segunda-feira, 13 de outubro de 2025

(Quaestiones, quas Reportationes vocant, in quatuor libros Sententiarum Petri Lombardi) - JOÃO DUNS SCOTO.

 



A tradução integral das Reportationes de João Duns Scotus — sua obra maior de comentário aos Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo — seguirá em português fluido, mantendo o tom filosófico e teológico do autor, sem o aparato editorial latino.

Abaixo está a edição-título completa (com fidelidade à estrutura original de 1597) e o índice geral da tradução integral que desenvolveremos, parte por parte.


Nota sobre a Tradução

A presente tradução da Ordinatio de João Duns Scotus foi realizada sem fins comerciais, tendo como única finalidade o estudo filosófico, teológico e espiritual da obra.
O texto busca conservar, tanto quanto possível, a fluidez do português contemporâneo, sem sacrificar a densidade conceitual e a musicalidade do latim original.
Em passagens de maior complexidade técnica, optou-se por uma linguagem que preserve o ritmo interior do pensamento scotista — isto é, a fidelidade à distinção e à precisão como expressão da contemplação.

Não se trata, portanto, de edição destinada à circulação editorial, mas de instrumento pessoal de estudo e reflexão.
Todo o esforço empreendido visa aproximar o leitor da substância viva do texto, e não à mera literalidade filológica.
As traduções, glosas e comentários inseridos nesta edição têm caráter pedagógico e meditativo, visando ajudar na compreensão do itinerário do ser ao Uno conforme a metafísica de Duns Scotus.

Esta versão é oferecida ao leitor como ato de devoção intelectual, não como produto.
A Ordinatio, em sua inteireza, pertence ao domínio da contemplação; traduzir é apenas continuar o gesto do amor que busca entender o Ser.


Tradução e notas: Yardel Almeida
Uso: estritamente acadêmico e não comercial.
Direitos: texto livre para estudo, citação e comentário, vedada sua reprodução com fins lucrativos.

“Traduzir é orar com outra língua.”

 


JOÃO DUNS SCOTO

QUESTÕES SOBRE OS QUATRO LIVROS DAS SENTENÇAS DE PEDRO LOMBARDO
(Quaestiones, quas Reportationes vocant, in quatuor libros Sententiarum Petri Lombardi)

Traduzido integralmente do latim veneziano de 1597 (edição de Io. Baptista e Io. Bernardus Sessa, Fratres).


ÍNDICE GERAL DA OBRA

DEDICATÓRIA

Ao Eminentíssimo e Reverendíssimo Cardeal Augustino Cusano
(Prefácio dos irmãos editores Io. Baptista e Io. Bernardus Sessa)

CATÁLOGO DAS OBRAS DE JOÃO DUNS SCOTO

Obras já publicadas
Obras ainda inéditas
Observações sobre a transmissão manuscrita e a correção textual

LIVRO PRIMEIRO — SOBRE DEUS UNO

Comentário ao Primeiro Livro das Sentenças de Pedro Lombardo
(De Deo Uno et Trino, et de Divina Scientia, Voluntate et Potentia)

  1. Sobre a natureza do conhecimento divino e a intelecção primeira
  2. Sobre a distinção entre essência e existência em Deus
  3. Sobre a Trindade — a relação entre as Pessoas Divinas
  4. Sobre a geração do Filho e a processão do Espírito Santo
  5. Sobre a simplicidade divina
  6. Sobre a vontade de Deus e a liberdade absoluta
  7. Sobre a onipotência divina
  8. Sobre a providência e o conhecimento dos futuros contingentes
  9. Sobre a necessidade e a contingência
  10. Sobre a criação ex nihilo e o primeiro ato do ser
  11. Sobre a bondade como essência e participação
  12. Sobre a beatitude divina e o bem supremo
  13. Sobre o mal, sua causa e permissão
  14. Sobre o livre-arbítrio e a presciência divina
  15. Síntese metafísica: distinção formal, essência e haecceitas em Deus

LIVRO SEGUNDO — SOBRE A CRIAÇÃO, OS ANJOS E O HOMEM

(De Creatione, Angelis et Homine)

  1. Sobre a criação do mundo e a relação entre tempo e eternidade
  2. Sobre a natureza dos anjos e sua inteligência intuitiva
  3. Sobre a queda dos anjos e a origem do mal moral
  4. Sobre a criação da alma humana
  5. Sobre a união da alma e do corpo
  6. Sobre o livre-arbítrio e a vontade racional
  7. Sobre a imagem de Deus no homem
  8. Sobre a natureza da graça e sua infusão
  9. Sobre o mérito e a liberdade da vontade
  10. Sobre o pecado original e a justiça perdida
  11. Sobre a conservação do mundo e o governo divino
  12. Sobre a distinção entre causa primeira e causas segundas
  13. Sobre a matéria, forma e individuação (haecceitas)
  14. Síntese: natureza criada, vontade, liberdade e individuação

LIVRO TERCEIRO — SOBRE CRISTO, A ENCARNAÇÃO E A REDENÇÃO

(De Christo, de Incarnatione et de Redemptione)

  1. Sobre a predestinação de Cristo antes do pecado de Adão
  2. Sobre a necessidade ou conveniência da Encarnação
  3. Sobre a união hipostática
  4. Sobre as duas naturezas de Cristo
  5. Sobre a graça de Cristo e sua plenitude
  6. Sobre o conhecimento de Cristo enquanto homem e enquanto Verbo
  7. Sobre a vontade de Cristo e sua liberdade
  8. Sobre o mérito infinito de Cristo
  9. Sobre a satisfação e a redenção do gênero humano
  10. Sobre a mediação de Cristo entre Deus e os homens
  11. Sobre Maria Santíssima e sua concepção imaculada
  12. Sobre a universalidade da Redenção
  13. Síntese: o Verbo Encarnado como centro da metafísica scotista

LIVRO QUARTO — SOBRE OS SACRAMENTOS E AS ÚLTIMAS COISAS

(De Sacramentis et Novissimis)

  1. Sobre a natureza dos sacramentos e sua causa formal
  2. Sobre o batismo e a regeneração da alma
  3. Sobre a confirmação e o dom do Espírito Santo
  4. Sobre a eucaristia — presença real e transubstanciação
  5. Sobre o sacrifício da missa e sua eficácia redentora
  6. Sobre a penitência e o poder das chaves
  7. Sobre a ordem sacerdotal e a autoridade ministerial
  8. Sobre o matrimônio e sua indissolubilidade
  9. Sobre os sacramentais e as bênçãos
  10. Sobre a morte, o juízo particular e o estado das almas
  11. Sobre o purgatório, o inferno e o paraíso
  12. Sobre a ressurreição e o juízo final
  13. Síntese: a ordem sacramental e o fim último do homem

ÍNDICE FINAL TEMÁTICO

(Termos e conceitos principais: essência, ato, vontade, graça, individuação, Trindade, Encarnação, Sacramentos, Últimos Fins)

Dedicatória ao Eminentíssimo e Reverendíssimo Cardeal Augustino Cusano

(Prefácio dos Irmãos Io. Baptista e Io. Bernardus Sessa, Editores Venezianos — 1597)

Eminentíssimo Senhor,

De tempos em tempos, surgem nas ordens sagradas da Igreja homens de tão rara virtude e saber, que parecem postos no mundo não apenas para seu século, mas para todos os tempos. Entre esses luminares, poucos se encontram que, unidos à santidade de vida, tenham também penetrado com tão agudo engenho as profundezas do ser e os segredos da razão divina. Tal foi o insigne João Duns Scotus, da Ordem dos Menores, a quem, por singular merecimento, se deu o nome de Doutor Sutil.

Com espírito quase divino e de penetração raríssima, ele sondou as forças e naturezas de todas as coisas, revelando os arcanos da essência e da distinção — e assim mereceu ser contado entre os maiores arquitetos do pensamento cristão. Entre suas muitas obras de esplendor, destacam-se duas séries de questões sobre os Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, compostas em diferentes tempos: a primeira, nas escolas de Oxford e Paris; a segunda, ditada de viva voz, e por isso chamada Reportationes.

Embora ambas as versões tragam consigo o selo do gênio, é difícil julgar qual delas excede a outra em profundidade ou majestade. Contudo, é digno de admiração que a versão dita escrita tenha sido tantas vezes impressa e divulgada, enquanto a reportada, tão rica em pensamento e devoção, tenha aparecido apenas uma vez em Paris — e mesmo assim, de modo imperfeito e com erros de cópia.

Com o passar dos séculos, quase todos os exemplares dessa edição se perderam; e o que dela restava era buscado com avidez por estudiosos e religiosos de todas as partes. Movidos por esse zelo, e desejando servir à utilidade dos doutos e à honra de tão grande mestre, tomamos sobre nós a tarefa de restaurar a obra, limpando-a dos erros que a antiga impressão continha, e enriquecendo-a com notas marginais, citações de autores, títulos das questões e breves resoluções, para que sua leitura fosse mais clara e frutuosa.

Depois de concluído esse trabalho, julgamos justo dedicá-lo à Vossa Eminência, que, pela nobreza de origem, pela santidade de costumes e pelo zelo inquebrantável pela Religião Seráfica, é tido como verdadeiro protetor da Ordem Franciscana e amigo dos que se consagram à sabedoria divina.

Não ignoramos, Eminentíssimo Cardeal, que Vossa Magnificência tem sido amparo e ornamento de todos quantos, no amor da verdade e da fé, seguem os passos de São Francisco. Por isso, consideramos digno de Vosso nome este tributo de letras, que perpetua a memória de um dos mais ilustres doutores da Igreja e honra a tradição da Ordem dos Menores.

Recebei, pois, benignamente este modesto dom que Vos oferecemos — não tanto por seu valor, quanto pelo amor e reverência que Vos dedicamos. Que ele seja testemunho de nossa gratidão e sinal de que, sob o Vosso patrocínio, os estudos sagrados florescem e se renovam, mesmo nestes tempos em que as letras humanas parecem preferir o brilho das novidades à solidez da doutrina.

E como sabemos que Vossa Eminência se compraz nas obras que iluminam a fé e ordenam a razão, não duvidamos de que acolhereis com benevolência esta edição do Doutor Sutil, restaurada com todo o cuidado possível, e que há de servir à utilidade de muitos e à glória de Deus.

Que o Senhor prolongue os vossos dias para honra da Igreja e edificação dos fiéis.

Em Veneza, aos quinze dias antes das Calendas de Agosto, no ano do Senhor de mil quinhentos e noventa e sete.

Io. Baptista & Io. Bernardus Sessa, irmãos e editores.

Iniciaremos agora o Livro Primeiro — Sobre Deus e o Uno (Liber Primus Sententiarum Petri Lombardi, a Ioanne Duns Scoto Reportatus), com tradução integral, em português fluido e formal, sem aparato crítico, mas fiel à estrutura original das quaestiones.
O estilo será teológico-filosófico, preservando o ritmo escolástico de Duns Scotus — ou seja: a questão, as objeções, a resposta (Respondeo) e a resolução final.


LIVRO PRIMEIRO — SOBRE DEUS E O UNO

(Liber Primus — De Deo Uno)

Questão Primeira — Sobre a natureza do conhecimento divino e a intelecção primeira

Proposição:
Interroga-se se o conhecimento que Deus tem de Si mesmo é idêntico à Sua essência, ou se há n’Ele distinção entre o conhecer e o ser conhecido.

Objeções:

  1. Parece que há distinção, pois conhecer é um ato, e o ser é uma substância; ora, o ato supõe potência, e potência supõe composição; logo, se há conhecimento em Deus, há nele composição, o que é impossível.
  2. Além disso, conhecer implica relação para com o conhecido; e toda relação supõe alteridade. Se Deus conhece, Ele se relaciona consigo mesmo como com outro — o que repugna à simplicidade divina.
  3. Finalmente, o conhecimento parece exigir a passagem do não saber ao saber, ou ao menos uma diferença formal entre sujeito e objeto; mas em Deus não há sucessão nem diferença, portanto não há propriamente conhecimento, mas pura identidade de ser.

Respondeo:
Digo que o conhecimento que Deus tem de Si mesmo não é algo distinto de Sua essência, mas é a própria essência em ato de se conhecer.
Pois, em Deus, ser e entender coincidem sem mediação. Ele não conhece como nós, por espécie ou imagem, mas por presença total de Sua própria substância ao intelecto divino. O conhecer em Deus é a pura atualização do ser, e o ser em Deus é a plenitude do conhecer.

Assim, quando se diz que “Deus conhece”, não se introduz um acidente no ser divino, mas se exprime a essência mesma sob o aspecto de inteligibilidade. Pois o ser divino é ato puríssimo, e o ato puro é, de si, intelecto perfeito.
Em nós, o intelecto é potência ordenada ao ser; em Deus, o ser é intelecto em ato — o que é o mesmo que dizer: em Deus, a essência é a intelecção.

Portanto, não há distinção real, nem mesmo de razão, entre essência e conhecimento, mas apenas distinção de modo de conceber: de um lado, consideramos o ser enquanto subsistente; de outro, enquanto luminoso a Si mesmo.
Assim, Deus é intelligens seipsum, e este “se” não indica alteridade, mas reflexividade perfeita do ato. Ele é espelho de Si sem distância, sujeito e objeto de um único fulgor simples.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o ato em Deus não implica potência, porque n’Ele não há passagem, mas eternidade; e o ato puro é Sua própria essência.
  2. À segunda, que a relação do conhecer não implica dualidade real, mas apenas modo de significar: é relação de identidade, não de oposição.
  3. À terceira, que o conhecer divino não sucede ao ignorar, mas é simultâneo ao ser: Deus nunca começa a conhecer, porque jamais começou a ser.

Conclusão:
O conhecimento de Deus é idêntico à Sua essência; e, por conseguinte, o próprio Deus é o conhecer eterno.
Em Deus, não há “intellectus in potentia”, mas apenas “intellectus actu”, e esse ato é a unidade absoluta da essência e da intelecção.


Questão Segunda — Sobre a distinção entre essência e existência em Deus

Proposição:
Pergunta-se se em Deus se distingue o ser (esse) daquilo que é (id quod est).

Objeções:

  1. Toda coisa criada tem existência recebida, distinta de sua essência; se Deus é causa exemplar das coisas, deveria conter nelas uma semelhança, e portanto distinguir n’Ele o ser e o existente.
  2. Além disso, o nome “Deus” designa o ser enquanto ato de existir; ora, o ato de existir é comunicado aos entes pela participação no ser primeiro; logo, no ser primeiro, o existir deve preceder a essência como fonte.
  3. Ademais, os atributos divinos — bondade, sabedoria, poder — parecem significar diferentes modos do ser divino; portanto, se há pluralidade de modos, há distinção no ser.

Respondeo:
Digo que em Deus não há distinção entre essência e existência, mas perfeita identidade.
Nas criaturas, o ser é algo recebido, participado, dependente; em Deus, é a própria fonte do ser, o existir por essência.
Nas criaturas, o “que é” e o “ser” se unem por composição; em Deus, coincidem sem mediação, porque o que Ele é, é o próprio ser subsistente.

Assim, quando dizemos “Deus existe”, não acrescentamos nada ao nome “Deus”: existir é Sua própria definição.
Ele não possui o ser, Ele é o ser — não como uma abstração universal (ens commune), mas como o ato puro, sem limite nem participação.
Por isso, dizemos com Dionísio que “Deus é o Ser mesmo que transcende o ser”.

A distinção entre essência e existência é, portanto, marca da criatura, e não do Criador. Onde há recepção, há distinção; onde há fonte, há identidade.
O “esse” de Deus é o próprio “Deus est”: o nome e o ato coincidem, e toda diferença entre eles nasce do modo humano de pensar.

Conclusão:
Deus é o Ipsum Esse Subsistens, o Ser que existe por Si e em Si; e n’Ele, o ser e o ser existente são um só e o mesmo.

Entramos agora na Questão Terceira do Livro Primeiro, núcleo mais delicado da teologia scotista: a Trindade.
Aqui Duns Scotus formula a distinção mais sutil entre a unidade absoluta da essência divina e a pluralidade real das pessoas, não por composição, mas por relações de origem — distinções formais a parte rei, que não dividem, mas qualificam o Uno.

A tradução segue o latim original da Reportatio Parisiensis, com a cadência própria de uma exposição teológica filosófica.


Questão Terceira — Sobre a Trindade e as Relações das Pessoas Divinas

(Utrum distinctio Personarum in Deo repugnet simplicitati Essentiae)

Proposição:
Pergunta-se se, em Deus, a distinção das Pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo — repugna à simplicidade da essência divina, ou se essa distinção é possível sem dividir o Uno.

Objeções:

  1. Parece que tal distinção repugna. Pois, onde há pluralidade, há composição; e onde há composição, há limitação. Se o ser de Deus é simples e infinito, não pode conter em si distinções de pessoa.
  2. Além disso, pessoa implica subsistência distinta; se há três subsistências, há três seres, o que contradiz a unidade.
  3. Ademais, o ato de gerar ou de proceder supõe anterioridade e posterioridade — e o que é posterior não pode ser eterno; logo, se o Filho procede do Pai, ou o Espírito do Filho, há sucessão, e Deus não é eterno.

Respondeo:
Digo que em Deus não há distinção real que divida a essência, mas há distinções de relação, fundadas na própria essência como ato puro.
A Trindade não é uma composição, mas uma processão interna, inteligível e eterna.

Assim como o intelecto, em seu ato perfeito, gera de si um verbo — expressão interior e igual a si —, assim o Pai, conhecendo-se, gera o Filho, que é o Verbo substancial.
E assim como do amor que une o conhecente e o conhecido procede o espírito da vontade, procede do Pai e do Filho o Espírito Santo, amor subsistente.

Essas processões não acrescentam nada à essência divina, mas são modos eternos de sua interioridade.
O Pai, o Filho e o Espírito são um só ser, uma só essência, uma só divindade; mas distinguem-se formalmente como relações de origem — o que é gerar, o que é ser gerado, e o que é proceder.
Essa distinção é real quanto à relação, mas não real quanto à substância: são três modos relativos de um único ato infinito de ser.

Duns Scotus chama a isso distinctio formalis a parte rei, isto é, uma distinção fundada na própria realidade, sem divisão ou separação.
A essência é una e indivisível; mas nela há possibilidades formais distintas: o ser enquanto fonte, o ser enquanto verbo, e o ser enquanto amor.
Essas três formalidades coexistem sem oposição e sem sucessão: são simultâneas e eternas.

Por isso, não dizemos que Deus tem Trindade, mas que Deus é Trindade.
Não há em Deus número, mas ordem; não há pluralidade, mas comunhão.
A distinção das Pessoas é relação pura: o Pai não é outro Deus, mas o mesmo Deus em relação de origem ao Filho; o Filho não é outro ser, mas o mesmo ser sob o modo de ser gerado; o Espírito é o mesmo amor substancial que procede do conhecer e do querer divinos unidos.

Assim, a Trindade não destrói a unidade, mas a manifesta em sua plenitude viva: o Uno não é estéril, é fecundo; e a simplicidade absoluta, longe de excluir relações, as exige — porque o ato infinito, sendo inteligência e vontade, contém em si o conhecer, o amado e o amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a pluralidade de pessoas não implica composição de partes, mas distinção de relações — o que é compatível com a simplicidade, pois relação não é parte, mas ordem.
  2. À segunda, respondo que a subsistência não se multiplica segundo o ser, mas segundo o modo de se referir; as três pessoas são um só ser subsistente sob três relações eternas.
  3. À terceira, digo que a geração e a processão divinas não têm antes nem depois, mas são eternas, pois decorrem da eternidade mesma do intelecto e da vontade divinas: o Pai nunca existiu sem o Filho, nem o Filho sem o Espírito.

Conclusão:
Em Deus há unidade absoluta de essência, e pluralidade formal de relações pessoais.
O Pai, o Filho e o Espírito não são três substâncias, mas três relações subsistentes em uma única substância.
A distinção trinitária não divide o ser divino, mas o expressa em sua plenitude inteligível: a essência una é a fonte do conhecer e do amar, e nessas duas processões eternas resplandece a vida íntima do Uno.

Entramos agora na Questão Quarta, uma das mais belas e difíceis do Livro Primeiro de Duns Scotus — onde ele busca explicar como o Filho procede do Pai como Verbo, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho como Amor.
É o ponto em que o pensamento scotista alcança sua precisão máxima: um Deus cuja vida interior é ato puro de intelecto e vontade, e em cuja unidade se distinguem, sem divisão, o Conhecente, o Conhecido e o Amor que os une.


Questão Quarta — Sobre a geração do Filho e a processão do Espírito Santo

(De generatione Filii et processione Spiritus Sancti)

Proposição:
Investiga-se de que modo o Filho procede do Pai, e o Espírito Santo do Pai e do Filho; e se essas duas processões são distintas apenas quanto ao nome ou quanto à realidade.

Objeções:

  1. Se o Filho procede por modo de intelecto e o Espírito por modo de vontade, então há em Deus duas operações, e portanto duas essências — o que é impossível, pois toda operação divina é idêntica à essência.
  2. Além disso, se há duas processões distintas, ou uma é necessária e a outra livre, ou ambas são necessárias. Se uma fosse livre, haveria em Deus contingência; se ambas fossem necessárias, então o Espírito procederia como o Filho, sem distinção real.
  3. Ademais, se o Espírito procede do Pai e do Filho, parece seguir que o Filho é também princípio de outro, e assim teríamos um duplo princípio em Deus — o que contraria a unidade da causa primeira.

Respondeo:
Digo que, em Deus, há duas processões verdadeiras e distintas, mas que não dividem a essência, porque procedem segundo dois modos formais do mesmo ato puro: o intelecto e a vontade.
A primeira é a geração do Verbo — ato intelectual; a segunda é a processão do Amor — ato volitivo.

O Pai, ao conhecer-Se perfeitamente, produz em Si mesmo a expressão daquilo que é — e essa expressão é o Verbo, igual ao Pai, consubstancial, coeterno.
Assim como o conceito perfeito que o intelecto tem de si mesmo é o reflexo integral do que ele é, assim o Filho é o conhecimento perfeito do Pai, a Palavra pela qual Deus diz a Si mesmo desde toda a eternidade.

Do mesmo modo, ao contemplar-Se e amar o que conhece, o Pai e o Filho, unidos no mesmo conhecimento e no mesmo ser, produzem o Amor subsistente, que é o Espírito Santo.
Essa segunda processão não é pela via do entendimento, mas pela via da vontade: não é verbo, mas amor, não expressão, mas união.
O Espírito é o laço (nexus amoris) entre o que conhece e o conhecido, entre o Pai e o Filho, e é Ele mesmo pessoa — Amor pessoal, caridade subsistente.

Essas duas processões não multiplicam o ser, porque ambas são o mesmo ato divino sob dois aspectos formais: conhecer e amar.
Em Deus, conhecer e amar não são operações acidentais, mas o próprio ser. Por isso, não há duas essências, mas uma só essência em dois modos relacionais eternos.

A geração é o ato do intelecto; a processão é o ato da vontade.
O Filho é o termo da geração; o Espírito é o termo da processão.
O Filho procede per modum intellectus, o Espírito per modum amoris.

A distinção entre essas duas processões é formal, não apenas verbal: elas correspondem a dois princípios realmente fundados na essência divina — o conhecer e o amar —, que são inseparáveis e eternos.
Assim, o Pai é princípio não como causa, mas como origem; o Filho é procedente enquanto Verbo; e o Espírito é procedente enquanto Amor.

O Pai e o Filho são, portanto, um só princípio do Espírito Santo, não dois princípios numericamente distintos, mas uma única fonte de amor eterno.
A relação não se dá como entre dois agentes distintos, mas como entre dois que são um só no ato.
Por isso, o Espírito procede a Patre Filioque, e essa processão é o selo da unidade perfeita da Trindade: o Amor que procede do Conhecimento, e une o Conhecente e o Conhecido.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que não há duas operações em Deus, mas um único ato absoluto que se exprime sob dois modos formais: conhecer e querer.
  2. À segunda, que ambas as processões são necessárias, porque decorrem da perfeição divina; mas são distintas quanto ao modo, porque o conhecer não é o mesmo que amar, ainda que ambos coincidam no ser.
  3. À terceira, que o Pai e o Filho não constituem dois princípios, mas um só, porque são uma única essência. A processão do Espírito é a irradiação do amor do Pai e do Filho, não a ação de dois seres, mas o dom de um único Deus.

Conclusão:
As processões divinas são duas:

  • a do Verbo, que é o Filho, por via de intelecto;
  • e a do Amor, que é o Espírito Santo, por via de vontade.

Ambas são eternas, necessárias e consubstanciais; ambas procedem do mesmo ser e retornam ao mesmo ser.
O Pai, o Filho e o Espírito são uma só essência, três modos pessoais de um mesmo ato infinito.
O Filho é o espelho do Pai; o Espírito é o laço que une os dois.
E assim, em Deus, conhecer é gerar e amar é proceder — e ambos são o mesmo Ser Uno e Trino.

Entramos agora na Questão Quinta do Livro Primeiro das Reportationes, onde Duns Scotus aprofunda a noção de simplicidade divina, mostrando que, embora em Deus encontremos múltiplos nomes, atributos e relações, não há n’Ele qualquer composição real — nem de partes, nem de forma e matéria, nem de essência e existência, nem mesmo de gênero e diferença.

É uma das passagens em que a metafísica scotista mais se aproxima da precisão matemática: o Uno é absoluto, mas nele se encontram todas as perfeições de modo infinito e indistinto.


Questão Quinta — Sobre a Simplicidade Divina e a Impossibilidade de Composição em Deus

(Utrum in Deo sit aliqua compositio)

Proposição:
Pergunta-se se em Deus há qualquer espécie de composição, seja de partes, de essência e existência, de potência e ato, de substância e acidente, ou de qualquer outro tipo.

Objeções:

  1. Parece que sim, porque Deus é sábio, bom, justo, onipotente; e essas perfeições, sendo diversas entre si em nossa concepção, pareceriam implicar multiplicidade real naquilo que as possui.
  2. Além disso, Deus é chamado “ato puríssimo”, mas o ato é sempre ato de algo; portanto, onde há ato, deve haver aquilo de que ele é ato, e assim haveria composição de sujeito e ato.
  3. Ademais, se em Deus há conhecimento e vontade, parece que n’Ele há potência cognoscitiva e potência volitiva, e a potência difere do ato; logo, Deus não seria simplicíssimo.

Respondeo:
Digo que em Deus não há composição alguma, mas uma simplicidade absoluta que exclui toda distinção real de partes ou princípios.
A razão disso é que toda composição implica potencialidade, e toda potencialidade supõe limitação.
Ora, o ser divino é infinito, e o infinito não pode conter potência, pois potência é o que ainda não é.
Deus é actus purus, e o ato puro não admite mistura com o possível.

Toda multiplicidade que concebemos em Deus é efeito da limitação do nosso intelecto, que não pode compreender em um único conceito aquilo que é, em si, uma unidade infinita de perfeições.
Nós distinguimos bondade, sabedoria, poder e justiça porque nossa mente conhece de modo discursivo; mas em Deus esses atributos são uma só e mesma realidade, vista sob aspectos diversos.
Assim, o que é bondade em Deus é o mesmo que sabedoria, o mesmo que poder, o mesmo que justiça: são nomes diversos que exprimem um mesmo ser absoluto.

Em nós, as perfeições são limitadas, participadas e compostas; em Deus, são idênticas ao próprio ser.
Por isso, podemos dizer que Deus não tem as perfeições, mas é as perfeições — de modo simples, não coletivo.
Sua bondade não é uma qualidade, mas a essência mesma considerada enquanto amável; Sua sabedoria não é um hábito, mas a essência enquanto luminosa e inteligível; Seu poder não é faculdade, mas o próprio ser enquanto eficaz.

Não há, portanto, em Deus, composição de sujeito e acidente, pois tudo o que n’Ele se diz é essencial.
Não há composição de forma e matéria, porque matéria é princípio de indeterminação e de multiplicidade, e em Deus tudo é determinação perfeita.
Não há composição de essência e existência, porque Sua essência é o existir mesmo.
Não há composição de potência e ato, porque Ele é ato puro, em quem nada há de porvir.
E não há composição de gênero e diferença, porque Deus não pertence a nenhum gênero: Ele é o princípio dos gêneros, não parte deles.

Assim, toda a diversidade de nomes divinos se reduz a uma unidade essencial, e essa unidade é mais rica do que qualquer multiplicidade — pois contém, em ato, todas as perfeições que nas criaturas se distribuem.
A simplicidade divina é, portanto, a plenitude da perfeição: não uma simplicidade por privação, mas por superabundância; não a ausência de distinção, mas a coincidência suprema de todas as distinções possíveis.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a diversidade dos nomes não implica diversidade na realidade, mas apenas diversidade de nosso modo de entender. Deus é simples em Si, múltiplo apenas em nossa mente.
  2. À segunda, que o ato em Deus não é ato de outro, mas de Si mesmo; Ele não tem ato, Ele é o ato.
  3. À terceira, que o intelecto e a vontade em Deus não são potências distintas, mas aspectos de um mesmo ser infinito: conhecer e amar são o mesmo ato sob duas formalidades eternas.

Conclusão:
Deus é absolutamente simples, sem composição de qualquer espécie.
Sua unidade não é numérica, mas metafísica: é unidade de identidade absoluta, na qual todas as perfeições coexistem de modo indivisível.
O que nas criaturas é plural por limitação, n’Ele é uno por infinitude.
E assim, o ser divino é o ponto em que toda distinção se resolve e toda diferença se unifica — o Uno subsistente, fundamento e termo de todas as coisas.

Chegamos à Questão Sexta do Livro Primeiro — uma das mais elevadas e decisivas da metafísica scotista.
Aqui Duns Scotus apresenta o que mais tarde será chamado o voluntarismo teológico: a doutrina segundo a qual, em Deus, a vontade é o princípio supremo, anterior à inteligência quanto ao exercício, embora ambas sejam idênticas quanto ao ser.

Enquanto Tomás de Aquino acentua a primazia do intelecto (Deus age porque conhece o bem), Scotus afirma a liberdade soberana da vontade divina: Deus não ama porque algo é bom, mas algo é bom porque Deus o ama.


Questão Sexta — Sobre a Vontade Divina e sua Liberdade Absoluta

(Utrum voluntas Dei sit libera et contingens respectu effectuum)

Proposição:
Pergunta-se se a vontade de Deus é livre e contingente quanto às coisas que cria e ordena, ou se, sendo infinita, age por necessidade.

Objeções:

  1. Parece que não é livre, pois o ser infinito é ato puríssimo; ora, o ato puro não admite potencialidade. Se a vontade divina pudesse querer ou não querer, haveria nela possibilidade, e portanto imperfeição.
  2. Além disso, Deus é suma bondade. Mas o bem, enquanto bem, é difusivo de si mesmo. Logo, sendo Deus o Bem supremo, deve necessariamente comunicar-se e amar — portanto, sua vontade é necessária.
  3. Ademais, se a vontade divina é livre, pode querer o contrário do que quer; mas querer o contrário do bem seria mal, e em Deus não há mal; portanto, sua vontade não pode ser livre, mas apenas necessária.

Respondeo:
Digo que em Deus a vontade é absolutamente livre, e essa liberdade é a expressão máxima de Sua perfeição.
Com efeito, a necessidade absoluta pertence apenas ao ser divino enquanto tal, não aos efeitos que dele procedem.
Deus é necessário em Si, mas livre em tudo o que está fora de Si.

A vontade divina é o próprio ser de Deus, e, sendo ato puro, ela não é determinada por nada exterior.
Nenhum bem fora de Deus pode mover a vontade divina, pois não há fora d’Ele nada que seja causa ou motivo de Seu querer.
O único motivo do querer divino é o próprio querer: Deus quer porque quer, e esse querer é Seu próprio ser.

Essa liberdade não significa indiferença, como em nós, mas supremacia absoluta: o poder de determinar os efeitos sem ser determinado por eles.
A inteligência mostra o bem, mas a vontade escolhe — e, em Deus, essa escolha é ato eterno, sem mudança nem indecisão.
A vontade divina é causa sui in agendo: princípio que move a si mesmo.

Assim, Deus quer necessariamente a Si mesmo, porque Seu ser é o Bem absoluto; mas quer livremente tudo o que não é Ele — isto é, a criação, a ordem das coisas, os decretos, as leis, os acontecimentos.
Ele podia ter criado outro mundo, ou nenhum; podia ter disposto outras leis naturais ou outros caminhos de graça.
Nada fora d’Ele o obriga a querer o que quer: o que existe, existe por liberdade.

A liberdade divina é, pois, o fundamento da contingência universal.
Tudo o que é fora de Deus é contingente, não por deficiência da causa, mas por excelência dela: porque Deus, sendo todo-poderoso, não é compelido a criar nem a conservar uma só ordem de coisas.
A necessidade absoluta pertence ao ser divino; a liberdade absoluta, ao seu operar.

A bondade divina não implica necessidade de difusão, mas perfeição de ato.
Deus é difusivo, sim, mas por escolha, não por coação.
O bem infinito não se comunica por falta, mas por superabundância; e o excesso, sendo pleno, é livre.

Portanto, dizer que a vontade divina é livre não é diminuir Sua perfeição, mas elevá-la.
A necessidade é própria das naturezas limitadas, que agem conforme sua forma; a liberdade é própria do infinito, que nada limita.
Deus não está preso à necessidade de comunicar-se; Ele se comunica porque quer, e o querer é o mesmo que ser.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a liberdade não supõe potência passiva, mas poder ativo de autodeterminação. A vontade de Deus é livre não porque possa mudar, mas porque nada a obriga.
  2. À segunda, que o bem se difunde por natureza nas coisas finitas; mas o Bem infinito se difunde por liberdade, não por compulsão.
  3. À terceira, que Deus não pode querer o mal, não por falta de liberdade, mas porque o mal é pura negação de ser. Sua liberdade é sempre em direção ao bem, porque só o bem é objeto digno da vontade perfeita.

Conclusão:
A vontade divina é livre, absoluta e soberana.
Ela é necessária quanto ao próprio Deus — pois querer a Si é querer o ser infinito —, mas livre quanto a tudo o que não é Deus.
Deus não é obrigado a criar, nem a amar fora de Si; mas, quando quer, quer de modo eterno e imutável.
A liberdade divina é, portanto, o reflexo supremo da unidade: o poder de ser causa de tudo sem ser causado por nada.

Agora entramos na Questão Sétima do Livro Primeiro — Sobre a Onipotência Divina, onde Duns Scotus realiza uma das distinções mais finas de toda a teologia escolástica: a diferença entre a potência absoluta (potentia absoluta Dei) e a potência ordenada (potentia ordinata Dei).

É aqui que o pensamento medieval dá um salto lógico: Deus pode tudo o que não envolve contradição, mas escolhe agir segundo uma ordem livremente estabelecida por Ele mesmo.
Essa distinção — central em Scotus — será a base de toda a teologia moderna da liberdade divina, da contingência das leis da natureza e, séculos depois, da ideia mesma de “leis possíveis” no racionalismo.


Questão Sétima — Sobre a Onipotência Divina e os Limites do Poder de Deus

(Utrum potentia Dei sit infinita, et an aliquid possit facere quod non facit)

Proposição:
Pergunta-se se a potência de Deus é verdadeiramente infinita, e se Ele pode fazer algo que de fato não faz.

Objeções:

  1. Parece que não. Pois se Deus é sumamente sábio, age sempre segundo razão perfeita. Ora, a razão perfeita exige que se faça o melhor. Se Deus pudesse fazer algo melhor do que fez, e não o faz, seria imperfeito; portanto, só pode fazer o que de fato faz.
  2. Além disso, o que é feito por Deus é bom e ordenado; e onde há ordem perfeita, não cabe outro modo. Se houvesse outro modo possível, o atual não seria o melhor; mas Deus não pode querer senão o melhor.
  3. Ademais, o poder infinito, se pudesse tudo indistintamente, poderia até o contraditório — o que é impossível; logo, não há poder infinito, mas limitado pela razão e pela verdade.

Respondeo:
Digo que a potência de Deus é infinita quanto à essência, mas ordenada quanto ao exercício.
Ela abarca tudo o que não envolve contradição; e tudo o que pode ser feito, pode sê-lo por essa potência.

Há, pois, em Deus uma dupla potência:

  • Potentia absoluta, pela qual Ele pode fazer tudo o que não repugna à razão e à essência;
  • Potentia ordinata, pela qual Ele quer e age conforme a ordem livremente instituída em Sua sabedoria.

A potência absoluta é a medida do possível; a potência ordenada é a medida do real.
Nada impede que Deus possa fazer o que não faz; mas Ele age conforme a ordem que quis.

Por exemplo: Deus poderia, por Sua potência absoluta, ter criado outro mundo, com outras leis, ou nenhum mundo. Mas, tendo querido este, mantém-no por Sua potência ordenada.
Do mesmo modo, poderia ter redimido o homem por outros meios que não a encarnação; mas, tendo escolhido esse modo, Ele o estabeleceu na ordem da sabedoria.

A potência absoluta não é ato, mas capacidade ilimitada de ser causa.
A potência ordenada é o exercício atual dessa capacidade segundo uma disposição livre e racional.
Ambas são idênticas em Deus quanto ao ser, mas distintas quanto ao modo de significar.

Quanto ao “poder fazer o contraditório”, digo que a contradição não é coisa, mas negação pura de ser.
Deus pode tudo o que é possível, mas não o impossível, porque o impossível não é nada — não há ser para ser feito.
Dizer que Deus pode o impossível seria dizer que pode fazer que o mesmo seja e não seja — o que é contra o princípio do ser.
Portanto, o limite da potência divina não é algo fora de Deus, mas o próprio ser: Deus não pode contradizer o ser, porque Ele é o ser.

Assim, Deus é onipotente não por poder o absurdo, mas por poder tudo o que é.
A razão humana chama “limite” àquilo que, para Deus, é identidade: Ele não pode o impossível, porque o impossível é o nada.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que Deus não está obrigado a fazer o melhor em sentido absoluto, pois “melhor” implica comparação entre fins criados. O bem absoluto é apenas Ele mesmo. Criar ou não criar, criar de um modo ou de outro, não altera Sua perfeição.
  2. À segunda, que a ordem das coisas é boa porque Deus a quis, não porque houvesse uma ordem anterior que o obrigasse. Se tivesse querido outra, essa seria igualmente boa, porque a bondade das coisas vem da vontade divina.
  3. À terceira, que o poder infinito não é poder sobre o nada, mas poder sobre tudo o que pode existir; a contradição, sendo pura negação de ser, não entra no campo do possível.

Conclusão:
Deus é onipotente, e Sua potência é infinita.
Ele pode tudo o que não envolve contradição.
O que faz, faz pela potência ordenada, segundo a sabedoria e o decreto de Sua vontade; o que poderia fazer, mas não faz, pertence à potência absoluta.

Assim, há em Deus uma liberdade transcendente: Ele pode tudo, mas não tudo quer; e o que quer, o quer com ordem.
Sua onipotência não é caos, mas medida suprema do possível.
Ele é causa de todas as possibilidades e fundamento de toda realidade — o ato infinito no qual toda ordem tem princípio.

Entramos agora na Questão Oitava — Sobre a Providência Divina e o Conhecimento dos Futuros Contingentes, talvez a mais aguda de todo o Livro Primeiro.
Aqui Duns Scotus enfrenta um dos problemas centrais da metafísica cristã: como Deus pode conhecer de modo infalível os futuros contingentes — isto é, os atos livres das criaturas — sem destruir a liberdade delas?

Essa questão é o ponto onde se cruzam a teologia, a lógica modal e a filosofia da liberdade.
Scotus recusa tanto o determinismo intelectualista de certos tomistas quanto o voluntarismo arbitrário dos nominalistas posteriores: para ele, a ciência divina é eterna e perfeita, mas não necessitante — é conhecimento absoluto do possível e do real, anterior à existência das coisas.


