ÍNDICE
Capítulo I –
A Imaginação como Fundamento da Formação Filosófica
Artigo 1 – A educação do imaginário como pré-condição da vida intelectual
Artigo 2 – A literatura de ficção e a formação empática do entendimento humano
Artigo 3 – A transição da compreensão dramática à compreensão cognitiva
Capítulo II –
Linguagem, Experiência e Expressão da Realidade
Artigo 1 – A apropriação da linguagem a partir da experiência concreta
Artigo 2 – A linguagem filosófica e os limites do discurso sem vivência
Artigo 3 – A expressão intelectual como cristalização de vivências
Capítulo III
– Autoconsciência, Projeto de Vida e Unidade Existencial
Artigo 1 – O necrológio como eixo estruturante da personalidade filosófica
Artigo 2 – O conflito entre vocação e circunstância como motor formativo
Artigo 3 – O eu operante e a dissolução da armadilha da autoimagem
Capítulo IV –
Técnica da Investigação e Fundamentos do Saber Filosófico
Artigo 1 – A pesquisa erudita como instrumento da inteligência filosófica
Artigo 2 – A técnica filosófica como drama pessoal e método investigativo
Artigo 3 – O conhecimento por presença e a superação do racionalismo abstrato
Capítulo
I – A Imaginação como Fundamento da Formação Filosófica
Artigo 1 – A educação do imaginário como pré-condição da vida
intelectual
A formação filosófica, conforme delineada por Olavo de Carvalho
nesta aula, tem como ponto de partida a educação do imaginário. Essa não é uma
etapa meramente introdutória ou acidental, mas a base mesma da experiência
filosófica autêntica. A imaginação, longe de ser uma operação de fantasia
descolada da realidade, é apresentada como um mecanismo cognitivo essencial
para a compreensão concreta da existência humana — própria e alheia. Para
esclarecer essa tese, Olavo convoca diversos autores e experiências que atestam
a centralidade do imaginário na vida intelectual.
Um dos primeiros nomes a ser evocado é Antonin
Sertillanges, especialmente por sua obra A
Vida Intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos. Para
Sertillanges, a vida intelectual não é apenas um conjunto de técnicas e
erudição, mas uma vocação que exige a integração de todas as dimensões da alma:
a contemplativa, a prática e a expressiva. A leitura da literatura, da poesia,
do teatro e da epopeia não tem, portanto, um valor decorativo, mas serve à
formação de um tipo humano capaz de absorver e compreender a realidade em sua
forma mais viva — e isto só é possível quando se integra o imaginário como
forma superior de apreensão da experiência. Olavo retoma esse ponto ao afirmar
que só um filósofo poderia ter escrito tal obra, pois ela reconduz a vida
intelectual ao seu fundamento ontológico e existencial.
Outro autor fundamental é Aristóteles,
que aparece sob a autoridade da definição clássica da ficção: esta não nos
mostra o que efetivamente ocorreu, mas o que poderia ter ocorrido. Esta
possibilidade é o que confere à ficção um valor cognitivo e moral. Na Poética, Aristóteles trata do drama como uma forma de
katharsis: purgação e elevação das paixões por meio da representação de ações
humanas verossímeis. Ao permitir ao espectador uma vivência intensificada dos
dilemas da existência, o drama educa o senso moral, o juízo e, por
consequência, a inteligência. Para Olavo, esse papel formativo do drama se
estende à literatura de ficção como um todo: é por ela que incorporamos
personagens, emoções e situações que não vivemos diretamente, mas que nos
preparam para compreender o outro — e, em última instância, para compreender a
nós mesmos.
Nesse mesmo percurso de defesa do imaginário como fundamento da
razão, surge o nome de G.I.
Gurdjieff, não como autoridade positiva, mas como provocação. A
pergunta cínica atribuída a Gurdjieff — “como podemos amar nossos inimigos se
não amamos nem nossos amigos?” — é tomada por Olavo como ponto de partida para
desmascarar o uso inautêntico e superficial de máximas morais. O verdadeiro
amor ao próximo, diz ele, começa pela capacidade de imaginá-lo. Isto é:
compreender o outro como ele mesmo se compreende. Essa operação não é
discursiva, mas dramática, encenada dentro do nosso imaginário, habitado por
múltiplos personagens que, quando bem formados, nos permitem sair do
estereótipo e alcançar a verdadeira empatia intelectual.
A essa
galeria de figuras dramáticas que educam o espírito, Olavo acrescenta Hamlet, Antígona, Ulisses, Otelo e Raskólnikov —
não apenas como personagens literários, mas como paradigmas de conflitos
humanos universais. A força pedagógica dessas figuras está justamente no fato
de que seus dilemas foram isolados e intensificados pelos autores que os
criaram: Shakespeare, Sófocles, Homero, Dostoiévski. A arte separa o essencial
do acidental, o núcleo do ruído da vida cotidiana, permitindo que a consciência
humana penetre nas estruturas do destino. Raskólnikov, por exemplo, não é
apenas um estudante pobre que comete um crime. Ele é a encarnação do orgulho
intelectual que busca validar, pela inteligência, uma injustiça contra o real —
e fracassa. Hamlet é o drama da hesitação diante do dever. Antígona é o drama
da fidelidade ao princípio espiritual em face da autoridade do mundo. Ulisses,
o arquétipo do retorno, é o drama da identidade que se preserva em meio ao
fluxo do tempo. Otelo, a tragédia da confiança destruída pela suspeita, revela
os abismos do ciúme e da manipulação. Cada um desses personagens, ao ser
absorvido no imaginário do leitor, não apenas entretém, mas molda
silenciosamente as categorias pelas quais compreendemos o humano.
Olavo destaca também a função da literatura em fornecer ao leitor
uma experiência dramatizada da vida que, por definição, é mais inteligível que
a própria vida real. No cotidiano, vivemos conflitos simultâneos, desconexos,
superpostos, que não se deixam analisar com clareza. A literatura, ao condensar
um ou dois desses dramas, oferece um campo de aprendizado simbólico no qual o
indivíduo pode ver, com nitidez, o que na realidade aparece embaçado. Essa é a
chave da pedagogia do imaginário: isolar, intensificar, representar — e, assim,
educar.
