A obra "Existencia
de Dios y ateísmo" de Michele Federico Sciacca
é um exame filosófico sistemático da questão da existência de Deus,
contrapondo-a às posições ateias, com base numa epistemologia realista e numa
metafísica essencialista. Sua conclusão se estrutura em torno de três eixos
principais:
1.
A impossibilidade racional do
ateísmo como posição filosófica autossuficiente. Sciacca demonstra que o ateísmo,
ao negar Deus, não apenas falha em explicar a origem do ser e a
inteligibilidade do real, como também se autodestrói epistemologicamente. Toda
negação de Deus pressupõe uma estrutura de sentido, ordem e inteligibilidade
que o próprio ateísmo não é capaz de justificar sem recorrer a uma instância
absoluta.
2.
A necessidade lógica e ontológica de
um fundamento transcendente.
Para Sciacca, a existência de Deus não é uma hipótese empírica nem uma
construção psicológica, mas a exigência racional da própria existência do ser
contingente, do conhecimento verdadeiro e da moralidade objetiva. A ordem, a
finalidade e a inteligibilidade do mundo clamam por um Ser necessário, eterno e
criador.
3.
A abertura do homem à transcendência
como estrutura de sua racionalidade. Sciacca encerra defendendo que a experiência humana,
em sua busca por verdade, bem e sentido último, só se explica de modo pleno
pela referência a Deus. O homem é ontologicamente capax Dei — capaz de Deus —,
não por fé cega, mas por exigência da própria razão quando levada até suas
últimas consequências.
A conclusão da obra, portanto,
reforça que a existência de Deus não é apenas uma possibilidade entre outras,
mas a única resposta racionalmente coerente diante da existência do ser, da
consciência e da moralidade. O ateísmo é, no limite, um colapso da razão.
Índice
Capítulo I — O Ateísmo
Filosófico como Destruição do Fundamento do Ser
Artigo 1 — O niilismo moderno e o eclipse do fundamento em nome da imanência
absoluta
Artigo 2 — O ceticismo como sintoma de autonegação da racionalidade: de Hume
à dialética negativa
Artigo 3 — O ateísmo como metafísica invertida: paralelos com o erro pelagiano
e o naturalismo averroísta
Artigo 4 — O intelecto sem Deus: crítica ontológica à razão isolada segundo
Santo Agostinho e Santo Tomás
Capítulo II — A Ordem
do Ser e a Necessidade do Absoluto
Artigo 1 — A contingência como clamor ontológico: crítica à suficiência do ser
finito
Artigo 2 — Do ente ao Ser: analogia entis e a ascensão da razão até o
necessário
Artigo 3 — A metafísica essencialista de Sciacca e seu diálogo com a teologia
natural escolástica
Artigo 4 — A exigência de Deus como princípio explicativo último em Boécio e
Dionísio Areopagita
Capítulo III — A
Crítica da Autonomia Moral Ateísta
Artigo 1 — A ética sem Deus: de Kant à dissolução da obrigação moral
Artigo 2 — Liberdade e verdade: a estrutura teônoma do ato moral na tradição
agostiniana
Artigo 3 — O problema do mal e a negação do Bem supremo: crítica aos dilemas
ateístas
Artigo 4 — O fim último do homem como chave do juízo ético, segundo Tomás de
Aquino
Capítulo IV —
Conhecimento, Inteligibilidade e Criação
Artigo 1 — Conhecer é participar: a inteligibilidade como reflexo do Logos
criador
Artigo 2 — O erro gnostizante do ateísmo: conhecimento como poder em vez de
contemplação
Artigo 3 — Criação ex nihilo e a racionalidade do real: confronto com o
panteísmo e o dualismo
Artigo 4 — De Anselmo a Sciacca: razão, fé e o dinamismo ascendente da
inteligência
Capítulo V — A
Abertura do Homem a Deus: Estrutura e Destino
Artigo 1 — O homo viator e a metafísica do desejo infinito: paralelos com
Pascal e Agostinho
Artigo 2 — O espírito como sede de transcendência: crítica à redução
materialista da pessoa
Artigo 3 — A esperança teologal e a estrutura do sentido: Sciacca diante do
colapso do imanentismo
Artigo 4 — A existência de Deus como exigência da própria existência: síntese
conclusiva e apelo à inteligência crente
Capítulo I — O Ateísmo
Filosófico como Destruição do Fundamento do Ser
Artigo 1 — O niilismo moderno e o eclipse do fundamento em nome da imanência
absoluta
A negação de Deus no
pensamento moderno não se realiza simplesmente como um erro isolado ou uma
escolha espiritual equivocada; ela representa, conforme demonstra Sciacca, uma
crise profunda no próprio conceito de realidade. A morte de Deus proclamada por
Nietzsche não é apenas o colapso de uma crença, mas o anúncio de que todos os
valores, todas as certezas e todos os fundamentos metafísicos foram
destituídos. O mundo, outrora compreendido como criação e manifestação do Ser,
torna-se agora um palco sem fundo, sem direção e sem origem. O niilismo, nesse
sentido, não é apenas a ausência de sentido, mas a presença ativa de uma
negação: a recusa do ser como tal.
