sexta-feira, 18 de julho de 2025

Elites, Ditaduras e o Preço do Poder: Uma Crítica Cruzada.

   
    


Índice da obra – "Elites, Ditaduras e o Preço do Poder: Uma Crítica Cruzada".

Capítulo I – A Tentação do Controle: quando o medo guia a aliança

1. O pavor das massas e o mito do caos: o impulso que empurra as elites aos braços do tirano

2. Da esperança ao pacto: como os donos do capital acreditaram que poderiam moldar monstros

3. Hitler, Vargas, Fujimori – os frutos podres da aliança entre casta e comando

4. Orwell e Faoro: a fábula do porco e o jogo cortesão como retratos da cegueira voluntária

Capítulo II – A Ilusão do Comando: elites que acham que mandam

1. Os primeiros aplausos: dinheiro, influência e a falsa sensação de domínio

2. Carroll Quigley e o fracasso da engenharia política de elite

3. A burguesia alemã diante do Reich: Evans e a crônica de uma submissão anunciada

4. Levitsky e a repetição do erro: quando as elites são cúmplices da própria ruína

Capítulo III – O Ciclo do Descarte: da influência à irrelevância

1. O banquete dos tolos: elites descartadas no altar do poder absoluto

2. Faoro e a elite parasitária: de benfeitores a servos do Estado forte

3. A Revolução dos Bichos como metáfora universal da traição

4. A curva trágica: de aliados a traidores – o destino previsível dos que apostam em ditadores

Capítulo IV – Estruturas que matam: Estado, capital e a lógica da concentração

1. Patrimonialismo, corporativismo e a sedução do Leviatã centralizado

2. O Estado como fetiche: a elite que ama seu próprio carrasco

3. Da técnica à submissão: quando a especialização vira cúmplice da tirania

4. O papel da academia, do direito e da cultura no adestramento das consciências

Capítulo V – O Retrato Final: não foi engano, foi cálculo

1. Não foi ingenuidade, foi adesão: elites sabiam o que faziam

2. O custo do silêncio: os que lucraram com o sangue

3. O duplo erro: as massas que seguem e os senhores que financiam

4. Para onde vai o poder? Conclusões amargas sobre a repetição da história



Capítulo I – A Tentação do Controle: quando o medo guia a aliança.

Artigo 1 – O pavor das massas e o mito do caos: o impulso que empurra as elites aos braços do tirano.

Toda ditadura começa antes do ditador. E quase sempre começa com medo. O medo do caos, do descontrole social, das massas revoltadas, da revolução que bate à porta. Esse medo não nasce do nada; ele é cultivado, amplificado, dramatizado por aqueles que têm muito a perder — os donos da propriedade, os chefes das instituições, os líderes do capital. Quando esses sentem o chão tremer, não hesitam: fazem qualquer negócio com quem prometer ordem.

Esse impulso aparece com clareza nos relatos de Quigley, quando ele expõe como círculos financeiros e acadêmicos anglo-americanos, preocupados com a instabilidade do pós-guerra, ajudaram a estruturar regimes autoritários que supostamente defenderiam a civilização ocidental contra o comunismo. A mesma lógica atravessa os estudos de Evans sobre a Alemanha nazista: industriais, banqueiros e aristocratas, mesmo desgostosos com Hitler, viram nele a última trincheira contra o bolchevismo.

Há uma constante aqui: a elite não quer o bem comum — ela quer a estabilidade que lhe permita continuar mandando. Para isso, transforma a política em um jogo de contenção. O povo vira um problema, a liberdade um risco, o dissenso uma ameaça. É nesse cenário que o ditador aparece como “solução racional”. Não por sua inteligência, mas por sua promessa de esmagar o imprevisível.

Orwell capta isso com brutal simplicidade. No início da Revolução dos Bichos, há uma espécie de euforia controlada: os porcos são aceitos como “naturais líderes”, porque supostamente são mais inteligentes. Isso não nasce do afeto — nasce do medo. Melhor confiar em alguém que diga o que fazer do que encarar o vazio da liberdade.

Faoro, por sua vez, mostra que no Brasil esse medo se apresenta como um instinto quase orgânico da elite patrimonialista. Ela não teme o povo porque o desconhece, mas porque sabe que ele é um lembrete constante de sua fragilidade. Por isso prefere o braço forte do Estado, mesmo que esse braço a sufoque amanhã.

No fundo, a adesão ao autoritarismo é menos uma falha moral do que uma escolha estratégica. A elite não erra por inocência. Ela aposta no tirano porque ele promete manter as engrenagens do privilégio girando. O problema é que o preço quase sempre é a própria cabeça — só que isso, como veremos, elas só percebem depois.

Artigo 2 – Da esperança ao pacto: como os donos do capital acreditaram que poderiam moldar monstros.

Existe uma fase da história que se repete com a precisão de uma peça ensaiada: elites políticas e econômicas, temendo a erosão de seu poder, apostam num “salvador” autoritário. E o fazem não como quem se submete, mas como quem acredita poder manipular. Entram na dança pensando que conduzem o baile — e acabam como parte do chão pisoteado.

Carroll Quigley descreve esse fenômeno com riqueza de detalhes. Ele mostra como a elite financeira ocidental, sobretudo no eixo anglo-americano, não só tolerou regimes antidemocráticos, mas os financiou e ajudou a estruturar. A crença era simples: ao alimentar certos regimes “fortes”, seria possível evitar rupturas radicais e manter o sistema funcionando. Criou-se um pacto: vocês controlam o povo, e nós controlamos vocês. Mas o monstro, uma vez solto, come a mão que o alimenta.

Richard Evans reforça isso com o caso alemão. A elite tradicional prussiana — aristocratas, industriais, oficiais — viu em Hitler um bárbaro útil. Alguém que falava a língua do povo, que galvanizava multidões, que podia destruir os comunistas. A ideia era domesticá-lo por dentro, inseri-lo nas engrenagens do poder conservador. Mas Hitler não se deixou cooptar. Em poucos anos, os que haviam facilitado sua ascensão estavam mortos, exilados ou irrelevantes.

Levitsky e Ziblatt enxergam o mesmo erro em tempos modernos. Políticos democráticos, com apoio de elites econômicas, fazem alianças com populistas autoritários achando que podem contê-los com instituições. Ignoram que instituições são frágeis quando os que deviam defendê-las estão ocupados negociando cargos. Fujimori, Chávez, Erdogan — todos foram tratados como peças controláveis, e todos se tornaram centros autônomos de poder.