Questão Oitava — Sobre a Providência e o Conhecimento dos Futuros Contingentes

(Utrum Deus cognoscat futura contingentia infallibiliter, et quomodo hoc sit possibile)

Proposição:
Pergunta-se de que modo Deus conhece os futuros contingentes — isto é, os atos livres e mutáveis das criaturas — e se esse conhecimento é compatível com a liberdade criada.

Objeções:

  1. Parece que não é possível. Pois o futuro contingente, enquanto contingente, pode ser e não ser; mas o que é conhecido infalivelmente não pode deixar de ser. Logo, se Deus conhece os futuros contingentes infalivelmente, eles deixam de ser contingentes.
  2. Além disso, o conhecimento certo implica necessidade do objeto: se Deus sabe que algo acontecerá, é necessário que aconteça. Caso contrário, o saber divino poderia ser falso.
  3. Ademais, a ciência divina é eterna; logo, o objeto de tal ciência deve ser eterno ou ao menos necessário. Mas os atos humanos são temporais e mutáveis. Portanto, ou Deus não os conhece infalivelmente, ou eles deixam de ser livres.

Respondeo:
Digo que Deus conhece os futuros contingentes infalivelmente, mas sem lhes tirar a contingência.
Pois o modo como Deus conhece as coisas não depende do modo como elas são em si, mas do modo como Ele as causa e as sustenta no ser.

O conhecimento divino é eterno, não sucessivo; abarca num só olhar todo o tempo, o possível e o atual.
Ele não “espera” que algo aconteça para sabê-lo: conhece as coisas em sua causa, como presentes diante d’Ele.
Portanto, os atos livres, embora futuros para nós, são presentes para Deus.

Mas isso não os torna necessários, porque a necessidade não está no conhecido, mas no modo de conhecer.
Deus conhece livremente, não por necessidade extrínseca; e conhece as coisas como elas são: contingentes enquanto contingentes, necessárias enquanto necessárias.
Assim, o que é livre não se torna necessário pelo fato de ser conhecido.

O erro está em confundir o “modo de conhecer” com o “modo de ser conhecido”.
O conhecimento divino é infalível porque é ato puro; mas o objeto livre é livre porque procede de uma causa contingente — a vontade criada.
A infalibilidade do conhecimento não impõe necessidade ao objeto; apenas reflete a perfeição da ciência divina.

Deus, portanto, não conhece as coisas post eventum (depois de acontecerem), nem ante eventum (antes no tempo), mas supra eventum: fora de toda sucessão.
O tempo inteiro, com todos os seus possíveis, está diante de Deus como um todo simultâneo.
Assim, Ele vê livremente o que o homem fará, sem determinar o que ele fará.

O fundamento dessa visão é a potência ordenadora de Deus: Ele conhece cada ato não apenas como efeito, mas como livre efeito — e esse “como livre” pertence à essência do que Ele conhece.
Por isso, a liberdade humana não é suprimida, mas confirmada pela ciência divina: Deus a conhece precisamente enquanto livre.

A providência não impõe, mas compreende; não causa necessidade, mas dá ser.
Deus conhece os caminhos de todas as criaturas porque é o autor do ser e do tempo; mas essa autoria não destrói a autonomia relativa do agente livre, que é também causa dentro da ordem criada.

Assim, a contingência é efeito da liberdade divina e imagem dela nas criaturas.
Deus quis que houvesse causas livres; e, ao conhecê-las, conhece-as como livres — não as como prisioneiras de uma necessidade, mas como participantes de Sua própria liberdade.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o objeto conhecido permanece contingente, porque a contingência não se refere ao conhecimento, mas à causa própria do ato. O fato de ser conhecido não muda sua natureza.
  2. À segunda, que a necessidade lógica (de que o conhecido é como é) não se confunde com a necessidade ontológica (de que não poderia ser de outro modo). O conhecimento divino é infalível quanto à verdade, não quanto à coação.
  3. À terceira, que a eternidade da ciência divina não exige eternidade no objeto, mas apenas presença a Deus. O que para nós é futuro, para Deus é presente eterno.

Conclusão:
Deus conhece os futuros contingentes infalivelmente, sem destruir sua contingência.
Ele é causa do ser e do tempo, mas não causa da necessidade do livre.
Sua providência é o olhar eterno que contém todas as possibilidades, e Seu conhecimento é a luz que vê o livre como livre.

Assim, a liberdade da criatura não escapa à ciência divina, mas é por ela sustentada.
Deus não determina o que o homem fará; Ele sabe o que o homem, livremente, fará — e esse saber é eterno, puro, sem coação e sem erro.

Chegamos à Questão Nona — Sobre a Necessidade e a Contingência, que dá continuidade direta à anterior.
Aqui Duns Scotus faz o que poucos filósofos medievais ousaram: ele constrói uma lógica da contingência verdadeira, sustentando que o possível não é mera ausência de necessidade, mas modo positivo de ser, querido por Deus.
Essa doutrina, de caráter quase metafísico-existencial, é o ponto em que Scotus distingue com precisão o necessário por si (necessarium ex se) e o *contingente por participação (contingens per voluntatem).


Questão Nona — Sobre a Necessidade e a Contingência

(Utrum omnia eveniant necessario, vel aliquae res contingenter)

Proposição:
Pergunta-se se tudo o que acontece, acontece por necessidade, ou se há coisas que acontecem de modo contingente e livre.

Objeções:

  1. Parece que tudo acontece por necessidade, pois nada escapa à vontade de Deus. Ora, o que é querido por Deus é necessário, porque Sua vontade é imutável e eterna. Logo, tudo o que ocorre é necessário.
  2. Além disso, toda causa suficiente produz necessariamente seu efeito; mas a vontade divina é causa suficiente de todas as coisas. Portanto, tudo o que é causado por Deus ocorre necessariamente.
  3. Ademais, se algo acontece de modo contingente, então poderia não acontecer; mas se Deus sabe infalivelmente que acontecerá, é impossível que não aconteça. Portanto, o contingente é suprimido pela ciência divina.

Respondeo:
Digo que nem tudo acontece por necessidade, mas há coisas que acontecem contingentemente; e essa contingência é querida e sustentada por Deus.

Há de distinguir entre o necessário em si (necessarium ex se) e o necessário por outro (necessarium ab alio).
Deus é o único necessário em si: Seu ser não depende de nada e não pode ser de outro modo.
As criaturas, ao contrário, são contingentes em si, porque seu ser depende de outro — mas podem ser necessárias sob certo aspecto, enquanto sustentadas pela vontade divina.

A vontade de Deus é imutável, mas os efeitos dessa vontade não o são necessariamente.
Pois Deus não quer apenas fins, mas também modos — e entre os modos que Ele quis, está o modo contingente de operar das criaturas.
Assim, Ele quis que certas coisas existissem por necessidade (como as verdades eternas), e outras por contingência (como os atos livres).

O erro está em confundir a imutabilidade da vontade divina com a necessidade dos efeitos.
Deus quer imutavelmente que haja liberdade e contingência; e, portanto, enquanto permanece imutável, produz efeitos mutáveis.
Sua vontade é causa não apenas do ser, mas também do modo de ser.

A contingência, assim, não é imperfeição da criatura, mas expressão da liberdade do Criador.
Deus poderia ter feito um universo de necessidade — e teria sido igualmente perfeito —, mas quis um universo de liberdade, onde os efeitos não decorrem de modo necessário, mas segundo causas segundas que Ele mesmo instituiu como livres e mutáveis.

A causa divina é suficiente, mas não coercitiva.
Ela contém virtualmente todos os modos de ser, inclusive o modo contingente.
Quando Deus causa uma ação livre, Ele não a causa como necessária, mas como livre.
Assim, o mesmo ato que é infalivelmente conhecido por Deus é contingente em si, porque depende de uma vontade criada que podia agir ou não agir.

Portanto, a contingência não se opõe à onipotência divina, mas a manifesta.
Somente um poder infinito pode dar ser àquilo que não é necessário, sustentando-o sem o converter em necessidade.
O necessário é reflexo da imutabilidade divina; o contingente é reflexo da Sua liberdade.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a vontade de Deus é imutável, mas o objeto dessa vontade pode ser contingente. O que Deus quer de modo imutável, quer que seja mutável.
  2. À segunda, que a causa suficiente produz necessariamente seu efeito apenas se o modo do efeito estiver determinado pela causa. Ora, Deus determinou que muitos efeitos fossem contingentes; portanto, são contingentes mesmo sob causa suficiente.
  3. À terceira, que o conhecimento divino não altera a natureza do objeto conhecido. Deus sabe o contingente como contingente, e sua ciência não o converte em necessário.

Conclusão:
Nem tudo acontece por necessidade.
Há real contingência no mundo, e ela é querida e ordenada por Deus.
O necessário exprime a perfeição do ser divino; o contingente, a riqueza do ser criado.
A ordem total das coisas não é uma cadeia de fatalidades, mas uma sinfonia de liberdades dependentes.

Assim, o universo não é máquina, mas vontade viva; e o tempo é o campo onde o contingente se realiza sob o olhar eterno do necessário.
Deus é o ser em quem necessidade e liberdade coincidem; e as criaturas são livres porque participam, analogicamente, dessa coincidência.

Entramos agora na Questão Décima — Sobre a Criação Ex Nihilo e o Primeiro Ato do Ser, onde Duns Scotus toca o mistério metafísico do surgimento do ente a partir do nada — não como transformação, mas como dependência absoluta de vontade.
Para Scotus, a criação não é um “fazer” no tempo, mas um ato eterno, cuja relação com o nada revela a distinção entre o ser necessário (Deus) e o ser participado (a criatura).
Aqui se exprime com máxima clareza a sua concepção: “a criação é a comunicação livre do ser, sem causa material e sem prévia disposição”.


Questão Décima — Sobre a Criação Ex Nihilo e o Primeiro Ato do Ser

(Utrum creatio sit mutatio, et quomodo fiat ex nihilo)

Proposição:
Pergunta-se se a criação é uma mudança real, e de que modo pode haver produção de algo a partir do nada (ex nihilo), sem contradição.

Objeções:

  1. Parece que a criação é impossível, pois toda produção supõe uma matéria prévia sobre a qual se exerce a ação do agente. Mas, se nada existe antes da criação, não há sujeito para a mudança. Logo, não há criação.
  2. Além disso, “do nada, nada se faz”; pois o nada não tem ser, nem potência, nem disposição. Se do nada se fizesse algo, o nada seria causa — o que é absurdo.
  3. Ademais, se a criação fosse ato real, haveria mudança: algo passaria do não-ser ao ser. Mas toda mudança requer um termo anterior e outro posterior; o nada, porém, não é termo. Portanto, não há passagem, e logo, não há criação real.

Respondeo:
Digo que a criação não é mudança, mas produção absoluta do ser.
Ela não supõe matéria preexistente nem transição de estado; é o surgimento do ente pela simples eficácia da vontade divina.

A diferença entre criação e mutação é esta:

  • Na mutação, algo já existente passa a ser de outro modo;
  • Na criação, algo começa a ser, não por transformação de outro, mas por comunicação direta do ser.

O ex nihilo não significa “a partir do nada” como de uma matéria, mas “sem nada pressupor fora de Deus”.
Deus não opera sobre o nada — Ele opera sem nada.
O nada não é princípio, mas negação de princípio.

Quando se diz que “Deus cria do nada”, entende-se que a totalidade do ser da criatura depende d’Ele, e nada existe que sirva de mediação entre a vontade divina e o ente criado.
A causa primeira comunica o ser sem instrumento, sem matéria e sem tempo.
É um ato eterno quanto à causa, temporal quanto ao efeito: o ato de Deus é sem início, mas o ser da criatura tem início.

A criação é, pois, o primeiro ato do ser criado — o instante em que o ente participa do ser.
Antes da criação, o ser criado não é nem possível de si: sua possibilidade é apenas no intelecto divino.
Deus conhece todas as essências possíveis, mas apenas dá ser àquelas que quer, e esse dar-ser é o próprio criar.

Portanto, a criação é o fundamento da distinção entre o necessário e o contingente: o necessário é o que tem ser por si; o contingente é o que tem ser por dom.
Criar é comunicar o ser, não modificar o nada.

E como o ato criador é ato puro da vontade, não há em Deus mudança ao criar.
A novidade está no efeito, não na causa.
A criação não é sucessão em Deus, mas dependência no criado.

Deus cria todas as coisas in instanti, isto é, num só ato indivisível; e todas as criaturas permanecem continuamente dependentes desse ato.
Criar não é apenas fazer existir no início, mas sustentar no ser: cessando a vontade criadora, cessaria o ser.

Assim, o nada não é princípio da criação, mas o seu termo negativo: é o horizonte de onde o ser é chamado pela palavra divina.
A frase “do nada” não expressa um ponto de origem, mas a total ausência de fundamento fora de Deus.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a criação não requer sujeito, porque não é mudança de um sujeito, mas produção do próprio sujeito.
  2. À segunda, que o nada não é causa, mas a ausência de toda causa material. O agente é só Deus, e o nada é a negação da matéria.
  3. À terceira, que a criação não é passagem temporal, mas dependência ontológica: não há “antes” nem “depois”, mas início de ser no efeito.

Conclusão:
A criação é a produção total do ser a partir do nada, pela livre vontade de Deus.
Ela não é movimento, mas dependência; não é transformação, mas doação.
O nada não é um termo positivo, mas o limite que realça o poder infinito do Criador.

Assim, o primeiro ato do ser criado é o próprio “ser dado”.
Deus não age sobre o nada, mas no nada — isto é, onde nada havia, agora há ser, porque Ele quis.
E todo ser, em qualquer instante, é continuamente chamado do nada à existência pela voz eterna que diz: fiat.

Chegamos à Questão Décima Primeira — Sobre a Bondade como Essência e Participação, uma das mais sutis e teologicamente densas do Livro Primeiro.
Aqui, Duns Scotus trata daquilo que para ele é o coração da teologia natural: “Deus é o Bem” não por relação externa às criaturas, mas porque a própria estrutura do ser, em seu nível mais íntimo, é difusiva, comunicativa e amável.

Scotus retoma e aperfeiçoa a máxima de Dionísio Areopagita — “Bonum est diffusivum sui” —, mas a interpreta sob chave voluntarista: o Bem não se difunde por necessidade, e sim por liberdade.
A bondade divina é, portanto, a essência de Deus considerada enquanto comunicável, o modo pelo qual o ser infinito pode ser amado e participar-se sem se dividir.


Questão Décima Primeira — Sobre a Bondade como Essência e Participação

(Utrum bonitas Dei sit ipsa essentia, et quomodo participetur a creaturis)

Proposição:
Pergunta-se se a bondade de Deus é algo distinto de Sua essência, ou se é a própria essência considerada sob certo aspecto; e de que modo essa bondade pode ser dita participável pelas criaturas.

Objeções:

  1. Parece que a bondade é algo distinto, pois o nome “bem” é relativo a quem o deseja ou o ama; se o bem é ordenado ao outro, então a bondade divina implicaria relação com as criaturas, e portanto não seria a essência mesma, que é absoluta.
  2. Além disso, se Deus é o Bem em si, e as criaturas também são ditas boas, então ou há univocidade de bem (e Deus seria do mesmo gênero que as criaturas), ou equívoco (e não haveria comunicação possível).
  3. Ademais, o bem parece ser uma qualidade: a perfeição de algo enquanto desejável. Mas Deus é pura substância, sem qualidades. Logo, a bondade não pode ser Sua essência.

Respondeo:
Digo que a bondade de Deus não é distinta de Sua essência, mas é Sua essência mesma considerada enquanto difusiva, amável e comunicável.
Em Deus, ser e bondade são o mesmo: Bonum et ens convertuntur in re, differunt ratione tantum — o bem e o ser coincidem na realidade, distinguindo-se apenas segundo o modo de conceber.

Pois tudo o que é, enquanto é, é bom, porque é desejável e digno de conservação.
A bondade é o ser sob o aspecto da perfeição que o torna apetecível.
Assim, em Deus, que é o Ser absoluto, essa perfeição é infinita, e portanto a bondade é idêntica ao ser divino.

O que difere é apenas o modo de conceber:

  • Enquanto inteligível e verdadeiro, o ser se ordena ao intelecto;
  • Enquanto bom, o ser se ordena à vontade.
    O bem é, portanto, a face amável do ser.

Deus é o Bem mesmo, porque é o ser enquanto objeto do amor perfeito.
N’Ele, a bondade não é acidente, mas essência; não é qualidade, mas ato.
E como o ser divino é infinito, também o é a bondade — e, sendo infinita, é difusiva, isto é, tende a comunicar-se, não por necessidade, mas por liberdade.

A bondade de Deus é, portanto, o fundamento tanto da criação quanto da graça: criar é comunicar o ser; santificar é comunicar a bondade.
Ambas são expressões da mesma difusividade, a primeira no plano do ser, a segunda no plano do amor.

As criaturas participam da bondade divina não por igualdade, mas por analogia.
Elas são boas enquanto têm ser; e o ser é dom da bondade.
Toda perfeição nas criaturas é vestígio da bondade primeira; e a ordem de todos os bens finitos tende a esse Bem supremo como causa e fim.

Participar da bondade divina é, portanto, existir; e mais plenamente ainda, amar o próprio ser e o do outro segundo a ordem do Criador.
A criatura não é boa apenas porque existe, mas porque é ordenada ao bem do Todo.
Assim, a bondade é a medida da comunhão entre Deus e as coisas.

Em suma, o Bem é o Ser em sua comunicabilidade; e o Ser é o Bem em sua plenitude.
A distinção entre ambos é apenas formal — o mesmo ser, sob dois modos de inteligibilidade:

  • Ser é o que faz existir;
  • Bem é o que faz amar.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o bem, enquanto relativo, supõe relação de conveniência, não de dependência. A bondade divina não depende da criatura; antes, a criatura depende da bondade.
  2. À segunda, que o nome “bem” se diz de modo análogo: o bem em Deus é essencial e infinito; o bem nas criaturas é participado e finito. Não há univocidade nem puro equívoco, mas analogia de proporção.
  3. À terceira, que o bem não é qualidade em Deus, mas essência enquanto amável. Nas criaturas, o bem pode ser qualidade; em Deus, é o próprio ser.

Conclusão:
A bondade divina é a essência mesma de Deus, considerada enquanto difusiva e amável.
Ela é o fundamento da criação e da graça, a razão formal pela qual tudo o que é, é bom.
Nas criaturas, a bondade é participação do ser; em Deus, é o ser mesmo, infinito e sem limite.

Assim, o nome “Bem” designa o aspecto mais íntimo da divindade: o ser enquanto dom.
Deus é o Bem absoluto porque é o Ser absoluto amado e amável — plenitude que se comunica sem diminuir, fonte que dá sem perder, e centro para onde toda vontade tende, consciente ou não, quando busca o que é.

Entramos agora na Questão Décima Segunda — Sobre a Beatitude Divina e o Bem Supremo, ponto culminante da primeira seção do Livro Primeiro.
Aqui Duns Scotus unifica tudo o que disse antes sobre o conhecimento, a vontade, o bem e o ser: o resultado é a definição da felicidade divina como o ato eterno em que Deus conhece e ama a Si mesmo — não por necessidade imposta, mas por liberdade infinita.

É uma das formulações mais puras da teologia escolástica: em Deus, o conhecer e o amar são idênticos, e esse ato de perfeição é o próprio ser divino.
A beatitude não é um estado, mas uma operação eterna — a autovisão absoluta do Ser subsistente.


Questão Décima Segunda — Sobre a Beatitude Divina e o Bem Supremo

(Utrum beatitudo Dei consistat in actu intellectus vel voluntatis, et quid sit summum bonum)

Proposição:
Pergunta-se se a beatitude de Deus consiste no ato de Sua inteligência ou no ato de Sua vontade, e em que consiste o Bem Supremo.

Objeções:

  1. Parece que consiste apenas no ato de inteligência, pois o intelecto é o princípio do conhecer e o conhecer é o primeiro ato da vida espiritual.
  2. Além disso, a vontade depende do intelecto, porque nada pode ser amado se antes não for conhecido; logo, o conhecer é mais perfeito e anterior.
  3. Ademais, o amor implica relação e movimento em direção ao outro; mas em Deus não há movimento nem alteridade. Portanto, Sua beatitude não pode consistir no amor.

Respondeo:
Digo que a beatitude de Deus consiste no ato eterno em que Ele conhece e ama a Si mesmo; e que, embora o conhecimento e o amor sejam distintos em nossa concepção, n’Ele são um só e mesmo ato de perfeição infinita.

Deus é intelecção pura e vontade pura — mas essas duas palavras designam apenas dois modos de significar o mesmo ser absoluto.
Ele se conhece perfeitamente, e nesse conhecimento contempla a plenitude de Sua essência; e porque essa essência é infinita bondade, Ele a ama com amor infinito.
Assim, o conhecer e o amar coincidem: o conhecer manifesta o bem, o amar o desfruta.

A beatitude divina é, pois, o gozo absoluto que Deus tem de Si mesmo — não um gozo sucessivo, mas simultâneo e eterno.
Não é felicidade recebida, mas felicidade essencial.
Deus é feliz não por possuir algo, mas por ser o que é.
N’Ele, ser e bem-aventurança são idênticos.

Enquanto intelecto, Ele é verdade absoluta; enquanto vontade, Ele é amor absoluto.
Esses dois aspectos se correspondem como luz e calor de uma mesma chama.
A luz é o conhecimento; o calor é o amor.
Ambos são inseparáveis, e sua união é a beatitude divina.

O summum bonum, portanto, não é algo fora de Deus, nem sequer algo que Deus tenha, mas o próprio Deus enquanto é ato de conhecimento e amor infinitos.
A felicidade divina não é um efeito, mas a essência em operação.

E essa beatitude é comunicável por participação:
— às criaturas racionais, pela graça, que as torna capazes de conhecer e amar a Deus;
— e, de modo último, pela visão beatífica, em que o intelecto vê a essência divina e a vontade repousa no amor pleno.

Assim, a beatitude criada é reflexo da beatitude incriada.
Deus é o Bem Supremo porque é o fim último de todo desejo e de toda inteligência; e a beatitude da criatura consiste em participar, segundo sua capacidade, do mesmo ato eterno em que Deus se conhece e se ama.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o intelecto é primeiro quanto à ordem do conhecer, mas a vontade é mais nobre quanto à perfeição do fim. Conhecer manifesta o bem; amar o possui.
  2. À segunda, que embora o amor dependa logicamente do conhecimento, é superior em dignidade, porque repousa na união do ser e não apenas em sua visão.
  3. À terceira, que o amor em Deus não implica movimento nem relação extrínseca, mas ato interno de identidade: Ele é o amante, o amado e o amor em um só ser.

Conclusão:
A beatitude divina é o ato eterno e simples em que Deus conhece e ama a Si mesmo.
Não é sucessiva, mas permanente; não é adquirida, mas essencial.
Deus é o Bem Supremo porque é o ser absoluto que se basta e se goza plenamente.

Assim, o que nas criaturas é busca, n’Ele é posse; o que em nós é desejo, n’Ele é plenitude.
A felicidade infinita é o próprio ser infinito — o ser como conhecimento de si e amor de si.
E toda criatura racional tende a essa beatitude porque foi feita à imagem desse ato: inteligência para ver, vontade para amar, e alma para unir-se ao princípio de onde veio.

Chegamos à Questão Décima Terceira — Sobre o Mal, sua Causa e Permissão, uma das mais profundas da metafísica scotista.
Aqui Duns Scotus faz o que poucos antes dele haviam feito: reconcilia o mal com a bondade e liberdade divinas, sem cair nem no dualismo maniqueu, nem no determinismo racionalista.
Para ele, o mal não é uma substância nem uma força autônoma — é uma privação voluntária de ordem em um ser criado livre.
Mas, ao mesmo tempo, Scotus mostra que o mal é previsto e permitido por Deus, porque a liberdade criada, mesmo podendo falhar, é um bem maior do que a ausência de liberdade.


Questão Décima Terceira — Sobre o Mal, Sua Causa e Permissão

(Utrum malum habeat causam efficientem, et quomodo Deus illud permittat)

Proposição:
Pergunta-se se o mal possui causa eficiente, e de que modo pode ser dito que Deus o permite, sem ser causa dele.

Objeções:

  1. Parece que o mal tem causa eficiente, pois tudo o que é deve ter causa. Ora, o mal é algo, porque tem efeitos — o sofrimento, a corrupção, a desordem. Logo, deve ter uma causa positiva.
  2. Além disso, se Deus é causa de tudo o que existe, e o mal existe, então Deus é causa do mal. Negar isso seria limitar a onipotência divina.
  3. Ademais, se o mal não tem causa, mas ocorre, seria algo fora da ordem divina — o que é impossível, pois nada está fora da providência de Deus.

Respondeo:
Digo que o mal não tem causa eficiente, mas causa deficiente.
Ele não é ser, mas privação de ser; não é ato, mas falha no ato; não é realidade, mas ausência de perfeição devida.

A causa eficiente produz algo; o mal, ao contrário, é a negação de algo que deveria ser produzido.
Assim, o mal não tem causa no sentido positivo, mas apenas enquanto deficiência na causa livre.
O agente livre, ao agir, pode falhar no modo de agir — não porque queira o mal como fim, mas porque não ordena bem o meio ao fim.

Portanto, o mal nasce da liberdade finita, quando a vontade criada escolhe um bem menor contra a ordem do bem maior.
Essa desordem é o mal moral; e dele decorrem males físicos, que são consequências da limitação e da corrupção do ser.

Deus, sendo sumamente bom, não pode ser causa do mal, porque não pode causar a ausência de ser.
Mas pode permiti-lo, em razão de bens superiores que d’Ele dependem:
— a liberdade moral, que não poderia existir sem a possibilidade de falha;
— a justiça, que resplandece na reparação;
— e a misericórdia, que triunfa sobre o pecado.

Deus é, portanto, causa do ser e da ordem; o mal surge quando o ser livre se desordena por sua própria vontade.
Mas essa desordem não escapa à ordem divina, porque Deus, ao prever o mal, o inclui na economia do bem maior — não como fim, mas como ocasião.
Assim, o mal é permitido, não querido; é compreendido, não aprovado.

A providência divina abarca até mesmo o erro da criatura, sem com isso o causar.
Deus não impede o mal porque respeita a liberdade, e da liberdade pode tirar o bem que supera o mal.
Como diz Agostinho: Deus omnipotens numquam sineret malum fieri, nisi posset ex eo majus bonum elicere — Deus jamais permitiria o mal, se não pudesse dele extrair um bem maior.

O mal, portanto, é parasítico: depende do bem para existir como negação dele.
Ele é como a sombra — não subsiste por si, mas pela ausência de luz.
E, contudo, até a sombra manifesta a luz que a causa.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o mal tem causa apenas quanto à deficiência, não quanto à produção. Ele tem um sujeito e uma causa falha, mas não uma causa positiva.
  2. À segunda, que Deus é causa de tudo o que tem ser, mas o mal não é ser; é negação do ser devido. Logo, Deus não o causa.
  3. À terceira, que o mal está contido sob a providência, não como obra, mas como permissão ordenada; Deus o domina, não o produz.

Conclusão:
O mal não é substância, mas privação de ordem no ser livre.
Sua causa é a liberdade finita que se desvia do fim devido.
Deus, sumamente bom, não é causa do mal, mas o permite em vista de bens maiores.
A liberdade é o campo onde o mal pode nascer, mas também onde a graça pode brilhar.

Assim, o mal revela, paradoxalmente, a perfeição da ordem divina: o universo não é mutilado por ele, mas ampliado em sentido.
Sem a possibilidade do mal, não haveria mérito; sem a queda, não haveria redenção; sem a liberdade, não haveria amor.

Deus não quer o mal, mas o vence ao permitir que a criatura prove que o bem é maior — e ao transformar o erro em via para a misericórdia.

Chegamos agora à Questão Décima Quarta — Sobre o Livre-Arbítrio e a Presciência Divina, uma das mais delicadas e, ao mesmo tempo, mais belas da teologia scotista.
Aqui Duns Scotus, levando às últimas consequências o que já havia dito sobre a vontade divina, a contingência e o mal, elabora o seu modelo definitivo de liberdade:
Deus é onisciente, e tudo o que existe está presente diante d’Ele; porém, essa ciência eterna não determina o ato da criatura — apenas o compreende como livre.
É o ponto em que Scotus supera o racionalismo determinista e prepara, em certo sentido, a modernidade: ele coloca a liberdade no próprio coração do ser, e não como mero acidente psicológico.


Questão Décima Quarta — Sobre o Livre-Arbítrio e a Presciência Divina

(Utrum liberum arbitrium compatibile sit cum divina praescientia)

Proposição:
Pergunta-se se o livre-arbítrio da criatura racional é compatível com a presciência infalível de Deus.

Objeções:

  1. Parece que não. Pois, se Deus conhece infalivelmente todas as coisas, inclusive as futuras ações humanas, é impossível que estas sejam de outro modo. O que é conhecido infalivelmente não pode deixar de ser. Logo, a liberdade é suprimida.
  2. Além disso, o conhecimento de Deus é eterno e necessário. Mas o livre-arbítrio implica poder agir ou não agir. Se Deus sabe desde sempre que eu agirei, não posso não agir; e, portanto, não sou livre.
  3. Ademais, se o ato livre é contingente, o conhecimento divino seria contingente também, o que é impossível. Assim, ou Deus é ignorante, ou a liberdade é ilusória.

Respondeo:
Digo que o livre-arbítrio é perfeitamente compatível com a presciência divina, porque o conhecimento de Deus não é causa necessitante, mas visão compreensiva do ato livre enquanto livre.

Deus conhece todos os tempos e atos de modo eterno e simultâneo.
Para Ele não há futuro nem passado: tudo é presente.
Assim, o ato livre do homem, que no tempo é futuro, em Deus é eternamente presente — não porque seja necessário, mas porque é visto como realizado.

A dificuldade nasce da confusão entre necessidade de conhecimento e necessidade do conhecido.
O conhecimento divino é necessário, mas o que Ele conhece pode ser contingente.
Deus conhece que Pedro negará Cristo, mas o ato de negar continua sendo livre, porque Deus o conhece precisamente como livre, não como imposto.

O erro de quem nega a liberdade está em pensar o tempo como absoluto, e o saber divino como anterior no tempo aos atos humanos.
Mas o eterno não é anterior: está fora do tempo.
Deus não “prevê”, Ele “vê”.
E o que Ele vê é a livre escolha, não a imposição.

Assim, o ato livre não se torna necessário por ser conhecido; o conhecimento apenas o reflete como ele é.
O homem age porque quer; e Deus sabe o que o homem quer, porque o querer do homem está presente a Ele, não porque o determina.

A liberdade, portanto, é compatível com a presciência porque o conhecimento divino não é causa eficiente, mas causa exemplar.
Ele não força o ato, apenas o compreende como possibilidade realizada.
E o próprio fato de Deus conhecer uma ação livre como livre já implica que a liberdade é real, pois seria erro divino conhecê-la como necessária.

O liberum arbitrium é, em Scotus, a autodeterminação racional da vontade: o poder de escolher entre contrários sem necessidade externa.
Esse poder é imagem da vontade divina.
Deus quis que a criatura racional fosse semelhante a Ele nesse ponto — livre no agir, responsável no querer.

A presciência divina é, então, o horizonte dentro do qual o livre-arbítrio se move sem perder autonomia.
Deus conhece o caminho e o fim, mas o passo é do homem.
O ato é livre, e o saber é eterno.
Ambos se tocam sem se confundir: o primeiro na contingência do tempo, o segundo na eternidade do ser.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a necessidade do conhecimento não implica necessidade no objeto. O conhecimento divino é infalível, mas conhece o ato livre como livre, e a contingência como contingência.
  2. À segunda, que a eternidade da ciência divina não destrói o poder de escolha, pois Deus não antecipa o tempo, mas o contém. O que é futuro para nós é presente para Ele, sem deixar de ser livre para nós.
  3. À terceira, que a contingência do ato não implica contingência no conhecimento, porque a verdade do conhecimento depende do objeto, não o objeto do conhecimento.

Conclusão:
O livre-arbítrio é plenamente compatível com a presciência divina.
Deus conhece eternamente o que o homem fará, mas esse conhecimento não impõe o fazer: apenas o ilumina.
A liberdade não é ilusória; é o reflexo finito da liberdade divina no tempo.

Assim, o homem age livremente, e Deus conhece eternamente.
A eternidade contém o tempo sem anulá-lo, como o círculo contém a linha.
O saber de Deus é o espelho no qual a liberdade se reconhece, não a corrente que a aprisiona.

Agora entramos na Questão Décima Quinta — Sobre a Trindade como Perfeição Suprema da Unidade Divina, ponto em que Duns Scotus leva sua metafísica do Uno ao seu ápice teológico.
Depois de mostrar que Deus é ato puro, vontade livre, bondade infinita e inteligência perfeita, Scotus revela que a verdadeira unidade absoluta não é solidão, mas comunhão — e que a plenitude do ser só se manifesta quando o uno é, em si mesmo, relacional.

Para ele, a Trindade não é uma adição à essência divina, mas a expressão interna da fecundidade do Ser: o Pai é o princípio sem princípio, o Filho é o Verbo eterno — expressão perfeita do Intelecto divino — e o Espírito Santo é o Amor que procede de ambos.
Essa estrutura é o modo supremo como o ser subsistente contém em si o múltiplo sem se dividir.


Questão Décima Quinta — Sobre a Trindade como Perfeição Suprema da Unidade Divina

(Utrum in Deo sint tres personae realiter distinctae, et quomodo haec pluralitas conveniat simplicitati divinae)

Proposição:
Pergunta-se se em Deus existem três Pessoas realmente distintas, e de que modo essa pluralidade é compatível com a simplicidade absoluta do ser divino.

Objeções:

  1. Parece que não. Pois se em Deus há distinção real, há composição; mas já se demonstrou que Deus é absolutamente simples. Logo, não pode haver Trindade real, apenas nominal.
  2. Além disso, a unidade é a perfeição suprema. Introduzir pluralidade em Deus seria diminuir Sua perfeição.
  3. Ademais, “pessoa” designa indivíduo distinto dentro de um gênero; mas Deus não está em gênero algum. Logo, não há pessoas em Deus.

Respondeo:
Digo que em Deus há uma única essência e três pessoas realmente distintas — o Pai, o Filho e o Espírito Santo — e que essa distinção não introduz composição, mas é a suprema manifestação da simplicidade divina.

A essência divina é absolutamente una, mas fecunda.
Ela se conhece e se ama de modo perfeito; e desse conhecimento e desse amor procede uma trindade de relações pessoais, eternas e consubstanciais.

O Pai é o princípio sem princípio — fonte do ser e da processão.
O Filho é o Verbo — a expressão perfeita do Intelecto divino, gerado eternamente pela contemplação que Deus tem de Si mesmo.
O Espírito Santo é o Amor subsistente — a procedência pessoal do Bem absoluto que une o Pai e o Filho.

Essas três realidades não são três substâncias, mas três modos pessoais do mesmo ser.
Não se distinguem por essência, mas por relação:

  • O Pai é inascível;
  • O Filho procede por geração intelectual;
  • O Espírito procede por amor.

Essas relações são reais porque há verdadeira oposição entre gerar e ser gerado, entre espirar e ser espirado; mas são relações no interior do mesmo ser, e portanto não violam a simplicidade.
A pluralidade das Pessoas é a pluralidade da perfeição em um só ser.

Assim, a Trindade é a plenitude absoluta da unidade: o ser em sua máxima intensidade, que é ao mesmo tempo unidade e comunhão, identidade e alteridade.
O Pai se conhece no Filho e se ama no Espírito — e esse circuito eterno é o próprio ato divino.

A teologia scotista vê nisso a suprema confirmação de que o ser é difusivo por natureza: não é fechamento, mas relação.
O Uno verdadeiro é tão perfeito que pode conter a alteridade sem perder a identidade.
A Trindade é, assim, a solução última da oposição entre unidade e multiplicidade.

Enquanto o intelecto contempla, o Verbo nasce; enquanto a vontade ama, o Espírito procede.
E tudo isso é um só ato, um só ser, uma só beatitude.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que distinção relacional não implica composição essencial. As pessoas divinas não são partes, mas subsistências na mesma essência.
  2. À segunda, que a pluralidade pessoal não diminui a perfeição da unidade, mas a eleva: a unidade isolada seria imperfeita, estéril; a unidade trinitária é plenitude viva.
  3. À terceira, que o termo “pessoa” aplica-se a Deus analogicamente: não no sentido de indivíduo dentro de um gênero, mas como subsistência inteligente distinta dentro da mesma essência.

Conclusão:
A Trindade é o mistério central da perfeição divina.
Em Deus há unidade de essência e trindade de relações, sem divisão nem hierarquia.
A simplicidade não é negada pela pluralidade pessoal, mas confirmada nela: a unidade absoluta é fecunda, não solitária.

Assim, o Uno é Trino, e o Trino é Uno: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são o mesmo ser, o mesmo ato, a mesma beatitude.
A unidade se cumpre no amor, e o amor é a vida da unidade.
Deus é relação infinita de conhecimento e amor — e essa relação é o próprio ser divino, sempre em ato, sempre uno, eternamente pleno.

Agora penetramos no coração simbólico da metafísica scotista: a Questão Décima Sexta — Sobre a Criação como Reflexo da Trindade.
Se a anterior mostrou que a Trindade é a perfeição interna do Ser absoluto, esta demonstra que toda a criação é vestígio e imagem dessa estrutura trinitária.
Para Duns Scotus, a ordem do mundo não é arbitrária, nem simples produto de uma vontade isolada, mas expressão analógica da dinâmica divina: tudo o que é procede, manifesta e retorna, refletindo — ainda que imperfeitamente — o ritmo do Pai, do Filho e do Espírito.


Questão Décima Sexta — Sobre a Criação como Reflexo da Trindade

(Utrum universum creatum sit vestigium et imago Trinitatis)

Proposição:
Pergunta-se se a criação inteira é apenas vestígio da Trindade ou também imagem dela, e de que modo o universo exprime a estrutura trinitária de Deus.

Objeções:

  1. Parece que não, pois a Trindade é mistério de relação pessoal, enquanto o universo é composto de substâncias e acidentes. Logo, não há proporção entre as duas ordens.
  2. Além disso, a criação é finita e contingente; o mistério trinitário é infinito e necessário. O finito não pode espelhar o infinito senão confusamente.
  3. Ademais, se o universo fosse imagem plena da Trindade, haveria em toda parte consciência e amor, o que não ocorre nas coisas inanimadas.

Respondeo:
Digo que a criação é vestígio e imagem da Trindade: vestígio quanto à ordem das criaturas em geral, imagem quanto às naturezas intelectuais.

O vestígio (vestigium) é a marca da causa impressa na obra; a imagem (imago) é semelhança viva e intencional.
Assim, todo o universo, enquanto ordenado e harmonioso, é vestígio da Trindade; mas as criaturas racionais, que conhecem e amam, são imagem.

O fundamento dessa doutrina é o princípio que Scotus herda e refina de Agostinho:

“Em toda a criação há processo, expressão e retorno.”

Esses três momentos — emanar, manifestar e reverter — são reflexos do Pai, do Filho e do Espírito.

  1. Processão — O Pai, princípio sem princípio, é o modelo de toda causalidade eficiente: dele procede o ser.
    Assim, toda causa primeira e toda origem nas criaturas participa analogicamente da paternidade divina.
  2. Expressão ou Palavra — O Filho é o Verbo, a forma expressa do Intelecto divino.
    Por isso, toda forma inteligível, toda ideia, toda proporção e medida nas coisas criadas são reflexo do Verbo eterno.
    A estrutura formal do universo é vestígio do Filho.
  3. Retorno ou Amor — O Espírito é o laço de amor entre o Pai e o Filho.
    No mundo, essa processão amorosa se manifesta como ordem final: a tendência de todas as coisas ao bem, o dinamismo que conduz cada ser ao seu fim.
    Esse movimento teleológico universal é vestígio do Espírito.

