornado visível, o som da eternidade que
tomou corpo.
Tudo o que existe na natureza é
símbolo. O que para o olhar superficial é apenas fenômeno, para o espírito
atento é linguagem. A flor que se abre, o raio que rasga o céu, o nascimento e
a morte, o equilíbrio das forças — tudo fala da unidade que os sustenta. Nada é
mudo: o universo é um livro, e cada coisa é uma letra na escrita divina.
A natureza é revelação porque
nela o divino se exprime sem distorção, embora sem consciência. Ela é pura
obediência. Cada ser natural cumpre seu destino sem saber, e nessa ignorância
há uma forma de perfeição. Pois o que age segundo a ordem do ser, ainda que
inconscientemente, é mais próximo de Deus do que o que conhece e desobedece. A
natureza é inocência perpetuada.
Entretanto, a revelação que ela
contém é velada. Deus fala nela, mas em linguagem simbólica. As leis naturais
são seus hinos permanentes, e o movimento dos astros, sua liturgia cósmica. Mas
o espírito humano é chamado a decifrar esses sinais, a ler nas formas e nos
ritmos do mundo a verdade invisível que os anima.
O homem, ao compreender a
natureza, não a domina — participa de sua revelação. Pois compreender é unir-se
ao sentido. Quando o olhar humano penetra no mistério da vida, não descobre
apenas o que está fora, mas o que também vibra em si: o mesmo princípio que
cria e sustenta o universo. A filosofia da natureza é, assim, o primeiro grau
da filosofia da revelação.
Em cada plano do mundo natural,
há um grau de transparência do ser. O mineral manifesta a ordem e a
estabilidade — o repouso do divino na forma. O vegetal expressa o crescimento e
a potência — o divino que começa a mover-se. O animal mostra a sensibilidade e
o desejo — o divino que desperta. No homem, o espírito emerge plenamente — o
divino que se reconhece.
Essas gradações não são etapas
de uma evolução mecânica, mas momentos de uma única revelação progressiva. A
vida ascende porque o espírito busca expressão. A matéria, o corpo e a mente
são apenas modos sucessivos do mesmo ser tentando ver-se. E é por isso que o
mundo é belo: porque cada coisa, ao cumprir sua função, reflete algo da
perfeição que a criou.
Mas há uma diferença essencial
entre o modo como Deus se revela na natureza e o modo como se revela no
espírito. Na natureza, Ele é potência; no espírito, presença. A natureza é o
rosto de Deus ainda não consciente de si. O homem é o olhar pelo qual esse
rosto se reconhece. O que na natureza é necessidade, no homem torna-se
liberdade; o que nela é símbolo, nele se torna palavra.
A filosofia da revelação deve,
portanto, reconciliar a natureza com o espírito, a objetividade com a
interioridade. O que o pensamento moderno separou — matéria e alma, corpo e
mente, ciência e fé — Schelling reintegra na unidade do ser. Pois o cosmos não
é outra coisa senão o corpo vivo de Deus, e o homem, o seu órgão de
consciência.
Assim, estudar a natureza é
participar da liturgia da criação. Cada descoberta científica, quando
purificada do orgulho, é um ato de contemplação. Cada lei física é uma
confissão de que há ordem, e cada forma de vida, uma prova de que há amor. O
natural é o sacramento do espiritual.
Por isso, o mundo não é
profano. Tudo o que existe é santo porque é expressão de Deus. Não há lugar
vazio de presença, nem instante fora da revelação. O que chamamos “matéria” é
apenas o espírito em repouso; o que chamamos “espírito” é a matéria
transfigurada. E ambos são faces do mesmo ser, dialogando eternamente.
A natureza, sendo revelação
exterior, prepara o caminho para a revelação interior. Ela é o espelho no qual
o homem aprende a ver. Tudo o que o homem compreenderá sobre si, aprenderá
antes com o mundo: a ordem, a harmonia, o sacrifício e a renovação. Assim, o
caminho do espírito começa com o olhar, e o olhar começa com a natureza.
Quando o homem finalmente
entende que a natureza é o primeiro evangelho — escrito antes das palavras, mas
não sem verbo —, então ele começa a ler o mundo como templo e a vida como
oração. Pois nada existe que não diga, de algum modo: “Eu sou.” E todo ser que
diz “eu sou” é testemunha da revelação.
Sétima
Lição – O homem como imagem interior da divindade
Na natureza, Deus manifesta a
ordem e a potência do ser; no homem, manifesta sua consciência e sua liberdade.
O mundo visível é o corpo de Deus, mas o homem é o seu rosto. Somente nele a
revelação divina alcança plena reciprocidade, pois só o homem pode dizer: “Eu
sou”.
Essa palavra — simples e abissal — é o selo da semelhança divina. Nenhum outro
ser criado pode pronunciá-la com verdade. O animal vive, mas não sabe que vive;
o homem sabe que é. Essa consciência de ser não provém da matéria, mas do
próprio ato criador de Deus que, ao dar o espírito, comunica algo de seu
próprio modo de existir.
O homem não é apenas uma parte
da criação, mas o ponto em que a criação se reconhece. Ele é o espelho vivo
onde o infinito se reflete no finito, e onde o finito se eleva ao infinito. Na
linguagem simbólica das Escrituras, isso é dito de modo simples: “Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança.”
Mas o que significa ser imagem de Deus? Não uma semelhança exterior, e sim
estrutural. Assim como em Deus há unidade e liberdade, também no homem há a
unidade do ser e a liberdade de existir. O homem é um microcosmo do absoluto,
uma centelha de eternidade lançada no tempo.
A imagem divina no homem é a
capacidade de conhecer e de amar. O conhecimento reflete o aspecto racional do
ser divino; o amor, seu aspecto volitivo. Ambos, unidos, constituem a
liberdade. Pois o conhecimento sem amor é frio, e o amor sem conhecimento é
cego. No homem, ambos se encontram, e nessa união ele espelha o próprio Deus, que
é sabedoria e amor, logos e ágape, verdade e vida.
Contudo, essa imagem não é
estática; é dinâmica. O homem é chamado a tornar-se aquilo que já é em
potência. A semelhança divina é tarefa, não apenas dom. Cada ato livre aproxima
ou afasta o homem de sua origem. A liberdade humana é, assim, o campo onde se
joga a fidelidade à imagem.
Ser livre não é poder fazer o que se quer, mas poder escolher o que se deve. A
liberdade que nega o bem destrói a imagem divina; a que o afirma, a reflete.
Por isso, o homem não é revelação automática: ele é coautor da revelação.
No homem, a criação torna-se
consciente. A natureza, que até então se manifestava como necessidade, encontra
nele o primeiro ser capaz de dizer “sim” ao Criador. A palavra humana é
continuação da palavra divina; o discurso do homem é eco da voz do ser. A
revelação, que começou como luz e forma, torna-se linguagem e sentido.
O espírito humano é o altar da
revelação interior. Tudo o que na natureza é símbolo, nele é compreensão. O
homem não apenas contempla o mundo: ele o interpreta. E, ao interpretá-lo,
continua a criação. Cada pensamento verdadeiro, cada gesto de amor, cada
descoberta é um novo ato revelador. A filosofia, a arte, a ciência e a religião
são modos diversos dessa mesma revelação viva.
Mas a consciência da semelhança
traz consigo o peso da distância. Saber-se imagem de Deus é também sentir o
abismo entre o que se é e o que se deve ser. É o início da queda e da
nostalgia. Pois o homem, ao refletir Deus, toma consciência de sua própria
finitude. A sombra da liberdade acompanha a luz do espírito.
Assim, a possibilidade do erro e do mal nasce justamente da dignidade do homem.
O mesmo poder que o faz semelhante a Deus — a liberdade — é o que o torna capaz
de afastar-se dele. O mal é a revelação invertida, o reflexo da luz em espelho
quebrado.
Contudo, mesmo na queda, a
imagem divina não se apaga. Ela pode ser obscurecida, mas nunca destruída. Pois
o ser não pode negar o seu fundamento. A nostalgia do divino é a lembrança da
origem gravada na alma. Nenhum homem é totalmente surdo à voz de Deus, porque
essa voz fala do centro do próprio ser.
A história humana é o esforço
dessa imagem para reconquistar sua claridade. Toda moral, toda religião, toda
filosofia são tentativas de restaurar a transparência do espelho. E esse
processo só encontra plenitude quando a revelação torna-se interior, quando o
homem, em vez de buscar Deus fora, reconhece-O dentro de si.
O homem, portanto, é a
revelação de Deus ao próprio Deus. Pois, ao tornar-se consciente, ele permite
que o Criador veja, em forma finita, o reflexo de sua infinitude. A
autocompreensão divina passa pelo homem. O absoluto, ao criar um ser livre e
consciente, não apenas comunica o ser — comunica o saber de ser.
Nesse sentido, a humanidade é o momento em que a criação atinge o
autoconhecimento. O cosmos pensa através do homem; o universo se reconhece em
seu olhar. O “espírito” não é uma exceção natural, mas a culminação do natural.
O homem é o mediador entre o
tempo e a eternidade. Pela razão, ele ascende; pelo corpo, ele permanece. É
ponte e abismo, templo e deserto, claridade e sombra. Mas justamente nessa
tensão reside sua grandeza. Ele não é Deus, mas tampouco é apenas criatura: é o
lugar do encontro.
E esse encontro é o próprio coração da revelação.
Ser imagem da divindade não é
ser igual a Deus, mas participar de sua vida. E participar é responder. O homem
foi criado para dialogar. O silêncio do mundo torna-se palavra em sua boca, e o
pensamento de Deus encontra eco em sua mente. Quando o homem conhece o bem e o
faz, o Criador reconhece-se em sua criatura.
Por isso, compreender o homem é
compreender o sentido da criação. O universo inteiro, desde o mineral até o
espírito, tende a esse ponto de autoconsciência. O homem é a flor da natureza e
a semente da eternidade.
No rosto humano brilha, ainda que velada, a luz que nenhuma queda pode apagar —
a luz que, um dia, tornará a resplandecer plenamente quando o espelho voltar-se
novamente para o sol.
Oitava
Lição – A queda como interrupção da transparência do ser
Tudo o que existe foi criado na
luz, e na luz tudo é transparente. A transparência do ser é a sua verdade — o
estado em que cada coisa é aquilo que deve ser, sem sombra nem desvio. Mas essa
transparência, para o ser consciente, não é dada de modo fixo: é tarefa. O
homem, enquanto imagem viva da divindade, foi criado livre, e nessa liberdade
residia sua grandeza e seu perigo. A queda é o nome dessa possibilidade tornada
fato: o instante em que a liberdade se volta para si e o espelho deixa de
refletir o sol.
No estado original, o homem não
se via separado de Deus. O conhecimento e o amor eram uma única e mesma luz.
Ele não possuía o bem, era o bem. Não buscava Deus, vivia em Deus. A criação
inteira era então um canto contínuo, uma liturgia em que cada ser participava
de sua maneira da harmonia universal. Mas a liberdade humana, sendo verdadeira,
incluía o poder de romper essa harmonia — não por necessidade, mas por escolha.
A queda não nasce do mal — o
mal nasce da queda. O que precede o mal é a possibilidade
do mal, isto é, a liberdade. Enquanto permanece voltada ao fundamento, a
liberdade é amor; quando se volta sobre si, torna-se egoísmo. Essa curvatura
interior do espírito — o ato pelo qual o eu deseja ser o seu próprio centro — é
o início da opacidade. O que antes era transparente torna-se reflexo. O olhar
deixa de atravessar e começa a prender.
O mal, portanto, não é
substância nem criatura, mas desordem — o amor que se esqueceu de sua origem e
se voltou para si. Não é poder criador, mas parasitário: vive da luz que nega.
E, no entanto, essa possibilidade estava contida na própria estrutura da
liberdade, como sombra inevitável de seu esplendor. Pois só o livre pode amar,
e só o que pode amar pode recusar o amor.
A queda é o momento em que o
ser humano, diante da totalidade, escolhe a si mesmo. É o nascimento do “meu”
como oposição ao “nosso”, do “eu quero” como negação do “seja feita a tua
vontade”. A criação, que até então era fluxo e correspondência, experimenta
pela primeira vez o fechamento. O ser torna-se opaco; o espírito, dividido; a
natureza, muda. O pecado é o silêncio da alma diante da voz que a chamou.
Mas essa ruptura não destrói a
ordem do ser — apenas a encobre. A luz permanece, mesmo quando velada. A queda
não cria um novo mundo, cria um novo modo de ver o mundo: através do véu da
separação. O que antes era participação torna-se distância; o que era dom,
trabalho; o que era presença, busca. A história humana nasce desse exílio.
O homem caído vive entre dois
polos: lembra-se do que perdeu e não pode esquecê-lo, mas não sabe como
regressar. A nostalgia do paraíso é a memória da transparência original. Tudo o
que o homem chama de arte, filosofia ou religião é o esforço de reconstruir,
por fragmentos, a unidade perdida. Mas a própria impossibilidade desse retorno
natural mostra que a redenção só pode vir de um ato novo de revelação — não de
baixo para cima, mas de cima para baixo.
A queda, assim compreendida,
não é apenas moral, mas cósmica. Todo o mundo participa, de certo modo, dessa
ruptura. Pois o homem é o mediador da criação; quando ele se fecha, o universo
perde sua via de ascensão. A natureza, que era templo, torna-se cenário; o
tempo, que era epifania, torna-se desgaste. O mal humano repercute no cosmos
porque o cosmos foi criado para a liberdade.
Contudo, o mal não é vitória,
mas desvio. A liberdade divina, que permitiu o erro, contém também o poder da
restauração. A queda estava prevista na sabedoria eterna, não como desejo, mas
como possibilidade prevista dentro do amor. Pois o amor verdadeiro não teme ser
recusado; sabe que um dia será compreendido. A graça não é reação à queda — é
seu antecedente. Antes que houvesse culpa, havia perdão.