Nesse ponto, Olavo cita o romance O
Espelho Partido de Marques
Rebelo como tentativa de retratar a densidade da vida real, por
meio da justaposição de múltiplas histórias. Mas mesmo nesse caso, ressalta-se
que é na ficção — e não na vida — que os dramas adquirem nitidez. A malha de
conflitos heterogêneos da vida cotidiana só pode ser articulada
retroativamente, à luz de um projeto biográfico que dê unidade ao vivido. A
literatura nos prepara para esse gesto de unificação ao mostrar como as
situações dramáticas podem ser organizadas simbolicamente.
A função desse treino imagético e dramático é dupla: permite
compreender o outro, como já dito, e também prepara para a assimilação dos
grandes dramas do conhecimento — ou seja, para a filosofia propriamente dita.
Para que se compreenda um filósofo, é preciso vivenciar o seu problema com o
mesmo grau de seriedade existencial com que se vivencia uma tragédia dramática.
Olavo insiste que um livro de filosofia não deve ser lido como um sistema com o
qual se concorda ou não, mas como expressão de uma experiência cognitiva
radical, vivida por alguém real, em uma situação concreta. Se o leitor não se
embebe do problema que animava aquele autor, jamais poderá compreendê-lo.
Esse é o ponto central do primeiro bloco formativo: sem imaginação
dramática, não há vida filosófica. Sem imaginação, o leitor é apenas um
papagaio de sistemas. Com imaginação, ele se torna partícipe do drama da
inteligência humana, que se renova a cada geração e cuja continuidade depende
da capacidade de incorporar, simbolicamente, os conflitos que a precederam. O
imaginário não é o oposto da razão — é seu prelúdio e seu sustento. Sem ele, o
pensamento degenera em caricatura.
A educação
filosófica começa, pois, pela capacidade de sofrer e compreender os conflitos
que não são nossos — mas que poderiam ser. Essa é a base sobre a qual se ergue
todo o edifício posterior. Essa é a porta de entrada para a filosofia como vida
real.
Artigo
2 – A literatura de ficção e a formação empática do entendimento humano
A literatura de ficção, na perspectiva apresentada por Olavo de
Carvalho, não é um ornamento do espírito, nem um mero entretenimento para
mentes ociosas. Ela é um campo de treinamento indispensável à formação da
inteligência filosófica, porque permite ao sujeito o exercício sistemático de
compreensão do outro enquanto outro — ou seja, do outro como uma interioridade
efetiva, e não como mera aparência externa ou função social. Esse exercício não
é possível sem imaginação, e a imaginação, por sua vez, só se fortalece
mediante a experiência literária repetida, constante e profunda.
O processo de leitura da ficção é descrito como um sonho acordado
dirigido. O leitor não cria os personagens, tampouco os copia; ele os atualiza
no interior de sua própria imaginação. A narrativa funciona como uma pauta que
desencadeia uma atividade interior — é o próprio leitor quem, obedecendo a
determinadas indicações, realiza o ato de vivenciar a situação dramática que
lhe é proposta. Com isso, o texto não apenas transmite uma história, mas
provoca uma reconfiguração estrutural no universo simbólico do leitor. Ele
passa a ser habitado por novos personagens, novas tensões, novas
possibilidades. Isso é formação.
Olavo destaca que essa experiência tem efeitos práticos. A
capacidade de imaginar o que os outros estão sentindo ou pensando é condição
prévia para qualquer ato de justiça, de caridade ou mesmo de convivência
minimamente civilizada. Amar ao próximo implica compreendê-lo como ele mesmo se
compreende — e isso é impossível sem a faculdade de se pôr em seu lugar. O
desenvolvimento dessa capacidade de identificação dramática é um imperativo
para qualquer pessoa que deseje compreender a realidade humana. Sem isso, todos
os juízos tenderão ao estereótipo, à caricatura ou à crueldade.
A profundidade dessa observação torna-se ainda mais evidente
quando Olavo aborda a diferença entre o genérico e o individual. O juízo moral
ou filosófico legítimo exige sempre o trânsito entre essas duas esferas. O
abstrato, por si só, é insuficiente; o particular, isoladamente, é
ininteligível. Compreender uma situação humana concreta é saber aplicar um
padrão universal a um caso específico sem violentá-lo — e isso só é possível
quando o sujeito aprendeu, pela literatura, a ver o indivíduo em sua espessura
trágica, e não apenas como portador de categorias abstratas.
Essa articulação entre universal e singular é o que possibilita,
mais tarde, a compreensão dos filósofos. Pois os filósofos não escrevem
tratados como peças de lógica pura — escrevem porque enfrentaram dilemas reais,
porque sofreram com contradições, porque estavam diante de um problema para o
qual não havia resposta pronta. Para entrar nesse drama, é preciso ter passado
por outros dramas, mesmo que fictícios. Por isso, diz Olavo: antes de estudar
filosofia, leia literatura. Só quem aprendeu a sofrer com Hamlet, Otelo ou
Antígona será capaz de sofrer com Descartes, Agostinho ou Hegel.
Essa vivência simbólica por meio da literatura tem ainda uma
vantagem metodológica: ela apresenta os conflitos de forma purificada, isolada,
desdobrada com nitidez. Enquanto na vida real todos os problemas aparecem
simultaneamente, de forma confusa e entrelaçada, na literatura o autor recorta,
intensifica e ordena os elementos para que possam ser compreendidos. Essa
redução simbólica da complexidade torna possível a digestão da experiência e
sua incorporação real ao imaginário do leitor. Isso não é evasão da realidade —
é sua preparação.
Em suma, a
literatura de ficção opera como uma educação moral, intelectual e simbólica da
alma. Forma a empatia, a capacidade de julgamento, o senso do trágico, o
sentimento da justiça e a vocação para a verdade. Sem esse treinamento, o
sujeito permanece cego às nuances da experiência humana e, por isso mesmo, será
incapaz de reconhecer os dramas filosóficos quando os encontrar. A literatura
é, portanto, a escola da alma que precede a escola da razão. O que ela forma
não é um especialista, mas um ser humano capaz de compreender. E sem isso, não
há filosofia.
Artigo
3 – A transição da compreensão dramática à compreensão cognitiva
A transição entre o mundo da imaginação dramática e o domínio da
filosofia propriamente dita não é uma ruptura, mas uma continuidade interior.
Para Olavo de Carvalho, todo conhecimento filosófico válido nasce como
desdobramento de um drama cognitivo. Isso significa que a filosofia não é uma
coleção de fórmulas ou de proposições abstratas, mas a expressão concentrada de
uma luta humana real para penetrar um aspecto do ser. Aquele que não é capaz de
reconhecer esse drama — porque não viveu, nem simbolicamente, os dramas
anteriores da existência humana — estará para sempre excluído da filosofia
autêntica, reduzido ao papel de imitador de fórmulas sem vida.