Neste quadro, Sciacca
identifica uma mutação radical da consciência filosófica. A razão, ao rejeitar
o transcendente, abandona sua vocação ontológica e assume um papel meramente
instrumental. A imanência absoluta torna-se a nova divindade filosófica. Tudo
deve ser reduzido ao dado, ao sensível, ao verificável. Mas, paradoxalmente,
essa absolutização da imanência não leva a uma maior clareza ou certeza, e sim
a um colapso da própria inteligibilidade. O pensamento moderno, ao expulsar
Deus, retira o princípio que sustentava a possibilidade mesma de conhecer. O
ser, privado de fundamento, torna-se opaco. E com ele, a razão torna-se cega.
Este niilismo de fundo
ganha força sobretudo a partir da substituição da metafísica pela crítica. O
espírito não busca mais a verdade do ser, mas apenas a análise de seus próprios
limites. Como em Kant, a razão se volta sobre si e se interroga não sobre o que
é, mas sobre o que pode conhecer. A ontologia cede espaço à epistemologia, e
esta, por sua vez, será dilacerada pelo ceticismo moderno, cuja última
expressão filosófica se dá na desconstrução pós-nietzschiana da verdade.
A esse movimento,
Sciacca opõe a metafísica clássica, na qual a imanência só tem sentido dentro
de uma estrutura de transcendência. Para Aristóteles, o ente enquanto ente
exige um princípio imóvel, um ato puro que não é mundo, mas é causa do mundo.
Para Tomás de Aquino, a existência dos entes finitos clama por um ser
necessário que os sustente sem depender deles. Sciacca, ao reler essa tradição,
não apenas a reafirma, mas mostra sua vitalidade diante da destruição moderna:
a fé na razão só é possível porque a razão é fé no Ser. O colapso da fé em Deus
é, portanto, o colapso da própria razão.
Se o niilismo moderno
proclama que nada tem fundamento, Sciacca responde que só há mundo porque há
fundamento. A imanência só é pensável porque há transcendência. O tempo só se
manifesta porque há eternidade. O múltiplo só é inteligível porque há unidade.
Recusar Deus é recusar tudo o que permite ao homem pensar, querer, amar e
conhecer. Assim, o ateísmo não é apenas falso — é autodestrutivo. E é essa
destruição que o niilismo moderno representa.
Artigo 2 — O ceticismo
como sintoma de autonegação da racionalidade: de Hume à dialética negativa
A dissolução moderna
do fundamento, já manifestada no niilismo como negação do Ser, encontra uma de
suas formas mais refinadas no ceticismo filosófico. Não se trata aqui do
ceticismo clássico, moderado e metodológico, mas daquele que, a partir de David
Hume, compromete radicalmente a possibilidade de conhecer o real. Hume não
apenas duvida da causalidade; ele a dissolve como construção psíquica não
verificável. A mente humana, reduzida à sucessão de impressões, não tem acesso
ao ser, mas apenas a seus fenômenos instáveis e descontínuos. Nesse cenário, a
razão não é mais instrumento de acesso à verdade, mas um artifício de
adaptação.
Sciacca observa que
esse ceticismo radical é, no fundo, uma patologia da razão que renunciou à sua
vocação metafísica. A razão que se volta contra si mesma e desconfia de sua
própria luz termina por obscurecer o mundo, e finalmente por declarar sua
incompreensibilidade. Tal renúncia tem origem na recusa da referência a um
Logos transcendente. A racionalidade, ao se encerrar em si mesma sem Deus,
torna-se órfã de critério, e acaba negando não apenas a verdade do mundo, mas
também a de si mesma.
Na tradição patrística
e escolástica, ao contrário, a razão é vista como participação finita na luz do
Verbo eterno. Para Agostinho, é pela iluminação divina que o intelecto humano
pode apreender as verdades eternas. Para Tomás de Aquino, a ratio humana é
ordenada por natureza à contemplação do verdadeiro, pois o intelecto é criado
para o ser, e o ser remete a Deus como causa primeira e fim último. O ceticismo
moderno, ignorando esse enraizamento, cria uma razão autônoma que termina por
corroer a si mesma.