Na fábula de Orwell, os porcos não tomam o poder à força. Eles o recebem. São os mais instruídos, os mais espertos, os “mais adequados”. Mas, uma vez no comando, descartam qualquer pacto. A promessa de que todos seriam iguais some. Os acordos evaporam. A revolução que deveria ser de todos vira propriedade de poucos.

Faoro analisa esse pacto no caso brasileiro como uma recorrência histórica. A elite nacional nunca se importou em dividir o poder — apenas em manter o seu quinhão garantido, mesmo que o preço fosse a sujeição a ditadores. O Estado vira uma máquina de acordos precários. Mas a história mostra que o Estado forte sempre cobra caro: uma vez consolidado, ele já não precisa da elite que o ajudou.

Assim, da esperança nasce o pacto, e do pacto nasce a prisão. As elites, que entraram no jogo como patrocinadoras, saem como reféns. E quase sempre é tarde demais para recuar.

Artigo 3 – Hitler, Vargas, Fujimori – os frutos podres da aliança entre casta e comando.

A história política do século XX está cheia de exemplos que comprovam a seguinte regra: quando as elites apostam num líder autoritário para preservar seus interesses, o que recebem não é proteção — é destruição lenta, às vezes humilhante. Elas constroem o trono achando que sentarão ao lado do novo rei, mas acabam sob seus pés.

Na Alemanha, Hitler não foi uma surpresa total para os poderosos. Já era conhecido por seu discurso violento, pela retórica antidemocrática, pela vocação totalitária. Mesmo assim, foi apoiado. Por quê? Porque a elite econômica e política achava que ele poderia ser usado como um escudo contra o socialismo. Achava que os exércitos do comunismo eram uma ameaça real, e Hitler parecia o cão de guarda perfeito. O que aconteceu, como relata Evans, foi o exato oposto: em pouco tempo, o partido nazista havia engolido o Estado e os empresários passaram a obedecer ordens como qualquer operário — isso quando não eram presos ou mortos.

No Brasil, Getúlio Vargas seguiu um script semelhante. Subiu ao poder com apoio de uma elite rural e militar que via no regime de 1930 uma forma de reorganizar o país sob uma lógica centralizada e “moderna”. Havia a crença de que Vargas traria ordem, industrialização, estabilidade. Ele trouxe, de fato — mas à sua maneira. Com censura, polícia política, concentração de poder. Muitos de seus antigos apoiadores foram colocados para fora. A elite pensava que comandaria com ele. Vargas preferiu mandar sozinho.

No Peru, Alberto Fujimori assumiu a presidência com apoio da elite tradicional, que via nele uma solução técnica e dura para a crise econômica e o terrorismo. Eleito democraticamente, foi ganhando poder e rasgando a Constituição. Aplicou políticas liberais exigidas pelo capital internacional ao mesmo tempo em que usava os métodos mais sujos contra opositores e jornalistas. No fim, nem seus aliados escaparam das escutas, da vigilância, das chantagens. Quando caiu, caiu por excesso de poder.

O mesmo padrão se repete: a elite aceita o autoritário achando que o controla. Em cada caso, ela é seduzida por dois fantasmas — o da ordem e o do progresso — e ignora o custo ético e político de entregar a chave do poder a quem despreza a própria ideia de limites.

Esses episódios não são exceções. São estruturas recorrentes. Quigley explica que esse tipo de pacto é típico de momentos de crise, quando a elite prefere qualquer estabilidade a uma liberdade incerta. Mas o que ela recebe, no final, é a perda do próprio poder — não para o povo, mas para um novo tirano.

Artigo 4 – Orwell e Faoro: a fábula do porco e o jogo cortesão como retratos da cegueira voluntária.

Quando Orwell escreveu A Revolução dos Bichos, não estava apenas parodiando o stalinismo — estava desenhando um padrão humano. A fábula dos animais que fazem uma revolução para se libertar dos humanos e acabam dominados pelos porcos é uma imagem clara de como o poder corrompe, mas também de como a elite, mesmo nas revoluções, busca manter seu espaço, nem que seja vendendo a alma. O detalhe mais ácido da obra não é a tirania final dos porcos — é o fato de que todos aceitaram, pouco a pouco, cada degeneração. Inclusive aqueles que se achavam “importantes demais para cair”.

Os porcos, no início, representam a inteligência, a organização, a técnica. São os que leem, os que pensam, os que falam bem. Recebem, portanto, a confiança dos outros. Mas essa confiança não nasce de mérito real — nasce de uma conveniência silenciosa. Os outros animais querem acreditar que alguém mais capaz esteja no comando, porque isso os exime da responsabilidade. A elite, então, não impõe — ela é aceita. E logo se torna intocável.

No Brasil, Raymundo Faoro diagnosticou o mesmo padrão com outros nomes. A elite nacional não se impõe pela força nem pela virtude — impõe-se por estar perto do trono. É uma elite que não cria, não arrisca, não lidera — apenas se aproxima do poder para sobreviver nele. Faoro chama isso de "patrimonialismo", mas na prática é um sistema de servidão voluntária: as elites não disputam o poder, elas o mendigam. E quando o encontram, colocam-se a serviço — mesmo sabendo que podem ser descartadas.

Faoro mostra que esse tipo de elite — cortesã, bajuladora, dependente — é recorrente nas transições de poder no Brasil. E sempre repete o erro: apoia o novo regime achando que vai colher os frutos, mas é deixada de lado assim que o governo se fortalece. A inteligência, a técnica, o status — tudo isso serve ao poder, mas nunca o controla.

Essa cegueira voluntária — esse desejo de acreditar que é possível influenciar quem não aceita ser influenciado — é o traço comum entre os porcos de Orwell e os “donos do poder” de Faoro. O poder real não compartilha. Ele engole. Mas a elite prefere alimentar essa ilusão de protagonismo porque a alternativa — o ostracismo, a insignificância — é insuportável.

A grande tragédia aqui não é a traição dos líderes. É o autoengano das elites. Elas veem o abismo, mas apostam que têm asas. Quando caem, dizem que foram enganadas. Mentira. Elas sabiam. Só não quiseram ver.

Capítulo II – A Ilusão do Comando: elites que acham que mandam.

Artigo 1 – Os primeiros aplausos: dinheiro, influência e a falsa sensação de domínio.

Quando um novo regime autoritário se instala, raramente o faz sozinho. Ele vem cercado de aplausos — e não são das massas empobrecidas, mas da cúpula que detém o capital, os meios de produção, os jornais, as universidades. A elite não só permite a chegada do tirano, como o saúda de pé, com discursos, editoriais, cafés e condecorações. E não é apenas bajulação — é convicção. Acreditam que mandam.