Neste ponto, Olavo retoma a função do imaginário como um
“teatrinho interior” povoado por personagens. Ao longo da formação do leitor, a
literatura vai enchendo esse espaço simbólico com figuras dramáticas cada vez
mais refinadas e complexas. Inicialmente, esses personagens são heróis,
vítimas, traidores, amantes, mártires. Mas à medida que o repertório do leitor
se expande, novos personagens entram em cena: filósofos. Só que agora eles não
estão ali como autores ou ícones, mas como personagens do drama intelectual.
Cada um representa uma forma de abordagem de um problema decisivo: a dúvida
cartesiana, a inquietação agostiniana, o embate entre ser e aparência nos
pré-socráticos. Com o tempo, esses dramas passam a ser encenados internamente,
com o mesmo grau de seriedade que antes era reservado a Ulisses ou Hamlet.
Essa encenação interna é o modo real de absorção da filosofia.
Compreender um autor não é, em primeiro lugar, julgar suas teses como corretas
ou incorretas. É reviver o problema que o motivou, como quem assume um papel em
um drama já escrito — mas que ainda precisa ser vivido, agora, em outra
circunstância. O aluno que se lança prematuramente à análise lógica de um
sistema filosófico sem ter penetrado a experiência existencial que o gerou, é
como um ator que tenta representar Macbeth sem ter passado pelo terror, pela
ambição e pela culpa. Seus gestos serão artificiais. Seus argumentos,
decorados. Sua compreensão, nula.
Olavo insiste nesse ponto com clareza: é necessário “imbuir-se do
problema”, permitir-se ser afetado por ele. Isso não significa que o leitor
deva se identificar plenamente com o autor, como um ator que perde sua
identidade no papel, mas que seja capaz de compreender as motivações internas
daquele pensamento. O modelo disso é a leitura trágica: você não é Otelo, mas
você entende Otelo. Você não é Raskólnikov, mas o drama dele se torna
compreensível dentro de você. Assim também deve acontecer com Platão, com Kant,
com Pascal. A diferença é que, no caso da filosofia, os dramas são de natureza
cognitiva, e exigem outra forma de assimilação: além da empatia, exigem
estrutura racional.
Dessa forma, a leitura filosófica só se torna eficaz quando é
precedida por essa preparação imaginativa. Sem o adestramento da imaginação, os
conceitos filosóficos se tornam cadáveres. Com ele, ganham vida. Olavo compara
esse processo à transformação da experiência humana em estilo: o filósofo
genuíno não fala apenas com palavras, mas com uma densidade de alma que se
percebe nas entrelinhas. Esse estilo é fruto de toda a vivência interior que o
precede — ele é, literalmente, o suor de muitos dramas assimilados.
Por fim, a
compreensão filosófica não substitui a dramática — ela a pressupõe. O
verdadeiro conhecimento é uma transfiguração do drama em visão, da tensão em
forma, da experiência em inteligência. Esse é o limiar que separa o leitor que
repete ideias do filósofo que compreende os problemas. Não se trata de decorar
doutrinas, mas de encarnar dilemas. O filósofo é aquele que se deixa atravessar
por essas tensões sem anestesia e sem defesa. Por isso mesmo, o primeiro
critério da filosofia verdadeira não é a técnica, mas a seriedade com que o
sujeito assume os dramas do conhecimento. E essa seriedade só se aprende
convivendo longamente com os personagens que, antes de pensarem, sofreram.
Capítulo
II – Linguagem, Experiência e Expressão da Realidade
Artigo 1 – A apropriação da linguagem a partir da experiência
concreta
Na sequência do itinerário formativo delineado por Olavo de
Carvalho, o domínio da linguagem não é uma habilidade técnica exterior, mas um
resultado inevitável da incorporação autêntica da experiência. A linguagem, tal
como a filosofia, não nasce da abstração pura, mas da vida vivida, da densidade
do vivido, da apreensão concreta da realidade. O segundo bloco de formação — o
aprimoramento e apropriação da linguagem — é inseparável do primeiro: assim
como a imaginação constitui a matriz simbólica da inteligência, a linguagem
constitui sua articulação racional. Ambas crescem juntas.
Olavo sustenta que o domínio da linguagem não pode ser confundido
com o domínio de regras gramaticais, estilísticas ou acadêmicas. Essas regras,
se não estiverem assentadas em vivência real, geram apenas imitações —
discursos polidos e vazios, como se vê constantemente na academia. A verdadeira
maestria da linguagem emerge quando ela se torna a expressão precisa de uma
experiência concreta. Isso significa que, antes de escrever ou falar com
profundidade, o sujeito precisa ter algo de real a dizer — e esse “algo” só
existe quando há substância humana por trás. É a experiência que dá densidade à
linguagem, não o contrário.
Para reforçar essa tese, Olavo invoca Benedetto
Croce, que afirma que a função imediata da obra literária é a
expressão da experiência concreta. Se a linguagem filosófica — mais abstrata
por natureza — não tiver passado antes pela purificação expressiva da
experiência vivida, ela se torna um simulacro. O erro mais comum do estudante
de filosofia, segundo Olavo, é querer começar pelos conceitos, saltando por
cima da vida. O resultado é a esterilidade: repetições de frases consagradas
sem qualquer vivência interna. Nesse sentido, a linguagem é uma prova: se o que
o sujeito diz está morto, é porque ele mesmo está morto por dentro. A linguagem
o trai.
Esse vínculo entre linguagem e experiência é ainda mais evidente
quando se observa que os grandes termos da filosofia — ceticismo, gnosticismo,
empirismo, racionalismo, realismo, entre outros — não surgiram como fórmulas.
Eles são o produto final de longos embates existenciais, de uma luta contra a
opacidade do real. Ao tentar aprender tais conceitos a partir de suas
definições dicionarizadas, o aluno perde a substância do problema. Ele obtém
uma palavra, mas não a realidade que ela tenta nomear. É por isso que Olavo
afirma: se o termo não evoca imediatamente o drama que o gerou, então ele está
vazio. Ele virou ruído acadêmico.