Essa corrosão atinge
seu ápice na dialética negativa da Escola de Frankfurt, sobretudo em Adorno,
onde todo conceito é visto como violência contra o real. O pensamento, longe de
revelar a verdade, seria um instrumento de dominação, e sua única tarefa
legítima seria negar — sem jamais afirmar. Sciacca percebe que, em última
instância, essa postura filosófica não é neutra: ela é uma teologia invertida.
A razão, incapaz de afirmar o bem, torna-se tribunal do ser e acaba por
declarar sua culpabilidade.
Diante disso, a
filosofia que rejeita o ceticismo não o faz por ingenuidade ou dogmatismo, mas
por fidelidade ao próprio impulso racional. A verdade não é uma crença
arbitrária, mas a resposta da inteligência ao ser. O ceticismo radical, ao
negar essa resposta, paralisa o espírito. Por isso, Sciacca insiste: o homem
não pode renunciar ao absoluto sem renunciar a si mesmo. O ateísmo que se
ancora no ceticismo não apenas destrói Deus; destrói também o homem, tornando
impossível toda filosofia digna desse nome.
Artigo 3 — O ateísmo
como metafísica invertida: paralelos com o erro pelagiano e o naturalismo
averroísta
O ateísmo moderno,
longe de ser simples negação religiosa, constitui uma autêntica inversão
metafísica. Sciacca mostra que, ao recusar Deus, o espírito não se liberta: ele
apenas substitui o fundamento transcendente por um absoluto imanente — a
vontade, a matéria, o devir histórico. Esse deslocamento repete, em chave
filosófica, dois desvios clássicos já denunciados pela tradição cristã.
Primeiro, o
pelagianismo. Pelágio afirmava que o homem, por suas próprias forças, podia
alcançar a perfeição moral. Ao negar a necessidade da graça, ele erigia a
autonomia humana em princípio supremo. O ateísmo herda essa pretensão: se Deus
não existe, a liberdade humana torna-se origem e medida de todo valor. A
teologia agostiniana desmonta esse erro mostrando que a criatura, sendo
contingente, não possui em si mesma o poder de sua realização; precisa receber
do Criador tanto o ser quanto o bem. Analogamente, Sciacca demonstra que a
razão que se proclama autossuficiente termina por perder seu objeto, pois não
há inteligência possível sem verdade transcendente que a preceda e sustente.
Segundo, o averroísmo
latino. Averróis, interpretado pelos averroístas parisienses, sustenta a
eternidade do mundo e uma razão universal autônoma, separada das pessoas
singulares. Ao fazê-lo, nega a criação ex nihilo e dissolve a distinção radical
entre Deus e criatura. O ateísmo contemporâneo retoma esse naturalismo: o
cosmos é eterno ou fruto do acaso; não há causa livre, nem finalidade última.
Tomás de Aquino rebateu Averróis mostrando que a eternidade do mundo não
elimina, mas exige um Primeiro Princípio cuja vontade livre confere ao ente sua
participação no ser. Sciacca, em diálogo com essa escolástica, argumenta que,
sem um ato criador, a contingência do real torna-se inexplicável; o ser finito,
privado de razão suficiente, degenera em enigma insolúvel.
Nestes paralelos,
evidencia-se que tanto Pelágio quanto Averróis tentaram preservar a ordem moral
ou intelectual após rebaixar o absoluto divino, mas acabaram por corroê-la. O
pelagianismo gera um moralismo impotente, pois a vontade humana, sem a graça, não
sustenta o bem; o averroísmo engendra um racionalismo estéril, pois a abstração
da “intelectio una” não responde por que há seres concretos que conhecem. Do
mesmo modo, o ateísmo moderno pretende fundar ética e ciência num horizonte
puramente imanente, mas fracassa: em vez de explicar a liberdade, reduz-a a
epifenômeno; em vez de garantir a verdade, dissolve-a em constructo histórico.
Sciacca conclui que a
metafísica invertida é autocontraditória. Para pensar o ser, a verdade e o
valor, o intelecto requisita justamente aquilo que nega: um princípio
transcendente de existência, inteligibilidade e bondade. Ao recusar esse
princípio, o ateísmo reconstrói, sem o saber, o drama de Pelágio e Averróis:
proclama a grandeza humana ou a força da razão, mas elimina o solo que as torna
possíveis.
Artigo 4 — O intelecto
sem Deus: crítica ontológica à razão isolada segundo Santo Agostinho e Santo
Tomás
O desfecho do primeiro
capítulo da crítica de Sciacca ao ateísmo encontra-se na denúncia da mutilação
ontológica do intelecto humano quando este se pretende absoluto em si,
desligado de qualquer referencial divino. A razão, nessa concepção ateísta, é
tomada como instância última e autônoma de juízo, norma de si e do real, fonte
de todo critério — mas ao se exaltar dessa maneira, ela se arruína.
