quinta-feira, 20 de novembro de 2025

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TRADUÇÃO INTEGRAL (REFEITA) ATÉ A ÚLTIMA LINHA DO TEXTO ENVIADO


CONTEÚDO

Preface
Prefácio

Introduction
Introdução

Part One: Tradition vs. the New Age
Parte Um: Tradição vs. a Nova Era

Foreword
Prefácio

1 Postmodernism, Globalism, and the New Age
1 Pós-modernismo, Globalismo e a Nova Era

2 Who are the Traditionalists?
2 Quem são os Tradicionalistas?

3 What is the New Age?
3 O que é a Nova Era?

I A Short History of the ‘Spiritual Revolution’ and the New Age Movement
I Uma Breve História da “Revolução Espiritual” e do Movimento Nova Era

II The Dangers of the Occult
II Os Perigos do Oculto

III New Age Doctrines Refuted
III Doutrinas da Nova Era Refutadas

4 New Age Authorities: A Divided House
4 Autoridades da Nova Era: Uma Casa Dividida

I The Fallacy of the Psychic Absolute: Truth and Deception in The Seth Material
I A Falácia do Absoluto Psíquico: Verdade e Engano em The Seth Material

II The Postmodern Traveler: Don Carlos Castaneda
II O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda

III Transcendence without Immanence: The Neo-Gnosticism of A Course in Miracles
III Transcendência sem Imanência: O Neognosticismo de Um Curso em Milagres

IV The Celestine Prophecy: a Pre-Columbian Singles Culture
IV A Profecia Celestina: Uma Cultura de Solteiros Pré-colombiana

V Having It vs. Eating It: The Entrepreneurial Hinduism of Deepak Chopra
V Ter vs. Consumir: O Hinduísmo Empresarial de Deepak Chopra

Part Two: Spiritual Warfare
Parte Dois: Guerra Espiritual

5 The Shadows of God
5 As Sombras de Deus

6 The War Against Love
6 A Guerra Contra o Amor

7 UFOs and Traditional Metaphysics: A Postmodern Demonology
7 OVNIs e a Metafísica Tradicional: Uma Demonologia Pós-moderna

8 Vigilance at the Eleventh Hour: A Refutation of The Only Tradition
8 Vigilância na Décima Primeira Hora: Uma Refutação de The Only Tradition

9 Comparative Eschatology
9 Escatologia Comparada

10 Facing Apocalypse
10 Encarando o Apocalipse

Index
Índice


Nasir [Xerife de Medina] virou-se de costas, com meus óculos, e começou a estudar as estrelas, contando em voz alta primeiro um grupo e depois outro; gritando de surpresa ao descobrir pequenas luzes que não percebia a olho nu. Auda nos levou a falar de telescópios — dos grandes — e de como o homem, em trezentos anos, avançara tanto desde seu primeiro ensaio que agora construía lentes tão longas quanto uma tenda, através das quais contava milhares de estrelas desconhecidas. Passamos a falar de sóis além de sóis, de tamanhos e distâncias além da inteligência.

“E o que acontecerá agora com esse conhecimento?”, perguntou Mohammed.

“Nós prosseguiremos, e muitos homens eruditos e alguns inteligentes juntos farão lentes mais poderosas do que as nossas, assim como as nossas são mais poderosas que as de Galileu; e ainda mais centenas de astrônomos distinguirão e contarão mais milhares de estrelas agora invisíveis, mapeando-as e dando a cada uma seu nome. Quando as virmos todas, não haverá noite no céu.”

“Por que os ocidentais sempre querem tudo?”, disse Auda provocando. “Atrás das nossas poucas estrelas conseguimos ver Deus, que não está atrás de seus milhões.”

“Queremos o fim do mundo, Auda.”

“Mas isso pertence a Deus”, reclamou Zaal…

T. E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom


Um grupo do meu povo não deixará de lutar pela verdade até a vinda do Anticristo… mas Deus o matará pela mão de Jesus, que lhes mostrará seu sangue sobre a lança.
Hadith


Prefácio

Neste livro tentarei realizar dez coisas:

Tomar sondagens da cena religiosa e cultural atual do ponto de vista da metafísica tradicional.

Introduzir a um público leitor mais amplo as doutrinas da “Escola Tradicionalista”: René Guénon, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon, Martin Lings, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr, Huston Smith et al., e, no processo, dar ao leitor um vislumbre da cidade do Tradicionalismo e do campo de batalha espiritual que a rodeia.

Com base na metafísica tradicional, criticar as doutrinas das espiritualidades da Nova Era dentro do contexto do pós-modernismo, do qual são uma expressão.

Demonstrar, durante essa crítica, que metafísica, misticismo e esoterismo são fundamentalmente diferentes e muitas vezes radicalmente opostos às práticas mágicas, à busca de poderes psíquicos e à canalização de “entidades espirituais”.

Demonstrar aos meus amigos cristãos que não são apenas eles que veem, no Neopaganismo e na Nova Era, um declínio na compreensão cultural tanto de Deus quanto do homem.

Apresentar tradições e profecias relativas aos “últimos dias” do ciclo presente sob o ponto de vista da religião comparada, recorrendo a doutrinas relevantes do Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo, Islã, Zoroastrismo e povos nativo-americanos.

Publicar os sinais e especular sobre a natureza social, psíquica e espiritual daquele ser conhecido pelo Cristianismo, Judaísmo e Islã como o Anticristo; apresentá-lo como indivíduo e como sistema; alertar aqueles dispostos a serem alertados contra a sedução espiritual e o terror que ele representa, e contra o regime que será — e é — a expressão social dessa sedução e desse terror.

Rastrear as raízes do Anticristo na natureza esquecida e/ou caída do homem.

Começar a definir a qualidade particular da espiritualidade própria aos tempos apocalípticos, os perigos que enfrenta e as oportunidades únicas que se abrem a ela.

Traçar meu próprio percurso desde a “revolução espiritual” dos anos 1960, passando pelo mundo das espiritualidades da Nova Era, até o limiar do esoterismo e da metafísica tradicionais.


O paradigma modernista-materialista, segundo o qual dinâmicas históricas e intervenções sobrenaturais não podem ambas ser aceitas como explicações para as notícias diárias, ainda possui força. E o pós-modernismo, agora claramente a visão dominante, embora possa estar mais próximo de validar ambas essas realidades, só as admite como mundos fechados de significado unidos por nenhum “paradigma abrangente”.

Consequentemente, fui forçado — não contra a minha vontade, mas de acordo com meu deleite — a retornar à metafísica tradicional (que, embora profundamente consistente, não pode ser um sistema fechado, já que se abre para o Infinito) como a única visão de mundo que pode dar sentido unificado à experiência pós-moderna, como a ideologia pós-moderna claramente e abertamente não pode fazer.

Às vezes escrevo como erudito, às vezes como teósofo especulativo, às vezes como popularizador de princípios metafísicos básicos para o leitor geral, às vezes como crítico social, às vezes como autobiográfico, às vezes como poeta. Cruzo essas fronteiras proibidas deliberadamente. Tão reduzida e fragmentada é a consciência da humanidade dos “últimos dias” — em parte como reflexo automático da qualidade do tempo, em parte como resultado de um programa deliberado de hipnose social em massa — que somente o choque de encontro com uma amplitude e profundidade de significação proibidas socialmente pode despertá-la, agora que choques repetidos e a subsequente anestesia a deixaram entorpecida.

O remédio específico para o choque do desespero é o choque mais profundo do significado. Onde o tempo e a história nos esmagaram sob sua “insuportável leveza”, nada além do peso da eternidade, rompendo a fina e frágil casca do céu pós-moderno, pode nos colocar de pé. Esse é um dos vários significados da palavra “apocalipse”.


Introdução

No início do terceiro milênio, a raça humana está no processo de esquecer o que significa ser humano. Não sabemos quem ou o que somos; não sabemos o que deveríamos estar fazendo aqui, em um cosmos que rapidamente se torna nada além de uma tela para a projeção de fantasias aleatórias e cada vez mais demoníacas.

A vida humana já não é sentida como valiosa diante da eternidade simplesmente porque é criação de Deus, nem nos é tão fácil quanto antes ver o empreendimento humano como valioso devido às nossas realizações coletivas ou ao impulso histórico que as produziu, já que, sem uma escala de valores enraizada na eternidade, a realização não pode ser medida, e sem uma meta eterna para a qual o tempo necessariamente tenda (no sentido espiritual, não material, dado que a eternidade não pode estar no fim de um movimento linear acelerado que é precisamente fuga de tudo que é eterno), a história é uma estrada que leva a lugar nenhum.

Chamamos esse estado de coisas de “pós-modernismo”.

Todos nós, de alguma forma, sabemos disso. Sentimos isso nos ossos. Mas não conseguimos abarcar; não conseguimos definir a escala do que enfrentamos ou do que perdemos, porque já não possuímos a verdadeira escala do que somos. Assumimos o nome de pós-modernos, mas seria mais próximo da verdade dizer que somos pós-humanos — não em essência, mas em efeito, já que qualquer conceito de natureza humana adequado à essência humana foi descartado como ultrapassado.

O humanismo não é suficiente para nos dizer o que significa ser humano. A ciência é ainda menos capaz de suportar esse fardo, razão pela qual desistiu de tentar. Somente a religião, entendida em seu sentido mais profundo, pode fazer essa pergunta e respondê-la. E somente uma compreensão completa das forças sociais e psíquicas que escondem o rosto da Realidade Absoluta e Infinita que chamamos “Deus” pode nos mostrar a escala verdadeira do que ameaça a forma humana nestes “últimos dias”, quando o ciclo presente do tempo biológico e humano aproxima-se de seu fim.

Se o nome “Deus” denota a verdade eterna das coisas, e o nome “Homem” o espelho central dessa Verdade no espaço e tempo terrestres, então o nome dessas forças de obscuridade e negação que são opostas ao “Homem”, em sua forma plenamente revelada e terminal, é “Anticristo”.


Os Últimos Dias

É comum hoje imaginar que o universo, de acordo com ideias progressistas e evolucionistas, deve de alguma forma estar avançando espiritualmente. Se concluirmos que a evolução espiritual do macrocosmo não é possível, podemos até nos perguntar qual é o valor ou proveito da existência material. Para que serve? Para que existe? Com medo de nos tornarmos “gnósticos”, que negam o valor da vida terrestre, acabamos negando o significado eterno desta própria vida.

O problema com o conceito de que o universo evolui para níveis superiores de organização, conceito básico nas doutrinas de Teilhard de Chardin, Rudolf Steiner e muitos outros mestres da Nova Era (bem como na tentativa dentro do Judaísmo de aplicar a Cabala Luriânica — e no Ismaelismo, a ideia de uma “desvelação” em massa das realidades espirituais — à evolução histórica), é a Segunda Lei da Termodinâmica.

Essa lei afirma que, por meio da entropia, a ordem geral da matéria/energia no universo está sempre diminuindo — uma diminuição inseparável, em princípio, da expansão do universo iniciada no Big Bang.

Em certo momento, cientistas postularam grandes quantidades de “matéria escura” que permitiriam ao universo contrair-se novamente, via gravitação, quando o impulso do Big Bang se esgotasse. Entretanto, no momento em que este texto foi escrito, a opinião científica tende a afastar-se dessa hipótese. Assim, parece que o universo material deve continuar expandindo-se e aumentando sua desordem para sempre.

Isso está de acordo com a metafísica tradicional.
“Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda.
“Tudo perece, exceto Seu Rosto”, diz o Alcorão.

A criação, segundo a visão tradicional, é um sucessivo rebaixamento de ordens superiores de realidade para ordens inferiores. Deus, que em Sua Essência está totalmente além de forma, número, matéria, energia, espaço e tempo, deve — como Frithjof Schuon nunca se cansou de afirmar — “transbordar” nessas dimensões da existência porque Ele é Infinito; não existe em Sua Natureza qualquer barreira que impeça a irradiação de Seu Ser superabundante.

As escatologias tradicionais, em grande parte, concordam com a Segunda Lei da Termodinâmica. Em vez de progresso — mito que não tem mais que três ou quatro séculos em sua forma moderna — elas postulam uma entropia espiritual, social e cultural.

Isso é particularmente verdadeiro no Hinduísmo e na mitologia greco-romana clássica, com sua ideia de que um ciclo de manifestação emerge completamente formado do Criador sob a forma da Idade de Ouro, seguida pela Idade de Prata, de Bronze e, finalmente, pela Idade de Ferro, que termina em um cataclismo escatológico, um Dia de Purificação, após o qual a Idade de Ouro do próximo ciclo começa.

Esse esquema é mais ou menos aceito, através de diferentes linguagens mitológicas, por judeus tradicionais, cristãos, hindus, e até pelos índios Lakota (Sioux) e outros povos primordiais. (Os budistas, embora sua doutrina de ciclos tenda a negar a possibilidade de uma renovação abrupta, também aceitam que a era presente terminará em cataclismo.)

As doutrinas dentro das religiões reveladas tradicionais que parecem falar de progresso espiritual do mundo manifestado — como o conceito na Cabala Luriânica do tikkun, ou restauração universal — são:

Uma aplicação equivocada ao coletivo de doutrinas que pertencem ao desenvolvimento espiritual individual;

Ou a ideia de que Deus continuamente cria e sustenta o mundo manifestado, podendo conceder a um indivíduo, dispensação religiosa ou nação um papel especial na renovação da Imagem Divina para uma época, dentro do contexto mais amplo da degeneração geral;

Ou a referência ao retorno escatológico de toda manifestação a Deus no fim dos tempos.

O que é criado deve deixar a Casa do Criador para existir; e aquilo que entrou na manifestação cósmica já começou a morrer.

Os crentes periodicamente prevêem o triunfo final (embora temporário) do mal nos últimos dias, o fim do mundo e a vinda do Messias. Os não-crentes zombam quando tais previsões parecem não se cumprir. Eles poderão continuar zombando até o momento em que o mundo realmente terminar, depois do qual nem crentes nem descrentes terão, em termos mundanos, oportunidade ou impulso de dizer “eu não disse?”.

Nesse último instante de verdade, encontrar-se-ão face a face com uma Realidade tão profunda e tão rigorosamente exigente que suas opiniões — certas ou erradas — e as razões psicológicas para sustentá-las desaparecerão na insignificância. Apenas o motivo essencial pelo qual se apegaram à Verdade ou caíram no erro lhes restará, como sinal de seu destino eterno diante do rosto de Deus.

Os não-crentes dizem:
“Em todas as gerações houve pessoas que pensaram viver nos tempos mais sombrios; essa lamúria sobre degeneração humana nos ‘últimos dias’ não é novidade.”

E os crentes — ao menos os tradicionais — concordam. Segundo um hadith do Profeta Muhammad (que a paz esteja sobre ele):
“Não virá sobre vós uma geração que não seja seguida por outra pior.”

A história não desce de forma uniforme — há picos e vales, reavivamentos religiosos, retificações, renovações parciais de tradições espirituais, pequenas e breves idades de ouro, lutas heroicas para restabilizar a sociedade em níveis mais baixos, renascimentos impulsivos baseados no desejo de dissipar o capital cultural e espiritual herdado — mas a direção é sempre da ordem para o caos.

A capacidade humana de ver, compreender e nutrir-se das realidades espirituais superiores se reduz inevitavelmente. À medida que se afasta do Sol espiritual, a luz da Verdade diminui; o calor da Vida desvanece.

O resultado final desse processo é o fim de um mundo ou de uma idade.
Esse mundo pode nunca terminar nos calendários dos simplórios que tomam literalmente as previsões, mas ele terá de terminar algum dia.

E considerando que hoje possuímos mais meios de autodestruição do que qualquer geração anterior, a distância entre nós e as condições finais não parece infinita.

Se considerarmos seriamente a possibilidade de estar vivendo nos últimos dias, enfrentamos dois problemas:

Definir o que “últimos dias” significa;
E decidir se há evidências além de sentimentos sombrios que justifiquem essa conclusão.

Meu argumento não é que vivemos nos últimos dias absolutos da criação — pois ninguém sabe quando virão — mas nos últimos dias de um ciclo de existência humana, marcado por degradação gradual espiritual, social e cultural, conduzindo a uma ruptura.

Estamos, como nunca antes na história humana, com meios concretos de pôr fim ao mundo: seja por guerra nuclear, química ou biológica, seja pela degradação ambiental — ou ainda pela desconstrução da própria forma humana por meio de engenharia genética movida por forças econômicas cegas, pelos caprichos de tolos emocionalmente desequilibrados ou inspirados demoníacamente, e certamente pelo medo e pelo desejo humanos primordiais, não temperados nem pela sombra da sabedoria. Uma meditação sobre os Tempos Finais é, no mínimo, oportuna.

E, na verdade, ela é sempre oportuna. Todos os dias uma nova geração passa para o esquecimento. É sempre o pior dos tempos: um dia mais distante do Jardim do Éden, quando o mundo, recém-saído das mãos do Criador, era jovem — e sempre o melhor dos tempos: um dia mais próximo do Momento inevitável em que a contingência e a ilusão precisam ruir, e a Realidade Absoluta deve amanhecer, de forma definitiva, sobre este mundo que morre, esta imagem móvel da Eternidade.


O Anticristo

A degeneração espiritual da humanidade não pode continuar indefinidamente; ela deve atingir um ponto terminal, além do qual a própria forma humana, ao menos em sua encarnação terrena, já não poderia sobreviver. E, em consonância com o princípio corruptio optimi pessima — “a corrupção do melhor é a pior” — o ponto mais baixo da receptividade espiritual humana deve, segundo muitas tradições espirituais, manifestar-se não apenas como o desaparecimento da espiritualidade, mas como a sua falsificação satânica.

É daí que vem o mito do Anticristo — mito que, poucos percebem, é tão importante no Islã quanto no Cristianismo, já que os muçulmanos acreditam que o profeta Jesus retornará à terra no fim dos tempos para enfrentar esse Adversário e matá-lo em batalha.

Assim como o ego é a sombra do Eu Divino em nós, o Anticristo é a sombra do Messias — do salvador escatológico que representa o desvelamento completo do Eu Divino no fim do ciclo. Muitas vezes, o ego chega a um clímax de desespero, delírio e violência justamente quando um avanço espiritual é iminente; da mesma forma, o Anticristo reunirá em si todas as forças sociais e psíquicas que escolheram resistir a Deus exatamente no momento em que o Rosto do Absoluto estiver prestes a amanhecer sobre o mundo. As palavras de Mestre Eckhart poderiam muito bem ter sido ditas sobre o Anticristo, assim como foram certamente ditas sobre o ego humano: “Quanto mais ele blasfema, mais ele louva a Deus.”


O Messias

Ao longo da história, religiões que esperam por um Messias sempre tenderam a concretizá-lo. De tempos em tempos surge um Mahdi no Islã, apenas para ser cooptado ou derrotado. Sabbatai Zevi, falso messias do século XVII, comoveu profundamente o mundo judaico, apenas para depois converter-se ao Islã sob ameaça de morte imposta pelo sultão turco. E o Cristianismo certamente não está livre de seus falsos Cristos e falsos profetas. Então quem é o verdadeiro Messias? Como reconhecê-lo?

O verdadeiro Messias está eternamente chegando ao mundo, eternamente rompendo suas dimensões espaço-temporais e eternamente atraindo seus seguidores para a comunhão de Seu reino. Na medida em que os “falsos” messias são receptivos a essa verdade, são, de certo modo, messias parciais — reflexos imperfeitos do próprio Messias. Mas, na medida em que se identificam com o papel messiânico no nível do ego, alimentando assim o ego coletivo dos seus seguidores — e é o que sempre fazem — tornam-se anticristos.

A humanidade, afundada no materialismo, não pode ser despertada do “pesadelo da história” sem algum tipo de esperança histórica. Mas essa esperança é sempre frustrada. A revolução é cooptada. A renascença se desfaz. A renovação espiritual torna-se alimento para a literalização da doutrina e o enrijecimento das linhas sociais e culturais. O Espírito está sempre dando vida; a letra está sempre arrastando essa vida para o túmulo da contingência, para o tempo e para a história.

Aqueles que, respondendo à esperança messiânica, passam do turbilhão do tempo para a visão da Eternidade encontraram o verdadeiro Messias. Aqueles que não rompem seu pacto com o tempo — porque esperam algo do destino e da contingência, ou porque acreditam tola e arrogantemente que podem manipulá-los — caíram na armadilha do Anticristo.

Quando, então, virá o verdadeiro Messias? A resposta é sempre dupla: Ele virá Agora; Ele virá no Fim. Se habitamos o Agora, estamos à Sua espera; se não ocupamos o Agora, perderemos Sua vinda. Já O perdemos inúmeras vezes. Mas quando o Agora e o Fim coincidirem — o fim deste ego, o fim deste mundo — então estaremos na presença do Messias.

A história sempre nos leva para longe do dia da vinda messiânica, longe da porta do Agora — e, no entanto, a história um dia terá de terminar; esta partida infinita deverá, num instante misterioso, transformar-se em chegada. O que recebemos no segredo do coração e o que surge nos “horizontes” da realidade exterior devem um dia convergir. Como diz o Alcorão: “Eu lhes mostrarei Meus sinais nos horizontes e em si mesmos, até que saibam que isto é a Verdade. Não vos basta isso, visto que Eu sou Testemunha de todas as coisas?”


A Profecia de René Guénon

Minha abordagem fundamental neste livro segue a metafísica tradicional, tal como apresentada pelos autores da Escola Tradicionalista. Para a metafísica “pura”, segui sobretudo Frithjof Schuon. Para a própria escatologia — a ciência das “últimas coisas” — apoiei-me em Martin Lings, especialmente em seu livro The Eleventh Hour, e ainda mais no fundador dos Tradicionalistas, René Guénon, cujo livro profético O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, publicado em 1945, torna-se mais relevante a cada ano que passa.

Mas, embora tenham sido os Tradicionalistas que me apontaram os caminhos para as escrituras das religiões do mundo, para os escritos dos grandes sábios e para as lendas dos povos primordiais, não me limitei estritamente às doutrinas deles; em muitos casos consultei diretamente os documentos primários. Parafraseando Blake, olhei através dos olhos deles, e não com eles.

Em O Reino da Quantidade, Guénon via a história segundo o conceito hindu de manvantara — o ciclo de manifestação composto de Idades de Ouro, Prata, Bronze e Ferro. Ele via esse ciclo como uma descida inevitável do polo da Essência, ou forma — o Purusha hindu — para o polo da Substância, ou matéria — a Prakriti hindu. A Essência é qualitativa, embora transcenda a própria qualidade. A Substância é quantitativa, embora, em realidade, esteja abaixo da própria quantidade.

À medida que o ciclo progride — ou melhor, desce — a própria natureza do tempo e do espaço se transforma. Nas idades antigas, o espaço domina; as formas das coisas são mais importantes, mais reais, do que as mudanças que sofrem; o tempo é “relativamente eterno”. Porém, conforme o ciclo avança, o tempo começa a dominar, derretendo o espaço e as formas nele contidas, até que tudo se torna um fluxo acelerado de mudança.

Talvez compreendamos melhor o que Guénon quis dizer se lembrarmos que, quando estamos em profundo silêncio e calma, o espaço parece mais real que o tempo; quando estamos agitados, o tempo parece mais real que o espaço. E não é difícil perceber como modos de viagem mais rápidos e, sobretudo, os meios eletrônicos — que agitam e perturbam a consciência — também aniquilam o espaço; o ciberespaço, em particular, é a aniquilação de toda dimensão espacial. Nos últimos dias, nada mantém uma forma estável. Tudo se move cada vez mais rápido, até que toda forma — incluindo a Forma Humana — torna-se um borrão disforme.

Mas essa aceleração constante do tempo não pode continuar para sempre. Em algum ponto, ela terá de cessar. “O tempo devorador”, cita Guénon, “acaba por devorar a si mesmo.” No fim do tempo, o tempo será instantaneamente transformado novamente em espaço. Esse ponto supremo e atemporal é simultaneamente o fim deste ciclo de manifestação e o início do “próximo”.

Mas antes dessa transformação última, nos últimos dias do ciclo atual, certos desenvolvimentos finais devem ocorrer. Como a quantidade tem relação particular com a matéria, o “reino da quantidade” deve também ser o reino do materialismo — e onde ideias materialistas dominam, o próprio ambiente cósmico torna-se, de certo modo, mais material. A “era dos milagres” cessa; o mundo torna-se menos permeável às influências dos planos superiores de realidade; a própria crença nesses planos — bem como num Deus eterno e transcendente — torna-se mais difícil de sustentar.

A própria densidade do materialismo, contudo, acaba produzindo uma espécie de “fragilidade”. O ambiente cósmico, tendo perdido boa parte da flexibilidade que lhe permitia ser movido pelo Espírito Divino, começa a rachar, como uma árvore velha que já não pode curvar-se ao vento, e termina por ser arrancada pela tempestade. Mas essas fissuras no ambiente cósmico — na “Grande Muralha” que separa o mundo material do mundo das energias sutis — ocorrem primeiro no sentido descendente, e não ascendente, permitindo a entrada de uma inundação de forças “infra-psíquicas”, ora neutras, ora demoníacas.

Na volatilização geral do mundo sensível produzida pela mídia eletrônica e por nossa “cultura da informação”; talvez também pelo predomínio da poluição eletromagnética e pela liberação de energia nuclear; pelo interesse contemporâneo em drogas psicodélicas, magia e poderes psíquicos; e mais claramente pelo chamado “fenômeno OVNI”, que teve um efeito incalculável sobre nossa visão comum da realidade — podemos ver os efeitos diretos dessas forças sobre a qualidade da nossa consciência, sobre a estrutura da nossa sociedade, sobre nossas formas culturais e sobre nossas prioridades econômicas.

E essas forças infra-psíquicas não operam sozinhas. Tendências culturais formam-se ao redor do zeitgeist infra-psíquico, e, dentro desse contexto, grupos organizados surgem em resposta às forças que lhes deram origem. Em alguns casos, esses grupos consistem apenas de pessoas que adotam os mitos modernistas ou pós-modernistas do “espírito do tempo”. Em outros casos, entretanto, tais grupos adoram abertamente as forças que os inspiraram, sem compreender que se colocaram contra a sabedoria perene, contra as verdades metafísicas das eras. A estes Guénon chama de “anti-tradicionais” ou “pseudo-iniciáticos”. A maior parte das organizações Nova Era se encaixaria nessa definição. E, por fim, existem grupos cujo objetivo é minar deliberadamente a religião revelada e a metafísica tradicional, para instaurar o reino do Anticristo; estes, segundo Guénon, são os agentes da “contra-tradição” e da “contra-iniciação”: “os contemplativos de Satanás”, cuja função é subverter não apenas a religião exotérica, mas também a espiritualidade esotérica.

Por mais deprimente que isso possa soar, tais desenvolvimentos são totalmente legítimos, dadas as condições finais do ciclo. As possibilidades mais baixas da manifestação também precisam ter seu dia; e, felizmente, como são inerentemente instáveis — baseando-se não na Verdade, mas apenas no poder — esse dia será breve. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” E existem certas possibilidades espirituais da mais alta ordem que nunca poderiam ser realizadas senão diante desse desafio demoníaco extremo à integridade do espírito humano.


Meus Dignos Oponentes

Neste livro, tentarei, entre outras coisas, expor os erros do pós-modernismo criticando algumas das doutrinas centrais daquilo que passou a ser chamado de “espiritualidade da Nova Era”, o nome contemporâneo de uma vertente do ocultismo extra-cristão — e às vezes anti-cristão — que pode ser rastreada ao menos até a Renascença. Se o pós-modernismo é a negação filosófica final da metafísica, então uma análise da falsa metafísica da Nova Era é uma via pela qual o pós-modernismo pode ser criticado — não necessariamente a melhor, mas sem dúvida a que estou mais apto a trilhar, dada minha formação.

Seja dito claramente, antes de prosseguir:

Primeiro: o mundo das espiritualidades da Nova Era não é, em si, o sistema do Anticristo. Toda espiritualidade na Terra acabará contribuindo com algo para esse regime — as falsas espiritualidades por sua própria existência; as verdadeiras, segundo o princípio corruptio optimi pessima, porque “a corrupção do melhor é a pior”. É por isso que, por exemplo, os muçulmanos acreditam que o Anticristo será muçulmano, e os cristãos ortodoxos acreditam que ele surgirá da Ortodoxia Oriental.

Segundo: nem todos os envolvidos com espiritualidades da Nova Era são necessariamente almas perdidas. Alguns — Deus o sabe — podem até ser santos. Apesar do comercialismo que permeia a Nova Era, muitos de seus praticantes são sinceros. E, já que o Espírito de Deus “sopra onde quer”, alguns deles estão inevitavelmente na longa e espinhosa estrada para a plenitude da Verdade divina, embora eu jamais indicasse tal estrada a quem busca a Verdade. Isso não significa que a sinceridade seja suficiente para proteger alguém dos danos intelectuais e espirituais causados por doutrinas objetivamente falsas; significa apenas que o sincero é capaz de arrepender-se de seu erro quando confrontado com a Verdade objetiva, ao passo que o hipócrita não o é.

Terceiro: não pretendo atribuir a todos os mestres da Nova Era ou ideólogos pós-modernistas os mesmos erros. A maioria dos meus adversários deplora muitos dos males modernos que eu também deploro. Não estou dizendo que fazem parte de uma vasta conspiração unificada. Apenas os tomo como marcos nos diversos afluentes que correm para o centro da escuridão contemporânea.

Quarto: nem todas as práticas da Nova Era são necessariamente destrutivas. Algumas, especialmente várias formas de cura holística, são simplesmente boas. Eu mesmo usufruí benefícios reais delas.

Dito isso, porém, preciso deixar absolutamente claro que, em minha opinião informada, o movimento geral da crença Nova Era caminha em direção a um ponto extremamente sinistro e perigoso da bússola espiritual. Além disso, tomarei como axioma neste livro que, sempre que a doutrina Nova Era contradiz o que se convencionou chamar de “filosofia perene” — os princípios metafísicos centrais compartilhados por todas as grandes religiões e tradições sapienciais — a Nova Era está em erro, e não a sabedoria das eras.


Minha História

Fui criado católico — mais ou menos tradicional — já que a maior parte da minha vida católica, até por volta dos dezesseis anos, deu-se numa Igreja essencialmente pré-Vaticano II. Costumo dizer que pertenço à última geração católica (os Baby Boomers) que podia se identificar plenamente com Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce.

Sendo um Baby Boomer vivendo na área da baía de São Francisco, passei pela contracultura hippie, protestei contra a Guerra do Vietnã — estive nas ruas na Convenção Democrata de Chicago em 1968 — experimentei drogas psicodélicas, senti atração pelo Hinduísmo e pelo Budismo, e passei por um flerte autodidata com xamanismo e kundalini yoga. Também fui poeta (secretamente ainda sou) e pupilo do poeta da Geração Beat Lew Welch, que me apresentou ao meu primeiro verdadeiro iniciado sufista, Samuel Lewis (conhecido carinhosamente, no estilo hippie, como Sufi Sam), bem como a Carlos Castaneda — escritor e praticante de alguma forma de feitiçaria indígena norte-americana — antes que ele se tornasse famoso demais para arriscar aparecer nas praias hippies.

festas com participação do Grateful Dead. (“Ponho diante de ti a morte e a vida: escolhe, pois, a vida.”)

Na primeira metade dos anos 80 passei por um segundo período de ativismo político, em oposição à intervenção norte-americana na Nicarágua e em El Salvador, quando minha esposa e eu nos juntamos a uma igreja presbiteriana local para participar do movimento Santuário para refugiados centro-americanos, e para adorar a Deus (possivelmente nessa ordem). Nesse período estivemos imersos na cosmovisão da Teologia da Libertação, que hoje descrevo como o modo mais generoso e compassivo ainda aberto à tradição cristã, caso ela deseje destruir a si mesma. Ainda assim, continuo convencido de que, se não fossem os esforços das igrejas norte-americanas, teríamos enfrentado um segundo Vietnã na América Central e no sul do México, vastamente mais destrutivo para a cultura dos Estados Unidos e para sua estabilidade política do que uma guerra distante na Ásia.

Na segunda metade dos anos 80 fiz uma passagem pela Nova Era, não porque sentisse qualquer identificação profunda com ela — embora, a despeito da minha atitude de “grão de sal”, em algum lugar eu devesse acreditar nela — mas porque queria ver se ainda restava algo da “revolução espiritual” dos anos 60, e porque conviver com pessoas menos responsáveis do que eu me fazia parecer muito mais sábio e maduro aos meus próprios olhos. Encontrei alguns poucos “yuppies” em ascensão liderando uma massa maior de semi-hippies ou ex-hippies em decadência, rumo a uma esperada “mudança de paradigma” vagamente messiânica, que acabou se revelando, a meu ver, nada mais do que a vanguarda de sensibilidade terna do atual globalismo econômico de mentalidade dura. Os Novaeristas dos anos 80 eram hábeis em articulação global, incluindo a “diplomacia cidadã” com a União Soviética, mesmo antes do nascimento da World Wide Web, embora também houvesse muitos pioneiros da informática pessoal entre eles. Através da Global Family e de outras redes, organizamos vários Dias de Oração pela Paz Mundial, culminando, em agosto de 1987, na Convergência Harmônica, criação do artista visionário e manipulador de símbolos José Argüelles. A Convergência Harmônica foi o primeiro — e possivelmente o último — verdadeiro evento popular internacional. Baseando-se na interpretação de Argüelles do calendário maia, 16 e 17 de agosto de 1987 deveriam anunciar uma grande mudança no equilíbrio energético da Terra e na qualidade da consciência global.

A Convergência reuniu como nunca antes Novaeristas, cristãos liberais, hindus, budistas e povos primordiais de todo o mundo. Índios americanos dos dois hemisférios, wiccanos britânicos e até aborígenes australianos participaram, encenando rituais simultâneos de iluminação e cura da Terra, de natureza extremamente variada e ambígua.

De uma forma modesta, fui um dos organizadores da Convergência. Conduzi um retiro no Monte Tamalpais, no condado de Marin, Califórnia. Recolhi sonhos do mundo inteiro, sonhados na Convergência ou próximos a ela, e os encadernei em um manuscrito que chamei de The Harmonic Convergence Book of Dreams. Antes e depois da Convergência, explorei e pratiquei várias formas de “sonho xamânico” — pelo menos era assim que eu chamava.

Então, acabou. Ou nada aconteceu, ou algo aconteceu. O que me aconteceu foi que percebi, bem no centro do meu ser, que eu estava indo longe demais, em direções demais, sem orientação nem mapas. O caos se avizinhava. E se não salvássemos a Terra? E se a revolução espiritual não se desenrolasse como planejado? E se a maior parte — ou tudo — do que fazíamos não passasse de fantasia infantil, ou talvez das primeiras notas de alguma sinfonia ascendente de trevas?

Pela graça de Deus, dei meia-volta, cento e oitenta graus, e busquei orientação numa fonte tradicional: o esoterismo islâmico. Doze anos depois, posso olhar para trás e ver quão por pouco escapei da destruição.

Minha Confissão

Eu adoraria poder escrever este livro no estilo da maioria dos autores da Escola Tradicionalista, simplesmente deixando a Verdade falar por si mesma, sem intromissões autobiográficas ou confessionais da parte do autor. Mas não posso fazê-lo. Este livro é autobiográfico e confessional porque, sendo um livro sobre o Anticristo, o assunto sou eu, é o meu ego. Se eu não admitisse esse fato, The System of Antichrist induziria meus leitores ao erro; seria um ato de desonestidade.

Muitos mestres espirituais dizem que, seja qual for o mal que você veja no mundo, saiba que você é a fonte última dele. Tudo o que acontece é vontade de Deus, e Deus só quer o bem; a visão do mal não passa da visão do próprio ego; o Anticristo é, precisamente, o ego. A nota dominante do meu ego é “medo da matéria” ou “medo do mundo” — fato que explica, aliás, minha antiga atração pelo gnosticismo, que teceu um universo inteiro de heresia, ainda que muito plausível, em torno desse mesmo medo. Esse é o meu trauma essencial, meu grande ponto cego, meu apego central. Cheguei até a inventar uma piada: “Você soube da novidade? Os cientistas descobriram que a própria matéria é tóxica.” O interessante é que, quando conto essa piada, cerca de sete em cada dez ouvintes não veem graça nenhuma: “Sério? Descobriram mesmo?” Tomo isso como sinal de que o meu estilo de ego, embora seja inteiramente de minha responsabilidade e certamente não seja culpa de mais ninguém, é na verdade bastante comum no nosso tempo — fato que não deveria surpreender, dado o estado atual do mundo. E assim a história do meu ego, refletida não no espelho de sua própria subjetividade, mas tanto quanto possível na Objetividade Divina, o Espelho de Deus, pode — se Deus quiser — ser de alguma ajuda para outros que estejam vivendo estes mesmos últimos dias do ciclo presente.

Dizer que “todo mal está no ego” não é, contudo, negar a experiência humana universal de um mundo que, muitas vezes, está cheio de ilusão e sofrimento; qualquer outra coisa violaria a virtude da compaixão. A Manifestação Divina transmite em todos os canais; o pecado do ego é simplesmente manter a atenção sintonizada em faixas cada vez mais estreitas. O ego não cria, em outras palavras; ele apenas edita. O mal que ele vê é uma versão editada de uma situação objetiva real que, em última instância, é o próprio Deus. Meu ego não inventou os males e falsidades revelados neste livro; ele apenas prestou atenção a eles. Mas, se algo é percebido apenas pelo ego, cai no ponto cego do ego (que, claro, é tudo o que o ego realmente é); desaparece de vista. Tudo aquilo com que o ego se ocupa ele passa a identificar consigo mesmo — e, com o que se identifica, já não consegue enxergar.

No processo inverso, de purificação espiritual ou catarse, aquilo que o ego manteve oculto começa a aparecer, primeiro como uma série de males a serem combatidos, depois como um conjunto de pecados dos quais é preciso arrepender-se, em seguida como um espectro de ilusões a serem desmascaradas e, por fim, como uma constelação de atos de Deus, perfeitos em essência — quer expressem o deleite misericordioso do Divino, que acompanha a conformidade voluntária à lei da forma humana tal como Deus a criou, quer expressem a justiça severa do Divino, que compensa e, em última análise, cura nossas violações dessa forma.

O ego inconsciente, feliz em sua própria cegueira e em sua crença ingênua em seus próprios desejos, é o que o sufismo chama de “eu que ordena”, o eu que incita ao mal. O ego que combate o mal é o “eu acusador”, descrito como “mau” (porque testemunha o mal), “mas não incitador do mal”. (Como escreveu certo correspondente de guerra no Vietnã: “Aprendi que você é tão responsável pelo que vê quanto pelo que faz.”) A guerra travada pelo eu acusador embrionário contra os males externos é o “menor jihad”, geralmente traduzido como “guerra santa”; e a luta travada pelo eu acusador amadurecido contra seus próprios pecados é o “maior jihad”. A psique purificada do egocentrismo, que vê todos os acontecimentos como atos perfeitos de Deus, sem por isso tornar-se cega ou insensível ao sofrimento alheio, é chamada de “eu em paz”.

O clássico da Ortodoxia cristã, a Filocalia, comenta assim o momento de transição do “eu que ordena” para o “eu acusador”, que defini como “o menor jihad”:

“O conhecimento espiritual nos ensina que, no início, a alma em busca da teologia [que, na Ortodoxia oriental, significa realização espiritual, não mera teoria] é perturbada por muitas paixões, sobretudo pela ira e pelo ódio. Isso não acontece tanto porque os demônios estejam atiçando essas paixões, mas porque ela está progredindo. Enquanto a alma é mundana, permanece imóvel e imperturbável, por mais que veja as pessoas pisoteando a justiça. Absorvida em seus próprios desejos, não presta atenção nenhuma à justiça de Deus. Quando, porém, por desprezo deste mundo e amor a Deus, ela começa a elevar-se acima de suas paixões, não consegue suportar, nem mesmo em sonhos, contemplar a justiça sendo desprezada. Enfurece-se contra os malfeitores e permanece irada até ver os violadores da justiça obrigados a reparar o que fizeram.

É por isso que ela odeia o injusto e ama o justo. O olho da alma não pode ser desviado quando o seu véu — quero dizer, o corpo — é refinado até tornar-se quase transparente pela prática da autodominação. Ainda assim, é muito melhor lamentar a insensibilidade dos injustos do que odiá-los; pois, mesmo que mereçam nosso ódio, é insensato que uma alma que ama a Deus seja perturbada pelo ódio, já que, quando o ódio está presente na alma, o conhecimento espiritual fica paralisado.”

Sem uma passagem pelo deserto do combate espiritual — exterior e interior — não há chegada à Morada da Paz. Alguns, porém, permanecem tempo demais nesse deserto, lutando para se arrepender, mas incapazes de “arrepender-se do arrependimento”. Nas palavras de Omar Khayyam:

“Vem, enche a Taça e, no Fogo da Primavera,
Lança fora o Manto de Inverno do Arrependimento;
A Ave do Tempo tem tão pouco caminho a voar —
E eis que a Ave já está em pleno voo.”

Este livro é, em parte, uma Jeremiada, uma denúncia dos males e falsidades do mundo pós-moderno e do reino das espiritualidades da Nova Era. Essa dimensão de The System of Antichrist nasce dos primeiros movimentos do eu acusador, que precisa ser temperado no campo do menor jihad, o mundo da luta social. Mas, no decorrer da escrita, comecei a perceber que todo erro que eu via e denunciava nos outros, eu mesmo já acreditara nele — muitas vezes, até bem pouco tempo atrás. Em alguns casos, o próprio ato de escrever esbarrou em resíduos vivos de erros que eu ainda não queria abandonar, e acabou expulsando-os. Essa dimensão do livro constitui uma espécie de “Confissões”; é escrita a partir do eu acusador propriamente dito, cujo campo é o maior jihad, onde o que antes era ataque e defesa agora é autoexame e arrependimento. E que outro tipo de abordagem, senão uma abordagem ao menos parcialmente confessional, poderia me dar o direito de denunciar males e expor erros alheios, cometidos por pessoas que, por tudo o que sei, podem estar mais próximas de Deus do que eu?

O neopaganismo (em sua vertente céltica), a feitiçaria e as ideias da Nova Era já foram, um dia, realidades vivas para mim. Tomei o material de Seth — a divinização da dimensão psíquica — como Evangelho, durante anos, e até experimentei com canalização. Como em A Course in Miracles, eu ansiava por negar as limitações do mundo contingente em que vivemos, fingindo que as condições da realidade desencarnada poderiam ser realizadas aqui e agora, sem sacrifício ou sofrimento. Brinquei com feitiçaria à maneira de Carlos Castaneda, usando alguns de seus métodos e outros que intuí ou inventei, durante um período sombrio e traumatizado da minha vida. Cheguei à beira do mundo que ele propunha, caracterizado por acontecimentos inexplicáveis de estranha profundidade e por alguns episódios de verdadeira “ação à distância” (ação de quem, hoje me pergunto), mas não avancei mais por essa estrada simplesmente porque não via por que fazê-lo. (Agradeço a Deus por ter enviado um anjo, invisível para mim na época, que me barrou o caminho.) Como Deepak Chopra, eu esperava que uma compreensão técnica e um uso operativo da Verdade espiritual produzissem automaticamente bem-estar físico e material. Como em A Profecia Celestina, imaginei-me membro de uma vanguarda espiritual iluminada, capaz de mudar o rumo descendente da história apenas confiando e agindo sobre nossas intuições, sem nenhuma orientação de uma tradição revelada ou de um Mestre espiritual. Como John Mack, permiti que minha mente se detivesse em realidades sinistras, e as chamei de boas. Como William Quinn, esperei que minha compreensão da metafísica me colocasse entre os pioneiros de uma Nova Ordem Mundial, concedendo-me pertencimento a um grupo cuja influência sobreviveria ao holocausto que se aproximava. Por meio de um poema épico de inspiração blakiana/gnóstica, cheguei até a desejar, como Benjamin Creme, anunciar um Messias desenhado em grande parte por mim mesmo, e forçar magicamente sua aparição para salvar o mundo. Consequentemente, hoje sou compelido a “mascar pregos” enquanto escrevo sobre o Anticristo — porque, outrora, sem saber, ou pelo menos sem admitir, estive entre seus servidores.

Cada uma dessas experiências, desses falsos começos, dessas excursões sem guia ou mal orientadas, deixou sua marca em minha alma; por isso, o Caminho espiritual, para mim, às vezes se pareceu ao trabalho de desembaraçar um fardo de arame farpado enferrujado. Com base nos meus próprios erros, hoje sou capaz de alertar outros. Espero que, ao fazê-lo, acabe se revelando que meus erros não foram inteiramente em vão, e que William Blake não estivesse apenas arranjando desculpas ao dizer: “Se o Tolo persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio.”

Minha Apologia

Este livro representa, para mim, uma luta entre duas concepções aparentemente opostas sobre a natureza da existência e da vida espiritual. Essas concepções rivais tomam o campo como campeãs de dois lados da minha alma — ou talvez as “duas almas” que “habitam em meu peito, apartadas”, segundo as palavras de Goethe, sejam, na verdade, as campeãs dessas concepções. Aceito pela fé — que, nas palavras de São Paulo, é “a prova das coisas que não se veem” — que essas duas visões da realidade não são, em última instância, opostas, porque o Ser é Um. Como no combate cavalheiresco entre Balin e Balan, em Morte d’Arthur, de Malory, os irmãos lutam apenas porque não se reconhecem; seus rostos estão mascarados. Mas o nível em que a oposição aparente entre eles se resolve é tão profundo na própria natureza de Deus, que só o vislumbrei raramente, e mal comecei a aprender a vivê-lo.

Por um lado, minha tradição e meu Mestre espiritual me ensinam que, se vejo algo de errado na criação de Deus, esse erro está em mim; que todos os acontecimentos são atos de Deus, e que tudo o que Deus faz é bom. Creio profundamente que isso é verdade; às vezes até o soube, de fato. Por outro lado, Deus impôs a mim, como parte essencial do meu caráter, a necessidade de dizer Não ao “Mundo”, de recusar, no núcleo da minha vontade espiritual, “comprar” o que esse Mundo oferece e o que afirma ser verdadeiro. O imperativo dessa recusa está presente em toda tradição espiritual, em que o conhecimento de que o mundo relatado pelos sentidos é, na realidade, uma manifestação velada da Verdade Absoluta é sempre equilibrado pelo mandamento de rejeitar, ao menos para si, as crenças e agendas daqueles que não percebem isso.

“O Mundo” é a concepção coletiva das coisas fundada no ego humano. Aquilo que é bom do ponto de vista espiritual, o “Mundo” chama de mal ou loucura; aquilo que é fundamentalmente destrutivo para qualquer possibilidade de libertação espiritual e autotranscendência, o “Mundo” chama de sábio e bom. Meu sufismo me ensina que esse “Mundo” é, em essência, nada mais do que o meu ego, e que a melhor maneira de superar esse ego é esforçar-me por ver como todas as coisas são atos, ou faces, ou palavras de Deus.

— exceto eu. Nas palavras de Lao Tsé: “todas as coisas são claras; só eu estou turvo.” E isso é profundamente verdadeiro: nada vela o rosto de Deus em todas as coisas além desse pequeno “eu”, fundamentalmente inexistente. Mas a prática espiritual de ver todas as coisas, exceto o “eu”, como manifestações de Deus, como qualquer outra prática espiritual, pode dar errado. E o ponto em que uma prática baseada numa verdade espiritual profunda se retorce e se desvia é, inevitavelmente, o terreno fértil de um erro espiritual profundo.

O Islã é considerado uma religião militante. Não é, em teoria, mais militante do que o Hinduísmo, com sua concepção de combate divinamente ordenado no Bhagavad-Gita, nem, na prática, mais do que o Cristianismo com suas Cruzadas. Até mesmo o Budismo, a religião mais comprometida com a não violência, absorveu o credo Samurai e apoiou o esforço de guerra japonês na Segunda Guerra Mundial. Porém o Islã, como o Judaísmo em certos aspectos, cresceu em meio à guerra; poucos anos depois da morte do Profeta, o dār al-Islām era um império mundial construído pela espada. Essa militância, os sufis em grande parte sublimaram, seguindo o conhecido hadith do Profeta, segundo o qual, quando retornava com seus seguidores de uma campanha militar, disse-lhes: “Agora retornamos do jihad menor ao maior.” “E o que é o jihad maior?” “A guerra contra a alma [passional]” — o eu que ordena. (A palavra russa podvig, da tradição ortodoxa oriental, frequentemente traduzida como “feito ascético”, exprime uma ideia semelhante.) Isso não significa, porém, que os sufis tenham rejeitado totalmente o jihad menor. Muitos sufis, como alguns santos cristãos, participaram de guerras. Ali ibn Abi Talib foi ao mesmo tempo o grande herói militar da primeira geração do Islã e o primeiro mestre espiritual, depois do próprio Profeta, reivindicado pela maioria das ordens sufis vivas. Tanto a cavalaria cristã quanto a muçulmana reconheceram que a agonia, a exaltação e o auto-sacrifício da batalha podiam ser dedicados a um fim espiritual; o jihad menor podia, se Deus quisesse, ser colocado a serviço do maior.

Mas jihad não significa simplesmente “guerra santa”; é melhor traduzido como “esforço no caminho de Deus”. Esse esforço pode ser pela justiça social, pelo alívio do sofrimento humano ou pela preservação de uma tradição espiritual. É claro que não há dúvida de que tal luta pode, às vezes, aumentar o egocentrismo em vez de superá-lo — sobretudo o egocentrismo coletivo. Adorar a própria nação, ou mesmo a própria religião, no lugar de Deus é uma das piores formas de idolatria, e a mais difícil de reconhecer, porque alguém pode demonstrar enorme auto-sacrifício em favor de ídolos nacionais ou religiosos, até a morte. No entanto, também se pode sacrificar a própria vida por um ídolo como o álcool; e há perigo de idolatria também no jihad maior, pois orgulhar-se das próprias “conquistas espirituais” é entregar todo o próprio tesouro a Iblis (o Satanás muçulmano), que é perito em disfarçar orgulho espiritual como a mais profunda humildade e auto-sacrifício.

Este livro foi concebido como uma luta, um jihad contra os erros espirituais do pós-modernismo e da Nova Era. Esses erros existem no Mundo; são tão objetivamente reais — e ainda mais destrutivos espiritualmente — do que qualquer exército material de bárbaros, totalitários ou terroristas. São como uma quinta coluna: destroem a religião a partir de dentro, corrompem a alma humana. Como ídolos, deixam sua marca na alma de todos os que os adoram. E como eu próprio adorei esses ídolos, devo agora assumir parte da responsabilidade por derrubá-los. E da mesma forma que posso apontar doutrinas espirituais bem definidas — começando pela poesia de William Blake e, neste momento, incluindo os escritos de Frithjof Schuon, dos demais autores da Escola Tradicionalista e de meu próprio Mestre espiritual — que literalmente salvaram minha vida espiritual (ainda que, no caso do meu Mestre, eu tenha sido salvo não tanto por seus escritos quanto por sua Presença), agora espero, se Deus quiser, estender essa ajuda espiritual — não em meu nome, mas em nome de meus mestres — a todos os que sejam capazes de dela se beneficiar.

Mas, ao fazer isso, preciso contradizer e criticar as palavras de outras pessoas. Espero ser capaz de fazê-lo cavalheirescamente, sem ferir desnecessariamente os sentimentos ou manchar o caráter de meus oponentes. Mas este é um ideal que, na prática, não pode ser alcançado por completo. É claro que sentimentos serão feridos. Assim como ninguém pode empunhar a espada material sem dar e receber ferimentos, também não se pode brandir a espada intelectual sem isso acontecer. Meu Mestre me diz que não é próprio de um sufi criticar as crenças religiosas alheias. E sempre foi meu costume estender de bom grado, não apenas tolerância, mas verdadeira veneração e apoio a todas as fés autênticas, costume que em geral está em consonância com o ensinamento do Alcorão. Todavia, Muhammad expulsou os ídolos pagãos da Caaba. Ele foi, então, inimigo da religião? Não, porque aqueles ídolos não representavam a religião, mas a corrupção dela. Os autores que critico nominalmente neste livro são todos ou abertamente contrários às religiões tradicionais — quase sempre ao Cristianismo — ou então publicaram deturpações, abertas ou veladas, das doutrinas dessas religiões. Ao criticá-los, portanto, estou defendendo tudo o que, tradicionalmente, se chamou “religião”.

Mas os propagadores de doutrinas Nova Era e neopagãs não têm “direito” de adorar como bem entenderem? Quem sou eu para negar os direitos dos outros? E que direito tem qualquer religião de reivindicar superioridade em relação a outra? Isso não é o caminho para o fanatismo, para a Inquisição, para a “guerra santa” em seu sentido mais pervertido? Certamente pode ser. Por outro lado, se tomarmos a liberdade religiosa como absoluta, então devemos permitir, por exemplo, a prática do sacrifício humano, que foi parte integrante de certas religiões pagãs da Antiguidade. Assim, a liberdade religiosa, por mais preciosa que seja, não pode ser absoluta. Como Frithjof Schuon repete, citando os rishis hindus: “não há direito superior ao da Verdade.” A cultura pós-moderna, é claro, não acredita na Verdade. Não admite absolutos, porque vê questões de verdade apenas em termos de poder. O que historicamente se chama de verdade é visto como nada mais do que o triunfo deste ou daquele bloco de poder. Se “não há deus senão Deus”, isso se dá porque o Islã triunfou política e militarmente sobre o paganismo na península Arábica; certamente não porque a Verdade seja Una, porque o Ser, de fato, seja uma Unidade transcendente. Mas, se esta afirmação sobre a natureza do Ser não é intrinsecamente verdadeira, então nenhuma doutrina religiosa ou afirmação metafísica é verdadeira. E, se nenhuma doutrina religiosa é verdadeira, todas as religiões acabam negadas e, em última análise, destruídas. É essa, então, a tal “liberdade religiosa”?