A consequência prática desse princípio é clara: a linguagem
filosófica só pode ser compreendida por quem teve, de algum modo, acesso à
experiência que ela tenta representar. E como essa experiência não está mais
acessível diretamente — porque pertence a outro tempo, a outro autor, a outra
alma —, ela deve ser reconstruída imaginativamente. O trabalho filosófico é,
assim, inseparável de uma hermenêutica encarnada: uma leitura que não visa o
conteúdo exterior, mas a recriação do caminho interior do autor. Para isso, o
leitor precisa ter não apenas inteligência, mas uma imaginação treinada e uma
linguagem afinada com a realidade.
Por fim, esse
aprimoramento da linguagem — quando verdadeiro — produz um tipo específico de
expressão: aquela onde cada termo carrega um mundo, cada sentença reflete uma
vida e cada ideia está cheia de carne. A linguagem, assim, deixa de ser um
instrumento e se torna um organismo. É nesse estágio que ela começa a servir à
filosofia. E é por isso que Olavo afirma: sem a conquista da linguagem viva, o
sujeito não pode sequer começar a filosofar — pois sua razão não terá matéria a
trabalhar, nem corpo onde se encarnar. O filósofo que não domina a linguagem
como extensão de sua alma será apenas um técnico do vazio.
Artigo
2 – A linguagem filosófica e os limites do discurso sem vivência
A linguagem, no contexto da formação filosófica, é mais do que uma
ferramenta comunicativa: ela é o testemunho da densidade vivencial que sustenta
o pensamento. Quando um filósofo fala, ele não transmite apenas proposições,
mas a marca indelével do caminho existencial que percorreu para chegar a elas.
Sem essa substância interior, o discurso filosófico torna-se uma casca oca, um
conjunto de esquemas que, embora formalmente corretos, carecem de qualquer
capacidade de revelar o real. Nesse artigo, Olavo de Carvalho reforça que a
linguagem desvinculada da experiência concreta não é apenas ineficaz — ela é
desonesta.
O risco maior está na figura do “imitador de linguagem”, aquele
que reproduz termos técnicos e estruturas argumentativas com perfeição exterior,
mas sem compreender o que dizem. Olavo aponta esse tipo como onipresente nos
meios acadêmicos e universitários, sobretudo no Brasil, onde a capacidade
mimética é altíssima. O problema, porém, não é técnico, mas moral: trata-se de
uma espécie de simulação da inteligência. O sujeito que fala sobre “essência”,
“subjetividade”, “gnosticismo” ou “intencionalidade”, sem nunca ter enfrentado
interiormente o drama desses conceitos, está mentindo — mesmo que sem intenção
consciente. Sua linguagem não é um meio de revelação, mas de ocultamento.
Para discernir o verdadeiro do falso na linguagem filosófica,
Olavo sugere um critério simples, embora de difícil aplicação: identificar se,
por trás das palavras, há uma realidade vivida ou apenas um esquema assimilado.
Isso exige sensibilidade e experiência. Só quem já se embebeu de uma luta
cognitiva genuína — seja lendo um filósofo com profundidade, seja atravessando
um problema real da vida — é capaz de reconhecer quando uma frase carrega
verdade ou apenas performance. O discurso filosófico legítimo é aquele que
denuncia, mesmo involuntariamente, a luta que o gerou. Quando não há luta, não
há filosofia — há teatro.
Olavo remete a uma analogia: a criança que escuta uma palavra nova
e a repete sem saber em que contexto ela se aplica. É o que ocorre com os
estudantes que, sem vida interior estruturada, tentam manejar categorias
filosóficas como se fossem ferramentas técnicas. Não percebem que cada termo
vem impregnado de uma história, de uma tensão, de um embate contra o desconhecido.
Quando esses termos são usados mecanicamente, o que ocorre não é o pensamento,
mas a paródia dele. O discurso torna-se um ritual vazio, um código fechado que
afasta o interlocutor da realidade que deveria ser iluminada.
Esse tipo de linguagem não é apenas um desvio pedagógico; é uma
deformação do espírito. A incapacidade de reconhecer a diferença entre vivência
e repetição leva à formação de gerações inteiras de intelectuais que jamais
tocaram no núcleo real de nenhum problema. São “profissionais da linguagem” que
jamais se comprometeram com uma única verdade. Como consequência, a linguagem
torna-se instrumento de status, manipulação ou cinismo, nunca de revelação ou
busca sincera. Essa é a tragédia da cultura intelectual moderna, e Olavo a
denuncia com veemência.
A linguagem filosófica autêntica, por outro lado, é como um
organismo vivo. Ela pulsa, respira, carrega marcas, hesitações, pausas,
intensidades. Por mais técnica que seja, transparece nela algo que está além da
técnica: uma alma. E é essa alma que o verdadeiro filósofo busca deixar
impressa nas palavras. Isso não significa abandonar o rigor — significa dar-lhe
corpo. Um conceito rigoroso, mas vazio, é inútil; uma expressão densa de
vivência, mesmo que imperfeita, é infinitamente mais valiosa para quem busca
compreender o real.
Esse é o limite decisivo: não se trata apenas de saber usar a linguagem, mas de saber o que ela está tentando expressar. O filósofo que não reconstruiu, em sua alma, a realidade que está por trás de suas palavras, não é um filósofo — é um ventríloquo. E a filosofia não é uma arte de ventriloquia: é a luta incessante por dar forma inteligível àquilo que se apresenta, de início, como abismo. E essa luta se inscreve nas palavras — ou não se inscreve em lugar nenhum.
Artigo 3 – A expressão intelectual como cristalização de vivências
A culminância do aprimoramento linguístico está na sua capacidade
de servir como expressão adequada das experiências vividas — não apenas no
plano afetivo ou biográfico, mas no mais alto plano da consciência: o plano das
intuições intelectuais. Para Olavo de Carvalho, a linguagem, quando atingida
por essa profundidade, torna-se mais do que meio de comunicação: ela se
transforma em testemunho. O filósofo não fala para ensinar: ele fala porque é impossível
calar diante do que se tornou transparente dentro de si. Essa fala, no entanto,
exige que a vivência interior tenha sido elevada à forma — que o caos da
experiência tenha sido purificado pelo logos.
Ao chegar a esse ponto, Olavo retoma o núcleo fundamental do seu
método: o pensamento filosófico autêntico é inseparável de uma presença
interior radical. Não se trata de repetir estruturas ou simular profundidade.
Trata-se de reconhecer que, por trás de toda proposição filosófica real, existe
uma história de sofrimentos, hesitações, lutas e silêncios. A linguagem,
portanto, não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada: é a forma visível
de algo que ocorreu no invisível da alma. É cristal, não barro. É resultado,
não início.