Santo Agostinho já
advertia que a luz da razão não provém da alma, mas de uma fonte superior: Veritas
lucet in mente tua, sed non est tua. Essa luz interior que torna possível
conhecer não é criada pelo homem, nem é contingente como ele. Agostinho via na
alma humana uma espécie de “memória de Deus”, uma abertura ontológica que só se
explica pela presença constante da Verdade eterna, que é Deus mesmo. Quando o
homem se separa d’Ele, não perde apenas a fé, mas perde também o próprio
critério de verdade. O ateísmo, ao negar Deus, elimina aquilo mesmo que
possibilita o ato de conhecer.
Tomás de Aquino, por
sua vez, articula esse problema sob o conceito de participatio entis. O
intelecto humano é potência ordenada ao ser, e o ser é participativo: o que
existe não é o Ser em si, mas algo que tem ser, por participação. Ora,
só é possível pensar e conhecer porque há uma identidade entre o ser e o
inteligível — e essa identidade só é garantida porque o Ser é em si mesmo intelligere.
Deus, como ato puro e ato de intelecção perfeitíssimo, é o fundamento da
possibilidade do conhecimento. Separar a razão humana desse fundamento é convertê-la
numa função cega, desligada daquilo que lhe dá consistência: o ser real.
O ateísmo moderno,
ignorando ou rejeitando essa estrutura participativa da inteligência, impõe à
razão a tarefa de justificar-se por si mesma. Isso é, no fundo, impossível. Quando
se abandona Deus como fonte do ser e do conhecer, não se obtém uma razão
libertada, mas uma razão enfraquecida, porque sem critério transcendente. O
resultado é a racionalidade autodevoradora, que ora se destrói no ceticismo,
ora se absolutiza em ideologias de poder. Em ambos os casos, o intelecto perde
sua finalidade própria: a contemplação da verdade.
Sciacca vê na tradição
agostiniana-tomista não apenas um legado metafísico a ser preservado, mas uma
chave crítica contra a razão moderna desfundamentada. A inteligência que se
pretende absoluta corta as raízes do próprio saber. O ateísmo, ao negar o
fundamento transcendente do ser, arranca a própria alma da inteligência.
Privado de Deus, o intelecto humano torna-se órfão do real. A verdadeira razão,
portanto, não é aquela que se isola do transcendente, mas aquela que se abre ao
Ser como sua fonte, fim e luz. Essa é a razão plena — não autônoma, mas
participante; não criadora da verdade, mas receptiva à verdade eterna.
Capítulo II — A Ordem
do Ser e a Necessidade do Absoluto
Artigo 1 — A contingência como clamor ontológico: crítica à suficiência do
ser finito
A análise de Sciacca
desloca-se agora para o terreno positivo da metafísica, onde o problema da
existência de Deus se impõe não como hipótese religiosa, mas como exigência
racional diante da própria estrutura do ser. O ponto de partida é a experiência
da contingência. Tudo aquilo que existe no mundo — desde uma pedra até o homem
— poderia não existir. O ser finito revela-se, portanto, como dependente,
não-autossuficiente, carecendo de razão suficiente para sua existência em si
mesmo.
Essa constatação, que
pode parecer elementar, é, na verdade, devastadora para qualquer concepção
ateísta do real. Pois o ateísmo, ao negar uma Causa primeira necessária, fica
confinado ao horizonte dos entes contingentes, sem nunca alcançar uma
explicação radical para sua existência. A cadeia causal infinita, postulada por
muitos materialistas, não resolve o problema, apenas o posterga
indefinidamente. Como já advertira Aristóteles, o infinito em ato não se
realiza na ordem das causas eficientes. E como Tomás de Aquino demonstrará na Summa
contra Gentiles, se tudo o que existe é contingente, deve haver ao menos um
ser necessário que dê início e consistência à cadeia de causalidade, sem o qual
nada existiria.
Sciacca relê esse
argumento a partir de sua crítica ao racionalismo imanentista. A razão que se
recusa a ultrapassar os fenômenos, que se contenta com o empírico ou o
funcional, acaba por se chocar com a opacidade do real. O ser finito não apenas
exige uma explicação: ele a clama ontologicamente. Seu próprio existir, que não
é por si, aponta para algo que é por si — algo cuja essência seja existir. Este
algo, por definição, não pode ser senão Deus.
