Título da Obra:
Psique e Desejo: A Submissão do Corpo à Soberania da Mente
Autor: Antônio Freixo
Índice
Capítulo I — A Dimensão Instintiva e os Limites da Biologia.
Artigo 1 — O Desejo como Impulso Natural: Fundamentos Neurobiológicos da Sexualidade Humana
Este artigo explora os aspectos biológicos do desejo sexual à luz das descobertas da neuroendocrinologia moderna. Aponta a função dos hormônios sexuais — testosterona, estrogênio, dopamina, ocitocina — e os mecanismos cerebrais que regulam a libido. Aborda o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas e as influências evolutivas no comportamento sexual. São tratados autores como Simon LeVay, Helen Fisher e Robert Sapolsky.
Artigo 2 — A Tensão Corpo-Mente: Da Liberdade Psíquica à Repressão Fisiológica
Investiga os casos em que a psique, diante de traumas, medos, bloqueios ou memórias dolorosas, subverte a ordem biológica e interfere negativamente na função hormonal. Discute a dinâmica psicossomática do desejo e a capacidade da mente de inibir ou redirecionar a energia sexual. Autores como Franz Alexander, Viktor Frankl, Groddeck e Bessel van der Kolk são analisados.
Artigo 3 — O Reducionismo Biologicista e suas Críticas Filosóficas
Questiona a leitura puramente mecanicista do desejo humano, contrapondo-a com visões filosóficas que consideram o homem como unidade psicofísica e simbólica. São discutidas as limitações do determinismo hormonal e da explicação genética do erotismo. Autores como Thomas Fuchs, Michel Henry, Alasdair MacIntyre e Ortega y Gasset são confrontados com o biologismo contemporâneo.
Capítulo II — A Psicogênese do Desejo: Imaginário, Vínculo e Representação.
Artigo 1 — Libido e Inconsciente: Da Teoria Freudiana à Crítica Pós-Freudiana
Analisa o conceito de libido na psicanálise, especialmente em Freud, e suas reformulações em Jung e Lacan. Explora como a energia sexual se desloca, se sublima ou se reprime segundo estruturas simbólicas e narrativas inconscientes. O desejo é tratado como construção mental que escapa ao controle hormonal direto. Discute-se também a crítica de Otto Rank e Erich Fromm.
Artigo 2 — Representação, Apego e Desejo: A Influência dos Vínculos Psíquicos na Configuração da Libido
Estuda a função dos vínculos emocionais e das representações mentais (fantasias, afetos, imagens) na formação do desejo sexual. A teoria do apego de Bowlby, os estudos de Sue Johnson e os experimentos de Harry Harlow servem de base para compreender como o desejo não se reduz ao prazer, mas é antes desejo de presença, de fusão, de permanência.
Artigo 3 — Cultura, Moral e Símbolos: A Construção Social do Erótico
Discute a interferência da cultura, da linguagem e dos códigos simbólicos naquilo que é considerado desejável ou abjeto. Analisam-se os trabalhos de Foucault sobre sexualidade e poder, as análises antropológicas de Margaret Mead e Malinowski, e os estudos contemporâneos de Byung-Chul Han. A mente, formada por signos culturais, filtra e reconfigura os impulsos brutos.
Capítulo III — A Soberania da Psique: Casos, Contrapontos e Consequências.
Artigo 1 — Evidências Clínicas da Supressão Hormonal por Condição Psíquica
Examina casos documentados na psiquiatria e na neuropsicologia onde distúrbios emocionais provocam alterações hormonais significativas. Transtornos de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, bloqueios eróticos e fobias são tratados como variáveis psíquicas com efeito fisiológico mensurável. Autores como Goleman, Damasio e van der Kolk sustentam o quadro.
Artigo 2 — Contraexemplos e Teorias Opostas: A Vontade Escrava dos Hormônios?
Aborda os autores que defendem a primazia do biológico sobre o psíquico. O texto confronta as hipóteses de E. O. Wilson, Steven Pinker e Richard Dawkins, que sustentam que o comportamento sexual é resultado quase automático de pulsões genéticas, com pouco espaço para a subjetividade. São analisados seus argumentos à luz de contraprovas empíricas e filosóficas.
Artigo 3 — Corpo Submisso, Mente em Guerra: A Ética da Liberdade Sexual como Ato de Consciência
Conclui a obra com uma reflexão ética sobre o desejo como campo de liberdade ou de escravidão. Retoma a ideia de que a mente, mesmo marcada por traumas, pode reconquistar sua autoridade sobre o corpo. Examina autores que sustentam a reconstrução simbólica do desejo como ato de redenção psíquica: Viktor Frankl, Gabriel Marcel, Edith Stein e Karol Wojtyła.
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Capítulo I — A Dimensão Instintiva e os Limites da Biologia.
Artigo 1 — O Desejo como Impulso Natural: Fundamentos Neurobiológicos da Sexualidade Humana.
A sexualidade humana, ao menos sob a lente das ciências biológicas, inicia-se como uma função análoga à fome, à sede e ao sono. Trata-se de uma pulsão vital enraizada nos mecanismos neuroendócrinos, desenvolvida ao longo de milhões de anos de seleção natural. O desejo, neste plano, não é ainda linguagem, nem história, nem culpa — é pura exigência de continuidade da espécie, codificada no corpo como necessidade, não como escolha. Contudo, mesmo em sua expressão mais bruta, o instinto sexual já não é meramente mecânico, pois atua em interação com sistemas cerebrais complexos, capazes de antecipar, condicionar e até reprimir a excitação em função do ambiente percebido ou imaginado.
