TRADUÇÃO INTEGRAL (REFEITA)
ATÉ A ÚLTIMA LINHA DO TEXTO ENVIADO
CONTEÚDO
Preface
Prefácio
Introduction
Introdução
Part One:
Tradition vs. the New Age
Parte Um: Tradição vs. a Nova Era
Foreword
Prefácio
1
Postmodernism, Globalism, and the New Age
1 Pós-modernismo, Globalismo e a Nova Era
2 Who are
the Traditionalists?
2 Quem são os Tradicionalistas?
3 What is
the New Age?
3 O que é a Nova Era?
I A Short
History of the ‘Spiritual Revolution’ and the New Age Movement
I Uma Breve História da “Revolução Espiritual” e do Movimento Nova Era
II The Dangers of the Occult
II Os Perigos do Oculto
III New
Age Doctrines Refuted
III Doutrinas da Nova Era Refutadas
4 New Age
Authorities: A Divided House
4 Autoridades da Nova Era: Uma Casa Dividida
I The Fallacy of the Psychic Absolute: Truth and Deception in The Seth
Material
I A Falácia do Absoluto Psíquico: Verdade e Engano em The Seth Material
II The
Postmodern Traveler: Don Carlos Castaneda
II O Viajante Pós-moderno: Don Carlos Castaneda
III
Transcendence without Immanence: The Neo-Gnosticism of A Course in Miracles
III Transcendência sem Imanência: O Neognosticismo de Um Curso em
Milagres
IV The
Celestine Prophecy: a Pre-Columbian Singles Culture
IV A Profecia Celestina: Uma Cultura de Solteiros Pré-colombiana
V Having It vs. Eating It: The Entrepreneurial Hinduism of Deepak Chopra
V Ter vs. Consumir: O Hinduísmo Empresarial de Deepak Chopra
Part Two: Spiritual Warfare
Parte Dois: Guerra Espiritual
5 The Shadows of God
5 As Sombras de Deus
6 The War Against Love
6 A Guerra Contra o Amor
7 UFOs
and Traditional Metaphysics: A Postmodern Demonology
7 OVNIs e a Metafísica Tradicional: Uma Demonologia Pós-moderna
8
Vigilance at the Eleventh Hour: A Refutation of The Only Tradition
8 Vigilância na Décima Primeira Hora: Uma Refutação de The Only Tradition
9
Comparative Eschatology
9 Escatologia Comparada
10 Facing
Apocalypse
10 Encarando o Apocalipse
Index
Índice
Nasir
[Xerife de Medina] virou-se de costas, com meus óculos, e começou a estudar as
estrelas, contando em voz alta primeiro um grupo e depois outro; gritando de
surpresa ao descobrir pequenas luzes que não percebia a olho nu. Auda nos levou
a falar de telescópios — dos grandes — e de como o homem, em trezentos anos,
avançara tanto desde seu primeiro ensaio que agora construía lentes tão longas
quanto uma tenda, através das quais contava milhares de estrelas desconhecidas.
Passamos a falar de sóis além de sóis, de tamanhos e distâncias além da
inteligência.
“E o que
acontecerá agora com esse conhecimento?”, perguntou Mohammed.
“Nós
prosseguiremos, e muitos homens eruditos e alguns inteligentes juntos farão
lentes mais poderosas do que as nossas, assim como as nossas são mais poderosas
que as de Galileu; e ainda mais centenas de astrônomos distinguirão e contarão
mais milhares de estrelas agora invisíveis, mapeando-as e dando a cada uma seu
nome. Quando as virmos todas, não haverá noite no céu.”
“Por que
os ocidentais sempre querem tudo?”, disse Auda provocando. “Atrás das nossas poucas
estrelas conseguimos ver Deus, que não está atrás de seus milhões.”
“Queremos
o fim do mundo, Auda.”
“Mas isso
pertence a Deus”, reclamou Zaal…
∼ T. E.
Lawrence, Seven Pillars of Wisdom
Um grupo
do meu povo não deixará de lutar pela verdade até a vinda do Anticristo… mas
Deus o matará pela mão de Jesus, que lhes mostrará seu sangue sobre a lança.
∼ Hadith
Prefácio
Neste
livro tentarei realizar dez coisas:
Tomar
sondagens da cena religiosa e cultural atual do ponto de vista da metafísica
tradicional.
Introduzir
a um público leitor mais amplo as doutrinas da “Escola Tradicionalista”: René
Guénon, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon, Martin Lings, Titus Burckhardt,
Seyyed Hossein Nasr, Huston Smith et al., e, no processo, dar ao leitor um
vislumbre da cidade do Tradicionalismo e do campo de batalha espiritual que a
rodeia.
Com base
na metafísica tradicional, criticar as doutrinas das espiritualidades da Nova
Era dentro do contexto do pós-modernismo, do qual são uma expressão.
Demonstrar,
durante essa crítica, que metafísica, misticismo e esoterismo são
fundamentalmente diferentes e muitas vezes radicalmente opostos às práticas
mágicas, à busca de poderes psíquicos e à canalização de “entidades
espirituais”.
Demonstrar
aos meus amigos cristãos que não são apenas eles que veem, no Neopaganismo e na
Nova Era, um declínio na compreensão cultural tanto de Deus quanto do homem.
Apresentar
tradições e profecias relativas aos “últimos dias” do ciclo presente sob o
ponto de vista da religião comparada, recorrendo a doutrinas relevantes do
Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo, Islã, Zoroastrismo e povos
nativo-americanos.
Publicar
os sinais e especular sobre a natureza social, psíquica e espiritual daquele
ser conhecido pelo Cristianismo, Judaísmo e Islã como o Anticristo;
apresentá-lo como indivíduo e como sistema; alertar aqueles dispostos a serem
alertados contra a sedução espiritual e o terror que ele representa, e contra o
regime que será — e é — a expressão social dessa sedução e desse terror.
Rastrear
as raízes do Anticristo na natureza esquecida e/ou caída do homem.
Começar a
definir a qualidade particular da espiritualidade própria aos tempos
apocalípticos, os perigos que enfrenta e as oportunidades únicas que se abrem a
ela.
Traçar
meu próprio percurso desde a “revolução espiritual” dos anos 1960, passando
pelo mundo das espiritualidades da Nova Era, até o limiar do esoterismo e da
metafísica tradicionais.
O
paradigma modernista-materialista, segundo o qual dinâmicas históricas e
intervenções sobrenaturais não podem ambas ser aceitas como explicações para as
notícias diárias, ainda possui força. E o pós-modernismo, agora claramente a
visão dominante, embora possa estar mais próximo de validar ambas essas
realidades, só as admite como mundos fechados de significado unidos por nenhum
“paradigma abrangente”.
Consequentemente,
fui forçado — não contra a minha vontade, mas de acordo com meu deleite — a
retornar à metafísica tradicional (que, embora profundamente consistente, não
pode ser um sistema fechado, já que se abre para o Infinito) como a única visão
de mundo que pode dar sentido unificado à experiência pós-moderna, como a
ideologia pós-moderna claramente e abertamente não pode fazer.
Às vezes
escrevo como erudito, às vezes como teósofo especulativo, às vezes como
popularizador de princípios metafísicos básicos para o leitor geral, às vezes
como crítico social, às vezes como autobiográfico, às vezes como poeta. Cruzo
essas fronteiras proibidas deliberadamente. Tão reduzida e fragmentada é a
consciência da humanidade dos “últimos dias” — em parte como reflexo automático
da qualidade do tempo, em parte como resultado de um programa deliberado de
hipnose social em massa — que somente o choque de encontro com uma amplitude e
profundidade de significação proibidas socialmente pode despertá-la, agora que
choques repetidos e a subsequente anestesia a deixaram entorpecida.
O remédio
específico para o choque do desespero é o choque mais profundo do significado.
Onde o tempo e a história nos esmagaram sob sua “insuportável leveza”, nada
além do peso da eternidade, rompendo a fina e frágil casca do céu pós-moderno,
pode nos colocar de pé. Esse é um dos vários significados da palavra
“apocalipse”.
Introdução
No início
do terceiro milênio, a raça humana está no processo de esquecer o que significa
ser humano. Não sabemos quem ou o que somos; não sabemos o que deveríamos estar
fazendo aqui, em um cosmos que rapidamente se torna nada além de uma tela para
a projeção de fantasias aleatórias e cada vez mais demoníacas.
A vida
humana já não é sentida como valiosa diante da eternidade simplesmente porque é
criação de Deus, nem nos é tão fácil quanto antes ver o empreendimento humano
como valioso devido às nossas realizações coletivas ou ao impulso histórico que
as produziu, já que, sem uma escala de valores enraizada na eternidade, a
realização não pode ser medida, e sem uma meta eterna para a qual o tempo
necessariamente tenda (no sentido espiritual, não material, dado que a
eternidade não pode estar no fim de um movimento linear acelerado que é
precisamente fuga de tudo que é eterno), a história é uma estrada que leva a
lugar nenhum.
Chamamos
esse estado de coisas de “pós-modernismo”.
Todos
nós, de alguma forma, sabemos disso. Sentimos isso nos ossos. Mas não
conseguimos abarcar; não conseguimos definir a escala do que enfrentamos ou do
que perdemos, porque já não possuímos a verdadeira escala do que somos.
Assumimos o nome de pós-modernos, mas seria mais próximo da verdade dizer que
somos pós-humanos — não em essência, mas em efeito, já que qualquer conceito de
natureza humana adequado à essência humana foi descartado como ultrapassado.
O
humanismo não é suficiente para nos dizer o que significa ser humano. A ciência
é ainda menos capaz de suportar esse fardo, razão pela qual desistiu de tentar.
Somente a religião, entendida em seu sentido mais profundo, pode fazer essa
pergunta e respondê-la. E somente uma compreensão completa das forças sociais e
psíquicas que escondem o rosto da Realidade Absoluta e Infinita que chamamos
“Deus” pode nos mostrar a escala verdadeira do que ameaça a forma humana nestes
“últimos dias”, quando o ciclo presente do tempo biológico e humano aproxima-se
de seu fim.
Se o nome
“Deus” denota a verdade eterna das coisas, e o nome “Homem” o espelho central
dessa Verdade no espaço e tempo terrestres, então o nome dessas forças de
obscuridade e negação que são opostas ao “Homem”, em sua forma plenamente
revelada e terminal, é “Anticristo”.
Os Últimos Dias
É comum
hoje imaginar que o universo, de acordo com ideias progressistas e
evolucionistas, deve de alguma forma estar avançando espiritualmente. Se
concluirmos que a evolução espiritual do macrocosmo não é possível, podemos até
nos perguntar qual é o valor ou proveito da existência material. Para que
serve? Para que existe? Com medo de nos tornarmos “gnósticos”, que negam o
valor da vida terrestre, acabamos negando o significado eterno desta própria
vida.
O
problema com o conceito de que o universo evolui para níveis superiores de
organização, conceito básico nas doutrinas de Teilhard de Chardin, Rudolf
Steiner e muitos outros mestres da Nova Era (bem como na tentativa dentro do
Judaísmo de aplicar a Cabala Luriânica — e no Ismaelismo, a ideia de uma
“desvelação” em massa das realidades espirituais — à evolução histórica), é a
Segunda Lei da Termodinâmica.
Essa lei
afirma que, por meio da entropia, a ordem geral da matéria/energia no universo
está sempre diminuindo — uma diminuição inseparável, em princípio, da expansão
do universo iniciada no Big Bang.
Em certo
momento, cientistas postularam grandes quantidades de “matéria escura” que permitiriam
ao universo contrair-se novamente, via gravitação, quando o impulso do Big Bang
se esgotasse. Entretanto, no momento em que este texto foi escrito, a opinião
científica tende a afastar-se dessa hipótese. Assim, parece que o universo
material deve continuar expandindo-se e aumentando sua desordem para sempre.
Isso está
de acordo com a metafísica tradicional.
“Este mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda.
“Tudo perece, exceto Seu Rosto”, diz o Alcorão.
A
criação, segundo a visão tradicional, é um sucessivo rebaixamento de ordens
superiores de realidade para ordens inferiores. Deus, que em Sua Essência está
totalmente além de forma, número, matéria, energia, espaço e tempo, deve — como
Frithjof Schuon nunca se cansou de afirmar — “transbordar” nessas dimensões da
existência porque Ele é Infinito; não existe em Sua Natureza qualquer barreira
que impeça a irradiação de Seu Ser superabundante.
As
escatologias tradicionais, em grande parte, concordam com a Segunda Lei da
Termodinâmica. Em vez de progresso — mito que não tem mais que três ou quatro
séculos em sua forma moderna — elas postulam uma entropia espiritual, social e
cultural.
Isso é
particularmente verdadeiro no Hinduísmo e na mitologia greco-romana clássica,
com sua ideia de que um ciclo de manifestação emerge completamente formado do
Criador sob a forma da Idade de Ouro, seguida pela Idade de Prata, de Bronze e,
finalmente, pela Idade de Ferro, que termina em um cataclismo escatológico, um
Dia de Purificação, após o qual a Idade de Ouro do próximo ciclo começa.
Esse
esquema é mais ou menos aceito, através de diferentes linguagens mitológicas,
por judeus tradicionais, cristãos, hindus, e até pelos índios Lakota (Sioux) e
outros povos primordiais. (Os budistas, embora sua doutrina de ciclos tenda a
negar a possibilidade de uma renovação abrupta, também aceitam que a era
presente terminará em cataclismo.)
As
doutrinas dentro das religiões reveladas tradicionais que parecem falar de
progresso espiritual do mundo manifestado — como o conceito na Cabala Luriânica
do tikkun, ou restauração universal — são:
Uma
aplicação equivocada ao coletivo de doutrinas que pertencem ao desenvolvimento
espiritual individual;
Ou a
ideia de que Deus continuamente cria e sustenta o mundo manifestado, podendo
conceder a um indivíduo, dispensação religiosa ou nação um papel especial na
renovação da Imagem Divina para uma época, dentro do contexto mais amplo da
degeneração geral;
Ou a
referência ao retorno escatológico de toda manifestação a Deus no fim dos
tempos.
O que é criado
deve deixar a Casa do Criador para existir; e aquilo que entrou na manifestação
cósmica já começou a morrer.
Os
crentes periodicamente prevêem o triunfo final (embora temporário) do mal nos
últimos dias, o fim do mundo e a vinda do Messias. Os não-crentes zombam quando
tais previsões parecem não se cumprir. Eles poderão continuar zombando até o
momento em que o mundo realmente terminar, depois do qual nem crentes nem
descrentes terão, em termos mundanos, oportunidade ou impulso de dizer “eu não
disse?”.
Nesse
último instante de verdade, encontrar-se-ão face a face com uma Realidade tão
profunda e tão rigorosamente exigente que suas opiniões — certas ou erradas — e
as razões psicológicas para sustentá-las desaparecerão na insignificância.
Apenas o motivo essencial pelo qual se apegaram à Verdade ou caíram no erro
lhes restará, como sinal de seu destino eterno diante do rosto de Deus.
Os
não-crentes dizem:
“Em todas as gerações houve pessoas que pensaram viver nos tempos mais
sombrios; essa lamúria sobre degeneração humana nos ‘últimos dias’ não é
novidade.”
E os
crentes — ao menos os tradicionais — concordam. Segundo um hadith do Profeta
Muhammad (que a paz esteja sobre ele):
“Não virá sobre vós uma geração que não seja seguida por outra pior.”
A
história não desce de forma uniforme — há picos e vales, reavivamentos
religiosos, retificações, renovações parciais de tradições espirituais,
pequenas e breves idades de ouro, lutas heroicas para restabilizar a sociedade
em níveis mais baixos, renascimentos impulsivos baseados no desejo de dissipar
o capital cultural e espiritual herdado — mas a direção é sempre da ordem para
o caos.
A
capacidade humana de ver, compreender e nutrir-se das realidades espirituais
superiores se reduz inevitavelmente. À medida que se afasta do Sol espiritual,
a luz da Verdade diminui; o calor da Vida desvanece.
O
resultado final desse processo é o fim de um mundo ou de uma idade.
Esse mundo pode nunca terminar nos calendários dos simplórios que tomam
literalmente as previsões, mas ele terá de terminar algum dia.
E
considerando que hoje possuímos mais meios de autodestruição do que qualquer
geração anterior, a distância entre nós e as condições finais não parece
infinita.
Se
considerarmos seriamente a possibilidade de estar vivendo nos últimos dias,
enfrentamos dois problemas:
Definir o
que “últimos dias” significa;
E decidir se há evidências além de sentimentos sombrios que justifiquem essa
conclusão.
Meu
argumento não é que vivemos nos últimos dias absolutos da criação — pois
ninguém sabe quando virão — mas nos últimos dias de um ciclo de existência
humana, marcado por degradação gradual espiritual, social e cultural,
conduzindo a uma ruptura.
Estamos,
como nunca antes na história humana, com meios concretos de pôr fim ao mundo:
seja por guerra nuclear, química ou biológica, seja pela degradação ambiental —
ou ainda pela desconstrução da própria forma humana por meio de engenharia
genética movida por forças econômicas cegas, pelos caprichos de tolos
emocionalmente desequilibrados ou inspirados demoníacamente, e certamente pelo
medo e pelo desejo humanos primordiais, não temperados nem pela sombra da
sabedoria. Uma meditação sobre os Tempos Finais é, no mínimo, oportuna.
E, na
verdade, ela é sempre oportuna. Todos os dias uma nova geração passa para o
esquecimento. É sempre o pior dos tempos: um dia mais distante do Jardim do
Éden, quando o mundo, recém-saído das mãos do Criador, era jovem — e sempre o
melhor dos tempos: um dia mais próximo do Momento inevitável em que a
contingência e a ilusão precisam ruir, e a Realidade Absoluta deve amanhecer,
de forma definitiva, sobre este mundo que morre, esta imagem móvel da
Eternidade.
O Anticristo
A
degeneração espiritual da humanidade não pode continuar indefinidamente; ela
deve atingir um ponto terminal, além do qual a própria forma humana, ao menos
em sua encarnação terrena, já não poderia sobreviver. E, em consonância com o
princípio corruptio optimi pessima — “a corrupção do melhor é a pior” —
o ponto mais baixo da receptividade espiritual humana deve, segundo muitas
tradições espirituais, manifestar-se não apenas como o desaparecimento da
espiritualidade, mas como a sua falsificação satânica.
É daí que
vem o mito do Anticristo — mito que, poucos percebem, é tão importante no Islã
quanto no Cristianismo, já que os muçulmanos acreditam que o profeta Jesus
retornará à terra no fim dos tempos para enfrentar esse Adversário e matá-lo em
batalha.
Assim
como o ego é a sombra do Eu Divino em nós, o Anticristo é a sombra do Messias —
do salvador escatológico que representa o desvelamento completo do Eu Divino no
fim do ciclo. Muitas vezes, o ego chega a um clímax de desespero, delírio e
violência justamente quando um avanço espiritual é iminente; da mesma forma, o
Anticristo reunirá em si todas as forças sociais e psíquicas que escolheram
resistir a Deus exatamente no momento em que o Rosto do Absoluto estiver
prestes a amanhecer sobre o mundo. As palavras de Mestre Eckhart poderiam muito
bem ter sido ditas sobre o Anticristo, assim como foram certamente ditas sobre
o ego humano: “Quanto mais ele blasfema, mais ele louva a Deus.”
O Messias
Ao longo
da história, religiões que esperam por um Messias sempre tenderam a
concretizá-lo. De tempos em tempos surge um Mahdi no Islã, apenas para ser
cooptado ou derrotado. Sabbatai Zevi, falso messias do século XVII, comoveu
profundamente o mundo judaico, apenas para depois converter-se ao Islã sob
ameaça de morte imposta pelo sultão turco. E o Cristianismo certamente não está
livre de seus falsos Cristos e falsos profetas. Então quem é o verdadeiro
Messias? Como reconhecê-lo?
O
verdadeiro Messias está eternamente chegando ao mundo, eternamente rompendo
suas dimensões espaço-temporais e eternamente atraindo seus seguidores para a
comunhão de Seu reino. Na medida em que os “falsos” messias são receptivos a
essa verdade, são, de certo modo, messias parciais — reflexos imperfeitos do
próprio Messias. Mas, na medida em que se identificam com o papel messiânico no
nível do ego, alimentando assim o ego coletivo dos seus seguidores — e é o que
sempre fazem — tornam-se anticristos.
A
humanidade, afundada no materialismo, não pode ser despertada do “pesadelo da
história” sem algum tipo de esperança histórica. Mas essa esperança é sempre
frustrada. A revolução é cooptada. A renascença se desfaz. A renovação
espiritual torna-se alimento para a literalização da doutrina e o enrijecimento
das linhas sociais e culturais. O Espírito está sempre dando vida; a letra está
sempre arrastando essa vida para o túmulo da contingência, para o tempo e para
a história.
Aqueles
que, respondendo à esperança messiânica, passam do turbilhão do tempo para a
visão da Eternidade encontraram o verdadeiro Messias. Aqueles que não rompem
seu pacto com o tempo — porque esperam algo do destino e da contingência, ou
porque acreditam tola e arrogantemente que podem manipulá-los — caíram na
armadilha do Anticristo.
Quando,
então, virá o verdadeiro Messias? A resposta é sempre dupla: Ele virá Agora;
Ele virá no Fim. Se habitamos o Agora, estamos à Sua espera; se não
ocupamos o Agora, perderemos Sua vinda. Já O perdemos inúmeras vezes. Mas
quando o Agora e o Fim coincidirem — o fim deste ego, o fim deste mundo — então
estaremos na presença do Messias.
A
história sempre nos leva para longe do dia da vinda messiânica, longe da porta
do Agora — e, no entanto, a história um dia terá de terminar; esta partida
infinita deverá, num instante misterioso, transformar-se em chegada. O que
recebemos no segredo do coração e o que surge nos “horizontes” da realidade
exterior devem um dia convergir. Como diz o Alcorão: “Eu lhes mostrarei Meus
sinais nos horizontes e em si mesmos, até que saibam que isto é a Verdade. Não
vos basta isso, visto que Eu sou Testemunha de todas as coisas?”
A Profecia de René Guénon
Minha
abordagem fundamental neste livro segue a metafísica tradicional, tal como
apresentada pelos autores da Escola Tradicionalista. Para a metafísica “pura”,
segui sobretudo Frithjof Schuon. Para a própria escatologia — a ciência das
“últimas coisas” — apoiei-me em Martin Lings, especialmente em seu livro The
Eleventh Hour, e ainda mais no fundador dos Tradicionalistas, René Guénon,
cujo livro profético O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos,
publicado em 1945, torna-se mais relevante a cada ano que passa.
Mas,
embora tenham sido os Tradicionalistas que me apontaram os caminhos para as
escrituras das religiões do mundo, para os escritos dos grandes sábios e para
as lendas dos povos primordiais, não me limitei estritamente às doutrinas
deles; em muitos casos consultei diretamente os documentos primários.
Parafraseando Blake, olhei através dos olhos deles, e não com
eles.
Em O
Reino da Quantidade, Guénon via a história segundo o conceito hindu de manvantara
— o ciclo de manifestação composto de Idades de Ouro, Prata, Bronze e Ferro.
Ele via esse ciclo como uma descida inevitável do polo da Essência, ou forma
— o Purusha hindu — para o polo da Substância, ou matéria — a Prakriti
hindu. A Essência é qualitativa, embora transcenda a própria qualidade. A
Substância é quantitativa, embora, em realidade, esteja abaixo da própria quantidade.
À medida
que o ciclo progride — ou melhor, desce — a própria natureza do tempo e do
espaço se transforma. Nas idades antigas, o espaço domina; as formas das coisas
são mais importantes, mais reais, do que as mudanças que sofrem; o tempo é
“relativamente eterno”. Porém, conforme o ciclo avança, o tempo começa a
dominar, derretendo o espaço e as formas nele contidas, até que tudo se torna
um fluxo acelerado de mudança.
Talvez
compreendamos melhor o que Guénon quis dizer se lembrarmos que, quando estamos
em profundo silêncio e calma, o espaço parece mais real que o tempo; quando
estamos agitados, o tempo parece mais real que o espaço. E não é difícil
perceber como modos de viagem mais rápidos e, sobretudo, os meios eletrônicos —
que agitam e perturbam a consciência — também aniquilam o espaço; o
ciberespaço, em particular, é a aniquilação de toda dimensão espacial. Nos
últimos dias, nada mantém uma forma estável. Tudo se move cada vez mais rápido,
até que toda forma — incluindo a Forma Humana — torna-se um borrão disforme.
Mas essa
aceleração constante do tempo não pode continuar para sempre. Em algum ponto,
ela terá de cessar. “O tempo devorador”, cita Guénon, “acaba por devorar a si
mesmo.” No fim do tempo, o tempo será instantaneamente transformado novamente
em espaço. Esse ponto supremo e atemporal é simultaneamente o fim deste ciclo
de manifestação e o início do “próximo”.
Mas antes
dessa transformação última, nos últimos dias do ciclo atual, certos
desenvolvimentos finais devem ocorrer. Como a quantidade tem relação particular
com a matéria, o “reino da quantidade” deve também ser o reino do materialismo
— e onde ideias materialistas dominam, o próprio ambiente cósmico torna-se, de
certo modo, mais material. A “era dos milagres” cessa; o mundo torna-se menos
permeável às influências dos planos superiores de realidade; a própria crença
nesses planos — bem como num Deus eterno e transcendente — torna-se mais
difícil de sustentar.
A própria
densidade do materialismo, contudo, acaba produzindo uma espécie de
“fragilidade”. O ambiente cósmico, tendo perdido boa parte da flexibilidade que
lhe permitia ser movido pelo Espírito Divino, começa a rachar, como uma árvore
velha que já não pode curvar-se ao vento, e termina por ser arrancada pela
tempestade. Mas essas fissuras no ambiente cósmico — na “Grande Muralha” que
separa o mundo material do mundo das energias sutis — ocorrem primeiro no
sentido descendente, e não ascendente, permitindo a entrada de uma inundação de
forças “infra-psíquicas”, ora neutras, ora demoníacas.
Na
volatilização geral do mundo sensível produzida pela mídia eletrônica e por
nossa “cultura da informação”; talvez também pelo predomínio da poluição
eletromagnética e pela liberação de energia nuclear; pelo interesse
contemporâneo em drogas psicodélicas, magia e poderes psíquicos; e mais
claramente pelo chamado “fenômeno OVNI”, que teve um efeito incalculável sobre
nossa visão comum da realidade — podemos ver os efeitos diretos dessas forças
sobre a qualidade da nossa consciência, sobre a estrutura da nossa sociedade,
sobre nossas formas culturais e sobre nossas prioridades econômicas.
E essas
forças infra-psíquicas não operam sozinhas. Tendências culturais formam-se ao
redor do zeitgeist infra-psíquico, e, dentro desse contexto, grupos organizados
surgem em resposta às forças que lhes deram origem. Em alguns casos, esses
grupos consistem apenas de pessoas que adotam os mitos modernistas ou
pós-modernistas do “espírito do tempo”. Em outros casos, entretanto, tais
grupos adoram abertamente as forças que os inspiraram, sem compreender que se
colocaram contra a sabedoria perene, contra as verdades metafísicas das eras. A
estes Guénon chama de “anti-tradicionais” ou “pseudo-iniciáticos”. A maior
parte das organizações Nova Era se encaixaria nessa definição. E, por fim,
existem grupos cujo objetivo é minar deliberadamente a religião revelada e a
metafísica tradicional, para instaurar o reino do Anticristo; estes, segundo
Guénon, são os agentes da “contra-tradição” e da “contra-iniciação”: “os
contemplativos de Satanás”, cuja função é subverter não apenas a religião
exotérica, mas também a espiritualidade esotérica.
Por mais
deprimente que isso possa soar, tais desenvolvimentos são totalmente legítimos,
dadas as condições finais do ciclo. As possibilidades mais baixas da
manifestação também precisam ter seu dia; e, felizmente, como são inerentemente
instáveis — baseando-se não na Verdade, mas apenas no poder — esse dia será
breve. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai daquele por quem o
mal vem.” E existem certas possibilidades espirituais da mais alta ordem que
nunca poderiam ser realizadas senão diante desse desafio demoníaco extremo à
integridade do espírito humano.
Meus Dignos Oponentes
Neste
livro, tentarei, entre outras coisas, expor os erros do pós-modernismo
criticando algumas das doutrinas centrais daquilo que passou a ser chamado de
“espiritualidade da Nova Era”, o nome contemporâneo de uma vertente do
ocultismo extra-cristão — e às vezes anti-cristão — que pode ser rastreada ao
menos até a Renascença. Se o pós-modernismo é a negação filosófica final da
metafísica, então uma análise da falsa metafísica da Nova Era é uma via pela
qual o pós-modernismo pode ser criticado — não necessariamente a melhor, mas
sem dúvida a que estou mais apto a trilhar, dada minha formação.
Seja dito
claramente, antes de prosseguir:
Primeiro:
o mundo das espiritualidades da Nova Era não é, em si, o sistema do Anticristo.
Toda espiritualidade na Terra acabará contribuindo com algo para esse regime —
as falsas espiritualidades por sua própria existência; as verdadeiras, segundo
o princípio corruptio optimi pessima, porque “a corrupção do melhor é a
pior”. É por isso que, por exemplo, os muçulmanos acreditam que o Anticristo
será muçulmano, e os cristãos ortodoxos acreditam que ele surgirá da Ortodoxia
Oriental.
Segundo:
nem todos os envolvidos com espiritualidades da Nova Era são necessariamente
almas perdidas. Alguns — Deus o sabe — podem até ser santos. Apesar do
comercialismo que permeia a Nova Era, muitos de seus praticantes são sinceros.
E, já que o Espírito de Deus “sopra onde quer”, alguns deles estão
inevitavelmente na longa e espinhosa estrada para a plenitude da Verdade
divina, embora eu jamais indicasse tal estrada a quem busca a Verdade. Isso não
significa que a sinceridade seja suficiente para proteger alguém dos danos
intelectuais e espirituais causados por doutrinas objetivamente falsas; significa
apenas que o sincero é capaz de arrepender-se de seu erro quando confrontado
com a Verdade objetiva, ao passo que o hipócrita não o é.
Terceiro:
não pretendo atribuir a todos os mestres da Nova Era ou ideólogos
pós-modernistas os mesmos erros. A maioria dos meus adversários deplora muitos
dos males modernos que eu também deploro. Não estou dizendo que fazem parte de
uma vasta conspiração unificada. Apenas os tomo como marcos nos diversos
afluentes que correm para o centro da escuridão contemporânea.
Quarto:
nem todas as práticas da Nova Era são necessariamente destrutivas. Algumas,
especialmente várias formas de cura holística, são simplesmente boas. Eu mesmo
usufruí benefícios reais delas.
Dito
isso, porém, preciso deixar absolutamente claro que, em minha opinião
informada, o movimento geral da crença Nova Era caminha em direção a um ponto
extremamente sinistro e perigoso da bússola espiritual. Além disso, tomarei
como axioma neste livro que, sempre que a doutrina Nova Era contradiz o que se
convencionou chamar de “filosofia perene” — os princípios metafísicos centrais
compartilhados por todas as grandes religiões e tradições sapienciais — a Nova
Era está em erro, e não a sabedoria das eras.
Minha História
Fui criado
católico — mais ou menos tradicional — já que a maior parte da minha vida
católica, até por volta dos dezesseis anos, deu-se numa Igreja essencialmente
pré-Vaticano II. Costumo dizer que pertenço à última geração católica (os Baby
Boomers) que podia se identificar plenamente com Retrato do Artista Quando
Jovem, de James Joyce.
Sendo um
Baby Boomer vivendo na área da baía de São Francisco, passei pela contracultura
hippie, protestei contra a Guerra do Vietnã — estive nas ruas na Convenção
Democrata de Chicago em 1968 — experimentei drogas psicodélicas, senti atração
pelo Hinduísmo e pelo Budismo, e passei por um flerte autodidata com xamanismo
e kundalini yoga. Também fui poeta (secretamente ainda sou) e pupilo do poeta
da Geração Beat Lew Welch, que me apresentou ao meu primeiro verdadeiro
iniciado sufista, Samuel Lewis (conhecido carinhosamente, no estilo hippie,
como Sufi Sam), bem como a Carlos Castaneda — escritor e praticante de alguma
forma de feitiçaria indígena norte-americana — antes que ele se tornasse famoso
demais para arriscar aparecer nas praias hippies.
festas com participação do Grateful Dead. (“Ponho diante de ti a morte e a
vida: escolhe, pois, a vida.”)
Na primeira metade dos anos 80 passei por um
segundo período de ativismo político, em oposição à intervenção norte-americana
na Nicarágua e em El Salvador, quando minha esposa e eu nos juntamos a uma
igreja presbiteriana local para participar do movimento Santuário para
refugiados centro-americanos, e para adorar a Deus (possivelmente nessa ordem).
Nesse período estivemos imersos na cosmovisão da Teologia da Libertação, que
hoje descrevo como o modo mais generoso e compassivo ainda aberto à tradição
cristã, caso ela deseje destruir a si mesma. Ainda assim, continuo convencido
de que, se não fossem os esforços das igrejas norte-americanas, teríamos
enfrentado um segundo Vietnã na América Central e no sul do México, vastamente
mais destrutivo para a cultura dos Estados Unidos e para sua estabilidade
política do que uma guerra distante na Ásia.
Na segunda metade dos anos 80 fiz uma passagem
pela Nova Era, não porque sentisse qualquer identificação profunda com ela —
embora, a despeito da minha atitude de “grão de sal”, em algum lugar eu devesse
acreditar nela — mas porque queria ver se ainda restava algo da “revolução
espiritual” dos anos 60, e porque conviver com pessoas menos responsáveis do
que eu me fazia parecer muito mais sábio e maduro aos meus próprios olhos.
Encontrei alguns poucos “yuppies” em ascensão liderando uma massa maior de
semi-hippies ou ex-hippies em decadência, rumo a uma esperada “mudança de
paradigma” vagamente messiânica, que acabou se revelando, a meu ver, nada mais
do que a vanguarda de sensibilidade terna do atual globalismo econômico de
mentalidade dura. Os Novaeristas dos anos 80 eram hábeis em articulação global,
incluindo a “diplomacia cidadã” com a União Soviética, mesmo antes do
nascimento da World Wide Web, embora também houvesse muitos pioneiros da
informática pessoal entre eles. Através da Global Family e de outras redes,
organizamos vários Dias de Oração pela Paz Mundial, culminando, em agosto de
1987, na Convergência Harmônica, criação do artista visionário e manipulador de
símbolos José Argüelles. A Convergência Harmônica foi o primeiro — e
possivelmente o último — verdadeiro evento popular internacional. Baseando-se
na interpretação de Argüelles do calendário maia, 16 e 17 de agosto de 1987
deveriam anunciar uma grande mudança no equilíbrio energético da Terra e na
qualidade da consciência global.
A Convergência reuniu como nunca antes
Novaeristas, cristãos liberais, hindus, budistas e povos primordiais de todo o
mundo. Índios americanos dos dois hemisférios, wiccanos britânicos e até
aborígenes australianos participaram, encenando rituais simultâneos de iluminação
e cura da Terra, de natureza extremamente variada e ambígua.
De uma forma modesta, fui um dos organizadores
da Convergência. Conduzi um retiro no Monte Tamalpais, no condado de Marin,
Califórnia. Recolhi sonhos do mundo inteiro, sonhados na Convergência ou
próximos a ela, e os encadernei em um manuscrito que chamei de The Harmonic
Convergence Book of Dreams. Antes e depois da Convergência, explorei e
pratiquei várias formas de “sonho xamânico” — pelo menos era assim que eu
chamava.
Então, acabou. Ou nada aconteceu, ou algo
aconteceu. O que me aconteceu foi que percebi, bem no centro do meu ser, que eu
estava indo longe demais, em direções demais, sem orientação nem mapas. O caos
se avizinhava. E se não salvássemos a Terra? E se a revolução espiritual não se
desenrolasse como planejado? E se a maior parte — ou tudo — do que fazíamos não
passasse de fantasia infantil, ou talvez das primeiras notas de alguma sinfonia
ascendente de trevas?
Pela graça de Deus, dei meia-volta, cento e
oitenta graus, e busquei orientação numa fonte tradicional: o esoterismo
islâmico. Doze anos depois, posso olhar para trás e ver quão por pouco escapei
da destruição.
Minha Confissão
Eu adoraria poder escrever este livro no
estilo da maioria dos autores da Escola Tradicionalista, simplesmente deixando
a Verdade falar por si mesma, sem intromissões autobiográficas ou confessionais
da parte do autor. Mas não posso fazê-lo. Este livro é autobiográfico e
confessional porque, sendo um livro sobre o Anticristo, o assunto sou eu, é o
meu ego. Se eu não admitisse esse fato, The System of Antichrist induziria meus
leitores ao erro; seria um ato de desonestidade.
Muitos mestres espirituais dizem que, seja
qual for o mal que você veja no mundo, saiba que você é a fonte última dele.
Tudo o que acontece é vontade de Deus, e Deus só quer o bem; a visão do mal não
passa da visão do próprio ego; o Anticristo é, precisamente, o ego. A nota
dominante do meu ego é “medo da matéria” ou “medo do mundo” — fato que explica,
aliás, minha antiga atração pelo gnosticismo, que teceu um universo inteiro de
heresia, ainda que muito plausível, em torno desse mesmo medo. Esse é o meu
trauma essencial, meu grande ponto cego, meu apego central. Cheguei até a
inventar uma piada: “Você soube da novidade? Os cientistas descobriram que a
própria matéria é tóxica.” O interessante é que, quando conto essa piada, cerca
de sete em cada dez ouvintes não veem graça nenhuma: “Sério? Descobriram
mesmo?” Tomo isso como sinal de que o meu estilo de ego, embora seja
inteiramente de minha responsabilidade e certamente não seja culpa de mais
ninguém, é na verdade bastante comum no nosso tempo — fato que não deveria
surpreender, dado o estado atual do mundo. E assim a história do meu ego,
refletida não no espelho de sua própria subjetividade, mas tanto quanto
possível na Objetividade Divina, o Espelho de Deus, pode — se Deus quiser — ser
de alguma ajuda para outros que estejam vivendo estes mesmos últimos dias do
ciclo presente.
Dizer que “todo mal está no ego” não é,
contudo, negar a experiência humana universal de um mundo que, muitas vezes,
está cheio de ilusão e sofrimento; qualquer outra coisa violaria a virtude da
compaixão. A Manifestação Divina transmite em todos os canais; o pecado do ego
é simplesmente manter a atenção sintonizada em faixas cada vez mais estreitas.
O ego não cria, em outras palavras; ele apenas edita. O mal que ele vê é uma
versão editada de uma situação objetiva real que, em última instância, é o
próprio Deus. Meu ego não inventou os males e falsidades revelados neste livro;
ele apenas prestou atenção a eles. Mas, se algo é percebido apenas pelo ego,
cai no ponto cego do ego (que, claro, é tudo o que o ego realmente é);
desaparece de vista. Tudo aquilo com que o ego se ocupa ele passa a identificar
consigo mesmo — e, com o que se identifica, já não consegue enxergar.
No processo inverso, de purificação espiritual
ou catarse, aquilo que o ego manteve oculto começa a aparecer, primeiro como
uma série de males a serem combatidos, depois como um conjunto de pecados dos quais
é preciso arrepender-se, em seguida como um espectro de ilusões a serem
desmascaradas e, por fim, como uma constelação de atos de Deus, perfeitos em
essência — quer expressem o deleite misericordioso do Divino, que acompanha a
conformidade voluntária à lei da forma humana tal como Deus a criou, quer
expressem a justiça severa do Divino, que compensa e, em última análise, cura
nossas violações dessa forma.
O ego inconsciente, feliz em sua própria
cegueira e em sua crença ingênua em seus próprios desejos, é o que o sufismo
chama de “eu que ordena”, o eu que incita ao mal. O ego que combate o mal é o
“eu acusador”, descrito como “mau” (porque testemunha o mal), “mas não
incitador do mal”. (Como escreveu certo correspondente de guerra no Vietnã:
“Aprendi que você é tão responsável pelo que vê quanto pelo que faz.”) A guerra
travada pelo eu acusador embrionário contra os males externos é o “menor
jihad”, geralmente traduzido como “guerra santa”; e a luta travada pelo eu
acusador amadurecido contra seus próprios pecados é o “maior jihad”. A psique
purificada do egocentrismo, que vê todos os acontecimentos como atos perfeitos
de Deus, sem por isso tornar-se cega ou insensível ao sofrimento alheio, é
chamada de “eu em paz”.
O clássico da Ortodoxia cristã, a Filocalia,
comenta assim o momento de transição do “eu que ordena” para o “eu acusador”,
que defini como “o menor jihad”:
“O conhecimento espiritual nos ensina que, no
início, a alma em busca da teologia [que, na Ortodoxia oriental, significa
realização espiritual, não mera teoria] é perturbada por muitas paixões,
sobretudo pela ira e pelo ódio. Isso não acontece tanto porque os demônios
estejam atiçando essas paixões, mas porque ela está progredindo. Enquanto a
alma é mundana, permanece imóvel e imperturbável, por mais que veja as pessoas
pisoteando a justiça. Absorvida em seus próprios desejos, não presta atenção
nenhuma à justiça de Deus. Quando, porém, por desprezo deste mundo e amor a
Deus, ela começa a elevar-se acima de suas paixões, não consegue suportar, nem
mesmo em sonhos, contemplar a justiça sendo desprezada. Enfurece-se contra os
malfeitores e permanece irada até ver os violadores da justiça obrigados a
reparar o que fizeram.
É por isso que ela odeia o injusto e ama o
justo. O olho da alma não pode ser desviado quando o seu véu — quero dizer, o
corpo — é refinado até tornar-se quase transparente pela prática da
autodominação. Ainda assim, é muito melhor lamentar a insensibilidade dos
injustos do que odiá-los; pois, mesmo que mereçam nosso ódio, é insensato que
uma alma que ama a Deus seja perturbada pelo ódio, já que, quando o ódio está
presente na alma, o conhecimento espiritual fica paralisado.”
Sem uma passagem pelo deserto do combate
espiritual — exterior e interior — não há chegada à Morada da Paz. Alguns,
porém, permanecem tempo demais nesse deserto, lutando para se arrepender, mas
incapazes de “arrepender-se do arrependimento”. Nas palavras de Omar Khayyam:
“Vem, enche a Taça e, no Fogo da Primavera,
Lança fora o Manto de Inverno do Arrependimento;
A Ave do Tempo tem tão pouco caminho a voar —
E eis que a Ave já está em pleno voo.”
Este livro é, em parte, uma Jeremiada, uma
denúncia dos males e falsidades do mundo pós-moderno e do reino das
espiritualidades da Nova Era. Essa dimensão de The System of Antichrist nasce
dos primeiros movimentos do eu acusador, que precisa ser temperado no campo do
menor jihad, o mundo da luta social. Mas, no decorrer da escrita, comecei a
perceber que todo erro que eu via e denunciava nos outros, eu mesmo já
acreditara nele — muitas vezes, até bem pouco tempo atrás. Em alguns casos, o
próprio ato de escrever esbarrou em resíduos vivos de erros que eu ainda não queria
abandonar, e acabou expulsando-os. Essa dimensão do livro constitui uma espécie
de “Confissões”; é escrita a partir do eu acusador propriamente dito, cujo
campo é o maior jihad, onde o que antes era ataque e defesa agora é autoexame e
arrependimento. E que outro tipo de abordagem, senão uma abordagem ao menos
parcialmente confessional, poderia me dar o direito de denunciar males e expor
erros alheios, cometidos por pessoas que, por tudo o que sei, podem estar mais
próximas de Deus do que eu?
O neopaganismo (em sua vertente céltica), a
feitiçaria e as ideias da Nova Era já foram, um dia, realidades vivas para mim.
Tomei o material de Seth — a divinização da dimensão psíquica — como Evangelho,
durante anos, e até experimentei com canalização. Como em A Course in Miracles,
eu ansiava por negar as limitações do mundo contingente em que vivemos,
fingindo que as condições da realidade desencarnada poderiam ser realizadas
aqui e agora, sem sacrifício ou sofrimento. Brinquei com feitiçaria à maneira
de Carlos Castaneda, usando alguns de seus métodos e outros que intuí ou
inventei, durante um período sombrio e traumatizado da minha vida. Cheguei à
beira do mundo que ele propunha, caracterizado por acontecimentos inexplicáveis
de estranha profundidade e por alguns episódios de verdadeira “ação à
distância” (ação de quem, hoje me pergunto), mas não avancei mais por essa
estrada simplesmente porque não via por que fazê-lo. (Agradeço a Deus por ter
enviado um anjo, invisível para mim na época, que me barrou o caminho.) Como
Deepak Chopra, eu esperava que uma compreensão técnica e um uso operativo da
Verdade espiritual produzissem automaticamente bem-estar físico e material.
Como em A Profecia Celestina, imaginei-me membro de uma vanguarda espiritual
iluminada, capaz de mudar o rumo descendente da história apenas confiando e
agindo sobre nossas intuições, sem nenhuma orientação de uma tradição revelada
ou de um Mestre espiritual. Como John Mack, permiti que minha mente se
detivesse em realidades sinistras, e as chamei de boas. Como William Quinn,
esperei que minha compreensão da metafísica me colocasse entre os pioneiros de
uma Nova Ordem Mundial, concedendo-me pertencimento a um grupo cuja influência
sobreviveria ao holocausto que se aproximava. Por meio de um poema épico de
inspiração blakiana/gnóstica, cheguei até a desejar, como Benjamin Creme,
anunciar um Messias desenhado em grande parte por mim mesmo, e forçar
magicamente sua aparição para salvar o mundo. Consequentemente, hoje sou
compelido a “mascar pregos” enquanto escrevo sobre o Anticristo — porque,
outrora, sem saber, ou pelo menos sem admitir, estive entre seus servidores.
Cada uma dessas experiências, desses falsos
começos, dessas excursões sem guia ou mal orientadas, deixou sua marca em minha
alma; por isso, o Caminho espiritual, para mim, às vezes se pareceu ao trabalho
de desembaraçar um fardo de arame farpado enferrujado. Com base nos meus
próprios erros, hoje sou capaz de alertar outros. Espero que, ao fazê-lo, acabe
se revelando que meus erros não foram inteiramente em vão, e que William Blake
não estivesse apenas arranjando desculpas ao dizer: “Se o Tolo persistisse em
sua loucura, tornar-se-ia sábio.”
Minha Apologia
Este livro representa, para mim, uma luta
entre duas concepções aparentemente opostas sobre a natureza da existência e da
vida espiritual. Essas concepções rivais tomam o campo como campeãs de dois
lados da minha alma — ou talvez as “duas almas” que “habitam em meu peito,
apartadas”, segundo as palavras de Goethe, sejam, na verdade, as campeãs dessas
concepções. Aceito pela fé — que, nas palavras de São Paulo, é “a prova das
coisas que não se veem” — que essas duas visões da realidade não são, em última
instância, opostas, porque o Ser é Um. Como no combate cavalheiresco entre
Balin e Balan, em Morte d’Arthur, de Malory, os irmãos lutam apenas porque não
se reconhecem; seus rostos estão mascarados. Mas o nível em que a oposição
aparente entre eles se resolve é tão profundo na própria natureza de Deus, que
só o vislumbrei raramente, e mal comecei a aprender a vivê-lo.
Por um lado, minha tradição e meu Mestre
espiritual me ensinam que, se vejo algo de errado na criação de Deus, esse erro
está em mim; que todos os acontecimentos são atos de Deus, e que tudo o que
Deus faz é bom. Creio profundamente que isso é verdade; às vezes até o soube,
de fato. Por outro lado, Deus impôs a mim, como parte essencial do meu caráter,
a necessidade de dizer Não ao “Mundo”, de recusar, no núcleo da minha vontade
espiritual, “comprar” o que esse Mundo oferece e o que afirma ser verdadeiro. O
imperativo dessa recusa está presente em toda tradição espiritual, em que o
conhecimento de que o mundo relatado pelos sentidos é, na realidade, uma
manifestação velada da Verdade Absoluta é sempre equilibrado pelo mandamento de
rejeitar, ao menos para si, as crenças e agendas daqueles que não percebem
isso.
“O Mundo” é a concepção coletiva das coisas
fundada no ego humano. Aquilo que é bom do ponto de vista espiritual, o “Mundo”
chama de mal ou loucura; aquilo que é fundamentalmente destrutivo para qualquer
possibilidade de libertação espiritual e autotranscendência, o “Mundo” chama de
sábio e bom. Meu sufismo me ensina que esse “Mundo” é, em essência, nada mais
do que o meu ego, e que a melhor maneira de superar esse ego é esforçar-me por
ver como todas as coisas são atos, ou faces, ou palavras de Deus.
— exceto eu. Nas palavras de Lao Tsé: “todas as coisas são claras; só eu
estou turvo.” E isso é profundamente verdadeiro: nada vela o rosto de Deus em
todas as coisas além desse pequeno “eu”, fundamentalmente inexistente. Mas a
prática espiritual de ver todas as coisas, exceto o “eu”, como manifestações de
Deus, como qualquer outra prática espiritual, pode dar errado. E o ponto em que
uma prática baseada numa verdade espiritual profunda se retorce e se desvia é,
inevitavelmente, o terreno fértil de um erro espiritual profundo.
O Islã é considerado uma religião militante.
Não é, em teoria, mais militante do que o Hinduísmo, com sua concepção de
combate divinamente ordenado no Bhagavad-Gita,
nem, na prática, mais do que o Cristianismo com suas Cruzadas. Até mesmo o
Budismo, a religião mais comprometida com a não violência, absorveu o credo
Samurai e apoiou o esforço de guerra japonês na Segunda Guerra Mundial. Porém o
Islã, como o Judaísmo em certos aspectos, cresceu em meio à guerra; poucos anos
depois da morte do Profeta, o dār al-Islām
era um império mundial construído pela espada. Essa militância, os sufis em
grande parte sublimaram, seguindo o conhecido hadith do Profeta, segundo o
qual, quando retornava com seus seguidores de uma campanha militar, disse-lhes:
“Agora retornamos do jihad menor ao maior.” “E o que é o jihad maior?” “A
guerra contra a alma [passional]” — o eu que ordena. (A palavra russa podvig, da tradição ortodoxa oriental,
frequentemente traduzida como “feito ascético”, exprime uma ideia semelhante.)
Isso não significa, porém, que os sufis tenham rejeitado totalmente o jihad
menor. Muitos sufis, como alguns santos cristãos, participaram de guerras. Ali
ibn Abi Talib foi ao mesmo tempo o grande herói militar da primeira geração do
Islã e o primeiro mestre espiritual, depois do próprio Profeta, reivindicado
pela maioria das ordens sufis vivas. Tanto a cavalaria cristã quanto a
muçulmana reconheceram que a agonia, a exaltação e o auto-sacrifício da batalha
podiam ser dedicados a um fim espiritual; o jihad menor podia, se Deus
quisesse, ser colocado a serviço do maior.
Mas jihad
não significa simplesmente “guerra santa”; é melhor traduzido como “esforço no
caminho de Deus”. Esse esforço pode ser pela justiça social, pelo alívio do
sofrimento humano ou pela preservação de uma tradição espiritual. É claro que
não há dúvida de que tal luta pode, às vezes, aumentar o egocentrismo em vez de
superá-lo — sobretudo o egocentrismo coletivo. Adorar a própria nação, ou mesmo
a própria religião, no lugar de Deus é uma das piores formas de idolatria, e a
mais difícil de reconhecer, porque alguém pode demonstrar enorme
auto-sacrifício em favor de ídolos nacionais ou religiosos, até a morte. No entanto,
também se pode sacrificar a própria vida por um ídolo como o álcool; e há
perigo de idolatria também no jihad maior, pois orgulhar-se das próprias
“conquistas espirituais” é entregar todo o próprio tesouro a Iblis (o Satanás
muçulmano), que é perito em disfarçar orgulho espiritual como a mais profunda
humildade e auto-sacrifício.
Este livro foi concebido como uma luta, um
jihad contra os erros espirituais do pós-modernismo e da Nova Era. Esses erros
existem no Mundo; são tão objetivamente reais — e ainda mais destrutivos
espiritualmente — do que qualquer exército material de bárbaros, totalitários
ou terroristas. São como uma quinta coluna: destroem a religião a partir de
dentro, corrompem a alma humana. Como ídolos, deixam sua marca na alma de todos
os que os adoram. E como eu próprio adorei esses ídolos, devo agora assumir
parte da responsabilidade por derrubá-los. E da mesma forma que posso apontar
doutrinas espirituais bem definidas — começando pela poesia de William Blake e,
neste momento, incluindo os escritos de Frithjof Schuon, dos demais autores da
Escola Tradicionalista e de meu próprio Mestre espiritual — que literalmente
salvaram minha vida espiritual (ainda que, no caso do meu Mestre, eu tenha sido
salvo não tanto por seus escritos quanto por sua Presença), agora espero, se
Deus quiser, estender essa ajuda espiritual — não em meu nome, mas em nome de
meus mestres — a todos os que sejam capazes de dela se beneficiar.
Mas, ao fazer isso, preciso contradizer e
criticar as palavras de outras pessoas. Espero ser capaz de fazê-lo
cavalheirescamente, sem ferir desnecessariamente os sentimentos ou manchar o
caráter de meus oponentes. Mas este é um ideal que, na prática, não pode ser
alcançado por completo. É claro que sentimentos serão feridos. Assim como
ninguém pode empunhar a espada material sem dar e receber ferimentos, também
não se pode brandir a espada intelectual sem isso acontecer. Meu Mestre me diz
que não é próprio de um sufi criticar as crenças religiosas alheias. E sempre
foi meu costume estender de bom grado, não apenas tolerância, mas verdadeira
veneração e apoio a todas as fés autênticas, costume que em geral está em
consonância com o ensinamento do Alcorão. Todavia, Muhammad expulsou os ídolos
pagãos da Caaba. Ele foi, então, inimigo da religião? Não, porque aqueles
ídolos não representavam a religião, mas a corrupção dela. Os autores que
critico nominalmente neste livro são todos ou abertamente contrários às
religiões tradicionais — quase sempre ao Cristianismo — ou então publicaram deturpações,
abertas ou veladas, das doutrinas dessas religiões. Ao criticá-los, portanto,
estou defendendo tudo o que, tradicionalmente, se chamou “religião”.
Mas os propagadores de doutrinas Nova Era e
neopagãs não têm “direito” de adorar como bem entenderem? Quem sou eu para
negar os direitos dos outros? E que direito tem qualquer religião de
reivindicar superioridade em relação a outra? Isso não é o caminho para o
fanatismo, para a Inquisição, para a “guerra santa” em seu sentido mais
pervertido? Certamente pode ser. Por outro lado, se tomarmos a liberdade
religiosa como absoluta, então devemos permitir, por exemplo, a prática do
sacrifício humano, que foi parte integrante de certas religiões pagãs da
Antiguidade. Assim, a liberdade religiosa, por mais preciosa que seja, não pode
ser absoluta. Como Frithjof Schuon repete, citando os rishis hindus: “não há direito superior ao da Verdade.” A
cultura pós-moderna, é claro, não acredita na Verdade. Não admite absolutos,
porque vê questões de verdade apenas em termos de poder. O que historicamente
se chama de verdade é visto como nada mais do que o triunfo deste ou daquele
bloco de poder. Se “não há deus senão Deus”, isso se dá porque o Islã triunfou
política e militarmente sobre o paganismo na península Arábica; certamente não
porque a Verdade seja Una, porque o Ser, de fato, seja uma Unidade
transcendente. Mas, se esta afirmação sobre a natureza do Ser não é
intrinsecamente verdadeira, então nenhuma doutrina religiosa ou afirmação
metafísica é verdadeira. E, se nenhuma doutrina religiosa é verdadeira, todas
as religiões acabam negadas e, em última análise, destruídas. É essa, então, a
tal “liberdade religiosa”?