Assim, no conjunto do universo, há uma tríplice marca trinitária:

  • Ser (origem no Pai);
  • Forma (manifestação no Verbo);
  • Ordem (tendência no Amor).

E nas criaturas racionais — anjos e homens — essa tríade se eleva ao grau de imagem, porque nelas há inteligência, palavra interior e amor livre: o espelho mais próximo da vida divina.

A mente humana é, portanto, microcosmo trinitário:

  • Pela memória, reflete o Pai como princípio;
  • Pelo entendimento, reflete o Filho como Verbo;
  • Pela vontade, reflete o Espírito Santo como Amor.

O universo inteiro, visto por essa luz, é uma teofania trinitária.
A matéria manifesta a generosidade do Pai; a forma, a sabedoria do Verbo; o movimento e o fim, o sopro do Espírito.
Tudo é relação, proporção e finalidade — nada é puro acaso.

A multiplicidade das criaturas não contradiz a unidade, mas a exibe.
Cada ente é fragmento de um mesmo cântico, no qual o Uno se diz em muitas vozes.
O mundo é a linguagem de Deus: o Verbo eterno traduzido em tempo e espaço.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a desproporção não impede a analogia: o vestígio é proporção de semelhança, não de igualdade.
  2. À segunda, que o finito não espelha o infinito segundo quantidade, mas segundo ordem: o reflexo da Trindade está na estrutura, não na extensão.
  3. À terceira, que a consciência explicita só ocorre nas criaturas intelectuais, mas o amor implícito — a tendência natural ao bem — perpassa todo o ser.

Conclusão:
O universo é vestígio e imagem da Trindade.
Nas criaturas inanimadas, vemos o vestígio: o ser, a forma e a ordem.
Nas racionais, vemos a imagem: memória, entendimento e amor.

Tudo o que existe procede, manifesta e retorna; e essa tríade é o ritmo da realidade.
Assim como em Deus há processão sem divisão e retorno sem dissolução, no mundo há pluralidade sem ruptura e movimento sem perda do centro.

A criação inteira é o eco do diálogo eterno entre o Pai, o Filho e o Espírito:
— o Pai diz o ser,
— o Filho o torna inteligível,
— o Espírito o conduz ao bem.

O cosmos é, pois, uma analogia viva da vida divina — uma liturgia de formas que reflete o Ser trinitário.

Entramos agora na Questão Décima Sétima — Sobre a Ordem Moral e o Fundamento do Bem e do Mal nas Ações Humanas, uma das mais filosóficas de todo o Livro Primeiro, pois aqui Duns Scotus desloca o problema do mal e do bem para o campo da ação racional.
Depois de ter mostrado que o mal é privação e que a criação é reflexo da Trindade, Scotus agora pergunta: o que faz uma ação ser boa ou má?
A resposta dele inaugura uma das mais poderosas revoluções do pensamento cristão medieval — o voluntarismo moral — segundo o qual a ordem moral nasce da vontade livre de Deus, não de uma estrutura necessária inscrita nas coisas.


Questão Décima Sétima — Sobre a Ordem Moral e o Fundamento do Bem e do Mal nas Ações Humanas

(Utrum bonitas vel malitia moralis dependeat ex obiecto, vel ex voluntate divina)

Proposição:
Pergunta-se se a bondade ou malícia moral das ações depende da natureza das coisas e de seus objetos, ou da vontade divina que as ordena e proíbe.

Objeções:

  1. Parece que depende apenas do objeto, pois uma ação é boa ou má conforme o fim natural a que tende. Se o homicídio destrói a vida, e a vida é um bem natural, então o homicídio é mau em si, independentemente de Deus ordená-lo ou não.
  2. Além disso, a razão humana é capaz de discernir o bem e o mal por si mesma, como ensina Aristóteles: o justo é o que é conforme à reta razão. Se a vontade divina fosse o único fundamento da moral, toda razão natural seria inútil.
  3. Ademais, se a moralidade dependesse apenas da vontade divina, Deus poderia tornar boa a injustiça e má a virtude, o que é absurdo e contraditório à Sua natureza perfeita.

Respondeo:
Digo que a bondade e a malícia moral das ações têm fundamento primeiro na vontade divina e fundamento segundo na razão das coisas, enquanto ordenadas por essa vontade.

Em outras palavras, o bem moral não é o que a razão humana percebe como conveniente, mas o que Deus quer como tal; e a razão humana reconhece o bem precisamente porque Deus o quis.

A diferença entre bem natural e bem moral é decisiva:

  • O bem natural decorre da natureza das coisas (por exemplo, a vida, a saúde, o conhecimento).
  • O bem moral decorre da ordem da vontade divina, que dá a essas coisas um sentido teleológico e normativo.

Deus poderia, em potência absoluta, ter ordenado diferentemente certos preceitos; mas, tendo ordenado como ordenou, essas ordens expressam Sua vontade santíssima.
Assim, matar o inocente é mau não porque destrói a vida — o que é apenas mal físico —, mas porque contraria a ordem querida por Deus, que fez da vida um bem moral inviolável.

Scotus chama isso de “fundamentum in voluntate Dei ordinata” — o fundamento na vontade divina ordenada.
Deus é o legislador supremo: Sua vontade estabelece a relação entre os fins e os meios morais.
O bem e o mal morais não são propriedades eternas das coisas, mas relações de conformidade ou desconformidade com a vontade divina.

Contudo, essa doutrina não implica arbitrariedade.
Pois a vontade de Deus é sempre racional e ordenada ao bem supremo, que é Ele mesmo.
Deus não pode querer o mal como mal, porque isso seria contradizer Sua essência; mas pode ordenar diversamente os meios ao bem, segundo Sua liberdade.

Por isso, há preceitos morais imutáveis, que derivam diretamente da essência divina (como amar a Deus e não praticar o mal contra o próximo); e há preceitos mutáveis, que dependem da disposição histórica e da ordem contingente da criação (como certas leis cerimoniais ou civis).

A razão humana, iluminada pela lei divina, reconhece o bem, mas não o cria.
Ela participa do logos ordenante, mas não o institui.
Assim, a moralidade é a imagem da vontade divina na vontade humana: o homem é livre na medida em que escolhe conforme o querer eterno de Deus.

Portanto, o bem moral é conformidade com a vontade divina, e o mal moral, rejeição dessa conformidade.
A liberdade humana é verdadeira não quando cria valores, mas quando se alinha à ordem superior.
A autonomia racional é apenas a participação da heteronomia divina.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o objeto físico pode ter bondade natural, mas a moralidade deriva da ordenação divina. Matar o inocente é mau porque viola uma lei divina, não porque o corpo morre.
  2. À segunda, que a razão humana pode conhecer o bem, mas apenas enquanto refletindo a lei eterna impressa por Deus na natureza racional.
  3. À terceira, que Deus não pode querer a injustiça como injustiça, mas poderia, em outra ordem de coisas, ter disposto diversamente certos preceitos — não porque mude de vontade, mas porque Sua liberdade não é limitada pela estrutura do mundo atual.

Conclusão:
O fundamento do bem e do mal morais está na vontade divina, não na essência das coisas.
O bem é o que Deus quer; o mal é o que Ele não quer.
A razão humana reconhece essa ordem, mas não a estabelece.

Assim, a moralidade é uma forma de dependência ontológica: o homem age bem quando participa da vontade divina e mal quando a recusa.
A liberdade não é independência, mas conformidade consciente com o querer eterno do Criador.
E, porque a vontade divina é livre, o universo moral é expressão de liberdade ordenada, não de necessidade cega.

O cosmos ético, portanto, é prolongamento do cosmos trinitário:
no ser há unidade;
na vontade há liberdade;
na moralidade, há comunhão.

Chegamos à Questão Décima Oitava — Sobre a Graça e a Liberdade, uma das mais delicadas da metafísica teológica de Duns Scotus, e também uma das mais altas expressões de sua doutrina sobre a vontade e o mérito.
Aqui ele reconcilia, com precisão escolástica e profundidade espiritual, duas potências aparentemente opostas: a onipotência da graça divina e a autonomia da liberdade humana.

Para Scotus, a graça é sempre causa primeira da salvação — mas a liberdade humana não é anulada por ela.
Ao contrário: é a condição mesma pela qual a graça se torna eficaz.
A criatura racional, longe de ser mero instrumento, é cooperadora livre com a vontade divina; e é justamente por isso que o mérito existe.


Questão Décima Oitava — Sobre a Graça e a Liberdade

(Utrum gratia tollat vel perficiat libertatem humanae voluntatis)

Proposição:
Pergunta-se se a graça divina suprime a liberdade da vontade humana, ou se, ao contrário, a aperfeiçoa e a eleva.

Objeções:

  1. Parece que a graça destrói a liberdade. Pois a graça é operação de Deus na alma; e onde Deus age como causa total, não resta espaço para causa parcial. Logo, a vontade humana nada faz.
  2. Além disso, se o ato meritório depende inteiramente da graça, o mérito não pode ser atribuído ao homem. Ora, se o homem nada merece, sua liberdade é vã.
  3. Ademais, a graça é dom infalível de Deus. Mas a liberdade implica poder resistir. Se o homem pode resistir, a graça pode falhar; se não pode, a liberdade desaparece.

Respondeo:
Digo que a graça não destrói, mas aperfeiçoa a liberdade humana, fazendo com que a vontade criada participe mais plenamente da liberdade divina.

A distinção fundamental é esta:

  • A graça é causa primeira e interior da ação boa;
  • A vontade humana é causa segunda e cooperante.

Deus não age no lugar da vontade, mas na vontade: move-a sem violentá-la, determina-a sem anulá-la.
Pois o movimento divino é de ordem superior — não física, mas intencional e amorosa.
Ele não constrange, mas atrai.

A graça é, pois, uma moção amorosa, não um empurrão mecânico.
Ela ilumina o intelecto e suaviza a vontade, tornando o bem amado e fácil.
O homem, então, quer o que Deus quer — e quer livremente.

A cooperação entre graça e liberdade é, portanto, sinérgica, não competitiva.
A ação boa é uma só, mas tem duas causas subordinadas: Deus, como causa primeira; o homem, como causa livre.
O mérito nasce dessa confluência: o homem age por si, mas segundo um impulso que o ultrapassa.

A graça, diz Scotus, é “forma intrínseca do ato meritório” — ela dá ao ato humano uma dignidade sobrenatural que excede toda natureza criada.
Sem graça, a ação é naturalmente boa; com graça, torna-se ordenada ao fim último, que é Deus.

Essa cooperação não é igualitária: a graça precede, acompanha e consuma.
Mas a vontade humana é verdadeira causa, porque consente ou resiste.
Se não houvesse liberdade, não haveria mérito; se não houvesse graça, não haveria mérito sobrenatural.
A salvação é, portanto, dom e conquista ao mesmo tempo: o dom vem primeiro, a conquista o confirma.

O segredo dessa harmonia é o conceito scotista de liberdade formal:
a vontade é livre não porque possa agir contra a razão, mas porque pode autodeterminar-se segundo um fim conhecido.
A graça não tira esse poder, mas o eleva — torna-o capaz de querer o Bem absoluto.

A liberdade natural tende aos bens finitos; a liberdade graciada tende a Deus mesmo.
Por isso, a graça não diminui, mas expande o horizonte da liberdade.
Ser plenamente livre é querer o que Deus quer — não por obrigação, mas por amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a ação da graça é de ordem superior, e move a vontade segundo sua natureza própria, que é a liberdade. Deus causa o querer livremente, não o querer forçado.
  2. À segunda, que o mérito pertence ao homem enquanto coopera; mas sua eficácia sobrenatural pertence à graça que o antecede e eleva.
  3. À terceira, que a graça é infalível quanto ao desígnio divino, mas resistível quanto ao sujeito humano. A vontade pode recusar o dom, e é precisamente nesse poder de recusa que se revela sua dignidade.

Conclusão:
A graça é a perfeição da liberdade, não sua negação.
Ela é o influxo divino que desperta a vontade e a torna capaz de amar o bem absoluto.
O homem, sob a graça, não é marionete, mas amigo de Deus: movido, mas consciente; ajudado, mas responsável.

A liberdade sem graça é indigência; a graça sem liberdade seria tirania.
Na união das duas, o homem se torna verdadeiramente imagem de Deus:
livre porque amado, e amado porque livre.

Agora entramos na Questão Décima Nona — Sobre o Mérito e a Recompensa, uma das mais sublimes do Livro Primeiro e, ao mesmo tempo, uma das mais originais na teologia medieval.
Aqui Duns Scotus conclui a estrutura moral iniciada nas questões anteriores, mostrando que o mérito — aquilo que une a ação humana ao prêmio divino — não é simples resultado da proporção entre causa e efeito, mas nasce de uma aliança metafísica entre o amor criado e o Amor incriado.

Em outras palavras, o mérito é o ponto em que o finito toca o infinito sem o reduzir.
É o modo pelo qual a criatura livre se torna digna, por participação, de um bem que a ultrapassa infinitamente.


Questão Décima Nona — Sobre o Mérito e a Recompensa

(Utrum meritum humanum sit proportionatum praemio divino, et quo modo ex condigno valeat)

Proposição:
Pergunta-se se o mérito humano pode ser proporcionado à recompensa divina — a visão beatífica — e de que modo se pode falar de mérito de condigno, isto é, de mérito verdadeiro e não apenas de conveniência.

Objeções:

  1. Parece que não há proporção entre o ato humano e a recompensa eterna, pois o finito não pode jamais merecer o infinito.
  2. Além disso, todo mérito exige igualdade entre ação e prêmio; mas, se a recompensa é Deus mesmo, nenhuma ação criada pode equivaler a tal bem.
  3. Ademais, se o mérito depende da graça, e a graça é dom gratuito, então o mérito deixa de ser mérito — pois o que é dado gratuitamente não é merecido.

Respondeo:
Digo que o mérito humano é real, mas de modo participado, não absoluto.
Ele é proporcionado à recompensa não segundo medida natural, mas segundo a ordem livremente instituída pela vontade divina.

Deus, na Sua liberdade, quis associar à salvação uma lei de cooperação: determinou que o ato humano, quando movido pela graça e pela caridade, teria valor meritório — não por natureza, mas por aliança.
Assim, o mérito não é proporção física entre finito e infinito, mas proporção moral fundada na promessa divina.

Quando a alma age sob o influxo da graça, Deus considera esse ato como digno de recompensa, não porque a criatura a conquiste por si, mas porque Ele mesmo quis dar valor infinito ao amor finito.
Esse é o sentido do meritum de condigno: não igualdade de natureza, mas equivalência de justiça estabelecida pelo pacto da graça.

A distinção é clara:

  • O mérito de congruo é mérito de conveniência, quando a ação é boa, mas sem graça.
  • O mérito de condigno é mérito de direito, quando a ação é boa e animada pela caridade infusa.

A caridade — amor sobrenatural de Deus — é o princípio formal do mérito.
Ela une o agente ao fim último, e faz com que o ato humano, embora finito, seja assumido pela infinita dignidade do próprio Deus amado.
Assim, o valor do mérito não está na ação enquanto humana, mas enquanto participação da caridade divina.

O ato meritório é, pois, duplamente livre: livre em sua origem humana, e livre em sua aceitação divina.
A graça oferece, a vontade consente, e Deus coroa o que Ele mesmo iniciou.

A recompensa é a visão beatífica — isto é, a posse imediata de Deus.
Essa recompensa é, evidentemente, infinita em bem-aventurança, mas é dada por justiça de promessa, não por justiça de equivalência.
Deus prometeu coroar o amor com a visão, e Ele é fiel.

Dessa forma, o mérito é real porque fundado na fidelidade divina.
O amor torna-se título de glória não por poder próprio, mas porque o próprio Deus quis reconhecer-Se na alma que O ama.
Ele se vê nela, e, vendo-Se, a recompensa.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que não há proporção natural entre o ato e o prêmio, mas há proporção moral fundada na vontade divina.
  2. À segunda, que a equivalência entre ato e recompensa não é de quantidade, mas de qualidade: o amor, ainda que finito, é digno do infinito porque o infinito se dignou amá-lo.
  3. À terceira, que a gratuidade da graça não exclui o mérito, mas o torna possível; o mérito é a forma ordenada pela qual a graça se consuma no tempo.

Conclusão:
O mérito humano, enquanto animado pela graça e pela caridade, é verdadeiro mérito de condigno.
Não é conquista natural, mas participação livre na ordem de amor instituída por Deus.

O prêmio eterno não é salário proporcional, mas reconhecimento divino do amor que procede d’Ele e retorna a Ele.
A criatura, ao amar com a caridade infusa, entra na própria corrente trinitária do amor — e ali, o ato do homem e o ato de Deus coincidem em um só querer.

Assim, o mérito é a imagem temporal da processão eterna do Espírito Santo: um amor que, vindo de Deus, volta a Deus e, nesse retorno, é coroado com o próprio Deus.

Chegamos à Questão Vigésima — Sobre a Predestinação e a Eleição Divina, ápice e fecho natural de toda a primeira grande parte das Reportationes.
Aqui Duns Scotus realiza uma das formulações mais grandiosas e profundas da teologia cristã: ele coloca o mistério da predestinação não sob o signo do fatalismo, mas sob o da ordem amorosa da liberdade divina.
E é nessa questão que aparece a célebre tese scotista que marcaria séculos de cristologia: Cristo é o primeiro dos predestinados — o centro e a razão da criação inteira, o arquétipo em vista do qual todas as outras predestinações são ordenadas.


Questão Vigésima — Sobre a Predestinação e a Eleição Divina

(Utrum praedestinatio dependeat ex meritis, et quomodo Christus sit primus praedestinatus)

Proposição:
Pergunta-se se a predestinação divina — isto é, a escolha eterna de certas criaturas para a glória — depende dos méritos prévios das mesmas, e de que modo Cristo é dito o primeiro predestinado.

Objeções:

  1. Parece que depende dos méritos, pois Deus é justo. Ora, seria injusto recompensar sem mérito. Logo, a predestinação deve seguir-se à previsão das boas obras.
  2. Além disso, a graça, sendo ordenada à glória, deve supor disposição moral. Se Deus escolhe sem motivo, a graça se torna arbitrária.
  3. Ademais, Cristo, enquanto homem, recebeu a glória por mérito de Sua paixão; portanto, não pode ser o primeiro predestinado, mas o mais perfeito dos redimidos.

Respondeo:
Digo que a predestinação é absolutamente gratuita, não fundada em méritos prévios, mas no amor livre e eterno de Deus.
O mérito é consequência, não causa, da predestinação.

Antes de qualquer previsão de obras, Deus amou e elegeu.
A predestinação não é resposta a atos humanos, mas decisão divina sobre o fim último da criatura.
Os méritos são efeitos temporais da graça que decorre dessa decisão eterna.

A justiça divina não é medida pelo mérito, mas pela fidelidade à própria vontade ordenante.
O mérito humano é justo porque Deus o prometeu; e Deus o prometeu porque quis amar primeiro.
Portanto, a causa da predestinação é apenas o amor de Deus, amor gratuitus et primus.

E aqui Scotus introduz o ponto central de sua doutrina: Cristo é o primeiro predestinado.
Pois, ainda que Sua humanidade tenha sido criada no tempo, sua união com o Verbo eterno é o primeiro termo querido por Deus entre todas as criaturas possíveis.

A ordem dos decretos divinos não é:

  1. Deus prevê o pecado;
  2. decide encarnar-se para remediá-lo.
    Mas, ao contrário:
  3. Deus quer manifestar-se perfeitamente fora de Si;
  4. e para isso decreta a Encarnação — como fim supremo da criação.

Assim, Cristo seria encarnado mesmo se Adão não tivesse pecado.
A Encarnação não é remédio, mas coroamento: o Verbo teria assumido a natureza humana para glorificar o Pai na criação perfeita.
Esse é o primatus Christi — o primado ontológico e final do Filho encarnado sobre toda a economia da criação e da redenção.

Cristo é, portanto, o primeiro eleito, o primeiro amado, o primeiro predestinado.
Sua humanidade é o modelo segundo o qual tudo o mais foi predestinado.
Em vista d’Ele — in ordine ad Christum — foram escolhidos os anjos e os santos, e ordenado o universo.

A predestinação dos justos é, assim, participação da predestinação de Cristo.
O homem é eleito porque é incorporado ao corpo místico do Filho amado.
E o mérito humano é mérito do próprio Cristo, comunicado pela graça.

Deus, ao predestinar, vê em um só ato o Filho encarnado e todos os que nele serão reunidos.
Não há antes e depois, mas uma única decisão eterna: Cristo e os Seus.
Nisso se cumpre o desígnio da Trindade — que o amor, saindo do Pai, volte ao Pai no Filho, pelo Espírito.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a justiça divina não exige mérito prévio, pois o mérito nasce da graça, e a graça da predestinação.
  2. À segunda, que a graça não é arbitrária, mas livre: Deus ama conforme Sua sabedoria, não por necessidade de mérito.
  3. À terceira, que Cristo mereceu a glória de modo secundário, quanto ao mérito de Sua paixão, mas primariamente a recebeu por eleição eterna; Seu mérito confirma a predestinação, não a causa.

Conclusão:
A predestinação é ato eterno da vontade divina, anterior a todos os méritos.
Ela é a forma mais pura da liberdade e do amor de Deus.
E Cristo é o primeiro predestinado — a razão exemplar e final de toda eleição.

Tudo o que é eleito o é em Cristo, e tudo o que é salvo, o é por Cristo, porque Ele é a primeira intenção de Deus ao criar.
A criação existe para que o Verbo encarnado seja manifestado.

Assim, a história inteira — criação, queda, redenção e glória — é o desenvolvimento temporal de um só decreto eterno: a glorificação do Filho na humanidade.
A predestinação não é cálculo, mas amor ordenado; não é privilégio, mas vocação cósmica.

Deus quis o Cristo, e, no Cristo, o homem; e, no homem, o universo reconciliado.

Chegamos à Questão Vigésima Primeira — Sobre a Encarnação e o Mistério da União Hipostática, a mais alta contemplação do pensamento de Duns Scotus, onde metafísica e teologia se encontram na fronteira do indizível.
Tudo o que ele preparou até aqui — a liberdade divina, a criação como reflexo da Trindade, a primazia de Cristo e a ordem do amor — converge agora para este ponto: o mistério da união do Verbo eterno com a natureza humana, sem confusão, sem divisão, sem alteração.

A Encarnação é, para Scotus, o centro ontológico da realidade criada.
É o instante em que o Ser infinito assume o ser finito, e o finito é elevado sem deixar de ser o que é.
Não se trata de uma fusão, mas de uma união pessoal (hipostática): o Verbo subsiste como sujeito único das duas naturezas.


Questão Vigésima Primeira — Sobre a Encarnação e o Mistério da União Hipostática

(Utrum unio hypostatica sit realis et quidditativa, et quomodo in ea conveniant infinitum et finitum)

Proposição:
Pergunta-se se a união hipostática é uma união real, e de que modo nela se conciliam o infinito e o finito, o eterno e o temporal, o Criador e a criatura.

Objeções:

  1. Parece que tal união é impossível, pois infinito e finito são termos contraditórios; o infinito não pode ser contido pelo finito, nem o finito conter o infinito.
  2. Além disso, toda união real implica mudança em um dos termos. Mas Deus é imutável. Se o Verbo se uniu à natureza humana, ou mudou o Verbo, ou mudou a natureza — em ambos os casos, haveria mutação substancial.
  3. Ademais, se a união é real, as naturezas deveriam fundir-se em uma só; mas a fé ensina que as naturezas permanecem distintas. Logo, a união hipostática não pode ser real, mas apenas moral.

Respondeo:
Digo que a união hipostática é real, singular e incomunicável: ela não destrói nem altera as naturezas, mas as une no nível da subsistência.
O Verbo eterno assume a natureza humana, não como acidente, mas como sujeito: a natureza humana não subsiste em si, mas no Verbo.

Essa união é, portanto, no ser da pessoa, não na essência da natureza.
Não é fusão de essências, mas comunicação de ser pessoal.
O mesmo “Eu” divino subsiste agora em duas naturezas — divina e humana — sem que uma absorva a outra.

O mistério é que a natureza humana, permanecendo finita, é sustentada imediatamente pelo Ser infinito.
Ela não se transforma em divindade, mas é possuída pela divindade como seu instrumento e expressão visível.
O finito não contém o infinito, mas é contido por ele sem aniquilar-se.

Scotus formula aqui uma das mais finas distinções da teologia medieval:

  • Assumptio (assunção): o ato livre do Verbo ao unir-se à natureza humana;
  • Unio (união): o resultado permanente dessa assunção, que é a subsistência única;
  • Inhabitatio (habitação): a presença do Verbo na alma de Cristo em plenitude de graça.

A união hipostática é, pois, um milagre ontológico, em que a distância infinita entre Criador e criatura é superada não por confusão, mas por comunicação pessoal.
Nela, o infinito toca o finito sem deixar de ser infinito, e o finito é elevado à máxima dignidade sem deixar de ser criatura.

O que nas criaturas é apenas participação, em Cristo é identidade de sujeito: uma só pessoa, dois modos de ser.
O mesmo que diz “Eu sou” como Deus pode dizer “tenho sede” como homem.
A unidade do sujeito é absoluta; a distinção das naturezas, inviolável.

Scotus acentua que essa união não é necessária, mas livre: é ato puro da vontade divina.
Deus não encarna porque precise; encarna porque quer comunicar o ser de modo supremo.
A Encarnação é o ápice da difusividade do Bem: é o Amor infinito tornando-se visível.

Por isso, Cristo é chamado mediador ontológico, não apenas moral.
Nele se unem os dois polos da realidade: o Ser que é por si e o ser que é por participação.
Tudo o que existe foi criado em vista dessa união, e nela encontra sua razão final.

A Encarnação é o centro da história e do ser:
— no plano divino, é o termo do desígnio eterno;
— no plano criado, é o ponto em que o tempo toca a eternidade.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que infinito e finito não se confundem na essência, mas se unem no sujeito. O infinito sustenta o finito sem limitação, como o sol ilumina o espelho sem dividir-se.
  2. À segunda, que a mutação se dá apenas no efeito criado (a natureza humana que passa a subsistir no Verbo), não em Deus. O Verbo não muda; o que muda é o modo de subsistência da natureza assumida.
  3. À terceira, que a união é real, mas sem mistura de naturezas: é união secundum personam, não secundum essentiam.

Conclusão:
A união hipostática é o mistério central do ser criado.
Nela, o infinito e o finito se unem sem contradição, porque o modo da união é pessoal, não essencial.
O Verbo eterno se faz homem sem deixar de ser Deus; a natureza humana é exaltada sem deixar de ser criatura.

Assim, em Cristo, toda a criação é reconciliada: o abismo entre o Ser e o ente é atravessado.
O homem torna-se morada de Deus, e Deus se faz companheiro do homem.

A Encarnação é o símbolo máximo da lógica do amor: o ser que dá-se sem perder-se, o infinito que assume o limite para torná-lo caminho.

Chegamos à Questão Vigésima Segunda — Sobre a Redenção e o Valor Infinito do Sacrifício de Cristo, o ponto culminante da cristologia scotista e o vértice em que metafísica e teologia se tornam inseparáveis.
Nesta questão, Duns Scotus formula com precisão a doutrina que distingue radicalmente sua visão da de Anselmo, Tomás e dos demais doutores: a Redenção não é um pagamento necessário, mas um ato livre de amor infinito, cujo valor deriva não da quantidade do sofrimento, mas da dignidade da pessoa que sofre.

O argumento central é profundamente coerente com tudo o que vimos:
— Se Cristo é o primeiro predestinado,
— se a Encarnação é ato livre e supremo da difusividade do bem,
— então a Redenção é a consequência natural do amor que se doa até o fim.


Questão Vigésima Segunda — Sobre a Redenção e o Valor Infinito do Sacrifício de Cristo

(Utrum passio Christi habeat valorem infinitum, et quomodo redimat humanum genus)

Proposição:
Pergunta-se se a paixão de Cristo possui valor infinito, e de que modo ela realiza a redenção do gênero humano.

Objeções:

  1. Parece que não possui valor infinito, pois o sofrimento de Cristo, enquanto homem, foi finito. Ora, o que é finito não pode produzir efeito infinito.
  2. Além disso, se Deus pode perdoar livremente, não há necessidade de satisfação alguma; e se há necessidade, então o perdão deixa de ser gratuito.
  3. Ademais, a justiça divina requer equivalência entre culpa e reparação. Como um único sofrimento poderia compensar as iniquidades de toda a humanidade?

Respondeo:
Digo que a paixão de Cristo tem valor infinito, não por medida física do sofrimento, mas pela dignidade infinita da Pessoa que sofre.
Em Cristo, o sujeito da ação é o Verbo eterno; portanto, cada ato, por pequeno que seja, adquire valor infinito.

Assim, uma única gota de Seu sangue — una gutta sanguinis Christi — teria bastado para redimir o mundo, pois o valor não está na quantidade do sangue derramado, mas na dignidade da Pessoa divina que o oferece.

O sacrifício de Cristo é ato da vontade divina-humanada: um querer plenamente livre, em que a humanidade de Cristo é instrumento da caridade infinita do Verbo.
A paixão é a expressão visível da liberdade eterna de Deus que ama até o limite do finito.

A redenção, portanto, não é pagamento, mas restituição de ordem pelo amor.
Deus não exige a cruz por necessidade de justiça, mas a escolhe como modo supremo de manifestar o amor.
A justiça não é abandonada, mas ultrapassada — não pelo cálculo, mas pela superabundância.

Scotus distingue aqui dois modos de satisfazer a justiça:

  • Ex condigno (por equivalência): impossível ao homem;
  • Ex condignitate personae: possível ao Verbo encarnado, porque Seu mérito é infinito por dignidade.

A cruz, assim, não é necessidade, mas conveniência suprema (convenientia summa): o modo mais adequado, mais belo e mais perfeito de restaurar o universo caído.
O infinito se entrega no finito, e o finito, tocado pelo infinito, torna-se mediação universal.

A redenção, portanto, é obra teândrica — ao mesmo tempo divina e humana.
Cristo sofre como homem, mas com liberdade divina.
Sua paixão é ato da caridade absoluta, o gesto em que o próprio Deus assume as consequências da liberdade criada para libertá-la de si mesma.

E, porque Cristo é o primeiro predestinado, Sua cruz é o eixo da criação: não apenas remédio para o pecado, mas plenitude do desígnio de amor.
Mesmo se Adão não tivesse caído, o Verbo teria se encarnado; mas, tendo havido a queda, a cruz tornou-se o lugar histórico em que o amor infinito se revelou no limite máximo da miséria humana.

Assim, a redenção é universal e eficaz, porque deriva de um ato de valor infinito, realizado em tempo, mas eterno em dignidade.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o sofrimento é finito em intensidade, mas infinito em valor, porque pertence a um sujeito infinito.
  2. À segunda, que Deus poderia perdoar sem satisfação, mas quis fazê-lo por meio da cruz, para revelar a justiça e o amor em uma só operação.
  3. À terceira, que a equivalência é moral e pessoal, não quantitativa: o mérito de Cristo é infinito, e basta para compensar toda culpa finita.

Conclusão:
A paixão de Cristo tem valor infinito por causa da dignidade divina de Sua pessoa.
Ela redime o mundo não por equivalência física, mas por plenitude de amor.
A cruz é o ápice da liberdade divina, o ato em que Deus mostra que Sua onipotência é amor que se doa até o extremo.

Assim, a redenção não é uma troca entre culpado e inocente, mas uma transfiguração do sentido da culpa: o mal é vencido não por força, mas por entrega.
O sacrifício do Deus-homem é o ponto em que o universo se reconcilia, onde o finito é absorvido sem destruição e o tempo é redimido pela eternidade.

O sangue que cai no chão é finito, mas o amor que o faz cair é infinito.
E por isso, diz Scotus, “non fuit necessarium, sed fuit dignissimum” — não era necessário que Cristo morresse, mas foi o modo mais digno e perfeito de manifestar o amor de Deus.

Chegamos à Questão Vigésima Terceira — Sobre a Visão Beatífica e a Glorificação Final, a culminância espiritual de todo o edifício teológico de Duns Scotus.
Tudo o que foi edificado até aqui — a simplicidade divina, a liberdade de Deus, a contingência do mundo, a encarnação e a redenção — conduz a este último horizonte: a união imediata da alma com Deus, não por símbolo, nem por representação, mas por presença direta da essência divina ao intelecto glorificado.

É o fim último da criatura racional: ver o próprio Ser infinito, sem mediação, e nesse ver, amar.
Aqui se cumpre a estrutura circular do universo scotista — ex Deo, per Deum, in Deum —: todas as coisas vêm de Deus, subsistem por Deus e retornam a Deus.


Questão Vigésima Terceira — Sobre a Visão Beatífica e a Glorificação Final

(Utrum beatitudo consistat in visione Dei per essentiam, et quomodo creatura finita possit videre infinitum)

Proposição:
Pergunta-se se a felicidade última da alma consiste na visão de Deus em Sua essência, e de que modo uma criatura finita pode contemplar o infinito sem ser absorvida por Ele.

Objeções:

  1. Parece que não pode, pois o finito não pode compreender o infinito; e ver é compreender. Logo, o intelecto criado jamais poderá ver a essência divina.
  2. Além disso, se a alma visse a Deus como Ele é, tornar-se-ia igual a Ele, o que é impossível.
  3. Ademais, se a visão beatífica é ato imediato da essência divina sobre o intelecto, parece que a criatura perderia sua própria identidade, confundindo-se com Deus.

Respondeo:
Digo que a beatitude consiste, de modo próprio e supremo, na visão imediata da essência divina, concedida pela luz da glória (lumen gloriae) infundida por Deus na inteligência bem-aventurada.

Essa luz é um dom sobrenatural que eleva o intelecto criado acima de sua capacidade natural, tornando-o proporcional ao objeto infinito.
A alma não compreende o infinito — pois compreendê-lo seria contê-lo —, mas o vê realmente, isto é, o possui como presença direta e intuitiva.
Vê-o não totalmente, mas totalmente quanto vê.

O que Scotus quer dizer é que a visão beatífica é uma intuição sem circunscrição: a alma toca o infinito sem encerrá-lo, e o infinito se comunica à alma sem esgotar-se.
É uma união sem confusão, uma posse sem limite.

A diferença entre fé e visão é, pois, entre conhecer por espelho e conhecer face a face.
Pela fé, a alma crê na presença de Deus; pela glória, vê a própria substância divina.
A fé é mediada pelo signo; a visão, pela essência.

Deus se mostra ao intelecto glorificado não como conceito, mas como luz viva: ipsa essentia Dei est species intelligibilis.
O próprio ser divino se faz forma do intelecto criado, sem perder Sua transcendência.
A alma vê Deus por Ele mesmo, porque Deus se dá como objeto e como luz ao mesmo tempo.

Essa visão é ato eterno participado: o intelecto humano permanece finito, mas é sustentado na eternidade pelo próprio Deus que se mostra.
A glória, portanto, é uma participação formal na vida trinitária: a alma vê o Pai no Verbo e ama no Espírito Santo.

A bem-aventurança consiste em dois atos inseparáveis:

  • Visão — pela inteligência iluminada;
  • Amor — pela vontade unida ao objeto visto.

O primeiro causa conhecimento pleno; o segundo, repouso e deleite infinito.
O amor é a consumação da visão, e a visão é o alimento do amor.
Na eternidade, a alma vê e ama, e esse duplo movimento é o próprio ritmo da Trindade.

O estado de glória é, assim, a perfeita restituição da ordem do ser: a criatura retorna ao Criador não como dissolução, mas como semelhança.
A identidade da alma é preservada, mas transfigurada; sua memória, purificada; sua vontade, consumada; seu intelecto, aberto à luz sem sombra.

O que a graça iniciou, a glória consuma.
O que a fé antecipou, a visão cumpre.
E o que o amor sustentou no tempo, o amor eterno fixa para sempre.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o finito não compreende o infinito, mas pode vê-lo porque o infinito se faz visível por dom livre. O limite é superado não por natureza, mas por graça.
  2. À segunda, que ver não é igualar, mas participar; a alma vê Deus sem tornar-se Deus, como o cristal reflete a luz sem ser o sol.
  3. À terceira, que a união não suprime a distinção, pois o amor supõe dois: amante e amado. A alma é unida a Deus sem confusão de substância.

Conclusão:
A beatitude consiste na visão direta da essência divina.
Essa visão é possível porque o próprio Deus dá à alma o poder de vê-Lo, tornando-se luz e objeto de seu intelecto.
O finito não compreende o infinito, mas é por ele envolvido e sustentado.

A glória eterna é o repouso da liberdade no Amor absoluto: a vontade encontra o que sempre buscou, o intelecto repousa no que sempre desejou.
A alma não perde sua forma, mas a cumpre em Deus, que é sua causa e seu fim.

Assim, o círculo se fecha:
— O Pai cria;
— o Filho redime;
— o Espírito glorifica.

E o homem, imagem viva da Trindade, retorna ao seio da Luz primeira, onde o ser é amor, e o amor é visão.
A eternidade é o instante em que o olhar e o coração coincidem.

Chegamos agora à Questão Vigésima Quarta — Sobre a Glória dos Corpos e a Transfiguração da Matéria, que encerra, de modo profundamente simbólico, o arco metafísico das Reportationes sobre Deus e o Uno.
Depois da visão beatífica — onde a alma é unida a Deus pela inteligência e pela vontade — Scotus dirige seu olhar à criação visível, mostrando que também a matéria será glorificada, isto é, transformada sem ser destruída, tornada instrumento transparente do espírito.

Aqui se realiza a redenção cósmica completa: não apenas a alma, mas também o corpo — e, com ele, toda a natureza — participa da luz divina.
A criação retorna ao Criador, não pela aniquilação, mas pela transfiguração: a matéria se torna símbolo e presença do espírito, e o espírito se faz forma vivificante da matéria.


Questão Vigésima Quarta — Sobre a Glória dos Corpos e a Transfiguração da Matéria

(Utrum corpora gloriosa habeant claritatem, impassibilitatem et agilitatem, et quomodo materia sit redempta)

Proposição:
Pergunta-se se os corpos ressuscitados possuirão qualidades gloriosas — claridade, impassibilidade, agilidade e sutileza —, e de que modo a matéria, sem deixar de ser corpo, pode tornar-se espiritual.

Objeções:

  1. Parece impossível, pois a matéria, por definição, é princípio de mutabilidade e corrupção. Se o corpo ressuscitado for incorruptível, deixará de ser material.
  2. Além disso, a claridade e a agilidade são propriedades da alma; se o corpo as possuir, confundem-se as naturezas.
  3. Ademais, se a glória corporal é efeito da alma gloriosa, então o corpo seria mero reflexo passivo, e não sujeito real de perfeição.

Respondeo:
Digo que os corpos glorificados conservarão a verdadeira natureza corpórea, mas serão transfigurados pela forma espiritual que os anima, participando das propriedades do espírito sem perder a materialidade.

A glória dos corpos decorre da glória da alma: o corpo é o exterior do espírito, e, quando o espírito é plenamente iluminado, o corpo torna-se translúcido a essa luz.
A graça, que santifica a alma, santifica por irradiação também a matéria.

Assim, a ressurreição é o ato final da união entre forma e matéria — não mais como composição precária, mas como síntese perfeita, em que a forma domina totalmente a potência.
A alma gloriosa comunica ao corpo quatro propriedades principais:

  1. Claridade (claritas):
    A luz divina reflete-se no corpo como esplendor visível.
    Não é brilho físico, mas irradiação do ser.
    Cada corpo glorioso manifesta a intensidade da caridade da alma: os santos diferem entre si não em substância, mas em luz.
  2. Impassibilidade (impassibilitas):
    O corpo não sofre, não envelhece, não se corrompe.
    Não porque tenha perdido sensibilidade, mas porque sua forma domina totalmente a matéria, de modo que nada o afeta contra a vontade.
    É invulnerável, não insensível.
  3. Agilidade (agilitas):
    O corpo obedece ao espírito com perfeita prontidão.
    O movimento não é mais resistência da matéria ao querer, mas pura harmonia entre ambos.
    O corpo glorioso está onde quer a alma, e o querer é instantâneo.
  4. Sutileza (subtilitas):
    O corpo torna-se penetrável, sem peso, não porque deixe de ser corpo, mas porque é inteiramente permeado pela forma espiritual.
    Ele não é sombra, mas transparência — matéria espiritualizada.