O sistema nervoso central, em particular o eixo formado pelo hipotálamo, a hipófise e os gônadas, opera como um circuito integrado, que regula a produção dos principais hormônios sexuais: testosterona, estrogênio, progesterona, dopamina e ocitocina. Esses hormônios modulam diretamente o desejo, a excitação e os comportamentos de aproximação sexual. A dopamina, por exemplo, ativa o sistema de recompensa cerebral, conferindo ao ato erótico sua natureza gratificante e viciante. A testosterona, presente em maior quantidade nos homens, mas também nas mulheres, está diretamente associada ao impulso de conquista, competição e libido. O estrogênio, por sua vez, regula não apenas a fertilidade, mas também a sensibilidade emocional e a disposição ao contato afetivo, especialmente em ciclos específicos do mês.
Pesquisas de neuroimagem funcional revelaram que estímulos eróticos ativam regiões cerebrais como o córtex orbitofrontal, o núcleo accumbens, a amígdala e o hipotálamo. Simon LeVay, neurocientista americano, demonstrou diferenças estruturais em regiões hipotalâmicas entre cérebros heterossexuais e homossexuais, indicando que mesmo a orientação do desejo pode ter bases anatômicas e hormonais. Robert Sapolsky, por sua vez, mostrou como variações hormonais em primatas afetam drasticamente o comportamento sexual, status social e agressividade, sem que o animal possua qualquer elaboração consciente desses atos. Essas observações reforçam a ideia de que o impulso sexual se constitui antes de qualquer representação cultural ou moral, sendo uma predisposição natural do organismo humano.
Helen Fisher, antropóloga e especialista em biologia do amor, propõe que a sexualidade humana evoluiu em três sistemas cerebrais interligados, mas distintos: o desejo sexual (baseado na testosterona), o amor romântico (dopamina e norepinefrina) e o apego duradouro (ocitocina e vasopressina). Cada um desses circuitos tem função biológica específica, mas pode ser ativado de forma independente. Tal separação permite, por exemplo, que um indivíduo deseje sexualmente um parceiro sem amá-lo, ou que mantenha laços afetivos profundos sem desejo físico ativo.
Ainda assim, a autonomia do desejo sexual em relação à psique não é absoluta. Já nesse primeiro nível — o neurobiológico — percebe-se que estímulos simbólicos, como imagens, palavras, memórias ou expectativas, são capazes de ativar ou inibir todo o circuito do prazer. O erotismo, diferentemente do impulso de fome, pode ser aceso por uma metáfora ou apagado por uma palavra. O corpo responde ao mundo mental, mesmo quando o ponto de partida é uma cascata hormonal. Isso indica que, se o desejo é natural em sua origem, ele é também, desde o início, interpretável — e, portanto, vulnerável à soberania da mente.
Ao fim deste primeiro exame, impõe-se uma constatação dupla: o desejo é real como instinto, inscrito no tecido biológico do ser humano; mas é igualmente sensível às interferências do simbólico, do afetivo e do espiritual. A mente, mesmo não sendo sua origem, desde cedo interfere no seu curso. Essa tensão entre o impulso e o significado será o centro das análises subsequentes, onde veremos como o corpo se curva ou resiste ao governo da psique.
Artigo 2 — A Tensão Corpo-Mente: Da Liberdade Psíquica à Repressão Fisiológica.
Se o primeiro contato com o desejo sexual se dá na carne, sua permanência e direção dependem daquilo que a mente autoriza ou nega. O corpo pode iniciar um movimento de excitação, mas é a consciência — permeada por medos, memórias, crenças e imagens — quem permite ou impede sua realização plena. A experiência clínica e os dados da psicossomática deixam claro: o instinto, embora espontâneo, não escapa ao crivo da interioridade. Em outras palavras, o corpo deseja, mas a alma decide.
A psicossomática clássica, desenvolvida por Franz Alexander e aprofundada por Georg Groddeck, demonstrou que o sistema endócrino, responsável pela produção hormonal, é altamente suscetível ao estado psíquico. Emoções como culpa, vergonha, angústia e ressentimento não apenas desorganizam o comportamento consciente, mas produzem reações fisiológicas mensuráveis. Um desejo reprimido pode se manifestar por meio de disfunções sexuais, anorgasmia, impotência ou bloqueios hormonais cuja origem não se encontra em lesões ou falhas orgânicas, mas em conflitos interiores não resolvidos. O corpo, incapaz de sustentar uma energia que a mente recusa, responde desligando o impulso.
Esses fenômenos não são raros, nem restritos ao campo sexual. Bessel van der Kolk, em sua obra sobre traumas, mostra que vítimas de abuso emocional ou físico frequentemente desenvolvem alterações hormonais crônicas, inclusive no eixo HHA (hipotálamo-hipófise-adrenal), afetando diretamente a libido. Nestes casos, o corpo interpreta a repetição do trauma como uma ameaça contínua e ativa um estado de sobrevivência, no qual a reprodução e o prazer se tornam secundários. A mente bloqueia a entrega e o corpo reduz a produção de testosterona, estrogênio e dopamina, sem que haja doença física no sentido técnico. O desejo desaparece não por exaustão do organismo, mas por autodefesa do eu ferido.