Esse autoengano é uma constante. Hitler, no início, recebeu dinheiro dos industriais alemães não como um favor desesperado, mas como parte de uma negociação clara: nós financiamos, você combate os comunistas e mantém nossos negócios intocados. Vargas, por sua vez, foi bancado por latifundiários e militares, porque prometia ordem e modernização. Em ambos os casos, os aplausos iniciais vieram da certeza de que o poder obedeceria seus padrinhos.

Mas há um erro aqui: essas elites confundem influência com comando. Acham que porque bancaram a ascensão, controlam os rumos. Não percebem que o poder absoluto, uma vez conquistado, não tem gratidão nem dívida. Sua única regra é a expansão.

Na visão de Carroll Quigley, essa ilusão foi cultivada por décadas. As elites ocidentais, obcecadas por previsibilidade, passaram a acreditar que podiam moldar o mundo através de fórmulas técnicas e pactos discretos. A política se tornou uma engenharia de conveniência. Mas regimes autoritários não operam por conveniências — operam por culto, por obediência, por medo.

A elite então se engana. Acha que está num teatro em que escreve o roteiro. Mas está no palco errado, na peça errada, aplaudindo o assassino que já decidiu que ela é o próximo ato. E quando o cenário começa a ruir, tudo o que lhe resta é o eco dos próprios aplausos.

Artigo 2 – Carroll Quigley e o fracasso da engenharia política de elite.

Carroll Quigley, ao dissecar as engrenagens do poder global em Tragédia e Esperança, não se limitou a narrar os eventos — ele expôs o pensamento por trás deles. E o que vemos, por trás dos grandes pactos e alianças, é uma fé quase religiosa na capacidade das elites de moldar o mundo como um engenheiro molda uma máquina. Essa fé, segundo Quigley, foi a ruína.

As elites que ele descreve — banqueiros internacionais, fundações filantrópicas, intelectuais tecnocráticos — não se viam como conspiradores do mal, mas como guardiões da civilização. Achavam que sabiam o que era melhor para o mundo. Que podiam, com acordos silenciosos, estabilizar sistemas, impedir revoluções, evitar extremos. Tinham fórmulas, números, contatos. O que lhes faltava era uma coisa: a realidade.

Quigley mostra como essa elite apoiou regimes autoritários, inclusive fascistas, na crença de que poderia mantê-los sob controle. Fascismo, para eles, era uma vacina contra o comunismo. Ditaduras eram aceitáveis, desde que previsíveis. E aqui está o erro fatal: a previsibilidade nunca foi atributo de regimes totalitários.

A história que ele conta não é a de um erro inocente — é a de uma arrogância suicida. Ao apoiar ditaduras “técnicas” ou “patrióticas”, essas elites contribuíram para a destruição das próprias instituições que diziam proteger. Financiaram a tirania, esperando gratidão. Receberam desprezo. Alimentaram monstros, esperando controle. Foram devorados.

O mais trágico é que essa engenharia política falhou não por falta de dados ou estratégia, mas por ignorar o fator humano. Ignoraram que poder absoluto corrompe absolutamente. Que líderes que se dizem salvadores são quase sempre aspirantes a deuses. Que, uma vez no topo, ninguém gosta de ordens — muito menos de seus antigos financiadores.

Quigley nos dá uma lição amarga: a elite que tenta construir um mundo perfeito com peças humanas invariavelmente termina esmagada pela imprevisibilidade da vontade e da ambição. Ela tenta operar o poder como se fosse um motor. Mas o poder, quando concentrado, não é uma máquina. É uma fera. E feras não aceitam coleira.

Artigo 3 – A burguesia alemã diante do Reich: Evans e a crônica de uma submissão anunciada.

Richard J. Evans, em O Terceiro Reich no Poder, não apenas relata os fatos históricos do regime nazista, mas revela a anatomia de uma rendição — lenta, consciente, orgulhosa — da elite alemã. A burguesia, os industriais, os acadêmicos, os generais, todos sabiam com quem estavam lidando. Hitler não mentia. Seu projeto era declarado, sua brutalidade evidente. Mesmo assim, o seguiram. Não porque foram enganados, mas porque acharam que poderiam conduzi-lo.

Essa é a parte mais reveladora da análise de Evans: o autoengano não era fruto da ingenuidade, mas do orgulho. Os empresários achavam que podiam “moderar” Hitler por meio da dependência financeira. Os militares achavam que o usariam como peão contra os comunistas. A elite jurídica acreditava que poderia inserir o Führer dentro do aparato legal. Todos estavam errados.

Hitler não precisou destruir a elite — ele a substituiu. Criou seus próprios quadros, suas próprias instituições, seus próprios códigos. Quem não se adequou, foi afastado. Quem resistiu, desapareceu. E quem ficou, serviu de enfeite ou instrumento. Os generais acabaram sob ordens diretas do partido. Os empresários se tornaram escravos da máquina de guerra. A justiça virou fachada para perseguição legalizada.

Evans mostra que a submissão da elite não foi um acontecimento pontual, mas um processo contínuo de recuo e adaptação. A cada novo passo de Hitler, havia hesitação — mas nunca ruptura. Os limites eram testados, ultrapassados, normalizados. O que ontem era inaceitável, hoje era tolerável. E amanhã, regra.

A burguesia alemã não caiu por acidente. Caiu porque quis proteger seus interesses a curto prazo, mesmo à custa do longo prazo. Porque acreditou que o maior risco era o socialismo — e não o totalitarismo. Porque preferiu um déspota previsível a um povo livre demais.

Evans, portanto, não descreve apenas um regime — descreve um modelo de rendição: o da elite que acredita estar acima do monstro que ajudou a criar, e acaba esmagada sob as patas dele.

Artigo 4 – Levitsky e a repetição do erro: quando as elites são cúmplices da própria ruína.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como Morrem as Democracias, não falam apenas do passado — falam do que está diante dos nossos olhos. A força do livro está em mostrar que as elites continuam, até hoje, repetindo o mesmo erro dos anos 1930: apostando em figuras autoritárias achando que podem usá-las como instrumentos. E sempre, invariavelmente, quebram a cara.

O padrão é simples: surge um líder populista, carismático, disposto a chutar as regras do jogo. Ele não esconde isso — pelo contrário, se gaba disso. As instituições tremem. E é nesse momento que as elites entram em cena, não para impedir, mas para acolher. Empresários, parlamentares, donos de mídia, juristas — todos fazem o cálculo frio: melhor embarcar cedo e garantir posição do que resistir e perder espaço.