Pessoalmente, oponho-me de forma fundamental à coerção física em matéria religiosa. Nas palavras do Profeta: “não há compulsão na religião.” É verdade que, numa sociedade islâmica — ou outra sociedade tradicional baseada numa lei religiosa divinamente instituída — a coesão social se funda em sustentar e obedecer a essa lei. E ninguém que negligencie uma via de salvação universalmente acessível, como a sharī‘a muçulmana, pode ser considerado verdadeiramente dedicado a essa salvação. Mas, numa sociedade pluralista como a nossa, em que a separação entre Igreja e Estado é fundamental, qualquer tentativa de legislar doutrina ou prática religiosa é destrutiva, salvo quando a “religião” em questão viola de maneira aberta e profunda os costumes e a moral, como no caso do sacrifício humano mencionado acima. (Apresso-me a acrescentar que, embora esse tipo de sacrifício sem dúvida tenha ocorrido em grupos satanistas, é vigorosamente repudiado e combatido pelo movimento neopagão em geral.) Por outro lado, sempre me senti justificado em criticar o erro espiritual. Na medida em que a espada material do jihad menor me é negada — e com razão —, empunhei a espada do jihad menor intelectual. Onde há liberdade religiosa, há necessariamente também liberdade de expressão em matéria religiosa.

Mas, em meio a toda essa crítica tão bem justificada das ideias alheias, onde fica o entendimento de que todas as coisas, todas as pessoas e até todas as ideias são manifestações de Deus, de que a única coisa que não O manifesta é este “eu” fechado, crispado e rabugento, que está sempre encontrando defeitos na criação de Deus? Não aconselhou Jesus seus seguidores a tirar primeiro a trave dos próprios olhos, antes de tentar remover o cisco do olho do próximo? Não ensinou Ibn al-‘Arabī que Deus aceita toda concepção que se tenha d’Ele, por mais limitada que seja, como forma válida de adoração? Não censurou ele até o profeta Noé, até certo ponto, por denunciar o paganismo de sua época, já que todos os ídolos pagãos — se seus adoradores o soubessem, e se Noé o soubesse — eram na verdade formas do Deus Único? E, no entanto, Deus salvou Noé, o transcendentalista, e varreu os idólatras no dilúvio, ao mesmo tempo em que o próprio Ibn al-‘Arabī aconselhou o governante de Konya a proibir o culto público dos cristãos — assim como a Cristandade medieval fazia em relação às religiões não cristãs —, porque a unidade e o caráter islâmico do dār al-Islām precisavam ser preservados.

Conta Rumi que, certa vez, Moisés encontrou um pastor cuja ideia de adorar a Deus era pentear-Lhe o cabelo, lavar-Lhe os pés e dar-Lhe leite para beber. O profeta trovejou contra o pastor por rebaixar Deus ao nível humano: “Longe d’Ele precisar que Lhe penteiem o cabelo! Deus é Senhor dos Mundos; Ele está infinitamente acima da tua concepção mesquinha de Sua Majestade. Corrige, então, a tua prática. Adora-O em Espírito, não em forma.” Mas, enquanto Moisés seguia viagem, Deus veio a ele numa visão e o repreendeu: “Meu servo, o pastor, adorava-Me segundo a concepção que tinha de Mim — assim como tu. Julgaste-o mal; sua sinceridade é perfeita aos Meus olhos.” Desesperado e arrependido, Moisés correu de volta para pedir perdão ao pastor. “Peço-te desculpas, pastor; Deus revelou-me que eu te julguei seriamente mal. Por favor, continua a adorá-Lo como te parecer correto.” “Mas eu estava prestes a agradecer-te pela tua correção!”, respondeu o pastor. “O choque que me deste abriu meus olhos para uma concepção de Deus incomparavelmente mais ampla do que a que eu tinha antes. Depois do que vi, jamais poderei voltar à prática anterior.” Assim, tanto Moisés quanto o pastor aprenderam algo. Uma vez que Moisés julgou em nome de Deus, o julgamento esclarecedor de Deus caiu sobre todos os envolvidos, incluindo o próprio Moisés. O pastor superou seu apego à forma, baseado no orgulho de sua ignorância, enquanto Moisés superou seu apego à transcendência, baseado no orgulho de seu conhecimento.

Segundo William Blake, a única maneira de perdoar o inimigo é separar o indivíduo de seu estado. Isso é relativamente fácil para mim, exceto quando me parece que o adversário está sendo ardiloso e desonesto; nesse momento, a ira justa (ou pseudojusta) torna-se uma tentação. E, para alguém como eu, que crê na Verdade objetiva, a maioria das manifestações da mentalidade pós-moderna tenderá a parecer desonestidade — o que não é necessariamente o mesmo que falta de sinceridade, preciso lembrar, mas antes uma desonestidade objetiva imposta pelas condições intelectuais vigentes, tal como a criminalidade é imposta (se é que o é) aos jovens dos grandes centros urbanos que não encontram outro modo de sobreviver. O uso correto dessa ira — o modo específico que, se Deus quiser, a tornará justa em vez de autojusta — não é fixar o adversário no erro, para julgá-lo como condenado (porque o estado da alma alheia diante de Deus está além do meu alcance e não é da minha conta), mas separá-lo de seu erro, como com um maçarico, na minha consciência, e, se possível, na dele também, e voltar a chama contra o erro apenas.

É nesse ponto que tenho a chance de ver que o erro em questão é também meu, que ele faz parte desse pequeno “eu” que vela o rosto de Deus, pois, se não tivesse guarida na minha natureza, eu nunca teria cruzado espadas com ele.

Dado que há criação, necessariamente haverá erro; e, dado que há erro, necessariamente haverá monstros. Quando monstros ameaçam a vida humana, devemos ir à guerra contra eles — porém o monstro verdadeiro está em nós, em “mim”. A monstruosidade do erro também faz parte da vontade de Deus, já que não existe nada que não faça. Mas qual é a função do erro? Como aquilo que nega Deus pode ser, em certo sentido, parte d’Ele? Nas palavras do Tao Te Ching: “O discípulo tolo ouve falar do Tao e ri às gargalhadas. Se não houvesse riso, o Tao não seria o que é.” Como disse Rumi, “as coisas são definidas pelos seus opostos.” Se não soubéssemos o que evitar, não poderíamos ver claramente o que abraçar. A vontade humana é livre, e o campo dessa liberdade é a escolha entre a Verdade que aniquila o eu, apresentada pelo Intelecto espiritual, e o erro que serve ao eu, apresentado pelo ego. Sem essa escolha, o amor a Deus — arquétipo de todo amor — seria impossível. Portanto, o erro, embora seja manifestação da ira de Deus, é, em último e mais profundo nível, manifestação de Sua Misericórdia, pois “Minha misericórdia precede Minha ira”; nas palavras de William Blake, “estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus”. Entramos no campo dessa Misericórdia, num certo plano, ao expor um dado erro, invocando assim a Verdade escondida atrás dele — mas eu poderia expor o erro espiritual até o Dia do Juízo e nunca chegar a saber, na medula dos ossos, que Deus sustenta o universo na palma da mão, que todos os atos são atos de Deus, e que tudo o que Deus faz é bom. Só se eu fizer de cada crítica às ideias de outrem uma ocasião de morte para o meu próprio eu poderei avançar em direção a esse conhecimento.

Mas como é possível que marcar pontos sobre o adversário com a espada do intelecto discursivo seja uma morte para o eu? Se eu venço, sinto-me bem comigo mesmo; sinto-me poderoso; meu ego engorda e fica lustroso. A única forma que conheço de dedicar o jihad intelectual ao Caminho espiritual é admitir que criticar as ideias dos outros causa dor tanto a mim quanto a eles; e, em seguida, sentir essa dor completamente; e, por fim, deixar que ela queime, até o fim, aqueles lugares da alma onde os erros em questão — e, portanto, a necessidade de criticá-los — criaram raízes. É interpretar esotericamente, e em consonância com as regras do jihad maior, a doutrina de Jesus segundo a qual “quem vive pela espada morrerá pela espada.”

Talvez algumas pessoas sejam capazes, desde o início, de evitar completamente criticar o que quer que apareça no ser manifestado. Outras podem ser “isentas” de criticar o mal simplesmente porque não possuem talento para isso. E há também aqueles que realmente aceitam as manifestações mais horrendas — não apenas de sofrimento, mas de falsidade e ilusão — como vontade perfeita de Deus, porque alcançaram a estação espiritual em que nada lhes aparece, no campo dos acontecimentos, senão a ação direta de Deus. Essas pessoas estão mais próximas de Deus do que eu; seu nível de entrega, de Islã, está além de minha capacidade atual. Sua estação é a de Rabi‘a quando disse: “Eu amo a Deus; não me sobra tempo para odiar o diabo.”

São aqueles que despertaram do sonho do mal. Mas há outros — muitos outros — que ainda não despertaram plenamente para o sonho do mal. Sua consciência moral está adormecida ou meio adormecida. Muitos temem o mal ao redor porque veem como ele destrói a humanidade e arruína a terra. No entanto, não conseguem rejeitar moral e espiritualmente as coisas que odeiam e temem, porque não veem nenhum fundamento objetivo do bem sobre o qual se apoiar para poder chamar essas coisas de “mal”. Acabam aceitando, com resignação, forças e condições que destroem suas almas. E muitos outros, seja por aceitação ingênua do anormal, seja por desespero profundamente reprimido, aceitam sem crítica como boas — ou ao menos como inevitáveis e, portanto, “boas” de fato — as mais satânicas distorções da vida humana. Eles não dizem: “Se eu morrer depois de comer alimento envenenado, serei grato, porque essa é a vontade de Deus”; dizem, em vez disso: “Este alimento não está realmente envenenado; se…”.

Se eu o comer, ficarei saudável e forte, e se eu o der a outras pessoas estarei lhes prestando um serviço.” Assim, se eu lhes digo: “Evitem aquele prato, ele está cheio de veneno”, isso é um ato de amizade — desde que, é claro, eu possa sinceramente oferecer esse aviso em espírito de amizade. Se castigo o Mundo, é apenas para lançar uma corda àqueles que estão se afogando nesse Mundo, cujas consciências foram sistematicamente pervertidas, a tal ponto que, se começam a suspeitar que uma certa ação ou crença possa ferir gravemente suas almas e violar sua integridade humana, não têm como apresentar essa intuição a si mesmos, não dispõem de linguagem para dizê-lo. Pessoas nessa condição — e são muitas — habitualmente sentem culpa diante do juízo do Mundo pelo crime de querer fazer o bem; envergonham-se de seus impulsos mais altos e nobres; envergonham-se de Deus. Foram ensinadas a aceitar tudo, com uma complacência indistinguível do desespero total, não como vontade de Deus, mas como decreto do Mundo, cujo objetivo é esmagar qualquer coisa em suas almas que possa lembrá-las de que Deus é real. Em vez de transcender o mal, ainda não chegaram ao ponto em que a palavra “mal” signifique qualquer coisa para elas além do próprio desconforto pessoal. É assim que o niilismo se disfarça de desapego espiritual. E, se eu mesmo não fosse tentado pelo mesmo niilismo, não teria sido compelido a lutar com ele, e este livro jamais teria sido escrito.

Talvez apenas os psicopatas — há muitos psicopatas perfeitamente “bem ajustados” na sociedade atual — sejam completamente tomados pelo niilismo do Mundo. Mas o Mundo e seu niilismo têm pelo menos um pé fincado em cada um de nós, a menos que sejamos realmente santos; e esse ponto de apoio está se tornando mais tóxico e virulento a cada hora. Nas palavras de Rabi‘a:

Para onde vai uma parte de ti
O resto seguirá — dado o tempo.
O resto seguirá — dado o tempo.
Chamas a ti mesmo de mestre:
Portanto, aprende.

Se um judeu aceita o holocausto porque foi vontade de Deus, isso é verdadeira piedade, verdadeiro Islã. Se outro judeu o aceita porque foi vontade de Hitler e passa a invejar Hitler em segredo, isso é idolatria e blasfêmia. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o mal vem.” Aqueles que investiram suas esperanças e temores, seu senso fundamental de realidade, no mundo precisam desesperadamente de ajuda vinda de uma Realidade que transcende esse mundo. Este livro foi escrito para lembrá-los de que tal ajuda existe. Por outro lado, a essência de “investir” em algo é o ato de prestar atenção a isso. Se eu não visse nenhum mundo, mas apenas Deus, seria uma fonte de luz e ajuda para todos os que se estivessem afogando no mar do mundo; mas isso está além do meu poder — embora não além do poder de Deus. Minha estação se assemelha mais à dos “amigos santos” de Rabi‘a, no seguinte poema:

Um dia Rabi‘a estava doente,
E seus santos amigos vieram visitá-la, sentaram-se ao lado de sua cama
E começaram a falar mal do mundo.
“Vocês devem estar bem interessados nesse ‘mundo’”, disse Rabi‘a,
“Do contrário não falariam tanto dele:
Quem quebra a mercadoria
É porque já a comprou antes.”

É fácil ver Deus nas pétalas da rosa ou na forma de uma bela mulher. É mais difícil vê-Lo, não apenas em Sua Majestade e Ira, mas até em Sua Beleza e Sua Misericórdia, nos horrores do mundo atual. Mas, se Deus pode ser visto ali, então nenhum traço de reprovação contra Sua criação ou Seus decretos soberanos pode permanecer no Coração. E isso é o eu em paz.

Minha Esperança

O Anticristo pode ou não ser um indivíduo, embora muitas autoridades tradicionais, exotéricas e esotéricas, incluindo muçulmanos e cristãos ortodoxos e escritores como Martin Lings e René Guénon, afirmem que será, e eu me inclino a concordar. (1 João 2,18 fala de vários anticristos.) Mas, seja ele ou não um único indivíduo, já é um sistema. É por isso que não me interessa especular qual personagem, em minha própria galeria de vilões ou na de outros, poderia ser secretamente o Anticristo, assim como não considero útil ou possível (ao menos para mim) datar sua ascensão. A relação entre a simbologia apocalíptica e o tempo histórico é oblíqua, não direta. Se o Anticristo é conhecido como princípio, contudo, então as crenças, tendências e indivíduos no mundo exterior que manifestam esse princípio, em maior ou menor grau, podem ser reconhecidos. Mas, a menos que o sistema mais amplo daquele princípio seja compreendido — tanto quanto a própria absurdidade inerente do mal o permita —, se e quando aparecer o indivíduo em quem esse sistema estiver destinado a assumir sua forma mais plena e terminal, talvez nos descubramos incapazes de reconhecê-lo. Espero, neste livro, ajudar o leitor a extrair sentido do caos e da escuridão destes últimos dias, evitar a participação inconsciente em um mal destruidor de almas e intuir a Misericórdia Divina que está sempre presente, escondida até nas condições mais críticas, como sinal claro daquela Realidade superior misteriosamente presente por detrás da máscara desta, onde Verdade é sinônimo de Bondade, e o mal não passa de outro nome para a ilusão: “Tudo perece”, diz o Alcorão, “exceto Seu Rosto.”

Parte Um:
Tradição vs. Nova Era

Prefácio

Atualmente há uma confusão considerável entre “religião” e “sistemas de crenças”. De fato, certos acadêmicos tentam reduzir todas as religiões a “sistemas de crenças” que, de algum modo, “pegaram”. Mas há uma distinção a ser feita entre eles, pois as religiões genuínas se fundamentam na Revelação, que lhes fornece um credo, um código e um culto fixos, independentes de qualquer pensamento ou sentimento individual, enquanto os sistemas de crenças não baseados na Revelação estão inevitavelmente sujeitos à opinião humana. É claro que muitos fundadores de seitas se apoiam parcialmente na Revelação — aceitando o que lhes agrada e rejeitando o que não lhes agrada — e a maioria dessas seitas reivindica inspiração pelo Espírito Santo. Mas o fato permanece: todas se baseiam, ao menos em parte, no pensar e no sentir que residem na psique e estão sujeitos à ilusão, problema que só pode ser evitado pela adesão a uma fonte externa fixa. Infelizmente, muitos representantes religiosos atualmente atacam o fundamento revelado de suas fés na tentativa de acomodá-las aos valores do mundo moderno, o que, na prática, as reduz ao mesmo nível que os demais sistemas de crenças.

Uma vez reconhecido que a maioria de nossos sistemas de crenças se baseia em sentimentos e pensamentos — todos eles propriedades que se situam no âmbito da psique —, segue-se que se torna impossível criticar qualquer sistema de crenças específico. Todas as religiões e sistemas de crenças são equivalentes porque a verdade ou as crenças de cada um — desde que não causem problemas a outros — têm igual valor. Dizer que um culto ou religião é falso é considerado um ato de presunção que ninguém ousa cometer. Além disso, acredita-se que é justamente esse tipo de visão exclusiva que levou a conflitos e guerras — tudo em nome de Deus — e, portanto, tais atitudes devem ser evitadas. (Observe-se, porém, que, como disse São Paulo, “são as nossas cobiças e os nossos desejos” a raiz dos conflitos.) Na ordem prática, tudo o que “funciona” para o indivíduo é considerado aceitável. E, de fato, os psiquiatras estão começando a reconhecer que a “religião” tem sua utilidade, pois ajuda as pessoas a enfrentar os problemas da vida, e a crença em uma vida após a morte torna a morte mais fácil de suportar.

A maior parte da religião moderna está enraizada e centrada na psique, de modo que, pela própria natureza das coisas, as pessoas podem afirmar que aquilo que é verdadeiro para elas é verdadeiro. A psique não conhece absolutos e, portanto, o indivíduo não tem compromissos reais. Mais perigoso ainda é o fato de que, ao tentar encontrar alguma medida de verdade nesse reino nebuloso, abre-se a alma a influências de natureza possivelmente nefasta. Muitos, como o próprio Jung, deixaram “guias espirituais” instruí-los sobre como viver e agir, guias que se descrevem como “anjos”, o que, de fato, são — pois, como acreditava uma época anterior, existem espíritos em circulação que são “anjos caídos”, ansiosos para invadir nossas psiques quando a oportunidade se apresenta. E assim é que o “canalizar” (channeling) se tornou moda, com uma multidão de “guias”, de Ramtha a Seth, supostamente nos dando acesso a uma forma de superconsciência ou “consciência divina”, que seria o resultado evolutivo de nascimentos repetidos dentro da moldura deste universo. É apenas um pequeno passo, a partir daí, para o envolvimento com o ocultismo. As sociedades tradicionais sempre proibiram o contato com tais espíritos, não só pelos perigos espirituais envolvidos, mas também porque tais contatos podem levar a desvios psiquiátricos, como está bem ilustrado na história bíblica de Saul.

O movimento Nova Era foi bem caracterizado como a secularização da religião e a espiritualização da psicologia. Aqueles que veem com facilidade a insipidez do materialismo buscam algo “espiritual” para satisfazer os anseios de seus corações. Limitados pela visão cartesiana, que nega a verdadeira natureza espiritual do homem, fazem ídolos da música e das artes, do amor e da natureza — sempre dentro dos limites de suas ramificações psíquicas. Isso os leva, bem como a muitos na vida religiosa, a voltar-se para a psique em busca de realização.

Aqueles “aprisionados” na psique, que centralizam a vida em sentimentos ou na convicção de que seus pensamentos privados e individuais são absolutos, são descritos pelos autores medievais como estando “apaixonados por si mesmos”. Esse “amor a si”, em oposição ao “Amor de Si” (isto é, do verdadeiro Self), é visto como um defeito a ser corrigido. Imediatamente ouvimos o protesto dos que declaram que ninguém lhes dirá como pensar ou agir. Insistem na liberdade de decidir essas coisas por si mesmos. E isso é plenamente compreensível em alguém cuja visão de mundo se baseia no princípio cartesiano segundo o qual somos exclusivamente corpo e mente. Se é só isso que somos, então, de fato, têm direito a tal posição, pois sua mente e seu corpo não têm mais autoridade do que os meus. Reconhecer, porém, a natureza tripartite do homem — o que de modo algum nega a psique — orienta-nos para restabelecer uma hierarquia de ordem em que o Espírito dirija a psique, assim como a psique dirige, ou deveria dirigir, o corpo.

Mas o Espírito não está apenas em nós; está também acima e fora de nós. E, em última instância, Ele somos nós: nossas faculdades têm raiz no Senhor e “na Sua Luz vemos a Luz”.

O livro de Charles Upton é uma exposição notável do que resulta da aceitação do dualismo cartesiano, a ideia de que nossa totalidade se compõe apenas de corpo e mente. Em certo sentido, mostra as inúmeras formas que os cultos pseudorreligiosos podem assumir quando fundamentam a verdade em sentimentos e opiniões privadas, em vez de na revelação. E, talvez mais importante ainda, mostra como todas essas seitas são fundamentalmente semelhantes, tanto em sua origem quanto em sua visão de mundo. Para quem busca a verdade, este livro oferece um excelente guia através do labirinto das “ofertas” religiosas modernas.

RAMA P. COOMARASWAMY, MD, FACS, Professor Assistente Clínico de Psiquiatria,
Albert Einstein College of Medicine, Nova York

Pós-modernismo, Globalismo e Nova Era

No início do Terceiro Milênio, nosso espaço é dominado pela globalização da Terra, pelo “caldeirão” de todas as culturas nacionais, tribais e religiosas; e nosso tempo, pelo “pós-modernismo”, em que parecemos aproximar-nos de uma condição impossível na qual todas as eras do passado, em virtude da cultura da informação, são igualmente disponíveis, igualmente válidas, igualmente falsificadas e igualmente corruptas. Esta era, a terminal para o presente ciclo de manifestação, nos apresenta perigos espirituais sem precedentes, bem como oportunidades espirituais únicas. Neste capítulo são explorados muitos dos perigos — e algumas das oportunidades — sociais, filosóficos, religiosas e metafísicas que se situam sob o signo do Fim.

O que é Pós-modernismo?

O tempo em que vivemos tem sido chamado de “pós-moderno”. O que exatamente isso significa? O que poderia possivelmente vir depois de estar “atualizado”? E, se algo realmente vier depois, como poderíamos ser contemporâneos disso? “Pós-moderno” significa “depois da história”? Poderia ter algo a ver, talvez, com o “fim do tempo”?

Pós-modernismo, ou pós-modernidade, é um nome para a qualidade geral do nosso tempo. Mas também se refere a certas correntes da filosofia, da arte e da crítica literária. O que se segue é uma breve visão geral da filosofia pós-moderna; depois de tornar alguns de seus conceitos básicos o mais claros possível, farei o que puder para mostrar como esses conceitos — ou suposições, ou preconceitos — se aplicam a outras áreas da vida contemporânea.

Segundo Huston Smith, em Beyond the Post-Modern Mind, o “modernismo” baseou-se (e se baseia) na crença de que “(a) nada que careça de um componente material existe e (b) naquilo que existe, o componente físico tem a palavra final”. Assim, o modernismo é essencialmente naturalismo ou materialismo. Esse naturalismo assumiu o comando, a partir do Renascimento e com aceleração durante a revolução científica do século XVII, à medida que a metafísica e a religião revelada começaram a ser marginalizadas. A visão de mundo unificada apresentada pela teologia foi substituída por uma nova unidade — ou, melhor dizendo, por uma nova crença de que a unidade poderia finalmente ser alcançada — fundada no estudo da natureza e da história humana. Quanto mais fatos descobríssemos nessas áreas, mais material teríamos disponível para a construção do Grande Desenho.

Mas, segundo o pós-modernismo, não existe Grande Desenho. A verdade é plural e, em última instância, subjetiva. A realidade é apenas aquilo que é configurado: por um período histórico, uma sociedade, uma linguagem ou um indivíduo dados. Não há nada realmente “lá fora” além de uma massa de potencial caótico à espera de ser moldado em alguma forma arbitrária. Huston Smith cita Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein e o desconstrucionista Jacques Derrida entre os arquitetos conscientes ou inconscientes desse movimento, que começou a suplantar o modernismo, ao menos nas sociedades ocidentais, na primeira metade do século XX.

Kant ensinou que o ser humano jamais pode experimentar a Verdade transcendente, ou a realidade objetiva (númeno) de coisa alguma, mas apenas o mundo dos fenômenos tal como nos é apresentado por nossos esquemas inatos e fixos de percepção. E Nietzsche, com sua “morte de Deus”, anunciou o fim da metafísica — um desenvolvimento aterrador, mas historicamente inevitável —, ao mesmo tempo que fazia tudo o que podia para promovê-lo, atacando o Cristianismo e substituindo a noção metafísica de princípios eternos e imutáveis na mente de Deus pela doutrina estóica do retorno circular e interminável de todas as coisas. (O que poderia ser mais niilista do que trabalhar pela realização de algo que se julga terrível, simplesmente porque se acredita que é inevitável?) Segundo o Prof. Smith, Kierkegaard também teve seu papel, com a ideia de que a verdade objetiva desumaniza. Essa crença é sustentada hoje por milhões de pessoas, que a aplicam não à filosofia hegeliana, como ele fazia, mas à ciência. Depois veio Heidegger, que afirmou não haver verdade objetiva além da que um período histórico específico define como real; Wittgenstein, que sustentou não haver verdade objetiva além da definida pelas culturas e mediada pela linguagem; e Derrida, que nos diz que qualquer tentativa de definir uma verdade objetiva deve necessariamente excluir e, portanto, marginalizar e oprimir outras versões possíveis do que seja verdadeiro. A diversidade cultural e filosófica deve ser celebrada porque a unidade tiraniza. Acreditar que uma sociedade, ou uma linguagem, ou mesmo um texto, tenha alguma estrutura inerente é opressivas. Consequentemente, qualquer pessoa que pense ter apreendido o verdadeiro significado de um texto — inclusive quem o escreveu — está enganada… exceto, ao que parece, Derrida e os desconstrucionistas. Jacques Derrida poderia ter tido uma carreira brilhante como devastador satirista do pós-modernismo, não fosse o fato de que o humor só pode existir na fronteira entre o real e o absurdo, e os desconstrucionistas, tão sem humor quanto são, eliminaram o primeiro desses dois termos de consideração.

Eis o pós-modernismo em poucas palavras: (1) não existe verdade objetiva, portanto (2) a realidade não é percebida, mas construída — pelos padrões inatos de percepção, ou pela história, ou pela sociedade e pela linguagem, ou pelo indivíduo — de modo que (3) todas as tentativas de criar visões de mundo abrangentes que transcendam a história, a sociedade ou até (em última instância) o indivíduo são opressivas; logo (4) todas essas visões de mundo arbitrariamente construídas devem ser desconstruídas para que se celebre a diversidade e se preservem os direitos das construções de realidade de minorias marginalizadas (as quais, evidentemente, sendo também construções, precisam igualmente ser desconstruídas; tanto faz, portanto, a preservação dos direitos das minorias). Assim, o pós-modernismo termina no desconstrucionismo, e o desconstrucionismo termina (ou assim esperamos) na desconstrução do próprio desconstrucionismo: se a visão construída pela maioria oprime as minorias, também as visões minoritárias oprimem os indivíduos… e as visões individuais (por que não?) oprimem as visões das subpersonalidades dentro do indivíduo, enquanto essas subpersonalidades oprimem a experiência de frações de segundo de consciência, etc., etc., etc. Ninguém reconhece aqui a qualidade familiar de nossa vida diária, a pulverização progressiva da realidade? É como se os desconstrucionistas fossem criaturas absolutas da mídia eletrônica, pessoas que consideram criminoso possuir capacidade de atenção, porque isso imporia forma arbitrária e opressiva sobre a experiência “pura”; pelo menos é para essa fase terminal que parecem caminhar. Se os levamos a sério, teremos que concluir que existir é, necessariamente, oprimir e ser oprimido? Que o fim da opressão deve ser o fim da existência? Que o objetivo final do niilismo pós-moderno é, e deveria ser, a aniquilação? Talvez a palavra “pós-modernismo” de fato se refira à terminação da história, ao fim do tempo. É óbvio que se trata de uma casa construída sobre a areia.

Modernismo e pós-modernismo são perfeitamente capazes de atuar em conjunto na mente contemporânea, inclusive na mente de um único indivíduo, para neutralizar a visão tradicional ou metafísica da realidade. Para tomarmos apenas um exemplo: se eu mostrar a tal indivíduo que certas tendências sociais se encaixam precisamente na definição tradicional de demonismo, e têm consequências que ninguém em perfeito juízo buscaria deliberadamente, seu lado pós-moderno caótico validará essas tendências como parte da “celebração universal da diversidade”, enquanto seu lado moderno materialista negará que algo como demonismo possa existir. Ao fazer isso, ele obviamente nega parte da diversidade que acaba de validar; mas, como esses dois lados de sua consciência nunca se encontram, a contradição entre eles “não é problema” — e continuaria a “não ser problema” mesmo que se encontrassem, já que o pós-modernismo vê a inconsistência como uma espécie de “riqueza” e a consistência, até a consistência lógica, como forma de opressão. Aí podemos ver como o pós-modernismo é de fato a visão dominante, da qual o modernismo se tornou nada mais que um subconjunto, apenas mais um item desconectado no espectro pós-moderno da “diversidade”. E tanto a celebração pós-moderna quanto a negação moderna agem em conjunto para sustentar, e não para se opor, às tendências em questão — tendências que o mesmo indivíduo, com outra faceta igualmente desconectada de sua consciência fragmentada, pode sinceramente deplorar.

A Verdade Escondida no Pós-modernismo

Mas existe algo de bom no pós-modernismo? Huston Smith menciona o útil alerta dos desconstrucionistas de que pretensões absolutistas, inclusive as metafísicas, podem se tornar tirânicas, bem como seu louvável empenho em defender o Outro, tanto em termos de minorias excluídas quanto de ideias marginalizadas. Se o pós-modernismo vê todas as visões de mundo como construídas — ou seja, como função do poder, e não da verdade —, então o desconstrucionismo precisa surgir como defensor das muitas visões diversas que detêm menos poder do que a visão dominante em determinado tempo e lugar. Ele nos adverte, contudo, contra a absolutização dessa mesma diversidade, já que “não honraríamos a alteridade do Outro se não reconhecêssemos também a sua identidade conosco”.

Smith vê o desconstrucionismo, a mais radical das correntes pós-modernas, como uma espécie de Teorema de Gödel no campo da filosofia. O matemático Kurt Gödel provou que nenhum sistema pode ser ao mesmo tempo completo e consistente. Para ser consistente, deve deixar coisas de fora; para ser completo, precisa incluir contradições. “Como não pode haver sistema que seja completo e consistente”, lembra Smith, “é impossível que um único sistema possua toda a verdade. Outras vozes devem ser ouvidas.” É igualmente impossível, porém, que toda a verdade possa ser conhecida somando-se sistema a sistema. Informação, verdade quantitativa, pode ser acumulada; a Verdade transcendente e espiritual, não.

Mas o que exatamente é um sistema? A própria existência, em seu próprio nível, é completa, embora nunca possamos experimentar tudo o que ela contém. Ela é também misteriosamente consistente, impressionando aqueles que a contemplam em profundidade como um universo, um cosmo ordenado, uma expressão do Tao. No entanto, jamais é perfeitamente previsível. Um sistema, então, é uma tentativa de sintetizar, por meio de uma construção da mente humana, a completude e a consistência que só podemos intuir na existência primordial em si.

Em qualquer sociedade tradicional baseada numa revelação religiosa, pouca dissonância — se é que alguma — é visível, para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, entre o sistema sagrado de mito, teologia e ritual e a própria existência. Só nesta era de pluralismo forçado, em que todas as revelações religiosas sobreviventes, os “universos” mitológicos de muitas tribos primitivas, diversos sistemas filosóficos e distintos universos artísticos de sensibilidade, a historicidade e o naturalismo da visão de mundo modernista, os paradigmas da ciência e do cientificismo e a anti-visão-de-mundo que é o pós-modernismo se chocam de frente, é que um “Teorema de Gödel” sociológico se tornou necessário.

Em tempos antigos, como na Antiguidade tardia, ou em boa parte da história da Índia, quando muitas religiões e filosofias se encontravam e se fecundavam mutuamente, o sincretismo, para o bem ou para o mal, ainda era possível. Restava o suficiente do sentido primordial da unidade da existência para que os filósofos traçassem um quadro mais ou menos unificado do cosmos que abraçasse a pluralidade das formas religiosas, e para que o povo aceitasse o pluralismo religioso como algo mais ou menos natural, parte da “ecologia” do espírito — embora esse sincretismo estivesse sempre num nível mais baixo do que qualquer forma tradicional isolada e frequentemente fosse hostil ao sentido mais alto do sagrado mediado por essas formas. Mas hoje perdemos em grande medida até esse vago, intuitivo senso de unidade. As visões de mundo da ciência e da revelação, do materialismo e do transcendentalismo, são demasiado radicalmente opostas para serem reconciliadas. Isso não quer dizer que não haja sincretismo em nosso tempo; de certo modo, este é o “tempo de ouro” do sincretismo. O fato é que o sincretismo não tem mais poder para superar, nem mesmo de forma parcial e relativa (que era tudo o que jamais pôde fazer), nossa ansiedade existencial e nossa fragmentação cognitiva. Quando tentamos abraçar a completude, hoje, deparamos de imediato com contradições agonizantes. Quando optamos pela consistência, ficamos com algo isolante, constritor e radicalmente incompleto.

Os termos “completo” e “consistente” são, em certo sentido, ambos horizontais. Se o tampo de uma mesa tem extensão infinita, ele inclui “tudo” — tudo no plano da mesa, isto é —, mas a pequena parte visível não fará sentido. Se a mesa é finita, pequena o bastante para ser abarcada com um olhar, será consistente, porém deixará muita coisa de fora; se olharmos além de suas bordas, veremos muitas outras mesas. Nenhuma das palavras “completo” ou “consistente”, entretanto, pode carregar todo o peso dos termos metafísicos Realidade e Verdade, ambos nomes de Deus. Só Deus, digamos assim, é totalmente completo e perfeitamente consistente — e Deus não é um sistema. Sua completude não pode ser abrangida nem esgotada porque é Infinita; Sua consistência não pode ser definida nem racionalizada porque é Absoluta. O Teorema de Gödel, então, é a expressão matemática da transcendência de Deus em relação ao cosmos, da pobreza relativa do cosmos quando considerado à parte de Deus. Mas, uma vez que perdemos em grande parte o senso imediato de mundos superiores invisíveis — mais reais do que este — e de um Absoluto Divino e Transcendente, o Teorema de Gödel se torna apenas irônico, expressão matemática do desespero pós-moderno quanto à verdade objetiva.

Quando o norte está congelado, o oeste inundado, o sul em chamas e o leste bloqueado por um deslizamento de terra, a única saída é para Cima. Um sistema filosófico não precisa ser absolutamente consistente ou absolutamente completo para cumprir sua função. Não tem de ser Deus, assim como um elevador não precisa ter o tamanho de todo o prédio. Isso é assim porque Deus já é Deus; consistência e completude já estão garantidas. Tudo o que uma filosofia (ou, para sermos estritamente exatos, uma teosofia) precisa de fato é estar aberta, na dimensão vertical, à Verdade transcendente, ao sentido do Absoluto, e conformar suas formulações, tão imperfeitas quanto forem, a esse sentido. E, desde que percebamos que a religião, diferentemente da filosofia, dirige-se ao ser humano inteiro, não apenas à sua mente, o mesmo se pode dizer de qualquer forma religiosa viável. Ela não precisa ser absolutamente consistente ou completa; só Deus pode sê-lo. Basta que preserve, operativamente intacto, em seus dogmas, rituais, moral e prática contemplativa, o raio vivo de Deus por meio do qual entrou no mundo, e ao longo do qual as almas humanas nela contidas podem retornar à Fonte que a enviou.

Entender isso é superar a idolatria doutrinal, que podemos definir como a adoração de um sistema de crenças — heterodoxo ou ortodoxo — no lugar de Deus. Não me interpretem mal: a ortodoxia doutrinária é necessária se quisermos manter uma relação viva com o Absoluto. Está o mais longe possível de qualquer utilitarismo ou pragmatismo. Não é arbitrária, mas integral e necessária à revelação que expressa. Nos termos de Frithjof Schuon, é “relativamente absoluta”. As doutrinas religiosas que possuem verdadeira ortodoxia são providenciais. Sua eficácia operativa não se deve ao fato de serem complexas, ou simples, ou fascinantes o suficiente para nos motivar espiritualmente, mas ao fato de serem objetivamente verdadeiras: não totalmente completas e consistentes, mas ainda assim as mais altas expressões possíveis (ainda que nem sempre as únicas) da Realidade de Deus e de Sua relação com a criação, dentro de determinado universo religioso. São como elevadores que vão até o Último Andar. Outros elevadores podem levar parte do caminho, mas, se o objetivo é o Último Andar, será preciso descer novamente ao térreo para tomar o elevador certo. E, embora mais de um elevador — mais de uma tradição revelada — possa subir ao Último Andar, não é possível tomar dois ao mesmo tempo.

A idolatria doutrinária é uma forma da idolatria mais universal das visões, a tendência humana inevitável de confundir a própria visão da realidade com a própria realidade. O pós-modernismo, em seu melhor aspecto, ao negar a completude e a consistência de qualquer visão única das coisas, poderia trabalhar contra essa idolatria das visões e dar a seus adeptos algum senso da incomparabilidade transcendente das “formas de vida” singulares — bem como de indivíduos e momentos singulares —, nível de compreensão atingido de modo permanente apenas pelos grandes místicos, como o sufi Ibn al-‘Arabī, que veem todos os acontecimentos como atos ou aspectos simbólicos de Deus — “Ele (Allah) está a cada dia em uma nova obra”, diz o Alcorão —, por aqueles que transcenderam com limpidez o dogma sistemático sem, de forma alguma, negá-lo. Como ensina William Blake, a singularidade concreta dos “minutos particulares” está mais próxima da verdadeira revelação de Deus do que a ideia abstrata de transcendência. Na prática, porém, o pós-modernismo parece produzir o efeito oposto. Embora o Prof. Smith fale do respeito relutante e intermitente de Jacques Derrida pela metafísica, e de certas intuições metafísicas em Heidegger, na maior parte das vezes o pós-modernismo é ainda mais anti-metafísico do que o modernismo. E, sem a dimensão vertical, sem um senso concreto do Absoluto, a celebração da diversidade, em oposição à unidade, só pode ser um comentário irônico sobre a impossibilidade de chegar à verdade objetiva, acompanhado de uma negação niilista de que tal verdade seja sequer desejável.

Nossas visões não são a realidade; contudo, são visões da realidade, embora variem amplamente em capacidade e exatidão. Até o paranoico constrói seu delírio sobre algum traço ou aspecto de verdade. Mas, se negamos que exista qualquer verdade objetiva além de nossas visões, isso nos impede de idolatrá-las, já que entendemos que não são “reais”? Ou nos força a idolatrá-las, precisamente porque agora elas são a única “realidade” que existe? E um mundo habitado por solipsistas — mundo que o pós-modernismo, por meio da mídia eletrônica, está em vias de criar — é realmente um mundo tolerante? Se eu o aceito apenas porque você é parte de mim (em vez de eu ser parte de você, o que seria uma blasfêmia contra o solipsismo), terei realmente aceitado você?

De certo modo, a prática contemplativa pode ser definida como o trabalho de superar a idolatria das visões. A concentração no Absoluto implica a realização progressiva, momento a momento, de que nossas visões da Realidade de Deus não são Deus. À medida que passamos a entender, e a aceitar, que nenhuma concepção nossa pode conter o Absoluto, aprendemos a deixar nossas concepções ir. Na terminologia técnica do misticismo, isso é a contemplação “apofática” da transcendência de Deus.

Mas isso é apenas metade do quadro. Ao soltarmos nossas concepções, concepções maiores nascem, que também precisamos soltar, abrindo espaço para concepções maiores ainda. E, à medida que o processo continua, passamos a perceber que essas concepções não são tentativas frágeis de compreender Deus, mas generosas e misericordiosas auto-revelações de Deus para nós. Como somos finitos, jamais podemos conter Sua auto-revelação total, a não ser pela aniquilação de nossa existência separada e autodefinida, aniquilação que, em última instância, renasce como uma das infinitas auto-revelações de Deus contidas em Sua existência maior. Porém podemos aceitar as auto-revelações de Deus como dons gratuitos pelos quais aspectos de Sua Essência inconcebível se tornam conhecidos de nós, segundo nossa capacidade. Esta é a contemplação “catofática” da imanência de Deus.

Tal como a prática contemplativa, a filosofia pós-moderna trabalha contra o “realismo ingênuo”, que nos faz acreditar que a realidade objetiva se limita ao que vemos, que as coisas são simplesmente o que parecem. Mas também nos ensina, paradoxalmente, que as coisas são apenas o que vemos, que nada, ou nada inteligível, existe de fato “lá fora”. E, em vez de colocar essas duas verdades em relação, como faz a metafísica tradicional, ela as volta uma contra a outra. Em vez de postular uma Realidade que transcenda todas as nossas visões, nega que tal Realidade possa existir; no lugar do Vazio Divino além de toda concepção, ficamos com um vazio literal, uma falta morta. E, em vez de considerar nossas concepções das coisas como auto-manifestações daquela Realidade Inconcebível, vê-as como produções, em última análise arbitrárias, de um substrato material cego e destituído de unidade, produções formadas e mediadas, quase inteiramente, por inconscientemente, apenas pelos “egos” da história, da sociedade, da linguagem e do indivíduo isolado. Em lugar, portanto, da Inacessibilidade unida à Manifestação, temos a inadequação de toda concepção unida à sua proliferação cega e interminável. O niilismo pós-moderno é, assim, uma espécie de misticismo falsificado, uma sombra distorcida do próprio Absoluto. E, quando a sombra do Absoluto — aquela que os muçulmanos chamam de “Iblis” — se torna o princípio orientador de toda uma época histórica, somos obrigados a concluir que o fim do ciclo está próximo.

Pós-modernismo e Nova Era

As espiritualidades da Nova Era parecem opor-se em muitos aspectos ao pós-modernismo. Acreditam na verdade objetiva de realidades transcendentais. Não se interessam em limitar essa verdade àquilo que pode ser visto através da lente desta ou daquela linguagem, sociedade ou época histórica. Em vez de desconstruir escrituras e mitologias, examinam as escrituras e mitologias do mundo inteiro e de toda a história humana em busca de pistas para alguma verdade oculta. Acreditam em “estrutura profunda”. O segredo da metafísica e da profecia está oculto nas dimensões da Grande Pirâmide; o “Livro de Dzyan” de Madame Blavatsky seria a escritura mais antiga do mundo e a chave de todas as outras; os ensinamentos de Seth, ou de A Course in Miracles, ou de A Profecia Celestina revelam a forma destinada da história humana e a estrutura objetiva e real do universo. Podem ser heterodoxas do ponto de vista das ortodoxias tradicionais, mas não seriam pós-modernas.

Ou seriam? A primeira semelhança entre a Nova Era e o pós-modernismo é que ambos são pluralistas; ambos gostam de “celebrar a diversidade”. A Nova Era pode ter herdado o resíduo da crença da cristandade em uma verdade metafísica objetiva; ainda assim, a palavra “objetividade” não é simpática aos adeptos da Nova Era. Para eles, como para pós-modernos em geral, tende a ser sinônimo de “ortodoxia”, “dogmatismo” e “hierarquia”, que, por sua vez, são sinônimos de “opressão”.

A pluralidade de espiritualidades Nova Era não é divisiva; não é sectária. A transcendência é buscada, mas é essencialmente uma transcendência subjetiva — o que é uma contradição em termos, já que é precisamente nossa subjetividade, nosso ponto de vista egocêntrico e limitado, que precisa ser transcendido. E, uma vez que transcendência e subjetividade são simultaneamente abraçadas como valores, a autoridade espiritual é ao mesmo tempo buscada e desconfiada. Gurus reúnem seguidores, mas acredita-se ao mesmo tempo, até por muitos desses seguidores, que “você é o seu próprio guru”. Cada vez mais adeptos da Nova Era canalizam entidades psíquicas na tentativa de contornar a autoridade espiritual de mentores humanos, válidos ou não; mas em seguida dão a essa “entidade” autoridade absoluta sobre sua visão da realidade — autoridade que, porém, pode ser “massageada” quando necessário, já que nada é mais fácil do que operar a própria “entidade” como um boneco de ventríloquo para que ela diga o que queremos ouvir. A Nova Era compartilha com o pós-modernismo uma desconfiança em relação à autoridade, enquanto ao mesmo tempo possui suas próprias autoridades, assim como o pós-modernismo possui as suas.

É prática comum, para muitos adeptos da Nova Era, não permanecer fiel a um único mestre ou a uma única visão, mas multiplicá-los deliberadamente. Quanto mais mestres e ensinamentos se consegue colecionar — e, no extremo neopagão do espectro, quanto mais deuses e deusas —, mais ampla se supõe ser a área de consciência do indivíduo. Essa tendência poderia ser definida como “o reino da quantidade” na esfera religiosa, e é indistinguível do pluralismo pós-moderno, pois, se não existe realidade objetiva, a “expansão da consciência” só pode ser horizontal e quantitativa. Do mesmo modo, a crença de que cada um é seu próprio guru, ou pode canalizar sua própria entidade, ou deve construir o próprio “mito pessoal”, nada mais é do que uma versão popular da doutrina da filosofia pós-moderna segundo a qual “a realidade é apenas como é configurada”.

A pluralidade e a diversidade da doutrina Nova Era garantem que ela jamais possa transcender o nível psíquico. O domínio do Espírito é objetivo e unitário; o da psique é necessariamente múltiplo, por se basear nos pontos de vista subjetivos de seus muitos habitantes, humanos e outros. A Verdade espiritual objetiva, arquetípica, pode refletir-se aí, mas também se refrata e se quebra, como a imagem do Sol numa baía revolta. Nenhum fragmento isolado da imagem do Sol nas ondas em movimento é o Sol inteiro; nesse ponto, a advertência pós-moderna contra a absolutização de visões subjetivas é bem-vinda. Mas tampouco se pode ver o Sol inteiro somando-se fragmento a fragmento; um milhão de fotografias do Sol cintilando sobre a água nunca produzirão a imagem do Sol inteiro. E somente uma tal imagem unitária pode demonstrar que existe algo como o próprio Sol, uma realidade em si, situada em plano mais elevado do que o de seus reflexos.

O subjetivismo religioso da Nova Era é, em essência, uma tentativa de encontrar refúgio na psique subjetiva contra o terror do mundo, contra o materialismo e o cientificismo, entendendo a psique como, de certo modo, transcendente às condições materiais, mas ignorando o fato de que, se a psique não está enraizada no Espírito, em algo superior a si mesma, torna-se mero apêndice das condições materiais — como Karl Marx demonstrou com tanta clareza. Uma transcendência subjetiva é uma transcendência fragmentada, e uma transcendência fragmentada não pode ser verdadeiramente transcendente.

Globalismo e Anticristo

O globalismo e o Governo Mundial Único, a meu ver, não são o sistema do Anticristo, embora estejam entre os fatores que tornarão possível esse regime.

Creio que o sistema do Anticristo surgirá — está, de fato, surgindo — do conflito entre a Nova Ordem Mundial e o espectro de reações militantes contra ela.

No tempo de Jesus, o Governo Mundial Único era o Império Romano. Os zelotes eram os revolucionários e/ou milicianos anti-romanos. Jesus tomou o cuidado de não deixar-se arrastar a declarações que comprometessem a causa zelote e o fizessem parecer um colaborador de Roma. Porém também se relacionou com oficiais militares romanos e com serviçais de Roma, como os cobradores de impostos judeus, de maneiras que escandalizavam muitos patriotas nacionalistas judeus. Ele emergiu do povo comum, oprimido tanto por Roma quanto pelas classes dirigentes judaicas coloniais que faziam o “trabalho sujo” do Império; denunciou aqueles setores da elite — escribas, fariseus, saduceus e herodianos — que se aliavam ao Império, sem pronunciar palavra contra zelotes e essênios, que não o faziam. Mas não se identificou com a “vanguarda” violenta que agia em nome do povo. Podemos dizer, portanto, que, se Cristo se esforçou por não ser identificado nem com o Império Romano nem com seus opositores militantes, por essa mesma razão devemos tomar cuidado para não identificar estritamente o Anticristo nem com o Governo Mundial Único nem com o terrorismo antiglobalista. Juntos, eles fornecerão o meio de onde ele surgirá; mas, assim como Cristo evitou ser reivindicado por qualquer das partes porque sua missão era redimir não apenas os judeus, mas toda a humanidade, o Anticristo “jogará dos dois lados” nos últimos dias para construir seu poder sobre todos os aspectos da alma humana. O Anticristo não é principalmente inimigo da democracia ou da autonomia nacional, em outras palavras, mas da própria Humanidade, considerada como feita à imagem e semelhança de Deus. Em sua essência mais profunda, a batalha entre Cristo e Anticristo não é entre liberdade e tirania (embora, onde haja verdadeira liberdade, o Anticristo não possa vir), nem entre corpos religiosos tradicionais e sociedade secular (ainda que o campo desse conflito possa, ao menos em alguns casos, estar mais próximo da verdadeira guerra), mas entre a presença sagrada de Deus no coração humano e a violação sacrílega dessa presença: “Quando, pois, virdes a Abominação da Desolação de que falou o profeta Daniel, erguida no lugar santo (quem lê, entenda), então os que estiverem na Judeia fujam para os montes” (Mt 24,15–16).

O globalismo está em processo de destruir todas as culturas tradicionais e nacionais, minando e comprometendo todas as formas religiosas tradicionais. Mas simplesmente opor-se a todo planejamento e ação em escala global também é problemático. A verdade irônica é que, dado o globalismo, precisamos de globalismo. Se os negócios são internacionais, os sindicatos também precisam ser internacionais, ou os salários poderão, em última análise, cair abaixo do nível de subsistência em toda parte. Se as epidemias são globais, os esforços de saúde pública devem ultrapassar as fronteiras nacionais. Se a poluição é global, os esforços para limitá-la precisam ser globais. Se o crime é global, a polícia também deve ser. Se nações “emergentes” e bandos terroristas desenvolvem armas de destruição em massa, esforços devem ser feitos para limitar sua disseminação. Não temos escolha senão tentar administrar a Terra em nível planetário. Mas a luta para realizar isso produz, por sua vez, resultados ambíguos. Se os poderes constituídos podem usar o ambientalismo, os esforços de saúde pública, as ações de imposição armada da paz e a guerra contra o crime internacional, o terrorismo e o tráfico de drogas para consolidar ainda mais seu poder, eles o farão. Ou melhor, já o fazem. Quem se opõe a esforços para salvar o meio ambiente, combater o tráfico internacional de drogas ou limitar a possibilidade de terrorismo nuclear age contra os melhores interesses da humanidade e da Terra. Mas quem se identifica com esses esforços ou deposita neles sua esperança está iludido. A Terra não pode ser administrada em nível planetário porque as forças do globalismo que aspiram gerir esse processo — negócios e finanças globais, em outras palavras, seguidos, e não liderados, pela tendência à unificação política — são as mesmas que estão criando esses problemas em primeiro lugar. A expansão global da indústria e da exploração de recursos — iniciada e até hoje impulsionada, apesar do interlúdio comunista, pelo capitalismo transnacional — está na origem da degradação ambiental. Ao destruir economias tradicionais de subsistência e proletarizar o trabalho — assistida, em grande medida, pela brutal coletivização da agricultura, à custa de dezenas de milhões de vidas, na Rússia e na China comunistas —, ao explorar mão de obra barata e ameaçar identidades culturais nacionais e religiosas, as forças do capitalismo global criaram elas próprias o comércio subterrâneo global de drogas, armas, espécies animais em risco, escravos… todos monumentos ao espírito empreendedor. Só um Governo Mundial Único poderia limitar o poder destrutivo dessas forças econômicas internacionais. Mas, se e quando tal governo emergir, ainda que possa exercer alguma influência mitigadora sobre desastres globais, será agente dessas forças, não seu adversário.

A política é a arte do efêmero. Tudo o que tem valor humano e é obtido pela ação política é temporário, ambíguo e corruptível. Essa é a natureza do tempo e da história — da própria matéria. A ação pela justiça social, a ação para salvar o meio ambiente são louváveis. Cada pessoa que consegue evitar ser esmagada pelas circunstâncias sem se tornar exploradora e opressora de outros é uma bênção para a raça. Cada espécie que pode ser salva da extinção permanece como um espelho incomparável de um aspecto único da natureza divina e pode (ou não) acrescentar à biodiversidade disponível no próximo ciclo de manifestação terrestre, já que não podemos saber com absoluta certeza se o fim deste eão precisa implicar a destruição total de toda a vida na Terra, ou mesmo de toda a vida humana; tudo o que sabemos é que será o fim para “nós”.

Mas a batalha contra o Anticristo está em outro nível. Embora para alguns possa ter uma expressão política, é essencialmente espiritual. “O meu Reino não é deste mundo.” É uma luta para salvar não o mundo, mas a alma humana — começando, e terminando se preciso for, pela própria.

Vetores do Anticristo nos Três “Estados” Religiosos

Huston Smith divide todas as manifestações religiosas em três níveis básicos: religião de igreja, religião popular e religião mística. Há grande interpenetração entre esses domínios, mas a divisão permanece, em essência, correta. Muito se esclarece quando percebemos que nem tudo o que passa por “religião” tem a mesma orientação, o mesmo campo de atividade, o mesmo objetivo último.

Tal como vejo as coisas, o objetivo principal da religião de igreja é a salvação do indivíduo em um estado após a morte. O objetivo principal da religião popular é o atendimento do desejo humano e a proteção da vida humana contra o dano. O objetivo principal da religião mística é a realização de Deus, a libertação final da existência contingente, já nesta vida. A religião popular, portanto, pode ser designada como a religião deste mundo; a religião de igreja, do outro mundo; e a religião mística, do Absoluto, além tanto deste mundo quanto do outro. Esse esquema está longe de ser perfeito, mas, apesar das muitas exceções, ainda me parece um modo útil de dar sentido às tendências diversas abrangidas pela palavra “religião”.

Sem dúvida, a religião de igreja tem, entre seus objetivos secundários, a proteção do indivíduo e da comunidade contra o mal e a obtenção de metas moralmente aceitáveis nesta vida. E toda religião baseada na revelação possui pelo menos uma porta em seu interior — largamente reconhecida ou meio esquecida — que se abre para o Caminho místico. Também a religião popular não é totalmente destituída de elementos que dizem respeito ao destino da alma no além — como, por exemplo, a veneração dos antepassados — e muitas religiões populares conservam restos de doutrinas místicas expressas em termos de mito e folclore. Além disso, embora a religião mística renuncie ao apego ao sucesso e à segurança mundanos, e considere a imortalidade pessoal em um além bem-aventurado como meta severamente limitada (“o paraíso é a prisão dos gnósticos”) ou como metáfora velada da própria União mística, a bênção de um santo ou sábio realizado sempre foi reconhecida como auxílio à salvação da alma, fonte de proteção e até, em alguns casos, talismã de sucesso terreno, dependendo da intenção e da capacidade do beneficiário. Não obstante, os três objetivos de poder (via magia), salvação (via obediência) e libertação (via realização) caracterizam, respectivamente, a essência da religião popular, da religião de igreja e da religião mística.

