quarta-feira, 2 de julho de 2025

 

A obra "Existencia de Dios y ateísmo" de Michele Federico Sciacca é um exame filosófico sistemático da questão da existência de Deus, contrapondo-a às posições ateias, com base numa epistemologia realista e numa metafísica essencialista. Sua conclusão se estrutura em torno de três eixos principais:

1.      A impossibilidade racional do ateísmo como posição filosófica autossuficiente. Sciacca demonstra que o ateísmo, ao negar Deus, não apenas falha em explicar a origem do ser e a inteligibilidade do real, como também se autodestrói epistemologicamente. Toda negação de Deus pressupõe uma estrutura de sentido, ordem e inteligibilidade que o próprio ateísmo não é capaz de justificar sem recorrer a uma instância absoluta.

2.      A necessidade lógica e ontológica de um fundamento transcendente. Para Sciacca, a existência de Deus não é uma hipótese empírica nem uma construção psicológica, mas a exigência racional da própria existência do ser contingente, do conhecimento verdadeiro e da moralidade objetiva. A ordem, a finalidade e a inteligibilidade do mundo clamam por um Ser necessário, eterno e criador.

3.      A abertura do homem à transcendência como estrutura de sua racionalidade. Sciacca encerra defendendo que a experiência humana, em sua busca por verdade, bem e sentido último, só se explica de modo pleno pela referência a Deus. O homem é ontologicamente capax Dei — capaz de Deus —, não por fé cega, mas por exigência da própria razão quando levada até suas últimas consequências.

A conclusão da obra, portanto, reforça que a existência de Deus não é apenas uma possibilidade entre outras, mas a única resposta racionalmente coerente diante da existência do ser, da consciência e da moralidade. O ateísmo é, no limite, um colapso da razão.



Índice

Capítulo I — O Ateísmo Filosófico como Destruição do Fundamento do Ser
Artigo 1 — O niilismo moderno e o eclipse do fundamento em nome da imanência absoluta
Artigo 2 — O ceticismo como sintoma de autonegação da racionalidade: de Hume à dialética negativa
Artigo 3 — O ateísmo como metafísica invertida: paralelos com o erro pelagiano e o naturalismo averroísta
Artigo 4 — O intelecto sem Deus: crítica ontológica à razão isolada segundo Santo Agostinho e Santo Tomás

Capítulo II — A Ordem do Ser e a Necessidade do Absoluto
Artigo 1 — A contingência como clamor ontológico: crítica à suficiência do ser finito
Artigo 2 — Do ente ao Ser: analogia entis e a ascensão da razão até o necessário
Artigo 3 — A metafísica essencialista de Sciacca e seu diálogo com a teologia natural escolástica
Artigo 4 — A exigência de Deus como princípio explicativo último em Boécio e Dionísio Areopagita

Capítulo III — A Crítica da Autonomia Moral Ateísta
Artigo 1 — A ética sem Deus: de Kant à dissolução da obrigação moral
Artigo 2 — Liberdade e verdade: a estrutura teônoma do ato moral na tradição agostiniana
Artigo 3 — O problema do mal e a negação do Bem supremo: crítica aos dilemas ateístas
Artigo 4 — O fim último do homem como chave do juízo ético, segundo Tomás de Aquino

Capítulo IV — Conhecimento, Inteligibilidade e Criação
Artigo 1 — Conhecer é participar: a inteligibilidade como reflexo do Logos criador
Artigo 2 — O erro gnostizante do ateísmo: conhecimento como poder em vez de contemplação
Artigo 3 — Criação ex nihilo e a racionalidade do real: confronto com o panteísmo e o dualismo
Artigo 4 — De Anselmo a Sciacca: razão, fé e o dinamismo ascendente da inteligência

Capítulo V — A Abertura do Homem a Deus: Estrutura e Destino
Artigo 1 — O homo viator e a metafísica do desejo infinito: paralelos com Pascal e Agostinho
Artigo 2 — O espírito como sede de transcendência: crítica à redução materialista da pessoa
Artigo 3 — A esperança teologal e a estrutura do sentido: Sciacca diante do colapso do imanentismo
Artigo 4 — A existência de Deus como exigência da própria existência: síntese conclusiva e apelo à inteligência crente

 

 

Capítulo I — O Ateísmo Filosófico como Destruição do Fundamento do Ser
Artigo 1 — O niilismo moderno e o eclipse do fundamento em nome da imanência absoluta

A negação de Deus no pensamento moderno não se realiza simplesmente como um erro isolado ou uma escolha espiritual equivocada; ela representa, conforme demonstra Sciacca, uma crise profunda no próprio conceito de realidade. A morte de Deus proclamada por Nietzsche não é apenas o colapso de uma crença, mas o anúncio de que todos os valores, todas as certezas e todos os fundamentos metafísicos foram destituídos. O mundo, outrora compreendido como criação e manifestação do Ser, torna-se agora um palco sem fundo, sem direção e sem origem. O niilismo, nesse sentido, não é apenas a ausência de sentido, mas a presença ativa de uma negação: a recusa do ser como tal.

Neste quadro, Sciacca identifica uma mutação radical da consciência filosófica. A razão, ao rejeitar o transcendente, abandona sua vocação ontológica e assume um papel meramente instrumental. A imanência absoluta torna-se a nova divindade filosófica. Tudo deve ser reduzido ao dado, ao sensível, ao verificável. Mas, paradoxalmente, essa absolutização da imanência não leva a uma maior clareza ou certeza, e sim a um colapso da própria inteligibilidade. O pensamento moderno, ao expulsar Deus, retira o princípio que sustentava a possibilidade mesma de conhecer. O ser, privado de fundamento, torna-se opaco. E com ele, a razão torna-se cega.

Este niilismo de fundo ganha força sobretudo a partir da substituição da metafísica pela crítica. O espírito não busca mais a verdade do ser, mas apenas a análise de seus próprios limites. Como em Kant, a razão se volta sobre si e se interroga não sobre o que é, mas sobre o que pode conhecer. A ontologia cede espaço à epistemologia, e esta, por sua vez, será dilacerada pelo ceticismo moderno, cuja última expressão filosófica se dá na desconstrução pós-nietzschiana da verdade.

A esse movimento, Sciacca opõe a metafísica clássica, na qual a imanência só tem sentido dentro de uma estrutura de transcendência. Para Aristóteles, o ente enquanto ente exige um princípio imóvel, um ato puro que não é mundo, mas é causa do mundo. Para Tomás de Aquino, a existência dos entes finitos clama por um ser necessário que os sustente sem depender deles. Sciacca, ao reler essa tradição, não apenas a reafirma, mas mostra sua vitalidade diante da destruição moderna: a fé na razão só é possível porque a razão é fé no Ser. O colapso da fé em Deus é, portanto, o colapso da própria razão.

Se o niilismo moderno proclama que nada tem fundamento, Sciacca responde que só há mundo porque há fundamento. A imanência só é pensável porque há transcendência. O tempo só se manifesta porque há eternidade. O múltiplo só é inteligível porque há unidade. Recusar Deus é recusar tudo o que permite ao homem pensar, querer, amar e conhecer. Assim, o ateísmo não é apenas falso — é autodestrutivo. E é essa destruição que o niilismo moderno representa.

Artigo 2 — O ceticismo como sintoma de autonegação da racionalidade: de Hume à dialética negativa

A dissolução moderna do fundamento, já manifestada no niilismo como negação do Ser, encontra uma de suas formas mais refinadas no ceticismo filosófico. Não se trata aqui do ceticismo clássico, moderado e metodológico, mas daquele que, a partir de David Hume, compromete radicalmente a possibilidade de conhecer o real. Hume não apenas duvida da causalidade; ele a dissolve como construção psíquica não verificável. A mente humana, reduzida à sucessão de impressões, não tem acesso ao ser, mas apenas a seus fenômenos instáveis e descontínuos. Nesse cenário, a razão não é mais instrumento de acesso à verdade, mas um artifício de adaptação.

Sciacca observa que esse ceticismo radical é, no fundo, uma patologia da razão que renunciou à sua vocação metafísica. A razão que se volta contra si mesma e desconfia de sua própria luz termina por obscurecer o mundo, e finalmente por declarar sua incompreensibilidade. Tal renúncia tem origem na recusa da referência a um Logos transcendente. A racionalidade, ao se encerrar em si mesma sem Deus, torna-se órfã de critério, e acaba negando não apenas a verdade do mundo, mas também a de si mesma.