O contraste entre a
precariedade dos entes e a ideia de um Ser necessário ilumina a desproporção
que o ateísmo se recusa a ver. No mundo, tudo começa e termina, tudo muda, tudo
depende de algo anterior. Não é possível que o ser surja do nada, nem que o
possível se realize por si. Por isso, Sciacca afirma que a contingência não é
só um dado empírico — é um apelo metafísico, um vestígio da transcendência. Tal
como ensina a patrística, sobretudo na teologia de Dionísio Areopagita, o mundo
é vestigium Dei, marca do Absoluto. O finito, ao ser, remete
silenciosamente ao Infinito.
Assim, a contingência,
longe de justificar um universo sem Deus, é precisamente a prova de que o
universo não se basta. A recusa da metafísica, como quer o ateísmo, não elimina
o problema: apenas o oculta sob o véu de um empirismo que não responde às
perguntas últimas. Sciacca, com a tradição escolástica, reafirma que o ser
finito, para ser, depende do Ser necessário. E a inteligência, para entender,
precisa seguir essa exigência até o fim — mesmo que o fim ultrapasse o mundo e
revele Deus.
Artigo 2 — Do ente ao
Ser: analogia entis e a ascensão da razão até o necessário
O argumento da
contingência, desenvolvido por Sciacca, é o primeiro passo de um movimento mais
amplo que tem como eixo a distinção e a relação entre o ente e o Ser. A
filosofia do ser, longe de ser um jogo lógico, é a resposta da inteligência à
estrutura profunda da realidade. O ente, aquilo que é, remete sempre ao ato de
ser — esse — que o sustenta. Mas este ato de ser não é visível,
mensurável ou apreensível diretamente: ele se revela analogicamente em todos os
entes.
A analogia do ser,
conceito central na tradição tomista, permite compreender que há uma ordem no
real que escapa à univocidade da razão moderna. Enquanto o ateísmo moderno
tenta pensar o ser de modo unívoco — como pura extensão, energia ou estrutura
lógica —, a filosofia do ser ensina que o Ser se diz de muitos modos,
conservando uma unidade formal em meio à multiplicidade. Essa analogia funda a
possibilidade do conhecimento e da hierarquia ontológica: os entes não existem
no mesmo grau, mas participam desigualmente do ser. Essa participação, por sua
vez, exige uma fonte absoluta de ser, que seja Ser por essência.
Sciacca mostra que o
intelecto humano, ao ascender do ente ao ser, realiza um movimento metafísico
inevitável. Ao pensar o ente, a razão não pode deter-se naquilo que é composto,
limitado ou corruptível. O ser que o ente manifesta não pode pertencer a ele
por si; logo, é emprestado, participado. Mas o que é participado exige uma
fonte plena. Assim, o movimento da inteligência não é apenas lógico, mas
ontológico: do finito ao infinito, do múltiplo ao uno, do composto ao simples,
do possível ao necessário. Esse é o caminho da razão quando não se mutila.
A patrística,
sobretudo em Gregório de Nissa e Agostinho, via na ascensão do espírito à
verdade uma elevação gradual, onde a criação, em sua beleza e ordem, serve de
degrau para o conhecimento do Criador. O mundo é sacramento do Ser. Tomás de
Aquino sistematiza esse itinerário: o ente remete à sua causa não só eficiente,
mas formal, final e exemplar. Essa causa última, plenamente atual e simples, é
Deus.
O ateísmo, ao recusar
essa ascensão, retira do intelecto seu dinamismo. Fica confinado ao nível dos
entes sem jamais alcançar a fonte. Pretende conhecer sem fundar, pensar sem
admitir o fundamento. Sciacca denuncia aqui o erro moderno de cortar o elo
entre ontologia e teologia. A razão torna-se circular, prisioneira de conceitos
sem raiz. O real é reduzido à aparência ou ao processo. Mas onde não há Ser,
tampouco há verdade. O abandono da analogia leva ao colapso da metafísica, da
linguagem e da inteligibilidade.
Portanto, a ascensão
do ente ao Ser não é invenção da fé, mas exigência da razão. O intelecto, fiel
ao ser, encontra-se diante de um horizonte que o ultrapassa. Esse horizonte é o
Ser absoluto, cuja essência é existir, cuja presença se insinua em toda
criatura e cuja negação dissolve o próprio pensamento. É a partir dessa
analogia que se pode afirmar com Sciacca, como com Tomás: Deus est ipsum
Esse subsistens. E todo ente clama, ainda que em silêncio, por essa
subsistência que o faz ser.