O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã são religiões de igreja que contêm elementos místicos — a Cabala, a hesicastia e o sufismo — e incorporam também certa dose de religião popular. O Budismo é primordialmente uma religião mística, embora em suas formas Terra Pura ou Amidista tenda a tornar-se religião de salvação, ainda que continue vendo a obtenção de um além bem-aventurado como apenas o primeiro passo rumo à Iluminação final. Na China e em outros lugares, o Budismo absorveu inúmeros elementos populares, e a seita Nichiren Shoshu, e outras semelhantes, com sua ênfase no sucesso mundano, embora ainda orientadas para a Iluminação final, partilham do objetivo fundamental da religião popular.

O Confucionismo, ao evitar (sem negar) o sobrenaturalismo, é mais um sistema de sabedoria social e moral — profundo e providencial, é verdade — do que aquilo que costumamos chamar de religião. O Taoismo, a outra grande tradição chinesa, assume três formas, segundo Huston Smith: taoismo filosófico, taoismo higiênico-iogue e taoismo eclesiástico instituído. O taoismo filosófico e o higiênico-iogue são essencialmente místicos, correspondendo aproximadamente ao jñāna-yoga e ao rāja-yoga no Hinduísmo (embora o taoismo higiênico-iogue, com sua ênfase em saúde e longevidade, incorpore elementos populares), ao passo que o taoismo eclesiástico pode ser descrito como uma religião popular mágica que se converteu em igreja organizada. O Taoismo compartilha com o xamanismo, um de seus ancestrais longínquos, uma união mais estreita entre magia e mística do que foi o caso nas As religiões abraâmicas, o budismo (fora das seitas Vajrayana) e talvez até o hinduísmo preservaram, em maior ou menor grau, a separação entre magia e mística; apesar disso, essas duas tendências permanecem distintas.

Quanto ao hinduísmo, ele abrange os três elementos: toda forma imaginável de religião popular mágica e/ou politeísta; um “politeísmo eclesial” superior, baseado nos cultos dos grandes deuses e deusas; e uma rica espiritualidade mística, amplamente derivada dos ensinamentos transcendentes do Vedānta, incluindo os cultos de Kali, Shiva e os avatares de Vishnu reinterpretados como formas do Absoluto unitário.

A forma dominante na Europa e nos Estados Unidos tem sido tradicionalmente a religião de igreja; e, como o cristianismo norte-americano foi predominantemente protestante, tanto as espiritualidades místicas quanto as populares foram amplamente excluídas — embora algumas vertentes do protestantismo carismático tenham preenchido parcialmente essa lacuna, não incorporando a religião popular, mas quase transformando o cristianismo, elas mesmas, em uma religião popular mágica. Não era bem assim no catolicismo tradicional da América Latina, que abraçava muitos mais elementos populares e preservava, em certa medida, a dimensão mística, ao menos no contexto do monaquismo. A mística também sobreviveu no catolicismo norte-americano — como testemunham figuras como Thomas Merton —, mas um protestantismo eclesial estreito, embora muitas vezes profundamente enraizado, e um catolicismo eclesial igualmente estreito continuaram sendo, até talvez o fim dos anos 1960, a realidade denotada pela palavra “religião” na mente da maioria dos americanos.

A supressão tanto da religião popular quanto da religião mística no contexto norte-americano tornou possível um erro fundamental que ganhou grande força cultural nos anos 1960 e 1970 e continua a se espalhar até hoje: a saber, que a religião popular é, na verdade, mística. Como tantas vezes ocorreu ao longo da história, na política e na religião, ideias essencialmente incompatíveis tornaram-se associadas no imaginário popular por terem sido ambas excluídas da visão oficial da realidade. Embora a busca da segurança e do sucesso mundano, própria da religião popular, esteja no pólo oposto da meta de renúncia e libertação própria da religião mística, a dinâmica histórica predominante assegurou que muitas pessoas que professavam interesse pelo misticismo também se interessassem pela magia; a necessidade sentida de “abandonar” a religiosidade eclesial estreita significava que se estava muito propenso a “adentrar” tudo o que essa religião de igreja havia deixado de fora — fosse algo elevado, simplesmente vulgar, ou ativamente sinistro.

O protestantismo evangélico continua, sem surpresa, a propagar o erro de que metafísica e misticismo (num extremo) e magia e fenômenos psíquicos (no outro) são, na verdade, a mesma coisa; enquanto o protestantismo liberal e o catolicismo caíram no mesmo erro pela direção oposta: muitos liberais acreditam que a dimensão mística perdida do cristianismo — ou de seu cristianismo — pode ser ressuscitada pela inclusão de mais elementos populares, por meio do interesse em mitologia universal, religiões pagãs, xamanismo e até bruxaria. E o protestantismo carismático (e também o catolicismo carismático) fez o possível para transformar o cristianismo em uma religião mágica ou popular.

A supressão da religião mística no cristianismo norte-americano levou até mesmo contemplativos como Thomas Merton a buscar a dimensão mística perdida em tradições não cristãs. Isso produziu o efeito ambíguo de despertar o cristianismo para seus próprios aspectos místicos ao preço de contaminá-lo com elementos heterogêneos que, embora sem dúvida de profunda verdade e eficácia espiritual em seus próprios contextos tradicionais, tendem a lançar uma sombra distorcida sobre a filosofia metafísica cristã tradicional e sua espiritualidade mística. E a incapacidade do protestantismo americano de santificar, na medida do possível, a dimensão popular — algo que tanto o catolicismo quanto a ortodoxia russa foram mais capazes de fazer, embora não sem tolerar, de tempos em tempos, certos elementos ambíguos —, somada à apostasia rastejante do próprio catolicismo romano, abriu o cristianismo americano para subversões tanto pelo neopaganismo, seja sob a forma de religiões afro-americanas como a Santería, seja sob a de renascimentos “pagãos” comercializados em massa, como a Wicca de Starhawk, quanto por várias ideias da Nova Era e/ou neoespiritualistas. Tampouco se pode ignorar a grande e destrutiva influência do junguianismo — uma psicologia que possui muitos insights válidos no seu próprio nível, mas que assumiu a forma infeliz de uma pseudomística incorporando muitos elementos populares — especialmente dentro do protestantismo liberal e da Igreja Católica.

Dado que a religião mística é o núcleo, intrínseco ou reconhecido, de toda verdadeira espiritualidade, e que o elemento mágico — o desejo de alcançar sucesso mundano e evitar o dano mundano por meios sutis — sempre se apresentará à porta de nossa vida religiosa exigindo reconhecimento, devemos levar ambos em conta. Se falharmos nisso, o resultado será pseudomisticismo de um lado, e feitiçaria do outro. O perigo da feitiçaria só é superado incorporando uma oração peticionária poderosa e espiritualmente eficaz em nossa vida religiosa, e reconhecendo ao mesmo tempo que devemos “buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, que “não é deste mundo”; à medida que o poder miraculoso da teurgia se retira da vida espiritual — ao menos dentro de um contexto cristão —, o poder subversivo da magia tomará o seu lugar. E o perigo do pseudomisticismo só pode ser superado mediante o verdadeiro misticismo, cujos aspectos metafísicos e operativos, no contexto do cristianismo, estão plenamente apresentados na tradição patrística e nos escritos dos santos místicos das Igrejas do Oriente e do Ocidente. Sem uma compreensão abrangente e uma prática viva de sua própria tradição mística, as igrejas cristãs permanecem abertas à invasão por uma metafísica falsa e por uma prática contemplativa falsa — a religião do Anticristo.

Certos aspectos da religião popular estão claramente posicionados para prestar tributo ao regime do Anticristo, não porque a religião popular (no contexto norte-americano contemporâneo, principalmente o neopaganismo) seja sempre má em si — ela é capaz, no seu melhor, de proporcionar às pessoas uma forma viável de lidar umas com as outras e com o mundo ao redor, e despertá-las, ao menos até certo ponto, para o significado sagrado do mundo natural —, mas porque forças satânicas podem usá-la para subverter tanto a religião eclesial quanto a religião mística. E a religião mística pode servir fielmente ao Anticristo por si só, se começar a se ver como rival da religião de igreja e, assim, como uma “igreja” alternativa, em vez de profundidade mística de uma dada tradição, cuja “igreja” é sua forma externa necessária e providencial. Se tomar esse caminho, acabará tanto por minar essa “igreja” quanto por trair sua própria essência. E a religião de igreja, se degenerar em um legalismo estreito de um lado, ou em um fideísmo anti-intelectual de outro, abrirá necessariamente sua porta às duplas subversões do pseudomisticismo e da feitiçaria.

No mundo da Nova Era, feitiçaria e pseudomisticismo juntaram-se. Contudo, a espiritualidade da Nova Era não pode realmente ser chamada de “religião popular”, pois está sendo comercializada em massa, de maneira muito sofisticada, para uma “massa” que já não é realmente um “povo”. E ela se apoia tanto, por exemplo, em pesquisas avançadas sobre o cérebro e especulações da física pós-einsteiniana quanto em tradições antigas como o xamanismo. A libertação espiritual é pregada, e técnicas místicas que afirmam ser capazes de produzi-la são ensinadas. Contudo, a Nova Era não pode ser caracterizada como religião mística, já que a libertação em questão é abordada ou por meio de uma metafísica falsa, ou por meio de verdadeiros princípios metafísicos retirados de contexto, ou por meios puramente psíquicos — meios que são, por definição, insuficientes para a libertação espiritual, uma vez que é justamente da dominação da psique — o universo, sutil ou grosseiro, definido pelo ego humano — que o Caminho espiritual existe para nos libertar. E a libertação espiritual é apresentada pela Nova Era não como fruto da renúncia ao mundo, mas como plenamente compatível com a busca mágica de metas mundanas, se não como a mais poderosa magia de todas. O princípio central da Nova Era parece ser: “você pode servir a Deus e a Mamom.”

Além disso, as técnicas amplamente disseminadas são fantasias sem sentido, ferramentas psicológicas úteis mas não espirituais, técnicas mágicas perigosas ou, novamente, práticas místicas verdadeiras que só podem ser eficazes de modo confiável dentro de uma tradição espiritual viva, possuidora de doutrina ortodoxa e de uma compreensão prática de como a espiritualidade contemplativa deve ser exercida, tanto no contexto doutrinal quanto no moral. Mas, se algo caracteriza a espiritualidade Nova Era, é a redução da compreensão doutrinal ou metafísica do universo, de sua relação com seu Princípio divino e da natureza essencial desse Princípio a um conjunto de regras técnicas, juntamente com a tendência de retirar métodos de prática contemplativa, ióguica ou mágica de qualquer contexto moral, bem como de um contexto doutrinal suficiente. Se não é exigido compromisso moral para operar um computador pessoal, tampouco é exigido para a operação mágica do sistema nervoso humano e da manipulação das forças sutis às quais esse sistema pode, sob certas circunstâncias, ter acesso. Para qualquer pessoa com entendimento de verdadeira espiritualidade, seja devocional ou contemplativa, o resultado inevitável de tal abordagem é dolorosamente óbvio. Não é tão óbvio, infelizmente, para os praticantes da Nova Era, que acreditam que sua experimentação perigosa e caótica com a consciência humana é espiritualidade mística, e foram cuidadosamente treinados para rotular como “preconceito” qualquer advertência ou expressão de preocupação daqueles que sabem mais do que eles. Porém a falta de ouvintes em nada absolve os mais bem informados de seu dever de falar.

Em livros como Theosophy: History of a Pseudo-Religion, The Spiritist Fallacy e The Reign of Quantity and the Signs of the Times, o filósofo metafísico René Guénon pregou não contra a religião popular mágica em si — a menos que o espiritismo seja considerado uma forma atípica de religião popular moderna —, mas especificamente contra certos movimentos mais sofisticados da era moderna — a teosofia, o ocultismo e outros — que vão além das práticas populares “tradicionais”. Esses movimentos representavam para ele não meras religiões “mundanas” do povo, sejam efetivamente mágicas ou simplesmente supersticiosas, mas, em alguns casos pelo menos, tentativas deliberadas e conscientes de subverter tanto a religião de igreja quanto a espiritualidade mística por meio de uma mistura caótica de elementos populares, espiritualidades místicas mal compreendidas ou distorcidas, doutrinas heréticas e até formas de satanismo explícito. Ele considerava o crescimento de tais movimentos como um dos primeiros sinais claros da vinda do Anticristo e, portanto, como arautos do fim apocalíptico do presente ciclo, após o qual um novo ciclo seria inaugurado por um novo avatāra — evento chamado, em termos cristãos, de parousia, a segunda vinda de Cristo.

A World Wide Web

Uma das expressões mais claras do pós-modernismo é a “cultura da informação”, cujo “corpo místico” é a internet. Não há dúvida de que a World Wide Web é útil. Facilita enormemente a pesquisa de imensos volumes de dados e possibilita formas de comunicação criativa que jamais foram possíveis antes. O preço dessa inegável amostra de “progresso” é, contudo, mais alto do que pode ser compensado pelo melhor uso que dela se faça. (Como um amigo meu disse uma vez, quando lhe perguntei para que servem os computadores: “Eles servem para lidar com a explosão de informação criada pelos próprios computadores.”) Não é sempre um pecado usar a internet, mas é sempre um perigo espiritual, cujo alcance e profundidade não podem ser definidos apenas em termos do tipo de informação que escolhemos acessar por meio dela. (Segundo um estudo recente, o uso da internet produz sintomas de depressão e solidão. Um leve, porém estatisticamente significativo aumento nesses sintomas pode surgir com apenas uma hora por semana online.)

A internet é o símbolo sociotecnológico perfeito do pós-modernismo. Não há “paradigma abrangente” que dê ordem e coerência à visão de realidade que ela apresenta. A “realidade” é simplesmente aquilo que o indivíduo configura de acordo com suas necessidades, seus interesses, seus medos e seus desejos. Como o “inconsciente coletivo” de Jung, a Web representa não uma realidade objetiva, material ou metafísica, mas uma subjetividade massiva com consequências objetivas. Poder-se-ia caracterizá-la como forma de treinamento coletivo em solipsismo ou introversão autística, donde a proverbial inabilidade social do “nerd de computador”. Nada existe senão o “eu” e seus tentáculos globais. Eu sou o pensador; você é meu pensamento. O mundo é meu sistema nervoso.

A megalomania potencialmente gerada pela fantasia — induzida pela Web — de que estou falando ao “mundo inteiro” por trás de uma tela de anonimato eletrônico, aliada à ausência de qualquer referência à realidade objetiva que possa reduzir essa megalomania, garante que as visões menos objetivas e portanto mais extremas e desequilibradas da “realidade” oferecidas na internet ganhem um poder desproporcional ao seu valor intrínseco, especialmente dada a extrema passividade que, lado a lado com a inflação do ego, é consequência inevitável da supressão de qualquer senso de realidade fora do “eu”. A experiência, sem uma relação viva com a verdade objetiva que a reabasteça, entra em um estado de entropia acelerada. Tal entropia começou no Ocidente com a marginalização da religião e a morte da metafísica, e agora parece caminhar, por analogia com a segunda lei da termodinâmica, rumo a uma espécie de “morte térmica” do significado, onde até mesmo a relativa objetividade representada por um mundo comum de experiência sensível é marginalizada pelo domínio dos meios eletrônicos. Se o fim teórico de um universo em expansão é a estagnação de uma temperatura uniforme, o fim correspondente da explosão de informação parece destinado a ser uma espécie de “temperatura uniforme do significado”, onde boatos são elevados ao estatuto de fatos e fatos degradados ao nível de opiniões arbitrárias, onde nenhum dado é mais significativo ou mais significativo do que qualquer outro. Mas felizmente — ou infelizmente — tal limite teórico de falta absoluta de significado não pode, de fato, ser alcançado. Nas palavras de René Guénon em The Reign of Quantity and the Signs of the Times: “Depois do igualitarismo da nossa época” — a cultura da informação sendo uma espécie de igualitarismo do significado — “voltará a haver uma hierarquia visível e estabelecida, mas uma hierarquia invertida, na verdade uma autêntica ‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que estará, de fato, mais próximo que qualquer outro do fundo do ‘poço do Inferno’.”

A internet, no nível metafísico, é em certos aspectos uma inversão satânica da imanência de Deus. Nicolau de Cusa, numa tentativa de representar essa imanência, caracterizou Deus como “uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em lugar nenhum”. Esta é uma descrição adequada da internet. É a primeira utilidade aparentemente administrada por ninguém — ou por todo mundo. (Aparentemente, porque, embora ninguém a administre, pessoas como Bill Gates, que têm o poder econômico e técnico para explorá-la, estão usando nossa experiência online — de que a “intenção configura a realidade” — para ocultar o fato de que estão nos alimentando, como se fosse a própria natureza primordial, com os termos, métodos e sistemas pelos quais somos “livres” para configurá-la.)

O populismo espiritual — que foi uma grande influência, via Peter Russell (The Global Brain), Barbara Marx Hubbard e outros, no desenvolvimento da internet — sustenta que cada um de nós, no plano da manifestação, é igualmente divino. A forma como a realidade é configurada por mim não é, portanto, mais nem menos válida do que a forma como é configurada por você. Acreditávamos que, se a verdade de que “o centro está em toda parte” pudesse ser efetivamente realizada em escala global, então Deus seria encarnado em nível massivo e a Terra seria salva. Mas, quando Nicolau de Cusa disse que “o centro está em toda parte”, ele não quis dizer que a visão de mundo de um pedófilo ou de um esquizofrênico paranoide tivesse o mesmo valor que a de um crítico social dedicado como Noam Chomsky ou um filósofo espiritual como Huston Smith. Ele quis dizer que o atman, a Testemunha Divina, é imanente em todos os seres, incluindo todos os seres humanos. Embora o grau em que essa Testemunha é realizada ou traída difira radicalmente de caso a caso, ela continua sendo o núcleo transcendente de cada pessoa. A Testemunha Divina não é a subjetividade de cada um de nós, mas precisamente aquilo que transcende essa subjetividade e, ao fazê-lo, nos apresenta as coisas como são. Como Sujeito Absoluto, o atman não é este ou aquele ego subjetivo com sua configuração excêntrica da experiência; ele é Aquilo que nada testemunha senão a Verdade Objetiva Absoluta. Só a “configuração” de realidade de Deus — aquela Essência sem forma que é a Forma de toda forma — é absolutamente verdadeira. O ato d’Ele de configurar abrange todos os nossos, do criminoso ao santo; o santo é santo precisamente porque sua configuração se aproxima mais da de Deus, o criminoso é criminoso porque dela se afasta o mais radicalmente possível.

Colocar a verdade de que “o centro está em toda parte” no plano das condições manifestas, e não no plano de uma Realidade Absoluta transcendente que, no entanto, é imanente em todas as coisas, é transformar a visão de Deus em todas as coisas em uma “absolutização do relativo”, uma divinização da ilusão. É adorar avidyā-māyā, o universo das condições na medida em que vela, em vez de revelar, o Absoluto. E um dos símbolos universais dessa maya, em muitas culturas e tradições, é a teia de aranha. Assim, a World Wide Web, em sua tendência principal — embora não em seus usos inegavelmente valiosos — é uma expressão de avidyā-māyā, o poder da ignorância. E, como Marshall McLuhan nos ensinou, é a tendência principal que conta: “o meio é a mensagem”. A forma essencial de um meio — ou de uma tecnologia, como a energia nuclear ou a engenharia genética — tem efeito global sobre a consciência e a sociedade maior do que aquilo que decidimos fazer com ela. A forma essencial da World Wide Web, com seu dilúvio de informação configurada subjetivamente (muito dela indistinguível de simples mentira), sua negação da objetividade e a consequente supressão tanto do desprendimento quanto do alcance intelectual, é bem expressa na declaração de Nietzsche: “Nada é verdadeiro; tudo é permitido” — o grito de guerra do pós-modernismo em seis palavras.

Na Idade de Ouro, a percepção se conforma, na medida do possível, à Realidade. Na Idade de Kali, a percepção se afasta da Realidade, na medida do possível, e acaba entrando em guerra com ela — guerra essa que a Bíblia chama de “Armagedom”. Quando a percepção tornada ilusão virtual entra em guerra com a Verdade, a Verdade deve assumir a forma irada de Kali, cuja essência não manifesta é Shiva: a Realidade Absoluta como destruidora da ilusão do mundo.

Antes dessa batalha última, porém, a objetividade reprimida, agora degradada do nível da inteligência ao nível exclusivo do poder, retornará em forma negativa e falsa. Onde nada é verdadeiro e tudo é permitido, aqueles que tomam o poder podem configurar a realidade como se fossem o próprio Deus — mas configurá-la segundo o quê? Com a verdade objetiva suprimida e o poder absolutizado, que realidade podem os poderosos tomar como modelo segundo o qual esse poder possa ser exercido? Nenhuma realidade além do próprio poder, o que significa: nenhuma verdade senão o caos. Portanto, depois que os poderosos terminarem de tomar o poder, o Anticristo tomará posse deles. O Anticristo, essa instabilidade colossal, esse centro de subjetividade massiva erguendo-se contra a verdade objetiva apenas por meio do poder, será a expressão universal, devastadora e final do pós-modernismo. E a Web será sua Prostituta. O que é uma prostituta, afinal, senão uma expressão do desejo humano de que a realidade objetiva se conforme à fantasia subjetiva? E o que nos ensina a experiência de frequentar prostitutas — se a objetividade algum dia nos libertar dessa experiência para que possamos aprender com ela — senão que aqueles que desejam ter poder sobre suas fantasias estão simplesmente entregando a suas fantasias poder sobre eles?

Isto é a Web: observe e aprenda.

Pós-modernismo e Globalismo

O pós-modernismo é a ideologia religiosa, filosófica e cultural do globalismo. Mas como isso é possível? Como uma unificação econômica e política do mundo pode surgir de uma visão de mundo — ou de uma anti-visão de mundo — que exalta a diversidade e define toda unidade, inclusive a unidade política, como opressão?

A resposta irônica é que a Unidade, que o pós-modernismo nega, é implicada em cada declaração que ele faz, pelo simples fato de que toda afirmação de que o conjunto da realidade é de tal ou qual modo — inclusive a afirmação de que ela é múltipla, diversa e sem referente objetivo — é um exemplo dessa unidade. A doutrina de que não há paradigma abrangente é, ela mesma, um paradigma abrangente. Assim, embora a Unidade seja negada, é perpetuamente invocada; mas invocar algo que é intelectualmente negado e emocionalmente temido é garantir que isso se apresente em sua face mais negativa.

A Unidade é. Se não a reconhecermos, ela não se expressará em termos de conhecimento, mas de poder. Em outras palavras, a negação de todas as unidades, da qual a Unidade metafísica é o princípio radical, garante que nenhuma visão possa subsistir como rival da “unidade” do poder nu. O pós-modernismo derrete as religiões tradicionais, as culturas e as formas de vida, e o poder assume o controle. Assim, o pós-modernismo pavimenta o caminho para o globalismo, primeiro destruindo qualquer visão que possa rivalizar com ele, e, em segundo lugar, criando um nível de caos que clama por medidas repressivas — na crença equivocada de que o caos é liberdade (ver Capítulo Seis). A Unidade é uma verdade metafísica. Se for negada, reaparecerá não tanto contra quanto por meio dessa negação: e esse é o sistema do Anticristo. Nos termos de René Guénon em O Reino da Quantidade, do Reinado da Quantidade moderno-materialista, cujo fase terminal é o pós-modernismo, nasce, em última instância, o Reinado da Qualidade Invertida, em que o igualitarismo democrático é destruído não em nome da aristocracia, mas do caos, em benefício daqueles magos socioeconômicos globalistas para os quais o caos cultural é algo natural e o caminho mais direto para o poder. A diversidade, para eles, implica aceitar a existência de uma classe dirigente global multiétnica, já que ninguém que não consiga trabalhar com “ingleses, franceses, beduínos, japoneses, asiáticos e negros” pode ser cosmopolita de forma eficaz segundo o modelo atual. Como o bom comunista, o bom globalista aprende que raça não importa, que cultura é um empecilho que pode e deve ser superado, e que tudo o que realmente conta é a classe. Além disso, ninguém é mais útil na legitimação desses costumes de “classe mundial” do que os supremacistas brancos (ou negros) e os terroristas/ separatistas étnicos que representam sua imagem especular invertida.

A fusão cultural mundial é também uma maneira de a elite dirigente globalizar mercados, padronizar tanto consumidores quanto força de trabalho e hipnotizar permanentemente as massas, não apenas lançando um manto temporário de segredo sobre suas ações, mas destruindo até o desejo humano normal de saber o que realmente está acontecendo, por meio de uma ideologia que prega que, de fato, nada está acontecendo fora das fantasias subjetivas do indivíduo isolado. E os horrores do caos social, das armas de destruição em massa e da degradação ambiental tornam tal ideologia insana muito atraente como fuga — para aqueles, isto é, que ainda não optaram pelo suicídio assistido que Jack Kevorkian, esse satanista pós-moderno perfeitamente contemporâneo e altamente relevante, se dispõe de bom grado a lhes fornecer, com a bênção cada vez mais aberta do mundo tal como é, e como está destinado a tornar-se.

Um dos “profetas” dessa demência solipsista baseada no medo e na negação, curiosamente, foi o pioneiro do LSD Timothy Leary. Perto do fim de sua vida, quando morria de câncer, fez declarações como as seguintes: já que a Terra está morrendo, nosso melhor recurso é viajar em massa para o ciberespaço, para a realidade virtual, e deixar a Terra para trás; esta é a “nova fronteira” tecnológica e cultural. Ele esqueceu apenas um detalhe: a realidade virtual ainda exige tanto o sistema nervoso humano para experienciá-la quanto uma fonte de energia para alimentar nossos computadores. Alimentos, água, abrigo e ar continuarão sendo necessários, juntamente com usinas de energia e um “contrato de manutenção estendido” para o caso de nossos computadores quebrarem.

Outras mentes “menos desequilibradas”, no entanto, aparentemente imaginaram um meio de contornar essas limitações: simplesmente faremos o upload de nossa consciência diretamente em computadores que serão mantidos por robôs que não precisam de comida, água, abrigo e ar.

Pois bem… a cada um o seu. Mas voltemos ao pós-modernismo em um nível um pouco mais humano: em toda essa “celebração da diversidade”, quem é que, de fato, está realizando a verdadeira celebração? Não são os “locais” desclassificados atolados em visões de mundo marginalizadas que um dia foram culturas, religiões, civilizações. Não são os modernistas obsoletos celebrando unificações “literárias” defuntas. Somente aqueles que são herdeiros dessas visões podem realmente celebrar a diversidade: a elite global. Certamente uma espécie de diversidade faz necessariamente parte da cultura de massa pós-moderna, uma diversidade retratada como “riqueza” — mas a atenção estreitada e a visão em túnel que a qualidade de descontinuidade supersônica e recortada dessa cultura cria na maioria das pessoas impedem que se alcance o nível de “visão de conjunto” em que essa “diversidade” possa sequer ser percebida, quanto mais “celebrada”. E a multiplicação quantitativa dessa “diversidade”, em detrimento dos elementos qualitativos sem os quais o próprio conceito de diversidade fica sem sentido, torna a experiência pós-moderna, apesar de sua “riqueza” caleidoscópica, estranhamente uniforme e morta. A consciência das massas tende a ficar presa, cada vez mais irremediavelmente, no milésimo de segundo da reação ao estímulo, desprovida tanto de um passado sabiamente contemplado quanto de um futuro razoavelmente projetado — um modo de “consciência” que é precisamente a versão do ego, a falsificação satânica, daquele Presente Eterno pelo qual Deus, como Testemunha Absoluta em nós, contempla o mundo.

Apenas aqueles que dispõem de poder cultural, econômico e tecnológico suficiente para comandar a presença simultânea de muitas visões de realidade podem colocar uma porcentagem significativa de toda a diversidade pós-moderna sobre a mesma mesa de banquete ao mesmo tempo — mas nunca toda ela, e nunca por muito tempo: porque a mudança desencadeada pela tecnologia global da informação é caótica e rápida demais para que alguém consiga realmente acompanhar; porque a taxa de desgaste e de substituição daqueles que administram o mercado global também se acelera; e porque a destruição pós-moderna da consciência humana terá de afetar, por fim, aqueles que esperam lucrar com ela — talvez mais rapidamente, e certamente mais profundamente, do que afeta seus fantoches mais dóceis e seus títeres mais vulneráveis. Aqueles que envenenam o poço acabarão, inevitavelmente, obrigados a beber dele.

Uma multiplicidade de visões só pode ser percebida a partir do ponto de vista de uma Unidade abrangente. Mas a capacidade de perceber qualquer visão que não seja a própria também é negada — implicitamente, se não abertamente — pelas formas mais extremas de pós-modernismo, conforme a doutrina de que não há percepção de uma realidade objetiva, mas apenas construção dela. Se a realidade se baseia apenas em visões construídas, o mesmo vale para qualquer visão que tenhamos da visão de outro — e como podemos celebrar a diversidade de visões se negamos nossa capacidade de perceber objetivamente qualquer visão que não seja a nossa?

O pós-modernismo toma da fenomenologia o imperativo de ver com os olhos dos outros, de andar um quilômetro nos sapatos deles. Mas também toma a negação de uma única verdade objetiva, o que leva à absolutização do subjetivo, implicando necessariamente a absolutização da minha subjetividade, o que, por sua vez, torna impossível ver com os olhos alheios. O pós-modernismo é, então, o gesto desesperado de um solipsista (eu, é claro) na direção de outros solipsistas conjecturais cuja existência ele precisa negar justamente enquanto lhes sinaliza por meio da fumaça.

Mas nem isso é o fundo do pântano pós-moderno. Sem a presença libertadora e estabilizadora de uma realidade objetiva fora do “eu”, onde todos os pontos de vista subjetivos possam convergir, tudo é ego — e o ego não é definido pela verdade, mas pelo poder. Esse ego, no entanto, por não possuir realidade intrínseca, é de fato a mais fraca de todas as pseudo-realidades imagináveis. Como tal, seu solipsismo está destinado a ser devorado por um solipsismo maior, uma irrealidade maior, uma fraqueza mais poderosa — pelo regime daqueles que, em nome do poder, esvaziaram-se mais completamente de realidade, a serviço daquela maior irrealidade, daquela fraqueza mais poderosa de todas — o Anticristo. Nas palavras de Guénon:

“O Anticristo deve evidentemente estar tão próximo quanto possível da ‘desintegração’, de forma que se poderia dizer que sua individualidade, ao mesmo tempo em que se desenvolve de modo monstruoso, está quase aniquilada, realizando assim o inverso do apagamento do ‘ego’ diante do ‘Si-mesmo’, ou, em outras palavras, realizando a confusão no ‘caos’ em oposição à fusão na Unidade principial...” (The Reign of Quantity, p. 327).

A irrealidade deliberadamente buscada e meticulosamente engenhada do mundo pós-moderno é também, de forma análoga, uma falsificação satânica da doutrina budista da “vacuidadão” dos fenômenos. Para os budistas, o mundo fenomenal em sua realidade essencial — aos olhos de quem está plenamente desperto — é vazio de natureza própria, vazio de qualquer limitação relativa ou contingente. A vacuidadão das coisas é uma só com sua “talidade”, o que equivale a dizer que as coisas estão livres de todas as definições limitadoras porque são, em essência, incomparáveis. Todas as formas são manifestações de seu Princípio absoluto, que não é, porém, um objeto cognitivo separado; o saṃsāra é ele mesmo o Nirvana. Para o pós-modernista, em contrapartida, as formas são “absolutamente” relativas. Nada existe nelas além de sua natureza própria, relativa e indefinível como é, e é essa sua “vacuidadão”. Em sua limitação impermanente e contingente, “como tal”, são tudo quanto existe; são opacas e nada manifestam; não há Nirvana, nenhuma natureza búdica nelas, apenas um saṃsāra que jamais pode ser visto como é — isto é, como um mundo de ilusão baseado no desejo e na ignorância — porque não existe Verdade libertadora além dele à luz da qual sua natureza ilusória possa ser apreendida. Não há saída.

Pós-modernismo e Paranóia

Michael Kelley, num artigo intitulado “The Road to Paranoia” (The New Yorker, 19 de junho de 1995), cunhou o termo “paranoia de fusão” (fusion paranoia) para descrever a convergência das franjas lunáticas tanto da esquerda quanto da direita, somadas aos porta-vozes de paranoias especializadas de todos os quadrantes, num caldo geral antigoverno e antiglobalista temperado com bastante racismo e incipiente terrorismo doméstico. Ele também aponta como a paranoia se tornou muito mais aceitável no “mainstream” da vida política americana. “Numa era de paranoia de fusão”, escreve Kelley, “já não se faz qualquer distinção entre acusações críveis e calúnias totalmente infundadas. Qualquer sugestão de mal conspiratório contra um político de destaque, por mais extrema que seja a acusação ou por mais escassa que seja a evidência, desliza das margens da política até o centro, em uma espécie de esteira rolante que o transporta dos delírios de grupelhos marginais da direita e da esquerda para a zona respeitável do discurso público”.

Essa paranoia institucionalizada é parte integrante do ethos pós-moderno. Se não há verdade objetiva, não há como distinguir entre acusações plausíveis e boatos delirantes. Se não há verdade objetiva, qualquer visão estabelecida da realidade é automaticamente suspeita; só pode ser entendida como uma conspiração dos poderosos contra os fracos (o que, evidentemente, às vezes é o caso). Se não há verdade objetiva, qualquer um que consiga lançar um boato que não possa ser definitivamente desmentido — processo que a internet parece ter sido especificamente desenhada para facilitar — pode sentir que, como o próprio Deus Todo-Poderoso, criou uma “realidade” a partir do nada.

O que exatamente é paranoia? É a tentativa da mente humana de alcançar um fechamento cognitivo em uma situação que não o permite, seja porque há informação de menos para justificá-lo, seja porque — como no caso do esquizofrênico paranoide — há informação demais para fazer sentido, a não ser por meio do delírio.

Nossa cultura de informação pós-moderna é perfeitamente desenhada para criar paranoia. Ela nos obriga a processar informação demais; e esse “demais” é, em outro sentido, também “de menos”, já que, à medida que a quantidade de fatos (ou conjecturas, ou fantasias) aumenta, nossa certeza a respeito da verdade de qualquer fato isolado diminui. Como tentativa de alcançar o fechamento cognitivo, porém, a paranoia não é mais do que uma faculdade humana normal e necessária que assumiu forma distorcida e patológica: a capacidade de criar um ponto de vista estável, uma visão de mundo coerente e unificada. Em um mundo que nega a existência de algo como verdade objetiva, essa faculdade normal é forçada a trabalhar até atingir um estado de insanidade, como as filhas de Dánao no inferno tentando tirar água com uma peneira.

A prevalência da paranoia em nossa cultura é a prova de que não estamos à vontade com o pós-modernismo, de que a disposição de adiar permanentemente o fechamento cognitivo, exigida pelo pós-modernismo, vai contra a natureza humana. É uma forte evidência de que jamais ficaremos realmente confortáveis com a ideia de que não existe verdade objetiva. E é aí que reside o maior perigo do pós-modernismo: em sua compreensível tentativa de evitar ideologias totalitárias, ele acumula no inconsciente coletivo, por meio de seu próprio “relativismo totalitário”, um desejo profundo pela Unidade perdida que antes era proporcionada pela religião, pela metafísica e pela intuição intelectual de Deus. Quando nosso cansaço com o caos e o relativismo chegar ao ponto de ruptura — que será também o ponto em que nossa capacidade de reconhecer a verdadeira Unidade objetiva e metafísica estará mais profundamente erodida — então nosso desejo inconsciente por essa Unidade irromperá explosivamente. E aquele que conseguir melhor satisfazer esse desejo, em escala global — por mais irreais que sejam suas promessas, já que nosso senso coletivo de realidade estará então em seu nível mais baixo — assumirá o papel de Anticristo.

As Religiões Globalistas

É lógico supor que, em algum lugar dos conselhos dos grandes, ideias e propostas como as seguintes estejam sendo seriamente discutidas:

“Todas as civilizações estáveis conhecidas da história se basearam, de uma forma ou de outra, na religião. As religiões tradicionais são divisivas, causam guerras e instabilidade social, porque nenhuma delas está destinada a triunfar, em definitivo, em escala global; estarão sempre em conflito. A Nova Ordem Mundial global, portanto, precisa de uma religião própria.

“Nenhuma religião vem realmente de ‘Deus’; todas são criações da mente humana. Essencialmente, são expressões de nosso potencial humano. Os maiores engenheiros sociais da história foram os sacerdotes, que, por meio de um árduo processo de tentativa e erro, descobriram as leis que regem o estabelecimento da estabilidade social e a orientação de todos os recursos humanos de uma determinada civilização rumo aos objetivos centrais dessa civilização. Quando a civilização global da Nova Ordem Mundial se tornar uma realidade, haverá um perigo real de que seja destruída, entre outros fatores, por guerras entre religiões. Por isso, devemos criar uma nova religião que supere todas as outras, tomando de cada uma o que tem de melhor, mas deixando para trás sua tendência à divisão e sua oposição ao progresso. Devemos à paz e à segurança do mundo o estabelecimento de tal religião.

“Essa nova religião deve combinar os arquétipos míticos mais profundos do passado humano com uma exaltação da tecnologia e da unidade mundial. A forma exata que assumirá ainda não é conhecida; ainda estamos na fase de pesquisa e desenvolvimento. Daremos nosso patrocínio a várias religiões experimentais, observaremos como funcionam e analisaremos seus efeitos sobre as sociedades nacionais e globais, bem como suas interações com as religiões tradicionais. O que fracassar, descartaremos; o que funcionar, incorporaremos.

Diversas “novas religiões” já captaram, ao menos em linhas gerais, nossos planos nesse sentido. Estão começando a bater à nossa porta, solicitando nosso patrocínio. Algumas serão rejeitadas, outras adotadas como programas piloto. Assim, cresce um intercâmbio frutífero entre as tendências religiosas que surgem na base das massas e os resultados de nossas próprias experiências de propaganda e de engenharia social. A Igreja da Cientologia, o culto do ‘Maitreya’ de Benjamin Creme, o EST e seus sucessores, os seminários de treinamento Avatar, os vários cultos ufológicos, a Igreja da Unificação de Sun Myung Moon... todos têm algo a nos ensinar. Tomaremos de cada um o que pareça útil e descartaremos o que não se mostrar eficaz no campo.”

Quem exatamente é esse “nós”, nesse cenário, não está claro. Os planejadores da religião global são um único “comitê gestor”, a espécie de ideia simplista que atrai imediatamente paranóicos de todos os cantos? Representam apenas a “cultura” semiconsciente das corporações multinacionais? Ou a verdade está em algum ponto intermediário?

No “Millennium Summit” de Ted Turner, em 2000, ouviu-se um estrondoso apelo para sufocar o proselitismo religioso; sentimentos semelhantes foram expressos em outros setores do ecumenismo liberal. Parece que as elites globais querem usar a legítima preocupação com os excessos de missionários ocidentais no Oriente para restringir o direito de todas as religiões de fazer conversões. Se todas as religiões apontam para a mesma Realidade, segundo a argumentação, então as diferenças religiosas são meras disputas de território. As religiões não passam de “expressões culturais” mediadas ou pelos acidentes de nascimento ou por “escolhas de estilo de vida”; afirmar que uma religião é verdadeira em qualquer sentido é como afirmar que apenas uma marca de sabão ou um modelo de automóvel é válido. Que fiquem restritas a seus próprios territórios, como atrações turísticas pitorescas. E que não reivindiquem propriedade sobre esse território; todo o solo pertence às elites. Sob o globalismo, a religião deve ser “federal”, com direitos religiosos severamente limitados, tal como os direitos dos estados foram limitados após a Guerra Civil americana.

George Bush, ex-presidente dos Estados Unidos e ex-diretor da CIA, discursou no fim dos anos 90 em uma convenção da Igreja da Unificação, que então planejava criar uma comunidade de “fusão mundial”, possivelmente no Brasil, na forma de um agrupamento de pequenas comunidades, cada uma representando um país-membro da ONU. Por que um “estadista” da estatura de Bush se interessaria pelos moonies, que na opinião pública não passam de uma seita desacreditada de vendedores de flores lavados cerebralmente?

O Parlamento Mundial das Religiões, que continua a se reunir regularmente, representa uma tentativa inicial desse tipo de ecumenismo quase político. Na data em que escrevo, a United Religions Initiative — que, em parte, cresceu a partir do Parlamento — esforça-se para organizar as religiões do mundo em um conselho permanente nos moldes da ONU; possui sólido apoio financeiro e já está organizada em 58 países. E certamente veremos muitas tentativas semelhantes no futuro. Essas incursões no ecumenismo global foram, até agora, em grande parte, domínio de idealistas impraticáveis, distantes dos centros reais de poder internacional. A emergência de uma “Nova Ordem Mundial” global, contudo, pode ter mudado tudo. Dado que o imperialismo econômico e cultural global reacendeu movimentos separatistas “tribais” em todo o mundo, muitos dos quais motivados religiosamente — a Revolução Iraniana sendo apenas o maior e mais óbvio exemplo —, o impulso para homogeneizar as religiões do mundo em nome da estabilidade política e econômica sobe cada vez mais na pauta das elites globalistas.

A ideia de que a antiga sabedoria espiritual e as novas “tecnologias” religiosas (no jargão da cultura corporativa) despertam grande interesse nas elites globais só é estranha para quem jamais investigou essa possibilidade. Recordo um dia, nos anos 80, em que me sentei, na condição de amigo de um amigo, nos jardins de um palacete em uma colina de Hillsboro, Califórnia, com executivos da Hewlett-Packard e seus consultores de treinamento espiritual — Nova Era em tudo, exceto no nome. Dependendo da visão de realidade que o leitor adote, eu estava ou diante de uma sombria conspiração yuppie, ou privilegiado por acompanhar uma convocação de idealistas puros. E idealistas eles eram. Desejavam sinceramente trabalhadores saudáveis e felizes, intercâmbio criativo entre empregados e administração, proteção do meio ambiente (dentro dos limites do lucro), uma visão do papel social do setor corporativo pautada pelos mais elevados princípios espirituais, tal como os entendiam — uma situação win/win para todos. Sem dúvida, estavam inventando uma nova religião global à medida que avançavam; e o que haveria de errado nisso? Eram a vanguarda do progresso global, da nova cultura de informação que transformava o mundo. Que lugar melhor para valores espirituais e ideais éticos elevados?

O único problema era que eles não acreditavam em Deus — ao menos não em um Deus que, em relação a nós, se não em Sua própria Essência, fosse capaz de intenção consciente e ação independente. A espiritualidade era seu experimento, seu produto, sua propriedade. Obediência a normas transpessoais, estabelecidas pelo Criador por meio da revelação de Sua Vontade a avatares, santos e profetas, não fazia parte de seu vocabulário de ideias. Lembro-me de ter brincado com o amigo que me convidara para aquele encontro, imaginando um anúncio de revista que dizia:

INFORMAÇÃO.
O SUMO BEM.

“Claro”, respondeu ele. “O que tem de engraçado nisso?”

Ecumenismo Liberal vs. Ecumenismo de Frente Unida

Os cristãos conservadores tendem a se ver como os únicos que percebem qualquer perigo no pós-modernismo e na Nova Era. E amontoam as espiritualidades New Age junto com todas as religiões orientais e as espiritualidades nativo-americanas como parte do que o Pe. Seraphim Rose chamou de “a religião do futuro” — o regime do Anticristo. Infelizmente, eles têm razões reais para enxergar as coisas dessa maneira.

Hinduísmo e budismo penetraram na cultura norte-americana em grande parte por meio da contracultura dos anos 60 (e antes), que também abraçou — ou apropriou de maneira deturpada — ideias religiosas nativo-americanas. (Black Elk Speaks e, naturalmente, O Livro Tibetano dos Mortos eram presença comum nas estantes hippies.) Muitos mestres budistas tibetanos neste país parecem ainda manter laços com a contracultura; uma cultura “alternativa” de tonalidade geralmente neopagã acolhe com entusiasmo os lamas, muitos dos quais não veem motivo para se diferenciar dela. (Nem todos os mestres tibetanos, porém, compartilham desse espírito; dizem-me que o irmão do Dalai Lama, o Dr. Thubten Jigme Norbu, tem sérias reservas quanto à Nova Era.) Assim, a “espiritualidade de fusão mundial”, que inclui um cristianismo ultra-liberal, o budismo ocidental, o hinduísmo ocidentalizado, várias espiritualidades nativo-americanas comercializadas (da semitradicional à totalmente espúria), o neopaganismo, a New Age e certas vertentes do chamado sufismo, é uma realidade neste país. Sua existência parece confirmar a visão dos cristãos conservadores de que apenas o cristianismo pode opor-se ao “mundo”, ao pós-modernismo, aos “falsos profetas” da Nova Era que anunciam a vinda do Anticristo.

As doutrinas da Escola Tradicionalista, porém, demonstram que as grandes religiões reveladas do mundo — hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo — possuem entre si uma afinidade intrínseca muito maior, infinitamente maior, do que qualquer uma delas possui com o neopaganismo ou a Nova Era — tendências sociais mais ou menos irônicas à parte. Um ecumenismo liberal que ignore ou comprometa a doutrina é apenas destrutivo para a causa da religião. Um ecumenismo de frente unida, que busque um entendimento comum, entre as religiões reveladas, das forças espirituais, culturais e intelectuais que ameaçam todas elas — entre as quais não se incluem apenas o pós-modernismo, o globalismo, o separatismo étnico e religioso militante, mas também as doutrinas neopagãs e de Nova Era —, e que o faça sem confraternização vazia nem concessão doutrinária frouxa, é uma possibilidade bem mais frutuosa.

Tal entendimento inter-religioso incluiria não apenas respeito pelas diferenças teológicas, mas também uma vontade mútua de acentuar as particularidades doutrinárias: que os judeus sejam mais judeus, os cristãos mais cristãos, os hindus mais hindus, os budistas mais budistas, os muçulmanos mais muçulmanos, no reconhecimento de que a Única Verdade só pode ser abordada através das formas particulares da revelação divina, não por meio de algum denominador comum ético ou doutrinário mínimo em que todas as religiões possam concordar — nem através de qualquer “comitê de supervisão” quase político que possa emergir, via United Religions Initiative ou tentativa similar, em seu nome.

A base de tal entendimento seria o princípio que Frithjof Schuon chamou de A Unidade Transcendente das Religiões, segundo o qual os caminhos representados pelas diversas revelações ortodoxas só podem finalmente convergir no plano do Transcendente, em Deus mesmo.

Essa doutrina, infelizmente, é altamente suscetível de má interpretação, o que constitui um de seus aspectos escatológicos: ela deve ser anunciada e deve — pelo menos por alguns — ser mal interpretada. Para dar apenas um exemplo, William E. Swing, bispo episcopal da Califórnia, que apresenta uma versão da Unidade Transcendente das Religiões em The Coming United Religions — manual da United Religions Initiative — baseado numa leitura imprecisa da introdução de Huston Smith à The Transcendent Unity of Religions de Schuon, afirma que “a distinção importante não é entre as religiões, mas entre as pessoas dentro de cada religião” — os exotéricos e os esotéricos. Os esotéricos “intuem que, em última análise, estão em unidade com pessoas de outras religiões porque todos se reúnem no ápice, no Divino”, enquanto os exotéricos “pretenderiam vincular a forma de fé ao conteúdo ou à verdade final de sua própria fé” (p. 59). Os exotéricos são, portanto, exclusivistas, ao passo que os esotéricos são universalistas.

Segundo Schuon, porém, o fato de que mais de uma religião é necessária neste mundo manifestado é também uma verdade esotérica, razão pela qual ele caracteriza as diversas revelações divinas como “relativamente Absolutas”. Em Christianity/Islam: Essays in Esoteric Ecumenism, ele diz:

“Toda religião, por definição, quer ser a melhor, e ‘deve querer’ ser a melhor, como um todo e também no que diz respeito a seus elementos constitutivos; isto é simplesmente natural, por assim dizer, ou melhor, ‘sobrenaturalmente natural’... As oposições religiosas não podem deixar de existir, não apenas porque as formas se excluem umas às outras... mas porque, no caso das religiões, cada forma veicula um elemento de absolutidade que constitui a justificativa de sua existência; ora, o absoluto não tolera alteridade, nem, com muito mais razão, pluralidade. ... Dizer forma é dizer exclusão de possibilidades, donde a necessidade de que as possibilidades excluídas venham a se realizar em outras formas...” (p. 151)

O objetivo primordial de um ecumenismo de frente unida seria opor-se tanto ao sincretismo globalista quanto ao separatismo étnico/religioso militante, não necessariamente por meio de modo algum de forma ostensiva — a menos que Deus queira o contrário, e quem pode dizer que não quererá? — mas para ajudar as religiões tradicionais a purificar suas doutrinas da influência dessas forças. Talvez pouco se possa fazer para reverter a degeneração da religião em nível coletivo, mas ainda é possível, e certamente vale a pena, definir com mais clareza a verdadeira encruzilhada entre a Unidade Transcendente das Religiões e um sincretismo globalista que de modo algum é expressão da unidade-na-multiplicidade da autorrevelação de Deus, mas apenas a sua caricatura — um falso imitado pela esperteza da mente humana que tenta operar para além dos limites dessa revelação, nas trevas exteriores.

Quem são os Tradicionalistas?

NESTE capítulo apresento um breve panorama das doutrinas da Escola Tradicionalista, com base nas obras do fundador da escola, René Guénon, e ainda mais nas do recentemente falecido mestre da escola, Frithjof Schuon, aplicando-as às condições sociais atuais e contrastando-as com as ideias falsas e autodestrutivas sobre as quais o mundo pós-moderno se apoia. As doutrinas metafísicas centrais eu extraio sobretudo de Schuon; a crítica profética do mundo moderno, em maior medida de Guénon.

As verdadeiras ideias são coisas vivas. Cada mente que as acolhe e cada situação a que as aplicamos faz surgir novos aspectos de seu sentido uno e imutável. Quem são os Tradicionalistas?

Os escritores tradicionalistas tratam principalmente da metafísica tradicional, que nada ou quase nada tem a ver com a maior parte do que se encontra na seção de “metafísica” da livraria do seu bairro: livros sobre magia, poderes psíquicos e encontros com OVNIs.
Metafísica é teologia e/ou filosofia mística; tem mais a ver com Platão e Santo Agostinho do que com Aleister Crowley ou Terry Cole-Whitaker.

A maioria das pessoas que hoje investiga religião e espiritualidade tende a ficar com a impressão de que há apenas duas escolhas básicas: a Direita cristã fundamentalista, ou o mundo que inclui o judaico-cristianismo liberal, as religiões orientais, o neopaganismo e a Nova Era. Trata-se, obviamente, de uma simplificação grosseira, já que há muitos cristãos liberais e membros de religiões orientais que não se identificam com a Nova Era, bem como formas não cristãs de “fundamentalismo”, como as de alguns muçulmanos (embora de modo algum todos), judeus, ou mesmo hindus. Mas, em linhas gerais, a pessoa interessada em religião, mas ainda sem compromisso sólido, tende a ser puxada numa dessas duas direções. E, se ela não consegue se identificar com nenhuma delas, a perspectiva de um compromisso religioso sério parecerá bastante sombria, e o cinismo em matéria de religião parecerá a única resposta madura.

É aí que entram os Tradicionalistas. Como alguns liberais, eles reconhecem a validade de todas as grandes religiões do mundo; mas, ao passo que os Liberais costumam prestar mero tributo verbal à mística, retirando-a de seu verdadeiro contexto, os Tradicionalistas reconhecem na mística e na metafísica o verdadeiro centro e profundidade de toda tradição religiosa, a profundidade em que podemos dizer, com propriedade, que cada religião, a partir de sua perspectiva necessariamente única, fala da mesma Realidade divina.

Por outro lado, como os cristãos conservadores, eles entendem que uma tradição religiosa é algo sagrado, que não pode ser alterado ao sabor da moda sem ser destruído, e que misturar caoticamente elementos de diferentes religiões, na tentativa de criar algum tipo de salada ecumênica, é profanar a própria religião, já que é tão necessário que Deus Se revele em formas religiosas diferentes e únicas quanto é necessário que existam seres humanos diferentes e únicos. Os liberais se enganam ao pensar que o único tipo válido de ecumenismo é o sincretismo, a mistura de religiões. E os conservadores também estão errados, não apenas porque não conseguem ver o Divino operando em outras religiões além da sua, mas também porque não sabem distinguir as alturas da mística e da filosofia metafísica da busca mais frívola e perigosa por poderes mágicos e psíquicos, e, consequentemente, tendem a extirpar vastas áreas de sua própria tradição. Os Padres da Igreja que foram grandes metafísicos, como Clemente de Alexandria ou Gregório de Nissa, não podem ser comparados a L. Ron Hubbard; os grandes místicos cristãos, como Mestre Eckhart ou São João da Cruz, não devem ser confundidos com Carlos Castaneda. Pelo que posso perceber, somente os Tradicionalistas realmente compreendem esses princípios. Como não são nem liberais caóticos nem conservadores exclusivistas, representam uma autêntica “terceira força” na religião de hoje.

Quem é o Sábio?

Todos temos alguma ideia do que seja um “santo”. Quando ouvimos a palavra, pensamos em alguém como Madre Teresa, ou em uma figura quase mítica, como São Pedro ou São Francisco, que viveu há muito tempo. Mas o que é um “sábio”? Se o santo é um exemplo de santidade, de uma bondade profunda e muitas vezes heroicamente autossacrificial, que qualidade o sábio exemplifica?

A qualidade em questão é o “conhecimento”. Hoje somos condicionados socialmente a pensar o conhecimento como informação, e a informação quase exclusivamente em termos de “dados duros”: informação técnica e fatos bem estabelecidos. Como disse o poeta T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que se perdeu no conhecimento? Onde está o conhecimento que se perdeu na informação?” Definimos um amontoado de pequenos pontos factuais digitalizados como “informação”, esquecendo que a palavra originalmente significava “aquilo que nos forma por dentro”. Essa crença, de que apenas o conhecimento factual ou técnico é objetivamente válido, é tão penetrante que não me choquei tanto quanto deveria ao ouvir recentemente uma mulher, numa estação de rádio cristã, dizer que “não é preciso ser cientista de foguetes” para entender determinada doutrina — insinuando, para mim, a ideia de que talvez haja doutrinas mais difíceis que apenas um cientista de foguetes poderia compreender, de que a sabedoria metafísica é apenas uma espécie de competência técnica.