Na tradição patrística e escolástica, ao contrário, a razão é vista como participação finita na luz do Verbo eterno. Para Agostinho, é pela iluminação divina que o intelecto humano pode apreender as verdades eternas. Para Tomás de Aquino, a ratio humana é ordenada por natureza à contemplação do verdadeiro, pois o intelecto é criado para o ser, e o ser remete a Deus como causa primeira e fim último. O ceticismo moderno, ignorando esse enraizamento, cria uma razão autônoma que termina por corroer a si mesma.

Essa corrosão atinge seu ápice na dialética negativa da Escola de Frankfurt, sobretudo em Adorno, onde todo conceito é visto como violência contra o real. O pensamento, longe de revelar a verdade, seria um instrumento de dominação, e sua única tarefa legítima seria negar — sem jamais afirmar. Sciacca percebe que, em última instância, essa postura filosófica não é neutra: ela é uma teologia invertida. A razão, incapaz de afirmar o bem, torna-se tribunal do ser e acaba por declarar sua culpabilidade.

Diante disso, a filosofia que rejeita o ceticismo não o faz por ingenuidade ou dogmatismo, mas por fidelidade ao próprio impulso racional. A verdade não é uma crença arbitrária, mas a resposta da inteligência ao ser. O ceticismo radical, ao negar essa resposta, paralisa o espírito. Por isso, Sciacca insiste: o homem não pode renunciar ao absoluto sem renunciar a si mesmo. O ateísmo que se ancora no ceticismo não apenas destrói Deus; destrói também o homem, tornando impossível toda filosofia digna desse nome.

Artigo 3 — O ateísmo como metafísica invertida: paralelos com o erro pelagiano e o naturalismo averroísta

O ateísmo moderno, longe de ser simples negação religiosa, constitui uma autêntica inversão metafísica. Sciacca mostra que, ao recusar Deus, o espírito não se liberta: ele apenas substitui o fundamento transcendente por um absoluto imanente — a vontade, a matéria, o devir histórico. Esse deslocamento repete, em chave filosófica, dois desvios clássicos já denunciados pela tradição cristã.

Primeiro, o pelagianismo. Pelágio afirmava que o homem, por suas próprias forças, podia alcançar a perfeição moral. Ao negar a necessidade da graça, ele erigia a autonomia humana em princípio supremo. O ateísmo herda essa pretensão: se Deus não existe, a liberdade humana torna-se origem e medida de todo valor. A teologia agostiniana desmonta esse erro mostrando que a criatura, sendo contingente, não possui em si mesma o poder de sua realização; precisa receber do Criador tanto o ser quanto o bem. Analogamente, Sciacca demonstra que a razão que se proclama autossuficiente termina por perder seu objeto, pois não há inteligência possível sem verdade transcendente que a preceda e sustente.

Segundo, o averroísmo latino. Averróis, interpretado pelos averroístas parisienses, sustenta a eternidade do mundo e uma razão universal autônoma, separada das pessoas singulares. Ao fazê-lo, nega a criação ex nihilo e dissolve a distinção radical entre Deus e criatura. O ateísmo contemporâneo retoma esse naturalismo: o cosmos é eterno ou fruto do acaso; não há causa livre, nem finalidade última. Tomás de Aquino rebateu Averróis mostrando que a eternidade do mundo não elimina, mas exige um Primeiro Princípio cuja vontade livre confere ao ente sua participação no ser. Sciacca, em diálogo com essa escolástica, argumenta que, sem um ato criador, a contingência do real torna-se inexplicável; o ser finito, privado de razão suficiente, degenera em enigma insolúvel.

Nestes paralelos, evidencia-se que tanto Pelágio quanto Averróis tentaram preservar a ordem moral ou intelectual após rebaixar o absoluto divino, mas acabaram por corroê-la. O pelagianismo gera um moralismo impotente, pois a vontade humana, sem a graça, não sustenta o bem; o averroísmo engendra um racionalismo estéril, pois a abstração da “intelectio una” não responde por que há seres concretos que conhecem. Do mesmo modo, o ateísmo moderno pretende fundar ética e ciência num horizonte puramente imanente, mas fracassa: em vez de explicar a liberdade, reduz-a a epifenômeno; em vez de garantir a verdade, dissolve-a em constructo histórico.

Sciacca conclui que a metafísica invertida é autocontraditória. Para pensar o ser, a verdade e o valor, o intelecto requisita justamente aquilo que nega: um princípio transcendente de existência, inteligibilidade e bondade. Ao recusar esse princípio, o ateísmo reconstrói, sem o saber, o drama de Pelágio e Averróis: proclama a grandeza humana ou a força da razão, mas elimina o solo que as torna possíveis.

Artigo 4 — O intelecto sem Deus: crítica ontológica à razão isolada segundo Santo Agostinho e Santo Tomás

O desfecho do primeiro capítulo da crítica de Sciacca ao ateísmo encontra-se na denúncia da mutilação ontológica do intelecto humano quando este se pretende absoluto em si, desligado de qualquer referencial divino. A razão, nessa concepção ateísta, é tomada como instância última e autônoma de juízo, norma de si e do real, fonte de todo critério — mas ao se exaltar dessa maneira, ela se arruína.

Santo Agostinho já advertia que a luz da razão não provém da alma, mas de uma fonte superior: Veritas lucet in mente tua, sed non est tua. Essa luz interior que torna possível conhecer não é criada pelo homem, nem é contingente como ele. Agostinho via na alma humana uma espécie de “memória de Deus”, uma abertura ontológica que só se explica pela presença constante da Verdade eterna, que é Deus mesmo. Quando o homem se separa d’Ele, não perde apenas a fé, mas perde também o próprio critério de verdade. O ateísmo, ao negar Deus, elimina aquilo mesmo que possibilita o ato de conhecer.

Tomás de Aquino, por sua vez, articula esse problema sob o conceito de participatio entis. O intelecto humano é potência ordenada ao ser, e o ser é participativo: o que existe não é o Ser em si, mas algo que tem ser, por participação. Ora, só é possível pensar e conhecer porque há uma identidade entre o ser e o inteligível — e essa identidade só é garantida porque o Ser é em si mesmo intelligere. Deus, como ato puro e ato de intelecção perfeitíssimo, é o fundamento da possibilidade do conhecimento. Separar a razão humana desse fundamento é convertê-la numa função cega, desligada daquilo que lhe dá consistência: o ser real.

O ateísmo moderno, ignorando ou rejeitando essa estrutura participativa da inteligência, impõe à razão a tarefa de justificar-se por si mesma. Isso é, no fundo, impossível. Quando se abandona Deus como fonte do ser e do conhecer, não se obtém uma razão libertada, mas uma razão enfraquecida, porque sem critério transcendente. O resultado é a racionalidade autodevoradora, que ora se destrói no ceticismo, ora se absolutiza em ideologias de poder. Em ambos os casos, o intelecto perde sua finalidade própria: a contemplação da verdade.

Sciacca vê na tradição agostiniana-tomista não apenas um legado metafísico a ser preservado, mas uma chave crítica contra a razão moderna desfundamentada. A inteligência que se pretende absoluta corta as raízes do próprio saber. O ateísmo, ao negar o fundamento transcendente do ser, arranca a própria alma da inteligência. Privado de Deus, o intelecto humano torna-se órfão do real. A verdadeira razão, portanto, não é aquela que se isola do transcendente, mas aquela que se abre ao Ser como sua fonte, fim e luz. Essa é a razão plena — não autônoma, mas participante; não criadora da verdade, mas receptiva à verdade eterna.

Capítulo II — A Ordem do Ser e a Necessidade do Absoluto
Artigo 1 — A contingência como clamor ontológico: crítica à suficiência do ser finito

A análise de Sciacca desloca-se agora para o terreno positivo da metafísica, onde o problema da existência de Deus se impõe não como hipótese religiosa, mas como exigência racional diante da própria estrutura do ser. O ponto de partida é a experiência da contingência. Tudo aquilo que existe no mundo — desde uma pedra até o homem — poderia não existir. O ser finito revela-se, portanto, como dependente, não-autossuficiente, carecendo de razão suficiente para sua existência em si mesmo.

Essa constatação, que pode parecer elementar, é, na verdade, devastadora para qualquer concepção ateísta do real. Pois o ateísmo, ao negar uma Causa primeira necessária, fica confinado ao horizonte dos entes contingentes, sem nunca alcançar uma explicação radical para sua existência. A cadeia causal infinita, postulada por muitos materialistas, não resolve o problema, apenas o posterga indefinidamente. Como já advertira Aristóteles, o infinito em ato não se realiza na ordem das causas eficientes. E como Tomás de Aquino demonstrará na Summa contra Gentiles, se tudo o que existe é contingente, deve haver ao menos um ser necessário que dê início e consistência à cadeia de causalidade, sem o qual nada existiria.