O sentido profundo da queda é,
portanto, revelatório. Nela o homem descobre o que é ser livre e o que é estar
separado. E, por esse caminho doloroso, aprende o valor da união. A
transparência do ser, perdida pela soberba, deve ser reencontrada pela
humildade. O espelho, quebrado, só volta a refletir quando se volta para a luz.
Na linguagem simbólica das tradições,
a queda é descrita como expulsão do Éden. Mas a expulsão é, na verdade,
interior. O homem não foi lançado fora de um lugar, mas de um estado de
consciência. O paraíso não é geográfico; é ontológico. Está perdido enquanto o
eu se crê centro, e reencontrado quando o eu volta a ser janela.
A queda é também o início da
história. Pois onde há ferida, há tempo; onde há perda, há caminho. A
revelação, que antes era pura presença, torna-se agora promessa. O homem passa
a viver na tensão entre o que foi e o que será. A esperança nasce da culpa. E é
nesse intervalo — entre a lembrança e a espera — que se desenvolve a
consciência.
Schelling mostra, assim, que o
mal não é antítese de Deus, mas meio pelo qual o bem se manifesta como bem.
Pois o bem só é plenamente compreendido quando reencontrado. A queda, embora
trágica, é pedagógica: ensina ao homem o preço da liberdade e o valor da
reconciliação.
A revelação futura não será retorno ao estado anterior, mas superação —
transparência consciente, onde a liberdade não mais se volta contra o
fundamento, mas o ama como sua própria essência.
A queda é o eclipse do ser; a
redenção será o seu alvorecer. No meio dessas duas luzes, o homem caminha —
lembrando o que perdeu, pressentindo o que virá, sustentado pela certeza de que
a escuridão é apenas o intervalo entre dois atos de revelação.
Nona
Lição – O problema do mal e a necessidade da redenção
O mal é o maior enigma da
filosofia. Ele desafia tanto a razão quanto a fé, pois parece pôr em questão a
bondade e a liberdade de Deus. Se Deus é bom e livre, por que há mal? E se o
mal é inevitável, onde está a liberdade? Toda teodiceia superficial fracassa
porque tenta explicar o mal como se fosse algo que pudesse ser justificado. Mas
o mal não se explica: compreende-se apenas à luz da liberdade.
A origem do mal não é Deus, nem
a matéria, mas a própria liberdade criada. O mal nasce quando a liberdade, em
vez de ser o reflexo do absoluto, quer ser o absoluto. Ele não é uma
substância, mas uma direção — o desvio da vontade para si mesma. Essa perversão
não vem de fora: é o próprio espírito que se corrompe, transformando a potência
de amar em desejo de possuir.
O que em Deus é o “Eu sou” criador e doador, no homem torna-se “eu quero”
apropriador. O mal é, assim, o amor invertido — a caridade transformada em
vontade de domínio.
O mistério mais profundo,
porém, é que essa possibilidade estava contida na própria estrutura da criação.
Pois Deus, ao criar o livre, concedeu-lhe também o poder de dizer não. Esse
risco não diminui a perfeição do Criador; revela-a. Pois só o amor confia a
liberdade àquele que pode traí-la. O mal é, portanto, o preço da comunhão. Deus
prefere o risco do amor à segurança da servidão.
Em certo sentido, o mal é
inevitável, mas não necessário. Inevitável, porque a liberdade implica
possibilidade de desvio; não necessário, porque esse desvio é escolha. A
criação sem liberdade seria impecável, mas morta; viva, torna-se vulnerável. A
existência do mal é o sinal de que o bem é livre, e só o bem livre é verdadeiro
bem.
O mal, enquanto força ativa,
manifesta-se na separação. Onde o ser se fecha em si, a luz se obscurece. A
vontade isolada rompe o fluxo da revelação. O mal é o “não” dito à comunhão.
Sua essência é o isolamento. E todo isolamento é morte, pois o ser vive apenas
na relação. Assim, o mal não é destruição de Deus, mas autoexclusão do homem.
Contudo, o mal não é o último
poder. Ele tem começo, mas não fim próprio. Pois o que é privação não pode
sustentar-se eternamente. O mal vive da luz que nega; quando a luz se retira,
ele se dissolve. É sombra, e a sombra não tem substância. Por isso, o mal é, em
última instância, pedagógico: mostra o que é o bem por contraste, e conduz o
espírito à nostalgia da unidade perdida.
A redenção, nesse contexto, não
é uma reparação exterior, mas o movimento interno de retorno. O mesmo princípio
que permitiu a queda contém o poder de levantar. A liberdade, que se perverteu,
é também o caminho da restauração. Deus não intervém de fora; Ele age de
dentro, reabrindo a via da comunhão. O mal é vencido não pela força, mas pela
revelação.
A redenção é a revelação
elevada ao seu grau supremo: o amor que responde ao ódio sem imitá-lo, a luz
que penetra a sombra sem se manchar. O bem absoluto não destrói o mal, o
transforma. Pois o que o mal divide, o amor reconcilia; o que o mal nega, o
amor reintegra. A cruz — símbolo universal dessa verdade — é a figura da
revelação que assume o sofrimento e o converte em salvação.
Deus não é cúmplice do mal, mas
também não é indiferente a ele. Ele o permite para que a liberdade possa
tornar-se real, e o transforma para que a liberdade se torne consciente. O mal
é o espelho onde a criatura aprende o preço de ser semelhante a Deus. É o
abismo que revela a profundidade da graça. Sem o mal, o bem seria inocente, mas
não glorioso; seria dado, mas não conquistado.
A necessidade da redenção
decorre, portanto, da necessidade da liberdade. O homem, caído, não pode voltar
à transparência por suas próprias forças, pois o que se fechou em si não pode,
por si, abrir-se. A revelação deve recomeçar, agora não apenas como criação,
mas como recriação. A redenção é o segundo ato do amor divino: o primeiro
chamou o ser do nada; o segundo chama o ser da queda.
Nesse sentido, o Cristo não é
uma solução moral, mas ontológica. Ele é o ponto onde o eterno volta a entrar
no tempo, onde o divino reassume a natureza humana e a purifica desde dentro.
Em Cristo, o absoluto recomeça a revelação. A criação é Deus tornando-se mundo;
a redenção é Deus tornando-se homem. Ambas são expressões da mesma liberdade
divina — o amor que não se contenta em criar, mas deseja restaurar.
O mal, por paradoxal que
pareça, é o cenário necessário do bem supremo. Pois só o que pode cair pode ser
salvo, e só o que pode perder-se pode ser reencontrado. A redenção é, portanto,
a culminação da revelação: o instante em que o ser reconhece, na ferida, o
sentido da graça. A luz que penetra a noite não a elimina — transfigura-a.
A filosofia da revelação, longe
de negar o mal, o inclui em sua estrutura. Pois a revelação não é o triunfo da
necessidade, mas o triunfo da liberdade. O mal não é o fracasso do plano
divino, mas sua condição pedagógica. A liberdade se realiza plenamente quando,
conhecendo o abismo, escolhe o alto. E é essa escolha, repetida na história e
na alma, que define a redenção.
Assim, o mal é o escurecimento
do ser, e a redenção, o seu novo amanhecer. A revelação começou como criação,
foi interrompida pela queda e renasceu como graça. Cada homem revive esse drama
em si: ser criado, cair, reconhecer, retornar. É o percurso de toda alma e de
toda história — o caminho da luz através das trevas.
Décima
Lição – A revelação como restauração da unidade perdida
A revelação não termina na
criação, nem na queda, nem mesmo no reconhecimento do mal. Ela tende a um fim
mais alto: a restauração da unidade. Tudo o que se separou deve reencontrar-se,
e tudo o que caiu deve ser erguido. Mas essa restauração não é simples retorno
ao ponto de partida; é um novo estado do ser — uma unidade consciente,
conquistada pela liberdade. O primeiro paraíso era dom; o segundo será
conquista.
A criação revelou o poder do
amor; a queda revelou o risco da liberdade; a redenção revela a vitória da
união. A revelação, em seu percurso total, é a história da comunhão entre Deus
e o homem — comunhão que passa pela distância para poder tornar-se
indestrutível.
Deus não deseja apenas criar, mas compartilhar. Por isso, a revelação não é uma
linha reta, mas um círculo: o ser parte do absoluto e retorna ao absoluto,
levando consigo a consciência adquirida no tempo.
A unidade perdida não se
recompõe por anulação da diferença, mas por sua harmonização. O erro das
metafísicas antigas foi buscar a salvação na fuga do mundo. Mas o mundo é parte
do mistério: é o campo onde a liberdade se torna real e onde o amor se
manifesta. O fim da revelação não é a dissolução da criação, mas sua
transfiguração. O universo inteiro está destinado à claridade.
A redenção, nesse sentido, é o
próprio Deus voltando a Si por meio de sua obra. O absoluto, que se revelou na
natureza e na história, reencontra-se em sua criatura consciente. A
transparência do ser é restaurada quando o homem volta a ver Deus em todas as
coisas e todas as coisas em Deus. Essa visão, que outrora foi inocência e agora
é sabedoria, é o verdadeiro sentido da “nova criação”.
A restauração da unidade é um
ato de liberdade. Pois só o livre pode reconciliar-se. O amor divino não impõe
a comunhão — espera-a. A revelação é convite, não conquista. Deus não toma o
homem pela força, mas o atrai pela beleza. A redenção é o amor reconhecido.
Por isso, a história da revelação é também a história do despertar humano: Deus
se revela no grau em que o homem se torna capaz de recebê-lo.
No estado restaurado, o bem não
é mais apenas obediência, mas participação. O homem não é mais servo, mas
amigo. Ele compreende o sentido da liberdade: não fazer a própria vontade
contra Deus, mas com Deus. A liberdade redimida não é anulada, mas integrada —
ela deixa de ser oposição e torna-se colaboração. O “eu” já não é obstáculo,
mas instrumento da unidade.
O mal é superado não pela
supressão da liberdade, mas pelo seu amadurecimento. A criatura que conheceu o
abismo valoriza a luz. A transparência reencontrada é mais profunda do que a
primeira, pois contém a memória da noite. O novo paraíso não é inocência, é
sabedoria purificada. O espelho, outrora quebrado, agora reflete não só o sol,
mas também a cicatriz que o fez compreender a luz.
Essa é a revelação consumada: o
ser reconciliado, a liberdade iluminada, o amor consciente. Nela, toda contradição
se dissolve, porque cada coisa volta a ocupar o seu lugar no todo. A morte
torna-se passagem, o sofrimento, sentido, e o tempo, expressão da eternidade. O
que antes parecia disperso mostra-se como parte de uma mesma melodia.
A filosofia da revelação não é,
portanto, uma teoria do mundo, mas uma visão do destino do ser. O universo é
drama e reconciliação. O que começou como luz involuntária termina como luz
consciente. A criação foi o primeiro ato da liberdade divina; a redenção, o
segundo; a restauração, o terceiro e último — o retorno do ser à sua
transparência.
A unidade perdida é, no fundo,
a unidade entre o Criador e o criado. E essa união só pode dar-se onde há
liberdade recíproca. Deus não busca servos, mas filhos; não quer adoradores
cegos, mas coerdeiros da luz. A revelação culmina quando o homem pode dizer,
sem orgulho e sem medo: “Eu e o Pai somos um.”
Então o círculo se fecha. O
ser, que saiu de Deus sem deixá-lo, retorna a Ele sem perder-se. O tempo cumpre
o seu papel e dissolve-se na eternidade. A história termina, não porque algo se
destrói, mas porque tudo se cumpre. A revelação encontra repouso, e o repouso é
o amor.
Décima
Primeira Lição – O mito e a profecia como formas preparatórias
A revelação absoluta não
irrompe de modo súbito no tempo; ela é precedida por uma longa preparação.
Antes que o divino se manifeste plenamente, o espírito humano precisa aprender
a reconhecê-lo. A história religiosa da humanidade é o caminho desse
aprendizado. O mito e a profecia são suas duas formas fundamentais — as
primeiras luzes do eterno na consciência do homem.
O mito é a revelação da
divindade na imaginação; a profecia, na consciência moral. O primeiro é
simbólico, o segundo é intencional. No mito, o homem fala de Deus sem sabê-lo
plenamente; na profecia, Deus começa a falar através do homem. Ambos pertencem
a um mesmo processo de amadurecimento: a passagem do inconsciente ao
consciente, do símbolo à palavra.
O mito não é ficção, mas
memória. Ele é o eco das primeiras percepções da presença divina no mundo.
Antes que a razão se formasse, o homem percebia o ser através da imagem. O
mundo visível era, para ele, um livro animado, e cada força da natureza, um
sinal do espírito oculto que a sustentava. Essa visão poética e sagrada do
mundo é o berço da religião. O mito nasce da experiência imediata do mistério.
No mito, Deus se revela em
fragmentos. O Uno aparece sob muitas faces, o eterno sob formas transitórias.
Os deuses são reflexos parciais da unidade absoluta. Cada povo, em sua
linguagem simbólica, expressa uma dimensão do divino. O politeísmo, longe de
ser mera confusão, é a dispersão da luz antes de seu foco. Assim como o prisma
separa as cores, o mito separa os aspectos da divindade. A revelação futura
reunirá novamente essas cores no branco da verdade.
Mas o mito, embora verdadeiro
em seu conteúdo, é limitado em sua forma. Ele confunde o símbolo com a
realidade, o sinal com o sentido. A imaginação primitiva projeta no exterior o
que deveria ser reconhecido no interior. Por isso, o mito precisa evoluir: deve
dar lugar à palavra profética, que traduz o símbolo em consciência.