Pessoalmente, oponho-me de forma fundamental à
coerção física em matéria religiosa. Nas palavras do Profeta: “não há compulsão
na religião.” É verdade que, numa sociedade islâmica — ou outra sociedade
tradicional baseada numa lei religiosa divinamente instituída — a coesão social
se funda em sustentar e obedecer a essa lei. E ninguém que negligencie uma via
de salvação universalmente acessível, como a sharī‘a
muçulmana, pode ser considerado verdadeiramente dedicado a essa salvação. Mas,
numa sociedade pluralista como a nossa, em que a separação entre Igreja e
Estado é fundamental, qualquer tentativa de legislar doutrina ou prática
religiosa é destrutiva, salvo quando a “religião” em questão viola de maneira
aberta e profunda os costumes e a moral, como no caso do sacrifício humano
mencionado acima. (Apresso-me a acrescentar que, embora esse tipo de sacrifício
sem dúvida tenha ocorrido em grupos satanistas, é vigorosamente repudiado e
combatido pelo movimento neopagão em geral.) Por outro lado, sempre me senti
justificado em criticar o erro espiritual. Na medida em que a espada material
do jihad menor me é negada — e com razão —, empunhei a espada do jihad menor
intelectual. Onde há liberdade religiosa, há necessariamente também liberdade
de expressão em matéria religiosa.
Mas, em meio a toda essa crítica tão bem
justificada das ideias alheias, onde fica o entendimento de que todas as
coisas, todas as pessoas e até todas as ideias são manifestações de Deus, de
que a única coisa que não O manifesta é este “eu” fechado, crispado e
rabugento, que está sempre encontrando defeitos na criação de Deus? Não
aconselhou Jesus seus seguidores a tirar primeiro a trave dos próprios olhos,
antes de tentar remover o cisco do olho do próximo? Não ensinou Ibn al-‘Arabī
que Deus aceita toda concepção que se tenha d’Ele, por mais limitada que seja,
como forma válida de adoração? Não censurou ele até o profeta Noé, até certo
ponto, por denunciar o paganismo de sua época, já que todos os ídolos pagãos —
se seus adoradores o soubessem, e se Noé o soubesse — eram na verdade formas do
Deus Único? E, no entanto, Deus salvou Noé, o transcendentalista, e varreu os
idólatras no dilúvio, ao mesmo tempo em que o próprio Ibn al-‘Arabī aconselhou
o governante de Konya a proibir o culto público dos cristãos — assim como a
Cristandade medieval fazia em relação às religiões não cristãs —, porque a unidade
e o caráter islâmico do dār al-Islām
precisavam ser preservados.
Conta Rumi que, certa vez, Moisés encontrou
um pastor cuja ideia de adorar a Deus era pentear-Lhe o cabelo, lavar-Lhe os
pés e dar-Lhe leite para beber. O profeta trovejou contra o pastor por rebaixar
Deus ao nível humano: “Longe d’Ele precisar que Lhe penteiem o cabelo! Deus é
Senhor dos Mundos; Ele está infinitamente acima da tua concepção mesquinha de
Sua Majestade. Corrige, então, a tua prática. Adora-O em Espírito, não em
forma.” Mas, enquanto Moisés seguia viagem, Deus veio a ele numa visão e o
repreendeu: “Meu servo, o pastor, adorava-Me segundo a concepção que tinha de
Mim — assim como tu. Julgaste-o mal; sua sinceridade é perfeita aos Meus
olhos.” Desesperado e arrependido, Moisés correu de volta para pedir perdão ao
pastor. “Peço-te desculpas, pastor; Deus revelou-me que eu te julguei
seriamente mal. Por favor, continua a adorá-Lo como te parecer correto.” “Mas
eu estava prestes a agradecer-te pela tua correção!”, respondeu o pastor. “O
choque que me deste abriu meus olhos para uma concepção de Deus
incomparavelmente mais ampla do que a que eu tinha antes. Depois do que vi,
jamais poderei voltar à prática anterior.” Assim, tanto Moisés quanto o pastor
aprenderam algo. Uma vez que Moisés julgou em nome de Deus, o julgamento
esclarecedor de Deus caiu sobre todos os envolvidos, incluindo o próprio
Moisés. O pastor superou seu apego à forma, baseado no orgulho de sua
ignorância, enquanto Moisés superou seu apego à transcendência, baseado no
orgulho de seu conhecimento.
Segundo William Blake, a única maneira de
perdoar o inimigo é separar o indivíduo de seu estado. Isso é relativamente
fácil para mim, exceto quando me parece que o adversário está sendo ardiloso e
desonesto; nesse momento, a ira justa (ou pseudojusta) torna-se uma tentação.
E, para alguém como eu, que crê na Verdade objetiva, a maioria das
manifestações da mentalidade pós-moderna tenderá a parecer desonestidade — o
que não é necessariamente o mesmo que falta de sinceridade, preciso lembrar,
mas antes uma desonestidade objetiva imposta pelas condições intelectuais
vigentes, tal como a criminalidade é imposta (se é que o é) aos jovens dos
grandes centros urbanos que não encontram outro modo de sobreviver. O uso
correto dessa ira — o modo específico que, se Deus quiser, a tornará justa em
vez de autojusta — não é fixar o adversário no erro, para julgá-lo como
condenado (porque o estado da alma alheia diante de Deus está além do meu
alcance e não é da minha conta), mas separá-lo de seu erro, como com um
maçarico, na minha consciência, e, se possível, na dele também, e voltar a
chama contra o erro apenas.
É nesse ponto que tenho a chance de ver que
o erro em questão é também meu, que ele faz parte desse pequeno “eu” que vela o
rosto de Deus, pois, se não tivesse guarida na minha natureza, eu nunca teria
cruzado espadas com ele.
Dado que há criação, necessariamente haverá
erro; e, dado que há erro, necessariamente haverá monstros. Quando monstros
ameaçam a vida humana, devemos ir à guerra contra eles — porém o monstro
verdadeiro está em nós, em “mim”. A monstruosidade do erro também faz parte da
vontade de Deus, já que não existe nada que não faça. Mas qual é a função do
erro? Como aquilo que nega Deus pode ser, em certo sentido, parte d’Ele? Nas
palavras do Tao Te Ching: “O discípulo
tolo ouve falar do Tao e ri às gargalhadas. Se não houvesse riso, o Tao não
seria o que é.” Como disse Rumi, “as coisas são definidas pelos seus opostos.”
Se não soubéssemos o que evitar, não poderíamos ver claramente o que abraçar. A
vontade humana é livre, e o campo dessa liberdade é a escolha entre a Verdade
que aniquila o eu, apresentada pelo Intelecto espiritual, e o erro que serve ao
eu, apresentado pelo ego. Sem essa escolha, o amor a Deus — arquétipo de todo
amor — seria impossível. Portanto, o erro, embora seja manifestação da ira de
Deus, é, em último e mais profundo nível, manifestação de Sua Misericórdia,
pois “Minha misericórdia precede Minha ira”; nas palavras de William Blake,
“estar em erro e ser lançado fora faz parte do plano de Deus”. Entramos no
campo dessa Misericórdia, num certo plano, ao expor um dado erro, invocando
assim a Verdade escondida atrás dele — mas eu poderia expor o erro espiritual
até o Dia do Juízo e nunca chegar a saber, na medula dos ossos, que Deus
sustenta o universo na palma da mão, que todos os atos são atos de Deus, e que
tudo o que Deus faz é bom. Só se eu fizer de cada crítica às ideias de outrem
uma ocasião de morte para o meu próprio eu poderei avançar em direção a esse
conhecimento.
Mas como é possível que marcar pontos sobre
o adversário com a espada do intelecto discursivo seja uma morte para o eu? Se
eu venço, sinto-me bem comigo mesmo; sinto-me poderoso; meu ego engorda e fica
lustroso. A única forma que conheço de dedicar o jihad intelectual ao Caminho
espiritual é admitir que criticar as ideias dos outros causa dor tanto a mim
quanto a eles; e, em seguida, sentir essa dor completamente; e, por fim, deixar
que ela queime, até o fim, aqueles lugares da alma onde os erros em questão —
e, portanto, a necessidade de criticá-los — criaram raízes. É interpretar
esotericamente, e em consonância com as regras do jihad maior, a doutrina de
Jesus segundo a qual “quem vive pela espada morrerá pela espada.”
Talvez algumas pessoas sejam capazes, desde
o início, de evitar completamente criticar o que quer que apareça no ser
manifestado. Outras podem ser “isentas” de criticar o mal simplesmente porque
não possuem talento para isso. E há também aqueles que realmente aceitam as
manifestações mais horrendas — não apenas de sofrimento, mas de falsidade e
ilusão — como vontade perfeita de Deus, porque alcançaram a estação espiritual
em que nada lhes aparece, no campo dos acontecimentos, senão a ação direta de
Deus. Essas pessoas estão mais próximas de Deus do que eu; seu nível de
entrega, de Islã, está além de minha capacidade atual. Sua estação é a de
Rabi‘a quando disse: “Eu amo a Deus; não me sobra tempo para odiar o diabo.”
São aqueles que despertaram do sonho do mal.
Mas há outros — muitos outros — que ainda não despertaram plenamente para o
sonho do mal. Sua consciência moral está adormecida ou meio adormecida. Muitos
temem o mal ao redor porque veem como ele destrói a humanidade e arruína a
terra. No entanto, não conseguem rejeitar moral e espiritualmente as coisas que
odeiam e temem, porque não veem nenhum fundamento objetivo do bem sobre o qual
se apoiar para poder chamar essas coisas de “mal”. Acabam aceitando, com
resignação, forças e condições que destroem suas almas. E muitos outros, seja
por aceitação ingênua do anormal, seja por desespero profundamente reprimido,
aceitam sem crítica como boas — ou ao menos como inevitáveis e, portanto,
“boas” de fato — as mais satânicas distorções da vida humana. Eles não dizem:
“Se eu morrer depois de comer alimento envenenado, serei grato, porque essa é a
vontade de Deus”; dizem, em vez disso: “Este alimento não está realmente
envenenado; se…”.
Se eu o comer, ficarei saudável e forte, e se eu o der a outras pessoas
estarei lhes prestando um serviço.” Assim, se eu lhes digo: “Evitem aquele
prato, ele está cheio de veneno”, isso é um ato de amizade — desde que, é
claro, eu possa sinceramente oferecer esse aviso em espírito de amizade. Se
castigo o Mundo, é apenas para lançar uma corda àqueles que estão se afogando
nesse Mundo, cujas consciências foram sistematicamente pervertidas, a tal ponto
que, se começam a suspeitar que uma certa ação ou crença possa ferir gravemente
suas almas e violar sua integridade humana, não têm como apresentar essa
intuição a si mesmos, não dispõem de linguagem para dizê-lo. Pessoas nessa
condição — e são muitas — habitualmente sentem culpa diante do juízo do Mundo
pelo crime de querer fazer o bem; envergonham-se de seus impulsos mais altos e
nobres; envergonham-se de Deus. Foram ensinadas a aceitar tudo, com uma
complacência indistinguível do desespero total, não como vontade de Deus, mas
como decreto do Mundo, cujo objetivo é esmagar qualquer coisa em suas almas que
possa lembrá-las de que Deus é real. Em vez de transcender o mal, ainda não
chegaram ao ponto em que a palavra “mal” signifique qualquer coisa para elas
além do próprio desconforto pessoal. É assim que o niilismo se disfarça de
desapego espiritual. E, se eu mesmo não fosse tentado pelo mesmo niilismo, não
teria sido compelido a lutar com ele, e este livro jamais teria sido escrito.
Talvez apenas os psicopatas — há muitos
psicopatas perfeitamente “bem ajustados” na sociedade atual — sejam
completamente tomados pelo niilismo do Mundo. Mas o Mundo e seu niilismo têm
pelo menos um pé fincado em cada um de nós, a menos que sejamos realmente
santos; e esse ponto de apoio está se tornando mais tóxico e virulento a cada
hora. Nas palavras de Rabi‘a:
Para onde vai uma parte de ti
O resto seguirá — dado o tempo.
O resto seguirá — dado o tempo.
Chamas a ti mesmo de mestre:
Portanto, aprende.
Se um judeu aceita o holocausto porque foi
vontade de Deus, isso é verdadeira piedade, verdadeiro Islã. Se outro judeu o
aceita porque foi vontade de Hitler e passa a invejar Hitler em segredo, isso é
idolatria e blasfêmia. “É necessário que venha o mal”, disse Jesus, “mas ai
daquele por quem o mal vem.” Aqueles que investiram suas esperanças e temores,
seu senso fundamental de realidade, no mundo precisam desesperadamente de ajuda
vinda de uma Realidade que transcende esse mundo. Este livro foi escrito para
lembrá-los de que tal ajuda existe. Por outro lado, a essência de “investir” em
algo é o ato de prestar atenção a isso. Se eu não visse nenhum mundo, mas
apenas Deus, seria uma fonte de luz e ajuda para todos os que se estivessem
afogando no mar do mundo; mas isso está além do meu poder — embora não além do
poder de Deus. Minha estação se assemelha mais à dos “amigos santos” de Rabi‘a,
no seguinte poema:
Um dia Rabi‘a estava doente,
E seus santos amigos vieram visitá-la, sentaram-se ao lado de sua cama
E começaram a falar mal do mundo.
“Vocês devem estar bem interessados nesse ‘mundo’”, disse Rabi‘a,
“Do contrário não falariam tanto dele:
Quem quebra a mercadoria
É porque já a comprou antes.”
É fácil ver Deus nas pétalas da rosa ou na
forma de uma bela mulher. É mais difícil vê-Lo, não apenas em Sua Majestade e
Ira, mas até em Sua Beleza e Sua Misericórdia, nos horrores do mundo atual.
Mas, se Deus pode ser visto ali, então nenhum traço de reprovação contra Sua
criação ou Seus decretos soberanos pode permanecer no Coração. E isso é o eu em
paz.
Minha Esperança
O Anticristo pode ou não ser um indivíduo,
embora muitas autoridades tradicionais, exotéricas e esotéricas, incluindo
muçulmanos e cristãos ortodoxos e escritores como Martin Lings e René Guénon,
afirmem que será, e eu me inclino a concordar. (1 João 2,18 fala de vários
anticristos.) Mas, seja ele ou não um único indivíduo, já é um sistema. É por
isso que não me interessa especular qual personagem, em minha própria galeria
de vilões ou na de outros, poderia ser secretamente o Anticristo, assim como
não considero útil ou possível (ao menos para mim) datar sua ascensão. A
relação entre a simbologia apocalíptica e o tempo histórico é oblíqua, não
direta. Se o Anticristo é conhecido como princípio, contudo, então as crenças,
tendências e indivíduos no mundo exterior que manifestam esse princípio, em
maior ou menor grau, podem ser reconhecidos. Mas, a menos que o sistema mais
amplo daquele princípio seja compreendido — tanto quanto a própria absurdidade
inerente do mal o permita —, se e quando aparecer o indivíduo em quem esse
sistema estiver destinado a assumir sua forma mais plena e terminal, talvez nos
descubramos incapazes de reconhecê-lo. Espero, neste livro, ajudar o leitor a
extrair sentido do caos e da escuridão destes últimos dias, evitar a
participação inconsciente em um mal destruidor de almas e intuir a Misericórdia
Divina que está sempre presente, escondida até nas condições mais críticas,
como sinal claro daquela Realidade superior misteriosamente presente por detrás
da máscara desta, onde Verdade é sinônimo de Bondade, e o mal não passa de
outro nome para a ilusão: “Tudo perece”, diz o Alcorão, “exceto Seu Rosto.”
Parte Um:
Tradição vs. Nova Era
Prefácio
Atualmente há uma confusão considerável entre
“religião” e “sistemas de crenças”. De fato, certos acadêmicos tentam reduzir
todas as religiões a “sistemas de crenças” que, de algum modo, “pegaram”. Mas
há uma distinção a ser feita entre eles, pois as religiões genuínas se
fundamentam na Revelação, que lhes fornece um credo, um código e um culto
fixos, independentes de qualquer pensamento ou sentimento individual, enquanto
os sistemas de crenças não baseados na Revelação estão inevitavelmente sujeitos
à opinião humana. É claro que muitos fundadores de seitas se apoiam
parcialmente na Revelação — aceitando o que lhes agrada e rejeitando o que não
lhes agrada — e a maioria dessas seitas reivindica inspiração pelo Espírito
Santo. Mas o fato permanece: todas se baseiam, ao menos em parte, no pensar e
no sentir que residem na psique e estão sujeitos à ilusão, problema que só pode
ser evitado pela adesão a uma fonte externa fixa. Infelizmente, muitos
representantes religiosos atualmente atacam o fundamento revelado de suas fés
na tentativa de acomodá-las aos valores do mundo moderno, o que, na prática, as
reduz ao mesmo nível que os demais sistemas de crenças.
Uma vez reconhecido que a maioria de nossos
sistemas de crenças se baseia em sentimentos e pensamentos — todos eles
propriedades que se situam no âmbito da psique —, segue-se que se torna
impossível criticar qualquer sistema de crenças específico. Todas as religiões
e sistemas de crenças são equivalentes porque a verdade ou as crenças de cada
um — desde que não causem problemas a outros — têm igual valor. Dizer que um
culto ou religião é falso é considerado um ato de presunção que ninguém ousa
cometer. Além disso, acredita-se que é justamente esse tipo de visão exclusiva
que levou a conflitos e guerras — tudo em nome de Deus — e, portanto, tais
atitudes devem ser evitadas. (Observe-se, porém, que, como disse São Paulo,
“são as nossas cobiças e os nossos desejos” a raiz dos conflitos.) Na ordem
prática, tudo o que “funciona” para o indivíduo é considerado aceitável. E, de
fato, os psiquiatras estão começando a reconhecer que a “religião” tem sua
utilidade, pois ajuda as pessoas a enfrentar os problemas da vida, e a crença
em uma vida após a morte torna a morte mais fácil de suportar.
A maior parte da religião moderna está
enraizada e centrada na psique, de modo que, pela própria natureza das coisas,
as pessoas podem afirmar que aquilo que é verdadeiro para elas é verdadeiro. A
psique não conhece absolutos e, portanto, o indivíduo não tem compromissos
reais. Mais perigoso ainda é o fato de que, ao tentar encontrar alguma medida
de verdade nesse reino nebuloso, abre-se a alma a influências de natureza
possivelmente nefasta. Muitos, como o próprio Jung, deixaram “guias
espirituais” instruí-los sobre como viver e agir, guias que se descrevem como
“anjos”, o que, de fato, são — pois, como acreditava uma época anterior,
existem espíritos em circulação que são “anjos caídos”, ansiosos para invadir
nossas psiques quando a oportunidade se apresenta. E assim é que o “canalizar”
(channeling) se tornou moda, com uma multidão de “guias”, de Ramtha a Seth,
supostamente nos dando acesso a uma forma de superconsciência ou “consciência
divina”, que seria o resultado evolutivo de nascimentos repetidos dentro da
moldura deste universo. É apenas um pequeno passo, a partir daí, para o
envolvimento com o ocultismo. As sociedades tradicionais sempre proibiram o
contato com tais espíritos, não só pelos perigos espirituais envolvidos, mas
também porque tais contatos podem levar a desvios psiquiátricos, como está bem
ilustrado na história bíblica de Saul.
O movimento Nova Era foi bem caracterizado
como a secularização da religião e a espiritualização da psicologia. Aqueles
que veem com facilidade a insipidez do materialismo buscam algo “espiritual”
para satisfazer os anseios de seus corações. Limitados pela visão cartesiana,
que nega a verdadeira natureza espiritual do homem, fazem ídolos da música e
das artes, do amor e da natureza — sempre dentro dos limites de suas ramificações
psíquicas. Isso os leva, bem como a muitos na vida religiosa, a voltar-se para
a psique em busca de realização.
Aqueles “aprisionados” na psique, que
centralizam a vida em sentimentos ou na convicção de que seus pensamentos
privados e individuais são absolutos, são descritos pelos autores medievais
como estando “apaixonados por si mesmos”. Esse “amor a si”, em oposição ao
“Amor de Si” (isto é, do verdadeiro Self), é visto como um defeito a ser
corrigido. Imediatamente ouvimos o protesto dos que declaram que ninguém lhes
dirá como pensar ou agir. Insistem na liberdade de decidir essas coisas por si
mesmos. E isso é plenamente compreensível em alguém cuja visão de mundo se
baseia no princípio cartesiano segundo o qual somos exclusivamente corpo e
mente. Se é só isso que somos, então, de fato, têm direito a tal posição, pois
sua mente e seu corpo não têm mais autoridade do que os meus. Reconhecer,
porém, a natureza tripartite do homem — o que de modo algum nega a psique —
orienta-nos para restabelecer uma hierarquia de ordem em que o Espírito dirija
a psique, assim como a psique dirige, ou deveria dirigir, o corpo.
Mas o Espírito não está apenas em nós; está
também acima e fora de nós. E, em última instância, Ele somos nós: nossas
faculdades têm raiz no Senhor e “na Sua Luz vemos a Luz”.
O livro de Charles Upton é uma exposição
notável do que resulta da aceitação do dualismo cartesiano, a ideia de que
nossa totalidade se compõe apenas de corpo e mente. Em certo sentido, mostra as
inúmeras formas que os cultos pseudorreligiosos podem assumir quando
fundamentam a verdade em sentimentos e opiniões privadas, em vez de na
revelação. E, talvez mais importante ainda, mostra como todas essas seitas são
fundamentalmente semelhantes, tanto em sua origem quanto em sua visão de mundo.
Para quem busca a verdade, este livro oferece um excelente guia através do
labirinto das “ofertas” religiosas modernas.
RAMA P. COOMARASWAMY, MD, FACS, Professor
Assistente Clínico de Psiquiatria,
Albert Einstein College of Medicine, Nova York
Pós-modernismo, Globalismo e Nova Era
No início do Terceiro Milênio, nosso espaço
é dominado pela globalização da Terra, pelo “caldeirão” de todas as culturas
nacionais, tribais e religiosas; e nosso tempo, pelo “pós-modernismo”, em que
parecemos aproximar-nos de uma condição impossível na qual todas as eras do
passado, em virtude da cultura da informação, são igualmente disponíveis,
igualmente válidas, igualmente falsificadas e igualmente corruptas. Esta era, a
terminal para o presente ciclo de manifestação, nos apresenta perigos
espirituais sem precedentes, bem como oportunidades espirituais únicas. Neste
capítulo são explorados muitos dos perigos — e algumas das oportunidades —
sociais, filosóficos, religiosas e metafísicas que se situam sob o signo do Fim.
O que é Pós-modernismo?
O tempo em que vivemos tem sido chamado de
“pós-moderno”. O que exatamente isso significa? O que poderia possivelmente vir
depois de estar “atualizado”? E, se algo realmente vier depois, como poderíamos
ser contemporâneos disso? “Pós-moderno” significa “depois da história”? Poderia
ter algo a ver, talvez, com o “fim do tempo”?
Pós-modernismo, ou pós-modernidade, é um
nome para a qualidade geral do nosso tempo. Mas também se refere a certas
correntes da filosofia, da arte e da crítica literária. O que se segue é uma
breve visão geral da filosofia pós-moderna; depois de tornar alguns de seus
conceitos básicos o mais claros possível, farei o que puder para mostrar como
esses conceitos — ou suposições, ou preconceitos — se aplicam a outras áreas da
vida contemporânea.
Segundo Huston Smith, em Beyond the Post-Modern Mind, o
“modernismo” baseou-se (e se baseia) na crença de que “(a) nada que careça de
um componente material existe e (b) naquilo que existe, o componente físico tem
a palavra final”. Assim, o modernismo é essencialmente naturalismo ou
materialismo. Esse naturalismo assumiu o comando, a partir do Renascimento e
com aceleração durante a revolução científica do século XVII, à medida que a
metafísica e a religião revelada começaram a ser marginalizadas. A visão de
mundo unificada apresentada pela teologia foi substituída por uma nova unidade
— ou, melhor dizendo, por uma nova crença de que a unidade poderia finalmente
ser alcançada — fundada no estudo da natureza e da história humana. Quanto mais
fatos descobríssemos nessas áreas, mais material teríamos disponível para a
construção do Grande Desenho.
Mas, segundo o pós-modernismo, não existe
Grande Desenho. A verdade é plural e, em última instância, subjetiva. A
realidade é apenas aquilo que é configurado: por um período histórico, uma
sociedade, uma linguagem ou um indivíduo dados. Não há nada realmente “lá fora”
além de uma massa de potencial caótico à espera de ser moldado em alguma forma
arbitrária. Huston Smith cita Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger,
Wittgenstein e o desconstrucionista Jacques Derrida entre os arquitetos
conscientes ou inconscientes desse movimento, que começou a suplantar o
modernismo, ao menos nas sociedades ocidentais, na primeira metade do século
XX.
Kant ensinou que o ser humano jamais pode
experimentar a Verdade transcendente, ou a realidade objetiva (númeno) de coisa alguma, mas apenas o
mundo dos fenômenos tal como nos é apresentado por nossos esquemas inatos e
fixos de percepção. E Nietzsche, com sua “morte de Deus”, anunciou o fim da
metafísica — um desenvolvimento aterrador, mas historicamente inevitável —, ao
mesmo tempo que fazia tudo o que podia para promovê-lo, atacando o Cristianismo
e substituindo a noção metafísica de princípios eternos e imutáveis na mente de
Deus pela doutrina estóica do retorno circular e interminável de todas as
coisas. (O que poderia ser mais niilista do que trabalhar pela realização de
algo que se julga terrível, simplesmente porque se acredita que é inevitável?)
Segundo o Prof. Smith, Kierkegaard também teve seu papel, com a ideia de que a
verdade objetiva desumaniza. Essa crença é sustentada hoje por milhões de
pessoas, que a aplicam não à filosofia hegeliana, como ele fazia, mas à
ciência. Depois veio Heidegger, que afirmou não haver verdade objetiva além da
que um período histórico específico define como real; Wittgenstein, que
sustentou não haver verdade objetiva além da definida pelas culturas e mediada
pela linguagem; e Derrida, que nos diz que qualquer tentativa de definir uma
verdade objetiva deve necessariamente excluir e, portanto, marginalizar e
oprimir outras versões possíveis do que seja verdadeiro. A diversidade cultural
e filosófica deve ser celebrada porque a unidade tiraniza. Acreditar que uma
sociedade, ou uma linguagem, ou mesmo um texto, tenha alguma estrutura inerente
é opressivas. Consequentemente, qualquer pessoa que pense ter apreendido o
verdadeiro significado de um texto — inclusive quem o escreveu — está enganada…
exceto, ao que parece, Derrida e os desconstrucionistas. Jacques Derrida
poderia ter tido uma carreira brilhante como devastador satirista do
pós-modernismo, não fosse o fato de que o humor só pode existir na fronteira
entre o real e o absurdo, e os desconstrucionistas, tão sem humor quanto são,
eliminaram o primeiro desses dois termos de consideração.
Eis o pós-modernismo em poucas palavras: (1)
não existe verdade objetiva, portanto (2) a realidade não é percebida, mas
construída — pelos padrões inatos de percepção, ou pela história, ou pela
sociedade e pela linguagem, ou pelo indivíduo — de modo que (3) todas as
tentativas de criar visões de mundo abrangentes que transcendam a história, a
sociedade ou até (em última instância) o indivíduo são opressivas; logo (4)
todas essas visões de mundo arbitrariamente construídas devem ser
desconstruídas para que se celebre a diversidade e se preservem os direitos das
construções de realidade de minorias marginalizadas (as quais, evidentemente,
sendo também construções, precisam igualmente ser desconstruídas; tanto faz,
portanto, a preservação dos direitos das minorias). Assim, o pós-modernismo
termina no desconstrucionismo, e o desconstrucionismo termina (ou assim
esperamos) na desconstrução do próprio desconstrucionismo: se a visão
construída pela maioria oprime as minorias, também as visões minoritárias
oprimem os indivíduos… e as visões individuais (por que não?) oprimem as visões
das subpersonalidades dentro do indivíduo, enquanto essas subpersonalidades
oprimem a experiência de frações de segundo de consciência, etc., etc., etc.
Ninguém reconhece aqui a qualidade familiar de nossa vida diária, a
pulverização progressiva da realidade? É como se os desconstrucionistas fossem
criaturas absolutas da mídia eletrônica, pessoas que consideram criminoso
possuir capacidade de atenção, porque isso imporia forma arbitrária e opressiva
sobre a experiência “pura”; pelo menos é para essa fase terminal que parecem
caminhar. Se os levamos a sério, teremos que concluir que existir é,
necessariamente, oprimir e ser oprimido? Que o fim da opressão deve ser o fim
da existência? Que o objetivo final do niilismo pós-moderno é, e deveria ser, a
aniquilação? Talvez a palavra “pós-modernismo” de fato se refira à terminação
da história, ao fim do tempo. É óbvio que se trata de uma casa construída sobre
a areia.
Modernismo e pós-modernismo são perfeitamente
capazes de atuar em conjunto na mente contemporânea, inclusive na mente de um
único indivíduo, para neutralizar a visão tradicional ou metafísica da
realidade. Para tomarmos apenas um exemplo: se eu mostrar a tal indivíduo que
certas tendências sociais se encaixam precisamente na definição tradicional de
demonismo, e têm consequências que ninguém em perfeito juízo buscaria
deliberadamente, seu lado pós-moderno caótico validará essas tendências como
parte da “celebração universal da diversidade”, enquanto seu lado moderno
materialista negará que algo como demonismo possa existir. Ao fazer isso, ele
obviamente nega parte da diversidade que acaba de validar; mas, como esses dois
lados de sua consciência nunca se encontram, a contradição entre eles “não é
problema” — e continuaria a “não ser problema” mesmo que se encontrassem, já
que o pós-modernismo vê a inconsistência como uma espécie de “riqueza” e a
consistência, até a consistência lógica, como forma de opressão. Aí podemos ver
como o pós-modernismo é de fato a visão dominante, da qual o modernismo se
tornou nada mais que um subconjunto, apenas mais um item desconectado no
espectro pós-moderno da “diversidade”. E tanto a celebração pós-moderna quanto
a negação moderna agem em conjunto para sustentar, e não para se opor, às
tendências em questão — tendências que o mesmo indivíduo, com outra faceta
igualmente desconectada de sua consciência fragmentada, pode sinceramente deplorar.
A Verdade Escondida no Pós-modernismo
Mas existe algo de bom no pós-modernismo?
Huston Smith menciona o útil alerta dos desconstrucionistas de que pretensões
absolutistas, inclusive as metafísicas, podem se tornar tirânicas, bem como seu
louvável empenho em defender o Outro, tanto em termos de minorias excluídas
quanto de ideias marginalizadas. Se o pós-modernismo vê todas as visões de
mundo como construídas — ou seja, como função do poder, e não da verdade —,
então o desconstrucionismo precisa surgir como defensor das muitas visões
diversas que detêm menos poder do que a visão dominante em determinado tempo e
lugar. Ele nos adverte, contudo, contra a absolutização dessa mesma
diversidade, já que “não honraríamos a alteridade do Outro se não reconhecêssemos
também a sua identidade conosco”.
Smith vê o desconstrucionismo, a mais radical
das correntes pós-modernas, como uma espécie de Teorema de Gödel no campo da
filosofia. O matemático Kurt Gödel provou que nenhum sistema pode ser ao mesmo
tempo completo e consistente. Para ser consistente, deve deixar coisas de fora;
para ser completo, precisa incluir contradições. “Como não pode haver sistema
que seja completo e consistente”, lembra Smith, “é impossível que um único
sistema possua toda a verdade. Outras vozes devem ser ouvidas.” É igualmente
impossível, porém, que toda a verdade possa ser conhecida somando-se sistema a
sistema. Informação, verdade quantitativa, pode ser acumulada; a Verdade
transcendente e espiritual, não.
Mas o que exatamente é um sistema? A própria
existência, em seu próprio nível, é completa, embora nunca possamos
experimentar tudo o que ela contém. Ela é também misteriosamente consistente,
impressionando aqueles que a contemplam em profundidade como um universo, um
cosmo ordenado, uma expressão do Tao. No entanto, jamais é perfeitamente
previsível. Um sistema, então, é uma tentativa de sintetizar, por meio de uma
construção da mente humana, a completude e a consistência que só podemos intuir
na existência primordial em si.
Em qualquer sociedade tradicional baseada numa
revelação religiosa, pouca dissonância — se é que alguma — é visível, para a
maioria das pessoas, na maior parte do tempo, entre o sistema sagrado de mito,
teologia e ritual e a própria existência. Só nesta era de pluralismo forçado,
em que todas as revelações religiosas sobreviventes, os “universos” mitológicos
de muitas tribos primitivas, diversos sistemas filosóficos e distintos
universos artísticos de sensibilidade, a historicidade e o naturalismo da visão
de mundo modernista, os paradigmas da ciência e do cientificismo e a
anti-visão-de-mundo que é o pós-modernismo se chocam de frente, é que um
“Teorema de Gödel” sociológico se tornou necessário.
Em tempos antigos, como na Antiguidade tardia,
ou em boa parte da história da Índia, quando muitas religiões e filosofias se
encontravam e se fecundavam mutuamente, o sincretismo, para o bem ou para o
mal, ainda era possível. Restava o suficiente do sentido primordial da unidade
da existência para que os filósofos traçassem um quadro mais ou menos unificado
do cosmos que abraçasse a pluralidade das formas religiosas, e para que o povo
aceitasse o pluralismo religioso como algo mais ou menos natural, parte da
“ecologia” do espírito — embora esse sincretismo estivesse sempre num nível
mais baixo do que qualquer forma tradicional isolada e frequentemente fosse
hostil ao sentido mais alto do sagrado mediado por essas formas. Mas hoje
perdemos em grande medida até esse vago, intuitivo senso de unidade. As visões
de mundo da ciência e da revelação, do materialismo e do transcendentalismo,
são demasiado radicalmente opostas para serem reconciliadas. Isso não quer
dizer que não haja sincretismo em nosso tempo; de certo modo, este é o “tempo
de ouro” do sincretismo. O fato é que o sincretismo não tem mais poder para
superar, nem mesmo de forma parcial e relativa (que era tudo o que jamais pôde
fazer), nossa ansiedade existencial e nossa fragmentação cognitiva. Quando tentamos
abraçar a completude, hoje, deparamos de imediato com contradições agonizantes.
Quando optamos pela consistência, ficamos com algo isolante, constritor e
radicalmente incompleto.
Os termos “completo” e “consistente” são, em
certo sentido, ambos horizontais. Se o tampo de uma mesa tem extensão infinita,
ele inclui “tudo” — tudo no plano da mesa, isto é —, mas a pequena parte
visível não fará sentido. Se a mesa é finita, pequena o bastante para ser
abarcada com um olhar, será consistente, porém deixará muita coisa de fora; se
olharmos além de suas bordas, veremos muitas outras mesas. Nenhuma das palavras
“completo” ou “consistente”, entretanto, pode carregar todo o peso dos termos
metafísicos Realidade e Verdade, ambos nomes de Deus. Só Deus, digamos assim, é
totalmente completo e perfeitamente consistente — e Deus não é um sistema. Sua
completude não pode ser abrangida nem esgotada porque é Infinita; Sua
consistência não pode ser definida nem racionalizada porque é Absoluta. O
Teorema de Gödel, então, é a expressão matemática da transcendência de Deus em
relação ao cosmos, da pobreza relativa do cosmos quando considerado à parte de
Deus. Mas, uma vez que perdemos em grande parte o senso imediato de mundos
superiores invisíveis — mais reais do que este — e de um Absoluto Divino e
Transcendente, o Teorema de Gödel se torna apenas irônico, expressão matemática
do desespero pós-moderno quanto à verdade objetiva.
Quando o norte está congelado, o oeste
inundado, o sul em chamas e o leste bloqueado por um deslizamento de terra, a
única saída é para Cima. Um sistema filosófico não precisa ser absolutamente
consistente ou absolutamente completo para cumprir sua função. Não tem de ser
Deus, assim como um elevador não precisa ter o tamanho de todo o prédio. Isso é
assim porque Deus já é Deus; consistência e completude já estão garantidas.
Tudo o que uma filosofia (ou, para sermos estritamente exatos, uma teosofia)
precisa de fato é estar aberta, na dimensão vertical, à Verdade transcendente,
ao sentido do Absoluto, e conformar suas formulações, tão imperfeitas quanto
forem, a esse sentido. E, desde que percebamos que a religião, diferentemente
da filosofia, dirige-se ao ser humano inteiro, não apenas à sua mente, o mesmo
se pode dizer de qualquer forma religiosa viável. Ela não precisa ser
absolutamente consistente ou completa; só Deus pode sê-lo. Basta que preserve,
operativamente intacto, em seus dogmas, rituais, moral e prática contemplativa,
o raio vivo de Deus por meio do qual entrou no mundo, e ao longo do qual as
almas humanas nela contidas podem retornar à Fonte que a enviou.
Entender isso é superar a idolatria
doutrinal, que podemos definir como a adoração de um sistema de crenças —
heterodoxo ou ortodoxo — no lugar de Deus. Não me interpretem mal: a ortodoxia doutrinária
é necessária se quisermos manter uma relação viva com o Absoluto. Está o mais
longe possível de qualquer utilitarismo ou pragmatismo. Não é arbitrária, mas
integral e necessária à revelação que expressa. Nos termos de Frithjof Schuon,
é “relativamente absoluta”. As doutrinas religiosas que possuem verdadeira
ortodoxia são providenciais. Sua eficácia operativa não se deve ao fato de
serem complexas, ou simples, ou fascinantes o suficiente para nos motivar
espiritualmente, mas ao fato de serem objetivamente verdadeiras: não totalmente
completas e consistentes, mas ainda assim as mais altas expressões possíveis
(ainda que nem sempre as únicas) da Realidade de Deus e de Sua relação com a
criação, dentro de determinado universo religioso. São como elevadores que vão
até o Último Andar. Outros elevadores podem levar parte do caminho, mas, se o
objetivo é o Último Andar, será preciso descer novamente ao térreo para tomar o
elevador certo. E, embora mais de um elevador — mais de uma tradição revelada —
possa subir ao Último Andar, não é possível tomar dois ao mesmo tempo.
A idolatria doutrinária é uma forma da
idolatria mais universal das visões, a tendência humana inevitável de confundir
a própria visão da realidade com a própria realidade. O pós-modernismo, em seu
melhor aspecto, ao negar a completude e a consistência de qualquer visão única
das coisas, poderia trabalhar contra essa idolatria das visões e dar a seus
adeptos algum senso da incomparabilidade transcendente das “formas de vida”
singulares — bem como de indivíduos e momentos singulares —, nível de
compreensão atingido de modo permanente apenas pelos grandes místicos, como o
sufi Ibn al-‘Arabī, que veem todos os acontecimentos como atos ou aspectos
simbólicos de Deus — “Ele (Allah) está a cada dia em uma nova obra”, diz o
Alcorão —, por aqueles que transcenderam com limpidez o dogma sistemático sem,
de forma alguma, negá-lo. Como ensina William Blake, a singularidade concreta
dos “minutos particulares” está mais próxima da verdadeira revelação de Deus do
que a ideia abstrata de transcendência. Na prática, porém, o pós-modernismo
parece produzir o efeito oposto. Embora o Prof. Smith fale do respeito
relutante e intermitente de Jacques Derrida pela metafísica, e de certas
intuições metafísicas em Heidegger, na maior parte das vezes o pós-modernismo é
ainda mais anti-metafísico do que o modernismo. E, sem a dimensão vertical, sem
um senso concreto do Absoluto, a celebração da diversidade, em oposição à
unidade, só pode ser um comentário irônico sobre a impossibilidade de chegar à
verdade objetiva, acompanhado de uma negação niilista de que tal verdade seja
sequer desejável.
Nossas visões não são a realidade; contudo,
são visões da realidade, embora variem amplamente em capacidade e exatidão. Até
o paranoico constrói seu delírio sobre algum traço ou aspecto de verdade. Mas,
se negamos que exista qualquer verdade objetiva além de nossas visões, isso nos
impede de idolatrá-las, já que entendemos que não são “reais”? Ou nos força a
idolatrá-las, precisamente porque agora elas são a única “realidade” que
existe? E um mundo habitado por solipsistas — mundo que o pós-modernismo, por
meio da mídia eletrônica, está em vias de criar — é realmente um mundo
tolerante? Se eu o aceito apenas porque você é parte de mim (em vez de eu ser
parte de você, o que seria uma blasfêmia contra o solipsismo), terei realmente
aceitado você?
De certo modo, a prática contemplativa pode
ser definida como o trabalho de superar a idolatria das visões. A concentração
no Absoluto implica a realização progressiva, momento a momento, de que nossas
visões da Realidade de Deus não são Deus. À medida que passamos a entender, e a
aceitar, que nenhuma concepção nossa pode conter o Absoluto, aprendemos a
deixar nossas concepções ir. Na terminologia técnica do misticismo, isso é a
contemplação “apofática” da transcendência de Deus.
Mas isso é apenas metade do quadro. Ao
soltarmos nossas concepções, concepções maiores nascem, que também precisamos
soltar, abrindo espaço para concepções maiores ainda. E, à medida que o
processo continua, passamos a perceber que essas concepções não são tentativas
frágeis de compreender Deus, mas generosas e misericordiosas auto-revelações de
Deus para nós. Como somos finitos, jamais podemos conter Sua auto-revelação total,
a não ser pela aniquilação de nossa existência separada e autodefinida,
aniquilação que, em última instância, renasce como uma das infinitas
auto-revelações de Deus contidas em Sua existência maior. Porém podemos aceitar
as auto-revelações de Deus como dons gratuitos pelos quais aspectos de Sua
Essência inconcebível se tornam conhecidos de nós, segundo nossa capacidade.
Esta é a contemplação “catofática” da imanência de Deus.
Tal como a prática contemplativa, a
filosofia pós-moderna trabalha contra o “realismo ingênuo”, que nos faz
acreditar que a realidade objetiva se limita ao que vemos, que as coisas são
simplesmente o que parecem. Mas também nos ensina, paradoxalmente, que as
coisas são apenas o que vemos, que nada, ou nada inteligível, existe de fato
“lá fora”. E, em vez de colocar essas duas verdades em relação, como faz a
metafísica tradicional, ela as volta uma contra a outra. Em vez de postular uma
Realidade que transcenda todas as nossas visões, nega que tal Realidade possa
existir; no lugar do Vazio Divino além de toda concepção, ficamos com um vazio
literal, uma falta morta. E, em vez de considerar nossas concepções das coisas
como auto-manifestações daquela Realidade Inconcebível, vê-as como produções,
em última análise arbitrárias, de um substrato material cego e destituído de
unidade, produções formadas e mediadas, quase inteiramente, por inconscientemente,
apenas pelos “egos” da história, da sociedade, da linguagem e do indivíduo
isolado. Em lugar, portanto, da Inacessibilidade unida à Manifestação, temos a
inadequação de toda concepção unida à sua proliferação cega e interminável. O
niilismo pós-moderno é, assim, uma espécie de misticismo falsificado, uma
sombra distorcida do próprio Absoluto. E, quando a sombra do Absoluto — aquela
que os muçulmanos chamam de “Iblis” — se torna o princípio orientador de toda
uma época histórica, somos obrigados a concluir que o fim do ciclo está
próximo.
Pós-modernismo e Nova Era
As espiritualidades da Nova Era parecem opor-se
em muitos aspectos ao pós-modernismo. Acreditam na verdade objetiva de
realidades transcendentais. Não se interessam em limitar essa verdade àquilo
que pode ser visto através da lente desta ou daquela linguagem, sociedade ou
época histórica. Em vez de desconstruir escrituras e mitologias, examinam as
escrituras e mitologias do mundo inteiro e de toda a história humana em busca
de pistas para alguma verdade oculta. Acreditam em “estrutura profunda”. O
segredo da metafísica e da profecia está oculto nas dimensões da Grande
Pirâmide; o “Livro de Dzyan” de Madame Blavatsky seria a escritura mais antiga
do mundo e a chave de todas as outras; os ensinamentos de Seth, ou de A Course in Miracles, ou de A Profecia Celestina revelam a forma
destinada da história humana e a estrutura objetiva e real do universo. Podem
ser heterodoxas do ponto de vista das ortodoxias tradicionais, mas não seriam
pós-modernas.
Ou seriam? A primeira semelhança entre a Nova
Era e o pós-modernismo é que ambos são pluralistas; ambos gostam de “celebrar a
diversidade”. A Nova Era pode ter herdado o resíduo da crença da cristandade em
uma verdade metafísica objetiva; ainda assim, a palavra “objetividade” não é
simpática aos adeptos da Nova Era. Para eles, como para pós-modernos em geral,
tende a ser sinônimo de “ortodoxia”, “dogmatismo” e “hierarquia”, que, por sua
vez, são sinônimos de “opressão”.
A pluralidade de espiritualidades Nova Era não
é divisiva; não é sectária. A transcendência é buscada, mas é essencialmente
uma transcendência subjetiva — o que é uma contradição em termos, já que é
precisamente nossa subjetividade, nosso ponto de vista egocêntrico e limitado,
que precisa ser transcendido. E, uma vez que transcendência e subjetividade são
simultaneamente abraçadas como valores, a autoridade espiritual é ao mesmo tempo
buscada e desconfiada. Gurus reúnem seguidores, mas acredita-se ao mesmo tempo,
até por muitos desses seguidores, que “você é o seu próprio guru”. Cada vez
mais adeptos da Nova Era canalizam entidades psíquicas na tentativa de
contornar a autoridade espiritual de mentores humanos, válidos ou não; mas em
seguida dão a essa “entidade” autoridade absoluta sobre sua visão da realidade
— autoridade que, porém, pode ser “massageada” quando necessário, já que nada é
mais fácil do que operar a própria “entidade” como um boneco de ventríloquo
para que ela diga o que queremos ouvir. A Nova Era compartilha com o
pós-modernismo uma desconfiança em relação à autoridade, enquanto ao mesmo
tempo possui suas próprias autoridades, assim como o pós-modernismo possui as suas.
É prática comum, para muitos adeptos da Nova
Era, não permanecer fiel a um único mestre ou a uma única visão, mas
multiplicá-los deliberadamente. Quanto mais mestres e ensinamentos se consegue
colecionar — e, no extremo neopagão do espectro, quanto mais deuses e deusas —,
mais ampla se supõe ser a área de consciência do indivíduo. Essa tendência
poderia ser definida como “o reino da quantidade” na esfera religiosa, e é
indistinguível do pluralismo pós-moderno, pois, se não existe realidade
objetiva, a “expansão da consciência” só pode ser horizontal e quantitativa. Do
mesmo modo, a crença de que cada um é seu próprio guru, ou pode canalizar sua
própria entidade, ou deve construir o próprio “mito pessoal”, nada mais é do
que uma versão popular da doutrina da filosofia pós-moderna segundo a qual “a
realidade é apenas como é configurada”.
A pluralidade e a diversidade da doutrina Nova
Era garantem que ela jamais possa transcender o nível psíquico. O domínio do
Espírito é objetivo e unitário; o da psique é necessariamente múltiplo, por se
basear nos pontos de vista subjetivos de seus muitos habitantes, humanos e
outros. A Verdade espiritual objetiva, arquetípica, pode refletir-se aí, mas
também se refrata e se quebra, como a imagem do Sol numa baía revolta. Nenhum
fragmento isolado da imagem do Sol nas ondas em movimento é o Sol inteiro;
nesse ponto, a advertência pós-moderna contra a absolutização de visões
subjetivas é bem-vinda. Mas tampouco se pode ver o Sol inteiro somando-se
fragmento a fragmento; um milhão de fotografias do Sol cintilando sobre a água
nunca produzirão a imagem do Sol inteiro. E somente uma tal imagem unitária
pode demonstrar que existe algo como o próprio Sol, uma realidade em si,
situada em plano mais elevado do que o de seus reflexos.
O subjetivismo religioso da Nova Era é, em
essência, uma tentativa de encontrar refúgio na psique subjetiva contra o
terror do mundo, contra o materialismo e o cientificismo, entendendo a psique
como, de certo modo, transcendente às condições materiais, mas ignorando o fato
de que, se a psique não está enraizada no Espírito, em algo superior a si
mesma, torna-se mero apêndice das condições materiais — como Karl Marx
demonstrou com tanta clareza. Uma transcendência subjetiva é uma transcendência
fragmentada, e uma transcendência fragmentada não pode ser verdadeiramente
transcendente.
Globalismo e Anticristo
O globalismo e o Governo Mundial Único, a meu
ver, não são o sistema do Anticristo, embora estejam entre os fatores que
tornarão possível esse regime.
Creio que o sistema do Anticristo surgirá —
está, de fato, surgindo — do conflito entre a Nova Ordem Mundial e o espectro
de reações militantes contra ela.
No tempo de Jesus, o Governo Mundial Único era
o Império Romano. Os zelotes eram os revolucionários e/ou milicianos
anti-romanos. Jesus tomou o cuidado de não deixar-se arrastar a declarações que
comprometessem a causa zelote e o fizessem parecer um colaborador de Roma.
Porém também se relacionou com oficiais militares romanos e com serviçais de
Roma, como os cobradores de impostos judeus, de maneiras que escandalizavam
muitos patriotas nacionalistas judeus. Ele emergiu do povo comum, oprimido
tanto por Roma quanto pelas classes dirigentes judaicas coloniais que faziam o
“trabalho sujo” do Império; denunciou aqueles setores da elite — escribas,
fariseus, saduceus e herodianos — que se aliavam ao Império, sem pronunciar
palavra contra zelotes e essênios, que não o faziam. Mas não se identificou com
a “vanguarda” violenta que agia em nome do povo. Podemos dizer, portanto, que,
se Cristo se esforçou por não ser identificado nem com o Império Romano nem com
seus opositores militantes, por essa mesma razão devemos tomar cuidado para não
identificar estritamente o Anticristo nem com o Governo Mundial Único nem com o
terrorismo antiglobalista. Juntos, eles fornecerão o meio de onde ele surgirá;
mas, assim como Cristo evitou ser reivindicado por qualquer das partes porque
sua missão era redimir não apenas os judeus, mas toda a humanidade, o
Anticristo “jogará dos dois lados” nos últimos dias para construir seu poder
sobre todos os aspectos da alma humana. O Anticristo não é principalmente
inimigo da democracia ou da autonomia nacional, em outras palavras, mas da
própria Humanidade, considerada como feita à imagem e semelhança de Deus. Em
sua essência mais profunda, a batalha entre Cristo e Anticristo não é entre
liberdade e tirania (embora, onde haja verdadeira liberdade, o Anticristo não
possa vir), nem entre corpos religiosos tradicionais e sociedade secular (ainda
que o campo desse conflito possa, ao menos em alguns casos, estar mais próximo
da verdadeira guerra), mas entre a presença sagrada de Deus no coração humano e
a violação sacrílega dessa presença: “Quando, pois, virdes a Abominação da
Desolação de que falou o profeta Daniel, erguida no lugar santo (quem lê,
entenda), então os que estiverem na Judeia fujam para os montes” (Mt 24,15–16).
O globalismo está em processo de destruir
todas as culturas tradicionais e nacionais, minando e comprometendo todas as
formas religiosas tradicionais. Mas simplesmente opor-se a todo planejamento e
ação em escala global também é problemático. A verdade irônica é que, dado o
globalismo, precisamos de globalismo. Se os negócios são internacionais, os
sindicatos também precisam ser internacionais, ou os salários poderão, em
última análise, cair abaixo do nível de subsistência em toda parte. Se as
epidemias são globais, os esforços de saúde pública devem ultrapassar as
fronteiras nacionais. Se a poluição é global, os esforços para limitá-la
precisam ser globais. Se o crime é global, a polícia também deve ser. Se nações
“emergentes” e bandos terroristas desenvolvem armas de destruição em massa,
esforços devem ser feitos para limitar sua disseminação. Não temos escolha
senão tentar administrar a Terra em nível planetário. Mas a luta para realizar
isso produz, por sua vez, resultados ambíguos. Se os poderes constituídos podem
usar o ambientalismo, os esforços de saúde pública, as ações de imposição
armada da paz e a guerra contra o crime internacional, o terrorismo e o tráfico
de drogas para consolidar ainda mais seu poder, eles o farão. Ou melhor, já o
fazem. Quem se opõe a esforços para salvar o meio ambiente, combater o tráfico
internacional de drogas ou limitar a possibilidade de terrorismo nuclear age
contra os melhores interesses da humanidade e da Terra. Mas quem se identifica
com esses esforços ou deposita neles sua esperança está iludido. A Terra não
pode ser administrada em nível planetário porque as forças do globalismo que
aspiram gerir esse processo — negócios e finanças globais, em outras palavras,
seguidos, e não liderados, pela tendência à unificação política — são as mesmas
que estão criando esses problemas em primeiro lugar. A expansão global da
indústria e da exploração de recursos — iniciada e até hoje impulsionada,
apesar do interlúdio comunista, pelo capitalismo transnacional — está na origem
da degradação ambiental. Ao destruir economias tradicionais de subsistência e
proletarizar o trabalho — assistida, em grande medida, pela brutal
coletivização da agricultura, à custa de dezenas de milhões de vidas, na Rússia
e na China comunistas —, ao explorar mão de obra barata e ameaçar identidades
culturais nacionais e religiosas, as forças do capitalismo global criaram elas
próprias o comércio subterrâneo global de drogas, armas, espécies animais em
risco, escravos… todos monumentos ao espírito empreendedor. Só um Governo
Mundial Único poderia limitar o poder destrutivo dessas forças econômicas
internacionais. Mas, se e quando tal governo emergir, ainda que possa exercer
alguma influência mitigadora sobre desastres globais, será agente dessas
forças, não seu adversário.
A política é a arte do efêmero. Tudo o que
tem valor humano e é obtido pela ação política é temporário, ambíguo e corruptível.
Essa é a natureza do tempo e da história — da própria matéria. A ação pela
justiça social, a ação para salvar o meio ambiente são louváveis. Cada pessoa
que consegue evitar ser esmagada pelas circunstâncias sem se tornar exploradora
e opressora de outros é uma bênção para a raça. Cada espécie que pode ser salva
da extinção permanece como um espelho incomparável de um aspecto único da
natureza divina e pode (ou não) acrescentar à biodiversidade disponível no
próximo ciclo de manifestação terrestre, já que não podemos saber com absoluta
certeza se o fim deste eão precisa implicar a destruição total de toda a vida
na Terra, ou mesmo de toda a vida humana; tudo o que sabemos é que será o fim
para “nós”.
Mas a batalha contra o Anticristo está em
outro nível. Embora para alguns possa ter uma expressão política, é
essencialmente espiritual. “O meu Reino não é deste mundo.” É uma luta para
salvar não o mundo, mas a alma humana — começando, e terminando se preciso for,
pela própria.
Vetores do Anticristo nos Três “Estados”
Religiosos
Huston Smith divide todas as manifestações
religiosas em três níveis básicos: religião de igreja, religião popular e
religião mística. Há grande interpenetração entre esses domínios, mas a divisão
permanece, em essência, correta. Muito se esclarece quando percebemos que nem
tudo o que passa por “religião” tem a mesma orientação, o mesmo campo de
atividade, o mesmo objetivo último.
Tal como vejo as coisas, o objetivo
principal da religião de igreja é a salvação do indivíduo em um estado após a
morte. O objetivo principal da religião popular é o atendimento do desejo
humano e a proteção da vida humana contra o dano. O objetivo principal da
religião mística é a realização de Deus, a libertação final da existência
contingente, já nesta vida. A religião popular, portanto, pode ser designada
como a religião deste mundo; a religião de igreja, do outro mundo; e a religião
mística, do Absoluto, além tanto deste mundo quanto do outro. Esse esquema está
longe de ser perfeito, mas, apesar das muitas exceções, ainda me parece um modo
útil de dar sentido às tendências diversas abrangidas pela palavra “religião”.
Sem dúvida, a religião de igreja tem, entre
seus objetivos secundários, a proteção do indivíduo e da comunidade contra o
mal e a obtenção de metas moralmente aceitáveis nesta vida. E toda religião
baseada na revelação possui pelo menos uma porta em seu interior — largamente
reconhecida ou meio esquecida — que se abre para o Caminho místico. Também a
religião popular não é totalmente destituída de elementos que dizem respeito ao
destino da alma no além — como, por exemplo, a veneração dos antepassados — e
muitas religiões populares conservam restos de doutrinas místicas expressas em
termos de mito e folclore. Além disso, embora a religião mística renuncie ao
apego ao sucesso e à segurança mundanos, e considere a imortalidade pessoal em
um além bem-aventurado como meta severamente limitada (“o paraíso é a prisão
dos gnósticos”) ou como metáfora velada da própria União mística, a bênção de um
santo ou sábio realizado sempre foi reconhecida como auxílio à salvação da
alma, fonte de proteção e até, em alguns casos, talismã de sucesso terreno,
dependendo da intenção e da capacidade do beneficiário. Não obstante, os três
objetivos de poder (via magia), salvação (via obediência) e libertação (via
realização) caracterizam, respectivamente, a essência da religião popular, da
religião de igreja e da religião mística.