Por outro lado, um dos escritores tradicionalistas, Wolfgang Smith, é cientista de foguetes; foi ele quem desenvolveu as equações que permitem às espaçonaves reentrar na atmosfera terrestre sem se incinerarem. Assim, a objetividade do grande cientista e a do sábio metafísico não são inteiramente alheias uma à outra. Ainda assim, permanece verdadeiro que acreditamos falsamente que todo conhecimento objetivo deve ser científico ou técnico por natureza; a ideia de que poderia existir um nível superior de objetividade, que trate das coisas espirituais, é completamente estranha a nós.

A mente contemporânea está dividida em dois compartimentos principais: o conhecimento científico ou prático é considerado “objetivo”, ao passo que o conhecimento “espiritual”, na medida em que admitimos que exista algo assim, é visto como “subjetivo”, o que significa que tendemos a tomar nossas impressões das coisas como absolutas nesse domínio; já que o conhecimento espiritual é subjetivo por definição, que outro indivíduo, credo dogmático ou autoridade tradicional tem o direito de questionar minhas impressões? Que fiquem satisfeitos com as próprias impressões — esse é o “direito” deles — e me deixem com as minhas, visto que qualquer tentativa da parte deles de converter-me ao seu modo de pensar, usando o argumento impossível e injusto de que suas crenças são de algum modo “objetivamente verdadeiras”, nada mais é do que uma tentativa vampírica de me transformar neles.

É assim que a maioria de nós reage hoje quando confrontada com doutrinas religiosas e ideias filosóficas, e esta é uma das razões pelas quais, ao menos em meios “liberais”, a psicologia está substituindo a teologia. Desde que Descartes operou a cisão radical entre corpo e mente, “objetivo” passou progressivamente a significar material, e “subjetivo”, psicológico; por conseguinte, a noção de que existe um campo objetivo de verdade espiritual foi gradualmente desaparecendo, com o resultado de que tudo o que é espiritual, por ser considerado essencialmente subjetivo, foi reduzido ao psicológico, às produções da mente individual isolada alimentando-se das próprias impressões. E o conceito junguiano de uma subjetividade massiva — o “inconsciente coletivo” —, embora verdadeiro e útil em seu próprio nível, de modo algum restaurou a visão de uma ordem espiritual objetiva; apenas a substituiu por uma paródia da verdade, ao menos na mente daqueles que confundem psicologia com metafísica, tornando muito mais difícil que a verdadeira verdade metafísica venha a ser compreendida.

É este estado de coisas que Frithjof Schuon passou a vida tentando remediar; e esta é uma obra que apenas um sábio pode realizar. Cabe aos santos superar o orgulho, o vício e o egoísmo, primeiro em si mesmos e depois, na medida do possível, na sociedade ao seu redor. Cabe ao sábio, ao contrário, superar a ilusão e a falsidade, primeiro na própria alma e, em seguida, na sociedade que ele ou ela enfrenta. Devemos lembrar, porém — e Schuon nos recorda isso continuamente — que santidade e sabedoria estão intimamente ligadas. Ninguém com alma viciosa pode atingir um conhecimento profundo e estável de Deus e de Sua relação com o universo que é Sua manifestação; inteligência, tal como a entendemos normalmente, combinada a um interesse por ideias metafísicas, somada ao acesso aos escritos dos grandes metafísicos da história, não basta para fazer um sábio.

O outro requisito é a pureza de coração, pois é preciso ser pura, ou digamos “virginalmente”, receptivo à Verdade divina para que essa Verdade se torne uma “realização” e não simplesmente um objeto intelectual que possuímos como possuímos uma casa ou um automóvel. Não se exige perfeição; tanto santos quanto sábios são tentados e às vezes caem. O que se exige é uma ausência de resistência fundamental à perfeição que Deus reserva para nós — uma essência aberta ao Conhecimento por meio da Bondade, já que sabe que a Verdade Absoluta é também o Sumo Bem.

Poucos ouviram falar de Frithjof Schuon, embora o pequeno número dos que o ouviram em profundidade inclua pessoas da estatura do poeta T. S. Eliot, que disse de seu primeiro grande livro, The Transcendent Unity of Religions: “não encontrei obra mais impressionante no estudo comparativo da religião oriental e ocidental”; e do professor Huston Smith, que escreveu sobre Schuon: “Em profundidade e amplitude, um paradigma de nosso tempo. Não conheço pensador vivo que comece a rivalizar com ele.”

E essa tendência de falar aos poucos, e de encontrar poucos caminhos de acesso à mente popular ou mesmo ao mundo acadêmico, se não é exatamente como deveria ser, é, contudo, como tem de ser. “O segredo protege a si mesmo.” E, num mundo contemporâneo inundado de ilusões venenosas, uma voz que não compartilha nenhuma das suposições sobre as quais se baseia toda a mentalidade moderna, e que fala sem compromissos a partir do ponto de vista da verdade objetiva, necessariamente cairá, em sua maior parte, em ouvidos moucos. Como na parábola evangélica, ainda que a semente seja fértil, se cai em solo pedregoso nada brota. E, no entanto, também é verdade — especialmente em nossos tempos, mas em certa medida em todos os tempos — que é difícil prever onde solo fértil pode aparecer.

Os verdadeiros intelectuais metafísicos têm grande dificuldade hoje em se encontrar. Por um lado, o mundo acadêmico perdeu em grande medida o amor pela sabedoria enquanto tal, e os “intelectuais” favorecidos pela sociedade são essencialmente propagandistas a soldo das grandes empresas e dos grandes governos. Por outro lado, o mundo do ocultismo, da psicologia, das religiões “alternativas” e da espiritualidade “Nova Era” não se interessa mais por metafísica tradicional do que a “intelligentsia”. Embora possa prestar tributo verbal a algumas das grandes figuras da história da metafísica e da mística, retira-as de seu contexto tradicional e ou as esvazia de todo sentido, ou as perverte a ponto de fazê-las representar ideias diametralmente opostas às suas doutrinas reais.

Para o cristianismo conservador, “mística” é quase um palavrão. O cristianismo liberal às vezes parece valorizar mística e metafísica, mas, na realidade, vê as coisas muito mais em termos de sociologia, história, psicologia e ciências físicas. E as várias religiões orientais no Ocidente ou fazem causa comum — muitas vezes por simples inércia — com a Nova Era e/ou várias atitudes antitradicionais, ou então permanecem encapsuladas na veneração de seus próprios mestres e gurus, que podem ou não ser verdadeiros santos ou sábios representando a essência viva de suas respectivas tradições, mas que, em todo caso, geralmente não conseguem criticar de forma eficaz as atitudes do mundo moderno, nem sempre preservam a plenitude de suas próprias doutrinas tradicionais diante dele.

Diante desse estado de coisas, Frithjof Schuon e os outros escritores de sua escola, vivos ou mortos, representam uma alternativa metafísica à religião estreita e reacionária dos fundamentalistas e à religião informe e caótica — se ainda podemos usar esse nome — dos liberais e da Nova Era. No seu melhor, eles oferecem uma via que vai além tanto do exclusivismo religioso fanático quanto do sincretismo amorfo de uma “espiritualidade de fusão mundial”, que, em muitos aspectos, representa os primeiros movimentos do regime global do Anticristo.

O que é Metafísica?

A língua inglesa está cheia de “palavras caídas”, palavras que outrora carregaram todo um peso de significado, mas que agora foram reduzidas a sombras de si mesmas. Termos outrora precisamente exatos, compreendidos por todas as pessoas instruídas, tornaram-se clichês, quando não tiveram seus sentidos efetivamente invertidos. Palavras outrora cheias de alusão, ressonância e profundidade de implicação ficaram chapadas.

Uma dessas palavras é “metafísica”. A seção “metafísica” da sua livraria local provavelmente conterá livros que nada têm a ver com o que a palavra “metafísica” significou, de Aristóteles até a última metade do século XX. É verdade que a palavra significa literalmente “para além da física”, mas sempre foi usada para designar o que podemos chamar, de modo amplo, filosofia mística: o estudo dos “primeiros princípios”. Esses princípios são verdades permanentes, afirmações sobre realidades eternas. Dizem respeito ao Ser, e à relação do Ser com o universo — espiritual, psíquico e material — que permite a esse Ser manifestar-se. Tocam até mesmo aquilo que está para além do Ser.

Em linguagem religiosa, a metafísica trata da natureza de Deus e da relação de Deus com o cosmos e com a humanidade. A metafísica é, portanto, parceira natural da teologia; a única diferença é que a teologia estuda a “revelação”, aquilo que Deus nos revelou por Sua própria iniciativa, e a metafísica estuda Deus e Sua manifestação a partir de nossa capacidade, dada por Ele, de conhecê-Lo simplesmente porque Ele é nosso Criador e, portanto, algo d’Ele permanece em nossa natureza. Isso não significa, contudo, que teologia e metafísica componham dois mundos distintos, já que é principalmente a Autorrevelação de Deus nas grandes tradições religiosas que desperta, do sono de nossa natureza caída (ou esquecida), nossa capacidade “sobrenaturalmente natural” de conhecê-Lo; e é precisamente por meio da Intelectualidade — intuição metafísica — perfeitamente unida ao Amor divino que essa Autorrevelação vem a se aperfeiçoar na alma humana. [NOTA: No cristianismo ortodoxo oriental, a palavra “teologia” abrange muito mais do que no Ocidente, já que incorpora uma dimensão operativa ou contemplativa. Não denota apenas teoria, mas também realização, tornando-se aproximadamente sinônima do termo islâmico ma‘rifah.]

Durante a maior parte da história cristã, até o final da Idade Média, teologia e filosofia metafísica ou eram a mesma coisa, ou se relacionavam estreitamente, embora a tentação de separá-las certamente sempre estivesse presente, já que alguns metafísicos tendiam a ver os teólogos estudiosos das Escrituras como pessoas que trabalhavam mecanicamente com material de “segunda mão”, enquanto alguns teólogos viam habitualmente os metafísicos como hereges em potencial, que se metiam, com arrogância, em assuntos demais os mistérios divinos por iniciativa própria, sem o aval da Escritura e da Tradição. Cada lado via a “sombra” do outro, não a essência. Ambos tinham razão quanto à forma pela qual a metafísica ou a teologia podem se desviar, mas não quanto ao que esses dois modos de conhecer a Deus são em si mesmos.

Contudo, foi apenas no século XVIII, durante o período chamado, por algum motivo, de “Iluminismo”, que teologia e filosofia começaram realmente a divergir, embora as sementes dessa divergência tenham sido plantadas já no Renascimento. Mas a filosofia ainda era, basicamente, metafísica; os filósofos ainda faziam as perguntas últimas: qual é a natureza do Ser? Como podemos conhecê-Lo? E de que maneira o Ser-em-si se relaciona com o universo da natureza e da experiência humana? Coube ao período moderno, com o pragmatismo, o positivismo lógico, a fenomenologia e a desconstrução pós-moderna, separar enfim a “filosofia” da metafísica. As questões últimas passaram a ser consideradas destituídas de significado; já não eram mais “da moda”. A filosofia foi reduzida a reflexões secundárias sobre os achados das ciências físicas e sociais. E, por fim, até mesmo a teologia começou a seguir a filosofia por essa estrada longa e cada vez mais estreita. O próprio conceito de Primeiros Princípios saiu de moda, com o resultado de que o tempo e a mudança passaram a ser tidos como mais reais do que a verdade eterna; de fato, a própria existência de verdade eterna foi negada. Ela passou a ser vista como um tipo de superstição medieval, a ser estudada apenas como parte da “história das ideias”.

É como se uma bela mulher, com caráter corajoso e alma formosa, se aproximasse de mim e dissesse: “Sempre te amei”, e eu respondesse a mim mesmo da seguinte maneira: “Sinto-me fisicamente atraído por ela devido a uma propensão genética inata que me leva a procriar com um membro saudável da espécie, combinada a uma sensibilidade condicionada culturalmente ao padrão de beleza física da Europa Ocidental/América do Norte; e sou atraído por sua personalidade em razão de uma apreciação herdada culturalmente por certos tipos de caráter, incluindo determinados resquícios da moral judaico-cristã pré-pós-moderna. Ela talvez esteja atraída por mim por algumas das mesmas razões; contudo, é possível que esteja projetando em mim qualidades que não possuo, devido a uma capacidade crítica deficiente de sua parte; também é possível que esteja deliberadamente distorcendo seus sentimentos a fim de obter alguma vantagem.”

Ora, é óbvio que tais pensamentos não estariam totalmente destituídos de significado, mas é igualmente óbvio que eles perdem por completo o ponto central. Em outras palavras, a possibilidade de que eu esteja realmente diante do verdadeiro amor, e de que esse amor tenha de fato algo de eterno, a despeito de personalidades belas poderem definhar e corpos belos terem de envelhecer e morrer, é totalmente eliminada.

Assim ocorre com a filosofia contemporânea separada da metafísica. Ela pode produzir muitos detalhes interessantes e perspectivas úteis, mas perde de vista o ponto principal, que é o fato de que a palavra “filosofia” significa “amor à sabedoria”. O verdadeiro filósofo precisa ser um metafísico, e o verdadeiro metafísico conhecerá a sabedoria como algo eminentemente amável. O símbolo central desse amor à sabedoria, no mundo judaico-cristão, é a figura da Santa Sabedoria, a Hagia Sophia. Como ela diz no Livro dos Provérbios (8,17): “Eu amo os que me amam, e os que madrugam para procurar-me me encontrarão.”

Por que isso é importante?

O simples fato de termos de fazer essa pergunta mostra o quão densas se tornaram as trevas dos tempos atuais. E, em certo sentido, trata-se de um exercício fútil, visto que aqueles que nasceram com uma potencial capacidade de compreender a metafísica provavelmente já sabem a resposta, ao passo que aqueles sem esse potencial jamais poderão ser “convencidos”. A metafísica é o mundo da certeza, não o mundo das opiniões. Ainda assim, precisamos realmente colocar essa questão, porque, numa sociedade que já não se baseia em princípios espirituais, a metafísica pode parecer sem sentido ou, na melhor das hipóteses, um mero “interesse”, tal como rafting em corredeiras ou culinária gourmet.

O desafio que a sociedade lança a todos os interesses intelectuais é: “Se você é tão esperto, por que não é rico?”, o que pode tentar algumas pessoas com afinidade natural pela metafísica a “retrucar” à sociedade, talvez tentando provar que “princípios de verdade” metafísicos podem ajudá-las a ganhar dinheiro, ou, ao menos, afirmando que o valor da metafísica reside em outro lugar que não no fato de ela ser verdadeira. A ideia de que ela é valiosa porque contribui para construir estabilidade psicológica, ou melhorar a sociedade, ou tornar as pessoas mais sensíveis ao meio ambiente é a morte da metafísica, tal como a ideia de que se pode amar alguém porque essa pessoa satisfaz esta ou aquela necessidade física, psicológica ou social é a morte do verdadeiro amor.

Ora, a verdadeira metafísica e o verdadeiro amor produzem, sim, efeitos positivos sobre outros níveis da existência; satisfazem necessidades reais, embora não possamos prever nem controlar como tal influência se materializará. Mas, se buscamos essas coisas pelo “valor em dinheiro” e não porque são belas e verdadeiras em si mesmas, então não passamos de ladrões. Como se diz nos Evangelhos: “Buscai primeiro o Reino dos Céus, e todas essas coisas vos serão acrescentadas”, e “quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a vida por minha causa a encontrará.”

C. S. Lewis, em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (pp. 108–109), coloca a questão nestes termos, pela boca de seu demônio Fitafuso (Screwtape):

“Certamente não queremos que os homens deixem que o cristianismo transborde para a vida política, pois o estabelecimento de qualquer coisa parecida com uma sociedade justa seria um grande desastre. Por outro lado, queremos, e muito, fazer com que os homens tratem o cristianismo como um meio. (…) O que se deve fazer é levar um homem, primeiro, a valorizar a justiça social como algo que o Inimigo exige, e, depois, conduzi-lo ao estágio em que ele passa a valorizar o cristianismo porque este pode produzir justiça social. (…) ‘Creia nisto, não porque é verdade, mas por algum outro motivo.’ Esse é o jogo.”

E o que Lewis diz aqui sobre a fé vale em dobro para a intuição espiritual, pois vender a fé por seu valor de mercado produz apenas hipocrisia ou fanatismo, ao passo que vender a intuição espiritual produz magia negra.

Assim, uma resposta à pergunta “Por que a metafísica é importante?” é: “Para que não percamos o próprio conceito de Verdade objetiva.” A metafísica lida com absolutos, com as implicações necessárias da Verdade Absoluta. Se já não acreditamos na Verdade Absoluta, então tudo se torna relativo. Se tudo se torna relativo, a Verdade é substituída pelo poder; fica reduzida ao que quer que este ou aquele indivíduo poderoso, ou governo, ou grupo de interesse tenha o poder de declarar como verdadeiro.

E é exatamente assim que passamos a encarar hoje as questões de verdade: acreditamos que elas não são senão máscaras de questões de poder. Já tentou manter uma conversa com um partidário convicto desta ou daquela posição? Pode ser muito difícil sentar-se com ele ou ela para “raciocinarem juntos” sobre a verdade ou falsidade dessa posição, em parte porque o partidário já está convencido, mas também em parte porque ele ou ela está ocupado(a) tentando analisar seus motivos, descobrir “de que lado você está” e o que, exatamente, “você está tentando aprontar”.

Tudo o que o partidário diz é dito “com um efeito” em vista, e isso já há bastante tempo; por isso, torna-se muito difícil para ele ou ela acreditar que você levanta uma questão ou faz uma pergunta simplesmente porque deseja saber o que é verdadeiro; a busca desinteressada da verdade foi abandonada há muito de seu repertório. Ele ou ela sacrificou a verdade ao poder e supõe que todos os demais fizeram o mesmo.

E a crença de que a verdade é sempre, necessariamente, sacrificada ao poder torna-se profecia autorrealizadora; uma vez que o partidarismo é tomado como universal, nada fora dele é reconhecido ou admitido. As religiões deixam de ser visões da Verdade divina para se tornarem entidades sócio-históricas com esta ou aquela agenda. O estudo da história passa a ser visto como algo que nada tem a ver com a tentativa imparcial de descobrir o que realmente aconteceu e por quê, mas é tomado como parte do programa deste ou daquele bloco de poder. O mesmo se dá com a ética; o bem e o mal já não têm nada de universal, mas são apenas expressão do interesse de tal ou qual religião, classe ou cultura. Achados sociológicos e dados econômicos são igualmente postos a serviço de interesses especiais; por fim, até mesmo dados científicos — como, por exemplo, aqueles que poderiam provar ou refutar a teoria darwinista da evolução — já não ficam imunes.

E, se a suposição de que a verdade deve servir ao poder é levada longe o bastante, ela contamina o mundo das relações humanas: o que digo ao outro já não se baseia na verdade, mas apenas na vantagem. Ao caminhar pelas ruas de qualquer grande cidade americana, logo se descobre, caso ainda não o tenha feito, que o contato visual nada tem a ver com o desejo de ver outra pessoa simplesmente para obter uma impressão de quem ela é; ele se reduz a questões de poder: posso obter sexo, drogas ou dinheiro daquela pessoa? Ela deseja o mesmo de mim? É alguém que posso vitimar ou alguém que pode ferir-me? Aqueles que não se interessam por essas coisas rapidamente desenvolvem a habilidade de não atrair atenção sobre si mesmos; aprendem a evitar o contato visual, se puderem. (Em áreas rurais, as pessoas às vezes ainda dizem “olá” a estranhos “sem motivo”; para quem viveu a vida toda em cidades, isso pode ser um choque considerável.)

Esse é o resultado extremo do crescimento de um tipo de sociedade em que a metafísica não tem lugar. Sem um senso de Verdade absoluta e objetiva, tudo se torna subjetivizado, e é por isso que a psicologia está agora substituindo tanto a teologia quanto a filosofia. E, quando a Verdade espiritual se oculta, nem mesmo a psicologia consegue manter seu próprio nível; ela é empurrada numa direção materialista, até que tudo o que reste dela seja o behaviorismo e, por fim, a psicofarmacologia.

Além disso, quando o Absoluto é substituído pelo subjetivo, todas as subjetividades são “absolutizadas”: minha experiência individual é tão “absoluta” quanto a sua, e a sua quanto a minha; a isso se chama “tolerância”. Mas, se não há uma Realidade objetiva que inclua a mim e a você por ser maior do que nós, se não passamos de universos de experiência separados e hermeticamente fechados, como podemos nos relacionar? Apenas (como na visão do Inferno em C. S. Lewis) devorando-nos mutuamente.

Se tudo é subjetivo, se não há Verdade objetiva, então ou você precisa tornar-se parte de mim, ou eu acabarei tornando-me parte de você, restando apenas a opção de devorarmo-nos igualmente (se ao menos isso fosse possível) e chamar a isso de “amor”.

Assim, todo o complexo daquilo que se chama “codependência” pode, em última análise, ser atribuído à supressão do senso de Verdade objetiva, cuja forma mais alta e mais completa é a metafísica.

Dado que, neste mundo, a verdade é muitas vezes sacrificada ao poder, precisamos manter nosso gume crítico; caso contrário, não conseguiremos encontrar nosso caminho através do deserto em que o chefe é o poder, até chegarmos ao oásis em que o Rei é a Verdade. Mas, se nos tornarmos tão desconfiados e cínicos a ponto de já não crer que exista algo como “a verdade”, é evidente que fomos longe demais… ou não fomos longe o bastante.

Se a polícia deseja descobrir quem cometeu um assassinato, precisa questionar a veracidade das histórias que ouve; não pode simplesmente aceitá-las ao pé da letra. Mas, se, de tanto ouvir mentiras e meias-verdades ano após ano, os policiais se tornam tão cínicos a ponto de já não crer que exista algo como verdade objetiva — que alguém realmente cometeu aquele assassinato, o que significa que os outros suspeitos não o fizeram —, então deixam de poder cumprir sua função, como quando uma força policial se vê tentada a recolher “os suspeitos de sempre” para satisfazer a pressão pública.

Da mesma forma, a crítica pós-moderna — que se opõe à metafísica como poucas visões do mundo poderiam fazê-lo — pode envolver-se tanto em questionar os motivos de quem profere afirmações sobre o que é verdade que acaba esquecendo, e por fim nega conscientemente, que algo possa ser verdadeiro — exceto enquanto enunciado sem ponto de referência objetivo, que teria um “direito” de existir igual ao de qualquer outro enunciado, assim como uma espécie de planta ou animal teria o direito de ser salva da extinção por ser única e insubstituível.

Mas doutrinas não são animais. Nenhum animal ou raça humana pode ser “errado”, mas doutrinas podem. Se eu ensino que uma dieta rica em colesterol é boa para o coração, e outra pessoa ensina o oposto, tais afirmações não possuem igual direito de existir como meras manifestações da crença cultural ou da autoexpressão pessoal; uma delas está certa e a outra errada.

Os pós-modernos usam o mesmo argumento em relação às culturas humanas: cada qual tem igual direito de existir como expressão única do espírito humano. Mas aqui a questão torna-se ambígua, pois, embora cada expressão de cultura humana integral — seja “primal”, como a dos australianos ou dos hopis, seja “desenvolvida”, como a cultura islâmica norte-africana ou a greco-ortodoxa — faça parte do patrimônio insubstituível da raça, ainda assim uma cultura como a dos budistas tailandeses e a “cultura” de um cartel de drogas, ou a “cultura” tecnocrática mundial que está hoje destruindo toda a Terra, tanto cultural quanto ambientalmente (a si mesma incluída), não possuem igual direito de existir.

Mas, num mundo em que o conhecimento metafísico é suprimido, tudo é colocado no mesmo plano de valor; as crenças ou manifestações culturais mais saudáveis e as mais destrutivas possuem igual “direito” de existir, simplesmente porque “estão aí”.

A única coisa que os pós-modernos parecem temer realmente é a tirania da uniformidade, em que uma cultura dominante toma tudo para si e reprime todos os costumes e crenças minoritários. Isso, por certo, é exatamente o que está acontecendo hoje no mundo, e é profundamente destrutivo. Mas colocar uma cultura como a dos hopis, que fomenta virtudes como a cortesia, a auto-discrição, a cordialidade e um profundo senso ritual dedicado a manter o equilíbrio entre as necessidades do povo e os poderes do mundo espiritual, no mesmo nível da cultura da ilha de Dobu, baseada na magia negra, onde as “virtudes” admiradas (ao menos na década de 1930, quando a antropóloga Ruth Benedict escreveu sobre eles) são a capacidade de trair amigos e conterrâneos, arruinar suas colheitas e lançá-los na doença, não é imparcial; trata-se de algo caluniosamente destrutivo para a cultura hopi, ao mesmo tempo que deixa a cultura de Dobu ilesa.

Somente a compreensão de uma metafísica integral, derivada do estudo dos cumes do espírito humano tal como expressos nas grandes religiões do mundo e nas tradições sapienciais, pode fornecer-nos os padrões objetivos pelos quais se pode julgar se determinada cultura é saudável, cansada, degenerada ou ativamente subversiva da verdade.

Nem o “celebrar a diversidade” pós-moderno é necessariamente benéfico para as culturas primordiais e marginalizadas que pretende proteger, pois negar a validade de uma hierarquia absoluta de valores é, ao fim e ao cabo, negar a hierarquia de valores de cada cultura individual, que, na medida em que diz respeito a essa cultura, é absoluta.

Se nenhuma manifestação cultural é mais ou menos válida do que outra, então, se a geração jovem dos hopis passar a girar em torno, por exemplo, da “cultura” do uso de drogas e da música heavy metal, com o resultado de que a cultura hopi morra, quem poderá queixar-se?

Além disso, verifica-se que os partidários da nascente cultura tecnocrática global e aqueles que falam sobre a necessidade de celebrar a diversidade são, muitas vezes, as mesmas pessoas; desejam celebrar a diversidade cultural porque, enquanto tecnocratas econômicos globais, não possuem uma cultura local própria. Precisam explorar culturas locais em escala global para preencher suas necessidades espirituais, tal como exploram mão de obra barata para satisfazer suas necessidades econômicas. Quando afirmei, acima, que a “espiritualidade de fusão mundial” é a religião do Anticristo, é a isso, em parte, que eu me referia.

Assim, a relação de uma sociedade com a verdade metafísica tem tudo a ver com a natureza essencial dessa sociedade. Mas o valor social da metafísica é apenas um reflexo de níveis de verdade muito mais profundos, um dos quais diz respeito ao fato de que algumas pessoas precisam absolutamente do conhecimento metafísico para terem uma relação viva com Deus. Essas pessoas não são “crentes”; são “conhecedores”. A fé não lhes basta, não porque desprezem a fé, mas porque são capazes de conhecimento e não lhes será permitido “enterrar o seu talento” sem consequências graves.

Mas numa sociedade como a nossa, que ao mesmo tempo nega de modo fundamental a verdade metafísica objetiva e fornece um vasto espectro de falsas doutrinas — tolas, inconscientemente sinistras ou deliberadamente subversivas — que se disfarçam de metafísica, a pessoa com potencial para ser um “conhecedor” é desviada em cada esquina. Ela corre o risco de se tornar um cético religioso, já que as doutrinas religiosas às quais é exposta lhe parecem infantis (por ignorar o seu sentido mais profundo), ou então uma apologista de doutrinas aparentemente mais sofisticadas que, sem que ela o saiba, são radicalmente opostas à metafísica tradicional.

As tentações, provas e armadilhas que se apresentam aos “conhecedores” são formidáveis; eles têm um caminho muito mais longo e difícil a percorrer do que os crentes. Estarão atravessando zonas de conhecimento que, embora não se oponham à doutrina religiosa ortodoxa, não podem, pela própria natureza das coisas, ser explicitadas para todo adulto normalmente inteligente. Consequentemente, ficarão expostos a falsas ideias de toda espécie, algumas das quais extremamente sutis e fascinantes. Navegar por um mar como esse exige tanto uma vigilância intelectual aguda quanto uma firme e constante docilidade à vontade de Deus.

E também terão de enfrentar, em determinado momento, o demônio do Orgulho Intelectual, sobretudo se se sentirem incompreendidos ou perseguidos pelos crentes. As únicas coisas que podem salvá-los são uma humildade radical diante de Deus e uma clara compreensão de que o simples fato de possuírem um conhecimento metafísico sofisticado não significa que não possam também ser condenados, ao passo que o mais simples dos crentes, se segue sinceramente uma doutrina verdadeira, será salvo mesmo que jamais tenha ouvido falar de tal conhecimento. Como se diz nos Evangelhos: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” É por isso que, tradicionalmente, se entende que o caminho do conhecimento sagrado não pode ser percorrido com segurança, salvo em casos raros e imprevisíveis, sem uma moldura doutrinal ortodoxa e sem a orientação de um mestre espiritual.

A metafísica é também importante porque a fé “simples” está se tornando cada vez mais rara. No tempo em que a maioria vivia dentro de universos religiosos fechados, havia pouca dúvida quanto ao que se devia crer, já que quase não havia “alternativas”. A pessoa era crente, libertina, canalha ou talvez ateia secreta; mas não vivia confusa e indecisa sobre o que crer, pelo menos não no grau em que tantos vivem hoje. Ser confrontado por centenas de seitas e religiões, e por terapias que se passam por religiões; ser chamado a escolher, entre todas elas, aquela que representa a Verdade divina sem dispor de uma tradição da Verdade divina que lhe diga como escolher; e, depois, exausto pela luta, desistir da busca da objetividade e optar pelo sistema (ou pelos dez sistemas) mais compatível com o seu estilo pessoal — o que significa que, em vez de adorar a Deus, você está na verdade adorando a si mesmo —, nada disso figurava entre as armadilhas que se punham diante de um membro de qualquer cultura tradicional.

Numa sociedade global emergente, em que as doutrinas e práticas de todas as religiões mundiais, e de todos os caminhos místicos dentro dessas religiões, mais dezenas de formas de xamanismo tradicional, estão se tornando acessíveis em toda parte a buscadores sérios — e também a curiosos frívolos e magos iniciantes em busca de poder psíquico —, a religião passa a ser relativizada. Se mais de uma religião é verdadeira, então nenhuma religião pode ser absoluta — mas a justificativa essencial de qualquer religião é precisamente esta: que ela dá acesso à Verdade absoluta.

Logo, os “crentes” religiosos não têm outra saída senão ou denunciar violentamente as outras religiões — é aqui que nasce o “fundamentalismo” cristão, muçulmano, judeu e hindu que vemos hoje — ou então “relaxar”, tornando-se “ecumenistas promíscuos”, diletantes espirituais e degustadores de vinhos, como os “liberais” religiosos de hoje, que negam que possa haver algo como a Verdade Absoluta, excetuando aquele tipo de “verdade” que, como vimos acima, é tida como nada mais do que uma máscara de poder.

É aqui que o conceito de Frithjof Schuon sobre a “absolutidade relativa” de qualquer religião tradicional se torna tão importante; ele é, de fato, a única saída dessa dicotomia. Só a metafísica pode demonstrar, ao mesmo tempo, que existe uma Verdade Absoluta comum a todas as verdadeiras religiões (lembrando que nem tudo o que se chama “religião” o é de fato) e que, entretanto, essa Verdade não pode ser alcançada por meio da combinação entre elas, já que a existência de diferentes revelações religiosas, assim como a de diferentes raças ou indivíduos, é metafisicamente necessária. Como está dito no Alcorão: “Se Allah quisesse, teria feito de vós um só povo.”

Qualquer indivíduo inteligente e espiritualmente sensível, com ou sem formação religiosa, deve passar pelo fogo do ceticismo religioso no mundo de hoje. A crença simples, a menos que alguém tenha a felicidade de conservar uma real simplicidade de alma, de estar entre aqueles que chamamos de “sal da terra”, já não é possível para muitos. A capacidade sofisticada de enxergar profundidade e valor em tradições religiosas diferentes da própria quase inevitavelmente corrói a fé, ao menos num primeiro momento. Para uma pessoa assim, não há caminho “de volta” à fé religiosa simples; o único caminho é “para a frente”: chegar a compreender que existe uma Verdade Absoluta por detrás de todas as religiões, mas que, porém, só se pode alcançá-la seguindo uma dessas religiões até o fim, até essa Verdade.

O único remédio para a doença da sofisticação é uma sofisticação maior, que finalmente retorna à simplicidade. Onde o relativismo religioso destruiu a fé, nada senão a compreensão metafísica pode restaurá-la.

Mas é injusto e irrealista exigir compreensão metafísica de todos. Um mundo em que todos fossem metafísicos ou místicos seria um lugar extremamente desequilibrado. Eis por que os metafísicos, no mundo de hoje, têm de lutar para encontrar o seu nicho na sociedade, a partir do qual possam oferecer sua contribuição ao conjunto. E numa sociedade tão antitradicional e antimetafísica quanto a Nova Ordem global emergente, isso não é tarefa fácil, sobretudo porque essa luta precisa incluir a compreensão de que tanto o fundamentalismo quanto o ecumenismo promíscuo fazem parte da qualidade da época. Os metafísicos podem criticá-los, mas não podem fazê-los desaparecer.

Ainda assim, estar sob a maldição de ser capaz de compreender pessoas que jamais o compreenderão sempre foi o destino do metafísico — e é assim que deve ser, porque, se um dom espiritual não é também um fardo, o dotado acabará se inflando de orgulho espiritual e cairá como Ícaro, quando voou demasiado perto do Sol. Além disso, sem as trevas circundantes da ignorância espiritual para contê-la, a luz da compreensão espiritual abandonaria por completo este mundo — e, segundo a doutrina tradicional, se isso acontecesse, o mundo seria destruído. Como diz Rumi:

“Se não houvesse desatenção, este mundo deixaria de existir.
O desejo por Deus, a lembrança do outro mundo, a ‘embriaguez’ e o êxtase são os arquitetos do outro mundo.
Se todos estivessem afinados com aquele mundo, todos abandonaríamos este e iríamos para lá.
Deus, porém, quer que permaneçamos aqui, para que haja dois mundos.
Para isso, Ele estabeleceu dois chefes, desatenção e atenção, de modo que ambos os mundos floresçam.”
(Sinais do Invisível [Fihi ma Fihi], p. 114.)

Em última análise, porém, todas essas razões pelas quais a metafísica é importante são apenas questões secundárias. A razão verdadeira pela qual a metafísica é importante é porque ela é verdadeira, e tudo o que é verdadeiro é também bom. O próprio Deus, sendo a Verdade Absoluta, é também o Sumo Bem. Num provérbio dos rishis hindus, que Schuon tantas vezes cita: “Não há direito superior ao da Verdade.”

O que é Tradição? O que é o Homem?

Hoje, quando falamos em “tradição”, tendemos a significar qualquer costume ou crença que tenha durado mais de uma geração — ou até por um período mais curto, como quando um estabelecimento comercial se anuncia como “uma tradição desde 1979”. No catolicismo, na ortodoxia oriental e na cabala hebraica, “tradição” refere-se a doutrinas transmitidas oralmente, ou sob formas como a liturgia e a iconografia. “Tradição” pode às vezes referir-se também aos escritos dos Padres da Igreja, dos rabinos judeus e, no Islã, dos sufis, que incluem, entre outras coisas, as ciências tradicionais da hermenêutica das Escrituras.

Tradição, então, não se opõe à Escritura; é um modo de transmitir, por meios diferentes, as mesmas doutrinas que a Escritura transmite. Quando os reformadores protestantes adotaram a doutrina da sola scriptura, a tradição cristã no Ocidente ficou radicalmente empobrecida. Contudo, já que reagiam a um empobrecimento que já existia — dado que as linhas de transmissão tradicional dentro do catolicismo estavam em vias de extinção —, não se pode culpar inteiramente os protestantes por essa degeneração.

A Escola Tradicionalista usa a palavra “Tradição” num sentido específico. Para eles, significa “a soma total da transmissão da Verdade divina por meios humanos, desde o início dos tempos até hoje”, por meio de Escritura, comentário, ensino oral, arte sagrada ou qualquer outra forma. Nesse sentido, ela é parceira da Revelação.

Segundo uma imagem usada pelo tradicionalista James Cutsinger, a Verdade revelada desce “verticalmente”; ela entra no tempo diretamente a partir da Eternidade, como uma pedra lançada num lago sereno. Se a pedra é a Revelação, as ondas que se espalham horizontalmente a partir do ponto em que ela atinge a água são a Tradição. Cada uma das grandes religiões do mundo representa um caso de Revelação e, assim, uma renovação da Tradição. A Revelação original, porém, foi a criação do universo, razão pela qual a natureza é muitas vezes chamada de “a primeira Escritura de Deus”.

E a síntese dessa manifestação divina universal é a Forma Humana, motivo pelo qual, na doutrina islâmica (assim como no historiador judeu Josefo), Adão é visto como o primeiro profeta, o destinatário da autorrevelação primordial de Deus. Em Gênesis e no Alcorão, diz-se que Adão, ainda no Jardim do Éden, nomeou os animais. Esotericamente, isso significa que ele os conhecia como projeções dos arquétipos eternos presentes na Natureza divina. Ele não inventou seus nomes, em outras palavras, mas olhou para dentro do próprio coração, para o seu Intelecto espiritual, e ali compreendeu os Atributos ou Nomes de Deus que se encontravam representados nas formas do mundo natural à sua volta.

Tradição, então, não é simplesmente qualquer coisa que nos chega de um passado remoto; uma série de erros filosóficos e heresias religiosas também têm pedigree antigo. Ela é, especificamente, a transmissão da Verdade absoluta por meio da forma e da consciência humanas — transmissão tão crucial que, segundo muitas autoridades, se cessasse de modo absoluto o mundo seria destruído. É o “caule” da criação, a ligação vital entre a flor do universo visível e o seu Fundamento divino. Corte-se o caule, e a flor murcha.

O que é o Intelecto?

Outro “vocábulo caído” é intelecto. Para a maioria de nós, ele significa lógica, racionalidade ou até a capacidade de manipular e memorizar grande quantidade de informações. Não era assim para os filósofos escolásticos da Idade Média. Para eles, intellectus (tradução latina do grego nous) significava a faculdade pela qual podemos compreender diretamente a Verdade espiritual ou metafísica, assim como o olho humano “compreende” a luz. Eles o distinguiam de ratio, a mente racional ou lógica. Dada uma premissa, a ratio pode chegar a uma conclusão, mas não chega, com isso, a uma verdade inteiramente “nova”. Não tem poder para apreender a Verdade por si, apenas para demonstrar as implicações lógicas de uma verdade já dada — uma verdade “dada” a ela pelo intellectus.

O Intelecto é a fonte de todos os axiomas — verdades que não podem ser demonstradas, apenas conhecidas intuitivamente.

Segundo praticamente todas as tradições antigas, inclusive o cristianismo tradicional e a filosofia platônica, o ser humano é composto de três níveis de ser: Espírito, alma e corpo — em grego, Pneuma (ou Nous), psyché e soma; em latim, Spiritus (ou Intellectus), anima e corpus.

Na era moderna, contudo, a distinção entre Espírito e alma se perdeu, com consequências desastrosas. Tendemos agora a crer, a não ser que sejamos materialistas completos, que tudo o que não é material deve ser espiritual — o que muitas vezes significa, para nós, que tudo o que encontramos por meio de sonhos, introspecção psicológica ou experiências psíquicas deve ser “verdadeiro” e, por implicação, “bom” — ou pelo menos não deve ser criticado, mesmo que o detestemos ou temamos… quanto mais, é claro, se for agradável ou fascinante.

E é precisamente esse erro metafísico — a ideia de que não há distinção entre psyché e Espírito — que, neste momento, está abrindo massas inteiras de pessoas a influências demoníacas e que tornará possível ao Anticristo fabricar um contrafação psíquica plausível da Realidade espiritual eterna.

Se soubéssemos que psyché e Espírito são duas coisas diferentes (ou melhor, dois níveis diferentes de ser), não, por exemplo, recorreríamos às múltiplas “linhas psíquicas” hoje anunciadas na televisão e em outros lugares, porque entenderíamos que o fato de alguém conseguir dizer-lhe a cor de sua roupa íntima ou o que você fez na terça-feira passada não significa, de forma alguma, que essa pessoa seja sábia ou boa. E o fato é que muitos médiuns (embora certamente não todos) apresentam personalidades desequilibradas e tenderão a usar seus poderes psíquicos de modo desonesto, já que tais poderes lhes deram uma certa capacidade de “viver de sua esperteza”.

Certa vez trabalhei com uma mulher extremamente psíquica. Ela percebeu que havia sido cometido um assassinato numa loja que planejávamos alugar — fato depois confirmado pelo corretor de imóveis. Durante uma conversa telefônica comigo, conseguiu localizar objetos escondidos num apartamento em que eu estava hospedado, que ela jamais visitara, quando eu mesmo não sabia onde estavam. Mas a principal forma como ela usava seus dons era para extorquir dinheiro das pessoas e escapar de processos.

Os psíquicos frequentemente têm problemas de “limite”. Estão tão abertos às energias sutis alheias que a linha entre eles e os outros tende a se confundir. Muitos esquizofrênicos têm a mesma dificuldade e, com frequência, certo grau de sensibilidade psíquica também. Esse “limite do ego” excessivamente permeável pode resultar em várias formas de descortesia radical, “codependência” e dissipação da energia psíquica da pessoa no ambiente que a cerca, fazendo dela uma espécie de “vampiro” que precisa drenar a vitalidade dos outros simplesmente para repor aquilo que está continuamente perdendo. Pode igualmente abrir essa pessoa à possessão demoníaca.

Numa conversa com um budista da linhagem Gelugpa (a escola do budismo vajrayana tibetano à qual pertence o Dalai Lama), disseram-me que há dois tipos de clarividência: o tipo legítimo, próprio do sábio budista avançado, que se desenvolve diretamente a partir das virtudes da compaixão e da concentração (um aprofundamento raro, mas não anormal, do cuidado e da atenção, usado sobretudo no contexto da direção espiritual), e aquilo que se chama de clarividência “contaminada”, que é uma das consequências kármicas de um curso interrompido de desenvolvimento espiritual e é considerada um grande obstáculo à Iluminação.

Portanto, “psíquico” não é sinônimo de “espiritual”. A psyché é um nível de ser baseado na polaridade sujeito/objeto, em que a experiência “objetiva” é condicionada pela “subjetividade” de quem a experimenta. O Espírito ou Intelecto transcende essa polaridade. Podemos descrevê-lo como perfeitamente Objetivo, já que é o que é, quer eu esteja consciente disso ou não; e, com igual validade, como o Sujeito absoluto (ou pelo menos um “raio” desse Sujeito divino que intercepta a alma humana), pois é a Testemunha última de tudo o que acontece, seja no plano dos arquétipos espirituais, seja dentro da minha psique, seja no mundo material. Em qualquer caso, Ele transcende a minha subjetividade individual. Não é, como alguns imaginam, o meu ego blasfemamente absolutizado; não é o grande “Eu”. Antes, é Deus dizendo “Eu Sou” dentro de mim, quer eu esteja consciente disso ou não, quer eu seja ou não fiel às implicações disso. “Já não sou eu quem vive”, diz São Paulo, “mas Cristo vive em mim.” Ou, nas palavras de Mestre Eckhart: “Há algo dentro da alma que é incriado e increável.”

Esse “Algo” é o Intelecto. De certo modo, é a nossa capacidade inata de conhecer Deus diretamente. De outro modo, é o próprio Autoconhecimento de Deus, do qual podemos ou não participar conscientemente, mas que, em qualquer caso, é a Fonte da nossa vida. Visto do ponto de vista da nossa subjetividade psíquica, tal conhecimento é, em última análise, impossível, já que nenhuma consciência individual limitada pode abarcar o Absoluto: “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam.” Visto do ponto de vista do Intelecto, porém, tal conhecimento não é apenas possível, mas necessário, pois o Conhecimento completo da Verdade é parte integrante da própria Verdade. É por isso que um dos nomes de Deus, no hinduísmo, é Satchitananda — Ser ou Verdade (Sat), Consciência dessa Verdade (Chit) e a Bem-aventurança da união entre Verdade e Consciência (Ananda). Este é também um dos significados do primeiro versículo do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”

Fé, Crença e Conhecimento

Fé e conhecimento são às vezes vistos como opostos, especialmente no mundo cristão. Aqueles que pensam poder chegar a Deus por meio do conhecimento e não da fé são frequentemente rotulados de “gnósticos” — termo que realmente quer dizer algo, embora seja tão frequentemente aplicado, como espécie de difamação genérica, a tudo aquilo de que o falante ou escritor desconfia na área da religião, mais ou menos como as palavras “comuna” ou “fascista” têm sido usadas na área da política. Os próprios Tradicionalistas às vezes são tachados de gnósticos por aqueles que não compreendem plenamente suas doutrinas.

Os gnósticos foram um grupo extremamente heterogêneo de seitas religiosas na Antiguidade tardia, que, entretanto, tendiam a partilhar certas doutrinas: que os universos psíquico e material são produto de uma “queda” dentro da Divindade, e não uma manifestação dessa Divindade no espaço, no tempo e na consciência humana; que a própria matéria é má; que Deus é, consequentemente, “alheio” à criação; que o cosmos é criado e governado, em vez disso, por falsos deuses maus e/ou iludidos, muitas vezes chefiados por um Demiurgo maligno, normalmente identificado com as esferas planetárias concêntricas da cosmologia ptolomaica (geocêntrica), consideradas como uma espécie de prisão cósmica; que o pecado de Adão foi uma revolta heróica e prometeica contra esse Demiurgo maligno; que a saída da prisão cósmica se dá pelo conhecimento, em oposição à fé — especificamente, pelo conhecimento de como o mundo decaído foi criado e como e por quem é governado; que a fé não passa de uma crença cega no sistema falso e opressor de coisas que é o universo; que o salvador, frequentemente mas não sempre identificado com Cristo, desliza para dentro desse falso mundo disfarçado, a fim de enganar os governantes cósmicos, e traz salvação à elite espiritual sob a forma de um conhecimento secreto ou gnosis; que esse Salvador não encarna realmente no mundo material, mas é uma espécie de aparição (como na heresia docetista), que nunca sofreu de fato na cruz, nem morreu, nem ressuscitou; e que (como na heresia ariana) ele não é divino, mas sim um dos Aeons eternos, uma espécie de arcanjo; que, sendo o cosmos falso e governado por falsos deuses, a “moralidade” apropriada é ou afastar-se inteiramente dele, através de um ascetismo extremo que em certas seitas gnósticas levava, às vezes, ao suicídio por inanição, ou então afrontar abertamente a falsa moralidade dos governantes do mundo mediante libertinagem e autossatisfação rebelde. Em alguns aspectos, o gnosticismo foi uma heresia cristã; em outros, um espectro de movimentos religiosos independentes.

Deveria ser relativamente óbvio que o gnosticismo, como todas as heresias, contém um grão de verdade, posto em contexto falso. A verdade, neste caso, é que a humanidade está, de algum modo, caída — seja por ignorância, seja por transgressão, seja por uma combinação de ambas — e que, consequentemente, o mundo que habitamos tem limitações radicais que não existiam no estado não caído do “Éden”. Segundo a doutrina cristã, até mesmo a morte é produto da queda do homem; não é realmente “natural”. O erro dos gnósticos foi tornar-se tão obcecados pelas consequências da queda que se esqueceram de que “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”; em termos teológicos, negaram a imanência de Deus em Sua criação, fazendo-o totalmente transcendente e, por isso, “estranho”. Desse modo, a despeito de toda a sua suposta sofisticação esotérica, em certo sentido levaram a queda do homem demasiado ao pé da letra. Obcecados com falsidade e erro, esqueceram-se de que o erro, embora produza efeitos reais, não é real em si. Concretizaram o erro; por conseguinte, sua “gnose” já não era a pura capacidade de ver através do erro na contemplação da Verdade divina, mas converteu-se numa tentativa de “lograr” os governantes do mundo por meio de um conhecimento especial, oculto. Isso não quer dizer que não houvesse nenhum autêntico entendimento metafísico entre os gnósticos, mas sim que os erros do movimento colocavam esse conhecimento num contexto falso e distorcido. E, como dizem os sufis, “basta um único cão para estragar toda uma bacia de água de rosas”.

A luta dos primeiros cristãos contra os gnósticos sectários — assim como a luta semelhante que ocorre hoje contra vários neognósticos — tem contribuído para obscurecer a verdade de que fé e conhecimento não se opõem, mas estão de fato intimamente relacionados. Aqueles cristãos que sustentam que toda metafísica é uma forma de gnosticismo — ou aqueles muçulmanos e orientalistas que veem a metafísica sufi como uma espécie de neoplatonismo, ou de xamanismo, ou de budismo, em vez de enxergá-la como a quintessência do Islã, baseada numa compreensão da revelação corânica profunda o bastante para penetrar não apenas a mente e a vontade, mas o Coração espiritual — e que, por isso, pensam que não devemos tentar conhecer diretamente as verdades de Deus, já que o intelecto humano é incapaz disso, devendo-nos limitar a recebê-las por “fé cega”, estão enganados. Na verdade, caíram numa espécie de heresia gnóstica própria ao repetir a oposição radical gnóstica entre fé e conhecimento. Por outro lado, sua crença de que a mente humana é incapaz de adquirir a Sabedoria divina também é verdadeira, em dois sentidos específicos: primeiro, porque a Sabedoria é dom, não conquista; segundo, porque só Deus pode conhecer Deus. Ignoram, no entanto, que o ser humano — e o seu Arquétipo na Natureza divina, que os sufis chamam al-insân al-kâmil, “o Homem Perfeito”, e os cristãos chamam “Deus Filho” (sem negar, evidentemente, as diferenças irredutíveis entre essas duas doutrinas) — é precisamente a forma desse Autoconhecimento divino.

A fé não pode ser limitada à crença (embora a crença seja parte necessária dela); é, antes, o início de um conhecimento direto e objetivo. Crede ut intellegas: “crê para que possas compreender”. É verdade que tentar acessar o Conhecimento divino ignorando a doutrina revelada é uma forma de orgulho espiritual, fadada ao desastre. Mas lutar para crer a doutrina religiosa unicamente pela força de vontade, ao mesmo tempo negando que essa crença possa algum dia florescer em verdadeira compreensão, é desprezar os dons do Espírito.

Nas palavras de São Paulo, a fé é “a substância das coisas que se esperam, a evidência das coisas que não se veem”. Ou seja, a fé é uma intelecção virtual — e um sinônimo de intelecção é gnosis.

Muitos Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, Máximo, o Confessor, e Dionísio Areopagita, foram metafísicos e “gnósticos” justamente nesse sentido — o que não significa que tenham professado a heresia do gnosticismo. Segundo Clemente, “podemos entrever algo do que Deus é se tentarmos, por meio de cada sensação, alcançar a realidade de cada criatura, sem desistir até que estejamos vivos para aquilo que a transcende.” Nas palavras de Dionísio: “É, pois, falso repetir o lugar-comum de que o mal reside na matéria enquanto tal. Para dizer a verdade, a própria matéria participa da ordem, da beleza, da forma...” E Máximo declara:

“[Deus] se mostra às nossas mentes na medida de nossa capacidade de compreender, por meio dos objetos visíveis que agem como letras do alfabeto. (...) Ele, o não-diferenciado, é visto em coisas diferenciadas, o simples, no composto. Aquele que não tem princípio é visto nas coisas que necessariamente têm princípio; o invisível, no visível; o intangível, no tangível. Assim Ele nos reúne em Si, por meio de todas as coisas.”

Ninguém que ensine tais doutrinas — que creia, como esses Padres da Igreja creem, que os céus proclamam a glória de Deus — pode ser chamado, com justiça, de gnóstico herético ou sectário.

A fé é “a substância das coisas que se esperam” no sentido de que a gnosis está virtualmente presente na alma humana. É “a evidência das coisas que não se veem” no sentido de que, pela fé — que é maior do que a crença, embora menos do que o conhecimento direto, podendo ser definida como receptividade à intelecção, prontidão para conhecer —, realidades invisíveis podem aparecer à mente sob a forma de símbolos e aos sentidos sob a forma de objetos materiais compreendidos simbolicamente. Nas palavras de Frithjof Schuon, “as formas sensíveis correspondem com exatidão às intelecções” (A Unidade Transcendente das Religiões, p. 62).

O que é Esoterismo?

No uso popular, a palavra “esotérico” significa algo como “desnecessariamente obscuro e complicado”, como quando nos pedem para não ficar “muito esotéricos”, mas “manter a coisa simples”. Aqueles com interesse superficial na espiritualidade mística tendem a definir esoterismo, na prática, como “segredos especiais para pessoas especiais”, enquanto os que desconfiam da mística, em parte como reação a essa atitude “elitista”, o verão como uma doutrina secreta e herética, oposta à revelação e à tradição.

Segundo a doutrina de alguns sufis (os “místicos organizados” dentro do Islã), bem como da seita xiita (os partidários do primo e genro do Profeta, Ali, que foi ao mesmo tempo o quarto califa sunita e o primeiro imã xiita), há um “equilíbrio” em todas as coisas, particularmente na religião, entre interior e exterior. Em toda forma há essência, e a essência manifesta-se sempre como forma. Visto assim, a espiritualidade mística é a essência interior da religião, enquanto a religião é a forma exterior da mística. Mas ela não é “meramente” a forma exterior; interior e exterior são igualmente necessários. Como dizem os sufis, sem a casca o miolo apodrece. No Alcorão, por exemplo, Deus é chamado tanto de “o Interior” (al-Batin) quanto de “o Exterior” (al-Zahir), termos que também poderiam ser traduzidos como “o esotérico” e “o exotérico”.

Na história islâmica, os clérigos exotéricos que periodicamente perseguiram os sufis deram origem a várias formas de “fundamentalismo” muçulmano, que ameaçavam arrancar o Coração do Islã, enquanto aqueles sufis que foram longe demais na direção oposta, tentando tornar-se puros batinis, muitas vezes desenvolveram tendências heréticas que ameaçavam a tradição de outra forma: tentaram, por assim dizer, viver como um Coração sem corpo.