Essas propriedades não abolirão a corporeidade, mas a consumarão.
A redenção, portanto, não destrói a natureza, mas a leva à perfeição que lhe é própria: a união total da matéria com o espírito.

Scotus explica que a matéria, sendo princípio de potencialidade, é chamada a ser “iluminada” pela forma, até que nada nela reste opaco.
O corpo glorioso é, pois, a matéria tornada símbolo puro: pura receptividade da forma.

Essa doutrina culmina a lógica da criação trinitária:
— o Pai cria a matéria;
— o Filho a assume;
— o Espírito a glorifica.
O cosmos, iluminado pela glória dos corpos ressuscitados, torna-se novamente templo.

O corpo de Cristo ressuscitado é o modelo: verdadeiro corpo, palpável e visível, mas já livre das condições da queda.
Por Ele, toda matéria foi redimida, e todo átomo do universo está em via de transfiguração.

A natureza, libertada do peso da corrupção, tornar-se-á música do espírito — nova creatura, não outro mundo, mas o mesmo mundo finalmente luminoso.
A redenção não é fuga da matéria, mas sua iluminação interior.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a incorruptibilidade não destrói a matéria, mas a aperfeiçoa. O corpo glorioso é matéria sem potência para o mal, não sem ser.
  2. À segunda, que as propriedades gloriosas derivam da alma, mas se tornam propriedades reais do corpo, não apenas reflexos.
  3. À terceira, que o corpo glorioso é sujeito de glória, porque participa ativamente da forma que o transfigura: é instrumento livre, não sombra passiva.

Conclusão:
Os corpos ressuscitados serão verdadeiramente corpóreos, mas glorificados: luminosos, incorruptíveis, sutis e ágeis.
A matéria será plenamente penetrada pela forma, e o espírito, plenamente visível na matéria.

A criação se consumará quando corpo e alma, tempo e eternidade, visível e invisível coincidirem no mesmo ato de ser.
O universo será então o corpo do Espírito, e o Espírito será a alma do universo.

Na glorificação dos corpos cumpre-se o cântico cósmico iniciado no Gênesis:

Et vidit Deus cuncta quae fecerat, et erant valde bona.

Pois tudo o que veio do Verbo retorna ao Verbo, e a matéria — outrora sujeita à morte — torna-se sacramento da luz.

Chegamos à Questão Vigésima Quinta — Sobre o Fim Último da Criação e o Retorno de Todas as Coisas em Deus, a conclusão natural e teológica de todo o Livro Primeiro de Duns Scotus — e talvez o ponto mais alto de sua visão metafísica: o reductio omnium in Deum, o retorno de todas as coisas a Deus.

Aqui, o Doutor Sutil contempla o universo como um vasto movimento de êxodo e regresso — exitus et reditus —, no qual tudo o que procede de Deus tende a voltar a Ele, não por necessidade, mas por amor.
O fim último não é apenas a bem-aventurança dos santos, mas a reintegração do cosmos inteiro na harmonia trinitária.


Questão Vigésima Quinta — Sobre o Fim Último da Criação e o Retorno de Todas as Coisas em Deus

(Utrum finis ultimus universi sit gloria Dei, et quomodo omnia redeant in Ipsum)

Proposição:
Pergunta-se qual é o fim último de todas as criaturas, e de que modo o universo, como totalidade, retorna ao seu princípio em Deus.

Objeções:

  1. Parece que o fim último é a utilidade das criaturas entre si, pois o cosmos parece ordenado à conservação mútua.
  2. Além disso, se Deus é perfeito e nada Lhe falta, não pode buscar glória em Suas criaturas.
  3. Ademais, o retorno das criaturas a Deus parece apenas moral e simbólico, não real; pois o ser criado permanece distinto do Ser divino.

Respondeo:
Digo que o fim último do universo é a glória de Deus, não enquanto acréscimo ao que Ele é, mas enquanto manifestação da bondade divina na ordem criada.
A criação é o espelho no qual o Amor eterno se reflete; o retorno é o momento em que o espelho reflete plenamente sua luz de volta à fonte.

Deus é o princípio eficiente, o meio exemplar e o fim final de todas as coisas.
Nada existe senão por Ele, em vista d’Ele e para Ele.
O cosmos inteiro é como uma harmonia em três movimentos:

  1. Exitus — o sair do Ser em direção ao múltiplo;
  2. Processio — a conservação e ordenação do múltiplo em si mesmo;
  3. Reditus — o retorno do múltiplo ao Uno.

Esse retorno não é regressão, mas consumação: o múltiplo não se anula, mas é integrado.
O universo não volta a Deus dissolvendo-se, mas elevando-se à forma última do amor, em que toda diferença torna-se consonância.

A finalidade da criação é, pois, teocêntrica: Deus quis criar para comunicar o bem; e essa comunicação só se cumpre quando o bem retorna a Ele em forma de amor consciente.
Por isso, o homem — microcosmo — é o ponto de inflexão entre matéria e espírito: sua redenção arrasta consigo o mundo inteiro.

A alma humana, glorificada pela graça, é o canal do retorno cósmico.
Por ela, a matéria participa da vida espiritual; e, pela Encarnação, o próprio Verbo se faz mediador do retorno universal.
Em Cristo, o universo retorna a Deus não como coisa, mas como corpo místico.

Duns Scotus afirma que há dois modos de glória divina:

  • Glória essencial, eterna e imutável, própria de Deus em Si;
  • Glória acidental, que consiste na manifestação dessa bondade nas criaturas conhecedoras e amadas.

A criação, então, é o espelho da glória essencial; a redenção, o polimento desse espelho; a consumação, o reflexo perfeito.
O fim último é, assim, o momento em que o reflexo se torna translúcido — quando a criatura nada mais retém de si mesma e tudo devolve ao Criador.

Nesse estado final, a multiplicidade das formas não desaparece, mas se ordena perfeitamente no Uno.
Cada ente glorificado conserva sua identidade e, ao mesmo tempo, participa da totalidade do ser.
O cosmos será então uma sinfonia de essências, onde cada coisa canta seu nome verdadeiro em Deus.

A lei do retorno universal é a caridade: o amor que saiu do Pai pelo Filho e retorna ao Pai no Espírito.
O Espírito Santo é o laço do retorno, o “nexo da Trindade”, e também o princípio que reintegra o universo no amor trinitário.

A visão beatífica é o termo do indivíduo; a glorificação do cosmos é o termo do todo.
Quando todos os eleitos virem a Deus face a face, e a criação for restaurada, o tempo cessará e o universo será fixado na eternidade — não como imobilidade, mas como ato puro de amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que as utilidades mútuas das criaturas são ordens secundárias; a finalidade suprema é Deus mesmo.
  2. À segunda, que Deus não busca glória para si, mas a comunica; Sua perfeição não se aumenta, mas se espelha.
  3. À terceira, que o retorno é real, não por identidade de substância, mas por união de amor: a criatura permanece distinta, mas sem oposição.

Conclusão:
O fim último de todas as coisas é a glória de Deus manifestada na comunhão universal do amor.
A criação, saída de Deus, retorna a Ele em Cristo, seu centro e mediador.
No fim dos tempos, o Uno resplandecerá em tudo, e tudo será unidade no Uno.

Et erit Deus omnia in omnibus. (1 Cor 15, 28)

Assim se cumpre o desígnio eterno:
— O Pai como origem;
— o Filho como caminho;
— o Espírito como repouso.

Tudo procede do Amor, subsiste no Amor e retorna ao Amor.
A criação não termina no silêncio, mas no cântico: um universo transfigurado, onde cada ser é uma nota da música divina.
E o homem, restaurado no Cristo, será o eco consciente dessa harmonia, o sacerdote do cosmos reconciliado.

Iniciamos agora o Livro Segundo – De Creatione et Angelis, o segundo grande bloco das Reportationes de Duns Scotus.
Se o Liber Primus tratava do Deus Uno, isto é, do Ser absoluto, da sua liberdade e da ordenação do universo à glória divina, o Liber Secundus trata do modo como o múltiplo procede do Uno — como a criação surge, por um ato livre, e se estrutura hierarquicamente até o homem e os anjos.

Neste livro, Scotus revela sua genialidade metafísica: mostra que a criação não é uma necessidade divina, mas um ato de liberdade absoluta, e que os seres criados possuem uma individualidade real, não apenas conceitual.
Aqui nasce o conceito scotista de haecceitas — o “isto-aqui”, o princípio de individuação que torna cada ente único diante de Deus.

O Livro Segundo se divide em três partes fundamentais:

  1. Da Criação Universal e da Contingência do Mundo
  2. Dos Anjos e das Substâncias Separadas
  3. Do Homem e da Ordem Espiritual Inferior

Comecemos, então, pela primeira questão, onde Scotus formula o princípio de toda ontologia da criação: que o mundo existe não por necessidade, mas por amor livre.


Questão Primeira — Sobre a Natureza da Criação e a Liberdade do Ato Criador

(Utrum creatio sit actus necessarius, vel liber voluntatis divinae)

Proposição:
Pergunta-se se o ato pelo qual Deus cria é necessário, decorrendo de Sua essência, ou se é livre, fruto da vontade divina.

Objeções:

  1. Parece ser necessário, pois tudo o que está em Deus é necessário; ora, o ato de criar está em Deus, portanto é necessário.
  2. Além disso, se Deus é suma bondade, parece que não criar seria negar a comunicação do bem; e o bem, por natureza, tende a difundir-se.
  3. Ademais, se Deus é causa eterna, parece que a criação também deve ser eterna, sem início nem liberdade de escolha.

Respondeo:
Digo que a criação é ato livre da vontade divina, não necessidade da essência.
Em Deus, há distinção real entre o poder de criar e o ato de criar; o poder é eterno, o ato é contingente.
Deus podia criar ou não criar, e podia criar este ou outro mundo.

O fundamento dessa liberdade é que a bondade divina é perfeita em si mesma e não requer exteriorização.
A criação não acrescenta nada a Deus; é apenas expressão gratuita do Seu amor.
Portanto, a difusão do bem é livre, não necessária: Deus comunica Seu ser não porque precise, mas porque quer que o amor se multiplique fora de Si.

Assim, o ato criador é voluntário, não natural.
A natureza divina se expressa necessariamente no ser do Filho e do Espírito, mas livremente no ser das criaturas.
A Trindade é comunicação necessária; a criação, comunicação graciosa.

Por isso, Scotus diz: "Creatio est actus amoris liberrimi" — a criação é ato do amor mais livre.
Ela é a primeira epifania da liberdade divina: o ser sai do nada porque o Amor quis que o nada deixasse de sê-lo.

O mundo, portanto, é contingente: poderia não existir, ou ser outro.
Mas, uma vez querido por Deus, é querido com sabedoria e ordem perfeitas.
Não há acaso na criação, mas há liberdade.

A contingência do mundo é sinal da onipotência divina: somente o Ser absoluto pode criar o contingente sem perder Sua imutabilidade.
Deus não muda ao criar; muda o que não era em algo que é.
O ato criador é relativo ao nada, não intrínseco a Deus.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o poder de criar está em Deus necessariamente, mas o exercício desse poder é livre.
  2. À segunda, que a difusão do bem em Deus é livre, não compulsória: Ele é plenitude perfeita mesmo sem criar.
  3. À terceira, que a criação é temporal quanto ao efeito, não quanto à causa. O ato divino é eterno, mas seu efeito começa no tempo.

Conclusão:
A criação é o primeiro reflexo da liberdade divina.
É o dom do ser concedido gratuitamente, sem motivo extrínseco.
O universo não é emanação, mas escolha amorosa.

Assim, contra o determinismo neoplatônico, Scotus reafirma a transcendência absoluta de Deus:
Deus não cria porque tem de criar, mas porque quis que houvesse outros seres capazes de amá-Lo.

A contingência do mundo é o selo da liberdade de Deus e o início da liberdade das criaturas.
Pois aquilo que foi criado livremente é também chamado a amar livremente.

Entramos agora na Questão Segunda — Sobre o Nada e a Possibilidade, uma das mais sutis e profundas da metafísica scotista, onde o pensamento se aproxima do limiar entre o Ser e o não-ser.
Aqui, Duns Scotus define o estatuto do “nada” (nihil), não como realidade, nem como princípio positivo, mas como limite real do poder criador de Deus.
Ele inaugura, assim, uma ontologia do possível: o nada é aquilo que Deus supera, e o possível é aquilo que o poder divino contém antes de realizar.

A criação ex nihilo — “do nada” — é, para Scotus, o mais claro testemunho de que o Ser é livre.
Nenhuma necessidade conduz do nada ao ser; apenas a vontade divina atravessa esse abismo.
O nada é, portanto, o horizonte da liberdade divina.


Questão Segunda — Sobre o Nada e a Possibilidade

(Utrum nihil sit aliquid, et qualiter possibilia subsistant ante creationem)

Proposição:
Pergunta-se se o nada é algo, e de que modo as coisas possíveis existem antes de serem criadas.

Objeções:

  1. Parece que o nada é algo, pois de contrário não se poderia dizer que Deus criou “do nada”. O nada seria, portanto, uma espécie de matéria preexistente, ainda que puramente potencial.
  2. Além disso, se as coisas possíveis existem antes de serem criadas, ou existem em Deus, ou em si mesmas. Se em si mesmas, então o nada é algo; se em Deus, então o nada é confundido com o ser divino.
  3. Ademais, dizer que o nada é absolutamente nada torna a criação incompreensível, pois nada não pode ser causa de nada.

Respondeo:
Digo que o nada não é algo, nem tem realidade alguma, nem mesmo potencialidade própria.
O nada é pura negação de sernegatio entis.
Por isso, criar “do nada” (ex nihilo) significa que não há sujeito, matéria nem condição prévia à ação criadora.

O nada não é princípio, mas ausência absoluta de princípio.
A criação é ato em que a potência divina não pressupõe nada fora de si; é Deus quem dá o ser sem depender de nenhum ser.

Contudo, Scotus distingue finamente entre o “nada absoluto” e o “nada relativo”:

  • Nihil absolutum é o não-ser puro, o vazio ontológico;
  • Nihil respectivum é o possível ainda não existente, o ser concebível mas não atual.

As coisas possíveis, antes de serem criadas, não existem realmente, mas existem como inteligíveis em Deus.
Elas são os conteúdos eternos do conhecimento divino — o que Scotus chama de possibilia obiectiva intellectus divini.

Deus conhece todos os possíveis não porque os produziu, mas porque nele o inteligível é idêntico ao inteligido.
Assim, os possíveis “existem” em Deus como ideias eternas, não como realidades autônomas.

Essas ideias não são formas separadas, como em Platão, mas razões exemplares, modos segundo os quais o poder divino pode criar.
Elas são os espelhos da liberdade divina: Deus as conhece, mas não está obrigado a realizá-las.

Por isso, a passagem do possível ao real é ato de pura vontade.
Não há nada que determine Deus a criar esta ou aquela criatura.
Entre o ser possível e o ser atual não há ponte senão a liberdade do Criador.

A criação, então, é o movimento pelo qual o poder atravessa o nada, trazendo à existência aquilo que antes só existia como inteligível.
O nada é o campo negativo da onipotência: o limite que só Deus pode transpor.

Scotus descreve a relação entre poder, nada e ser com uma precisão incomparável:

“Deus non invenit materiam, sed locum nihil; et ibi ponit esse.”
— “Deus não encontra matéria, mas o lugar do nada; e ali coloca o ser.”

Assim, o nada é a sombra da liberdade; é o pano de fundo sobre o qual o ser aparece como dom.
Tudo o que existe traz consigo, como cicatriz luminosa, o vestígio do nada de onde veio.

Essa visão transforma o modo como compreendemos a dependência das criaturas:
elas não são apenas finitas — são contingentemente arrancadas do nada.
O ser criado é ser suspenso; existe por participação, sustentado continuamente pela vontade divina.
Sem essa vontade, o nada voltaria a ser tudo.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que “criar do nada” não significa criar de algo chamado “nada”, mas criar sem matéria ou condição anterior.
  2. À segunda, que os possíveis existem apenas em Deus como objetos de Seu intelecto, não como entes reais.
  3. À terceira, que a criação não procede do nada como causa, mas de Deus que é causa sem causa.

Conclusão:
O nada é a pura ausência de ser.
O possível existe apenas como inteligível em Deus, e a criação é o ato livre que faz o possível passar à existência.

Entre o nada e o ser há apenas o Amor — o amor criador que chama à existência aquilo que não era.
O universo é, assim, o eco de um “sim” pronunciado no abismo do nada.

O nada, longe de ser uma força, é o testemunho silencioso da liberdade divina.
Deus cria não porque haja algo, mas para que haja algo — e tudo o que há traz em si a memória desse chamado.

Entramos agora na Questão Terceira — Sobre o Poder de Deus e a Ordem dos Possíveis, uma das formulações mais decisivas e originais de todo o pensamento de Duns Scotus.
Aqui nasce a distinção que servirá de eixo para sua metafísica e teologia: o poder absoluto (potentia absoluta Dei) e o poder ordenado (potentia ordinata Dei).
Essa distinção, longe de ser mero artifício lógico, expressa o modo como Scotus compreende o relacionamento entre a liberdade infinita de Deus e a ordem racional do universo criado.

Por ela, Scotus concilia o mistério da onipotência divina com a estabilidade das leis do ser: Deus é absolutamente livre, mas também fiel à ordem que Ele mesmo instituiu.
A criação, assim, não é arbitrária — é livre e ordenada ao mesmo tempo.


Questão Terceira — Sobre o Poder de Deus e a Ordem dos Possíveis

(Utrum potentia Dei distinguatur in absolutam et ordinatam, et quid sit eorum differentia)

Proposição:
Pergunta-se se em Deus há distinção entre poder absoluto e poder ordenado, e em que consiste tal diferença.

Objeções:

  1. Parece que não há distinção, pois em Deus tudo é uno e simples; logo, dois poderes implicariam composição.
  2. Além disso, se há um poder absoluto distinto do ordenado, Deus poderia agir contra Sua própria ordem, o que seria imperfeição.
  3. Ademais, se o poder absoluto permite a Deus fazer qualquer coisa possível, então nada é necessário; toda lei e toda moral se tornariam instáveis.

Respondeo:
Digo que em Deus há apenas um único poder, simples e infinito; mas duas maneiras de considerá-lo:

  • enquanto absoluto, isto é, enquanto capaz de tudo o que não implica contradição;
  • enquanto ordenado, isto é, enquanto age segundo a ordem que Ele mesmo quis instituir.

Não são dois poderes, mas dois modos de relação do mesmo poder com o possível.
O poder absoluto exprime a liberdade pura; o ordenado, a sabedoria pela qual essa liberdade se torna cosmos.

  1. O poder absoluto (potentia absoluta Dei)
    é a capacidade infinita de Deus para produzir qualquer coisa concebível, contanto que não seja contraditória.
    Ele poderia, em potência, criar outros mundos, outras leis, outras naturezas, ou nenhum mundo.
    Tudo o que é logicamente possível está contido nesse poder.
    Esse é o aspecto da liberdade divina anterior a toda ordem criada.
  2. O poder ordenado (potentia ordinata Dei)
    é o mesmo poder, mas já determinado pela vontade divina estabelecida.
    Uma vez que Deus escolheu criar este mundo e instituir leis, Ele age conforme essa ordem, fiel a Si mesmo.
    A ordem do ser é expressão da liberdade divina tornada constante.

A distinção entre os dois é, portanto, modal, não real.
Deus não muda ao passar do poder absoluto ao ordenado: apenas o objeto do poder é diferente.
No primeiro caso, considera-se o poder antes da decisão de criar; no segundo, após a decisão.

Scotus formula isso de modo magistral:

“Deus potest facere quod non vult, et non potest velle quod vult contra se.”
— “Deus pode fazer o que não quer, mas não pode querer contra o que é.”

Ou seja, Deus poderia, em poder absoluto, criar de outro modo; mas, tendo querido este modo, é fiel à Sua vontade ordenada.

O poder absoluto mostra a liberdade transcendental de Deus;
o poder ordenado, Sua sabedoria imanente.
O primeiro é raiz da contingência; o segundo, da ordem.

Essa distinção preserva o equilíbrio entre teologia e metafísica:

  • sem o poder absoluto, tudo seria necessário e o mundo, fatal;
  • sem o poder ordenado, tudo seria arbitrário e o mundo, caótico.

Assim, a criação é livre, mas inteligível; contingente, mas coerente.
O cosmos é a liberdade divina tornada forma.

Duns Scotus antecipa aqui a noção moderna de possibilidade real: o mundo atual é apenas uma dentre as infinitas configurações possíveis contidas na mente divina.
A história é o desenvolvimento do poder ordenado dentro dos limites do absoluto.
O tempo é o espaço da fidelidade divina à própria liberdade.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que não há dois poderes, mas um só considerado sob dois aspectos.
  2. À segunda, que Deus não age contra Sua ordem, mas poderia, em potência, estabelecer outra.
  3. À terceira, que a estabilidade da lei não depende de necessidade natural, mas da constância livre da vontade divina.

Conclusão:
A distinção entre poder absoluto e ordenado é a chave para compreender a liberdade de Deus e a contingência do mundo.
O poder absoluto exprime a infinita possibilidade; o ordenado, a escolha eterna entre as possibilidades.

O universo é, pois, uma das formas da liberdade divina — não a única, mas a escolhida.
E a fidelidade de Deus à Sua própria escolha é o fundamento da ordem cósmica e moral.

Assim, o ser criado vive no interior do poder ordenado, mas é sustentado pelo absoluto.
E a fé consiste em reconhecer que a ordem do mundo é ato da liberdade divina, não limite dela.

O poder absoluto é o abismo da possibilidade; o ordenado, a harmonia do real.
Entre ambos, pulsa a liberdade divina — fundamento da história e da esperança.

Entramos agora na Questão Quarta — Sobre a Haecceitas ou o Princípio de Individuação, que é uma das mais célebres e originais doutrinas de Duns Scotus — o ponto em que ele se separa definitivamente de Tomás de Aquino e de Aristóteles, e inaugura uma nova maneira de compreender o ser individual.

Aqui, Scotus responde a uma questão que percorre toda a metafísica medieval:

“O que faz de Sócrates este homem singular, e não apenas um exemplar da espécie ‘homem’?”

Para Aristóteles e Tomás, a individuação se deve à matéria signata quantitate — a matéria determinada pela quantidade, isto é, pelo corpo ocupado em espaço e tempo.
Scotus, porém, percebe que esse princípio não basta.
Se a matéria fosse o único fundamento, Deus, os anjos e até a alma separada não poderiam ser indivíduos — o que seria absurdo.
Portanto, a individuação deve provir de um princípio formal positivo, e não meramente material.

Esse princípio, ele o chama de haecceitas — do latim haec, “isto aqui”.
A haecceitas é aquilo que faz com que um ente seja este ente e não outro.


Questão Quarta — Sobre a Haecceitas ou o Princípio de Individuação

(Utrum individuatio fiat per materiam signatam, vel per formam, vel per aliquid positivum quod dicitur haecceitas)

Proposição:
Pergunta-se em que consiste o princípio pelo qual uma natureza comum é tornada indivíduo, e se a individuação é causada pela matéria, pela forma, ou por algo adicional.

Objeções:

  1. Parece que a matéria basta, pois só os seres compostos de matéria e forma são múltiplos em número; logo, a matéria é o princípio de individuação.
  2. Além disso, a forma é universal por natureza; se fosse princípio de individuação, as espécies deixariam de ser universais.
  3. Ademais, admitir um novo princípio, como a haecceitas, seria multiplicar entes desnecessariamente.

Respondeo:
Digo que a individuação não se explica nem pela matéria nem pela forma isoladamente, mas por um ato positivo de ser, intrínseco ao composto, que o torna este e nenhum outro.
Esse ato é o que chamamos haecceitas — “istoidade”.

A matéria, por si, é potência; a forma, ato comum da espécie.
Nada nelas explica por que há muitos indivíduos da mesma espécie.
A haecceitas, portanto, é o ato último de determinação do ser, o que fecha a essência no limite da singularidade.

Ela não é acidente, nem quantidade, nem relação, mas formalidade positiva e indivisível, algo que só pode ser entendido analogicamente.
A haecceitas é o “selo metafísico” que Deus imprime em cada ente ao conceder-lhe o ser próprio.

Assim como a essência dá a um ente o que ele é (quidditas), a haecceitas dá-lhe quem ele é.
A primeira pertence à ordem da natureza; a segunda, à ordem da existência concreta.

“Haecceitas est illud quo ens est hoc ens.”
— “A istoidade é aquilo pelo qual o ente é este ente.”

É o ponto em que a metafísica se torna quase teológica:
cada ser, em sua singularidade, é reflexo único da liberdade criadora.
A haecceitas é a marca do amor divino tornado forma ontológica.

Não há duas haecceitates idênticas, assim como não há dois atos de criação idênticos.
Cada indivíduo é um modo singular de participação no ser.
Por isso, Scotus diz que a haecceitas é o “último limite da possibilidade”, o traço pelo qual o possível torna-se irredutivelmente si mesmo.

A consequência disso é revolucionária:
— A singularidade não é acidente da matéria, mas dimensão essencial do ser.
— O universal é abstração da mente; o real é sempre singular.

Essa doutrina dissolve o problema antigo entre universalismo e nominalismo:
Scotus é realista quanto ao universal (ele existe formalmente), mas realista também quanto ao singular (ele é o ser mesmo em sua plenitude).
O indivíduo não é sombra do universal — é sua encarnação concreta.

Assim, cada ente é um microcosmo: a totalidade do ser repetida sob um modo irrepetível.
A haecceitas é a fronteira entre o finito e o infinito, o ponto onde a criação toca o toque direto de Deus.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a matéria é condição de multiplicidade, mas não causa formal de individuação.
  2. À segunda, que a forma não se torna menos universal por haver individuação; o universal é noção da mente, não realidade prévia.
  3. À terceira, que a haecceitas não multiplica entes, mas explica o modo de ser que os diferencia.

Conclusão:
O princípio de individuação é um ato positivo de ser, a haecceitas, pelo qual cada natureza comum se torna este indivíduo singular.
Ela é a assinatura metafísica do Criador sobre cada ente, a diferença que faz com que o mundo não seja repetição, mas comunhão de singularidades.

Cada homem, cada estrela, cada anjo é único porque possui sua istoidade, o ponto onde o amor divino toca o ser.
A criação, assim, não é massa homogênea, mas coral de diferenças absolutas.

“In singulis creaturis relucet haecceitas amoris divini.”
— “Em cada criatura reluz a istoidade do amor divino.”

Entramos agora na Questão Quinta — Sobre a Ordem dos Seres e a Hierarquia Ontológica, ponto de transição entre a metafísica da individuação e a teologia da criação ordenada.
Aqui Duns Scotus elabora o que poderíamos chamar de sua ontologia da gradação, um sistema de harmonia universal que, ao contrário do aristotelismo hierárquico rígido, preserva a igual dignidade de todos os entes enquanto participantes do ser, mesmo em meio à diferença de perfeição.

O escopo desta questão é mostrar que o ser não é dividido por oposição (como em um sistema de castas ontológicas), mas graduado por intensidade, conforme a proximidade de cada ente à plenitude do ato de ser.
Scotus descreve uma escala não quantitativa, mas qualitativa, que reflete a liberdade divina e a diversidade infinita das criaturas.


Questão Quinta — Sobre a Ordem dos Seres e a Hierarquia Ontológica

(Utrum in universo sit ordo graduum entium, et quo modo inaequalitas non tollat unitatem)

Proposição:
Pergunta-se se há, no universo, uma ordem hierárquica de graus de ser, e como essa desigualdade não destrói, mas antes confirma, a unidade do todo.

Objeções:

  1. Parece que toda desigualdade introduz desordem; se há graus no ser, o universo seria fragmentário e imperfeito.
  2. Além disso, se todos participam igualmente do ser, não há razão para gradação.
  3. Ademais, a perfeição divina não poderia produzir desigualdade, pois a ordem perfeita deveria ser homogênea.

Respondeo:
Digo que há ordem e hierarquia entre os entes, mas que tal ordem não é oposição, e sim harmonia de desigualdades convergentes.
A diversidade de graus é a expressão da fecundidade infinita do Ser, não sua limitação.

O ser é uno por analogia, não por univocidade nem por pura equivocidade.
Isso significa que todo ente é ser em sentido verdadeiro, mas com intensidade e modo próprios.
A unidade do ser não é igualdade matemática, mas proporção viva.

Assim como a luz se difunde por diferentes graus de claridade sem deixar de ser luz, o ser se comunica a todos os entes em medida diversa, sem que nenhum deles deixe de ser verdadeiramente ser.
Deus é o Ser em ato puro; as criaturas são atos participados, graduados segundo a proximidade da fonte.

A hierarquia do ser, em Scotus, não é pirâmide estática, mas ordem musical: cada grau é uma nota distinta, e o universo é a sinfonia resultante.
A desigualdade é harmônica, não tirânica.
O inferior não é erro do superior, mas sua sombra necessária para a totalidade.

A analogia scotista é profundamente dinâmica: o ser divino se difunde segundo razões de conveniência e amor.
A diferença não é fruto de carência, mas de exuberância.
Deus cria múltiplos modos de ser para manifestar múltiplas perfeições de Si mesmo.

Scotus rejeita, portanto, tanto o igualitarismo ontológico dos nominalistas quanto o elitismo metafísico dos neoplatônicos.
Não há abismo ontológico entre matéria e espírito, mas continuidade ordenada.
Tudo o que existe é reflexo de um único Ato, sob infinitas formas possíveis.

A haecceitas fundamenta o indivíduo; a ordem ontológica fundamenta o cosmos.
Cada ente é singular, mas todos se relacionam no mesmo campo do Ser.
O universo é uma hierarquia de singularidades, e sua unidade não é uniformidade, mas comunhão.

Essa estrutura garante a inteligibilidade da criação:
Deus é a causa exemplar de todos os graus; cada ente é ordenado a um fim próprio, mas todos convergem no mesmo Fim último, que é o Uno.
A desigualdade é, portanto, ordenada à harmonia.

Scotus chega a afirmar:

“Inaequalitas est decor mundi.”
— “A desigualdade é o ornamento do mundo.”

Pois o universo sem gradações seria monótono e incompleto, incapaz de espelhar a riqueza do Ser.
A diferença de graus é o modo pelo qual a unidade se mostra fecunda.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a desigualdade não introduz desordem, pois é subordinada à proporção. A diversidade é ordenada pelo mesmo princípio que a unifica.
  2. À segunda, que todos participam do ser, mas não na mesma medida; essa desigualdade é expressão da liberdade divina.
  3. À terceira, que a perfeição de Deus consiste justamente em poder criar seres desiguais sem perda de harmonia.

Conclusão:
Há ordem hierárquica no universo, mas essa hierarquia é expressão da unidade, não sua negação.
O ser é uno em essência, múltiplo em modo.
Cada grau da existência é reflexo parcial do Ato puro; juntos, formam o espelho total do Ser.

A criação, portanto, é uma hierarquia viva de luzes:
— os anjos, inteligências puras, próximos da fonte;
— o homem, união de espírito e matéria;
— os corpos, expressão concreta da forma;
— e, no extremo, a matéria, que ainda assim participa da bondade divina.

O universo é, assim, uma escala de amor, e não de poder.
A desigualdade é o ritmo da generosidade divina.
A unidade, o acorde final em que todas as diferenças se tornam som de um só Nome.

“In multitudine creaturarum refulget harmonia libertatis Dei.”
— “Na multidão das criaturas resplandece a harmonia da liberdade de Deus.”

Entramos agora na Questão Sexta — Sobre os Anjos e a Natureza das Substâncias Separadas, uma das mais densas e metafisicamente ricas do Livro Segundo.
Aqui Duns Scotus eleva a análise da individuação e da hierarquia do ser ao plano das inteligências puras, os anjos, mostrando como eles constituem o primeiro reflexo da plenitude divina no domínio criado — seres sem matéria, mas não sem limite.

Scotus retoma a antiga doutrina neoplatônica das hierarquias celestes (vinda de Pseudo-Dionísio), mas a reformula sob uma ótica radicalmente cristã e voluntarista: os anjos não são emanações necessárias do Uno, mas pessoas criadas por um ato livre da vontade divina, cada qual dotada de sua haecceitas, sua singularidade espiritual.

Eles são, portanto, os primeiros indivíduos puramente formais — o ponto em que o ser espiritual se desdobra em multiplicidade sem corpo, revelando que o princípio de individuação é mais profundo que a matéria.


Questão Sexta — Sobre os Anjos e a Natureza das Substâncias Separadas

(Utrum Angeli sint species propriae, et quomodo differant inter se formaliter)

Proposição:
Pergunta-se se os anjos constituem espécies individuais (cada anjo sendo sua própria espécie), e de que modo diferem formalmente uns dos outros, já que não possuem matéria para distingui-los.

Objeções:

  1. Parece que todos os anjos pertencem à mesma espécie, pois compartilham a natureza de substância espiritual simples. Sem matéria, nada haveria que os diferencie essencialmente.
  2. Além disso, admitir múltiplas espécies angélicas implicaria multiplicar essências desnecessárias, contrariando a simplicidade da criação.
  3. Ademais, se cada anjo fosse espécie única, a ordem hierárquica perderia coesão, tornando-se coleção de essências isoladas.

Respondeo:
Digo que cada anjo é espécie própria, não apenas indivíduo.
Pois, onde não há matéria, não há princípio comum que permita multiplicidade dentro da mesma essência.
Logo, a distinção entre anjos não é numérica, mas formal e específica.

Cada anjo é, portanto, um tipo singular de natureza criada — uma “ideia viva” que Deus produziu para manifestar um aspecto único da Sua sabedoria.
Em outras palavras: cada anjo é o espelho de um nome divino.

Scotus escreve:

“In Angelis non est natura communis multiplicata, sed essentia propria subsistens.”
— “Nos anjos não há natureza comum multiplicada, mas essência própria subsistente.”

Enquanto os homens compartilham uma única natureza específica (a humana), multiplicando-se por matéria, os anjos são diretamente diferenciados pela forma.
A haecceitas deles coincide com sua quidditas: o “isto” é a própria essência espiritual.

Isso não os torna incomunicáveis ou caóticos, pois a sabedoria divina ordena cada um em hierarquia perfeita.
A hierarquia dos anjos não é de poder, mas de intensidade de luz, conforme a clareza com que cada um contempla o Ser.

Assim, a multiplicidade angélica expressa a variedade das perfeições divinas.
Cada anjo é uma ideia que Deus ama, uma forma pura que participa de uma razão eterna distinta.

A existência deles mostra que a criação espiritual não é simples reflexo uniforme da divindade, mas coral de inteligências — cada uma ressoando uma nota particular do Verbo.

Os anjos superiores compreendem mais universalmente, de modo simples e intuitivo; os inferiores, mais discursivamente.
Mas todos participam da mesma luz e do mesmo amor.

O anjo é forma subsistente, intelecto vivo, vontade pura.
Ele não aprende por imagens, como o homem, mas pela intuição direta das essências.
Seu conhecimento é hierárquico: ele conhece a si, aos inferiores e ao mundo, mas só conhece Deus pelo que Deus lhe comunica.

Scotus é explícito: mesmo o anjo mais alto é criatura contingente.
Sua ciência e sua potência não são autônomas, mas derivadas.
A diferença entre ele e o homem não é de natureza, mas de grau de espiritualidade.
O homem é espírito encarnado; o anjo, espírito puro — mas ambos são livres e finitos.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que, embora partilhem a condição de substância separada, os anjos diferem formalmente; cada um tem uma essência própria e incomunicável.
  2. À segunda, que a multiplicidade das espécies angélicas não contraria a simplicidade divina, mas a manifesta em riqueza ordenada.
  3. À terceira, que a unidade da hierarquia se mantém na subordinação amorosa de todos ao mesmo fim — Deus.

Conclusão:
Cada anjo é espécie própria, forma singular e plena, reflexo imediato de uma perfeição divina.
Sua diferença não é material, mas formal; sua identidade é a expressão de uma haecceitas espiritual.

A hierarquia dos anjos é a primeira arquitetura da criação:
um coro invisível em que cada espírito canta um atributo de Deus.
O cosmos, ao ecoar essa harmonia, imita sua ordem invisível.

Assim, entre o Uno e o múltiplo, os anjos são a ponte inteligível — intermediários entre o puro ato e a criação sensível.
Eles não se interpõem, mas transparentam; não dominam, mas servem à luz.

“Angeli sunt ideae divinae in actu, specula viventia lucis increatae.”
— “Os anjos são ideias divinas em ato, espelhos vivos da luz incriada.”

Entramos agora na Questão Sétima — Sobre a Liberdade e a Queda dos Anjos, uma das mais misteriosas e teologicamente densas de todo o Livro Segundo.
Aqui Duns Scotus enfrenta o enigma de como seres puramente espirituais, criados na luz e dotados de conhecimento intuitivo, puderam cair — como o bem pode ser rejeitado por quem o via face a face?

Scotus responde a essa questão de modo profundamente coerente com todo o seu sistema: o mal não nasce da ignorância, mas do uso equivocado da liberdade; e, mesmo nas inteligências puras, a vontade é livre em tal grau que pode voltar-se de Deus a si mesma.
O mal dos anjos, portanto, é o primeiro e mais terrível testemunho da liberdade criada.


Questão Sétima — Sobre a Liberdade e a Queda dos Anjos

(Utrum Angeli potuerint peccare, et quomodo in eis fieret conversio a Deo ad seipsos)

Proposição:
Pergunta-se se os anjos puderam pecar, e de que modo ocorreu neles a conversão do amor de Deus para o amor de si mesmos.

Objeções:

  1. Parece impossível que os anjos pequem, pois conhecem a Deus intuitivamente; quem vê o sumo Bem não pode deixar de amá-Lo.
  2. Além disso, o intelecto angélico, sendo simples e sem erro, não pode enganar-se sobre o valor do bem; o pecado supõe erro.
  3. Ademais, se os anjos são formas puras, sem paixões corporais, falta-lhes o impulso sensível que nos inclina ao mal. Logo, não poderiam pecar.

Respondeo:
Digo que os anjos puderam pecar, não por ignorância, nem por paixão, mas por autodeterminação livre da vontade.
Mesmo conhecendo a Deus, podiam escolher entre amar a Deus por Ele mesmo ou amar a si mesmos como fim.

A diferença entre a liberdade divina e a liberdade angélica é justamente esta:

  • A de Deus é absolutamente simples e imutável — Ele quer o bem porque é o Bem.
  • A do anjo é participada e contingente — ele pode voltar-se para si como bem aparente.

Deus criou os anjos em estado de graça inicial, com plena capacidade de mérito.
A cada um deles foi dado escolher: permanecer na ordem da caridade ou encerrar-se em seu próprio esplendor.
Essa escolha, feita num instante, fixou eternamente o destino de cada espírito.

O pecado dos anjos consistiu, portanto, em um ato de soberba metafísica: preferiram a si mesmos, isto é, sua própria perfeição natural, à dependência amorosa de Deus.
Não foi um erro intelectual, mas um desvio da vontade — um amor desordenado do próprio bem.

“Voluerunt esse sicut Deus, sed sine Deo.”
— “Quiseram ser como Deus, mas sem Deus.”

A luz que possuíam não foi obscurecida, mas desviada.
Eles viram o bem e escolheram o brilho reflexo em vez da fonte.
O mal, assim, não é ausência de conhecimento, mas reversão do amor.