Esse tipo de expressão é raro porque pressupõe o que quase ninguém
está disposto a pagar: uma vida. As ideias filosóficas, para alcançarem
substância, precisam ter passado pelo corpo do sujeito — corpo aqui entendido
como lugar da existência inteira, com suas contradições, quedas e superações.
Quando isso não ocorre, o sujeito pode ser um erudito, um lógico, um filólogo,
mas não um filósofo. A linguagem do filósofo não é apenas correta: ela é
necessária. Sua precisão não é técnica, mas existencial. Ele fala porque não
falar seria desonesto com a própria experiência.
Esse ponto encontra eco na tradição filosófica maior. Pascal, por exemplo, falava em duas ordens de
verdade: a da razão e a do coração. A linguagem que não passa pelo coração —
entendido como centro do ser — não alcança o homem inteiro. Santo Agostinho, por sua vez, buscava uma forma de
linguagem que fosse ao mesmo tempo confissão e metafísica. Quando ele escreve,
ele não apenas comunica ideias: ele entrega sua alma, ordenando-a pela luz da
inteligência. Olavo segue essa tradição ao exigir que a linguagem seja uma
forma de entrega — e não apenas de exibição.
A exigência que daí decorre é imensa. A expressão autêntica não
pode ser buscada diretamente — ela só ocorre quando o sujeito se submete a todo
o processo anterior: educação do imaginário, assimilação de experiências
alheias, vivência simbólica do drama humano, incorporação de personagens e
situações, renúncia à máscara da autoimagem. Quando esse processo está
suficientemente maduro, a linguagem emerge por si: simples, clara, inevitável.
Ela não se força: ela acontece. E quando acontece, ilumina.
Esse fenômeno — o surgimento de uma linguagem inevitável — é o
sinal de que a formação filosófica começou a dar frutos. Não há como
fabricá-lo. Nenhuma técnica retórica, nenhum esquema estilístico, nenhum
vocabulário erudito pode produzir o que apenas a vida, transfigurada pela
consciência, pode gerar. A palavra do filósofo é o nome que ele dá ao real
depois de tê-lo amado até o fim.
Conclui-se, então, que a linguagem não é um recurso que se adquire, mas uma forma que se revela. Quando isso ocorre, ela se torna não apenas veículo de pensamento, mas instância de presença. O filósofo fala — e ao falar, torna visível o invisível. Ao escrever, torna palpável o intangível. Ao nomear, assume a responsabilidade de que o mundo, como presença viva, seja também compreendido. E essa responsabilidade só pode ser assumida por quem já não busca vencer ou convencer, mas apenas ser verdadeiro.
Capítulo III – Autoconsciência, Projeto de Vida e Unidade Existencial
Artigo 1 – O necrológio como eixo estruturante da personalidade filosóficaAo tratar da formação do filósofo como ser unificado, Olavo de
Carvalho introduz o exercício do necrológio não como mera metáfora, mas como
método formativo de extrema seriedade. Trata-se de imaginar o relato de sua
própria morte escrito por alguém que o conheceu profundamente — alguém que
narra não apenas os feitos públicos, mas a história concreta de um ser humano
que viveu, errou, lutou, realizou algo. O objetivo não é descrever uma carreira
ou exibir conquistas. É forçar a consciência a se perguntar, com rigor: quem eu
quero ser no fim da minha vida? Que sentido terá o meu percurso quando ele for
contemplado de fora, já encerrado?
Esse exercício, à primeira vista literário, tem efeitos
existenciais profundos. Ele introduz na vida do indivíduo um eixo, uma linha
direcional, um vetor de integração. Numa existência que, em sua aparência
imediata, é feita de fatos dispersos, impulsos contraditórios, eventos
simultâneos e frequentemente desconexos, o necrológio propõe a figura de um
todo. E é esse todo que dá forma à vida. Como ensinava Ortega
y Gasset, citado diretamente por Olavo, “yo soy yo y mis
circunstancias” — mas o que unifica esse “eu” e essas “circunstâncias” é o
esforço contínuo por realizar um projeto de unidade. O necrológio é esse
projeto transformado em imagem reguladora.
Diferentemente da autoimagem, que tende a ser estática, ilusória e
autocentrada, o necrológio introduz a perspectiva do fim. Ele exige do sujeito
uma espécie de julgamento histórico antecipado, não no sentido moralista ou
condenatório, mas no sentido biográfico: qual é a história que estou escrevendo
com os meus atos? Que personagem estou me tornando? O necrológio, assim,
desloca o centro da consciência do presente para o futuro, forçando a
reorganização dos elementos caóticos da vida sob a luz de um fim visado. Essa
reorganização é o primeiro gesto da autoconsciência filosófica.
Mas essa estruturação não se dá sem tensão. A imagem ideal projetada
no necrológio nunca coincide com o que o sujeito é no presente. A distância
entre ambos é a própria matéria da formação. Ela é o campo da luta, do
arrependimento, da correção, da persistência. O sujeito, então, deixa de se ver
como uma entidade pronta e passa a se ver como projeto em construção. O
necrológio impede que ele se acomode à sua própria imagem atual — seja ela
triunfal ou miserável. Ele o obriga a se medir pelo que ainda não é, mas que
pode vir a ser.
Esse “poder ser” não é uma evasão idealista, mas um compromisso
ontológico. Significa reconhecer que a existência é temporal, que a pessoa é um
vir-a-ser, e que o sentido da vida só se revela no movimento que vai da
dispersão à forma. O necrológio, nesse sentido, é o ponto de referência que permite
à consciência julgar seus atos, não por critérios exteriores, mas pelo grau em
que eles colaboram ou sabotam a realização de seu destino. E esse destino não é
um fado, mas uma construção.
Portanto, o
necrológio não é uma fantasia. É uma alavanca da consciência. Ele exige
sinceridade brutal, pois mostra não apenas o que se deseja ser, mas o que ainda
se está longe de ser. Ele também exige esperança, pois abre um futuro que pode
ser preenchido. E, acima de tudo, exige responsabilidade, pois o tempo passa —
e a forma que se deseja dar à vida será, um dia, irremediavelmente encerrada. O
necrológio não é um exercício para o vaidoso, nem para o desesperado. É para
aquele que quer viver com unidade, e sabe que sem um fim imaginado com clareza,
toda vida se perde no ruído.