Sciacca relê esse argumento a partir de sua crítica ao racionalismo imanentista. A razão que se recusa a ultrapassar os fenômenos, que se contenta com o empírico ou o funcional, acaba por se chocar com a opacidade do real. O ser finito não apenas exige uma explicação: ele a clama ontologicamente. Seu próprio existir, que não é por si, aponta para algo que é por si — algo cuja essência seja existir. Este algo, por definição, não pode ser senão Deus.

O contraste entre a precariedade dos entes e a ideia de um Ser necessário ilumina a desproporção que o ateísmo se recusa a ver. No mundo, tudo começa e termina, tudo muda, tudo depende de algo anterior. Não é possível que o ser surja do nada, nem que o possível se realize por si. Por isso, Sciacca afirma que a contingência não é só um dado empírico — é um apelo metafísico, um vestígio da transcendência. Tal como ensina a patrística, sobretudo na teologia de Dionísio Areopagita, o mundo é vestigium Dei, marca do Absoluto. O finito, ao ser, remete silenciosamente ao Infinito.

Assim, a contingência, longe de justificar um universo sem Deus, é precisamente a prova de que o universo não se basta. A recusa da metafísica, como quer o ateísmo, não elimina o problema: apenas o oculta sob o véu de um empirismo que não responde às perguntas últimas. Sciacca, com a tradição escolástica, reafirma que o ser finito, para ser, depende do Ser necessário. E a inteligência, para entender, precisa seguir essa exigência até o fim — mesmo que o fim ultrapasse o mundo e revele Deus.

Artigo 2 — Do ente ao Ser: analogia entis e a ascensão da razão até o necessário

O argumento da contingência, desenvolvido por Sciacca, é o primeiro passo de um movimento mais amplo que tem como eixo a distinção e a relação entre o ente e o Ser. A filosofia do ser, longe de ser um jogo lógico, é a resposta da inteligência à estrutura profunda da realidade. O ente, aquilo que é, remete sempre ao ato de ser — esse — que o sustenta. Mas este ato de ser não é visível, mensurável ou apreensível diretamente: ele se revela analogicamente em todos os entes.

A analogia do ser, conceito central na tradição tomista, permite compreender que há uma ordem no real que escapa à univocidade da razão moderna. Enquanto o ateísmo moderno tenta pensar o ser de modo unívoco — como pura extensão, energia ou estrutura lógica —, a filosofia do ser ensina que o Ser se diz de muitos modos, conservando uma unidade formal em meio à multiplicidade. Essa analogia funda a possibilidade do conhecimento e da hierarquia ontológica: os entes não existem no mesmo grau, mas participam desigualmente do ser. Essa participação, por sua vez, exige uma fonte absoluta de ser, que seja Ser por essência.

Sciacca mostra que o intelecto humano, ao ascender do ente ao ser, realiza um movimento metafísico inevitável. Ao pensar o ente, a razão não pode deter-se naquilo que é composto, limitado ou corruptível. O ser que o ente manifesta não pode pertencer a ele por si; logo, é emprestado, participado. Mas o que é participado exige uma fonte plena. Assim, o movimento da inteligência não é apenas lógico, mas ontológico: do finito ao infinito, do múltiplo ao uno, do composto ao simples, do possível ao necessário. Esse é o caminho da razão quando não se mutila.

A patrística, sobretudo em Gregório de Nissa e Agostinho, via na ascensão do espírito à verdade uma elevação gradual, onde a criação, em sua beleza e ordem, serve de degrau para o conhecimento do Criador. O mundo é sacramento do Ser. Tomás de Aquino sistematiza esse itinerário: o ente remete à sua causa não só eficiente, mas formal, final e exemplar. Essa causa última, plenamente atual e simples, é Deus.

O ateísmo, ao recusar essa ascensão, retira do intelecto seu dinamismo. Fica confinado ao nível dos entes sem jamais alcançar a fonte. Pretende conhecer sem fundar, pensar sem admitir o fundamento. Sciacca denuncia aqui o erro moderno de cortar o elo entre ontologia e teologia. A razão torna-se circular, prisioneira de conceitos sem raiz. O real é reduzido à aparência ou ao processo. Mas onde não há Ser, tampouco há verdade. O abandono da analogia leva ao colapso da metafísica, da linguagem e da inteligibilidade.

Portanto, a ascensão do ente ao Ser não é invenção da fé, mas exigência da razão. O intelecto, fiel ao ser, encontra-se diante de um horizonte que o ultrapassa. Esse horizonte é o Ser absoluto, cuja essência é existir, cuja presença se insinua em toda criatura e cuja negação dissolve o próprio pensamento. É a partir dessa analogia que se pode afirmar com Sciacca, como com Tomás: Deus est ipsum Esse subsistens. E todo ente clama, ainda que em silêncio, por essa subsistência que o faz ser.

Artigo 3 — A metafísica essencialista de Sciacca e seu diálogo com a teologia natural escolástica

Ao insistir na estrutura ontológica da realidade, Sciacca não propõe uma metafísica genérica, mas uma metafísica de caráter essencialista: o real é inteligível porque está estruturado segundo essências que, embora manifestas no ente, apontam para um arquétipo superior. Esse essencialismo se opõe tanto ao existencialismo ateu moderno — que nega essências fixas — quanto ao nominalismo, que reduz os conceitos universais a meras convenções. Para Sciacca, como para os escolásticos, a essência é real, ainda que não separada como em Platão; ela está no ente, mas transcende o ente enquanto princípio inteligível e ordenado.

Esse ponto faz de Sciacca herdeiro da teologia natural tomista, onde a essência e o ato de ser são distintos em todos os entes criados. Apenas em Deus essa distinção desaparece: essentia et esse sunt idem. Essa estrutura — essência criada que recebe o ser por participação — permite fundar uma explicação racional da realidade sem cair no panteísmo nem no mecanicismo. O ser de cada ente é dom, não necessidade; sua essência é limite, não plenitude. Por isso mesmo, o mundo é inteligível e relativo: ele remete àquele em quem essência e ser são um só ato.

A teologia natural da escolástica, na qual Sciacca se ancora, não parte da fé, mas da razão, embora caminhe para o mesmo fim. É um esforço de pensamento que, a partir da experiência do real, reconhece a insuficiência do finito. Ao contrário do ateísmo moderno — que vê no mundo um fato bruto sem explicação —, a metafísica cristã vê no mundo um sinal, um vestígio, um rastro do Logos. Esse rastro é captado pelo intelecto precisamente por meio da essência, pois toda essência finita é uma pergunta ontológica que exige resposta absoluta.

A crítica de Sciacca ao ateísmo passa, então, pela reafirmação da metafísica essencialista como única alternativa coerente ao caos moderno. Pois se não há essências, só há fluxos. E se tudo é fluxo, nada é inteligível. O ser torna-se ilusão e a razão, delírio. Essa é a consequência radical do existencialismo ateu, que nega toda ordem objetiva e toda estrutura inteligível do real. Sciacca, com os escolásticos, afirma o contrário: só se pode pensar o real porque o real tem forma, essência, proporção. E essa ordem formal que o ser manifesta não se explica sem um princípio eterno que a contenha em si, não como multiplicidade, mas como simplicidade absoluta — o próprio Deus.

Assim, a metafísica de Sciacca não é simplesmente uma defesa da existência de Deus, mas a reconstrução da inteligência do ser. É uma metafísica do fundamento, onde a essência e o ser reencontram sua unidade no ato criador. A teologia natural não é apêndice da fé, mas expressão da razão em estado de fidelidade ao real. Nesse ponto, Sciacca, como Tomás, mostra que crer em Deus não é uma fuga da razão, mas sua culminação. E negar Deus não é apenas negar o Criador: é renunciar à própria possibilidade de compreender.

Artigo 4 — A exigência de Deus como princípio explicativo último em Boécio e Dionísio Areopagita

No ponto culminante deste segundo capítulo, Sciacca retoma a pergunta decisiva: o que justifica, em última instância, a existência, a ordem e a inteligibilidade do ser? A filosofia moderna, ao recusar essa pergunta ou substituí-la por um funcionalismo empírico, mergulha num nominalismo impotente. Mas na tradição da filosofia cristã primitiva, especialmente em Boécio e Dionísio Areopagita, encontramos a noção de que Deus não é uma hipótese metafísica colocada ao final de um silogismo, mas a condição de possibilidade de todo pensamento e de todo ser.