A neurociência contemporânea confirma essa dinâmica. Antonio Damasio, em seus estudos sobre emoção e decisão, demonstra que o corpo só responde plenamente quando o cérebro interpreta o estímulo como positivo e seguro. O desejo, portanto, não é apenas uma reação ao estímulo erótico externo, mas à leitura simbólica que a mente faz desse estímulo. Um toque pode ser erótico ou invasivo, conforme o estado psíquico do sujeito. Um corpo nu pode excitar ou causar repulsa, conforme a narrativa interna que o indivíduo carrega.
Esse poder da mente sobre a fisiologia sexual é também observado em fenômenos como o desejo condicionado, os bloqueios psicogênicos, as obsessões eróticas e os estados de negação do prazer. Em todos eles, o corpo é compelido a obedecer à lógica interior, mesmo que essa lógica vá contra a biologia. A libido, como já dizia Freud, não é uma linha reta entre estímulo e satisfação. Ela passa por recalques, resistências, deslocamentos e sublimações que a moldam, enfraquecem ou distorcem.
A tradição psicanalítica oferece ferramentas para compreender essa tensão. A repressão — processo pelo qual certos conteúdos são banidos da consciência — tem efeitos diretos sobre o sistema nervoso autônomo e, por consequência, sobre o desejo sexual. A mente recusa uma lembrança ou uma imagem, mas o corpo não as esquece. O resultado é um estado de conflito em que o sujeito se encontra dividido entre o impulso biológico e a censura interna, com prejuízos para ambos os planos. A energia sexual, barrada na mente, não desaparece: ela retorna como sintoma, como fobia, como aversão, ou como indiferença.
A liberdade da mente, portanto, é ambígua. Ela pode libertar o corpo para o prazer pleno ou condená-lo à esterilidade simbólica. Há homens com testosterona abundante que se encontram impotentes diante da mulher amada por medo de fracassar. Há mulheres férteis e saudáveis que rejeitam o ato sexual por carregarem um trauma infantil. Há casais cuja química corporal seria ideal, mas cujas almas estão em guerra, e por isso seus corpos se anulam.
Diante disso, torna-se necessário repensar a noção de instinto como algo impermeável à subjetividade. O desejo sexual não é um rio que corre por si mesmo. Ele é uma força que precisa de direção, autorização e acolhimento interior. Quando a psique está em conflito, o corpo recua. O desejo é uma aliança entre o impulso vital e a narrativa pessoal. Quando essa aliança se rompe, a biologia se curva à psicologia.
Artigo 3 — O Reducionismo Biologicista e suas Críticas Filosóficas.
O avanço das ciências naturais no estudo da sexualidade humana gerou, nas últimas décadas, uma proliferação de modelos explicativos que tendem a reduzir o desejo a um conjunto de reações bioquímicas previsíveis, determinadas por fatores genéticos e reguladas por circuitos neuroendócrinos. Tal concepção — biologicista em sua essência — sustenta que o comportamento erótico é produto direto da anatomia e da química cerebral, sendo, portanto, previsível, controlável e mensurável. Nesta visão, a subjetividade do desejo, com seus dramas, símbolos e paradoxos, não passaria de um epifenômeno, uma ilusão poética que mascara processos puramente fisiológicos.
Autores como E. O. Wilson, na sociobiologia, e Richard Dawkins, na etologia evolucionista, propõem que o desejo sexual é apenas a forma como os genes se utilizam do organismo para perpetuar sua existência. A mente consciente, nesta leitura, é escrava de impulsos arcaicos que operam no nível do DNA. O homem ama, deseja, se apega e sofre não por razões metafísicas ou existenciais, mas porque esses comportamentos aumentam as chances de reprodução e sobrevivência da prole. A dopamina, a testosterona e a ocitocina explicariam, em última instância, todo o repertório erótico-afetivo da espécie.
Esse modelo, porém, encontra resistência crescente não apenas em círculos filosóficos, mas também em setores clínicos e neurocientíficos. A crítica central que se levanta contra o biologicismo sexual é que ele nega a realidade da experiência subjetiva como fonte de sentido e como instância determinante da conduta. Reduzir o desejo à química cerebral é ignorar que o homem é também um ser simbólico, capaz de amar por fidelidade à memória, de desejar aquilo que lhe fere, de renunciar ao prazer por um valor superior, ou de transfigurar a libido em linguagem, arte ou oração. O corpo é real, mas não é absoluto — e isso é o que o biologicismo se recusa a admitir.
Thomas Fuchs, psiquiatra e filósofo da medicina, denuncia o "imperialismo cerebral" que transforma todo fenômeno humano em função de circuitos neuronais. Para ele, o desejo não pode ser captado por ressonância magnética, porque ele não é apenas um evento cerebral, mas uma vivência encarnada, que envolve o mundo vivido, a intencionalidade do sujeito e sua história existencial. Michel Henry, por sua vez, afirma que o erotismo não é um fenômeno objetivável, mas uma experiência interna da carne vivente, que escapa a toda descrição empírica. O desejo, na visão fenomenológica, é revelação da subjetividade em sua potência máxima, não um reflexo de descargas químicas.