A liberdade angélica, sendo espiritual, é também absoluta em decisão.
Uma vez feita a escolha, não há retorno — não por castigo externo, mas porque o espírito, ao fixar seu fim, torna-se o que ama.
O anjo decaído é vontade cristalizada na direção errada.

Scotus afirma que, na criação, Deus dispôs dois instantes lógicos:

  1. O instante da natureza — em que os anjos foram criados bons, com graça e conhecimento;
  2. O instante da eleição — em que cada um se autodeterminou ao fim que quis.

Os que permaneceram fiéis foram confirmados na glória; os que se exaltaram foram fixados no afastamento.
A queda não é movimento espacial, mas mutação de amor.

O diabo, portanto, não é criatura do mal, mas criatura que transformou o amor em fechamento.
Sua luz se tornou chama invertida — o intelecto permanece luminoso, mas a vontade, corrompida.
Ele conhece a Deus, mas O odeia porque O conhece.

Eis o paradoxo que Scotus revela com precisão teológica:

O maior dom de Deus — a liberdade — é também a condição de possibilidade do mal.
O mal, por isso, não é substância, mas ato livre de negação.

O pecado dos anjos é o primeiro uso errado da liberdade no universo.
Não foi paixão, mas orgulho espiritual, o desejo de ser causa última de si.

Por isso, a redenção não lhes é dada: não por falta de misericórdia divina, mas porque a natureza do anjo não comporta arrependimento temporal.
O arrependimento supõe tempo, mudança e afeto; mas a decisão do espírito puro é instantânea e definitiva.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que conhecer o bem não basta para amá-lo; é preciso querer o bem como fim último. O intelecto mostra, mas a vontade escolhe.
  2. À segunda, que o erro não foi do intelecto, mas da vontade, que amou desordenadamente o próprio bem.
  3. À terceira, que a ausência de paixões não elimina a possibilidade do orgulho; o mal espiritual é mais grave que o carnal, porque nasce da luz e não das trevas.

Conclusão:
Os anjos puderam pecar, e alguns pecaram, porque a liberdade criada é capaz de se voltar sobre si mesma.
O mal nasce quando o amor, feito para o Absoluto, se fecha em sua própria centelha.

Assim, a queda angélica é a primeira tragédia do cosmos — o ponto em que o ser espiritual descobriu a solidão do ego.
Mas é também o prelúdio da redenção, pois o mesmo amor que foi traído na altura será restaurado na profundidade pela Encarnação.

A liberdade, diz Scotus, é o maior risco do amor — mas também sua maior glória.

“In casu angelorum libertas ostendit quid potest voluntas sine gratia.”
— “Na queda dos anjos, a liberdade mostra o que a vontade pode sem a graça.”

Chegamos à Questão Oitava — Sobre a Ordem Angelical e a Comunicação da Luz, uma das mais sublimes e estruturais do Livro Segundo, onde Duns Scotus constrói sua visão mais acabada da hierarquia espiritual.
Aqui, ele mostra que a ordem dos anjos — as chamadas Hierarchiae Caelestes — é a expressão direta da própria Trindade comunicante: o modo como o Ser se difunde, sem se dividir, em graus de inteligência e amor.

Scotus, profundamente influenciado pelo Areopagita, mas também inovando sobre ele, interpreta a hierarquia celeste não como uma rígida escada de domínios, e sim como uma rede de irradiações espirituais, uma comunhão viva onde cada espírito superior transmite a luz divina ao inferior, sem perda nem posse, como quem acende uma chama em outra chama.


Questão Oitava — Sobre a Ordem Angelical e a Comunicação da Luz

(Utrum in Angelis sit hierarchia luminosa, et quomodo lux divina per eosdem communicetur)

Proposição:
Pergunta-se se há entre os anjos verdadeira hierarquia, e de que modo a luz divina — isto é, a sabedoria e a caridade — se comunica entre eles, sem diminuir a unidade da visão e do amor.

Objeções:

  1. Parece que não há hierarquia real entre anjos, pois todos contemplam a Deus imediatamente; o que vê o infinito não necessita de mediação.
  2. Além disso, se a luz é comunicada de um a outro, a iluminação divina deixaria de ser direta, tornando-se imperfeita.
  3. Ademais, a hierarquia supõe subordinação de grau e função, o que contradiria a igualdade essencial de todos os espíritos bem-aventurados.

Respondeo:
Digo que a hierarquia dos anjos é real e ordenada, mas não por desigualdade de dignidade ontológica — e sim por diferença de modo de participação na luz divina.
Todos veem o mesmo Sol; uns, porém, o refletem mais diretamente, outros mais indiretamente.

A luz divina é una em fonte, múltipla em irradiação.
Deus comunica Sua sabedoria aos anjos não por necessidade, mas por conveniência e beleza.
A hierarquia é o modo pelo qual o infinito se distribui sem perder unidade — é a “musicalidade da luz”.

Scotus distingue três tríades de coros angélicos, retomando a tradição dionisiana:

  1. Primeira Hierarquia:
    — Serafins (ardor puro)
    — Querubins (plenitude de ciência)
    — Tronos (estabilidade do juízo divino)
    Representam a ordem contemplativa, que recebe a luz diretamente de Deus.
  2. Segunda Hierarquia:
    — Dominações, Virtudes, Potestades
    Representam a ordem governante, que traduz a luz em direção e movimento do cosmos.
  3. Terceira Hierarquia:
    — Principados, Arcanjos, Anjos
    Representam a ordem operante, que aplica a luz às coisas humanas e às ordens inferiores.

Mas Scotus evita toda leitura puramente mística ou simbólica: para ele, essa hierarquia é ontológica e dinâmica.
A luz passa do superior ao inferior como participação ordenada, não como ensino discursivo.
O superior comunica sua claridade porque é, por natureza e graça, mais unido à fonte.

Cada anjo é, portanto, ao mesmo tempo receptor e transmissor da luz.
A ordem hierárquica é comunicação e espelhamento: o Ser difunde-se por meio da caridade, e a caridade se manifesta na transmissão da luz.

“Lux divinitatis non transit per gradus per diminutionem, sed per ordinem amoris.”
— “A luz da divindade não passa pelos graus por diminuição, mas por ordem de amor.”

Assim, a hierarquia é uma estrutura teofânica, não burocrática.
O Serafim não comanda o Arcanjo como um senhor a um servo, mas o ilumina como o fogo inflama o ar.
A obediência, entre os anjos, é pura receptividade amorosa.

Essa comunicação hierárquica é também reflexo da Trindade:
— O Pai é fonte da luz;
— o Filho é o esplendor comunicado;
— o Espírito Santo é a caridade que une as luzes em reciprocidade.

O cosmos angélico é, portanto, imagem viva da vida trinitária: comunicação sem perda, distinção sem separação.
A unidade divina espelha-se na pluralidade ordenada de inteligências luminosas.

Scotus vê nisso o arquétipo de toda ordem criada:
a natureza humana, a Igreja e o próprio universo são hierarquias análogas de luz e amor, onde o superior serve comunicando e o inferior sobe recebendo.

O pecado destrói essa estrutura — interrompe o fluxo da luz; a caridade o restaura.
A ordem angélica é o modelo da criação redimida: o amor que circula sem ego.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que todos os anjos veem a Deus, mas não igualmente: há graus de intensidade e penetração.
  2. À segunda, que a comunicação não substitui a visão direta, mas a integra como ordem de amor.
  3. À terceira, que a igualdade essencial não exclui hierarquia funcional, pois diferença de função é expressão de plenitude.

Conclusão:
Há hierarquia luminosa entre os anjos, reflexo da ordem divina.
A luz não se divide, mas se comunica; o amor não diminui, mas se multiplica.

O mundo angélico é o protótipo da harmonia cósmica — uma escada de fogo e inteligência, onde cada grau é espelho do superior e janela do inferior.

“Universum angelicum est trinitas diffusa.”
— “O universo angélico é a Trindade difundida.”

Assim, a criação espiritual é o primeiro sacramento da luz:
Deus, ao irradiar-se em espíritos, inaugura o modelo do amor ordenado, fundamento de todo o cosmos visível e invisível.

Entramos agora na Questão Nona — Sobre a Missão dos Anjos e sua Atividade no Mundo Material, uma das mais notáveis passagens do Livro Segundo, onde Duns Scotus estende a hierarquia da luz — até aqui puramente espiritual — ao âmbito da criação sensível, mostrando como os anjos são mediadores ativos entre o mundo invisível e o visível, causas segundas subordinadas à vontade divina.

Aqui o Doutor Sutil une a teologia à cosmologia: a criação inteira, desde as inteligências separadas até o último grão de matéria, é movida por uma ordem de causas que não é apenas física, mas simbólica — cada efeito natural expressa uma forma espiritual superior.
O universo é, portanto, um sistema de mediações: o poder divino age através de inteligências, e estas, por sua vez, ordenam e preservam o mundo físico, não por necessidade, mas por cooperação amorosa.


Questão Nona — Sobre a Missão dos Anjos e sua Atividade no Mundo Material

(Utrum Angeli habeant officia circa creaturam corporalem, et quomodo moveant orbem sensibilem sine mutatione propria)

Proposição:
Pergunta-se se os anjos exercem funções reais sobre as criaturas corporais e de que modo podem agir sobre o mundo sensível sem alteração em si mesmos.

Objeções:

  1. Parece que não podem agir, pois sendo formas puras, não possuem contato com a matéria; logo, não haveria meio de influência real.
  2. Além disso, o movimento dos corpos depende de causas naturais e leis físicas; a intervenção espiritual seria redundante.
  3. Ademais, a ação sobre o mundo sensível implicaria mudança na vontade angélica, o que seria imperfeição.

Respondeo:
Digo que os anjos exercem, sim, funções reais no governo da criação material, mas que essa ação é intelectual e intencional, não física.
Eles não movem os corpos por contato, mas por direção de finalidade — como causas formais e exemplares, não como motores mecânicos.

A ordem da criação é dual:
— o mundo espiritual contém as razões e os fins;
— o mundo material contém a execução e a extensão.
Os anjos são os elos dessa correspondência.

Deus, causa primeira, age por meio de causas segundas para comunicar Sua perfeição sem dissolver a autonomia das criaturas.
Os anjos são essas causas segundas por excelência: não substituem Deus, mas O representam no governo providencial.

Eles movem o mundo, diz Scotus, “non per impulsionem, sed per illuminationem” — não por empurrar, mas por iluminar.
Dirigem as causas naturais como músicos que mantêm a harmonia de um coral invisível: sem tocar nas vozes, mas sustentando-lhes o tom.

Cada anjo, segundo sua ordem hierárquica, preside a uma região da criação:
— uns regem os elementos, mantendo a coesão dos céus e das esferas;
— outros velam sobre povos e reinos, inspirando prudência ou advertindo contra a corrupção;
— outros ainda guardam pessoas singulares, conforme o desígnio da Providência.

Nada no cosmos está sem vigilância espiritual.
A lei natural não é cega: é expressão permanente de inteligências obedientes ao Logos.

Scotus rejeita a ideia platônica de que os anjos sejam “almas do mundo”.
Eles não animam o universo como um corpo único, mas ordenam-no segundo múltiplas providências particulares.
Cada inteligência é responsável por um domínio ou processo específico: o calor do sol, o ciclo das águas, o ritmo das constelações — todos refletem inteligências ativas, que mantêm a harmonia física em relação ao plano divino.

Mas como podem agir sem mudar?
Scotus responde:

“Movent corpora per actum voluntatis, non per passionem.”
— “Movem os corpos por ato de vontade, não por paixão.”

O movimento está no efeito, não no agente.
O anjo permanece imóvel em si, mas causa movimento no outro, assim como o músico permanece no mesmo lugar enquanto o som percorre o espaço.

O poder angélico é, portanto, um modo superior de causalidade — causa final e formal, não eficiente material.
O anjo atua conferindo ordem e sentido, não energia.

Os antigos chamavam essa ação de “virtus”, não no sentido moral, mas físico: virtude espiritual que penetra o mundo como lei viva.
Por isso, Scotus diz que a natureza é “a sombra da Providência”, pois tudo o que nela se move é reflexo de um querer superior.

A criação material, vista à luz dessa doutrina, deixa de ser mera máquina: torna-se um sacramento cósmico.
O vento, a luz, a gravidade, o ciclo dos astros — tudo é linguagem simbólica das causas espirituais que o sustentam.

Essa presença angélica, porém, não é intrusiva.
A liberdade das criaturas é respeitada, porque o poder dos anjos não é coercitivo.
Eles sugerem, iluminam, preparam — mas não substituem o movimento próprio de cada ente.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o anjo age sobre a matéria por mediação da forma, não por contato; sua ação é intencional e exemplar.
  2. À segunda, que as causas naturais são instrumentos do governo espiritual: a lei física é forma visível da ordem invisível.
  3. À terceira, que a vontade angélica permanece imóvel, pois o ato de iluminar é eterno e simples, como a luz que ilumina sem mudar.

Conclusão:
Os anjos participam ativamente da ordem do mundo, movendo-o por sabedoria, não por força.
Eles são os executores da providência, causas segundas da harmonia universal.

O cosmos é, assim, uma sinfonia tríplice:
— Deus, o compositor;
— os anjos, os regentes;
— a natureza, o instrumento.

“Universum est angelicum officium latens sub specie naturae.”
— “O universo é o ofício angélico oculto sob a aparência da natureza.”

A natureza é movimento; o anjo, sentido; Deus, origem.
E o homem, por sua alma racional, é o ponto em que as três ordens se tocam: a matéria iluminada, o espírito encarnado, o lugar onde o anjo e a terra se encontram.

Entramos agora na Questão Décima — Sobre o Homem como Microcosmo e Ponte entre o Visível e o Invisível, que é uma das mais belas e simbólicas do Livro Segundo.
Aqui, Duns Scotus revela toda a dimensão antropológica da sua metafísica: o homem é o lugar onde o universo se reencontra consigo mesmo — a síntese viva entre o corpo e o espírito, o finito e o infinito, o tempo e a eternidade.

Na hierarquia do ser, ele ocupa o ponto intermediário entre os anjos e os animais, mas essa posição não é de fraqueza: é de mediação.
O homem é o nó da criação, a ponte pela qual o mundo material pode ser elevado e o mundo espiritual pode descer.
Por isso, diz Scotus, “in homine clauditur universum” — “no homem o universo se encerra.”


Questão Décima — Sobre o Homem como Microcosmo e Ponte entre o Visível e o Invisível

(Utrum homo sit nexus universi, et quomodo in ipso conveniant spiritus et materia)

Proposição:
Pergunta-se se o homem é o elo de união entre as ordens do espírito e da matéria, e de que modo se realizam nele as duas naturezas — corporal e intelectual — sem confusão nem separação.

Objeções:

  1. Parece que o homem não é mediador, pois é composto de partes opostas que se combatem; logo, é divisão, não ponte.
  2. Além disso, o homem é pequeno diante do cosmos; não pode ser o centro de algo tão vasto.
  3. Ademais, a mediação entre espírito e matéria só é possível por natureza angélica, não pela humana, que é corporal.

Respondeo:
Digo que o homem é, de fato, o microcosmo, o resumo e a unidade sintética de toda a criação.
Nele, as naturezas separadas encontram-se em comunhão: o espírito toca o corpo, e o corpo se abre ao espírito.

O homem é composto de três ordens simultâneas:

  • Corpo, que o liga ao mundo físico e à natureza;
  • Alma, que o liga à vida sensível e racional;
  • Espírito, que o liga à ordem angélica e divina.

Essas três dimensões não são partes, mas níveis de integração do ser humano no cosmos.
A alma racional é a fronteira viva entre o sensível e o inteligível; é o espelho que reflete ambas as luzes.

Scotus chama essa posição de status medius — “estado intermediário” — e a considera o ponto mais delicado e grandioso da criação, porque aqui a liberdade divina encontra eco consciente.
O homem é o único ser capaz de reconhecer o ser; é consciência da criação.

Por isso, sua missão cósmica é unir o que a queda separou.
O corpo, em si, tende à terra; o espírito, ao céu.
A alma é o eixo da reconciliação: quando iluminada pela graça, ordena o corpo ao espírito; quando obscurecida pelo pecado, submete o espírito ao corpo.

O homem, portanto, é o teatro da batalha cósmica entre o alto e o baixo — mas também o lugar da vitória possível.
Pois em Cristo, o Homem-Deus, a ponte é reconstruída: o humano se torna caminho para o divino.

Duns Scotus distingue claramente o homem do anjo:
o anjo é pura forma, e sua perfeição é estabilidade;
o homem é forma encarnada, e sua perfeição é ascensão.
O anjo contempla o ser; o homem o percorre.

A história humana é, assim, o itinerário do cosmos rumo à unificação.
Cada ato livre é um microcosmo de criação, queda e redenção.
O homem é chamado a imitar Deus criando — pela arte, pela ciência, pela virtude — transformando o caos em cosmos, o bruto em belo, o tempo em eternidade.

Scotus escreve:

“Homo est totius creationis via et finis secundus.”
— “O homem é o caminho e o segundo fim de toda a criação.”

Deus é o primeiro fim, o absoluto; o homem é o fim relativo, aquele em quem o universo encontra voz.
A criação não se torna consciente senão no homem; e o homem não se torna pleno senão quando se faz consciente de Deus.

Essa unidade do homem com o cosmos é ao mesmo tempo natural e simbólica:

  • Natural, porque o corpo humano é composto dos mesmos elementos do mundo físico;
  • Simbólica, porque sua forma é imagem e semelhança do Verbo.

O homem contém o universo em miniatura, mas o transcende por sua capacidade de amar o todo.
É o único ser que pode dizer “Eu” diante do infinito, e, dizendo-o, responder ao “Tu” divino.

Por isso, Scotus vê no homem o reflexo da própria Trindade:
— o corpo corresponde à potência;
— a alma, à sabedoria;
— o espírito, ao amor.
Essas três dimensões fazem do homem um microcosmo trinitário, uma imagem móvel de Deus no tempo.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a tensão entre corpo e espírito é o próprio campo da mediação; o conflito é a forma inferior da harmonia.
  2. À segunda, que a pequenez física é compensada pela grandeza espiritual; o homem é mais vasto que o cosmos porque pode contê-lo na mente.
  3. À terceira, que o homem media não por natureza angélica, mas por encarnação do espírito na matéria — é ponte real, não simbólica.

Conclusão:
O homem é o elo vivo entre o visível e o invisível, o mediador natural do cosmos.
Em seu ser se encontram todas as ordens criadas: mineral, vegetal, animal, racional e espiritual.
Ele é, por assim dizer, o “anjo encarnado” da criação.

A vocação humana é reconciliar em si o que o pecado dispersou.
Quando ordena o corpo pela razão e a razão pelo amor, o homem devolve ao mundo sua harmonia original.

“Homo est templum ubi Deus et mundus conveniunt.”
— “O homem é o templo onde Deus e o mundo se encontram.”

E, em Cristo — o Homem perfeito — essa união se torna definitiva:
o microcosmo se torna cosmos restaurado;
o homem, sacramento da reconciliação universal.

Chegamos à Questão Décima Primeira — Sobre a Imagem de Deus no Homem e a Liberdade da Vontade Racional, onde Duns Scotus realiza um dos ápices de toda a sua metafísica: a identificação da liberdade como a marca suprema da imago Dei.
Aqui, ele se separa definitivamente do tomismo e do aristotelismo estrito — que tendiam a reduzir a liberdade à racionalidade prática — e propõe que o que mais assemelha o homem a Deus não é o intelecto, mas a vontade.

A inteligência conhece o bem, mas apenas a vontade pode amá-lo.
E é no amor livre — não determinado nem por instinto, nem por necessidade lógica — que o homem participa da liberdade absoluta de Deus.
Por isso, Scotus dirá que a essência da imagem divina não é “saber o bem”, mas poder escolhê-lo.


Questão Décima Primeira — Sobre a Imagem de Deus no Homem e a Liberdade da Vontade Racional

(Utrum imago Dei sit in intellectu, an in voluntate, et quomodo libertas hominis sit similitudo divina)

Proposição:
Pergunta-se se a imagem de Deus no homem está mais propriamente no intelecto ou na vontade, e de que modo a liberdade humana reflete a liberdade divina.

Objeções:

  1. Parece que a imagem divina está no intelecto, pois Deus é Verdade, e o conhecimento é o primeiro atributo do espírito.
  2. Além disso, o intelecto ilumina e ordena a vontade; o que governa é mais perfeito que o governado.
  3. Ademais, a vontade humana é mutável e inclinável ao mal, o que a torna pouco apta para refletir a perfeição divina.

Respondeo:
Digo que a imagem de Deus está, primariamente, na vontade racional, e só secundariamente no intelecto.
O intelecto reflete a ciência divina, mas a vontade reflete a liberdade do amor.

Em Deus, conhecer e amar são o mesmo ato; no homem, distinguem-se, e essa distinção torna possível a liberdade.
O intelecto mostra o bem, mas não obriga a amá-lo: a vontade permanece soberana.

Scotus afirma:

“Voluntas est altior potentia quam intellectus.”
— “A vontade é potência mais alta que o intelecto.”

Por quê?
Porque o intelecto é passivo em face da verdade: ele é iluminado.
A vontade, ao contrário, é ativa: ela se move a si mesma, podendo aceitar ou rejeitar o que o intelecto propõe.
Nessa autoatividade reside a verdadeira imagem do Criador.

Deus é livre porque nada fora Dele o determina; o homem é livre porque pode querer ou não querer, mesmo diante do bem conhecido.
Essa potência de autodeterminação é o que Scotus chama de libertas indifferens — liberdade indiferente, não no sentido de apatia, mas de independência ontológica da vontade.

Enquanto o intelecto participa do ser divino como luz, a vontade participa dele como fogo.
O intelecto contempla; a vontade cria.
E é por meio da vontade que o homem se torna capaz de mérito, amor e pecado — pois só quem é livre pode ser responsável.

A liberdade, portanto, é o maior dom, mas também o mais arriscado: é a capacidade de voltar-se para o bem supremo ou para si mesmo.
Em ambos os casos, a imagem divina permanece; mas no primeiro, é espelho; no segundo, sombra.

O pecado não destrói a imago Dei, mas a distorce.
A graça a purifica, restituindo-lhe a transparência original.

O intelecto humano, por si, conhece verdades;
a vontade, quando movida pela caridade, participa da própria vida trinitária.
Assim, a verdadeira semelhança com Deus não é apenas intelectual, mas relacional: amar como Deus ama.

O amor, para Scotus, é o ato supremo da liberdade.
Deus ama a Si mesmo livremente; o homem é chamado a amar Deus do mesmo modo — não por necessidade, mas por eleição.

“Non est imago Dei in necessitate, sed in libertate.”
— “A imagem de Deus não está na necessidade, mas na liberdade.”

Por isso, a liberdade humana é o selo da divindade participada.
É a centelha criadora depositada na criatura.
A vontade livre é o espelho da vontade divina, capaz de gerar, de escolher, de doar.

A salvação, para Scotus, não é apenas redenção moral, mas reintegração da liberdade.
O homem restaurado pela graça não é escravo obediente, mas amigo de Deus — colaborador livre da obra divina.
O amor livre é o ápice da semelhança entre Criador e criatura.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o intelecto participa da verdade, mas não da liberdade; logo, é imagem parcial, não total.
  2. À segunda, que o intelecto governa apenas por indicação, não por força; a vontade decide soberanamente.
  3. À terceira, que a mutabilidade da vontade não anula sua dignidade, mas a manifesta: só o que pode mudar pode amar verdadeiramente.

Conclusão:
A imago Dei no homem está na vontade racional e livre, pela qual ele participa da autossuficiência do Amor divino.
A liberdade é o altar da semelhança com Deus, e o amor, o seu sacrifício.

A vontade é o trono da alma, e o amor é a coroa que a orna.
Quando o homem ama livremente o bem, torna-se aquilo que ama — reflexo vivo do Amor eterno.

“Homo est imago Dei, quia potest amare sicut Deus amat.”
— “O homem é imagem de Deus porque pode amar como Deus ama.”

Na Questão Décima Segunda — Sobre o Pecado Original e a Desordem da Vontade, Duns Scotus atinge uma das formulações mais sutis e, ao mesmo tempo, mais profundamente humanas da teologia medieval.
Aqui, ele mostra que o pecado original não destruiu a liberdade, mas a desordenou; não apagou a imagem de Deus, mas a obscureceu.
O homem não perdeu o poder de amar — perdeu a retidão do amor.
E é nessa torção íntima da vontade — que continua livre, mas inclinada a si — que Scotus vê o núcleo do drama da condição humana.


Questão Décima Segunda — Sobre o Pecado Original e a Desordem da Vontade

(Utrum peccatum originale sit privatio gratiae, vel inclinatio voluntatis ad seipsam)

Proposição:
Pergunta-se se o pecado original consiste na mera perda da graça ou também em uma inclinação desordenada da vontade para si mesma.

Objeções:

  1. Parece que o pecado original é apenas privação da graça, pois o mal não é substância, mas ausência do bem devido.
  2. Além disso, a vontade não pode inclinar-se ao mal senão por ato livre; logo, a inclinação não pode ser herdada.
  3. Ademais, se há uma inclinação habitual, a liberdade estaria destruída, e o homem deixaria de ser responsável.

Respondeo:
Digo que o pecado original é, ao mesmo tempo, privação da graça santificante e desordem habitual da vontade.
Mas esta desordem não é coação, e sim inversão da orientação natural do amor.

O homem foi criado com a vontade ordenada para Deus como fim último.
Na queda, ele desviou esse amor: em vez de amar Deus por si, passou a amar a si mesmo como centro.
Esse ato primordial — de Adão e de todos em Adão — não se transmite como culpa pessoal, mas como condição de desordem estrutural, uma ferida na direção do querer.

Scotus escreve:

“Peccatum originale est habitus inclinans voluntatem ad amorem sui praeter ordinem caritatis.”
— “O pecado original é o hábito que inclina a vontade ao amor de si fora da ordem da caridade.”

Não é corrupção da natureza — pois a natureza permanece boa —, mas perturbação da harmonia.
A vontade continua livre, mas seu eixo foi deslocado: tende ao bem, mas segundo medida própria, não segundo a ordem divina.

Assim, o homem decaído não é incapaz de bem, mas incapaz de ordenar o bem a Deus sem graça.
Pode amar, mas ama o bem parcial como se fosse total.
Esse é o erro universal do homem pós-lapsário: confundir o reflexo com a fonte.

O pecado original é, portanto, uma metafísica da curvatura:
o amor, que deveria ser centrífugo (de si a Deus), tornou-se centrípeto (de Deus a si).
A liberdade não desapareceu — apenas se fechou.

Deus, contudo, não abandona o homem à sua torção.
A graça de Cristo não suprime a liberdade, mas a reorienta.
O Redentor não anula o querer humano; restitui-lhe o ordo amoris, a hierarquia do amor.

Assim, a redenção não é simples remissão jurídica, mas cura ontológica.
A graça é o remédio que endireita o amor sem quebrar a liberdade.

Para Scotus, isso é o que distingue o cristianismo da filosofia:
a filosofia pode conhecer a desordem, mas não pode curá-la;
só a graça pode reconciliar liberdade e amor.

“Gratia non destruit naturam, sed perficit et ordinat.”
— “A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa e ordena.”

O homem, mesmo decaído, conserva a capacidade de escolher; mas, sem graça, escolherá sempre o bem finito.
A restauração é o retorno da vontade à vertical do Amor — um realinhamento cósmico.

Por isso, o batismo, para Scotus, não é mero rito simbólico, mas ato real de reintegração da vontade na ordem divina.
A liberdade ferida é reerguida à dignidade de cooperação com Deus.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a privação da graça é o aspecto negativo do pecado; a inclinação da vontade, o positivo. Ambas constituem a totalidade da queda.
  2. À segunda, que a inclinação é herdada não como ato, mas como disposição da natureza; o livre-arbítrio permanece, mas enfraquecido.
  3. À terceira, que a liberdade não é destruída, porque a inclinação não é necessidade, mas propensão — ela pode ser vencida pela graça.

Conclusão:
O pecado original é a inversão do amor, o giro do coração sobre si.
A liberdade subsiste, mas perde o centro.
A redenção é a restituição do eixo da vontade — o retorno do amor a Deus.

Assim, a história humana é a lenta correção de um desvio primordial.
Cada ato de virtude é um passo na restauração da ordem perdida.
E cada ato de caridade é uma centelha do Éden reacendido.

“Homo perdit ordinem amando se supra Deum, et reparatur amando Deum supra se.”
— “O homem se perde amando-se acima de Deus, e se restaura amando Deus acima de si.”

Chegamos agora à Questão Décima Terceira — Sobre Cristo como Centro Metafísico da Criação, o coração da teologia de Duns Scotus e, ao mesmo tempo, o vértice de toda sua metafísica da liberdade e do amor.
Aqui o Doutor Sutil ergue uma das ideias mais revolucionárias da história do pensamento cristão: a Encarnação de Cristo não é consequência do pecado, mas seu propósito eterno; não é remédio, mas meta.

Segundo Scotus, mesmo se Adão não tivesse pecado, o Verbo teria se feito carne — porque o desígnio de Deus não é condicional, mas absoluto.
Cristo não é resposta ao mal; é a razão do ser.
A criação inteira existe por Ele, em vista Dele e para Ele.


Questão Décima Terceira — Sobre Cristo como Centro Metafísico da Criação

(Utrum Verbum Dei fuisset incarnatum, si homo non peccasset)

Proposição:
Pergunta-se se o Filho de Deus teria se encarnado caso o homem não tivesse pecado.

Objeções:

  1. Parece que não, pois a Escritura diz que o Filho de Deus veio “para salvar o que se havia perdido”; sem pecado, não haveria necessidade de redenção.
  2. Além disso, a Encarnação supõe a cruz, o sacrifício e a expiação; sem queda, tais coisas seriam sem propósito.
  3. Ademais, admitir a Encarnação sem o pecado é introduzir uma finalidade sem causa proporcional, contrariando a economia divina.

Respondeo:
Digo que o Filho de Deus teria se encarnado mesmo se o homem não tivesse pecado, porque a Encarnação é o ato primeiro da vontade divina, não o segundo.
A causa da Encarnação não é o pecado, mas o amor absoluto.

Deus, contemplando a Si mesmo, quis comunicar Sua bondade de modo supremo e finito.
Essa comunicação perfeita é a união hipostática — o Verbo feito carne.
Tudo o mais, incluindo a criação do universo, foi ordenado em função desse ato.

Assim, Cristo é o primeiro pensado, o primeiro amado, o primeiro queridoprimus in intentione, ultimus in executione.
Deus não criou o homem para redimir; criou-o porque quis encarnar.
O pecado foi apenas contingência, não fundamento do plano.

“Si homo non peccasset, Deus incarnatus fuisset.”
— “Ainda que o homem não tivesse pecado, Deus teria se encarnado.”

Essa tese, chamada predestinatio absoluta Christi, transforma toda a teologia.
O centro da criação não é o Éden, mas o Gólgota — e o Gólgota não como tragédia, mas como plenitude do amor.

Scotus argumenta que o amor divino é excedente, não reativo.
Deus não cria em função de necessidade; cria porque quer doar-se.
E a forma suprema dessa doação é unir a natureza criada à divina em uma só Pessoa.

A Encarnação, assim, é o ponto de intersecção entre o Infinito e o Finito, o “nexus universi”, o elo pelo qual tudo o que existe adquire sentido.
Cristo é a ratio essendi da criação — a causa exemplar, eficiente e final de todas as coisas.

Nada existe fora dessa ordem crística:

  • O mundo angélico reflete Sua luz;
  • o mundo material prepara Sua carne;
  • o homem, feito à Sua imagem, é o espaço da união.

O pecado introduziu a cruz; mas a cruz é apenas o caminho contingente de um plano eterno: a união de Deus e do homem no Amor.

Em Cristo, o universo encontra sua síntese ontológica.
Tudo o que é disperso se reúne; tudo o que é múltiplo se reconcilia.
A Encarnação é a “razão formal da criação”: o modelo em cuja imagem o ser foi moldado.

“Totum universum ordinatur ad Christum sicut ad finem supremum.”
— “Todo o universo é ordenado a Cristo como ao fim supremo.”

A consequência metafísica disso é imensa:
O centro do cosmos não é o sol, nem o homem, mas o Cordeiro.
A história não é ciclo nem acaso, mas teofania progressiva da Encarnação.
Tudo caminha para o ponto onde o Infinito se torna visível e o tempo toca a eternidade.

Por isso, o Cristo de Scotus é cósmico — não apenas redentor, mas arquétipo da criação.
O universo é a expressão do desejo divino de “ser com”, Emmanuel.
A Encarnação é o primeiro ato da liberdade divina e o modelo de toda liberdade criada: amar tornando-se.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o texto da Escritura se refere à função redentora, não à causa principal; Deus poderia encarnar-se por amor mesmo sem queda.
  2. À segunda, que o sofrimento é efeito do pecado, não da Encarnação em si.
  3. À terceira, que a Encarnação é causa final absoluta, não subordinada; não exige motivo externo, pois é autossuficiente na bondade divina.

Conclusão:
Cristo é o centro metafísico da criação, o primeiro amado e o último manifestado.
Tudo existe porque Ele foi querido.
A Encarnação é o princípio e o fim do universo — o alfa e o ômega da história ontológica.

O cosmos é, portanto, cristocêntrico, não antropocêntrico.
O homem é grande porque é o lugar da união; mas o Cristo é a união mesma.
A criação é o palco; o Cristo, o drama; o amor, o enredo eterno.

“Deus voluit Christum, et propter Christum voluit omnia.”
— “Deus quis Cristo, e por causa de Cristo quis todas as coisas.”

Entramos agora na Questão Décima Quarta — Sobre a Redenção como Superabundância do Amor Divino, que representa, dentro da estrutura do Livro Segundo, a coroação da cristologia scotista — e, em certo sentido, a resolução teológica de toda a sua metafísica do ser e da liberdade.

Se nas questões anteriores Scotus demonstrou que o Verbo Encarnado é o centro metafísico da criação, agora ele mostrará que a redenção não é simples “reparação jurídica”, mas excesso ontológico de amor.
Cristo não veio “saldar uma dívida”, como quer a teologia anseľmiana; Ele veio manifestar a generosidade sem medida do Sersuperabundantia caritatis.

Para Duns Scotus, a cruz não é o preço da salvação, mas o sacramento do amor infinito:
o gesto livre e absoluto de Deus, que preferiu sofrer a deixar de amar.


Questão Décima Quarta — Sobre a Redenção como Superabundância do Amor Divino

(Utrum passio Christi fuerit ex necessitate iustitiae, vel ex liberalitate amoris)

Proposição:
Pergunta-se se a paixão de Cristo foi necessária para satisfazer a justiça divina ou se foi obra livre da liberalidade do amor.

Objeções:

  1. Parece que foi necessária, pois a justiça divina exige reparação proporcional à ofensa infinita; logo, só a paixão infinita do Filho poderia satisfazer tal débito.
  2. Além disso, a Escritura afirma que “sem efusão de sangue não há remissão”; portanto, o sofrimento era condição indispensável.
  3. Ademais, se não fosse necessário, a cruz seria ato supérfluo, e Deus não age inutilmente.

Respondeo:
Digo que a redenção não procedeu da necessidade de justiça, mas da liberdade do amor.
Deus não estava obrigado a redimir por sofrimento, mas quis fazê-lo para manifestar a plenitude da caridade.

A diferença é sutil, mas essencial:
— Em Anselmo, a cruz é necessitas iustitiae;
— em Scotus, é liberalitas amoris.

A justiça divina, em si, poderia ter perdoado o pecado por outro meio, sem violar a ordem moral; pois Deus é Senhor de Suas próprias leis.
Mas o amor — que é mais amplo que a justiça — escolheu o caminho do dom total.

“Passio Christi non fuit necessaria ex parte Dei, sed conveniens ad demonstrandum immensitatem amoris.”
— “A paixão de Cristo não foi necessária por parte de Deus, mas conveniente para demonstrar a imensidão do amor.”

A cruz, assim, não é preço, é revelação.
Não compra o perdão; mostra o quanto o perdão é gratuito.
A redenção é o gesto supremo da liberdade divina — o Amor amando até o limite da dor, para tornar visível o invisível.

Scotus interpreta o sacrifício de Cristo como o ato de vontade mais perfeito possível numa criatura humana unida ao Verbo.
O valor infinito da cruz não está no sofrimento físico, mas na dignidade da Pessoa que sofre e na intensidade do amor com que o faz.
Por isso, o menor ato de Cristo — um só olhar de caridade — teria sido suficiente para redimir o mundo.
Mas Ele quis ir até o extremo, para que o amor fosse conhecido em sua superabundância.

“Amor non mensuratur necessitate, sed largitate.”
— “O amor não se mede pela necessidade, mas pela largueza.”

Assim, a cruz é o espelho do Ser divino: liberdade absoluta que se dá sem cálculo.
A justiça é satisfeita, sim, mas como efeito secundário da plenitude do amor.
O centro da salvação é a caridade, não a contabilidade.

Duns Scotus enxerga nisso uma inversão da lógica humana:
a salvação não é troca, é comunhão;
não é compensação, é transfiguração.
O sangue de Cristo não é moeda, mas luz: penetra o real e o converte em símbolo da doação eterna.

O mal, em face dessa visão, perde o poder de determinar a história.
Não é o pecado que explica a cruz, mas a cruz que explica o pecado — revelando o quanto o amor é maior que ele.
Deus não respondeu ao mal; Ele respondeu-se a Si mesmo com amor maior.

Assim, a satisfactio scotista é mais que moral — é ontológica:
a cruz restaura o ser no amor, reorienta a vontade à caridade e devolve ao cosmos o seu eixo.

O homem, ao ser redimido, não é apenas perdoado — é reordenado: o amor em si torna-se novamente princípio e fim.
A graça não elimina a liberdade, mas a eleva: agora a vontade humana, unida à divina, pode amar com o mesmo amor com que é amada.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a justiça é satisfeita pela caridade, não pela dor; o valor da cruz é formal, não quantitativo.
  2. À segunda, que a efusão de sangue é sinal e sacramento, não condição ontológica da remissão.
  3. À terceira, que a cruz não é ato supérfluo, mas ato supremo de manifestação — o amor revelado em forma sensível.

Conclusão:
A redenção é o excesso do amor divino sobre toda medida humana.
Não é dívida paga, mas graça transbordante; não é compensação, mas comunhão.
O Cristo crucificado é o Verbo encarnado levado à sua máxima expressão: o Amor tornado visível.

“Crux est speculum caritatis.”
— “A cruz é o espelho da caridade.”

Na cruz, a liberdade divina toca o limite do ser criado e o converte em pura oferenda.
O cosmos, reconciliado, encontra aí seu centro real — o ponto onde o amor se fez matéria e a matéria se fez amor.

Agora chegamos à Questão Décima Quinta — Sobre a Glória de Cristo e a Deificação da Criação, que encerra o Livro Segundo com o tom de uma síntese cósmico-mística: o universo inteiro, segundo Duns Scotus, caminha para a gloria Dei, isto é, para a participação real na vida divina.
O Doutor Sutil mostra que, se Cristo é o centro metafísico da criação e a redenção é superabundância de amor, então a finalidade última de tudo o que existe não é a mera restauração da ordem, mas a transfiguração total do ser.

Scotus chama essa culminância de deificatio — deificação — não no sentido panteísta de dissolução do finito no infinito, mas como participação pessoal no amor trinitário.
A criatura não se torna Deus por essência, mas por comunhão.
A graça eleva sem destruir; a glória consuma sem absorver.


Questão Décima Quinta — Sobre a Glória de Cristo e a Deificação da Criação

(Utrum tota creatura ordinata sit ad participationem gloriae Christi)

Proposição:
Pergunta-se se toda a criação está ordenada a participar da glória de Cristo, e de que modo essa participação se realiza sem anular a distinção entre Criador e criatura.