O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã são
religiões de igreja que contêm elementos místicos — a Cabala, a hesicastia e o
sufismo — e incorporam também certa dose de religião popular. O Budismo é
primordialmente uma religião mística, embora em suas formas Terra Pura ou
Amidista tenda a tornar-se religião de salvação, ainda que continue vendo a obtenção
de um além bem-aventurado como apenas o primeiro passo rumo à Iluminação final.
Na China e em outros lugares, o Budismo absorveu inúmeros elementos populares,
e a seita Nichiren Shoshu, e outras semelhantes, com sua ênfase no sucesso
mundano, embora ainda orientadas para a Iluminação final, partilham do objetivo
fundamental da religião popular.
O Confucionismo, ao evitar (sem negar) o
sobrenaturalismo, é mais um sistema de sabedoria social e moral — profundo e
providencial, é verdade — do que aquilo que costumamos chamar de religião. O
Taoismo, a outra grande tradição chinesa, assume três formas, segundo Huston
Smith: taoismo filosófico, taoismo higiênico-iogue e taoismo eclesiástico
instituído. O taoismo filosófico e o higiênico-iogue são essencialmente
místicos, correspondendo aproximadamente ao jñāna-yoga e ao rāja-yoga no
Hinduísmo (embora o taoismo higiênico-iogue, com sua ênfase em saúde e
longevidade, incorpore elementos populares), ao passo que o taoismo
eclesiástico pode ser descrito como uma religião popular mágica que se
converteu em igreja organizada. O Taoismo compartilha com o xamanismo, um de
seus ancestrais longínquos, uma união mais estreita entre magia e mística do
que foi o caso nas As religiões abraâmicas, o budismo (fora das seitas
Vajrayana) e talvez até o hinduísmo preservaram, em maior ou menor grau, a
separação entre magia e mística; apesar disso, essas duas tendências permanecem
distintas.
Quanto ao hinduísmo, ele abrange os três
elementos: toda forma imaginável de religião popular mágica e/ou politeísta; um
“politeísmo eclesial” superior, baseado nos cultos dos grandes deuses e deusas;
e uma rica espiritualidade mística, amplamente derivada dos ensinamentos
transcendentes do Vedānta, incluindo os cultos de Kali, Shiva e os avatares de
Vishnu reinterpretados como formas do Absoluto unitário.
A forma dominante na Europa e nos Estados
Unidos tem sido tradicionalmente a religião de igreja; e, como o cristianismo
norte-americano foi predominantemente protestante, tanto as espiritualidades
místicas quanto as populares foram amplamente excluídas — embora algumas
vertentes do protestantismo carismático tenham preenchido parcialmente essa
lacuna, não incorporando a religião popular, mas quase transformando o
cristianismo, elas mesmas, em uma religião popular mágica. Não era bem assim no
catolicismo tradicional da América Latina, que abraçava muitos mais elementos
populares e preservava, em certa medida, a dimensão mística, ao menos no
contexto do monaquismo. A mística também sobreviveu no catolicismo
norte-americano — como testemunham figuras como Thomas Merton —, mas um
protestantismo eclesial estreito, embora muitas vezes profundamente enraizado,
e um catolicismo eclesial igualmente estreito continuaram sendo, até talvez o
fim dos anos 1960, a realidade denotada pela palavra “religião” na mente da
maioria dos americanos.
A supressão tanto da religião popular quanto
da religião mística no contexto norte-americano tornou possível um erro
fundamental que ganhou grande força cultural nos anos 1960 e 1970 e continua a
se espalhar até hoje: a saber, que a religião popular é, na verdade, mística.
Como tantas vezes ocorreu ao longo da história, na política e na religião,
ideias essencialmente incompatíveis tornaram-se associadas no imaginário
popular por terem sido ambas excluídas da visão oficial da realidade. Embora a
busca da segurança e do sucesso mundano, própria da religião popular, esteja no
pólo oposto da meta de renúncia e libertação própria da religião mística, a
dinâmica histórica predominante assegurou que muitas pessoas que professavam
interesse pelo misticismo também se interessassem pela magia; a necessidade
sentida de “abandonar” a religiosidade eclesial estreita significava que se
estava muito propenso a “adentrar” tudo o que essa religião de igreja havia
deixado de fora — fosse algo elevado, simplesmente vulgar, ou ativamente
sinistro.
O protestantismo evangélico continua, sem
surpresa, a propagar o erro de que metafísica e misticismo (num extremo) e
magia e fenômenos psíquicos (no outro) são, na verdade, a mesma coisa; enquanto
o protestantismo liberal e o catolicismo caíram no mesmo erro pela direção
oposta: muitos liberais acreditam que a dimensão mística perdida do
cristianismo — ou de seu cristianismo — pode ser ressuscitada pela inclusão de
mais elementos populares, por meio do interesse em mitologia universal,
religiões pagãs, xamanismo e até bruxaria. E o protestantismo carismático (e
também o catolicismo carismático) fez o possível para transformar o
cristianismo em uma religião mágica ou popular.
A supressão da religião mística no
cristianismo norte-americano levou até mesmo contemplativos como Thomas Merton a
buscar a dimensão mística perdida em tradições não cristãs. Isso produziu o
efeito ambíguo de despertar o cristianismo para seus próprios aspectos místicos
ao preço de contaminá-lo com elementos heterogêneos que, embora sem dúvida de
profunda verdade e eficácia espiritual em seus próprios contextos tradicionais,
tendem a lançar uma sombra distorcida sobre a filosofia metafísica cristã
tradicional e sua espiritualidade mística. E a incapacidade do protestantismo
americano de santificar, na medida do possível, a dimensão popular — algo que
tanto o catolicismo quanto a ortodoxia russa foram mais capazes de fazer,
embora não sem tolerar, de tempos em tempos, certos elementos ambíguos —,
somada à apostasia rastejante do próprio catolicismo romano, abriu o cristianismo
americano para subversões tanto pelo neopaganismo, seja sob a forma de
religiões afro-americanas como a Santería, seja sob a de renascimentos “pagãos”
comercializados em massa, como a Wicca de Starhawk, quanto por várias ideias da
Nova Era e/ou neoespiritualistas. Tampouco se pode ignorar a grande e
destrutiva influência do junguianismo — uma psicologia que possui muitos
insights válidos no seu próprio nível, mas que assumiu a forma infeliz de uma
pseudomística incorporando muitos elementos populares — especialmente dentro do
protestantismo liberal e da Igreja Católica.
Dado que a religião mística é o núcleo,
intrínseco ou reconhecido, de toda verdadeira espiritualidade, e que o elemento
mágico — o desejo de alcançar sucesso mundano e evitar o dano mundano por meios
sutis — sempre se apresentará à porta de nossa vida religiosa exigindo
reconhecimento, devemos levar ambos em conta. Se falharmos nisso, o resultado
será pseudomisticismo de um lado, e feitiçaria do outro. O perigo da feitiçaria
só é superado incorporando uma oração peticionária poderosa e espiritualmente
eficaz em nossa vida religiosa, e reconhecendo ao mesmo tempo que devemos
“buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, que “não é deste mundo”; à
medida que o poder miraculoso da teurgia se retira da vida espiritual — ao
menos dentro de um contexto cristão —, o poder subversivo da magia tomará o seu
lugar. E o perigo do pseudomisticismo só pode ser superado mediante o
verdadeiro misticismo, cujos aspectos metafísicos e operativos, no contexto do
cristianismo, estão plenamente apresentados na tradição patrística e nos
escritos dos santos místicos das Igrejas do Oriente e do Ocidente. Sem uma
compreensão abrangente e uma prática viva de sua própria tradição mística, as
igrejas cristãs permanecem abertas à invasão por uma metafísica falsa e por uma
prática contemplativa falsa — a religião do Anticristo.
Certos aspectos da religião popular estão
claramente posicionados para prestar tributo ao regime do Anticristo, não
porque a religião popular (no contexto norte-americano contemporâneo,
principalmente o neopaganismo) seja sempre má em si — ela é capaz, no seu
melhor, de proporcionar às pessoas uma forma viável de lidar umas com as outras
e com o mundo ao redor, e despertá-las, ao menos até certo ponto, para o
significado sagrado do mundo natural —, mas porque forças satânicas podem
usá-la para subverter tanto a religião eclesial quanto a religião mística. E a
religião mística pode servir fielmente ao Anticristo por si só, se começar a se
ver como rival da religião de igreja e, assim, como uma “igreja” alternativa,
em vez de profundidade mística de uma dada tradição, cuja “igreja” é sua forma
externa necessária e providencial. Se tomar esse caminho, acabará tanto por
minar essa “igreja” quanto por trair sua própria essência. E a religião de
igreja, se degenerar em um legalismo estreito de um lado, ou em um fideísmo
anti-intelectual de outro, abrirá necessariamente sua porta às duplas
subversões do pseudomisticismo e da feitiçaria.
No mundo da Nova Era, feitiçaria e
pseudomisticismo juntaram-se. Contudo, a espiritualidade da Nova Era não pode
realmente ser chamada de “religião popular”, pois está sendo comercializada em
massa, de maneira muito sofisticada, para uma “massa” que já não é realmente um
“povo”. E ela se apoia tanto, por exemplo, em pesquisas avançadas sobre o
cérebro e especulações da física pós-einsteiniana quanto em tradições antigas
como o xamanismo. A libertação espiritual é pregada, e técnicas místicas que
afirmam ser capazes de produzi-la são ensinadas. Contudo, a Nova Era não pode
ser caracterizada como religião mística, já que a libertação em questão é
abordada ou por meio de uma metafísica falsa, ou por meio de verdadeiros
princípios metafísicos retirados de contexto, ou por meios puramente psíquicos
— meios que são, por definição, insuficientes para a libertação espiritual, uma
vez que é justamente da dominação da psique — o universo, sutil ou grosseiro,
definido pelo ego humano — que o Caminho espiritual existe para nos libertar. E
a libertação espiritual é apresentada pela Nova Era não como fruto da renúncia
ao mundo, mas como plenamente compatível com a busca mágica de metas mundanas,
se não como a mais poderosa magia de todas. O princípio central da Nova Era
parece ser: “você pode servir a Deus e a Mamom.”
Além disso, as técnicas amplamente
disseminadas são fantasias sem sentido, ferramentas psicológicas úteis mas não
espirituais, técnicas mágicas perigosas ou, novamente, práticas místicas
verdadeiras que só podem ser eficazes de modo confiável dentro de uma tradição
espiritual viva, possuidora de doutrina ortodoxa e de uma compreensão prática
de como a espiritualidade contemplativa deve ser exercida, tanto no contexto
doutrinal quanto no moral. Mas, se algo caracteriza a espiritualidade Nova Era,
é a redução da compreensão doutrinal ou metafísica do universo, de sua relação
com seu Princípio divino e da natureza essencial desse Princípio a um conjunto
de regras técnicas, juntamente com a tendência de retirar métodos de prática contemplativa,
ióguica ou mágica de qualquer contexto moral, bem como de um contexto doutrinal
suficiente. Se não é exigido compromisso moral para operar um computador
pessoal, tampouco é exigido para a operação mágica do sistema nervoso humano e
da manipulação das forças sutis às quais esse sistema pode, sob certas
circunstâncias, ter acesso. Para qualquer pessoa com entendimento de verdadeira
espiritualidade, seja devocional ou contemplativa, o resultado inevitável de
tal abordagem é dolorosamente óbvio. Não é tão óbvio, infelizmente, para os
praticantes da Nova Era, que acreditam que sua experimentação perigosa e
caótica com a consciência humana é espiritualidade mística, e foram
cuidadosamente treinados para rotular como “preconceito” qualquer advertência ou
expressão de preocupação daqueles que sabem mais do que eles. Porém a falta de
ouvintes em nada absolve os mais bem informados de seu dever de falar.
Em livros como Theosophy: History of a Pseudo-Religion, The Spiritist Fallacy e The Reign of Quantity and the Signs of the
Times, o filósofo metafísico René Guénon pregou não contra a religião
popular mágica em si — a menos que o espiritismo seja considerado uma forma
atípica de religião popular moderna —, mas especificamente contra certos
movimentos mais sofisticados da era moderna — a teosofia, o ocultismo e outros
— que vão além das práticas populares “tradicionais”. Esses movimentos
representavam para ele não meras religiões “mundanas” do povo, sejam
efetivamente mágicas ou simplesmente supersticiosas, mas, em alguns casos pelo
menos, tentativas deliberadas e conscientes de subverter tanto a religião de
igreja quanto a espiritualidade mística por meio de uma mistura caótica de
elementos populares, espiritualidades místicas mal compreendidas ou distorcidas,
doutrinas heréticas e até formas de satanismo explícito. Ele considerava o
crescimento de tais movimentos como um dos primeiros sinais claros da vinda do
Anticristo e, portanto, como arautos do fim apocalíptico do presente ciclo,
após o qual um novo ciclo seria inaugurado por um novo avatāra — evento
chamado, em termos cristãos, de parousia,
a segunda vinda de Cristo.
A World Wide Web
Uma das expressões mais claras do
pós-modernismo é a “cultura da informação”, cujo “corpo místico” é a internet.
Não há dúvida de que a World Wide Web é útil. Facilita enormemente a pesquisa
de imensos volumes de dados e possibilita formas de comunicação criativa que
jamais foram possíveis antes. O preço dessa inegável amostra de “progresso” é,
contudo, mais alto do que pode ser compensado pelo melhor uso que dela se faça.
(Como um amigo meu disse uma vez, quando lhe perguntei para que servem os
computadores: “Eles servem para lidar com a explosão de informação criada pelos
próprios computadores.”) Não é sempre um pecado usar a internet, mas é sempre
um perigo espiritual, cujo alcance e profundidade não podem ser definidos
apenas em termos do tipo de informação que escolhemos acessar por meio dela.
(Segundo um estudo recente, o uso da internet produz sintomas de depressão e solidão.
Um leve, porém estatisticamente significativo aumento nesses sintomas pode
surgir com apenas uma hora por semana online.)
A internet é o símbolo sociotecnológico
perfeito do pós-modernismo. Não há “paradigma abrangente” que dê ordem e
coerência à visão de realidade que ela apresenta. A “realidade” é simplesmente
aquilo que o indivíduo configura de acordo com suas necessidades, seus
interesses, seus medos e seus desejos. Como o “inconsciente coletivo” de Jung,
a Web representa não uma realidade objetiva, material ou metafísica, mas uma
subjetividade massiva com consequências objetivas. Poder-se-ia caracterizá-la
como forma de treinamento coletivo em solipsismo ou introversão autística,
donde a proverbial inabilidade social do “nerd de computador”. Nada existe
senão o “eu” e seus tentáculos globais. Eu sou o pensador; você é meu
pensamento. O mundo é meu sistema nervoso.
A megalomania potencialmente gerada pela
fantasia — induzida pela Web — de que estou falando ao “mundo inteiro” por trás
de uma tela de anonimato eletrônico, aliada à ausência de qualquer referência à
realidade objetiva que possa reduzir essa megalomania, garante que as visões
menos objetivas e portanto mais extremas e desequilibradas da “realidade”
oferecidas na internet ganhem um poder desproporcional ao seu valor intrínseco,
especialmente dada a extrema passividade que, lado a lado com a inflação do
ego, é consequência inevitável da supressão de qualquer senso de realidade fora
do “eu”. A experiência, sem uma relação viva com a verdade objetiva que a
reabasteça, entra em um estado de entropia acelerada. Tal entropia começou no
Ocidente com a marginalização da religião e a morte da metafísica, e agora
parece caminhar, por analogia com a segunda lei da termodinâmica, rumo a uma
espécie de “morte térmica” do significado, onde até mesmo a relativa
objetividade representada por um mundo comum de experiência sensível é
marginalizada pelo domínio dos meios eletrônicos. Se o fim teórico de um
universo em expansão é a estagnação de uma temperatura uniforme, o fim
correspondente da explosão de informação parece destinado a ser uma espécie de
“temperatura uniforme do significado”, onde boatos são elevados ao estatuto de
fatos e fatos degradados ao nível de opiniões arbitrárias, onde nenhum dado é
mais significativo ou mais significativo do que qualquer outro. Mas felizmente
— ou infelizmente — tal limite teórico de falta absoluta de significado não
pode, de fato, ser alcançado. Nas palavras de René Guénon em The Reign of Quantity and the Signs of the Times:
“Depois do igualitarismo da nossa época” — a cultura da informação sendo uma
espécie de igualitarismo do significado — “voltará a haver uma hierarquia
visível e estabelecida, mas uma hierarquia invertida, na verdade uma autêntica
‘contra-hierarquia’, cujo cume será ocupado pelo ser que estará, de fato, mais
próximo que qualquer outro do fundo do ‘poço do Inferno’.”
A internet, no nível metafísico, é em certos
aspectos uma inversão satânica da imanência de Deus. Nicolau de Cusa, numa
tentativa de representar essa imanência, caracterizou Deus como “uma esfera
infinita cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em lugar
nenhum”. Esta é uma descrição adequada da internet. É a primeira utilidade
aparentemente administrada por ninguém — ou por todo mundo. (Aparentemente,
porque, embora ninguém a administre, pessoas como Bill Gates, que têm o poder
econômico e técnico para explorá-la, estão usando nossa experiência online — de
que a “intenção configura a realidade” — para ocultar o fato de que estão nos
alimentando, como se fosse a própria natureza primordial, com os termos,
métodos e sistemas pelos quais somos “livres” para configurá-la.)
O populismo espiritual — que foi uma grande influência, via Peter Russell (The Global Brain), Barbara Marx Hubbard e
outros, no desenvolvimento da internet — sustenta que cada um de nós, no plano
da manifestação, é igualmente divino. A forma como a realidade é configurada
por mim não é, portanto, mais nem menos válida do que a forma como é
configurada por você. Acreditávamos que, se a verdade de que “o centro está em
toda parte” pudesse ser efetivamente realizada em escala global, então Deus
seria encarnado em nível massivo e a Terra seria salva. Mas, quando Nicolau de
Cusa disse que “o centro está em toda parte”, ele não quis dizer que a visão de
mundo de um pedófilo ou de um esquizofrênico paranoide tivesse o mesmo valor
que a de um crítico social dedicado como Noam Chomsky ou um filósofo espiritual
como Huston Smith. Ele quis dizer que o atman,
a Testemunha Divina, é imanente em todos os seres, incluindo todos os seres
humanos. Embora o grau em que essa Testemunha é realizada ou traída difira
radicalmente de caso a caso, ela continua sendo o núcleo transcendente de cada
pessoa. A Testemunha Divina não é a subjetividade de cada um de nós, mas
precisamente aquilo que transcende essa subjetividade e, ao fazê-lo, nos
apresenta as coisas como são. Como Sujeito Absoluto, o atman não é este ou aquele ego subjetivo com sua
configuração excêntrica da experiência; ele é Aquilo que nada testemunha senão
a Verdade Objetiva Absoluta. Só a “configuração” de realidade de Deus — aquela
Essência sem forma que é a Forma de toda forma — é absolutamente verdadeira. O
ato d’Ele de configurar abrange todos os nossos, do criminoso ao santo; o santo
é santo precisamente porque sua configuração se aproxima mais da de Deus, o
criminoso é criminoso porque dela se afasta o mais radicalmente possível.
Colocar a verdade de que “o centro está em
toda parte” no plano das condições manifestas, e não no plano de uma Realidade
Absoluta transcendente que, no entanto, é imanente em todas as coisas, é
transformar a visão de Deus em todas as coisas em uma “absolutização do
relativo”, uma divinização da ilusão. É adorar avidyā-māyā, o universo das condições na medida em que vela,
em vez de revelar, o Absoluto. E um dos símbolos universais dessa maya, em muitas culturas e tradições, é a
teia de aranha. Assim, a World Wide Web, em sua tendência principal — embora
não em seus usos inegavelmente valiosos — é uma expressão de avidyā-māyā, o poder da ignorância. E, como
Marshall McLuhan nos ensinou, é a tendência principal que conta: “o meio é a
mensagem”. A forma essencial de um meio — ou de uma tecnologia, como a energia
nuclear ou a engenharia genética — tem efeito global sobre a consciência e a
sociedade maior do que aquilo que decidimos fazer com ela. A forma essencial da
World Wide Web, com seu dilúvio de informação configurada subjetivamente (muito
dela indistinguível de simples mentira), sua negação da objetividade e a
consequente supressão tanto do desprendimento quanto do alcance intelectual, é
bem expressa na declaração de Nietzsche: “Nada é verdadeiro; tudo é permitido”
— o grito de guerra do pós-modernismo em seis palavras.
Na Idade de Ouro, a percepção se conforma, na
medida do possível, à Realidade. Na Idade de Kali, a percepção se afasta da
Realidade, na medida do possível, e acaba entrando em guerra com ela — guerra
essa que a Bíblia chama de “Armagedom”. Quando a percepção tornada ilusão virtual
entra em guerra com a Verdade, a Verdade deve assumir a forma irada de Kali,
cuja essência não manifesta é Shiva: a Realidade Absoluta como destruidora da
ilusão do mundo.
Antes dessa batalha última, porém, a
objetividade reprimida, agora degradada do nível da inteligência ao nível
exclusivo do poder, retornará em forma negativa e falsa. Onde nada é verdadeiro
e tudo é permitido, aqueles que tomam o poder podem configurar a realidade como
se fossem o próprio Deus — mas configurá-la segundo o quê? Com a verdade
objetiva suprimida e o poder absolutizado, que realidade podem os poderosos
tomar como modelo segundo o qual esse poder possa ser exercido? Nenhuma
realidade além do próprio poder, o que significa: nenhuma verdade senão o caos.
Portanto, depois que os poderosos terminarem de tomar o poder, o Anticristo
tomará posse deles. O Anticristo, essa instabilidade colossal, esse centro de
subjetividade massiva erguendo-se contra a verdade objetiva apenas por meio do
poder, será a expressão universal, devastadora e final do pós-modernismo. E a
Web será sua Prostituta. O que é uma prostituta, afinal, senão uma expressão do
desejo humano de que a realidade objetiva se conforme à fantasia subjetiva? E o
que nos ensina a experiência de frequentar prostitutas — se a objetividade
algum dia nos libertar dessa experiência para que possamos aprender com ela —
senão que aqueles que desejam ter poder sobre suas fantasias estão simplesmente
entregando a suas fantasias poder sobre eles?
Isto é a Web: observe e aprenda.
Pós-modernismo e Globalismo
O pós-modernismo é a ideologia religiosa,
filosófica e cultural do globalismo. Mas como isso é possível? Como uma
unificação econômica e política do mundo pode surgir de uma visão de mundo — ou
de uma anti-visão de mundo — que exalta a diversidade e define toda unidade,
inclusive a unidade política, como opressão?
A resposta irônica é que a Unidade, que o
pós-modernismo nega, é implicada em cada declaração que ele faz, pelo simples
fato de que toda afirmação de que o conjunto da realidade é de tal ou qual modo
— inclusive a afirmação de que ela é múltipla, diversa e sem referente objetivo
— é um exemplo dessa unidade. A doutrina de que não há paradigma abrangente é,
ela mesma, um paradigma abrangente. Assim, embora a Unidade seja negada, é
perpetuamente invocada; mas invocar algo que é intelectualmente negado e
emocionalmente temido é garantir que isso se apresente em sua face mais
negativa.
A Unidade é. Se não a reconhecermos, ela não
se expressará em termos de conhecimento, mas de poder. Em outras palavras, a
negação de todas as unidades, da qual a Unidade metafísica é o princípio
radical, garante que nenhuma visão possa subsistir como rival da “unidade” do
poder nu. O pós-modernismo derrete as religiões tradicionais, as culturas e as formas
de vida, e o poder assume o controle. Assim, o pós-modernismo pavimenta o
caminho para o globalismo, primeiro destruindo qualquer visão que possa
rivalizar com ele, e, em segundo lugar, criando um nível de caos que clama por
medidas repressivas — na crença equivocada de que o caos é liberdade (ver
Capítulo Seis). A Unidade é uma verdade metafísica. Se for negada, reaparecerá
não tanto contra quanto por meio dessa negação: e esse é o sistema do
Anticristo. Nos termos de René Guénon em O
Reino da Quantidade, do Reinado da Quantidade moderno-materialista, cujo
fase terminal é o pós-modernismo, nasce, em última instância, o Reinado da
Qualidade Invertida, em que o igualitarismo democrático é destruído não em nome
da aristocracia, mas do caos, em benefício daqueles magos socioeconômicos
globalistas para os quais o caos cultural é algo natural e o caminho mais
direto para o poder. A diversidade, para eles, implica aceitar a existência de
uma classe dirigente global multiétnica, já que ninguém que não consiga trabalhar
com “ingleses, franceses, beduínos, japoneses, asiáticos e negros” pode ser
cosmopolita de forma eficaz segundo o modelo atual. Como o bom comunista, o bom
globalista aprende que raça não importa, que cultura é um empecilho que pode e
deve ser superado, e que tudo o que realmente conta é a classe. Além disso,
ninguém é mais útil na legitimação desses costumes de “classe mundial” do que
os supremacistas brancos (ou negros) e os terroristas/ separatistas étnicos que
representam sua imagem especular invertida.
A fusão cultural mundial é também uma maneira
de a elite dirigente globalizar mercados, padronizar tanto consumidores quanto
força de trabalho e hipnotizar permanentemente as massas, não apenas lançando
um manto temporário de segredo sobre suas ações, mas destruindo até o desejo
humano normal de saber o que realmente está acontecendo, por meio de uma
ideologia que prega que, de fato, nada está acontecendo fora das fantasias
subjetivas do indivíduo isolado. E os horrores do caos social, das armas de
destruição em massa e da degradação ambiental tornam tal ideologia insana muito
atraente como fuga — para aqueles, isto é, que ainda não optaram pelo suicídio
assistido que Jack Kevorkian, esse satanista pós-moderno perfeitamente
contemporâneo e altamente relevante, se dispõe de bom grado a lhes fornecer,
com a bênção cada vez mais aberta do mundo tal como é, e como está destinado a
tornar-se.
Um dos “profetas” dessa demência solipsista
baseada no medo e na negação, curiosamente, foi o pioneiro do LSD Timothy
Leary. Perto do fim de sua vida, quando morria de câncer, fez declarações como
as seguintes: já que a Terra está morrendo, nosso melhor recurso é viajar em
massa para o ciberespaço, para a realidade virtual, e deixar a Terra para trás;
esta é a “nova fronteira” tecnológica e cultural. Ele esqueceu apenas um
detalhe: a realidade virtual ainda exige tanto o sistema nervoso humano para
experienciá-la quanto uma fonte de energia para alimentar nossos computadores.
Alimentos, água, abrigo e ar continuarão sendo necessários, juntamente com
usinas de energia e um “contrato de manutenção estendido” para o caso de nossos
computadores quebrarem.
Outras mentes “menos desequilibradas”, no
entanto, aparentemente imaginaram um meio de contornar essas limitações: simplesmente
faremos o upload de nossa consciência
diretamente em computadores que serão mantidos por robôs que não precisam de
comida, água, abrigo e ar.
Pois bem… a cada um o seu. Mas voltemos ao
pós-modernismo em um nível um pouco mais humano: em toda essa “celebração da
diversidade”, quem é que, de fato, está realizando a verdadeira celebração? Não
são os “locais” desclassificados atolados em visões de mundo marginalizadas que
um dia foram culturas, religiões, civilizações. Não são os modernistas
obsoletos celebrando unificações “literárias” defuntas. Somente aqueles que são
herdeiros dessas visões podem realmente celebrar a diversidade: a elite global.
Certamente uma espécie de diversidade faz necessariamente parte da cultura de
massa pós-moderna, uma diversidade retratada como “riqueza” — mas a atenção
estreitada e a visão em túnel que a qualidade de descontinuidade supersônica e
recortada dessa cultura cria na maioria das pessoas impedem que se alcance o
nível de “visão de conjunto” em que essa “diversidade” possa sequer ser
percebida, quanto mais “celebrada”. E a multiplicação quantitativa dessa
“diversidade”, em detrimento dos elementos qualitativos sem os quais o próprio
conceito de diversidade fica sem sentido, torna a experiência pós-moderna,
apesar de sua “riqueza” caleidoscópica, estranhamente uniforme e morta. A
consciência das massas tende a ficar presa, cada vez mais irremediavelmente, no
milésimo de segundo da reação ao estímulo, desprovida tanto de um passado
sabiamente contemplado quanto de um futuro razoavelmente projetado — um modo de
“consciência” que é precisamente a versão do ego, a falsificação satânica,
daquele Presente Eterno pelo qual Deus, como Testemunha Absoluta em nós,
contempla o mundo.
Apenas aqueles que dispõem de poder
cultural, econômico e tecnológico suficiente para comandar a presença
simultânea de muitas visões de realidade podem colocar uma porcentagem
significativa de toda a diversidade pós-moderna sobre a mesma mesa de banquete
ao mesmo tempo — mas nunca toda ela, e nunca por muito tempo: porque a mudança
desencadeada pela tecnologia global da informação é caótica e rápida demais
para que alguém consiga realmente acompanhar; porque a taxa de desgaste e de
substituição daqueles que administram o mercado global também se acelera; e
porque a destruição pós-moderna da consciência humana terá de afetar, por fim,
aqueles que esperam lucrar com ela — talvez mais rapidamente, e certamente mais
profundamente, do que afeta seus fantoches mais dóceis e seus títeres mais
vulneráveis. Aqueles que envenenam o poço acabarão, inevitavelmente, obrigados
a beber dele.
Uma multiplicidade de visões só pode ser
percebida a partir do ponto de vista de uma Unidade abrangente. Mas a
capacidade de perceber qualquer visão que não seja a própria também é negada —
implicitamente, se não abertamente — pelas formas mais extremas de
pós-modernismo, conforme a doutrina de que não há percepção de uma realidade
objetiva, mas apenas construção dela. Se a realidade se baseia apenas em visões
construídas, o mesmo vale para qualquer visão que tenhamos da visão de outro —
e como podemos celebrar a diversidade de visões se negamos nossa capacidade de
perceber objetivamente qualquer visão que não seja a nossa?
O pós-modernismo toma da fenomenologia o
imperativo de ver com os olhos dos outros, de andar um quilômetro nos sapatos
deles. Mas também toma a negação de uma única verdade objetiva, o que leva à
absolutização do subjetivo, implicando necessariamente a absolutização da minha
subjetividade, o que, por sua vez, torna impossível ver com os olhos alheios. O
pós-modernismo é, então, o gesto desesperado de um solipsista (eu, é claro) na
direção de outros solipsistas conjecturais cuja existência ele precisa negar
justamente enquanto lhes sinaliza por meio da fumaça.
Mas nem isso é o fundo do pântano
pós-moderno. Sem a presença libertadora e estabilizadora de uma realidade
objetiva fora do “eu”, onde todos os pontos de vista subjetivos possam
convergir, tudo é ego — e o ego não é definido pela verdade, mas pelo poder.
Esse ego, no entanto, por não possuir realidade intrínseca, é de fato a mais
fraca de todas as pseudo-realidades imagináveis. Como tal, seu solipsismo está destinado
a ser devorado por um solipsismo maior, uma irrealidade maior, uma fraqueza
mais poderosa — pelo regime daqueles que, em nome do poder, esvaziaram-se mais
completamente de realidade, a serviço daquela maior irrealidade, daquela
fraqueza mais poderosa de todas — o Anticristo. Nas palavras de Guénon:
“O Anticristo deve evidentemente estar tão
próximo quanto possível da ‘desintegração’, de forma que se poderia dizer que
sua individualidade, ao mesmo tempo em que se desenvolve de modo monstruoso,
está quase aniquilada, realizando assim o inverso do apagamento do ‘ego’ diante
do ‘Si-mesmo’, ou, em outras palavras, realizando a confusão no ‘caos’ em
oposição à fusão na Unidade principial...” (The Reign of Quantity, p. 327).
A irrealidade deliberadamente buscada e
meticulosamente engenhada do mundo pós-moderno é também, de forma análoga, uma
falsificação satânica da doutrina budista da “vacuidadão” dos fenômenos. Para
os budistas, o mundo fenomenal em sua realidade essencial — aos olhos de quem
está plenamente desperto — é vazio de natureza própria, vazio de qualquer
limitação relativa ou contingente. A vacuidadão das coisas é uma só com sua
“talidade”, o que equivale a dizer que as coisas estão livres de todas as
definições limitadoras porque são, em essência, incomparáveis. Todas as formas
são manifestações de seu Princípio absoluto, que não é, porém, um objeto
cognitivo separado; o saṃsāra é ele
mesmo o Nirvana. Para o pós-modernista, em contrapartida, as formas são
“absolutamente” relativas. Nada existe nelas além de sua natureza própria,
relativa e indefinível como é, e é essa sua “vacuidadão”. Em sua limitação
impermanente e contingente, “como tal”, são tudo quanto existe; são opacas e
nada manifestam; não há Nirvana, nenhuma natureza búdica nelas, apenas um saṃsāra que jamais pode ser visto como é —
isto é, como um mundo de ilusão baseado no desejo e na ignorância — porque não
existe Verdade libertadora além dele à luz da qual sua natureza ilusória possa
ser apreendida. Não há saída.
Pós-modernismo e Paranóia
Michael Kelley, num artigo intitulado “The
Road to Paranoia” (The New Yorker, 19
de junho de 1995), cunhou o termo “paranoia de fusão” (fusion paranoia) para descrever a convergência das franjas
lunáticas tanto da esquerda quanto da direita, somadas aos porta-vozes de
paranoias especializadas de todos os quadrantes, num caldo geral antigoverno e
antiglobalista temperado com bastante racismo e incipiente terrorismo
doméstico. Ele também aponta como a paranoia se tornou muito mais aceitável no
“mainstream” da vida política americana. “Numa era de paranoia de fusão”,
escreve Kelley, “já não se faz qualquer distinção entre acusações críveis e
calúnias totalmente infundadas. Qualquer sugestão de mal conspiratório contra
um político de destaque, por mais extrema que seja a acusação ou por mais
escassa que seja a evidência, desliza das margens da política até o centro, em
uma espécie de esteira rolante que o transporta dos delírios de grupelhos
marginais da direita e da esquerda para a zona respeitável do discurso
público”.
Essa paranoia institucionalizada é parte
integrante do ethos pós-moderno. Se não há verdade objetiva, não há como
distinguir entre acusações plausíveis e boatos delirantes. Se não há verdade
objetiva, qualquer visão estabelecida da realidade é automaticamente suspeita;
só pode ser entendida como uma conspiração dos poderosos contra os fracos (o
que, evidentemente, às vezes é o caso). Se não há verdade objetiva, qualquer um
que consiga lançar um boato que não possa ser definitivamente desmentido —
processo que a internet parece ter sido especificamente desenhada para
facilitar — pode sentir que, como o próprio Deus Todo-Poderoso, criou uma
“realidade” a partir do nada.
O que exatamente é paranoia? É a tentativa da
mente humana de alcançar um fechamento cognitivo em uma situação que não o
permite, seja porque há informação de menos para justificá-lo, seja porque —
como no caso do esquizofrênico paranoide — há informação demais para fazer
sentido, a não ser por meio do delírio.
Nossa cultura de informação pós-moderna é
perfeitamente desenhada para criar paranoia. Ela nos obriga a processar
informação demais; e esse “demais” é, em outro sentido, também “de menos”, já
que, à medida que a quantidade de fatos (ou conjecturas, ou fantasias) aumenta,
nossa certeza a respeito da verdade de qualquer fato isolado diminui. Como
tentativa de alcançar o fechamento cognitivo, porém, a paranoia não é mais do
que uma faculdade humana normal e necessária que assumiu forma distorcida e
patológica: a capacidade de criar um ponto de vista estável, uma visão de mundo
coerente e unificada. Em um mundo que nega a existência de algo como verdade
objetiva, essa faculdade normal é forçada a trabalhar até atingir um estado de
insanidade, como as filhas de Dánao no inferno tentando tirar água com uma
peneira.
A prevalência da paranoia em nossa cultura é a
prova de que não estamos à vontade com o pós-modernismo, de que a disposição de
adiar permanentemente o fechamento cognitivo, exigida pelo pós-modernismo, vai
contra a natureza humana. É uma forte evidência de que jamais ficaremos
realmente confortáveis com a ideia de que não existe verdade objetiva. E é aí
que reside o maior perigo do pós-modernismo: em sua compreensível tentativa de
evitar ideologias totalitárias, ele acumula no inconsciente coletivo, por meio
de seu próprio “relativismo totalitário”, um desejo profundo pela Unidade
perdida que antes era proporcionada pela religião, pela metafísica e pela
intuição intelectual de Deus. Quando nosso cansaço com o caos e o relativismo
chegar ao ponto de ruptura — que será também o ponto em que nossa capacidade de
reconhecer a verdadeira Unidade objetiva e metafísica estará mais profundamente
erodida — então nosso desejo inconsciente por essa Unidade irromperá explosivamente.
E aquele que conseguir melhor satisfazer esse desejo, em escala global — por
mais irreais que sejam suas promessas, já que nosso senso coletivo de realidade
estará então em seu nível mais baixo — assumirá o papel de Anticristo.
As Religiões Globalistas
É lógico supor que, em algum lugar dos
conselhos dos grandes, ideias e propostas como as seguintes estejam sendo
seriamente discutidas:
“Todas as civilizações estáveis conhecidas da
história se basearam, de uma forma ou de outra, na religião. As religiões
tradicionais são divisivas, causam guerras e instabilidade social, porque
nenhuma delas está destinada a triunfar, em definitivo, em escala global;
estarão sempre em conflito. A Nova Ordem Mundial global, portanto, precisa de
uma religião própria.
“Nenhuma religião vem realmente de ‘Deus’;
todas são criações da mente humana. Essencialmente, são expressões de nosso
potencial humano. Os maiores engenheiros sociais da história foram os
sacerdotes, que, por meio de um árduo processo de tentativa e erro, descobriram
as leis que regem o estabelecimento da estabilidade social e a orientação de
todos os recursos humanos de uma determinada civilização rumo aos objetivos
centrais dessa civilização. Quando a civilização global da Nova Ordem Mundial
se tornar uma realidade, haverá um perigo real de que seja destruída, entre
outros fatores, por guerras entre religiões. Por isso, devemos criar uma nova
religião que supere todas as outras, tomando de cada uma o que tem de melhor,
mas deixando para trás sua tendência à divisão e sua oposição ao progresso.
Devemos à paz e à segurança do mundo o estabelecimento de tal religião.
“Essa nova religião deve combinar os
arquétipos míticos mais profundos do passado humano com uma exaltação da
tecnologia e da unidade mundial. A forma exata que assumirá ainda não é
conhecida; ainda estamos na fase de pesquisa e desenvolvimento. Daremos nosso
patrocínio a várias religiões experimentais, observaremos como funcionam e
analisaremos seus efeitos sobre as sociedades nacionais e globais, bem como
suas interações com as religiões tradicionais. O que fracassar, descartaremos;
o que funcionar, incorporaremos.
Diversas “novas religiões” já captaram, ao
menos em linhas gerais, nossos planos nesse sentido. Estão começando a bater à
nossa porta, solicitando nosso patrocínio. Algumas serão rejeitadas, outras
adotadas como programas piloto. Assim, cresce um intercâmbio frutífero entre as
tendências religiosas que surgem na base das massas e os resultados de nossas
próprias experiências de propaganda e de engenharia social. A Igreja da
Cientologia, o culto do ‘Maitreya’ de Benjamin Creme, o EST e seus sucessores,
os seminários de treinamento Avatar, os vários cultos ufológicos, a Igreja da
Unificação de Sun Myung Moon... todos têm algo a nos ensinar. Tomaremos de cada
um o que pareça útil e descartaremos o que não se mostrar eficaz no campo.”
Quem exatamente é esse “nós”, nesse cenário,
não está claro. Os planejadores da religião global são um único “comitê
gestor”, a espécie de ideia simplista que atrai imediatamente paranóicos de
todos os cantos? Representam apenas a “cultura” semiconsciente das corporações
multinacionais? Ou a verdade está em algum ponto intermediário?
No “Millennium Summit” de Ted Turner, em 2000,
ouviu-se um estrondoso apelo para sufocar o proselitismo religioso; sentimentos
semelhantes foram expressos em outros setores do ecumenismo liberal. Parece que
as elites globais querem usar a legítima preocupação com os excessos de
missionários ocidentais no Oriente para restringir o direito de todas as
religiões de fazer conversões. Se todas as religiões apontam para a mesma
Realidade, segundo a argumentação, então as diferenças religiosas são meras
disputas de território. As religiões não passam de “expressões culturais”
mediadas ou pelos acidentes de nascimento ou por “escolhas de estilo de vida”;
afirmar que uma religião é verdadeira em qualquer sentido é como afirmar que
apenas uma marca de sabão ou um modelo de automóvel é válido. Que fiquem
restritas a seus próprios territórios, como atrações turísticas pitorescas. E
que não reivindiquem propriedade sobre esse território; todo o solo pertence às
elites. Sob o globalismo, a religião deve ser “federal”, com direitos
religiosos severamente limitados, tal como os direitos dos estados foram
limitados após a Guerra Civil americana.
George Bush, ex-presidente dos Estados Unidos
e ex-diretor da CIA, discursou no fim dos anos 90 em uma convenção da Igreja da
Unificação, que então planejava criar uma comunidade de “fusão mundial”,
possivelmente no Brasil, na forma de um agrupamento de pequenas comunidades,
cada uma representando um país-membro da ONU. Por que um “estadista” da
estatura de Bush se interessaria pelos moonies, que na opinião pública não
passam de uma seita desacreditada de vendedores de flores lavados
cerebralmente?
O Parlamento Mundial das Religiões, que
continua a se reunir regularmente, representa uma tentativa inicial desse tipo
de ecumenismo quase político. Na data em que escrevo, a United Religions Initiative — que, em parte, cresceu a
partir do Parlamento — esforça-se para organizar as religiões do mundo em um
conselho permanente nos moldes da ONU; possui sólido apoio financeiro e já está
organizada em 58 países. E certamente veremos muitas tentativas semelhantes no
futuro. Essas incursões no ecumenismo global foram, até agora, em grande parte,
domínio de idealistas impraticáveis, distantes dos centros reais de poder
internacional. A emergência de uma “Nova Ordem Mundial” global, contudo, pode
ter mudado tudo. Dado que o imperialismo econômico e cultural global reacendeu
movimentos separatistas “tribais” em todo o mundo, muitos dos quais motivados
religiosamente — a Revolução Iraniana sendo apenas o maior e mais óbvio exemplo
—, o impulso para homogeneizar as religiões do mundo em nome da estabilidade
política e econômica sobe cada vez mais na pauta das elites globalistas.
A ideia de que a antiga sabedoria espiritual
e as novas “tecnologias” religiosas (no jargão da cultura corporativa)
despertam grande interesse nas elites globais só é estranha para quem jamais
investigou essa possibilidade. Recordo um dia, nos anos 80, em que me sentei,
na condição de amigo de um amigo, nos jardins de um palacete em uma colina de
Hillsboro, Califórnia, com executivos da Hewlett-Packard e seus consultores de
treinamento espiritual — Nova Era em tudo, exceto no nome. Dependendo da visão
de realidade que o leitor adote, eu estava ou diante de uma sombria conspiração
yuppie, ou privilegiado por acompanhar
uma convocação de idealistas puros. E idealistas eles eram. Desejavam
sinceramente trabalhadores saudáveis e felizes, intercâmbio criativo entre
empregados e administração, proteção do meio ambiente (dentro dos limites do
lucro), uma visão do papel social do setor corporativo pautada pelos mais elevados
princípios espirituais, tal como os entendiam — uma situação win/win para todos. Sem dúvida, estavam
inventando uma nova religião global à medida que avançavam; e o que haveria de
errado nisso? Eram a vanguarda do progresso global, da nova cultura de
informação que transformava o mundo. Que lugar melhor para valores espirituais
e ideais éticos elevados?
O único problema era que eles não
acreditavam em Deus — ao menos não em um Deus que, em relação a nós, se não em
Sua própria Essência, fosse capaz de intenção consciente e ação independente. A
espiritualidade era seu experimento, seu produto, sua propriedade. Obediência a
normas transpessoais, estabelecidas pelo Criador por meio da revelação de Sua
Vontade a avatares, santos e profetas, não fazia parte de seu vocabulário de
ideias. Lembro-me de ter brincado com o amigo que me convidara para aquele
encontro, imaginando um anúncio de revista que dizia:
INFORMAÇÃO.
O SUMO BEM.
“Claro”, respondeu ele. “O que tem de
engraçado nisso?”
Ecumenismo Liberal vs. Ecumenismo de Frente
Unida
Os cristãos conservadores tendem a se ver
como os únicos que percebem qualquer perigo no pós-modernismo e na Nova Era. E
amontoam as espiritualidades New Age junto com todas as religiões orientais e
as espiritualidades nativo-americanas como parte do que o Pe. Seraphim Rose
chamou de “a religião do futuro” — o regime do Anticristo. Infelizmente, eles
têm razões reais para enxergar as coisas dessa maneira.
Hinduísmo e budismo penetraram na cultura
norte-americana em grande parte por meio da contracultura dos anos 60 (e
antes), que também abraçou — ou apropriou de maneira deturpada — ideias
religiosas nativo-americanas. (Black Elk
Speaks e, naturalmente, O Livro
Tibetano dos Mortos eram presença comum nas estantes hippies.) Muitos
mestres budistas tibetanos neste país parecem ainda manter laços com a
contracultura; uma cultura “alternativa” de tonalidade geralmente neopagã
acolhe com entusiasmo os lamas, muitos dos quais não veem motivo para se
diferenciar dela. (Nem todos os mestres tibetanos, porém, compartilham desse
espírito; dizem-me que o irmão do Dalai Lama, o Dr. Thubten Jigme Norbu, tem
sérias reservas quanto à Nova Era.) Assim, a “espiritualidade de fusão
mundial”, que inclui um cristianismo ultra-liberal, o budismo ocidental, o
hinduísmo ocidentalizado, várias espiritualidades nativo-americanas
comercializadas (da semitradicional à totalmente espúria), o neopaganismo, a
New Age e certas vertentes do chamado sufismo, é uma realidade neste país. Sua
existência parece confirmar a visão dos cristãos conservadores de que apenas o
cristianismo pode opor-se ao “mundo”, ao pós-modernismo, aos “falsos profetas”
da Nova Era que anunciam a vinda do Anticristo.
As doutrinas da Escola Tradicionalista,
porém, demonstram que as grandes religiões reveladas do mundo — hinduísmo,
budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo — possuem entre si uma afinidade
intrínseca muito maior, infinitamente maior, do que qualquer uma delas possui
com o neopaganismo ou a Nova Era — tendências sociais mais ou menos irônicas à
parte. Um ecumenismo liberal que ignore ou comprometa a doutrina é apenas
destrutivo para a causa da religião. Um ecumenismo de frente unida, que busque
um entendimento comum, entre as religiões reveladas, das forças espirituais,
culturais e intelectuais que ameaçam todas elas — entre as quais não se incluem
apenas o pós-modernismo, o globalismo, o separatismo étnico e religioso
militante, mas também as doutrinas neopagãs e de Nova Era —, e que o faça sem
confraternização vazia nem concessão doutrinária frouxa, é uma possibilidade
bem mais frutuosa.
Tal entendimento inter-religioso incluiria
não apenas respeito pelas diferenças teológicas, mas também uma vontade mútua
de acentuar as particularidades doutrinárias: que os judeus sejam mais judeus,
os cristãos mais cristãos, os hindus mais hindus, os budistas mais budistas, os
muçulmanos mais muçulmanos, no reconhecimento de que a Única Verdade só pode
ser abordada através das formas particulares da revelação divina, não por meio
de algum denominador comum ético ou doutrinário mínimo em que todas as
religiões possam concordar — nem através de qualquer “comitê de supervisão”
quase político que possa emergir, via United Religions Initiative ou tentativa
similar, em seu nome.
A base de tal entendimento seria o princípio
que Frithjof Schuon chamou de A Unidade Transcendente das Religiões, segundo o
qual os caminhos representados pelas diversas revelações ortodoxas só podem
finalmente convergir no plano do Transcendente, em Deus mesmo.
Essa doutrina, infelizmente, é altamente
suscetível de má interpretação, o que constitui um de seus aspectos
escatológicos: ela deve ser anunciada e deve — pelo menos por alguns — ser mal
interpretada. Para dar apenas um exemplo, William E. Swing, bispo episcopal da
Califórnia, que apresenta uma versão da Unidade Transcendente das Religiões em The Coming United Religions — manual da
United Religions Initiative — baseado numa leitura imprecisa da introdução de
Huston Smith à The Transcendent Unity of
Religions de Schuon, afirma que “a distinção importante não é entre as
religiões, mas entre as pessoas dentro de cada religião” — os exotéricos e os
esotéricos. Os esotéricos “intuem que, em última análise, estão em unidade com
pessoas de outras religiões porque todos se reúnem no ápice, no Divino”, enquanto
os exotéricos “pretenderiam vincular a forma de fé ao conteúdo ou à verdade
final de sua própria fé” (p. 59). Os exotéricos são, portanto, exclusivistas,
ao passo que os esotéricos são universalistas.
Segundo Schuon, porém, o fato de que mais de
uma religião é necessária neste mundo manifestado é também uma verdade
esotérica, razão pela qual ele caracteriza as diversas revelações divinas como
“relativamente Absolutas”. Em Christianity/Islam:
Essays in Esoteric Ecumenism, ele diz:
“Toda religião, por definição, quer ser a
melhor, e ‘deve querer’ ser a melhor, como um todo e também no que diz respeito
a seus elementos constitutivos; isto é simplesmente natural, por assim dizer,
ou melhor, ‘sobrenaturalmente natural’... As oposições religiosas não podem deixar
de existir, não apenas porque as formas se excluem umas às outras... mas
porque, no caso das religiões, cada forma veicula um elemento de absolutidade
que constitui a justificativa de sua existência; ora, o absoluto não tolera
alteridade, nem, com muito mais razão, pluralidade. ... Dizer forma é dizer
exclusão de possibilidades, donde a necessidade de que as possibilidades
excluídas venham a se realizar em outras formas...” (p. 151)
O
objetivo primordial de um ecumenismo de frente unida seria opor-se tanto ao
sincretismo globalista quanto ao separatismo étnico/religioso militante, não
necessariamente por meio de modo algum de forma ostensiva — a menos que Deus
queira o contrário, e quem pode dizer que não quererá? — mas para ajudar as
religiões tradicionais a purificar suas doutrinas da influência dessas forças.
Talvez pouco se possa fazer para reverter a degeneração da religião em nível
coletivo, mas ainda é possível, e certamente vale a pena, definir com mais
clareza a verdadeira encruzilhada entre a Unidade Transcendente das Religiões e
um sincretismo globalista que de modo algum é expressão da
unidade-na-multiplicidade da autorrevelação de Deus, mas apenas a sua
caricatura — um falso imitado pela esperteza da mente humana que tenta operar
para além dos limites dessa revelação, nas trevas exteriores.
Quem são os Tradicionalistas?
NESTE capítulo apresento um breve panorama das
doutrinas da Escola Tradicionalista, com base nas obras do fundador da escola,
René Guénon, e ainda mais nas do recentemente falecido mestre da escola,
Frithjof Schuon, aplicando-as às condições sociais atuais e contrastando-as com
as ideias falsas e autodestrutivas sobre as quais o mundo pós-moderno se apoia.
As doutrinas metafísicas centrais eu extraio sobretudo de Schuon; a crítica
profética do mundo moderno, em maior medida de Guénon.
As verdadeiras ideias são coisas vivas. Cada
mente que as acolhe e cada situação a que as aplicamos faz surgir novos
aspectos de seu sentido uno e imutável. Quem são os Tradicionalistas?
Os escritores tradicionalistas tratam
principalmente da metafísica tradicional, que nada ou quase nada tem a ver com
a maior parte do que se encontra na seção de “metafísica” da livraria do seu
bairro: livros sobre magia, poderes psíquicos e encontros com OVNIs.
Metafísica é teologia e/ou filosofia mística; tem mais a ver com Platão e Santo
Agostinho do que com Aleister Crowley ou Terry Cole-Whitaker.
A maioria das pessoas que hoje investiga
religião e espiritualidade tende a ficar com a impressão de que há apenas duas
escolhas básicas: a Direita cristã fundamentalista, ou o mundo que inclui o
judaico-cristianismo liberal, as religiões orientais, o neopaganismo e a Nova
Era. Trata-se, obviamente, de uma simplificação grosseira, já que há muitos
cristãos liberais e membros de religiões orientais que não se identificam com a
Nova Era, bem como formas não cristãs de “fundamentalismo”, como as de alguns
muçulmanos (embora de modo algum todos), judeus, ou mesmo hindus. Mas, em
linhas gerais, a pessoa interessada em religião, mas ainda sem compromisso
sólido, tende a ser puxada numa dessas duas direções. E, se ela não consegue se
identificar com nenhuma delas, a perspectiva de um compromisso religioso sério
parecerá bastante sombria, e o cinismo em matéria de religião parecerá a única
resposta madura.
É aí que entram os Tradicionalistas. Como
alguns liberais, eles reconhecem a validade de todas as grandes religiões do
mundo; mas, ao passo que os Liberais costumam prestar mero tributo verbal à
mística, retirando-a de seu verdadeiro contexto, os Tradicionalistas reconhecem
na mística e na metafísica o verdadeiro centro e profundidade de toda tradição
religiosa, a profundidade em que podemos dizer, com propriedade, que cada
religião, a partir de sua perspectiva necessariamente única, fala da mesma
Realidade divina.
Por outro lado, como os cristãos
conservadores, eles entendem que uma tradição religiosa é algo sagrado, que não
pode ser alterado ao sabor da moda sem ser destruído, e que misturar
caoticamente elementos de diferentes religiões, na tentativa de criar algum
tipo de salada ecumênica, é profanar a própria religião, já que é tão
necessário que Deus Se revele em formas religiosas diferentes e únicas quanto é
necessário que existam seres humanos diferentes e únicos. Os liberais se
enganam ao pensar que o único tipo válido de ecumenismo é o sincretismo, a
mistura de religiões. E os conservadores também estão errados, não apenas
porque não conseguem ver o Divino operando em outras religiões além da sua, mas
também porque não sabem distinguir as alturas da mística e da filosofia
metafísica da busca mais frívola e perigosa por poderes mágicos e psíquicos, e,
consequentemente, tendem a extirpar vastas áreas de sua própria tradição. Os
Padres da Igreja que foram grandes metafísicos, como Clemente de Alexandria ou
Gregório de Nissa, não podem ser comparados a L. Ron Hubbard; os grandes
místicos cristãos, como Mestre Eckhart ou São João da Cruz, não devem ser
confundidos com Carlos Castaneda. Pelo que posso perceber, somente os Tradicionalistas
realmente compreendem esses princípios. Como não são nem liberais caóticos nem
conservadores exclusivistas, representam uma autêntica “terceira força” na
religião de hoje.
Quem é o Sábio?
Todos temos alguma ideia do que seja um
“santo”. Quando ouvimos a palavra, pensamos em alguém como Madre Teresa, ou em
uma figura quase mítica, como São Pedro ou São Francisco, que viveu há muito
tempo. Mas o que é um “sábio”? Se o santo é um exemplo de santidade, de uma
bondade profunda e muitas vezes heroicamente autossacrificial, que qualidade o
sábio exemplifica?
A qualidade em questão é o “conhecimento”.
Hoje somos condicionados socialmente a pensar o conhecimento como informação, e
a informação quase exclusivamente em termos de “dados duros”: informação
técnica e fatos bem estabelecidos. Como disse o poeta T. S. Eliot: “Onde está a
sabedoria que se perdeu no conhecimento? Onde está o conhecimento que se perdeu
na informação?” Definimos um amontoado de pequenos pontos factuais
digitalizados como “informação”, esquecendo que a palavra originalmente
significava “aquilo que nos forma por dentro”. Essa crença, de que apenas o
conhecimento factual ou técnico é objetivamente válido, é tão penetrante que
não me choquei tanto quanto deveria ao ouvir recentemente uma mulher, numa
estação de rádio cristã, dizer que “não é preciso ser cientista de foguetes”
para entender determinada doutrina — insinuando, para mim, a ideia de que
talvez haja doutrinas mais difíceis que apenas um cientista de foguetes poderia
compreender, de que a sabedoria metafísica é apenas uma espécie de competência
técnica.