Toda tradição espiritual precisa tanto de expressões interiores quanto exteriores. Mesmo o budismo, que talvez esteja mais próximo do que qualquer outra tradição de um esoterismo quase puro, exige a moralidade (sila) como equilíbrio complementar à sabedoria (prajñā) e à concentração (dhyāna). E o mesmo vale para a Escritura. Se a Bíblia ou o Alcorão forem reduzidos aos níveis socio-histórico e moral de significado — ou mesmo ao psicológico —, então seu sentido essencial é negado; são reduzidos à estatura de algo que qualquer filósofo moral poderia ter produzido com base num bom senso esclarecido. Mas se uma hermenêutica esotérica é usada para negar os níveis socio-histórico, moral e psicológico de significado, então a Escritura em questão não está sendo compreendida de modo completo ou equilibrado, com o resultado de que o próprio nível esotérico ou metafísico também sofre, já que enfatizar o sentido interior “espiritual” da Escritura descartando o sentido exterior “físico” implica que o Espírito não é a Fonte da vida da alma e do corpo, mas algo externo a eles, algo sem ligação “orgânica” com nossas vidas, um “Deus estranho” como o dos gnósticos, espécie de fantasma ou espectro — e isso é um erro metafísico.

Os exotéricos religiosos muitas vezes acreditam que o esoterismo não passa de uma espécie de doutrina alternativa e, portanto, necessariamente uma heresia — equívoco reforçado diariamente por milhares de pseudo-esoteristas, ou ocultistas, que pensam exatamente a mesma coisa. Essas pessoas se orgulham de chamar a si mesmas de “hereges”, como se essa palavra denotasse um tipo de rebeldia heroica baseada numa compreensão mais profunda das coisas espirituais do que a da massa de “ortodoxos” simplórios e superficiais; na realidade, porém, ela não é mais do que a admissão de que sua própria compreensão é superficial e de que se encontram em estado de erro metafísico.

A tragédia da religião exotérica é que ela possui a “pérola de grande preço”, “a única coisa necessária”, mas, em tantos casos, a perdeu de vista. A tragédia daqueles que inicialmente possuem certa medida de compreensão espiritual esotérica é que frequentemente sucumbem à tentação de identificar falsamente “ortodoxia” com “exoterismo” e, em seguida, repetir o erro de muitos exotéricos ao identificar falsamente “esoterismo” com “heresia”, esquecendo-se de que, se sua compreensão esotérica fosse verdadeira, estariam necessariamente no âmago da ortodoxia e, em certos aspectos — ou em certas ocasiões —, potencialmente ainda mais ortodoxos que os próprios exotéricos.

O pecado dos exotéricos é a estupidez militante que esmaga toda sutileza doutrinal. O pecado dos esotéricos é o orgulho intelectual, que leva, em alguns casos, a uma frivolidade no trato da doutrina. A doutrina religiosa ortodoxa só pode ser plenamente salvaguardada por um equilíbrio entre ambos, que às vezes estará à vista e às vezes permanecerá oculto, para ser preservado.

Esoterismo, portanto, não é uma doutrina alternativa, ainda que os escritos de certos esotéricos — como Mestre Eckhart no cristianismo, por exemplo, ou Ibn ‘Arabi no Islã — possam fazê-lo parecer assim aos olhos daqueles dotados de menor sutileza e profundidade de entendimento. Esoterismo é gnosis, um testemunho presente das verdades de Deus que emana das profundezas da Natureza divina. Não é, em última análise, doutrina, mas realização.

Os que estão disponíveis a essa realização constituirão necessariamente uma espécie de elite. Hoje não há ideal mais impopular — na verdade, mais desprezado — do que o de uma elite espiritual ou política, e com boa razão. A história está cheia de lições de como “elites” autoproclamadas e interessadas em si mesmas podem causar danos — como, por exemplo, os “Assassinos” ismaelitas no Islã, aquela confraria de terroristas esotéricos. Mas, se eu tiver um tumor cerebral e precisar de uma cirurgia, espero em Deus que o médico que a realizar seja o mais “elite” possível!

Do mesmo modo, há certas funções espirituais profundas que apenas poucos podem cumprir; chamamo-los de “santos”. Nem todos os santos são intelectuais, embora a gnosis deva estar virtualmente presente neles, já que a santidade se baseia na submissão da vontade a Deus, e o rosto de Deus apresentado à vontade traz a forma precisa da Verdade divina.

A verdade à qual se deve submeter é o Intelecto. E nem todos os santos intelectuais são esotéricos: Tomás de Aquino é um bom exemplo do “metafísico não esotérico”. É somente nos santos mais raros, como Máximo, o Confessor, e possivelmente São Bernardo, o patrono espiritual dos Templários, que santidade e gnose estão combinadas. Há também aqueles que ficam aquém da santidade realizada, mas ainda possuem certo grau de gnose — embora não o grau mais elevado — e é a partir deles que muitos dos problemas associados aos autoproclamados esotéricos têm origem, especialmente se falham em reconhecer suas limitações, idolatrando o Intelecto em vez de adorarem a Deus por meio dele. Há ainda aqueles que possuem certo grau de insight verdadeiramente esotérico — embora, nesse caso, não possa realmente ser chamado espiritual, mas sim um contrafação psíquica de alto nível do conhecimento espiritual — e que estão em liga com Satanás, sem o saber, e às vezes sabendo; e estes são as pessoas mais perigosas da terra, já que, dentre eles, os “contemplativos de Satanás” (awliyāʾ al-Shayṭān) serão escolhidos como a “guarda de elite” do Anticristo.

Quando elites espirituais tomam forma organizada no mundo exterior, estamos diante tanto do mais alto potencial para a transformação espiritual da sociedade quanto da mais satânica tentação ao orgulho espiritual titânico. É por isso que, segundo a opinião de alguns, uma verdadeira elite espiritual, como na lenda dos Cavaleiros da Távola Redonda, nunca dura muito em termos históricos: ou é destruída pelo pecado do orgulho, ou é dissolvida — deliberadamente por seus mestres iluminados, ou providencialmente pelo próprio Deus — antes que possa tornar-se totalmente corrupta. No Islã, muitos círculos sufis duraram como manifestações vivas apenas enquanto o mestre vivia, e então ou se dispersaram, ou continuaram como cascas vazias — embora isso certamente não seja verdade para as grandes ordens sufis sobreviventes, onde a transmissão da verdadeira baraka espiritual (graça) continua, em alguns casos, há muitos séculos. No Cristianismo, o exemplo mais claro de uma elite espiritual visível foi, segundo alguns, o dos Templários, cuja brutal supressão pela monarquia francesa, com o apoio do papado, foi ou a destruição trágica de uma espiritualidade profundamente esotérica pelas mãos de exotéricos invejosos e estúpidos, ou a necessária eliminação de uma irmandade internacional herética e corrupta com excesso de riqueza, poder e independência — ou talvez um pouco de ambos.

É verdade que o conhecimento “esotérico” costumava ser transmitido somente aos membros da elite espiritual, primeiro porque somente eles se interessavam, e segundo porque uma interpretação esotérica da doutrina pode desequilibrar a mente daqueles que a ela se atraem sem poder compreendê-la plenamente. Mas em nossos tempos todos os segredos esotéricos que podem ser ditos foram ou estão sendo ditos, então não há mais nada a perder nesse aspecto; é por isso que os Tradicionalistas frequentemente citam o provérbio dos cabalistas: “é melhor que a doutrina seja mal compreendida do que esquecida.” O fato é que nem todos podem compreender a metafísica — o que é o sentido da frase “o segredo protege a si mesmo” — e nem todos os que podem compreendê-la mentalmente são capazes de serem transformados espiritualmente por ela. Mas a qualidade do tempo presente exige que toda a verdade seja dita, custe o que custar, já que “o gato saiu do saco”, e é vital que essa verdade alcance aqueles poucos — dispersos por toda a população mundial — que podem lucrar com sua expressão plena.

Nem a questão sobre revelar ou ocultar doutrinas esotéricas é realmente nova. Guénon procurou um potencial esotérico secreto dentro do Catolicismo, possivelmente um resquício do Templarismo, mas não o encontrou. E muitas pessoas hoje ainda tentam descobrir — ou inventar — um Cristianismo esotérico. Mas, segundo Schuon, o Cristianismo em si é Cristianismo esotérico. A revelação cristã é uma espécie de “eso-exoterismo”, uma iniciação esotérica tornada disponível a todos; os ritos iniciáticos são o batismo e a confirmação. No Islã, a sabedoria esotérica é guardada pelos sufis, os místicos organizados. No Cristianismo — ao menos no Cristianismo pré-Reforma — ela estava dispersa por toda a tradição, “oculta a céu aberto”. O Catolicismo a possuía, mas, na ausência de uma tradição esotérica organizada comparável ao sufismo, não compreendeu o valor do tesouro que lhe fora confiado, razão pela qual hoje está no processo de “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Somente dentro da Ortodoxia Oriental, em grande parte devido à presença do hesicasmo, essa dimensão permaneceu relativamente intacta — o que não significa que a plenitude da salvação de Cristo, e portanto o potencial do esoterismo, não esteja presente também em algumas igrejas protestantes e no próprio Catolicismo, como testemunham grandes esoteristas como Jakob Böhme dentro do luteranismo.

A visão de Schuon sobre o Cristianismo é parcialmente confirmada por um interessante detalhe histórico: entre os mandeanos, uma antiga seita gnóstica do sul do Iraque, que afirma ter sido fundada por João Batista e que, segundo alguns estudiosos, pode descender dos essênios, Jesus é visto como uma espécie de renegado que revelou doutrinas esotéricas ao público. Isso demonstra, a meu ver, que o potencial espiritual fecundo no ministério de Jesus consistia em manifestar a profundidade interior da doutrina — e não em ocultá-la — e que as raízes da heresia gnóstica podem residir na tentativa de vários círculos esotéricos de desenvolverem seu próprio exoterismo, sua própria doutrina “alternativa”, em vez de permanecerem como “fermento” ou “grão de mostarda” dentro do Cristianismo como um todo. Por outro lado, Jesus sabia bem que nem todos seriam capazes de compreender a profundidade revelada da doutrina, razão pela qual nos Evangelhos Ele está continuamente dizendo coisas como “aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”, e por isso falava ao povo em parábolas, mas aos seus discípulos escolhidos falava direta e abertamente. A imagem central dessa qualidade “eso-exotérica” do Cristianismo é a Transfiguração de Cristo, onde a luz interior da tradição foi revelada abertamente. Mas permanece o fato de que nem todos têm olhos para ver essa luz: até mesmo Pedro, um dos doze escolhidos, não compreendeu totalmente o que acontecia. Assim, o segredo protege a si mesmo.

Segundo a sabedoria inerente à economia divina, pertencer a uma verdadeira elite espiritual, organizada ou não, é necessariamente o fardo mais pesado que pode ser suportado pela alma humana, embora a Intelectividade em si possa ser vista como uma graça compensatória, já que, como disse Jesus, “meu jugo é suave e meu fardo é leve.” E isso é justo: “A quem muito foi dado, muito será exigido.” Não há tolice maior do que alguém crer que sua percepção esotérica é uma vantagem, uma “regalia”. Compreender coisas que pessoas com maior santidade, e até com maior inteligência mental, jamais compreenderão — coisas que, se você falhar em sua vida espiritual, apenas o condenarão mais profundamente — é um destino duro, assim como retornar de uma batalha heróica com um braço a menos pode ser um emblema de honra, mas não é, no sentido usual do termo, um caso de boa fortuna. Como me apontou o escritor tradicionalista Rama Coomaraswamy, no sistema tradicional de castas hindu, o dharma (dever sagrado) das duas castas mais elevadas — os brâmanes (sacerdotes e intelectuais espirituais) e os xátrias (guerreiros e administradores) — incluía salvaguardas internas contra o orgulho de sua posição elevada. Os brâmanes, proibidos de trabalhar para viver, tinham de mendigar seu pão de porta em porta entre a terceira casta, os vaixás, cidadãos trabalhadores e sólidos; esta é uma humilhação que intelectuais incapazes de ganhar dinheiro, como eu, conhecem bem. E o orgulho heroico dos xátrias era temperado pela possibilidade sempre presente de ferimento, mutilação e morte na batalha.

Portanto, parte integral da prática de um membro da elite espiritual é não identificar seu ego com sua função — lembrar de Deus, como dizem os sufis, e esquecer de si mesmo. Em outras palavras, a humildade requerida do esotérico é muito mais radical do que aquela suficiente para o exotérico, chegando a uma verdadeira autoaniquilação. Como disse Groucho Marx (sem dúvida repetindo, na forma de uma piada “Nasruddin” de uma só linha, um autêntico fragmento de saber esotérico, provavelmente transmitido pelos hassídicos): “Eu jamais ingressaria em um clube que me aceitasse como membro.”

Frithjof Schuon foi talvez um dos doze maiores metafísicos da história conhecida, comparável, em muitos aspectos, ao sábio hindu Shankaracharya, ao jñani cristão Mestre Eckhart ou ao filósofo neoplatônico Plotino. Contudo, a comparação da Escola Tradicionalista com o neoplatonismo tem outro sentido pertinente. A filosofia platônica e neoplatônica só conseguiu sobreviver ao se anexar a uma das grandes religiões reveladas, principalmente ao Cristianismo e ao Islã. A tradição neoplatônica iluminou profundamente esses universos religiosos, revelando em linguagem filosófica explícita muito do que teria permanecido implícito na linguagem densamente simbólica e mitopoética da Bíblia e do Alcorão. Mas nem o Cristianismo nem o Islã poderiam “tomar residência” dentro do neoplatonismo, que em si não podia prover uma matriz fértil. Sem o arcabouço de uma religião revelada, ele lentamente morreu. Nem mesmo o imperador romano Juliano, o Apóstata, conseguiu restabelecer o Paganismo filosófico de forma viável. E embora parte da razão para o desaparecimento das escolas filosóficas possa ser atribuída à perseguição cristã, o fato permanece: o platonismo tardio não era suficientemente amplo ou suficientemente em contato com a graça divina para sobreviver por si só. O abismo entre suas concepções elevadas e o paganismo degenerado que o cercava — e que teria de servir como sua base popular — era demasiado grande. Isso pode explicar por que começou, sob Jâmblico, a descer à teurgia quase mágica, e por que, segundo algumas especulações, pode até ter se tornado ancestral de certas formas de magia cerimonial ocidental.

A Escola Tradicionalista enfrenta um dilema semelhante. Os ensinamentos profundos e inspirados de Schuon e seus colegas só podem servir para reavivar as religiões do mundo à profundidade metafísica de suas próprias tradições ortodoxas. Até certo ponto, dentro tanto do Cristianismo quanto do Islã, esse processo já começou. Mas na medida em que o Tradicionalismo se apaixona tanto pela metafísica “pura” a ponto de esquecer que todo conhecimento metafísico, para ser espiritualmente operativo, necessita de uma matriz viva dentro de uma das grandes tradições reveladas — e, além disso, que não se pode simplesmente relacionar-se a essas tradições como se representassem nada mais do que um requisito mínimo, uma espécie de carteirinha exotérica que, após validar as buscas esotéricas como ortodoxas, pode ser guardada na carteira e largamente ignorada — ele corre o risco de tornar-se um “exoterismo alternativo”: em outras palavras, um culto. Segundo Ibn al-‘Arabī, um dos maiores esotéricos islâmicos, as obras espirituais obrigatórias para todos os crentes — oração, jejum, peregrinação, esmola e testemunho de fé — são maiores do que as obras “supererrogatórias”, inclusive as realizadas apenas pelos sufis. Ele adverte os esotéricos sufis contra se deixarem enganar pelas revelações ou “desvelamentos” que lhes vêm de Deus, de modo a abandonarem essas obras obrigatórias:

Encontramos pessoas sinceras entre o Povo de Deus que foram enganadas por este estado. Elas preferem seu próprio desvelamento e aquilo que se manifesta em seu entendimento de modo que anula a regra estabelecida. Confiam nisso em seu próprio caso, e permitem que outros observem a regra estabelecida em seu significado exterior. Mas… qualquer um que confia nisso está totalmente confuso e deixou sua afiliação ao Povo de Deus… Pode até acontecer que o possuidor de tal desvelamento continue a praticar o sentido exterior dessa regra, embora não creia nela para si mesmo. Ele a pratica estipulando a situação exterior (ẓāhir), dizendo para si: “A este mandamento da Lei eu dou apenas o exterior de mim mesmo, pois conheci o seu segredo (sirr). Assim, sua propriedade em minha consciência interior é diferente de sua propriedade em meu exterior.” Portanto, ele não acredita nela em sua consciência interior enquanto a pratica. Quem a pratica assim… “seu ato falhou, e no mundo vindouro estará entre os perdedores” (Alcorão 5:5).
Futūḥāt al-Makkīyya II 233–34.

É preciso aproximar-se das tradições espirituais de modo íntegro, sem reservas secretas. Só então se perceberá que o verdadeiro esoterismo não se encontra em nenhum outro lugar senão nas profundezas raramente sondadas das doutrinas ortodoxas necessariamente aceitas por todos os crentes. E é precisamente isso que a Escola Tradicionalista prega. Que continuem a praticar o que pregam.

O Absoluto e o Infinito

Segundo Frithjof Schuon, Deus é tanto Absoluto quanto Infinito:

Em metafísica é necessário partir da ideia de que a Realidade Suprema é absoluta, e que, sendo absoluta, é infinita. É absoluto aquilo que não permite aumento ou diminuição, nem repetição ou divisão; é portanto aquilo que é ao mesmo tempo unicamente si mesmo e totalmente si mesmo. E infinito é aquilo que não é determinado por nenhum fator limitante e, portanto, não termina em qualquer fronteira…

O Infinito é, por assim dizer, a dimensão intrínseca do Absoluto; dizer Absoluto é dizer Infinito, um sendo inconcebível sem o outro.

A distinção entre o Absoluto e o Infinito expressa os dois aspectos fundamentais do Real: o da essencialidade e o da potencialidade; esta é a mais alta prefiguração principial dos polos masculino e feminino. A Radiação Universal, e assim a Māyā tanto divina quanto cósmica, brota do segundo aspecto, o Infinito, que coincide com a Toda-Possibilidade.
Survey of Metaphysics and Esoterism, pp. 15–16.

O Sumo Bem

Deus não é apenas Absoluto e Infinito; Ele é também o Bem. A ideia de Absolutidade sem a de Infinitude nos leva a imaginar Deus como um objeto remoto, inacessível, que não tem necessidade de comunicar-se: um Ser que, em vez de criar ou emanar todas as coisas, as exclui e nega. A ideia de Infinitude sem Absolutidade comunica uma sensação de proliferação interminável e fatigante, sem centro intrínseco de significado ou realidade. A ideia de uma Realidade Absoluta e Infinita que não seja também o Sumo Bem postula um Deus onipresente e todo-poderoso, mas sem solidariedade intrínseca com Sua criação — um Deus que, apesar de Seu Absoluto e de Seu Infinito, poderia ainda ser fundamentalmente cruel em relação a nós. E o conceito de um Deus que é apenas Bem, sem ser Absoluto ou Infinito, não passa do “Deus liberal”, um ideal moral impotente que deseja nosso bem, mas não é nem muito efetivo nem muito convincente quando confrontado com a “realidade dura”. Segundo Schuon:

O “Sumo Bem” é a Causa Primeira na medida em que é revelado por fenômenos que chamamos precisamente de “bons”, isto é, que o real e o bom coincidem. De fato, são os fenômenos positivos que atestam a Realidade Suprema, e não os negativos, privativos ou subversivos; estes últimos manifestariam o nada “se existisse”, e isso apenas num sentido indireto e paradoxal, na medida em que nada corresponde a um fim irrealizável que, no entanto, tende à realização.
Portanto, se chamamos o Princípio Supremo de Bem, Agathón, ou se dizemos que é o Sumo Bem que é o Absoluto e portanto o Infinito, isso é não porque paradoxalmente limitemos o Real, mas porque sabemos que todo bem provém dele e o manifesta essencialmente, e assim revela a sua Natureza. Com certeza pode-se dizer que a Divindade está “além do bem e do mal”, mas com a condição de acrescentar que esse “além” é por sua vez um “bem”, no sentido de que dá testemunho de uma Essência em que não pode haver sombra de limitação ou privação, e que, consequentemente, não pode deixar de ser o Bem absoluto ou a Plenitude absoluta. . . .
Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 16

Transcendência e Imanência
Toda tradição religiosa válida, de uma forma ou de outra, dá testemunho do fato de que a Realidade Absoluta é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O que significam essas palavras? Dizer que Deus é transcendente quer dizer que Ele está além de todas as coisas e de todas as concepções. Dizer que Ele é imanente quer dizer que todas as formas e concepções são manifestações d’Ele. E como poderia ser diferente? Imaginemos um campo branco infinito com muitos círculos, e círculos dentro de círculos, de tamanhos vastamente diferentes, inscritos sobre ele. Que o campo infinito represente Deus. O campo branco é infinitamente maior que um círculo de uma polegada de diâmetro; é também infinitamente maior que um círculo de um quilômetro de diâmetro. Transcende ambos. No entanto, não há nada dentro nem do círculo de uma polegada nem do círculo de um quilômetro senão aquele campo branco infinito; ele é imanente em ambos. Schuon, porém, expressa de modo mais exato o significado de transcendência e imanência, evitando as armadilhas da minha ilustração simplista, quando diz:

em conexão com os aspectos ou modos do Sumo Bem, devemos também considerar as relações de Transcendência e Imanência, a primeira ligada mais ao aspecto da Absolutidade, a segunda ao da Infinitude. Segundo a primeira relação, só Deus é o Bem; só Ele possui, por exemplo, a qualidade de beleza; em comparação com a Beleza divina, a beleza de uma criatura não é nada, assim como a própria existência não é nada em face do Ser divino; tudo isso do ponto de vista da Transcendência.
A perspectiva da Imanência também parte do axioma de que somente Deus possui tanto as qualidades quanto a realidade; mas a sua conclusão é positiva e participativa, e assim se dirá que a beleza de uma criatura — sendo beleza e não o seu contrário — é necessariamente a de Deus, já que não há outra; e o mesmo é verdadeiro de todas as outras qualidades, sem esquecer, em sua base, o milagre da existência. A perspectiva da Imanência não anula as qualidades criadas, como o faz a da Transcendência, mas, pelo contrário, torna-as divinas, se é lícito assim se exprimir.
Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 17

Hierarquia
Não há conceito mais impopular hoje em dia do que o de hierarquia. No vocabulário da maioria das pessoas, ele não significa nada mais nem nada menos que “poder estabelecido, portanto arbitrário”.

O modernismo liberal rebelou-se contra as antigas hierarquias da Igreja e do Estado, distribuindo ao “povo” (na realidade, à burguesia) as prerrogativas que outrora pertenciam ao rei e ao papa. A interpretação das Escrituras passou a ser unicamente questão de inspiração individual; a casa de um homem era seu castelo. O resultado foi o domínio do “capitalismo predatório”, no qual indivíduos poderosos, sem relação orgânica ou “corporativa” com as massas, tomaram o poder, em grande parte por meios econômicos. O marxismo surgiu em reação a isso. Nas nações comunistas, o poder era teoricamente distribuído à maior e mais baixa classe, os trabalhadores, mas na realidade ficava nas mãos de uma pequena oligarquia partidária.

Essa rebelião contra as hierarquias sociais ocultou a verdade de que tais hierarquias existiam originalmente para fornecer uma imagem concreta e um lembrete da verdadeira hierarquia ontológica, a Grande Cadeia do Ser. Um rei ou papa individual seria desprezado pelo povo se traísse o seu arquétipo, se não estivesse à altura de sua função, mas o Trono e a Cátedra Papal, os arquétipos em si, permaneciam sacrossantos. O sacerdócio representava Deus no céu e no outro mundo; a monarquia representava o poder ativo de Deus neste mundo.

É claro que essa estrutura social “hierática” sempre foi imperfeita. E, quando em determinado lugar e época se degenerava, erguia-se como a pior forma de idolatria. Em vez de funcionar como símbolo transparente da Hierarquia do Ser, tornava-se um falso dessa Hierarquia, um véu sobre o rosto das realidades espirituais.

Tanto no Antigo Testamento quanto no Alcorão, o símbolo por excelência dessa falsificação da hierarquia espiritual é o Faraó do Egito. Segundo o Alcorão, o Faraó acreditava literalmente ser Deus — e é exatamente isso o que acontece quando uma estrutura régia ou eclesiástica elaborada começa a adorar o próprio saber e magnificência em vez do Deus a quem existe para servir. A verdadeira hierarquia, como a escada no sonho de Jacó, sobre a qual os anjos subiam e desciam constantemente, existe para fornecer uma “comunicação de mão dupla”, por assim dizer, entre a existência manifestada e a sua Fonte transcendente. O próprio universo é uma hierarquia desse tipo. Mas, quando o conceito humano de hierarquia degenera e se petrifica, a ideia da transcendência divina torna-se nada além de uma imagem falsa da inacessibilidade e indiferença de Deus. Nesse ponto é quando, pela misericórdia de Deus, a imanência divina muitas vezes entra em ação na mente coletiva. Moisés e os israelitas, como escravos dos egípcios, obviamente não podiam relacionar-se com Deus através da “pirâmide” esmagadora do sistema religioso egípcio (o que não quer dizer que nada tenham recebido dele; pelo menos um dos Salmos foi originalmente um antigo hino egípcio). Foi a Moisés, um fugitivo procurado por homicídio, escondido no deserto, que Deus falou através da sarça ardente. Quando a religião hierárquica se torna um refúgio para “guias cegos que não entram e não deixam os outros entrar”, então a visão da imanência divina, da disponibilidade misericordiosa de Deus para com os pobres e oprimidos — para com aqueles que têm verdadeira simplicidade de alma, inocentes de oprimir outros, inocentes de complexidades mentais e organizacionais estéreis — é desvelada. À luz disso, o Êxodo pode talvez ser visto como uma espécie de Reforma protestante contra uma religião egípcia tornada petrificada e espiritualmente morta.

Não obstante, a hierarquia é. Ela é intrínseca à natureza do Ser. Moisés, pela graça e pelo poder de Deus, foi chamado a ascender ao Monte Sinai, símbolo da Hierarquia do Ser, para receber a Torá. Aqueles que negaram a realidade dessa Hierarquia, que quiseram relacionar-se com Deus somente através de Sua Imanência, negando Sua Transcendência, permaneceram embaixo para adorar o Bezerro de Ouro.

Modos e níveis hierárquicos
O relato dos níveis do Ser que separam o Criador do universo material, ao mesmo tempo em que os unem, é semelhante em todas as tradições reveladas e nas obras de muitos filósofos místicos. Mas nunca é idêntico, já que tudo o que pode ser tornado explícito já entrou no mundo da relatividade. As doutrinas verdadeiramente metafísicas são infinitamente mais estáveis, articuladas, inteligíveis e concretas do que qualquer coisa nos mundos material ou psíquico. Mas, embora o Absoluto as emane, elas não podem contê-lo; só podem indicá-lo.

O Ser manifesta-se em diferentes níveis, mas aparece também em termos de diferentes qualidades ocupando um mesmo nível. Os níveis são verticais; cada nível superior é causa dos níveis abaixo dele e contém tudo o que está nesses níveis inferiores em forma mais elevada. Da mesma forma, cada nível inferior é manifestação ou expressão — um símbolo — de tudo o que está acima dele; nas palavras de René Guénon, “o efeito é um símbolo da causa”. Os modos do Ser, por outro lado, são horizontais; diferem em qualidade e função, mas não em grau de realidade; são manifestações polarizadas e mutuamente definidoras de um único nível de Ser.

A distinção entre modos e níveis pode ser ilustrada no campo do gênero. Em termos verticais, o homem, considerado como reflexo do Logos criador, é superior à mulher, considerada como reflexo da Substância universal receptiva. Vista a partir da perspectiva oposta, porém, a mulher, tomada como símbolo da Essência divina ou do Além-do-Ser, é superior ao homem, visto como símbolo do ímpeto particularizante do Logos, cujo limite ontológico é o mundo material tal como percebido pelo ego humano. Mas, em termos horizontais, homem e mulher estão polarizados como opostos complementares, no mesmo nível de Ser. A mão direita não é mais real do que a esquerda; por serem complementares, são iguais. Mas igualdade, nesse sentido, nada tem a ver com identidade ou mesmidade. A mão direita conserva sua conexão simbólica com os reinos superiores do Ser, com a verdade e o “direito”, enquanto a mão esquerda ou “sinistra” mantém afinidade com os reinos inferiores. Por outro lado — trocadilho deliberado — a mão direita também está relacionada ao ego consciente exterior e a mão esquerda à Verdade interior, como Jesus deu a entender quando recomendou que, ao praticar a caridade, alguém não deixasse que “a mão direita (ego consciente) saiba o que faz a esquerda (impulso espiritual interior)”. [NOTA: Quem meditar sobre o famoso símbolo Yin/Yang verá nele uma representação visual deste parágrafo.]

Segundo Schuon, o Princípio Supremo possui dimensões, modos e graus ou níveis. Suas dimensões são Absolutidade e Infinitude — bem como, em relação à Sua Māyā, à Sua potencialidade inerente de auto-manifestação, Perfeição. “Absolutidade do Real, Infinitude do Possível, Perfeição do Bem.” Seus modos são Sabedoria, Poder e Bondade, cada um dos quais, por sua vez, é Absoluto, Infinito e Perfeito. Seus graus ou níveis são “a Essência divina, a Potencialidade divina e a Manifestação divina; ou o Além-do-Ser, o Ser criador e o Espírito ou o Logos extensional que constitui o Centro divino do cosmos total” (Survey of Metaphysics and Esoterism, pp. 25–26). Schuon e outros metafísicos — Plotino, por exemplo, ou Dionísio Areopagita, ou Ibn al-‘Arabī — multiplicam essas dimensões, modos e graus da Realidade de muitos modos diferentes, apenas para reconduzi-los novamente à absoluta simplicidade de seu Princípio. A exposição acima visa apenas dar ao leitor uma ideia preliminar de alguns dos princípios mais essenciais da metafísica pura de Schuon.

Amor e Conhecimento
Os escritores da Escola Tradicionalista colocam o caminho da gnosis ou jñāna, a via de união com Deus por meio do conhecimento, acima do caminho da devoção ou bhakti, que se baseia no amor. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento nunca está separado do amor. “Há uma bhakti sem jñāna”, afirma Schuon, “mas não há jñāna sem bhakti.”

“Em princípio, o conhecimento é maior do que o amor. . . .”, diz Schuon. No entanto, ele prossegue: “. . . mas de fato, no mundo, a relação é inversa, e o amor, a vontade, a tendência individual é, na prática, mais importante. . . .” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 148). Assim, um amor dinâmico a Deus é maior, em seus efeitos reais, do que um conhecimento mental ou “mundano” da metafísica, porque conduz a um conhecimento ainda mais elevado, que é a verdadeira realização. Em outro ponto do mesmo capítulo Schuon escreve: “Um culto da inteligência e a paixão mental afastam o homem da verdade. A inteligência se retira assim que o homem põe a sua confiança apenas nela. A paixão mental perseguindo a intuição intelectual é como o vento que apaga a luz de uma vela” (ibid., p. 132) e: “Tudo o que São Paulo diz sobre a caridade diz respeito ao conhecimento efetivo, já que este é amor. . . .” (ibid., p. 138).

Assim, Schuon, em certo sentido, define o amor como a energia que conduz à Meta, e em outro como um aspecto da própria Meta. Como diz em outro lugar: “A via do amor — bhakti metódica — pressupõe que através dela possamos ir em direção a Deus; enquanto o amor como tal — bhakti intrínseca — acompanha a via do conhecimento, jñāna, e baseia-se essencialmente em nossa sensibilidade à Beleza divina” (Roots of the Human Condition, p. 118).

Segundo Schuon, “o amor perfeito é ‘luminoso’ e o conhecimento perfeito é ‘quente’. . . . Em Deus o Amor é Luz e a Luz é Amor” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 148). “É necessário cavar fundo no solo da alma”, diz ele, “através de camadas de aridez e amargura, a fim de encontrar o amor e viver dele” (The Essential Writings of Frithjof Schuon, p. 451). Não obstante, Schuon escreve mais frequentemente a partir de uma perspectiva que coloca o conhecimento acima do amor. Ele diz:

Para o amor, o homem é sujeito e Deus é Objeto. Para o conhecimento, é Deus quem é Sujeito e o homem, objeto. . . . Para o homem espiritual de temperamento emocional, amar é ser e conhecer é pensar, e o coração representa a totalidade, a própria base do ser, e o cérebro, o fragmento, a superfície. Para o homem espiritual de temperamento intelectual, ao contrário, o conhecimento é ser e o amor é querer ou sentir, e o coração representa a universalidade ou o Si-mesmo (Self) e o cérebro, a individualidade ou o “eu”. O conhecimento parte do Universal, e o amor, do individual; é o Conhecedor absoluto que conhece, enquanto o sujeito humano, a criatura, é chamado a amar.
Spiritual Perspectives and Human Facts, pp. 144–145

Quatro páginas adiante, porém, Schuon toma outra direção. Depois de afirmar que, sob a perspectiva do Conhecimento, Deus é o Conhecedor e o sujeito humano o amante, ele agora diz: “O amor do homem afetivo consiste em que ele ama Deus. O amor do homem intelectual consiste em que Deus o ama; isto é, ele percebe intelectualmente — mas não de modo simplesmente teórico — que Deus é Amor” (ibid., p. 149). Aqui, portanto, mesmo para o homem intelectual — como para Dante no Paraíso — Deus ama, e é o próprio Amor. Como Schuon diz em outro ponto do mesmo livro, “[Deus] é Amor, não porque ama, mas ama porque é Amor” (ibid., p. 107). O Deus pessoal em ação é o “Amante”; a Essência divina é “Amor”; e isto é verdadeiro mesmo sob a perspectiva do conhecimento. Não obstante, o ponto de vista de Schuon permanece essencialmente jñānico e não bhaktico. Em The Essential Writings of Frithjof Schuon, pp. 39–40, ele escreve:

Quando colocamos a ênfase na Realidade objetiva — que então passa a ter precedência na relação entre sujeito e objeto — o sujeito torna-se objeto, no sentido de que, determinado inteiramente pelo objeto, esquece o elemento consciência; nesse caso, o sujeito, na medida em que é um fragmento, é absorvido pelo Objeto, na medida em que este é uma totalidade, assim como o acidente é reintegrado na Substância.

Esta é a perspectiva da bhakti, em que o amante de Deus é extaticamente aniquilado em seu Amado. Mas a perspectiva de jñāna, em que Deus não é o Objeto absoluto, mas o Atman, a Testemunha divina, é mais elevada ainda:

Mas o outro modo de ver as coisas, que reduz tudo ao Sujeito, tem precedência sobre o ponto de vista que concede primazia ao Objeto: se adoramos Deus, não é simplesmente pelo fato de Ele se apresentar a nós como uma realidade objetiva de imensidão vertiginosa e esmagadora — caso contrário adoraríamos as estrelas e as nebulosas — mas é sobretudo porque essa realidade, a priori objetiva, é o maior dos sujeitos; porque Ele é o Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente; porque é ao mesmo tempo onipotente, onisciente e consciente em grau sumo e benéfico.

O Problema do Mal
Um dos problemas perenes da teologia é o seguinte: se Deus é todo-poderoso, no sentido de que, em última análise, é responsável por tudo o que ocorre, então Ele deve ser também o autor do mal. Como, então, pode ser o Sumo Bem? E, se Ele é sumamente bom, não seria necessário haver um segundo princípio, distinto e oposto a Ele, para explicar a existência do mal? Se assim for, como pode Ele ser onipotente?

Os dualistas maniqueus adotaram esta última posição. O judaísmo e o islã tendem mais para a primeira, embora continuem a afirmar dogmaticamente a bondade e a misericórdia de Deus, de modos que só podem ser plenamente reconciliados com a onipotência divina, porém, a partir de uma perspectiva esotérica. O cristianismo aparentemente tende à posição mais dualista; seu dualismo, contudo, não é primariamente o que opõe Deus ao Diabo, mas sim o que opõe a bondade divina à vontade livre humana e angélica. Deus não quer o mal, mas o “permite”, embora o motivo por que um Deus bom e onipotente permitiria o mal apenas para nos dar a chance de lutar contra ele permaneça um enigma para muitos — ao menos para aqueles que não veem que o livre-arbítrio é um dom gratuito dado a nós, por Deus, de um aspecto de Sua própria Natureza.

Se Deus é bom, Ele não pode ser onipotente, e se é onipotente não pode ser bom — ou assim parece. Para Schuon, contudo, essa contradição resolve-se com facilidade. Dado que Deus é Infinito, Ele deve irradiar as possibilidades inerentes à Sua natureza, manifestando-as como a Hierarquia do Ser; e, à medida que a criação desce essa Hierarquia, tornando-se progressivamente menos real e menos viva, a possibilidade do mal — que não é um princípio em si, mas “apenas” uma condição de irrealidade relativa ou de não-entidade, assim como a fome não é uma coisa em si, mas “apenas” falta de alimento — entra em cena. (Dizer que “Ele deve” irradiar o Seu Ser não significa, contudo, que Ele não tenha escolha quando se trata de criar o universo, mas apenas que essa escolha é feita na eternidade, não no tempo. Para nós, aquilo que necessariamente somos por natureza e aquilo que livremente escolhemos fazer são duas coisas diferentes; para Deus, são a mesma.) Nas palavras de Schuon:

O mal é a “possibilidade do impossível”, cuja ausência faria com que o Infinito deixasse de ser o Infinito; perguntar por que a Toda-Possibilidade inclui a possibilidade de sua própria negação — possibilidade sempre reiniciada, mas nunca totalmente atualizada — é como perguntar por que a Existência é Existência, ou por que o Ser…

Primordialidade

Para os Tradicionalistas, a religião é primordial. Quando Santo Agostinho disse que o cristianismo sempre existiu, mas só foi chamado por esse nome depois da vinda de Jesus Cristo, ele estava afirmando essa primordialidade. Judeus e muçulmanos tocam na mesma verdade quando ensinam que Adão foi o primeiro profeta.

Todas as religiões verdadeiras têm uma única origem, que, em termos macrocósmicos, é o próprio universo, onde “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos”, e, em termos microcósmicos, a natureza “teomórfica” do homem, “terrível e maravilhosamente feito” à imagem e semelhança de Deus.

Na Idade de Ouro deste ciclo, todas as religiões eram uma só. Aquilo que o coração humano conhecia do Criador por intelecção direta, o olho humano via, pela contemplação, nos objetos do mundo natural e na forma do corpo humano. Mesmo hoje, alguns dos “povos primordiais” conservam vestígios dessa visão primordial do cosmos como manifestação do Grande Espírito. (Em reconhecimento de sua apreciação das espiritualidades primordiais, Frithjof Schuon foi admitido como membro tribal tanto entre os Crow quanto entre os Lakota [Sioux], e contou vários pajés tradicionais entre seus amigos espirituais.)

Primordialidade, porém, não significa que uma simples apreciação estética ou sentimental da natureza possa equivaler a uma orientação religiosa espiritualmente eficaz. Já não estamos na Idade de Ouro; a Árvore da Religião, cujas raízes estão na eternidade, no Absoluto unitário, já se ramificou muitas vezes desde então. Nestes últimos tempos, salvo casos imprevisíveis baseados em destino espiritual individual, a verdadeira religião só é encontrada em uma das tradições reveladas. O tronco da árvore pode ser um só, mas frutos nutritivos só crescem nos ramos.

As religiões reveladas, entretanto, não são inovações. Apesar de todas as suas dessemelhanças necessárias e providenciais, decorrentes de seu lugar no tempo cósmico e da natureza das coletividades humanas às quais foram e são dirigidas, cada revelação, num sentido mais profundo, é uma recordação da Revelação Primordial Una: a criação do cosmos por Deus, cujo centro consciente e auto-transcendente é o homem — na medida em que, por seu Intelecto interior, ele contempla sua Origem divina por meio desse mesmo Intelecto.

A Unidade Transcendente das Religiões

Assim, todas as religiões verdadeiras e reveladas são ramos da Única Verdade. Elas se encontram não apenas nas profundezas do tempo, mas nas profundezas da Natureza divina. Fora dessas profundezas, porém, divergem necessariamente. É possível, portanto, contemplar panoramas da Verdade revelada através de muitas tradições, mas não é possível praticar mais de uma religião ao mesmo tempo como meio de salvação, tanto quanto não se pode caminhar simultaneamente por duas ou três estradas. A essência da verdade espiritual, como a do amor humano, não está nas semelhanças abstratas que se podem traçar entre várias tradições religiosas, mas na particularidade de uma única tradição, plenamente assumida e plenamente vivida. Como dizem os sufis, é melhor cavar um poço com trinta metros de profundidade do que dez poços com três metros, se se quer encontrar água. Nas palavras de Rumi:

Quando é que a religião já foi uma só? Sempre foi duas ou três, e a guerra sempre grassou entre correligionários. Como você vai unificar a religião? No Dia da Ressurreição ela será unificada, mas aqui neste mundo isso é impossível, porque cada um tem um desejo e uma vontade diferentes. A unificação não é possível aqui. Na Ressurreição, porém, quando todos estiverem unidos, todos olharão para uma única coisa, todos ouvirão e falarão uma única coisa.
Signs of the Unseen [Fihi ma-Fihi], p. 29

O “Dia da Ressurreição” é também “antes da Queda” e “nas profundezas da Natureza divina”.

O Caminho Espiritual

James S. Cutsinger, em Advice to the Serious Seeker: Meditations on the Teaching of Frithjof Schuon, fala de quatro aspectos do Caminho espiritual: Verdade, Virtude, Beleza e Oração.

A Verdade é a doutrina metafísica que, com a graça de Deus, pode abrir-nos a uma intuição do Intelecto transcendente no centro da alma humana. Mas, para que a alma se conforme de modo permanente a esse Intelecto, é necessária a Virtude. As três virtudes primárias aqui são humildade, caridade e veracidade, que se relacionam às três faculdades principais da alma. A humildade conforma a vontade humana ao Intelecto transcendente, a caridade conforma os sentimentos, e a veracidade conforma a mente pensante. Ou, sob outra perspectiva, podemos dizer que cada virtude conduz a alma a uma relação mais profunda com o seu próprio arquétipo divino: a humildade abre a alma para a Virtude de Deus, e assim para uma apreciação humilde da virtude onde quer que apareça; a caridade, para a Beleza de Deus, e assim para toda Beleza em toda parte, incluindo a beleza moral daquele que não é fisicamente belo, ou a beleza virtual da própria condição humana naquele que carece até mesmo de beleza moral; e a Veracidade, para a Verdade de Deus, e assim para a Verdade em todas as suas formas, incluindo a verdade de situações contingentes e até de simples fatos. Na Natureza divina, porém, esses três arquétipos não são separados, razão pela qual cada um deles afeta cada uma das três faculdades da alma humana à sua maneira. A virtude é a verdade em ação, um de cujos frutos é a beleza moral. A beleza pode nutrir e fortalecer a vontade, além de ser, por direito próprio, um modo de conhecimento. E a Verdade em si é singularmente forte e incomparavelmente bela; ela torna possível tanto a honestidade emocional quanto uma avaliação objetiva do próprio progresso na virtude.

Nas palavras de Platão, “a Beleza é o esplendor da verdade”. Segundo Schuon, “a Beleza, com a amplitude de seu infinito e sua generosidade, rompe as atitudes fixas e os sistemas fechados do… egoísmo espiritual” (Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 164). As coisas belas, porém, não estão isentas de ambiguidades:

Toda Beleza é ao mesmo tempo uma porta fechada e uma porta aberta… um obstáculo e um veículo: ou a Beleza nos separa de Deus porque está totalmente identificada, em nossa mente, com o seu suporte terrestre, que então assume o papel de ídolo, ou a Beleza nos aproxima de Deus porque nela percebemos as vibrações da Beatitude e do Infinito que emanam da Beleza divina.
Esoterism as Principle and as Way, p. 182

Mesmo num objeto indigno, ou num objeto tornado indigno em relação a nós por causa de nossa idolatria, a Beleza continua sendo um raio da Natureza divina.

“A virtude é a Beleza da alma, assim como a Beleza é a Virtude das formas” (Logic and Transcendence, p. 246). É a Beleza que nos permite contemplar as formas ao nosso redor em sua “transparência metafísica”:

Se o ouro não é chumbo, é porque ele ‘conhece’ melhor o Divino. Seu ‘conhecimento’ está em sua própria forma… a rosa difere do lírio-d’água por sua particularidade intelectual, por seu ‘modo de conhecer’… Um animal nobre ou uma flor formosa é intelectualmente superior a um homem vil.
Spiritual Perspectives and Human Facts, p. 121.

O quarto aspecto do Caminho espiritual, a Oração, é a essência dos outros três. Longe de ser mera técnica para realização de desejos ou alteração da consciência, ela é a Beleza essencial, a Virtude essencial e a Verdade essencial; como disse um rabino, “a própria oração é o Divino”.

A oração toma três formas complementares: a oração canônica, que nos conecta organicamente com nossa comunidade e tradição espirituais escolhidas; a oração pessoal, que nos conecta em nossa particularidade com o rosto específico do Divino que, na eternidade, se volta para essa particularidade; e a oração invocativa, que transcende ambas. A oração invocativa significa a invocação (idealmente) perpétua do Nome divino, prática chamada dhikr no sufismo, Oração de Jesus ou Oração do Coração no hesicasmo cristão ortodoxo, e japa(m) no hinduísmo. Pela Invocação, virtualmente senão de fato, somos aniquilados em nossa individualidade separada e divinizados pela atividade do Nome, já que “Deus e Seu Nome são um”. No sufismo isso se chama fanā e baqā, “aniquilação e subsistência-em-Deus”; na Ortodoxia, chama-se theosis ou deificação. É o estado a que São Paulo se referia quando disse “já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim”. Quando Jesus ordenou aos discípulos que “orassem sem cessar”, é provável que se referisse à prática da oração invocativa. Segundo o Dr. Cutsinger, a invocação do Nome divino é de tal profundidade e poder que jamais deve ser empreendida por iniciativa própria, mas apenas com a permissão de um mestre espiritual — ou, à falta de acesso a tal mestre, com base em um voto solene perante Deus e sob a orientação de um diretor espiritual. Por fim, não existe algo como uma Invocação “genérica”; os Nomes divinos que carregam o poder de engendrar Deus na alma humana são aqueles que o próprio Deus nos revelou, nas línguas dos Caminhos que Ele mesmo fundou.

Simplicidade de Alma

A metafísica é complexa; o seu Objeto é simples. Ela é complexa precisamente porque o seu Objeto é de tal simplicidade que toda complexidade concebível e mesmo inconcebível pode existir dentro d’Ele, sem caos, sem obscurecimento mútuo, numa paz ardente e trovejante.

Frithjof Schuon atribuía um lugar muito alto à simplicidade de alma. Embora seus livros fossem dirigidos a “intelectuais”, ele também atraía muitos que não tinham interesse em teorias complexas. A gnose, recorda ele, não é uma aquisição mental, mas um contemplar, em simplicidade total e virginal, a Verdade nua, até que o Objeto visto se transforme naquele que vê. Em Light on the Ancient Worlds (p. 109), ele escreve:

Se a Bíblia é ingênua, é uma honra ser ingênuo. Se as filosofias que negam o Espírito são inteligentes, então não existe tal coisa como inteligência. Uma crença humilde em um Paraíso situado entre as nuvens tem pelo menos um pano de fundo de Verdade inalienável, mas tem também — e sobretudo — o pano de fundo de uma realidade misericordiosa na qual não há engano, e isso é algo acima de qualquer preço.

Crítica do Mundo Moderno

A Verdade projeta uma longa sombra. Se algumas coisas são necessariamente verdadeiras, então outras são necessariamente falsas. O amor da Verdade deve, portanto, incluir o ódio ao erro, assim como o amor por uma pessoa amada humana deve incluir a vontade de defendê-la de tudo o que possa feri-la ou degradá-la, mesmo ao ponto de sacrificar a própria vida. Qualquer coisa menor não é verdadeiro amor — nem verdadeiro amor à sabedoria. E, no entanto, crítica e defesa estarão sempre em nível inferior ao da afirmação da Verdade, que é por sua vez inferior à contemplação pura da Verdade. Toda rosa tem seus espinhos; contudo, as rosas não são cultivadas por causa dos espinhos, mas por causa de sua forma, de sua cor e de seu perfume. A Verdade, embora tenha um gume duro, é essencialmente misericordiosa e redentora; nas palavras de Allah, um de Cujo Nomes é al-Ḥaqq (a Verdade), “Minha Misericórdia precede Minha ira”. Mas o que dizer de al-Ḥaqq em sua própria Essência, o que dizer da Verdade absoluta, dado que (segundo Schuon) o Absoluto não tem oposto? Como pode qualquer negação existir nas profundezas da Natureza divina? Talvez a melhor maneira de responder a isso seja com dois provérbios aparentemente paradoxais de William Blake, que certamente se referem ao nível da manifestação cósmica, e talvez até ao de maya-in-divinis: “Tudo o que é possível ser acreditado é uma imagem da Verdade”, e “Estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus.”

Os escritores da Escola Tradicionalista elaboraram talvez a crítica mais contundente do mundo moderno e pós-moderno de que dispomos. Livros representativos são The Bugbear of Literacy, de Ananda K. Coomaraswamy; The Destruction of the Christian Tradition, de Rama P. Coomaraswamy; King of the Castle, de Charles LeGai Eaton; The Crisis of the Modern World e The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de René Guénon; Ancient Beliefs and Modern Superstitions, de Martin Lings; seções de The Transcendent Unity of Religions, Spiritual Perspectives and Human Facts, Light on the Ancient Worlds e outras obras de Frithjof Schuon; e Beyond the Postmodern Mind, de Huston Smith. O presente livro foi escrito, em parte, para expandir e atualizar certos aspectos dessa crítica.

Para resumir a crítica tradicionalista do mundo moderno numa frase: eles não “compram” o pacote. Como viver dentro dele se você não o compra, e como aproveitar as oportunidades espirituais únicas propiciadas por tempos de trevas espirituais coletivas, é uma das questões centrais que os Tradicionalistas tentam responder.

Segundo a visão da maioria das religiões tradicionais, o tempo é cíclico, e entrópico. Uma Autorrevelação divina inaugura uma era do mundo, que desce de uma Idade de Ouro original até uma Idade de Ferro terminal, sendo finalmente destruída, após o que um novo ciclo de manifestação desce dos mundos superiores. Segundo essa visão, o progresso só pode ser uma ilusão; para cada bem que se ganha com o aumento do conhecimento humano e do controle sobre a natureza, um bem cultural e espiritual maior é perdido. O ciclo não pode ser revertido. As perversões do mundo moderno, sua destruição da metafísica, seus ataques à religião e suas violações do mundo natural e da forma humana são males, mas não são ilegais no sentido mais elevado do termo, já que as consequências terríveis da violação humana da justiça divina e natural são elas mesmas justas. “É necessário que haja escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo vem.” A humanidade coletiva, em certo sentido, pode ser perdoada; não é crime simplesmente envelhecer. Mas a “velhice do macrocosmo” não absolve os indivíduos de seu dever de discernir e escolher a Verdade. E quando Verdade e engano estão tão radicalmente polarizados, como devem estar nestes últimos dias, a escolha que se apresenta a cada indivíduo é mais momentosa do que em qualquer outro ponto de todo o ciclo.

A projeção desse falso mito do progresso sobre a biologia resulta na ideologia conhecida como evolucionismo, a doutrina de que o menos é a origem causal do mais, de que formas de vida mais elevadas e complexas, incluindo o homem, desenvolveram-se gradualmente a partir de formas mais simples. Os Tradicionalistas, por outro lado, ensinam que o advento de novas formas de vida — que o registro fóssil mostra ser mais descontínuo do que contínuo, pondo assim a “seleção natural de mutações aleatórias” de Darwin em séria dúvida — representa na realidade a descida de arquétipos espirituais organizadores da matéria a partir dos planos superiores do Ser, em resposta à palavra criadora de Deus. Essas “Ideias platônicas” das espécies então atraem para si a matéria de que necessitam para construir veículos físicos para sua vida no espaço e no tempo.

O progressismo e o evolucionismo são aspectos da ideologia mais abrangente conhecida como cientificismo, a crença de que nada existe para além do mundo material, e, portanto, de que o propósito e o destino do homem estão em conquistar e controlar a matéria, no curso da qual ele deve aprender a definir-se como matéria e nada mais.

Os Tradicionalistas também têm algo de valioso a dizer contra os excessos da democracia, que mantém íntima ligação histórica com o progressismo, o cientificismo e o evolucionismo. Quando a verdade se degrada a opinião da maioria, e quando o indivíduo consequentemente tenta basear suas escolhas morais na subjetividade de massa da sociedade coletiva que o cerca, em vez de em princípios objetivos, o resultado é o caos. (Acrescentaria apenas uma advertência: segundo Platão, a democracia sempre degenera em tirania; por isso nos convém manter a democracia o máximo de tempo que pudermos. O perigo que se ergue no horizonte pós-moderno não é a democracia, mas uma espécie de neo-aristocracia satânica, chamada por Guénon de “hierarquia invertida” e identificada por ele com o regime do Anticristo.)

Guénon vs. os Ocultistas

O fundador da Escola Tradicionalista, René Guénon (1886–1951), foi um dos dois ou três maiores expoentes da “metafísica pura” nos tempos modernos. Em livros como Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, Man and His Becoming according to the Vedanta, The Symbolism of the Cross e Multiple States of Being, ele reintroduziu a metafísica e o esoterismo tradicionais, tanto oriental quanto ocidental, no mundo ocidental. Mas havia outro lado em seu gênio. Antes de seu encontro com aquilo que passou a chamar de Tradição com “T” maiúsculo, ele explorou profunda e extensivamente o submundo do ocultismo ocidental — Rosacrucianismo, Maçonaria, Martinismo, Templarismo, Neognosticismo, Teosofia, Espiritismo e outras seitas — aproximadamente de 1905 ao início dos anos 1920. Saiu desse período convencido não apenas da falsidade doutrinal do ocultismo, especialmente quando comparado à herança metafísica comum das grandes religiões mundiais, mas também de seu profundo perigo espiritual. Atribuiu a morte de sua primeira esposa a influências sombrias provenientes daquele meio, e declarou sentir-se incapaz, mesmo depois de tornar-se muçulmano ortodoxo e iniciado sufi, de assumir o papel de mestre espiritual, já que sua alma fora marcada por um contato íntimo demais com forças psíquicas malignas em seus primeiros anos.