A profecia é o segundo grau da
revelação. Nela, o divino já não fala por meio da natureza, mas por meio do
espírito humano. O profeta é aquele em quem o absoluto encontra voz. No mito, o
homem inventa para exprimir o divino; no profeta, o divino se serve do homem
para exprimir-se. O mito é poesia; a profecia, inspiração. Um nasce do
assombro; o outro, da escuta.
A profecia é o primeiro momento
da revelação moral. O profeta não fala de forças cósmicas, mas de justiça, de
bem e de verdade. Sua palavra não descreve o ser, convoca o dever. Ele não
explica o mundo, chama o homem à comunhão com Deus. Enquanto o mito narra o que
foi, a profecia anuncia o que deve ser. O tempo do mito é o passado sagrado; o
tempo da profecia é o futuro prometido.
Essas duas formas, longe de se
excluírem, completam-se. O mito guarda a inocência da revelação; a profecia,
sua direção. O mito é o sonho da infância do espírito; a profecia, sua
adolescência desperta. Um olha para o céu em espanto; o outro, para o horizonte
em esperança. Entre ambos estende-se a longa preparação da consciência humana
para a vinda da revelação plena.
Toda cultura verdadeira nasce
dessa tensão entre o simbólico e o profético. As civilizações antigas, com seus
mitos grandiosos e seus templos, foram o alfabeto com que Deus ensinou o homem
a ler. Israel, com seus profetas e sua história, foi o primeiro a compreender
que a revelação não é mito, mas relação viva. O profeta é aquele que transforma
o símbolo em chamado.
Schelling vê, assim, a história
religiosa não como sucessão de erros, mas como pedagogia divina. Cada forma do
sagrado é uma etapa da revelação. O mito prepara o coração; a profecia prepara
o espírito. A plenitude virá quando ambos forem reunidos — quando o símbolo for
iluminado pela verdade e a palavra for animada pela imagem.
Pois a revelação perfeita é ao
mesmo tempo mítica e profética: une a beleza do símbolo à verdade da
consciência. O cristianismo, na visão de Schelling, é precisamente essa união —
o mito tornado histórico e a profecia tornada presença. Nele, o verbo não
apenas fala, mas se encarna.
O mito dizia: “Deus está em
tudo”; a profecia dizia: “Deus virá.”
A revelação final dirá: “Deus está aqui.”
Décima
Segunda Lição – A religião dos antigos e o seu caráter simbólico
As religiões antigas são a
linguagem primeira da revelação. Nelas, o homem ainda não distingue claramente
entre o natural e o sobrenatural, entre o visível e o invisível. Tudo é
símbolo, e o símbolo é tudo. O divino não está além do mundo, mas o atravessa.
A natureza é templo, o tempo é rito, e o homem vive dentro de um universo
sagrado.
O erro moderno é julgar essas
religiões como simples superstição. O espírito que as criou não era ignorante,
mas intuitivo. Ele percebia a presença divina não pela razão, mas pela visão
interior. Antes que o homem pudesse compreender Deus como pessoa, ele o sentia
como força, ritmo e harmonia. Por isso, o antigo não adorava o mundo: venerava,
através do mundo, o mistério que o habitava.
Toda forma religiosa antiga é
uma tradução visível de uma verdade invisível. O sol, a lua, o mar, os astros —
nada disso era divinizado por si mesmo, mas como espelho do poder criador. Os
deuses eram os nomes das potências divinas refletidas no mundo. A pluralidade
dos deuses não negava a unidade do ser; apenas exprimia sua multiplicidade de
aspectos. O politeísmo é o monoteísmo em expansão simbólica.
Os templos antigos, com suas
proporções matemáticas e suas esculturas imponentes, não eram apenas
construções, mas encarnações de ideias. O templo egípcio, o santuário grego, o
zigurate babilônico — todos são tentativas de tornar visível o invisível. Cada
linha, cada gesto, cada rito era uma forma de correspondência com a ordem
cósmica. O culto era a filosofia antes da filosofia.
A religião antiga, por isso, é
essencialmente estética. O belo e o sagrado são inseparáveis. A arte não é
ornamento, mas liturgia. O artista é o primeiro sacerdote, e a obra de arte, o
primeiro sacramento. Pois o belo é a transparência do ser, a manifestação
sensível da harmonia divina.
O mito, que dá alma à religião, e a arte, que lhe dá corpo, são as duas faces
de uma mesma revelação.
Mas o símbolo, se não se
purifica, torna-se prisão. O homem, em vez de ver Deus através da imagem,
começa a ver apenas a imagem. O que era janela transforma-se em espelho. A
idolatria nasce quando o símbolo se autonomiza, quando o meio se torna fim. A
religião antiga degenera quando o homem esquece que o deus representado não
está na pedra, mas além dela.
Essa transformação é inevitável
no curso da história. O símbolo, para ser superado, precisa antes exaurir-se. O
mesmo poder que elevou o espírito humano ao céu das formas o prepara para
ascender além delas. O colapso das religiões antigas não é derrota do sagrado,
mas seu amadurecimento. Quando o símbolo se esgota, surge a palavra. Quando o
mito se cala, começa a profecia.
O caráter simbólico das
religiões antigas é, portanto, duplo: é expressão e limite. Expressão, porque
revela o divino através do sensível; limite, porque não o revela plenamente. O
símbolo mostra, mas também oculta. Ele é luz que brilha através do véu. O
espírito humano, ao contemplá-lo, pressente algo que ultrapassa sua forma — e é
esse “algo além” que desperta o anseio pela revelação pura.
Schelling vê no mundo antigo um
imenso prelúdio. As religiões da natureza prepararam o caminho para a religião
do espírito. O homem que venerava o sol estava, sem o saber, venerando o
criador da luz. O que via em Zeus o poder do raio pressentia a justiça divina.
O que via em Ísis o mistério da fecundidade pressentia a sabedoria materna do
ser.
Nada se perde: tudo é convertido. A verdade eterna se reflete em cada época
segundo a forma que o homem é capaz de suportar.
O politeísmo não é erro, mas
pedagogia. O monoteísmo não o destrói; o cumpre. Assim como a infância não é
negação da maturidade, mas sua preparação, também o culto das formas sensíveis
prepara a alma para o culto do espírito. O Antigo Testamento não começa com
negação dos deuses, mas com o chamado à exclusividade: “Não terás outros deuses
diante de mim.” A unidade divina surge como purificação do símbolo.
A religião dos antigos é,
portanto, revelação velada. Sua grandeza está na beleza com que expressa o
sagrado; sua limitação, em não poder ultrapassar a forma. Ela é o corpo do qual
a revelação futura será a alma. Quando o espírito humano aprender a ver o
divino sem intermediários, o símbolo será transfigurado em presença. O que
antes era imagem tornar-se-á rosto.
Assim, a história da religião é
também a história da visão. O homem antigo via Deus em todas as coisas; o
moderno tende a não vê-lo em nada. Entre ambos há um degrau: a consciência. O
símbolo cede lugar à palavra, o mito à profecia, o sensível ao espiritual. Mas
a verdade é a mesma — apenas o modo de vê-la muda.
Pois, como diz Schelling, a
revelação não é progressão no ser de Deus, mas no olhar do homem.
Décima
Terceira Lição – O monoteísmo hebraico e a consciência histórica da revelação
Com o povo de Israel inicia-se
uma nova era no caminho da revelação. O que nas religiões antigas era
manifestação simbólica e estética, torna-se agora palavra e promessa. O divino
deixa de ser pressentido nas forças da natureza e passa a ser reconhecido como
sujeito, como vontade livre que fala e age.
Deus já não é apenas o fundamento invisível do mundo: é o Tu que chama o homem pelo
nome.
O monoteísmo hebraico nasce
desse chamado. Ele não é uma construção racional, mas uma revelação moral. O
Deus de Abraão não se revela por meio de astros, montanhas ou fenômenos — mas
em uma voz. “Sai da tua terra.” Com essa ordem, o sagrado entra na história. O
eterno, que antes era contemplado na natureza, agora se dirige a uma pessoa. A
relação entre Deus e o homem torna-se diálogo.
Enquanto o mundo antigo via o
divino na totalidade do cosmos, Israel o reconhece na unidade da palavra.
“Ouve, Israel: o Senhor teu Deus é um só.” Essa proclamação é o rompimento da
multiplicidade simbólica e o nascimento da pureza espiritual. O Uno não é mais
o princípio abstrato que subjaz a todos os deuses, mas o Deus vivo, fiel, que
intervém no tempo.
Assim, a revelação deixa de ser apenas cosmológica e torna-se histórica.
A originalidade do monoteísmo
hebraico está em unir transcendência e presença. Deus é totalmente outro — não
confundido com o mundo —, mas também próximo, atuante, íntimo. Ele não é o
“Deus de todos” em sentido genérico, mas o Deus de um povo eleito para
testemunhar a unidade. Essa eleição não é privilégio, mas missão: Israel é
chamado a ser o portador da revelação universal.
A religião dos antigos era
contemplação do divino na natureza; a religião hebraica é obediência ao divino
na consciência. O centro da revelação desloca-se do visível para o invisível,
do sensível para o ético. A adoração torna-se fidelidade; o culto, aliança. A
relação com Deus não se dá mais através de formas, mas de mandamentos. O
símbolo é substituído pela palavra.
A palavra é o novo sacramento do ser.
Na revelação hebraica, o mundo
deixa de ser o espelho de Deus para tornar-se o palco de sua vontade. O tempo
adquire sentido: há um começo, uma promessa e um fim. O eterno entra no fluxo
da história e a dirige. A história humana torna-se história sagrada. Cada
evento é sinal, cada geração, um elo na cadeia do plano divino. O mito narrava
o que sempre é; a profecia anuncia o que ainda será.
Essa transformação é decisiva.
Pela primeira vez, o homem compreende que o absoluto não se revela em ciclos
eternos, mas em eventos únicos. O eterno torna-se progressivo. A revelação
adquire direção, e a história passa a ser caminho. O tempo não é mais repetição
do mesmo, mas aproximação do cumprimento.
O sentido do mundo não está mais no passado primordial, mas no futuro
prometido.
O monoteísmo, porém, não é
apenas doutrina teológica — é experiência espiritual. Ele exige conversão
interior. Reconhecer o Deus único é abandonar os ídolos, não apenas exteriores,
mas interiores: o orgulho, o desejo, o poder. O monoteísmo é, antes de tudo,
monoteísmo do coração. A unidade divina requer a unificação do homem. A alma
dividida entre muitos bens deve voltar-se para o Bem único.
Israel é, assim, a consciência
moral da humanidade nascente. A lei mosaica é o reflexo terrestre da ordem
divina. O Decálogo é a primeira inscrição da liberdade em forma de dever. O
homem é chamado a agir não por medo, mas por fidelidade. A obediência deixa de
ser servidão e torna-se resposta.
O mandamento não é imposição arbitrária; é a forma pela qual o divino comunica
sua vontade. Cumprir a lei é participar da sabedoria eterna.
Mas o monoteísmo hebraico não é
ainda a plenitude da revelação. Ele é caminho. A lei prepara o coração, mas não
o preenche. A promessa prepara o espírito, mas não o sacia. A unidade divina
foi reconhecida, mas ainda não habitada. Deus é conhecido, mas ainda não interiorizado.
O povo de Israel carrega em sua história o pressentimento de algo maior: a
chegada do tempo em que o Verbo deixará de ser ouvido para tornar-se carne.
Mesmo assim, a grandeza da
revelação hebraica está em ter purificado o olhar. Ela libertou o homem do
fascínio do símbolo e o elevou à escuta da palavra. Em Israel, o espírito
humano passa da visão à audição. O ouvido substitui o olho como órgão do
sagrado. Pois ver é possuir, mas ouvir é obedecer. A fé nasce da audição.
A religião dos antigos ensinou
o homem a ver Deus no mundo; o monoteísmo ensina a escutá-lo no coração. Quando
essas duas experiências se unirem — quando o mundo voltar a ser transparente
sem perder a interioridade conquistada —, então a revelação atingirá sua
plenitude. O cristianismo, para Schelling, é precisamente essa síntese: o Deus
transcendente que se torna imanente, o invisível que assume forma visível sem
perder a unidade.
A revelação hebraica foi,
assim, a grande escola do espírito. Nela o homem aprendeu a viver na presença do
Deus único, a reconhecer o tempo como promessa e a liberdade como vocação. O
que nos antigos era imagem, e no profeta era palavra, tornar-se-á, em Cristo,
presença.
A voz que falou no Sinai um dia falará no coração de todos.
Décima
Quarta Lição – O papel da Lei e dos Profetas na preparação do absoluto
A revelação divina, uma vez
introduzida na história, assume forma dupla: a da Lei e a do Espírito Profético. A
Lei é o eixo da ordem; o Espírito, o sopro da liberdade. Uma fixa, a outra
move; uma conserva, a outra anuncia. Ambas são necessárias, pois sem a Lei o
espírito se dispersa, e sem o Espírito a Lei se endurece.
A história de Israel é o diálogo entre essas duas potências.
A Lei é o primeiro estágio da
consciência religiosa madura. Ela traduz o infinito em norma, o invisível em
forma. Pela Lei, o divino torna-se tangível, acessível à prática humana. Os
mandamentos não são arbitrariedades morais, mas participação na ordem eterna.
Cumpri-los é imitar o próprio Deus, que age segundo o bem.
Por isso, o cumprimento da Lei é ato de revelação: nela, o homem reflete o ser
divino pela obediência consciente.
Contudo, a Lei, por sua própria
natureza, tende à rigidez. O que começou como expressão do espírito pode
transformar-se em letra morta. A norma, quando separada do amor, torna-se peso.
O coração, quando esquece o sentido, cumpre a forma sem a alma. O risco da Lei
é converter o caminho em muro.
E é nesse ponto que surge o profeta: não para abolir a Lei, mas para recordá-la
em seu espírito.