Alasdair MacIntyre também participa desse coro crítico ao apresentar o ser humano como agente moral inserido em narrativas teleológicas. O desejo, neste contexto, não é uma força cega, mas um elemento integrado à busca por um bem específico. Deseja-se dentro de uma estrutura narrativa que dá sentido ao ato, e é essa estrutura que orienta o impulso. Reduzir o desejo ao instinto é negar ao homem a possibilidade de deliberar, de elevar-se ou de sacrificar-se por algo maior que si.
Ortega y Gasset, em sua doutrina do "homem e suas circunstâncias", retoma a distinção entre o dado e o construído. O homem não está condenado a obedecer à sua biologia; ele a interpreta, a negocia, a transcende. O corpo lhe impõe possibilidades, mas é a alma quem escolhe o caminho. O desejo, nessa chave, não é um simples chamado da carne, mas uma interrogação dirigida ao sentido: o que se deseja, afinal? E por quê?
Ao fim, a crítica filosófica ao reducionismo biologicista não nega os dados empíricos da ciência, mas contesta sua pretensão totalizante. A biologia pode descrever os meios, mas não os fins. Pode explicar o mecanismo do prazer, mas não o valor do amor. Pode medir a frequência da excitação, mas não o sofrimento da ausência. O desejo humano é, sim, condicionado pelo corpo, mas é antes de tudo um drama da liberdade. E esse drama escapa a qualquer fórmula bioquímica.
Capítulo II — A Psicogênese do Desejo: Imaginário, Vínculo e Representação.
Artigo 1 — Libido e Inconsciente: Da Teoria Freudiana à Crítica Pós-Freudiana.
A introdução do conceito de libido por Freud marca um ponto de inflexão radical na compreensão do desejo sexual. Pela primeira vez, abandona-se a ideia de que o impulso erótico é um mero subproduto da necessidade reprodutiva e inaugura-se uma visão em que o desejo é força psíquica primária, plástica, multiforme e profundamente simbólica. A libido, segundo Freud, é a energia vital do inconsciente, uma tensão que se expressa desde a infância, atravessa as fases do desenvolvimento (oral, anal, fálica, latência, genital) e configura a base de toda a vida psíquica. O desejo, nessa ótica, não é somente genital: é pulsão de vida, desejo de fusão, de presença, de permanência no outro.
O mérito freudiano consiste em deslocar o centro de gravidade do desejo da fisiologia para a psique, estabelecendo que sua origem não é o corpo, mas o inconsciente. A repressão, a censura moral, os interditos familiares e os conflitos internos são os elementos que moldam o curso da libido. O desejo não se dá diretamente, mas é sempre mediado por máscaras, deslocamentos, representações e sonhos. A sexualidade humana é, para Freud, indissociável da linguagem simbólica: o erotismo é também um modo de falar.
Jung radicaliza essa simbologia ao expandir o conceito de libido para além do sexual. Para ele, a libido é energia psíquica universal, não restrita à genitalidade, mas presente em toda forma de impulso criador. O desejo sexual torna-se então um arquétipo, uma imagem primitiva que fala da busca de união, da integração do eu com o outro, da reconciliação dos opostos. A libido é Eros, princípio de coesão, expressão da alma.
Lacan, por outro lado, introduz a linguagem como o campo onde o desejo verdadeiramente emerge. Para ele, o desejo é o desejo do Outro — não no sentido meramente afetivo, mas como constituição simbólica do sujeito. O sujeito não deseja a coisa em si, mas o significante que a representa. O desejo é sempre falta, sempre escorregadio, e jamais plenamente realizável. O gozo é impossível, porque o real do corpo é atravessado pela ordem simbólica da linguagem, que frustra e estrutura ao mesmo tempo. O desejo, nesse modelo, não é nunca simples: é uma rede de significantes, uma montagem psíquica que depende da inscrição do sujeito no campo do Outro.
A crítica pós-freudiana a esses modelos não os nega, mas os amplia e interroga. Otto Rank aponta que a libido não se reduz ao desejo de prazer, mas está imersa em um conflito mais profundo entre individuação e pertencimento, entre autonomia e fusão. O desejo é o drama da identidade: deseja-se porque se é incompleto, porque se quer ser um com o outro sem deixar de ser si mesmo.
Erich Fromm, por sua vez, critica a concepção mecânica da libido e propõe uma reinterpretação existencial do desejo. Para ele, o impulso sexual não é um fim em si, mas um dos caminhos pelos quais o homem tenta vencer sua separação interior, seu isolamento metafísico. O verdadeiro desejo não é genital, mas espiritual: é o anseio de comunhão, de enraizamento, de sentido. O erotismo é expressão da carência ontológica do ser humano que, sabendo-se só, busca o outro como testemunha e como espelho.
O legado dessas escolas, com suas diferenças, aponta para um mesmo horizonte: o desejo não é passivo, nem automático, nem objetivo. Ele é tecido mental, construção inconsciente, resposta a uma ausência. O desejo não está no corpo que pulsa, mas no símbolo que representa. Mesmo quando se origina no instinto, ele se converte em linguagem. Mesmo quando nasce da carne, é a alma quem o interpreta.
É esse deslocamento — da glândula ao símbolo, da reação à representação — que abre caminho para uma antropologia mais profunda do desejo humano. A libido não é só biologia descontrolada: é história vivida, dor recalcada, fantasia projetada e sonho de plenitude. A mente não apenas recebe o desejo: ela o cria, o modela, o reprime, o redime.