Artigo
2 – O conflito entre vocação e circunstância como motor formativo
A autenticidade da vida filosófica não reside na ausência de
obstáculos, mas precisamente na tensão entre a vocação interior e as
circunstâncias exteriores que se opõem a ela. Olavo de Carvalho aprofunda este
ponto com um rigor existencial que rejeita qualquer visão romântica da
trajetória intelectual. A verdadeira formação do filósofo acontece não no
isolamento ideal, mas na luta contínua entre aquilo que ele quer ser e aquilo
que o mundo impõe. Esta luta não é um ruído a ser eliminado — ela é o próprio
conteúdo da formação. E mais: é ela que forma o caráter.
A vida, como lembra novamente Ortega y
Gasset, é feita de “aquilo que fazemos” e “aquilo que nos
acontece”. A vocação diz respeito ao primeiro elemento — a direção ativa,
intencional, que o sujeito imprime à sua existência. As circunstâncias, por
outro lado, não dependem dele: são as resistências, os desvios, os acidentes,
os imprevistos. Mas o homem não é nem o puro realizador de um plano, nem uma
vítima passiva das forças que o cercam. Ele é a tensão viva entre os dois. E é
essa tensão que constitui a dignidade da existência humana: ela exige resposta.
Olavo exemplifica essa ideia com o contraste entre dois grandes
homens: Léon Bloy e Goethe.
Bloy, escritor francês católico do século XIX, viveu na miséria, rejeitado por
editores, traído por amigos, incompreendido por seu tempo. Apesar disso — ou
talvez por causa disso —, produziu obras de profundidade e autenticidade
únicas. Ele absorveu cada obstáculo como matéria para o seu trabalho e sua
santificação pessoal. Sua vocação não foi facilitada pelas circunstâncias; foi
construída contra elas.
Goethe, ao contrário, foi um homem favorecido pelas condições de
seu tempo: amado, prestigiado, socialmente estabelecido. Mas, em vez de se
acomodar a isso, encarou os encargos públicos, os deveres sociais e as
obrigações civis como partes necessárias da formação do seu caráter. Mesmo sem
necessidade, ele se impunha dificuldades — não como martírio, mas como
disciplina. Em ambos os casos, o ponto é o mesmo: não é a natureza das
circunstâncias que forma o filósofo, mas a maneira como ele as integra à sua
vocação.
Essa integração, porém, não é natural nem automática. Ela exige um
tipo específico de inteligência: a capacidade de ver as dificuldades não como
acidentes hostis, mas como elementos a serem transfigurados. O que se opõe à
vocação não é, necessariamente, seu contrário: pode ser o instrumento que a
intensifica. Por isso, Olavo insiste que cada derrota, cada humilhação, cada
entrave pode ser absorvido como ocasião formativa — desde que o sujeito
mantenha vivo o foco do necrológio, ou seja, a imagem unificadora daquilo que
deseja ser.
Nesse processo, o elemento essencial é o reconhecimento da
realidade: saber qual é o seu objetivo e saber qual é a equação real que está
vivendo. A maioria das pessoas fracassa nisso não por falta de talento, mas por
recusa em admitir a verdade do momento. Criam narrativas de autojustificação,
imaginam conspirações, racionalizam sua estagnação. Mas a vida não responde à
fantasia. Só o enfrentamento corajoso do real permite que o sujeito transforme
a sua história em destino.
Ao fim, a vida
filosófica se define não pela ausência de conflito, mas pela estruturação
desses conflitos em torno de uma vocação superior. A tensão entre o chamado
interior e a desordem exterior, quando assumida com consciência, torna-se o
motor da autossuperação. E é nesse esforço que o filósofo se forma — não como
técnico do conceito, mas como homem que carrega dentro de si uma unidade em
construção. A unidade não está pronta: ela está sendo forjada no atrito entre o
ideal e o mundo. Esse atrito, aceito com seriedade e persistência, é o
verdadeiro laboratório da alma.
Artigo
3 – O eu operante e a dissolução da armadilha da autoimagem
Na fase mais profunda da formação filosófica delineada por Olavo
de Carvalho, a consciência deixa de ser um retrato de si mesma e passa a ser
uma operação contínua de autoconstrução. Esse estágio exige a superação
decisiva de um dos maiores inimigos do autoconhecimento: a autoimagem. Aquilo
que o sujeito pensa que é — seu “eu” composto de rótulos, julgamentos,
autodefesas e idealizações — não passa de uma representação congelada, uma
caricatura que, se aceita como verdadeira, aprisiona a alma num teatro perpétuo
de acusação e defesa. O verdadeiro eu, ao contrário, é atividade pura: é o que
age, responde, trabalha, transforma.
Olavo enfatiza que a autoimagem é uma ratoeira, porque ela
transforma a consciência num tribunal. O sujeito, ao criar uma imagem de si
mesmo, estabelece um código penal interior: passa a julgar tudo o que é, foi ou
faz à luz de um ideal fixo — e, ao fazê-lo, perde a liberdade criativa de ser.
A energia que deveria ser usada para agir é desviada para o conflito interno
entre o “acusador” e o “réu”. E, nesse cenário, não há saída: o eu se torna
refém de sua própria ficção, lutando contra si mesmo num ciclo interminável de
autodegradação ou autoengano.
A saída proposta é radical: dissolver a autoimagem por completo. E
isso só se torna possível quando o sujeito descobre que seu verdadeiro eu não é
uma figura, mas uma consciência em ato. Ele não é aquilo que diz de si — “sou
forte”, “sou fraco”, “sou preguiçoso”, “sou sensível” —, mas aquele que está em
permanente transformação diante da realidade. O eu verdadeiro é aquele que fala
com Deus. E, nesse diálogo, toda imagem é insuficiente, porque Deus conhece o
sujeito não como ele se representa, mas como ele é no tempo total de sua
existência — inclusive aquele tempo que ele ainda não viveu.
Esse deslocamento da consciência — do espelho para a ação — marca
a passagem decisiva entre o sujeito psicológico e o sujeito filosófico. O
primeiro se contempla. O segundo age. O primeiro está preocupado em ser algo. O
segundo está preocupado em cumprir algo. Essa é a conversão fundamental: quando
o indivíduo abandona a tentativa de ser uma “coisa com qualidades” e assume o
papel de uma consciência em obra, um agente moral e cognitivo que responde ao
real à medida que o real se apresenta.