O profeta é o guardião do
sentido interior da revelação. Ele aparece quando a religião ameaça tornar-se
instituição sem vida. Sua voz rompe a rotina, chama o povo à verdade do
coração. A Lei diz “faze isto”; o profeta diz “conhece a quem fazes”. A Lei
forma o corpo da religião; o profeta, sua alma.
Ambos são instrumentos do mesmo Deus: um estabelece o caminho, o outro impede
que ele se perca.
A tensão entre Lei e Profecia
é, portanto, dinâmica e necessária. A Lei sem o profeta seria prisão; o profeta
sem a Lei, delírio. A verdadeira fidelidade está na harmonia de ambos. Quando a
Lei e o Espírito se equilibram, a religião torna-se viva, e a revelação
continua sua marcha.
A função histórica da Lei foi
dar à humanidade um alicerce moral estável. Antes dela, o bem e o mal eram
percepções difusas, ligadas ao mito ou ao costume. Com a Lei, o bem adquire
forma universal. O mandamento divino institui a moral objetiva, válida para
todos os tempos. Ele é o primeiro espelho em que o homem reconhece a si mesmo
como ser responsável.
A consciência moral, antes intuitiva, torna-se clara.
Mas a função espiritual da
profecia é libertar essa moralidade da mera obediência formal. O profeta
anuncia que o mandamento não é fim, mas meio; que o cumprimento da Lei é
insuficiente sem a conversão interior. “Quero misericórdia, não sacrifício.” A
palavra profética é o fogo que purifica a letra, a respiração divina que impede
o endurecimento da fé.
A profecia é o prelúdio do Espírito.
Schelling vê nesse contraste o
verdadeiro motor da história sagrada. O espírito humano, educado pela Lei, deve
aprender a transcendê-la — não negando-a, mas realizando-a interiormente. A Lei
prepara o caminho do Espírito, e o Espírito realiza o sentido da Lei. A
revelação progride do dever ao amor, da obediência à comunhão.
Essa transição é necessária
também na ordem filosófica. A Lei representa o domínio da necessidade moral, o
dever-ser; o Espírito, o domínio da liberdade realizada, o ser que ama. O
cristianismo será o ponto em que ambas coincidirão: a Lei se tornará graça, e a
obediência, espontaneidade.
O que antes era mandamento virá a ser vida.
A figura dos profetas é, assim,
o anúncio do novo. Cada profeta é uma fresta no muro da história, por onde o
futuro começa a brilhar. Eles falam em nome de um tempo que ainda não chegou,
mas que já os habita. Isaías, Jeremias, Ezequiel, e os menores — todos apontam
para um Messias, para uma revelação em que o próprio Deus virá cumprir a Lei.
O profeta é o eco antecipado da Encarnação.
Na tensão entre a Lei e os
Profetas, o espírito humano aprende o ritmo da revelação: fixação e movimento,
repouso e impulso, forma e vida. É essa alternância que preserva a verdade.
Pois o divino não é pura liberdade, nem pura necessidade — é a unidade de
ambas. A Lei e a Profecia, juntas, refletem essa unidade.
A história de Israel, portanto,
não é apenas a de um povo, mas a da pedagogia divina da humanidade. A Lei deu
forma à consciência; a Profecia deu-lhe alma. O que começou com mandamento
terminará com encarnação. A palavra, que antes foi escrita em pedra, será
escrita no coração. A letra tornar-se-á espírito, e o espírito, carne.
Assim se cumpre o sentido da
revelação: o absoluto se aproxima passo a passo, cada vez mais interior, cada
vez mais pessoal. O Deus que outrora falou do alto da montanha falará um dia
dentro da alma. A Lei e os Profetas são os dois pilares dessa ponte — o caminho
pelo qual o tempo se abre à eternidade.
Décima
Quinta Lição – A plenitude dos tempos: a encarnação como evento central
Há um ritmo na história da
revelação, uma cadência que conduz do símbolo à palavra, da lei ao espírito, da
promessa ao cumprimento. Esse ritmo culmina no ponto em que o tempo se abre
para o eterno — o que as Escrituras chamam de plenitude dos tempos.
Tudo o que precedeu foi preparação. A criação, a queda, a lei, os profetas —
todos foram degraus. O que era pressentido no mito, anunciado na profecia e
prefigurado na aliança, cumpre-se agora na encarnação: Deus torna-se homem.
A encarnação é o ato central da
revelação, porque nela o absoluto deixa de ser apenas fundamento e torna-se
participante. O divino não se limita a falar — assume a carne, a dor, o limite,
o tempo. O infinito não se impõe ao finito: entra nele.
O ser absoluto, que é plenitude em si, desce à carência, não por necessidade,
mas por amor. O amor é o poder pelo qual o eterno se entrega ao temporal sem se
perder.
Na encarnação, a liberdade
divina atinge sua expressão mais alta. Pois é o gesto pelo qual o poder supremo
renuncia a toda supremacia. O Criador, que poderia permanecer inatingível, escolhe
tornar-se vulnerável. O mesmo ato que criou o mundo cria agora a comunhão.
A criação foi o amor que deu o ser; a encarnação é o amor que compartilha o
ser.
O “Verbo” é o nome dessa
comunicação eterna. Desde o princípio, diz o Evangelho, “o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus.” O Verbo é a possibilidade da revelação em Deus: o
aspecto comunicante do absoluto. Quando o Verbo se faz carne, a comunicação
torna-se completa. O que era apenas luz torna-se presença.
A eternidade, ao entrar no tempo, não o destrói: consagra-o.
Por isso, a encarnação não é
milagre isolado, mas centro ontológico. Ela é o ponto em que a história, a
natureza e o espírito convergem. O homem, que desde a queda vivia separado do
princípio, reencontra agora sua origem na própria humanidade de Deus. O divino
assume o humano para que o humano possa tornar-se divino. Essa é a fórmula
secreta da revelação: Deus se
humaniza para que o homem se divinize.
Em Cristo, tudo o que fora
separado volta a unir-se. O céu e a terra, o tempo e a eternidade, o visível e
o invisível, o espírito e a matéria — todos se reencontram. Nele, o cosmos
torna-se corpo do sentido, e a história, transparência do eterno. O homem,
outrora espelho quebrado, torna-se novamente imagem viva de Deus.
A encarnação não é apenas
evento religioso, mas necessidade metafísica. Pois se o mal é ruptura da
unidade, só o amor encarnado pode restaurá-la. A revelação não poderia
permanecer palavra; ela devia tornar-se ato. O absoluto não redime com
discursos, mas com presença.
Assim, o verbo que criou o mundo é o mesmo que o salva — pronunciado novamente,
agora dentro do tempo.
Na encarnação, Deus não aparece
como força, mas como fraqueza; não como juiz, mas como redentor. A onipotência
se manifesta como compaixão. O que é mais poderoso do que criar é amar até o
sofrimento. O poder supremo é aquele que pode renunciar a si.
A cruz, longe de ser escândalo, é a coroa da liberdade divina: o ponto em que o
amor revela sua infinita soberania.
O homem, ao contemplar o Deus
encarnado, vê pela primeira vez o que significa ser imagem divina. Pois o
Filho, sendo Deus, torna-se o modelo perfeito do homem. Tudo o que o homem foi
chamado a ser — liberdade, consciência, amor —, ele o é em plenitude. A
humanidade de Cristo é a resposta à questão do homem.
Nele, o homem reencontra sua origem e seu destino.
Schelling vê nesse mistério a
reconciliação de toda filosofia anterior. O idealismo, que buscava a identidade
entre sujeito e objeto, encontra na encarnação sua realização concreta. Pois em
Cristo o infinito e o finito não se confundem, mas coexistem em unidade. O
absoluto não é mais conceito, mas pessoa.
A razão, que antes aspirava ao absoluto, agora o contempla na história.
O “plenitude dos tempos”
significa, portanto, não apenas o momento cronológico, mas o ponto em que o
espírito humano estava preparado para acolher o divino em forma visível. Toda a
educação do gênero humano — das religiões simbólicas ao monoteísmo ético —
convergia para essa abertura. Quando o homem pôde reconhecer a verdade não apenas
com o intelecto, mas com o coração, o verbo fez-se carne.
A encarnação é o espelho onde a
eternidade se vê no tempo. Ela é o eixo da história, o centro em torno do qual
tudo gira: antes dela, preparação; depois dela, explicação. Tudo o que veio
antes tende a ela; tudo o que vem depois, dela procede.
A revelação alcança, nesse ponto, sua transparência perfeita: o Deus invisível
torna-se visível, o inalcançável torna-se próximo, o eterno torna-se presente.
O amor encarnado é a verdade
final do ser. O que a filosofia procurava como princípio, o homem encontra como
pessoa. O que os mitos expressavam em imagens e os profetas em palavras, Cristo
o manifesta em vida. A revelação torna-se plena porque deixa de ser apenas
ensino — torna-se encontro.
Deus, que criou o homem à sua imagem, agora assume essa imagem e a devolve
purificada.
Por isso, a encarnação é o
ponto em que a história deixa de ser preparação e torna-se presença. Aquele que
era esperado veio, e o que era promessa tornou-se cumprimento. Mas o cumprimento
não é encerramento: é início de uma nova revelação — a do Espírito, que
continuará a obra no interior das almas.
Assim, o centro da revelação é
também o centro do tempo. Antes, o homem olhava para o passado e o futuro em
busca de sentido; agora, o sentido habita o presente. O tempo é redimido, a
natureza reconciliada, o espírito iluminado.
A eternidade não está mais além, mas dentro.
Décima
Sexta Lição – O Cristo histórico e o Cristo eterno
A Encarnação, tomada apenas
como evento histórico, seria um acontecimento entre outros, situado no tempo e
condicionado pelas circunstâncias. Mas, em verdade, ela é o ponto em que o
eterno se manifesta no tempo sem deixar de ser eterno. O Cristo histórico é a
aparição visível do Cristo eterno.
Ele não é apenas enviado de Deus; é o próprio Deus revelando-se sob forma
humana.
Desde o princípio, o Verbo já
existia. Ele é o “Fiat” da criação, a palavra pela qual todas as coisas foram
feitas. Através dele o mundo foi criado, e nele tudo subsiste. O Cristo eterno
é, portanto, o princípio interior do cosmos, a luz que dá sentido ao ser. A
história de Jesus é a manifestação dessa luz no coração da humanidade.
O evento no tempo é reflexo do ato eterno.
Assim como a criação não é algo
que aconteceu uma vez, mas continua em cada instante, também a Encarnação não é
mero passado, mas presença viva. O Cristo eterno está sempre encarnando-se.
Cada ato de amor, cada gesto de verdade, cada consciência que desperta é
participação nesse mesmo mistério.
O Cristo histórico foi o foco central, a manifestação perfeita do que sempre
foi ativo desde o princípio.
O Verbo eterno é a consciência
divina que sustenta o mundo. Ele é a imagem perfeita do Pai, a expressão eterna
do amor. Quando se faz carne, ele não deixa de ser o que era; apenas se revela
plenamente. O que no princípio estava oculto na essência do ser, torna-se
visível na forma humana.
O Cristo histórico é, pois, a revelação sensível do que é eternamente
verdadeiro.
Schelling distingue, com
precisão, entre história
e revelação: a história
é o cenário, a revelação é o conteúdo. O Cristo histórico pertence ao tempo; o
Cristo eterno, à eternidade. Mas o sentido da Encarnação é justamente unir os
dois. O evento histórico é veículo do eterno; o eterno confere sentido ao
histórico.
Sem o eterno, o Cristo histórico seria apenas um sábio; sem o histórico, o
Cristo eterno permaneceria inacessível.
O Cristo eterno é o mediador
não apenas entre Deus e o homem, mas entre o ser e o nada, o eterno e o
temporal, o necessário e o livre. Nele, todas as contradições se reconciliam.
Ele é o centro real do universo, o ponto em que todas as linhas do ser se
encontram. O mundo, longe de ser exterior a Cristo, é sua expansão simbólica.
Como dizia João: “Tudo foi feito por meio dele.”
Por isso, a Encarnação é a
repetição no tempo de uma verdade ontológica anterior à criação. Antes que o
mundo existisse, o Cristo era. Ele é o arquétipo da humanidade, a forma ideal
do ser consciente. O homem foi criado à imagem do Cristo, não o Cristo à imagem
do homem. O Verbo encarnado é a realização plena daquilo que o homem sempre foi
chamado a ser.
A distinção entre o Cristo
histórico e o Cristo eterno é necessária apenas enquanto houver tempo. Pois na
visão eterna ambos são um só. A diferença surge apenas sob a perspectiva do
homem, que vive na sucessão. O eterno não se divide, mas reflete-se de
múltiplos modos.
O Cristo histórico é o reflexo máximo da eternidade no espelho do tempo.
O Cristo eterno age antes e
depois de Jesus. Ele fala nos profetas, inspira os justos, ordena o cosmos,
move as consciências. Em todas as épocas, Ele se manifesta sob nomes diversos,
conforme a capacidade do olhar humano. Mas no homem de Nazaré sua luz atingiu
clareza total — ali o eterno tornou-se forma definitiva.
Por isso, Cristo é ao mesmo tempo história
e princípio: fato
e fundamento.
Schelling insiste que o
cristianismo não é doutrina, mas acontecimento ontológico. O Cristo não é
apenas um mestre moral, mas o ser no qual a humanidade reencontra sua essência.
Ele é o segundo Adão — não outro homem, mas o homem restaurado, o homem em
unidade com o divino. O primeiro Adão simboliza a liberdade voltada para si; o
segundo, a liberdade reconciliada.
O Cristo histórico, portanto, é
o ato pelo qual o eterno assume a história para redimi-la. Ele não nega o
tempo, mas o cumpre; não elimina a natureza, mas a transfigura. Através dele, o
finito é reintegrado no infinito. Cada instante, depois de Cristo, carrega a
possibilidade da eternidade.