Artigo 2 — Representação, Apego e Desejo: A Influência dos Vínculos Psíquicos na Configuração da Libido.
O desejo não nasce no vácuo, nem é movido por uma simples atração animal por estímulos visuais ou corporais. O que move o desejo, o que o direciona e sustenta, é o vínculo. Desde os primeiros dias de vida, a psique humana associa prazer e segurança, excitação e presença, corpo e olhar. O campo do desejo se forma em meio ao afeto — ou à sua ausência —, e carrega para sempre as marcas dos primeiros vínculos estabelecidos com figuras significativas. A sexualidade, assim compreendida, não é apenas função biológica: é continuação da história do apego.
John Bowlby, pioneiro na teoria do apego, mostrou que a segurança emocional da criança depende de uma relação estável com uma figura cuidadora que ofereça proteção, previsibilidade e afeto. Essa matriz primária, ainda não verbal, molda a estrutura afetiva e, por consequência, o modo como o desejo será vivido no futuro. A libido, nesse sentido, não se desenvolve isoladamente, mas é acoplada ao sentimento de ser acolhido, reconhecido e amado. Quando esse vínculo é saudável, o desejo emerge com confiança; quando é instável, negligente ou traumático, o desejo pode ser distorcido, ansioso, compulsivo ou retraído.
Harry Harlow, em experimentos controversos com filhotes de macaco, demonstrou que o contato corporal e o afeto são mais determinantes para o bem-estar psíquico do que o suprimento material. Os filhotes preferiam uma “mãe” de tecido sem leite a uma “mãe” metálica com alimento. Tal resultado evidencia que a necessidade de afeto é primária, mais básica que a nutrição, e sugere que o corpo deseja mais ser tocado com ternura do que simplesmente ser saciado.
A sexualidade humana, quando destituída de vínculo afetivo, torna-se muitas vezes disfuncional. O desejo descolado do afeto tende ao vazio, à repetição estéril, ao vício na excitação desconectada do rosto. Sue Johnson, psicoterapeuta do vínculo emocional, afirma que casais com conexão afetiva profunda têm vida sexual mais intensa, mais duradoura e mais satisfatória, mesmo com níveis hormonais médios ou baixos. A libido, portanto, não depende só da testosterona, mas do olhar que confere sentido ao corpo desejado.
Do ponto de vista psicanalítico, o desejo está sempre ligado à imagem internalizada do outro. O sujeito deseja não o corpo real do parceiro, mas a representação que carrega dele — imagem construída desde a infância e marcada por ideais, traumas e faltas. Lacan define isso com precisão ao afirmar que “não há relação sexual”, no sentido de que o desejo está sempre mediado por significantes e por uma alteridade inatingível. O sujeito não deseja o outro em sua realidade objetiva, mas o que o outro representa em sua economia psíquica: a mãe ideal, o pai ausente, o objeto proibido, o amor perdido.
É nesse contexto que se compreendem os deslocamentos do desejo: quando a excitação se volta a imagens, situações ou objetos que não possuem valor intrínseco, mas apenas simbólico. Um perfume, um tipo de voz, uma forma de falar podem ativar todo o circuito do prazer, não por suas qualidades sensoriais, mas por serem associados, na memória psíquica, a algo vital, a algo que outrora confortou, feriu ou prometeu salvação. O desejo não é reação; é evocação.
Quando os vínculos primários são feridos, a sexualidade carrega o eco da dor não resolvida. O desejo torna-se busca de reparação ou repetição do trauma. Indivíduos que foram rejeitados precocemente podem desenvolver desejo por parceiros distantes, frios, inacessíveis — não por prazer, mas por fidelidade inconsciente à cena original. Outros, marcados por abandono, podem desejar desesperadamente o contato constante, não como erotismo, mas como fuga do vazio.
O desejo, por fim, é um mapa afetivo, uma reconstrução simbólica do vínculo primordial. Deseja-se o corpo, sim, mas deseja-se sobretudo o olhar que valida, a presença que consola, a mão que segura. A libido, então, não é apenas impulso: é memória encarnada, narrativa silenciosa, esperança de reencontro. O corpo deseja onde a alma ainda espera ser reconhecida.
Artigo 3 — Cultura, Moral e Símbolos: A Construção Social do Erótico.
O desejo humano, embora enraizado em impulsos naturais, não é compreensível fora de um universo simbólico. O erotismo, ao contrário da sexualidade animal, é fundamentalmente uma construção cultural, isto é, uma articulação entre o corpo e os significados que uma dada sociedade atribui a ele. Aquilo que desperta o desejo, que o direciona, que o permite ou o proíbe, não depende apenas de estímulos fisiológicos, mas da moldura moral, estética e imaginativa em que o corpo é inserido. O desejo não se limita ao que o corpo sente — ele se organiza a partir do que a cultura permite imaginar.
Michel Foucault, em sua vasta investigação sobre a sexualidade no Ocidente, demonstrou que o desejo não é um dado bruto da natureza, mas um produto do discurso. A sexualidade foi sendo moldada não apenas por repressões jurídicas ou morais, mas por modos de saber, por classificações, por diagnósticos e discursos médicos que tornaram certos comportamentos visíveis e outros invisíveis, certos prazeres lícitos e outros vergonhosos. O corpo erótico é, portanto, um corpo politicamente interpretado. Deseja-se aquilo que foi investido de valor simbólico dentro de uma cultura específica, e rejeita-se o que foi marcado como impuro, desviado, ou ridículo.