Levitsky mostra isso em vários casos. Nos anos 1990, o Peru viu Alberto Fujimori desmontar a democracia passo a passo, com apoio de grande parte do Congresso e da elite empresarial. Na Venezuela, Chávez começou sendo ridicularizado pela elite, depois tolerado, depois incorporado — até que os mesmos que o menosprezavam já não tinham mais poder algum. Na Turquia, Erdogan foi visto como um moderado útil; hoje, é o regime quem dita quem vive e quem some.

A conclusão é clara: não existe “meio apoio” a um autoritário. Quando as elites decidem sustentá-lo — por medo, por conveniência, por ganância — tornam-se cúmplices. A ilusão de que podem controlá-lo é a armadilha mais velha da política. E a mais mortal.

O erro está em pensar que as regras do jogo continuarão valendo mesmo depois que o árbitro é expulso. Mas o que Levitsky mostra é que, uma vez que o líder autoritário percebe que pode tudo, ele passa a agir como se não houvesse amanhã — e geralmente não há, para quem o ajudou a subir.

As instituições democráticas, dizem os autores, são frágeis. Não caem de uma vez. São corroídas, deslegitimadas, ignoradas, zombadas. E quem faz isso não é só o ditador — é a elite que deveria barrá-lo, mas prefere fazer negócios enquanto o circo pega fogo. Quando o fogo chega aos camarotes, já é tarde.

Capítulo III – O Ciclo do Descarte: da influência à irrelevância.

Artigo 1 – O banquete dos tolos: elites descartadas no altar do poder absoluto.

No início, há festa. As elites sentem-se no centro da engrenagem, donos dos convites e do roteiro. O novo líder — rude, instável, mas útil — é saudado com entusiasmo, como um cavalo que se pode montar. Mas a história, sempre impiedosa, mostra que o autoritário não aceita sela. Quando firma o poder, não compartilha, não consulta, não negocia — e, sobretudo, não agradece.

Esse é o ciclo do descarte. Primeiro, a elite abre caminho. Depois, entrega os recursos. Em seguida, aceita as exceções, as ilegalidades, os atropelos — tudo com a esperança de que manterá algum controle. Mas o tirano, uma vez fortalecido, a vê como um estorvo, uma concorrência, uma ameaça potencial. E a descarta.

Richard Evans ilustra isso com maestria no caso nazista. Os industriais que bancaram Hitler foram, mais cedo ou mais tarde, forçados a submeter suas fábricas à economia de guerra, sob ordens do partido. A aristocracia prussiana, que via em Hitler um “meio necessário”, perdeu influência, comando e status. Os generais que ousaram criticar foram substituídos por homens fiéis, e os que conspiraram, mortos.

No Peru de Fujimori, os empresários que celebraram as primeiras reformas viram-se depois espionados, chantageados, controlados. No Brasil, sob Vargas, o apoio inicial da elite rural foi recompensado com centralização, sindicatos atrelados ao Estado e perda de autonomia. A promessa de ordem virou submissão.

Carroll Quigley, olhando o panorama do século XX, aponta o erro sistêmico: elites acreditam que regimes fortes trarão estabilidade, mas esquecem que estabilidade sob poder absoluto é outra palavra para irrelevância. O ditador não precisa de mediações — ele cria o próprio sistema, suas próprias elites. E quem estava ali antes, se não é eliminado, é humilhado.

A imagem é clara: os que serviram de escada não participam da festa. No melhor dos casos, recebem um cantinho na plateia. No pior, são acusados de traição, corrupção, sabotagem — e desaparecem. E quase sempre sem um pio. Afinal, como irão protestar contra o monstro que eles mesmos nutriram?

Artigo 2 – Faoro e a elite parasitária: de benfeitores a servos do Estado forte.

Raymundo Faoro, ao investigar a formação do poder no Brasil em Os Donos do Poder, identifica uma elite peculiar: não é uma elite produtiva, tampouco revolucionária — é uma elite de intermediários, de cortesãos, que vivem à sombra do Estado. Não criam o poder, mas se encostam nele. Não governam, mas bajulam. Sua força está em saber a quem servir — e por quanto tempo podem sugar sem chamar atenção.

Essa elite patrimonialista não aposta em ditadores por convicção ideológica, mas por cálculo. Se o regime forte concentrar os canais de poder, ótimo — menos concorrência. Se os sindicatos forem atrelados, melhor — o operário não grita. Se a imprensa for calada, melhor ainda — a chantagem institucionalizada segue sem ruído. O apoio vem rápido, porque a cultura da dependência já está entranhada.

Mas Faoro mostra o revés desse modelo: o Estado forte, ao consolidar seu poder, já não precisa dessa elite parasitária. Ela se torna redundante. O tirano não precisa de intermediários quando pode criar seus próprios agentes. Não precisa de advogados influentes quando pode nomear juízes obedientes. Não precisa de jornalistas amigos quando tem propaganda oficial. E então, como num reflexo automático, essa elite troca o verniz de influente por uma coleira.

Faoro não é otimista. Ele mostra que esse processo não é acidente, é ciclo. Em toda ruptura institucional — seja com Vargas, com a Ditadura Militar, ou mesmo nos rearranjos da Nova República — a elite se reposiciona como quem muda de dono. Apoia o novo regime não por adesão, mas por instinto. Mas ao fazer isso, abre mão da dignidade e, no fim, da utilidade.

Esse tipo de elite não morre de vez — ela sobrevive sempre. Mas sobrevive como ornamento, como peça de cenário. Perde sua autonomia e ainda finge que a tem. Ri das piadas do novo regime, escreve artigos elogiosos, participa de eventos oficiais — tudo enquanto sabe, no fundo, que já não é levada a sério.

O diagnóstico de Faoro é brutal porque mostra que o descarte da elite no Brasil não é tragédia — é repetição. Ela nunca teve projeto próprio. Sempre dependeu de alguém mais forte para protegê-la. E por isso, quando o Estado encontra sua força plena, ela não é combatida — é ignorada. O castigo não é a repressão. É a insignificância.

Artigo 3 – A Revolução dos Bichos como metáfora universal da traição.

A Revolução dos Bichos, de George Orwell, tem uma força simbólica que ultrapassa sua crítica ao stalinismo. É uma parábola perfeita da relação entre elites e regimes autoritários. Sob a superfície de fábula política, está o retrato nu e cru de como grupos que promovem mudanças — ou as permitem — são descartados assim que essas mudanças consolidam o novo poder.

No início, todos os animais estão unidos. Há um ideal comum, uma promessa de justiça e igualdade. Mas os porcos, mais inteligentes, mais articulados, assumem o comando. E ninguém questiona. A elite se forma ali, no berço da revolução. E como toda elite, acredita que participa da fundação de algo novo e nobre. Só que essa participação é breve.