Numa tentativa de advertir outros desse perigo, e sem dúvida também como modo de purgar-se a si mesmo, publicou seu segundo livro (em 1921, quando seu primeiro livro, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, também apareceu) sob o título Le Théosophisme, histoire d’une pseudo-religion (Teosofismo: História de uma Pseudo-Religião), um libelo contra a Sociedade Teosófica de Madame Blavatsky, bem como contra a Antroposofia de Rudolf Steiner. (No decorrer do presente livro, a teosofia moderna surgirá várias vezes como a “sombra” contínua do Tradicionalismo.) Em Le Théosophisme, ele anuncia alguns dos temas aos quais retornaria em várias outras obras, incluindo L’Erreur Spirite (O Erro Espírita), em 1923, e sua obra-prima profética The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de 1948, onde aplica a metafísica pura à “crítica social” no plano mais universal imaginável, isto é, ao curso necessariamente descendente e ao fim apocalíptico do presente ciclo de manifestação na terra. Entre esses temas está um que apareceria em vários lugares de sua obra, incluindo Le Roi du Monde (O Rei do Mundo), 1927, e alcançaria seu auge em The Reign of Quantity: o do Anticristo.

Em Theosophy: History of a Pseudo-Religion, ele escreve:

Os falsos Messias que vimos até agora só realizaram milagres muito inferiores, e seus discípulos provavelmente não foram difíceis de converter. Mas quem sabe o que o futuro reserva? Quando se reflete que esses falsos Messias nunca foram senão instrumentos mais ou menos inconscientes daqueles que os conjuraram, e quando se pensa mais particularmente na série de tentativas feitas sucessivamente pelos teosofistas [a mais famosa sendo a promoção de Krishnamurti como Messias; os esforços contemporâneos parecem limitar-se ao “Maitreya” de Benjamin Creme], somos levados à conclusão de que não passaram de ensaios, experiências, por assim dizer, que serão renovadas sob várias formas até que se obtenha sucesso, e que, nesse meio-tempo, produzem invariavelmente um efeito algo inquietante.
Não que acreditemos que os teosofistas, mais do que os ocultistas e os espíritas, sejam fortes o bastante, por si sós, para levar com êxito a cabo uma empreitada dessa natureza. Mas não poderia haver, por detrás de todos esses movimentos, algo muito mais perigoso, de que seus líderes talvez nada saibam, sendo eles próprios, por sua vez, instrumentos inconscientes de um poder superior?
Citado em The Morning of the Magicians, Louis Pauwels e Jacques Bergier, Avon Books, 1960, pp. 219–220

[NOTA: É óbvio que a Sociedade Teosófica — ou, em termos contemporâneos, as “Sociedades” — não pode ser responsabilizada pelas ações ou declarações de cada um de seus membros, particularmente dado que carece de dogma oficial. Sem dúvida abrange muitos buscadores sinceros, e sua editora, Theosophical Publishing House, sob o selo Quest Books, publicou até alguns escritores tradicionalistas: Frithjof Schuon, Huston Smith — e o próprio autor. No entanto, aquilo que Guénon chamaria de “ação antitradicional” continua a emanar, ao menos oficiosamente, de muitos naquele meio, como veremos nos Capítulos Oito e Nove.]

René Guénon foi claramente uma figura central na crítica, no século XX, das religiões “Nova Era”, qualquer que seja o nome que assumam em determinado período. O que o torna a ele e a seus seguidores únicos é que baseiam essa crítica não em dogmatismo confessional, mas em metafísica universal. Que outro enfoque poderia demonstrar que o ocultismo e a doutrina Nova Era não são nem legitimamente metafísicos nem realmente esotéricos?

O Erro Espírita: Uma Sinopse

O que se segue é uma sinopse de The Spiritist Fallacy (L’Erreur Spirite), de Guénon, baseada numa tradução manuscrita do Dr. Rama Coomaraswamy. Ela é altamente esclarecedora, pois expõe muitas doutrinas “de ponta” da Nova Era como muitas vezes com mais de um século de idade, e fornece um valioso pano de fundo histórico para o movimento Nova Era atual.

Guénon define espiritismo não simplesmente como a crença de que seja possível comunicar-se com os mortos, mas como a crença de que tal comunicação possa ocorrer por meios materiais — pancadas de “espíritos”, telecinesia, materializações etc. Ele não nega nem o poder dos médiuns espíritas de produzir tais fenômenos, nem a possibilidade de uma comunicação “mental, intuitiva ou inspirada” com os falecidos — embora pouco faça para definir exatamente o que essa forma de comunicação poderia implicar. Mas repudia a ideia de que tal comunicação seja possível pelos métodos dos espíritas, concluindo, portanto, que os fenômenos espíritas representam algo inteiramente diverso.

Ele vê no espiritualismo uma espécie de materialismo ampliado. Descartes postulou uma cisão radical entre “corpo” e “espírito”, negando assim e suprimindo culturalmente a doutrina tradicional que, em sua forma mais simples, afirma que a forma humana é tripartida, composta de corpo, alma e Espírito. Os espiritualistas, teosofistas e ocultistas, numa tentativa equivocada de restaurar uma concepção mais abrangente e exata, postularam um “perispírito” (espiritualismo) ou “corpo astral” (Teosofia) como ponte entre corpo e espírito. Mas o viram, erroneamente, como uma espécie de corpo material sutil, capaz de agir sobre a matéria. Na realidade, porém, dado que corpo e espírito não são, como acreditava Descartes, completamente isolados um do outro, é desnecessário postular, como substituto da doutrina tradicional da alma, uma realidade quase material para fazer a ponte sobre um hiato inexistente entre ambos.

Uma dificuldade na concepção da alma como um corpo “sutil” é que isso faz parecer que a morte não passa de descartar o corpo material, após o que a “vida” do indivíduo continua sem mudança fundamental. (Segundo o sacerdote cristão ortodoxo Seraphim Rose, em seu livro The Soul After Death, doutrinas como essa removem o sentido da morte como confronto entre a alma humana e Deus, eliminando na prática toda ideia de juízo divino e destruindo um dos pontos fundamentais de orientação para a vida espiritual.) Além disso, se o “perispírito”, sendo quase material, pode agir diretamente sobre a matéria, por que a mediunidade é necessária para sua manifestação, como afirmam universalmente os espiritualistas? O espiritualismo ensina que um fluido ou energia sutil que emana do médium, chamada “força ódica”, “ectênica”, “força neurítica”, “ectoplasma” etc., é ingrediente necessário na manifestação do espírito. Por que, então, é necessário postular a existência de um perispírito ou corpo astral em primeiro lugar?

(A existência de um corpo sutil, na verdade, não é algo tão antitradicional quanto Guénon, em sua reação contra as doutrinas claramente antitradicionais dos espiritualistas, e contra Descartes, parece afirmar em The Spiritist Fallacy — um aparente deslize que ele mais que compensa em outras obras, especialmente Man and His Becoming according to the Vedanta. O próprio Vedanta fala de um corpo sutil, o sūkṣma śarīra, que, segundo os Brahma Sūtras, sobrevive até a Libertação final. Jesus, após sua ressurreição, apareceu em um corpo palpável, ainda que “glorificado”, e tanto Mullā Ṣadrā quanto Ibn al-‘Arabī, esoteristas muçulmanos, sustentam que a alma necessita de um corpo em todo estágio de existência. Um ser individual pode ser definido como uma relação polar entre sua fonte espiritual e sua manifestação formal, nenhuma das quais pode existir sozinha, porque são manifestações complementares de uma única Realidade. O polo espiritual tem precedência sobre o formal, uma vez que o Espírito representa, de fato, essa Realidade absoluta no modo de polaridade com sua própria manifestação; contudo, um polo nunca existe sem o outro. E à luz dessa doutrina, Guénon tem razão ao criticar os espiritualistas por conceberem a morte como nada além do desaparecimento do corpo material, deixando o corpo sutil exatamente como era antes, porque esse próprio desaparecimento exige uma “repolarização” entre o Espírito e sua manifestação em um nível inteiramente diferente, situando assim o ser individual em um novo plano ontológico. Mas, na medida em que ele se opõe à tendência espiritualista de conceber o corpo material como espécie de modelo para o corpo sutil, em vez de entender o corpo sutil como modelo do corpo material, Guénon está certíssimo.)

Guénon traça uma breve história do espiritualismo, que se originou em Hydesville, Nova York, devido a uma manifestação de “batidas de espírito” na casa de uma família alemã de sobrenome Fox (forma anglicizada de Voss), em 1847. O “espírito” produzia ruídos de pancadas, que estão entre os fenômenos relatados ao longo da história em relação a casas chamadas “mal-assombradas”. O “espírito” era interrogado com várias perguntas, e respondia corretamente por meio das pancadas. O que era significativo, segundo Guénon, não era o fenômeno em si, mas o conjunto único de conclusões tiradas a partir dele: especificamente, que a sociedade humana deveria ser promovida e aperfeiçoada pela instituição de uma comunicação ampla e contínua entre vivos e mortos. Surgiu um quaker de nome Isaac Post que — no verdadeiro espírito da inventividade ianque — concebeu um “telégrafo espiritual”, uma espécie de tábua ouija, para que o “espírito” pudesse se comunicar com mais facilidade. (Guénon observa as semelhanças entre a forma de culto quaker e as práticas de médiuns espíritas.) Descobriu-se então que o fenômeno se tornava mais intenso quando as irmãs Fox se encontravam no recinto, e esse foi, segundo Guénon, o momento exato em que o mundo moderno descobriu a mediunidade. O “espírito” afirmava ser o de um caixeiro-viajante que fora assassinado e enterrado no porão da casa da família Fox. Posteriormente o porão foi escavado e um esqueleto foi encontrado. O interesse por esses acontecimentos cresceu rapidamente até que se tornou o influente movimento internacional conhecido como Espiritualismo. A primeira convenção espiritualista nacional teve lugar em 1852, em Cleveland, Ohio, apenas cinco anos após as manifestações iniciais.

Os “espíritos” que enxameavam Hydesville afirmavam ser liderados por Benjamin Franklin, o arquétipo de todos os inventores ianques. Eles sustentavam ainda que as pesquisas modernas sobre eletricidade haviam preparado o caminho para a comunicação com eles, e que “Franklin” vinha sendo guiado em métodos para melhorar essa comunicação. O autor menciona também, em outro contexto, o caso de Thomas Edison, inventor ianque tornado capitão da indústria, que tentou seriamente construir um “rádio” para comunicação com os mortos!

Guénon pergunta por que um fenômeno que, desde a Antiguidade, se associava a casas assombradas teria, de repente, em meados do século XIX, gerado um movimento pseudo-religioso internacional. Embora admita que o clima da época tornara possível esse desenvolvimento, observa também como significativo o fato de que Madame Emma Hardinge-Britten, membro da sociedade secreta conhecida como Hermetic Brotherhood of Luxor, a qual Guénon investigara anteriormente, tenha se associado ao movimento espiritualista desde o início e escrito um livro intitulado History of Modern American Spiritualism (1870). A importância disso reside no fato de que a referida Irmandade sempre se opusera às teorias espiritualistas, e alegara ainda que os primeiros fenômenos espiritualistas haviam sido produzidos na realidade por indivíduos vivos atuando à distância — em outras palavras, por feitiçaria. Aparentemente, Annie Besant, da Sociedade Teosófica, em certa ocasião fez afirmação semelhante. Dada a natureza suspeita dessas fontes, Guénon não aceita necessariamente as suas alegações, mas admite a possibilidade de que possam estar certas. Em vista do fato de que a Hermetic Brotherhood of Luxor guardava afinidades com várias sociedades secretas anteriores na Alemanha, algumas delas maçônicas, que praticavam magia e “evocações” entre o fim do século XVIII e o início do XIX, ele especula que certos “adeptos” ligados à Irmandade ou a outros grupos possam ter produzido os fenômenos em Hydesville, talvez aproveitando “resíduos psíquicos” aderentes a uma casa onde ocorrera uma morte violenta — resíduos que, insiste, não são de modo algum o “espírito do morto”. O objetivo desses “adeptos”, segundo Guénon, poderia ter sido produzir determinados fenômenos psíquicos de grande projeção a fim de combater, na mente do público, a filosofia do materialismo, levando-o a crer na doutrina espiritualista, enquanto eles próprios sabiam mais. (Sou imediatamente lembrado dos vários embustes, alguns engenhosos o bastante para requerer alto nível de organização, que continuam a surgir em torno do fenômeno UFO.) Como hipótese mínima, ele considera provável que agentes de tais grupos tenham influenciado a população de Hydesville por meio de propaganda encoberta, tirando proveito, nesse cenário, de uma situação já existente. Mas combater o Materialismo com o Espiritualismo, esclarece Guénon, é simplesmente opor um erro a outro — verdade que se torna mais evidente a cada dia, à medida que uma fascinação por várias tecnologias arcanas e fenômenos psíquicos ou quase psíquicos, como telepatia e contatos com UFOs, continua a fundir-se na mente coletiva.

Em seguida Guénon nos apresenta Allan Kardec, o mais influente dos espiritualistas franceses, que produziu vários livros “canalizados” de “filosofia de espíritos”. Em seguida cita Daniel Dunglas Home, o mais fenomenal médium de materialização já estudado, tido como um dos mais confiáveis, que afirmava que Kardec era na realidade uma espécie de hipnotizador que se rodeava de médiuns impressionáveis aos quais tratava como sujeitos hipnóticos, com o resultado de que a filosofia por eles “recebida” era inteiramente composta das ideias preconcebidas de Kardec, transmitidas por sugestão. Guénon aceita essa avaliação, exceto por atribuir a sugestão não apenas a Kardec, mas à “mente de grupo” que ele partilhava com certos colegas.

O autor observa como o espiritualismo moderno se propagou na América sobretudo em jornais socialistas, e mostra como, na França, assumiu o caráter progressista, anticlerical e “cientificista” do iluminismo revolucionário dos séculos XVIII e XIX. (Também é interessante, de passagem, o fato de Robert Dale Owen [1801–1877], congressista norte-americano e filho do célebre socialista galês Robert Owen, ter sido um espiritualista entusiasta. Como conservador, Guénon estava naturalmente mais interessado nos vínculos do espiritualismo com a esquerda, mas é bem conhecido o fato de que o Partido Nacional-Socialista de Hitler, de extrema direita, bebeu em muitas influências semelhantes.)

Guénon mostra como os ensinamentos dos “espíritos” tendem a refletir as ideias do meio social em que surgem, uma vez que o poder de sugestão opera na mente coletiva assim como opera na mentalidade partilhada de grupos menores. Assim o espiritualismo francês fez da reencarnação um dogma, interpretando-a como forma de progresso espiritual e “evolução”, enquanto a reencarnação foi negada nas mensagens “espirituais” recebidas na sociedade mais conservadora da Inglaterra. Socialismo e espiritualismo tornaram-se profundamente entrelaçados na França, onde os “espíritos” tendiam a defender a ideologia da revolução de 1848.

Guénon, então, rebate os que afirmam que o espiritualismo é uma espécie de “bramanismo esotérico” — inexistente — ou um “fakirismo” ocidental. A palavra árabe faqīr, como o termo persa dervish — ambos às vezes usados como sinônimos de “sufi” — significa “pobre” ou “mendigo”. As pessoas chamadas de “faquires” pelos viajantes europeus são (sejam faquires ou não) na realidade magos. O autor deixa claro como a magia, embora seja uma “ciência experimental” válida, capaz de produzir fenômenos reais, é extremamente perigosa, motivo pelo qual é desencorajada pelas autoridades tradicionais em toda a Ásia, assim como o era na Antiguidade clássica. Magia e espiritualismo são radicalmente opostos, já que o mago, como o hipnotizador, é um agente ativo com objetivo definido, ao passo que o médium, como o sujeito hipnótico, está passivamente aberto a quaisquer influências. Nem a magia nem a mediunidade, contudo, podem ser explicadas por simples hipnotismo. Nas sociedades tradicionais, a mediunidade é vista como calamidade, sendo considerada um caso de possessão demoníaca; a ideia de elevar tal possessão ao posto de dom espiritual é inteiramente moderna e ocidental. Quanto à “evocação” deliberada de “espíritos”, ela sempre foi tida como crime grave, o crime de necromancia. As forças evocadas, porém, não são “almas dos mortos”, e sim resíduos psíquicos perigosos aderidos ao cadáver, o que explica por que magos negros gostam de frequentar cemitérios. Esses resíduos, que os hebreus chamavam ob, são idênticos aos manes romanos.

A afirmação de Guénon de que as sociedades tradicionais tinham uma atitude negativa em relação à magia precisa, porém, ser qualificada. Isso é certamente verdadeiro para as sociedades fundadas sobre o Judaísmo, o Cristianismo, o Islã, o Hinduísmo vedântico (ainda que não para a sociedade hindu como um todo, que abarca muitas formas de religião popular em que a magia, para o bem ou para o mal, desempenha um papel) e a maioria das formas de Budismo. A magia, especialmente a feitiçaria e a bruxaria, também era em grande parte malvista no paganismo pré-cristão da Europa e do Oriente Próximo, embora os cultos oficiais dessas sociedades pudessem conter elementos que hoje chamaríamos de mágicos. Segundo The Golden Bough, de Sir James Frazer, até mesmo os druidas celtas queimavam bruxas. Quando consideramos, porém, a grande área cultural da Ásia setentrional/central que deu origem ao xamanismo, a posição de Guénon precisa ser modificada. E, embora Confúcio tenha dito certa vez: “acredito nos seres sobrenaturais, mas os mantenho à distância”, o taoísmo e o xintoísmo incorporaram claramente elementos xamânicos, por meio dos quais as forças benéficas do cosmos eram invocadas para o bem geral do povo, ao passo que, no caso único do budismo vajrayāna do Tibete e do budismo Tiantai da China — ou de algumas de suas formas — forças semelhantes foram colocadas a serviço da Iluminação Total Perfeita. E embora as tradições da Ásia oriental pareçam ser, entre as “religiões mundiais”, as únicas a manter uma ligação ininterrupta com o xamanismo (a menos que consideremos a ioga indiana e certas práticas do sufismo centro-asiático como em certa medida xamânicas), a função de invocar forças espirituais para a proteção da sociedade e a cura de doenças sempre foi parte integral de qualquer sociedade baseada na religião — em outras palavras, de qualquer sociedade tradicional. A questão é: de que nível ontológico se extrai tal poder? A sociedade em questão é destinatária direta, por meio de revelação, de um raio do Absoluto? Ela invoca forças angélicas para cura, fertilidade e proteção contra forças mais demoníacas? Em que ponto, tendo perdido o contato direto com os mundos angélicos, ela começa a apaziguar essas forças demoníacas para mantê-las satisfeitas? E quando tal apaziguamento do mal se transforma em serviço direto a ele? Questões como essas, especialmente quando lidamos com sociedades “primitivas”, precisam ser respondidas caso a caso.

Neste ponto é necessário dizer algo sobre o xamanismo. O interesse pelo xamanismo fora das sociedades tribais tradicionais não era tão difundido em 1921 quanto é hoje, embora Guénon o tenha tratado brevemente em The Reign of Quantity, onde admite que provavelmente representa uma tradição espiritual válida, embora em estado de séria degeneração. Diante disso, pode a avaliação negativa de Guénon sobre a magia ser aplicada ao xamanismo também? A resposta depende de muitos fatores. Em seu melhor, o xamanismo é uma espécie de “teurgia hiperbórea” mediante a qual o xamã, através de sofrimento ascético voluntário, se coloca conscientemente sob a guia de seu daimon ou genius ou “anjo da guarda”, o arquétipo específico ou “Nome de Deus” com o qual tem afinidade intrínseca “pré-eterna”. Mas os loas ou mystères do vudu são, em sua origem, precisamente tais Nomes de Deus — e o vudu (como o obeah e a santeria), embora apresente sinais de derivar de um antigo “esoterismo” provavelmente sincrético, em que elementos africanos tropicais, egípcios, hebraicos, e até cristãos e helenísticos se entrecruzaram, é claramente uma tradição degenerada e contaminada, envolvida com, ainda que não estritamente idêntica a, magia negra demoníaca. Além disso, até a alta “teurgia” dos neoplatônicos resvalou na direção da magia à medida que a tradição que lhes deu origem se enfraquecia. Tudo o que se pode dizer sobre o xamanismo é que, embora parte dele represente uma verdadeira espiritualidade tradicional, revelada por Deus aos siberianos e nativos americanos tanto quanto a Torá aos hebreus ou o Alcorão aos árabes, grande parte do que hoje passa por xamanismo em círculos Nova Era e neopagãos, e até entre alguns nativos americanos, é degenerado, boa parte é espúria e alguma parte é má.

Guénon distingue entre magia e teurgia, situadas em níveis vastamente diferentes, sendo a teurgia a intervenção de poderes celestes. O poder numinoso da Arca da Aliança e do Templo de Jerusalém, de ícones sagrados e lugares santos, dos túmulos de santos, e do “ensombramento” de várias ordens sufis pela barakah (graça) de seus shaykhs fundadores, que podem ter morrido há séculos, são exemplos de teurgia, não de magia. Essa distinção de níveis, porém, é precisamente o que a mente pós-moderna já não consegue perceber. Magos contemporâneos rotineiramente retratarão a distinção entre o “mágico” e o “milagroso” apenas em termos de poder político e social. “Se alguém na Igreja realiza maravilhas”, queixam-se, “chama-se milagre; se fazemos a mesma coisa, carimba-se como magia.” Na realidade, as duas coisas não são idênticas, mas nem os magos, nem em alguns casos os próprios eclesiásticos, já conseguem notar a diferença.

Guénon rastreia a relação entre espiritualismo e ocultismo. Ele define como “ocultismo” o movimento derivado de Eliphas Levi (nome real Alphonse-Louis Constant, m. 1875) e posteriormente popularizado por Papus (Gérard Encausse), que rompeu com a Sociedade Teosófica em 1890. (Madame Blavatsky usava “ocultismo” como sinônimo de sua “Teosofia”, mas Guénon distingue os dois movimentos, embora sejam obviamente primos próximos.) O ocultismo é o resultado de uma tentativa equivocada de redescobrir, ou reinventar, o esoterismo iniciático. Tende a ser mais centralizado, mais intelectual ou ao menos pseudo-intelectual de forma elaborada, e mais elitista do que o espiritualismo, que resiste à centralização e gravita em direção ao pluralismo, ao sentimentalismo e à democracia. O ocultismo está também impregnado do espírito do “cientificismo”, que o levou a buscar a produção de fenômenos experimentalmente verificáveis, desqualificando-o totalmente como até mesmo uma aproximação do esoterismo tradicional. Os ocultistas franceses geralmente se opunham ao espiritualismo; contudo, seu próprio ecletismo às vezes levou a tentativas de aproximação. E tanto o ocultismo quanto a Teosofia, sem admiti-lo, tomaram de empréstimo várias doutrinas ao espiritualismo, incluindo a da reencarnação. Nessa polarização entre ocultismo e espiritualismo podemos ver as raízes da divergência atual entre o semi- ou pseudo-tradicional “ocultismo literário”, como o de Jocelyn Godwin e outros, e a Nova Era propriamente dita — representada, por exemplo, por Shirley MacLaine — com seu populismo solto do tipo “você também pode” e sua deliberada vocação para o grande público. O ocultismo literário parece, no momento, ganhar terreno sobre a Nova Era, ao menos do meu ponto de vista, já que dá a ilusão de substância quando comparado à fluidez etérea das ideias novaeristas. Se Deepak Chopra representa a comercialização de ideias pseudo-hindus para um público Nova Era (The Seven Spiritual Laws of Success), e James Redfield (The Celestine Prophecy) uma ideologia especificamente Nova Era, entre muitas, William Quinn (The Only Tradition) é um exemplo de ocultismo literário tentando obter legitimidade acadêmica — e, até certo ponto, conseguindo (ver os Capítulos Quatro e Oito).

Guénon admite que muitos “fenômenos psíquicos”, incluindo os produzidos por médiuns, são reais. Mas esse fato, por si só, em nada valida a explicação espiritualista de tais fenômenos, que podem ter muitas causas diferentes. A mediunidade, mesmo quando os fenômenos produzidos são genuínos, permanece uma forma de doença mental. Algumas “obsessões espirituais” são simplesmente casos de personalidade múltipla. Além disso, até médiuns verdadeiros podem recorrer à fraude, especialmente os “profissionais”. Dado que seus poderes não estão sob seu próprio controle, precisam de tempos em tempos suplementá-los por outros meios, já que “o espetáculo não pode parar”. Os médiuns às vezes também são mentirosos patológicos.

A tentativa de cientistas de investigar empiricamente os fenômenos psíquicos é viciada desde o início, uma vez que muitos investigadores ignoram as dinâmicas psicológicas que operam em personalidades instáveis, e praticamente nenhum deles compreende os princípios metafísicos, especificamente a distinção ontológica entre o plano psíquico e o espiritual. Um resultado disso é que médiuns altamente psíquicos e sugestionáveis podem canalizar “espíritos” que, para deleite do pesquisador, confirmam estrondosamente todas as suas teorias preferidas — teorias que, naturalmente, o médium está apenas extraindo diretamente da mente do próprio investigador. Competência em um ramo da ciência física não garante de modo algum a objetividade de um pesquisador diante de coisas como transtornos de personalidade e fenômenos psíquicos (ou, acrescentaria eu, ilusionismo de palco).

Os espiritualistas, como os ocultistas, tendem a uma ideologia humanista e anticatólica, algo que continua verdadeiro até hoje, ao menos quanto ao anticatolicismo. Tanto Jane Roberts, do material Seth, quanto Helen Schucman, canalizadora de A Course in Miracles, eram ex-católicas ressentidas com a Igreja; o mesmo provavelmente pode ser dito de Carlos Castaneda. E The Celestine Prophecy, de James Redfield, é um ataque direto ao catolicismo tradicional. Guénon cita uma passagem do espiritualista francês Charles Fauvety, em que este declara que a moralidade será um dia um ramo da ciência, não da religião, que uma fé mística na Ciência com “c” maiúsculo derrubará a autoridade de todos os sacerdócios. (Sou lembrado aqui do fato, interessante, de que foi o congressista e espiritualista Robert Dale Owen quem apresentou pela primeira vez o projeto de lei que deu origem ao Smithsonian Institution, o templo americano do cientificismo, onde os devotos do deus americano da Técnica podem venerar diariamente o “Spirit” of St. Louis e outros ídolos.)

Guénon caracteriza filosofias como o espiritualismo do psicólogo William James, que ele abraçou no fim da vida (embora o pai de James tenha sido seguidor de Swedenborg), bem como as tendências espiritualistas do filósofo Henri Bergson, como “satanismo inconsciente”. James prometeu fazer tudo que estivesse em seu poder para se comunicar com os vivos após a morte; o autor não se surpreende, portanto, que uma multidão de médiuns americanos tenha diligentemente recebido “mensagens” dele — a mais recente delas sendo Jane Roberts, que publicou, em 1978, um livro intitulado The Afterdeath Journal of an American Philosopher: The World View of William James.

O que se segue é o comentário do próprio autor sobre a validade do “material canalizado”:

Como o vejo, tal material pode ser distribuído em cinco categorias: (1) bobagens banais; (2) fantasias psicóticas; (3) prognósticos ou percepções clarividentes que se revelam exatas; (4) filosofias falsas; e (5) filosofias contendo elementos de verdade. As categorias 1, 2 e 4 podem ser explicadas em termos de doença mental e/ou obsessão demoníaca, embora nem sempre seja fácil distinguir ambas, sobretudo porque podem estar presentes ao mesmo tempo em uma mesma alma. As categorias 3 e 5 são mais difíceis de caracterizar. Uma visão psíquica exata de uma condição física, passada, presente ou futura (categoria 3), pode ser simplesmente caso de um talento natural, ainda que relativamente raro; pode ser sinal de intervenção angélica, sobretudo quando resulta em cura, proteção contra perigo ou esclarecimento de um dilema moral; pode também, em qualquer caso particular, ser exemplo de ilusão demoníaca. Quanto à categoria 5, filosofias “canalizadas” contendo elementos de verdade podem representar tentativa, por parte de poderes celestes, de ressuscitar certos aspectos da sabedoria tradicional que as pessoas de uma dada região e período histórico perderam, mas não há garantia de que seja esse o pode ser o caso em qualquer instância concreta. As doutrinas de Emmanuel Swedenborg, por exemplo — cientista físico de muitos talentos que se tornou visionário espiritual — representam talvez a categoria mais elevada de “filosofia de espíritos”. Seu Divine Love and Wisdom contém elementos que lembram o aristotelismo esotérico desenvolvido dentro da tradição islâmica. Sua doutrina dos anjos é em alguns aspectos semelhante à doutrina cristã ortodoxa de Dionísio Areopagita, e sua imagem do Homem Universal a doutrinas análogas que podem ser encontradas nos Padres da Igreja, na Cabala, e nos sufis e teósofos do Islã. Podemos especular que, dado que tais doutrinas não estavam disponíveis para um luterano sueco do século XVIII, foi necessário reintroduzi-las por meio de inspiração direta. Por outro lado, isso talvez não seja exato. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge and the Sacred, aponta que o luteranismo abraçou uma tradição teosófica, alquímica e mística, representada por figuras como Sebastian Franck, Paracelso, V. Weigel, Jacob Boehme, G. Arnold, G. Gichtel, C. F. Oetinger e outros. E os cientistas físicos antes e durante a época de Swedenborg eram bem mais propensos a ter preservado interesse por “ciências esotéricas”; até Isaac Newton escreveu sobre alquimia. Assim, permanece em aberto se Swedenborg derivou suas doutrinas inteiramente de inspiração direta ou em parte por transmissão humana (ele certamente poderia ter obtido seu aristotelismo esotérico da tradição alquímica, por exemplo). Em todo caso, suas doutrinas sobre a estrutura do mundo espiritual parecem todas transpostas a um nível mais literalista do que o encontrado em muitas fontes tradicionais, qualidade que, como Guénon assinala, é comum a muitos ensinamentos “de espírito”. Ele parece inseguro se esse mundo é um domínio de símbolos vivos e corporificados de realidades invisíveis, como na doutrina ibn-arabiana do ‘ālam al-mithāl, o “plano imaginal”, ou simplesmente uma espécie de natureza material superior. E entremeadas às suas doutrinas inegavelmente elevadas há outras de caráter mais fantástico ou mesmo psicótico, como quando, em Earths in the Universe, diz que os marcianos têm rostos metade negros e metade trigueiros, vivem de frutas e se vestem com fibras feitas de casca de árvore, ou que a atmosfera da Lua é tão diferente da terrestre que os habitantes falam a partir do estômago em vez dos pulmões, com um efeito semelhante a arrotar.

No caso de Swedenborg — e o mesmo talvez se possa dizer até de ensinamentos “canalizados” menos confiáveis, como o material Seth e A Course in Miracles — é difícil determinar se a mistura de doutrina sofisticada e material duvidoso pode simplesmente ser atribuída a uma comunicação imperfeita, ou se representa, em alguns casos pelo menos, uma tentativa satânica de perverter doutrinas teológicas, filosóficas e esotéricas profundas ao associá-las com lixo. O que podemos afirmar com maior segurança é que apenas aqueles que não têm acesso a fontes confiáveis de alimento serão forçados a tomar suas refeições misturadas a lixo. Que uma grande quantidade de doutrina profunda pode ser encontrada nos escritos de Swedenborg é inegável. Mas, agora que as escrituras e os clássicos das religiões do mundo e os escritos dos maiores sábios da história estão prontamente disponíveis, já não precisamos tomá-lo, e a outros como ele, como autoridades unicamente inspiradas, já que podemos julgá-los à luz de seus “originais” ortodoxos. Como deixa claro Guénon, já não há qualquer razão para depender de fontes suspeitas, não importa quais grãos de verdade possam conter.

Guénon apresenta em grande detalhe várias ideias espiritualistas fantásticas sobre a “sobrevivência” da personalidade humana, permitindo que sua própria absurdidade fale por si mesma. Ele trata longamente da teoria da reencarnação — lembrando-nos, por exemplo, que as formas mais antigas de espiritualismo moderno, a inglesa e a americana, a negavam, e que espiritualistas notáveis como Daniel Dunglas Home se opunham a ela veementemente — e rastreia a doutrina até o espiritualismo francês, especialmente o de Allan Kardec, de onde se espalhou para a Teosofia e o ocultismo. Ele distingue claramente reencarnação, transmigração e metempsicose, com base no que nega que o hinduísmo jamais tenha ensinado as doutrinas reencarnacionistas posteriormente cozinhadas pelos espiritualistas. (Para um tratamento mais completo das ideias de Guénon sobre a impossibilidade da reencarnação e da viagem no tempo, ver o Capítulo Sete.)

Ele mostra como o espiritualismo, enraizado no Zeitgeist do século XIX, adotou a teoria evolutiva, reinterpretou-a em termos “espirituais” (como fizeram os mórmons) e a identificou com a reencarnação. Ainda se pode ver essa influência no material Seth de Jane Roberts, onde a entidade “Seth” é às vezes definida como uma “porção futura” de Jane, assim como o “Seth II”, mais sublime, distante e etéreo, é uma “porção futura” de Seth — “futura”, aqui, tomando o lugar de “ontologicamente superior”. Porém, quando o material Seth fez sua estreia, em 1963, a confiança incontestada no progresso própria do século XIX e da primeira metade do XX já começara a vacilar, em parte por causa das armas nucleares, em parte também por um “einsteinismo social” baseado em uma versão popularizada da teoria da relatividade. Essa erosão do mito do progresso, bem como várias teorias de espaço-tempo multidimensional, é provavelmente o que levou Seth, ainda em muitos aspectos um “progressivista macrocósmico”, a falar da evolução biológica como conceito muito estreito e simplista, e das vidas reencarnacionais como fundamentalmente simultâneas em vez de sucessivas.

Guénon trata então da relação entre espiritualismo e satanismo, caracterizando como satanismo inconsciente qualquer doutrina subversiva à metafísica tradicional. Ele relata uma série de histórias sugestivas de influência demoníaca em círculos espiritualistas, ou ao menos de emanações tóxicas provenientes do subconsciente que, segundo ele, não são menos demoníacas em seus efeitos. Elas incluem escândalos sexuais de cunho sádico, bem como histórias de relações sexuais com íncubos, como as que frequentemente aparecem no folclore contemporâneo sobre UFOs. Detalha as tentativas repetidas de espiritualistas franceses de perverter e deturpar a doutrina católica, mencionando um panfleto difamatório sobre a Eucaristia que afirmava que “Jesus não estava inteiramente orgulhoso do papel clerical que desempenhou”, em termos altamente reminiscentes do material Seth. Menciona grupos como a Mental Science e a Christian Science que (como A Course in Miracles) negam a realidade do mal, fortalecendo assim a mão das forças demoníacas. Prossegue falando do espiritualismo como movimento quase político com grandes recursos de propaganda, caracterizando-o como grave perigo para a segurança pública.

Ele admite a validade, em certos casos, da clarividência e da cura psíquica, ainda que tais fenômenos permaneçam altamente ambíguos. Mas esses poderes psíquicos de modo algum provam que espiritualistas possam manter comércio contínuo com as almas dos mortos, mesmo se é assim que os próprios praticantes explicam suas habilidades. Os fenômenos, diz Guénon, jamais podem provar a verdade ou falsidade de uma doutrina. Por fim, fala dos perigos do espiritualismo para os próprios praticantes, relatando muitos casos de colapso mental, emocional e físico, epilepsia etc.

The Spiritist Fallacy é também valioso pela luz histórica que lança sobre a crença em “alienígenas” e UFOs. Muitos espiritualistas, segundo Guénon, acreditam que espíritos desencarnados ocupam o espaço. Ele cita um certo Ernest Bosc, que os chama de “nossos amigos no Espaço”, em resposta a um artigo publicado em 1913 na revista espiritualista Fraternist. Pode ser significativo que, cinquenta e cinco anos depois, os hippies chamassem extraterrestres de “irmãos do espaço”, e que o movimento Nova Era desde os anos 70 praticamente tenha apagado a distinção entre alienígenas espaciais e espíritos desencarnados.

Guénon menciona, como exemplo das pretensões infladas dos espiritualistas americanos, um grupo que se chamava “Ancient Order of Melchizedek”. Fala também de uma “Esoteric Fraternity” em Boston, liderada pelo cego Hiram Butler. Curiosamente, essa mesma Ordem de Melquisedeque, bem como Hiram Butler — que também, ao que parece, fundou um grupo do mesmo nome na Califórnia, em 1889, numa fazenda comunitária na encosta da Sierra — reaparecem em Messengers of Deception (1979), do pesquisador de UFOs Jacques Vallée. Vallée investigou vários grupos, tanto na França quanto nos Estados Unidos, que se denominavam Ordem de Melquisedeque, e descreveu a figura de Melquisedeque, o mestre de Abraão no livro do Gênesis, que não tinha pai nem mãe, como “um símbolo e um ponto de reunião para contatados de discos voadores” (ver Capítulo Sete). Assim, parece possível que a crença generalizada em UFOs, se não a proliferação do próprio fenômeno, esteja entre os frutos sociais e psicológicos do movimento espiritualista do final do século XIX e início do XX, que é, de tantas maneiras, o ancestral direto do movimento Nova Era de hoje.

Em The Spiritist Fallacy, Guénon diz o seguinte:

O que vemos… no espiritualismo e em outros movimentos semelhantes são as influências que incontestavelmente vêm do que alguns chamaram de “Reino do Anticristo”. Essa designação pode ser tomada simbolicamente, mas isso nada muda quanto à realidade e não torna essas influências menos malignas. Decerto aqueles que participam de tais movimentos, e mesmo os que acreditam dirigi-los, podem nada saber disso. É isso que torna tudo isso tão perigoso, pois muitos deles certamente fugiriam de horror se reconhecessem que são servos das “potências das trevas”. Mas sua cegueira é muitas vezes incurável, e sua boa-fé até contribui para que atraiam outras vítimas. Não nos permite isso dizer que o talento supremo do diabo, qualquer que seja a forma como o concebamos, é nos levar a negar sua existência?

O que é a Nova Era?

As falsificações pseudotradicionais, às quais pertencem todas as desnaturações das ideias de tradição… tomam sua forma mais perigosa na “pseudoiniciação”, primeiro porque nela se traduzem em ação efetiva em vez de permanecer na forma de concepções mais ou menos vagas, e em segundo lugar porque atacam a tradição pelo interior, naquilo que é seu próprio espírito, a saber, o domínio esotérico e iniciático.
RENÉ GUÉNON, The Reign of Quantity and the Signs of the Times

O erro central da Nova Era é a crença de que a Verdade espiritual possa ser nova. Certamente a informação bruta pode ser nova. O conhecimento do mundo material muda necessariamente o tempo todo, mas a Verdade em si não pode mudar. Ela nada tem a ver com o mundo material, regido por acontecimentos, nem com o mundo psíquico, regido por crenças. Ela é a Rocha dos Séculos, o Sempre Assim.

Se você acredita que o mundo como um todo possa evoluir ou progredir espiritualmente, precisa acreditar que a Verdade possa ser nova. Toda a metafísica tradicional, porém, nega isso. O Sempre Assim é revelado num único relâmpago; esta é a Palavra, o Logos, o Princípio eterno. Quaisquer reflexos desse Princípio que tenham entrado em matéria, energia, espaço e tempo — e, ao fazê-lo, os criado — já começaram a morrer. “Toda matéria está sujeita à entropia”, diz a Segunda Lei da Termodinâmica. “Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda. “Tudo perece”, diz o Alcorão Sagrado, “exceto Sua Face”.

As doutrinas da Nova Era são, em certo nível, uma tentativa de conectar uma metafísica tradicional mal compreendida com ideias progressistas e evolucionistas que lhes são totalmente incompatíveis. Por esse motivo, não podem funcionar como um Caminho espiritual completo. Toda a sinceridade, auto-sacrifício, sensibilidade psíquica e ambição espiritual do mundo não podem transformar a falsidade, ou a meia-verdade, no Sempre Assim.

Os proponentes das ideias Nova Era pensaram estar descobrindo, ou reinventando, as Verdades dos Séculos. Estavam apenas distorcendo-as. A Verdade sempre foi conhecida pelo gênero humano, no núcleo consciente da raça se não na mente de cada indivíduo, porque a Forma Humana é o espelho dessa Verdade neste mundo. E desde que a unidade primeira da humanidade envelheceu, os canais mais profundos dessa Verdade têm sido as grandes religiões reveladas por Deus. No nível dos primeiros princípios, que cada religião guarda em sua linguagem única e providencial, nada precisa ser inventado, nem reconstruído, nem aperfeiçoado. E nada pode sê-lo. Certamente as verdades dos séculos devem ser expressas de modo diferente em tempos e lugares diferentes, mas tais mudanças de expressão não passam de traduções. Não são, e não podem ser, revisões.

I. Uma breve história da “revolução espiritual” e do movimento Nova Era

Aqueles de nós que se lembram da “revolução espiritual” dos anos 60 e do movimento Nova Era que tomou o seu lugar, em algum momento nos anos 70, depois que aquela revolução morreu, terão ou testemunhado passivamente ou participado ativamente de um surto de idealismo. Psicodélicos, meditação, religiões orientais e conhecimento psíquico ou oculto haviam transformado tão profundamente aqueles que foram atraídos por eles — para o bem e para o mal, como veio a provar — que tudo o que precisávamos fazer, pensávamos, era difundi-los mais. Assim como o início e meados do século XX pediram educação e cultura para as massas, nós pedíamos iluminação em massa. O que parecia bom para nós no mundo interior de nossas almas, acreditávamos, tinha de ser bom para a sociedade como um todo. O legado do antigo reavivalismo americano de repente encontrou as drogas psicodélicas, religiões exóticas, ideias do século XX sobre evolução e progresso, e o choque da guerra do Vietnã para produzir uma atitude de “tudo ou nada”: “dê-me a Iluminação ou dê-me a Morte; Apocalipse Now”.

À medida que a mania dos anos 60 se atenuou na introversão dos anos 70, o espírito do reavivalismo populista americano foi substituído pelo igualmente americano espírito do charlatanismo religioso, psicológico e psíquico. A estranha mistura sessentista de misticismo tradicional e religião oriental com magia, ocultismo, mediunidade, poderes psíquicos, política de esquerda e os primeiros germes de um cientificismo mágico sofreu uma virada; o espírito empreendedor da pequena burguesia tinha entrado na arena das espiritualidades “alternativas”. E com essa mudança de ênfase, aquilo que passou a ser chamado de Nova Era substituiu (em parte) o ethos “hippie”.

Inúmeras novas abordagens à espiritualidade, à psicoterapia e ao desenvolvimento psíquico tomaram lugar ao lado dos sobreviventes de um mundo mais antigo de espiritualismo e Teosofia, Rosacrucianismo e ocultismo literário, que assim ganharam uma sobrevida.

A Nova Era ainda prestava homenagem ao misticismo, à autotranscendência e à ideia oriental de iluminação ou libertação. No entanto, o verdadeiro centro havia se deslocado para a tentativa de satisfazer os velhos e comprovados desejos de segurança, prazer e poder por meios sutis ou mágicos — desenvolvimento inevitável, uma vez que o ethos dos anos 60 só conseguiu popularizar o misticismo em nível de massa ao associá-lo, por meio das drogas psicodélicas, à autoindulgência desenfreada. Seja como neopaganismo, como impulso de desenvolver poderes psíquicos segundo o modelo Nova Era, como atração pelo xamanismo ou como atração infinitamente mais sombria pelas práticas satânicas, a magia havia efetivamente substituído a iluminação como paradigma dominante do mundo das espiritualidades alternativas no início da década de 1980.

Infelizmente, tanto na mente do público quanto, em certa medida, na própria realidade, as práticas psíquicas e mágicas, por um lado, e o misticismo e a metafísica tradicionais, por outro, foram jogadas no mesmo saco. Chegou a hora de separá-las. Até agora a Nova Era tem sido criticada principalmente por materialistas — céticos desmascaradores — e por cristãos conservadores, que dão a impressão (para o desinformado) de agir simplesmente por interesse próprio ameaçado, como um candidato que joga lama no adversário. A crítica presente está entre as raríssimas que se baseiam não em exclusivismo religioso militante, nem na defesa modernista da “realidade comum”, mas na religião comparada e na metafísica tradicional.

A “Nova Era” não poderia existir como movimento sem antecipar uma transformação espiritual e cultural de massa num futuro (perpetuamente) imediato; tal antecipação, porém, já existe há bastante tempo. Então, quando começou a Nova Era, enquanto movimento? O gurdjieffiano A.R. Orage editou antes da Primeira Guerra Mundial uma revista muito influente chamada The New Age; Swedenborg falou de uma nova era nascente, e ideias semelhantes remontam ao menos a Joaquim de Fiore, na cristandade medieval, e incluem grupos como os Illuminati, que floresceram à época da Revolução Francesa, bem como os maçons e rosacrucianos. Há boas razões, entretanto, para rastrear suas raízes principais até o Renascimento, quando o renascimento dos estudos clássicos gerou uma massa de especulação “esotérica”. (Certa vez ouvi Peter Caddy [de Findhorn] afirmar, numa palestra, que a Nova Era começou com o filósofo inglês do fim do Renascimento, Francis Bacon.) Embora parte dessa especulação fosse tradicionalmente válida e a maior parte ao menos nominalmente cristã, ela não pôde ser inteiramente contida dentro da ortodoxia católica. Isso foi sem dúvida, em parte, uma compensação para a solidificação da mente cristã sob o escolasticismo, e para a traição completa da metafísica cristã pelo nominalismo escolástico. Os nominalistas acreditavam que todas as distinções entre as coisas são apenas linguísticas, e negavam que algo acima da experiência sensorial pudesse ser conhecido pela mente, fazendo do nominalismo o verdadeiro primeiro ancestral tanto do naturalismo modernista quanto do relativismo pós-moderno.

Os Estados Unidos sempre tiveram um setor Nova Era. Muitos dos pais fundadores eram maçons, razão pela qual temos uma pirâmide encimada por um olho radiante no verso das cédulas de dólar. Os transcendentalistas da Nova Inglaterra e seus afins foram, em muitos aspectos, os ancestrais diretos tanto das comunas hippies dos anos 60 quanto da Nova Era de hoje. E os Shakers, produto puramente americano embora fundados por uma inglesa, começaram como espécie de ordem monástica leiga dentro do protestantismo, tornaram-se pioneiros em “tecnologia apropriada”, passaram a canalizar entidades espirituais e acabaram advogando um Governo Mundial único na época de Teddy Roosevelt.

Um estudo completo sequer das raízes americanas do movimento Nova Era ocuparia um livro inteiro; por mim, só posso falar com alguma autoridade do período que vai da “revolução espiritual” dos anos 60 até cerca de 1988. E ainda que eu estivesse, em muitos sentidos, no olho do furacão aqui no condado de Marin, Califórnia, o leitor deve entender que qualquer número de outras perspectivas sobre esse período, e outras listas de leitura, podem ser tão precisas quanto, se não mais.

Uma boa visão histórica do paradigma psíquico em que a Nova Era se baseia em larga medida é The Occult, de Colin Wilson (Vintage Books, 1973). Escrito em estilo jornalístico ágil, cobre uma enorme extensão de terreno. Embora inclua material de todos os períodos históricos, sua história básica abrange o ocultismo do século XVIII até Blavatsky e Gurdjieff (e ele certamente não se furta a relatar escândalos associados a essas duas figuras, já que rendem “boa matéria”), mas também traz algumas de suas linhas de investigação até as décadas de 1950 e 60, tocando, entre outras coisas, o fenômeno dos UFOs. E é valioso por mostrar muitas das conexões entre o ocultismo e tanto o xamanismo primitivo quanto a ciência moderna.

Outro livro importante foi The Morning of the Magicians (Avon Books, 1968; título inglês anterior The Dawn of Magic), de Louis Pauwels e Jacques Bergier, que trata longamente do ocultismo entre os nazistas (que os autores, é claro, deploram, mas também parecem invejar) e anuncia a vinda da futura Tecno-Magocracia mundial. Bergier é um guénoniano renegado que se tornou adepto do futurismo tecnocrático. Outro livro importante sobre a interface entre tecnologia e poderes psíquicos foi Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain, de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, publicado nos anos 70; os “visionários à distância” (remote viewers) que vieram a público em 1997, aparentemente participantes de um programa patrocinado pelo governo americano para treinar videntes para espionagem, foram sem dúvida parte da “corrida armamentista psíquica” anunciada nesse livro.

Uma das principais diferenças entre o ocultismo pós-guerra e o pré-guerra é o fenômeno UFO, prevalente desde o fim dos anos 40. O mito UFO fez parte do ethos da Era Psicodélica — muitos hippies falavam da “Nave-Mãe” que se supunha estar pairando sobre a Terra — mas de modo algum era dominante. A experiência psicodélica foi o paradigma principal de, digamos, 1965 até talvez 1972 ou 74; os principais defensores da espiritualidade psicodélica foram Ralph Metzner, Timothy Leary, Richard Alpert (Ram Dass), R. E. L. Masters & Jean Houston (The Varieties of the Psychedelic Experience) e John Lilly (The Center of the Cyclone, que apresenta uma abordagem psicodélica a “guias espirituais”). Leary foi o homem de relações públicas do movimento, e um verdadeiro excêntrico; dois livros representativos são The Psychedelic Experience, em que aplica o paradigma do Livro Tibetano dos Mortos à experiência com LSD, e The Politics of Ecstasy.

A figura mais genuína entre todos foi — e é — Ram Dass. Ele pode ser chamado o mais recente, senão o último, na linhagem dos perenialistas semi- ou não-tradicionais, que passa por Aldous Huxley e Alan Watts. Introduziu grande quantidade de material tradicional das religiões do mundo no universo hippie; sem ele, talvez eu jamais tivesse encontrado Schuon e a Escola Tradicionalista. Seus livros incluem Be Here Now, Grist for the Mill, The Only Dance There Is e, em época posterior, livros sobre serviço social como karma-yoga, como How Can I Help? Seus livros “de consciência” misturam metafísica tradicional, experiência psíquica e psicodélica e hinduísmo mais ou menos tradicional (hinduísmo para o Ocidente, isto é, que ignora o requisito tradicional de nascimento em uma das varnas, as castas). Foi em grande parte através dele que a doutrina tradicional de que a busca de poderes psíquicos bloqueia o desenvolvimento espiritual penetrou no mundo hippie e se tornou, ao menos por breve tempo, um clichê. Ele também tem a disposição de admitir que os gurus indianos que vieram ao Ocidente em sua maioria não representavam o que havia de melhor no hinduísmo. E, se há algo que separa Ram Dass da Nova Era como tal, é o fato de que ele não é evolucionista, espiritual ou de qualquer outro tipo.

À medida que o ethos psicodélico começou a declinar em meados dos anos 70, o paradigma Nova Era assumiu, baseado na canalização de “entidades”, no desenvolvimento de poderes psíquicos segundo o modelo do “potencial humano” (emanando em parte do Esalen Institute e incluindo o movimento da Psicologia Transpessoal, com figuras como Stanislas Grof, que também tem um histórico em pesquisa psicodélica), na crença em UFOs e na ideia de que a evolução da Terra está prestes a dar um “salto quântico”, conduzindo-nos através de uma mudança de paradigma que devemos ajudar por meio de um alinhamento coletivo de consciências.

A obra de Ram Dass e Timothy Leary estende-se até a primeira era Nova Era pós-anos 60. Ram Dass envolveu-se com canalização ao patrocinar os livros Emmanuel [de Pat Rodegast], e Leary, acompanhando os tempos, começou a captar o paradigma tecnocrático/UFO. A “canalização” está no centro da Nova Era, mas, antes de tratá-la, preciso mencionar outra figura seminal no movimento psicodélico, Carlos Castaneda, que quase sozinho reconectou a experiência psicodélica com o paradigma do xamanismo — ao menos no plano literário; inúmeros hippies se espalhavam pelo mundo em busca de novos psicodélicos, procurando homens-medicina no sudoeste americano e nas selvas da África e da América Latina, e trazendo à nossa atenção agentes como sementes de glória-da-manhã, o cacto San Pedro, cogumelos mágicos, yagé ou ayahuasca (todos da América Latina, sendo que a descoberta do yagé pela contracultura norte-americana havia sido pioneiramente realizada pelos escritores da Geração Beat William Burroughs e Allen Ginsberg em suas viagens à Amazônia), e ibogaina (da África). O peiote, por meio da Native American Church e de The Doors of Perception, de Aldous Huxley, provavelmente era conhecido um pouco antes, assim como o óxido nitroso via The Varieties of the Religious Experience, de William James; o poeta da Geração Beat Michael McClure, entre outros, escreveu sobre suas experiências com peiote. Mas foi Castaneda quem reuniu grande parte desse interesse e o conectou ao xamanismo e especialmente à feitiçaria. Seus livros são relatos pseudo-documentais bem escritos de suas interações com o feiticeiro yaqui Dom Juan Matus, seus colegas e aprendizes, no México. Entre eles estão The Teachings of Don Juan; A Separate Reality; Journey to Ixtlan; Tales of Power; The Second Ring of Power; The Eagle’s Gift; The Fire from Within; The Power of Silence; The Art of Dreaming; Magical Passes; e The Wheel of Time.

A outra grande influência nativo-americana sobre o movimento hippie foi o belo e profundamente espiritual Black Elk Speaks, de John G. Neihardt, mas a influência de Castaneda foi maior e não apenas desviou o interesse hippie pelos nativo-americanos da piedade religiosa em direção à magia, como também criou um “mercado”, entre brancos, para todo tipo de homem- ou mulher-medicina indígena americana, do genuíno ao sinistro passando pelo completo charlatão — produzindo, por exemplo, derivados caucasianos superficiais como Lynn Andrews.

Uma das divergências mais nítidas no mundo das espiritualidades “alternativas” é aquela entre a New Age e o Neopaganismo. Os neopagãos que derivaram da era hippie foram conduzidos pela experiência psicodélica e pelo espírito da época na direção da Wicca gardneriana e de outras formas de Wicca, ou do romantismo céltico, ou de várias formas de culto à Deusa (especialmente aquele promovido por Robert Graves), ou ainda em direção a influências — ao menos literárias — emanadas da Ordem da Aurora Dourada (Order of the Golden Dawn). Eu mesmo fui profundamente tocado pelos poderosos ecos do Renascimento Celta que se enredaram como um fio mágico pela revolução espiritual dos anos 60. Eles prometiam um “reencantamento do mundo” diante de nosso deserto tecnológico, uma redescoberta coletiva do caráter sagrado da natureza. E pareciam ter o poder de lançar um brilho mágico sobre o reino do amor heterossexual, lembrando-nos de sua profundidade trans-pessoal e nobreza. Infelizmente, porém, o paradigma mágico sobre o qual esse renascimento neopagão se baseava tinha afinidades secretas com aquela outra forma de magia, a tecnologia humana; esta foi uma das mais profundas e dolorosas ironias da luta desesperada da minha geração para recuperar o sagrado. Não por acaso “Fantasia (neopagã) e Ficção Científica” constitui um único gênero literário.