O tempo deixa de ser prisão e torna-se veículo da revelação.
O Cristo eterno permanece ativo
na história. Ele não se retira após a encarnação: continua a operar,
invisivelmente, na alma humana e na comunidade espiritual. Sua presença é o
Espírito, que perpetua o evento no interior do homem. O Cristo histórico foi o
verbo tornado carne; o Cristo eterno é o verbo tornado vida.
O Cristo é, portanto, o elo
vivo entre o ser e a consciência. Sem ele, o mundo seria mera criação
inconsciente de um poder distante; com ele, torna-se revelação amorosa de um
Deus presente. Ele é o coração da realidade, o ponto em que o absoluto se
mostra como amor.
O sentido do ser é Cristo.
Assim, a distinção entre o
Cristo histórico e o Cristo eterno não é separação, mas dupla visão do mesmo
mistério: uma voltada ao tempo, outra à eternidade. A fé contempla o primeiro;
a filosofia compreende o segundo; o amor une ambos. Pois o amor é o próprio
modo de ser de Cristo — a coincidência do eterno e do temporal, do divino e do
humano.
No fim, tudo o que existe foi
feito nele, tudo o que vive vive por ele, e tudo o que retorna, retorna a ele.
O Cristo histórico é o portal; o Cristo eterno, o lar. A revelação atinge aqui
seu sentido último: o ser absoluto, que desde o princípio se comunicava em
formas e palavras, finalmente se reconhece em si mesmo através da humanidade do
Filho.
Décima
Sétima Lição – A ressurreição e a vitória do espírito sobre a natureza
A encarnação revelou o amor
divino; a cruz revelou sua entrega; a ressurreição revela sua vitória.
Com ela, a revelação atinge sua plenitude: o espírito, que desceu até as
profundezas da matéria, retorna triunfante, levando consigo tudo o que
assumira.
O que a criação começou — o espírito descendo à forma —, a ressurreição
completa — a forma sendo assumida pelo espírito.
A morte é o limite supremo da
natureza. Tudo o que nasce, perece; tudo o que aparece, desaparece. A natureza
é, em si mesma, um ciclo de geração e dissolução, de nascimento e retorno. Por
isso, em toda filosofia natural, o morrer parece inevitável — lei fundamental
da vida.
Mas na ressurreição, essa lei é transcendida: não negada, mas superada. O
espírito, que antes se deixava dominar pelo ritmo da natureza, agora o domina.
A ressurreição é a demonstração
de que o espírito é mais forte que a matéria.
Não se trata de reanimação, mas de transfiguração. O corpo ressuscitado não é o
corpo terreno restaurado, mas o corpo tornado transparente à luz do ser.
O que na encarnação era descida, na ressurreição é ascensão. O mesmo amor que
levou Deus a assumir a carne leva agora a carne a participar da glória divina.
Schelling insiste: a
ressurreição não é milagre arbitrário, mas consequência necessária da natureza
divina do Cristo.
Se Ele é o Verbo eterno que criou e sustenta o mundo, não poderia permanecer
prisioneiro das leis que Ele mesmo instituiu. O que em nós é dissolução, n’Ele
é revelação. A morte, que para o homem é fim, para o Cristo é passagem.
Assim, o túmulo não é ponto final, mas portal — o ponto em que o tempo se abre
definitivamente à eternidade.
A ressurreição é o ato pelo
qual o absoluto afirma o sentido do mundo. Se a cruz revelou o sofrimento do
amor, a ressurreição revela sua invencibilidade. A morte é vencida não por
força exterior, mas por interioridade absoluta: a vida que não pode deixar de
ser porque é o próprio ser.
O Cristo ressuscitado é a evidência de que a existência material não é prisão,
mas campo de transfiguração.
Na ressurreição, a natureza
deixa de ser o que era na queda — uma barreira — e torna-se novamente o que era
na criação — expressão da liberdade divina. A matéria é purificada, libertada
da corrupção. O mundo volta a ser sacramento.
A ressurreição é o sinal de que o espírito não apenas salva o homem, mas redime
a criação inteira.
Pois se a queda afetou o cosmos inteiro, a vitória do espírito estende-se
também a ele.
Essa vitória é universal. O
Cristo não ressuscita só para si, mas como princípio de toda regeneração. Sua
ressurreição é a promessa de nossa própria transfiguração.
O que n’Ele se realizou plenamente, em nós começa a realizar-se gradualmente.
Cada ato de verdade, cada vitória do amor sobre o egoísmo, é já uma forma de
ressurreição. O que o Cristo fez no corpo, o Espírito o continua nas almas.
O corpo glorioso do
ressuscitado é o símbolo da unidade restaurada entre espírito e natureza.
Ele não rejeita a matéria: a torna luz. Não destrói o corpo: o espiritualiza. O
que era opaco torna-se transparente. É a mesma carne, mas atravessada pela
eternidade. O visível e o invisível reconciliam-se.
A ressurreição é o corpo tornado verbo.
A filosofia da natureza, para
Schelling, só se cumpre na filosofia da revelação.
A natureza, que no início era revelação inconsciente de Deus, atinge sua
autoconsciência no Cristo ressuscitado. N’Ele, a criação se reconhece no
Criador. A natureza, que parecia afastar-se do espírito, encontra sua própria
finalidade no retorno ao espírito.
A ressurreição é a natureza redimida.
Esse acontecimento não é apenas
futuro ou distante. Ele está em curso.
Desde a Páscoa, o espírito trabalha dentro do mundo, despertando em cada ser a
vocação de ressurgir.
Tudo o que vive está sendo lentamente penetrado pela luz da ressurreição. A
história é a extensão desse processo, o desdobrar temporal de um ato eterno.
Por isso, a ressurreição não é
apenas o fim da morte — é o início da nova criação.
O mundo antigo, regido pela necessidade, dá lugar ao mundo do amor. O tempo
deixa de ser prisão linear e torna-se caminho ascensional. O ser não se repete
mais; progride. A eternidade, outrora transcendente, agora habita no interior
do tempo.
No Cristo ressuscitado, o homem
vê o seu destino. Ele é o primeiro de muitos.
A humanidade, redimida, está chamada a participar de sua glória, não como
cópia, mas como comunhão. O que começou na cruz termina na unidade: o espírito
reinando sobre a matéria, o amor triunfando sobre a necessidade.
A ressurreição é, assim, o selo da liberdade absoluta.
O mistério da revelação atinge,
aqui, sua transparência final: o absoluto não apenas se revela, mas se dá; não
apenas cria, mas ressuscita; não apenas vive, mas faz viver.
A criação começou na luz; a redenção, na cruz; a consumação, na ressurreição.
O espírito, enfim, torna-se senhor da natureza, e o tempo se curva diante da
eternidade.
Décima
Oitava Lição – A Igreja como continuidade viva da revelação
A revelação não terminou com a
ascensão de Cristo; ela prossegue.
O Verbo que se fez carne continua a manifestar-se, agora não em um corpo
individual, mas em um corpo coletivo — o corpo espiritual da comunidade dos
fiéis.
Esse corpo é a Igreja,
não simples sociedade religiosa, mas o organismo vivo em que o Cristo eterno
continua a encarnar-se na história.
Desde o início, o Espírito
Santo é o vínculo dessa continuidade.
A Encarnação revelou o Filho; a Ressurreição revelou o Espírito.
O Espírito é o sopro do Cristo ressuscitado, a vida comunicada àqueles que
creem. Ele faz do evento um princípio, do fato um mistério permanente.
O Cristo histórico foi único; o Cristo vivo permanece.
A Igreja nasce desse sopro —
não como estrutura exterior, mas como presença interior.
Ela é o lugar onde a revelação se torna comunhão: Deus com o homem, e os homens
entre si.
Assim como no Cristo o divino e o humano se uniram numa única pessoa, na Igreja
o Espírito e a humanidade se unem num único corpo.
Por isso, ela é chamada Corpo Místico: prolongamento real da Encarnação.
Schelling insiste que a
revelação não é concluída, mas contínua.
O Espírito não veio substituir o Filho, mas manifestar sua presença em nova
forma.
O que antes estava visivelmente num só, agora está invisivelmente em muitos.
A unidade que antes era pessoal torna-se universal.
O Cristo não parte: distribui-se.
A Igreja é, portanto, o
sacramento do Cristo no tempo.
Ela conserva o depósito da revelação, mas também o faz crescer.
Sua missão não é apenas lembrar o passado, mas atualizar o eterno.
Em cada geração, o Espírito sopra novamente, recordando as palavras, recriando
a presença.
Assim como o Cristo eterno age na natureza e na consciência, age também na
comunidade.
A verdadeira Igreja não se
confunde com suas formas externas.
As instituições, os ritos e as hierarquias são necessários, mas não
suficientes.
Eles são vasos do Espírito, não sua substância.
O que dá vida à Igreja é o mesmo poder que ressuscitou o Cristo: o amor divino.
Onde esse amor se manifesta, ali está a Igreja, mesmo que invisível aos olhos
do mundo.
Schelling recusa tanto o
espiritualismo que dissolve a Igreja em mera ideia, quanto o formalismo que a
reduz a autoridade exterior.
A Igreja é síntese: visível e invisível, histórica e eterna.
Ela pertence ao tempo, mas é movida pela eternidade.
Assim como Cristo foi Deus visível, a Igreja é o Espírito tornado sociedade.
É o mistério da Encarnação prolongado no plano coletivo.
Na Igreja, a revelação torna-se
vida.
O que na história de Cristo era gesto único — curar, perdoar, amar —, nela torna-se
vocação universal.
Cada alma é um membro, cada ato de caridade, uma nova manifestação do Verbo.
O Espírito age como alma desse corpo, animando-o de dentro.
Por isso, o cristianismo não é apenas doutrina, mas vida transmitida.
A Igreja é também o espaço onde
a liberdade humana é integrada à liberdade divina.
Nela, o homem participa ativamente da revelação.
O Espírito não anula a vontade, mas a eleva.
A fé, longe de ser submissão cega, é comunhão lúcida com o infinito.
A Igreja é o lugar onde a liberdade se transforma em obediência amorosa, e a
obediência, em liberdade iluminada.
A continuidade da revelação na
Igreja é o grande mistério da história.
O Espírito Santo é o elo entre o Cristo histórico e o Cristo escatológico.
Ele conserva o passado e prepara o futuro, guiando a comunidade rumo à
plenitude.
Por isso, a Igreja não é apenas memória, mas promessa — não apenas instituição,
mas peregrinação.
Ela é o caminho visível do eterno no tempo.
Cada época da Igreja é um novo
capítulo da revelação.
O Espírito não cessa de falar, ainda que a linguagem mude.
A teologia, a arte, a liturgia, a mística — tudo são modos da mesma presença.
Quando uma forma se esgota, o Espírito suscita outra; quando a letra ameaça
endurecer, o amor renova.
O que o Cristo começou, o Espírito continua.
A Igreja é, assim, o sinal de
que a revelação é viva.
Ela é a arca que atravessa os séculos, levando em si o fogo da presença.
Mesmo quando o mundo parece esquecê-la, ela permanece, invisivelmente
sustentando o sentido.
Pois enquanto houver fé, esperança e caridade, Cristo estará encarnado no
coração do homem.
No fim, a Igreja é o mundo
transfigurado: a criação voltando a ser templo.
O que começou com um corpo singular termina com o corpo universal.
O Cristo que nasceu em Belém renasce em cada alma que ama.
A revelação não se repete: expande-se.
E a Igreja é essa expansão — a eternidade multiplicando-se no tempo.
Décima
Nona Lição – A revelação e a história universal
A revelação é o fio oculto que
atravessa toda a história humana.
O que para o olhar superficial parece simples sucessão de eventos, para o olhar
filosófico é o desenvolvimento progressivo de um único ato divino.
A história universal não é acaso nem caos — é revelação em movimento.
O absoluto manifesta-se, primeiro, na natureza; depois, na consciência; e,
finalmente, na liberdade.
A história é o caminho da liberdade rumo à transparência.
Cada povo, cada época, cada
religião participa desse drama cósmico.
As civilizações antigas foram a infância do espírito humano: o tempo do símbolo.
Israel foi sua adolescência: o tempo da promessa.
O cristianismo é sua maturidade: o tempo da presença.
E ainda assim, a revelação não se encerra aí — pois o Espírito continua a
trabalhar no interior da história, conduzindo tudo à plenitude final.
O curso da história é o
prolongamento da encarnação.
Desde o momento em que o Verbo entrou no tempo, nada é mais puramente profano.
Toda a existência tornou-se espaço de revelação.
Mesmo os acontecimentos aparentemente seculares — descobertas, guerras, crises
— são movimentos do grande drama em que o espírito busca libertar-se da matéria
e dominar a necessidade.
O tempo, em sua aparência de dispersão, é a pedagogia da eternidade.
A revelação avança por ciclos.
Primeiro, o homem vê Deus em todas as coisas; depois, busca-O fora delas; por
fim, descobre-O dentro de si.
Esses três momentos — cósmico, histórico e espiritual — correspondem às três
grandes fases da humanidade.
O mundo antigo adorou a ordem da natureza; o mundo bíblico, a voz do Deus
transcendente; o mundo cristão, a presença do Deus interior.
O que virá depois é a reconciliação de todos esses modos num único espírito
universal.
Para Schelling, a história
universal é a progressiva interiorização do divino.
A revelação começou externa, tornou-se verbal e, agora, tende a tornar-se
vivência.
O fim dos tempos não será o fim do mundo, mas o fim da separação.
A humanidade inteira está destinada a tornar-se o corpo vivo da revelação — a
Igreja universal, onde não haverá mais diferença entre fé e conhecimento, religião
e razão, espírito e mundo.
Nesse processo, cada cultura
tem papel insubstituível.