Artigo 3 — A
metafísica essencialista de Sciacca e seu diálogo com a teologia natural
escolástica
Ao insistir na
estrutura ontológica da realidade, Sciacca não propõe uma metafísica genérica,
mas uma metafísica de caráter essencialista: o real é inteligível porque está
estruturado segundo essências que, embora manifestas no ente, apontam para um
arquétipo superior. Esse essencialismo se opõe tanto ao existencialismo ateu
moderno — que nega essências fixas — quanto ao nominalismo, que reduz os
conceitos universais a meras convenções. Para Sciacca, como para os
escolásticos, a essência é real, ainda que não separada como em Platão; ela
está no ente, mas transcende o ente enquanto princípio inteligível e ordenado.
Esse ponto faz de
Sciacca herdeiro da teologia natural tomista, onde a essência e o ato de ser
são distintos em todos os entes criados. Apenas em Deus essa distinção
desaparece: essentia et esse sunt idem. Essa estrutura — essência criada
que recebe o ser por participação — permite fundar uma explicação racional da
realidade sem cair no panteísmo nem no mecanicismo. O ser de cada ente é dom,
não necessidade; sua essência é limite, não plenitude. Por isso mesmo, o mundo
é inteligível e relativo: ele remete àquele em quem essência e ser são um só
ato.
A teologia natural da
escolástica, na qual Sciacca se ancora, não parte da fé, mas da razão, embora
caminhe para o mesmo fim. É um esforço de pensamento que, a partir da
experiência do real, reconhece a insuficiência do finito. Ao contrário do
ateísmo moderno — que vê no mundo um fato bruto sem explicação —, a metafísica
cristã vê no mundo um sinal, um vestígio, um rastro do Logos. Esse rastro é captado
pelo intelecto precisamente por meio da essência, pois toda essência finita é
uma pergunta ontológica que exige resposta absoluta.
A crítica de Sciacca
ao ateísmo passa, então, pela reafirmação da metafísica essencialista como
única alternativa coerente ao caos moderno. Pois se não há essências, só há
fluxos. E se tudo é fluxo, nada é inteligível. O ser torna-se ilusão e a razão,
delírio. Essa é a consequência radical do existencialismo ateu, que nega toda
ordem objetiva e toda estrutura inteligível do real. Sciacca, com os
escolásticos, afirma o contrário: só se pode pensar o real porque o real tem
forma, essência, proporção. E essa ordem formal que o ser manifesta não se
explica sem um princípio eterno que a contenha em si, não como multiplicidade, mas
como simplicidade absoluta — o próprio Deus.
Assim, a metafísica de
Sciacca não é simplesmente uma defesa da existência de Deus, mas a reconstrução
da inteligência do ser. É uma metafísica do fundamento, onde a essência e o ser
reencontram sua unidade no ato criador. A teologia natural não é apêndice da
fé, mas expressão da razão em estado de fidelidade ao real. Nesse ponto,
Sciacca, como Tomás, mostra que crer em Deus não é uma fuga da razão, mas sua
culminação. E negar Deus não é apenas negar o Criador: é renunciar à própria
possibilidade de compreender.
Artigo 4 — A exigência
de Deus como princípio explicativo último em Boécio e Dionísio Areopagita
No ponto culminante
deste segundo capítulo, Sciacca retoma a pergunta decisiva: o que justifica, em
última instância, a existência, a ordem e a inteligibilidade do ser? A
filosofia moderna, ao recusar essa pergunta ou substituí-la por um
funcionalismo empírico, mergulha num nominalismo impotente. Mas na tradição da
filosofia cristã primitiva, especialmente em Boécio e Dionísio Areopagita,
encontramos a noção de que Deus não é uma hipótese metafísica colocada ao final
de um silogismo, mas a condição de possibilidade de todo pensamento e de todo
ser.
Boécio, em sua Consolatio
Philosophiae, já traça o itinerário da alma humana para além das
vicissitudes da fortuna e da multiplicidade aparente dos entes. A busca da
felicidade, que é desejo de um bem absoluto, leva inevitavelmente à ideia de um
Sumo Bem — e esse Bem, por definição, deve ser uno, imutável e necessário. O
bem finito, ao ser desejado, já aponta para algo maior, pois sua posse nunca
sacia plenamente. Assim, Boécio conclui que o verdadeiro objeto da inteligência
e da vontade humanas não pode ser senão Deus, mesmo quando não nomeado.
Sciacca destaca, nesse
contexto, que a exigência de Deus não é primariamente psicológica ou ética, mas
ontológica. A razão não apenas deseja o absoluto — ela o exige para poder
justificar o ser das coisas, a ordem do mundo, a consistência do real. Dionísio
Areopagita, por sua vez, fala do caos iluminado dos seres como uma
hierarquia ordenada cuja fonte é a Unidade transcendental. Deus é o supremo Uno
que tudo produz por irradiação, sem perder Sua simplicidade. Todos os entes
existem como vestígios dessa Unidade que os gera, sustenta e atrai. Não há
fragmento do real que não remeta, por analogia, ao Inefável.