Numa extremidade do espectro, encontramos neopagãos na companhia de ocultistas literários bem-educados, como muitos dos que publicavam na revista Gnosis, por exemplo, mas eles também incluem, em suas fileiras, consumidores de drogas psicodélicas que “brincam” com magia, bem como praticantes “sérios” da arte, na outra extremidade. O nome do mago negro Aleister Crowley é bem conhecido nesse meio, mesmo quando não é respeitado.

Neopaganismo, xamanismo pop e culto à Deusa tendem a formar uma única subcultura, e todos os três geralmente compartilham um interesse de fundo em mitologia e mitopoesia, muitas vezes mediado pelas teorias psicológicas de Carl Jung. O aspecto mais “mainstream” desse ethos é, ou era, representado por Joseph Campbell; outro afluente foi a comunidade experimental de Findhorn, na Escócia, apresentada nos livros de Peter e Eileen Caddy (The Magic of Findhorn) e outros, onde a interação humana com espíritos elementais aparentemente produziu manifestações aparentemente impossíveis de fertilidade vegetal. Para minha sensibilidade, as experiências de Findhorn transmitem uma sensação feérica semelhante à que cerca outros “magos da horticultura”, como George Washington Carver e Luther Burbank (cuja obra ainda emana uma aura perceptível em sua casa em Santa Rosa), senão Rudolf Steiner. Na década de 1970, o ocultismo da horticultura, que inclui tanto magia quanto tecnologia “de fronteira”, foi catalogado num livro intitulado The Secret Life of Plants (A Vida Secreta das Plantas), de Peter Tompkins. A magia horticultural como um todo deve muito ao movimento da Naturphilosophie alemã, no qual Goethe — influência seminal tanto sobre Jung quanto sobre Steiner — foi figura central.

Por meio de figuras como o ex-padre católico Matthew Fox e sua colega, a bruxa Starhawk, o Neopaganismo (e isso vale em dobro para o junguianismo) fez vastas incursões no cristianismo norte-americano, particularmente por meio de seminários liberais como o Union Theological Seminary e o GTU. Em contraste com os neopagãos, os praticantes da New Age tendem a ser mais fascinados por tecnologia avançada, mais voltados ao “canalização” (channeling) e, em geral, menos literários, embora muitas vezes mais bem-sucedidos profissionalmente ou mais “yuppies” que os neopagãos. Ainda assim, existe um grande cruzamento entre os dois grupos. José Argüelles, por exemplo, que criou, através de seu livro The Mayan Factor, um dos primeiros eventos religiosos populares internacionais, o Harmonic Convergence, em 16–17 de agosto de 1987 (apresentado como data-chave para a mudança de paradigma da Nova Era, supostamente baseada no calendário maia), representa (ou representou) uma ponte entre essas duas tendências.

Quem quer que acompanhe a história da canalização encontrará boa parte da história da New Age desde os anos 60. O espiritualismo e a canalização New Age concentram-se na recepção de novas filosofias, que muitas vezes não passam de versões populares de ciência mal compreendida, particularmente da física einsteiniana e pós-einsteiniana e da genética moderna, na aquisição de poderes psíquicos, incluindo cura, e na tentativa de rasgar o véu do futuro. Allan Kardec e Stainton Moses, por exemplo — como Swedenborg antes deles — canalizaram filosofias inteiras do Mundo Espiritual no início do século XX, e Madame Blavatsky certamente foi profundamente influenciada pelo lado “filosófico”, assim como pelo lado mágico, do espiritualismo. O espiritualismo anterior talvez se concentrasse mais do que a canalização atual na tentativa de provar que a personalidade humana sobrevive à morte e em estabelecer contato com entes queridos falecidos em favor dos vivos, em grande parte devido ao efeito traumático da Primeira Guerra Mundial; mas tais preocupações certamente não desapareceram.

A figura-ponte mais importante entre essas duas ondas de espiritualismo provavelmente é o médico-médium em transe, clarividente histórico e prognosticador Edgar Cayce (1877–1945), cuja organização, a Association for Research and Enlightenment, ainda hoje é bastante ativa em Virginia Beach, Virgínia. Seu histórico como curador é assombroso, mas seu outro trabalho — incluindo uma série de tentativas fracassadas de encontrar petróleo ou tesouros enterrados por meios psíquicos — não esteve à altura. Seu ministério limitava-se à clarividência médica, dom que recebeu através de uma visão aos treze anos de idade, até cruzar o caminho do teosofista Arthur Lammers; depois disso, suas “leituras” começaram a tratar de assuntos ocultos como astrologia, Atlântida, reencarnação etc., aparentemente sob a influência das perguntas que Lammers lhe fazia em estado de transe. Como cristão devoto, Cayce ficou perturbado ao perceber que vinha canalizando ideias que pareciam contradizer a Bíblia, mas acabou por aceitá-las. (Lembra-se aqui a crença de Guénon de que magos e ocultistas costumam influenciar deliberadamente médiuns por sugestão, telepática ou não, para fazer parecer que suas próprias doutrinas também são ensinadas pelos “espíritos”.) Uma biografia autorizada de Cayce, There Is a River, de Thomas Sugrue, foi publicada em 1973.

Os dois conjuntos de material canalizado mais influentes por trás de grande parte da mitologia New Age são o material “Seth”, canalizado por Jane Roberts (The Seth Material; Seth Speaks; The Nature of Personal Reality e outros), e A Course in Miracles (Um Curso em Milagres), em que o orador é supostamente Jesus. Outro livro central é Opening to Channel, de Roman e Packer, escrito sobre a suposição de que todos podem — e devem — canalizar entidades psíquicas. Desde então, o número de canalizadores e de entidades canalizadas tornou-se tão vasto que quase impossível acompanhá-lo. Há a entidade Ramtha, canalizada por J. Z. Knight; e, desde os anos 70, diversas novas entidades surgiram, como Michael ou Hilarion, que podem ser canalizadas por mais de um médium. A origem desse desenvolvimento pode ser o desejo de certos escritores ou líderes de workshops de pegar carona no sucesso de outros mais conhecidos, mas o resultado foi algo como “fã-clubes psíquicos” em torno deste ou daquele espírito — possivelmente seitas religiosas em estado embrionário.

Um dos desenvolvimentos mais recentes e perturbadores na canalização New Age é a “canalização” de alienígenas, ou melhor, a quase completa confusão, na mente do público, entre entidades psíquicas e astronautas alienígenas tecnologicamente avançados. “Alienígenas” podem atravessar paredes, aparecer e desaparecer à vontade, estimular experiências fora do corpo e até manter relações sexuais conosco em sonhos — e ainda assim são vistos como seres de outros planetas que possuem tecnologias suficientemente avançadas para lhes permitir fazer essas coisas, embora essa identificação rígida de alienígenas com astronautas comece a mudar. É aqui que os escritos do padre Seraphim Rose sobre OVNIs são de importância central, como também a previsão de Guénon, em O Reino da Quantidade, de que o mundo, sob a influência do materialismo, chegaria a tal nadir de solidificação que a “grande muralha” entre os planos material e sutil começaria a rachar, permitindo a entrada de forças “infra-psíquicas”, o que ajuda a explicar por que tantos crentes devem interpretar manifestações obviamente psíquicas (com alguns efeitos físicos reais) em termos estritamente materiais. Os grupos contemporâneos seguidores de Barbara Hand Clow, que canalizam os Pleidianos (alienígenas das Plêiades), podem ser tomados como representativos desse desenvolvimento.

Talvez o anúncio inicial mais importante das esperanças e objetivos do movimento New Age tenha sido The Aquarian Conspiracy, de Marilyn Ferguson. Um ataque influente à New Age, a partir de um ponto de vista cristão evangélico, é The Hidden Dangers of the Rainbow, de Constance Cumby. Os livros de David Spangler (The Call; Everyday Miracles; Re-Imagining the World) e The Global Brain, de Peter Russell, também foram extremamente influentes.

Outros cinco fios no tecido da New Age merecem menção. O primeiro é o trabalho com sonhos (dream-work), que constitui uma ponte da psicologia junguiana e transpessoal para o mundo do oculto, em grande parte por meio do ensino de várias técnicas de controle dos sonhos e da equiparação entre experiências fora do corpo (o nome central aqui é Robert Monroe, que escreveu Journeys Out of Body e outros livros, e fundou diversas escolas para ensinar o homem comum a projetar-se astralmente) e o sonho lúcido — a experiência de despertar para o fato de que se está sonhando enquanto ainda se sonha. O sonho lúcido é elemento central na feitiçaria xamânica de Castaneda. O estudo científico desse fenômeno está associado ao Dr. Stanley Krippner, do Saybrook Institute, e ao Dr. Stephen LeBerge, em Stanford, como relatado em seu livro Lucid Dreaming; ambos conduziram pesquisas bem coordenadas e financiadas sobre sonho lúcido e controle dos sonhos. O trabalho com sonhos também é fortemente influenciado, senão em grande parte inspirado, pelo material canalizado de Seth.

O segundo fio é o interesse contemporâneo em anjos, que produziu vários livros. Ele pode representar, até certo ponto, uma forma de canalização de espíritos mais aceitável para alguns cristãos, por ser menos ameaçadora que uma conexão com “entidades psíquicas”; mas também é sinal de que o senso de transcendência sobre o qual se baseia o monoteísmo está desvanecendo do psiquismo ocidental, como ocorreu há muito tempo com grande parte das religiões africanas, deixando uma multiplicidade de “entidades” sutis para preencher o crescente vazio, as quais começam a parecer mais plausíveis, para muitas pessoas, do que um Pai-Deus distante. As interações contemporâneas com anjos incluem tanto intervenções não solicitadas quanto tentativas humanas deliberadas de comunicação.

Para mim, essa atração por anjos transmite aquela espécie de sensação leve e aérea que associo à Unity Church, e parece ligada, de forma vaga, às aparições contemporâneas da Virgem Maria, que vão desde as que provavelmente são verídicas, passando por várias manifestações parciais e suspeitas ou “canalizações” dentro de um quadro católico, até canalizações 100% New Age da “Mother Mary”, nome dado à Virgem por Paul McCartney, dos Beatles! As manifestações católicas incluem as de Scottsdale, Arizona, e Emmitsburg, Pensilvânia, ambas mediadas por uma mulher que (se entendi bem a história) foi “inspirada” por um padre ao retorno deste de Medjugorje, e então começou a receber mensagens da Virgem, primeiro no Arizona e depois na Pensilvânia. Muitas paróquias católicas aparentemente têm “clubes de Medjugorje”, iniciados por pessoas que viajaram para lá, incluindo uma em San Bruno, ao sul de San Francisco, onde crianças supostamente foram interpeladas por Maria; isso levou a uma moda altamente duvidosa, embora ainda possivelmente válida, de mensagens marianas.

O terceiro fio é o estudo das experiências de quase-morte (near-death experiences) como forma de tentar compreender a vida após a morte; os nomes principais nesse campo são Elizabeth Kübler-Ross (On Death and Dying e outros) e Raymond A. Moody (Life after Life). O livro de Moody e suas continuações, por ele próprio e por outros, atuaram no sentido de “padronizar” a concepção popular da experiência pós-morte até o ponto de se tornar um clichê midiático: o túnel escuro com uma luz ao final, o encontro com parentes falecidos etc. O padre Seraphim Rose, em The Soul After Death, faz uma boa crítica dessa visão despreocupada e “não-julgadora” da vida após a morte.

O quarto fio é, como mencionei acima, o treinamento gerencial. Um amigo meu — ou melhor, ex-amigo, já que sua vida se envolveu tanto com a escuridão espiritual que já não posso relacionar-me com ele — é consultor de treinamento gerencial de classe mundial, tendo trabalhado com grandes corporações multinacionais, tanto nos EUA quanto na orla do Pacífico. Por meio dele, fiquei sabendo que, como costumo dizer, “todo treinador gerencial precisa fundar sua própria religião antes de poder vender seus serviços”.

As verdades esotéricas dos séculos, bem como diversas práticas psíquicas, estão sendo digeridas e empacotadas como “paradigmas de treinamento” para a alta e média gerência das maiores corporações do mundo, muitas vezes em conexão com artes marciais chinesas e japonesas — ou ao menos isso acontecia quando invejávamos a economia japonesa e queríamos imitar o estilo gerencial japonês! Alguns anos atrás houve até um escândalo na Pacific Telephone quando consultores de treinamento gerencial que empregavam técnicas de Gurdjieff foram um pouco longe demais e pareciam estar recrutando adeptos (o que provavelmente faziam). Uma manifestação mais recente dessa tendência foi a tempestade em copo d’água em torno do trabalho de Jean Houston com o presidente e a primeira-dama Clinton, quando ela os conduzia em “visualizações guiadas” para que imaginassem estar conversando com figuras como Lincoln e FDR (Jean Houston, lembre-se, foi uma das pesquisadoras originais do LSD). A mídia estava pronta para estourar a manchete “Sessões espíritas na Casa Branca!” — mas então, sem dúvida, alguns começaram a lembrar que tinham feito algo muito semelhante no seminário de treinamento da semana anterior, e perceberam que tais “técnicas intuitivas de solução de problemas”, como as de Houston, agora são comuns em grandes corporações. Elas são as sucessoras das técnicas de Dale Carnegie e Norman Vincent Peale. Eis o quão mainstream a New Age se tornou.

O quinto fio é a mídia mainstream, entre a qual mencionarei apenas os muitos programas de TV baseados em realidade não ordinária, como The X-Files, e as “linhas telefônicas psíquicas”, nas quais, por alguns dólares por minuto, você pode falar com um “verdadeiro médium” que resolverá todos os seus problemas e lhe dirá como conduzir a vida. Surgiram reclamações de que essas linhas são viciantes, algo parecido com jogo compulsivo, com o perigo adicional de possessão demoníaca. Uma delas foi anunciada na TV por Nichelle Nichols, atriz que atuou na série e nos filmes originais de Star Trek, cujo irmão, membro da seita ufológica Heaven’s Gate, morreu no suicídio coletivo do grupo em março de 1997.

A cultura New Age incorpora certos elementos tradicionais ou semi-tradicionais. Muitos lamas tibetanos, por exemplo (incluindo o Dalai Lama), divulgam seus ensinamentos em círculos New Age e são ali respeitados, embora eu tenha ouvido dizer que outros lamas deploram esse desenvolvimento. Outros budistas tradicionais, como Thich Nhat Hanh, e aqueles ao menos com formação tradicional, como Jack Kornfield (embora o budismo que ele prega muitas vezes se pareça mais com psicoterapia de grupo do que com busca da Iluminação Total Perfeita), também se sentem em casa nesse mundo. Até recentemente, o sufismo era representado no universo New Age, pelo menos na Califórnia, sobretudo pelos seguidores de Samuel Lewis (“Sufi Sam”) e de Pir Vilayat Khan, da ordem Chishti, e por Jellaluddin Loras (filho de Suleiman Dede), dos mevlevis, que ensina a “gira” mevlevi a americanos. Samuel Lewis, que cresceu em Fairfax, Califórnia, perto de minha cidade natal, San Rafael, e faleceu em 1971, embora não tradicional e eclético, era um verdadeiro iniciado sufi, criador das “danças sufis” que, por muito tempo, passaram por sufismo na mente da maioria na Califórnia.

Tanto Pir Vilayat Khan quanto Samuel Lewis, e também Jellaluddin Loras, representam uma tentativa de tornar o sufismo “universal” separando-o, em maior ou menor grau, do Islã. Embora ordens mais tradicionais, como os naqshbandis e os helveti-jerrahis, estejam ativas há décadas, foram os chishtis e mevlevis “hippie-universalistas” que representaram a principal expressão pública de “sufismo” na região da baía de São Francisco até alguns anos atrás, quando Ali Kianfar, um iraniano “uwaysi” ou “discípulo de Khidr”, e sua esposa Nahid Angha começaram a se destacar, organizando grandes conferências de sufismo no estilo de workshops New Age e manifestando um “ecumenismo sufi” ao incluir psicólogos, alguns membros de outras tradições religiosas etc. Mesmo alguns dos velhos sufis hippies, entretanto, vêm se tornando lentamente mais islâmicos, talvez em reação aos excessos da New Age; o mesmo distanciamento gradual desse mundo parece ocorrer com certos mestres hindus.

O hinduísmo semi-tradicional (se é que tal coisa existe) foi representado na contracultura dos anos 60 e 70, e em parte ainda o é, por Ram Dass, Swami Satchidananda, Sri Chinmoy, Swami Muktananda, Da Free John, pelos seguidores de Paramhansa Yogananda e outros, incluindo um fluxo contínuo de “Santas Mães” radicadas na Índia; o sikhismo, por Yogi Bhajan, Kirpal Singh, seu filho Sant Darshan Singh, e atualmente por seu discípulo Sant Thakar Singh; e um cristianismo mais ou menos tradicional pelo interesse persistente em Thomas Merton, cujo lugar cultural foi, em certo sentido, herdado pelo monge beneditino Irmão David Steindl-Rast. Contudo, como essas figuras e seus sucessores são justapostos, na mente dos adeptos da New Age, à canalização, ao xamanismo, ao neopaganismo e ao culto ecofeminista da Deusa, quaisquer doutrinas tradicionais que ensinem tendem a se dissolver numa mentalidade anti-tradicional que as nega em todos os pontos, sem que seus estudantes — e talvez nem eles próprios — percebam. Jack Kornfield, por exemplo, fez um estudo da altíssima porcentagem de mestres hindus e budistas que se envolveram em escapadas sexuais com alunos depois de chegarem ao Ocidente; mas isso o levou a concluir não que seus problemas se baseiam numa traição ou diluição de suas respectivas tradições — como o afrouxamento dos votos monásticos budistas tradicionais, por exemplo —, e sim que as próprias tradições são deficientes em discernimento psicológico e, portanto, precisam ser suplementadas por métodos psicológicos ocidentais.

Essa mistura de doutrinas tradicionais com as ciências sociais ocidentais, e com elementos que poderíamos chamar de “New Age”, é bem representada pelo Naropa Institute, em Boulder, Colorado, fundado por Chögyam Trungpa, um tulku (reencarnação reconhecida de um mestre anterior) e detentor da linhagem Kargyüpa, que remonta a Naropa, Marpa e Milarepa — um exemplar plenamente autorizado da tradição e brilhante escritor sobre budismo tibetano, escolhido como mestre pela elite intelectual de duas gerações da contracultura norte-americana (Beat e Hippie), quando a festa desenfreada dos anos 60 descia à profunda depressão espiritual dos anos 70; que ocidentalizou e modernizou a tradição, rompendo radicalmente com a prática da maioria de seus correligionários; que afrouxou os votos monásticos tradicionais; e que morreu, perseguido por escândalos, de alcoolismo agudo em 1987.

Aqui, felizmente, termina minha experiência com o mundo das “espiritualidades alternativas”. Só quero acrescentar que o comentarista de rádio de alcance nacional Hank Hanegraaff, do evangélico Christian Research Institute, abriu meus olhos para o quão profundamente as ideias New Age e as práticas psíquicas já penetraram o cristianismo protestante, particularmente por meio do movimento carismático.

Sem metafísica tradicional, a teologia declina. Sem teologia, religião e espiritualidade passam a ser julgadas apenas por seu poder de produzir experiência. Quando a experiência é o único critério de espiritualidade, a intensidade torna-se sua única medida. Quando apenas a intensidade passa a ser o objetivo, amor e verdade são excluídos — e a escuridão ocupa o lugar vazio.

II. Os perigos do ocultismo

O que é “o oculto”?

A criação de Deus é hierárquica, e a divisão mais simples dessa hierarquia é em três níveis: material, psíquico e espiritual. Cada nível é mais sutil e mais vivo que o nível abaixo de si, e contém tudo o que está abaixo dele, embora em forma mais elevada.

O plano psíquico é o “ambiente” natural da psique humana, assim como a terra e o universo material são o ambiente do corpo humano. Ele não é puramente mau, como acreditam alguns cristãos, mas certamente é perigoso, pois, se o acessamos quer acidentalmente, quer por iniciativa própria, perdemos a proteção do plano material antes de necessariamente termos adquirido a proteção do plano espiritual, e ficamos, portanto, extremamente vulneráveis não apenas à dispersão de nossa energia psíquica e vital, mas à obsessão ou possessão pelos poderes do mal.

Não obstante, o plano psíquico não é exclusivamente demoníaco; caso contrário, não poderíamos receber orientação divina em sonhos, nem milagres físicos poderiam ocorrer, já que toda influência vinda do plano espiritual deve atravessar o plano psíquico antes de chegar à realidade material. Mas, justamente por isso, é muito difícil discernir se uma manifestação psíquica ou um fenômeno físico anômalo se origina no plano psíquico ou no plano espiritual. Não obstante, há uma diferença profunda de nível entre um ato de magia (quer com finalidade de cura, quer de dano) que emana do plano psíquico e um milagre que se origina no plano espiritual. Práticas psíquicas, mágicas ou xamânicas são “tecnologias”, instâncias de intervenção voluntária por parte de seres humanos ou entidades psíquicas. Milagres são manifestações do Espírito, da verdade eterna e do amor de Deus, nos níveis psíquico e material. Eles realizam muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, sem esforço, por meio do “desvelamento” de uma pequena parte da Verdade e do Amor infinitos de Deus.

O plano psíquico é um mundo múltiplo composto de muitos “pontos de vista” subjetivos. O plano espiritual é a irradiação da Realidade Divina objetiva; eles não são a mesma coisa, razão pela qual podemos encontrar pessoas extremamente psíquicas que não são espirituais de modo algum. No nível material, parecemos ser produto de nosso ambiente material, por meio da bioquímica, das influências culturais, da história e da evolução. No nível psíquico, nosso ambiente parece ser produto de nosso estado de consciência, já que, à medida que “sintonizamos” realidades diferentes, o ambiente muda. No nível espiritual, sabemos que somos absolutamente dependentes, criados por, e também de certo modo símbolos, da Realidade Divina de Deus. Somente na medida em que estamos abertos ao Espírito podemos saber quem realmente somos e o que é eternamente verdadeiro; somente pela realização do nível espiritual nos tornamos quem realmente somos. Nossa humanidade foi desenhada por Deus para essa realização. Se falhamos em atingi-la (dizem os sufis), então ainda não somos, ou somos apenas virtualmente, seres humanos.

O conhecimento psíquico é apenas mais um tipo de conhecimento; não há nada de necessariamente demoníaco nele, nem de necessariamente espiritual. Ainda assim, um pouco de conhecimento é algo perigoso, e o conhecimento psíquico é sem dúvida muito “pouco” quando comparado à sabedoria espiritual.

Os poderes psíquicos podem chegar até nós de cinco maneiras diferentes: (1) pelo nascimento; (2) por acidente, doença ou outro trauma; (3) como dom inesperado; (4) pela busca direta; e (5) como subproduto do desenvolvimento espiritual. As duas primeiras, ao menos inicialmente, são moralmente neutras. Se alguém nasce com capacidades psíquicas ou as adquire depois de um choque traumático ou lesão, é imprudente e injusto presumir que tal indivíduo se encontra possuído por demônios, assim como é injustificado supor que sua sensibilidade psíquica seja sinal de sabedoria espiritual. Por outro lado, se alguém dotado de capacidades psíquicas permanece ignorante das realidades espirituais, mas fundamenta sua visão de mundo apenas em informações psíquicas, essa pessoa está iludida e, portanto, potencialmente — mas não necessariamente — aberta à influência de demônios enganadores.

No caso de um “dom” de poderes psíquicos, sua irrupção não solicitada a partir de alguma fonte invisível, é nosso dever questionar a natureza dessa fonte, consultando alguém ligado a uma espiritualidade tradicional que seja conhecedor desses assuntos — supondo que possamos encontrar tal pessoa — e, em todo caso, pela oração. É necessário, em outras palavras, descobrir se esse dom representa uma tarefa que Deus nos impôs ou uma maldição sedutora que os poderes das trevas lançaram sobre nós.

Se alguém busca ativamente e obtém poderes psíquicos, a situação é mais séria, embora este seja um princípio difícil de compreender para muitas pessoas. Afinal, os poderes psíquicos não seriam simplesmente parte de nosso “potencial humano”? E não seria natural explorar e desenvolver nossos talentos dados por Deus? Aprendemos a andar, a falar, a dirigir, a fazer amor, a ganhar a vida, a nadar, a jogar basquete, a cantar, a escrever, a adquirir certo grau de insight psicológico sobre nós mesmos e sobre os outros, até a compreender filosofia e metafísica sem necessariamente nos tornarmos possuídos por demônios. Por que as capacidades psíquicas deveriam ser diferentes?

Existe, no entanto, um limite além do qual o desenvolvimento voluntarioso de nosso potencial humano passa a invadir um terreno onde nosso direito de fazer o que quisermos com nossos talentos já não é garantido. Transgredimos esse mesmo limite todos os dias, de uma forma ou de outra, por meio de nosso “progresso” tecnológico. O que há de errado com a tecnologia? Simplesmente o fato de que, se a desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos a terra e a forma humana. O que há de errado com os poderes psíquicos? Simplesmente o fato de que, se os desenvolvemos de forma excessiva ou desequilibrada, destruiremos nossas almas.

Ocultismo é a prática de entrar em contato com o plano psíquico por iniciativa própria, ou em resposta a um convite vindo desse plano apenas. Nosso objetivo pode ser “acessar” o Espírito por meio da psique, mas mais frequentemente será apenas a tentativa de ampliar a área de nosso próprio ego, de perseguir, em mundos mais sutis, os objetivos básicos do ego em matéria de segurança, prazer e poder. Isto parece ser — e até certo ponto realmente é — uma simples extensão de nossa autocompreensão psicológica, uma espécie de exploração adolescente de nosso potencial psíquico. Mas, a menos que percebamos que é o Espírito de Deus que está realmente nos convocando a essa exploração, e que nosso verdadeiro objetivo deve ser entrar em relação consciente com o Espírito, em conhecimento e amor, e submeter-nos à Sua orientação, nossa exploração do plano psíquico rapidamente se tornará adoração de nosso próprio ego e atrairá aqueles poderes do mal cujo objetivo é nos separar eternamente de nosso Criador. É por isso que buscar poderes psíquicos com a finalidade de aumentar nossa segurança, prazer e poder, ou mesmo de “tomar o céu de assalto” — de “alcançar” Deus pela força de nossa própria vontade — é um caminho profundamente destrutivo.

Se poderes psíquicos aparecem como resultado de nossa submissão à Vontade de Deus, então eles são expressão dessa Vontade em nossas vidas; consequentemente, não atribuiremos sua operação a nós mesmos, mas ao nosso Criador. Mesmo assim, podem ser um “teste” enviado por Deus, para ver se amamos mais os Seus dons do que a Ele próprio.

Desde os anos 60, como apontei antes, o paradigma dominante no mundo da espiritualidade “alternativa” deslocou-se do misticismo para a magia. O motivo mágico sempre esteve presente; ainda assim, a crença de que a busca por poderes psíquicos pode interferir no desenvolvimento espiritual fazia parte da sabedoria recebida na época. Mas hoje em dia, excetuando-se os círculos religiosos conservadores e os Tradicionalistas, é algo raramente ouvido. Com técnicos esportivos ensinando técnicas psíquicas e mágicas a seus times, e consultores de treinamento gerencial transmitindo-as a executivos corporativos, a ideia de usar poderes psíquicos de um tipo ou de outro para expandir o “potencial humano” tornou-se mainstream, fato refletido no conteúdo de uma alta porcentagem dos programas de TV contemporâneos, em que poderes psíquicos e eventos mágicos se tornam elementos corriqueiros mesmo em enredos baseados ostensivamente na “realidade ordinária e cotidiana”, para não falar de programas psíquico-ficcional-científicos como The X-Files.

Não podemos simplesmente dizer que qualquer pessoa envolvida com o plano psíquico está destruindo gravemente sua psique ou está destinada à condenação. Alguns médiuns naturais, ou mesmo altamente treinados, praticam conscientemente sua arte a serviço da humanidade e para maior glória de Deus. Entretanto, toda a tendência do interesse contemporâneo por realidades psíquicas é profundamente sinistra, pois, quanto mais cresce o paradigma de “expandir seu potencial humano na busca de segurança, prazer e poder”, mais ele tende a suplantar o paradigma de “seguir a Vontade de Deus, mesmo que você tenha que sacrificar segurança, prazer e poder para fazê-lo”. Assim, a magia substitui a religião, e a visão mágica de mundo é tão abismalmente inferior às sublimes concepções de Realidade Divina e de destino humano preservadas pelas grandes religiões mundiais que simplesmente não há comparação.

Além disso, num mundo de magia, aqueles que não possuem algum tipo de pretensão a poder psíquico começam a sentir-se excluídos e vulneráveis. Lembro-me da história contada por um antropólogo que perguntou a um xamã nativo-americano por que ele se interessara pelo xamanismo. A resposta foi: “porque eu tinha medo dos xamãs”. Se a maioria das pessoas em seu ambiente carrega armas ou pertence a gangues, você se sentirá tentado a fazer o mesmo apenas para se proteger. Com a magia é a mesma coisa.

Mais uma vez, isso não significa negar a existência de médiuns orientados ao serviço e “magos brancos”, dispostos a sofrer pessoalmente para servir a Deus e à comunidade. Mas, a menos que pratiquem suas artes dentro da segurança de uma tradição espiritual viável, com longa experiência de seus usos e perigos, estarão inevitavelmente expostos àquelas forças que fazem tudo o que podem para provar que “o caminho do inferno é pavimentado com boas intenções”.

Isso nos traz novamente à questão do xamanismo, uma forma religiosa arcaica ainda praticada por centenas de milhões de pessoas na África, na Ásia, nas ilhas do Pacífico, nas Américas e em outros lugares, em que religião e magia parecem formar um todo único. Qualquer tradição capaz de produzir homens realmente santos, como o lakota Black Elk, não pode ser simplesmente descartada como paganismo ou feitiçaria; contudo, as práticas que caem sob o termo geral “xamanismo” podem se estender desde a mais elevada teurgia mística até a mais venenosa bruxaria e o puro charlatanismo.

René Guénon via o xamanismo como detentor de “uma cosmologia altamente desenvolvida… que poderia sugerir concordâncias com outras tradições sob muitos aspectos”, incluindo “ritos comparáveis a alguns que pertencem a tradições da mais alta ordem”. Por outro lado, a ênfase xamânica em “ciências tradicionais inferiores, como magia e adivinhação” significa que “é preciso suspeitar de uma degenerescência muito real, que às vezes pode chegar a uma verdadeira desviação, como facilmente pode acontecer a tais ciências quando se tornam excessivamente desenvolvidas” (The Reign of Quantity and the Signs of the Times, pp. 217–218). Michael F. Steltenkamp, em Black Elk, Holy Man of the Oglalla Sioux (University of Oklahoma Press, 1993), repete algumas das críticas do próprio Black Elk ao xamanismo, feitas depois de sua conversão ao catolicismo. Ele não rejeitou inteiramente o xamanismo tradicional, permitindo que um de seus amigos homens-medicina conduzisse um ritual de cura para ele, com algum sucesso, quando sofria de paralisia na velhice, mas exigiu que objetos rituais católicos, como santinhos, fossem substituídos pelos fetiches oglala. E reconheceu claramente, na humildade cristã, uma virtude superior à arrogância de muitos xamãs.

Além disso, há um abismo entre a função de um xamã em um ambiente tribal — onde ele ou ela representa uma grande parte da “tecnologia de sobrevivência” da tribo, incluindo a capacidade de encontrar e atrair caça, prover chuva para a agricultura, curar doenças, fazer psicoterapia, conduzir investigações criminais e realizar inteligência militar — e o papel desses mesmos poderes na sociedade atual, onde há mais espaço do que nunca para degeneração e autoengrandecimento. (Como evidência de que povos mais “primitivos” veem o xamanismo mais ou menos como nós vemos a tecnologia, Jean Cocteau repete uma história contada por um viajante no Haiti, onde árvores são aparentemente usadas às vezes como suporte para a telepatia. Quando uma mulher quer que o marido distante traga algo da cidade, por exemplo, ela fala com uma árvore que, de algum modo, retransmite a mensagem. Quando perguntaram a uma mulher por que seu povo falava com árvores, ela respondeu: “Porque somos pobres. Se fôssemos ricos, teríamos telefone.”)

A ampla difusão de técnicas xamânicas separadas de seu contexto tradicional, como as que podem ser aprendidas em um seminário de fim de semana, é claramente destrutiva enquanto tendência geral, não importando o quão “úteis” essas práticas possam ser numa situação particular. Quando se pode entrar em qualquer livraria generalista, mesmo no cinturão bíblico, e encontrar livros que incluem, em seu amontoado de “tecnologias” psíquicas, receitas de como lançar feitiços e maldições, fica bem claro que as coisas saíram de controle. Se lamentamos a fácil acessibilidade de armas de fogo e de informações sobre como fabricar bombas, inclusive nucleares, por que não adotamos a mesma atitude com relação à magia negra? Talvez porque temamos, com razão, a erosão de nossas salvaguardas constitucionais à liberdade religiosa, assim como os opositores do controle de armas temem a destruição de seu direito constitucional de “manter e portar armas”. Mas pode ser também devido ao fato de nutrirmos uma espécie de “incredulidade seletiva” quanto aos poderes do mal.

Lembro-me de um anúncio que vi em um jornal gratuito local, em que se podia pagar para que alguém lançasse uma maldição sobre outra pessoa. Telefonei para o jornal e argumentei que, se eles não acreditavam em maldições, estavam participando de propaganda enganosa, ao passo que, se acreditavam, estavam conspirando para cometer agressão. Naturalmente, não me ouviram; e a impressão que tive foi que, confrontados com a possibilidade de estarem ajudando a causar dano real a pessoas, reprimiram qualquer remorso negando a si mesmos que a magia negra seja real, e depois rebateram minha acusação de propaganda enganosa dizendo a si mesmos que, na verdade, ela é real — tudo isso de forma inconsciente, num piscar de olhos. Este é precisamente o tipo de ginástica mental que George Orwell analisou em 1984 como “duplipensar” (doublethink) — a capacidade de manter duas crenças contraditórias ao mesmo tempo sem qualquer ansiedade. Somos crentes lunáticos e/ou cínicos desmistificadores sempre que isso convém à nossa necessidade de evitar o confronto com a verdade objetiva.

Como disse C. S. Lewis em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (The Screwtape Letters), p. 32, pela boca de seu demônio Screwtape:

“Quando os humanos não acreditam em nossa existência, perdemos todos os agradáveis resultados do terrorismo direto, e não conseguimos fazer mágicos. Por outro lado, quando acreditam em nós, não podemos torná-los materialistas e céticos. Ao menos ainda não. Tenho grandes esperanças de que aprenderemos, no devido tempo, a emocionalizar e mitologizar sua ciência a tal ponto que aquilo que, na prática, é uma crença em nós (embora não sob esse nome) se infiltrará… se conseguirmos produzir nossa obra-prima — o Mago Materialista… então o fim da guerra estará à vista.”

Mas, é claro, o Mago Materialista já está entre nós há algum tempo; ele é a nota dominante do período histórico presente. A idolatria da tecnologia avançada, real ou imaginada, é nossa superstição contemporânea dominante. Basta lembrar que a palavra que hoje usamos para aquilo que sempre foi chamado “demônios” é “alienígenas”. Alienígenas nos abduzem, transportam pelo ar, nos examinam, têm relações sexuais conosco, atravessam paredes para entrar em nossas casas e aparecem em nossos sonhos. Mais de um milhão de norte-americanos afirmam ter tido essas experiências, tantos que grupos de apoio e até grandes conferências de “abduzidos” já formam uma indústria independente. Não conseguimos nos obrigar a chamá-los de “demônios”, por medo de nos tornarmos “fanáticos religiosos” e assim perdermos nossa filiação à sociedade materialista-tecnocrática. Mas temos que acreditar em toda história que ouvimos sobre eles, incluindo a propaganda grosseiramente orquestrada sobre a recuperação de cadáveres alienígenas em Roswell, Novo México (relato que permanece pouco convincente para o conhecido pesquisador de OVNIs Jacques Vallée), e admitir que possuem todos os poderes físicos e psíquicos comuns ao reino de Satanás; caso contrário, poderíamos passar por “céticos estreitos de mente”, velhos racionalistas enfadonhos sem nada interessante a dizer em reuniões sociais. Estamos sob o jugo do duplipensar.

Todos esses desenvolvimentos foram previstos, em seus contornos principais, se não em detalhe, por René Guénon em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, publicado em 1945. Segundo Guénon, ao longo dos últimos séculos, o mundo passou a ser definido menos pelas qualidades das coisas e mais pela pura quantidade, de modo que o “sucesso” de uma nação (por exemplo) não é medido pela profundidade da cultura, pela altura da compreensão espiritual ou pela qualidade de vida, mas pelo produto interno bruto. A “cultura da informação” é apenas a encarnação mais recente dessa tendência a quantificar tudo.

Mas o “reino da quantidade”, embora continue a ganhar poder, em certo sentido atingiu o auge no fim do século XIX e início do XX, quando o materialismo, como forma de ver o mundo, estava no ápice, na época em que ainda era possível crer de modo complacente em algo chamado “vida ordinária”. Como já apontei, tal materialismo resultou, segundo Guénon, em uma espécie de “solidificação do mundo”. Antigamente, digamos, nos anos 1950, relatos de ocorrências sobrenaturais, ou a crença de que tais coisas fossem possíveis, eram frequentemente recebidos com um “Como é possível você acreditar nisso? Estamos no século XX!”. Hoje, no início do século XXI, o estranho parece normal, senão inevitável. Em termos dos sons, imagens e crenças produzidos pela cultura de massa popular, vivemos numa espécie de Halloween permanente.

Como você talvez se recorde, a explicação de Guénon para isso é a seguinte: à medida que o materialismo solidificou o mundo, a noção da realidade das coisas espirituais — de um mundo mais alto que o psíquico, o Reino Divino, o Reino de Deus — tornou-se cada vez mais difícil de sustentar. É como se uma espécie de neblina psíquica se espalhasse pelo mundo, apagando a luz das estrelas. Mas já em 1945 (depois da detonação das primeiras armas nucleares, embora Guénon não mencione isso), essa materialidade pesada e sólida — a desolação, digamos, do stalinismo ou do capitalismo burguês — começava a rachar. Tornara-se tão dura que começava a ficar “frágil”, assim como os átomos dos elementos urânio e plutônio, ainda mais pesados do que o chumbo, são instáveis e radioativos.

Só que essas rachaduras não se abriam na direção superior, para receber a descida da graça divina; abriam-se para baixo, na interface entre este mundo e o reino “infra-psíquico” ou demoníaco. E quem quer que seja capaz de olhar objetiva e desapaixonadamente para nossa atual cultura da informação, para as imagens lúgubres, sedutoramente glamorosas e sinistras predominantes na televisão, nos videogames e na internet, será forçado a concordar.

Segundo Guénon, o único desfecho possível dessa evolução é a dissolução do mundo presente. Ele e a maioria dos Tradicionalistas concordam com cristãos conservadores em que vivemos nos últimos dias, o Tempo do Fim. Esse “Fim” pode implicar a destruição de toda a vida na Terra — ou não. Em qualquer caso, não pode ser visto exclusivamente em termos terrenos, já que o Fim do Mundo é um Apocalipse, uma “revelação” da Realidade Eterna de Deus, bem como o início do próximo ciclo de existência, o “Novo Céu” e a “Nova Terra”.

Assim, Guénon e outros Tradicionalistas, notadamente Martin Lings em seu livro The Eleventh Hour, são deliberadamente ambíguos nesse ponto, como quando Guénon diz que o mundo atual se dissolverá, mas isso não significa o fim da existência terrestre, ou que estamos diante do fim do Tempo, mas não do fim do Espaço. O significado exato dessas afirmações oraculares deve permanecer questão para nossa faculdade de intuição espiritual, e as verdades que essa faculdade descobre jamais poderão ser plenamente traduzidas em termos de espaço, tempo, matéria e história.

Mas quase todas as religiões mundiais, incluindo hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo, Islã e certas tradições nativas americanas, falam do fim do mundo ou do ciclo presente. E o cristianismo e o islã, em particular, enfatizam que, na véspera desse fim, todos os poderes psíquicos e tendências psicossociais que queiram negar a realidade de Deus e a dignidade da humanidade se condensarão naquilo que essas duas tradições chamam de reinado do Anticristo, que, seja ou não um indivíduo, será certamente o princípio subjacente à pior desumanidade que o gênero humano consiga conceber para impor a si mesmo e à Terra.

Os Tradicionalistas tendem a dizer que tal desenvolvimento não pode ser detido por nenhum tipo de ação social esclarecida; por outro lado, evocam o mito da batalha final entre o bem e o mal no fim do ciclo, chamada Armagedom na Bíblia, e que, na doutrina islâmica, é anunciada pelo Mahdi e concluída pela segunda vinda de Jesus, a quem muçulmanos e cristãos reconhecem como o Messias, que matará o Anticristo na batalha final. E o décimo avatar de Vishnu no hinduísmo, o avatara Kalki, também é descrito como guerreiro empunhando uma espada e montado em um cavalo branco, como o Verbo de Deus no capítulo 19 do Apocalipse.

Mas Armagedom não pode ser simplesmente algo como uma guerra termonuclear total, porque é uma batalha em que todos os inimigos da restauração da Ordem Divina sobre a terra são destruídos. Como tal, ela é manifestação da batalha que se trava na alma de cada um de nós, refletida nos “eventos reais” do mundo exterior. Mas, como Jesus disse, “não sabeis nem o dia nem a hora”; por isso quero, deliberadamente, afastar-me de qualquer prognóstico histórico e concentrar-me nessa “guerra invisível” dentro da alma humana.

Como já disse, é dever inato de todo ser humano realizar a verdade de Deus, da Realidade Absoluta, tanto quanto sua capacidade permita, e colocar-se sem reservas sob a orientação e direção do Único. Uma vez reconhecido e abraçado esse dever, porém, todos os poderes do plano psíquico que negam o Absoluto entram em ação. A guerra contra essas forças inferiores da alma é chamada, no Islã, de “o maior jihad”, a maior guerra santa; é um dever humano mais universal, mais formidável, e de cujo resultado depende muito mais, do que qualquer guerra travada em campos de batalha materiais.

Segundo uma possível perspectiva, Armagedom é uma guerra entre o amor e o poder tendo, como prêmio, o conhecimento. Até Carl Jung (a quem os Tradicionalistas detestam, com boa dose de razão) disse certa vez que, onde quer que o complexo de poder esteja, o amor se torna impossível. E, de fato, toda a questão dos perigos do ocultismo se reduz a isto: o nosso conhecimento espiritual tomará o amor como noiva — ou o poder? O amor é um grande poder em si mesmo, mas, em qualquer lugar onde o conhecimento sutil se una ao poder para violar o amor, estamos diante da religião do Anticristo.

Sabedoria, moralidade e técnica

Nos anos 60, parecia a muitos de minha geração que a “religião organizada”, por meio da qual entendíamos o judaísmo e o cristianismo eclesial, se limitava à moralidade — e que a moralidade era completamente arbitrária. Nada mais era do que um conjunto de “deves” (oughts) — ainda uma palavra malvista em certos meios — imposto pela “sociedade”, pelo “establishment” ou pela “hierarquia eclesiástica”, sem motivo válido. Por outro lado, havia algo como insight penetrante e sabedoria espiritual; sentíamos isso “instintivamente”. A religião parecia ter alguma relação com essa sabedoria desconhecida — certamente a Bíblia estava cheia de alusões místicas, se ao menos alguém fosse capaz de entendê-las —, mas nossos padres e pastores não pareciam possuir a chave. Tudo o que nos diziam, ou tudo o que ouvíamos, era: “seja bom porque Deus mandou”. E, quando perguntávamos “por que ser bom, o que isso significa, o que está por trás de tudo isso?”, tudo o que recebíamos deles era um corte seco.

A impressão nítida era que realmente havia algo a ser conhecido ali, mas nossos mestres já não o conheciam. Por isso fomos buscá-lo em outro lugar: nas religiões orientais, na espiritualidade indígena americana, no espiritualismo e no ocultismo ocidentais. Como escreveu o poeta Allen Ginsberg, referindo-se à experiência semelhante da Geração Beat, que era velha o suficiente para ser a de nossos pais, em seu famoso poema Howl, éramos aqueles “que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia e bop cabala porque o cosmo instintivamente vibrava a seus pés no Kansas”. Nesse processo descobrimos que realmente existia algo como Sabedoria — embora a forma exata e as implicações dela continuassem a escapar-nos — e que não era apenas algo em que se pudesse crer, mas algo que podia ser realizado. Você podia de fato experimentá-la; ela era real. Não apenas que, mas sempre existiram técnicas espirituais, como yoga, meditação, xamanismo ou teurgia, que podiam transformar conhecimento teórico ou vagas intuições espirituais em experiência concreta e real. Claro que era muito mais fácil simplesmente tomar LSD, peiote ou cogumelos mágicos e ser brindado com visões e insights espantosos, que iam do horrível ao ridículo até o sublime. Mas os espíritos mais sérios entre nós logo perceberam que não se podia tomar psicodélicos para sempre, que tinha de haver um caminho mais estável e responsável de buscar a iluminação. Este caminho, pensávamos, seria fornecido por formas mais tradicionais de sadhana (prática espiritual), como a meditação, ou por tipos mais “avançados” de ginástica psíquica, como os que estavam sendo desenvolvidos no Esalen Institute — incluindo encounter groups, privação sensorial, biofeedback e sabe Deus mais o quê.

E assim, em reação à superficialidade que percebíamos nas tradições cristã ou judaica em que havíamos sido criados, que nada podiam nos dar além de regras morais sem qualquer justificativa convincente, e que eram ou incapazes ou relutantes em nos oferecer explicações profundas sobre o sentido da vida que ansiávamos, ou em nos dar acesso às práticas espirituais concretas que sentíamos precisar para realizar esse sentido em profundidade, criamos para nós um ethos religioso em que a sabedoria era buscada e a técnica espiritual empregada à custa da moralidade. Ninguém nos disse que as verdades místicas e o sentido profundo de que precisávamos estavam no coração do cristianismo e do judaísmo; que técnicas sempre haviam existido dentro dessas tradições — como a Oração de Jesus no cristianismo oriental — para servir à realização dessas verdades; e que uma das técnicas místicas fundamentais, sem a qual nenhum sentido profundo pode ser compreendido nem sabedoria espiritual pode ser realizada, era a própria moralidade.

Tínhamos lido, e acreditávamos, que a compreensão mística vinha da transcendência do ego; o que nunca nos foi dito é que a moralidade é elemento necessário na ciência dessa transcendência. Então tentamos explodir nossos egos com doses maciças de drogas psicodélicas, que julgávamos tornar desnecessário o trabalho tedioso de vencer o simples egoísmo em nossas vidas diárias. Achávamos que era o melhor dos dois mundos: iluminação mística graças à graça barata dos psicodélicos ou de exercícios respiratórios ou luzes estroboscópicas ajustadas ao ritmo alfa do cérebro, e, no resto do tempo, total autoindulgência. Acreditávamos poder ficar com o bolo e comê-lo também… mas, em vez disso, foi o bolo que nos devorou.

Se o nosso judaísmo tivesse sido capaz de produzir verdadeiros tzaddikim, mestres da cabala ou do misticismo da merkabah, juntamente com uma exegese profunda da Torá; se o nosso catolicismo tivesse sido capaz de responder às nossas aspirações místicas e filosóficas mergulhando nos profundos ensinamentos místicos dos Padres da Igreja, e se tivesse existido algo como uma terceira ordem monástica à disposição dos jovens, que pudesse ter-nos dado uma orientação mística e uma prática espiritual diária; se o nosso protestantismo tivesse sido capaz de nos alimentar no poço místico dos “espirituais” como Franz von Baader e Jakob Böhme, então as coisas poderiam ter sido muito diferentes.

Mas, para que esse “se” tivesse sido realizado, o judaico-cristianismo teria de estar em condição muito diversa: fiel à profundidade de suas tradições, disposto e apto a resistir a qualquer compromisso com o secularismo, confiante em sua ortodoxia teológica, em sua compreensão filosófica e em sua sabedoria mística. Em vez de convidar os que estavam pelas estradas e encruzilhadas para o banquete de casamento, a porta foi fechada por aqueles “guias cegos que impedem os outros de entrar, mas não entram eles mesmos”. Então organizamos nosso próprio banquete de casamento nas estradas e encruzilhadas, que degenerou em orgia e, por fim, em motim.

Não obstante, desse motim surgiram verdadeiras intuições sobre “as profundezas de Deus” — que não tínhamos meio confiável de distinguir das trevas espirituais que as cercavam —, juntamente com elementos válidos de esoterismo e metafísica tradicionais escondidos em meio ao restante dos destroços, que conduziram uma minoria de nós, afinal, a misticismos estáveis e vivos enraizados nas ortodoxias tradicionais. Talvez a memória do número muito maior dos que foram destruídos para que nós poucos pudéssemos chegar, meio mortos, à porta da religião revelada, seja parte da motivação deste livro. O nome disso é “culpa do sobrevivente”.

Estados alterados de consciência: graça ou manipulação?

Para muitos cristãos evangélicos, os termos “misticismo” e “estados alterados de consciência” só podem designar uma perigosa ilusão. Segundo o conhecido mestre de rádio Hank Hanegraaff, cuja insistência na sã doutrina me é profundamente alentadora, e cujas denúncias das falsas doutrinas e práticas perigosas que hoje proliferam no protestantismo “carismático” deveriam ser ouvidas por todos, tais realidades, se é que são realidades, não têm lugar no cristianismo. Na melhor das hipóteses, seriam autoilusões ou produto de sugestão hipnótica; na pior, enganos demoníacos.

Será isso realmente verdade? Vejamos.

Antes de tudo, a palavra “misticismo” precisa ser definida. Em toda tradição há uma classe de santos, os santos contemplativos, chamados por Deus àquele tipo de experiência direta d’Ele que a maioria dos salvos conhecerá apenas após a morte. Santos católicos como João da Cruz ou Teresa de Ávila dedicaram boa parte de sua vida espiritual a cultivar uma prontidão para tal União com Deus, que no caso da maioria dos místicos é rara e breve (embora, num outro sentido, eterna), um arrebatamento pelo Espírito em que todo senso da existência da alma como algo separado de Deus é apagado.

O cristianismo ortodoxo oriental vai além até desse sentido de União ao descrever o êxito da vida espiritual normal como theosis, ou divinização, que não é simplesmente uma experiência rara e isolada, mas uma realização permanente de nossa Divindade interior, segundo a doutrina de que “Deus se faz homem para que o homem se faça Deus”. O sufismo fala igualmente de fanā’, aniquilação do eu humano em sua separatividade, na medida em que nos definimos por nós mesmos e por isso acreditamos implicitamente ser autocriados, e de baqā’, subsistência eterna na Natureza de Deus. O hinduísmo fala do jīvanmukta, a alma perfeitamente libertada nesta vida, e o budismo daquele que alcançou a Iluminação Total Perfeita, e assim se tornou um Buda, um “Desperto”, que reconhece que todos os seres, em sua natureza original — se ao menos o soubessem — já estão Despertos.

Misticismo, então, pode ser definido ou como a experiência temporária de União com Deus, um “estado alterado de consciência” buscado ou não, produzido pela ação direta de Deus (chamado no sufismo de hāl e, no cristianismo, de “contemplação infusa”), ou como o despertar permanente para a realidade de Deus, como no caso de um santo iluminado. É o misticismo em sua primeira definição, a de uma experiência rara ou incomum de Deus, um “estado alterado” em que o eu individual é posto de lado na contemplação do Divino, que parece incomodar muitos cristãos evangélicos.

O Novo Testamento, é claro, está repleto de histórias de “estados alterados de consciência”: a Transfiguração de Cristo; a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e a Virgem Maria em Pentecostes; a experiência de São Paulo no caminho de Damasco. “Mas espere!”, diz o cristão evangélico. “Esses não eram ‘estados alterados de consciência’, porque não eram experiências subjetivas. Foram produzidos pela ação da graça de Deus, operando de fora sobre os discípulos de Jesus. Não ocorreram simplesmente na mente daqueles que os vivenciaram; foram objetivamente reais.” Concedo isso plenamente. Mas dizer que a ação objetiva da graça de Deus não alterou profundamente a consciência dos que a receberam é absurdo.

A verdadeira questão é: acreditamos que os estados alterados em questão foram encontros com Deus iniciados por Sua ação na alma humana, ou acreditamos que esses encontros foram produzidos pelos próprios estados alterados, que por sua vez teriam sido criados voluntariamente pelas pessoas que os vivenciaram? Deus pode e de fato altera a consciência humana para torná-la mais receptiva a Ele, mas nenhuma quantidade de alteração autoinduzida da consciência pode “alcançar” Deus. Quanto a saber se eventos como a Transfiguração foram objetivos no sentido de que poderiam ter sido fotografados por satélites, por exemplo, suspendo o juízo. Quero apenas ressaltar que, só porque algo é visão, isso não significa que não seja real. Algumas visões são fantasias ou enganos demoníacos; outras são testemunhos de realidades objetivas mais altas e mais reais do que o mundo material.

Segundo a doutrina sufista, estados espirituais são dádivas de Deus, não aquisições. Não podemos produzi-los de forma alguma, nem sequer deveríamos rezar por eles. Nosso negócio é, simplesmente, lembrar de Deus e esquecer de nós mesmos. Por outro lado, se passamos todas as horas de vigília lembrando de Deus — e, por fim, cada hora de sono também —, estados espirituais ou místicos bem podem chegar. Buscá-los é ganância espiritual; rejeitá-los quando ocorrem pode ser ingratidão espiritual. Exigir presentes de nosso Benfeitor, ou rejeitá-los quando são oferecidos, são ambos atentados à cortesia; e, nas palavras de um provérbio sufista, “o sufismo é pura cortesia”.

A recepção de tais estados nada diz de forma definitiva sobre o grau de avanço espiritual do recipiente, já que, segundo o Alcorão, “Deus guia a quem quer, e extravia a quem quer”. Em outras palavras, Deus pode às vezes punir a ganância egotista de alguém por experiência e autoridade espirituais enviando-lhe estados pseudo-místicos — ou melhor, permitindo que forças demoníacas o façam — cujas consequências finais lhe mostrarão o próprio orgulho espiritual, se ele estiver disposto a ouvir. Doutrina semelhante é sugerida pelas palavras do Pai-nosso “não nos deixes cair em tentação”, que têm sido tão embaraçosas para alguns cristãos que estes as alteraram para “não nos ponhas à prova” — como se Deus já não nos pusesse à prova a cada momento de nossas vidas, de um modo ou de outro.