Por outro lado, um dos escritores
tradicionalistas, Wolfgang Smith, é cientista de foguetes; foi ele quem
desenvolveu as equações que permitem às espaçonaves reentrar na atmosfera terrestre
sem se incinerarem. Assim, a objetividade do grande cientista e a do sábio
metafísico não são inteiramente alheias uma à outra. Ainda assim, permanece
verdadeiro que acreditamos falsamente que todo conhecimento objetivo deve ser
científico ou técnico por natureza; a ideia de que poderia existir um nível
superior de objetividade, que trate das coisas espirituais, é completamente
estranha a nós.
A mente contemporânea está dividida em dois
compartimentos principais: o conhecimento científico ou prático é considerado
“objetivo”, ao passo que o conhecimento “espiritual”, na medida em que
admitimos que exista algo assim, é visto como “subjetivo”, o que significa que
tendemos a tomar nossas impressões das coisas como absolutas nesse domínio; já
que o conhecimento espiritual é subjetivo por definição, que outro indivíduo,
credo dogmático ou autoridade tradicional tem o direito de questionar minhas
impressões? Que fiquem satisfeitos com as próprias impressões — esse é o
“direito” deles — e me deixem com as minhas, visto que qualquer tentativa da
parte deles de converter-me ao seu modo de pensar, usando o argumento
impossível e injusto de que suas crenças são de algum modo “objetivamente
verdadeiras”, nada mais é do que uma tentativa vampírica de me transformar neles.
É assim que a maioria de nós reage hoje quando
confrontada com doutrinas religiosas e ideias filosóficas, e esta é uma das
razões pelas quais, ao menos em meios “liberais”, a psicologia está
substituindo a teologia. Desde que Descartes operou a cisão radical entre corpo
e mente, “objetivo” passou progressivamente a significar material, e
“subjetivo”, psicológico; por conseguinte, a noção de que existe um campo
objetivo de verdade espiritual foi gradualmente desaparecendo, com o resultado
de que tudo o que é espiritual, por ser considerado essencialmente subjetivo,
foi reduzido ao psicológico, às produções da mente individual isolada
alimentando-se das próprias impressões. E o conceito junguiano de uma
subjetividade massiva — o “inconsciente coletivo” —, embora verdadeiro e útil
em seu próprio nível, de modo algum restaurou a visão de uma ordem espiritual
objetiva; apenas a substituiu por uma paródia da verdade, ao menos na mente
daqueles que confundem psicologia com metafísica, tornando muito mais difícil
que a verdadeira verdade metafísica venha a ser compreendida.
É este estado de coisas que Frithjof Schuon
passou a vida tentando remediar; e esta é uma obra que apenas um sábio pode
realizar. Cabe aos santos superar o orgulho, o vício e o egoísmo, primeiro em
si mesmos e depois, na medida do possível, na sociedade ao seu redor. Cabe ao
sábio, ao contrário, superar a ilusão e a falsidade, primeiro na própria alma
e, em seguida, na sociedade que ele ou ela enfrenta. Devemos lembrar, porém — e
Schuon nos recorda isso continuamente — que santidade e sabedoria estão
intimamente ligadas. Ninguém com alma viciosa pode atingir um conhecimento
profundo e estável de Deus e de Sua relação com o universo que é Sua
manifestação; inteligência, tal como a entendemos normalmente, combinada a um
interesse por ideias metafísicas, somada ao acesso aos escritos dos grandes
metafísicos da história, não basta para fazer um sábio.
O outro requisito é a pureza de coração, pois
é preciso ser pura, ou digamos “virginalmente”, receptivo à Verdade divina para
que essa Verdade se torne uma “realização” e não simplesmente um objeto
intelectual que possuímos como possuímos uma casa ou um automóvel. Não se exige
perfeição; tanto santos quanto sábios são tentados e às vezes caem. O que se exige
é uma ausência de resistência fundamental à perfeição que Deus reserva para nós
— uma essência aberta ao Conhecimento por meio da Bondade, já que sabe que a
Verdade Absoluta é também o Sumo Bem.
Poucos ouviram falar de Frithjof Schuon,
embora o pequeno número dos que o ouviram em profundidade inclua pessoas da
estatura do poeta T. S. Eliot, que disse de seu primeiro grande livro, The Transcendent Unity of Religions: “não
encontrei obra mais impressionante no estudo comparativo da religião oriental e
ocidental”; e do professor Huston Smith, que escreveu sobre Schuon: “Em
profundidade e amplitude, um paradigma de nosso tempo. Não conheço pensador
vivo que comece a rivalizar com ele.”
E essa tendência de falar aos poucos, e de
encontrar poucos caminhos de acesso à mente popular ou mesmo ao mundo
acadêmico, se não é exatamente como deveria ser, é, contudo, como tem de ser.
“O segredo protege a si mesmo.” E, num mundo contemporâneo inundado de ilusões
venenosas, uma voz que não compartilha nenhuma das suposições sobre as quais se
baseia toda a mentalidade moderna, e que fala sem compromissos a partir do
ponto de vista da verdade objetiva, necessariamente cairá, em sua maior parte,
em ouvidos moucos. Como na parábola evangélica, ainda que a semente seja fértil,
se cai em solo pedregoso nada brota. E, no entanto, também é verdade —
especialmente em nossos tempos, mas em certa medida em todos os tempos — que é
difícil prever onde solo fértil pode aparecer.
Os verdadeiros intelectuais metafísicos têm
grande dificuldade hoje em se encontrar. Por um lado, o mundo acadêmico perdeu
em grande medida o amor pela sabedoria enquanto tal, e os “intelectuais”
favorecidos pela sociedade são essencialmente propagandistas a soldo das
grandes empresas e dos grandes governos. Por outro lado, o mundo do ocultismo,
da psicologia, das religiões “alternativas” e da espiritualidade “Nova Era” não
se interessa mais por metafísica tradicional do que a “intelligentsia”. Embora
possa prestar tributo verbal a algumas das grandes figuras da história da
metafísica e da mística, retira-as de seu contexto tradicional e ou as esvazia
de todo sentido, ou as perverte a ponto de fazê-las representar ideias
diametralmente opostas às suas doutrinas reais.
Para o cristianismo conservador, “mística” é
quase um palavrão. O cristianismo liberal às vezes parece valorizar mística e
metafísica, mas, na realidade, vê as coisas muito mais em termos de sociologia,
história, psicologia e ciências físicas. E as várias religiões orientais no
Ocidente ou fazem causa comum — muitas vezes por simples inércia — com a Nova
Era e/ou várias atitudes antitradicionais, ou então permanecem encapsuladas na
veneração de seus próprios mestres e gurus, que podem ou não ser verdadeiros
santos ou sábios representando a essência viva de suas respectivas tradições,
mas que, em todo caso, geralmente não conseguem criticar de forma eficaz as
atitudes do mundo moderno, nem sempre preservam a plenitude de suas próprias
doutrinas tradicionais diante dele.
Diante desse estado de coisas, Frithjof
Schuon e os outros escritores de sua escola, vivos ou mortos, representam uma
alternativa metafísica à religião estreita e reacionária dos fundamentalistas e
à religião informe e caótica — se ainda podemos usar esse nome — dos liberais e
da Nova Era. No seu melhor, eles oferecem uma via que vai além tanto do
exclusivismo religioso fanático quanto do sincretismo amorfo de uma
“espiritualidade de fusão mundial”, que, em muitos aspectos, representa os
primeiros movimentos do regime global do Anticristo.
O que é Metafísica?
A língua inglesa está cheia de “palavras
caídas”, palavras que outrora carregaram todo um peso de significado, mas que
agora foram reduzidas a sombras de si mesmas. Termos outrora precisamente
exatos, compreendidos por todas as pessoas instruídas, tornaram-se clichês,
quando não tiveram seus sentidos efetivamente invertidos. Palavras outrora
cheias de alusão, ressonância e profundidade de implicação ficaram chapadas.
Uma dessas palavras é “metafísica”. A seção
“metafísica” da sua livraria local provavelmente conterá livros que nada têm a
ver com o que a palavra “metafísica” significou, de Aristóteles até a última
metade do século XX. É verdade que a palavra significa literalmente “para além
da física”, mas sempre foi usada para designar o que podemos chamar, de modo
amplo, filosofia mística: o estudo dos “primeiros princípios”. Esses princípios
são verdades permanentes, afirmações sobre realidades eternas. Dizem respeito
ao Ser, e à relação do Ser com o universo — espiritual, psíquico e material —
que permite a esse Ser manifestar-se. Tocam até mesmo aquilo que está para além
do Ser.
Em linguagem religiosa, a metafísica trata
da natureza de Deus e da relação de Deus com o cosmos e com a humanidade. A
metafísica é, portanto, parceira natural da teologia; a única diferença é que a
teologia estuda a “revelação”, aquilo que Deus nos revelou por Sua própria
iniciativa, e a metafísica estuda Deus e Sua manifestação a partir de nossa
capacidade, dada por Ele, de conhecê-Lo simplesmente porque Ele é nosso Criador
e, portanto, algo d’Ele permanece em nossa natureza. Isso não significa,
contudo, que teologia e metafísica componham dois mundos distintos, já que é
principalmente a Autorrevelação de Deus nas grandes tradições religiosas que
desperta, do sono de nossa natureza caída (ou esquecida), nossa capacidade
“sobrenaturalmente natural” de conhecê-Lo; e é precisamente por meio da
Intelectualidade — intuição metafísica — perfeitamente unida ao Amor divino que
essa Autorrevelação vem a se aperfeiçoar na alma humana. [NOTA: No cristianismo
ortodoxo oriental, a palavra “teologia” abrange muito mais do que no Ocidente,
já que incorpora uma dimensão operativa ou contemplativa. Não denota apenas
teoria, mas também realização, tornando-se aproximadamente sinônima do termo
islâmico ma‘rifah.]
Durante
a maior parte da história cristã, até o final da Idade Média, teologia e
filosofia metafísica ou eram a mesma coisa, ou se relacionavam estreitamente,
embora a tentação de separá-las certamente sempre estivesse presente, já que
alguns metafísicos tendiam a ver os teólogos estudiosos das Escrituras como
pessoas que trabalhavam mecanicamente com material de “segunda mão”, enquanto
alguns teólogos viam habitualmente os metafísicos como hereges em potencial,
que se metiam, com arrogância, em assuntos demais os mistérios divinos por
iniciativa própria, sem o aval da Escritura e da Tradição. Cada lado via a
“sombra” do outro, não a essência. Ambos tinham razão quanto à forma pela qual
a metafísica ou a teologia podem se desviar, mas não quanto ao que esses dois
modos de conhecer a Deus são em si mesmos.
Contudo, foi apenas no século XVIII, durante o
período chamado, por algum motivo, de “Iluminismo”, que teologia e filosofia
começaram realmente a divergir, embora as sementes dessa divergência tenham
sido plantadas já no Renascimento. Mas a filosofia ainda era, basicamente,
metafísica; os filósofos ainda faziam as perguntas últimas: qual é a natureza
do Ser? Como podemos conhecê-Lo? E de que maneira o Ser-em-si se relaciona com
o universo da natureza e da experiência humana? Coube ao período moderno, com o
pragmatismo, o positivismo lógico, a fenomenologia e a desconstrução
pós-moderna, separar enfim a “filosofia” da metafísica. As questões últimas
passaram a ser consideradas destituídas de significado; já não eram mais “da
moda”. A filosofia foi reduzida a reflexões secundárias sobre os achados das
ciências físicas e sociais. E, por fim, até mesmo a teologia começou a seguir a
filosofia por essa estrada longa e cada vez mais estreita. O próprio conceito
de Primeiros Princípios saiu de moda, com o resultado de que o tempo e a
mudança passaram a ser tidos como mais reais do que a verdade eterna; de fato,
a própria existência de verdade eterna foi negada. Ela passou a ser vista como
um tipo de superstição medieval, a ser estudada apenas como parte da “história
das ideias”.
É como se uma bela mulher, com caráter
corajoso e alma formosa, se aproximasse de mim e dissesse: “Sempre te amei”, e
eu respondesse a mim mesmo da seguinte maneira: “Sinto-me fisicamente atraído
por ela devido a uma propensão genética inata que me leva a procriar com um
membro saudável da espécie, combinada a uma sensibilidade condicionada
culturalmente ao padrão de beleza física da Europa Ocidental/América do Norte;
e sou atraído por sua personalidade em razão de uma apreciação herdada
culturalmente por certos tipos de caráter, incluindo determinados resquícios da
moral judaico-cristã pré-pós-moderna. Ela talvez esteja atraída por mim por
algumas das mesmas razões; contudo, é possível que esteja projetando em mim
qualidades que não possuo, devido a uma capacidade crítica deficiente de sua
parte; também é possível que esteja deliberadamente distorcendo seus
sentimentos a fim de obter alguma vantagem.”
Ora, é óbvio que tais pensamentos não estariam
totalmente destituídos de significado, mas é igualmente óbvio que eles perdem
por completo o ponto central. Em outras palavras, a possibilidade de que eu
esteja realmente diante do verdadeiro amor, e de que esse amor tenha de fato
algo de eterno, a despeito de personalidades belas poderem definhar e corpos
belos terem de envelhecer e morrer, é totalmente eliminada.
Assim ocorre com a filosofia contemporânea
separada da metafísica. Ela pode produzir muitos detalhes interessantes e
perspectivas úteis, mas perde de vista o ponto principal, que é o fato de que a
palavra “filosofia” significa “amor à sabedoria”. O verdadeiro filósofo precisa
ser um metafísico, e o verdadeiro metafísico conhecerá a sabedoria como algo
eminentemente amável. O símbolo central desse amor à sabedoria, no mundo
judaico-cristão, é a figura da Santa Sabedoria, a Hagia Sophia. Como ela diz no
Livro dos Provérbios (8,17): “Eu amo os que me amam, e os que madrugam para procurar-me
me encontrarão.”
Por que isso é importante?
O simples fato de termos de fazer essa
pergunta mostra o quão densas se tornaram as trevas dos tempos atuais. E, em
certo sentido, trata-se de um exercício fútil, visto que aqueles que nasceram
com uma potencial capacidade de compreender a metafísica provavelmente já sabem
a resposta, ao passo que aqueles sem esse potencial jamais poderão ser
“convencidos”. A metafísica é o mundo da certeza, não o mundo das opiniões.
Ainda assim, precisamos realmente colocar essa questão, porque, numa sociedade
que já não se baseia em princípios espirituais, a metafísica pode parecer sem
sentido ou, na melhor das hipóteses, um mero “interesse”, tal como rafting em
corredeiras ou culinária gourmet.
O desafio que a sociedade lança a todos os
interesses intelectuais é: “Se você é tão esperto, por que não é rico?”, o que
pode tentar algumas pessoas com afinidade natural pela metafísica a “retrucar”
à sociedade, talvez tentando provar que “princípios de verdade” metafísicos
podem ajudá-las a ganhar dinheiro, ou, ao menos, afirmando que o valor da
metafísica reside em outro lugar que não no fato de ela ser verdadeira. A ideia
de que ela é valiosa porque contribui para construir estabilidade psicológica,
ou melhorar a sociedade, ou tornar as pessoas mais sensíveis ao meio ambiente é
a morte da metafísica, tal como a ideia de que se pode amar alguém porque essa
pessoa satisfaz esta ou aquela necessidade física, psicológica ou social é a
morte do verdadeiro amor.
Ora, a verdadeira metafísica e o verdadeiro
amor produzem, sim, efeitos positivos sobre outros níveis da existência;
satisfazem necessidades reais, embora não possamos prever nem controlar como
tal influência se materializará. Mas, se buscamos essas coisas pelo “valor em
dinheiro” e não porque são belas e verdadeiras em si mesmas, então não passamos
de ladrões. Como se diz nos Evangelhos: “Buscai primeiro o Reino dos Céus, e
todas essas coisas vos serão acrescentadas”, e “quem quiser salvar a sua vida a
perderá, mas quem perder a vida por minha causa a encontrará.”
C. S. Lewis, em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (pp. 108–109), coloca a
questão nestes termos, pela boca de seu demônio Fitafuso (Screwtape):
“Certamente não queremos que os homens deixem
que o cristianismo transborde para a vida política, pois o estabelecimento de
qualquer coisa parecida com uma sociedade justa seria um grande desastre. Por
outro lado, queremos, e muito, fazer com que os homens tratem o cristianismo
como um meio. (…) O que se deve fazer é levar um homem, primeiro, a valorizar a
justiça social como algo que o Inimigo exige, e, depois, conduzi-lo ao estágio
em que ele passa a valorizar o cristianismo porque este pode produzir justiça
social. (…) ‘Creia nisto, não porque é verdade, mas por algum outro motivo.’
Esse é o jogo.”
E o que Lewis diz aqui sobre a fé vale em
dobro para a intuição espiritual, pois vender a fé por seu valor de mercado
produz apenas hipocrisia ou fanatismo, ao passo que vender a intuição
espiritual produz magia negra.
Assim, uma resposta à pergunta “Por que a
metafísica é importante?” é: “Para que não percamos o próprio conceito de
Verdade objetiva.” A metafísica lida com absolutos, com as implicações
necessárias da Verdade Absoluta. Se já não acreditamos na Verdade Absoluta,
então tudo se torna relativo. Se tudo se torna relativo, a Verdade é
substituída pelo poder; fica reduzida ao que quer que este ou aquele indivíduo
poderoso, ou governo, ou grupo de interesse tenha o poder de declarar como
verdadeiro.
E é exatamente assim que passamos a encarar
hoje as questões de verdade: acreditamos que elas não são senão máscaras de
questões de poder. Já tentou manter uma conversa com um partidário convicto
desta ou daquela posição? Pode ser muito difícil sentar-se com ele ou ela para
“raciocinarem juntos” sobre a verdade ou falsidade dessa posição, em parte
porque o partidário já está convencido, mas também em parte porque ele ou ela
está ocupado(a) tentando analisar seus motivos, descobrir “de que lado você
está” e o que, exatamente, “você está tentando aprontar”.
Tudo o que o partidário diz é dito “com um
efeito” em vista, e isso já há bastante tempo; por isso, torna-se muito difícil
para ele ou ela acreditar que você levanta uma questão ou faz uma pergunta
simplesmente porque deseja saber o que é verdadeiro; a busca desinteressada da
verdade foi abandonada há muito de seu repertório. Ele ou ela sacrificou a
verdade ao poder e supõe que todos os demais fizeram o mesmo.
E a crença de que a verdade é sempre,
necessariamente, sacrificada ao poder torna-se profecia autorrealizadora; uma
vez que o partidarismo é tomado como universal, nada fora dele é reconhecido ou
admitido. As religiões deixam de ser visões da Verdade divina para se tornarem
entidades sócio-históricas com esta ou aquela agenda. O estudo da história
passa a ser visto como algo que nada tem a ver com a tentativa imparcial de
descobrir o que realmente aconteceu e por quê, mas é tomado como parte do
programa deste ou daquele bloco de poder. O mesmo se dá com a ética; o bem e o
mal já não têm nada de universal, mas são apenas expressão do interesse de tal
ou qual religião, classe ou cultura. Achados sociológicos e dados econômicos
são igualmente postos a serviço de interesses especiais; por fim, até mesmo
dados científicos — como, por exemplo, aqueles que poderiam provar ou refutar a
teoria darwinista da evolução — já não ficam imunes.
E, se a suposição de que a verdade deve servir
ao poder é levada longe o bastante, ela contamina o mundo das relações humanas:
o que digo ao outro já não se baseia na verdade, mas apenas na vantagem. Ao
caminhar pelas ruas de qualquer grande cidade americana, logo se descobre, caso
ainda não o tenha feito, que o contato visual nada tem a ver com o desejo de
ver outra pessoa simplesmente para obter uma impressão de quem ela é; ele se
reduz a questões de poder: posso obter sexo, drogas ou dinheiro daquela pessoa?
Ela deseja o mesmo de mim? É alguém que posso vitimar ou alguém que pode
ferir-me? Aqueles que não se interessam por essas coisas rapidamente desenvolvem
a habilidade de não atrair atenção sobre si mesmos; aprendem a evitar o contato
visual, se puderem. (Em áreas rurais, as pessoas às vezes ainda dizem “olá” a
estranhos “sem motivo”; para quem viveu a vida toda em cidades, isso pode ser
um choque considerável.)
Esse é o resultado extremo do crescimento de
um tipo de sociedade em que a metafísica não tem lugar. Sem um senso de Verdade
absoluta e objetiva, tudo se torna subjetivizado, e é por isso que a psicologia
está agora substituindo tanto a teologia quanto a filosofia. E, quando a
Verdade espiritual se oculta, nem mesmo a psicologia consegue manter seu
próprio nível; ela é empurrada numa direção materialista, até que tudo o que
reste dela seja o behaviorismo e, por fim, a psicofarmacologia.
Além disso, quando o Absoluto é substituído
pelo subjetivo, todas as subjetividades são “absolutizadas”: minha experiência
individual é tão “absoluta” quanto a sua, e a sua quanto a minha; a isso se
chama “tolerância”. Mas, se não há uma Realidade objetiva que inclua a mim e a
você por ser maior do que nós, se não passamos de universos de experiência
separados e hermeticamente fechados, como podemos nos relacionar? Apenas (como
na visão do Inferno em C. S. Lewis) devorando-nos mutuamente.
Se tudo é subjetivo, se não há Verdade
objetiva, então ou você precisa tornar-se parte de mim, ou eu acabarei
tornando-me parte de você, restando apenas a opção de devorarmo-nos igualmente
(se ao menos isso fosse possível) e chamar a isso de “amor”.
Assim, todo o complexo daquilo que se chama
“codependência” pode, em última análise, ser atribuído à supressão do senso de
Verdade objetiva, cuja forma mais alta e mais completa é a metafísica.
Dado que, neste mundo, a verdade é muitas
vezes sacrificada ao poder, precisamos manter nosso gume crítico; caso
contrário, não conseguiremos encontrar nosso caminho através do deserto em que
o chefe é o poder, até chegarmos ao oásis em que o Rei é a Verdade. Mas, se nos
tornarmos tão desconfiados e cínicos a ponto de já não crer que exista algo
como “a verdade”, é evidente que fomos longe demais… ou não fomos longe o
bastante.
Se a polícia deseja descobrir quem cometeu
um assassinato, precisa questionar a veracidade das histórias que ouve; não
pode simplesmente aceitá-las ao pé da letra. Mas, se, de tanto ouvir mentiras e
meias-verdades ano após ano, os policiais se tornam tão cínicos a ponto de já
não crer que exista algo como verdade objetiva — que alguém realmente cometeu
aquele assassinato, o que significa que os outros suspeitos não o fizeram —, então
deixam de poder cumprir sua função, como quando uma força policial se vê
tentada a recolher “os suspeitos de sempre” para satisfazer a pressão pública.
Da mesma forma, a crítica pós-moderna — que
se opõe à metafísica como poucas visões do mundo poderiam fazê-lo — pode
envolver-se tanto em questionar os motivos de quem profere afirmações sobre o
que é verdade que acaba esquecendo, e por fim nega conscientemente, que algo
possa ser verdadeiro — exceto enquanto enunciado sem ponto de referência
objetivo, que teria um “direito” de existir igual ao de qualquer outro
enunciado, assim como uma espécie de planta ou animal teria o direito de ser
salva da extinção por ser única e insubstituível.
Mas doutrinas não são animais. Nenhum animal
ou raça humana pode ser “errado”, mas doutrinas podem. Se eu ensino que uma
dieta rica em colesterol é boa para o coração, e outra pessoa ensina o oposto,
tais afirmações não possuem igual direito de existir como meras manifestações
da crença cultural ou da autoexpressão pessoal; uma delas está certa e a outra
errada.
Os pós-modernos usam o mesmo argumento em
relação às culturas humanas: cada qual tem igual direito de existir como expressão
única do espírito humano. Mas aqui a questão torna-se ambígua, pois, embora
cada expressão de cultura humana integral — seja “primal”, como a dos
australianos ou dos hopis, seja “desenvolvida”, como a cultura islâmica
norte-africana ou a greco-ortodoxa — faça parte do patrimônio insubstituível da
raça, ainda assim uma cultura como a dos budistas tailandeses e a “cultura” de
um cartel de drogas, ou a “cultura” tecnocrática mundial que está hoje
destruindo toda a Terra, tanto cultural quanto ambientalmente (a si mesma
incluída), não possuem igual direito de existir.
Mas, num mundo em que o conhecimento
metafísico é suprimido, tudo é colocado no mesmo plano de valor; as crenças ou
manifestações culturais mais saudáveis e as mais destrutivas possuem igual
“direito” de existir, simplesmente porque “estão aí”.
A única coisa que os pós-modernos parecem
temer realmente é a tirania da uniformidade, em que uma cultura dominante toma
tudo para si e reprime todos os costumes e crenças minoritários. Isso, por certo,
é exatamente o que está acontecendo hoje no mundo, e é profundamente
destrutivo. Mas colocar uma cultura como a dos hopis, que fomenta virtudes como
a cortesia, a auto-discrição, a cordialidade e um profundo senso ritual
dedicado a manter o equilíbrio entre as necessidades do povo e os poderes do
mundo espiritual, no mesmo nível da cultura da ilha de Dobu, baseada na magia
negra, onde as “virtudes” admiradas (ao menos na década de 1930, quando a
antropóloga Ruth Benedict escreveu sobre eles) são a capacidade de trair amigos
e conterrâneos, arruinar suas colheitas e lançá-los na doença, não é imparcial;
trata-se de algo caluniosamente destrutivo para a cultura hopi, ao mesmo tempo
que deixa a cultura de Dobu ilesa.
Somente a compreensão de uma metafísica integral,
derivada do estudo dos cumes do espírito humano tal como expressos nas grandes
religiões do mundo e nas tradições sapienciais, pode fornecer-nos os padrões
objetivos pelos quais se pode julgar se determinada cultura é saudável,
cansada, degenerada ou ativamente subversiva da verdade.
Nem o “celebrar a diversidade” pós-moderno é
necessariamente benéfico para as culturas primordiais e marginalizadas que
pretende proteger, pois negar a validade de uma hierarquia absoluta de valores
é, ao fim e ao cabo, negar a hierarquia de valores de cada cultura individual,
que, na medida em que diz respeito a essa cultura, é absoluta.
Se nenhuma manifestação cultural é mais ou
menos válida do que outra, então, se a geração jovem dos hopis passar a girar
em torno, por exemplo, da “cultura” do uso de drogas e da música heavy metal,
com o resultado de que a cultura hopi morra, quem poderá queixar-se?
Além
disso, verifica-se que os partidários da nascente cultura tecnocrática global e
aqueles que falam sobre a necessidade de celebrar a diversidade são, muitas
vezes, as mesmas pessoas; desejam celebrar a diversidade cultural porque,
enquanto tecnocratas econômicos globais, não possuem uma cultura local própria.
Precisam explorar culturas locais em escala global para preencher suas
necessidades espirituais, tal como exploram mão de obra barata para satisfazer
suas necessidades econômicas. Quando afirmei, acima, que a “espiritualidade de
fusão mundial” é a religião do Anticristo, é a isso, em parte, que eu me
referia.
Assim, a relação de uma sociedade com a verdade metafísica tem tudo a ver
com a natureza essencial dessa sociedade. Mas o valor social da metafísica é
apenas um reflexo de níveis de verdade muito mais profundos, um dos quais diz
respeito ao fato de que algumas pessoas precisam absolutamente do conhecimento
metafísico para terem uma relação viva com Deus. Essas pessoas não são
“crentes”; são “conhecedores”. A fé não lhes basta, não porque desprezem a fé,
mas porque são capazes de conhecimento e não lhes será permitido “enterrar o
seu talento” sem consequências graves.
Mas numa sociedade como a nossa, que ao mesmo
tempo nega de modo fundamental a verdade metafísica objetiva e fornece um vasto
espectro de falsas doutrinas — tolas, inconscientemente sinistras ou deliberadamente
subversivas — que se disfarçam de metafísica, a pessoa com potencial para ser
um “conhecedor” é desviada em cada esquina. Ela corre o risco de se tornar um
cético religioso, já que as doutrinas religiosas às quais é exposta lhe parecem
infantis (por ignorar o seu sentido mais profundo), ou então uma apologista de
doutrinas aparentemente mais sofisticadas que, sem que ela o saiba, são
radicalmente opostas à metafísica tradicional.
As tentações, provas e armadilhas que se
apresentam aos “conhecedores” são formidáveis; eles têm um caminho muito mais
longo e difícil a percorrer do que os crentes. Estarão atravessando zonas de
conhecimento que, embora não se oponham à doutrina religiosa ortodoxa, não
podem, pela própria natureza das coisas, ser explicitadas para todo adulto
normalmente inteligente. Consequentemente, ficarão expostos a falsas ideias de
toda espécie, algumas das quais extremamente sutis e fascinantes. Navegar por
um mar como esse exige tanto uma vigilância intelectual aguda quanto uma firme
e constante docilidade à vontade de Deus.
E também terão de enfrentar, em determinado
momento, o demônio do Orgulho Intelectual, sobretudo se se sentirem
incompreendidos ou perseguidos pelos crentes. As únicas coisas que podem
salvá-los são uma humildade radical diante de Deus e uma clara compreensão de
que o simples fato de possuírem um conhecimento metafísico sofisticado não
significa que não possam também ser condenados, ao passo que o mais simples dos
crentes, se segue sinceramente uma doutrina verdadeira, será salvo mesmo que
jamais tenha ouvido falar de tal conhecimento. Como se diz nos Evangelhos: “A
quem muito foi dado, muito será exigido.” É por isso que, tradicionalmente, se
entende que o caminho do conhecimento sagrado não pode ser percorrido com
segurança, salvo em casos raros e imprevisíveis, sem uma moldura doutrinal
ortodoxa e sem a orientação de um mestre espiritual.
A metafísica é também importante porque a fé
“simples” está se tornando cada vez mais rara. No tempo em que a maioria vivia
dentro de universos religiosos fechados, havia pouca dúvida quanto ao que se
devia crer, já que quase não havia “alternativas”. A pessoa era crente,
libertina, canalha ou talvez ateia secreta; mas não vivia confusa e indecisa
sobre o que crer, pelo menos não no grau em que tantos vivem hoje. Ser
confrontado por centenas de seitas e religiões, e por terapias que se passam
por religiões; ser chamado a escolher, entre todas elas, aquela que representa
a Verdade divina sem dispor de uma tradição da Verdade divina que lhe diga como
escolher; e, depois, exausto pela luta, desistir da busca da objetividade e
optar pelo sistema (ou pelos dez sistemas) mais compatível com o seu estilo
pessoal — o que significa que, em vez de adorar a Deus, você está na verdade
adorando a si mesmo —, nada disso figurava entre as armadilhas que se punham
diante de um membro de qualquer cultura tradicional.
Numa sociedade global emergente, em que as
doutrinas e práticas de todas as religiões mundiais, e de todos os caminhos
místicos dentro dessas religiões, mais dezenas de formas de xamanismo
tradicional, estão se tornando acessíveis em toda parte a buscadores sérios — e
também a curiosos frívolos e magos iniciantes em busca de poder psíquico —, a
religião passa a ser relativizada. Se mais de uma religião é verdadeira, então
nenhuma religião pode ser absoluta — mas a justificativa essencial de qualquer
religião é precisamente esta: que ela dá acesso à Verdade absoluta.
Logo, os “crentes” religiosos não têm outra
saída senão ou denunciar violentamente as outras religiões — é aqui que nasce o
“fundamentalismo” cristão, muçulmano, judeu e hindu que vemos hoje — ou então
“relaxar”, tornando-se “ecumenistas promíscuos”, diletantes espirituais e
degustadores de vinhos, como os “liberais” religiosos de hoje, que negam que
possa haver algo como a Verdade Absoluta, excetuando aquele tipo de “verdade”
que, como vimos acima, é tida como nada mais do que uma máscara de poder.
É aqui que o conceito de Frithjof Schuon sobre
a “absolutidade relativa” de qualquer religião tradicional se torna tão
importante; ele é, de fato, a única saída dessa dicotomia. Só a metafísica pode
demonstrar, ao mesmo tempo, que existe uma Verdade Absoluta comum a todas as
verdadeiras religiões (lembrando que nem tudo o que se chama “religião” o é de
fato) e que, entretanto, essa Verdade não pode ser alcançada por meio da
combinação entre elas, já que a existência de diferentes revelações religiosas,
assim como a de diferentes raças ou indivíduos, é metafisicamente necessária.
Como está dito no Alcorão: “Se Allah quisesse, teria feito de vós um só povo.”
Qualquer indivíduo inteligente e
espiritualmente sensível, com ou sem formação religiosa, deve passar pelo fogo
do ceticismo religioso no mundo de hoje. A crença simples, a menos que alguém
tenha a felicidade de conservar uma real simplicidade de alma, de estar entre
aqueles que chamamos de “sal da terra”, já não é possível para muitos. A
capacidade sofisticada de enxergar profundidade e valor em tradições religiosas
diferentes da própria quase inevitavelmente corrói a fé, ao menos num primeiro
momento. Para uma pessoa assim, não há caminho “de volta” à fé religiosa
simples; o único caminho é “para a frente”: chegar a compreender que existe uma
Verdade Absoluta por detrás de todas as religiões, mas que, porém, só se pode
alcançá-la seguindo uma dessas religiões até o fim, até essa Verdade.
O único remédio para a doença da sofisticação
é uma sofisticação maior, que finalmente retorna à simplicidade. Onde o
relativismo religioso destruiu a fé, nada senão a compreensão metafísica pode
restaurá-la.
Mas é injusto e irrealista exigir compreensão
metafísica de todos. Um mundo em que todos fossem metafísicos ou místicos seria
um lugar extremamente desequilibrado. Eis por que os metafísicos, no mundo de
hoje, têm de lutar para encontrar o seu nicho na sociedade, a partir do qual
possam oferecer sua contribuição ao conjunto. E numa sociedade tão
antitradicional e antimetafísica quanto a Nova Ordem global emergente, isso não
é tarefa fácil, sobretudo porque essa luta precisa incluir a compreensão de que
tanto o fundamentalismo quanto o ecumenismo promíscuo fazem parte da qualidade
da época. Os metafísicos podem criticá-los, mas não podem fazê-los desaparecer.
Ainda assim, estar sob a maldição de ser capaz
de compreender pessoas que jamais o compreenderão sempre foi o destino do
metafísico — e é assim que deve ser, porque, se um dom espiritual não é também
um fardo, o dotado acabará se inflando de orgulho espiritual e cairá como
Ícaro, quando voou demasiado perto do Sol. Além disso, sem as trevas
circundantes da ignorância espiritual para contê-la, a luz da compreensão
espiritual abandonaria por completo este mundo — e, segundo a doutrina
tradicional, se isso acontecesse, o mundo seria destruído. Como diz Rumi:
“Se não houvesse desatenção, este mundo
deixaria de existir.
O desejo por Deus, a lembrança do outro mundo, a ‘embriaguez’ e o êxtase são os
arquitetos do outro mundo.
Se todos estivessem afinados com aquele mundo, todos abandonaríamos este e iríamos
para lá.
Deus, porém, quer que permaneçamos aqui, para que haja dois mundos.
Para isso, Ele estabeleceu dois chefes, desatenção e atenção, de modo que ambos
os mundos floresçam.”
(Sinais do Invisível [Fihi ma Fihi], p.
114.)
Em última análise, porém, todas essas razões
pelas quais a metafísica é importante são apenas questões secundárias. A razão
verdadeira pela qual a metafísica é importante é porque ela é verdadeira, e
tudo o que é verdadeiro é também bom. O próprio Deus, sendo a Verdade Absoluta,
é também o Sumo Bem. Num provérbio dos rishis hindus, que Schuon tantas vezes
cita: “Não há direito superior ao da Verdade.”
O que é Tradição? O que é o Homem?
Hoje, quando falamos em “tradição”, tendemos a
significar qualquer costume ou crença que tenha durado mais de uma geração — ou
até por um período mais curto, como quando um estabelecimento comercial se
anuncia como “uma tradição desde 1979”. No catolicismo, na ortodoxia oriental e
na cabala hebraica, “tradição” refere-se a doutrinas transmitidas oralmente, ou
sob formas como a liturgia e a iconografia. “Tradição” pode às vezes referir-se
também aos escritos dos Padres da Igreja, dos rabinos judeus e, no Islã, dos
sufis, que incluem, entre outras coisas, as ciências tradicionais da
hermenêutica das Escrituras.
Tradição, então, não se opõe à Escritura; é um
modo de transmitir, por meios diferentes, as mesmas doutrinas que a Escritura
transmite. Quando os reformadores protestantes adotaram a doutrina da sola scriptura, a tradição cristã no
Ocidente ficou radicalmente empobrecida. Contudo, já que reagiam a um
empobrecimento que já existia — dado que as linhas de transmissão tradicional
dentro do catolicismo estavam em vias de extinção —, não se pode culpar
inteiramente os protestantes por essa degeneração.
A Escola Tradicionalista usa a palavra
“Tradição” num sentido específico. Para eles, significa “a soma total da
transmissão da Verdade divina por meios humanos, desde o início dos tempos até
hoje”, por meio de Escritura, comentário, ensino oral, arte sagrada ou qualquer
outra forma. Nesse sentido, ela é parceira da Revelação.
Segundo uma imagem usada pelo
tradicionalista James Cutsinger, a Verdade revelada desce “verticalmente”; ela
entra no tempo diretamente a partir da Eternidade, como uma pedra lançada num lago
sereno. Se a pedra é a Revelação, as ondas que se espalham horizontalmente a
partir do ponto em que ela atinge a água são a Tradição. Cada uma das grandes
religiões do mundo representa um caso de Revelação e, assim, uma renovação da
Tradição. A Revelação original, porém, foi a criação do universo, razão pela
qual a natureza é muitas vezes chamada de “a primeira Escritura de Deus”.
E a síntese dessa manifestação divina
universal é a Forma Humana, motivo pelo qual, na doutrina islâmica (assim como
no historiador judeu Josefo), Adão é visto como o primeiro profeta, o
destinatário da autorrevelação primordial de Deus. Em Gênesis e no Alcorão,
diz-se que Adão, ainda no Jardim do Éden, nomeou os animais. Esotericamente,
isso significa que ele os conhecia como projeções dos arquétipos eternos
presentes na Natureza divina. Ele não inventou seus nomes, em outras palavras,
mas olhou para dentro do próprio coração, para o seu Intelecto espiritual, e
ali compreendeu os Atributos ou Nomes de Deus que se encontravam representados
nas formas do mundo natural à sua volta.
Tradição, então, não é simplesmente qualquer
coisa que nos chega de um passado remoto; uma série de erros filosóficos e
heresias religiosas também têm pedigree antigo. Ela é, especificamente, a
transmissão da Verdade absoluta por meio da forma e da consciência humanas —
transmissão tão crucial que, segundo muitas autoridades, se cessasse de modo
absoluto o mundo seria destruído. É o “caule” da criação, a ligação vital entre
a flor do universo visível e o seu Fundamento divino. Corte-se o caule, e a
flor murcha.
O que é o Intelecto?
Outro “vocábulo caído” é intelecto. Para a
maioria de nós, ele significa lógica, racionalidade ou até a capacidade de
manipular e memorizar grande quantidade de informações. Não era assim para os
filósofos escolásticos da Idade Média. Para eles, intellectus (tradução latina do grego nous) significava a faculdade pela qual podemos compreender
diretamente a Verdade espiritual ou metafísica, assim como o olho humano
“compreende” a luz. Eles o distinguiam de ratio,
a mente racional ou lógica. Dada uma premissa, a ratio pode chegar a uma conclusão, mas não chega, com isso,
a uma verdade inteiramente “nova”. Não tem poder para apreender a Verdade por
si, apenas para demonstrar as implicações lógicas de uma verdade já dada — uma
verdade “dada” a ela pelo intellectus.
O Intelecto é a fonte de todos os axiomas —
verdades que não podem ser demonstradas, apenas conhecidas intuitivamente.
Segundo praticamente todas as tradições
antigas, inclusive o cristianismo tradicional e a filosofia platônica, o ser
humano é composto de três níveis de ser: Espírito, alma e corpo — em grego, Pneuma (ou Nous), psyché e soma; em latim, Spiritus (ou Intellectus),
anima e corpus.
Na era moderna, contudo, a distinção entre
Espírito e alma se perdeu, com consequências desastrosas. Tendemos agora a
crer, a não ser que sejamos materialistas completos, que tudo o que não é
material deve ser espiritual — o que muitas vezes significa, para nós, que tudo
o que encontramos por meio de sonhos, introspecção psicológica ou experiências
psíquicas deve ser “verdadeiro” e, por implicação, “bom” — ou pelo menos não
deve ser criticado, mesmo que o detestemos ou temamos… quanto mais, é claro, se
for agradável ou fascinante.
E é precisamente esse erro metafísico — a
ideia de que não há distinção entre psyché
e Espírito — que, neste momento, está abrindo massas inteiras de pessoas a
influências demoníacas e que tornará possível ao Anticristo fabricar um
contrafação psíquica plausível da Realidade espiritual eterna.
Se soubéssemos que psyché e Espírito são duas coisas diferentes (ou melhor,
dois níveis diferentes de ser), não, por exemplo, recorreríamos às múltiplas
“linhas psíquicas” hoje anunciadas na televisão e em outros lugares, porque
entenderíamos que o fato de alguém conseguir dizer-lhe a cor de sua roupa
íntima ou o que você fez na terça-feira passada não significa, de forma alguma,
que essa pessoa seja sábia ou boa. E o fato é que muitos médiuns (embora
certamente não todos) apresentam personalidades desequilibradas e tenderão a usar
seus poderes psíquicos de modo desonesto, já que tais poderes lhes deram uma
certa capacidade de “viver de sua esperteza”.
Certa vez trabalhei com uma mulher
extremamente psíquica. Ela percebeu que havia sido cometido um assassinato numa
loja que planejávamos alugar — fato depois confirmado pelo corretor de imóveis.
Durante uma conversa telefônica comigo, conseguiu localizar objetos escondidos
num apartamento em que eu estava hospedado, que ela jamais visitara, quando eu
mesmo não sabia onde estavam. Mas a principal forma como ela usava seus dons
era para extorquir dinheiro das pessoas e escapar de processos.
Os psíquicos frequentemente têm problemas de
“limite”. Estão tão abertos às energias sutis alheias que a linha entre eles e
os outros tende a se confundir. Muitos esquizofrênicos têm a mesma dificuldade
e, com frequência, certo grau de sensibilidade psíquica também. Esse “limite do
ego” excessivamente permeável pode resultar em várias formas de descortesia
radical, “codependência” e dissipação da energia psíquica da pessoa no ambiente
que a cerca, fazendo dela uma espécie de “vampiro” que precisa drenar a
vitalidade dos outros simplesmente para repor aquilo que está continuamente
perdendo. Pode igualmente abrir essa pessoa à possessão demoníaca.
Numa conversa com um budista da linhagem
Gelugpa (a escola do budismo vajrayana tibetano à qual pertence o Dalai Lama),
disseram-me que há dois tipos de clarividência: o tipo legítimo, próprio do
sábio budista avançado, que se desenvolve diretamente a partir das virtudes da
compaixão e da concentração (um aprofundamento raro, mas não anormal, do
cuidado e da atenção, usado sobretudo no contexto da direção espiritual), e
aquilo que se chama de clarividência “contaminada”, que é uma das consequências
kármicas de um curso interrompido de desenvolvimento espiritual e é considerada
um grande obstáculo à Iluminação.
Portanto,
“psíquico” não é sinônimo de “espiritual”. A psyché é um nível de ser baseado na polaridade
sujeito/objeto, em que a experiência “objetiva” é condicionada pela
“subjetividade” de quem a experimenta. O Espírito ou Intelecto transcende essa
polaridade. Podemos descrevê-lo como perfeitamente Objetivo, já que é o que é,
quer eu esteja consciente disso ou não; e, com igual validade, como o Sujeito
absoluto (ou pelo menos um “raio” desse Sujeito divino que intercepta a alma
humana), pois é a Testemunha última de tudo o que acontece, seja no plano dos
arquétipos espirituais, seja dentro da minha psique, seja no mundo material. Em
qualquer caso, Ele transcende a minha subjetividade individual. Não é, como
alguns imaginam, o meu ego blasfemamente absolutizado; não é o grande “Eu”.
Antes, é Deus dizendo “Eu Sou” dentro de mim, quer eu esteja consciente disso
ou não, quer eu seja ou não fiel às implicações disso. “Já não sou eu quem
vive”, diz São Paulo, “mas Cristo vive em mim.” Ou, nas palavras de Mestre
Eckhart: “Há algo dentro da alma que é incriado e increável.”
Esse “Algo” é o Intelecto. De certo modo, é a
nossa capacidade inata de conhecer Deus diretamente. De outro modo, é o próprio
Autoconhecimento de Deus, do qual podemos ou não participar conscientemente,
mas que, em qualquer caso, é a Fonte da nossa vida. Visto do ponto de vista da
nossa subjetividade psíquica, tal conhecimento é, em última análise, impossível,
já que nenhuma consciência individual limitada pode abarcar o Absoluto: “A luz
brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam.” Visto do ponto de vista
do Intelecto, porém, tal conhecimento não é apenas possível, mas necessário,
pois o Conhecimento completo da Verdade é parte integrante da própria Verdade.
É por isso que um dos nomes de Deus, no hinduísmo, é Satchitananda — Ser ou Verdade (Sat), Consciência dessa Verdade (Chit) e a Bem-aventurança da união entre Verdade e
Consciência (Ananda). Este é também um
dos significados do primeiro versículo do Evangelho de São João: “No princípio
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”
Fé, Crença e Conhecimento
Fé e conhecimento são às vezes vistos como
opostos, especialmente no mundo cristão. Aqueles que pensam poder chegar a Deus
por meio do conhecimento e não da fé são frequentemente rotulados de
“gnósticos” — termo que realmente quer dizer algo, embora seja tão
frequentemente aplicado, como espécie de difamação genérica, a tudo aquilo de
que o falante ou escritor desconfia na área da religião, mais ou menos como as
palavras “comuna” ou “fascista” têm sido usadas na área da política. Os
próprios Tradicionalistas às vezes são tachados de gnósticos por aqueles que
não compreendem plenamente suas doutrinas.
Os gnósticos foram um grupo extremamente
heterogêneo de seitas religiosas na Antiguidade tardia, que, entretanto,
tendiam a partilhar certas doutrinas: que os universos psíquico e material são
produto de uma “queda” dentro da Divindade, e não uma manifestação dessa
Divindade no espaço, no tempo e na consciência humana; que a própria matéria é
má; que Deus é, consequentemente, “alheio” à criação; que o cosmos é criado e
governado, em vez disso, por falsos deuses maus e/ou iludidos, muitas vezes
chefiados por um Demiurgo maligno, normalmente identificado com as esferas
planetárias concêntricas da cosmologia ptolomaica (geocêntrica), consideradas
como uma espécie de prisão cósmica; que o pecado de Adão foi uma revolta
heróica e prometeica contra esse Demiurgo maligno; que a saída da prisão
cósmica se dá pelo conhecimento, em oposição à fé — especificamente, pelo
conhecimento de como o mundo decaído foi criado e como e por quem é governado;
que a fé não passa de uma crença cega no sistema falso e opressor de coisas que
é o universo; que o salvador, frequentemente mas não sempre identificado com
Cristo, desliza para dentro desse falso mundo disfarçado, a fim de enganar os
governantes cósmicos, e traz salvação à elite espiritual sob a forma de um
conhecimento secreto ou gnosis; que esse
Salvador não encarna realmente no mundo material, mas é uma espécie de aparição
(como na heresia docetista), que nunca sofreu de fato na cruz, nem morreu, nem
ressuscitou; e que (como na heresia ariana) ele não é divino, mas sim um dos Aeons eternos, uma espécie de arcanjo; que,
sendo o cosmos falso e governado por falsos deuses, a “moralidade” apropriada é
ou afastar-se inteiramente dele, através de um ascetismo extremo que em certas
seitas gnósticas levava, às vezes, ao suicídio por inanição, ou então afrontar
abertamente a falsa moralidade dos governantes do mundo mediante libertinagem e
autossatisfação rebelde. Em alguns aspectos, o gnosticismo foi uma heresia
cristã; em outros, um espectro de movimentos religiosos independentes.
Deveria ser relativamente óbvio que o
gnosticismo, como todas as heresias, contém um grão de verdade, posto em
contexto falso. A verdade, neste caso, é que a humanidade está, de algum modo,
caída — seja por ignorância, seja por transgressão, seja por uma combinação de
ambas — e que, consequentemente, o mundo que habitamos tem limitações radicais
que não existiam no estado não caído do “Éden”. Segundo a doutrina cristã, até
mesmo a morte é produto da queda do homem; não é realmente “natural”. O erro
dos gnósticos foi tornar-se tão obcecados pelas consequências da queda que se
esqueceram de que “os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a
obra de suas mãos”; em termos teológicos, negaram a imanência de Deus em Sua criação,
fazendo-o totalmente transcendente e, por isso, “estranho”. Desse modo, a
despeito de toda a sua suposta sofisticação esotérica, em certo sentido levaram
a queda do homem demasiado ao pé da letra. Obcecados com falsidade e erro,
esqueceram-se de que o erro, embora produza efeitos reais, não é real em si.
Concretizaram o erro; por conseguinte, sua “gnose” já não era a pura capacidade
de ver através do erro na contemplação da Verdade divina, mas converteu-se numa
tentativa de “lograr” os governantes do mundo por meio de um conhecimento
especial, oculto. Isso não quer dizer que não houvesse nenhum autêntico
entendimento metafísico entre os gnósticos, mas sim que os erros do movimento
colocavam esse conhecimento num contexto falso e distorcido. E, como dizem os
sufis, “basta um único cão para estragar toda uma bacia de água de rosas”.
A luta dos primeiros cristãos contra os
gnósticos sectários — assim como a luta semelhante que ocorre hoje contra
vários neognósticos — tem contribuído para obscurecer a verdade de que fé e
conhecimento não se opõem, mas estão de fato intimamente relacionados. Aqueles
cristãos que sustentam que toda metafísica é uma forma de gnosticismo — ou
aqueles muçulmanos e orientalistas que veem a metafísica sufi como uma espécie
de neoplatonismo, ou de xamanismo, ou de budismo, em vez de enxergá-la como a
quintessência do Islã, baseada numa compreensão da revelação corânica profunda
o bastante para penetrar não apenas a mente e a vontade, mas o Coração
espiritual — e que, por isso, pensam que não devemos tentar conhecer
diretamente as verdades de Deus, já que o intelecto humano é incapaz disso,
devendo-nos limitar a recebê-las por “fé cega”, estão enganados. Na verdade,
caíram numa espécie de heresia gnóstica própria ao repetir a oposição radical
gnóstica entre fé e conhecimento. Por outro lado, sua crença de que a mente
humana é incapaz de adquirir a Sabedoria divina também é verdadeira, em dois
sentidos específicos: primeiro, porque a Sabedoria é dom, não conquista;
segundo, porque só Deus pode conhecer Deus. Ignoram, no entanto, que o ser
humano — e o seu Arquétipo na Natureza divina, que os sufis chamam al-insân al-kâmil, “o Homem Perfeito”, e os
cristãos chamam “Deus Filho” (sem negar, evidentemente, as diferenças
irredutíveis entre essas duas doutrinas) — é precisamente a forma desse
Autoconhecimento divino.
A fé não pode ser limitada à crença (embora a
crença seja parte necessária dela); é, antes, o início de um conhecimento
direto e objetivo. Crede ut intellegas:
“crê para que possas compreender”. É verdade que tentar acessar o Conhecimento
divino ignorando a doutrina revelada é uma forma de orgulho espiritual, fadada
ao desastre. Mas lutar para crer a doutrina religiosa unicamente pela força de
vontade, ao mesmo tempo negando que essa crença possa algum dia florescer em
verdadeira compreensão, é desprezar os dons do Espírito.
Nas palavras de São Paulo, a fé é “a
substância das coisas que se esperam, a evidência das coisas que não se veem”.
Ou seja, a fé é uma intelecção virtual — e um sinônimo de intelecção é gnosis.
Muitos Padres da Igreja, como Clemente de
Alexandria, Máximo, o Confessor, e Dionísio Areopagita, foram metafísicos e
“gnósticos” justamente nesse sentido — o que não significa que tenham
professado a heresia do gnosticismo. Segundo Clemente, “podemos entrever algo
do que Deus é se tentarmos, por meio de cada sensação, alcançar a realidade de
cada criatura, sem desistir até que estejamos vivos para aquilo que a
transcende.” Nas palavras de Dionísio: “É, pois, falso repetir o lugar-comum de
que o mal reside na matéria enquanto tal. Para dizer a verdade, a própria
matéria participa da ordem, da beleza, da forma...” E Máximo declara:
“[Deus] se mostra às nossas mentes na medida
de nossa capacidade de compreender, por meio dos objetos visíveis que agem como
letras do alfabeto. (...) Ele, o não-diferenciado, é visto em coisas
diferenciadas, o simples, no composto. Aquele que não tem princípio é visto nas
coisas que necessariamente têm princípio; o invisível, no visível; o intangível,
no tangível. Assim Ele nos reúne em Si, por meio de todas as coisas.”
Ninguém que ensine tais doutrinas — que creia,
como esses Padres da Igreja creem, que os céus proclamam a glória de Deus —
pode ser chamado, com justiça, de gnóstico herético ou sectário.
A fé é “a substância das coisas que se
esperam” no sentido de que a gnosis está
virtualmente presente na alma humana. É “a evidência das coisas que não se
veem” no sentido de que, pela fé — que é maior do que a crença, embora menos do
que o conhecimento direto, podendo ser definida como receptividade à
intelecção, prontidão para conhecer —, realidades invisíveis podem aparecer à
mente sob a forma de símbolos e aos sentidos sob a forma de objetos materiais
compreendidos simbolicamente. Nas palavras de Frithjof Schuon, “as formas
sensíveis correspondem com exatidão às intelecções” (A Unidade Transcendente das Religiões, p. 62).
O que é Esoterismo?
No uso popular, a palavra “esotérico”
significa algo como “desnecessariamente obscuro e complicado”, como quando nos
pedem para não ficar “muito esotéricos”, mas “manter a coisa simples”. Aqueles
com interesse superficial na espiritualidade mística tendem a definir
esoterismo, na prática, como “segredos especiais para pessoas especiais”,
enquanto os que desconfiam da mística, em parte como reação a essa atitude
“elitista”, o verão como uma doutrina secreta e herética, oposta à revelação e
à tradição.
Segundo a doutrina de alguns sufis (os
“místicos organizados” dentro do Islã), bem como da seita xiita (os partidários
do primo e genro do Profeta, Ali, que foi ao mesmo tempo o quarto califa sunita
e o primeiro imã xiita), há um “equilíbrio” em todas as coisas, particularmente
na religião, entre interior e exterior. Em toda forma há essência, e a essência
manifesta-se sempre como forma. Visto assim, a espiritualidade mística é a
essência interior da religião, enquanto a religião é a forma exterior da
mística. Mas ela não é “meramente” a forma exterior; interior e exterior são
igualmente necessários. Como dizem os sufis, sem a casca o miolo apodrece. No
Alcorão, por exemplo, Deus é chamado tanto de “o Interior” (al-Batin) quanto de “o Exterior” (al-Zahir), termos que também poderiam ser
traduzidos como “o esotérico” e “o exotérico”.
Na história islâmica, os clérigos exotéricos
que periodicamente perseguiram os sufis deram origem a várias formas de
“fundamentalismo” muçulmano, que ameaçavam arrancar o Coração do Islã, enquanto
aqueles sufis que foram longe demais na direção oposta, tentando tornar-se
puros batinis, muitas vezes
desenvolveram tendências heréticas que ameaçavam a tradição de outra forma:
tentaram, por assim dizer, viver como um Coração sem corpo.