O Oriente conservou a intuição do Uno; o Ocidente, a consciência da liberdade.
O primeiro manteve a contemplação, o segundo, a ação.
Somente na união de ambos o espírito humano alcançará equilíbrio.
O Oriente, sem o Cristo, permaneceu na eternidade sem história; o Ocidente, sem
o Espírito, perdeu a eternidade no fluxo da história.
O fim da revelação será a reconciliação desses dois movimentos: o repouso do
Oriente e o dinamismo do Ocidente, a sabedoria e o amor.
A história é o campo onde o
divino e o humano se encontram, mas também onde se enfrentam.
Cada era de progresso é seguida de queda, cada ascensão, de sombra.
O mal, como vimos, é o preço da liberdade; mas é também o motor da revelação.
Os períodos de trevas preparam a aurora; as ruínas de um mundo são o solo do
próximo.
O Espírito constrói com o material das destruições.
Nada se perde: até o erro é incorporado no caminho da verdade.
Por isso, a história não pode
ser julgada por fragmentos.
Cada época cumpre uma função: a Grécia ensinou a beleza; Roma, a ordem; Israel,
a fidelidade; o cristianismo, o amor; a modernidade, a liberdade.
Mesmo as revoltas contra o divino — o ceticismo, a secularização, o niilismo —
têm lugar nesse processo.
Elas são os extremos pelos quais o Espírito experimenta a própria autonomia.
A descrença é o deserto que prepara o novo êxodo da fé.
A revelação na história é,
portanto, dialética: alterna entre presença e ausência, luz e sombra, mas
sempre progride.
Schelling compara o movimento do Espírito ao curso de um rio: ele se curva,
contorna, parece perder-se, mas nunca deixa de descer em direção ao mar.
O fim da história é o reencontro do rio com o oceano de onde saiu — o retorno
da humanidade à unidade divina.
A Igreja visível, como corpo
espiritual, é o eixo desse movimento; mas o Espírito sopra além de suas
fronteiras.
O divino trabalha também fora dos muros, nas consciências e nas culturas que
ainda não conhecem o nome de Cristo, mas participam de sua luz.
A revelação não é privilégio de um povo, mas destino de todos.
O Logos é a razão interior de toda história — mesmo daquelas que parecem
contrárias à fé.
No final dos tempos, o mundo
inteiro será templo.
A distinção entre sagrado e profano desaparecerá, pois tudo será transparência.
A ciência e a fé, a filosofia e a religião, a arte e a moral convergirão na
mesma luz.
A história, reconciliada, revelará seu sentido: o amor é mais forte que o
tempo.
O absoluto, que se revelou primeiro como criador e depois como redentor,
manifestar-se-á enfim como união.
Assim, a história universal é a
história da revelação, e a revelação é o coração da história.
Nada está fora dela, pois tudo — até o erro e o sofrimento — é caminho da
liberdade em direção à verdade.
O tempo é o espelho onde o eterno aprende a ver-se multiplicado.
E quando o espelho se tornar totalmente transparente, a história cessará — não
por aniquilação, mas por plenitude.
O mundo inteiro se tornará palavra, e a palavra será Deus.
Vigésima
Lição – A revelação como sistema: unidade do ser, do saber e do agir
Toda revelação autêntica deve
culminar em sistema.
Pois o absoluto, sendo unidade viva, não pode permanecer disperso em fatos ou
sentimentos isolados; ele deve manifestar-se como ordem inteligível.
O sistema da revelação é, portanto, o desvelar filosófico do ser divino em
todas as suas dimensões: ontológica, cognoscitiva e prática — ser, saber e agir.
Essas três dimensões não são partes separadas, mas expressões diferentes de uma
mesma vida divina.
No princípio, o ser; no meio, o
saber; no fim, o agir.
Mas o princípio, o meio e o fim estão contidos uns nos outros.
O ser é o fundamento, o saber é a autoconsciência do ser, e o agir é a sua
realização livre.
O absoluto não é apenas o que é, mas o que se sabe e o que age conforme o que
sabe.
Deus é, portanto, o sistema perfeito: a coincidência do real, do racional e do
moral.
A filosofia da revelação é a
exposição desse sistema vivo no qual tudo participa da vida divina.
Na criação, o ser; na encarnação, o saber; na redenção, o agir.
Esses três atos são um único movimento — a autocomunicação do absoluto.
O ser, para ser verdadeiro, deve manifestar-se; o saber, para ser pleno, deve
agir; o agir, para ser livre, deve fundar-se no ser.
O círculo se fecha: o absoluto é revelação, e a revelação é sistema.
Schelling insiste que o sistema
da revelação não é uma construção da razão humana, mas a razão divina tornada
consciente em nós.
A filosofia não cria a revelação — reconhece sua estrutura.
Toda verdadeira filosofia é, em última instância, teológica; e toda teologia,
quando verdadeira, é filosófica.
A separação entre ambas é artificial.
O que a fé aceita, a razão compreende; o que a razão compreende, a fé confirma.
O sistema da revelação é,
portanto, a reconciliação entre filosofia e religião.
Durante séculos, ambas caminharam separadas: a filosofia buscando o absoluto
pela razão, a religião pela fé.
Mas a revelação mostra que ambas partem do mesmo princípio e visam o mesmo fim.
A fé é o primeiro olhar sobre a verdade; a filosofia, o olhar que retorna e
compreende o que viu.
O mistério e o conceito não são inimigos, mas etapas do mesmo caminho.
Ser, saber e agir correspondem,
no homem, às três potências da alma: existência, consciência e vontade.
No ser, o homem participa da criação; no saber, da encarnação; no agir, da
redenção.
Ele é o microcosmo do sistema divino.
Sua vida espiritual é o reflexo da vida trinitária.
Assim, a revelação, longe de ser algo exterior ao homem, é o movimento interior
de sua própria alma.
Schelling vê aqui a consumação
do idealismo: o saber absoluto de que falara Hegel, mas agora enraizado na
liberdade e no amor.
Pois o absoluto não é pura razão — é razão vivente.
O erro do idealismo foi reduzir a revelação a ideia; o erro da teologia
dogmática, reduzi-la a fato.
O sistema da revelação é ambos: o fato elevado à ideia, e a ideia encarnada em
fato.
O ser absoluto é pensamento que se faz carne e carne que se faz pensamento.
A unidade entre ser, saber e
agir é também a unidade entre ontologia, epistemologia e ética.
O ser sem saber seria inconsciente; o saber sem agir seria estéril; o agir sem
ser seria vazio.
A revelação é o equilíbrio desses três.
Ela é o ser que se conhece e age conforme o conhecimento de si — e nesse agir
revela o amor.
O amor é, portanto, o princípio unificador do sistema.
A filosofia da revelação é, em
seu nível mais alto, filosofia do amor.
Pois o amor é o modo pelo qual o ser se revela sem perder-se, o saber
comunica-se sem dissolver-se, e o agir realiza-se sem destruir.
O amor é a estrutura do absoluto, o ritmo de sua vida trinitária.
O Pai é o ser que ama; o Filho, o saber que é amado; o Espírito, o agir que une
ambos.
A Trindade é o sistema vivo do amor revelado.
O homem participa desse sistema
pela liberdade.
Sua tarefa não é apenas compreender a revelação, mas continuar a revelação
através de sua vida.
Cada ato justo é prolongamento do ser divino; cada pensamento verdadeiro,
participação no saber divino; cada gesto de amor, expressão do agir divino.
O sistema da revelação, portanto, não é apenas teoria — é vocação.
A filosofia culmina na ética, e a ética culmina no culto.
A revelação é o absoluto
tornando-se acessível.
O sistema filosófico é o mapa dessa acessibilidade.
Tudo o que existe — desde o átomo até o anjo — participa dessa ordem.
A realidade é hierarquia, mas não hierarquia de poder: de transparência.
Os seres mais perfeitos são os que mais deixam o ser divino brilhar através
deles.
A santidade é a clareza do ser.
Por isso, compreender o sistema
da revelação é compreender a ordem real do universo.
A natureza é o ser revelando-se; a história, o saber revelando-se; a moral, o
agir revelando-se.
Essas três esferas formam o templo do absoluto.
O cosmos é o átrio, a história é o altar, e a consciência é o santuário.
E no centro desse templo, o verbo eterno resplandece, unindo o que é, o que
sabe e o que ama.
Vigésima
Primeira Lição – A liberdade como condição última da verdade revelada
A revelação só é verdadeira se
for livre.
Pois o que se impõe por necessidade não convence o espírito — apenas o
constrange.
A verdade, para ser divina, deve também ser livre; e para ser acolhida pelo
homem, deve ser recebida na liberdade.
Assim, a liberdade é a condição da revelação tanto em Deus quanto no homem: em
Deus, como poder de se manifestar; no homem, como poder de responder.
Na criação, a liberdade divina
aparece como ato; na encarnação, como amor; na redenção, como graça.
Em todas essas formas, ela é o mesmo princípio: o ser absoluto comunicando-se
sem coerção.
Deus não é necessitado a revelar-se; Ele o faz porque o amor é sua natureza.
A liberdade é, portanto, a face luminosa da necessidade divina.
Não há oposição entre ambas: o necessário em Deus é ser livre.
A liberdade é também o
fundamento da verdade.
Pois a verdade não é uma estrutura exterior ao ser, mas o próprio ser revelado.
O ser só se revela quando quer, e só se reconhece quando é reconhecido
livremente.
Por isso, a verdade só existe entre sujeitos livres.
O conhecimento verdadeiro é um ato de comunhão, não de dominação.
Conhecer é participar da liberdade do ser.
O erro das filosofias
deterministas é pensar o absoluto como necessidade impessoal.
Mas o necessário, separado da liberdade, é morte; e a liberdade, separada do
necessário, é caos.
A verdade está na unidade viva de ambos: a liberdade que tem razão e a razão
que é livre.
Deus é a síntese perfeita dessas potências — o ser cuja necessidade é amor e
cuja liberdade é luz.
No homem, a liberdade é o
reflexo dessa essência divina.
Ela não é faculdade arbitrária, mas potência de corresponder ao ser.
Ser livre é poder dizer “sim” à verdade.
A liberdade é o espaço interior onde a revelação acontece.
Sem ela, Deus falaria, e o homem não escutaria; a graça se derramaria, e o
coração permaneceria fechado.
A liberdade é o ouvido do espírito.
Schelling chama essa liberdade
de “transcendental”: anterior à escolha entre bem e mal, anterior à moral.
Ela é o dom originário que faz do homem um ser capaz de Deus.
É o ponto onde o finito participa do infinito.
Na liberdade humana, o absoluto deposita sua imagem; na resposta humana, o
absoluto reencontra-se.
Assim, a revelação é diálogo, e o diálogo supõe dois libertos.
Toda revelação é também risco.
Pois o livre pode recusar o dom.
Deus aceita esse risco porque o amor exige liberdade.
A liberdade divina é tão perfeita que suporta ser negada.
Esse é o sentido mais profundo da queda: a prova de que Deus não criou
autômatos, mas parceiros.
A história do mundo é o drama da liberdade em relação ao amor.
A verdade revelada, portanto,
não é imposição, mas convite.
Ela se oferece, não se impõe; ilumina, não cega.
O homem é chamado a reconhecê-la, não a fabricá-la.
A fé é esse reconhecimento: o consentimento livre à verdade divina.
Por isso, a fé é ato de liberdade, não de submissão.
Crer é escolher a luz.
Na revelação, a liberdade
humana e a divina coincidem.
A primeira é receptiva, a segunda, comunicante; mas ambas são do mesmo gênero.
Deus cria e o homem responde; Deus ama e o homem ama; Deus revela e o homem
compreende.
Quando essas duas liberdades se encontram, nasce a verdade.
O saber, então, deixa de ser conquista e torna-se comunhão.
O conhecimento científico,
moral e estético são graus dessa liberdade em ação.
Na ciência, o espírito busca compreender a ordem do ser; na moral, agir
conforme o bem; na arte, revelar a beleza.
Todos são reflexos da liberdade divina.
A ciência é a liberdade do intelecto; a moral, a liberdade da vontade; a arte,
a liberdade da imaginação.
No ponto mais alto, todas convergem na fé, que é liberdade total: o ato de
unir-se voluntariamente ao absoluto.
Por isso, a revelação é o
coroamento da liberdade.
A criação deu o ser; a redenção, o sentido; a revelação, o consentimento.
Deus não quer apenas criaturas existentes, mas livres; não apenas livres, mas
participantes de sua própria vida.
A liberdade é o selo divino gravado no homem, o sinal de que ele é chamado a
ser mais do que efeito — colaborador do ser.
Schelling vê nesse ponto a
diferença entre uma religião revelada e uma religião natural.
A religião natural é o homem tentando alcançar Deus; a revelada é Deus
libertando o homem para alcançá-lo.
A primeira é esforço; a segunda, graça.
Mas a graça só é graça quando é livremente recebida.
Por isso, o maior milagre da revelação não é o poder de Deus, mas o consentimento
do homem.
A liberdade, enfim, é o nome
filosófico do amor.
Pois amar é agir sem necessidade, doar-se sem cálculo, existir no outro sem
perda de si.
A liberdade é o amor compreendido pela razão; o amor é a liberdade vivida pelo
coração.
Ambos são uma só substância.
O Espírito Santo, em quem a revelação continua, é precisamente essa liberdade
amorosa — o laço vivo entre o divino e o humano.
Assim, a filosofia da revelação
culmina na liberdade.
Ela começou com o ser, passou pelo saber e termina no agir.
Mas esse agir, agora compreendido, é o ato livre do amor absoluto.
Deus é liberdade; e o homem, quando livre, é imagem de Deus.
A revelação é a liberdade reconhecendo-se em si mesma.