As sociedades tradicionais, como demonstraram antropólogos como Bronislaw Malinowski e Margaret Mead, elaboraram rituais, mitos e normas que enquadravam o desejo sexual dentro de narrativas comunitárias. Entre os trobriandeses, por exemplo, o desejo era vivido com liberdade, mas dentro de uma cosmologia que dava sentido à união carnal como força vital e socialmente integrada. Entre os samoanos estudados por Mead, a sexualidade juvenil era livre, mas não caótica: ela seguia um código invisível que regulava os afetos e os encontros. Já nas sociedades ocidentais pós-cristãs, o desejo foi associado, por séculos, ao pecado, à culpa e à necessidade de repressão. O corpo tornou-se um campo de batalha entre o prazer e a moral.
A cultura não apenas impõe limites ao desejo — ela também o provoca. A vestimenta, os modos de fala, os rituais de sedução, os gestos codificados, todos participam da construção do campo erótico. A excitação não surge do corpo nu, mas do corpo velado, sugerido, ocultado. O proibido, o interditado, o inacessível sempre desempenham papel central na erotização. O desejo se forma na distância, no jogo entre o visível e o oculto, no imaginário. Por isso, o erotismo não é simples descarga, mas interpretação: é a leitura que se faz de um corpo dentro de uma cultura. Uma mesma parte do corpo pode ser erótica numa sociedade e neutra noutra, não porque o corpo mudou, mas porque os símbolos que o envolvem são outros.
A moral social também regula o que se pode desejar. Em culturas puritanas, o desejo fora do casamento é condenado; em culturas tribalistas, ele pode ser estimulado como rito de passagem. O que se entende por “normal” ou “perverso” não é universal, mas construído. Isso, no entanto, não significa que toda forma de desejo seja igualmente válida, como quer o relativismo radical. O desejo pode ser culturalmente construído, mas também pode ser simbolicamente corrompido. A cultura pode tanto elevar o desejo quanto deformá-lo. Quando uma sociedade erotiza a violência, a dominação, a despersonalização, ela está treinando o desejo para uma finalidade inumana. Daí a importância de uma ética simbólica que reconduza o desejo ao seu fim humanizador: o encontro com o outro como presença, não como objeto.
Byung-Chul Han, ao refletir sobre a sociedade do desempenho e da exposição constante, alerta que a hipertransparência moderna esvazia o erotismo. O excesso de informação, a pornografia ubíqua, a dissolução dos limites simbólicos entre o público e o privado destroem o mistério, a expectativa e, com eles, o próprio desejo. O corpo, ao ser inteiramente visível, perde seu poder de evocação. O desejo, para existir, precisa de ausência, de segredo, de tensão simbólica. Quando tudo é mostrado, nada mais excita.
Portanto, o desejo humano não é espontâneo nem autossuficiente. Ele nasce onde o corpo encontra o sentido. É produto da mente que interpreta, da moral que regula, da cultura que o codifica. O erotismo é linguagem e, como toda linguagem, depende de símbolos, de silêncio e de forma. O corpo deseja onde o símbolo o investe de valor. E onde o símbolo é perdido, o desejo definha.
Capítulo III — A Soberania da Psique: Casos, Contrapontos e Consequências.
Artigo 1 — Evidências Clínicas da Supressão Hormonal por Condição Psíquica.
A tese de que o desejo sexual é diretamente influenciado pela condição psíquica encontra apoio em dados clínicos concretos e em casos documentados em diversas áreas da psicologia médica. O corpo humano, embora biologicamente programado para responder a estímulos sexuais por meio da liberação hormonal, é também extraordinariamente sensível aos estados emocionais, afetivos e existenciais. Assim, situações de estresse agudo, trauma, ansiedade crônica ou depressão não apenas alteram o comportamento sexual, mas transformam estruturalmente a produção hormonal. O desejo, nesses casos, não apenas se reduz — ele pode ser completamente desligado pela mente como forma de autoproteção ou retração.
Pesquisas neuropsicológicas demonstram que o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, responsável pela liberação de testosterona, estrogênio e outras substâncias ligadas à libido, está diretamente subordinado ao estado emocional do indivíduo. O sistema límbico, que processa emoções como medo, raiva, culpa e prazer, é conectado funcionalmente ao hipotálamo, que regula os hormônios sexuais. Assim, uma alteração emocional de ordem simbólica ou afetiva pode provocar um bloqueio real na função endócrina. Não se trata de metáfora: trata-se de fato fisiológico mensurável.
Casos clínicos abundam. Mulheres com histórico de abuso sexual frequentemente desenvolvem quadros de anorgasmia, secura vaginal, bloqueios psicossexuais, mesmo em contextos seguros e afetivamente estáveis. Homens expostos a ambientes de alta cobrança emocional, sensação de fracasso ou vergonha interior crônica desenvolvem disfunção erétil psicogênica, mesmo com exames hormonais e vasculares dentro da normalidade. Em ambos os casos, os níveis de testosterona e dopamina tendem a cair, a ocitocina não é devidamente liberada, e o desejo desaparece como reação à negatividade psíquica, não como falência física.