Toda tradição espiritual precisa tanto de
expressões interiores quanto exteriores. Mesmo o budismo, que talvez esteja
mais próximo do que qualquer outra tradição de um esoterismo quase puro, exige
a moralidade (sila) como equilíbrio
complementar à sabedoria (prajñā) e à
concentração (dhyāna). E o mesmo vale
para a Escritura. Se a Bíblia ou o Alcorão forem reduzidos aos níveis
socio-histórico e moral de significado — ou mesmo ao psicológico —, então seu
sentido essencial é negado; são reduzidos à estatura de algo que qualquer
filósofo moral poderia ter produzido com base num bom senso esclarecido. Mas se
uma hermenêutica esotérica é usada para negar os níveis socio-histórico, moral
e psicológico de significado, então a Escritura em questão não está sendo compreendida
de modo completo ou equilibrado, com o resultado de que o próprio nível
esotérico ou metafísico também sofre, já que enfatizar o sentido interior
“espiritual” da Escritura descartando o sentido exterior “físico” implica que o
Espírito não é a Fonte da vida da alma e do corpo, mas algo externo a eles,
algo sem ligação “orgânica” com nossas vidas, um “Deus estranho” como o dos
gnósticos, espécie de fantasma ou espectro — e isso é um erro metafísico.
Os exotéricos religiosos muitas vezes
acreditam que o esoterismo não passa de uma espécie de doutrina alternativa e,
portanto, necessariamente uma heresia — equívoco reforçado diariamente por
milhares de pseudo-esoteristas, ou ocultistas, que pensam exatamente a mesma
coisa. Essas pessoas se orgulham de chamar a si mesmas de “hereges”, como se
essa palavra denotasse um tipo de rebeldia heroica baseada numa compreensão
mais profunda das coisas espirituais do que a da massa de “ortodoxos”
simplórios e superficiais; na realidade, porém, ela não é mais do que a
admissão de que sua própria compreensão é superficial e de que se encontram em
estado de erro metafísico.
A tragédia da religião exotérica é que ela
possui a “pérola de grande preço”, “a única coisa necessária”, mas, em tantos
casos, a perdeu de vista. A tragédia daqueles que inicialmente possuem certa
medida de compreensão espiritual esotérica é que frequentemente sucumbem à
tentação de identificar falsamente “ortodoxia” com “exoterismo” e, em seguida,
repetir o erro de muitos exotéricos ao identificar falsamente “esoterismo” com
“heresia”, esquecendo-se de que, se sua compreensão esotérica fosse verdadeira,
estariam necessariamente no âmago da ortodoxia e, em certos aspectos — ou em
certas ocasiões —, potencialmente ainda mais ortodoxos que os próprios exotéricos.
O pecado dos exotéricos é a estupidez
militante que esmaga toda sutileza doutrinal. O pecado dos esotéricos é o
orgulho intelectual, que leva, em alguns casos, a uma frivolidade no trato da
doutrina. A doutrina religiosa ortodoxa só pode ser plenamente salvaguardada
por um equilíbrio entre ambos, que às vezes estará à vista e às vezes
permanecerá oculto, para ser preservado.
Esoterismo, portanto, não é uma doutrina
alternativa, ainda que os escritos de certos esotéricos — como Mestre Eckhart
no cristianismo, por exemplo, ou Ibn ‘Arabi no Islã — possam fazê-lo parecer
assim aos olhos daqueles dotados de menor sutileza e profundidade de
entendimento. Esoterismo é gnosis, um
testemunho presente das verdades de Deus que emana das profundezas da Natureza
divina. Não é, em última análise, doutrina, mas realização.
Os que estão disponíveis a essa realização
constituirão necessariamente uma espécie de elite. Hoje não há ideal mais
impopular — na verdade, mais desprezado — do que o de uma elite espiritual ou
política, e com boa razão. A história está cheia de lições de como “elites”
autoproclamadas e interessadas em si mesmas podem causar danos — como, por
exemplo, os “Assassinos” ismaelitas no Islã, aquela confraria de terroristas
esotéricos. Mas, se eu tiver um tumor cerebral e precisar de uma cirurgia,
espero em Deus que o médico que a realizar seja o mais “elite” possível!
Do
mesmo modo, há certas funções espirituais profundas que apenas poucos podem
cumprir; chamamo-los de “santos”. Nem todos os santos são intelectuais, embora
a gnosis deva estar virtualmente
presente neles, já que a santidade se baseia na submissão da vontade a Deus, e
o rosto de Deus apresentado à vontade traz a forma precisa da Verdade divina.
A verdade à qual se deve submeter é o Intelecto. E nem todos os santos
intelectuais são esotéricos: Tomás de Aquino é um bom exemplo do “metafísico
não esotérico”. É somente nos santos mais raros, como Máximo, o Confessor, e
possivelmente São Bernardo, o patrono espiritual dos Templários, que santidade
e gnose estão combinadas. Há também aqueles que ficam aquém da santidade
realizada, mas ainda possuem certo grau de gnose — embora não o grau mais
elevado — e é a partir deles que muitos dos problemas associados aos
autoproclamados esotéricos têm origem, especialmente se falham em reconhecer
suas limitações, idolatrando o Intelecto em vez de adorarem a Deus por meio
dele. Há ainda aqueles que possuem certo grau de insight verdadeiramente
esotérico — embora, nesse caso, não possa realmente ser chamado espiritual, mas
sim um contrafação psíquica de alto nível do conhecimento espiritual — e que
estão em liga com Satanás, sem o saber, e às vezes sabendo; e estes são as
pessoas mais perigosas da terra, já que, dentre eles, os “contemplativos de
Satanás” (awliyāʾ al-Shayṭān) serão
escolhidos como a “guarda de elite” do Anticristo.
Quando elites espirituais tomam forma
organizada no mundo exterior, estamos diante tanto do mais alto potencial para
a transformação espiritual da sociedade quanto da mais satânica tentação ao
orgulho espiritual titânico. É por isso que, segundo a opinião de alguns, uma
verdadeira elite espiritual, como na lenda dos Cavaleiros da Távola Redonda,
nunca dura muito em termos históricos: ou é destruída pelo pecado do orgulho,
ou é dissolvida — deliberadamente por seus mestres iluminados, ou
providencialmente pelo próprio Deus — antes que possa tornar-se totalmente
corrupta. No Islã, muitos círculos sufis duraram como manifestações vivas
apenas enquanto o mestre vivia, e então ou se dispersaram, ou continuaram como
cascas vazias — embora isso certamente não seja verdade para as grandes ordens
sufis sobreviventes, onde a transmissão da verdadeira baraka espiritual (graça) continua, em alguns casos, há
muitos séculos. No Cristianismo, o exemplo mais claro de uma elite espiritual
visível foi, segundo alguns, o dos Templários, cuja brutal supressão pela
monarquia francesa, com o apoio do papado, foi ou a destruição trágica de uma
espiritualidade profundamente esotérica pelas mãos de exotéricos invejosos e
estúpidos, ou a necessária eliminação de uma irmandade internacional herética e
corrupta com excesso de riqueza, poder e independência — ou talvez um pouco de
ambos.
É verdade que o conhecimento “esotérico”
costumava ser transmitido somente aos membros da elite espiritual, primeiro
porque somente eles se interessavam, e segundo porque uma interpretação
esotérica da doutrina pode desequilibrar a mente daqueles que a ela se atraem
sem poder compreendê-la plenamente. Mas em nossos tempos todos os segredos
esotéricos que podem ser ditos foram ou estão sendo ditos, então não há mais
nada a perder nesse aspecto; é por isso que os Tradicionalistas frequentemente
citam o provérbio dos cabalistas: “é melhor que a doutrina seja mal
compreendida do que esquecida.” O fato é que nem todos podem compreender a
metafísica — o que é o sentido da frase “o segredo protege a si mesmo” — e nem
todos os que podem compreendê-la mentalmente são capazes de serem transformados
espiritualmente por ela. Mas a qualidade do tempo presente exige que toda a
verdade seja dita, custe o que custar, já que “o gato saiu do saco”, e é vital
que essa verdade alcance aqueles poucos — dispersos por toda a população
mundial — que podem lucrar com sua expressão plena.
Nem a questão sobre revelar ou ocultar
doutrinas esotéricas é realmente nova. Guénon procurou um potencial esotérico
secreto dentro do Catolicismo, possivelmente um resquício do Templarismo, mas
não o encontrou. E muitas pessoas hoje ainda tentam descobrir — ou inventar —
um Cristianismo esotérico. Mas, segundo Schuon, o Cristianismo em si é
Cristianismo esotérico. A revelação cristã é uma espécie de “eso-exoterismo”,
uma iniciação esotérica tornada disponível a todos; os ritos iniciáticos são o
batismo e a confirmação. No Islã, a sabedoria esotérica é guardada pelos sufis,
os místicos organizados. No Cristianismo — ao menos no Cristianismo pré-Reforma
— ela estava dispersa por toda a tradição, “oculta a céu aberto”. O Catolicismo
a possuía, mas, na ausência de uma tradição esotérica organizada comparável ao
sufismo, não compreendeu o valor do tesouro que lhe fora confiado, razão pela
qual hoje está no processo de “jogar fora o bebê junto com a água do banho”.
Somente dentro da Ortodoxia Oriental, em grande parte devido à presença do
hesicasmo, essa dimensão permaneceu relativamente intacta — o que não significa
que a plenitude da salvação de Cristo, e portanto o potencial do esoterismo,
não esteja presente também em algumas igrejas protestantes e no próprio
Catolicismo, como testemunham grandes esoteristas como Jakob Böhme dentro do
luteranismo.
A visão de Schuon sobre o Cristianismo é
parcialmente confirmada por um interessante detalhe histórico: entre os
mandeanos, uma antiga seita gnóstica do sul do Iraque, que afirma ter sido
fundada por João Batista e que, segundo alguns estudiosos, pode descender dos
essênios, Jesus é visto como uma espécie de renegado que revelou doutrinas
esotéricas ao público. Isso demonstra, a meu ver, que o potencial espiritual
fecundo no ministério de Jesus consistia em manifestar a profundidade interior
da doutrina — e não em ocultá-la — e que as raízes da heresia gnóstica podem
residir na tentativa de vários círculos esotéricos de desenvolverem seu próprio
exoterismo, sua própria doutrina “alternativa”, em vez de permanecerem como
“fermento” ou “grão de mostarda” dentro do Cristianismo como um todo. Por outro
lado, Jesus sabia bem que nem todos seriam capazes de compreender a
profundidade revelada da doutrina, razão pela qual nos Evangelhos Ele está
continuamente dizendo coisas como “aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”, e
por isso falava ao povo em parábolas, mas aos seus discípulos escolhidos falava
direta e abertamente. A imagem central dessa qualidade “eso-exotérica” do
Cristianismo é a Transfiguração de Cristo, onde a luz interior da tradição foi
revelada abertamente. Mas permanece o fato de que nem todos têm olhos para ver
essa luz: até mesmo Pedro, um dos doze escolhidos, não compreendeu totalmente o
que acontecia. Assim, o segredo protege a si mesmo.
Segundo a sabedoria inerente à economia
divina, pertencer a uma verdadeira elite espiritual, organizada ou não, é
necessariamente o fardo mais pesado que pode ser suportado pela alma humana,
embora a Intelectividade em si possa ser vista como uma graça compensatória, já
que, como disse Jesus, “meu jugo é suave e meu fardo é leve.” E isso é justo:
“A quem muito foi dado, muito será exigido.” Não há tolice maior do que alguém
crer que sua percepção esotérica é uma vantagem, uma “regalia”. Compreender
coisas que pessoas com maior santidade, e até com maior inteligência mental,
jamais compreenderão — coisas que, se você falhar em sua vida espiritual,
apenas o condenarão mais profundamente — é um destino duro, assim como retornar
de uma batalha heróica com um braço a menos pode ser um emblema de honra, mas
não é, no sentido usual do termo, um caso de boa fortuna. Como me apontou o
escritor tradicionalista Rama Coomaraswamy, no sistema tradicional de castas
hindu, o dharma (dever sagrado) das duas
castas mais elevadas — os brâmanes (sacerdotes e intelectuais espirituais) e os
xátrias (guerreiros e administradores) — incluía salvaguardas internas contra o
orgulho de sua posição elevada. Os brâmanes, proibidos de trabalhar para viver,
tinham de mendigar seu pão de porta em porta entre a terceira casta, os vaixás,
cidadãos trabalhadores e sólidos; esta é uma humilhação que intelectuais
incapazes de ganhar dinheiro, como eu, conhecem bem. E o orgulho heroico dos
xátrias era temperado pela possibilidade sempre presente de ferimento,
mutilação e morte na batalha.
Portanto, parte integral da prática de um
membro da elite espiritual é não identificar seu ego com sua função — lembrar
de Deus, como dizem os sufis, e esquecer de si mesmo. Em outras palavras, a
humildade requerida do esotérico é muito mais radical do que aquela suficiente
para o exotérico, chegando a uma verdadeira autoaniquilação. Como disse Groucho
Marx (sem dúvida repetindo, na forma de uma piada “Nasruddin” de uma só linha,
um autêntico fragmento de saber esotérico, provavelmente transmitido pelos
hassídicos): “Eu jamais ingressaria em um clube que me aceitasse como membro.”
Frithjof Schuon foi talvez um dos doze
maiores metafísicos da história conhecida, comparável, em muitos aspectos, ao
sábio hindu Shankaracharya, ao jñani cristão Mestre Eckhart ou ao filósofo
neoplatônico Plotino. Contudo, a comparação da Escola Tradicionalista com o
neoplatonismo tem outro sentido pertinente. A filosofia platônica e neoplatônica
só conseguiu sobreviver ao se anexar a uma das grandes religiões reveladas,
principalmente ao Cristianismo e ao Islã. A tradição neoplatônica iluminou
profundamente esses universos religiosos, revelando em linguagem filosófica
explícita muito do que teria permanecido implícito na linguagem densamente
simbólica e mitopoética da Bíblia e do Alcorão. Mas nem o Cristianismo nem o
Islã poderiam “tomar residência” dentro do neoplatonismo, que em si não podia
prover uma matriz fértil. Sem o arcabouço de uma religião revelada, ele
lentamente morreu. Nem mesmo o imperador romano Juliano, o Apóstata, conseguiu
restabelecer o Paganismo filosófico de forma viável. E embora parte da razão
para o desaparecimento das escolas filosóficas possa ser atribuída à perseguição
cristã, o fato permanece: o platonismo tardio não era suficientemente amplo ou
suficientemente em contato com a graça divina para sobreviver por si só. O
abismo entre suas concepções elevadas e o paganismo degenerado que o cercava —
e que teria de servir como sua base popular — era demasiado grande. Isso pode
explicar por que começou, sob Jâmblico, a descer à teurgia quase mágica, e por
que, segundo algumas especulações, pode até ter se tornado ancestral de certas
formas de magia cerimonial ocidental.
A Escola Tradicionalista enfrenta um dilema
semelhante. Os ensinamentos profundos e inspirados de Schuon e seus colegas só
podem servir para reavivar as religiões do mundo à profundidade metafísica de
suas próprias tradições ortodoxas. Até certo ponto, dentro tanto do
Cristianismo quanto do Islã, esse processo já começou. Mas na medida em que o
Tradicionalismo se apaixona tanto pela metafísica “pura” a ponto de esquecer
que todo conhecimento metafísico, para ser espiritualmente operativo, necessita
de uma matriz viva dentro de uma das grandes tradições reveladas — e, além
disso, que não se pode simplesmente relacionar-se a essas tradições como se
representassem nada mais do que um requisito mínimo, uma espécie de carteirinha
exotérica que, após validar as buscas esotéricas como ortodoxas, pode ser
guardada na carteira e largamente ignorada — ele corre o risco de tornar-se um
“exoterismo alternativo”: em outras palavras, um culto. Segundo Ibn al-‘Arabī,
um dos maiores esotéricos islâmicos, as obras espirituais obrigatórias para
todos os crentes — oração, jejum, peregrinação, esmola e testemunho de fé — são
maiores do que as obras “supererrogatórias”, inclusive as realizadas apenas
pelos sufis. Ele adverte os esotéricos sufis contra se deixarem enganar pelas
revelações ou “desvelamentos” que lhes vêm de Deus, de modo a abandonarem essas
obras obrigatórias:
Encontramos pessoas sinceras entre o Povo de
Deus que foram enganadas por este estado. Elas preferem seu próprio
desvelamento e aquilo que se manifesta em seu entendimento de modo que anula a
regra estabelecida. Confiam nisso em seu próprio caso, e permitem que outros
observem a regra estabelecida em seu significado exterior. Mas… qualquer um que
confia nisso está totalmente confuso e deixou sua afiliação ao Povo de Deus…
Pode até acontecer que o possuidor de tal desvelamento continue a praticar o
sentido exterior dessa regra, embora não creia nela para si mesmo. Ele a
pratica estipulando a situação exterior (ẓāhir),
dizendo para si: “A este mandamento da Lei eu dou apenas o exterior de mim
mesmo, pois conheci o seu segredo (sirr).
Assim, sua propriedade em minha consciência interior é diferente de sua
propriedade em meu exterior.” Portanto, ele não acredita nela em sua
consciência interior enquanto a pratica. Quem a pratica assim… “seu ato falhou,
e no mundo vindouro estará entre os perdedores” (Alcorão 5:5).
Futūḥāt al-Makkīyya II 233–34.
É preciso aproximar-se das tradições
espirituais de modo íntegro, sem reservas secretas. Só então se perceberá que o
verdadeiro esoterismo não se encontra em nenhum outro lugar senão nas
profundezas raramente sondadas das doutrinas ortodoxas necessariamente aceitas
por todos os crentes. E é precisamente isso que a Escola Tradicionalista prega.
Que continuem a praticar o que pregam.
O
Absoluto e o Infinito
Segundo Frithjof Schuon, Deus é tanto
Absoluto quanto Infinito:
Em metafísica é necessário partir da ideia
de que a Realidade Suprema é absoluta, e que, sendo absoluta, é infinita. É
absoluto aquilo que não permite aumento ou diminuição, nem repetição ou
divisão; é portanto aquilo que é ao mesmo tempo unicamente si mesmo e
totalmente si mesmo. E infinito é aquilo que não é determinado por nenhum fator
limitante e, portanto, não termina em qualquer fronteira…
O Infinito é, por assim dizer, a dimensão
intrínseca do Absoluto; dizer Absoluto é dizer Infinito, um sendo inconcebível
sem o outro.
A distinção entre o Absoluto e o Infinito
expressa os dois aspectos fundamentais do Real: o da essencialidade e o da
potencialidade; esta é a mais alta prefiguração principial dos polos masculino
e feminino. A Radiação Universal, e assim a Māyā tanto divina quanto cósmica, brota do segundo aspecto,
o Infinito, que coincide com a Toda-Possibilidade.
Survey of Metaphysics and Esoterism,
pp. 15–16.
O
Sumo Bem
Deus não é apenas Absoluto e Infinito; Ele é
também o Bem. A ideia de Absolutidade sem a de Infinitude nos leva a imaginar
Deus como um objeto remoto, inacessível, que não tem necessidade de
comunicar-se: um Ser que, em vez de criar ou emanar todas as coisas, as exclui
e nega. A ideia de Infinitude sem Absolutidade comunica uma sensação de
proliferação interminável e fatigante, sem centro intrínseco de significado ou
realidade. A ideia de uma Realidade Absoluta e Infinita que não seja também o
Sumo Bem postula um Deus onipresente e todo-poderoso, mas sem solidariedade
intrínseca com Sua criação — um Deus que, apesar de Seu Absoluto e de Seu
Infinito, poderia ainda ser fundamentalmente cruel em relação a nós. E o
conceito de um Deus que é apenas Bem, sem ser Absoluto ou Infinito, não passa
do “Deus liberal”, um ideal moral impotente que deseja nosso bem, mas não é nem
muito efetivo nem muito convincente quando confrontado com a “realidade dura”.
Segundo Schuon:
O “Sumo Bem” é a Causa Primeira na medida em
que é revelado por fenômenos que chamamos precisamente de “bons”, isto é, que o
real e o bom coincidem. De fato, são os fenômenos positivos que atestam a
Realidade Suprema, e não os negativos, privativos ou subversivos; estes últimos
manifestariam o nada “se existisse”, e isso apenas num sentido indireto e
paradoxal, na medida em que nada corresponde a um fim irrealizável que, no
entanto, tende à realização.
Portanto, se chamamos o Princípio Supremo de Bem, Agathón, ou se dizemos que é o Sumo Bem que é o Absoluto e
portanto o Infinito, isso é não porque paradoxalmente limitemos o Real, mas
porque sabemos que todo bem provém dele e o manifesta essencialmente, e assim
revela a sua Natureza. Com certeza pode-se dizer que a Divindade está “além do
bem e do mal”, mas com a condição de acrescentar que esse “além” é por sua vez
um “bem”, no sentido de que dá testemunho de uma Essência em que não pode haver
sombra de limitação ou privação, e que, consequentemente, não pode deixar de
ser o Bem absoluto ou a Plenitude absoluta. . . .
Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 16
Transcendência e Imanência
Toda tradição religiosa válida, de uma forma ou de outra, dá testemunho do fato
de que a Realidade Absoluta é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O que
significam essas palavras? Dizer que Deus é transcendente quer dizer que Ele
está além de todas as coisas e de todas as concepções. Dizer que Ele é imanente
quer dizer que todas as formas e concepções são manifestações d’Ele. E como
poderia ser diferente? Imaginemos um campo branco infinito com muitos círculos,
e círculos dentro de círculos, de tamanhos vastamente diferentes, inscritos
sobre ele. Que o campo infinito represente Deus. O campo branco é infinitamente
maior que um círculo de uma polegada de diâmetro; é também infinitamente maior
que um círculo de um quilômetro de diâmetro. Transcende ambos. No entanto, não
há nada dentro nem do círculo de uma polegada nem do círculo de um quilômetro
senão aquele campo branco infinito; ele é imanente em ambos. Schuon, porém,
expressa de modo mais exato o significado de transcendência e imanência,
evitando as armadilhas da minha ilustração simplista, quando diz:
em conexão com os aspectos ou modos do Sumo
Bem, devemos também considerar as relações de Transcendência e Imanência, a
primeira ligada mais ao aspecto da Absolutidade, a segunda ao da Infinitude.
Segundo a primeira relação, só Deus é o Bem; só Ele possui, por exemplo, a
qualidade de beleza; em comparação com a Beleza divina, a beleza de uma
criatura não é nada, assim como a própria existência não é nada em face do Ser
divino; tudo isso do ponto de vista da Transcendência.
A perspectiva da Imanência também parte do axioma de que somente Deus possui
tanto as qualidades quanto a realidade; mas a sua conclusão é positiva e
participativa, e assim se dirá que a beleza de uma criatura — sendo beleza e
não o seu contrário — é necessariamente a de Deus, já que não há outra; e o
mesmo é verdadeiro de todas as outras qualidades, sem esquecer, em sua base, o
milagre da existência. A perspectiva da Imanência não anula as qualidades
criadas, como o faz a da Transcendência, mas, pelo contrário, torna-as divinas,
se é lícito assim se exprimir.
Survey of Metaphysics and Esoterism, p.
17
Hierarquia
Não há conceito mais impopular hoje em dia do que o de hierarquia. No
vocabulário da maioria das pessoas, ele não significa nada mais nem nada menos
que “poder estabelecido, portanto arbitrário”.
O modernismo liberal rebelou-se contra as
antigas hierarquias da Igreja e do Estado, distribuindo ao “povo” (na
realidade, à burguesia) as prerrogativas que outrora pertenciam ao rei e ao
papa. A interpretação das Escrituras passou a ser unicamente questão de
inspiração individual; a casa de um homem era seu castelo. O resultado foi o
domínio do “capitalismo predatório”, no qual indivíduos poderosos, sem relação
orgânica ou “corporativa” com as massas, tomaram o poder, em grande parte por
meios econômicos. O marxismo surgiu em reação a isso. Nas nações comunistas, o
poder era teoricamente distribuído à maior e mais baixa classe, os
trabalhadores, mas na realidade ficava nas mãos de uma pequena oligarquia
partidária.
Essa rebelião contra as hierarquias sociais
ocultou a verdade de que tais hierarquias existiam originalmente para fornecer
uma imagem concreta e um lembrete da verdadeira hierarquia ontológica, a Grande
Cadeia do Ser. Um rei ou papa individual seria desprezado pelo povo se traísse
o seu arquétipo, se não estivesse à altura de sua função, mas o Trono e a Cátedra
Papal, os arquétipos em si, permaneciam sacrossantos. O sacerdócio representava
Deus no céu e no outro mundo; a monarquia representava o poder ativo de Deus
neste mundo.
É claro que essa estrutura social “hierática”
sempre foi imperfeita. E, quando em determinado lugar e época se degenerava,
erguia-se como a pior forma de idolatria. Em vez de funcionar como símbolo
transparente da Hierarquia do Ser, tornava-se um falso dessa Hierarquia, um véu
sobre o rosto das realidades espirituais.
Tanto no Antigo Testamento quanto no Alcorão,
o símbolo por excelência dessa falsificação da hierarquia espiritual é o Faraó
do Egito. Segundo o Alcorão, o Faraó acreditava literalmente ser Deus — e é
exatamente isso o que acontece quando uma estrutura régia ou eclesiástica
elaborada começa a adorar o próprio saber e magnificência em vez do Deus a quem
existe para servir. A verdadeira hierarquia, como a escada no sonho de Jacó,
sobre a qual os anjos subiam e desciam constantemente, existe para fornecer uma
“comunicação de mão dupla”, por assim dizer, entre a existência manifestada e a
sua Fonte transcendente. O próprio universo é uma hierarquia desse tipo. Mas,
quando o conceito humano de hierarquia degenera e se petrifica, a ideia da
transcendência divina torna-se nada além de uma imagem falsa da
inacessibilidade e indiferença de Deus. Nesse ponto é quando, pela misericórdia
de Deus, a imanência divina muitas vezes entra em ação na mente coletiva.
Moisés e os israelitas, como escravos dos egípcios, obviamente não podiam relacionar-se
com Deus através da “pirâmide” esmagadora do sistema religioso egípcio (o que
não quer dizer que nada tenham recebido dele; pelo menos um dos Salmos foi
originalmente um antigo hino egípcio). Foi a Moisés, um fugitivo procurado por
homicídio, escondido no deserto, que Deus falou através da sarça ardente.
Quando a religião hierárquica se torna um refúgio para “guias cegos que não
entram e não deixam os outros entrar”, então a visão da imanência divina, da
disponibilidade misericordiosa de Deus para com os pobres e oprimidos — para
com aqueles que têm verdadeira simplicidade de alma, inocentes de oprimir
outros, inocentes de complexidades mentais e organizacionais estéreis — é
desvelada. À luz disso, o Êxodo pode talvez ser visto como uma espécie de
Reforma protestante contra uma religião egípcia tornada petrificada e
espiritualmente morta.
Não obstante, a hierarquia é. Ela é intrínseca
à natureza do Ser. Moisés, pela graça e pelo poder de Deus, foi chamado a
ascender ao Monte Sinai, símbolo da Hierarquia do Ser, para receber a Torá.
Aqueles que negaram a realidade dessa Hierarquia, que quiseram relacionar-se
com Deus somente através de Sua Imanência, negando Sua Transcendência,
permaneceram embaixo para adorar o Bezerro de Ouro.
Modos e níveis hierárquicos
O relato dos níveis do Ser que separam o Criador do universo material, ao mesmo
tempo em que os unem, é semelhante em todas as tradições reveladas e nas obras
de muitos filósofos místicos. Mas nunca é idêntico, já que tudo o que pode ser
tornado explícito já entrou no mundo da relatividade. As doutrinas
verdadeiramente metafísicas são infinitamente mais estáveis, articuladas,
inteligíveis e concretas do que qualquer coisa nos mundos material ou psíquico.
Mas, embora o Absoluto as emane, elas não podem contê-lo; só podem indicá-lo.
O Ser manifesta-se em diferentes níveis, mas
aparece também em termos de diferentes qualidades ocupando um mesmo nível. Os
níveis são verticais; cada nível superior é causa dos níveis abaixo dele e
contém tudo o que está nesses níveis inferiores em forma mais elevada. Da mesma
forma, cada nível inferior é manifestação ou expressão — um símbolo — de tudo o
que está acima dele; nas palavras de René Guénon, “o efeito é um símbolo da
causa”. Os modos do Ser, por outro lado, são horizontais; diferem em qualidade
e função, mas não em grau de realidade; são manifestações polarizadas e
mutuamente definidoras de um único nível de Ser.
A distinção entre modos e níveis pode ser
ilustrada no campo do gênero. Em termos verticais, o homem, considerado como
reflexo do Logos criador, é superior à mulher, considerada como reflexo da
Substância universal receptiva. Vista a partir da perspectiva oposta, porém, a
mulher, tomada como símbolo da Essência divina ou do Além-do-Ser, é superior ao
homem, visto como símbolo do ímpeto particularizante do Logos, cujo limite
ontológico é o mundo material tal como percebido pelo ego humano. Mas, em
termos horizontais, homem e mulher estão polarizados como opostos
complementares, no mesmo nível de Ser. A mão direita não é mais real do que a
esquerda; por serem complementares, são iguais. Mas igualdade, nesse sentido,
nada tem a ver com identidade ou mesmidade. A mão direita conserva sua conexão
simbólica com os reinos superiores do Ser, com a verdade e o “direito”,
enquanto a mão esquerda ou “sinistra” mantém afinidade com os reinos
inferiores. Por outro lado — trocadilho deliberado — a mão direita também está
relacionada ao ego consciente exterior e a mão esquerda à Verdade interior,
como Jesus deu a entender quando recomendou que, ao praticar a caridade, alguém
não deixasse que “a mão direita (ego consciente) saiba o que faz a esquerda
(impulso espiritual interior)”. [NOTA: Quem meditar sobre o famoso símbolo
Yin/Yang verá nele uma representação visual deste parágrafo.]
Segundo Schuon, o Princípio Supremo possui
dimensões, modos e graus ou níveis. Suas dimensões são Absolutidade e
Infinitude — bem como, em relação à Sua Māyā,
à Sua potencialidade inerente de auto-manifestação, Perfeição. “Absolutidade do
Real, Infinitude do Possível, Perfeição do Bem.” Seus modos são Sabedoria,
Poder e Bondade, cada um dos quais, por sua vez, é Absoluto, Infinito e
Perfeito. Seus graus ou níveis são “a Essência divina, a Potencialidade divina
e a Manifestação divina; ou o Além-do-Ser, o Ser criador e o Espírito ou o
Logos extensional que constitui o Centro divino do cosmos total” (Survey of Metaphysics and Esoterism, pp.
25–26). Schuon e outros metafísicos — Plotino, por exemplo, ou Dionísio
Areopagita, ou Ibn al-‘Arabī — multiplicam essas dimensões, modos e graus da
Realidade de muitos modos diferentes, apenas para reconduzi-los novamente à
absoluta simplicidade de seu Princípio. A exposição acima visa apenas dar ao
leitor uma ideia preliminar de alguns dos princípios mais essenciais da
metafísica pura de Schuon.
Amor e Conhecimento
Os escritores da Escola Tradicionalista colocam o caminho da gnosis ou jñāna, a via de união com Deus por meio do conhecimento,
acima do caminho da devoção ou bhakti,
que se baseia no amor. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento nunca está
separado do amor. “Há uma bhakti sem jñāna”, afirma Schuon, “mas não há jñāna sem bhakti.”
“Em princípio, o conhecimento é maior do que
o amor. . . .”, diz Schuon. No entanto, ele prossegue: “. . . mas de fato, no mundo,
a relação é inversa, e o amor, a vontade, a tendência individual é, na prática,
mais importante. . . .” (Spiritual
Perspectives and Human Facts, p. 148). Assim, um amor dinâmico a Deus é
maior, em seus efeitos reais, do que um conhecimento mental ou “mundano” da
metafísica, porque conduz a um conhecimento ainda mais elevado, que é a
verdadeira realização. Em outro ponto do mesmo capítulo Schuon escreve: “Um
culto da inteligência e a paixão mental afastam o homem da verdade. A
inteligência se retira assim que o homem põe a sua confiança apenas nela. A
paixão mental perseguindo a intuição intelectual é como o vento que apaga a luz
de uma vela” (ibid., p. 132) e: “Tudo o que São Paulo diz sobre a caridade diz
respeito ao conhecimento efetivo, já que este é amor. . . .” (ibid., p. 138).
Assim, Schuon, em certo sentido, define o
amor como a energia que conduz à Meta, e em outro como um aspecto da própria
Meta. Como diz em outro lugar: “A via do amor — bhakti metódica — pressupõe que através dela possamos ir em
direção a Deus; enquanto o amor como tal — bhakti
intrínseca — acompanha a via do conhecimento, jñāna, e baseia-se essencialmente em nossa sensibilidade à
Beleza divina” (Roots of the Human
Condition, p. 118).
Segundo Schuon, “o amor perfeito é ‘luminoso’
e o conhecimento perfeito é ‘quente’. . . . Em Deus o Amor é Luz e a Luz é
Amor” (Spiritual Perspectives and Human
Facts, p. 148). “É necessário cavar fundo no solo da alma”, diz ele,
“através de camadas de aridez e amargura, a fim de encontrar o amor e viver
dele” (The Essential Writings of Frithjof
Schuon, p. 451). Não obstante, Schuon escreve mais frequentemente a partir
de uma perspectiva que coloca o conhecimento acima do amor. Ele diz:
Para o amor, o homem é sujeito e Deus é
Objeto. Para o conhecimento, é Deus quem é Sujeito e o homem, objeto. . . .
Para o homem espiritual de temperamento emocional, amar é ser e conhecer é
pensar, e o coração representa a totalidade, a própria base do ser, e o
cérebro, o fragmento, a superfície. Para o homem espiritual de temperamento
intelectual, ao contrário, o conhecimento é ser e o amor é querer ou sentir, e
o coração representa a universalidade ou o Si-mesmo (Self) e o cérebro, a individualidade ou o “eu”. O
conhecimento parte do Universal, e o amor, do individual; é o Conhecedor
absoluto que conhece, enquanto o sujeito humano, a criatura, é chamado a amar.
Spiritual Perspectives and Human Facts,
pp. 144–145
Quatro páginas adiante, porém, Schuon toma
outra direção. Depois de afirmar que, sob a perspectiva do Conhecimento, Deus é
o Conhecedor e o sujeito humano o amante, ele agora diz: “O amor do homem
afetivo consiste em que ele ama Deus. O amor do homem intelectual consiste em
que Deus o ama; isto é, ele percebe intelectualmente — mas não de modo
simplesmente teórico — que Deus é Amor” (ibid., p. 149). Aqui, portanto, mesmo
para o homem intelectual — como para Dante no Paraíso — Deus ama, e é o próprio Amor. Como Schuon diz em
outro ponto do mesmo livro, “[Deus] é Amor, não porque ama, mas ama porque é
Amor” (ibid., p. 107). O Deus pessoal em ação é o “Amante”; a Essência divina é
“Amor”; e isto é verdadeiro mesmo sob a perspectiva do conhecimento. Não
obstante, o ponto de vista de Schuon permanece essencialmente jñānico e não bhaktico. Em
The Essential Writings of Frithjof Schuon,
pp. 39–40, ele escreve:
Quando colocamos a ênfase na Realidade
objetiva — que então passa a ter precedência na relação entre sujeito e objeto
— o sujeito torna-se objeto, no sentido de que, determinado inteiramente pelo
objeto, esquece o elemento consciência; nesse caso, o sujeito, na medida em que
é um fragmento, é absorvido pelo Objeto, na medida em que este é uma
totalidade, assim como o acidente é reintegrado na Substância.
Esta é a perspectiva da bhakti, em que o amante de Deus é extaticamente
aniquilado em seu Amado. Mas a perspectiva de jñāna, em que Deus não é o Objeto absoluto, mas o Atman, a Testemunha divina, é mais elevada
ainda:
Mas o outro modo de ver as coisas, que reduz
tudo ao Sujeito, tem precedência sobre o ponto de vista que concede primazia ao
Objeto: se adoramos Deus, não é simplesmente pelo fato de Ele se apresentar a
nós como uma realidade objetiva de imensidão vertiginosa e esmagadora — caso
contrário adoraríamos as estrelas e as nebulosas — mas é sobretudo porque essa
realidade, a priori objetiva, é o maior dos sujeitos; porque Ele é o Sujeito
absoluto de nossa subjetividade contingente; porque é ao mesmo tempo
onipotente, onisciente e consciente em grau sumo e benéfico.
O
Problema do Mal
Um dos problemas perenes da teologia é o seguinte: se Deus é todo-poderoso, no
sentido de que, em última análise, é responsável por tudo o que ocorre, então
Ele deve ser também o autor do mal. Como, então, pode ser o Sumo Bem? E, se Ele
é sumamente bom, não seria necessário haver um segundo princípio, distinto e
oposto a Ele, para explicar a existência do mal? Se assim for, como pode Ele ser
onipotente?
Os dualistas maniqueus adotaram esta última
posição. O judaísmo e o islã tendem mais para a primeira, embora continuem a
afirmar dogmaticamente a bondade e a misericórdia de Deus, de modos que só
podem ser plenamente reconciliados com a onipotência divina, porém, a partir de
uma perspectiva esotérica. O cristianismo aparentemente tende à posição mais
dualista; seu dualismo, contudo, não é primariamente o que opõe Deus ao Diabo,
mas sim o que opõe a bondade divina à vontade livre humana e angélica. Deus não
quer o mal, mas o “permite”, embora o motivo por que um Deus bom e onipotente
permitiria o mal apenas para nos dar a chance de lutar contra ele permaneça um
enigma para muitos — ao menos para aqueles que não veem que o livre-arbítrio é
um dom gratuito dado a nós, por Deus, de um aspecto de Sua própria Natureza.
Se Deus é bom, Ele não pode ser onipotente, e
se é onipotente não pode ser bom — ou assim parece. Para Schuon, contudo, essa
contradição resolve-se com facilidade. Dado que Deus é Infinito, Ele deve
irradiar as possibilidades inerentes à Sua natureza, manifestando-as como a
Hierarquia do Ser; e, à medida que a criação desce essa Hierarquia, tornando-se
progressivamente menos real e menos viva, a possibilidade do mal — que não é um
princípio em si, mas “apenas” uma condição de irrealidade relativa ou de
não-entidade, assim como a fome não é uma coisa em si, mas “apenas” falta de alimento
— entra em cena. (Dizer que “Ele deve” irradiar o Seu Ser não significa,
contudo, que Ele não tenha escolha quando se trata de criar o universo, mas
apenas que essa escolha é feita na eternidade, não no tempo. Para nós, aquilo
que necessariamente somos por natureza e aquilo que livremente escolhemos fazer
são duas coisas diferentes; para Deus, são a mesma.) Nas palavras de Schuon:
O mal é a “possibilidade do impossível”, cuja
ausência faria com que o Infinito deixasse de ser o Infinito; perguntar por que
a Toda-Possibilidade inclui a possibilidade de sua própria negação —
possibilidade sempre reiniciada, mas nunca totalmente atualizada — é como
perguntar por que a Existência é Existência, ou por que o Ser…
Primordialidade
Para os Tradicionalistas, a religião é
primordial. Quando Santo Agostinho disse que o cristianismo sempre existiu, mas
só foi chamado por esse nome depois da vinda de Jesus Cristo, ele estava
afirmando essa primordialidade. Judeus e muçulmanos tocam na mesma verdade
quando ensinam que Adão foi o primeiro profeta.
Todas as religiões verdadeiras têm uma única
origem, que, em termos macrocósmicos, é o próprio universo, onde “os céus
proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos”, e, em
termos microcósmicos, a natureza “teomórfica” do homem, “terrível e
maravilhosamente feito” à imagem e semelhança de Deus.
Na Idade de Ouro deste ciclo, todas as
religiões eram uma só. Aquilo que o coração humano conhecia do Criador por
intelecção direta, o olho humano via, pela contemplação, nos objetos do mundo
natural e na forma do corpo humano. Mesmo hoje, alguns dos “povos primordiais”
conservam vestígios dessa visão primordial do cosmos como manifestação do
Grande Espírito. (Em reconhecimento de sua apreciação das espiritualidades
primordiais, Frithjof Schuon foi admitido como membro tribal tanto entre os
Crow quanto entre os Lakota [Sioux], e contou vários pajés tradicionais entre
seus amigos espirituais.)
Primordialidade, porém, não significa que uma
simples apreciação estética ou sentimental da natureza possa equivaler a uma
orientação religiosa espiritualmente eficaz. Já não estamos na Idade de Ouro; a
Árvore da Religião, cujas raízes estão na eternidade, no Absoluto unitário, já
se ramificou muitas vezes desde então. Nestes últimos tempos, salvo casos
imprevisíveis baseados em destino espiritual individual, a verdadeira religião
só é encontrada em uma das tradições reveladas. O tronco da árvore pode ser um
só, mas frutos nutritivos só crescem nos ramos.
As religiões reveladas, entretanto, não são
inovações. Apesar de todas as suas dessemelhanças necessárias e providenciais,
decorrentes de seu lugar no tempo cósmico e da natureza das coletividades
humanas às quais foram e são dirigidas, cada revelação, num sentido mais
profundo, é uma recordação da Revelação Primordial Una: a criação do cosmos por
Deus, cujo centro consciente e auto-transcendente é o homem — na medida em que,
por seu Intelecto interior, ele contempla sua Origem divina por meio desse
mesmo Intelecto.
A
Unidade Transcendente das Religiões
Assim, todas as religiões verdadeiras e
reveladas são ramos da Única Verdade. Elas se encontram não apenas nas
profundezas do tempo, mas nas profundezas da Natureza divina. Fora dessas
profundezas, porém, divergem necessariamente. É possível, portanto, contemplar
panoramas da Verdade revelada através de muitas tradições, mas não é possível
praticar mais de uma religião ao mesmo tempo como meio de salvação, tanto
quanto não se pode caminhar simultaneamente por duas ou três estradas. A
essência da verdade espiritual, como a do amor humano, não está nas semelhanças
abstratas que se podem traçar entre várias tradições religiosas, mas na
particularidade de uma única tradição, plenamente assumida e plenamente vivida.
Como dizem os sufis, é melhor cavar um poço com trinta metros de profundidade
do que dez poços com três metros, se se quer encontrar água. Nas palavras de
Rumi:
Quando é que a religião já foi uma só? Sempre
foi duas ou três, e a guerra sempre grassou entre correligionários. Como você
vai unificar a religião? No Dia da Ressurreição ela será unificada, mas aqui
neste mundo isso é impossível, porque cada um tem um desejo e uma vontade
diferentes. A unificação não é possível aqui. Na Ressurreição, porém, quando
todos estiverem unidos, todos olharão para uma única coisa, todos ouvirão e
falarão uma única coisa.
Signs of the Unseen [Fihi ma-Fihi], p. 29
O “Dia da Ressurreição” é também “antes da
Queda” e “nas profundezas da Natureza divina”.
O
Caminho Espiritual
James S. Cutsinger, em Advice to the Serious Seeker: Meditations on the Teaching of
Frithjof Schuon, fala de quatro aspectos do Caminho espiritual: Verdade,
Virtude, Beleza e Oração.
A Verdade é a doutrina metafísica que, com a
graça de Deus, pode abrir-nos a uma intuição do Intelecto transcendente no
centro da alma humana. Mas, para que a alma se conforme de modo permanente a
esse Intelecto, é necessária a Virtude. As três virtudes primárias aqui são
humildade, caridade e veracidade, que se relacionam às três faculdades
principais da alma. A humildade conforma a vontade humana ao Intelecto
transcendente, a caridade conforma os sentimentos, e a veracidade conforma a
mente pensante. Ou, sob outra perspectiva, podemos dizer que cada virtude
conduz a alma a uma relação mais profunda com o seu próprio arquétipo divino: a
humildade abre a alma para a Virtude de Deus, e assim para uma apreciação
humilde da virtude onde quer que apareça; a caridade, para a Beleza de Deus, e
assim para toda Beleza em toda parte, incluindo a beleza moral daquele que não
é fisicamente belo, ou a beleza virtual da própria condição humana naquele que
carece até mesmo de beleza moral; e a Veracidade, para a Verdade de Deus, e
assim para a Verdade em todas as suas formas, incluindo a verdade de situações
contingentes e até de simples fatos. Na Natureza divina, porém, esses três
arquétipos não são separados, razão pela qual cada um deles afeta cada uma das
três faculdades da alma humana à sua maneira. A virtude é a verdade em ação, um
de cujos frutos é a beleza moral. A beleza pode nutrir e fortalecer a vontade,
além de ser, por direito próprio, um modo de conhecimento. E a Verdade em si é
singularmente forte e incomparavelmente bela; ela torna possível tanto a
honestidade emocional quanto uma avaliação objetiva do próprio progresso na
virtude.
Nas palavras de Platão, “a Beleza é o
esplendor da verdade”. Segundo Schuon, “a Beleza, com a amplitude de seu
infinito e sua generosidade, rompe as atitudes fixas e os sistemas fechados do…
egoísmo espiritual” (Spiritual Perspectives
and Human Facts, p. 164). As coisas belas, porém, não estão isentas de
ambiguidades:
Toda Beleza é ao mesmo tempo uma porta fechada
e uma porta aberta… um obstáculo e um veículo: ou a Beleza nos separa de Deus
porque está totalmente identificada, em nossa mente, com o seu suporte
terrestre, que então assume o papel de ídolo, ou a Beleza nos aproxima de Deus
porque nela percebemos as vibrações da Beatitude e do Infinito que emanam da
Beleza divina.
Esoterism as Principle and as Way, p.
182
Mesmo num objeto indigno, ou num objeto
tornado indigno em relação a nós por causa de nossa idolatria, a Beleza
continua sendo um raio da Natureza divina.
“A virtude é a Beleza da alma, assim como a
Beleza é a Virtude das formas” (Logic and Transcendence,
p. 246). É a Beleza que nos permite contemplar as formas ao nosso redor em sua
“transparência metafísica”:
Se o ouro não é chumbo, é porque ele ‘conhece’
melhor o Divino. Seu ‘conhecimento’ está em sua própria forma… a rosa difere do
lírio-d’água por sua particularidade intelectual, por seu ‘modo de conhecer’…
Um animal nobre ou uma flor formosa é intelectualmente superior a um homem vil.
Spiritual Perspectives and Human Facts,
p. 121.
O quarto aspecto do Caminho espiritual, a
Oração, é a essência dos outros três. Longe de ser mera técnica para realização
de desejos ou alteração da consciência, ela é a Beleza essencial, a Virtude
essencial e a Verdade essencial; como disse um rabino, “a própria oração é o
Divino”.
A oração toma três formas complementares: a
oração canônica, que nos conecta organicamente com nossa comunidade e tradição
espirituais escolhidas; a oração pessoal, que nos conecta em nossa
particularidade com o rosto específico do Divino que, na eternidade, se volta
para essa particularidade; e a oração invocativa, que transcende ambas. A
oração invocativa significa a invocação (idealmente) perpétua do Nome divino,
prática chamada dhikr no sufismo,
Oração de Jesus ou Oração do Coração no hesicasmo cristão ortodoxo, e japa(m) no hinduísmo. Pela Invocação,
virtualmente senão de fato, somos aniquilados em nossa individualidade separada
e divinizados pela atividade do Nome, já que “Deus e Seu Nome são um”. No
sufismo isso se chama fanā e baqā, “aniquilação e
subsistência-em-Deus”; na Ortodoxia, chama-se theosis ou deificação. É o estado a que São Paulo se
referia quando disse “já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim”. Quando
Jesus ordenou aos discípulos que “orassem sem cessar”, é provável que se
referisse à prática da oração invocativa. Segundo o Dr. Cutsinger, a invocação
do Nome divino é de tal profundidade e poder que jamais deve ser empreendida
por iniciativa própria, mas apenas com a permissão de um mestre espiritual —
ou, à falta de acesso a tal mestre, com base em um voto solene perante Deus e
sob a orientação de um diretor espiritual. Por fim, não existe algo como uma
Invocação “genérica”; os Nomes divinos que carregam o poder de engendrar Deus
na alma humana são aqueles que o próprio Deus nos revelou, nas línguas dos
Caminhos que Ele mesmo fundou.
Simplicidade
de Alma
A metafísica é complexa; o seu Objeto é
simples. Ela é complexa precisamente porque o seu Objeto é de tal simplicidade
que toda complexidade concebível e mesmo inconcebível pode existir dentro
d’Ele, sem caos, sem obscurecimento mútuo, numa paz ardente e trovejante.
Frithjof Schuon atribuía um lugar muito alto
à simplicidade de alma. Embora seus livros fossem dirigidos a “intelectuais”,
ele também atraía muitos que não tinham interesse em teorias complexas. A
gnose, recorda ele, não é uma aquisição mental, mas um contemplar, em
simplicidade total e virginal, a Verdade nua, até que o Objeto visto se
transforme naquele que vê. Em Light on the
Ancient Worlds (p. 109), ele escreve:
Se a Bíblia é ingênua, é uma honra ser
ingênuo. Se as filosofias que negam o Espírito são inteligentes, então não
existe tal coisa como inteligência. Uma crença humilde em um Paraíso situado
entre as nuvens tem pelo menos um pano de fundo de Verdade inalienável, mas tem
também — e sobretudo — o pano de fundo de uma realidade misericordiosa na qual
não há engano, e isso é algo acima de qualquer preço.
Crítica
do Mundo Moderno
A Verdade projeta uma longa sombra. Se
algumas coisas são necessariamente verdadeiras, então outras são necessariamente
falsas. O amor da Verdade deve, portanto, incluir o ódio ao erro, assim como o
amor por uma pessoa amada humana deve incluir a vontade de defendê-la de tudo o
que possa feri-la ou degradá-la, mesmo ao ponto de sacrificar a própria vida.
Qualquer coisa menor não é verdadeiro amor — nem verdadeiro amor à sabedoria.
E, no entanto, crítica e defesa estarão sempre em nível inferior ao da
afirmação da Verdade, que é por sua vez inferior à contemplação pura da
Verdade. Toda rosa tem seus espinhos; contudo, as rosas não são cultivadas por
causa dos espinhos, mas por causa de sua forma, de sua cor e de seu perfume. A
Verdade, embora tenha um gume duro, é essencialmente misericordiosa e
redentora; nas palavras de Allah, um de Cujo Nomes é al-Ḥaqq (a Verdade), “Minha Misericórdia precede Minha
ira”. Mas o que dizer de al-Ḥaqq em
sua própria Essência, o que dizer da Verdade absoluta, dado que (segundo
Schuon) o Absoluto não tem oposto? Como pode qualquer negação existir nas
profundezas da Natureza divina? Talvez a melhor maneira de responder a isso
seja com dois provérbios aparentemente paradoxais de William Blake, que
certamente se referem ao nível da manifestação cósmica, e talvez até ao de maya-in-divinis: “Tudo o que é possível
ser acreditado é uma imagem da Verdade”, e “Estar em erro e ser lançado fora
faz parte do plano de Deus.”
Os escritores da Escola Tradicionalista
elaboraram talvez a crítica mais contundente do mundo moderno e pós-moderno de
que dispomos. Livros
representativos são The Bugbear of Literacy,
de Ananda K. Coomaraswamy; The Destruction
of the Christian Tradition, de Rama P. Coomaraswamy; King of the Castle, de Charles LeGai Eaton; The Crisis of the Modern World e The Reign of Quantity and the Signs of the
Times, de René Guénon; Ancient Beliefs
and Modern Superstitions, de Martin Lings; seções de The Transcendent Unity of Religions, Spiritual Perspectives and Human Facts, Light on the Ancient Worlds e outras obras
de Frithjof Schuon; e Beyond the Postmodern
Mind, de Huston Smith. O presente livro foi escrito, em parte, para
expandir e atualizar certos aspectos dessa crítica.
Para resumir a crítica tradicionalista do
mundo moderno numa frase: eles não “compram” o pacote. Como viver dentro dele
se você não o compra, e como aproveitar as oportunidades espirituais únicas
propiciadas por tempos de trevas espirituais coletivas, é uma das questões
centrais que os Tradicionalistas tentam responder.
Segundo a visão da maioria das religiões
tradicionais, o tempo é cíclico, e entrópico. Uma Autorrevelação divina
inaugura uma era do mundo, que desce de uma Idade de Ouro original até uma
Idade de Ferro terminal, sendo finalmente destruída, após o que um novo ciclo
de manifestação desce dos mundos superiores. Segundo essa visão, o progresso só
pode ser uma ilusão; para cada bem que se ganha com o aumento do conhecimento
humano e do controle sobre a natureza, um bem cultural e espiritual maior é
perdido. O ciclo não pode ser revertido. As perversões do mundo moderno, sua
destruição da metafísica, seus ataques à religião e suas violações do mundo
natural e da forma humana são males, mas não são ilegais no sentido mais
elevado do termo, já que as consequências terríveis da violação humana da
justiça divina e natural são elas mesmas justas. “É necessário que haja escândalos,
mas ai daquele por quem o escândalo vem.” A humanidade coletiva, em certo
sentido, pode ser perdoada; não é crime simplesmente envelhecer. Mas a “velhice
do macrocosmo” não absolve os indivíduos de seu dever de discernir e escolher a
Verdade. E quando Verdade e engano estão tão radicalmente polarizados, como
devem estar nestes últimos dias, a escolha que se apresenta a cada indivíduo é
mais momentosa do que em qualquer outro ponto de todo o ciclo.
A projeção desse falso mito do progresso
sobre a biologia resulta na ideologia conhecida como evolucionismo, a doutrina
de que o menos é a origem causal do mais, de que formas de vida mais elevadas e
complexas, incluindo o homem, desenvolveram-se gradualmente a partir de formas
mais simples. Os Tradicionalistas, por outro lado, ensinam que o advento de
novas formas de vida — que o registro fóssil mostra ser mais descontínuo do que
contínuo, pondo assim a “seleção natural de mutações aleatórias” de Darwin em
séria dúvida — representa na realidade a descida de arquétipos espirituais
organizadores da matéria a partir dos planos superiores do Ser, em resposta à
palavra criadora de Deus. Essas “Ideias platônicas” das espécies então atraem
para si a matéria de que necessitam para construir veículos físicos para sua
vida no espaço e no tempo.
O progressismo e o evolucionismo são
aspectos da ideologia mais abrangente conhecida como cientificismo, a crença de
que nada existe para além do mundo material, e, portanto, de que o propósito e
o destino do homem estão em conquistar e controlar a matéria, no curso da qual
ele deve aprender a definir-se como matéria e nada mais.
Os Tradicionalistas também têm algo de
valioso a dizer contra os excessos da democracia, que mantém íntima ligação
histórica com o progressismo, o cientificismo e o evolucionismo. Quando a
verdade se degrada a opinião da maioria, e quando o indivíduo consequentemente
tenta basear suas escolhas morais na subjetividade de massa da sociedade
coletiva que o cerca, em vez de em princípios objetivos, o resultado é o caos.
(Acrescentaria apenas uma advertência: segundo Platão, a democracia sempre
degenera em tirania; por isso nos convém manter a democracia o máximo de tempo
que pudermos. O perigo que se ergue no horizonte pós-moderno não é a
democracia, mas uma espécie de neo-aristocracia satânica, chamada por Guénon de
“hierarquia invertida” e identificada por ele com o regime do Anticristo.)
Guénon
vs. os Ocultistas
O fundador da Escola Tradicionalista, René
Guénon (1886–1951), foi um dos dois ou três maiores expoentes da “metafísica
pura” nos tempos modernos. Em
livros como Introduction to the Study of
the Hindu Doctrines, Man and His
Becoming according to the Vedanta, The
Symbolism of the Cross e Multiple
States of Being, ele reintroduziu a metafísica e o esoterismo
tradicionais, tanto oriental quanto ocidental, no mundo ocidental. Mas
havia outro lado em seu gênio. Antes de seu encontro com aquilo que passou a
chamar de Tradição com “T” maiúsculo, ele explorou profunda e extensivamente o
submundo do ocultismo ocidental — Rosacrucianismo, Maçonaria, Martinismo,
Templarismo, Neognosticismo, Teosofia, Espiritismo e outras seitas —
aproximadamente de 1905 ao início dos anos 1920. Saiu desse período convencido
não apenas da falsidade doutrinal do ocultismo, especialmente quando comparado
à herança metafísica comum das grandes religiões mundiais, mas também de seu
profundo perigo espiritual. Atribuiu a morte de sua primeira esposa a
influências sombrias provenientes daquele meio, e declarou sentir-se incapaz,
mesmo depois de tornar-se muçulmano ortodoxo e iniciado sufi, de assumir o
papel de mestre espiritual, já que sua alma fora marcada por um contato íntimo
demais com forças psíquicas malignas em seus primeiros anos.