Esse “eu operante”, como Olavo o chama, não tem forma definitiva,
pois está sempre se atualizando. Ele é foco de luz e movimento. Sua força não
está na solidez da imagem, mas na lucidez do esforço. A dissolução da
autoimagem, longe de ser um colapso, é o início da liberdade. O sujeito que não
precisa mais defender ou acusar a si mesmo pode, enfim, voltar-se ao que
importa: o dever, a verdade, o próximo, o real. Ele para de se explicar e
começa a agir. Ele para de se representar e começa a se construir.
A autoconsciência filosófica, nesse nível, não se define mais por
introspecção, mas por vigilância. Não busca saber “quem sou eu?”, mas “qual é o
meu próximo passo?”. Não procura autodefinições, mas clareza de dever. E é
nesse gesto que o eu começa, enfim, a se conhecer verdadeiramente: como ser em
movimento, como presença no tempo, como resposta viva ao chamado da realidade.
Portanto, a
dissolução da autoimagem não é uma perda. É uma libertação. O sujeito abandona
o peso morto daquilo que julgava ser, para tornar-se aquilo que pode ser em
resposta ao real e a Deus. O eu verdadeiro não é imagem — é fidelidade. E a
filosofia, em seu núcleo mais autêntico, é o exercício dessa fidelidade levada
até o fim.
Capítulo
IV – Técnica da Investigação e Fundamentos do Saber Filosófico
Artigo 1 – A pesquisa erudita como instrumento da inteligência
filosófica
Na arquitetura formativa delineada por Olavo de Carvalho, o quarto
bloco — a aquisição das ferramentas da investigação — marca o ponto de
transição entre a preparação interior e a articulação objetiva do saber. Após o
adestramento do imaginário, o domínio da linguagem e o exercício de unificação
da existência sob a luz da vocação, chega-se ao momento em que o sujeito
precisa trabalhar metodicamente com os materiais da cultura. É aqui que entra a
erudição, não como ornamentação ou ostentação de saberes acumulados, mas como
um instrumento técnico a serviço da investigação filosófica autêntica.
Olavo insiste que essa etapa não pode ser confundida com a
formação acadêmica comum. A pesquisa universitária no Brasil, segundo ele,
oferece apenas um reflexo pálido e distorcido desse trabalho, pois tende a
valorizar a acumulação de referências e a fidelidade a modismos teóricos, em
detrimento da investigação real. A erudição verdadeira começa com a definição
de uma questão viva. Não se trata de escolher um tema para atender a exigências
burocráticas, mas de formular uma pergunta que emerge organicamente da
trajetória existencial e intelectual do sujeito.
A partir dessa questão, a tarefa passa a ser a coleta meticulosa
de toda documentação relevante: obras, autores, controvérsias, contextos. Essa
etapa exige disciplina, paciência e humildade. O filósofo, nesse momento,
assume o papel do historiador — não para narrar fatos externos, mas para
reconstruir o desenvolvimento interno de um problema. O modelo dessa atitude é Aristóteles, que ensinava a começar a investigação
filosófica pelo exame do que “os sábios disseram a respeito”. Esse exame não é
decorativo: é um ato de humildade intelectual e de inteligência estratégica. O
que se busca não é repetir os antigos, mas compreender onde o problema já foi
tratado, como foi elaborado, que dificuldades surgiram — para então, a partir
desse pano de fundo, poder avançar.
Olavo cita Joseph
Maréchal como exemplo máximo dessa metodologia em ação. Sua
obra Le Point de Départ de la Métaphysique mostra como se
reconstrói, com extrema precisão e seleção criteriosa, a evolução de um
problema filosófico desde suas raízes. Não se trata de escrever uma “história”
no sentido acadêmico — com fidelidade cronológica e exaustividade factual —,
mas de reconstituir a sequência significativa dos momentos essenciais que estruturaram
o campo de tensões do qual se parte. Essa história não é neutral, mas
orientada: ela é contada desde o ponto de vista daquele que deseja entender o
problema em sua estrutura viva.
Nesse ponto, Olavo frisa que a investigação não pode ser conduzida
mecanicamente. A leitura dos documentos deve ser acompanhada por uma
interpretação ativa: é preciso relacionar, comparar, levantar hipóteses,
imaginar alternativas. O estudante não pode ser um compilador — deve ser um
reconstrutor. A inteligência filosófica se manifesta quando o sujeito não
apenas lê o que foi dito, mas enxerga o que está por trás do que foi dito: o
conflito, a hesitação, a tentativa. A investigação filosófica é, assim, uma
reconstrução dramatizada do saber.
Por isso
mesmo, essa etapa exige maturidade. Um sujeito que ainda não passou pelas fases
anteriores — imaginário formado, linguagem viva, consciência integrada —
dificilmente conseguirá investigar algo com profundidade. Ele se perderá nos
detalhes, será seduzido por modas, errará a questão ou julgará superficialmente
aquilo que deveria ser examinado com reverência. A pesquisa erudita, quando bem
feita, não é um acúmulo de saber. É um ato de humildade diante da tradição e de
coragem diante da dúvida. Ela permite que o filósofo se arme com precisão, não
para repetir doutrinas, mas para, enfim, dizer algo que valha a pena ser dito.
Artigo
2 – A técnica filosófica como drama pessoal e método investigativo
A técnica filosófica, tal como apresentada por Olavo de Carvalho,
não pode ser confundida com um sistema de operações formais aplicáveis
mecanicamente ao pensamento. Ela é, antes de tudo, a cristalização de um drama
pessoal vivido na esfera da inteligência. O filósofo autêntico, ao investigar
um problema, compromete toda sua existência no ato. Não se trata de resolver
uma questão abstrata para uma dissertação acadêmica, mas de enfrentar uma
dificuldade vital cuja solução iluminará sua própria orientação no mundo — e,
não raro, tocará diretamente a salvação de sua alma.
Por isso, a técnica filosófica só se revela como tal quando o
sujeito já formou em si os quatro pilares anteriores: o imaginário povoado de
experiências simbólicas, a linguagem viva e expressiva, a consciência
vocacional integrada e a prática disciplinada da pesquisa. Esses elementos
criam um solo fecundo no qual a técnica se transforma em ação, e não em
decalque. Filosofar, neste sentido, não é aplicar um método; é dramatizar uma
tensão e conduzi-la à inteligibilidade.