Orwell mostra como o poder muda de forma sem mudar de essência. Os porcos começam a andar sobre duas patas, a beber, a negociar com os antigos inimigos. E os outros animais assistem, confusos. Aqueles que ajudaram a erguer o novo regime, como Sansão, o cavalo trabalhador, são literalmente descartados quando deixam de ser úteis. Não há gratidão. Só cálculo.

A elite que acreditou na revolução vê-se, de repente, fora dela. As regras que ela ajudou a escrever são reescritas. Os valores que sustentava são abolidos. E o novo regime já não precisa justificar nada. Porque já venceu.

Esse modelo se aplica com precisão histórica: basta lembrar de quantos militares, empresários, intelectuais ou religiosos ajudaram ditaduras a subir e depois viram-se marginalizados, perseguidos ou irrelevantes. A lição de Orwell é clara: o autoritarismo não compartilha. Ele usa.

Mais do que uma crítica ao stalinismo, Orwell oferece uma estrutura de leitura para todo sistema em que o poder é centralizado. Ele denuncia a hipocrisia da elite que se diz revolucionária, mas só busca manter seus privilégios sob nova roupagem. E mostra que, no fim, os porcos não são piores que os humanos. São idênticos.

A traição aqui não é só moral — é funcional. O novo regime não precisa da antiga elite porque forma a sua própria. E essa elite original, que se achava fundadora, percebe que era apenas mão-de-obra.

Orwell escancara: todo regime autoritário, no fundo, é a repetição da mesma granja. E as elites, por mais que se julguem indispensáveis, terminam sempre do lado de fora do banquete — assistindo, pela janela, os porcos brindarem com os homens.

Artigo 4 – A curva trágica: de aliados a traidores – o destino previsível dos que apostam em ditadores.

A elite que apoia um regime autoritário não apenas se ilude ao pensar que o controla — ela pavimenta a própria condenação. No momento da ascensão, é celebrada como aliada, conselheira, fiadora. Mas quando o poder se solidifica, ela se torna incômoda. E logo depois, suspeita. O que era apoio vira conspiração. O que era colaboração vira ameaça. A curva é sempre a mesma: da exaltação à desconfiança, da desconfiança à perseguição.

Richard Evans descreve esse percurso com precisão ao tratar dos generais e empresários que apoiaram Hitler. Nos primeiros anos, recebiam convites, prestígio, contratos. Mas bastou que demonstrassem qualquer hesitação — qualquer sombra de autonomia — para serem chamados de “inimigos internos”. Muitos foram expulsos, substituídos, presos ou executados. Não importava o que haviam feito antes. O único critério passou a ser a lealdade total, e essa lealdade só se mede no presente.

Em Tragédia e Esperança, Quigley já alertava que a elite global se iludia ao pensar que poderia prever os efeitos de suas próprias apostas. Ao fomentar regimes fortes para conter o caos, criou máquinas políticas que não respondiam mais a comando nenhum. Quando tentaram criticar, reformar ou moderar, já não tinham mais voz.

Levitsky e Ziblatt identificam o mesmo ciclo no século XXI. Partidos que se aliaram a autoritários, achando que poderiam domesticá-los ou usá-los como ferramentas, acabaram sendo engolidos. Primeiro, seus membros são afastados dos postos relevantes. Depois, viram alvos de investigações, campanhas difamatórias, perseguições jurídicas. Tudo sob um verniz de legalidade. O que o ditador precisa é de inimigos — e a elite antiga é perfeita para esse papel: tem passado, tem ambição, tem influência.

Orwell também retrata esse processo em sua fábula. No começo, há assembleias, debates, conselhos. Com o tempo, tudo isso desaparece. Os que pensam demais, falam demais ou lembram demais do passado, somem. E ninguém pergunta por eles. Porque o medo já se instalou, e os porcos já decidiram quem é amigo e quem é traidor.

Faoro, no caso brasileiro, expõe um modelo menos sangrento, mas igualmente trágico. As elites patrimonialistas, ao apostarem no governante de ocasião, perdem a capacidade de dizer não. Tornam-se tão servís que deixam de ser úteis. E o novo poder passa a desprezá-las por aquilo que elas sempre foram: instrumentos descartáveis.

A lição é clara. O autoritarismo exige adoração constante. Quem ousa lembrar que o regime teve padrinhos se torna suspeito. O aliado de ontem é o traidor de hoje. E quando o regime precisa mostrar força, começa limpando a casa — começando por quem a ajudou a construir.

Capítulo IV – Estruturas que matam: Estado, capital e a lógica da concentração.

Artigo 1 – Patrimonialismo, corporativismo e a sedução do Leviatã centralizado.

A elite que aposta em ditaduras não age no vácuo. Ela se ancora em estruturas históricas que naturalizam a centralização do poder. No Brasil, Faoro chamou isso de patrimonialismo: o Estado como extensão da casa dos donos do poder, administrado não como bem público, mas como patrimônio privado. Esse modelo forma uma elite dependente do Estado, não autônoma — e, por isso, disposta a aceitar qualquer regime que garanta sua proximidade do trono.

Esse comportamento não é exclusivo do Brasil. Na Europa continental, sobretudo nas experiências do fascismo italiano e do nazismo, vemos o avanço do corporativismo: um modelo em que o Estado deixa de ser árbitro e passa a ser o gerente direto das relações entre capital e trabalho. Nesse modelo, empresários apoiam o regime porque recebem estabilidade, sindicatos domesticados e garantia de lucros. Em troca, abrem mão da liberdade política.

Evans mostra como isso funcionou na Alemanha: a burguesia industrial viu o nazismo como uma forma de disciplinar a classe trabalhadora. Mas ao aceitar essa mediação total do Estado, acabou submissa ao partido. A lógica era clara — estabilidade em troca de obediência. Mas, no fundo, era servidão disfarçada de segurança.

Quigley também observa esse movimento: a elite moderna abandonou o ideal liberal de limitação do poder estatal e passou a flertar com formas de planejamento central — acreditando que, ao participar da administração, garantiria sua posição. Mas o Leviatã centralizado, uma vez alimentado, exige culto, não conselho.

Essa tendência se repete até hoje. Quando governos prometem organizar o caos, unificar os setores, silenciar os conflitos — a elite, por medo ou interesse, cede. E nisso reside a sedução do Leviatã: ele oferece uma ilusão de ordem, mas cobra autonomia em troca. Quando se percebe, o Estado já não é um instrumento — é um corpo monstruoso que engoliu seus criadores.