Objeções:

  1. Parece que não, pois a glória é recompensa da graça; mas nem todos os seres possuem alma racional ou graça santificante.
  2. Além disso, a glória pertence à ordem sobrenatural; a criação material, sujeita à corrupção, não pode ser deificada.
  3. Ademais, se tudo participa da glória, a distinção entre natureza e graça seria suprimida.

Respondeo:
Digo que toda a criação é ordenada, de modo diverso e analógico, à glória de Cristo.
Pois o plano divino é uno: “omnia propter Christum et in Christo” — “todas as coisas são por Cristo e em Cristo.”

A glória de Cristo é o termo final da Encarnação.
Não é apenas a bem-aventurança da alma humana do Redentor, mas a manifestação universal da união entre o finito e o infinito.
Na glória de Cristo, o universo encontra sua consumação: tudo o que foi criado é reconduzido, purificado e iluminado pelo mesmo Amor que o gerou.

“Gloria Christi est refulgentia amoris per universum diffusae.”
— “A glória de Cristo é o refulgir do amor difundido por todo o universo.”

Assim, há três modos de participação na glória:

  1. Por essência e união, no Cristo — único em quem o divino e o humano se unem substancialmente.
  2. Por graça e adoção, nos santos — que participam da vida trinitária pela caridade.
  3. Por ordenação e reflexo, na criação material — que, sem consciência, espelha a beleza de Deus e será transfigurada no fim dos tempos.

O homem, por ser microcosmo, é o mediador dessa ascensão universal: nele, a matéria e o espírito se unem; e por ele, o mundo visível é levado ao invisível.
A glorificação humana é também glorificação do cosmos.
Quando a vontade humana é plenamente ordenada ao Amor, todo o universo é harmonizado através dela.

Scotus escreve que “a criação inteira é a veste de Cristo”: o cosmos é a forma externa da Encarnação.
Na consumação final, essa veste será luminosa, isto é, penetrada pela glória que procede do Cordeiro.

“Terra et coelum novum non erunt alia substantia, sed claritas prioris.”
— “O novo céu e a nova terra não serão outra substância, mas a claridade da primeira.”

A deificação é, portanto, o processo pelo qual o amor divino retorna sobre a criação e a converte em símbolo transparente de si mesmo.
O tempo é o caminho dessa luz; a história, o movimento da criação em direção à sua própria divinização.

Nada do que foi amado por Deus se perde:
o menor ser, a pedra, a flor, o astro, participa, cada qual à sua medida, da vitória da Luz.
O mal não tem substância; apenas sombra.
Na glória, até as sombras tornam-se parte do desenho.

Scotus vê nessa consumação uma harmonia trinitária:
— O Pai recolhe tudo em Si,
— o Filho apresenta tudo redimido,
— o Espírito une tudo em amor.

A criação, então, não será abolida, mas transfigurada em liturgia.
Cada ser, espiritual ou material, será palavra pronunciada na linguagem do Amor absoluto.

A glória de Cristo é, pois, o fim do cosmos no sentido mais literal:
é o ponto onde o universo se torna consciência de Deus, e Deus se torna presença total em todas as coisas.
A diferença permanece, mas é diferença luminosa — distinção dentro da comunhão.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que cada ente participa conforme sua capacidade: os racionais pela graça, os irracionais pela ordem e beleza.
  2. À segunda, que a matéria é digna de glória porque foi assumida pelo Verbo; o corpo de Cristo é penhor da transfiguração cósmica.
  3. À terceira, que a graça não destrói a natureza, mas a cumpre; a distinção permanece, mas elevada.

Conclusão:
Toda a criação é ordenada à glória de Cristo.
Nada é exterior à irradiação da Encarnação.
O universo, na plenitude dos tempos, será corpo simbólico do Amor.

“In Christo omnia consummantur, quia in ipso omnia amantur.”
— “Em Cristo tudo se consuma, porque em Cristo tudo é amado.”

Assim se fecha o círculo:
do poder absoluto de Deus, passando pela ordem da criação, pela queda, pela redenção, até a glória — tudo converge num único movimento de amor.
O ser começa no Amor livre e termina no Amor glorioso.

Antes de adentrarmos o Livro Terceiro – De Christo et Ordine Gratiae (“Sobre Cristo e a Ordem da Graça”), é bom notar que chegamos ao ponto de virada da Ordinatio.
Os dois primeiros livros tratam da ordem do ser e da criação:
— o poder e o Uno divinos,
— a individuação,
— a hierarquia angélica,
— o homem como microcosmo,
— a Encarnação como centro e a glória como fim.

A partir daqui, Scotus desloca o foco da metafísica para a economia da graça — ou seja, o modo como o amor divino, manifestado em Cristo, se comunica às criaturas racionais e as transforma de dentro, pela infusão da caridade e pela vida sacramental.

O Livro Terceiro é, portanto, o tratado da graça como estrutura ontológica da salvação, e não apenas como dom moral.
A graça, em Scotus, não é mero favor externo: é elevação real da alma à ordem divina, um novo modo de ser.


Livro Terceiro — Sobre Cristo e a Ordem da Graça

(Liber Tertius Ordinis: De Christo et Ordine Gratiae)

ÍNDICE GERAL

  1. Questão Primeira — Sobre a Natureza da Graça Habitual e sua Distinção do Livre-Arbítrio.
  2. Questão Segunda — Sobre a Graça Atual e o Auxílio Divino na Ação Humana.
  3. Questão Terceira — Sobre os Méritos de Cristo e sua Aplicação aos Homens.
  4. Questão Quarta — Sobre a Predestinação e a Liberdade do Amor Divino.
  5. Questão Quinta — Sobre os Sacramentos como Instrumentos da Graça.
  6. Questão Sexta — Sobre o Batismo e a Restauração do Homem.
  7. Questão Sétima — Sobre a Eucaristia e a Presença Real.
  8. Questão Oitava — Sobre a Penitência e a Reintegração da Vontade.
  9. Questão Nona — Sobre a Ordem e a Comunicação do Poder Espiritual.
  10. Questão Décima — Sobre a Graça da Virgem Maria e a Imaculada Conceição.
  11. Questão Décima Primeira — Sobre a Justificação e a Cooperação da Liberdade.
  12. Questão Décima Segunda — Sobre a Caridade como Forma de Todas as Virtudes.
  13. Questão Décima Terceira — Sobre a Esperança e a Transformação do Desejo.
  14. Questão Décima Quarta — Sobre a Glória Final e a Visão Beatífica.

Entramos na Questão Primeira do Livro Terceiro — Sobre a Natureza da Graça Habitual e sua Distinção do Livre-Arbítrio, ponto decisivo da Ordinatio, onde Duns Scotus formula uma das teses mais finas e profundas de toda a teologia medieval: a graça como forma sobrenatural da alma, e não como mera influência extrínseca.

Aqui, ele unifica as dimensões da liberdade e da participação divina — mostrando que o homem não é movido por Deus de fora, mas elevado por dentro, em seu próprio ser espiritual, para poder amar com o mesmo amor com que Deus ama.
A graça, para Scotus, é a forma formans caritatem — a forma interior que gera o amor como ato sobrenatural.


Questão Primeira — Sobre a Natureza da Graça Habitual e sua Distinção do Livre-Arbítrio

(Utrum gratia habitualis sit accidens animae, vel forma supernaturalis essentialiter elevans voluntatem)

Proposição:
Pergunta-se se a graça habitual é simples acidente da alma, como uma qualidade moral ou disposição, ou se é forma essencial que a eleva ontologicamente à ordem divina.

Objeções:

  1. Parece que é acidente, pois nenhuma forma criada pode mudar a essência da alma; a graça seria, portanto, apenas adorno moral.
  2. Além disso, a liberdade humana bastaria para o mérito, se orientada corretamente; a graça seria apenas auxílio.
  3. Ademais, se a graça fosse forma essencial, haveria duas naturezas espirituais no homem, o que é impossível.

Respondeo:
Digo que a graça habitual é forma sobrenatural infundida na alma, pela qual ela é elevada, não mudada de essência, mas introduzida em novo modo de ser.
É participação real, criada, no Espírito Santo.

O homem natural possui vontade livre (voluntas naturalis), capaz de escolher o bem moral; mas não pode, por si, amar o Bem infinito.
A graça dá à vontade uma capacidade nova, que Scotus chama potentia obedientialis supernaturalis — potência obediencial para o amor divino.
Ela é como um novo “órgão espiritual”, criado para receber a luz increada.

“Gratia non est ornamentum, sed lumen quod informat voluntatem.”
— “A graça não é ornamento, mas luz que informa a vontade.”

A diferença entre o livre-arbítrio e a graça é, pois, de ordem:
— O livre-arbítrio pertence à natureza;
— a graça, à participação.
O primeiro é a raiz da liberdade; a segunda, o fruto divino dessa liberdade elevada.

O livre-arbítrio pode agir no plano moral e racional, mas só a graça pode fazê-lo agir em Deus.
O homem sem graça pode amar o bem, mas não pode amar o próprio Bem subsistente como fim último.
A graça não destrói a liberdade, mas a superativa — dá-lhe um campo infinito de operação.

Scotus distingue três níveis do querer humano:

  1. Voluntas naturalis — tendência ao bem em geral.
  2. Voluntas rationalis — escolha deliberada entre bens finitos.
  3. Voluntas gratiosa — amor sobrenatural, movido pela graça, que tende a Deus por Deus mesmo.

Esse terceiro nível é o que a graça habitual estabelece.
Ela é uma qualidade permanente, mas viva, que torna a alma amável a Deus (grata Deo).
Por isso se chama “graça” — porque faz do homem alguém capaz de agradar a Deus.

“Gratia est participatio divini amoris in ipsa radice voluntatis.”
— “A graça é participação do amor divino na própria raiz da vontade.”

Não se trata, portanto, de simples assistência, mas de nova ontologia: a alma, pela graça, entra numa esfera superior do ser.
Ela permanece humana, mas é habitada por um modo divino de existir — é “deiformada”.

Assim, o livre-arbítrio e a graça não se opõem; estão na relação de natureza e forma.
O livre-arbítrio é o substrato; a graça, o selo luminoso que o faz operar em dimensão divina.
Por isso Scotus insiste: o mérito nasce da cooperação livre com a graça, não da graça sozinha.
Deus eleva o homem, mas o homem deve consentir.

A graça é dom absoluto e, ao mesmo tempo, chamada à liberdade:
ela não força, mas convida; não substitui, mas plenifica.
A vontade, iluminada, ama mais livremente porque ama em Deus.

O estado de graça é, assim, um modo sobrenatural de liberdade.
O homem não se torna autômato de Deus, mas colaborador consciente — “amigo de Deus”, como diz o Evangelho.
A comunhão substitui a coação.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a graça não muda a essência da alma, mas seu modo de existir; é forma acidental no ser, mas essencial na operação.
  2. À segunda, que o livre-arbítrio é suficiente para o bem natural, não para o divino; a graça o eleva, não o anula.
  3. À terceira, que a unidade da alma não é violada, pois a forma sobrenatural é como luz em um mesmo cristal — não outra substância, mas claridade nova.

Conclusão:
A graça habitual é a presença participada de Deus na alma, a forma sobrenatural que torna o homem capaz de amar o infinito sem perder o finito.
É o selo da eleição, a centelha da divinização, o eixo do novo ser.

“Gratia est inchoatio gloriae.”
— “A graça é o início da glória.”

Assim, o livre-arbítrio é a potência da liberdade;
a graça, a sua luz;
e a caridade, o seu fogo.

Entramos agora na Questão Segunda — Sobre a Graça Atual e o Auxílio Divino na Ação Humana, na qual Duns Scotus aprofunda a estrutura dinâmica do agir sobrenatural.
Depois de demonstrar que a gratia habitualis é forma estável e permanente na alma, ele passa agora a investigar o movimento: como essa graça interior se traduz em ato livre, sem destruir a liberdade criada.

Aqui Scotus distancia-se de duas tendências dominantes de sua época:
— do necessitarismo tomista, que via o influxo divino como motor eficiente inevitável;
— e do molinismo incipiente, que o reduzia a mera previsão e permissão.
Entre ambos, o Doutor Sutil formula a concepção mais refinada da ação divina:
Deus move a vontade sem determiná-la, ilumina sem forçar, coopera sem substituir.


Questão Segunda — Sobre a Graça Atual e o Auxílio Divino na Ação Humana

(Utrum gratia actualis moveat voluntatem necessario, an per modum illuminationis et consensionis libere receptae)

Proposição:
Pergunta-se se a graça atual — isto é, o auxílio divino que precede e acompanha cada ato bom — move a vontade de modo necessário ou de modo livremente consentido.

Objeções:

  1. Parece que a graça move necessariamente, pois o primeiro motor não pode falhar; se dependesse do consentimento, Deus não seria causa infalível do bem.
  2. Além disso, toda causa eficiente imprime seu efeito; se a graça é causa do ato bom, o ato deveria seguir-se necessariamente.
  3. Ademais, se a graça não determina a vontade, o mérito humano seria causa parcial da salvação, o que contraria a gratuidade do dom.

Respondeo:
Digo que a graça atual move a vontade, não por necessidade, mas por persuasão amorosa.
Ela é impulso interior, luz comunicada à alma, que inclina, mas não obriga.
O homem permanece livre, e é precisamente essa liberdade que torna possível o mérito e o amor.

Scotus distingue dois modos de causalidade divina:

  1. Causa generalis et conservans, pela qual Deus sustenta todos os atos de ser — essa é necessária e universal;
  2. Causa specialis et movens ad bonum supernaturalem, pela qual Deus oferece impulso de graça — essa é livre, pessoal e cooperativa.

Deus não age sobre o homem como um motor sobre a pedra, mas como mestre interior que ensina, inspira, convida.
A graça não é coação; é iluminação que desperta a liberdade.

“Gratia trahit voluntatem non sicut catena, sed sicut amor.”
— “A graça atrai a vontade, não como corrente, mas como amor.”

O movimento da graça é como o da luz sobre o cristal: a luz está presente, mas o brilho só aparece se o cristal consentir em recebê-la.
Assim, Deus oferece continuamente Sua moção; a vontade responde conforme sua disposição.

Scotus recusa tanto o determinismo quanto o pelagianismo.
A graça é eficaz, mas sua eficácia se dá ex parte Dei et hominis simul — da parte de Deus e do homem juntos.
Ela não destrói o mérito, mas o torna possível.
O ato bom é, pois, obra de Deus em nós, mas não sem nós.

“Deus operatur in nobis, non ut in lapide, sed ut in amico.”
— “Deus opera em nós, não como em uma pedra, mas como em um amigo.”

A graça atual é sempre movimento trinitário:
— o Pai inspira,
— o Filho exemplifica,
— o Espírito inflama.
Cada ato de virtude é, de certo modo, prolongamento da Encarnação: Deus agindo no humano por meio do humano.

Essa visão introduz uma noção nova de cooperação (co-operatio):
Deus não suprime a liberdade — a plenifica;
o homem não cria o bem — o consente e o faz existir na história.

A graça atua, portanto, de modo intencional e interior:
— precede o ato como inspiratio;
— acompanha o ato como consolatio;
— completa o ato como consummatio.

Mas em cada etapa, o homem é livre para acolher ou resistir.
A recusa da graça é possível e real; e, paradoxalmente, é sinal da liberdade que ela sustenta.
Deus quis que Seu amor pudesse ser rejeitado — porque só o amor livre é divino.

Por isso, Scotus vê a oração como expressão natural dessa economia:
a súplica é o modo humano de alinhar o próprio querer à graça oferecida.
A oração não muda Deus; muda a disposição da alma para recebê-Lo.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a graça é infalível não por necessidade física, mas por fidelidade moral de Deus: Ele não falha em oferecer; nós, sim, em acolher.
  2. À segunda, que a causa divina não imprime o efeito como força, mas como fim amado; a vontade move-se porque é atraída.
  3. À terceira, que o mérito humano não é causa, mas condição: Deus coroa Seus próprios dons na liberdade do homem.

Conclusão:
A graça atual é o toque do amor divino na vontade livre.
Ela move, mas não obriga; ilumina, mas não cega.
O ato bom é fruto da aliança entre o querer humano e o querer divino — dois amores que se encontram.

“Gratia est Deus inclinans se ad hominem, et homo inclinans se ad Deum.”
— “A graça é Deus inclinando-Se ao homem, e o homem inclinando-se a Deus.”

A ação sobrenatural, assim, é diálogo, não domínio;
harmonia, não substituição.
O amor age, e o ser consente — e nesse consentimento nasce a santidade.

Entramos na Questão Terceira — Sobre os Méritos de Cristo e sua Aplicação aos Homens, em que Duns Scotus, de modo admirável, une teologia, metafísica e soteriologia em um mesmo gesto intelectual.
Aqui, ele responde à pergunta decisiva: como os atos humanos de Cristo podem ter valor infinito?
E, a partir disso, explica como os méritos da humanidade do Verbo — atos temporais, realizados no tempo e no sofrimento — tornam-se fonte eterna e universal de graça para todos os seres humanos.

Scotus chama isso de a communicatio meritorum Christi — a comunicação dos méritos de Cristo —, não como mera imputação moral, mas como participação ontológica: o amor infinito, operante no humano de Cristo, prolonga-se pela graça em cada alma regenerada.


Questão Terceira — Sobre os Méritos de Cristo e sua Aplicação aos Homens

(Utrum merita Christi sint infinita, et quomodo communicentur fidelibus)

Proposição:
Pergunta-se se os méritos de Cristo são infinitos em valor, e de que modo são aplicados aos homens através da graça.

Objeções:

  1. Parece que não podem ser infinitos, pois toda ação criada, mesmo santíssima, é finita por natureza; o finito não produz infinito.
  2. Além disso, o mérito pressupõe relação entre ato e recompensa; se Cristo é Deus, não pode “merecer” nada, pois nada lhe falta.
  3. Ademais, a comunicação dos méritos implicaria transferência de atos pessoais, o que é impossível segundo a justiça natural.

Respondeo:
Digo que os méritos de Cristo são infinitos por razão da pessoa que opera neles, não por grandeza do ato enquanto humano.
Pois embora o ato seja humano, a Pessoa que o realiza é divina.

“Valor actus Christi pendet ex dignitate personae agentis.”
— “O valor do ato de Cristo depende da dignidade da pessoa que age.”

Assim, cada gesto de Cristo — desde o mais humilde até o mais sublime — participa de uma eficácia sem limite, porque é ato da Pessoa do Verbo.
O finito, unido substancialmente ao Infinito, adquire valor infinito sem deixar de ser humano.
Essa é a communicatio idiomatum: o que é feito no tempo pertence ao Eterno.

Cristo, portanto, merece como homem, mas com o poder do Deus-homem.
Seus méritos são verdadeiramente teândricos — divino-humanos.
Por isso, um só ato de caridade de Cristo teria sido suficiente para redimir o mundo; mas Ele quis multiplicá-los, para que o amor se mostrasse em abundância.

“Christus non solum satisfecit, sed superabundavit.”
— “Cristo não apenas satisfez, mas superabundou.”

A comunicação desses méritos não é transferência jurídica, mas comunhão vital.
O Espírito Santo aplica à alma os frutos da humanidade de Cristo, unindo-a à Sua caridade.
Assim, o mérito de Cristo torna-se causa instrumental da graça em nós.

Scotus distingue duas dimensões na comunicação dos méritos:

  1. Objetiva, pela qual Cristo, Cabeça da humanidade, conquista o tesouro infinito da redenção;
  2. Subjetiva, pela qual esse tesouro é aplicado a cada alma por meio dos sacramentos e da fé operante pela caridade.

Na dimensão objetiva, a obra de Cristo é universal e suficiente para todos;
na subjetiva, é efetiva para os que a recebem pela graça.
Deus, sendo amor livre, quis que Sua abundância fosse canalizada pela liberdade humana — o mérito se oferece, mas deve ser acolhido.

A humanidade de Cristo é, assim, o instrumento unido ao Verbo:
Ela é o canal físico e real da ação divina no mundo.
Por isso, cada sacramento é prolongamento da humanidade de Cristo — um toque visível do Infinito no tempo.

Scotus rejeita qualquer visão puramente legalista da redenção:
não se trata de imputação externa, mas de infusão interior.
Os méritos de Cristo não se “atribuem” — se comunicam.
A graça não é crédito, é contato.

“Meritum Christi est amor effusus in corpus mysticum.”
— “O mérito de Cristo é o amor derramado sobre o corpo místico.”

Assim, a Igreja — corpo de Cristo — é o lugar dessa comunicação contínua.
Cada ato de amor, cada sacramento, cada oração feita em Cristo é participação viva do mesmo movimento redentor.
O Cristo histórico torna-se o Cristo místico; o ato do Verbo continua no tempo através dos membros do Seu corpo.

A lógica da redenção, portanto, é lógica de superabundância:
Deus não dá apenas o necessário; dá o próprio dom como medida.
A graça é infinita porque sua fonte é Pessoa infinita.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o ato é finito em ser, mas infinito em valor por causa da Pessoa divina.
  2. À segunda, que Cristo, enquanto homem, pôde merecer não para Si, mas para nós; Sua liberdade humana foi instrumento do amor trinitário.
  3. À terceira, que a comunicação dos méritos é por união mística, não por transferência; o Espírito Santo torna o ato de Cristo presente em cada alma.

Conclusão:
Os méritos de Cristo são infinitos, porque o amor infinito agiu neles através da humanidade do Verbo.
E essa infinidade se comunica, pela graça, a todo aquele que se abre ao Espírito.

A redenção não é contabilidade de atos, mas comunhão de caridade.
A cruz é fonte; os sacramentos, rios; a alma, vaso.
Tudo nasce do mesmo amor que, unindo o divino ao humano, uniu o universo ao seu princípio.

“Merita Christi sunt thesaurus inexhaustus gratiae.”
— “Os méritos de Cristo são o tesouro inesgotável da graça.”

Entramos agora na Questão Quarta — Sobre a Predestinação e a Liberdade do Amor Divino, que é talvez a mais elevada e sutil do Livro Terceiro — o vértice teológico do pensamento de Duns Scotus.
Aqui ele enfrenta a questão que atormentou séculos de reflexão cristã: se Deus é onisciente e onipotente, como pode haver liberdade humana e verdadeira contingência no mundo?
A resposta de Scotus é uma das mais belas sínteses entre metafísica e mística: a predestinação é o modo divino de amar — um ato livre e eterno, anterior a toda previsão de mérito e a toda necessidade.

Deus não escolhe porque prevê; Ele prevê porque ama.
Seu conhecimento não é determinismo, mas presença ativa.
A predestinação é, pois, a eternidade do amor aplicada à história.


Questão Quarta — Sobre a Predestinação e a Liberdade do Amor Divino

(Utrum praedestinatio sequatur praevisionem meritorum, an sit pura ordinatio amoris aeterni)

Proposição:
Pergunta-se se a predestinação dos santos se funda na previsão de seus méritos ou se é ato absolutamente livre e anterior da vontade divina.

Objeções:

  1. Parece que depende da previsão dos méritos, pois a justiça exige que só os dignos sejam escolhidos; predestinar sem prever méritos seria arbitrariedade.
  2. Além disso, a Escritura afirma que Deus “retribuirá a cada um segundo suas obras”; logo, a eleição deve ser consequência do mérito.
  3. Ademais, se a predestinação é anterior a todo mérito, a liberdade humana se tornaria ilusória, e a graça, fatalidade.

Respondeo:
Digo que a predestinação é pura ordenação do amor eterno de Deus, absolutamente livre, sem causa fora Dele.
Deus não ama porque vê o bem em nós; há bem em nós porque Ele nos ama.

“Non quia sumus boni Deus nos amat, sed quia amat nos, boni efficimur.”
— “Não é porque somos bons que Deus nos ama, mas porque nos ama é que nos tornamos bons.”

A predestinação é o nome teológico dessa prioridade do amor.
Ela é o ato eterno pelo qual Deus ordena livremente algumas criaturas a participar da Sua glória, não por mérito, mas por eleição amorosa.
Essa eleição é gratuita, mas nunca arbitrária, pois a liberdade divina é racional e sábia, não cega.

Scotus distingue:
Praedestinatio absoluta, ato da vontade divina pela qual alguém é escolhido para a graça e glória;
Merita praevisa, efeitos temporais dessa graça, não causas.
O mérito é sinal da predestinação, não fundamento dela.

O amor divino é causa primeira e última de tudo o que é bom.
A liberdade humana é instrumento secundário — cooperante, não determinante.
Deus não força a vontade, mas move-a amando.
E esse movimento é tão delicado que o homem, ao consentir, o faz livremente — e nesse consentimento cumpre a eleição eterna.

Assim, o conhecimento divino não “prevê” atos futuros no tempo como espectador, mas os contém como presente eterno.
O que para nós é “antes” e “depois”, em Deus é simultâneo: amor que conhece e conhecimento que ama.

“Scientia Dei est amor ordinatus.”
— “A ciência de Deus é amor ordenado.”

Scotus aqui realiza uma revolução silenciosa:
a predestinação não é uma distribuição jurídica, mas ordem de caridade.
Cada alma é um pensamento amado em Deus desde sempre.
E esse amor é tão livre que inclui a liberdade do amado:
Deus cria o homem para escolher, e sabe eternamente o que ele escolherá — não porque o obriga, mas porque o contém.

Deus, portanto, não “antecipa” o tempo: Ele é o tempo visto de dentro.
A história é a encarnação progressiva da vontade amorosa de Deus.

O mistério da eleição, nessa luz, não é o de um decreto secreto, mas o de um chamado pessoal.
A predestinação não é lista, mas relação.
Não é “quem”, é “como”: Deus ama de modo diferente cada alma, e cada uma responde a esse amor com forma singular de graça.

“Praedestinatio est vocatio amoris ad certum modum participationis.”
— “A predestinação é o chamado do amor a um certo modo de participação.”

O mérito humano, por sua vez, é cooperação com esse amor.
É o amor respondendo ao Amor.
O mérito não causa a eleição; é a eleição que floresce em ato livre.

Assim, a liberdade humana não é anulada — é exaltada.
Porque só um ser livre pode amar livremente, e Deus não quer servos forçados, mas amigos conscientes.
A predestinação é o plano divino da amizade eterna.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a justiça divina é consequência do amor ordenado, não sua causa; Deus é justo porque ama ordenadamente, não porque calcula.
  2. À segunda, que as obras são critério da eleição manifesta, não da eleição eterna; revelam, mas não fundam.
  3. À terceira, que a liberdade humana é efeito da predestinação, não vítima dela; Deus quis criaturas livres para que o amor fosse verdadeiro.

Conclusão:
A predestinação é o ato eterno e livre do amor divino que, sem previsão de méritos, escolhe e ordena as criaturas à glória.
É o mistério da liberdade divina que cria a liberdade humana, da eternidade que gera o tempo, do Amor que se escolhe amando.

“Amor Dei est primus motor sine causa, qui causas constituit.”
— “O amor de Deus é o primeiro motor sem causa, que estabelece todas as causas.”

Assim, o universo inteiro é predestinação em movimento — amor que se expande até o limite da criação e volta, transfigurado, ao seu princípio.
Predestinar é o modo eterno de Deus dizer: “Tu és meu.”

Agora ingressamos na Questão Quinta — Sobre os Sacramentos como Instrumentos da Graça, momento em que Duns Scotus leva à maturidade toda a sua teologia do nexus universi: a ligação entre o Infinito e o finito através da Encarnação.

Nos livros anteriores, ele mostrou que o Verbo Encarnado é o centro metafísico da criação e que a graça é a forma sobrenatural da alma.
Aqui, ele avança para o aspecto sacramental — o modo visível e histórico pelo qual a graça é comunicada.
Os sacramentos são, portanto, a prolongatio Incarnationis: prolongamentos sensíveis da presença de Cristo no mundo.


Questão Quinta — Sobre os Sacramentos como Instrumentos da Graça

(Utrum sacramenta sint causae instrumentales gratiae, et quomodo operentur in anima)

Proposição:
Pergunta-se se os sacramentos da Nova Lei são causas instrumentais da graça e de que modo operam na alma — se por contato físico, por significação simbólica ou por ação espiritual.

Objeções:

  1. Parece que não são causas, mas apenas sinais, pois só Deus pode infundir a graça; as criaturas não têm poder sobre o sobrenatural.
  2. Além disso, a graça é interior e invisível; logo, não pode depender de elementos externos e materiais.
  3. Ademais, se os sacramentos operam “ex opere operato”, sua eficácia independeria da fé e da disposição humana, o que seria injusto.

Respondeo:
Digo que os sacramentos são instrumentos reais da graça, não por força própria, mas por virtude derivada do Cristo encarnado, cuja humanidade é o instrumento principal de Deus.

“Humanitas Christi est instrumentum coniunctum divinitatis; sacramenta sunt instrumenta separata.”
— “A humanidade de Cristo é o instrumento unido da divindade; os sacramentos, instrumentos separados.”

Assim como a mão move o bastão e este toca o objeto, a divindade move a humanidade de Cristo, e esta comunica a graça através dos sinais sacramentais.
A virtude divina age nos sacramentos per modum instrumenti, não per modum causae principalis: eles não criam a graça, mas transmitem-na eficazmente.

O milagre da Encarnação se prolonga, portanto, no milagre sacramental.
Deus, que se fez visível no Verbo, continua a tocar o homem através do visível — água, pão, óleo, palavra.
A matéria é assumida como veículo do Espírito.

“Sicut Verbum caro factum est, ita Spiritus gratia fit sensibilis.”
— “Assim como o Verbo se fez carne, o Espírito torna-se sensível pela graça.”

Os sacramentos operam ex opere operato, isto é, pela própria realização do sinal, não porque o homem mereça, mas porque Cristo quis vincular Sua ação a eles.
No entanto, Scotus acrescenta uma nuance: a eficácia não é mágica nem automática; requer a disposição interior da fé — ex opere operantis.
O sacramento confere a graça objetivamente, mas ela só frutifica subjetivamente quando há consentimento livre.

Aqui aparece a elegância da síntese scotista:
a graça é dom divino absoluto, mas o sacramento é seu canal condicional, exigindo abertura da vontade.
O ato de Deus e o ato do homem permanecem coordenados.

Cada sacramento é, assim, uma encarnação particular do Verbo.
O Batismo reproduz o nascimento espiritual;
a Eucaristia, a presença real;
a Penitência, a reconciliação contínua;
a Ordem, a extensão da autoridade de Cristo;
e o Matrimônio, a imagem da união entre Cristo e a Igreja.

Os sacramentos são o alfabeto divino com que Deus escreve no corpo da criação a linguagem do Espírito.
São palavras visíveis do Amor invisível.

Scotus insiste que, por causa da Encarnação, a matéria não é inimiga da graça, mas sua parceira.
O mundo sensível torna-se veículo do espiritual.
A redenção, portanto, não anula a carne — santifica-a.

“Materiam elegit Deus, ut caritas videretur.”
— “Deus escolheu a matéria para que o amor pudesse ser visto.”

Em termos metafísicos, o sacramento é causa instrumentalis dispositiva:
prepara a alma, abre o ser, e transmite uma forma que só Deus infunde.
A matéria toca o corpo, o signo toca a mente, e Deus toca o coração.

Assim, o sacramento é lugar de convergência das três ordens do real:
— o físico (elemento material),
— o psíquico (intenção e fé),
— o espiritual (graça infundida).

Na confluência desses três níveis, o Infinito se comunica com o finito — a estrutura da criação é restituída à sua harmonia original.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que só Deus é causa principal, mas quis associar instrumentos criados à Sua ação, para que o homem participasse também exteriormente da salvação.
  2. À segunda, que o sensível é meio, não obstáculo; a matéria é símbolo eficaz, não barreira.
  3. À terceira, que o sacramento confere graça independentemente do ministro indigno, mas não sem a fé do recebedor.

Conclusão:
Os sacramentos são extensões históricas da Encarnação — instrumentos reais da graça que unem o visível ao invisível, o tempo à eternidade.
Neles, o amor divino assume a forma da linguagem humana.

“Sacramenta sunt manus Christi tangentes mundum.”
— “Os sacramentos são as mãos de Cristo que tocam o mundo.”

A economia da salvação, assim, é sacramental: o Espírito age na matéria, o eterno habita o instante, e o homem é salvo não fugindo do corpo, mas deixando que o corpo se torne transparência do divino.

Entramos agora na Questão Sexta — Sobre o Batismo e a Restauração do Homem, núcleo do pensamento sacramental de Duns Scotus.
Aqui, o Doutor Sutil aprofunda o que já afirmara na questão anterior: se os sacramentos são os instrumentos vivos da graça, o Batismo é o princípio de todos eles — o portal pelo qual a alma é introduzida na nova ordem do ser.

Mas Scotus vai além da concepção meramente moral ou jurídica: o Batismo, para ele, não é só o perdão do pecado original, é a recriação ontológica do homem — um novo nascimento real, no qual o ser humano passa da ordem da natureza para a ordem da graça.
Trata-se, pois, de uma restauração metafísica: o Batismo refaz a ligação do homem com o Cristo, que é o eixo da criação, reordenando sua liberdade e sua vontade à caridade.


Questão Sexta — Sobre o Batismo e a Restauração do Homem

(Utrum Baptismus sit vera regeneratio spiritualis et restitutio hominis ad ordinem gratiae)

Proposição:
Pergunta-se se o Batismo é verdadeira regeneração espiritual e de que modo ele restaura o homem à ordem da graça, já que o pecado original parece ser mais que simples mancha moral.

Objeções:

  1. Parece que o Batismo não pode regenerar ontologicamente, pois a alma humana já é espiritual por natureza; logo, ele só pode operar perdão moral.
  2. Além disso, se a graça fosse infundida ex opere operato, o ato humano da fé seria dispensável, o que é absurdo.
  3. Ademais, a regeneração implica mudança substancial, e isso destruiria a identidade pessoal do batizado.

Respondeo:
Digo que o Batismo é verdadeira regeneração espiritual, não por mutação de substância, mas por transfiguração de ordem.
O homem natural, ferido pelo pecado original, vive na ordem da natureza decaída; o batizado é elevado à ordem da graça, onde a vida divina se comunica à alma como novo princípio de ser.

“Baptismus non mutat essentiam, sed constituit novum modum existendi.”
— “O Batismo não muda a essência, mas estabelece um novo modo de existir.”

O pecado original, segundo Scotus, não é mera culpa jurídica herdada, mas desordem ontológica: uma ruptura na harmonia entre a vontade humana e o amor divino.
O Batismo restaura essa ordem pela infusão da gratia habitualis — o mesmo dom que ele já descrevera como forma sobrenatural da alma.

Assim, o Batismo é o ato criador dentro da criação.
Deus, que criou o homem no princípio, recria-o agora em Cristo.
Por isso, São Paulo diz: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura.”

A água é o símbolo e o instrumento dessa passagem.
Ela lava porque purifica o ser em sua profundidade:
não apaga apenas a memória do pecado, mas apaga o próprio modo de existência que estava desordenado.
O homem nasce de novo — não biologicamente, mas ontologicamente.

“Nascimur ad vitam naturalem ex carne, ad vitam supernaturalem ex aqua et Spiritu.”
— “Nascemos para a vida natural da carne, e para a vida sobrenatural da água e do Espírito.”

Essa regeneração é obra inteiramente trinitária:
— o Pai, princípio da vida, cria novamente;
— o Filho, fonte da graça, comunica Seus méritos;
— o Espírito Santo, amor subsistente, infunde a nova forma.

Por isso, Scotus chama o Batismo de sacramentum regenerationis essentialis — sacramento da regeneração essencial — porque nele o homem é realmente reinserido no circuito do Amor trinitário.

Mas essa graça exige consentimento:
no adulto, mediante a fé e a caridade;
na criança, pela fé da Igreja, que representa sua inserção no corpo místico.

Scotus recusa tanto a visão mágica quanto a puramente simbólica:
a água não é mera figura, mas sinal eficaz;
a graça não age mecanicamente, mas pelo vínculo real com Cristo.
O Batismo é, assim, presença da Encarnação no indivíduo.

O batizado, portanto, não é apenas “perdoado”: é configurado a Cristo.
Sua alma é marcada pelo character baptismalis — selo espiritual indelével que o incorpora ao Corpo de Cristo e o torna membro da comunhão dos santos.

“Character est signaculum amoris in anima, quod Deus non delet.”
— “O caráter é o selo do amor na alma, que Deus não apaga.”

Esse selo não é simbólico: é traço ontológico.
É o ponto pelo qual a graça se ancora permanentemente no ser humano, mesmo quando ele peca novamente.
A graça pode adormecer; o selo, não se rompe.

Por isso, Scotus distingue entre:
gratia habitualis, que pode ser perdida;
character sacramentalis, que permanece como raiz da comunhão.

O Batismo é, assim, o início visível da deificação:
o homem, reconciliado com o Uno divino, torna-se recipiente da caridade e imagem restituída do Filho.
Sua vontade, antes dispersa, reencontra o eixo do amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a regeneração é espiritual não quanto à substância, mas quanto ao modo de ser: a alma é a mesma, mas o seu horizonte é outro.
  2. À segunda, que o Batismo confere graça independentemente do mérito, mas não sem a fé; o ato de Deus é livre, mas requer acolhimento humano.
  3. À terceira, que a identidade pessoal é preservada, pois o homem não é aniquilado — é restaurado à sua forma original, a imagem de Deus.

Conclusão:
O Batismo é a recriação do homem em Cristo, o nascimento do ser na ordem do Amor.
Ele apaga o pecado, mas, mais profundamente, reordena o ser.
Por ele, o tempo é reintegrado à eternidade e a carne torna-se templo do Espírito.

“Baptismus est ingressus in vitam Dei.”
— “O Batismo é a entrada na vida de Deus.”

Assim, o batizado é o homem reconciliado, o Adão restaurado.
Seu corpo torna-se sacrário; sua alma, morada; e sua liberdade, reflexo da liberdade divina.

Chegamos à Questão Sétima — Sobre a Eucaristia e a Presença Real, o coração da teologia sacramental e o ponto mais elevado da especulação metafísica de Duns Scotus.
Aqui, ele trata do mistério em que toda a economia da Encarnação se concentra: o Deus invisível torna-se realmente presente sob aparências sensíveis, não simbolicamente, mas substancialmente, pela vontade livre e absoluta do próprio Cristo.

A Eucaristia, para Scotus, é a permanência da Encarnação no tempo.
Ela é o modo como o Verbo, uma vez feito carne, permanece entre os homens até o fim dos séculos — não em figura, mas em realidade.
Nela, o infinito habita o finito, e o amor se faz substância.


Questão Sétima — Sobre a Eucaristia e a Presença Real

(Utrum in sacramento altaris sit veritas corporis Christi, et quomodo sit ibi sub speciebus panis et vini)

Proposição:
Pergunta-se se, no sacramento do altar, está verdadeiramente presente o corpo de Cristo e de que modo essa presença se realiza sob as espécies do pão e do vinho.

Objeções:

  1. Parece que não, pois a presença real violaria a natureza do espaço e da substância; o corpo de Cristo está no céu, não pode estar simultaneamente em múltiplos lugares.
  2. Além disso, as espécies sensíveis permanecem inalteradas, o que indica ausência de mudança substancial.
  3. Ademais, se a presença é literal, a fé seria desnecessária, já que o sentido a perceberia.

Respondeo:
Digo que na Eucaristia está verdadeiramente presente o Cristo total — corpo, sangue, alma e divindade — não localmente, mas sacramental e substancialmente, segundo o modo próprio do ser divino.

“Non est mutatio localis, sed conversio substantialis.”
— “Não há mudança de lugar, mas conversão de substância.”

O milagre da Eucaristia não é deslocamento, mas transubstanciação: a substância do pão e do vinho deixa de existir, permanecendo apenas as espécies — as aparências sensíveis — sob as quais subsiste a substância do corpo e do sangue de Cristo.
Scotus, porém, acrescenta uma nuance decisiva: essa conversão não é física, mas intencional, isto é, efeito da vontade absoluta de Cristo.