Esse pensamento
dionisíaco é de suma importância para Sciacca porque revela uma metafísica
profundamente teocêntrica, mas também rigorosamente racional. Deus é afirmado
não como objeto sensível ou como projeção cultural, mas como fundamento de toda
hierarquia ontológica. O cosmos é uma cadeia de participações em graus distintos
do ser, e sem esse princípio participativo não há ordem possível, nem grau, nem
proporção. O ateísmo, ao recusar esse Uno, transforma o real numa sucessão sem
sentido, sem origem e sem direção.
Sciacca, ao articular
esses elementos patrísticos com a tradição tomista e a metafísica
essencialista, demonstra que a inteligência, ao atingir seus próprios limites,
não colapsa, mas transita para a contemplação. A razão, quando levada até o
fim, rompe o círculo do imanentismo e reencontra o Absoluto como seu princípio
e seu fim. Deus, assim, não é algo a mais no universo: é Aquele sem o qual o
universo não pode sequer ser pensado.
Contra toda pretensão
ateísta de fundar o ser na matéria ou na historicidade, Sciacca reafirma, com
Boécio e Dionísio, que só Deus — como Ato puro, como Sumo Bem, como Fonte do
ser — pode ser o princípio explicativo último. Fora dele, tudo se dissolve em
multiplicidade sem unidade, em mudança sem permanência, em vontade sem verdade.
O retorno ao Uno é, por isso, o retorno ao fundamento do pensar e do existir. A
negação de Deus não liberta o homem — apenas o desorienta.
Capítulo III — A
Crítica da Autonomia Moral Ateísta
Artigo 1 — A ética sem Deus: de Kant à dissolução da obrigação moral
A negação de Deus não
compromete apenas a ordem do ser e da inteligibilidade, mas também a estrutura
da moral. Sciacca identifica, com agudeza, que a modernidade filosófica, ao
proclamar a autonomia da razão prática, separa o homem da fonte transcendente
do bem. O ponto emblemático dessa ruptura é Kant, cuja ética pretende fundar a
obrigação moral apenas na razão, sem qualquer referência teológica. O
imperativo categórico seria suficiente para assegurar a normatividade e a
universalidade da ação reta. No entanto, essa autonomia, que parece exaltar a
dignidade do sujeito, revela-se, ao fim, incapaz de justificar a obrigação
moral de modo absoluto.
Com efeito, a ética
kantiana exige que o sujeito se submeta à lei que ele mesmo se dá. Mas o
problema emerge exatamente aí: por que o sujeito deve obedecer essa lei,
se ela não deriva de nenhum bem objetivo, mas apenas da forma da racionalidade?
A moral torna-se formal, desvinculada da substância do bem. A lei moral,
reduzida à estrutura da razão, perde sua força vinculante ontológica. Sem uma
referência ao bem como realidade superior e fundante — e, por conseguinte, sem
Deus —, a obrigação moral transforma-se em hábito, convenção ou projeção
subjetiva.
Sciacca argumenta que
a moral desligada de Deus acaba por dissolver-se no relativismo. Sem um Sumo
Bem, não há critério último para distinguir entre o justo e o injusto. A razão
humana, deixada a si mesma, ora absolutiza o dever abstrato (como em Kant), ora
dissolve-se na vontade de poder (como em Nietzsche), ora capitula diante das
forças sociais (como em Durkheim ou nos pragmatismos contemporâneos). A
consequência é clara: o sujeito moral, antes livre e responsável, torna-se
produto de forças anônimas ou de decisões arbitrárias. O dever deixa de ser
expressão de uma ordem objetiva e transcendente, e converte-se em convenção
variável e frágil.
A tradição escolástica
jamais concebeu a moral como imposição exterior ou como restrição da liberdade.
Ao contrário, Tomás de Aquino ensina que a liberdade consiste precisamente em
agir segundo a razão iluminada pela verdade do bem. E o bem, por sua vez, é a
participação na bondade divina, que é Deus mesmo. A lei natural é uma expressão
da razão divina impressa na criatura racional, que se ordena, por sua natureza,
ao seu fim último. A obrigação moral, nesse contexto, não é uma limitação
imposta ao homem, mas o modo pelo qual ele realiza sua própria natureza
enquanto ser racional e livre.
Sciacca retoma essa
linha e mostra que a ética só pode ser plena quando radicada numa ontologia do
bem. E o bem, por definição, exige um fundamento absoluto: o Sumo Bem, Deus.