Bessel van der Kolk, estudando as consequências do trauma, mostrou que vítimas de violência emocional ou sexual não apenas revivem o evento em sua memória inconsciente, mas reconfiguram biologicamente seu cérebro para evitar o prazer. O corpo “aprende” a não se entregar, como mecanismo de defesa. Isso inclui o bloqueio dos circuitos de excitação, a queda da dopamina, a reconfiguração da amígdala cerebral e a alteração da atividade do córtex pré-frontal. O trauma psicológico, portanto, transforma o corpo em território interditado — não por doença, mas por autopreservação.
Daniel Goleman, ao estudar a inteligência emocional, destaca que a excitação sexual depende de um estado interno de segurança, confiança e disposição. Se a mente interpreta o outro como ameaça, julgamento ou humilhação potencial, os circuitos de prazer não são ativados. O desejo, nesse ponto, já não é reação ao corpo do outro, mas resposta à narrativa interior que o cerca. O parceiro é visto através do filtro da memória psíquica, e não como presença imediata. O desejo, portanto, é suspenso pela história.
Antonio Damasio, em seu trabalho sobre emoção e racionalidade, mostrou que o cérebro não separa prazer físico de sentido existencial. O corpo só responde com entrega quando há um assentimento profundo da psique. O desejo sexual, longe de ser um ato biológico isolado, é expressão de uma adesão íntima ao outro — e essa adesão depende de confiança, memória afetiva e visão de mundo. Se a mente está em conflito, o corpo se retira.
Esses dados apontam para uma conclusão inevitável: o desejo não é uma função isolada dos hormônios, mas um fenômeno sistêmico que inclui a psique, a memória, a linguagem interior e o sentido atribuído ao outro. A ausência de desejo, nesses contextos, não é falha da biologia, mas sintoma da alma. A mente não apenas pode apagar o impulso: ela pode, em casos extremos, reconfigurar todo o corpo para viver sem ele.
Artigo 2 — Contraexemplos e Teorias Opostas: A Vontade Escrava dos Hormônios?
A tese de que a psique governa o desejo encontra resistência nas correntes que defendem a primazia da biologia sobre todos os aspectos do comportamento humano. Dentro do campo das ciências naturais, e especialmente na biologia evolutiva, a concepção predominante é a de que o desejo sexual é o resultado direto de processos automáticos e padronizados, produzidos por milhões de anos de adaptação da espécie. Nesse modelo, a mente não é soberana, mas instrumento — quando não simples ilusão. A vontade, tal como concebida na tradição filosófica, é rebaixada à função de legitimar impulsos pré-configurados geneticamente. O sujeito deseja porque seu código genético o empurra a isso, não porque sua alma o escolheu.
E. O. Wilson, em sua obra fundadora da sociobiologia, propôs que os comportamentos humanos, inclusive os sexuais, são estratégias reprodutivas programadas pela seleção natural. O desejo não busca o prazer pelo prazer, mas a maximização do sucesso genético. A atração por características físicas específicas, a busca por juventude, simetria corporal, força ou sinais de fertilidade não seriam culturais nem espirituais, mas índices biológicos herdados e automatizados. Richard Dawkins, levando esse raciocínio ao extremo, afirma que o ser humano é uma “máquina de sobrevivência”, cujo propósito real é servir aos genes egoístas que o constituem. O desejo, nesse contexto, é o canto da genética pedindo continuidade.
Steven Pinker, dentro da psicologia evolucionista, reforça essa perspectiva ao sustentar que emoções e impulsos são adaptações cerebrais. O que se interpreta como “livre-arbítrio”, “paixão” ou “vocação” não passa de uma racionalização posterior de mecanismos cerebrais inatos. A mente, segundo ele, não tem poder real para alterar o curso do desejo. Ela apenas o decodifica. A vontade não comanda os hormônios — ela é sua secretária.
Essas teorias, embora consistentes do ponto de vista da biologia, enfrentam dificuldades quando confrontadas com a complexidade da vida psíquica real. Elas ignoram, ou minimizam, os inúmeros casos em que o ser humano recusa conscientemente um impulso forte, reprime desejos intensos por fidelidade a valores superiores, ou transforma completamente sua orientação erótica a partir de experiências espirituais, morais ou simbólicas. Também falham em explicar os distúrbios psicogênicos da sexualidade, nos quais não há falha biológica, mas conflito interior.
A teoria do desejo como simples reação hormonal não explica por que um mesmo estímulo pode gerar excitação em um sujeito e repulsa em outro. Nem por que o mesmo corpo pode ser desejado num momento e indiferente em outro, sem mudança alguma em seus atributos físicos. Tampouco explica por que a mente pode resistir à pulsão por décadas, ou mesmo transfigurá-la em serviço, arte ou espiritualidade. A redução do desejo à biologia elimina a dignidade da escolha e o mistério da alma.
Além disso, há evidência empírica suficiente de que a vontade humana pode intervir sobre os processos hormonais. Práticas como o celibato voluntário, a castidade ascética, a sublimação artística, ou mesmo a disciplina terapêutica consciente mostram que a mente é capaz de reorganizar o fluxo do desejo e redirecionar a energia sexual para outras formas de realização. Casos documentados de mudança voluntária de padrão erótico — mesmo contra impulsos antigos — provam que há, sim, liberdade possível.