Numa tentativa de advertir outros desse
perigo, e sem dúvida também como modo de purgar-se a si mesmo, publicou seu
segundo livro (em 1921, quando seu primeiro livro, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, também
apareceu) sob o título Le Théosophisme,
histoire d’une pseudo-religion (Teosofismo:
História de uma Pseudo-Religião), um libelo contra a Sociedade Teosófica
de Madame Blavatsky, bem como contra a Antroposofia de Rudolf Steiner. (No
decorrer do presente livro, a teosofia moderna surgirá várias vezes como a
“sombra” contínua do Tradicionalismo.) Em Le
Théosophisme, ele anuncia alguns dos temas aos quais retornaria em várias
outras obras, incluindo L’Erreur Spirite
(O Erro Espírita), em 1923, e sua
obra-prima profética The Reign of Quantity and
the Signs of the Times, de 1948, onde aplica a metafísica pura à “crítica
social” no plano mais universal imaginável, isto é, ao curso necessariamente
descendente e ao fim apocalíptico do presente ciclo de manifestação na terra.
Entre esses temas está um que apareceria em vários lugares de sua obra,
incluindo Le Roi du Monde (O Rei do Mundo), 1927, e alcançaria seu
auge em The Reign of Quantity: o do
Anticristo.
Em Theosophy:
History of a Pseudo-Religion, ele escreve:
Os falsos Messias que vimos até agora só
realizaram milagres muito inferiores, e seus discípulos provavelmente não foram
difíceis de converter. Mas quem sabe o que o futuro reserva? Quando se reflete
que esses falsos Messias nunca foram senão instrumentos mais ou menos
inconscientes daqueles que os conjuraram, e quando se pensa mais
particularmente na série de tentativas feitas sucessivamente pelos teosofistas
[a mais famosa sendo a promoção de Krishnamurti como Messias; os esforços
contemporâneos parecem limitar-se ao “Maitreya” de Benjamin Creme], somos
levados à conclusão de que não passaram de ensaios, experiências, por assim
dizer, que serão renovadas sob várias formas até que se obtenha sucesso, e que,
nesse meio-tempo, produzem invariavelmente um efeito algo inquietante.
Não que acreditemos que os teosofistas, mais do que os ocultistas e os
espíritas, sejam fortes o bastante, por si sós, para levar com êxito a cabo uma
empreitada dessa natureza. Mas não poderia haver, por detrás de todos esses
movimentos, algo muito mais perigoso, de que seus líderes talvez nada saibam,
sendo eles próprios, por sua vez, instrumentos inconscientes de um poder
superior?
Citado em The Morning of the Magicians, Louis
Pauwels e Jacques Bergier, Avon Books, 1960, pp. 219–220
[NOTA: É óbvio que a Sociedade Teosófica —
ou, em termos contemporâneos, as “Sociedades” — não pode ser responsabilizada
pelas ações ou declarações de cada um de seus membros, particularmente dado que
carece de dogma oficial. Sem dúvida abrange muitos buscadores sinceros, e sua
editora, Theosophical Publishing House, sob o selo Quest Books, publicou até
alguns escritores tradicionalistas: Frithjof Schuon, Huston Smith — e o próprio
autor. No entanto, aquilo que Guénon chamaria de “ação antitradicional”
continua a emanar, ao menos oficiosamente, de muitos naquele meio, como veremos
nos Capítulos Oito e Nove.]
René Guénon foi claramente uma figura
central na crítica, no século XX, das religiões “Nova Era”, qualquer que seja o
nome que assumam em determinado período. O que o torna a ele e a seus
seguidores únicos é que baseiam essa crítica não em dogmatismo confessional,
mas em metafísica universal. Que outro enfoque poderia demonstrar que o
ocultismo e a doutrina Nova Era não são nem legitimamente metafísicos nem
realmente esotéricos?
O
Erro Espírita: Uma Sinopse
O que se segue é uma sinopse de The Spiritist Fallacy (L’Erreur Spirite), de Guénon, baseada numa
tradução manuscrita do Dr. Rama Coomaraswamy. Ela é altamente esclarecedora,
pois expõe muitas doutrinas “de ponta” da Nova Era como muitas vezes com mais
de um século de idade, e fornece um valioso pano de fundo histórico para o
movimento Nova Era atual.
Guénon
define espiritismo não simplesmente como a crença de que seja possível
comunicar-se com os mortos, mas como a crença de que tal comunicação possa
ocorrer por meios materiais — pancadas de “espíritos”, telecinesia,
materializações etc. Ele não nega nem o poder dos médiuns espíritas de produzir
tais fenômenos, nem a possibilidade de uma comunicação “mental, intuitiva ou
inspirada” com os falecidos — embora pouco faça para definir exatamente o que
essa forma de comunicação poderia implicar. Mas repudia a ideia de que tal
comunicação seja possível pelos métodos dos espíritas, concluindo, portanto,
que os fenômenos espíritas representam algo inteiramente diverso.
Ele vê no espiritualismo uma espécie de materialismo ampliado. Descartes
postulou uma cisão radical entre “corpo” e “espírito”, negando assim e
suprimindo culturalmente a doutrina tradicional que, em sua forma mais simples,
afirma que a forma humana é tripartida, composta de corpo, alma e Espírito. Os
espiritualistas, teosofistas e ocultistas, numa tentativa equivocada de
restaurar uma concepção mais abrangente e exata, postularam um “perispírito”
(espiritualismo) ou “corpo astral” (Teosofia) como ponte entre corpo e
espírito. Mas o viram, erroneamente, como uma espécie de corpo material sutil,
capaz de agir sobre a matéria. Na realidade, porém, dado que corpo e espírito
não são, como acreditava Descartes, completamente isolados um do outro, é
desnecessário postular, como substituto da doutrina tradicional da alma, uma
realidade quase material para fazer a ponte sobre um hiato inexistente entre
ambos.
Uma dificuldade na concepção da alma como um
corpo “sutil” é que isso faz parecer que a morte não passa de descartar o corpo
material, após o que a “vida” do indivíduo continua sem mudança fundamental.
(Segundo o sacerdote cristão ortodoxo Seraphim Rose, em seu livro The Soul After Death, doutrinas como essa
removem o sentido da morte como confronto entre a alma humana e Deus,
eliminando na prática toda ideia de juízo divino e destruindo um dos pontos
fundamentais de orientação para a vida espiritual.) Além disso, se o
“perispírito”, sendo quase material, pode agir diretamente sobre a matéria, por
que a mediunidade é necessária para sua manifestação, como afirmam
universalmente os espiritualistas? O espiritualismo ensina que um fluido ou
energia sutil que emana do médium, chamada “força ódica”, “ectênica”, “força
neurítica”, “ectoplasma” etc., é ingrediente necessário na manifestação do
espírito. Por que, então, é necessário postular a existência de um perispírito
ou corpo astral em primeiro lugar?
(A existência de um corpo sutil, na verdade,
não é algo tão antitradicional quanto Guénon, em sua reação contra as doutrinas
claramente antitradicionais dos espiritualistas, e contra Descartes, parece
afirmar em The Spiritist Fallacy — um
aparente deslize que ele mais que compensa em outras obras, especialmente Man and His Becoming according to the Vedanta.
O próprio Vedanta fala de um corpo sutil, o sūkṣma
śarīra, que, segundo os Brahma Sūtras,
sobrevive até a Libertação final. Jesus, após sua ressurreição, apareceu em um
corpo palpável, ainda que “glorificado”, e tanto Mullā Ṣadrā quanto Ibn al-‘Arabī,
esoteristas muçulmanos, sustentam que a alma necessita de um corpo em todo
estágio de existência. Um ser individual pode ser definido como uma relação
polar entre sua fonte espiritual e sua manifestação formal, nenhuma das quais
pode existir sozinha, porque são manifestações complementares de uma única
Realidade. O polo espiritual tem precedência sobre o formal, uma vez que o
Espírito representa, de fato, essa Realidade absoluta no modo de polaridade com
sua própria manifestação; contudo, um polo nunca existe sem o outro. E à luz
dessa doutrina, Guénon tem razão ao criticar os espiritualistas por conceberem
a morte como nada além do desaparecimento do corpo material, deixando o corpo
sutil exatamente como era antes, porque esse próprio desaparecimento exige uma
“repolarização” entre o Espírito e sua manifestação em um nível inteiramente
diferente, situando assim o ser individual em um novo plano ontológico. Mas, na
medida em que ele se opõe à tendência espiritualista de conceber o corpo
material como espécie de modelo para o corpo sutil, em vez de entender o corpo
sutil como modelo do corpo material, Guénon está certíssimo.)
Guénon traça uma breve história do
espiritualismo, que se originou em Hydesville, Nova York, devido a uma
manifestação de “batidas de espírito” na casa de uma família alemã de sobrenome
Fox (forma anglicizada de Voss), em 1847. O “espírito” produzia ruídos de
pancadas, que estão entre os fenômenos relatados ao longo da história em
relação a casas chamadas “mal-assombradas”. O “espírito” era interrogado com
várias perguntas, e respondia corretamente por meio das pancadas. O que era
significativo, segundo Guénon, não era o fenômeno em si, mas o conjunto único
de conclusões tiradas a partir dele: especificamente, que a sociedade humana deveria
ser promovida e aperfeiçoada pela instituição de uma comunicação ampla e
contínua entre vivos e mortos. Surgiu um quaker de nome Isaac Post que — no
verdadeiro espírito da inventividade ianque — concebeu um “telégrafo
espiritual”, uma espécie de tábua ouija, para que o “espírito” pudesse se
comunicar com mais facilidade. (Guénon observa as semelhanças entre a forma de
culto quaker e as práticas de médiuns espíritas.) Descobriu-se então que o
fenômeno se tornava mais intenso quando as irmãs Fox se encontravam no recinto,
e esse foi, segundo Guénon, o momento exato em que o mundo moderno descobriu a
mediunidade. O “espírito” afirmava ser o de um caixeiro-viajante que fora
assassinado e enterrado no porão da casa da família Fox. Posteriormente o porão
foi escavado e um esqueleto foi encontrado. O interesse por esses
acontecimentos cresceu rapidamente até que se tornou o influente movimento
internacional conhecido como Espiritualismo. A primeira convenção
espiritualista nacional teve lugar em 1852, em Cleveland, Ohio, apenas cinco
anos após as manifestações iniciais.
Os “espíritos” que enxameavam Hydesville
afirmavam ser liderados por Benjamin Franklin, o arquétipo de todos os
inventores ianques. Eles sustentavam ainda que as pesquisas modernas sobre
eletricidade haviam preparado o caminho para a comunicação com eles, e que
“Franklin” vinha sendo guiado em métodos para melhorar essa comunicação. O
autor menciona também, em outro contexto, o caso de Thomas Edison, inventor
ianque tornado capitão da indústria, que tentou seriamente construir um “rádio”
para comunicação com os mortos!
Guénon pergunta por que um fenômeno que, desde
a Antiguidade, se associava a casas assombradas teria, de repente, em meados do
século XIX, gerado um movimento pseudo-religioso internacional. Embora admita
que o clima da época tornara possível esse desenvolvimento, observa também como
significativo o fato de que Madame Emma Hardinge-Britten, membro da sociedade
secreta conhecida como Hermetic Brotherhood of Luxor, a qual Guénon investigara
anteriormente, tenha se associado ao movimento espiritualista desde o início e
escrito um livro intitulado History of Modern
American Spiritualism (1870). A importância disso reside no fato de que a
referida Irmandade sempre se opusera às teorias espiritualistas, e alegara
ainda que os primeiros fenômenos espiritualistas haviam sido produzidos na
realidade por indivíduos vivos atuando à distância — em outras palavras, por
feitiçaria. Aparentemente, Annie Besant, da Sociedade Teosófica, em certa
ocasião fez afirmação semelhante. Dada a natureza suspeita dessas fontes,
Guénon não aceita necessariamente as suas alegações, mas admite a possibilidade
de que possam estar certas. Em vista do fato de que a Hermetic Brotherhood of
Luxor guardava afinidades com várias sociedades secretas anteriores na
Alemanha, algumas delas maçônicas, que praticavam magia e “evocações” entre o
fim do século XVIII e o início do XIX, ele especula que certos “adeptos”
ligados à Irmandade ou a outros grupos possam ter produzido os fenômenos em
Hydesville, talvez aproveitando “resíduos psíquicos” aderentes a uma casa onde
ocorrera uma morte violenta — resíduos que, insiste, não são de modo algum o
“espírito do morto”. O objetivo desses “adeptos”, segundo Guénon, poderia ter
sido produzir determinados fenômenos psíquicos de grande projeção a fim de
combater, na mente do público, a filosofia do materialismo, levando-o a crer na
doutrina espiritualista, enquanto eles próprios sabiam mais. (Sou imediatamente
lembrado dos vários embustes, alguns engenhosos o bastante para requerer alto
nível de organização, que continuam a surgir em torno do fenômeno UFO.) Como
hipótese mínima, ele considera provável que agentes de tais grupos tenham
influenciado a população de Hydesville por meio de propaganda encoberta,
tirando proveito, nesse cenário, de uma situação já existente. Mas combater o
Materialismo com o Espiritualismo, esclarece Guénon, é simplesmente opor um
erro a outro — verdade que se torna mais evidente a cada dia, à medida que uma
fascinação por várias tecnologias arcanas e fenômenos psíquicos ou quase
psíquicos, como telepatia e contatos com UFOs, continua a fundir-se na mente
coletiva.
Em seguida Guénon nos apresenta Allan Kardec,
o mais influente dos espiritualistas franceses, que produziu vários livros
“canalizados” de “filosofia de espíritos”. Em seguida cita Daniel Dunglas Home,
o mais fenomenal médium de materialização já estudado, tido como um dos mais
confiáveis, que afirmava que Kardec era na realidade uma espécie de
hipnotizador que se rodeava de médiuns impressionáveis aos quais tratava como
sujeitos hipnóticos, com o resultado de que a filosofia por eles “recebida” era
inteiramente composta das ideias preconcebidas de Kardec, transmitidas por
sugestão. Guénon aceita essa avaliação, exceto por atribuir a sugestão não
apenas a Kardec, mas à “mente de grupo” que ele partilhava com certos colegas.
O autor observa como o espiritualismo moderno
se propagou na América sobretudo em jornais socialistas, e mostra como, na
França, assumiu o caráter progressista, anticlerical e “cientificista” do
iluminismo revolucionário dos séculos XVIII e XIX. (Também é interessante, de
passagem, o fato de Robert Dale Owen [1801–1877], congressista norte-americano
e filho do célebre socialista galês Robert Owen, ter sido um espiritualista
entusiasta. Como conservador, Guénon estava naturalmente mais interessado nos
vínculos do espiritualismo com a esquerda, mas é bem conhecido o fato de que o
Partido Nacional-Socialista de Hitler, de extrema direita, bebeu em muitas
influências semelhantes.)
Guénon mostra como os ensinamentos dos
“espíritos” tendem a refletir as ideias do meio social em que surgem, uma vez
que o poder de sugestão opera na mente coletiva assim como opera na mentalidade
partilhada de grupos menores. Assim o espiritualismo francês fez da
reencarnação um dogma, interpretando-a como forma de progresso espiritual e
“evolução”, enquanto a reencarnação foi negada nas mensagens “espirituais”
recebidas na sociedade mais conservadora da Inglaterra. Socialismo e
espiritualismo tornaram-se profundamente entrelaçados na França, onde os
“espíritos” tendiam a defender a ideologia da revolução de 1848.
Guénon, então, rebate os que afirmam que o
espiritualismo é uma espécie de “bramanismo esotérico” — inexistente — ou um
“fakirismo” ocidental. A palavra árabe faqīr,
como o termo persa dervish — ambos às
vezes usados como sinônimos de “sufi” — significa “pobre” ou “mendigo”. As
pessoas chamadas de “faquires” pelos viajantes europeus são (sejam faquires ou
não) na realidade magos. O autor deixa claro como a magia, embora seja uma
“ciência experimental” válida, capaz de produzir fenômenos reais, é
extremamente perigosa, motivo pelo qual é desencorajada pelas autoridades
tradicionais em toda a Ásia, assim como o era na Antiguidade clássica. Magia e
espiritualismo são radicalmente opostos, já que o mago, como o hipnotizador, é
um agente ativo com objetivo definido, ao passo que o médium, como o sujeito
hipnótico, está passivamente aberto a quaisquer influências. Nem a magia nem a
mediunidade, contudo, podem ser explicadas por simples hipnotismo. Nas
sociedades tradicionais, a mediunidade é vista como calamidade, sendo
considerada um caso de possessão demoníaca; a ideia de elevar tal possessão ao
posto de dom espiritual é inteiramente moderna e ocidental. Quanto à “evocação”
deliberada de “espíritos”, ela sempre foi tida como crime grave, o crime de
necromancia. As forças evocadas, porém, não são “almas dos mortos”, e sim
resíduos psíquicos perigosos aderidos ao cadáver, o que explica por que magos
negros gostam de frequentar cemitérios. Esses resíduos, que os hebreus chamavam
ob, são idênticos aos manes romanos.
A afirmação de Guénon de que as sociedades
tradicionais tinham uma atitude negativa em relação à magia precisa, porém, ser
qualificada. Isso é certamente verdadeiro para as sociedades fundadas sobre o
Judaísmo, o Cristianismo, o Islã, o Hinduísmo vedântico (ainda que não para a
sociedade hindu como um todo, que abarca muitas formas de religião popular em
que a magia, para o bem ou para o mal, desempenha um papel) e a maioria das
formas de Budismo. A magia, especialmente a feitiçaria e a bruxaria, também era
em grande parte malvista no paganismo pré-cristão da Europa e do Oriente
Próximo, embora os cultos oficiais dessas sociedades pudessem conter elementos
que hoje chamaríamos de mágicos. Segundo The
Golden Bough, de Sir James Frazer, até mesmo os druidas celtas queimavam
bruxas. Quando consideramos, porém, a grande área cultural da Ásia
setentrional/central que deu origem ao xamanismo, a posição de Guénon precisa
ser modificada. E, embora Confúcio tenha dito certa vez: “acredito nos seres
sobrenaturais, mas os mantenho à distância”, o taoísmo e o xintoísmo
incorporaram claramente elementos xamânicos, por meio dos quais as forças
benéficas do cosmos eram invocadas para o bem geral do povo, ao passo que, no
caso único do budismo vajrayāna do Tibete e do budismo Tiantai da China — ou de
algumas de suas formas — forças semelhantes foram colocadas a serviço da
Iluminação Total Perfeita. E embora as tradições da Ásia oriental pareçam ser,
entre as “religiões mundiais”, as únicas a manter uma ligação ininterrupta com
o xamanismo (a menos que consideremos a ioga indiana e certas práticas do
sufismo centro-asiático como em certa medida xamânicas), a função de invocar
forças espirituais para a proteção da sociedade e a cura de doenças sempre foi
parte integral de qualquer sociedade baseada na religião — em outras palavras,
de qualquer sociedade tradicional. A questão é: de que nível ontológico se
extrai tal poder? A sociedade em questão é destinatária direta, por meio de
revelação, de um raio do Absoluto? Ela invoca forças angélicas para cura,
fertilidade e proteção contra forças mais demoníacas? Em que ponto, tendo
perdido o contato direto com os mundos angélicos, ela começa a apaziguar essas
forças demoníacas para mantê-las satisfeitas? E quando tal apaziguamento do mal
se transforma em serviço direto a ele? Questões como essas, especialmente
quando lidamos com sociedades “primitivas”, precisam ser respondidas caso a
caso.
Neste ponto é necessário dizer algo sobre o
xamanismo. O interesse pelo xamanismo fora das sociedades tribais tradicionais
não era tão difundido em 1921 quanto é hoje, embora Guénon o tenha tratado
brevemente em The Reign of Quantity,
onde admite que provavelmente representa uma tradição espiritual válida, embora
em estado de séria degeneração. Diante disso, pode a avaliação negativa de
Guénon sobre a magia ser aplicada ao xamanismo também? A resposta depende de
muitos fatores. Em seu melhor, o xamanismo é uma espécie de “teurgia
hiperbórea” mediante a qual o xamã, através de sofrimento ascético voluntário,
se coloca conscientemente sob a guia de seu daimon ou genius
ou “anjo da guarda”, o arquétipo específico ou “Nome de Deus” com o qual tem
afinidade intrínseca “pré-eterna”. Mas os loas
ou mystères do vudu são, em sua
origem, precisamente tais Nomes de Deus — e o vudu (como o obeah e a santeria),
embora apresente sinais de derivar de um antigo “esoterismo” provavelmente
sincrético, em que elementos africanos tropicais, egípcios, hebraicos, e até
cristãos e helenísticos se entrecruzaram, é claramente uma tradição degenerada
e contaminada, envolvida com, ainda que não estritamente idêntica a, magia
negra demoníaca. Além disso, até a alta “teurgia” dos neoplatônicos resvalou na
direção da magia à medida que a tradição que lhes deu origem se enfraquecia.
Tudo o que se pode dizer sobre o xamanismo é que, embora parte dele represente
uma verdadeira espiritualidade tradicional, revelada por Deus aos siberianos e
nativos americanos tanto quanto a Torá aos hebreus ou o Alcorão aos árabes,
grande parte do que hoje passa por xamanismo em círculos Nova Era e neopagãos,
e até entre alguns nativos americanos, é degenerado, boa parte é espúria e
alguma parte é má.
Guénon distingue entre magia e teurgia,
situadas em níveis vastamente diferentes, sendo a teurgia a intervenção de
poderes celestes. O poder numinoso da Arca da Aliança e do Templo de Jerusalém,
de ícones sagrados e lugares santos, dos túmulos de santos, e do
“ensombramento” de várias ordens sufis pela barakah (graça) de seus shaykhs fundadores, que podem ter
morrido há séculos, são exemplos de teurgia, não de magia. Essa distinção de
níveis, porém, é precisamente o que a mente pós-moderna já não consegue
perceber. Magos contemporâneos rotineiramente retratarão a distinção entre o
“mágico” e o “milagroso” apenas em termos de poder político e social. “Se
alguém na Igreja realiza maravilhas”, queixam-se, “chama-se milagre; se fazemos
a mesma coisa, carimba-se como magia.” Na realidade, as duas coisas não são
idênticas, mas nem os magos, nem em alguns casos os próprios eclesiásticos, já
conseguem notar a diferença.
Guénon rastreia a relação entre
espiritualismo e ocultismo. Ele define como “ocultismo” o movimento derivado de
Eliphas Levi (nome real Alphonse-Louis Constant, m. 1875) e posteriormente
popularizado por Papus (Gérard Encausse), que rompeu com a Sociedade Teosófica
em 1890. (Madame Blavatsky usava “ocultismo” como sinônimo de sua “Teosofia”,
mas Guénon distingue os dois movimentos, embora sejam obviamente primos
próximos.) O ocultismo é o resultado de uma tentativa equivocada de
redescobrir, ou reinventar, o esoterismo iniciático. Tende a ser mais
centralizado, mais intelectual ou ao menos pseudo-intelectual de forma
elaborada, e mais elitista do que o espiritualismo, que resiste à centralização
e gravita em direção ao pluralismo, ao sentimentalismo e à democracia. O
ocultismo está também impregnado do espírito do “cientificismo”, que o levou a
buscar a produção de fenômenos experimentalmente verificáveis,
desqualificando-o totalmente como até mesmo uma aproximação do esoterismo
tradicional. Os ocultistas franceses geralmente se opunham ao espiritualismo;
contudo, seu próprio ecletismo às vezes levou a tentativas de aproximação. E
tanto o ocultismo quanto a Teosofia, sem admiti-lo, tomaram de empréstimo
várias doutrinas ao espiritualismo, incluindo a da reencarnação. Nessa
polarização entre ocultismo e espiritualismo podemos ver as raízes da
divergência atual entre o semi- ou pseudo-tradicional “ocultismo literário”,
como o de Jocelyn Godwin e outros, e a Nova Era propriamente dita —
representada, por exemplo, por Shirley MacLaine — com seu populismo solto do
tipo “você também pode” e sua deliberada vocação para o grande público. O
ocultismo literário parece, no momento, ganhar terreno sobre a Nova Era, ao
menos do meu ponto de vista, já que dá a ilusão de substância quando comparado
à fluidez etérea das ideias novaeristas. Se Deepak Chopra representa a
comercialização de ideias pseudo-hindus para um público Nova Era (The Seven Spiritual Laws of Success), e
James Redfield (The Celestine Prophecy)
uma ideologia especificamente Nova Era, entre muitas, William Quinn (The Only Tradition) é um exemplo de
ocultismo literário tentando obter legitimidade acadêmica — e, até certo ponto,
conseguindo (ver os Capítulos Quatro e Oito).
Guénon admite que muitos “fenômenos
psíquicos”, incluindo os produzidos por médiuns, são reais. Mas esse fato, por
si só, em nada valida a explicação espiritualista de tais fenômenos, que podem
ter muitas causas diferentes. A mediunidade, mesmo quando os fenômenos
produzidos são genuínos, permanece uma forma de doença mental. Algumas
“obsessões espirituais” são simplesmente casos de personalidade múltipla. Além
disso, até médiuns verdadeiros podem recorrer à fraude, especialmente os
“profissionais”. Dado que seus poderes não estão sob seu próprio controle,
precisam de tempos em tempos suplementá-los por outros meios, já que “o
espetáculo não pode parar”. Os médiuns às vezes também são mentirosos
patológicos.
A tentativa de cientistas de investigar empiricamente
os fenômenos psíquicos é viciada desde o início, uma vez que muitos
investigadores ignoram as dinâmicas psicológicas que operam em personalidades
instáveis, e praticamente nenhum deles compreende os princípios metafísicos,
especificamente a distinção ontológica entre o plano psíquico e o espiritual.
Um resultado disso é que médiuns altamente psíquicos e sugestionáveis podem
canalizar “espíritos” que, para deleite do pesquisador, confirmam
estrondosamente todas as suas teorias preferidas — teorias que, naturalmente, o
médium está apenas extraindo diretamente da mente do próprio investigador.
Competência em um ramo da ciência física não garante de modo algum a
objetividade de um pesquisador diante de coisas como transtornos de
personalidade e fenômenos psíquicos (ou, acrescentaria eu, ilusionismo de
palco).
Os espiritualistas, como os ocultistas,
tendem a uma ideologia humanista e anticatólica, algo que continua verdadeiro
até hoje, ao menos quanto ao anticatolicismo. Tanto Jane Roberts, do material Seth,
quanto Helen Schucman, canalizadora de A
Course in Miracles, eram ex-católicas ressentidas com a Igreja; o mesmo
provavelmente pode ser dito de Carlos Castaneda. E The Celestine Prophecy, de James Redfield, é um ataque
direto ao catolicismo tradicional. Guénon cita uma passagem do espiritualista
francês Charles Fauvety, em que este declara que a moralidade será um dia um
ramo da ciência, não da religião, que uma fé mística na Ciência com “c”
maiúsculo derrubará a autoridade de todos os sacerdócios. (Sou lembrado aqui do
fato, interessante, de que foi o congressista e espiritualista Robert Dale Owen
quem apresentou pela primeira vez o projeto de lei que deu origem ao
Smithsonian Institution, o templo americano do cientificismo, onde os devotos
do deus americano da Técnica podem venerar diariamente o “Spirit” of St. Louis
e outros ídolos.)
Guénon caracteriza filosofias como o
espiritualismo do psicólogo William James, que ele abraçou no fim da vida
(embora o pai de James tenha sido seguidor de Swedenborg), bem como as
tendências espiritualistas do filósofo Henri Bergson, como “satanismo
inconsciente”. James prometeu fazer tudo que estivesse em seu poder para se
comunicar com os vivos após a morte; o autor não se surpreende, portanto, que
uma multidão de médiuns americanos tenha diligentemente recebido “mensagens”
dele — a mais recente delas sendo Jane Roberts, que publicou, em 1978, um livro
intitulado The Afterdeath Journal of an
American Philosopher: The World View of William James.
O que se segue é o comentário do próprio
autor sobre a validade do “material canalizado”:
Como
o vejo, tal material pode ser distribuído em cinco categorias: (1) bobagens
banais; (2) fantasias psicóticas; (3) prognósticos ou percepções clarividentes
que se revelam exatas; (4) filosofias falsas; e (5) filosofias contendo
elementos de verdade. As categorias 1, 2 e 4 podem ser explicadas em termos de
doença mental e/ou obsessão demoníaca, embora nem sempre seja fácil distinguir
ambas, sobretudo porque podem estar presentes ao mesmo tempo em uma mesma alma.
As categorias 3 e 5 são mais difíceis de caracterizar. Uma visão psíquica exata
de uma condição física, passada, presente ou futura (categoria 3), pode ser
simplesmente caso de um talento natural, ainda que relativamente raro; pode ser
sinal de intervenção angélica, sobretudo quando resulta em cura, proteção
contra perigo ou esclarecimento de um dilema moral; pode também, em qualquer
caso particular, ser exemplo de ilusão demoníaca. Quanto à categoria 5,
filosofias “canalizadas” contendo elementos de verdade podem representar
tentativa, por parte de poderes celestes, de ressuscitar certos aspectos da
sabedoria tradicional que as pessoas de uma dada região e período histórico
perderam, mas não há garantia de que seja esse o pode ser o caso em qualquer
instância concreta. As doutrinas de Emmanuel Swedenborg, por exemplo —
cientista físico de muitos talentos que se tornou visionário espiritual —
representam talvez a categoria mais elevada de “filosofia de espíritos”. Seu Divine Love and Wisdom contém elementos que
lembram o aristotelismo esotérico desenvolvido dentro da tradição islâmica. Sua
doutrina dos anjos é em alguns aspectos semelhante à doutrina cristã ortodoxa
de Dionísio Areopagita, e sua imagem do Homem Universal a doutrinas análogas
que podem ser encontradas nos Padres da Igreja, na Cabala, e nos sufis e
teósofos do Islã. Podemos especular que, dado que tais doutrinas não estavam
disponíveis para um luterano sueco do século XVIII, foi necessário
reintroduzi-las por meio de inspiração direta. Por outro lado, isso talvez não
seja exato. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge
and the Sacred, aponta que o luteranismo abraçou uma tradição teosófica,
alquímica e mística, representada por figuras como Sebastian Franck, Paracelso,
V. Weigel, Jacob Boehme, G. Arnold, G. Gichtel, C. F. Oetinger e outros. E os
cientistas físicos antes e durante a época de Swedenborg eram bem mais
propensos a ter preservado interesse por “ciências esotéricas”; até Isaac
Newton escreveu sobre alquimia. Assim, permanece em aberto se Swedenborg
derivou suas doutrinas inteiramente de inspiração direta ou em parte por
transmissão humana (ele certamente poderia ter obtido seu aristotelismo
esotérico da tradição alquímica, por exemplo). Em todo caso, suas doutrinas sobre
a estrutura do mundo espiritual parecem todas transpostas a um nível mais
literalista do que o encontrado em muitas fontes tradicionais, qualidade que,
como Guénon assinala, é comum a muitos ensinamentos “de espírito”. Ele parece
inseguro se esse mundo é um domínio de símbolos vivos e corporificados de
realidades invisíveis, como na doutrina ibn-arabiana do ‘ālam al-mithāl, o “plano imaginal”, ou simplesmente uma
espécie de natureza material superior. E entremeadas às suas doutrinas
inegavelmente elevadas há outras de caráter mais fantástico ou mesmo psicótico,
como quando, em Earths in the Universe,
diz que os marcianos têm rostos metade negros e metade trigueiros, vivem de
frutas e se vestem com fibras feitas de casca de árvore, ou que a atmosfera da
Lua é tão diferente da terrestre que os habitantes falam a partir do estômago
em vez dos pulmões, com um efeito semelhante a arrotar.
No caso de Swedenborg — e o mesmo talvez se
possa dizer até de ensinamentos “canalizados” menos confiáveis, como o material
Seth e A Course in Miracles — é difícil
determinar se a mistura de doutrina sofisticada e material duvidoso pode
simplesmente ser atribuída a uma comunicação imperfeita, ou se representa, em
alguns casos pelo menos, uma tentativa satânica de perverter doutrinas
teológicas, filosóficas e esotéricas profundas ao associá-las com lixo. O que
podemos afirmar com maior segurança é que apenas aqueles que não têm acesso a
fontes confiáveis de alimento serão forçados a tomar suas refeições misturadas
a lixo. Que uma grande quantidade de doutrina profunda pode ser encontrada nos
escritos de Swedenborg é inegável. Mas, agora que as escrituras e os clássicos
das religiões do mundo e os escritos dos maiores sábios da história estão
prontamente disponíveis, já não precisamos tomá-lo, e a outros como ele, como
autoridades unicamente inspiradas, já que podemos julgá-los à luz de seus
“originais” ortodoxos. Como deixa claro Guénon, já não há qualquer razão para
depender de fontes suspeitas, não importa quais grãos de verdade possam conter.
Guénon apresenta em grande detalhe várias
ideias espiritualistas fantásticas sobre a “sobrevivência” da personalidade
humana, permitindo que sua própria absurdidade fale por si mesma. Ele trata
longamente da teoria da reencarnação — lembrando-nos, por exemplo, que as
formas mais antigas de espiritualismo moderno, a inglesa e a americana, a
negavam, e que espiritualistas notáveis como Daniel Dunglas Home se opunham a
ela veementemente — e rastreia a doutrina até o espiritualismo francês,
especialmente o de Allan Kardec, de onde se espalhou para a Teosofia e o
ocultismo. Ele distingue claramente reencarnação, transmigração e metempsicose,
com base no que nega que o hinduísmo jamais tenha ensinado as doutrinas
reencarnacionistas posteriormente cozinhadas pelos espiritualistas. (Para um
tratamento mais completo das ideias de Guénon sobre a impossibilidade da
reencarnação e da viagem no tempo, ver o Capítulo Sete.)
Ele mostra como o espiritualismo, enraizado no
Zeitgeist do século XIX, adotou a teoria
evolutiva, reinterpretou-a em termos “espirituais” (como fizeram os mórmons) e
a identificou com a reencarnação. Ainda se pode ver essa influência no material
Seth de Jane Roberts, onde a entidade “Seth” é às vezes definida como uma
“porção futura” de Jane, assim como o “Seth II”, mais sublime, distante e
etéreo, é uma “porção futura” de Seth — “futura”, aqui, tomando o lugar de “ontologicamente
superior”. Porém, quando o material Seth fez sua estreia, em 1963, a confiança
incontestada no progresso própria do século XIX e da primeira metade do XX já
começara a vacilar, em parte por causa das armas nucleares, em parte também por
um “einsteinismo social” baseado em uma versão popularizada da teoria da
relatividade. Essa erosão do mito do progresso, bem como várias teorias de
espaço-tempo multidimensional, é provavelmente o que levou Seth, ainda em
muitos aspectos um “progressivista macrocósmico”, a falar da evolução biológica
como conceito muito estreito e simplista, e das vidas reencarnacionais como
fundamentalmente simultâneas em vez de sucessivas.
Guénon trata então da relação entre
espiritualismo e satanismo, caracterizando como satanismo inconsciente qualquer
doutrina subversiva à metafísica tradicional. Ele relata uma série de histórias
sugestivas de influência demoníaca em círculos espiritualistas, ou ao menos de
emanações tóxicas provenientes do subconsciente que, segundo ele, não são menos
demoníacas em seus efeitos. Elas incluem escândalos sexuais de cunho sádico,
bem como histórias de relações sexuais com íncubos, como as que frequentemente
aparecem no folclore contemporâneo sobre UFOs. Detalha as tentativas repetidas
de espiritualistas franceses de perverter e deturpar a doutrina católica,
mencionando um panfleto difamatório sobre a Eucaristia que afirmava que “Jesus
não estava inteiramente orgulhoso do papel clerical que desempenhou”, em termos
altamente reminiscentes do material Seth. Menciona grupos como a Mental Science
e a Christian Science que (como A Course in
Miracles) negam a realidade do mal, fortalecendo assim a mão das forças
demoníacas. Prossegue falando do espiritualismo como movimento quase político
com grandes recursos de propaganda, caracterizando-o como grave perigo para a
segurança pública.
Ele admite a validade, em certos casos, da
clarividência e da cura psíquica, ainda que tais fenômenos permaneçam altamente
ambíguos. Mas esses poderes psíquicos de modo algum provam que espiritualistas
possam manter comércio contínuo com as almas dos mortos, mesmo se é assim que
os próprios praticantes explicam suas habilidades. Os fenômenos, diz Guénon,
jamais podem provar a verdade ou falsidade de uma doutrina. Por fim, fala dos
perigos do espiritualismo para os próprios praticantes, relatando muitos casos
de colapso mental, emocional e físico, epilepsia etc.
The
Spiritist Fallacy é também valioso pela luz histórica que lança sobre a
crença em “alienígenas” e UFOs. Muitos espiritualistas, segundo Guénon,
acreditam que espíritos desencarnados ocupam o espaço. Ele cita um certo Ernest
Bosc, que os chama de “nossos amigos no Espaço”, em resposta a um artigo
publicado em 1913 na revista espiritualista Fraternist.
Pode ser significativo que, cinquenta e cinco anos depois, os hippies chamassem
extraterrestres de “irmãos do espaço”, e que o movimento Nova Era desde os anos
70 praticamente tenha apagado a distinção entre alienígenas espaciais e
espíritos desencarnados.
Guénon menciona, como exemplo das pretensões
infladas dos espiritualistas americanos, um grupo que se chamava “Ancient Order
of Melchizedek”. Fala também de uma “Esoteric Fraternity” em Boston, liderada
pelo cego Hiram Butler. Curiosamente, essa mesma Ordem de Melquisedeque, bem
como Hiram Butler — que também, ao que parece, fundou um grupo do mesmo nome na
Califórnia, em 1889, numa fazenda comunitária na encosta da Sierra — reaparecem
em Messengers of Deception (1979), do
pesquisador de UFOs Jacques Vallée. Vallée investigou vários grupos, tanto na
França quanto nos Estados Unidos, que se denominavam Ordem de Melquisedeque, e
descreveu a figura de Melquisedeque, o mestre de Abraão no livro do Gênesis,
que não tinha pai nem mãe, como “um símbolo e um ponto de reunião para contatados
de discos voadores” (ver Capítulo Sete). Assim, parece possível que a crença
generalizada em UFOs, se não a proliferação do próprio fenômeno, esteja entre
os frutos sociais e psicológicos do movimento espiritualista do final do século
XIX e início do XX, que é, de tantas maneiras, o ancestral direto do movimento
Nova Era de hoje.
Em The
Spiritist Fallacy, Guénon diz o seguinte:
O que vemos… no espiritualismo e em outros
movimentos semelhantes são as influências que incontestavelmente vêm do que alguns
chamaram de “Reino do Anticristo”. Essa designação pode ser tomada
simbolicamente, mas isso nada muda quanto à realidade e não torna essas
influências menos malignas. Decerto aqueles que participam de tais movimentos,
e mesmo os que acreditam dirigi-los, podem nada saber disso. É isso que torna
tudo isso tão perigoso, pois muitos deles certamente fugiriam de horror se
reconhecessem que são servos das “potências das trevas”. Mas sua cegueira é
muitas vezes incurável, e sua boa-fé até contribui para que atraiam outras
vítimas. Não nos permite isso dizer que o talento supremo do diabo, qualquer
que seja a forma como o concebamos, é nos levar a negar sua existência?
O que é a Nova Era?
As falsificações pseudotradicionais, às
quais pertencem todas as desnaturações das ideias de tradição… tomam sua forma
mais perigosa na “pseudoiniciação”, primeiro porque nela se traduzem em ação
efetiva em vez de permanecer na forma de concepções mais ou menos vagas, e em
segundo lugar porque atacam a tradição pelo interior, naquilo que é seu próprio
espírito, a saber, o domínio esotérico e iniciático.
RENÉ GUÉNON, The Reign of Quantity and the Signs of the
Times
O erro central da Nova Era é a crença de que
a Verdade espiritual possa ser nova. Certamente a informação bruta pode ser
nova. O conhecimento do mundo material muda necessariamente o tempo todo, mas a
Verdade em si não pode mudar. Ela nada tem a ver com o mundo material, regido
por acontecimentos, nem com o mundo psíquico, regido por crenças. Ela é a Rocha
dos Séculos, o Sempre Assim.
Se você acredita que o mundo como um todo
possa evoluir ou progredir espiritualmente, precisa acreditar que a Verdade
possa ser nova. Toda a metafísica tradicional, porém, nega isso. O Sempre Assim
é revelado num único relâmpago; esta é a Palavra, o Logos, o Princípio eterno.
Quaisquer reflexos desse Princípio que tenham entrado em matéria, energia,
espaço e tempo — e, ao fazê-lo, os criado — já começaram a morrer. “Toda
matéria está sujeita à entropia”, diz a Segunda Lei da Termodinâmica. “Este
mundo inteiro está em chamas”, disse o Buda. “Tudo perece”, diz o Alcorão
Sagrado, “exceto Sua Face”.
As doutrinas da Nova Era são, em certo
nível, uma tentativa de conectar uma metafísica tradicional mal compreendida
com ideias progressistas e evolucionistas que lhes são totalmente
incompatíveis. Por esse motivo, não podem funcionar como um Caminho espiritual
completo. Toda a sinceridade, auto-sacrifício, sensibilidade psíquica e ambição
espiritual do mundo não podem transformar a falsidade, ou a meia-verdade, no
Sempre Assim.
Os proponentes das ideias Nova Era pensaram
estar descobrindo, ou reinventando, as Verdades dos Séculos. Estavam apenas
distorcendo-as. A Verdade sempre foi conhecida pelo gênero humano, no núcleo
consciente da raça se não na mente de cada indivíduo, porque a Forma Humana é o
espelho dessa Verdade neste mundo. E desde que a unidade primeira da humanidade
envelheceu, os canais mais profundos dessa Verdade têm sido as grandes
religiões reveladas por Deus. No nível dos primeiros princípios, que cada
religião guarda em sua linguagem única e providencial, nada precisa ser
inventado, nem reconstruído, nem aperfeiçoado. E nada pode sê-lo. Certamente as
verdades dos séculos devem ser expressas de modo diferente em tempos e lugares
diferentes, mas tais mudanças de expressão não passam de traduções. Não são, e
não podem ser, revisões.
I. Uma breve história da “revolução
espiritual” e do movimento Nova Era
Aqueles de nós que se lembram da “revolução
espiritual” dos anos 60 e do movimento Nova Era que tomou o seu lugar, em algum
momento nos anos 70, depois que aquela revolução morreu, terão ou testemunhado
passivamente ou participado ativamente de um surto de idealismo. Psicodélicos,
meditação, religiões orientais e conhecimento psíquico ou oculto haviam
transformado tão profundamente aqueles que foram atraídos por eles — para o bem
e para o mal, como veio a provar — que tudo o que precisávamos fazer,
pensávamos, era difundi-los mais. Assim como o início e meados do século XX
pediram educação e cultura para as massas, nós pedíamos iluminação em massa. O
que parecia bom para nós no mundo interior de nossas almas, acreditávamos,
tinha de ser bom para a sociedade como um todo. O legado do antigo reavivalismo
americano de repente encontrou as drogas psicodélicas, religiões exóticas,
ideias do século XX sobre evolução e progresso, e o choque da guerra do Vietnã
para produzir uma atitude de “tudo ou nada”: “dê-me a Iluminação ou dê-me a
Morte; Apocalipse Now”.
À medida que a mania dos anos 60 se atenuou
na introversão dos anos 70, o espírito do reavivalismo populista americano foi
substituído pelo igualmente americano espírito do charlatanismo religioso,
psicológico e psíquico. A estranha mistura sessentista de misticismo
tradicional e religião oriental com magia, ocultismo, mediunidade, poderes
psíquicos, política de esquerda e os primeiros germes de um cientificismo
mágico sofreu uma virada; o espírito empreendedor da pequena burguesia tinha
entrado na arena das espiritualidades “alternativas”. E com essa mudança de
ênfase, aquilo que passou a ser chamado de Nova Era substituiu (em parte) o
ethos “hippie”.
Inúmeras novas abordagens à espiritualidade,
à psicoterapia e ao desenvolvimento psíquico tomaram lugar ao lado dos
sobreviventes de um mundo mais antigo de espiritualismo e Teosofia,
Rosacrucianismo e ocultismo literário, que assim ganharam uma sobrevida.
A Nova Era ainda prestava homenagem ao
misticismo, à autotranscendência e à ideia oriental de iluminação ou
libertação. No entanto, o verdadeiro centro havia se deslocado para a tentativa
de satisfazer os velhos e comprovados desejos de segurança, prazer e poder por
meios sutis ou mágicos — desenvolvimento inevitável, uma vez que o ethos dos
anos 60 só conseguiu popularizar o misticismo em nível de massa ao associá-lo,
por meio das drogas psicodélicas, à autoindulgência desenfreada. Seja como
neopaganismo, como impulso de desenvolver poderes psíquicos segundo o modelo
Nova Era, como atração pelo xamanismo ou como atração infinitamente mais
sombria pelas práticas satânicas, a magia havia efetivamente substituído a
iluminação como paradigma dominante do mundo das espiritualidades alternativas
no início da década de 1980.
Infelizmente, tanto na mente do público
quanto, em certa medida, na própria realidade, as práticas psíquicas e mágicas,
por um lado, e o misticismo e a metafísica tradicionais, por outro, foram
jogadas no mesmo saco. Chegou a hora de separá-las. Até agora a Nova Era tem
sido criticada principalmente por materialistas — céticos desmascaradores — e
por cristãos conservadores, que dão a impressão (para o desinformado) de agir
simplesmente por interesse próprio ameaçado, como um candidato que joga lama no
adversário. A crítica presente está entre as raríssimas que se baseiam não em
exclusivismo religioso militante, nem na defesa modernista da “realidade
comum”, mas na religião comparada e na metafísica tradicional.
A “Nova Era” não poderia existir como
movimento sem antecipar uma transformação espiritual e cultural de massa num
futuro (perpetuamente) imediato; tal antecipação, porém, já existe há bastante
tempo. Então, quando começou a Nova Era, enquanto movimento? O gurdjieffiano
A.R. Orage editou antes da Primeira Guerra Mundial uma revista muito influente
chamada The New Age; Swedenborg falou
de uma nova era nascente, e ideias semelhantes remontam ao menos a Joaquim de
Fiore, na cristandade medieval, e incluem grupos como os Illuminati, que
floresceram à época da Revolução Francesa, bem como os maçons e rosacrucianos.
Há boas razões, entretanto, para rastrear suas raízes principais até o
Renascimento, quando o renascimento dos estudos clássicos gerou uma massa de
especulação “esotérica”. (Certa vez ouvi Peter Caddy [de Findhorn] afirmar,
numa palestra, que a Nova Era começou com o filósofo inglês do fim do
Renascimento, Francis Bacon.) Embora parte dessa especulação fosse
tradicionalmente válida e a maior parte ao menos nominalmente cristã, ela não
pôde ser inteiramente contida dentro da ortodoxia católica. Isso foi sem
dúvida, em parte, uma compensação para a solidificação da mente cristã sob o
escolasticismo, e para a traição completa da metafísica cristã pelo nominalismo
escolástico. Os nominalistas acreditavam que todas as distinções entre as
coisas são apenas linguísticas, e negavam que algo acima da experiência
sensorial pudesse ser conhecido pela mente, fazendo do nominalismo o verdadeiro
primeiro ancestral tanto do naturalismo modernista quanto do relativismo
pós-moderno.
Os Estados Unidos sempre tiveram um setor
Nova Era. Muitos dos pais fundadores eram maçons, razão pela qual temos uma
pirâmide encimada por um olho radiante no verso das cédulas de dólar. Os
transcendentalistas da Nova Inglaterra e seus afins foram, em muitos aspectos,
os ancestrais diretos tanto das comunas hippies dos anos 60 quanto da Nova Era
de hoje. E os Shakers, produto puramente americano embora fundados por uma
inglesa, começaram como espécie de ordem monástica leiga dentro do
protestantismo, tornaram-se pioneiros em “tecnologia apropriada”, passaram a
canalizar entidades espirituais e acabaram advogando um Governo Mundial único
na época de Teddy Roosevelt.
Um estudo completo sequer das raízes
americanas do movimento Nova Era ocuparia um livro inteiro; por mim, só posso
falar com alguma autoridade do período que vai da “revolução espiritual” dos
anos 60 até cerca de 1988. E ainda que eu estivesse, em muitos sentidos, no
olho do furacão aqui no condado de Marin, Califórnia, o leitor deve entender
que qualquer número de outras perspectivas sobre esse período, e outras listas
de leitura, podem ser tão precisas quanto, se não mais.
Uma boa visão histórica do paradigma
psíquico em que a Nova Era se baseia em larga medida é The Occult, de Colin Wilson (Vintage Books, 1973). Escrito
em estilo jornalístico ágil, cobre uma enorme extensão de terreno. Embora
inclua material de todos os períodos históricos, sua história básica abrange o
ocultismo do século XVIII até Blavatsky e Gurdjieff (e ele certamente não se
furta a relatar escândalos associados a essas duas figuras, já que rendem “boa
matéria”), mas também traz algumas de suas linhas de investigação até as
décadas de 1950 e 60, tocando, entre outras coisas, o fenômeno dos UFOs. E é
valioso por mostrar muitas das conexões entre o ocultismo e tanto o xamanismo
primitivo quanto a ciência moderna.
Outro livro importante foi The Morning of the Magicians (Avon Books,
1968; título inglês anterior The Dawn of
Magic), de Louis Pauwels e Jacques Bergier, que trata longamente do
ocultismo entre os nazistas (que os autores, é claro, deploram, mas também
parecem invejar) e anuncia a vinda da futura Tecno-Magocracia mundial. Bergier
é um guénoniano renegado que se tornou adepto do futurismo tecnocrático. Outro
livro importante sobre a interface entre tecnologia e poderes psíquicos foi Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain,
de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, publicado nos anos 70; os “visionários à
distância” (remote viewers) que vieram
a público em 1997, aparentemente participantes de um programa patrocinado pelo
governo americano para treinar videntes para espionagem, foram sem dúvida parte
da “corrida armamentista psíquica” anunciada nesse livro.
Uma das principais diferenças entre o
ocultismo pós-guerra e o pré-guerra é o fenômeno UFO, prevalente desde o fim
dos anos 40. O mito UFO fez parte do ethos da Era Psicodélica — muitos hippies
falavam da “Nave-Mãe” que se supunha estar pairando sobre a Terra — mas de modo
algum era dominante. A experiência psicodélica foi o paradigma principal de,
digamos, 1965 até talvez 1972 ou 74; os principais defensores da
espiritualidade psicodélica foram Ralph Metzner, Timothy Leary, Richard Alpert
(Ram Dass), R. E. L. Masters & Jean Houston (The Varieties of the Psychedelic Experience) e John Lilly (The Center of the Cyclone, que apresenta
uma abordagem psicodélica a “guias espirituais”). Leary foi o homem de relações
públicas do movimento, e um verdadeiro excêntrico; dois livros representativos
são The Psychedelic Experience, em que
aplica o paradigma do Livro Tibetano dos
Mortos à experiência com LSD, e The
Politics of Ecstasy.
A figura mais genuína entre todos foi — e é
— Ram Dass. Ele pode ser chamado o mais recente, senão o último, na linhagem
dos perenialistas semi- ou não-tradicionais, que passa por Aldous Huxley e Alan
Watts. Introduziu grande quantidade de material tradicional das religiões do
mundo no universo hippie; sem ele, talvez eu jamais tivesse encontrado Schuon e
a Escola Tradicionalista. Seus livros incluem Be Here Now, Grist for
the Mill, The Only Dance There Is
e, em época posterior, livros sobre serviço social como karma-yoga, como How
Can I Help? Seus livros “de consciência” misturam metafísica tradicional,
experiência psíquica e psicodélica e hinduísmo mais ou menos tradicional
(hinduísmo para o Ocidente, isto é, que ignora o requisito tradicional de
nascimento em uma das varnas, as
castas). Foi em grande parte através dele que a doutrina tradicional de que a
busca de poderes psíquicos bloqueia o desenvolvimento espiritual penetrou no
mundo hippie e se tornou, ao menos por breve tempo, um clichê. Ele também tem a
disposição de admitir que os gurus indianos que vieram ao Ocidente em sua
maioria não representavam o que havia de melhor no hinduísmo. E, se há algo que
separa Ram Dass da Nova Era como tal, é o fato de que ele não é evolucionista,
espiritual ou de qualquer outro tipo.
À medida que o ethos psicodélico começou a
declinar em meados dos anos 70, o paradigma Nova Era assumiu, baseado na
canalização de “entidades”, no desenvolvimento de poderes psíquicos segundo o
modelo do “potencial humano” (emanando em parte do Esalen Institute e incluindo
o movimento da Psicologia Transpessoal, com figuras como Stanislas Grof, que
também tem um histórico em pesquisa psicodélica), na crença em UFOs e na ideia
de que a evolução da Terra está prestes a dar um “salto quântico”,
conduzindo-nos através de uma mudança de paradigma que devemos ajudar por meio
de um alinhamento coletivo de consciências.
A
obra de Ram Dass e Timothy Leary estende-se até a primeira era Nova Era
pós-anos 60. Ram Dass envolveu-se com canalização ao patrocinar os livros Emmanuel [de Pat Rodegast], e Leary,
acompanhando os tempos, começou a captar o paradigma tecnocrático/UFO. A
“canalização” está no centro da Nova Era, mas, antes de tratá-la, preciso
mencionar outra figura seminal no movimento psicodélico, Carlos Castaneda, que
quase sozinho reconectou a experiência psicodélica com o paradigma do xamanismo
— ao menos no plano literário; inúmeros hippies se espalhavam pelo mundo em
busca de novos psicodélicos, procurando homens-medicina no sudoeste americano e
nas selvas da África e da América Latina, e trazendo à nossa atenção agentes
como sementes de glória-da-manhã, o cacto San Pedro, cogumelos mágicos, yagé ou
ayahuasca (todos da América Latina, sendo que a descoberta do yagé pela
contracultura norte-americana havia sido pioneiramente realizada pelos
escritores da Geração Beat William Burroughs e Allen Ginsberg em suas viagens à
Amazônia), e ibogaina (da África). O peiote, por meio da Native American Church
e de The Doors of Perception, de Aldous
Huxley, provavelmente era conhecido um pouco antes, assim como o óxido nitroso
via The Varieties of the Religious Experience,
de William James; o poeta da Geração Beat Michael McClure, entre outros,
escreveu sobre suas experiências com peiote. Mas foi Castaneda quem reuniu
grande parte desse interesse e o conectou ao xamanismo e especialmente à
feitiçaria. Seus livros são relatos pseudo-documentais bem escritos de suas
interações com o feiticeiro yaqui Dom Juan Matus, seus colegas e aprendizes, no
México. Entre eles estão The Teachings of Don Juan; A Separate Reality; Journey to Ixtlan; Tales
of Power; The Second Ring of Power;
The Eagle’s Gift; The Fire from Within; The
Power of Silence; The Art of Dreaming;
Magical Passes; e The Wheel of Time.
A outra grande influência nativo-americana
sobre o movimento hippie foi o belo e profundamente espiritual Black Elk Speaks, de John G. Neihardt, mas a
influência de Castaneda foi maior e não apenas desviou o interesse hippie pelos
nativo-americanos da piedade religiosa em direção à magia, como também criou um
“mercado”, entre brancos, para todo tipo de homem- ou mulher-medicina indígena americana,
do genuíno ao sinistro passando pelo completo charlatão — produzindo, por
exemplo, derivados caucasianos superficiais como Lynn Andrews.
Uma das divergências mais nítidas no mundo das
espiritualidades “alternativas” é aquela entre a New Age e o Neopaganismo. Os
neopagãos que derivaram da era hippie foram conduzidos pela experiência
psicodélica e pelo espírito da época na direção da Wicca gardneriana e de
outras formas de Wicca, ou do romantismo céltico, ou de várias formas de culto
à Deusa (especialmente aquele promovido por Robert Graves), ou ainda em direção
a influências — ao menos literárias — emanadas da Ordem da Aurora Dourada (Order of the Golden Dawn). Eu mesmo fui
profundamente tocado pelos poderosos ecos do Renascimento Celta que se enredaram
como um fio mágico pela revolução espiritual dos anos 60. Eles prometiam um
“reencantamento do mundo” diante de nosso deserto tecnológico, uma redescoberta
coletiva do caráter sagrado da natureza. E pareciam ter o poder de lançar um
brilho mágico sobre o reino do amor heterossexual, lembrando-nos de sua
profundidade trans-pessoal e nobreza. Infelizmente, porém, o paradigma mágico
sobre o qual esse renascimento neopagão se baseava tinha afinidades secretas
com aquela outra forma de magia, a tecnologia humana; esta foi uma das mais
profundas e dolorosas ironias da luta desesperada da minha geração para
recuperar o sagrado. Não por acaso “Fantasia (neopagã) e Ficção Científica”
constitui um único gênero literário.