Boécio, em sua Consolatio Philosophiae, já traça o itinerário da alma humana para além das vicissitudes da fortuna e da multiplicidade aparente dos entes. A busca da felicidade, que é desejo de um bem absoluto, leva inevitavelmente à ideia de um Sumo Bem — e esse Bem, por definição, deve ser uno, imutável e necessário. O bem finito, ao ser desejado, já aponta para algo maior, pois sua posse nunca sacia plenamente. Assim, Boécio conclui que o verdadeiro objeto da inteligência e da vontade humanas não pode ser senão Deus, mesmo quando não nomeado.

Sciacca destaca, nesse contexto, que a exigência de Deus não é primariamente psicológica ou ética, mas ontológica. A razão não apenas deseja o absoluto — ela o exige para poder justificar o ser das coisas, a ordem do mundo, a consistência do real. Dionísio Areopagita, por sua vez, fala do caos iluminado dos seres como uma hierarquia ordenada cuja fonte é a Unidade transcendental. Deus é o supremo Uno que tudo produz por irradiação, sem perder Sua simplicidade. Todos os entes existem como vestígios dessa Unidade que os gera, sustenta e atrai. Não há fragmento do real que não remeta, por analogia, ao Inefável.

Esse pensamento dionisíaco é de suma importância para Sciacca porque revela uma metafísica profundamente teocêntrica, mas também rigorosamente racional. Deus é afirmado não como objeto sensível ou como projeção cultural, mas como fundamento de toda hierarquia ontológica. O cosmos é uma cadeia de participações em graus distintos do ser, e sem esse princípio participativo não há ordem possível, nem grau, nem proporção. O ateísmo, ao recusar esse Uno, transforma o real numa sucessão sem sentido, sem origem e sem direção.

Sciacca, ao articular esses elementos patrísticos com a tradição tomista e a metafísica essencialista, demonstra que a inteligência, ao atingir seus próprios limites, não colapsa, mas transita para a contemplação. A razão, quando levada até o fim, rompe o círculo do imanentismo e reencontra o Absoluto como seu princípio e seu fim. Deus, assim, não é algo a mais no universo: é Aquele sem o qual o universo não pode sequer ser pensado.

Contra toda pretensão ateísta de fundar o ser na matéria ou na historicidade, Sciacca reafirma, com Boécio e Dionísio, que só Deus — como Ato puro, como Sumo Bem, como Fonte do ser — pode ser o princípio explicativo último. Fora dele, tudo se dissolve em multiplicidade sem unidade, em mudança sem permanência, em vontade sem verdade. O retorno ao Uno é, por isso, o retorno ao fundamento do pensar e do existir. A negação de Deus não liberta o homem — apenas o desorienta.

Capítulo III — A Crítica da Autonomia Moral Ateísta
Artigo 1 — A ética sem Deus: de Kant à dissolução da obrigação moral

A negação de Deus não compromete apenas a ordem do ser e da inteligibilidade, mas também a estrutura da moral. Sciacca identifica, com agudeza, que a modernidade filosófica, ao proclamar a autonomia da razão prática, separa o homem da fonte transcendente do bem. O ponto emblemático dessa ruptura é Kant, cuja ética pretende fundar a obrigação moral apenas na razão, sem qualquer referência teológica. O imperativo categórico seria suficiente para assegurar a normatividade e a universalidade da ação reta. No entanto, essa autonomia, que parece exaltar a dignidade do sujeito, revela-se, ao fim, incapaz de justificar a obrigação moral de modo absoluto.

Com efeito, a ética kantiana exige que o sujeito se submeta à lei que ele mesmo se dá. Mas o problema emerge exatamente aí: por que o sujeito deve obedecer essa lei, se ela não deriva de nenhum bem objetivo, mas apenas da forma da racionalidade? A moral torna-se formal, desvinculada da substância do bem. A lei moral, reduzida à estrutura da razão, perde sua força vinculante ontológica. Sem uma referência ao bem como realidade superior e fundante — e, por conseguinte, sem Deus —, a obrigação moral transforma-se em hábito, convenção ou projeção subjetiva.

Sciacca argumenta que a moral desligada de Deus acaba por dissolver-se no relativismo. Sem um Sumo Bem, não há critério último para distinguir entre o justo e o injusto. A razão humana, deixada a si mesma, ora absolutiza o dever abstrato (como em Kant), ora dissolve-se na vontade de poder (como em Nietzsche), ora capitula diante das forças sociais (como em Durkheim ou nos pragmatismos contemporâneos). A consequência é clara: o sujeito moral, antes livre e responsável, torna-se produto de forças anônimas ou de decisões arbitrárias. O dever deixa de ser expressão de uma ordem objetiva e transcendente, e converte-se em convenção variável e frágil.

A tradição escolástica jamais concebeu a moral como imposição exterior ou como restrição da liberdade. Ao contrário, Tomás de Aquino ensina que a liberdade consiste precisamente em agir segundo a razão iluminada pela verdade do bem. E o bem, por sua vez, é a participação na bondade divina, que é Deus mesmo. A lei natural é uma expressão da razão divina impressa na criatura racional, que se ordena, por sua natureza, ao seu fim último. A obrigação moral, nesse contexto, não é uma limitação imposta ao homem, mas o modo pelo qual ele realiza sua própria natureza enquanto ser racional e livre.

Sciacca retoma essa linha e mostra que a ética só pode ser plena quando radicada numa ontologia do bem. E o bem, por definição, exige um fundamento absoluto: o Sumo Bem, Deus. Sem Ele, o dever moral perde sua ancoragem e se converte em formalismo vazio ou em manipulação ideológica. O ateísmo, portanto, não liberta o homem da opressão de regras externas, mas o priva da razão última para agir moralmente. A autonomia sem Deus é uma miragem: não há verdadeira liberdade sem verdade, e não há verdade moral sem o Bem que transcende o mundo.

Artigo 2 — Liberdade e verdade: a estrutura teônoma do ato moral na tradição agostiniana

A crítica de Sciacca à moral ateísta aprofunda-se ao evidenciar que a separação entre liberdade e verdade, fundamento da moral laica moderna, é uma distorção estrutural da própria natureza do ato moral. Para Sciacca — em linha com Agostinho — a liberdade humana não é um dado bruto, nem uma potência indiferente a qualquer conteúdo. Ela é essencialmente ordenada, por sua própria estrutura, à verdade do bem. Liberdade não é arbitrariedade. A autonomia que exclui Deus não é autonomia autêntica, mas ruptura da ordem natural que liga o querer à realidade do ser.

Agostinho, em sua meditação sobre a vontade humana, mostra que o pecado não é o uso da liberdade, mas seu abuso — libido dominandi em lugar da caritas. A liberdade nasce para o bem, porque está fundada no ser, e o ser, por sua vez, é ordenado ao Bem supremo. Assim, um ato só é livre quando é verdadeiro, e só é verdadeiro quando está conforme à ordem do ser. A vontade que se afasta da verdade não se eleva, mas se corrompe; torna-se escrava da paixão, da mentira e do nada.

Essa estrutura teônoma da liberdade é incompreensível para o ateísmo moderno. Privado de uma referência ao bem em si, o querer humano torna-se absoluto, e por isso mesmo cego. O sujeito moderno, ao rejeitar Deus, pretende ser origem de seus próprios valores. Mas essa tentativa de autocriação moral destrói o próprio ato livre. O querer sem verdade é capricho. E o capricho não funda responsabilidade: dissolve-a.

Tomás de Aquino reforça essa tese ao afirmar que o livre-arbítrio é um juízo da razão prática ordenado à verdade do fim. O fim último do homem é a beatitude, e a beatitude não pode ser senão Deus — bonum universale. Logo, todo ato moral se mede por sua conformidade com esse fim. A liberdade não é origem do bem, mas sua serva. E é exatamente por ser serva do bem que ela é verdadeiramente livre. Quando Sciacca retoma esse ponto, ele denuncia que a liberdade moderna, entendida como indiferença diante do bem e do mal, nada mais é do que uma alienação metafísica: o homem já não se conhece como criatura, e por isso já não compreende a si mesmo.

A ética agostiniana é, por conseguinte, uma metafísica da liberdade. A vontade humana não é um centro fechado, mas uma abertura ao Absoluto. Ao agir moralmente, o homem responde a um chamado do ser — é atraído pelo bem enquanto bem, e não por um construto subjetivo. O ateísmo, ao negar essa dimensão, quebra a relação entre a liberdade e a realidade. E onde não há realidade moral, resta apenas poder, manipulação ou dissolução da norma.

Sciacca conclui que o ato moral, para ser livre, deve ser verdadeiro. E só há verdade moral quando o bem é mais do que uma projeção: quando é reflexo e participação do Sumo Bem. A liberdade teônoma não é submissão heterônoma, mas fidelidade ao ser do homem. E o ser do homem é caminho para Deus. Toda moral ateia, por negar esse fundamento, termina por negar a liberdade que julga exaltar.