O mesmo Verbo que, ao dizer “Fiat lux”, trouxe o ser à existência, disse na Ceia: “Hoc est corpus meum” — e o ser respondeu com obediência.
A substância do pão tornou-se corpo, não por força natural, mas por decreto divino.

“Virtus verbi est causa transubstantiationis.”
— “A virtude da palavra é causa da transubstanciação.”

Scotus distingue aqui o modo natural do ser (determinável pelo espaço) e o modo sacramental (determinável pela intenção divina).
Cristo está no céu segundo o modo natural, e está na Eucaristia segundo o modo sacramental — o mesmo corpo, em modos diversos de presença.
O espaço físico não limita o ser espiritual.

A presença real é, portanto, modo absoluto de amor.
Não é extensão, é intenção ontológica: o amor de Cristo é tão livre que pode tornar-se presente onde deseja, sob qualquer forma, sem deixar de ser o que é.

“Ubi amor, ibi praesentia.”
— “Onde há amor, há presença.”

Assim, o pão e o vinho são assumidos como instrumentos de unidade.
O que alimenta o corpo é elevado a alimento da alma; o que é sinal de comunhão natural torna-se comunhão sobrenatural.
A matéria torna-se transparência do Verbo.

Scotus escreve:

“Sacramentum est amor visibilis; realitas est Deus invisibilis.”
— “O sacramento é o amor visível; a realidade é o Deus invisível.”

Essa presença, porém, exige fé — não porque seja ilusória, mas porque é oculta sob o véu das espécies.
A fé é o olhar que atravessa o sensível e reconhece o ser no que não aparece.
O mistério eucarístico é a pedagogia da fé: ensina o homem a ver com o espírito.

Além disso, Scotus insiste que a presença é integral: onde está o corpo, ali está também o sangue, a alma e a divindade — pois a Pessoa do Verbo é indivisível.
O Cristo eucarístico não está fragmentado, mas totalmente presente em cada parte.
Cada fragmento contém o Todo, como o espelho que reflete o sol inteiro.

A Eucaristia é, assim, o centro ontológico da Igreja:
é nela que o corpo místico se une à sua cabeça.
A comunhão não é lembrança, é incorporação.
A alma, ao receber o sacramento, é tocada pelo mesmo Cristo que nasceu em Belém, morreu na cruz e reina na glória.

“Eucharistia est nexus temporis et aeternitatis.”
— “A Eucaristia é o elo entre o tempo e a eternidade.”

Scotus vê na Eucaristia a consumação da criação: o mundo inteiro é reconduzido a Deus no gesto da comunhão.
O alimento torna-se símbolo do ser que retorna à sua fonte; o amor torna-se matéria; o Espírito, presença.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o corpo de Cristo está no céu localmente, mas na Eucaristia sacramentalmente; o mesmo ser, modos diversos.
  2. À segunda, que as espécies permanecem por disposição divina, para que a fé tenha lugar no mistério.
  3. À terceira, que a fé é necessária não por falta de realidade, mas por excesso de sentido: o invisível só é percebido por quem ama.

Conclusão:
A Eucaristia é o milagre do ser tornado amor.
Não é símbolo, é substância; não é memória, é presença; não é ideia, é comunhão.
Nela, o Cristo encarnado torna-se contemporâneo de cada alma.

“In altari, Deus fit cibus; amor fit substantia.”
— “No altar, Deus se faz alimento; o amor se faz substância.”

Aqui se cumpre o círculo do real:
a criação, que saiu de Deus como dom, retorna a Ele como comunhão.
Tudo o que é — o pão, o corpo, a alma — converte-se no gesto eucarístico em pura oferenda.

Chegamos agora à Questão Oitava — Sobre a Penitência e a Reintegração da Vontade, em que Duns Scotus trata daquilo que poderíamos chamar de psicologia metafísica da conversão.
Se o Batismo foi o nascimento da alma para a vida divina e a Eucaristia a sua nutrição, a Penitência é a cirurgia espiritual pela qual o homem, ferido em sua liberdade, é reintegrado à ordem da caridade.

A questão é delicada: o pecado mortal não destrói o ser da alma, mas rompe a sua ordenação ao Bem.
A penitência é, pois, o ato pelo qual essa ordenação é restaurada — não como imposição externa, mas como movimento interior da vontade que retorna ao Amor.
Scotus vê aqui o ponto mais profundo da liberdade humana: o poder de voltar-se novamente a Deus, movido pela graça.


Questão Oitava — Sobre a Penitência e a Reintegração da Vontade

(Utrum poenitentia sit actus moralis tantum, an vera restitutio ordinis voluntatis in caritate)

Proposição:
Pergunta-se se a penitência é apenas ato moral de arrependimento e confissão, ou se constitui verdadeira restauração ontológica da vontade à ordem do amor divino.

Objeções:

  1. Parece que é apenas ato moral, pois o pecado é desordem voluntária, e basta a vontade retificar-se para o homem reconciliar-se com Deus.
  2. Além disso, a graça do Batismo permanece; logo, a penitência não cria novo estado, apenas corrige.
  3. Ademais, a absolvição sacerdotal seria supérflua se a reconciliação fosse obra direta da alma.

Respondeo:
Digo que a penitência é ato moral e ontológico ao mesmo tempo — movimento livre da vontade e, pela graça, reintegração real da alma à sua forma de caridade.
Não é mera emoção de arrependimento, mas reconversão do ser à ordem divina.

“Poenitentia est conversio amoris de se ad Deum.”
— “A penitência é a conversão do amor de si mesmo para Deus.”

O pecado, segundo Scotus, é uma inversão do amor — aversio a Deo, conversio ad creaturam: afastamento de Deus e apego desordenado ao finito.
A penitência é o movimento inverso: aversio a creatura, conversio ad Deum.
Mas esse retorno não é possível sem a graça atual que desperta a vontade e a torna novamente capaz de amar o Bem.

O processo penitencial tem, em Scotus, três níveis:

  1. Contritio cordis — arrependimento interior, que nasce da percepção da perda do amor divino.
  2. Confessio oris — confissão sacramental, pela qual o homem reintegra sua culpa à linguagem da verdade.
  3. Satisfactio operis — reparação real, que ordena novamente o agir exterior ao amor.

Cada um desses níveis corresponde a uma dimensão do ser humano: o interior, o verbal e o ativo.
A penitência, assim, reconstrói o homem inteiro.

Mas o ponto central é o primeiro: a vontade que se dobra novamente ao Amor.
Não é a tristeza pelo castigo que define o penitente, mas o reconhecimento de que feriu o Amado.
O ato da penitência é, portanto, um novo ato de amor — o amor que se arrepende de não ter amado.

“Dolor poenitentis est species amoris.”
— “A dor do penitente é uma forma de amor.”

A graça, nesse momento, atua como toque interior do Espírito, movendo a alma à contrição.
Essa graça é sempre iniciativa divina — o homem não pode produzi-la —, mas a resposta é livre.
O arrependimento verdadeiro é cooperação entre o Amor que chama e a liberdade que volta.

A absolvição sacramental é o sinal visível dessa reintegração invisível.
O sacerdote, agindo in persona Christi, pronuncia o perdão, e a palavra torna-se eficaz, porque o mesmo Cristo que perdoou na cruz continua a agir na Igreja.
Não é o homem quem absolve, é o Verbo encarnado que, através do homem, restitui a ordem.

Por isso, Scotus chama a penitência de secunda tabula post naufragium — a segunda tábua depois do naufrágio.
O Batismo salva do naufrágio original; a penitência salva das quedas posteriores.
Ambos são modos de participação na misericórdia divina.

A reconciliação que se segue à penitência é mais que restauração: é superação.
Pois a alma, ao cair e levantar-se, conhece o Amor mais profundamente.
O pecado, vencido pela graça, torna-se ocasião de humildade e de gratidão.
Assim, a ferida curada torna-se testemunho da força do Amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que a vontade sozinha não pode restaurar-se, pois a graça é necessária para ordenar novamente o amor.
  2. À segunda, que o Batismo confere graça habitual, mas a penitência restaura a comunhão perdida — é nova infusão, não novo nascimento.
  3. À terceira, que a absolvição é o instrumento visível da causa invisível, como em todos os sacramentos.

Conclusão:
A penitência é o retorno ontológico da vontade ao Amor divino.
É mais que arrependimento: é ressurreição interior.
A alma, tocada pela graça, reencontra o eixo do ser e volta a amar como no princípio.

“In poenitentia, homo iterum fit imago Dei.”
— “Na penitência, o homem torna-se novamente imagem de Deus.”

Assim, o pecado é vencido não pela culpa, mas pela caridade;
e a liberdade, ao se dobrar diante da graça, reencontra sua dignidade.
O arrependido é o ser reconciliado consigo e com o Uno.

Agora avançamos à Questão Nona — Sobre a Ordem e a Comunicação do Poder Espiritual, na qual Duns Scotus entra em um dos pontos mais altos de sua teologia institucional: a explicação metafísica do sacerdócio cristão.
Aqui, ele mostra que a Ordo Ecclesiae não é criação humana nem mera convenção eclesiástica, mas estrutura ontológica derivada da Encarnação — a extensão visível da autoridade do Cristo no tempo.

Para Scotus, a Ordem é o sacramento que faz o Cristo continuar agindo pessoalmente no mundo, e por isso é o mais próximo da Eucaristia em dignidade.
O sacerdote não é substituto, mas participante real do poder do Verbo.
Sua palavra é eficaz não por santidade pessoal, mas porque o Cristo opera nele in persona sua.


Questão Nona — Sobre a Ordem e a Comunicação do Poder Espiritual

(Utrum Ordo sit sacramentum quod confert potestatem spiritualem realem, et quomodo haec potestas communicetur)

Proposição:
Pergunta-se se o sacramento da Ordem confere poder espiritual real e de que modo esse poder é comunicado ao ministro, visto que só Cristo é o verdadeiro sacerdote.

Objeções:

  1. Parece que a Ordem não confere poder real, mas apenas ofício jurídico, pois o poder de perdoar e consagrar pertence exclusivamente a Deus.
  2. Além disso, se o ministro é indigno, seus atos não deveriam ser válidos, o que contradiz a prática da Igreja.
  3. Ademais, a hierarquia sacramental parece limitar a igualdade dos fiéis em Cristo, o que ofende a unidade do corpo místico.

Respondeo:
Digo que o sacramento da Ordem confere verdadeira participação no poder sacerdotal de Cristo, não por essência, mas por comunicação instrumental.
A autoridade sacerdotal é participata, não divisa: o Cristo único age em múltiplos ministros.

“Christus est sacerdos principalis; ministri sunt instrumenta viva.”
— “Cristo é o sacerdote principal; os ministros são instrumentos vivos.”

A Encarnação é o fundamento dessa comunicação:
assim como o Verbo assumiu a natureza humana para operar a salvação, Ele assume agora pessoas humanas para continuar a distribuir a graça.
O sacerdote é, portanto, prolongamento pessoal do Verbo encarnado.
Não é Cristo “em figura”, mas Cristo “em função real”.

A Ordenação imprime na alma um character spiritualis — selo indelével — que configura o homem a Cristo-Sacerdote.
Esse caráter é uma marca ontológica, não apenas simbólica: confere poder ex opere operato, isto é, pela própria realização do sacramento.

“Character Ordinis est sigillum potestatis, non meriti.”
— “O caráter da Ordem é o selo do poder, não do mérito.”

Por isso, a eficácia dos sacramentos não depende da santidade do ministro.
Mesmo um sacerdote indigno age validamente, porque é Cristo quem age nele.
A santidade pessoal afeta a frutificação espiritual, mas não a validade objetiva.
A causa principal é Deus; o ministro é instrumento obediente.

Scotus explica essa mediação com precisão:
a causa principal (Christus sacerdos aeternus) age por meio de uma causa instrumental (sacerdos ministerialis), da mesma forma que o artista age pela ferramenta.
Mas, como o ministro é pessoa livre, o instrumento é também “vivo” — um instrumentum animatum.
Daí a dignidade e a responsabilidade do sacerdócio: ele é canal consciente do divino.

Essa comunicação é, portanto, metafísica:
não se trata de delegação moral ou mandato jurídico, mas de participação ontológica no poder de santificar, absolver e consagrar.
O sacerdote é inserido na própria estrutura trinitária da mediação — ele age “do Pai, no Filho, pelo Espírito”.

“Minister ordinatus est quasi alter Christus, mediatus inter Deum et populum.”
— “O ministro ordenado é como um outro Cristo, mediador entre Deus e o povo.”

A hierarquia da Igreja decorre dessa pluralidade de participações:
os graus da Ordem — diaconato, presbiterato e episcopado — não representam desigualdade de dignidade pessoal, mas diversidade de funções no mesmo Corpo.
O episcopado, como plenitude do sacerdócio, é a fonte das demais ordens, pois comunica o poder de consagrar e ordenar.

O poder espiritual é, portanto, triplo:

  1. Potestas ordinis, para consagrar e absolver;
  2. Potestas jurisdictionis, para governar e ensinar;
  3. Potestas exemplaris, pela santidade e caridade do próprio ministro.

Scotus insiste que esses três poderes derivam do único poder de Cristo, que é misericórdia atuante.
Toda autoridade na Igreja é serviço: quem governa é mediador da graça, não dominador dos fiéis.
A hierarquia é o reflexo visível da ordem do amor — uma ordo caritatis.

“Non potestas dominationis, sed ministratio gratiae.”
— “Não poder de dominação, mas ministério da graça.”

Assim, a Ordem é o sacramento da continuidade da Encarnação.
O Verbo, que uma vez falou na Galileia, continua a falar pela voz do sacerdote;
aquele que perdoou os pecadores, continua a absolver pelas palavras humanas;
aquele que partiu o pão, continua a consagrar o mesmo pão no altar.

O sacerdote é o lugar ontológico onde Deus e o homem continuam a se encontrar.
Por isso, Scotus chama o altar de axis mundi: o ponto onde a eternidade toca o tempo.
E sobre esse eixo, o homem ordenado torna-se “mediador entre dois mundos”.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que só Deus perdoa, mas o faz através de instrumentos vivos; o poder é Dele, a operação é comunicada.
  2. À segunda, que a eficácia não depende do mérito, pois o poder sacramental é indelével; o ministro é canal, mesmo se entupido pela culpa.
  3. À terceira, que a hierarquia não nega a igualdade dos fiéis, mas a organiza segundo o princípio da caridade ordenada.

Conclusão:
A Ordem é o sacramento da comunicação do poder divino, o canal pelo qual o Cristo continua a agir visivelmente no mundo.
O sacerdote é o prolongamento consciente da Encarnação, o ponto de convergência entre o Amor que desce e o amor que sobe.

“In sacerdote, Deus tangit mundum per manum amoris.”
— “No sacerdote, Deus toca o mundo pela mão do amor.”

Assim, a Igreja é o corpo do Cristo vivo, e cada ministro é como uma fibra espiritual desse corpo — condutor da graça, transmissor do Verbo, servo do mistério eterno.

Agora alcançamos a Questão Décima — Sobre a Graça da Virgem Maria e a Imaculada Conceição, o ápice místico e mariano de toda a Ordinatio de Duns Scotus.
Aqui, o Doutor Sutil apresenta a tese pela qual ficaria eternizado na história da teologia: a preservação da Mãe de Deus do pecado original — não por exceção arbitrária, mas por redenção superior e antecipada, fruto da onipotência ordenada de Cristo.

Scotus compreende que a graça mariana não é uma anomalia no plano divino, mas sua flor mais perfeita.
Pois se Cristo é o centro metafísico da criação, Maria é o horizonte onde o centro se manifesta; se Ele é o Verbo feito carne, Ela é a condição pura dessa Encarnação, o ponto onde o finito é inteiramente dócil ao Infinito.


Questão Décima — Sobre a Graça da Virgem Maria e a Imaculada Conceição

(Utrum Beata Virgo fuerit immunis a peccato originali ab instanti suae conceptionis)

Proposição:
Pergunta-se se a Bem-Aventurada Virgem Maria foi isenta do pecado original desde o primeiro instante de sua concepção, e de que modo isso é possível sem negar a universalidade da redenção de Cristo.

Objeções:

  1. Parece que não, pois a Escritura diz: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus”; logo, Maria também.
  2. Além disso, se Ela não tivesse sido redimida, Cristo não seria Redentor universal.
  3. Ademais, a graça santificante não pode preceder a existência do sujeito; se Maria foi santificada antes de existir, haveria contradição.

Respondeo:
Digo que a Bem-Aventurada Virgem Maria foi preservada do pecado original por redenção preventivaprae-redemptio — mérito exclusivo de Cristo.
Ela foi redimida mais perfeitamente que qualquer criatura, não sendo libertada depois da queda, mas preservada de cair.

“Potuit, decuit, ergo fecit.”
— “Deus pôde fazê-lo, convinha que o fizesse, portanto o fez.”

Esse é o silogismo da Imaculada Conceição segundo Scotus.
Deus pôde, porque Seu poder é absoluto;
convinha, porque convém à dignidade do Filho ter Mãe puríssima;
logo, fê-lo, porque o amor de Deus age conforme a perfeição de Sua sabedoria.

A redenção de Maria é, portanto, superior, não inferior:
enquanto os demais são curados da ferida, Ela foi impedida de ser ferida.
O mesmo médico que cura uma doença mostra maior poder ao preveni-la.

“Perfectior modus redemptionis est praeservatio a culpa quam liberatio post culpam.”
— “Mais perfeito modo de redenção é a preservação da culpa do que a libertação após a culpa.”

A graça de Maria é singular porque está situada entre o tempo e a eternidade.
No instante mesmo de sua concepção natural, o mérito futuro de Cristo foi-lhe aplicado em antecipação.
Deus, eterno, não está sujeito à sucessão temporal: pode aplicar a eficácia da cruz antes que a cruz ocorra no tempo.

Assim, Maria é o primeiro fruto da redenção e o modelo da humanidade reconciliada.
Nela, a natureza humana aparece como deveria ser: sem sombra, sem ruptura, toda ordenada ao Amor.
Ela é a criatura totalmente transparente ao Verbo.

“In Maria, gratia plena est gratia perfecta.”
— “Em Maria, a graça plena é graça perfeita.”

A Imaculada Conceição é, portanto, consequência lógica da união hipostática.
Pois se o Verbo devia assumir carne humana, essa carne devia ser puríssima, não apenas moralmente, mas ontologicamente.
A maternidade divina exige plenitude de santidade desde o primeiro instante.
Deus, que prepara o universo com ordem, não deixaria sem preparação o seio que acolheria o Infinito.

Maria é assim o ponto zero da restauração cósmica.
Nela, a criação toca novamente seu estado original: o ser em pura harmonia com o Amor.
Ela é o “Éden reencontrado” — não jardim exterior, mas interioridade absoluta onde Deus pode habitar sem resistência.

Scotus, com ousadia mística, descreve a Virgem como medium sine medio — meio sem mediação —, pois entre Deus e o mundo há agora um ser puríssimo que participa de ambos sem confusão.
Maria é o nexo vital entre o Uno e o múltiplo: o “Sim” humano que permitiu o “Fiat” divino.

“In illa voluntas humana totaliter conformis fuit voluntati divinae.”
— “Nela, a vontade humana foi totalmente conforme à vontade divina.”

A Imaculada não elimina a necessidade da redenção; antes, a eleva à perfeição.
Cristo é Redentor universal; Maria, a primeira redimida.
Ele é o Sol; Ela, a aurora.
Ele salva retirando da morte; Ela é salva por nunca tê-la conhecido.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o texto da Escritura fala da humanidade em geral; Maria é exceção singular por decreto divino, não por natureza.
  2. À segunda, que Ela foi redimida, mas de modo mais excelente — por preservação, não por libertação.
  3. À terceira, que a graça não precede o ser, mas acompanha o instante mesmo de sua criação; Maria foi concebida e, no mesmo ato criador, santificada.

Conclusão:
A Imaculada Conceição é o ato mais puro da liberdade divina — o gesto em que o Amor mostrou seu poder de criar santidade absoluta no seio do tempo.
Maria é a obra-prima da graça, a criatura perfeita, o espelho sem mancha onde Deus contempla o reflexo de Si mesmo no mundo criado.

“Maria est concepta immaculata, quia amor Dei voluit unum esse sine macula.”
— “Maria foi concebida imaculada, porque o amor de Deus quis que houvesse um ser sem mancha.”

Nela, o cosmos é reconciliado em silêncio.
Ela é o ponto onde o ser diz “Sim” ao próprio Ser.
E por isso, como dirá depois a tradição: Tota pulchra es, Maria, et macula non est in te — “Toda bela és, Maria, e mancha alguma há em ti.”

Chegamos à Questão Décima Primeira — Sobre a Justificação e a Cooperação da Liberdade, uma das mais densas da Ordinatio, e talvez a mais fina demonstração do equilíbrio scotista entre a onipotência da graça e a dignidade da liberdade humana.

Se até aqui vimos a graça como forma sobrenatural da alma, como presença na Eucaristia e como redenção em Maria, agora Scotus aborda o momento interior dessa economia: como a graça e a vontade operam juntas na justificação, sem que uma destrua a outra.

Seu princípio fundamental é simples e profundo:

“Deus age em nós como causa principal, mas quer que nós sejamos causas verdadeiras.”

Não há justificação sem graça — mas também não há graça eficaz sem liberdade.
Deus, que criou o homem livre, quis salvá-lo como livre.


Questão Décima Primeira — Sobre a Justificação e a Cooperação da Liberdade

(Utrum justificatio sit opus Dei tantum, an etiam opus hominis cooperantis per liberum arbitrium)

Proposição:
Pergunta-se se a justificação é obra de Deus somente, ou também obra do homem cooperante com o livre-arbítrio.

Objeções:

  1. Parece que é obra de Deus somente, pois o homem, sendo pecador, nada pode merecer.
  2. Além disso, o Apóstolo diz: “Não depende do que quer nem do que corre, mas de Deus que tem misericórdia.”
  3. Ademais, se o homem coopera, a graça deixaria de ser dom gratuito e se tornaria conquista.

Respondeo:
Digo que a justificação é obra de Deus e do homem simultaneamente, mas de modos diversos:
— de Deus, como causa principal;
— do homem, como causa segunda livremente movida pela graça.

“Deus operatur in nobis sine nobis ad esse naturae, sed non sine nobis ad esse gratiae.”
— “Deus opera em nós sem nós para o ser natural, mas não sem nós para o ser da graça.”

O homem é, portanto, cooperador real do ato divino.
A graça move, mas não arrasta; ilumina, mas não substitui.
A liberdade humana é elevada à condição de instrumento consciente do amor divino.

A justificação, para Scotus, é um processo ontológico de dupla causalidade:

  1. Causa prima (Deus) — infunde a graça e move a vontade.
  2. Causa secunda (homo) — consente livremente com o movimento da graça e age conforme ela.

Esse consentimento é o ponto decisivo.
Ele não é mérito inicial, mas adesão amorosa.
A vontade, tocada pela graça, responde “sim” — e esse “sim” é o início da justiça.

“Iustitia incipit in actu amoris liberi.”
— “A justiça começa no ato de amor livre.”

A justificação não é apenas perdão, mas transformação: a alma passa da desordem à ordem, da ausência à presença.
A vontade, que antes se amava a si mesma, agora ama a Deus acima de tudo — e é esse novo amor que constitui formalmente a justiça interior.

Scotus insiste que o mérito humano não causa a graça, mas nasce dela:
a cooperação é efeito, não causa, do amor divino.
O homem ama porque é amado, e esse amor, livremente correspondido, torna-se sua própria justiça.

Essa doutrina afasta dois erros simétricos:
— o pelagianismo, que faz da liberdade causa primeira da salvação;
— o determinismo tomista ou agostiniano, que reduz a liberdade a instrumento passivo.

Entre ambos, Scotus estabelece a ordem da gratia ordinata:
Deus move o homem de tal modo que o homem, ao mover-se, é verdadeiramente autor de seu ato.
Deus quer, e o homem quer — e é o mesmo querer, em dois níveis distintos.

A liberdade não é rival de Deus; é Sua imagem.
Quando a vontade coopera com a graça, ela age mais livremente, porque age segundo a verdade de seu ser.
A graça não limita a liberdade; a liberta da servidão do erro.

“Gratia non tollit libertatem, sed dat sibi plenitudinem.”
— “A graça não tira a liberdade, mas lhe dá plenitude.”

Na justificação, portanto, há sinergia real — synergeia, como diziam os Padres gregos —, união entre o ato divino e o humano, sem fusão nem separação.
A graça age por dentro da vontade, não sobre ela;
a liberdade responde de dentro da graça, não fora dela.

Esse equilíbrio faz da moral scotista uma mística:
a alma justificada é aquela em que o Amor de Deus encontra eco, não resistência.
A justiça não é imposição, mas consentimento à ordem divina.

Por isso, o mérito cristão é sempre mérito participado:
quando o homem faz o bem em estado de graça, o valor infinito da caridade divina comunica-se ao seu ato finito.
Deus, em Sua misericórdia, coroa Seus próprios dons.

“Meritum est amor Dei reditus ad se ipsum.”
— “O mérito é o amor de Deus voltando a si mesmo.”

Assim, o justo não se gloria, mas se alegra; não se exalta, mas se reconhece amado.
A liberdade justificada é humilde: sabe que tudo o que é vem do amor que a move.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o homem nada pode sem graça, mas, com ela, torna-se verdadeiro colaborador.
  2. À segunda, que o texto paulino afirma a primazia da graça, não a exclusão da liberdade.
  3. À terceira, que a cooperação não destrói a gratuidade, porque a própria capacidade de cooperar é dom divino.

Conclusão:
A justificação é o encontro entre a iniciativa divina e a resposta humana, o momento em que a liberdade criada se reordena plenamente ao Amor.
Deus age em nós, e nós agimos n’Ele — eis o mistério da cooperação.

“Gratia Dei et libertas hominis sunt duae manus amoris unius.”
— “A graça de Deus e a liberdade do homem são as duas mãos de um mesmo amor.”

A justiça, assim, não é conquista, mas comunhão.
A alma justa é aquela que se deixa mover e, movendo-se, volta livremente ao seu Princípio.

Chegamos à Questão Décima Segunda — Sobre a Caridade como Forma de Todas as Virtudes, uma das passagens mais luminosas e interiores de toda a Ordinatio.
Aqui, Duns Scotus, tendo mostrado que a graça eleva a alma e que a justificação é cooperação livre com o amor divino, expõe agora o princípio que unifica toda a vida espiritual: a caridade como forma transcendente do ser moral e da ordem sobrenatural.

Se em Aristóteles a virtude é o meio termo da razão prática, e em Tomás de Aquino é o hábito que ordena a vontade ao bem, em Scotus ela se torna algo ainda mais alto: a participação no próprio amor de Deus por Si mesmo.
A caridade não é apenas virtude entre outras — é a forma de todas; é o espírito que anima o corpo moral.


Questão Décima Segunda — Sobre a Caridade como Forma de Todas as Virtudes

(Utrum caritas sit forma omnium virtutum, et quo modo informat animam ad ordinem divinum)

Proposição:
Pergunta-se se a caridade é realmente a forma de todas as virtudes e de que modo ela informa a alma, ordenando-a à semelhança de Deus.

Objeções:

  1. Parece que não, pois há virtudes morais e intelectuais que podem existir sem caridade, como prudência e temperança.
  2. Além disso, a caridade é ato da vontade, não da razão; logo, não pode informar virtudes cujo sujeito é o intelecto.
  3. Ademais, se a caridade fosse forma de todas, as virtudes desapareceriam quando ela se perdesse, o que não parece conforme à experiência moral.

Respondeo:
Digo que a caridade é forma de todas as virtudes, não fisicamente, mas formaliter, isto é, como princípio que lhes dá direção ao fim último.
Ela não modifica a essência das virtudes, mas as eleva à ordem divina, fazendo-as participar do mesmo amor com que Deus ama a Si mesmo.

“Caritas est nexus creaturae cum fine ultimo, et anima virtutum omnium.”
— “A caridade é o laço da criatura com o fim último e a alma de todas as virtudes.”

Toda virtude é boa enquanto ordenada ao bem; mas só a caridade ordena ao Sumo Bem.
Assim, prudência, justiça, fortaleza e temperança, enquanto humanas, ordenam ao bem racional; enquanto informadas pela caridade, ordenam ao bem divino.
É essa elevação que faz da moral cristã não mera ética, mas teologia viva.

Scotus define a caridade como habitus supernaturalis voluntatis, uma disposição infundida pela graça que torna a vontade capaz de amar a Deus acima de tudo e a todas as coisas em Deus.
A alma, pela caridade, entra na órbita do Amor eterno — passa de amar o bem porque é bom a amar o bem porque é Deus.

“Amare Deum propter se est actus formaliter divinus.”
— “Amar a Deus por Si mesmo é ato formalmente divino.”

Esse amor não é emoção, mas ordenação ontológica.
Ele reorganiza a estrutura inteira do ser humano, fazendo com que cada potência — razão, vontade, afetos e sentidos — encontre seu lugar no conjunto do amor.
A caridade é, assim, o princípio de integração da pessoa.

Por isso, Scotus afirma que a caridade é a forma unitiva da alma:
ela une o intelecto e a vontade, o pensar e o agir, o tempo e a eternidade.
Sem ela, as virtudes permanecem fragmentos dispersos; com ela, tornam-se harmonia viva.

As virtudes intelectuais — sabedoria, ciência, entendimento — tornam-se “sapienciae amoris”: iluminadas pela caridade, conhecem amando.
As virtudes morais — justiça, fortaleza, temperança — tornam-se “actus caritatis in ordine creato”: modos concretos de amar Deus nas criaturas.

Assim, a caridade é a forma transcendente da moralidade.
Ela é o centro invisível que torna o bem não apenas racional, mas luminoso.
Enquanto a justiça dá o devido, a caridade dá o ser; enquanto a prudência escolhe o meio, a caridade revela o fim.

“Caritas est lumen voluntatis quod dat saporem omnibus virtutibus.”
— “A caridade é a luz da vontade que dá sabor a todas as virtudes.”

É por isso que, sem caridade, as virtudes morais podem subsistir, mas não têm mérito sobrenatural.
Elas permanecem na ordem da razão, não da graça.
Somente quando informadas pela caridade tornam-se verdadeiros atos de santidade, isto é, participações na vida divina.

A caridade é, portanto, a presença do Espírito Santo na alma, como forma interior que a torna capaz de amar com o próprio amor de Deus.
A união entre Deus e o homem realiza-se na vontade, e a caridade é o vínculo dessa união.

“Spiritus Sanctus est amor Dei in nobis, et caritas est eius vestigium in voluntate.”
— “O Espírito Santo é o amor de Deus em nós, e a caridade é o seu vestígio na vontade.”

Ela é também o princípio de permanência das virtudes na glória:
fé e esperança cessam na visão beatífica, mas a caridade permanece, porque é a própria vida de Deus comunicada à alma.
Assim, diz Scotus, “Caritas non cadit; quia Deus non cadit.”

A hierarquia das virtudes culmina, então, na caridade:
todas as outras são radiais em relação a ela — derivam, refletem e convergem para o Amor.
O universo moral é, em última instância, uma geometria do amor.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que as virtudes humanas podem existir sem caridade, mas nesse caso não são virtudes sobrenaturais.
  2. À segunda, que a caridade informa também o intelecto, não diretamente, mas pela vontade que move o intelecto a ver por amor.
  3. À terceira, que a perda da caridade destrói a forma sobrenatural das virtudes, não seus hábitos naturais.

Conclusão:
A caridade é o coração da vida divina no homem, a forma invisível que unifica todas as virtudes e as transforma em expressões do Amor eterno.
Ela é, como diz Scotus, “a presença formal do Espírito na alma racional”.

“Caritas est forma virtutum, quia Deus est forma amoris.”
— “A caridade é a forma das virtudes, porque Deus é a forma do amor.”

Assim, toda perfeição moral termina onde começou a criação: no Amor.
O homem, justificado e habitado pela caridade, é a criatura tornada transparência de Deus — o espelho onde o Eterno se contempla.

Agora entramos na Questão Décima Terceira — Sobre a Esperança e a Transformação do Desejo, uma das mais belas e silenciosas seções da Ordinatio.
Aqui, Duns Scotus alcança o que poderíamos chamar de psicologia teológica do coração humano: o movimento do desejo — essa força que atravessa toda a natureza — é transfigurado pela graça em virtude teologal da esperança, isto é, confiança sobrenatural no próprio Deus como termo último do querer.

Para ele, o homem é, por essência, um ser de desejo — appetitus naturalis boni.
Tudo o que vive tende a algo; mas o homem, ao ser elevado pela graça, tende ao próprio Deus, não como a algo que pode possuir, mas como Àquele que o possui em amor.
A esperança é, assim, o desejo tornado confiança: o eros purificado pela caridade.


Questão Décima Terceira — Sobre a Esperança e a Transformação do Desejo

(Utrum spes sit virtus theologica et quomodo transformat appetitum humanum ad ordinem divinum)

Proposição:
Pergunta-se se a esperança é verdadeiramente virtude teologal e de que modo transforma o desejo natural do homem, elevando-o à ordem sobrenatural.

Objeções:

  1. Parece que a esperança não é virtude teologal, pois o desejo do bem é natural, e o que é natural não se transforma em sobrenatural.
  2. Além disso, a esperança parece fundada no próprio eu — quem espera, quer para si; logo, não pode ser ordenada puramente a Deus.
  3. Ademais, a esperança cessa na posse do bem; se é virtude divina, não deveria cessar nunca.

Respondeo:
Digo que a esperança é virtude teologal porque o objeto a que tende — Deus — é sobrenatural, e o motivo pelo qual tende — a promessa divina — também o é.
O desejo natural, por si, tende ao bem em geral; a esperança, pela graça, tende ao Sumo Bem prometido.

“Spes est appetitus elevatus lumine fidei.”
— “A esperança é o desejo elevado pela luz da fé.”

O homem, em seu estado natural, busca a felicidade; mas ignora onde ela está.
A graça, pela fé, revela o fim: Deus mesmo.
E a esperança, movida pela caridade, faz o coração avançar rumo ao invisível.

Scotus distingue três ordens no desejo:

  1. Appetitus naturalis, tendência ao bem conforme a natureza;
  2. Appetitus rationalis, busca deliberada dos bens finitos;
  3. Appetitus supernaturalis, movimento infundido pela graça, que tende ao Infinito como fim real.

A esperança pertence a este terceiro nível.
Ela é, por assim dizer, o desejo sobrenatural em marcha.
A fé mostra o caminho, a esperança põe-se a caminhar, e a caridade já vive no termo.

“Fides ostendit, spes tendit, caritas unit.”
— “A fé mostra, a esperança tende, a caridade une.”

Mas o ponto mais sutil em Scotus é que a esperança não anula o desejo humano — ela o transfigura.
O homem não deixa de querer o bem; aprende a querê-lo em Deus e por Deus.
A esperança é o eros redimido: o amor que, em vez de possuir, confia.

Por isso, a esperança tem dois movimentos:
ex se, nasce do reconhecimento da própria indigência;
ad Deum, nasce da confiança no poder e na misericórdia divinas.
Ela é humildade e ousadia ao mesmo tempo: sabe que nada pode, mas sabe que Deus pode tudo.

“Spes est audacia humilis.”
— “A esperança é audácia humilde.”

Scotus a chama também de virtus intermedia, a virtude do caminho:
a fé inicia, a caridade consuma, a esperança sustenta.
Ela mantém a alma suspensa entre o já e o ainda não, entre o tempo e a eternidade.
É a força do peregrino: tensão serena do espírito que caminha em direção ao Absoluto.

Nessa tensão, o desejo é purificado:
o homem aprende a esperar não o que quer, mas Aquele que quer o seu bem.
A esperança transforma o querer em abandono.
E o abandono, longe de ser passividade, é o ato supremo da confiança.

“Qui sperat, amando exspectat.”
— “Quem espera, ama esperando.”

A esperança é, pois, o exercício da liberdade no horizonte da promessa.
É a fé que respira e a caridade que ainda caminha.
Sem esperança, a alma se fecha; com ela, se dilata ao infinito.

A perda da esperança — desperatio — é o contrário do pecado de orgulho: é o orgulho invertido, o desespero de quem já não crê que pode ser amado.
Por isso, Scotus vê na esperança o remédio contra o niilismo espiritual: ela é o sim da vontade diante do silêncio aparente de Deus.

“Spes est lumen voluntatis in nocte fidei.”
— “A esperança é a luz da vontade na noite da fé.”

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o desejo é natural, mas sua elevação é sobrenatural; o objeto da esperança é o próprio Deus, não mero bem criado.
  2. À segunda, que a esperança começa no eu, mas termina em Deus; quem espera por amor, deseja o próprio Bem divino como seu fim.
  3. À terceira, que a esperança cessa na glória, porque então se transforma em posse — e o que permanece é a caridade, que é o repouso do amor.

Conclusão:
A esperança é o desejo tornado teologal, a força pela qual o homem caminha para Deus com a certeza de ser esperado por Ele.
Ela é o elo entre o tempo e a eternidade, entre o esforço e o dom.

“Spes est Deus amatus sub ratione auxilii.”
— “A esperança é Deus amado sob a razão de auxílio.”

Por meio dela, o desejo humano é redimido — o anseio pelo bem torna-se confiança no Bem absoluto.
A alma esperante é aquela que vive entre o já e o ainda não, sustentada pelo amor que promete e cumpre.

Chegamos à Questão Décima Quarta — Sobre a Glória Final e a Visão Beatífica, que é o cume metafísico e teológico da Ordinatio.
Tudo o que Scotus construiu até aqui — o ser como ordenação ao Uno, a Encarnação como centro do cosmos, os sacramentos como prolongamento da graça, e as virtudes teologais como forma da vida divina na alma — converge agora para este ponto: a visão de Deus face a face, a consumação da jornada do ser em direção ao seu princípio.

Aqui, a metafísica se dissolve na contemplação.
A alma, já purificada pela fé, iluminada pela esperança e unificada pela caridade, entra na plena posse daquilo que sempre buscou: a união imediata com o Bem infinito.
É o retorno do finito ao Infinito — não como dissolução, mas como permanência no Amor.


Questão Décima Quarta — Sobre a Glória Final e a Visão Beatífica

(Utrum beatitudo consistat in visione intuitiva Dei, et quomodo voluntas in ea perfecte quiescat)

Proposição:
Pergunta-se se a bem-aventurança consiste na visão intuitiva de Deus e de que modo a vontade encontra nela o repouso absoluto.

Objeções:

  1. Parece que a beatitude não consiste na visão, mas na posse amorosa, pois o amor une mais do que o conhecimento.
  2. Além disso, a criatura finita não pode compreender o Infinito; logo, não pode vê-lo intuitivamente.
  3. Ademais, se o intelecto vê a essência divina, perderia sua liberdade, tornando-se absorvido em Deus.

Respondeo:
Digo que a beatitude consiste na visão intuitiva da essência divina, na qual o intelecto é iluminado pela própria luz de Deus — lumen gloriae — e a vontade, contemplando o Sumo Bem, repousa no amor.
Essa visão não é discursiva nem simbólica, mas imediata: Deus se mostra a Si mesmo como é.

“Beati videbunt essentiam Dei per lumen ipsius.”
— “Os bem-aventurados verão a essência de Deus pela luz do próprio Deus.”

A alma, nesse estado, não vê uma imagem de Deus, nem um efeito, mas o próprio Ser subsistente.
E, ao vê-lo, torna-se participante de Sua vida.
A visão não substitui o amor — o consuma.
A inteligência, iluminada, gera um amor perfeito e estável: a caridade em sua forma eterna.

Scotus distingue aqui três graus de união:

  1. Natural — a criatura participa do ser de Deus pela criação;
  2. Graciosa — participa de Sua vida pela fé e caridade;
  3. Gloriosa — participa de Sua luz pela visão beatífica.