A prática filosófica verdadeira exige, portanto, uma interiorização
completa do problema. O sujeito não estuda “o ceticismo”, “o realismo” ou “a
intuição intelectual” como quem analisa peças de um museu. Ele deve sentir o
drama que levou um filósofo antigo a duvidar da razão, outro a postular a
evidência do ser, outro a propor mediações. Essa encarnação interior dos
conflitos é que permite que a técnica surja — não como um procedimento cego,
mas como a expressão do próprio caminho percorrido.
Olavo aponta que essa interiorização técnica da filosofia se
revela até na linguagem. O modo como o filósofo fala — suas escolhas de
palavras, sua ordem de exposição, suas pausas, suas ênfases — deixa
transparecer a densidade do esforço intelectual que sustenta cada frase. Não é
um estilo ornamental: é um estilo que denuncia a alma. O filósofo autêntico não
apenas organiza ideias: ele comunica uma experiência. E essa experiência só
pode ser traduzida por uma linguagem que esteja à altura da tensão vivida.
É por isso que Olavo compara a técnica filosófica ao tampo da mesa
sustentada pelos quatro pés anteriores. Sem imaginação, linguagem, vocação e
erudição, não há superfície onde a técnica possa se apoiar. Ela se torna um
truque vazio, uma afetação intelectual. Mas quando os fundamentos estão dados,
a técnica emerge como uma consequência inevitável — quase como uma maturação
natural da alma em sua busca por forma.
Essa concepção da técnica filosófica é confirmada pela leitura de
autores como Louis Lavelle,
cuja obra Manual de Metodologia Dialética Olavo toma como
modelo. Lavelle compreende a filosofia como um ato de presença total do sujeito
diante do ser. O método não é exterior ao espírito: ele é o modo pelo qual a
inteligência se relaciona com o real com inteireza. Também Eric Weil, em Logique de la
Philosophie, mostra que a lógica do pensamento filosófico é
inseparável de sua dimensão trágica: todo problema filosófico é uma escolha
decisiva, uma posição perante o ser e o mundo.
Em suma, a
técnica filosófica não é uma ferramenta que se ensina — é uma postura que se
conquista. Ela nasce da tensão entre o desejo de compreender e a resistência do
real. E só floresce quando o sujeito aceita entrar nesse drama com seriedade,
integridade e paciência. Quando isso ocorre, a filosofia deixa de ser um campo
de estudo para se tornar uma forma de vida — e o método deixa de ser um esquema
para se tornar um caminho. O filósofo, então, não é um especialista. É um homem
que passou pelo fogo e saiu falando.
Artigo
3 – O conhecimento por presença e a superação do racionalismo abstrato
Na conclusão do itinerário formativo delineado nesta aula, Olavo
de Carvalho introduz um elemento decisivo, muitas vezes negligenciado pela
tradição filosófica ocidental: o conhecimento por presença. Trata-se de uma
forma de saber que antecede e sustenta toda operação racional, mas que não é,
por isso, irracional. Ele é pré-discursivo, não verbal, e absolutamente
necessário para que qualquer discurso, qualquer raciocínio ou teoria possa ser
formulado. É o pano de fundo tácito no qual todas as formas do saber se
inscrevem.
Olavo parte de uma observação que remonta a Santo Agostinho, retomada na célebre frase: “Se
ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei; se me perguntam, já não sei”. Isso
não é um paradoxo retórico, mas uma constatação ontológica: há um saber vivo e
atuante que orienta a nossa conduta e percepção no mundo, mas que se dissolve
assim que tentamos traduzi-lo integralmente em termos conceituais. Esse saber é
o que Olavo chama de “conhecimento por presença”: não é o saber que se tem sobre algo, mas o saber que se é, que se vive, que se
respira.
Esse conhecimento é perceptível na experiência cotidiana. Mesmo a
criança pequena sabe o que é “o mundo”, embora jamais o tenha concebido em
termos filosóficos. Ela age no mundo, reage ao mundo, reconhece a unidade do
mundo, sem jamais ter definido o termo “mundo”. Esse saber não é resultado de
dedução nem de experiência acumulada — é uma condição primeira de toda
experiência possível. O racionalismo moderno, ao tentar fundar todo saber
unicamente em percepções claras e distintas ou em construções conceituais
puras, simplesmente ignora esse fundamento silencioso. O resultado é o colapso:
sistemas sofisticados construídos no ar, sem contato com a realidade viva.
Olavo observa que essa forma de saber começa a ser reconhecida,
mesmo em linguagem científica, em pesquisas recentes sobre ressonância mórfica,
comunicação não-verbal e neurologia afetiva. Ele menciona Rupert Sheldrake e Antônio
Damásio como exemplos de autores que, apesar de imprecisões ou
ambiguidades, abriram portas para uma revalorização desse conhecimento anterior
ao discurso. Essa recuperação é fundamental para restaurar o vínculo entre o
pensamento e a vida. Sem ela, todo o esforço filosófico corre o risco de se
encerrar em círculos formais, autistas, autossuficientes.
O conhecimento por presença não pode ser ensinado, apenas
reconhecido. E, uma vez reconhecido, ele exige humildade. O filósofo que não
admite a existência de um saber que ele não controla, que ele não conceitua,
que ele apenas vive, jamais será capaz de compreender os limites da razão — e,
portanto, também não compreenderá sua verdadeira força. Pois a razão não é
absoluta: ela é um clarão momentâneo dentro de um campo muito mais vasto e
misterioso. Ignorar isso é a origem de todas as filosofias arrogantes, de todos
os sistemas que, no fim, desmoronam.
Olavo propõe, assim, que a técnica filosófica, para ser completa,
precisa incluir esse reconhecimento. O exercício da filosofia deve ser
conduzido com atenção ao que escapa. O filósofo deve cultivar um estado de
presença no qual os conceitos são gerados, mas também constantemente iluminados
pelo fundo real que não se deixa apreender totalmente. Esse fundo é a presença
viva do mundo, da realidade, de Deus. É o que torna o pensamento possível — e,
ao mesmo tempo, o que o ultrapassa.
Conclui-se,
portanto, que a filosofia, longe de ser apenas o jogo da razão, é uma resposta
integral ao mistério do ser. Ela começa com o drama da dúvida, percorre o
esforço de investigação, se estrutura em técnica — mas só se realiza plenamente
quando reconhece que todo esse esforço repousa sobre uma base silenciosa,
anterior, não formulável. Esse reconhecimento não é derrota: é sabedoria. O
verdadeiro filósofo é aquele que, tendo percorrido todos os caminhos do saber,
se curva diante da presença do que é — e, nesse ato, encontra não só a verdade,
mas também a paz.
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