Artigo 3 — O problema do mal e a negação do Bem supremo: crítica aos dilemas ateístas

A presença do mal no mundo é, historicamente, uma das razões mais mobilizadas pelos ateus para negar a existência de Deus. Sciacca, longe de ignorar o peso desse argumento, enfrenta-o frontalmente, demonstrando que ele só tem sentido dentro de uma estrutura metafísica na qual Deus já esteja pressuposto. O ateísmo que denuncia o mal absoluto, ao fazê-lo, invoca — mesmo sem querer — a existência de um bem absoluto, pois a própria noção de mal como privação ou desordem exige uma ordem anterior e objetiva.

O argumento ateísta segue, em geral, esta linha: se Deus existe e é onipotente e bom, o mal não deveria existir; como o mal existe, Deus não pode ser simultaneamente onipotente e bom — ou simplesmente não pode existir. No entanto, essa estrutura argumentativa toma por base um juízo moral objetivo sobre o que é o bem e o mal. Sciacca mostra que esse juízo é inconsistente com a metafísica ateísta: se não há Deus, tampouco há bem objetivo, tampouco há finalidade no ser, tampouco há justiça como exigência real. O mal, nesse caso, seria apenas um fato bruto, sem significado, e qualquer julgamento sobre sua maldade perderia validade racional. O ateísmo, portanto, só pode denunciar o mal se trair sua própria lógica.

A tradição agostiniana, retomada por Sciacca, vê o mal não como um ser em si, mas como privatio boni — a ausência ou corrupção de um bem devido. Essa definição destrói a tentação dualista de ver o mundo dividido entre dois princípios opostos, e conserva a centralidade ontológica do bem. O mal, como parasita do bem, não se explica sem ele; por isso, sua existência não é prova contra Deus, mas sinal da liberdade da criatura, que pode afastar-se da ordem do bem. O pecado é a escolha de um bem menor contra um bem maior — não a criação de um mal substancial. Deus, ao permitir esse afastamento, conserva a liberdade da criatura e permite, por vias misteriosas, que do mal possa surgir um bem maior.

Sciacca retoma ainda a resposta tomista à objeção do mal: a criação de um universo no qual a liberdade seja real implica necessariamente a possibilidade do mal moral. A perfeição do conjunto exige a permissão de imperfeições parciais. Mais ainda: a presença do mal natural e moral é o que permite a manifestação de bens superiores — como a justiça, a misericórdia, o perdão, a coragem, o martírio. A Providência divina não elimina o mal diretamente, mas o integra num desígnio maior que escapa à compreensão total do homem.

O ateísmo, ao recusar esse horizonte, cai em contradições insolúveis: ou nega o mal como tal, transformando-o em mera função evolutiva ou estrutura social, e, com isso, torna impossível qualquer indignação autêntica; ou mantém a denúncia moral do mal, mas sem conseguir justificar seu fundamento objetivo, pois rejeita o bem em si. Sciacca mostra que ambas as posições são autodestrutivas.

O mal, para ser reconhecido como mal, exige o bem como medida. E o bem, para ser absoluto, exige Deus. Assim, paradoxalmente, é o problema do mal que confirma a estrutura teônoma da moralidade. Negar o Bem supremo em nome do mal é como apagar a luz para poder enxergar melhor a sombra. A crítica ateísta ao mal, quando levada até suas últimas consequências, prova a tese que desejava refutar: só Deus justifica o horror diante do mal. Sem Ele, resta apenas o absurdo ou o cinismo.

Artigo 4 — O fim último do homem como chave do juízo ético, segundo Tomás de Aquino

A crítica de Sciacca à moral sem Deus encontra seu ponto culminante na análise do fim último da existência humana. Para ele — seguindo rigorosamente a doutrina tomista — não se pode conceber ética autêntica sem uma teleologia real do homem. Toda moral, ainda que inconscientemente, julga os atos humanos à luz de um fim: não há escolha moral que não pressuponha algum bem visado. Ora, se esse fim é contingente, relativo ou autoimposto, então o juízo moral torna-se relativo, instável e incoerente. Apenas a existência de um fim último absoluto — identificado com o Bem supremo — permite fundar racionalmente a moral.

Tomás de Aquino ensina que omne agens agit propter finem: todo agente age por causa de um fim. E no caso do homem, dotado de inteligência e vontade, o fim não é imposto de fora, mas está inscrito em sua própria natureza: ele busca a felicidade, e esta só se realiza plenamente na união com o Sumo Bem, que é Deus. Toda ação moral se qualifica na medida em que aproxima ou afasta o sujeito desse fim. A virtude é o hábito que ordena as potências humanas ao fim devido; o pecado, a desordem que as afasta. Desse modo, o bem moral é aquilo que corresponde à essência racional do homem orientada à sua perfeição.

Sciacca mostra que, sem essa estrutura finalista, toda ética se reduz ao contratualismo, ao utilitarismo ou ao sentimentalismo — três formas de desvio que prescindem do fim último real. O contratualismo, ao fundar a moral em convenções sociais, relativiza o bem à vontade coletiva. O utilitarismo, ao medi-lo pelo prazer ou pelo bem-estar, sacrifica a dignidade do ato à sua eficácia. O sentimentalismo, por sua vez, dissolve o dever em estados afetivos voláteis. Em todos esses casos, o juízo ético carece de fundamento objetivo: não há critério absoluto que permita dizer que um ato é bom em si, independentemente de seus efeitos ou de sua aceitação social.

É precisamente a doutrina do fim último que impede esse colapso. Pois ela vincula a liberdade humana à realização de sua própria essência. O homem não é livre para inventar seu fim, mas para escolher os meios que o conduzam até ele. A liberdade, portanto, é subordinada ao bem; e o bem é uma participação na plenitude divina. É nesse ponto que se revela a fragilidade radical do ateísmo ético: se Deus não existe, não há fim último absoluto. E sem fim último, não há ato objetivamente bom ou mau — apenas preferências, impulsos ou construções arbitrárias.

Ao integrar o fim último à estrutura da moral, Sciacca reafirma a inseparabilidade entre metafísica e ética. A moral não é um suplemento externo à realidade, mas o modo como a criatura racional responde à ordem do ser. A lei moral é o reflexo da ordem ontológica, e esta só é possível porque há um Criador que é ao mesmo tempo origem e fim. Assim, a moral não se reduz a regras, mas é caminho para a realização do ser humano em sua vocação última: a comunhão com Deus. A negação desse fim não apenas desorienta a conduta; destrói a possibilidade mesma de um juízo ético.

Em suma, Sciacca demonstra que o ateísmo moral é, no fundo, um humanismo sem homem. Pois nega ao ser humano aquilo que o constitui como tal: sua abertura ao Absoluto, sua ordenação ao Bem, sua vocação à beatitude. A ética, sem Deus, é uma linguagem vazia. Com Deus, torna-se resposta viva à verdade do ser.

Capítulo IV — Conhecimento, Inteligibilidade e Criação
Artigo 1 — Conhecer é participar: a inteligibilidade como reflexo do Logos criador

A teoria do conhecimento, para Sciacca, não pode ser concebida como simples recepção passiva de dados sensíveis nem como construção autônoma de representações subjetivas. O ato de conhecer é, em sua estrutura mais profunda, uma participação no ser, uma comunhão do intelecto com a realidade inteligível que o precede. Sciacca se afasta tanto do empirismo quanto do idealismo moderno, pois ambos — ainda que em direções distintas — se fecham ao horizonte ontológico do conhecimento. O empirismo nega o inteligível ao reduzi-lo ao sensível; o idealismo o dissolve no sujeito. Em ambos os casos, rompe-se o elo fundamental entre ser e conhecer.

A tradição clássica e escolástica, ao contrário, ensina que o ser é per se inteligível, e que o intelecto está ordenado naturalmente ao ser. Tomás de Aquino afirma que intellectus est in potentia respectu entis. Isso significa que a mente humana está constituída de tal modo que só se realiza plenamente quando conhece o que é. A verdade, nesse contexto, não é uma conformidade entre ideias, mas entre o intelecto e a realidade: adaequatio intellectus et rei. Mas essa realidade só é inteligível porque está estruturada por um princípio ordenante: o Logos. Sem o Logos, o ser é um caos; sem o ser, o intelecto é vazio.

É neste ponto que Sciacca invoca a doutrina da criação. O mundo, para ser inteligível, deve ter sido pensado antes de existir. E pensado por um intelecto supremo, que seja causa e modelo de todo ser. Essa é a tese fundamental da teologia cristã da criação: Deus cria todas as coisas segundo a razão de seu Verbo, o Logos eterno. Por isso, conhecer é participar desse Logos — não no sentido panteísta, mas enquanto ato de acolher, por via analógica, a estrutura racional que Deus imprimiu ao mundo. Todo conhecimento verdadeiro é, portanto, uma forma de comunhão.