Numa extremidade do espectro, encontramos neopagãos
na companhia de ocultistas literários bem-educados, como muitos dos que
publicavam na revista Gnosis, por
exemplo, mas eles também incluem, em suas fileiras, consumidores de drogas
psicodélicas que “brincam” com magia, bem como praticantes “sérios” da arte, na
outra extremidade. O nome do mago negro Aleister Crowley é bem conhecido nesse
meio, mesmo quando não é respeitado.
Neopaganismo, xamanismo pop e culto à Deusa
tendem a formar uma única subcultura, e todos os três geralmente compartilham
um interesse de fundo em mitologia e mitopoesia, muitas vezes mediado pelas
teorias psicológicas de Carl Jung. O aspecto mais “mainstream” desse ethos é,
ou era, representado por Joseph Campbell; outro afluente foi a comunidade
experimental de Findhorn, na Escócia, apresentada nos livros de Peter e Eileen
Caddy (The Magic of Findhorn) e outros,
onde a interação humana com espíritos elementais aparentemente produziu
manifestações aparentemente impossíveis de fertilidade vegetal. Para minha
sensibilidade, as experiências de Findhorn transmitem uma sensação feérica
semelhante à que cerca outros “magos da horticultura”, como George Washington
Carver e Luther Burbank (cuja obra ainda emana uma aura perceptível em sua casa
em Santa Rosa), senão Rudolf Steiner. Na década de 1970, o ocultismo da
horticultura, que inclui tanto magia quanto tecnologia “de fronteira”, foi
catalogado num livro intitulado The Secret
Life of Plants (A Vida Secreta das
Plantas), de Peter Tompkins. A magia horticultural como um todo deve muito
ao movimento da Naturphilosophie alemã,
no qual Goethe — influência seminal tanto sobre Jung quanto sobre Steiner — foi
figura central.
Por meio de figuras como o ex-padre católico
Matthew Fox e sua colega, a bruxa Starhawk, o Neopaganismo (e isso vale em dobro
para o junguianismo) fez vastas incursões no cristianismo norte-americano,
particularmente por meio de seminários liberais como o Union Theological
Seminary e o GTU. Em contraste com os neopagãos, os praticantes da New Age
tendem a ser mais fascinados por tecnologia avançada, mais voltados ao
“canalização” (channeling) e, em geral,
menos literários, embora muitas vezes mais bem-sucedidos profissionalmente ou
mais “yuppies” que os neopagãos. Ainda assim, existe um grande cruzamento entre
os dois grupos. José Argüelles, por exemplo, que criou, através de seu livro The Mayan Factor, um dos primeiros eventos
religiosos populares internacionais, o Harmonic Convergence, em 16–17 de agosto
de 1987 (apresentado como data-chave para a mudança de paradigma da Nova Era,
supostamente baseada no calendário maia), representa (ou representou) uma ponte
entre essas duas tendências.
Quem quer que acompanhe a história da
canalização encontrará boa parte da história da New Age desde os anos 60. O
espiritualismo e a canalização New Age concentram-se na recepção de novas
filosofias, que muitas vezes não passam de versões populares de ciência mal
compreendida, particularmente da física einsteiniana e pós-einsteiniana e da
genética moderna, na aquisição de poderes psíquicos, incluindo cura, e na
tentativa de rasgar o véu do futuro. Allan Kardec e Stainton Moses, por exemplo
— como Swedenborg antes deles — canalizaram filosofias inteiras do Mundo
Espiritual no início do século XX, e Madame Blavatsky certamente foi
profundamente influenciada pelo lado “filosófico”, assim como pelo lado mágico,
do espiritualismo. O espiritualismo anterior talvez se concentrasse mais do que
a canalização atual na tentativa de provar que a personalidade humana sobrevive
à morte e em estabelecer contato com entes queridos falecidos em favor dos
vivos, em grande parte devido ao efeito traumático da Primeira Guerra Mundial;
mas tais preocupações certamente não desapareceram.
A figura-ponte mais importante entre essas
duas ondas de espiritualismo provavelmente é o médico-médium em transe,
clarividente histórico e prognosticador Edgar Cayce (1877–1945), cuja
organização, a Association for Research and
Enlightenment, ainda hoje é bastante ativa em Virginia Beach, Virgínia.
Seu histórico como curador é assombroso, mas seu outro trabalho — incluindo uma
série de tentativas fracassadas de encontrar petróleo ou tesouros enterrados
por meios psíquicos — não esteve à altura. Seu ministério limitava-se à
clarividência médica, dom que recebeu através de uma visão aos treze anos de
idade, até cruzar o caminho do teosofista Arthur Lammers; depois disso, suas
“leituras” começaram a tratar de assuntos ocultos como astrologia, Atlântida,
reencarnação etc., aparentemente sob a influência das perguntas que Lammers lhe
fazia em estado de transe. Como cristão devoto, Cayce ficou perturbado ao
perceber que vinha canalizando ideias que pareciam contradizer a Bíblia, mas
acabou por aceitá-las. (Lembra-se aqui a crença de Guénon de que magos e
ocultistas costumam influenciar deliberadamente médiuns por sugestão,
telepática ou não, para fazer parecer que suas próprias doutrinas também são
ensinadas pelos “espíritos”.) Uma biografia autorizada de Cayce, There Is a River, de Thomas Sugrue, foi
publicada em 1973.
Os dois conjuntos de material canalizado mais
influentes por trás de grande parte da mitologia New Age são o material “Seth”,
canalizado por Jane Roberts (The Seth
Material; Seth Speaks; The Nature of Personal Reality e outros), e A Course in Miracles (Um Curso em Milagres), em que o orador é supostamente Jesus.
Outro livro central é Opening to Channel,
de Roman e Packer, escrito sobre a suposição de que todos podem — e devem —
canalizar entidades psíquicas. Desde então, o número de canalizadores e de
entidades canalizadas tornou-se tão vasto que quase impossível acompanhá-lo. Há
a entidade Ramtha, canalizada por J. Z. Knight; e, desde os anos 70, diversas
novas entidades surgiram, como Michael ou Hilarion, que podem ser canalizadas
por mais de um médium. A origem desse desenvolvimento pode ser o desejo de
certos escritores ou líderes de workshops de pegar carona no sucesso de outros
mais conhecidos, mas o resultado foi algo como “fã-clubes psíquicos” em torno
deste ou daquele espírito — possivelmente seitas religiosas em estado embrionário.
Um dos desenvolvimentos mais recentes e
perturbadores na canalização New Age é a “canalização” de alienígenas, ou
melhor, a quase completa confusão, na mente do público, entre entidades
psíquicas e astronautas alienígenas tecnologicamente avançados. “Alienígenas”
podem atravessar paredes, aparecer e desaparecer à vontade, estimular
experiências fora do corpo e até manter relações sexuais conosco em sonhos — e
ainda assim são vistos como seres de outros planetas que possuem tecnologias
suficientemente avançadas para lhes permitir fazer essas coisas, embora essa
identificação rígida de alienígenas com astronautas comece a mudar. É aqui que
os escritos do padre Seraphim Rose sobre OVNIs são de importância central, como
também a previsão de Guénon, em O Reino da
Quantidade, de que o mundo, sob a influência do materialismo, chegaria a
tal nadir de solidificação que a “grande muralha” entre os planos material e
sutil começaria a rachar, permitindo a entrada de forças “infra-psíquicas”, o
que ajuda a explicar por que tantos crentes devem interpretar manifestações
obviamente psíquicas (com alguns efeitos físicos reais) em termos estritamente
materiais. Os grupos contemporâneos seguidores de Barbara Hand Clow, que
canalizam os Pleidianos (alienígenas das Plêiades), podem ser tomados como
representativos desse desenvolvimento.
Talvez o anúncio inicial mais importante das
esperanças e objetivos do movimento New Age tenha sido The Aquarian Conspiracy, de Marilyn Ferguson. Um ataque
influente à New Age, a partir de um ponto de vista cristão evangélico, é The Hidden Dangers of the Rainbow, de
Constance Cumby. Os livros de David Spangler (The Call; Everyday
Miracles; Re-Imagining the World)
e The Global Brain, de Peter Russell,
também foram extremamente influentes.
Outros cinco fios no tecido da New Age
merecem menção. O primeiro é o trabalho com sonhos (dream-work), que constitui uma ponte da psicologia
junguiana e transpessoal para o mundo do oculto, em grande parte por meio do
ensino de várias técnicas de controle dos sonhos e da equiparação entre
experiências fora do corpo (o nome central aqui é Robert Monroe, que escreveu Journeys Out of Body e outros livros, e
fundou diversas escolas para ensinar o homem comum a projetar-se astralmente) e
o sonho lúcido — a experiência de despertar para o fato de que se está sonhando
enquanto ainda se sonha. O sonho lúcido é elemento central na feitiçaria
xamânica de Castaneda. O estudo científico desse fenômeno está associado ao Dr.
Stanley Krippner, do Saybrook Institute, e ao Dr. Stephen LeBerge, em Stanford,
como relatado em seu livro Lucid Dreaming;
ambos conduziram pesquisas bem coordenadas e financiadas sobre sonho lúcido e
controle dos sonhos. O trabalho com sonhos também é fortemente influenciado,
senão em grande parte inspirado, pelo material canalizado de Seth.
O segundo fio é o interesse contemporâneo em
anjos, que produziu vários livros. Ele pode representar, até certo ponto, uma
forma de canalização de espíritos mais aceitável para alguns cristãos, por ser
menos ameaçadora que uma conexão com “entidades psíquicas”; mas também é sinal
de que o senso de transcendência sobre o qual se baseia o monoteísmo está
desvanecendo do psiquismo ocidental, como ocorreu há muito tempo com grande
parte das religiões africanas, deixando uma multiplicidade de “entidades” sutis
para preencher o crescente vazio, as quais começam a parecer mais plausíveis,
para muitas pessoas, do que um Pai-Deus distante. As interações contemporâneas
com anjos incluem tanto intervenções não solicitadas quanto tentativas humanas
deliberadas de comunicação.
Para mim, essa atração por anjos transmite
aquela espécie de sensação leve e aérea que associo à Unity Church, e parece
ligada, de forma vaga, às aparições contemporâneas da Virgem Maria, que vão
desde as que provavelmente são verídicas, passando por várias manifestações
parciais e suspeitas ou “canalizações” dentro de um quadro católico, até
canalizações 100% New Age da “Mother Mary”, nome dado à Virgem por Paul
McCartney, dos Beatles! As manifestações católicas incluem as de Scottsdale,
Arizona, e Emmitsburg, Pensilvânia, ambas mediadas por uma mulher que (se
entendi bem a história) foi “inspirada” por um padre ao retorno deste de
Medjugorje, e então começou a receber mensagens da Virgem, primeiro no Arizona
e depois na Pensilvânia. Muitas paróquias católicas aparentemente têm “clubes
de Medjugorje”, iniciados por pessoas que viajaram para lá, incluindo uma em
San Bruno, ao sul de San Francisco, onde crianças supostamente foram
interpeladas por Maria; isso levou a uma moda altamente duvidosa, embora ainda
possivelmente válida, de mensagens marianas.
O terceiro fio é o estudo das experiências
de quase-morte (near-death experiences)
como forma de tentar compreender a vida após a morte; os nomes principais nesse
campo são Elizabeth Kübler-Ross (On Death
and Dying e outros) e Raymond A. Moody (Life after Life). O livro de Moody e suas continuações, por
ele próprio e por outros, atuaram no sentido de “padronizar” a concepção
popular da experiência pós-morte até o ponto de se tornar um clichê midiático:
o túnel escuro com uma luz ao final, o encontro com parentes falecidos etc. O
padre Seraphim Rose, em The Soul After
Death, faz uma boa crítica dessa visão despreocupada e “não-julgadora” da
vida após a morte.
O quarto fio é, como mencionei acima, o
treinamento gerencial. Um amigo meu — ou melhor, ex-amigo, já que sua vida se
envolveu tanto com a escuridão espiritual que já não posso relacionar-me com
ele — é consultor de treinamento gerencial de classe mundial, tendo trabalhado
com grandes corporações multinacionais, tanto nos EUA quanto na orla do
Pacífico. Por meio dele, fiquei sabendo que, como costumo dizer, “todo
treinador gerencial precisa fundar sua própria religião antes de poder vender
seus serviços”.
As verdades esotéricas dos séculos, bem como
diversas práticas psíquicas, estão sendo digeridas e empacotadas como
“paradigmas de treinamento” para a alta e média gerência das maiores
corporações do mundo, muitas vezes em conexão com artes marciais chinesas e japonesas
— ou ao menos isso acontecia quando invejávamos a economia japonesa e queríamos
imitar o estilo gerencial japonês! Alguns anos atrás houve até um escândalo na
Pacific Telephone quando consultores de treinamento gerencial que empregavam
técnicas de Gurdjieff foram um pouco longe demais e pareciam estar recrutando
adeptos (o que provavelmente faziam). Uma manifestação mais recente dessa
tendência foi a tempestade em copo d’água em torno do trabalho de Jean Houston
com o presidente e a primeira-dama Clinton, quando ela os conduzia em
“visualizações guiadas” para que imaginassem estar conversando com figuras como
Lincoln e FDR (Jean Houston, lembre-se, foi uma das pesquisadoras originais do
LSD). A mídia estava pronta para estourar a manchete “Sessões espíritas na Casa
Branca!” — mas então, sem dúvida, alguns começaram a lembrar que tinham feito
algo muito semelhante no seminário de treinamento da semana anterior, e
perceberam que tais “técnicas intuitivas de solução de problemas”, como as de
Houston, agora são comuns em grandes corporações. Elas são as sucessoras das
técnicas de Dale Carnegie e Norman Vincent Peale. Eis o quão mainstream a New
Age se tornou.
O quinto fio é a mídia mainstream, entre a
qual mencionarei apenas os muitos programas de TV baseados em realidade não
ordinária, como The X-Files, e as
“linhas telefônicas psíquicas”, nas quais, por alguns dólares por minuto, você
pode falar com um “verdadeiro médium” que resolverá todos os seus problemas e
lhe dirá como conduzir a vida. Surgiram reclamações de que essas linhas são
viciantes, algo parecido com jogo compulsivo, com o perigo adicional de
possessão demoníaca. Uma delas foi anunciada na TV por Nichelle Nichols, atriz
que atuou na série e nos filmes originais de Star Trek, cujo irmão, membro da seita ufológica Heaven’s
Gate, morreu no suicídio coletivo do grupo em março de 1997.
A cultura New Age incorpora certos elementos
tradicionais ou semi-tradicionais. Muitos lamas tibetanos, por exemplo
(incluindo o Dalai Lama), divulgam seus ensinamentos em círculos New Age e são
ali respeitados, embora eu tenha ouvido dizer que outros lamas deploram esse
desenvolvimento. Outros budistas tradicionais, como Thich Nhat Hanh, e aqueles
ao menos com formação tradicional, como Jack Kornfield (embora o budismo que
ele prega muitas vezes se pareça mais com psicoterapia de grupo do que com
busca da Iluminação Total Perfeita), também se sentem em casa nesse mundo. Até
recentemente, o sufismo era representado no universo New Age, pelo menos na
Califórnia, sobretudo pelos seguidores de Samuel Lewis (“Sufi Sam”) e de Pir
Vilayat Khan, da ordem Chishti, e por Jellaluddin Loras (filho de Suleiman
Dede), dos mevlevis, que ensina a “gira” mevlevi a americanos. Samuel Lewis,
que cresceu em Fairfax, Califórnia, perto de minha cidade natal, San Rafael, e
faleceu em 1971, embora não tradicional e eclético, era um verdadeiro iniciado
sufi, criador das “danças sufis” que, por muito tempo, passaram por sufismo na
mente da maioria na Califórnia.
Tanto Pir Vilayat Khan quanto Samuel Lewis,
e também Jellaluddin Loras, representam uma tentativa de tornar o sufismo
“universal” separando-o, em maior ou menor grau, do Islã. Embora ordens mais
tradicionais, como os naqshbandis e os helveti-jerrahis, estejam ativas há
décadas, foram os chishtis e mevlevis “hippie-universalistas” que representaram
a principal expressão pública de “sufismo” na região da baía de São Francisco
até alguns anos atrás, quando Ali Kianfar, um iraniano “uwaysi” ou “discípulo
de Khidr”, e sua esposa Nahid Angha começaram a se destacar, organizando
grandes conferências de sufismo no estilo de workshops New Age e manifestando
um “ecumenismo sufi” ao incluir psicólogos, alguns membros de outras tradições
religiosas etc. Mesmo alguns dos velhos sufis hippies, entretanto, vêm se
tornando lentamente mais islâmicos, talvez em reação aos excessos da New Age; o
mesmo distanciamento gradual desse mundo parece ocorrer com certos mestres
hindus.
O hinduísmo semi-tradicional (se é que tal
coisa existe) foi representado na contracultura dos anos 60 e 70, e em parte
ainda o é, por Ram Dass, Swami Satchidananda, Sri Chinmoy, Swami Muktananda, Da
Free John, pelos seguidores de Paramhansa Yogananda e outros, incluindo um
fluxo contínuo de “Santas Mães” radicadas na Índia; o sikhismo, por Yogi
Bhajan, Kirpal Singh, seu filho Sant Darshan Singh, e atualmente por seu
discípulo Sant Thakar Singh; e um cristianismo mais ou menos tradicional pelo
interesse persistente em Thomas Merton, cujo lugar cultural foi, em certo
sentido, herdado pelo monge beneditino Irmão David Steindl-Rast. Contudo, como
essas figuras e seus sucessores são justapostos, na mente dos adeptos da New
Age, à canalização, ao xamanismo, ao neopaganismo e ao culto ecofeminista da
Deusa, quaisquer doutrinas tradicionais que ensinem tendem a se dissolver numa
mentalidade anti-tradicional que as nega em todos os pontos, sem que seus
estudantes — e talvez nem eles próprios — percebam. Jack Kornfield, por
exemplo, fez um estudo da altíssima porcentagem de mestres hindus e budistas que
se envolveram em escapadas sexuais com alunos depois de chegarem ao Ocidente;
mas isso o levou a concluir não que seus problemas se baseiam numa traição ou
diluição de suas respectivas tradições — como o afrouxamento dos votos
monásticos budistas tradicionais, por exemplo —, e sim que as próprias
tradições são deficientes em discernimento psicológico e, portanto, precisam
ser suplementadas por métodos psicológicos ocidentais.
Essa mistura de doutrinas tradicionais com
as ciências sociais ocidentais, e com elementos que poderíamos chamar de “New
Age”, é bem representada pelo Naropa Institute, em Boulder, Colorado, fundado
por Chögyam Trungpa, um tulku
(reencarnação reconhecida de um mestre anterior) e detentor da linhagem
Kargyüpa, que remonta a Naropa, Marpa e Milarepa — um exemplar plenamente
autorizado da tradição e brilhante escritor sobre budismo tibetano, escolhido
como mestre pela elite intelectual de duas gerações da contracultura
norte-americana (Beat e Hippie), quando a festa desenfreada dos anos 60 descia
à profunda depressão espiritual dos anos 70; que ocidentalizou e modernizou a
tradição, rompendo radicalmente com a prática da maioria de seus
correligionários; que afrouxou os votos monásticos tradicionais; e que morreu,
perseguido por escândalos, de alcoolismo agudo em 1987.
Aqui, felizmente, termina minha experiência
com o mundo das “espiritualidades alternativas”. Só quero acrescentar que o
comentarista de rádio de alcance nacional Hank Hanegraaff, do evangélico Christian Research Institute, abriu meus
olhos para o quão profundamente as ideias New Age e as práticas psíquicas já
penetraram o cristianismo protestante, particularmente por meio do movimento
carismático.
Sem metafísica tradicional, a teologia
declina. Sem teologia, religião e espiritualidade passam a ser julgadas apenas
por seu poder de produzir experiência. Quando a experiência é o único critério
de espiritualidade, a intensidade torna-se sua única medida. Quando apenas a
intensidade passa a ser o objetivo, amor e verdade são excluídos — e a
escuridão ocupa o lugar vazio.
II. Os perigos do ocultismo
O que é “o oculto”?
A criação de Deus é hierárquica, e a divisão
mais simples dessa hierarquia é em três níveis: material, psíquico e
espiritual. Cada nível é mais sutil e mais vivo que o nível abaixo de si, e
contém tudo o que está abaixo dele, embora em forma mais elevada.
O plano psíquico é o “ambiente” natural da
psique humana, assim como a terra e o universo material são o ambiente do corpo
humano. Ele não é puramente mau, como acreditam alguns cristãos, mas certamente
é perigoso, pois, se o acessamos quer acidentalmente, quer por iniciativa
própria, perdemos a proteção do plano material antes de necessariamente termos
adquirido a proteção do plano espiritual, e ficamos, portanto, extremamente
vulneráveis não apenas à dispersão de nossa energia psíquica e vital, mas à
obsessão ou possessão pelos poderes do mal.
Não
obstante, o plano psíquico não é exclusivamente demoníaco; caso contrário, não
poderíamos receber orientação divina em sonhos, nem milagres físicos poderiam
ocorrer, já que toda influência vinda do plano espiritual deve atravessar o
plano psíquico antes de chegar à realidade material. Mas, justamente por isso,
é muito difícil discernir se uma manifestação psíquica ou um fenômeno físico
anômalo se origina no plano psíquico ou no plano espiritual. Não obstante, há
uma diferença profunda de nível entre um ato de magia (quer com finalidade de
cura, quer de dano) que emana do plano psíquico e um milagre que se origina no
plano espiritual. Práticas psíquicas, mágicas ou xamânicas são “tecnologias”,
instâncias de intervenção voluntária por parte de seres humanos ou entidades
psíquicas. Milagres são manifestações do Espírito, da verdade eterna e do amor
de Deus, nos níveis psíquico e material. Eles realizam muitas coisas diferentes
ao mesmo tempo, sem esforço, por meio do “desvelamento” de uma pequena parte da
Verdade e do Amor infinitos de Deus.
O plano psíquico é um mundo múltiplo composto
de muitos “pontos de vista” subjetivos. O plano espiritual é a irradiação da
Realidade Divina objetiva; eles não são a mesma coisa, razão pela qual podemos
encontrar pessoas extremamente psíquicas que não são espirituais de modo algum.
No nível material, parecemos ser produto de nosso ambiente material, por meio
da bioquímica, das influências culturais, da história e da evolução. No nível
psíquico, nosso ambiente parece ser produto de nosso estado de consciência, já
que, à medida que “sintonizamos” realidades diferentes, o ambiente muda. No
nível espiritual, sabemos que somos absolutamente dependentes, criados por, e
também de certo modo símbolos, da Realidade Divina de Deus. Somente na medida
em que estamos abertos ao Espírito podemos saber quem realmente somos e o que é
eternamente verdadeiro; somente pela realização do nível espiritual nos
tornamos quem realmente somos. Nossa humanidade foi desenhada por Deus para
essa realização. Se falhamos em atingi-la (dizem os sufis), então ainda não
somos, ou somos apenas virtualmente, seres humanos.
O conhecimento psíquico é apenas mais um tipo
de conhecimento; não há nada de necessariamente demoníaco nele, nem de
necessariamente espiritual. Ainda assim, um pouco de conhecimento é algo
perigoso, e o conhecimento psíquico é sem dúvida muito “pouco” quando comparado
à sabedoria espiritual.
Os poderes psíquicos podem chegar até nós de
cinco maneiras diferentes: (1) pelo nascimento; (2) por acidente, doença ou
outro trauma; (3) como dom inesperado; (4) pela busca direta; e (5) como
subproduto do desenvolvimento espiritual. As duas primeiras, ao menos
inicialmente, são moralmente neutras. Se alguém nasce com capacidades psíquicas
ou as adquire depois de um choque traumático ou lesão, é imprudente e injusto
presumir que tal indivíduo se encontra possuído por demônios, assim como é
injustificado supor que sua sensibilidade psíquica seja sinal de sabedoria
espiritual. Por outro lado, se alguém dotado de capacidades psíquicas permanece
ignorante das realidades espirituais, mas fundamenta sua visão de mundo apenas
em informações psíquicas, essa pessoa está iludida e, portanto, potencialmente
— mas não necessariamente — aberta à influência de demônios enganadores.
No caso de um “dom” de poderes psíquicos, sua
irrupção não solicitada a partir de alguma fonte invisível, é nosso dever
questionar a natureza dessa fonte, consultando alguém ligado a uma
espiritualidade tradicional que seja conhecedor desses assuntos — supondo que
possamos encontrar tal pessoa — e, em todo caso, pela oração. É necessário, em
outras palavras, descobrir se esse dom representa uma tarefa que Deus nos impôs
ou uma maldição sedutora que os poderes das trevas lançaram sobre nós.
Se alguém busca ativamente e obtém poderes
psíquicos, a situação é mais séria, embora este seja um princípio difícil de
compreender para muitas pessoas. Afinal, os poderes psíquicos não seriam
simplesmente parte de nosso “potencial humano”? E não seria natural explorar e
desenvolver nossos talentos dados por Deus? Aprendemos a andar, a falar, a
dirigir, a fazer amor, a ganhar a vida, a nadar, a jogar basquete, a cantar, a
escrever, a adquirir certo grau de insight psicológico sobre nós mesmos e sobre
os outros, até a compreender filosofia e metafísica sem necessariamente nos
tornarmos possuídos por demônios. Por que as capacidades psíquicas deveriam ser
diferentes?
Existe, no entanto, um limite além do qual o
desenvolvimento voluntarioso de nosso potencial humano passa a invadir um
terreno onde nosso direito de fazer o que quisermos com nossos talentos já não
é garantido. Transgredimos esse mesmo limite todos os dias, de uma forma ou de
outra, por meio de nosso “progresso” tecnológico. O que há de errado com a tecnologia?
Simplesmente o fato de que, se a desenvolvemos de forma excessiva ou
desequilibrada, destruiremos a terra e a forma humana. O que há de errado com
os poderes psíquicos? Simplesmente o fato de que, se os desenvolvemos de forma
excessiva ou desequilibrada, destruiremos nossas almas.
Ocultismo é a prática de entrar em contato com
o plano psíquico por iniciativa própria, ou em resposta a um convite vindo
desse plano apenas. Nosso objetivo pode ser “acessar” o Espírito por meio da
psique, mas mais frequentemente será apenas a tentativa de ampliar a área de
nosso próprio ego, de perseguir, em mundos mais sutis, os objetivos básicos do
ego em matéria de segurança, prazer e poder. Isto parece ser — e até certo
ponto realmente é — uma simples extensão de nossa autocompreensão psicológica,
uma espécie de exploração adolescente de nosso potencial psíquico. Mas, a menos
que percebamos que é o Espírito de Deus que está realmente nos convocando a
essa exploração, e que nosso verdadeiro objetivo deve ser entrar em relação
consciente com o Espírito, em conhecimento e amor, e submeter-nos à Sua
orientação, nossa exploração do plano psíquico rapidamente se tornará adoração
de nosso próprio ego e atrairá aqueles poderes do mal cujo objetivo é nos
separar eternamente de nosso Criador. É por isso que buscar poderes psíquicos
com a finalidade de aumentar nossa segurança, prazer e poder, ou mesmo de
“tomar o céu de assalto” — de “alcançar” Deus pela força de nossa própria
vontade — é um caminho profundamente destrutivo.
Se poderes psíquicos aparecem como resultado
de nossa submissão à Vontade de Deus, então eles são expressão dessa Vontade em
nossas vidas; consequentemente, não atribuiremos sua operação a nós mesmos, mas
ao nosso Criador. Mesmo assim, podem ser um “teste” enviado por Deus, para ver
se amamos mais os Seus dons do que a Ele próprio.
Desde os anos 60, como apontei antes, o
paradigma dominante no mundo da espiritualidade “alternativa” deslocou-se do
misticismo para a magia. O motivo mágico sempre esteve presente; ainda assim, a
crença de que a busca por poderes psíquicos pode interferir no desenvolvimento
espiritual fazia parte da sabedoria recebida na época. Mas hoje em dia,
excetuando-se os círculos religiosos conservadores e os Tradicionalistas, é
algo raramente ouvido. Com técnicos esportivos ensinando técnicas psíquicas e
mágicas a seus times, e consultores de treinamento gerencial transmitindo-as a
executivos corporativos, a ideia de usar poderes psíquicos de um tipo ou de
outro para expandir o “potencial humano” tornou-se mainstream, fato refletido
no conteúdo de uma alta porcentagem dos programas de TV contemporâneos, em que
poderes psíquicos e eventos mágicos se tornam elementos corriqueiros mesmo em
enredos baseados ostensivamente na “realidade ordinária e cotidiana”, para não
falar de programas psíquico-ficcional-científicos como The X-Files.
Não podemos simplesmente dizer que qualquer
pessoa envolvida com o plano psíquico está destruindo gravemente sua psique ou
está destinada à condenação. Alguns médiuns naturais, ou mesmo altamente
treinados, praticam conscientemente sua arte a serviço da humanidade e para
maior glória de Deus. Entretanto, toda a tendência do interesse contemporâneo
por realidades psíquicas é profundamente sinistra, pois, quanto mais cresce o
paradigma de “expandir seu potencial humano na busca de segurança, prazer e
poder”, mais ele tende a suplantar o paradigma de “seguir a Vontade de Deus,
mesmo que você tenha que sacrificar segurança, prazer e poder para fazê-lo”.
Assim, a magia substitui a religião, e a visão mágica de mundo é tão
abismalmente inferior às sublimes concepções de Realidade Divina e de destino
humano preservadas pelas grandes religiões mundiais que simplesmente não há
comparação.
Além disso, num mundo de magia, aqueles que
não possuem algum tipo de pretensão a poder psíquico começam a sentir-se
excluídos e vulneráveis. Lembro-me da história contada por um antropólogo que
perguntou a um xamã nativo-americano por que ele se interessara pelo xamanismo.
A resposta foi: “porque eu tinha medo dos xamãs”. Se a maioria das pessoas em
seu ambiente carrega armas ou pertence a gangues, você se sentirá tentado a
fazer o mesmo apenas para se proteger. Com a magia é a mesma coisa.
Mais uma vez, isso não significa negar a
existência de médiuns orientados ao serviço e “magos brancos”, dispostos a
sofrer pessoalmente para servir a Deus e à comunidade. Mas, a menos que
pratiquem suas artes dentro da segurança de uma tradição espiritual viável, com
longa experiência de seus usos e perigos, estarão inevitavelmente expostos
àquelas forças que fazem tudo o que podem para provar que “o caminho do inferno
é pavimentado com boas intenções”.
Isso nos traz novamente à questão do
xamanismo, uma forma religiosa arcaica ainda praticada por centenas de milhões
de pessoas na África, na Ásia, nas ilhas do Pacífico, nas Américas e em outros
lugares, em que religião e magia parecem formar um todo único. Qualquer
tradição capaz de produzir homens realmente santos, como o lakota Black Elk,
não pode ser simplesmente descartada como paganismo ou feitiçaria; contudo, as
práticas que caem sob o termo geral “xamanismo” podem se estender desde a mais
elevada teurgia mística até a mais venenosa bruxaria e o puro charlatanismo.
René Guénon via o xamanismo como detentor de
“uma cosmologia altamente desenvolvida… que poderia sugerir concordâncias com
outras tradições sob muitos aspectos”, incluindo “ritos comparáveis a alguns
que pertencem a tradições da mais alta ordem”. Por outro lado, a ênfase
xamânica em “ciências tradicionais inferiores, como magia e adivinhação”
significa que “é preciso suspeitar de uma degenerescência muito real, que às
vezes pode chegar a uma verdadeira desviação, como facilmente pode acontecer a
tais ciências quando se tornam excessivamente desenvolvidas” (The Reign of Quantity and the Signs of the
Times, pp. 217–218). Michael F. Steltenkamp, em Black Elk, Holy Man of the Oglalla Sioux (University of
Oklahoma Press, 1993), repete algumas das críticas do próprio Black Elk ao
xamanismo, feitas depois de sua conversão ao catolicismo. Ele não rejeitou
inteiramente o xamanismo tradicional, permitindo que um de seus amigos
homens-medicina conduzisse um ritual de cura para ele, com algum sucesso,
quando sofria de paralisia na velhice, mas exigiu que objetos rituais
católicos, como santinhos, fossem substituídos pelos fetiches oglala. E
reconheceu claramente, na humildade cristã, uma virtude superior à arrogância
de muitos xamãs.
Além disso, há um abismo entre a função de
um xamã em um ambiente tribal — onde ele ou ela representa uma grande parte da
“tecnologia de sobrevivência” da tribo, incluindo a capacidade de encontrar e
atrair caça, prover chuva para a agricultura, curar doenças, fazer
psicoterapia, conduzir investigações criminais e realizar inteligência militar
— e o papel desses mesmos poderes na sociedade atual, onde há mais espaço do
que nunca para degeneração e autoengrandecimento. (Como evidência de que povos
mais “primitivos” veem o xamanismo mais ou menos como nós vemos a tecnologia,
Jean Cocteau repete uma história contada por um viajante no Haiti, onde árvores
são aparentemente usadas às vezes como suporte para a telepatia. Quando uma
mulher quer que o marido distante traga algo da cidade, por exemplo, ela fala
com uma árvore que, de algum modo, retransmite a mensagem. Quando perguntaram a
uma mulher por que seu povo falava com árvores, ela respondeu: “Porque somos
pobres. Se fôssemos ricos, teríamos telefone.”)
A ampla difusão de técnicas xamânicas
separadas de seu contexto tradicional, como as que podem ser aprendidas em um
seminário de fim de semana, é claramente destrutiva enquanto tendência geral,
não importando o quão “úteis” essas práticas possam ser numa situação
particular. Quando se pode entrar em qualquer livraria generalista, mesmo no cinturão
bíblico, e encontrar livros que incluem, em seu amontoado de “tecnologias”
psíquicas, receitas de como lançar feitiços e maldições, fica bem claro que as
coisas saíram de controle. Se lamentamos a fácil acessibilidade de armas de
fogo e de informações sobre como fabricar bombas, inclusive nucleares, por que
não adotamos a mesma atitude com relação à magia negra? Talvez porque temamos,
com razão, a erosão de nossas salvaguardas constitucionais à liberdade
religiosa, assim como os opositores do controle de armas temem a destruição de
seu direito constitucional de “manter e portar armas”. Mas pode ser também
devido ao fato de nutrirmos uma espécie de “incredulidade seletiva” quanto aos
poderes do mal.
Lembro-me de um anúncio que vi em um jornal
gratuito local, em que se podia pagar para que alguém lançasse uma maldição
sobre outra pessoa. Telefonei para o jornal e argumentei que, se eles não
acreditavam em maldições, estavam participando de propaganda enganosa, ao passo
que, se acreditavam, estavam conspirando para cometer agressão. Naturalmente,
não me ouviram; e a impressão que tive foi que, confrontados com a
possibilidade de estarem ajudando a causar dano real a pessoas, reprimiram
qualquer remorso negando a si mesmos que a magia negra seja real, e depois
rebateram minha acusação de propaganda enganosa dizendo a si mesmos que, na
verdade, ela é real — tudo isso de forma inconsciente, num piscar de olhos.
Este é precisamente o tipo de ginástica mental que George Orwell analisou em 1984 como “duplipensar” (doublethink) — a capacidade de manter duas
crenças contraditórias ao mesmo tempo sem qualquer ansiedade. Somos crentes
lunáticos e/ou cínicos desmistificadores sempre que isso convém à nossa
necessidade de evitar o confronto com a verdade objetiva.
Como disse C. S. Lewis em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (The Screwtape Letters), p. 32, pela boca
de seu demônio Screwtape:
“Quando os humanos não acreditam em nossa
existência, perdemos todos os agradáveis resultados do terrorismo direto, e não
conseguimos fazer mágicos. Por outro lado, quando acreditam em nós, não podemos
torná-los materialistas e céticos. Ao menos ainda não. Tenho grandes esperanças
de que aprenderemos, no devido tempo, a emocionalizar e mitologizar sua ciência
a tal ponto que aquilo que, na prática, é uma crença em nós (embora não sob
esse nome) se infiltrará… se conseguirmos produzir nossa obra-prima — o Mago
Materialista… então o fim da guerra estará à vista.”
Mas, é claro, o Mago Materialista já está
entre nós há algum tempo; ele é a nota dominante do período histórico presente.
A idolatria da tecnologia avançada, real ou imaginada, é nossa superstição
contemporânea dominante. Basta lembrar que a palavra que hoje usamos para
aquilo que sempre foi chamado “demônios” é “alienígenas”. Alienígenas nos
abduzem, transportam pelo ar, nos examinam, têm relações sexuais conosco,
atravessam paredes para entrar em nossas casas e aparecem em nossos sonhos.
Mais de um milhão de norte-americanos afirmam ter tido essas experiências,
tantos que grupos de apoio e até grandes conferências de “abduzidos” já formam
uma indústria independente. Não conseguimos nos obrigar a chamá-los de
“demônios”, por medo de nos tornarmos “fanáticos religiosos” e assim perdermos
nossa filiação à sociedade materialista-tecnocrática. Mas temos que acreditar
em toda história que ouvimos sobre eles, incluindo a propaganda grosseiramente
orquestrada sobre a recuperação de cadáveres alienígenas em Roswell, Novo
México (relato que permanece pouco convincente para o conhecido pesquisador de
OVNIs Jacques Vallée), e admitir que possuem todos os poderes físicos e
psíquicos comuns ao reino de Satanás; caso contrário, poderíamos passar por
“céticos estreitos de mente”, velhos racionalistas enfadonhos sem nada
interessante a dizer em reuniões sociais. Estamos sob o jugo do duplipensar.
Todos esses desenvolvimentos foram
previstos, em seus contornos principais, se não em detalhe, por René Guénon em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos,
publicado em 1945. Segundo Guénon, ao longo dos últimos séculos, o mundo passou
a ser definido menos pelas qualidades das coisas e mais pela pura quantidade,
de modo que o “sucesso” de uma nação (por exemplo) não é medido pela
profundidade da cultura, pela altura da compreensão espiritual ou pela qualidade
de vida, mas pelo produto interno bruto. A “cultura da informação” é apenas a
encarnação mais recente dessa tendência a quantificar tudo.
Mas o “reino da quantidade”, embora continue
a ganhar poder, em certo sentido atingiu o auge no fim do século XIX e início
do XX, quando o materialismo, como forma de ver o mundo, estava no ápice, na
época em que ainda era possível crer de modo complacente em algo chamado “vida
ordinária”. Como já apontei, tal materialismo resultou, segundo Guénon, em uma
espécie de “solidificação do mundo”. Antigamente, digamos, nos anos 1950,
relatos de ocorrências sobrenaturais, ou a crença de que tais coisas fossem
possíveis, eram frequentemente recebidos com um “Como é possível você acreditar
nisso? Estamos no século XX!”. Hoje, no início do século XXI, o estranho parece
normal, senão inevitável. Em termos dos sons, imagens e crenças produzidos pela
cultura de massa popular, vivemos numa espécie de Halloween permanente.
Como você talvez se recorde, a explicação de
Guénon para isso é a seguinte: à medida que o materialismo solidificou o mundo,
a noção da realidade das coisas espirituais — de um mundo mais alto que o
psíquico, o Reino Divino, o Reino de Deus — tornou-se cada vez mais difícil de
sustentar. É como se uma espécie de neblina psíquica se espalhasse pelo mundo,
apagando a luz das estrelas. Mas já em 1945 (depois da detonação das primeiras
armas nucleares, embora Guénon não mencione isso), essa materialidade pesada e
sólida — a desolação, digamos, do stalinismo ou do capitalismo burguês —
começava a rachar. Tornara-se tão dura que começava a ficar “frágil”, assim
como os átomos dos elementos urânio e plutônio, ainda mais pesados do que o
chumbo, são instáveis e radioativos.
Só que essas rachaduras não se abriam na
direção superior, para receber a descida da graça divina; abriam-se para baixo,
na interface entre este mundo e o reino “infra-psíquico” ou demoníaco. E quem
quer que seja capaz de olhar objetiva e desapaixonadamente para nossa atual
cultura da informação, para as imagens lúgubres, sedutoramente glamorosas e
sinistras predominantes na televisão, nos videogames e na internet, será
forçado a concordar.
Segundo Guénon, o único desfecho possível
dessa evolução é a dissolução do mundo presente. Ele e a maioria dos Tradicionalistas
concordam com cristãos conservadores em que vivemos nos últimos dias, o Tempo
do Fim. Esse “Fim” pode implicar a destruição de toda a vida na Terra — ou não.
Em qualquer caso, não pode ser visto exclusivamente em termos terrenos, já que
o Fim do Mundo é um Apocalipse, uma “revelação” da Realidade Eterna de Deus,
bem como o início do próximo ciclo de existência, o “Novo Céu” e a “Nova
Terra”.
Assim, Guénon e outros Tradicionalistas,
notadamente Martin Lings em seu livro The
Eleventh Hour, são deliberadamente ambíguos nesse ponto, como quando
Guénon diz que o mundo atual se dissolverá, mas isso não significa o fim da
existência terrestre, ou que estamos diante do fim do Tempo, mas não do fim do
Espaço. O significado exato dessas afirmações oraculares deve permanecer
questão para nossa faculdade de intuição espiritual, e as verdades que essa
faculdade descobre jamais poderão ser plenamente traduzidas em termos de
espaço, tempo, matéria e história.
Mas quase todas as religiões mundiais, incluindo
hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo, Islã e certas tradições nativas
americanas, falam do fim do mundo ou do ciclo presente. E o cristianismo e o
islã, em particular, enfatizam que, na véspera desse fim, todos os poderes
psíquicos e tendências psicossociais que queiram negar a realidade de Deus e a
dignidade da humanidade se condensarão naquilo que essas duas tradições chamam
de reinado do Anticristo, que, seja ou não um indivíduo, será certamente o
princípio subjacente à pior desumanidade que o gênero humano consiga conceber
para impor a si mesmo e à Terra.
Os Tradicionalistas tendem a dizer que tal
desenvolvimento não pode ser detido por nenhum tipo de ação social esclarecida;
por outro lado, evocam o mito da batalha final entre o bem e o mal no fim do
ciclo, chamada Armagedom na Bíblia, e que, na doutrina islâmica, é anunciada
pelo Mahdi e concluída pela segunda vinda de Jesus, a quem muçulmanos e
cristãos reconhecem como o Messias, que matará o Anticristo na batalha final. E
o décimo avatar de Vishnu no hinduísmo, o avatara Kalki, também é descrito como
guerreiro empunhando uma espada e montado em um cavalo branco, como o Verbo de
Deus no capítulo 19 do Apocalipse.
Mas Armagedom não pode ser simplesmente algo
como uma guerra termonuclear total, porque é uma batalha em que todos os
inimigos da restauração da Ordem Divina sobre a terra são destruídos. Como tal,
ela é manifestação da batalha que se trava na alma de cada um de nós, refletida
nos “eventos reais” do mundo exterior. Mas, como Jesus disse, “não sabeis nem o
dia nem a hora”; por isso quero, deliberadamente, afastar-me de qualquer
prognóstico histórico e concentrar-me nessa “guerra invisível” dentro da alma
humana.
Como já disse, é dever inato de todo ser
humano realizar a verdade de Deus, da Realidade Absoluta, tanto quanto sua
capacidade permita, e colocar-se sem reservas sob a orientação e direção do
Único. Uma vez reconhecido e abraçado esse dever, porém, todos os poderes do
plano psíquico que negam o Absoluto entram em ação. A guerra contra essas
forças inferiores da alma é chamada, no Islã, de “o maior jihad”, a maior
guerra santa; é um dever humano mais universal, mais formidável, e de cujo
resultado depende muito mais, do que qualquer guerra travada em campos de
batalha materiais.
Segundo uma possível perspectiva, Armagedom
é uma guerra entre o amor e o poder tendo, como prêmio, o conhecimento. Até
Carl Jung (a quem os Tradicionalistas detestam, com boa dose de razão) disse
certa vez que, onde quer que o complexo de poder esteja, o amor se torna
impossível. E, de fato, toda a questão dos perigos do ocultismo se reduz a
isto: o nosso conhecimento espiritual tomará o amor como noiva — ou o poder? O
amor é um grande poder em si mesmo, mas, em qualquer lugar onde o conhecimento
sutil se una ao poder para violar o amor, estamos diante da religião do Anticristo.
Sabedoria,
moralidade e técnica
Nos anos 60, parecia a muitos de minha
geração que a “religião organizada”, por meio da qual entendíamos o judaísmo e
o cristianismo eclesial, se limitava à moralidade — e que a moralidade era
completamente arbitrária. Nada mais era do que um conjunto de “deves” (oughts) — ainda uma palavra malvista em
certos meios — imposto pela “sociedade”, pelo “establishment” ou pela
“hierarquia eclesiástica”, sem motivo válido. Por outro lado, havia algo como
insight penetrante e sabedoria espiritual; sentíamos isso “instintivamente”. A
religião parecia ter alguma relação com essa sabedoria desconhecida —
certamente a Bíblia estava cheia de alusões místicas, se ao menos alguém fosse
capaz de entendê-las —, mas nossos padres e pastores não pareciam possuir a
chave. Tudo o que nos diziam, ou tudo o que ouvíamos, era: “seja bom porque
Deus mandou”. E, quando perguntávamos “por que ser bom, o que isso significa, o
que está por trás de tudo isso?”, tudo o que recebíamos deles era um corte
seco.
A
impressão nítida era que realmente havia algo a ser conhecido ali, mas nossos
mestres já não o conheciam. Por isso fomos buscá-lo em outro lugar: nas
religiões orientais, na espiritualidade indígena americana, no espiritualismo e
no ocultismo ocidentais. Como escreveu o poeta Allen Ginsberg, referindo-se à
experiência semelhante da Geração Beat, que era velha o suficiente para ser a
de nossos pais, em seu famoso poema Howl,
éramos aqueles “que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia e bop
cabala porque o cosmo instintivamente vibrava a seus pés no Kansas”. Nesse
processo descobrimos que realmente existia algo como Sabedoria — embora a forma
exata e as implicações dela continuassem a escapar-nos — e que não era apenas
algo em que se pudesse crer, mas algo que podia ser realizado. Você podia de
fato experimentá-la; ela era real. Não apenas que, mas sempre existiram
técnicas espirituais, como yoga, meditação, xamanismo ou teurgia, que podiam
transformar conhecimento teórico ou vagas intuições espirituais em experiência
concreta e real. Claro que era muito mais fácil simplesmente tomar LSD, peiote
ou cogumelos mágicos e ser brindado com visões e insights espantosos, que iam
do horrível ao ridículo até o sublime. Mas os espíritos mais sérios entre nós
logo perceberam que não se podia tomar psicodélicos para sempre, que tinha de
haver um caminho mais estável e responsável de buscar a iluminação. Este
caminho, pensávamos, seria fornecido por formas mais tradicionais de sadhana (prática espiritual), como a
meditação, ou por tipos mais “avançados” de ginástica psíquica, como os que
estavam sendo desenvolvidos no Esalen Institute — incluindo encounter groups, privação sensorial, biofeedback e sabe Deus
mais o quê.
E assim, em reação à superficialidade que
percebíamos nas tradições cristã ou judaica em que havíamos sido criados, que
nada podiam nos dar além de regras morais sem qualquer justificativa
convincente, e que eram ou incapazes ou relutantes em nos oferecer explicações
profundas sobre o sentido da vida que ansiávamos, ou em nos dar acesso às
práticas espirituais concretas que sentíamos precisar para realizar esse
sentido em profundidade, criamos para nós um ethos religioso em que a sabedoria
era buscada e a técnica espiritual empregada à custa da moralidade. Ninguém nos
disse que as verdades místicas e o sentido profundo de que precisávamos estavam
no coração do cristianismo e do judaísmo; que técnicas sempre haviam existido
dentro dessas tradições — como a Oração de Jesus no cristianismo oriental —
para servir à realização dessas verdades; e que uma das técnicas místicas
fundamentais, sem a qual nenhum sentido profundo pode ser compreendido nem
sabedoria espiritual pode ser realizada, era a própria moralidade.
Tínhamos lido, e acreditávamos, que a
compreensão mística vinha da transcendência do ego; o que nunca nos foi dito é
que a moralidade é elemento necessário na ciência dessa transcendência. Então
tentamos explodir nossos egos com doses maciças de drogas psicodélicas, que
julgávamos tornar desnecessário o trabalho tedioso de vencer o simples egoísmo
em nossas vidas diárias. Achávamos que era o melhor dos dois mundos: iluminação
mística graças à graça barata dos psicodélicos ou de exercícios respiratórios
ou luzes estroboscópicas ajustadas ao ritmo alfa do cérebro, e, no resto do
tempo, total autoindulgência. Acreditávamos poder ficar com o bolo e comê-lo
também… mas, em vez disso, foi o bolo que nos devorou.
Se o nosso judaísmo tivesse sido capaz de
produzir verdadeiros tzaddikim, mestres
da cabala ou do misticismo da merkabah,
juntamente com uma exegese profunda da Torá; se o nosso catolicismo tivesse
sido capaz de responder às nossas aspirações místicas e filosóficas mergulhando
nos profundos ensinamentos místicos dos Padres da Igreja, e se tivesse existido
algo como uma terceira ordem monástica à disposição dos jovens, que pudesse
ter-nos dado uma orientação mística e uma prática espiritual diária; se o nosso
protestantismo tivesse sido capaz de nos alimentar no poço místico dos
“espirituais” como Franz von Baader e Jakob Böhme, então as coisas poderiam ter
sido muito diferentes.
Mas, para que esse “se” tivesse sido
realizado, o judaico-cristianismo teria de estar em condição muito diversa:
fiel à profundidade de suas tradições, disposto e apto a resistir a qualquer
compromisso com o secularismo, confiante em sua ortodoxia teológica, em sua
compreensão filosófica e em sua sabedoria mística. Em vez de convidar os que
estavam pelas estradas e encruzilhadas para o banquete de casamento, a porta foi
fechada por aqueles “guias cegos que impedem os outros de entrar, mas não
entram eles mesmos”. Então organizamos nosso próprio banquete de casamento nas
estradas e encruzilhadas, que degenerou em orgia e, por fim, em motim.
Não obstante, desse motim surgiram verdadeiras
intuições sobre “as profundezas de Deus” — que não tínhamos meio confiável de
distinguir das trevas espirituais que as cercavam —, juntamente com elementos
válidos de esoterismo e metafísica tradicionais escondidos em meio ao restante
dos destroços, que conduziram uma minoria de nós, afinal, a misticismos
estáveis e vivos enraizados nas ortodoxias tradicionais. Talvez a memória do
número muito maior dos que foram destruídos para que nós poucos pudéssemos
chegar, meio mortos, à porta da religião revelada, seja parte da motivação
deste livro. O nome disso é “culpa do sobrevivente”.
Estados
alterados de consciência: graça ou manipulação?
Para muitos cristãos evangélicos, os termos
“misticismo” e “estados alterados de consciência” só podem designar uma
perigosa ilusão. Segundo o conhecido mestre de rádio Hank Hanegraaff, cuja
insistência na sã doutrina me é profundamente alentadora, e cujas denúncias das
falsas doutrinas e práticas perigosas que hoje proliferam no protestantismo
“carismático” deveriam ser ouvidas por todos, tais realidades, se é que são
realidades, não têm lugar no cristianismo. Na melhor das hipóteses, seriam
autoilusões ou produto de sugestão hipnótica; na pior, enganos demoníacos.
Será isso realmente verdade? Vejamos.
Antes de tudo, a palavra “misticismo” precisa
ser definida. Em toda tradição há uma classe de santos, os santos
contemplativos, chamados por Deus àquele tipo de experiência direta d’Ele que a
maioria dos salvos conhecerá apenas após a morte. Santos católicos como João da
Cruz ou Teresa de Ávila dedicaram boa parte de sua vida espiritual a cultivar
uma prontidão para tal União com Deus, que no caso da maioria dos místicos é
rara e breve (embora, num outro sentido, eterna), um arrebatamento pelo
Espírito em que todo senso da existência da alma como algo separado de Deus é
apagado.
O cristianismo ortodoxo oriental vai além até
desse sentido de União ao descrever o êxito da vida espiritual normal como theosis, ou divinização, que não é
simplesmente uma experiência rara e isolada, mas uma realização permanente de
nossa Divindade interior, segundo a doutrina de que “Deus se faz homem para que
o homem se faça Deus”. O sufismo fala igualmente de fanā’, aniquilação do eu humano em sua separatividade, na
medida em que nos definimos por nós mesmos e por isso acreditamos
implicitamente ser autocriados, e de baqā’,
subsistência eterna na Natureza de Deus. O hinduísmo fala do jīvanmukta, a alma perfeitamente libertada
nesta vida, e o budismo daquele que alcançou a Iluminação Total Perfeita, e
assim se tornou um Buda, um “Desperto”, que reconhece que todos os seres, em
sua natureza original — se ao menos o soubessem — já estão Despertos.
Misticismo, então, pode ser definido ou como a
experiência temporária de União com Deus, um “estado alterado de consciência”
buscado ou não, produzido pela ação direta de Deus (chamado no sufismo de hāl e, no cristianismo, de “contemplação
infusa”), ou como o despertar permanente para a realidade de Deus, como no caso
de um santo iluminado. É o misticismo em sua primeira definição, a de uma
experiência rara ou incomum de Deus, um “estado alterado” em que o eu
individual é posto de lado na contemplação do Divino, que parece incomodar
muitos cristãos evangélicos.
O Novo Testamento, é claro, está repleto de
histórias de “estados alterados de consciência”: a Transfiguração de Cristo; a
descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e a Virgem Maria em Pentecostes; a
experiência de São Paulo no caminho de Damasco. “Mas espere!”, diz o cristão
evangélico. “Esses não eram ‘estados alterados de consciência’, porque não eram
experiências subjetivas. Foram produzidos pela ação da graça de Deus, operando
de fora sobre os discípulos de Jesus. Não ocorreram simplesmente na mente
daqueles que os vivenciaram; foram objetivamente reais.” Concedo isso
plenamente. Mas dizer que a ação objetiva da graça de Deus não alterou
profundamente a consciência dos que a receberam é absurdo.
A verdadeira questão é: acreditamos que os
estados alterados em questão foram encontros com Deus iniciados por Sua ação na
alma humana, ou acreditamos que esses encontros foram produzidos pelos próprios
estados alterados, que por sua vez teriam sido criados voluntariamente pelas
pessoas que os vivenciaram? Deus pode e de fato altera a consciência humana
para torná-la mais receptiva a Ele, mas nenhuma quantidade de alteração
autoinduzida da consciência pode “alcançar” Deus. Quanto a saber se eventos
como a Transfiguração foram objetivos no sentido de que poderiam ter sido
fotografados por satélites, por exemplo, suspendo o juízo. Quero apenas
ressaltar que, só porque algo é visão, isso não significa que não seja real.
Algumas visões são fantasias ou enganos demoníacos; outras são testemunhos de
realidades objetivas mais altas e mais reais do que o mundo material.
Segundo a doutrina sufista, estados
espirituais são dádivas de Deus, não aquisições. Não podemos produzi-los de
forma alguma, nem sequer deveríamos rezar por eles. Nosso negócio é,
simplesmente, lembrar de Deus e esquecer de nós mesmos. Por outro lado, se
passamos todas as horas de vigília lembrando de Deus — e, por fim, cada hora de
sono também —, estados espirituais ou místicos bem podem chegar. Buscá-los é
ganância espiritual; rejeitá-los quando ocorrem pode ser ingratidão espiritual.
Exigir presentes de nosso Benfeitor, ou rejeitá-los quando são oferecidos, são
ambos atentados à cortesia; e, nas palavras de um provérbio sufista, “o sufismo
é pura cortesia”.
A recepção de tais estados nada diz de forma
definitiva sobre o grau de avanço espiritual do recipiente, já que, segundo o
Alcorão, “Deus guia a quem quer, e extravia a quem quer”. Em outras palavras,
Deus pode às vezes punir a ganância egotista de alguém por experiência e
autoridade espirituais enviando-lhe estados pseudo-místicos — ou melhor,
permitindo que forças demoníacas o façam — cujas consequências finais lhe
mostrarão o próprio orgulho espiritual, se ele estiver disposto a ouvir.