Artigo 2 – O Estado como fetiche: a elite que ama seu próprio carrasco.

Existe um tipo peculiar de paixão política — aquela que a elite nutre pelo Estado forte. Não é uma paixão romântica, mas utilitária. A elite, quando se vê ameaçada, projeta no Estado centralizado a figura do protetor absoluto. Não importa se o governante é truculento, autoritário ou imprevisível — desde que mantenha a “ordem”, será amado. Mesmo que, mais adiante, se torne seu carrasco.

Faoro disseca esse fetiche com precisão. Para a elite patrimonialista brasileira, o Estado é mais do que um instrumento — é a única ponte real entre privilégio e estabilidade. Não é algo que ela tema; é algo que deseja. Quanto mais forte, mais desejável. Quanto mais centralizado, mais confiável. E, como todo fetiche, isso distorce o juízo. O governante não precisa ser bom. Basta ser funcional.

Orwell expressa essa mesma dinâmica no comportamento dos animais na granja. Os porcos aumentam o controle, suprimem liberdades, distorcem a linguagem — e mesmo assim continuam no comando. Por quê? Porque oferecem uma narrativa de segurança. Eles dizem o que fazer, como pensar, quem odiar. Os outros animais, esgotados, aceitam. Preferem a prisão confortável à liberdade incerta. É a rendição disfarçada de estabilidade.

Quigley denuncia que esse comportamento está presente também nas grandes elites internacionais. Bancos, corporações, fundações — todos passaram a ver no Estado uma alavanca. Algo a ser usado, sim, mas também idolatrado. E, por isso, aceitaram regimes que centralizavam tudo: política, educação, moeda, opinião. Pensavam que, por estarem dentro do sistema, controlariam os riscos. Mas quem entra no altar do Leviatã como sacerdote, sai como sacrifício.

Levitsky e Ziblatt notam esse mesmo padrão nos EUA, Turquia e América Latina. Políticos e empresários que antes falavam em liberdade e mercado passam a defender “o líder forte”, “o homem necessário”, “o projeto nacional”. Criam o discurso. E depois são devorados por ele.

Essa elite, no fundo, ama o Estado forte porque ele promete aquilo que ela mais teme perder: privilégio sem disputa, lucro sem risco, influência sem mérito. Mas esquece que o poder absoluto nunca é devedor. Ele pode sorrir no início, mas sempre cobra. E quando cobra, não envia boletos — envia decretos, exílios, censura, silêncio.

Artigo 3 – Da técnica à submissão: quando a especialização vira cúmplice da tirania.

Um dos erros mais graves cometidos pelas elites modernas é acreditar que a técnica protege contra o autoritarismo. O argumento é velho: “não importa quem governa, desde que seja eficiente”; “precisamos de gestão, não de ideologia”; “o importante é fazer funcionar”. Com isso, a elite técnica, composta por especialistas, gestores, intelectuais e burocratas, se coloca como neutra — quando, na verdade, serve de alicerce para a tirania.

Carroll Quigley descreve como essa elite técnica foi cooptada por regimes autoritários sob o pretexto da eficiência. Administradores que deveriam zelar pela funcionalidade do sistema passaram a operá-lo mesmo quando ele violava princípios éticos elementares. A desculpa era sempre a mesma: “estamos apenas fazendo nosso trabalho”. Mas o trabalho, nesse caso, era a manutenção de um sistema de opressão.

Evans mostra, no caso alemão, como técnicos, engenheiros, juristas e médicos colaboraram ativamente com o regime nazista. Não eram fanáticos, não gritavam “Heil Hitler” em praça pública — apenas obedeciam, escreviam memorandos, gerenciavam orçamentos, assinavam pareceres. Criaram a ilusão de que estavam “acima da política”. Mas foi essa neutralidade que lubrificou a máquina da barbárie.

Orwell já havia previsto isso em sua fábula. Os porcos se justificam o tempo todo em nome da razão, da organização, da lógica. Mudam as regras, mas dizem que é para o bem de todos. Negam os fatos, mas em nome da eficiência. A linguagem técnica substitui a verdade. E os outros animais, por não entenderem os termos, apenas obedecem.

Faoro identifica essa figura no Brasil sob o nome de burocracia imperial. São aqueles que operam o Estado não com convicção, mas com cálculo. Sua especialidade não é a justiça, mas o funcionamento. Não se preocupam com o fim, mas com o meio. E por isso servem a qualquer regime, desde que sejam mantidos em seus cargos. São os eternos diretores, secretários, conselheiros. Nunca são o rosto do poder — mas sempre são seu motor.

Levitsky e Ziblatt alertam que essa elite técnica é a última barreira — ou o último degrau — para o autoritarismo. Quando os especialistas se calam, os juízes se curvam, os professores se acomodam, os jornalistas se ajustam, o regime não precisa mais da violência bruta. A técnica já fez o trabalho.

A submissão da elite técnica é a mais silenciosa — e a mais eficiente. Porque ela não exige fidelidade ideológica, nem fé, nem paixão. Basta o salário no fim do mês. Basta o título no cartão de visita. Basta a sensação de que está tudo funcionando. Mesmo que funcione como uma engrenagem do inferno.

Artigo 4 – O papel da academia, do direito e da cultura no adestramento das consciências.

Nenhuma ditadura se mantém apenas com fuzis. Para durar, ela precisa doutrinar. E para doutrinar, precisa de três instrumentos: a academia, o direito e a cultura. Esses três setores — que deveriam ser os grandes guardiões da liberdade crítica — frequentemente se tornam adestradores da consciência coletiva. E isso ocorre porque suas elites se acomodam, se adaptam, e acabam servindo ao novo regime com zelo burocrático ou entusiasmo militante.

Orwell entendeu isso com clareza. Em A Revolução dos Bichos, os porcos não apenas tomam o poder — eles reescrevem a história. Apagam memórias, mudam os mandamentos, distorcem o sentido das palavras. A linguagem vira arma. A confusão semântica é a nova pedagogia. E os animais, por não saberem mais o que significam as palavras que repetem, tornam-se incapazes de resistir. Quem controla o discurso, controla a alma.

Na vida real, isso se reflete na universidade que, diante de regimes autoritários, passa a ensinar obediência em nome do "progresso", ou a neutralidade em nome da "ciência". Professores que deveriam formar a consciência crítica se tornam meros repetidores da cartilha dominante. Como mostra Quigley, fundações e instituições educacionais financiaram e moldaram visões de mundo para garantir a aceitação de modelos centralizados de poder. O conhecimento vira ferramenta de manutenção da ordem, e não mais de questionamento.