Essa concepção remete diretamente a Agostinho, para quem as verdades eternas estão em Deus e são acessíveis ao homem por iluminação. Quando o homem conhece, ele não gera a verdade, mas a reconhece como anterior e superior. O intelecto, para conhecer, deve tornar-se semelhante ao objeto conhecido — e esse objeto, em última instância, é a própria Verdade subsistente. Negar isso, como faz o ateísmo epistemológico, é transformar o conhecimento num processo fechado, sem abertura ao ser. É confinar o espírito na imanência do dado ou na circularidade do discurso.

Sciacca aponta, então, que o colapso da modernidade epistemológica — marcado pelo relativismo, pelo construtivismo e pelo ceticismo — é resultado direto da recusa da criação. Quando o mundo deixa de ser criação, deixa também de ser sinal, deixa de remeter a um fundamento, perde sua inteligibilidade própria. O mundo torna-se opaco, a linguagem se fragmenta, o pensamento torna-se incapaz de fundar-se. Em oposição a esse caos, a doutrina da criação garante que o ser é inteligível porque é dado; e é dado por um Deus que é Verdade.

Portanto, para Sciacca, conhecer não é dominar, não é inventar, não é construir: é participar. É sair de si e entrar na ordem do real. E essa ordem é possível porque há uma Mente que a sustenta. A filosofia que ignora essa verdade está condenada a girar em torno de si mesma. A única epistemologia consistente é aquela fundada na ontologia do Logos. E o Logos é, por sua natureza, o Deus criador. Sem Ele, o pensamento é surdo e o ser, mudo. Com Ele, o conhecer é, já desde o início, uma forma de comunhão.

Artigo 2 — O erro gnostizante do ateísmo: conhecimento como poder em vez de contemplação

A ruptura entre conhecimento e ser — operada pelas filosofias ateístas da modernidade — não apenas obscurece a inteligibilidade do mundo, mas transforma a própria finalidade do ato de conhecer. Sciacca identifica aqui um desvio de fundo: a passagem de uma epistemologia fundada na contemplação para uma gnose fundada no poder. Onde o conhecimento era, na tradição clássica, um exercício de conformidade ao real, torna-se agora uma técnica de dominação do objeto. A verdade, antes buscada como bem em si, converte-se em instrumento para manipular a realidade.

Esse deslocamento tem raízes antigas, mas assume sua forma mais aguda na modernidade ateia. Bacon já anuncia que scientia est potentia: o saber deve servir à conquista da natureza. Descartes declara que o homem deve tornar-se comme maître et possesseur de la nature. A ciência deixa de ser caminho para a verdade e passa a ser meio para a eficácia. O critério do verdadeiro é substituído pelo útil. A inteligência deixa de contemplar a ordem do ser para impô-la — ou negá-la. No limite, o mundo deixa de ter estrutura e finalidade próprias: é apenas matéria-prima a ser moldada pela vontade.

Sciacca denuncia esse erro como gnosticismo secularizado. Pois a gnose antiga já continha esse impulso: a salvação pela posse de um saber oculto que libertaria o homem do mundo e de seu Criador. O ateísmo moderno, ao recusar Deus e a criação, reedita esse esquema em chave imanente. O conhecimento torna-se libertação — não pela verdade, mas pela negação da ordem recebida. A inteligência já não busca participar da realidade, mas reconstruí-la de acordo com seus próprios projetos. O espírito já não se curva diante do Logos, mas fabrica seu simulacro técnico, ideológico ou revolucionário.

Contra essa perversão, Sciacca reafirma a concepção patrística e escolástica de conhecimento como conformitas rei et intellectus. Agostinho via na contemplação da verdade uma antecipação da beatitude; Tomás de Aquino ensinava que a verdade era o fim próprio do intelecto e que o conhecimento tinha uma dimensão essencialmente sapiencial. A verdade não é posse, mas acolhida; não é invenção, mas descoberta; não é violência, mas revelação. Ao abandonar essa estrutura, o ateísmo não apenas perde a verdade — ele perde o próprio sentido do conhecer.

Esse erro gnostizante tem consequências profundas na cultura contemporânea. A ciência, privada de fundamento ontológico, converte-se em técnica autônoma, indiferente à verdade e ao bem. A filosofia, sem acesso ao ser, dissolve-se em crítica interminável ou em nominalismo cético. O pensamento, que deveria unir o homem ao real, afasta-o cada vez mais de sua própria natureza. O espírito humano torna-se um Prometeu trágico: dominador do mundo, mas ignorante de si mesmo.

Sciacca insiste: o conhecimento verdadeiro exige humildade ontológica. É resposta, não imposição. É acolhimento do ser, não negação de sua ordem. A inteligência humana só pode conhecer porque o real é dado, e é dado porque foi criado. O ateísmo, ao romper esse vínculo, aniquila a metafísica e perverte a epistemologia. Conhecer não é possuir o mundo — é reconhecer nele a marca de um Logos que o torna inteligível. E esse Logos não é uma ideia: é um Deus vivo, que fala silenciosamente em tudo o que é.

Artigo 3 — Criação ex nihilo e a racionalidade do real: confronto com o panteísmo e o dualismo

A tese da criação ex nihilo, sustentada por Sciacca e fundamentada na tradição cristã, não é apenas um dogma teológico, mas o núcleo racional que torna possível uma metafísica coerente do mundo. Negá-la — como fazem o panteísmo e o dualismo — implica dissolver os fundamentos da inteligibilidade do real. Pois se o mundo não foi criado livremente por um Deus transcendente, então ele é ou necessário como Deus, ou produto de um conflito eterno entre princípios contrários. Em ambos os casos, o ser perde sua contingência e, com ela, a possibilidade de explicação.

No panteísmo, tudo é Deus, e Deus é tudo: não há distinção ontológica entre Criador e criatura. A consequência disso, como já mostrava Tomás de Aquino, é a anulação da causalidade real. Se o mundo é Deus, então o ser não foi dado — ele apenas é, sem causa, sem intenção, sem liberdade. O panteísmo dissolve a criação e, com ela, elimina o próprio conceito de causa eficiente. Sciacca vê nesse erro uma forma refinada de imanentismo gnóstico: o divino é absorvido pelo cosmos e deixa de ser princípio. O mundo não é mais inteligível por participação, mas necessário por identidade.

O dualismo, por outro lado, propõe a existência de dois princípios eternos em oposição — bem e mal, espírito e matéria, luz e trevas. Essa visão, herdada do maniqueísmo e de certas correntes gnósticas, resulta numa metafísica conflitiva e insolúvel. Se o ser se origina de uma luta sem síntese, então a realidade é irracional em sua raiz. Não há unidade, não há verdade plena, não há fim último. Sciacca rejeita essa concepção como ontologicamente insustentável e moralmente devastadora: ela recusa a ordem, e com isso, torna impossível qualquer ética objetiva.

A criação ex nihilo — Deus criando livremente todas as coisas do nada — preserva ao mesmo tempo a transcendência divina e a realidade da criatura. Deus é plenamente separado do mundo, mas livremente presente nele como causa, sustento e fim. O ser dos entes não é necessário nem fruto do acaso: é dom. E o dom, por sua natureza, é inteligível. A racionalidade do real, portanto, só se sustenta sobre o fundamento da criação: pois só o que foi pensado e querido pode ter forma, ordem, finalidade.

Essa tese não é apenas teológica — é racionalmente exigida. O ente finito, como já demonstrado, não é necessário. Se ele existe, é porque outro o fez ser. Mas esse outro não pode ser um ente entre entes: deve ser o Ser mesmo, cuja essência é existir. E esse Ser, ao criar, não o faz por necessidade, mas por liberdade. Essa liberdade divina é a fonte da ordem do mundo. Pois o que é criado com sabedoria reflete a inteligência do Criador. A estrutura do real é, assim, inteligível porque foi feita com medida, número e peso — mensura, numerus, pondus — como diria Agostinho.

Sciacca, ao reafirmar a criação ex nihilo, resgata a possibilidade mesma da filosofia. Pois sem um princípio transcendente, livre e inteligente, o mundo torna-se um dado bruto, opaco, incapaz de justificar a si mesmo. Com a criação, ao contrário, o ser se ilumina, a razão se orienta e o conhecimento se fundamenta. Negar a criação é negar o sentido; afirmar a criação é abrir-se à verdade. O ateísmo, ao rejeitar essa estrutura, condena-se a uma razão sem raiz. E uma razão sem raiz não pode sustentar o mundo — nem a si mesma.