Vigésima
Segunda Lição – O Espírito Santo como princípio de interiorização
A revelação seria incompleta se
permanecesse fora do homem.
O Espírito Santo é a etapa final e interior da autocomunicação divina — o
próprio Deus que, depois de criar o mundo e reconciliá-lo no Cristo, agora
habita no interior do ser humano.
O Espírito é a revelação tornada imanente.
O que o Pai fundou e o Filho mostrou, o Espírito vivifica.
No início, Deus falou ao homem;
depois, falou no homem; agora, fala como homem.
O Espírito Santo é essa voz interior que unifica o cosmos, a história e a alma.
Ele é a presença do eterno no tempo, o coração da divindade batendo dentro da
liberdade humana.
A revelação torna-se, assim, experiência: o saber transforma-se em vida, o
dogma em respiração, o mistério em consciência.
Schelling chama o Espírito de
“princípio da interiorização” porque nele a verdade deixa de ser objeto e
torna-se sujeito.
O Espírito é o saber que se sabe.
No Pai, o ser; no Filho, a revelação do ser; no Espírito, o retorno dessa
revelação à sua origem.
O movimento trinitário completa-se: o que saiu do Uno retorna ao Uno, agora
enriquecido pela liberdade.
A história divina culmina no recolhimento.
No Espírito, a distinção entre
Deus e homem não desaparece, mas se transfigura.
O homem não se torna Deus, mas Deus torna-se presença contínua no homem.
O Espírito é o elo entre transcendência e imanência.
Ele é transcendente porque vem de Deus, e imanente porque habita em nós.
É o dom que faz do homem templo vivo — a revelação convertida em morada.
O Espírito é também o princípio
da unidade interior.
A alma humana, dividida entre razão, vontade e sentimento, reencontra no
Espírito sua harmonia perdida.
Ele é o centro invisível que reconcilia o pensar e o amar, o querer e o
compreender.
A luz e o fogo tornam-se uma só coisa: inteligência ardente, amor consciente.
A revelação, antes mediada pela palavra, agora é imediata.
O Espírito não se manifesta em
fenômenos exteriores, mas na transformação do interior.
O verdadeiro milagre é a conversão do coração.
Ele age silenciosamente, como o fermento na massa, como o vento que não se vê,
mas move tudo.
Sua presença não se mede por êxtase, mas por lucidez.
O Espírito é o Deus que ensina sem voz e convence sem força.
Schelling diz que o Espírito é
a “memória viva de Deus”.
Ele recorda tudo o que foi revelado e o renova sem cessar.
Por isso, o Espírito é também o princípio da tradição viva: não repete o
passado, mas o ressuscita.
A fé, quando animada pelo Espírito, não é repetição de fórmulas, mas
experiência contínua de sentido.
Cada geração o escuta em sua própria língua, e ainda assim é o mesmo que falou
no princípio.
No Espírito, a liberdade
torna-se interioridade.
O homem já não busca a Deus fora — ele O reconhece dentro.
A oração deixa de ser súplica e torna-se comunhão.
O Espírito é a verdade tornada vida interior, a graça tornada consciência, o
amor tornado presença.
Ele é o “Deus conosco” transformado em “Deus em nós”.
A presença do Espírito é o
critério da autenticidade religiosa.
Onde há Espírito, há liberdade; onde há liberdade, há amor; onde há amor, há verdade.
Toda instituição que sufoca o Espírito apaga a própria luz da revelação.
A letra, sem o Espírito, mata; o Espírito, sem a letra, dispersa; a união de
ambos é a vida.
Por isso, a Igreja só permanece viva enquanto o Espírito a anima.
O Espírito é também princípio
de universalidade.
Ele sopra onde quer, transcendendo fronteiras, doutrinas e épocas.
O que Ele busca não é uniformidade, mas unidade na diversidade.
Cada alma é expressão singular da mesma luz.
A revelação, no Espírito, deixa de ser monopólio e torna-se comunhão — o Uno
multiplicando-se sem perder-se.
A filosofia encontra, aqui, sua
consumação.
O Espírito é o logos tornado interioridade, a ideia tornada vida.
A razão deixa de contemplar e começa a participar.
O conhecimento já não é apenas ver, mas ser visto pela verdade.
O Espírito é o ponto em que a gnose se transforma em amor e o amor em
conhecimento.
Por isso, a revelação culmina
na experiência mística.
Não no sentido de fuga do mundo, mas de penetração profunda no real.
Ver com o Espírito é ver todas as coisas em Deus, e Deus em todas as coisas.
A natureza torna-se transparente, o tempo, sacramento, e o eu, altar.
A separação entre saber e ser dissolve-se na presença viva.
O Espírito é, enfim, a
eternidade presente.
Ele é o fim e o recomeço de toda revelação.
Sem Ele, a história seria memória; com Ele, é vida.
Sem Ele, a fé seria hábito; com Ele, é fogo.
No Espírito, o absoluto permanece sempre atual, eternamente jovem.
Ele é o respirar de Deus na alma do mundo.
Vigésima
Terceira Lição — A Trindade como estrutura ontológica da revelação
Todo
ser que existe fora de si o faz por um movimento interior. O que se revela,
antes de manifestar-se ao outro, precisa estar, em si mesmo, em condição de
auto-relação. Assim, o fundamento da revelação não é apenas um ato de vontade
divina, mas uma necessidade intrínseca do próprio ser de Deus: a possibilidade
de que o absoluto contenha, em si, o princípio de comunicação, de alteridade e
de retorno. Esse princípio é a Trindade.
A
unidade pura, sem distinção, seria muda. O ser que não conhece outro em si permanece
fechado, sem luz. A revelação supõe que, no próprio Deus, haja relação — o ser,
a expressão do ser, e o amor que os une. Essa tríade não é invenção posterior
da teologia; é a estrutura ontológica do absoluto enquanto vivente. Sem ela, o
ser seria uma essência imóvel, incapaz de tornar-se consciência, de
desdobrar-se em criação, de amar.
No
Pai,
o ser é fundamento absoluto, origem sem origem, princípio de toda
possibilidade. No Filho, esse ser torna-se expressão, forma
inteligível, imagem de si — é o ser dizendo-se. No Espírito,
o que foi dito torna-se vida, união, movimento interior que reconduz tudo à
origem. O Pai é o Uno, o Filho é a Luz, o Espírito é o Amor. E, nessa tríplice
relação, a divindade não se divide, mas se torna transparente a si mesma.
A
revelação, portanto, não é algo que acontece fora de Deus, mas o próprio ser
divino em ato. O Pai é o princípio que se doa, o Filho é o princípio que se
mostra, o Espírito é o princípio que reconcilia. A criação é o reflexo disso no
tempo: o Pai funda, o Verbo forma, o Espírito vivifica. O universo é trinitário
porque deriva de um Deus trinitário; e o homem é trinitário porque é imagem do
mesmo mistério.
A
Trindade é a lógica eterna do ser. Todo ato verdadeiro de conhecimento, de amor
ou de criação reflete, em si, essa forma. Há o que é pensado, há o pensar, e há
o vínculo entre ambos. Há o amante, o amado e o amor. Há o criador, a obra e o
espírito que dá sentido à obra. A vida se organiza em tríades porque a
realidade primeira é relação triádica. A unidade que não admite distinção
degenera em vazio; a multiplicidade que não retorna à unidade se perde no caos.
Somente a relação trinitária mantém o equilíbrio do real: distinção sem
separação, unidade sem confusão.
Schelling
vê na Trindade o fundamento do próprio pensar. A razão humana, que busca o
verdadeiro, repete em escala finita o movimento do ser infinito. O intelecto
reflete o Filho, pois é a luz que torna o ser compreensível. A vontade
profunda, raiz do querer, corresponde ao Pai, fundamento que sustenta toda
ação. E o amor, como vínculo dos dois, é o Espírito, no qual o conhecimento
deixa de ser mera visão e se torna comunhão. A alma, quando se realiza, é
imagem viva da Trindade: pensa, ama e é.
Por
isso, compreender o mundo é compreender a Trindade em ato. A natureza é o Pai
manifestando-se como força; a história é o Filho tornando-se presença; a
consciência é o Espírito retornando à unidade. Tudo o que existe participa
desse movimento, e tudo o que é verdadeiro o repete em sua forma. O erro nasce
quando uma das três dimensões é isolada: o poder sem luz torna-se tirania; a
luz sem amor torna-se orgulho; o amor sem fundamento dissolve-se em
sentimentalismo. A harmonia do real é o reflexo da harmonia divina.
A
Trindade não é número, mas vida. Não há três deuses, nem três partes de um
deus: há um só ser vivo em três modos de ser. O Pai é o ser enquanto origem, o
Filho é o ser enquanto forma, o Espírito é o ser enquanto comunhão. Essa é a
gramática oculta da revelação, o que permite que o absoluto se diga sem deixar
de ser absoluto. O Filho revela o Pai sem o esgotar, e o Espírito reconcilia o
revelado com o revelador.
O
mistério da Trindade é o de uma unidade que só é plena na relação. O amor,
sendo dom, exige dois; mas, para que o dom seja perfeito, é preciso que haja o
espírito da reciprocidade — o terceiro. Assim, o amor divino é trino: aquele
que ama, aquele que é amado e o amor que procede de ambos. Por isso, a vida
eterna não é solidão, mas comunhão infinita. O ser de Deus é, desde sempre,
relação perfeita e movimento eterno de amor.
Sem
a Trindade, a revelação seria impossível, pois faltaria o meio interno para que
o absoluto se tornasse palavra. A encarnação é possível porque o Filho é, desde
sempre, o Verbo. E o dom do Espírito é possível porque há, desde sempre, um
laço vivo entre o revelador e o revelado. Assim, a economia da salvação não é
uma intervenção externa no tempo, mas a transposição temporal da estrutura
eterna da divindade.
Quando
o homem conhece o mistério trinitário, ele não o contempla como conceito, mas o
vive como destino. Seu ser, ao pensar e amar, repete o ritmo do ser divino. A
verdade não é abstração, é participação. O conhecimento mais alto é o amor
esclarecido; o amor mais puro é o conhecimento encarnado. O Espírito é o lugar
dessa síntese — o ponto em que o ser humano torna-se imagem viva da unidade
divina.
No
fim, a Trindade não é apenas doutrina teológica, mas a chave ontológica de todo
o real. Tudo o que é, é porque participa do ser que se comunica. A vida, a luz
e o amor são os três nomes de uma mesma realidade. Quem os separa destrói o
sentido do mundo; quem os une encontra o rosto de Deus. E é nesse rosto, que é
comunhão, que o homem descobre a sua própria verdade: ser imagem viva da
unidade que se revela amando.
Vigésima
Quarta Lição – A Filosofia da Revelação e sua Distinção da Teologia Positiva
A
filosofia da revelação não nasce contra a teologia positiva, mas para
libertá-la de seu limite. Pois o que se chama teologia positiva é, na verdade,
o esforço da fé para compreender-se no interior da história; é a consciência
religiosa organizada, sustentada por testemunhos, textos e tradições. Ela é
necessária, porque a revelação, tendo entrado no tempo, precisa ser guardada
por um corpo visível. No entanto, a positividade, se não for iluminada pela
razão, degenera em repetição; e a filosofia, se não for animada pela fé,
dissolve-se em abstração.
O
destino da verdade exige ambas: a memória viva do fato e a inteligência do
sentido. A teologia positiva parte daquilo que foi dito; a filosofia da
revelação pergunta por que isso pôde ser
dito. A primeira descreve os modos pelos quais Deus falou; a segunda busca a
necessidade interna da fala divina. A teologia se apoia na autoridade do
acontecimento; a filosofia quer compreender a razão do acontecimento. Não são
duas ciências rivais, mas dois movimentos do mesmo espírito: o um conserva, o
outro esclarece.
Toda
revelação é positiva enquanto irrompe na história — porque se dá em um momento,
a alguém, com forma, palavra e símbolo. Mas, se a revelação fosse apenas isso,
morreria com o tempo. A filosofia da revelação é o esforço do espírito para
libertar a revelação de sua prisão histórica sem destruí-la. Ela não nega a
positividade, mas a atravessa. O Cristo histórico, o evento, o símbolo — tudo é
necessário; mas tudo remete a uma inteligibilidade que os ultrapassa. O Filho
de Deus não é só o homem Jesus, mas o Verbo eterno que nele se manifestou.
A
teologia positiva está enraizada na fé da comunidade; a filosofia da revelação,
na necessidade do ser. A primeira fala do que se recebeu; a segunda, do que é
inevitável. O que a teologia crê como dom, a filosofia reconhece como
estrutura. Quando o teólogo diz: “Deus se revelou”, o filósofo responde: “Deus
devia se revelar, porque o ser é comunicação”. Essa diferença de linguagem não
é oposição, mas completude: a fé contempla, a razão compreende; e ambas se
curvam diante do mesmo mistério.
Schelling
insiste que a filosofia da revelação não inventa um novo cristianismo — ela
apenas o compreende em profundidade. Não há segundo Evangelho, mas segunda
escuta. A filosofia não contradiz a revelação; ela a repete com outra voz.
Quando o espírito humano atinge a maturidade, ele quer entender o que antes
apenas adorava. É então que a fé se torna inteligível sem deixar de ser fé. A
filosofia não substitui a teologia, mas revela a racionalidade que a sustenta.
A
teologia positiva, ao narrar o que aconteceu, corre o risco de fixar-se na
letra. E a letra, sem o espírito, torna-se sepulcro do sentido. O papel da filosofia
é abrir esse sepulcro. Ela mostra que a história da revelação não é sucessão de
fatos isolados, mas expressão coerente de um princípio eterno. A criação, a
queda, a encarnação, a cruz, a ressurreição — nada disso é arbitrário: tudo se
articula no mesmo desígnio divino, o amor que se revela em liberdade.