No direito, a situação é ainda mais trágica. O jurista, que deveria limitar o poder, passa a legitimá-lo. As leis são reescritas, reinterpretadas, distorcidas — tudo com aparente rigor técnico. Evans mostra como, na Alemanha nazista, juristas e teóricos do direito criaram justificativas para as arbitrariedades mais grotescas. O que era crime ontem, hoje é “razão de Estado”. O Estado se torna juiz de si mesmo. E a justiça, uma ficção bem formatada.

A cultura, por fim, completa o cerco. Artistas, escritores, intelectuais, cineastas — muitos se tornam celebradores do novo regime. Outros se calam. Poucos resistem. A estética passa a servir ao discurso dominante. As obras que antes questionavam agora embelezam a tirania. No Peru, na Venezuela, no Brasil do Estado Novo — em todos esses casos, houve sempre um punhado de artistas que colocaram sua pena a serviço do poder.

Faoro, ao analisar o Brasil, mostra que essa elite intelectual e cultural não é forçada — ela se oferece. Não há necessidade de censura explícita quando o artista já aprendeu o que pode ou não dizer. Quando o jurista já entendeu o que o governante espera. Quando o professor já sabe que criticar é arriscado. É o adestramento interno, voluntário, silencioso.

Levitsky e Ziblatt reforçam isso: quando os setores encarregados de pensar, julgar e criar se tornam cúmplices, o autoritarismo já não precisa de truculência. A repressão passa a ser sutil, elegante, adornada com diplomas, livros, festivais e pareceres. O novo regime é celebrado — e quem questiona, marginalizado como “extremista”, “ingênuo” ou “antiquado”.

É assim que o poder absoluto se estabelece: não pelo medo apenas, mas pelo convencimento. Não só pela força, mas pela adesão das consciências que, um dia, juraram nunca se ajoelhar.

Capítulo V – O Retrato Final: não foi engano, foi cálculo.

Artigo 1 – Não foi ingenuidade, foi adesão: elites sabiam o que faziam.

A narrativa mais confortável para as elites que apoiaram regimes autoritários é a da ingenuidade. Dizem que foram enganadas, que não podiam prever o que viria, que acreditaram em promessas. Mas essa desculpa não resiste à análise. Quando se observa os fatos, os discursos, os documentos e as decisões, o que emerge é outra coisa: cálculo. Frio. Estruturado. Consciente.

Evans mostra que os industriais alemães não ignoravam o conteúdo antissemita, racista e totalitário do nazismo. Sabiam. Apenas não se importaram — desde que seus lucros fossem preservados. O mesmo ocorreu com juristas, militares e políticos. O apoio não foi um salto no escuro, mas uma aposta consciente de que, mesmo num regime brutal, eles manteriam sua posição.

Carroll Quigley, em sua análise macro-histórica, reforça essa ideia: a elite global bancou regimes autoritários não por acidente, mas por conveniência. Em nome da ordem e da previsibilidade, preferiram ditaduras a democracias frágeis. E fizeram isso de forma articulada, com bancos, fundações, ONGs, universidades. Não houve erro — houve prioridade.

No Brasil, Faoro escancara que a elite patrimonialista sempre soube o que estava fazendo ao se aliar ao Estado forte. A aposta era clara: manter privilégios, mesmo sob um regime que sufocasse o povo. A submissão era parte do plano, não efeito colateral. Servir ao novo regime, desde que se mantivesse próximo da teta estatal, era um preço aceitável.

Orwell, por sua vez, não retrata porcos iludidos — retrata porcos ambiciosos, dispostos a qualquer coisa para manter o controle. A transição da revolução para a tirania não é feita por acidente, mas por decisão. Cada concessão, cada nova regra, cada animal silenciado é parte de um roteiro muito bem entendido pelos que o escrevem.

Levitsky e Ziblatt apenas atualizam esse diagnóstico: as elites continuam fazendo cálculos. Quando decidem apoiar um candidato autoritário, não o fazem por ignorância, mas por estratégia. Acham que podem ganhar, ou pelo menos sobreviver. E por isso topam tudo: mentiras, manipulações, ilegalidades, rupturas. Depois, quando o regime se volta contra elas, fingem surpresa. Mas sabiam. Sempre souberam.

No fim, o retrato que fica é o de uma elite que não tropeçou — escolheu o caminho. Não caiu por acidente — foi porque empurrou os outros primeiro. O preço pago depois não é injustiça. É consequência.

Artigo 2 – O custo do silêncio: os que lucraram com o sangue.

Entre apoiar e resistir, há uma terceira atitude — o silêncio. É nele que muitas elites se refugiam quando os ventos mudam. Não gritam, não denunciam, não conspiram. Apenas observam, calculam, e esperam. Quando o novo regime começa a prender, censurar, eliminar, essas elites não protestam — balançam a cabeça em silêncio, continuam seus jantares, assinam contratos. E lucram.

Evans mostra, com brutalidade documental, como grandes conglomerados industriais alemães mantiveram seus negócios durante os anos de terror. Usaram trabalho escravo, firmaram contratos com o exército, exploraram territórios ocupados. Sabiam o que acontecia nos campos. Sabiam o que era feito em seu nome. Mas preferiram lucrar.

Quigley revela que, mesmo diante de regimes notoriamente violentos, as elites financeiras globais continuaram a investir, financiar, sustentar. Fizeram isso por estabilidade — ou melhor, pela aparência de estabilidade. Não importava a dor dos povos. O importante era que os fluxos de capital continuassem a girar. O silêncio foi comprado.

No Brasil, o Estado Novo de Vargas foi sustentado por uma elite que se dizia “neutra”, mas que ocupava cargos, recebia favores, expandia seus negócios. Artistas fizeram hinos. Intelectuais escreveram ensaios laudatórios. Empresários se adaptaram à nova lógica sindical. Tudo sob o pretexto da “ordem”. Faoro mostra que o silêncio não foi resignação — foi parte do pacto.

Orwell, em sua fábula, representa isso na figura dos animais comuns — especialmente os que sabiam, mas nada diziam. Aqueles que viam os porcos agirem contra os princípios da revolução, mas preferiam acreditar que “havia uma explicação”. O silêncio deles era medo, sim — mas também conforto. Porque, mesmo sob opressão, havia ração no balde.

Levitsky e Ziblatt tratam disso no presente: mostram como, diante da ascensão de autoritários, muitas elites se calam. Não porque não veem os sinais, mas porque ainda acreditam que podem atravessar a tempestade incólumes. O cálculo é sempre o mesmo: não vale a pena se indispor, melhor esperar. O problema é que o silêncio não protege. Ele só prolonga o colapso.