Artigo 4 — De Anselmo a Sciacca: razão, fé e o dinamismo ascendente da inteligência

No encerramento deste capítulo, Sciacca propõe uma reabilitação integral da razão humana em sua vocação mais alta: a busca de Deus como princípio e fim de todo conhecimento. Para isso, ele se insere deliberadamente na tradição inaugurada por Santo Anselmo de Cantuária, cuja célebre fórmula fides quaerens intellectum exprime o dinamismo próprio da inteligência que, iluminada pela fé, não se contenta com a crença, mas deseja compreender — e compreender tudo. Sciacca, porém, insiste: essa fé não suplanta a razão, tampouco a substitui, mas a eleva e a impele à sua realização mais profunda.

O modelo anselmiano não é fideísta: é estruturalmente racional, porque parte da certeza de que o ser é ordenado, que o espírito participa dessa ordem e que ambos — ser e espírito — provêm de uma fonte comum que é o Logos. O célebre argumento ontológico de Anselmo, ainda que questionado por séculos, carrega uma intuição que Sciacca resgata: a ideia de Deus é tão intrinsecamente ligada à estrutura do pensamento que sua negação exige mais esforço de abstração do que sua afirmação. O intelecto, ao conceber algo como aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado, já se encontra, ainda que de modo obscuro, na presença da Verdade absoluta.

Essa tendência da razão a transcender o imediato, a não se conformar com o parcial ou o mutável, mostra que a inteligência humana não é apenas reativa ao sensível: ela é aberta ao eterno. Sciacca desenvolve essa abertura como um desejo ontológico do Absoluto, presente em toda operação racional autêntica. Mesmo quando o homem pensa o contingente, ele o pensa sob a categoria de ser — e, portanto, já de modo mediado pela presença implícita do Ser necessário. Nesse sentido, a razão não é neutra: ela é teleologicamente orientada. O conhecimento caminha, por sua própria natureza, para o fundamento do conhecido.

A tradição tomista confirma esse movimento: o intelecto humano, sendo potência para o ser, está ontologicamente ordenado ao conhecimento do primeiro princípio. Tomás afirma que, embora a visão plena de Deus exceda a razão natural, a própria razão, com seus recursos, pode demonstrar a existência de Deus como causa primeira, fim último e ato puro. Sciacca não nega o papel da fé revelada — mas insiste que, antes mesmo da fé, a razão clama por Deus. O ateísmo, nesse contexto, é a interrupção forçada de um dinamismo que pertence à própria estrutura do espírito.

Contra a noção moderna de razão fechada em si, autônoma, crítica e negativa, Sciacca propõe uma razão aberta, ascendente e afirmativa. Uma razão que se reconhece limitada, mas não por isso renuncia à verdade; ao contrário, exatamente por saber-se finita, ela busca o Infinito. Essa busca é a alma da filosofia: um eros intelectual que visa a posse contemplativa do Ser. O intelectualismo moderno, ao rejeitar esse dinamismo, não só mutila o conhecimento — mutila o próprio homem.

Por fim, Sciacca conclui que razão e fé não são forças opostas, mas aliadas no percurso do espírito. A fé, longe de impedir o pensar, sustenta e estimula a inteligência. A razão, por sua vez, quando fiel à realidade, conduz inevitavelmente à fé. O conhecimento, assim compreendido, é mais do que um ato: é um êxodo. E esse êxodo não tem outro termo senão Deus, origem e destino de toda luz. Conhecer, portanto, é subir — e subir é reencontrar, no cume, Aquele que nos pensou.

Capítulo V — A Abertura do Homem a Deus: Estrutura e Destino
Artigo 1 — O homo viator e a metafísica do desejo infinito: paralelos com Pascal e Agostinho

No limiar da reflexão filosófica de Sciacca sobre a existência de Deus, emerge com vigor a consideração do homem enquanto ser de trânsito — homo viator — cuja própria estrutura interior denuncia uma incompletude essencial que o remete a um fim transcendente. Esse dinamismo interior, que se manifesta como desejo incessante de plenitude, é o sinal mais profundo de que o homem não se basta, e que seu ser é marcado por uma abertura constitutiva ao Infinito. Sciacca identifica nessa orientação espiritual não apenas um traço existencial, mas uma estrutura metafísica que atravessa todo o ser humano.

Pascal, com sua clareza trágica, exprimiu essa inquietude como vazio infinito que só pode ser preenchido por Deus. O coração humano, dizia ele, tem um abismo que nada finito pode saciar. Essa constatação, longe de ser sentimentalismo, é um diagnóstico metafísico: o homem deseja mais do que o mundo pode oferecer. A sede de verdade, de justiça, de bem absoluto, que nunca é plenamente saciada na experiência concreta, revela que esse desejo ultrapassa qualquer objeto finito, e, portanto, exige um objeto infinito — Deus.

Essa linha se articula com Agostinho, que compreendeu o desejo humano como movimento de retorno: o coração inquieto que só repousa em Deus (inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te). Agostinho não vê esse desejo como algo acidental, mas como expressão da essência do homem criado ad imaginem Dei. O homem não é apenas imagem de Deus pela razão ou pela vontade, mas pelo movimento de seu ser em direção a Ele. A nostalgia do Absoluto está inscrita no mais íntimo do espírito.

Sciacca acolhe essa tradição e a reinterpreta filosoficamente: a abertura ao Infinito é o selo do espírito racional. Todo desejo verdadeiro — de beleza, de amor, de verdade — aponta para além de seu objeto imediato. Esse “para além” não é vazio ou negação, mas afirmação radical de que o homem foi feito para algo maior do que si. O ateísmo, ao tentar sufocar esse desejo, não o elimina: apenas o deforma, substituindo o Infinito por ídolos transitórios — progresso, prazer, poder, ciência. Mas esses ídolos, por sua natureza limitada, não podem cumprir o anseio que os homens depositam neles.

O homem moderno, ao negar o Absoluto, termina por absolutizar o relativo. E nisso reside sua tragédia: busca infinitamente aquilo que não pode dar-se infinitamente. Sciacca mostra que esse processo não é apenas histórico ou cultural, mas ontológico. A estrutura do desejo denuncia a falência de qualquer sistema fechado. A imanência pura não explica o desejo de transcendência; a finitude não explica a nostalgia do eterno.

Assim, a abertura do homem a Deus não é uma superstição nem uma convenção religiosa, mas uma evidência existencial e metafísica. Todo homem, ao desejar profundamente, já confessa Deus — mesmo sem sabê-lo. Negar esse desejo é negar a si mesmo. A filosofia, quando fiel ao real, não pode senão reconhecer esse abismo que nos habita. E esse abismo, diz Sciacca com Agostinho e Pascal, tem a forma de Deus.

Artigo 2 — O espírito como sede de transcendência: crítica à redução materialista da pessoa

Ao desenvolver a estrutura do homem como homo viator, Sciacca vai além da descrição fenomenológica do desejo e confronta a tese mais corrosiva do pensamento ateu contemporâneo: a negação da espiritualidade da pessoa humana. O materialismo moderno, ao reduzir o homem a soma de funções biológicas, impulsos neuroquímicos e condicionamentos históricos, anula a dignidade metafísica da pessoa e destrói a possibilidade mesma de abertura ao transcendente. Contra essa visão mutiladora, Sciacca reafirma, em diálogo com a tradição patrística e escolástica, que o espírito é por essência abertura, interioridade e transcendência.

Essa crítica não é nova: já Agostinho, no confronto com o maniqueísmo e com o ceticismo acadêmico, afirmava a superioridade da alma sobre o corpo e sua capacidade de se conhecer como sujeito, como substância que permanece além do fluxo sensível. A célebre descoberta da interioridade — intus in intimo meo — marca um ponto de ruptura decisivo: a verdade não é encontrada fora, mas no centro do próprio ser. E essa verdade íntima não é passiva: ela julga, escolhe, ama, contempla. A alma é, assim, reflexo de Deus não apenas porque existe, mas porque é capaz de conhecer o ser, discernir o bem e desejar o eterno.

Tomás de Aquino sistematiza esse dado afirmando que o homem é uma unidade substancial de corpo e alma, mas que a alma racional é a forma do corpo, imaterial, subsistente e incorruptível. Ela não é apenas um princípio vital, mas um sujeito espiritual que sobrevive à morte e está ordenado a um fim sobrenatural. A dignidade do homem está, pois, enraizada na sua condição de imago Dei. O materialismo, ao negar essa realidade, degrada o homem ao status de objeto entre objetos, eliminando a base do juízo moral, da liberdade e da responsabilidade.