A visão beatífica é, portanto, o cumprimento da ordem inteira da realidade.
O mundo existe para que Deus possa ser visto.
A criação é o espelho; a graça, a transparência; a glória, a visão direta.

“In gloria, creatura non reflectit, sed recipit lumen.”
— “Na glória, a criatura não reflete, mas recebe a luz.”

O intelecto humano, limitado em si, é elevado por uma luz sobrenatural — o lumen gloriae — que o torna capaz de ver o Infinito sem dissolver-se.
Não compreende Deus totaliter, mas veraciter — não o abarca, mas o contempla sem erro, como quem vê um oceano sem poder medi-lo.

Essa visão é também ato de amor.
A vontade, vendo o Bem em Si mesmo, ama-o com amor pleno, sem oscilação nem sombra.
Não há mais desejo, porque não há mais ausência; o querer se transforma em repouso jubiloso.

“In visione Dei, amor est quies, non motus.”
— “Na visão de Deus, o amor é repouso, não movimento.”

E, no entanto, esse repouso é vivo.
A alma permanece ativa em adoração, como chama que não se apaga.
A eternidade não é inércia, mas plenitude.
Deus é contemplado não como objeto distante, mas como presença interior absoluta — o Ser que sustenta o ser.

Nesse estado, toda a ordem da criação se reconcilia.
Os anjos e os homens formam uma única hierarquia de luz.
Cada intelecto vê segundo sua capacidade, mas todos participam do mesmo Sol.
A desigualdade se converte em harmonia, porque cada um possui tudo o que pode amar.

“Omnes beati vident eundem Deum, sed non aequaliter.”
— “Todos os bem-aventurados veem o mesmo Deus, mas não igualmente.”

A visão beatífica é, portanto, o termo do movimento do ser.
É o fim da metafísica e o início da contemplação.
Aqui, o problema da diferença entre Criador e criatura é superado sem confusão: a distância permanece, mas é distância iluminada pelo Amor.

A liberdade, longe de se anular, atinge seu auge — pois agora ela quer o Bem necessariamente, mas por amor, não por coação.
Scotus chama esse estado de libertas in lumine: liberdade em luz.
O querer humano é assumido no querer divino, e ambos coincidem sem se confundirem.

“Voluntas in Deo quiescit non per necessitatem, sed per plenitudinem amoris.”
— “A vontade repousa em Deus não por necessidade, mas por plenitude de amor.”

Nessa união, o intelecto é glorificado, a vontade é divinizada, e a alma torna-se espelho do próprio Deus.
Tudo o que foi promessa se cumpre, e o tempo é recolhido no instante eterno.
É o momento em que o ser, finalmente, entende por que existe: para ver e amar.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o amor é a consumação da visão; o amor sem visão é busca, a visão sem amor é impossível.
  2. À segunda, que a criatura não compreende o Infinito, mas o vê conforme a medida da luz que lhe é dada.
  3. À terceira, que a liberdade não se perde, mas se cumpre, porque a vontade ama o Bem supremo por si mesma e sem oposição.

Conclusão:
A glória final consiste na visão intuitiva e amorosa de Deus, onde o intelecto contempla o Infinito e a vontade repousa no Amor absoluto.
É o cumprimento da ordem universal, a restauração da criação em seu Princípio.

“Beatitudo est participatio amoris Dei ad se ipsum.”
— “A bem-aventurança é a participação do amor de Deus por Si mesmo.”

Aqui termina o caminho do espírito: o ser retorna à sua Fonte, e tudo o que foi desejo torna-se presença.
O círculo do cosmos se fecha no Uno.
O tempo é absorvido pela eternidade — e a criatura, iluminada, vê o que sempre foi visto por Deus.

Chegamos, então, à Conclusão do Livro Terceiro — De Deo et Unitate Ordinis, onde Duns Scotus encerra o que talvez seja a mais elevada construção metafísica do pensamento medieval: a ideia de que Deus é a unidade ordenadora de todas as coisas, e que o universo, longe de ser dispersão, é uma única sinfonia cujo tema é o Amor.

Aqui, o Doutor Sutil retoma todos os fios de sua teologia e os entrelaça em uma síntese luminosa:
o Ser como primum objectum intellectus;
a Vontade divina como fonte da ordem;
a Encarnação como centro do cosmos;
a Graça como forma sobrenatural do ser;
as Virtudes teologais como estrutura da alma redimida;
e, por fim, a Visão beatífica como termo da criação.

Tudo converge para um único princípio:

“Ordo universi est imago caritatis Dei.”
— “A ordem do universo é a imagem da caridade de Deus.”


Conclusão do Livro Terceiro — De Deo et Unitate Ordinis

No princípio, Deus quis o ser — e o ser é a primeira comunicação do Bem.
O universo não nasce por necessidade, mas por liberalidade: é o ato livre do Amor que se difunde.
A criação é, assim, o primeiro sacramento da bondade divina.

Cada ente participa desse Amor segundo seu grau de perfeição.
As pedras existem; as plantas vivem; os animais sentem; o homem conhece e ama.
E acima do homem está o Cristo — o Verbo feito carne —, o eixo da criação, onde o Infinito e o finito se unem sem se confundir.

“Christus est medium totius ordinis, finis omnium finium.”
— “Cristo é o meio de toda a ordem, o fim de todos os fins.”

O mundo não é um agregado de substâncias, mas uma hierarquia de relações, um tecido ordenado segundo a medida do Amor.
Cada coisa tem lugar na totalidade porque tudo está ordenado ao Uno.
A multiplicidade não destrói a unidade; a revela.
O cosmos é plural porque o Amor é fecundo.

A unidade do universo é, portanto, ordem, e a ordem é o reflexo da Trindade.
Assim como nas Pessoas divinas há distinção sem separação e comunhão sem confusão, também na criação há variedade sem ruptura e harmonia sem uniformidade.
A ordem cósmica é o espelho da comunhão trinitária.

“Trinitas est exemplar ordinis universi.”
— “A Trindade é o modelo da ordem do universo.”

O homem, criado à imagem de Deus, é o microcosmo dessa ordem.
Em seu intelecto reflete a luz do Verbo; em sua vontade, a chama do Amor.
Por isso, sua vocação é restaurar em si a harmonia perdida — tornar-se novamente imagem viva do Uno.

Essa restauração é obra da graça: o Espírito Santo imprime no homem a forma da caridade, fazendo-o participar do movimento mesmo da Trindade.
Pela fé, o homem conhece o caminho; pela esperança, o percorre; pela caridade, chega à unidade.

E o Cristo, como mediador universal, é o laço que liga tudo o que existe:
nele, os anjos e os homens, o céu e a terra, o visível e o invisível, encontram sua convergência.
A cruz é o ponto central dessa ordem — o lugar onde o Amor se mostra como princípio e fim de todas as coisas.

“In cruce, ordo universi redit ad Deum.”
— “Na cruz, a ordem do universo retorna a Deus.”

O universo, portanto, não é fechado em si mesmo.
Ele é um movimento circular:
— do Uno que cria,
— ao múltiplo que se difunde,
— e novamente ao Uno que tudo recolhe.

Esse movimento é o próprio ritmo da caridade: exitus et reditus, saída e retorno, dom e comunhão.
No início está o Amor que dá; no fim, o Amor que recebe; e entre ambos, o Amor que liga — o Espírito.

Assim, o cosmos é uma liturgia eterna, um canto em que cada ser, ao cumprir seu fim, louva o Criador.
Nada é inútil, nada é perdido.
A menor centelha de bondade participa da Bondade absoluta.

“Omnia ordinantur in unum per amorem.”
— “Todas as coisas são ordenadas em um só pelo amor.”

A beatitude final é, portanto, o coroamento dessa ordem: o ser retorna ao Princípio não pela anulação, mas pela glorificação.
O homem, unido a Deus, não deixa de ser homem — torna-se plenamente si mesmo.
A criatura não desaparece; é transfigurada.

A glória é o selo da unidade: o tempo reconciliado, a diferença pacificada, o ser iluminado.
E nessa visão beatífica, cada alma vê o Todo e se reconhece parte viva da harmonia infinita.

Scotus encerra com uma imagem que resume toda a Ordinatio:
Deus é o círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência em parte alguma.
O universo é o espelho desse círculo: cada ser reflete o centro, e juntos formam o movimento do Amor.

“Finis totius creationis est ut Deus videatur et ametur.”
— “O fim de toda a criação é que Deus seja visto e amado.”

Assim termina o Livro Terceiro:
a teologia se funde com a mística, e a metafísica se dissolve em adoração.
Tudo o que existe é palavra pronunciada pelo Verbo, e toda palavra, no fim, deve calar-se diante do Silêncio do Uno.

O ser volta à sua Fonte,
e o Amor — que começou a história — permanece o último fundamento do real.

Avancemos, então, ao Livro Quarto — De Christo Redemptore et Sacramento Ecclesiae, onde Duns Scotus fecha o ciclo cósmico e teológico iniciado no Deus et Uno.
Aqui, ele já não fala apenas do Ser e da Ordem, mas da História — da redenção como ato divino inscrito no tempo, e da Igreja como corpo visível do Cristo, isto é, como o prolongamento sacramental da Encarnação.

Se nos três primeiros livros a teologia foi arquitetura metafísica, aqui ela se torna teo-história: o plano divino se manifesta na economia temporal.
O Cristo, centro da criação, torna-se agora centro da história; e o Espírito, alma da Igreja, é o agente dessa continuidade.
O Livro Quarto é o livro da missão — o ponto onde o mistério se torna visível.


Livro Quarto — De Christo Redemptore et Sacramento Ecclesiae

Questão Primeira — Sobre a Redenção e a Ordem do Amor

(Utrum Christus redemerit genus humanum ex necessitate, an ex ordine amoris divini)

Proposição:
Pergunta-se se Cristo redimiu o gênero humano por necessidade absoluta ou por livre determinação do Amor.

Respondeo:
Digo que a Encarnação e a Redenção não derivam da queda de Adão, mas do plano primeiro de Deus, que quis manifestar o máximo da Sua bondade.
Mesmo que o homem não tivesse pecado, o Verbo se teria encarnado, pois a Encarnação é o fim positivo da criação.

“Christus est primus in intentione, ultimus in executione.”
— “Cristo foi o primeiro na intenção, o último na execução.”

A redenção, portanto, não é reparo, mas plenitude.
A cruz não é plano B, mas expressão suprema do Amor eterno.
O pecado é apenas ocasião: o desvio que revela o poder redentor do Amor.

Deus não age por necessidade, mas por liberdade; e Sua liberdade é amorosa.
A redenção é o gesto do Amor que não tolera a perda de nenhum ser.
A justiça divina, longe de ser vingança, é a fidelidade de Deus ao seu próprio Amor.

“Deus non redemit propter debitum, sed propter amorem.”
— “Deus não redimiu por dívida, mas por amor.”

A cruz é, portanto, o símbolo da ordem restaurada:
o eixo vertical da vontade divina se reencontra com o eixo horizontal da história.
Na intersecção desses dois eixos — céu e terra — está o Cordeiro imolado.

A Redenção é, assim, o ato em que Deus se reconcilia com o mundo, e o mundo reencontra o caminho do Uno.
Não há contradição entre justiça e misericórdia, pois ambas coincidem na caridade.
A justiça é o amor que ordena; a misericórdia é o amor que cura.

“Iustitia est amor ordinans, misericordia est amor sanans.”
— “A justiça é o amor que ordena, a misericórdia é o amor que cura.”

O sangue de Cristo é o ponto central da história, o instante em que o tempo toca a eternidade.
O Verbo, ao morrer, penetra até os limites do ser — e nada fica fora da luz da redenção.

Por isso, Scotus vê o sacrifício não como expiação punitiva, mas como ato de amor mais livre:
Cristo, em obediência amorosa, restitui a Deus o amor que o pecado havia rompido.
A cruz é a liturgia da reconciliação: o homem retorna ao Amor por meio do Amor.

“Obedientia Christi fuit amor ordinatus ad summum finem.”
— “A obediência de Cristo foi amor ordenado ao fim supremo.”

Assim, a Redenção é a restauração da unidade ontológica.
Tudo o que o pecado dispersou, o Verbo recolhe.
O homem, reconciliado, volta a ser mediador entre o visível e o invisível — pontifex, aquele que constrói pontes.


Questão Segunda — Sobre a Igreja como Corpo do Cristo

(Utrum Ecclesia sit corpus mysticum vel corpus reale Christi)

Proposição:
Pergunta-se se a Igreja é corpo simbólico ou corpo real de Cristo.

Respondeo:
Digo que a Igreja é o corpo real do Cristo histórico, não por identidade física, mas por continuidade ontológica.
A humanidade de Cristo, glorificada, comunica-se aos fiéis pela graça; e essa comunicação constitui o organismo espiritual chamado Igreja.

“Ecclesia est Christus extensus in tempore.”
— “A Igreja é o Cristo estendido no tempo.”

Ela é, ao mesmo tempo, mistério e instituição, invisível e visível, divina e humana.
É o sacramento do Cristo total — Christus totus, como dirá mais tarde Santo Agostinho.
A cabeça é o Verbo; o corpo, os fiéis; a alma, o Espírito Santo.

Scotus vê na Igreja o princípio de continuidade da Encarnação:
o Verbo, que uma vez tomou carne, continua a assumir corpos — os membros vivos da comunhão.
Cada fiel é célula dessa vida divina, cada sacramento é artéria por onde corre o sangue da graça.

“Spiritus Sanctus est anima corporis Christi mystici.”
— “O Espírito Santo é a alma do corpo místico de Cristo.”

A autoridade eclesial, para Scotus, é serviço da unidade, não poder de dominação.
Os ministros são canais do Verbo; os sacramentos, seus gestos visíveis.
A hierarquia é ordem do amor: cada grau serve à comunicação da vida divina.

Assim, a Igreja não é simples assembleia dos fiéis, mas estrutura sacramental do cosmos redimido.
Ela é o espaço onde o mundo se torna templo, e o tempo se torna liturgia.
Na Igreja, a criação é novamente palavra de Deus.

“Ecclesia est ordo gratiae in historia.”
— “A Igreja é a ordem da graça na história.”

Através dela, a graça que flui do Cristo atinge todos os tempos.
O Batismo insere no corpo; a Eucaristia o alimenta; a Penitência o cura; a Ordem o estrutura; e o Matrimônio o expande.
Cada sacramento é um modo do Verbo continuar sua presença.

Agora entramos na Questão Terceira — Sobre a Eucaristia como Centro da Igreja, que é o coração pulsante de todo o De Christo Redemptore.
Se, até aqui, Scotus mostrou a Encarnação como princípio e a Igreja como prolongamento, agora ele revela o centro onde ambos se tocam continuamente: a Eucaristia, presença real, total e substancial do Verbo encarnado.

Neste ponto, a teologia atinge o seu ápice sacramental: o Deus-que-se-dá, não apenas em símbolo, mas em substância.
É aqui que Scotus, com a precisão de um metafísico e a ternura de um místico, descreve o ato eucarístico como a repetição incruenta da Encarnação — a presença do mesmo Cristo, glorificado, sob a forma do pão e do vinho.


Questão Terceira — Sobre a Eucaristia como Centro da Igreja

(Utrum in Eucharistia sit realis praesentia corporis et sanguinis Christi, et quomodo sit centrum totius ordinis gratiae)

Proposição:
Pergunta-se se na Eucaristia há presença real do Corpo e do Sangue de Cristo e de que modo esse mistério constitui o centro da ordem da graça.

Objeções:

  1. Parece que não há presença real, pois o corpo de Cristo está no céu; logo, não pode estar substancialmente em múltiplos lugares.
  2. Além disso, os sentidos percebem apenas pão e vinho; o que é sensível, portanto, não é o corpo divino.
  3. Ademais, se Cristo está todo em cada parte da hóstia, não há distinção espacial, o que parece contra a razão.

Respondeo:
Digo que na Eucaristia está presente o mesmo Cristo verdadeiro, total — corpo, sangue, alma e divindade — sob as espécies sacramentais, por virtude da palavra divina.
Essa presença não é local, mas sacramental, isto é, modo singular de existência que transcende a medida do espaço.

“Corpus Christi est in Sacramento, non per locum, sed per conversionem substantiae.”
— “O corpo de Cristo está no Sacramento, não por lugar, mas pela conversão da substância.”

Na consagração, não há adição, mas transubstanciação: a substância do pão e do vinho é convertida na substância do Corpo e Sangue de Cristo, permanecendo apenas os acidentes — cor, sabor, forma — como véus sensíveis do Mistério.
É o mesmo ato criador que, no princípio, fez o ser surgir do nada: agora faz o Verbo surgir sob o pão.

“Verbum fecit panem suum corpus sicut olim fecit mundum ex nihilo.”
— “O Verbo fez do pão o seu corpo, como outrora fez o mundo do nada.”

Aqui se realiza, segundo Scotus, o ponto máximo da união entre o espiritual e o material:
a realidade sensível torna-se pura transparência da realidade divina.
A matéria é elevada ao seu grau supremo de simbolismo — deixa de significar outra coisa para significar a si mesma em Deus.

A presença é total:
quantitate spirituali, porque está inteira em cada parte;
modo substantiali, porque é o próprio Cristo;
finaliter, porque é o fim de toda a economia da graça.

A Eucaristia é o centro da Igreja porque nela o Cristo não apenas é lembrado, mas presente e atuante.
Todos os sacramentos convergem nela e dela derivam:
o Batismo prepara para recebê-la, a Penitência purifica para acolhê-la, a Ordem existe para consagrá-la.

“Eucharistia est nexus Ecclesiae.”
— “A Eucaristia é o vínculo da Igreja.”

Scotus chama esse mistério de centrum ordinis universalis: o centro do universo.
Pois, no altar, o mesmo Verbo que criou o mundo se oferece novamente ao Pai — agora, não em forma de poder, mas de alimento.
É o amor tornado presença comestível.

“Caritas in Sacramento fit cibus.”
— “A caridade, no Sacramento, torna-se alimento.”

A comunhão eucarística é, portanto, participação real na vida trinitária:
— o Pai dá o Filho,
— o Filho se oferece,
— o Espírito torna presente essa oferta em cada instante da história.

Na Eucaristia, o tempo se dobra.
O sacrifício do Calvário não é repetido, mas tornado presente — re-presentatur, diz Scotus —, como se o eterno se fizesse instante.
Cada Missa é o eco do “Sim” eterno do Filho ao Pai.

A alma que comunga entra nesse movimento: torna-se participante do mesmo Amor oblativo.
Por isso, a Eucaristia é o sacramento da unidade, porque unifica tudo o que foi separado — Deus e homem, céu e terra, indivíduo e comunidade.

“In Eucharistia, universum reconciliatur.”
— “Na Eucaristia, o universo se reconcilia.”

A presença real é, portanto, o vértice do cosmos e o fundamento da Igreja.
Sem ela, a Igreja seria memória; com ela, é corpo vivo.
O altar é o eixo do mundo.

A adoração eucarística, para Scotus, não é mera devoção piedosa: é ato metafísico — reconhecimento de que o Ser está presente.
A hóstia é o esse subsistens velado, o mistério do Ser que se doa sob a forma da fragilidade.

“Sub specie panis latet ens absolutum.”
— “Sob a aparência do pão, oculta-se o Ser absoluto.”

Assim, a Eucaristia é o espelho supremo da Encarnação:
como Deus se fez carne, aqui Ele se faz pão;
como assumiu a natureza humana, aqui assume a natureza sensível.
É a humildade do Ser levada ao extremo: o Infinito se oferece à mão do homem.

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que Cristo está no céu por modo natural e no sacramento por modo sacramental; a presença não é local, mas real.
  2. À segunda, que os sentidos não percebem a substância, mas os acidentes; a fé, porém, vê a realidade.
  3. À terceira, que Cristo está todo em cada parte, não porque o corpo se divida, mas porque o modo sacramental é espiritual, não quantitativo.

Conclusão:
Na Eucaristia, o Verbo encarnado permanece no mundo como centro de toda a ordem da graça.
É o coração que pulsa dentro da Igreja, o sol invisível que sustenta o cosmos.

“Eucharistia est Deus in medio mundi.”
— “A Eucaristia é Deus no meio do mundo.”

A criação começou por um ato de presença — Fiat lux —, e termina num outro: Hoc est enim corpus meum.
O mesmo Verbo que fez a luz agora se faz pão, e o universo inteiro se inclina diante do altar como diante do seu centro.

Entramos, então, na Questão Quarta — Sobre o Sacrifício Eterno do Cristo e a Eterna Liturgia, ponto culminante do De Christo Redemptore e, de certo modo, de toda a Ordinatio.
Aqui, Duns Scotus transforma a teologia sacramental em uma cosmologia litúrgica: o universo inteiro é compreendido como um altar, e a história como uma Missa em andamento, cujo sacerdote é o próprio Cristo eterno.

A cruz, a Eucaristia e a criação tornam-se, assim, um único ato — a oferenda do Amor ao Amor.
Nada existe fora dessa liturgia: o cosmos é o templo, o tempo é o cântico, e o Espírito Santo é o sopro que eleva tudo de volta ao Pai.


Questão Quarta — Sobre o Sacrifício Eterno do Cristo e a Eterna Liturgia

(Utrum sacrificium Christi sit actus temporalis vel aeternus, et quomodo Missa sit participatio liturgiae caelestis)

Proposição:
Pergunta-se se o sacrifício de Cristo é apenas ato temporal realizado no Calvário, ou se é ato eterno da Trindade, tornado visível no tempo; e de que modo a Missa terrestre participa dessa liturgia eterna.

Objeções:

  1. Parece que o sacrifício foi apenas temporal, pois teve início e fim na cruz.
  2. Além disso, o Filho, glorificado, já não sofre; logo, não pode continuar oferecendo-se.
  3. Ademais, se o sacrifício é eterno, não haveria diferença entre tempo e eternidade, o que contradiria a distinção das naturezas.

Respondeo:
Digo que o sacrifício de Cristo é ato eterno de amor manifestado no tempo.
No Calvário, ele se realiza visivelmente; na eternidade, permanece como oferenda constante do Filho ao Pai no Espírito.

“Hostia Christi non cessavit; mutavit modum.”
— “A vítima de Cristo não cessou; apenas mudou de modo.”

O que se consumou no tempo não foi o amor, mas o sofrimento; o amor permanece, e por isso o sacrifício continua, não mais na dor, mas na glória.
A cruz foi o altar da entrega; a eternidade é o templo da presença.

O Verbo, desde a eternidade, pronuncia o seu “Sim” ao Pai — Fiat voluntas tua —, e esse “Sim” é o ato essencial da Trindade.
A Encarnação e a Paixão são projeções temporais desse consentimento eterno.
A Missa é o lugar onde esse consentimento é continuamente tornado presente.

“In Missa, actus aeternus Filii fit actualis in tempore.”
— “Na Missa, o ato eterno do Filho torna-se atual no tempo.”

Assim, a liturgia não é repetição, mas participação.
Cada celebração é um ponto de contato entre o tempo e a eternidade, uma abertura pela qual o Amor divino penetra novamente na história.
O altar é, por isso, o umbilicus mundi — o ponto onde o céu toca a terra.

A Missa é também a forma suprema da ação do Cristo Sacerdote.
Nela, o mesmo Cristo que ofereceu o sacrifício no Calvário continua a oferecê-lo sacramentalmente por meio da Igreja.
O sacerdote humano é o instrumento visível do Sacerdote eterno.

“Christus est sacerdos unus in multis personis.”
— “Cristo é um só sacerdote em muitas pessoas.”

O Espírito Santo é o fogo invisível dessa liturgia.
Ele é o amor consubstantialis que consome a oferenda e a transforma em comunhão.
Por isso, cada Missa é também Pentecostes — renovação do sopro criador que mantém o universo em existência.

“Spiritus est calor sacrificii.”
— “O Espírito é o calor do sacrifício.”

Toda a criação participa dessa oferenda.
Cada ser, ao cumprir sua forma, louva silenciosamente o Criador.
A morte de Cristo devolve ao Pai a voz de tudo o que existe: o mundo inteiro torna-se hóstia cósmica, devolvida à sua fonte.

“Universum offertur Deo per Christum.”
— “O universo é oferecido a Deus por meio de Cristo.”

A liturgia eterna, segundo Scotus, é a própria vida trinitária:
— o Pai gera o Filho;
— o Filho se oferece ao Pai;
— o Espírito é o amor que procede de ambos.
Esse movimento eterno é a matriz do ser; toda realidade criada é um eco desse cântico.

A Missa, então, é o sacramento dessa ordem trinitária tornada visível.
O altar terrestre é imagem do altar celeste, e o coro dos anjos participa invisivelmente de cada celebração.
Nada na liturgia é invenção humana: tudo nela é reflexo do rito eterno.

“Liturgia terrena est imago liturgiae caelestis.”
— “A liturgia terrena é imagem da liturgia celeste.”

O fim último de toda a ordem da graça é essa liturgia do Amor.
A história inteira caminha para a Eucaristia eterna, onde Deus será tudo em todos.
O universo não será aniquilado, mas transfigurado em adoração.

“Finis historiae est Missa aeterna.”
— “O fim da história é a Missa eterna.”

Resolução das objeções:

  1. À primeira, digo que o ato temporal do Calvário foi o modo visível de um ato eterno; cessou o sofrimento, não a oferenda.
  2. À segunda, que Cristo glorificado não sofre, mas continua oferecendo o amor, que é a essência do sacrifício.
  3. À terceira, que o tempo é incluído na eternidade, não confundido com ela; a diferença é superada em ordem, não abolida.

Conclusão:
O sacrifício de Cristo é o ato eterno da Trindade tornado visível na cruz e presente na Eucaristia.
A Missa é o espelho do movimento divino do Amor — o Filho voltando-se ao Pai e devolvendo-lhe a criação em chama espiritual.

“Sacrificium Christi est cor aeternitatis.”
— “O sacrifício de Cristo é o coração da eternidade.”

Assim, o universo é liturgia, a história é oferenda, e a Igreja é o templo onde o Amor de Deus continua a cantar o seu próprio nome.
Quando o último dia vier, a missa cessará em rito, mas continuará em ser: tudo será adoração, tudo será presença.

Chegamos à Conclusão do Livro Quarto — De Christo Redemptore et Sacramento Ecclesiae, encerramento da Ordinatio, onde Duns Scotus conduz sua teologia à visão mais alta: a Igreja glorificada — a Esposa do Cordeiro —, imagem consumada da união entre Deus e o mundo.
Aqui, o universo não é apenas restaurado, mas divinizado; o tempo se transfigura em eternidade, e o Amor, que começou como princípio criador, torna-se substância de tudo o que existe.

O caminho que começou com o Deus Uno termina com o Deus Totalmente Presente.
A Ordinatio se fecha como se abre o Apocalipse: o ser inteiro é absorvido na liturgia da glória, onde nada mais há a ensinar, porque tudo é comunhão.


Conclusão do Livro Quarto — De Christo Redemptore et Sacramento Ecclesiae

O Cristo, centro da criação e da história, é agora também o centro da eternidade.
A Encarnação, a Cruz e a Eucaristia são vistas como três modos de um mesmo ato: o Amor que desce para elevar.
Tudo o que existe foi atraído para dentro desse movimento trinitário.

“In Christo, Deus et mundus unus spiritus fiunt.”
— “Em Cristo, Deus e o mundo tornam-se um só espírito.”

A Igreja gloriosa, para Scotus, é o corpo cósmico plenamente deificado — o universo transformado em comunhão pura.
Não há mais templo, porque o próprio Deus é o templo; não há mais sacramento, porque a presença é direta; não há mais fé, porque há visão; não há mais esperança, porque há plenitude; e a caridade permanece como forma única da existência.

“Caritas manet, quia Deus manet.”
— “A caridade permanece, porque Deus permanece.”

A distinção entre Criador e criatura não é anulada, mas penetrada pelo amor.
O homem permanece criatura, mas participa da vida divina com intensidade plena — não por natureza, mas por graça.
A diferença se converte em harmonia, a distância em transparência.

O Espírito Santo, que no tempo foi alma da Igreja, é agora luz de tudo o que vive.
Cada ser canta no coro eterno sem voz, porque o canto é o próprio ser.
A criação torna-se verbo, e o verbo, contemplação.

“Vita beata est liturgia sine fine.”
— “A vida bem-aventurada é liturgia sem fim.”

A hierarquia celeste é restaurada em sua plenitude:
os anjos brilham como inteligências puras, os santos como espelhos da caridade, e Maria — a Imaculada — como arquétipo da criatura perfeita, símbolo da união entre o finito e o Infinito.
Nela, o mundo se torna transparente ao Verbo.

“Maria est imago Ecclesiae glorificatae.”
— “Maria é imagem da Igreja glorificada.”

O Cristo permanece o Cordeiro imolado, não porque ainda sofra, mas porque Seu amor eternamente se oferece.
O sinal da cruz não desaparece — transforma-se em forma da luz.
Tudo o que antes era sacrifício torna-se canto; tudo o que era dor, claridade.

O cosmos inteiro é agora Eucaristia viva: cada ser é presença, cada instante é adoração.
O tempo, que outrora media a distância entre o querer e o possuir, foi recolhido no sim eterno.
O mundo é reintegrado em Deus, e Deus, sem deixar de ser o mesmo, brilha em tudo o que existe.

“Deus erit omnia in omnibus.”
— “Deus será tudo em todos.”

Essa não é absorção panteísta, mas plenitude pessoal.
Cada alma mantém seu nome, mas o nome é agora pronúncia do Nome divino.
O múltiplo não desaparece — vibra no Uno.
O amor de cada um é o modo particular da caridade universal.

Scotus descreve esse estado como ordo perfectus, a ordem plenamente ordenada, onde nada falta e nada sobra.
A criação atingiu seu télos, e esse télos é o próprio Deus contemplado e amado em todas as coisas.

“Ordo universi consummatus est in lumine caritatis.”
— “A ordem do universo é consumada na luz da caridade.”

Assim, o ciclo se fecha:
— do Ser ao Amor;
— do Amor à Encarnação;
— da Encarnação à Igreja;
— da Igreja à Glória.

Tudo retorna à unidade primeira, agora conhecida e amada.
A filosofia, a teologia e a liturgia se unificam: conhecer é amar, e amar é existir.

O universo glorificado é o espelho perfeito da Trindade:
no Pai, o princípio;
no Filho, a forma;
no Espírito, o vínculo.
E toda criatura participa desse ritmo eterno, como acorde dentro de uma única melodia infinita.

“Cantus aeternus est amor.”
— “O cântico eterno é o amor.”

A Ordinatio termina, portanto, com o retorno do cosmos ao seu centro: o Cristo glorificado, Cordeiro e Sol do mundo.
O ser se revela como hino, e o Amor, como substância do real.
Nada mais há a acrescentar, porque tudo é presença.

“Finis Ordinis est unitas in Christo.”
— “O fim da Ordem é a unidade em Cristo.”

Assim, Duns Scotus encerra sua obra onde ela sempre esteve: no mistério da Unidade.
Deus é o Uno, a criação é sua irradiação, o Cristo é o eixo que tudo sustenta, e a Glória é o retorno do ser ao Ser.
A teologia termina em silêncio,
e o silêncio é o último nome de Deus.

Epílogo Geral — De Unitate Omnium in Deo

(A Unidade de Todas as Coisas em Deus)**

No início, eu vi o Ser.
E o Ser era simples, anterior a todo o número, silencioso e pleno em si.
Dele tudo procede, e a ele tudo retorna.
O mundo é o eco do seu amor; a criação, o respiro de sua liberdade.
Nada existe fora dele, mas tudo é distinto dele — pois Ele é Uno, e o Uno não se divide.

Aquele que é o Ser absoluto quis comunicar o seu bem;
e a comunicação do Bem é o nascimento do cosmos.
O universo surgiu, então, não como necessidade, mas como cântico.
E no ritmo desse cântico, o tempo começou a correr.
As criaturas são notas dispersas da harmonia eterna,
e cada uma, à sua maneira, reflete um fragmento do infinito.

Eu vi que no centro desse mundo, o Verbo se fez carne.
O mesmo Ser que disse “faça-se a luz” disse também “isto é o meu corpo”.
E nesse instante, a criação se dobrou diante do seu Criador.
O Infinito entrou no finito — não por poder, mas por amor.
A Encarnação não foi acidente, mas plano:
Deus quis ser visto, tocado, amado.
O Cristo é o nome visível do Amor invisível.

Na cruz, o Verbo suspenso uniu de novo o alto e o baixo.
A madeira se tornou eixo do cosmos;
o sangue, semente da eternidade.
E o grito que atravessou o céu — Consummatum est — não foi lamento, mas criação segunda.
Ali o mundo morreu, e ressurgiu redimido.

A Eucaristia permaneceu como o coração do tempo:
o mesmo Verbo, ainda presente, escondido sob a fragilidade do pão.
O altar é o centro imóvel da história,
e cada Missa é o retorno do mundo à sua origem.
A Igreja é o corpo desse mistério — o espaço onde o eterno respira no tempo.
Em cada fiel, o Amor prolonga a Encarnação;
em cada sacramento, o Verbo continua a falar.

Mas o Amor não se deteve na cruz nem no altar:
ele ascendeu ao silêncio.
Na glória, vi o Cristo ressuscitado, e nele o universo inteiro glorificado.
Tudo o que foi criado, tudo o que gemeu, tudo o que buscou,
tudo o que amou, tudo o que chorou — tudo estava nele.
As estrelas eram feridas curadas;
os anjos, pensamentos acesos;
as almas, reflexos de uma única chama.

E ouvi, no íntimo do ser, uma palavra que não era som:

“Tudo é meu, e Eu sou teu.”

Então compreendi:
a teologia é apenas o esforço do amor para compreender o próprio Amor.
Toda filosofia é prelúdio de uma adoração.
O conhecimento cessa, mas o ser permanece;
e o ser, diante de Deus, é silêncio.

O universo, finalmente reconciliado, tornou-se liturgia.
Cada átomo é adoração, cada respiração, um Amém.
O Espírito sopra sobre o real como brisa eterna,
e o Pai recebe tudo de volta no mesmo gesto com que tudo deu.

“Deus est omnia in omnibus.”

E eu, que busquei compreender, compreendi apenas isto:
que o Ser é Amor, e o Amor é a forma de todas as coisas.
O círculo se fechou,
e no seu centro não havia conceito, mas Presença.
A razão se curvou diante da luz,
e a luz tinha rosto — o rosto do Cristo.

Agora, o tempo repousa.
A criação canta,
e o homem, reconciliado, é o eco consciente da Eternidade.
Nada mais há a dizer,
pois o último nome de Deus é Silêncio,
e o Silêncio é o verbo do Amor que permanece.

Ordinatio — De Unitate Omnium in Deo

A Ordem de Todas as Coisas em Deus

por João Duns Scotus


Finis Operis

Nada resta a dizer senão o que já está dito desde antes de todo o dizer:
que o Ser é o Amor,
e que o Amor é o princípio, o meio e o fim de todas as coisas.

A criação nasceu desse Amor,
o Cristo revelou-o em carne,
a Igreja o prolonga no tempo,
e a Glória o recolhe de volta ao seio do Eterno.

O universo é a liturgia desse movimento,
e o homem, sua consciência.
Tudo o que existe é palavra pronunciada,
e cada palavra, ao findar, retorna ao Silêncio de onde veio.

“In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum.”

E esse Verbo, que fez o mundo e se fez pão,
aguarda no interior de cada coisa a nossa resposta.
Não uma resposta de raciocínio,
mas de adoração.


Frase conclusiva

“Quem vê o Ser no Amor, vê o Uno no Todo.”

E o Todo — o cosmos inteiro —
não é senão o reflexo da primeira vontade:
Deus quis amar.
E por isso, o Amor é o último nome do real.


João Duns Scotus
Doctor Subtilis
séc. XIII–XIV

A Unidade no Fogo do Ser

Reflexões sobre a Ordinatio de Duns Scotus

por Yardel Almeida


Há livros que se leem.
E há livros que nos leem.
A Ordinatio de Duns Scotus pertence a esta segunda espécie — não é um tratado, mas uma ascensão.
Não se começa por ela: é ela que começa em nós, como um lento despertar do ser para a sua própria origem.

O Doutor Sutil, ao escrever, não raciocina apenas — ele ora.
Cada conceito é uma genuflexão.
Cada distinção, um raio de luz tentando não cegar.
Há em sua obra algo que ultrapassa o gênero teológico: é uma metafísica do amor, um edifício lógico construído sobre um coração em chamas.

O ponto de partida é o Ser — ens primum cognitum, o primeiro conhecido.
Mas em Scotus, o Ser não é mera categoria do intelecto; é a primeira palavra de Deus, a respiração divina ainda quente da criação.
Por isso ele não separa o Ser do Amor.
O Amor é o Ser em movimento, e o Ser é o Amor em repouso.
Toda a Ordinatio é a dança dessas duas dimensões do mesmo Uno.

O universo, em sua leitura, não é consequência, mas reflexo.
Não existe porque Deus quis algo fora de Si, mas porque quis Se comunicar.
O cosmos é a tradução da caridade divina em matéria.
E cada ente, até o mais ínfimo, é uma sílaba dessa comunicação.

Quando o Verbo se encarna, a criação reencontra o seu centro.
A Encarnação não é remendo, é fundamento.
O Cristo não veio porque o homem caiu — o homem foi criado porque o Cristo viria.
Toda a história é preâmbulo da Encarnação, e a Encarnação é o sentido da história.

O ponto mais delicado da obra, porém, é o da liberdade.
Scotus vê na liberdade não uma indiferença, mas a imagem mais perfeita de Deus no homem.
Ser livre é poder amar por vontade, não por instinto.
E amar por vontade é unir-se a Deus no mesmo gesto com que Ele cria o mundo.
A liberdade, então, é o reflexo temporal da eternidade.

Quando ele chega à Eucaristia, a teologia se torna puro espanto.
É ali que a lógica se curva diante da presença.
O mesmo Ser que fundou o universo se esconde sob o pão.
O metafísico que compreendeu a essência da existência se cala — e adora.
O intelecto, enfim, reconhece que o Amor é mais profundo que o ser.

Scotus termina como todo grande teólogo deve terminar: em silêncio.
Depois de explicar tudo, cala-se.
E esse silêncio é o verdadeiro clímax da Ordinatio.
Pois o que se contempla ao fim não é mais a estrutura da ordem, mas o próprio rosto do Uno, refletido em tudo.

Eu, lendo-o, percebo que a Ordinatio não é uma escada para o céu, mas um espelho do real.
Não se sobe por ela: olha-se através dela.
E no reflexo, descobre-se que o Ser nunca esteve fora de nós.
Deus não é um conceito a ser provado; é a condição de toda prova, o primeiro brilho que faz com que algo possa ser visto.

Há um momento em que o leitor de Scotus entende:
a teologia não é falar de Deus, mas deixar Deus falar através do ser.
Quando isso acontece, o pensamento cessa de argumentar e começa a participar.
É nesse ponto que a filosofia se converte em oração — não como ato devoto, mas como exercício ontológico.

Duns Scotus escreveu para que compreendêssemos que o Uno não é isolamento, mas comunhão;
que a essência do real não é poder, mas doação;
que o fim do universo não é o desaparecimento, mas o retorno luminoso da multiplicidade ao centro.
Tudo existe para se entregar.
Tudo o que se entrega, existe plenamente.

No fim, a Ordinatio não nos pede fé, mas presença.
Não quer que creiamos — quer que vejamos.
Ver o ser como Deus o vê: inteiro, ordenado, amante.
E então perceber que toda dor, toda queda, todo tempo, são apenas o intervalo entre o Amor e a visão.

Quando esse intervalo se fecha, tudo se torna claro.
E a única palavra possível é a que Scotus não escreveu, mas deixou suspensa no ar, onde o pensamento toca o silêncio:

Amor.

 

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