O custo desse silêncio é alto. Porque ele não apenas legitima o regime — ele o torna possível. Sem gritos, não há alarme. Sem resistência, não há freios. E sem responsabilidade, não há perdão. Os que lucraram com o sangue podem até não sujar as mãos diretamente — mas afundam nelas até o fim.

Artigo 3 – O duplo erro: as massas que seguem e os senhores que financiam.

A tragédia do autoritarismo não é construída apenas pelas elites, nem apenas pelo povo. Ela nasce do encontro perverso entre os dois: um que financia e outro que obedece. Um dá o dinheiro e a legitimidade; o outro, o corpo e a força. É uma dança macabra onde cada passo tem sua lógica — e seu preço.

Evans descreve essa simbiose na Alemanha nazista com clareza: as massas, esmagadas pela crise, seduzidas por um discurso de identidade e grandeza, entregaram sua fidelidade. As elites, temerosas da revolução socialista, entregaram recursos. Um deu aplausos, outro deu capital. Hitler agradeceu? Não. Apenas usou. Porque, no autoritarismo, a gratidão não existe. Só existe utilidade.

Quigley interpreta isso como um erro estrutural do século XX: elites acreditando que poderiam salvar a ordem com regimes fortes, enquanto as massas viam nesses regimes uma promessa de redenção. Os dois lados convergem por medo: um teme perder privilégios, outro teme morrer de fome. Ambos acreditam ter feito a escolha racional. Nenhum percebe que está abrindo a porta para a tirania.

Faoro mostra que, no Brasil, essa dinâmica não é diferente. A elite patrimonialista aposta no Estado forte, achando que será seu sócio. O povo, exausto com promessas vazias, se agarra ao salvador providencial. Entre eles, nasce a figura do ditador, que promete tudo a todos e cobra o preço de todos. Quem perde primeiro? O povo. Quem perde depois? A elite. Mas ambos perdem.

Orwell coloca isso em sua fábula com genialidade: os porcos sobem porque os outros animais ajudam. Uns ajudam com força bruta, outros com silêncio. O novo regime é erguido coletivamente. Mas, quando se consolida, já não pertence a ninguém — só aos que souberam usurpar no tempo certo.

Levitsky e Ziblatt, olhando para o presente, alertam que essa lógica continua: elites que aceitam pactos com populistas autoritários e massas que, cansadas de uma ordem corrupta, entregam-se ao mesmo tirano. Ambos acreditam que estão vencendo. Na verdade, ambos estão cavando sua própria ruína.

Esse é o duplo erro: achar que o autoritarismo é solução. Para a elite, é suicídio lento. Para as massas, é fome rápida. No fim, o que sobra é um país destroçado e um punhado de homens fortes que não duram, porque o poder absoluto, por natureza, se consome.

Artigo 4 – Para onde vai o poder? Conclusões amargas sobre a repetição da história.

Depois de tudo, resta a pergunta que assombra qualquer análise política séria: para onde vai o poder quando todos já o traíram? Quando as elites o financiaram, as massas o idolatraram, e as instituições o toleraram? A resposta não é reconfortante — o poder vai para onde sempre foi em regimes assim: para as mãos de quem o deseja mais do que qualquer outra coisa, e está disposto a sacrificar tudo para tê-lo.

Evans mostra que o poder absoluto é sempre centralizado, pessoal, instável. Não há “sistema nazista” — há Hitler. Não há “Estado Novo” — há Getúlio. Não há “revolução dos bichos” — há os porcos. As estruturas servem para parecer que há ordem. Mas por trás delas, há vontade. E essa vontade, quando não encontra limites, consome tudo ao redor.

Quigley não oferece consolo: mesmo as elites que criam as regras terminam prisioneiras das consequências. O poder se torna uma máquina autônoma. Quando elas tentam parar o que começaram, já não há freio. O monstro tem vida própria. O problema nunca foi o caos das massas, mas a arrogância dos que acharam que podiam domar a história.

Faoro é ainda mais cruel: no Brasil, o ciclo se repete porque ninguém aprende. As elites se renovam, mas com o mesmo vício. O povo muda de rosto, mas não de destino. O Estado muda de nome, mas não de alma. Não há ruptura — há continuidade na dominação. A servidão voluntária é a regra, não a exceção.

Orwell sintetiza tudo numa frase brutal: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.” Quando o poder é absoluto, até a igualdade se torna ferramenta de opressão. As palavras são esvaziadas, os ideais são invertidos, e o que resta é só a imposição pela força — adornada por bandeiras, hinos e discursos.

Levitsky e Ziblatt terminam seu diagnóstico com uma advertência: o autoritarismo moderno não chega com tanques — chega com aplausos. Não se impõe — é convidado. E quando finalmente se revela, é tarde. Porque, nesse ponto, o poder já não depende mais de consentimento.

A conclusão, portanto, é amarga: o erro não foi confiar, foi escolher. As elites escolheram, as massas escolheram. E a história, como sempre, apenas registrou o que se repetiu. O poder, quando deixa de ser limite e vira fim em si, não serve mais à política — serve ao domínio.

E quem serve ao domínio, cedo ou tarde, vira escravo dele.




Bibliografia da obra Elites, Ditaduras e o Preço do Poder: Uma Crítica Cruzada.

1. Quigley, Carroll.
Tragedy and Hope: A History of the World in Our Time. New York: Macmillan, 1966.
– Obra monumental sobre a estrutura oculta do poder global no século XX, com foco em como elites bancaram e se aliaram a regimes autoritários por cálculo estratégico.


2. Evans, Richard J.
The Third Reich in Power, 1933–1939. New York: Penguin Books, 2005.
– Segundo volume da trilogia sobre o Terceiro Reich. Demonstra como a elite alemã apoiou Hitler esperando estabilidade, e acabou subordinada à máquina totalitária que ajudou a erguer.


3. Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel.
How Democracies Die. New York: Crown Publishing Group, 2018.
– Análise moderna de como regimes autoritários surgem dentro de democracias, com apoio das elites políticas e econômicas, sempre achando que podem controlá-los.


4. Orwell, George.
Animal Farm. London: Secker and Warburg, 1945.
– Alegoria clássica sobre revoluções traídas, elites que tomam o poder em nome da igualdade e o transformam em tirania. Fábula aplicada ao stalinismo, mas com alcance universal.


5. Faoro, Raymundo.
Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 1958.
– Diagnóstico da elite brasileira enquanto classe parasitária que se sustenta pelo controle do aparelho estatal, com histórico de adesão oportunista a regimes autoritários.




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