Sem
essa leitura filosófica, a teologia fica exposta à descrença. Pois, diante da
razão moderna, a mera autoridade do passado parece insuficiente. O homem quer
compreender antes de crer, e se não compreende, rejeita. É necessário,
portanto, que a revelação seja pensada. Mas pensá-la não é reduzi-la ao humano:
é reconhecer no humano o traço do divino. O pensamento não cria a revelação,
apenas a reflete. A filosofia é o espelho polido onde a luz da fé se reconhece.
Há,
porém, um perigo inverso: o de reduzir a revelação à pura razão e apagar o
mistério. A filosofia da revelação deve, portanto, mover-se entre dois abismos
— o do fideísmo cego e o do racionalismo morto. Ela não dissolve o dogma, mas o
faz respirar; não substitui o símbolo, mas o ilumina. O verdadeiro filósofo da
revelação sabe que a luz sem calor é sombra e que o amor sem forma é caos. A
razão deve arder e o fogo deve pensar.
A
distinção entre teologia positiva e filosofia da revelação é, assim, apenas um
estágio no processo de reconciliação. A primeira conserva a palavra revelada, a
segunda mostra a razão pela qual a palavra é possível. Quando ambas se unem, a
fé se torna sabedoria e a sabedoria se torna fé. A revelação deixa de ser lembrança
e torna-se presença: o Verbo, que antes foi ouvido, agora é compreendido.
O
papel histórico da filosofia da revelação é libertar a teologia do medo da
razão e libertar a razão do orgulho contra a teologia. O mundo moderno não
aceitará o divino enquanto ele for apresentado como imposição. É preciso
mostrar que Deus é a condição do pensamento, não seu inimigo. A revelação é a
luz sem a qual a razão se perde; e a razão é o espelho sem o qual a luz não se
vê. Ambas se pertencem, como o olho e o que o olho contempla.
No
fim, a teologia positiva e a filosofia da revelação convergem no mesmo ponto: o
Espírito. Pois o Espírito é aquele que recorda e renova, que conserva e
ilumina. O Espírito é a teologia que pensa e a filosofia que crê. Ele é a
unidade viva do passado e do eterno, o sopro que faz da palavra história e da
história revelação. Nele, toda oposição entre fé e razão se dissolve, porque
ambas são modos do mesmo amor que quer ser compreendido.
Por
isso, a filosofia da revelação não é um capítulo, mas o coroamento da teologia.
Ela devolve à fé sua clareza ontológica, à razão sua humildade teológica, e a
ambas a consciência de que o saber e o crer são apenas dois modos de participar
do mesmo Deus que se dá. O fim da filosofia da revelação não é um sistema fechado,
mas uma luz interior: o entendimento que adora e a adoração que entende.
Vigésima
Quinta Lição – A Revelação e o Fim da Filosofia
A
filosofia começa com o espanto diante do ser; a revelação, com o amor que dá
sentido a esse espanto. Mas quando a razão chega ao seu termo, ela descobre que
o que buscava desde o início não era o conceito, e sim a presença. O fim da
filosofia é o reencontro com aquilo que ela sempre pressentiu: o absoluto não
como ideia, mas como vida. E essa vida se chama revelação.
Todo
o percurso do pensamento humano é uma tentativa de compreender a totalidade.
Desde o primeiro instante em que o homem ergueu os olhos para o céu e perguntou
pelo sentido das coisas, ele esteve procurando o mesmo: o princípio que une e
sustenta tudo. A filosofia é a história desse desejo de unidade. Mas a unidade
que a razão constrói é sempre imperfeita — um círculo traçado no pó. A
revelação é o momento em que o próprio centro se manifesta.
A
filosofia, quando é verdadeira, conduz inevitavelmente ao limiar do mistério. É
ali que a razão se curva, não por fraqueza, mas por plenitude. Pois compreender
que há algo que ultrapassa o entendimento é o mais alto ato do entendimento. O
saber que reconhece o dom é mais lúcido que aquele que pretende criar o dom.
Por isso, o fim da filosofia não é o silêncio forçado da ignorância, mas o
silêncio luminoso da compreensão.
A
revelação não destrói o filosofar; cumpre-o. O que a filosofia concebe como
necessidade, a revelação mostra como amor. O que a metafísica afirma como
princípio, o Evangelho revela como pessoa. O que a razão deduz, a fé contempla.
Assim, a revelação é a filosofia tornada vida — a sabedoria encarnada, o
pensamento que respira. O ser absoluto não é conceito, mas relação: o amor que
é fundamento, luz e comunhão.
Schelling
compreende que a filosofia, sozinha, não pode gerar a vida. Ela é forma, não
fogo; mas o fogo precisa da forma para não se dissipar. A revelação é o momento
em que o fogo encontra a forma perfeita — o Verbo que se faz carne. O
pensamento chega ao seu auge quando se deixa atravessar pela vida. A revelação
não é negação da razão, mas sua transformação em visão. A mente já não vê por
imagens, mas pelo próprio ser que se dá.
A
história da filosofia é o caminho do espírito em direção à revelação. Cada
sistema, cada doutrina, cada época foi uma tentativa de compreender o infinito
sem o possuir. O erro de muitas filosofias foi querer substituir o absoluto por
sua imagem. O fim da filosofia, portanto, não é criar um novo sistema, mas
reconhecer o sistema vivo que já é o mundo revelado. O verdadeiro filósofo não
é o que explica Deus, mas o que O deixa manifestar-se.
A
revelação é o momento em que o pensar e o ser coincidem. Antes dela, o
pensamento é busca; depois dela, é gratidão. Antes, o homem pergunta: “Por que
há algo e não nada?” Depois, ele responde: “Porque o amor quis que houvesse.” A
causa primeira deixa de ser necessidade e torna-se dom. O universo não é
máquina, é sacrifício: o ser dado por amor. A filosofia termina quando o
pensamento reconhece que tudo o que é, é graça.
A
consumação da filosofia é, pois, a sabedoria do amor. A verdade não é fria,
porque o real é calor. A eternidade não é imobilidade, mas plenitude de movimento
interior. O espírito humano só cumpre seu destino quando volta a unir o que a
análise separou: o pensar, o crer e o amar. A revelação é o ponto em que essas
três potências coincidem. A mente vê, o coração adere, a vontade age — e tudo
isso em um só ato, livre e luminoso.
A
filosofia que chega à revelação deixa de ser apenas especulação e torna-se
contemplação ativa. Ela não nega o mundo, mas o lê como escritura. Cada coisa é
símbolo, cada instante é sacramento. O real é o texto de Deus. Compreender o
mundo é interpretar a linguagem do ser que se revela. O saber torna-se oração,
o estudo torna-se louvor. A filosofia não é abandonada, mas transfigurada em
teologia viva.
No
fim, o filósofo e o crente não são dois homens, mas um só em dois estados. O
primeiro busca, o segundo reconhece. Ambos habitam o mesmo mistério: o ser que
se manifesta por amor. A diferença é que o crente já chegou ao centro onde o
filósofo ainda caminha. Mas o caminho e o centro são uma única coisa — o
movimento do espírito retornando à sua origem. A filosofia é o prelúdio, a
revelação é a música.
Quando
o homem compreende isso, cessa a necessidade de provar Deus. O que é infinito
não precisa de demonstração — basta a sua evidência interior. O verdadeiro
saber é o que consente com a luz. A fé não é salto no escuro, é abertura dos
olhos à claridade que sempre esteve presente. Assim, o fim da filosofia é o
início da visão. E a visão é a forma suprema do amor: ver e ser visto, conhecer
e ser conhecido.
No
instante em que o pensar se torna amor, a distinção entre filosofia e revelação
desaparece. Pois o amor é a coincidência do saber e do ser. O Espírito Santo é
precisamente esse amor que une o que era separado. Nele, a filosofia repousa —
não em silêncio morto, mas em canto. O saber deixa de ser esforço e se torna
gratidão. A verdade, antes buscada, é agora habitada. O homem, antes exilado na
abstração, reencontra o lar do real.
O
fim da filosofia é, portanto, a volta ao princípio, mas agora consciente. O
homem retorna ao que sempre foi: imagem viva do Deus que se comunica. O círculo
do espírito se fecha, não em repetição, mas em plenitude. O que começou como
busca termina como presença. A razão que queria dominar o ser descobre-se
sustentada por ele. E o pensamento, que começou como pergunta, termina como
adoração.
Assim,
a revelação é o termo do caminho filosófico — não fora dele, mas dentro dele. O
filósofo que chega à revelação não deixa de pensar; apenas pensa com o coração
desperto. Pois o coração é o órgão supremo da inteligência divina. E quando o
coração entende, o universo inteiro se torna transparente. A revelação é,
enfim, o pensamento reconciliado com o ser — o saber tornado amor, e o amor
tornado verdade.
Epílogo
O retorno do ser ao seu
princípio
A luz que se revela no
compreender
O silêncio do absoluto
como última palavra
O
que teve princípio no amor deve encerrar-se na luz. A filosofia, tendo
percorrido todo o círculo do ser, retorna agora ao ponto onde o pensamento se
confunde com o próprio ato de ser. Pois todo conhecer verdadeiro é retorno: é o
ser tornando-se transparente a si mesmo. Quando o espírito alcança o centro de
sua origem, ele compreende que nada buscava fora de si — tudo estava contido na
presença que o sustentava desde o início. O conhecer é, assim, a forma pela
qual o ser regressa a si.
No
princípio, o ser era fundamento. Impassível, repousava em si mesmo, sem
oposição nem figura. Mas o amor o moveu — e o fundamento se converteu em fonte.
Da eternidade oculta brotou o tempo, da unidade nasceu a diferença, e do
silêncio surgiu a palavra. O universo inteiro é essa palavra pronunciada no
intervalo entre o ser e o compreender. O movimento da revelação é, portanto, o
próprio movimento do ser em direção à consciência: Deus manifestando-se para se
conhecer.
Agora,
ao final, esse mesmo movimento se inverte — não por anulação, mas por
plenitude. O que saiu retorna, o que foi dito volta ao silêncio. O Filho, que é
a luz do Pai, reconduz todas as coisas à sua fonte. O Espírito, que foi o sopro
da criação e da redenção, recolhe em si o mundo transfigurado. Tudo o que foi separado
é reconciliado; tudo o que foi revelado é interiorizado. A história cumpre o
seu desígnio, e o tempo se dissolve no eterno.
O
retorno do ser ao seu princípio não é regressão, mas consumação. O que era
potência torna-se ato, o que era desejo torna-se presença. Nada é perdido, nada
se repete. O mundo que volta é mais rico que o mundo que saiu, pois leva
consigo a experiência da liberdade. O absoluto conhece-se de novo, mas agora
através do caminho do amor. A criação, que antes era reflexo, torna-se espelho
consciente. E o ser, que antes apenas era, agora sabe que é.
O
compreender é o modo humano desse retorno. Pensar é iluminar o que foi dado, é
fazer o ser brilhar em si mesmo. Quando o pensamento atinge o ponto em que não
há mais diferença entre o que pensa e o pensado, a luz e o ser coincidem. O
compreender é então revelação pura — não porque desvende segredos, mas porque
se deixa atravessar pela transparência do real. O ser se conhece no homem, e o
homem, conhecendo, volta ao ser.
Toda
revelação tem seu ocaso, mas esse ocaso é o nascimento de uma luz mais alta.
Pois o que se revela plenamente já não precisa manifestar-se: torna-se presença
silenciosa. A última palavra da revelação é o silêncio. Não o silêncio da
ausência, mas o da plenitude. Quando o amor é total, a palavra cessa, porque
tudo é comunhão. O silêncio é o som do absoluto escutando-se. A eternidade não
fala — ressoa.
Assim,
o fim da filosofia não é o fim do pensamento, mas o início da contemplação. O
saber cessa de ser meio e torna-se vida. O espírito, tendo compreendido o todo,
repousa em sua unidade. Não há mais pergunta, porque já não há distância. O
real não é mais objeto, mas intimidade. A luz não ilumina algo fora de si, mas
ilumina-se em si. E nesse instante, o compreender e o ser são um só ato, uma
única respiração divina.
O
retorno do ser ao seu princípio é também o retorno do homem ao seu coração.
Pois o homem é o espelho em que Deus se contempla. Quando o espelho se
purifica, o rosto aparece. A ascensão do pensamento é, na verdade, a descida de
Deus na alma. O absoluto não é além do mundo, mas o centro secreto de toda
vida. Conhecer isso é já ter voltado. A viagem do espírito termina no instante
em que ele reconhece que o destino e a origem são o mesmo.
E
quando o ser reencontra o seu princípio, o tempo torna-se transparência da
eternidade. A criação não se extingue, mas é interiormente transformada. Tudo o
que vive conserva sua forma, mas essa forma é agora luz. O visível torna-se
símbolo do invisível, o finito torna-se gesto do infinito. O mundo permanece,
mas transfigurado — não mais lugar de separação, e sim sacramento da presença.
O paraíso não é perdido, é compreendido.
No
limite, resta apenas o silêncio. O silêncio não como negação, mas como verdade
plena. Pois toda palavra pronunciada por Deus tinha por fim reconduzir o homem
a esse silêncio, onde não há mais nomes, nem formas, nem véus. A filosofia se
cala, a revelação repousa, e o amor permanece. O ser é uno, a luz é total, e o
absoluto — agora consciente de si — descansa no seu próprio compreender.
E
é nesse repouso que o ciclo se fecha. O que era princípio torna-se fim, e o
fim, princípio. A criação retorna ao Criador, o Verbo ao Silêncio, o homem a
Deus. O mundo, tendo sido o palco da revelação, converte-se agora em templo. E
o espírito, tendo compreendido a luz, torna-se ele mesmo luz. A revelação
consumou-se, e o ser, reencontrando o seu princípio, repousa — não na
escuridão, mas no esplendor do silêncio.
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