Doutrina semelhante é sugerida pelas palavras do Pai-nosso “não nos deixes cair
em tentação”, que têm sido tão embaraçosas para alguns cristãos que estes as
alteraram para “não nos ponhas à prova” — como se Deus já não nos pusesse à
prova a cada momento de nossas vidas, de um modo ou de outro.
Além disso, segundo tanto a doutrina sufista
quanto a hindu, estados místicos são enviados não por causa de nosso avanço
espiritual, mas por causa de nossas impurezas. Imagine os raios do sol focados
por uma lente sobre uma laje de mármore branco. Se houver serragem sobre o
mármore, ela pegará fogo; se o mármore estiver limpo, haverá apenas iluminação.
A serragem é a nossa massa de impurezas espirituais; as chamas são os estados
espirituais que as queimam; a iluminação da pedra limpa é a Sabedoria; a luz é
o Intelecto Divino.
Mas o que dizer de sistemas de
desenvolvimento espiritual como a yoga, praticados por hindus e budistas
vajrayanas, em que, longe de esperar que Deus conceda livremente um estado
espiritual ao iogue, este o persegue ativamente por meio de sofisticada
manipulação do sistema nervoso psicofísico, baseada em posturas corporais (āsanas), controle da respiração (prāṇāyāma), invocação verbal (mantra), meditação sobre diagramas
simbólicos (maṇḍalas ou yantras) e gestos simbólicos (mudras)? Aqui a questão se torna mais
complicada, e não há dúvida em minha mente de que qualquer prática espiritual
fortemente carregada de técnica corre sempre o risco de transformar-se numa
luta prometeica para “tomar o céu de assalto”, já que o iogue pode
experimentar-se a si mesmo como praticando o método não em resposta obediente à
graça divina, mas por iniciativa própria, como ego independente e autodirigido
— e nenhum ego independente e autodirigido, exercendo técnicas psicofísicas
sofisticadas por iniciativa própria, chegará a qualquer lugar senão às portas
do inferno.
Ainda assim, a busca de estados espirituais,
se realizada no contexto de uma tradição que a defina em termos de obediência à
Vontade de Deus e de trabalho em Seu serviço, pode ser espiritualmente eficaz
e, por fim, produzir santos. “Buscai e achareis; pedi e vos será dado; batei e
vos será aberto.”
Tranquilidade, vigilância, confiança em
Deus, amor de Deus, amor ao próximo, consciência da Presença de Deus são
“estados alterados de consciência”: a tranquilidade é um estado de espírito
diferente da agitação, a alegria agradecida é diferente da mesquinhez
rabugenta, a vigilância é diferente da sonolência, a confiança é diferente da
ansiedade, o amor é diferente do ódio, a consciência da Presença de Deus é
diferente da visão da absurdidade existencial ou do tédio cotidiano. E, se não
podemos simplesmente produzir esses estados alterados por força de vontade, por
outro lado a sua vinda exige de nossa parte uma atitude responsável — “apta a
responder”.
Se alguém está palestrando, você não fica
simplesmente esperando em condição de tédio embotado e sonolento até que o
orador diga algo tão avassalador que sua mente turva seja tomada à força — não.
Você se endireita e presta atenção. E jamais “ouvirá” o que Deus lhe diz
enquanto não estiver disposto a escutar. Escutar é um estado “alterado” de
consciência; é algo diferente da desatenção. Isso não significa que Deus não
seja uma Realidade objetiva; ao contrário. A própria existência dessa Realidade
objetiva exige que nosso estado de consciência seja alterado, de forma a chegar
a uma compreensão dEla adequada — não à Realidade infinita de Deus, mas ao
menos à plenitude de nossa capacidade humana, dada por Deus, de conhecê-Lo. E
aquilo que essa Realidade exige, Ela mesma torna possível.
Além disso, se essa Realidade por vezes
sobrepuja nossa mente, de modo que entremos em “estados alterados” de
embriaguez espiritual ou êxtase, isso não é impróprio, a menos que tentemos
deliberadamente produzir tais estados para nos comprazermos neles. Estados
assim nos ensinam, em termos de experiência concreta, que a mente humana não
pode abarcar Deus e, ao mesmo tempo, “alargam as fronteiras de nossa tenda”,
queimando impurezas espirituais e ampliando nossa capacidade de compreender e
obedecer a uma Realidade Divina que nunca poderemos abarcar totalmente. E, em
algum ponto de nossa luta para compreender Deus — ou de renunciar a tentar
compreendê-Lo — podemos, de repente, chegar à percepção de que somos
compreendidos. Como disse o Profeta Maomé (que a paz esteja com ele): “Ora a
Deus como se O visses, pois, mesmo que não O vejas, Ele te vê.” A perfeita
compreensão que Deus tem de nós é o Ser Divino, o atman em nós, que é o sentido das palavras de Maomé: “Quem
conhece a si mesmo conhece o seu Senhor.” E esse Ser Divino em nós é tão
objetivo, tão “absolutamente outro” em relação a tudo o que posso experimentar
como meu pequeno eu individual, quanto qualquer Pai Todo-Poderoso entronizado
no céu.
Se vemos o Absoluto como o Númeno por trás
de todos os fenômenos, ou como o Self dentro de nossa subjetividade psíquica, a
Realidade é a mesma: dentro do sujeito, ou dentro do objeto percebido
subjetivamente — e, ainda assim, infinitamente além de ambos —, está a Única
Verdade.
Lembrar-se de que se está na presença de
Deus é a prática espiritual central no hesicasmo cristão ortodoxo oriental (a
Oração de Jesus, ou oração do coração), no sufismo islâmico (dhikr), e também é importante no hinduísmo
(como japa). Todas essas três
tradições continuam a produzir santos, que são a prova viva de qualquer
religião. A maioria dos santos ortodoxos, muçulmanos e hindus praticou esse
tipo de lembrança. Não que esta, ou qualquer outra prática espiritual, possa
transformar alguém em santo, ou mesmo salvar sua alma. Mas, se pela graça de
Deus a presença do Único se torna profundamente real para uma pessoa, ela será
naturalmente movida, em simples gratidão, a trabalhar para remover tudo quanto
impeça esse senso de presença, assim como é natural que alguém preste profunda
atenção à pessoa que ama, ou não queira agir tolamente ou aparecer desleixado
diante do Rei.
Meditação não é feitiçaria; é simplesmente
atenção. Silêncio profundo não é magia; é simplesmente respeito pelo Único de
quem esperamos ouvir — o Único que já nos fala agora, se ao menos fôssemos
silenciosos o bastante para ouvi-Lo.
Quanto a práticas espirituais mais
complexas, como posturas, visualizações, exercícios respiratórios etc., seu
objetivo não é diferente da simples lembrança: remover todos os impedimentos a
um sentido mais profundo da presença de Deus. E, embora sua natureza mais
elaborada possa torná-las suscetíveis de perversão pelo querer prometeico, que
sempre quer acreditar poder alcançar Deus por seu próprio esforço, no clima de
graça que é uma tradição espiritual intacta tais práticas raramente degenerarão
em magia, mas preservarão a essência da pura adoração.
III. Doutrinas New Age refutadas
A New Age contém muitos buscadores sinceros
e, pelo que sei, possivelmente até alguns santos ocultos (mas Deus sabe
melhor). Deus evidentemente tem tanto o poder quanto o direito de recompensar
com o dom de Sua graça — expressa em termos de amor, conhecimento e poder —
aqueles que O buscam sinceramente, apesar da insuficiência e até do perigo das
doutrinas que tais buscadores possam sustentar. Mas esse fato não torna tais
doutrinas mais adequadas ou menos perigosas. Da mesma forma, a aceitação da
doutrina revelada ortodoxa não afasta os perigos da hipocrisia, do orgulho
espiritual e de outros vícios; tal doutrina, contudo, não é menos proteção
eficaz nem menos apoio à vida espiritual, nem menos intrinsecamente verdadeira,
só porque alguns dos que se identificam com ela são corruptos.
Não pretendo que esta refutação de doutrinas
New Age seja, de modo algum, um juízo sobre a sinceridade ou as conquistas
espirituais dos que nelas creem; como o estado da alma de alguém é questão
entre o indivíduo e Deus, não tenho nem o direito nem o poder de sondá-lo. A
parábola do Bom Samaritano não foi destinada a invalidar a ortodoxia doutrinal,
já que “não vim abolir a lei, mas levá-la à perfeição”. Mas foi destinada a
apresentar o estado e o destino da alma humana, antes de tudo, em termos de
“pelos seus frutos os conhecereis”.
Canalização
de “entidades”
O mundo das espiritualidades alternativas, e
em muitos aspectos a nossa sociedade como um todo, entrou num período em que o
paradigma da magia — que inclui tanto a magia tecnológica quanto as formas
“tradicionais” de magia — está substituindo o da religião, tanto exotérica
quanto esotérica. Gente demais na New Age, herdeira do populismo espiritual
hippie, ensina hoje que “todo mundo pode ser xamã, todo mundo pode canalizar
‘entidades’”. Certamente nem todos os seres no plano psíquico, ou no mundo dos
jinn, são maus ou iludidos — segundo a doutrina islâmica, alguns jinn são
muçulmanos e outros, não —, mas isso não significa que uma abertura frívola
para aquele mundo não esteja expondo a sociedade ao perigo de possessão
demoníaca em massa, e confirmando integralmente a previsão de Guénon de que a
vida humana, nos dias finais do ciclo, estaria sujeita a incursões do
“infra-psíquico”.
A canalização de “guias espirituais” é,
talvez, a manifestação mais central das espiritualidades New Age. É uma prática
que, embora nem sempre seja estritamente má, é profundamente perigosa; a
maioria dessas “entidades”, quando não são simples criações da imaginação
individual, é no mínimo ambígua e, em muitos casos, são demônios propriamente
ditos, cuja natureza demoníaca se torna mais clara a cada ano que passa. E não
é de forma alguma o aspecto menos destrutivo dessa canalização o fato de ela
representar não uma simples ilusão, mas uma contrafação da doutrina
tradicional.
O daimōn
de Sócrates, o genius ou juno dos romanos, possivelmente certos
aspectos da teurgia neoplatônica, o anjo da guarda no cristianismo, o fravashi no zoroastrismo, os espíritos dos
profetas com os quais Ibn al-‘Arabī mantinha contato no Islã, o yidam ou divindade tutelar no budismo
tibetano — tudo isso representa, em forma estritamente tradicional, a realidade
de que a canalização de espíritos é, em grande medida, a imitação fraudulenta.
Talvez a abordagem mais segura seja simplesmente chamar de demoníaco todo o
“plano intermediário” ou ‘ālam al-mithāl,
como muitos cristãos fizeram. Mas, se “não há direito superior ao da verdade”,
então alguém precisa admitir que o plano intermediário não é estritamente
demoníaco, mas sim perigoso e ambíguo. Nem todo peixe do mar é tubarão — mas
cuidado com os tubarões.
Frithjof Schuon e Seyyed Hossein Nasr falam,
por exemplo, da magia como uma ciência tradicional, e Schuon admite que exista
algo como magia branca, isto é, a interação com “aqueles jinn que são
muçulmanos” para fazer o bem, embora também advirta contra envolver-se com ela.
Mas devo confessar que dizer essa verdade me deixa profundamente nervoso,
porque pode tentar os frívolos a dizer: “muito bem, então praticarei apenas
magia branca e ficarei longe da negra” — algo infinitamente mais fácil de dizer
do que de fazer.
Práticas tradicionais como o exorcismo
mostram, de fato, certas afinidades com a magia branca. O verdadeiro exorcismo,
porém, aplica o poder espiritual ao plano psíquico, ao passo que a magia branca
opõe poderes psíquicos benéficos a poderes malignos — algo que jamais deveria
ser tentado fora de um contexto tradicional, como o de um xamanismo verídico,
supondo que algum de nós possua critérios pelos quais distinguir o verdadeiro
xamanismo de seus rivais degenerados ou falsificados.
Lembro-me de uma conversa telefônica que
tive com um “curador espiritual” autodidata, que realizava exorcismos em parte
por visualização. “Eu simplesmente explico à entidade obsessora que ela não
precisa agir de modo tão perverso, que tem outras opções abertas para o
progresso espiritual. Isso geralmente a despotencializa e lhe permite passar a
planos mais elevados.” Quisera eu ter-lhe respondido: “Impressionante! Se até
anjos decaídos são tão fáceis para você converter, por que não tenta trabalhar
com assassinos em série? Estes deveriam ser brincadeira de criança.”
No plano dos princípios metafísicos, o que
separa o daimōn de Sócrates de uma
“entidade” como Ramtha? Como distinguir um anjo da guarda de um demônio
enganador? Creio que a resposta não se encontra apenas no dom do discernimento
de espíritos — que, é claro, é inestimável —, mas também na orientação básica
da pessoa. Na medida em que alguém se relaciona com tais seres em termos de
vontade, procurando-os, coagindo-os ou exigindo conhecimento deles, então eles
não passam de espíritos familiares. Na medida em que se relaciona com eles em
termos do Intelecto, não os buscando, mas aceitando-os quando se apresentam
como dons de sabedoria, de conselho e de conhecimento, e não de poder, então é
mais provável que sejam anjos. Ainda assim, espíritos enganadores podem
aproximar-se até dos sinceros e podem ter interesse especial em perverter a
vida espiritual daqueles que realmente progridem em amor e conhecimento.
Anjos são “mensageiros”. São enviados por
Deus. Portanto, se alguém concentra-se em Deus, e não no mensageiro (e essa
concentração só pode manter-se estável dentro dos limites de uma tradição
revelada, embora Deus sempre possa fazer exceções), o mensageiro tenderá a ser
angélico; ao passo que, se alguém se concentra no mensageiro em vez de Deus,
então o mensageiro provavelmente é, ou se tornará, demoníaco.
Quando
o carteiro traz uma carta do Amado, você não vai para a cama com o carteiro,
nem faz amor com a carta; você se lembra dAquele a quem ama e aguarda o
encontro com Ele em pessoa. Quando os habitantes de Sodoma quiseram possuir os
anjos de Deus — sendo a luxúria sexual apenas uma forma dessa cobiça, que
simboliza implicitamente todas as demais, especialmente a ganância espiritual
—, foi exatamente isso o que fizeram. E é isso que me torna desconfiado da
atual moda dos “anjos”; ela parece ser sinal de que o Deus Transcendente está
se tornando menos real para muitas pessoas. O senso de uma comunhão viva e
contínua com Deus é parte da piedade normal. A aparição de um anjo é, em regra,
um acontecimento raro. Mas quando visões de anjos se tornam mais comuns do que
o senso da realidade de Deus, então a situação é obviamente anormal, e Deus
está a caminho de tornar-se, na mente coletiva, um deus otiosus, como o
Deus Altíssimo em muitas (não em todas) tribos africanas. A religião
norte-americana, nesse sentido, está na verdade tornando-se mais parecida com
as religiões não cristãs e não muçulmanas da África tropical; embora ainda se
admita a existência do Deus Altíssimo que criou o mundo, Ele já não é
acessível, enquanto várias entidades psíquicas, longe de serem inacessíveis,
estão se tornando cada vez mais difíceis de evitar.
Falando
em termos das religiões tradicionais africanas e chinesas, e do xintoísmo japonês,
essas entidades podem representar os Antepassados Deificados que, por sua vez,
simbolizam os arquétipos espirituais permanentes, ou hipóstases divinas, ou
Nomes de Deus; podem também ser fantasmas e demônios. E à medida que o senso do
Deus Transcendente enfraquece, é muito mais provável que encontremos fantasmas
e demônios do que arcanjos.
Assim, no
que diz respeito à canalização de espíritos — que em sua forma popular deve
claramente ser rejeitada — creio que a atitude correta é admitir a existência de
anjos assim como de demônios, reconhecer que influências angélicas estão no
domínio do possível, mas enfatizar que, embora Deus possa enviar seus anjos
para se comunicarem conosco, o desejo de encontrar um anjo é quase sempre
destrutivo. “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas
coisas vos serão acrescentadas” — incluindo os anjos, se Deus assim o quiser,
embora a experiência consciente do plano angélico não seja absolutamente
necessária à vida espiritual.
Creio que
é melhor admitir a possibilidade de intervenção angélica, porque, se dissermos
que é possível e até provável encontrarmos demônios, mas extremamente
improvável, senão efetivamente impossível, encontrarmos anjos, podemos acabar
pregando a rejeição dos mensageiros de Deus, dando assim mais ajuda e conforto
às potências das trevas.
Não
devemos supor, porém, que só porque demônios e anjos são reais, as figuras
“canalizadas” sejam sempre entidades psíquicas. Durante minha excursão de dois
anos pelo universo New Age, ouvi uma história sobre canalização que nada tinha
a ver com o sobrenatural, mas muito a ver com psicologia. Uma mulher criada por
pais adotivos vinha canalizando uma “entidade” enquanto, ao mesmo tempo,
buscava seus pais biológicos. Eis que, quando os encontrou, descobriu que seu
nome de batismo original, de que não tinha nenhuma lembrança consciente, era o
nome de sua “entidade”!
Também
naquele período formei a impressão de que certa canalização tem a ver tanto com
o colapso da autoridade social tradicional quanto com uma profunda falta de
autoconfiança intelectual por parte dos envolvidos. Se alguém não possui uma
sabedoria socialmente aceita para aplicar a diferentes circunstâncias, e não
confia na própria capacidade de dar sentido às coisas, pode fabricar psicologicamente
uma “entidade” infalível para desempenhar essas funções. É como se, quando a
sociedade não sustenta uma identificação das faculdades de pensamento racional
e de bom juízo com a personalidade consciente, essas faculdades pudessem
tornar-se “complexos autônomos”. Se você não consegue acreditar em sua própria
capacidade de pensar, sempre pode atribuir essa capacidade ao seu espírito
familiar, que não necessariamente será capaz de pensar, mas ao menos
representará um gesto pateticamente esperançoso nessa direção.
Equívocos
neopagãos
O mundo
New Age/neopagão acredita fervorosamente que seu conhecimento é esotérico. Mas,
como quase nunca se faz ali a distinção entre psique e Espírito — distinção
que, anos atrás, ouvi ser chamada de “patriarcal” por membros de um “coletivo
de espiritualidade feminista” —, o termo “esoterismo” não pode legitimamente
ser-lhe aplicado. Crê-se, em muitos círculos neopagãos, que imaginar um nível
de realidade mais alto que o psíquico é apoiar a tirania política, cooperar com
a opressão das mulheres, destruir o meio ambiente natural e Deus sabe o que
mais. Consequentemente, o conhecimento entre os neopagãos permanece, em sua
maior parte, no nível psíquico — que, como já dissemos, é um nível real de ser,
sobre o qual nos faria bem saber alguma coisa, especialmente porque, em nossos
tempos, as experiências psíquicas estão se tornando mais difíceis do que nunca
de evitar. Mas, a menos que a psique seja guiada e protegida pelo Espírito, tal
conhecimento rapidamente se torna ilusório e, muitas vezes, demoníaco.
Muita
gente (e não apenas os neopagãos), graças a escritores como Sir James Frazer,
Robert Graves e seus sucessores, acredita hoje que o núcleo secreto e esotérico
da tradição judaico-cristã-islâmica é na realidade o paganismo. Esse equívoco
está em plano inteiramente diverso do “ecumenismo esotérico” (termo de Schuon)
que nos permite ver verdadeiras afinidades entre as religiões abraâmicas e
certos “paganismos altos”, como o orfismo ou o neoplatonismo.
Escritores
com formação em psicologia junguiana, ou interessados em mitógrafos como Joseph
Campbell, tentarão rotineiramente traçar toda e qualquer passagem bíblica ou
doutrina judaico-cristã a sua suposta raiz “pagã” — cegamente, automaticamente,
e sem trégua. Paralelos certamente existem, mas a ideia, raramente questionada
em meios mitopoéticos e neopagãos, de que o judaísmo e o cristianismo são na
verdade paganismo disfarçado, é simplesmente falsa.
Ela
ignora séculos, senão milênios, de perseguição dirigida contra os judeus pelas
mais poderosas nações pagãs do Oriente Próximo; ignora a perseguição da
religião judaica levada adiante pelos gregos selêucidas pagãos; ignora a
perseguição tanto de judeus quanto de cristãos pelo paganismo greco-romano sob
o Império Romano; ignora a posterior contra-perseguição, pelos cristãos, do
paganismo greco-romano; ignora a destruição muçulmana de cultos pagãos; ignora
séculos de polêmica teológica de judeus contra pagãos, pagãos contra cristãos e
judeus, e cristãos e muçulmanos contra pagãos.
Essas perseguições
e contra-perseguições não foram apenas políticas; representavam também reais
divergências doutrinais. As religiões abraâmicas, quaisquer diferenças que
tivessem entre si, e quaisquer recaídas em direção ao paganismo em que possam
ter incorrido, partilharam uma oposição clara e deliberada a ele, assim como os
pagãos, em geral, se opuseram às religiões abraâmicas. Os dois campos
diferentes criam em coisas diferentes, sabiam disso e o diziam. Por outro lado,
as religiões abraâmicas partilham com a religião egípcia, e com as raízes
órfico-pitagóricas arcaicas do paganismo clássico, uma relação com aquilo que
Guénon e os tradicionalistas chamam de Tradição Primordial.
Mas essa
Tradição não deve ser estritamente identificada nem com o paganismo nem com o
monoteísmo abraâmico, embora as religiões abraâmicas a tenham preservado em
forma mais pura do que o paganismo degenerado da Antiguidade tardia. Em todo
caso, o paganismo de que Frazer e Graves trataram pouco se assemelha à
verdadeira Tradição Primordial, ainda que qualquer um que compreenda essa
Tradição possa sempre reconhecer, mais ou menos, restos degenerados dela no
material apresentado por ambos os escritores, bem como na religião teutônica,
no druidismo celta, na religião babilônica e nos mitos gregos e romanos.
Materialismo
sutil
Como lhe
falta uma doutrina sólida e bem articulada da transcendência, a New Age tende a
um materialismo sutil. O Divino e o meramente cósmico são frequentemente
confundidos. Deus é concebido como uma forma de energia útil que pode ser
captada e manipulada pelos seres humanos, algo na linha da “Força” dos filmes Star
Wars.
A
Divindade transpessoal, de que o Deus pessoal é a primeira manifestação formal,
é imaginada antes como uma fonte impessoal de energia ou um conjunto de leis
naturais, na linha da gravitação ou da energia nuclear. A pessoa humana é
sutilmente desvalorizada; o reconhecimento do valor eterno e qualitativo da
pessoalidade, já que é falsamente identificado com um egoísmo “humano-demais”,
é substituído por um culto quantitativo da energia. Os segredos dos mundos
celestes devem ser encontrados na estrutura do DNA humano. O senso da
Eternidade é substituído pelos paradoxos espaço-temporais da física
pós-einsteiniana.
As
palavras “Deus” e “universo” são usadas de modo intercambiável; para Deepak
Chopra, por exemplo, Deus é o “computador cósmico”. E, para José Argüelles,
como antes para Timothy Leary, o Centro do Ser já não está virtualmente em toda
parte — e, portanto, a ser encontrado, do ponto de vista humano, nas
profundezas transcendentais do Coração espiritual —, mas passa a ser
identificado com o centro da galáxia. É claro que todo o conceito de Ser, em
comparação com o da metafísica tradicional ou mesmo da teologia exotérica,
sofreu um rebaixamento quântico.
Um dos
sinais de tal materialismo na New Age é a idolatria dos cristais. Conheci
adeptos New Age que agiam como se possuíssem, em cristais de quartzo, fluorita
ou ametista, verdadeiros pedaços de Deus. Essa cristalolatria, em nossa cultura
pós-cristã, provavelmente se baseia em uma compreensão decadente da Encarnação
de Cristo — ou talvez numa intuição da forma final “cristalizada” que será
assumida por este ciclo de manifestação (a Jerusalém Celeste do Apocalipse),
mal-interpretada de modo literalista. Segundo o simbolismo tradicional, as
joias de que a Jerusalém Celeste é composta são sabedorias celestes.
O uso de
joias, cristais e minerais coloridos como ferramentas mágicas — ao menos fora
do xamanismo tradicional — indica, portanto, uma degeneração em nossa
compreensão coletiva da própria Sabedoria. Sophia já não é venerada como raio
da Natureza Divina; a matéria em si, espelho de Sophia, é que é adorada. A
matéria, como Einstein provou, libera enorme poder — mas apenas em seu ponto de
dissolução. Assim, nosso culto da matéria é essencialmente um culto de poder
autodestrutivo e contraditório.
O lado
mais luminoso da New Age: cura psíquica e holística
A New
Age, em um nível, representa a redescoberta ou reinvenção de muitas ciências
cosmológicas tradicionais, embora fora de um contexto religioso e metafísico
que pudesse orientá-las com segurança para o Absoluto. Por exemplo, muitos
praticantes New Age possuem um conhecimento prático sofisticado de energias
sutis, que, até certo ponto, pode legitimamente ser usado com finalidade
terapêutica. Mas onde, exatamente, se encontra esse limite?
Deveria
ser óbvio que é um exagero chamar de demoníacas certas terapias físicas
vagamente New Age, como a integração estrutural (“Rolfing”), como alguns
cristãos conservadores tendem a fazer, que poderiam proibir um cristão de
praticar, por exemplo, a postura invertida do hatha-yoga como terapia
para sinusite crônica ou para melhorar o suprimento de sangue ao cérebro, sob o
argumento de que isso não é cristão e, portanto, é anticristão e, logo,
satânico. O fato é que ficar de cabeça para baixo às vezes cura sinusite, e que
o trabalho corporal profundo pode melhorar a postura e eliminar dores crônicas.
E
proibir, digamos, a prática ecologicamente correta da agricultura biodinâmica
só porque foi desenvolvida pelo “ocultista cristão” Rudolf Steiner seria
igualmente tolo.
A prática
é uma coisa, o paradigma que lhe deu origem é outra. Poder-se-ia, com igual ou
maior razão, recusar a implantação cirúrgica de uma válvula cardíaca
artificial, ou de uma lente intraocular, ou de uma prótese de quadril, porque
tais intervenções se baseiam no paradigma que vê o corpo humano como máquina
biológica, e não como “imagem e semelhança de Deus”.
Por outro
lado, o paradigma necessariamente influencia a prática, de maneiras nem sempre
óbvias; é preciso certo grau de discernimento espiritual para ver onde termina
a prática e começa o sistema de crenças daqueles que a desenvolveram. Ida Rolf,
por exemplo, explicava a integração estrutural em termos influenciados pela
teosofia moderna, que é essencialmente um ocultismo anticristão.
Mas o
fato é que a teosofia apresenta, em forma distorcida, material roubado de
ensinamentos tradicionais válidos, como a doutrina hindu dos kośas, as
várias “vestes” do Ser Divino em nós — intelecto, mente, corpo etc. —, doutrina
estritamente análoga a ensinamentos dos Padres cristãos sobre a natureza trina
do homem — espírito, alma e corpo — e sobre as várias faculdades da alma.
Se um
membro de família foi raptado e violado, não o rejeitamos quando nos é
devolvido, mas trabalhamos para curá-lo e reintegrá-lo à família. O mesmo é —
ou deveria ser — verdadeiro quanto a doutrinas tradicionais esquecidas que
foram tomadas em forma distorcida pelo ocultismo. Ainda assim, se você não
consegue substituir seu quadril sem pensar em si mesmo como um robô sem alma,
ou passar por uma sessão de Rolfing sem aderir a ideias ocultistas distorcidas,
então é melhor não o fazer.
Nutrição,
herbologia, várias formas de trabalho corporal, acupuntura… tudo isso pode ser
aplicado, por praticantes bem treinados, com bons resultados. Minha esposa e eu
nos beneficiamos muito da integração estrutural, que, no caso dela, eliminou
problemas posturais de que sofrera a maior parte da vida.
Tipos de
cura que utilizam exercícios respiratórios, como o Rebirthing, são mais
ambíguos, já que ativar à força os sistemas sutis de energia do corpo pode ser
perigoso física e psicologicamente, sobretudo quando praticado fora de formas
tradicionais, como o prāṇāyāma ióguico, que exige dieta e estilo de vida
específicos, a orientação de um mestre e até um quadro doutrinal tradicional
para ser praticado com segurança. O Rebirthing foi muito útil para mim
em épocas de grande estresse, mas o paradigma em que se baseia, que inclui em
alguns casos a fantasia da imortalidade física, é um claro inconveniente que
precisa ser filtrado.
Quando a
forma de cura em questão lida com energias psicofísicas ainda mais sutis que as
ativadas pelo controle da respiração, ela se torna mais ambígua. E quando tais
energias são concebidas como modificadas ou intensificadas pela intervenção de
“entidades curadoras” do plano psíquico, como é tradicionalmente comum no xamanismo,
a situação torna-se ainda menos certa e mais exposta a perigos ocultos.
Eu mesmo
experimentei benefícios de algumas dessas práticas. Por exemplo, a energia
canalizada por uma igreja japonesa New Age, a Joh-rei Fellowship — que parece
ter origem em nível muito elevado do plano psíquico —, parece inteiramente
benigna. O motivo por que deixei de frequentá-la, depois de muitos anos de
experiência positiva, teve mais a ver com a divergência entre a visão de mundo
da metafísica tradicional, que se tornara central para mim, e a de uma nova
religião japonesa devotada a trazer o paraíso à terra, embora sua doutrina da
futura “purificação” do mundo não seja totalmente diversa das escatologias
tradicionais, ainda que com um viés New Age.
O Joh-rei
incorpora muitos elementos tradicionais budistas, xintoístas e (em última
análise) taoístas/xamânicos; ainda assim, a “graça barata” da experiência
talvez estivesse interferindo de modo sutil com minha disposição de confiar em
minhas próprias práticas espirituais mais tradicionais e em minha fé em Deus.
O Joh-rei
parece relativamente seguro, na medida em que não parece abrir o corpo etérico
ou de energia sutil. Várias outras formas de cura psíquica, contudo, que de
fato intervêm com força no nível da energia sutil, podem, sem querer, abrir a
pessoa a outras influências, que estão longe de ser saudáveis.
Os
curadores mais poderosos dessa categoria são os cirurgiões psíquicos das
Filipinas. Experimentei esse poder em várias ocasiões, tanto nas Filipinas
quanto aqui nos Estados Unidos. Embora haja alguns charlatães, os que conheci
são genuínos. Estou convencido disso, tendo observado várias operações e tendo
sido operado por eles. Como não há como eu provar isso, o leitor terá de
limitar-se a acreditar que eu acredito.
Esses curadores
têm o poder de abrir partes do corpo humano com as mãos nuas para remover
matéria estranha e tecido doente, virtualmente desmaterializando áreas
específicas, que em seguida se recompõem imediatamente, como água em uma bacia
que não deixa buraco quando se retira dela um objeto. Há pouca ou nenhuma dor,
e nenhum período de convalescença, exceto um processo de “voltar ao normal” em
nível de energia sutil, que pode levar um ou dois dias.
Embora os
cirurgiões psíquicos possam abordar a cura de condições graves ou apenas
incômodas de formas impossíveis à ciência moderna, sua taxa de sucesso, segundo
suas próprias estatísticas, é comparável: um terço curado, um terço melhorado e
um terço inalterado. Eu geralmente estava no segundo terço.
Embora a
maioria dos cirurgiões psíquicos sejam cristãos e atribuam seu poder ao
Espírito Santo — o que não há razão para, necessariamente, duvidar —, é claro
que utilizam uma técnica xamânica antiga. Poderes similares foram atribuídos a
xamãs em muitas partes do mundo, embora a maioria dos primeiros exploradores
costumeiramente as explicasse como truques de prestidigitação, outra antiga
prática “espiritual” ainda usada por charlatães hoje.
Creio que
os cirurgiões psíquicos trabalham através do mundo dos devas ou dos jinn,
seres residentes no plano psíquico que podem interagir com o plano material em
certas circunstâncias. Alguns desses seres são claramente benéficos e podem de
fato estar operando sob a bênção do Espírito Santo. Ainda assim, a cirurgia
psíquica não é miraculosa. Dá a impressão de ser uma tecnologia psíquica antiga
e sofisticada, desenvolvida por culturas que eram tão avançadas nesse campo
quanto nós o somos em nossa própria marca de magia de alta tecnologia. É uma
intervenção bem-intencionada de indivíduos altamente treinados e orientados
para o serviço. Não é um ato direto de Deus.
Os
cirurgiões psíquicos genuínos que conheci são poderosos e benevolentes.
Ajudaram muita gente. Contudo, é verdade que tal cirurgia, e outras formas de
cura psíquica que lidam com o corpo de energia sutil, trazem perigos ocultos.
Um perigo é que possamos nos viciar em presenciar prodígios e comecemos a
perder a fé, já que estamos agora tentando fundamentá-la na demonstração:
“prova” não é fé. “Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não
viram e creram.”
E, se a
cirurgia física expõe ao risco de infecção pós-operatória, o mesmo pode ser
verdadeiro para a cirurgia psíquica em nível mais sutil. Se o paradigma de
“livrar-se do mal” não for subordinado ao paradigma de “abrir-se à verdade e ao
amor de Deus”, essa purificação meramente negativa pode resultar na condição
descrita na parábola de Jesus, em que o demônio expulso vagueia por lugares
áridos, lembra-se de sua antiga “casa”, volta e a encontra “varrida e
adornada”, como que pronta para recebê-lo, e traz consigo sete demônios piores
do que ele. (A ex-terapeuta New Age Clare McGrath-Merkle escreve com grande
lucidez sobre essa possibilidade, a partir de dura experiência pessoal, bem
como sobre os perigos psíquicos, psicológicos e físicos do trabalho com
energias sutis e da “magia branca” em geral.)
Quanto a
mim, só posso compartilhar dois fenômenos interessantes. Tendo recebido ajuda
clara dos cirurgiões para um problema de saúde preocupante, adquiri o hábito de
visitá-los sempre que vinham à minha região. Então notei algo curioso: se num
primeiro momento eram úteis, nas duas últimas vezes em que os procurei meu
problema voltava, em pequena escala, pouco antes de sua chegada, como se
precisasse estar ali só para que eles o pudessem curar. Seria a própria
presença deles a atrair mais impurezas à superfície? Ou eu havia entrado em uma
zona de retornos decrescentes e de apegos sutis? Felizmente, meu dilema foi
resolvido por meu diretor espiritual que, com gentileza mas firmeza, pediu que
eu parasse de vê-los.
O segundo
fenômeno — comparável, em termos emocionais, a ver um muro de tijolos desabar
sobre um trecho de calçada por onde se vinha caminhando — foi que, após minha
última visita aos cirurgiões psíquicos, sonhei com o Anticristo. Não tomo isso
necessariamente como significando que os cirurgiões sejam de fato seus servos —
embora Deus saiba melhor. Mas permanece o fato de que a “religião psíquica” que
se apoia em sinais e prodígios estará entre os primeiros territórios a serem
conquistados e ocupados pelo Anticristo quando ele vier… e, quando as
embarcações de desembarque forem lançadas e o bombardeio naval começar, não é
boa ideia ficar na praia.
Nove
princípios da New Age
O Dr.
Rama Coomaraswamy, em um artigo intitulado “A dessacralização do hinduísmo para
consumo ocidental”, enumera nove princípios New Age, que ele toma de um livro
da Dra. Catheryn Ridall, Ph.D., e que representam a essência dos “ensinamentos
espirituais” canalizados hoje. Abaixo segue um resumo deles, em que tento
separar os elementos de verdade espiritual da matriz de erro que é a doutrina
New Age.
Uma
falsificação é pior do que um simples erro. Esses nove princípios estão cheios
de equívocos que, no entanto, são precisamente concebidos para obscurecer
verdades metafísicas específicas. E o efeito de tais contrafações é que “se
você faz, está condenado; se não faz, também”. O Diabo adora empregar
falsificações, porque aceitá-las é ser levado ao erro, ao passo que rejeitá-las
sem expô-las — isto é, sem trazer à luz o verdadeiro princípio que a
falsificação foi concebida para esconder — é ser manobrado a rejeitar a verdade
que está sendo imitada.
Tentarei
desconstruir os “princípios” que se seguem, expor as falsificações de que são
feitos e apresentar os princípios tradicionais que elas velam:
- Evolução universal da
consciência rumo a maior amor e compaixão.
Isto é
certamente falso se aplicado à coletividade humana ou ao universo material. A
receptividade da consciência encarnada e condicionada pelo tempo à Realidade
Divina cresce e decresce de modo cíclico, e a receptividade humana a Deus, no
plano coletivo, encontra-se hoje em queda acentuada e irreversível. A verdade
encoberta aqui é que o destino da alma individual no caminho espiritual é
“evoluir” no sentido de “desenrolar o que foi enrolado”, dissolvendo o núcleo
duro de egotismo e de vontade própria.
Essa
“evolução” inclui certamente o desenvolvimento da compaixão — em termos do
budismo mahayana, “a realização do vazio (não-ego) é idêntica à compaixão” —,
mas (e aqui o princípio é enganoso por ser incompleto) essa “evolução” resulta
também no desenvolvimento de um verdadeiro conhecimento objetivo.
- No contexto da evolução
universal da consciência, podemos ser guiados tanto por seres mais
‘evoluídos’ do que nós quanto por partes superiores de nós mesmos que
também estão evoluindo.
É
certamente verdade que pessoas mais sábias do que nós, seja porque nasceram
mais sábias, seja porque percorreram mais do caminho espiritual, podem às vezes
ser designadas por Deus para nos guiar, se preenchermos as condições
necessárias — desde que nós e elas compreendamos que, em última análise, Deus é
o único guia.
E, em
casos raros — como o do guia sufi Khidr, considerado um profeta imortal,
desencarnado, ou melhor, habitando um corpo sutil como o Cristo glorificado —,
seres mais “avançados” do que nós podem legitimamente nos guiar de modo ao qual
possamos responder conscientemente. Mas crer que essa possibilidade rara torna
desnecessário conectarmo-nos a uma tradição revelada e colocarmo-nos (se Deus
quiser) sob a orientação de um representante humano plenamente autorizado dessa
tradição, supondo que exista um, é falso.
E crer que o contato consciente e contínuo com um “guia” desencarnado seja
normal — para qualquer um que não seja um feiticeiro, isto é, alguém em
comunhão com seu espírito familiar - e que tal contato não é uma porta aberta
para a possessão demoníaca é uma ilusão profundamente enganosa. Além disso,
dizer que podemos ser guiados pelo nosso “eu superior”, que também está
evoluindo, é falso; tentar orientar-se espiritualmente para algo que ainda está
no reino do devir é reduzir o significado de “orientação espiritual” a zero.
Se há algum sentido para o termo “eu superior”,
ele só pode referir-se, não a jiva (a alma
individual), mas ao atman, o nível de
Espírito em nós que Eckhart indicou quando disse: “há algo dentro da alma que é
incriado e incriável”. O atman não nos
guia no sentido de que possamos travar com ele uma conversação, mas porque,
como “o Sujeito absoluto de nossa subjetividade contingente” (Schuon), Deus no
modo de Testemunha, ele representa a moksha
virtual (termo hindu para a Libertação final), no sentido em que o Buda falava
ao dizer que “todos os seres são iluminados desde o princípio”, embora soubesse
muito bem que nem todos os seres, dentro de um determinado período de tempo,
viriam a realizar essa iluminação.
Reflexos psíquicos do atman, sugestivos dele embora não devam ser identificados
com ele, certamente podem aparecer em sonhos ou visões. Esses reflexos serão
enganosos, ambíguos ou veículo da Graça de Deus, dependendo da vontade de Deus
para aquela pessoa e de seu estado espiritual. The Psychology of Sufism, do Dr. Javad Nurbakhsh, por
exemplo, contém um catálogo de símbolos oníricos do Coração espiritual, que
Jung chamaria de símbolos do arquétipo do Self. Mas tais símbolos só funcionam
como marcos psíquicos confiáveis dentro do contexto do próprio sufismo, assim
como os símbolos da Cabala só funcionam para cabalistas iniciados e
praticantes, etc.
3,4. A terra está em um ponto crítico de seu
desenvolvimento; estamos testemunhando uma grande mudança de valores, estilos
de vida, orientação espiritual; estamos caminhando rumo a maior maturidade
espiritual; a terra passará por uma purificação de valores e da organização
social; haverá mudanças terrestres como terremotos.
É verdade que a terra está em um ponto
crítico, mas a mudança de valores, estilos de vida, orientação espiritual e
organização social não é rumo a maior maturidade espiritual, mas rumo ao caos e
à dissolução. É verdade que haverá, e já há, mudanças terrestres, como foram
preditas por Jesus para o fim do século, e verdade que haverá uma purificação.
Mas essa purificação será apocalíptica, não progressiva, e representará o fim
da humanidade atual. O “novo céu e a nova terra” serão para “outra” humanidade.
5.
Guias estão agora aparecendo para nos ajudar através
dessa transição para uma era de paz; novas energias de frequência mais elevada
causarão distúrbios menores no comportamento.
É falso que estejamos em transição para um
tempo de paz, a não ser que se trate de uma paz falsa e temporária; portanto os
“guias” que afirmam estar nos ajudando através dessa transição são enganosos.
Nem os distúrbios atuais de comportamento são “menores”, para dizer o mínimo. É
verdade, de certo modo, que estamos encontrando “energias superiores”, mas isso
se dá porque nosso próprio nível de integração está caindo a tal ponto que a
Graça sempre presente de Deus só pode ser experimentada, no plano coletivo,
como ira, já que não somos receptivos a ela. O “nível de energia”, ou nível
ontológico, da parousia ultrapassa de
tal maneira aquilo que o mundo pode receber que o despedaçará, abrindo caminho
para “um novo céu e uma nova terra”.
6.
O ser humano é uma parte de uma alma ou eu-divino
multidimensional; somos muito mais do que pensamos ser.
Verdadeiro e falso. Como disse Jesus, “vós
sois deuses, e todos filhos do Altíssimo”. Mas ele equilibrou isto dizendo:
“Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, que é Deus”. É verdade que a
humanidade existe simultaneamente em mundos mais altos do que o material, a
saber, o psíquico e o Espiritual. Não ascendemos simplesmente a esses mundos,
nem neles ingressamos pela primeira vez quando morremos, porque a “Grande
Cadeia do Ser” representa o “raio” mediante o qual Deus nos criou e mantém na
existência, instante após instante.
Se, porém, nos voltamos contra esses mundos
superiores — dando nossa fidelidade ao ego em lugar de dá-la a Deus —, então
eles se tornarão nosso Inferno: a psique, um caos angustiado; o Espírito em
nós, uma Luz cortante e cegante que nos força a afastar-nos do Centro radiante
do Ser, como as legiões de Miguel expulsando o Demônio e seus anjos para o
abismo. A questão central é esta: esses aspectos mais elevados de nosso ser são
reivindicados pelo ego, como se fôssemos autocriados, ou são vistos como dom de
Deus, de nosso próprio ser, que não podemos reivindicar como nosso nem mesmo em
termos materiais?
Os adeptos da New Age gostam da ideia de que
existimos simultaneamente em mundos superiores; com o que têm maior dificuldade
é com o fato de que “aquele que quiser salvar sua vida a perderá, mas aquele
que perder sua vida por amor de Mim a encontrará”. Isto porque querem
reivindicar esses mundos superiores para o ego; ensinam que podemos entrar e
“explorar” esses mundos como espécie de atividade de lazer, por uma simples
expansão incremental de nosso “potencial humano”, sem piedade, sem sacrifício,
sem temor de Deus. Sua doutrina é essencialmente prometeica; escolhem esquecer
que “quem nasce duas vezes precisa morrer uma vez”.
7.
Criamos nossa própria experiência em todos os níveis;
não há vítimas; criamos nosso próprio sofrimento como experiência de
aprendizado.
É falso dizer que criamos nossa própria
experiência se o “nós” em questão é a psique individual, porque a psique não se
cria a si mesma, sendo totalmente contingente em relação ao Espírito de Deus, e
porque outras psiques individuais existem; o solipsismo aqui implícito é assim
refutado tanto “vertical” quanto “horizontalmente”. Há, entretanto, um sentido
em que isso é verdadeiro, mas apenas em sentido negativo, já que certamente
criamos algumas de nossas próprias limitações perceptivas. Em vez de “criamos
nossa própria realidade”, seria melhor dizer “criamos nossas próprias ilusões,
que então se tornam nossa ‘realidade’”.
A psicologia da percepção demonstrou até que
ponto nossa visão do mundo é um padrão aprendido, determinado tanto pela
cultura quanto pela experiência pessoal, senão por uma série de escolhas
baseadas no medo e no desejo. Isso significa que, na medida em que tomamos o
mundo que percebemos como algo absoluto, estamos aprisionados em um padrão
subjetivo, ao passo que, se percebemos que esse padrão subjetivo de experiência
é relativo, que, em face da Realidade objetiva, ele não passa de uma privação,
então começamos a libertar-nos dele, já que passamos a intuir a Matriz Absoluta
da qual tal padrão é apenas uma versão editada.
Assim, quando os crentes da New Age dizem
“criamos nossa própria realidade”, minha resposta é “Sim e não. Nossa mente e
nossos sentidos não projetam essa ‘realidade’ sobre o nada, mas a abstraem a
partir do Infinito, que é a verdadeira Realidade; a ‘realidade’ que criamos é
uma limitação imposta ao Infinito”.
Dizer “não há vítimas” é verdade se com isso
queremos dizer que tudo, em sentido último, é um ato de Deus, e Deus é justo —
como diz Schuon, mesmo o sofrimento do inocente é justificado do ponto de vista
que vê a própria existência cósmica, embora em certo sentido necessária, como
um desequilíbrio diante do Absoluto. Nas palavras de Rabi’a: “a tua existência
é um pecado com o qual nenhum outro pecado pode ser comparado”.
A ideia de que não há vítimas é uma
interpretação da lei do karma — mas, se se dá a entender nessa interpretação
que a caridade para com os que sofrem não é obrigatória para nós, já que “isso
é apenas o karma deles”, ou que podemos tornar-nos libertos simplesmente
criando ilusões para nós mesmos e depois vendo através delas, então ela é falsa.
O karma não é um sistema autoexaurível; sem dharma,
a verdade operante que eleva alguém acima do nível de causa e efeito kármico ao
afirmar a realidade da autotranscendência, o karma nunca pode ser “vivido até o
fim”; sem a Misericórdia da Verdade de Deus, livremente dada e livremente
aceita, juntamente com sua “cruz”, a ilusão nunca pode ser dissipada. A danação
é a prova de que nem todo sofrimento tem o poder de iluminar.
8.
A matéria segue o pensamento; nossa realidade física é
criada, e pode ser mudada, por nossas crenças.
A matéria segue o pensamento de Deus, não o
nosso; sugerir o contrário, dizer que somos cocriadores por direito próprio, é
falso. É verdade que nossa experiência pode ser mudada ao mudarmos nossas
crenças, mas essa mudança não pode ser soberana nem arbitrária. Não podemos
simplesmente acreditar no que quisermos e pensar que estamos assim controlando
o mundo, porque realmente há uma realidade objetiva, tanto em nós quanto fora
de nós, algo que é exatamente o que é, não importa o que aconteça de
acreditarmos.
E é também provável que tenhamos tão pouco
controle sobre nossos desejos, sobre aquilo em que queremos crer, quanto sobre
o mundo exterior. Acreditar que podemos mudar o que é mudando o que cremos a
respeito do que é é a fantasia de onipotência do ego infantil expandida em
falso princípio metafísico.
Uma mudança de crença pode alterar nossa
experiência de duas maneiras apenas: se conformarmos nossas crenças à Verdade
espiritual objetiva, veremos o universo como ele realmente é, ao mesmo tempo
contingente em relação a essa Verdade e manifestação dela; se nossas crenças
forem determinadas pelo ego, que interpreta o mundo ao seu redor apenas com
base nos próprios medos e desejos, nada perceberemos e produziremos senão caos.
Agora, em sentido mais limitado, é verdade
que uma pessoa profundamente deprimida, por exemplo, acreditará que menos
coisas são possíveis em relação ao seu entorno físico, enquanto alguém em
estado maníaco pode temporariamente ser capaz de responder a possibilidades físicas
e psicológicas reais que o deprimido não consegue ver — mas não sem
consequências graves, já que ele não percebe as limitações inerentes a tais
possibilidades, que estão objetivamente lá, independentemente da crença.
É certamente verdade que um santo pode ser
veículo de milagres físicos, mas isso nada tem a ver com manipulação de crença,
sendo operação direta de Deus tornada possível pela fé. Um mago também pode ser
capaz de produzir mudanças na matéria física ou em situações, e poder-se-ia
dizer que consegue fazê-lo porque acredita que consegue, mas as manifestações
reais são produzidas por forças psíquicas que existem quer ele creia nelas,
quer não. O mago branco necessariamente compreenderá que é veículo de forças de
um plano mais sutil, mas o mago negro frequentemente acredita, falsamente, que
comanda tais forças; ele aplica o ingênuo credo cotidiano de que “sou capitão
do meu destino, senhor da minha alma” a planos mais sutis, não querendo
entender que quem quer que creia que, com seu ego limitado, comanda as forças
de um reino mais sutil, está na verdade escravizado por elas.
A prática da magia é como emitir cheques
sobre uma conta no vermelho: embora você talvez possa “descontá-los” e assim
produzir “fenômenos”, eles serão fenômenos de dívida, não de valor. “E não
sairá dali enquanto não tiver pago o último centavo.” O ego não pode produzir
nada além de privação; todo poder e todo valor pertencem a Deus.
É verdade que, se todos conformássemos
perfeitamente nossa consciência à Realidade espiritual objetiva, o mundo
material se dissolveria e seria transformado em Paraíso. Mas isso está tão
distante quanto possível da ideia de que nossas crenças criam a realidade a
partir do nada, visto que tal conformação perfeita — que, obviamente, é
impossível em termos práticos — não poderia ser função de crença, que vê “como
por espelho, em enigma”, mas apenas de verdadeiro conhecimento objetivo. Como
ressaltei acima, o ego não cria; ele apenas edita.
9.
Embora nossa expressão individual demonstre grande
diversidade, somos todos, em última análise, um.
Verdade. A única questão é: em que sentido
somos um? Se isto se entende horizontalmente, no plano social ou em termos de
participação nos mesmos motivos subconscientes, então o melhor que se pode
dizer é que, para o bem ou para o mal, estamos relacionados, ou apenas
“relativamente unos”. Nossa verdadeira unidade é vertical, em virtude do atman ou Self Divino em nós; somos todos
criações, ou manifestações simbólicas, do único Self Divino. Em virtude desse atman somos, no mais profundo nível do
nosso ser, ao mesmo tempo únicos e universais.
O Self em nós é Ser puro, transpessoal,
universal, sem atributos; em outro sentido, está até além do Ser. Mas, como
Deus é único bem como universal, o Self é também o princípio de nossa integridade
humana única, segundo a qual não somos simplesmente a humanidade em abstrato,
mas seres humanos efetivos, ordenados por Deus a ser precisamente nós mesmos,
nem mais, nem menos, nem outros.
E, contudo, essa singularidade é também
universal, já que é partilhada por todos os seres humanos e, de fato, por todas
as coisas. O Self como princípio de unicidade não é outro que o Self como
princípio do Ser puro, como quando Deus, falando a Moisés no Êxodo, nomeia-se a
Si mesmo “Eu Sou o que Sou”, isto é: “Minha Essência única não é outra que Meu
Ser puro; é Minha Essência única ser o Ser puro”. E o que Deus pode dizer de Si
mesmo, podemos igualmente dizer, pelo menos virtualmente, de Deus, o atman em nós.
E mais dois
A esses nove princípios, gostaria de acrescentar
outros dois que creio serem igualmente integrantes da crença New Age:
10. Que
psique e Espírito são idênticos.
11. Que
a espiritualidade é uma conquista pessoal, um feito, um tour-de-force.
Como demonstro em muitos lugares ao longo
deste livro, ambos esses princípios são inteiramente falsos.
Os cristãos não estão sozinhos
Como a New Age é em grande parte um fenômeno
“pós-cristão” e, com frequência, abertamente anticristão, a maioria das
críticas a ela (se deixarmos de lado os humanistas seculares, que tendem a ver
todas as religiões mais ou menos como seitas) veio do campo cristão. A maioria,
mas não todas.
Em The
Desacralization of Hinduism for Western Consumption, o Dr. Rama
Coomaraswamy, um católico tradicional que viveu por muitos anos, na juventude,
como hindu ortodoxo, traça as carreiras de Sri Aurobindo, Maharishi Mahesh Yogi
e Bagwan Shree Rajneesh, apresentando-os como exemplos de mestres hindus
espúrios cuja influência sobre a New Age foi profunda e ampla; tais mestres de
modo algum representam o hinduísmo normal. Escreve Coomaraswamy: “Que pensam os
expoentes ortodoxos do hinduísmo sobre Mahesh Yogi? A pergunta foi feita a Sua
Santidade Sri Chandraskharendra Sarasvati, Sri Shankaracharyaswami de Kamakoti
Peetha, 68º Acharya na linha de Kamakoti Peetha e uma das mais altas
autoridades dentro da tradição hindu. Sua resposta foi que o homem era um
impostor!”
Um segundo grupo que tem sido crítico da New
Age, por ter sido diretamente vitimado por ela, são os anciãos espirituais
tradicionais nativo-americanos. Os trechos seguintes, de um artigo de Gary
Knack na edição da primavera de 1997 do jornal indígena Akwesasne Notes, mostram como os problemas com “New Age med
men” são semelhantes aos escândalos mais conhecidos envolvendo mestres hindus e
budistas ocidentalizados, pastores protestantes e padres católicos.
Há por aqui vários chamados
“homens-medicina”, de ascendência nativa,
que se perverteram e lançaram uma doença sobre o povo. Um deles,
como muitos sabem, usou sua posição respeitada para molestar sexualmente
crianças. Ao se descobrir esse fato, a palavra foi dada para ficar quieto,
pois isso poderia prejudicar o movimento. Muitos de seus seguidores,
em sua maioria brancos, permaneceram ao lado dele e continuaram
trabalhando nas comunidades brancas ignorantes no sul da Califórnia.
… Um chamado “homem-medicina”, de ascendência lakota, foi promovido
localmente [em Ashland, Oregon] por um professor universitário, seu
agente. Tornou-se bem conhecido, e ainda é, por seus livros e excursões
New Age… fomos informados por uma das mulheres brancas, que iam
regularmente suar conosco, de que esse “med man” tinha um histórico
local de sondar sexualmente mulheres nas cabanas de suor… alguns do
grupo de Los Angeles e seguidores do molestador de crianças
aproximaram-se do “med man” New Age com dinheiro na mão e
quiseram iniciar uma sundance
multirracial nos arredores de Ashland.
Feito. Começou em 1988. Recusamos aproximar-nos disso. Passamos a
ver a confusão derivada à medida que o “med man” a dirigiu por vários
anos. Inflou egos já inchados; famílias se desintegraram; um dos auxiliares
nativos cometeu suicídio em Dakota do Sul; outro supostamente cometeu
assassinato; houve confrontos armados por causa de drogas; a “cerimônia”
foi alterada para adequar-se às sensibilidades brancas, e por aí vai.
Alguém mais assumiu depois que o “med man” acabou se afastando,
mas o estrago já estava feito e a doença se espalhando. Os que queriam
ser passaram a ser “homens e mulheres-medicina”. Já estão vendendo
fitas de vídeo sobre o cachimbo sagrado e outras práticas cerimoniais.
As práticas espirituais nativo-americanas,
tradicionais e não tradicionais, tornaram-se altamente comercializadas em
círculos New Age. Mas, como escreve Don R. em um editorial intitulado Are Non-Native Americans Meddling in American
Indian Ways? (New Perspectives, A
Journal of Conscious Living, 8 de julho de 1994):
Vender ou trocar objetos sagrados como penas
de águia ou cachimbos sagrados
é contrário a todos os Ensinamentos Espirituais Nativo-Americanos
e à lei federal. Eles só podem ser dados, sem apego, para Cerimônia.
Quebrar esse modo seguirá você pela eternidade no Pós-vida.
Nenhum dinheiro ou supostos “Dons de Medicina” será aceito por ensinamentos,
especialmente por Cerimônia. Nossos Modos sagrados são um dom
dos Avôs e do Criador, e você não barganha com o Criador.
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