Portanto, ainda que os hormônios exerçam influência real sobre o desejo, e embora a natureza imponha limites, não se pode concluir que a mente seja mero espectador. O ser humano é, por sua própria estrutura, o ponto de interseção entre o impulso e o sentido. A vontade, quando orientada por consciência e esforço, é capaz de dominar os impulsos, e não apenas reagir a eles. A biologia impõe o cenário, mas não o enredo. O roteiro do desejo ainda pode ser escrito pela alma.
Artigo 3 — Corpo Submisso, Mente em Guerra: A Ética da Liberdade Sexual como Ato de Consciência.
A conclusão que se impõe, diante do embate entre os modelos biologicistas e as evidências clínicas e fenomenológicas da ação psíquica sobre o desejo, é que o ser humano, embora condicionado pelo corpo, não está integralmente submetido a ele. O desejo sexual, como qualquer outro impulso vital, nasce com o corpo, mas precisa da alma para ser dirigido. O corpo sente, mas é a mente quem interpreta — e toda interpretação é uma escolha moral, ainda que inconsciente. É nesse ponto que o desejo deixa de ser simples descarga ou resposta e se torna drama ético: o campo em que o sujeito se vê diante de uma tensão entre a força que o impele e o valor que o convoca. O desejo é, no fundo, um teste de soberania interior.
Quando o corpo deseja algo que a consciência não aprova, inicia-se um conflito. Esse conflito pode paralisar, adoecer ou libertar. Ele paralisa quando a mente se vê impotente diante da força do impulso, quando o eu moral é fraco e cede sem resistência, mergulhando no automatismo. Ele adoece quando a repressão é absoluta, cega, incapaz de integrar o impulso à estrutura da personalidade, gerando culpa, fobia ou despersonalização. Mas ele também pode libertar quando o sujeito, conhecendo seu desejo, não se torna escravo dele, mas o orienta com inteligência, domínio e sentido. Nesse último caso, a liberdade emerge não da recusa do corpo, mas do seu governo.
A tradição filosófica que reconhece o domínio da mente sobre o corpo, da alma sobre os apetites, é antiga e sólida. Platão já afirmava que o desejo, sem guia racional, transforma o homem em escravo de si mesmo. Em sua tripartição da alma, o desejo (epithymía) é legítimo, mas deve ser moderado pela razão (logistikón) e pela coragem (thymós). Aristóteles, em sua ética da virtude, não condena o prazer, mas o submete à razão prática e à ordem do bem. A verdadeira felicidade, para ele, não consiste na entrega ao prazer, mas na harmonia das potências da alma em torno de um fim superior.
Na tradição cristã, especialmente em Agostinho e Tomás de Aquino, o desejo sexual é reconhecido como expressão natural da vida, mas sua desordem é vista como consequência da ruptura interior provocada pelo pecado. A castidade, longe de ser negação do desejo, é sua purificação, sua recondução à verdade do amor. O corpo é respeitado, mas nunca adorado. A alma, unida à verdade, deve governar. Karol Wojtyła (São João Paulo II), em sua obra "Amor e Responsabilidade", retoma essa concepção ao afirmar que o erotismo autêntico só existe onde há personalismo: o desejo que respeita a dignidade do outro e não o transforma em meio para satisfação própria.
O que essas tradições afirmam, em uníssono, é que o homem não é escravo da carne, e que a liberdade só é verdadeira quando inclui domínio sobre o próprio corpo. O desejo desgovernado não é liberdade, mas compulsão. E a mente que se rende inteiramente à química não é autêntica, mas derrotada. O erotismo só se torna humano quando é expressão do espírito. O prazer, quando ordenado ao bem, é bênção. Quando divorciado da consciência, é veneno.
Na era contemporânea, contudo, a cultura de consumo dissolveu os referenciais morais do desejo. A liberdade foi redefinida como ausência de limite, e o prazer como fim absoluto. Com isso, o sujeito pós-moderno vê-se cada vez mais incapaz de dizer “não” a si mesmo. Ele é encorajado a seguir todos os impulsos como se fossem autênticos, como se desejar fosse, por si só, justificação suficiente para o ato. Essa lógica tem gerado uma legião de indivíduos hiperestimulados e profundamente vazios, cuja sexualidade se tornou vício, fuga ou substituto de sentido.
Contra essa degradação, impõe-se uma reconstrução ética do desejo. O corpo deve ser escutado, mas não adorado. O impulso deve ser reconhecido, mas não seguido cegamente. O prazer deve ser integrado a uma visão do bem, da verdade e da beleza. Somente uma alma consciente, cultivada, livre e orientada por princípios pode amar com plenitude e desejar com nobreza. A mente que governa o corpo não o oprime — ela o salva de sua própria dispersão.
A ética da sexualidade, portanto, não é moralismo. É o reconhecimento de que o desejo só é plenamente humano quando passa pela consciência, pelo discernimento e pela escolha. Não há liberdade onde o sujeito está acorrentado aos próprios impulsos. Não há erotismo digno onde o outro é reduzido a objeto. E não há realização onde a mente abdica de seu trono. O corpo deseja, mas é a alma que deve dizer o que é digno de ser desejado. Esse é o princípio da soberania interior. Esse é o fundamento da liberdade.
Bibliografia Geral da Obra
Psique e Desejo: A Submissão do Corpo à Soberania da Mente
Autor: Antônio Freixo.
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Obras e Autores Fundamentais Citados.
Psicanálise, Psicologia e Neurociência.
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