Além disso, segundo tanto a doutrina sufista quanto a hindu, estados místicos são enviados não por causa de nosso avanço espiritual, mas por causa de nossas impurezas. Imagine os raios do sol focados por uma lente sobre uma laje de mármore branco. Se houver serragem sobre o mármore, ela pegará fogo; se o mármore estiver limpo, haverá apenas iluminação. A serragem é a nossa massa de impurezas espirituais; as chamas são os estados espirituais que as queimam; a iluminação da pedra limpa é a Sabedoria; a luz é o Intelecto Divino.

Mas o que dizer de sistemas de desenvolvimento espiritual como a yoga, praticados por hindus e budistas vajrayanas, em que, longe de esperar que Deus conceda livremente um estado espiritual ao iogue, este o persegue ativamente por meio de sofisticada manipulação do sistema nervoso psicofísico, baseada em posturas corporais (āsanas), controle da respiração (prāṇāyāma), invocação verbal (mantra), meditação sobre diagramas simbólicos (maṇḍalas ou yantras) e gestos simbólicos (mudras)? Aqui a questão se torna mais complicada, e não há dúvida em minha mente de que qualquer prática espiritual fortemente carregada de técnica corre sempre o risco de transformar-se numa luta prometeica para “tomar o céu de assalto”, já que o iogue pode experimentar-se a si mesmo como praticando o método não em resposta obediente à graça divina, mas por iniciativa própria, como ego independente e autodirigido — e nenhum ego independente e autodirigido, exercendo técnicas psicofísicas sofisticadas por iniciativa própria, chegará a qualquer lugar senão às portas do inferno.

Ainda assim, a busca de estados espirituais, se realizada no contexto de uma tradição que a defina em termos de obediência à Vontade de Deus e de trabalho em Seu serviço, pode ser espiritualmente eficaz e, por fim, produzir santos. “Buscai e achareis; pedi e vos será dado; batei e vos será aberto.”

Tranquilidade, vigilância, confiança em Deus, amor de Deus, amor ao próximo, consciência da Presença de Deus são “estados alterados de consciência”: a tranquilidade é um estado de espírito diferente da agitação, a alegria agradecida é diferente da mesquinhez rabugenta, a vigilância é diferente da sonolência, a confiança é diferente da ansiedade, o amor é diferente do ódio, a consciência da Presença de Deus é diferente da visão da absurdidade existencial ou do tédio cotidiano. E, se não podemos simplesmente produzir esses estados alterados por força de vontade, por outro lado a sua vinda exige de nossa parte uma atitude responsável — “apta a responder”.

Se alguém está palestrando, você não fica simplesmente esperando em condição de tédio embotado e sonolento até que o orador diga algo tão avassalador que sua mente turva seja tomada à força — não. Você se endireita e presta atenção. E jamais “ouvirá” o que Deus lhe diz enquanto não estiver disposto a escutar. Escutar é um estado “alterado” de consciência; é algo diferente da desatenção. Isso não significa que Deus não seja uma Realidade objetiva; ao contrário. A própria existência dessa Realidade objetiva exige que nosso estado de consciência seja alterado, de forma a chegar a uma compreensão dEla adequada — não à Realidade infinita de Deus, mas ao menos à plenitude de nossa capacidade humana, dada por Deus, de conhecê-Lo. E aquilo que essa Realidade exige, Ela mesma torna possível.

Além disso, se essa Realidade por vezes sobrepuja nossa mente, de modo que entremos em “estados alterados” de embriaguez espiritual ou êxtase, isso não é impróprio, a menos que tentemos deliberadamente produzir tais estados para nos comprazermos neles. Estados assim nos ensinam, em termos de experiência concreta, que a mente humana não pode abarcar Deus e, ao mesmo tempo, “alargam as fronteiras de nossa tenda”, queimando impurezas espirituais e ampliando nossa capacidade de compreender e obedecer a uma Realidade Divina que nunca poderemos abarcar totalmente. E, em algum ponto de nossa luta para compreender Deus — ou de renunciar a tentar compreendê-Lo — podemos, de repente, chegar à percepção de que somos compreendidos. Como disse o Profeta Maomé (que a paz esteja com ele): “Ora a Deus como se O visses, pois, mesmo que não O vejas, Ele te vê.” A perfeita compreensão que Deus tem de nós é o Ser Divino, o atman em nós, que é o sentido das palavras de Maomé: “Quem conhece a si mesmo conhece o seu Senhor.” E esse Ser Divino em nós é tão objetivo, tão “absolutamente outro” em relação a tudo o que posso experimentar como meu pequeno eu individual, quanto qualquer Pai Todo-Poderoso entronizado no céu.

Se vemos o Absoluto como o Númeno por trás de todos os fenômenos, ou como o Self dentro de nossa subjetividade psíquica, a Realidade é a mesma: dentro do sujeito, ou dentro do objeto percebido subjetivamente — e, ainda assim, infinitamente além de ambos —, está a Única Verdade.

Lembrar-se de que se está na presença de Deus é a prática espiritual central no hesicasmo cristão ortodoxo oriental (a Oração de Jesus, ou oração do coração), no sufismo islâmico (dhikr), e também é importante no hinduísmo (como japa). Todas essas três tradições continuam a produzir santos, que são a prova viva de qualquer religião. A maioria dos santos ortodoxos, muçulmanos e hindus praticou esse tipo de lembrança. Não que esta, ou qualquer outra prática espiritual, possa transformar alguém em santo, ou mesmo salvar sua alma. Mas, se pela graça de Deus a presença do Único se torna profundamente real para uma pessoa, ela será naturalmente movida, em simples gratidão, a trabalhar para remover tudo quanto impeça esse senso de presença, assim como é natural que alguém preste profunda atenção à pessoa que ama, ou não queira agir tolamente ou aparecer desleixado diante do Rei.

Meditação não é feitiçaria; é simplesmente atenção. Silêncio profundo não é magia; é simplesmente respeito pelo Único de quem esperamos ouvir — o Único que já nos fala agora, se ao menos fôssemos silenciosos o bastante para ouvi-Lo.

Quanto a práticas espirituais mais complexas, como posturas, visualizações, exercícios respiratórios etc., seu objetivo não é diferente da simples lembrança: remover todos os impedimentos a um sentido mais profundo da presença de Deus. E, embora sua natureza mais elaborada possa torná-las suscetíveis de perversão pelo querer prometeico, que sempre quer acreditar poder alcançar Deus por seu próprio esforço, no clima de graça que é uma tradição espiritual intacta tais práticas raramente degenerarão em magia, mas preservarão a essência da pura adoração.

III. Doutrinas New Age refutadas

A New Age contém muitos buscadores sinceros e, pelo que sei, possivelmente até alguns santos ocultos (mas Deus sabe melhor). Deus evidentemente tem tanto o poder quanto o direito de recompensar com o dom de Sua graça — expressa em termos de amor, conhecimento e poder — aqueles que O buscam sinceramente, apesar da insuficiência e até do perigo das doutrinas que tais buscadores possam sustentar. Mas esse fato não torna tais doutrinas mais adequadas ou menos perigosas. Da mesma forma, a aceitação da doutrina revelada ortodoxa não afasta os perigos da hipocrisia, do orgulho espiritual e de outros vícios; tal doutrina, contudo, não é menos proteção eficaz nem menos apoio à vida espiritual, nem menos intrinsecamente verdadeira, só porque alguns dos que se identificam com ela são corruptos.

Não pretendo que esta refutação de doutrinas New Age seja, de modo algum, um juízo sobre a sinceridade ou as conquistas espirituais dos que nelas creem; como o estado da alma de alguém é questão entre o indivíduo e Deus, não tenho nem o direito nem o poder de sondá-lo. A parábola do Bom Samaritano não foi destinada a invalidar a ortodoxia doutrinal, já que “não vim abolir a lei, mas levá-la à perfeição”. Mas foi destinada a apresentar o estado e o destino da alma humana, antes de tudo, em termos de “pelos seus frutos os conhecereis”.

Canalização de “entidades”

O mundo das espiritualidades alternativas, e em muitos aspectos a nossa sociedade como um todo, entrou num período em que o paradigma da magia — que inclui tanto a magia tecnológica quanto as formas “tradicionais” de magia — está substituindo o da religião, tanto exotérica quanto esotérica. Gente demais na New Age, herdeira do populismo espiritual hippie, ensina hoje que “todo mundo pode ser xamã, todo mundo pode canalizar ‘entidades’”. Certamente nem todos os seres no plano psíquico, ou no mundo dos jinn, são maus ou iludidos — segundo a doutrina islâmica, alguns jinn são muçulmanos e outros, não —, mas isso não significa que uma abertura frívola para aquele mundo não esteja expondo a sociedade ao perigo de possessão demoníaca em massa, e confirmando integralmente a previsão de Guénon de que a vida humana, nos dias finais do ciclo, estaria sujeita a incursões do “infra-psíquico”.

A canalização de “guias espirituais” é, talvez, a manifestação mais central das espiritualidades New Age. É uma prática que, embora nem sempre seja estritamente má, é profundamente perigosa; a maioria dessas “entidades”, quando não são simples criações da imaginação individual, é no mínimo ambígua e, em muitos casos, são demônios propriamente ditos, cuja natureza demoníaca se torna mais clara a cada ano que passa. E não é de forma alguma o aspecto menos destrutivo dessa canalização o fato de ela representar não uma simples ilusão, mas uma contrafação da doutrina tradicional.

O daimōn de Sócrates, o genius ou juno dos romanos, possivelmente certos aspectos da teurgia neoplatônica, o anjo da guarda no cristianismo, o fravashi no zoroastrismo, os espíritos dos profetas com os quais Ibn al-‘Arabī mantinha contato no Islã, o yidam ou divindade tutelar no budismo tibetano — tudo isso representa, em forma estritamente tradicional, a realidade de que a canalização de espíritos é, em grande medida, a imitação fraudulenta. Talvez a abordagem mais segura seja simplesmente chamar de demoníaco todo o “plano intermediário” ou ‘ālam al-mithāl, como muitos cristãos fizeram. Mas, se “não há direito superior ao da verdade”, então alguém precisa admitir que o plano intermediário não é estritamente demoníaco, mas sim perigoso e ambíguo. Nem todo peixe do mar é tubarão — mas cuidado com os tubarões.

Frithjof Schuon e Seyyed Hossein Nasr falam, por exemplo, da magia como uma ciência tradicional, e Schuon admite que exista algo como magia branca, isto é, a interação com “aqueles jinn que são muçulmanos” para fazer o bem, embora também advirta contra envolver-se com ela. Mas devo confessar que dizer essa verdade me deixa profundamente nervoso, porque pode tentar os frívolos a dizer: “muito bem, então praticarei apenas magia branca e ficarei longe da negra” — algo infinitamente mais fácil de dizer do que de fazer.

Práticas tradicionais como o exorcismo mostram, de fato, certas afinidades com a magia branca. O verdadeiro exorcismo, porém, aplica o poder espiritual ao plano psíquico, ao passo que a magia branca opõe poderes psíquicos benéficos a poderes malignos — algo que jamais deveria ser tentado fora de um contexto tradicional, como o de um xamanismo verídico, supondo que algum de nós possua critérios pelos quais distinguir o verdadeiro xamanismo de seus rivais degenerados ou falsificados.

Lembro-me de uma conversa telefônica que tive com um “curador espiritual” autodidata, que realizava exorcismos em parte por visualização. “Eu simplesmente explico à entidade obsessora que ela não precisa agir de modo tão perverso, que tem outras opções abertas para o progresso espiritual. Isso geralmente a despotencializa e lhe permite passar a planos mais elevados.” Quisera eu ter-lhe respondido: “Impressionante! Se até anjos decaídos são tão fáceis para você converter, por que não tenta trabalhar com assassinos em série? Estes deveriam ser brincadeira de criança.”

No plano dos princípios metafísicos, o que separa o daimōn de Sócrates de uma “entidade” como Ramtha? Como distinguir um anjo da guarda de um demônio enganador? Creio que a resposta não se encontra apenas no dom do discernimento de espíritos — que, é claro, é inestimável —, mas também na orientação básica da pessoa. Na medida em que alguém se relaciona com tais seres em termos de vontade, procurando-os, coagindo-os ou exigindo conhecimento deles, então eles não passam de espíritos familiares. Na medida em que se relaciona com eles em termos do Intelecto, não os buscando, mas aceitando-os quando se apresentam como dons de sabedoria, de conselho e de conhecimento, e não de poder, então é mais provável que sejam anjos. Ainda assim, espíritos enganadores podem aproximar-se até dos sinceros e podem ter interesse especial em perverter a vida espiritual daqueles que realmente progridem em amor e conhecimento.

Anjos são “mensageiros”. São enviados por Deus. Portanto, se alguém concentra-se em Deus, e não no mensageiro (e essa concentração só pode manter-se estável dentro dos limites de uma tradição revelada, embora Deus sempre possa fazer exceções), o mensageiro tenderá a ser angélico; ao passo que, se alguém se concentra no mensageiro em vez de Deus, então o mensageiro provavelmente é, ou se tornará, demoníaco.

Quando o carteiro traz uma carta do Amado, você não vai para a cama com o carteiro, nem faz amor com a carta; você se lembra dAquele a quem ama e aguarda o encontro com Ele em pessoa. Quando os habitantes de Sodoma quiseram possuir os anjos de Deus — sendo a luxúria sexual apenas uma forma dessa cobiça, que simboliza implicitamente todas as demais, especialmente a ganância espiritual —, foi exatamente isso o que fizeram. E é isso que me torna desconfiado da atual moda dos “anjos”; ela parece ser sinal de que o Deus Transcendente está se tornando menos real para muitas pessoas. O senso de uma comunhão viva e contínua com Deus é parte da piedade normal. A aparição de um anjo é, em regra, um acontecimento raro. Mas quando visões de anjos se tornam mais comuns do que o senso da realidade de Deus, então a situação é obviamente anormal, e Deus está a caminho de tornar-se, na mente coletiva, um deus otiosus, como o Deus Altíssimo em muitas (não em todas) tribos africanas. A religião norte-americana, nesse sentido, está na verdade tornando-se mais parecida com as religiões não cristãs e não muçulmanas da África tropical; embora ainda se admita a existência do Deus Altíssimo que criou o mundo, Ele já não é acessível, enquanto várias entidades psíquicas, longe de serem inacessíveis, estão se tornando cada vez mais difíceis de evitar.

Falando em termos das religiões tradicionais africanas e chinesas, e do xintoísmo japonês, essas entidades podem representar os Antepassados Deificados que, por sua vez, simbolizam os arquétipos espirituais permanentes, ou hipóstases divinas, ou Nomes de Deus; podem também ser fantasmas e demônios. E à medida que o senso do Deus Transcendente enfraquece, é muito mais provável que encontremos fantasmas e demônios do que arcanjos.

Assim, no que diz respeito à canalização de espíritos — que em sua forma popular deve claramente ser rejeitada — creio que a atitude correta é admitir a existência de anjos assim como de demônios, reconhecer que influências angélicas estão no domínio do possível, mas enfatizar que, embora Deus possa enviar seus anjos para se comunicarem conosco, o desejo de encontrar um anjo é quase sempre destrutivo. “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” — incluindo os anjos, se Deus assim o quiser, embora a experiência consciente do plano angélico não seja absolutamente necessária à vida espiritual.

Creio que é melhor admitir a possibilidade de intervenção angélica, porque, se dissermos que é possível e até provável encontrarmos demônios, mas extremamente improvável, senão efetivamente impossível, encontrarmos anjos, podemos acabar pregando a rejeição dos mensageiros de Deus, dando assim mais ajuda e conforto às potências das trevas.

Não devemos supor, porém, que só porque demônios e anjos são reais, as figuras “canalizadas” sejam sempre entidades psíquicas. Durante minha excursão de dois anos pelo universo New Age, ouvi uma história sobre canalização que nada tinha a ver com o sobrenatural, mas muito a ver com psicologia. Uma mulher criada por pais adotivos vinha canalizando uma “entidade” enquanto, ao mesmo tempo, buscava seus pais biológicos. Eis que, quando os encontrou, descobriu que seu nome de batismo original, de que não tinha nenhuma lembrança consciente, era o nome de sua “entidade”!

Também naquele período formei a impressão de que certa canalização tem a ver tanto com o colapso da autoridade social tradicional quanto com uma profunda falta de autoconfiança intelectual por parte dos envolvidos. Se alguém não possui uma sabedoria socialmente aceita para aplicar a diferentes circunstâncias, e não confia na própria capacidade de dar sentido às coisas, pode fabricar psicologicamente uma “entidade” infalível para desempenhar essas funções. É como se, quando a sociedade não sustenta uma identificação das faculdades de pensamento racional e de bom juízo com a personalidade consciente, essas faculdades pudessem tornar-se “complexos autônomos”. Se você não consegue acreditar em sua própria capacidade de pensar, sempre pode atribuir essa capacidade ao seu espírito familiar, que não necessariamente será capaz de pensar, mas ao menos representará um gesto pateticamente esperançoso nessa direção.

Equívocos neopagãos

O mundo New Age/neopagão acredita fervorosamente que seu conhecimento é esotérico. Mas, como quase nunca se faz ali a distinção entre psique e Espírito — distinção que, anos atrás, ouvi ser chamada de “patriarcal” por membros de um “coletivo de espiritualidade feminista” —, o termo “esoterismo” não pode legitimamente ser-lhe aplicado. Crê-se, em muitos círculos neopagãos, que imaginar um nível de realidade mais alto que o psíquico é apoiar a tirania política, cooperar com a opressão das mulheres, destruir o meio ambiente natural e Deus sabe o que mais. Consequentemente, o conhecimento entre os neopagãos permanece, em sua maior parte, no nível psíquico — que, como já dissemos, é um nível real de ser, sobre o qual nos faria bem saber alguma coisa, especialmente porque, em nossos tempos, as experiências psíquicas estão se tornando mais difíceis do que nunca de evitar. Mas, a menos que a psique seja guiada e protegida pelo Espírito, tal conhecimento rapidamente se torna ilusório e, muitas vezes, demoníaco.

Muita gente (e não apenas os neopagãos), graças a escritores como Sir James Frazer, Robert Graves e seus sucessores, acredita hoje que o núcleo secreto e esotérico da tradição judaico-cristã-islâmica é na realidade o paganismo. Esse equívoco está em plano inteiramente diverso do “ecumenismo esotérico” (termo de Schuon) que nos permite ver verdadeiras afinidades entre as religiões abraâmicas e certos “paganismos altos”, como o orfismo ou o neoplatonismo.

Escritores com formação em psicologia junguiana, ou interessados em mitógrafos como Joseph Campbell, tentarão rotineiramente traçar toda e qualquer passagem bíblica ou doutrina judaico-cristã a sua suposta raiz “pagã” — cegamente, automaticamente, e sem trégua. Paralelos certamente existem, mas a ideia, raramente questionada em meios mitopoéticos e neopagãos, de que o judaísmo e o cristianismo são na verdade paganismo disfarçado, é simplesmente falsa.

Ela ignora séculos, senão milênios, de perseguição dirigida contra os judeus pelas mais poderosas nações pagãs do Oriente Próximo; ignora a perseguição da religião judaica levada adiante pelos gregos selêucidas pagãos; ignora a perseguição tanto de judeus quanto de cristãos pelo paganismo greco-romano sob o Império Romano; ignora a posterior contra-perseguição, pelos cristãos, do paganismo greco-romano; ignora a destruição muçulmana de cultos pagãos; ignora séculos de polêmica teológica de judeus contra pagãos, pagãos contra cristãos e judeus, e cristãos e muçulmanos contra pagãos.

Essas perseguições e contra-perseguições não foram apenas políticas; representavam também reais divergências doutrinais. As religiões abraâmicas, quaisquer diferenças que tivessem entre si, e quaisquer recaídas em direção ao paganismo em que possam ter incorrido, partilharam uma oposição clara e deliberada a ele, assim como os pagãos, em geral, se opuseram às religiões abraâmicas. Os dois campos diferentes criam em coisas diferentes, sabiam disso e o diziam. Por outro lado, as religiões abraâmicas partilham com a religião egípcia, e com as raízes órfico-pitagóricas arcaicas do paganismo clássico, uma relação com aquilo que Guénon e os tradicionalistas chamam de Tradição Primordial.

Mas essa Tradição não deve ser estritamente identificada nem com o paganismo nem com o monoteísmo abraâmico, embora as religiões abraâmicas a tenham preservado em forma mais pura do que o paganismo degenerado da Antiguidade tardia. Em todo caso, o paganismo de que Frazer e Graves trataram pouco se assemelha à verdadeira Tradição Primordial, ainda que qualquer um que compreenda essa Tradição possa sempre reconhecer, mais ou menos, restos degenerados dela no material apresentado por ambos os escritores, bem como na religião teutônica, no druidismo celta, na religião babilônica e nos mitos gregos e romanos.

Materialismo sutil

Como lhe falta uma doutrina sólida e bem articulada da transcendência, a New Age tende a um materialismo sutil. O Divino e o meramente cósmico são frequentemente confundidos. Deus é concebido como uma forma de energia útil que pode ser captada e manipulada pelos seres humanos, algo na linha da “Força” dos filmes Star Wars.

A Divindade transpessoal, de que o Deus pessoal é a primeira manifestação formal, é imaginada antes como uma fonte impessoal de energia ou um conjunto de leis naturais, na linha da gravitação ou da energia nuclear. A pessoa humana é sutilmente desvalorizada; o reconhecimento do valor eterno e qualitativo da pessoalidade, já que é falsamente identificado com um egoísmo “humano-demais”, é substituído por um culto quantitativo da energia. Os segredos dos mundos celestes devem ser encontrados na estrutura do DNA humano. O senso da Eternidade é substituído pelos paradoxos espaço-temporais da física pós-einsteiniana.

As palavras “Deus” e “universo” são usadas de modo intercambiável; para Deepak Chopra, por exemplo, Deus é o “computador cósmico”. E, para José Argüelles, como antes para Timothy Leary, o Centro do Ser já não está virtualmente em toda parte — e, portanto, a ser encontrado, do ponto de vista humano, nas profundezas transcendentais do Coração espiritual —, mas passa a ser identificado com o centro da galáxia. É claro que todo o conceito de Ser, em comparação com o da metafísica tradicional ou mesmo da teologia exotérica, sofreu um rebaixamento quântico.

Um dos sinais de tal materialismo na New Age é a idolatria dos cristais. Conheci adeptos New Age que agiam como se possuíssem, em cristais de quartzo, fluorita ou ametista, verdadeiros pedaços de Deus. Essa cristalolatria, em nossa cultura pós-cristã, provavelmente se baseia em uma compreensão decadente da Encarnação de Cristo — ou talvez numa intuição da forma final “cristalizada” que será assumida por este ciclo de manifestação (a Jerusalém Celeste do Apocalipse), mal-interpretada de modo literalista. Segundo o simbolismo tradicional, as joias de que a Jerusalém Celeste é composta são sabedorias celestes.

O uso de joias, cristais e minerais coloridos como ferramentas mágicas — ao menos fora do xamanismo tradicional — indica, portanto, uma degeneração em nossa compreensão coletiva da própria Sabedoria. Sophia já não é venerada como raio da Natureza Divina; a matéria em si, espelho de Sophia, é que é adorada. A matéria, como Einstein provou, libera enorme poder — mas apenas em seu ponto de dissolução. Assim, nosso culto da matéria é essencialmente um culto de poder autodestrutivo e contraditório.

O lado mais luminoso da New Age: cura psíquica e holística

A New Age, em um nível, representa a redescoberta ou reinvenção de muitas ciências cosmológicas tradicionais, embora fora de um contexto religioso e metafísico que pudesse orientá-las com segurança para o Absoluto. Por exemplo, muitos praticantes New Age possuem um conhecimento prático sofisticado de energias sutis, que, até certo ponto, pode legitimamente ser usado com finalidade terapêutica. Mas onde, exatamente, se encontra esse limite?

Deveria ser óbvio que é um exagero chamar de demoníacas certas terapias físicas vagamente New Age, como a integração estrutural (“Rolfing”), como alguns cristãos conservadores tendem a fazer, que poderiam proibir um cristão de praticar, por exemplo, a postura invertida do hatha-yoga como terapia para sinusite crônica ou para melhorar o suprimento de sangue ao cérebro, sob o argumento de que isso não é cristão e, portanto, é anticristão e, logo, satânico. O fato é que ficar de cabeça para baixo às vezes cura sinusite, e que o trabalho corporal profundo pode melhorar a postura e eliminar dores crônicas.

E proibir, digamos, a prática ecologicamente correta da agricultura biodinâmica só porque foi desenvolvida pelo “ocultista cristão” Rudolf Steiner seria igualmente tolo.

A prática é uma coisa, o paradigma que lhe deu origem é outra. Poder-se-ia, com igual ou maior razão, recusar a implantação cirúrgica de uma válvula cardíaca artificial, ou de uma lente intraocular, ou de uma prótese de quadril, porque tais intervenções se baseiam no paradigma que vê o corpo humano como máquina biológica, e não como “imagem e semelhança de Deus”.

Por outro lado, o paradigma necessariamente influencia a prática, de maneiras nem sempre óbvias; é preciso certo grau de discernimento espiritual para ver onde termina a prática e começa o sistema de crenças daqueles que a desenvolveram. Ida Rolf, por exemplo, explicava a integração estrutural em termos influenciados pela teosofia moderna, que é essencialmente um ocultismo anticristão.

Mas o fato é que a teosofia apresenta, em forma distorcida, material roubado de ensinamentos tradicionais válidos, como a doutrina hindu dos kośas, as várias “vestes” do Ser Divino em nós — intelecto, mente, corpo etc. —, doutrina estritamente análoga a ensinamentos dos Padres cristãos sobre a natureza trina do homem — espírito, alma e corpo — e sobre as várias faculdades da alma.

Se um membro de família foi raptado e violado, não o rejeitamos quando nos é devolvido, mas trabalhamos para curá-lo e reintegrá-lo à família. O mesmo é — ou deveria ser — verdadeiro quanto a doutrinas tradicionais esquecidas que foram tomadas em forma distorcida pelo ocultismo. Ainda assim, se você não consegue substituir seu quadril sem pensar em si mesmo como um robô sem alma, ou passar por uma sessão de Rolfing sem aderir a ideias ocultistas distorcidas, então é melhor não o fazer.

Nutrição, herbologia, várias formas de trabalho corporal, acupuntura… tudo isso pode ser aplicado, por praticantes bem treinados, com bons resultados. Minha esposa e eu nos beneficiamos muito da integração estrutural, que, no caso dela, eliminou problemas posturais de que sofrera a maior parte da vida.

Tipos de cura que utilizam exercícios respiratórios, como o Rebirthing, são mais ambíguos, já que ativar à força os sistemas sutis de energia do corpo pode ser perigoso física e psicologicamente, sobretudo quando praticado fora de formas tradicionais, como o prāṇāyāma ióguico, que exige dieta e estilo de vida específicos, a orientação de um mestre e até um quadro doutrinal tradicional para ser praticado com segurança. O Rebirthing foi muito útil para mim em épocas de grande estresse, mas o paradigma em que se baseia, que inclui em alguns casos a fantasia da imortalidade física, é um claro inconveniente que precisa ser filtrado.

Quando a forma de cura em questão lida com energias psicofísicas ainda mais sutis que as ativadas pelo controle da respiração, ela se torna mais ambígua. E quando tais energias são concebidas como modificadas ou intensificadas pela intervenção de “entidades curadoras” do plano psíquico, como é tradicionalmente comum no xamanismo, a situação torna-se ainda menos certa e mais exposta a perigos ocultos.

Eu mesmo experimentei benefícios de algumas dessas práticas. Por exemplo, a energia canalizada por uma igreja japonesa New Age, a Joh-rei Fellowship — que parece ter origem em nível muito elevado do plano psíquico —, parece inteiramente benigna. O motivo por que deixei de frequentá-la, depois de muitos anos de experiência positiva, teve mais a ver com a divergência entre a visão de mundo da metafísica tradicional, que se tornara central para mim, e a de uma nova religião japonesa devotada a trazer o paraíso à terra, embora sua doutrina da futura “purificação” do mundo não seja totalmente diversa das escatologias tradicionais, ainda que com um viés New Age.

O Joh-rei incorpora muitos elementos tradicionais budistas, xintoístas e (em última análise) taoístas/xamânicos; ainda assim, a “graça barata” da experiência talvez estivesse interferindo de modo sutil com minha disposição de confiar em minhas próprias práticas espirituais mais tradicionais e em minha fé em Deus.

O Joh-rei parece relativamente seguro, na medida em que não parece abrir o corpo etérico ou de energia sutil. Várias outras formas de cura psíquica, contudo, que de fato intervêm com força no nível da energia sutil, podem, sem querer, abrir a pessoa a outras influências, que estão longe de ser saudáveis.

Os curadores mais poderosos dessa categoria são os cirurgiões psíquicos das Filipinas. Experimentei esse poder em várias ocasiões, tanto nas Filipinas quanto aqui nos Estados Unidos. Embora haja alguns charlatães, os que conheci são genuínos. Estou convencido disso, tendo observado várias operações e tendo sido operado por eles. Como não há como eu provar isso, o leitor terá de limitar-se a acreditar que eu acredito.

Esses curadores têm o poder de abrir partes do corpo humano com as mãos nuas para remover matéria estranha e tecido doente, virtualmente desmaterializando áreas específicas, que em seguida se recompõem imediatamente, como água em uma bacia que não deixa buraco quando se retira dela um objeto. Há pouca ou nenhuma dor, e nenhum período de convalescença, exceto um processo de “voltar ao normal” em nível de energia sutil, que pode levar um ou dois dias.

Embora os cirurgiões psíquicos possam abordar a cura de condições graves ou apenas incômodas de formas impossíveis à ciência moderna, sua taxa de sucesso, segundo suas próprias estatísticas, é comparável: um terço curado, um terço melhorado e um terço inalterado. Eu geralmente estava no segundo terço.

Embora a maioria dos cirurgiões psíquicos sejam cristãos e atribuam seu poder ao Espírito Santo — o que não há razão para, necessariamente, duvidar —, é claro que utilizam uma técnica xamânica antiga. Poderes similares foram atribuídos a xamãs em muitas partes do mundo, embora a maioria dos primeiros exploradores costumeiramente as explicasse como truques de prestidigitação, outra antiga prática “espiritual” ainda usada por charlatães hoje.

Creio que os cirurgiões psíquicos trabalham através do mundo dos devas ou dos jinn, seres residentes no plano psíquico que podem interagir com o plano material em certas circunstâncias. Alguns desses seres são claramente benéficos e podem de fato estar operando sob a bênção do Espírito Santo. Ainda assim, a cirurgia psíquica não é miraculosa. Dá a impressão de ser uma tecnologia psíquica antiga e sofisticada, desenvolvida por culturas que eram tão avançadas nesse campo quanto nós o somos em nossa própria marca de magia de alta tecnologia. É uma intervenção bem-intencionada de indivíduos altamente treinados e orientados para o serviço. Não é um ato direto de Deus.

Os cirurgiões psíquicos genuínos que conheci são poderosos e benevolentes. Ajudaram muita gente. Contudo, é verdade que tal cirurgia, e outras formas de cura psíquica que lidam com o corpo de energia sutil, trazem perigos ocultos. Um perigo é que possamos nos viciar em presenciar prodígios e comecemos a perder a fé, já que estamos agora tentando fundamentá-la na demonstração: “prova” não é fé. “Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram.”

E, se a cirurgia física expõe ao risco de infecção pós-operatória, o mesmo pode ser verdadeiro para a cirurgia psíquica em nível mais sutil. Se o paradigma de “livrar-se do mal” não for subordinado ao paradigma de “abrir-se à verdade e ao amor de Deus”, essa purificação meramente negativa pode resultar na condição descrita na parábola de Jesus, em que o demônio expulso vagueia por lugares áridos, lembra-se de sua antiga “casa”, volta e a encontra “varrida e adornada”, como que pronta para recebê-lo, e traz consigo sete demônios piores do que ele. (A ex-terapeuta New Age Clare McGrath-Merkle escreve com grande lucidez sobre essa possibilidade, a partir de dura experiência pessoal, bem como sobre os perigos psíquicos, psicológicos e físicos do trabalho com energias sutis e da “magia branca” em geral.)

Quanto a mim, só posso compartilhar dois fenômenos interessantes. Tendo recebido ajuda clara dos cirurgiões para um problema de saúde preocupante, adquiri o hábito de visitá-los sempre que vinham à minha região. Então notei algo curioso: se num primeiro momento eram úteis, nas duas últimas vezes em que os procurei meu problema voltava, em pequena escala, pouco antes de sua chegada, como se precisasse estar ali só para que eles o pudessem curar. Seria a própria presença deles a atrair mais impurezas à superfície? Ou eu havia entrado em uma zona de retornos decrescentes e de apegos sutis? Felizmente, meu dilema foi resolvido por meu diretor espiritual que, com gentileza mas firmeza, pediu que eu parasse de vê-los.

O segundo fenômeno — comparável, em termos emocionais, a ver um muro de tijolos desabar sobre um trecho de calçada por onde se vinha caminhando — foi que, após minha última visita aos cirurgiões psíquicos, sonhei com o Anticristo. Não tomo isso necessariamente como significando que os cirurgiões sejam de fato seus servos — embora Deus saiba melhor. Mas permanece o fato de que a “religião psíquica” que se apoia em sinais e prodígios estará entre os primeiros territórios a serem conquistados e ocupados pelo Anticristo quando ele vier… e, quando as embarcações de desembarque forem lançadas e o bombardeio naval começar, não é boa ideia ficar na praia.

Nove princípios da New Age

O Dr. Rama Coomaraswamy, em um artigo intitulado “A dessacralização do hinduísmo para consumo ocidental”, enumera nove princípios New Age, que ele toma de um livro da Dra. Catheryn Ridall, Ph.D., e que representam a essência dos “ensinamentos espirituais” canalizados hoje. Abaixo segue um resumo deles, em que tento separar os elementos de verdade espiritual da matriz de erro que é a doutrina New Age.

Uma falsificação é pior do que um simples erro. Esses nove princípios estão cheios de equívocos que, no entanto, são precisamente concebidos para obscurecer verdades metafísicas específicas. E o efeito de tais contrafações é que “se você faz, está condenado; se não faz, também”. O Diabo adora empregar falsificações, porque aceitá-las é ser levado ao erro, ao passo que rejeitá-las sem expô-las — isto é, sem trazer à luz o verdadeiro princípio que a falsificação foi concebida para esconder — é ser manobrado a rejeitar a verdade que está sendo imitada.

Tentarei desconstruir os “princípios” que se seguem, expor as falsificações de que são feitos e apresentar os princípios tradicionais que elas velam:

  1. Evolução universal da consciência rumo a maior amor e compaixão.

Isto é certamente falso se aplicado à coletividade humana ou ao universo material. A receptividade da consciência encarnada e condicionada pelo tempo à Realidade Divina cresce e decresce de modo cíclico, e a receptividade humana a Deus, no plano coletivo, encontra-se hoje em queda acentuada e irreversível. A verdade encoberta aqui é que o destino da alma individual no caminho espiritual é “evoluir” no sentido de “desenrolar o que foi enrolado”, dissolvendo o núcleo duro de egotismo e de vontade própria.

Essa “evolução” inclui certamente o desenvolvimento da compaixão — em termos do budismo mahayana, “a realização do vazio (não-ego) é idêntica à compaixão” —, mas (e aqui o princípio é enganoso por ser incompleto) essa “evolução” resulta também no desenvolvimento de um verdadeiro conhecimento objetivo.

  1. No contexto da evolução universal da consciência, podemos ser guiados tanto por seres mais ‘evoluídos’ do que nós quanto por partes superiores de nós mesmos que também estão evoluindo.

É certamente verdade que pessoas mais sábias do que nós, seja porque nasceram mais sábias, seja porque percorreram mais do caminho espiritual, podem às vezes ser designadas por Deus para nos guiar, se preenchermos as condições necessárias — desde que nós e elas compreendamos que, em última análise, Deus é o único guia.

E, em casos raros — como o do guia sufi Khidr, considerado um profeta imortal, desencarnado, ou melhor, habitando um corpo sutil como o Cristo glorificado —, seres mais “avançados” do que nós podem legitimamente nos guiar de modo ao qual possamos responder conscientemente. Mas crer que essa possibilidade rara torna desnecessário conectarmo-nos a uma tradição revelada e colocarmo-nos (se Deus quiser) sob a orientação de um representante humano plenamente autorizado dessa tradição, supondo que exista um, é falso.

E crer que o contato consciente e contínuo com um “guia” desencarnado seja normal — para qualquer um que não seja um feiticeiro, isto é, alguém em comunhão com seu espírito familiar - e que tal contato não é uma porta aberta para a possessão demoníaca é uma ilusão profundamente enganosa. Além disso, dizer que podemos ser guiados pelo nosso “eu superior”, que também está evoluindo, é falso; tentar orientar-se espiritualmente para algo que ainda está no reino do devir é reduzir o significado de “orientação espiritual” a zero.

Se há algum sentido para o termo “eu superior”, ele só pode referir-se, não a jiva (a alma individual), mas ao atman, o nível de Espírito em nós que Eckhart indicou quando disse: “há algo dentro da alma que é incriado e incriável”. O atman não nos guia no sentido de que possamos travar com ele uma conversação, mas porque, como “o Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente” (Schuon), Deus no modo de Testemunha, ele representa a moksha virtual (termo hindu para a Libertação final), no sentido em que o Buda falava ao dizer que “todos os seres são iluminados desde o princípio”, embora soubesse muito bem que nem todos os seres, dentro de um determinado período de tempo, viriam a realizar essa iluminação.

Reflexos psíquicos do atman, sugestivos dele embora não devam ser identificados com ele, certamente podem aparecer em sonhos ou visões. Esses reflexos serão enganosos, ambíguos ou veículo da Graça de Deus, dependendo da vontade de Deus para aquela pessoa e de seu estado espiritual. The Psychology of Sufism, do Dr. Javad Nurbakhsh, por exemplo, contém um catálogo de símbolos oníricos do Coração espiritual, que Jung chamaria de símbolos do arquétipo do Self. Mas tais símbolos só funcionam como marcos psíquicos confiáveis dentro do contexto do próprio sufismo, assim como os símbolos da Cabala só funcionam para cabalistas iniciados e praticantes, etc.

3,4. A terra está em um ponto crítico de seu desenvolvimento; estamos testemunhando uma grande mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual; estamos caminhando rumo a maior maturidade espiritual; a terra passará por uma purificação de valores e da organização social; haverá mudanças terrestres como terremotos.

É verdade que a terra está em um ponto crítico, mas a mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual e organização social não é rumo a maior maturidade espiritual, mas rumo ao caos e à dissolução. É verdade que haverá, e já há, mudanças terrestres, como foram preditas por Jesus para o fim do século, e verdade que haverá uma purificação. Mas essa purificação será apocalíptica, não progressiva, e representará o fim da humanidade atual. O “novo céu e a nova terra” serão para “outra” humanidade.

5.      Guias estão agora aparecendo para nos ajudar através dessa transição para uma era de paz; novas energias de frequência mais elevada causarão distúrbios menores no comportamento.

É falso que estejamos em transição para um tempo de paz, a não ser que se trate de uma paz falsa e temporária; portanto os “guias” que afirmam estar nos ajudando através dessa transição são enganosos. Nem os distúrbios atuais de comportamento são “menores”, para dizer o mínimo. É verdade, de certo modo, que estamos encontrando “energias superiores”, mas isso se dá porque nosso próprio nível de integração está caindo a tal ponto que a Graça sempre presente de Deus só pode ser experimentada, no plano coletivo, como ira, já que não somos receptivos a ela. O “nível de energia”, ou nível ontológico, da parousia ultrapassa de tal maneira aquilo que o mundo pode receber que o despedaçará, abrindo caminho para “um novo céu e uma nova terra”.

6.      O ser humano é uma parte de uma alma ou eu-divino multidimensional; somos muito mais do que pensamos ser.

Verdadeiro e falso. Como disse Jesus, “vós sois deuses, e todos filhos do Altíssimo”. Mas ele equilibrou isto dizendo: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, que é Deus”. É verdade que a humanidade existe simultaneamente em mundos mais altos do que o material, a saber, o psíquico e o Espiritual. Não ascendemos simplesmente a esses mundos, nem neles ingressamos pela primeira vez quando morremos, porque a “Grande Cadeia do Ser” representa o “raio” mediante o qual Deus nos criou e mantém na existência, instante após instante.

Se, porém, nos voltamos contra esses mundos superiores — dando nossa fidelidade ao ego em lugar de dá-la a Deus —, então eles se tornarão nosso Inferno: a psique, um caos angustiado; o Espírito em nós, uma Luz cortante e cegante que nos força a afastar-nos do Centro radiante do Ser, como as legiões de Miguel expulsando o Demônio e seus anjos para o abismo. A questão central é esta: esses aspectos mais elevados de nosso ser são reivindicados pelo ego, como se fôssemos autocriados, ou são vistos como dom de Deus, de nosso próprio ser, que não podemos reivindicar como nosso nem mesmo em termos materiais?

Os adeptos da New Age gostam da ideia de que existimos simultaneamente em mundos superiores; com o que têm maior dificuldade é com o fato de que “aquele que quiser salvar sua vida a perderá, mas aquele que perder sua vida por amor de Mim a encontrará”. Isto porque querem reivindicar esses mundos superiores para o ego; ensinam que podemos entrar e “explorar” esses mundos como espécie de atividade de lazer, por uma simples expansão incremental de nosso “potencial humano”, sem piedade, sem sacrifício, sem temor de Deus. Sua doutrina é essencialmente prometeica; escolhem esquecer que “quem nasce duas vezes precisa morrer uma vez”.

7.      Criamos nossa própria experiência em todos os níveis; não há vítimas; criamos nosso próprio sofrimento como experiência de aprendizado.

É falso dizer que criamos nossa própria experiência se o “nós” em questão é a psique individual, porque a psique não se cria a si mesma, sendo totalmente contingente em relação ao Espírito de Deus, e porque outras psiques individuais existem; o solipsismo aqui implícito é assim refutado tanto “vertical” quanto “horizontalmente”. Há, entretanto, um sentido em que isso é verdadeiro, mas apenas em sentido negativo, já que certamente criamos algumas de nossas próprias limitações perceptivas. Em vez de “criamos nossa própria realidade”, seria melhor dizer “criamos nossas próprias ilusões, que então se tornam nossa ‘realidade’”.

A psicologia da percepção demonstrou até que ponto nossa visão do mundo é um padrão aprendido, determinado tanto pela cultura quanto pela experiência pessoal, senão por uma série de escolhas baseadas no medo e no desejo. Isso significa que, na medida em que tomamos o mundo que percebemos como algo absoluto, estamos aprisionados em um padrão subjetivo, ao passo que, se percebemos que esse padrão subjetivo de experiência é relativo, que, em face da Realidade objetiva, ele não passa de uma privação, então começamos a libertar-nos dele, já que passamos a intuir a Matriz Absoluta da qual tal padrão é apenas uma versão editada.

Assim, quando os crentes da New Age dizem “criamos nossa própria realidade”, minha resposta é “Sim e não. Nossa mente e nossos sentidos não projetam essa ‘realidade’ sobre o nada, mas a abstraem a partir do Infinito, que é a verdadeira Realidade; a ‘realidade’ que criamos é uma limitação imposta ao Infinito”.

Dizer “não há vítimas” é verdade se com isso queremos dizer que tudo, em sentido último, é um ato de Deus, e Deus é justo — como diz Schuon, mesmo o sofrimento do inocente é justificado do ponto de vista que vê a própria existência cósmica, embora em certo sentido necessária, como um desequilíbrio diante do Absoluto. Nas palavras de Rabi’a: “a tua existência é um pecado com o qual nenhum outro pecado pode ser comparado”.

A ideia de que não há vítimas é uma interpretação da lei do karma — mas, se se dá a entender nessa interpretação que a caridade para com os que sofrem não é obrigatória para nós, já que “isso é apenas o karma deles”, ou que podemos tornar-nos libertos simplesmente criando ilusões para nós mesmos e depois vendo através delas, então ela é falsa. O karma não é um sistema autoexaurível; sem dharma, a verdade operante que eleva alguém acima do nível de causa e efeito kármico ao afirmar a realidade da autotranscendência, o karma nunca pode ser “vivido até o fim”; sem a Misericórdia da Verdade de Deus, livremente dada e livremente aceita, juntamente com sua “cruz”, a ilusão nunca pode ser dissipada. A danação é a prova de que nem todo sofrimento tem o poder de iluminar.

8.      A matéria segue o pensamento; nossa realidade física é criada, e pode ser mudada, por nossas crenças.

A matéria segue o pensamento de Deus, não o nosso; sugerir o contrário, dizer que somos cocriadores por direito próprio, é falso. É verdade que nossa experiência pode ser mudada ao mudarmos nossas crenças, mas essa mudança não pode ser soberana nem arbitrária. Não podemos simplesmente acreditar no que quisermos e pensar que estamos assim controlando o mundo, porque realmente há uma realidade objetiva, tanto em nós quanto fora de nós, algo que é exatamente o que é, não importa o que aconteça de acreditarmos.

E é também provável que tenhamos tão pouco controle sobre nossos desejos, sobre aquilo em que queremos crer, quanto sobre o mundo exterior. Acreditar que podemos mudar o que é mudando o que cremos a respeito do que é é a fantasia de onipotência do ego infantil expandida em falso princípio metafísico.

Uma mudança de crença pode alterar nossa experiência de duas maneiras apenas: se conformarmos nossas crenças à Verdade espiritual objetiva, veremos o universo como ele realmente é, ao mesmo tempo contingente em relação a essa Verdade e manifestação dela; se nossas crenças forem determinadas pelo ego, que interpreta o mundo ao seu redor apenas com base nos próprios medos e desejos, nada perceberemos e produziremos senão caos.

Agora, em sentido mais limitado, é verdade que uma pessoa profundamente deprimida, por exemplo, acreditará que menos coisas são possíveis em relação ao seu entorno físico, enquanto alguém em estado maníaco pode temporariamente ser capaz de responder a possibilidades físicas e psicológicas reais que o deprimido não consegue ver — mas não sem consequências graves, já que ele não percebe as limitações inerentes a tais possibilidades, que estão objetivamente lá, independentemente da crença.

É certamente verdade que um santo pode ser veículo de milagres físicos, mas isso nada tem a ver com manipulação de crença, sendo operação direta de Deus tornada possível pela fé. Um mago também pode ser capaz de produzir mudanças na matéria física ou em situações, e poder-se-ia dizer que consegue fazê-lo porque acredita que consegue, mas as manifestações reais são produzidas por forças psíquicas que existem quer ele creia nelas, quer não. O mago branco necessariamente compreenderá que é veículo de forças de um plano mais sutil, mas o mago negro frequentemente acredita, falsamente, que comanda tais forças; ele aplica o ingênuo credo cotidiano de que “sou capitão do meu destino, senhor da minha alma” a planos mais sutis, não querendo entender que quem quer que creia que, com seu ego limitado, comanda as forças de um reino mais sutil, está na verdade escravizado por elas.

A prática da magia é como emitir cheques sobre uma conta no vermelho: embora você talvez possa “descontá-los” e assim produzir “fenômenos”, eles serão fenômenos de dívida, não de valor. “E não sairá dali enquanto não tiver pago o último centavo.” O ego não pode produzir nada além de privação; todo poder e todo valor pertencem a Deus.

É verdade que, se todos conformássemos perfeitamente nossa consciência à Realidade espiritual objetiva, o mundo material se dissolveria e seria transformado em Paraíso. Mas isso está tão distante quanto possível da ideia de que nossas crenças criam a realidade a partir do nada, visto que tal conformação perfeita — que, obviamente, é impossível em termos práticos — não poderia ser função de crença, que vê “como por espelho, em enigma”, mas apenas de verdadeiro conhecimento objetivo. Como ressaltei acima, o ego não cria; ele apenas edita.

9.      Embora nossa expressão individual demonstre grande diversidade, somos todos, em última análise, um.

Verdade. A única questão é: em que sentido somos um? Se isto se entende horizontalmente, no plano social ou em termos de participação nos mesmos motivos subconscientes, então o melhor que se pode dizer é que, para o bem ou para o mal, estamos relacionados, ou apenas “relativamente unos”. Nossa verdadeira unidade é vertical, em virtude do atman ou Self Divino em nós; somos todos criações, ou manifestações simbólicas, do único Self Divino. Em virtude desse atman somos, no mais profundo nível do nosso ser, ao mesmo tempo únicos e universais.

O Self em nós é Ser puro, transpessoal, universal, sem atributos; em outro sentido, está até além do Ser. Mas, como Deus é único bem como universal, o Self é também o princípio de nossa integridade humana única, segundo a qual não somos simplesmente a humanidade em abstrato, mas seres humanos efetivos, ordenados por Deus a ser precisamente nós mesmos, nem mais, nem menos, nem outros.

E, contudo, essa singularidade é também universal, já que é partilhada por todos os seres humanos e, de fato, por todas as coisas. O Self como princípio de unicidade não é outro que o Self como princípio do Ser puro, como quando Deus, falando a Moisés no Êxodo, nomeia-se a Si mesmo “Eu Sou o que Sou”, isto é: “Minha Essência única não é outra que Meu Ser puro; é Minha Essência única ser o Ser puro”. E o que Deus pode dizer de Si mesmo, podemos igualmente dizer, pelo menos virtualmente, de Deus, o atman em nós.

E mais dois

A esses nove princípios, gostaria de acrescentar outros dois que creio serem igualmente integrantes da crença New Age:

10.  Que psique e Espírito são idênticos.

11.  Que a espiritualidade é uma conquista pessoal, um feito, um tour-de-force.

Como demonstro em muitos lugares ao longo deste livro, ambos esses princípios são inteiramente falsos.

Os cristãos não estão sozinhos

Como a New Age é em grande parte um fenômeno “pós-cristão” e, com frequência, abertamente anticristão, a maioria das críticas a ela (se deixarmos de lado os humanistas seculares, que tendem a ver todas as religiões mais ou menos como seitas) veio do campo cristão. A maioria, mas não todas.

Em The Desacralization of Hinduism for Western Consumption, o Dr. Rama Coomaraswamy, um católico tradicional que viveu por muitos anos, na juventude, como hindu ortodoxo, traça as carreiras de Sri Aurobindo, Maharishi Mahesh Yogi e Bagwan Shree Rajneesh, apresentando-os como exemplos de mestres hindus espúrios cuja influência sobre a New Age foi profunda e ampla; tais mestres de modo algum representam o hinduísmo normal. Escreve Coomaraswamy: “Que pensam os expoentes ortodoxos do hinduísmo sobre Mahesh Yogi? A pergunta foi feita a Sua Santidade Sri Chandraskharendra Sarasvati, Sri Shankaracharyaswami de Kamakoti Peetha, 68º Acharya na linha de Kamakoti Peetha e uma das mais altas autoridades dentro da tradição hindu. Sua resposta foi que o homem era um impostor!”

Um segundo grupo que tem sido crítico da New Age, por ter sido diretamente vitimado por ela, são os anciãos espirituais tradicionais nativo-americanos. Os trechos seguintes, de um artigo de Gary Knack na edição da primavera de 1997 do jornal indígena Akwesasne Notes, mostram como os problemas com “New Age med men” são semelhantes aos escândalos mais conhecidos envolvendo mestres hindus e budistas ocidentalizados, pastores protestantes e padres católicos.

Há por aqui vários chamados “homens-medicina”, de ascendência nativa,
que se perverteram e lançaram uma doença sobre o povo. Um deles,
como muitos sabem, usou sua posição respeitada para molestar sexualmente
crianças. Ao se descobrir esse fato, a palavra foi dada para ficar quieto,
pois isso poderia prejudicar o movimento. Muitos de seus seguidores,
em sua maioria brancos, permaneceram ao lado dele e continuaram
trabalhando nas comunidades brancas ignorantes no sul da Califórnia.
… Um chamado “homem-medicina”, de ascendência lakota, foi promovido
localmente [em Ashland, Oregon] por um professor universitário, seu
agente. Tornou-se bem conhecido, e ainda é, por seus livros e excursões
New Age… fomos informados por uma das mulheres brancas, que iam
regularmente suar conosco, de que esse “med man” tinha um histórico
local de sondar sexualmente mulheres nas cabanas de suor… alguns do
grupo de Los Angeles e seguidores do molestador de crianças
aproximaram-se do “med man” New Age com dinheiro na mão e
quiseram iniciar uma sundance multirracial nos arredores de Ashland.
Feito. Começou em 1988. Recusamos aproximar-nos disso. Passamos a
ver a confusão derivada à medida que o “med man” a dirigiu por vários
anos. Inflou egos já inchados; famílias se desintegraram; um dos auxiliares
nativos cometeu suicídio em Dakota do Sul; outro supostamente cometeu
assassinato; houve confrontos armados por causa de drogas; a “cerimônia”
foi alterada para adequar-se às sensibilidades brancas, e por aí vai.
Alguém mais assumiu depois que o “med man” acabou se afastando,
mas o estrago já estava feito e a doença se espalhando. Os que queriam
ser passaram a ser “homens e mulheres-medicina”. Já estão vendendo
fitas de vídeo sobre o cachimbo sagrado e outras práticas cerimoniais.

As práticas espirituais nativo-americanas, tradicionais e não tradicionais, tornaram-se altamente comercializadas em círculos New Age. Mas, como escreve Don R. em um editorial intitulado Are Non-Native Americans Meddling in American Indian Ways? (New Perspectives, A Journal of Conscious Living, 8 de julho de 1994):

Vender ou trocar objetos sagrados como penas de águia ou cachimbos sagrados
é contrário a todos os Ensinamentos Espirituais Nativo-Americanos
e à lei federal. Eles só podem ser dados, sem apego, para Cerimônia.
Quebrar esse modo seguirá você pela eternidade no Pós-vida.
Nenhum dinheiro ou supostos “Dons de Medicina” será aceito por ensinamentos,
especialmente por Cerimônia. Nossos Modos sagrados são um dom
dos Avôs e do Criador, e você não barganha com o Criador.


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