Sciacca retoma essa doutrina para mostrar que o espírito não é um epifenômeno, mas a sede da abertura à totalidade do ser. A consciência humana é capaz de captar verdades universais, valores absolutos, proporções que ultrapassam o físico. Nenhuma estrutura material explica a capacidade do homem de conhecer o necessário, de aspirar ao infinito, de decidir contra seus instintos. Essa transcendência interna é o sinal inequívoco de que o homem não é fechado em si, mas aberto a um Outro que o excede infinitamente.

A filosofia ateia tenta abolir essa transcendência apelando a esquemas evolutivos, neurológicos ou sociológicos. Mas quanto mais insiste na redução do homem à matéria, mais se vê forçada a negar os próprios dados da experiência humana: liberdade, consciência, verdade, beleza, amor. Sciacca mostra que, no fundo, o materialismo é uma forma de desesperança metafísica: um esforço de apagar do espírito sua própria luz. E onde o espírito é apagado, resta apenas o funcionamento cego da matéria.

O espírito humano, em sua atividade cognoscitiva e volitiva, revela uma estrutura que não se explica pelo mundo — ele aponta para além do mundo. Ele é, por sua própria natureza, uma janela aberta para o Ser. A pessoa é mais do que um organismo: é um mistério, e seu mistério é ser chamada. O ateísmo, ao recusar esse chamado, não compreende a pessoa; apenas a empobrece. Sciacca reafirma, contra toda antropologia mutilada, que conhecer o homem é conhecer a imagem de Deus. Negá-lo é negar o próprio homem.

Artigo 3 — A esperança teologal e a estrutura do sentido: Sciacca diante do colapso do imanentismo

A última etapa do percurso de Sciacca revela que a abertura do homem a Deus não é apenas uma exigência ontológica ou uma estrutura do conhecimento, mas o fundamento existencial da esperança. O ser humano não deseja apenas conhecer ou agir bem — ele deseja perseverar no ser, vencer a morte, alcançar um fim que redima o tempo, a dor e o limite. A filosofia ateísta, ao excluir o transcendente, elimina esse horizonte último e condena o homem ao colapso do sentido. Sciacca, retomando a tradição cristã, mostra que apenas a esperança teologal sustenta o edifício do sentido total da existência.

O imanentismo moderno — seja de cunho cientificista, historicista ou pragmatista — opera uma redução do real àquilo que pode ser manipulado, previsto ou utilizado. O tempo, nesse regime, não é caminho, mas desgaste; a morte, não é passagem, mas cessação absoluta; e o futuro, mero prolongamento do presente técnico. A história, reduzida à dialética cega de forças materiais, não tem finalidade transcendente. Nesse quadro, a esperança é dissolvida em expectativa estatística ou em projeções ideológicas — mas jamais como virtude teologal, que se ancora no absoluto.

Contra esse vazio, Sciacca afirma que a esperança, como abertura ao futuro transcendente, está enraizada na própria estrutura espiritual do homem. Não se trata de um otimismo psicológico, mas da confiança racional e existencial de que o sentido último da vida não se encerra na morte nem se esgota no mundo. A esperança é, portanto, o reconhecimento de que o fim do homem é superior a todas as mediações históricas, e que nenhuma realização temporal pode saciar a fome de eternidade que define o espírito.

Essa esperança, entretanto, não nasce de si mesma — ela exige um fundamento real. Não é possível desejar com verdade aquilo que não pode existir. A esperança teologal pressupõe que o ser não é absurdo, que a morte não é o fim definitivo, que há um Bem supremo que chama o homem e sustenta seu caminho. Em outras palavras, a esperança é racional porque Deus existe. O colapso do sentido moderno vem, precisamente, da negação desse fundamento: ao rejeitar Deus, o homem contemporâneo não se liberta, mas se entrega à náusea, ao absurdo ou à anestesia moral.

A tradição cristã — em especial com Agostinho e Tomás — sempre vinculou a esperança ao fim último do homem. Para Agostinho, é o desejo mesmo de felicidade que revela que o homem não é feito para este mundo. Para Tomás, a esperança é a virtude pela qual o homem tende, com confiança, ao auxílio divino que o conduz ao seu fim sobrenatural. Sciacca herda essa visão e a traduz filosoficamente: sem um fim absoluto, o tempo se torna prisão; com ele, torna-se caminho. A esperança é o motor interno do espírito que recusa ser encerrado no finito.

O ateísmo, ao destruir a esperança, destrói também a coragem, a perseverança, a paciência — tudo aquilo que vincula o sofrimento à promessa. O homem ateu pode suportar o tempo, mas não pode dar-lhe sentido. Pode lutar, mas não sabe para quê. Sciacca mostra que toda cultura fundada sobre o imanente tende ao niilismo — pois aquilo que começa e termina em si mesmo está condenado ao vazio. Só o transcendente dá consistência ao tempo. Só a eternidade ilumina o instante. Só Deus salva o futuro.

Por isso, a esperança não é um sentimento a ser tolerado — é a estrutura do sentido. E onde ela se perde, perde-se o homem. Sciacca encerra esse ponto com uma constatação implacável: a recusa de Deus é, no fundo, recusa de tudo aquilo que faz do homem mais do que um fenômeno passageiro. A filosofia só é verdadeira quando escuta esse grito de sentido e o acompanha até sua fonte. E essa fonte é o próprio Deus, origem e termo da esperança que sustenta o ser em meio ao tempo.

Artigo 4 — A existência de Deus como exigência da própria existência: síntese conclusiva e apelo à inteligência crente

Ao final de seu percurso, Sciacca formula uma síntese que não é apenas conclusão lógica, mas também apelo vital: a existência de Deus não é uma crença acessória, mas uma exigência estrutural da própria existência humana. Todas as dimensões do homem — seu conhecimento, sua moralidade, sua liberdade, sua esperança — desmoronam se não estiverem ancoradas num fundamento absoluto. O ateísmo não representa apenas a recusa de uma hipótese teológica; é a mutilação do ser. O que se perde com Deus não é apenas um nome, mas o sentido mesmo do que significa existir.

Essa conclusão nasce de um encadeamento rigoroso, que Sciacca sustenta desde a metafísica: o ente finito é contingente; a contingência exige uma causa; a causa última não pode ser contingente, mas necessária, simples, subsistente. Só Deus, como ipsum esse subsistens, explica a existência de tudo o que existe. Mas Sciacca não se detém na prova cosmológica: ele mostra que o próprio dinamismo interno do espírito humano aponta, inexoravelmente, para o Absoluto. A inteligência deseja a verdade plena, a vontade busca o bem supremo, o coração aspira à felicidade eterna. Nada finito basta a esse movimento — e, portanto, tudo no homem clama por Deus.

Essa exigência não é imposta de fora: ela se impõe desde dentro, como coerência do real com o próprio ato de existir. O homem que nega Deus precisa, para sustentar essa negação, romper com sua própria natureza espiritual. O ateu coerente deve negar a verdade, relativizar a moral, abdicar do juízo, dissolver a liberdade, matar a esperança. Mas ao fazê-lo, nega não apenas a Deus — nega a si mesmo. O ateísmo, quando levado até as últimas consequências, revela-se uma autodestruição do espírito. E é contra essa destruição que Sciacca se levanta com vigor filosófico e lucidez metafísica.

A resposta, portanto, não é fideísta, mas racional: o reconhecimento de Deus não é fruto de imposição dogmática, mas de fidelidade à estrutura do ser. O crente não crê apesar da razão, mas com ela — e mais ainda, em seu nome. A fé é o coroamento da inteligência, não sua negação. A filosofia, quando fiel a si mesma, conduz à teologia. O pensamento, quando não trai sua vocação, torna-se prece. Por isso, Sciacca encerra com um chamado: que o homem moderno, em sua confusão, reencontre o caminho da verdade. Que abandone o orgulho de se fechar sobre si e redescubra a luz que ilumina todas as coisas — inclusive a si próprio.

A existência de Deus é, enfim, mais do que uma tese metafísica: é o pressuposto da ordem, da linguagem, da liberdade, da história, da pessoa. Tudo o que é — desde o movimento das estrelas até o tremor da consciência — aponta para Ele. Negá-Lo é rasgar o tecido da realidade. Afirmá-Lo é, antes de tudo, consentir com a própria existência. E esse consentimento, diz Sciacca, é o primeiro ato de uma inteligência que não renunciou a si mesma. A filosofia, portanto, culmina onde começou: no assombro diante do ser — e na confissão silenciosa de que há, por trás de tudo, um Nome que sustenta o real. Esse Nome é Deus.

 

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