Sem Ele, o dever moral perde sua ancoragem e se converte em formalismo vazio ou
em manipulação ideológica. O ateísmo, portanto, não liberta o homem da opressão
de regras externas, mas o priva da razão última para agir moralmente. A
autonomia sem Deus é uma miragem: não há verdadeira liberdade sem verdade, e
não há verdade moral sem o Bem que transcende o mundo.
Artigo 2 — Liberdade e
verdade: a estrutura teônoma do ato moral na tradição agostiniana
A crítica de Sciacca à
moral ateísta aprofunda-se ao evidenciar que a separação entre liberdade e
verdade, fundamento da moral laica moderna, é uma distorção estrutural da
própria natureza do ato moral. Para Sciacca — em linha com Agostinho — a
liberdade humana não é um dado bruto, nem uma potência indiferente a qualquer
conteúdo. Ela é essencialmente ordenada, por sua própria estrutura, à verdade
do bem. Liberdade não é arbitrariedade. A autonomia que exclui Deus não é
autonomia autêntica, mas ruptura da ordem natural que liga o querer à realidade
do ser.
Agostinho, em sua
meditação sobre a vontade humana, mostra que o pecado não é o uso da liberdade,
mas seu abuso — libido dominandi em lugar da caritas. A liberdade
nasce para o bem, porque está fundada no ser, e o ser, por sua vez, é ordenado
ao Bem supremo. Assim, um ato só é livre quando é verdadeiro, e só é verdadeiro
quando está conforme à ordem do ser. A vontade que se afasta da verdade não se
eleva, mas se corrompe; torna-se escrava da paixão, da mentira e do nada.
Essa estrutura teônoma
da liberdade é incompreensível para o ateísmo moderno. Privado de uma
referência ao bem em si, o querer humano torna-se absoluto, e por isso mesmo
cego. O sujeito moderno, ao rejeitar Deus, pretende ser origem de seus próprios
valores. Mas essa tentativa de autocriação moral destrói o próprio ato livre. O
querer sem verdade é capricho. E o capricho não funda responsabilidade:
dissolve-a.
Tomás de Aquino
reforça essa tese ao afirmar que o livre-arbítrio é um juízo da razão prática
ordenado à verdade do fim. O fim último do homem é a beatitude, e a beatitude
não pode ser senão Deus — bonum universale. Logo, todo ato moral se mede
por sua conformidade com esse fim. A liberdade não é origem do bem, mas sua
serva. E é exatamente por ser serva do bem que ela é verdadeiramente livre.
Quando Sciacca retoma esse ponto, ele denuncia que a liberdade moderna,
entendida como indiferença diante do bem e do mal, nada mais é do que uma
alienação metafísica: o homem já não se conhece como criatura, e por isso já não
compreende a si mesmo.
A ética agostiniana é,
por conseguinte, uma metafísica da liberdade. A vontade humana não é um centro
fechado, mas uma abertura ao Absoluto. Ao agir moralmente, o homem responde a
um chamado do ser — é atraído pelo bem enquanto bem, e não por um construto
subjetivo. O ateísmo, ao negar essa dimensão, quebra a relação entre a
liberdade e a realidade. E onde não há realidade moral, resta apenas poder,
manipulação ou dissolução da norma.
Sciacca conclui que o
ato moral, para ser livre, deve ser verdadeiro. E só há verdade moral quando o
bem é mais do que uma projeção: quando é reflexo e participação do Sumo Bem. A
liberdade teônoma não é submissão heterônoma, mas fidelidade ao ser do homem. E
o ser do homem é caminho para Deus. Toda moral ateia, por negar esse
fundamento, termina por negar a liberdade que julga exaltar.
Artigo 3 — O problema
do mal e a negação do Bem supremo: crítica aos dilemas ateístas
A presença do mal no
mundo é, historicamente, uma das razões mais mobilizadas pelos ateus para negar
a existência de Deus. Sciacca, longe de ignorar o peso desse argumento,
enfrenta-o frontalmente, demonstrando que ele só tem sentido dentro de uma
estrutura metafísica na qual Deus já esteja pressuposto. O ateísmo que denuncia
o mal absoluto, ao fazê-lo, invoca — mesmo sem querer — a existência de um bem
absoluto, pois a própria noção de mal como privação ou desordem exige uma ordem
anterior e objetiva.
O argumento ateísta
segue, em geral, esta linha: se Deus existe e é onipotente e bom, o mal não
deveria existir; como o mal existe, Deus não pode ser simultaneamente
onipotente e bom — ou simplesmente não pode existir. No entanto, essa estrutura
argumentativa toma por base um juízo moral objetivo sobre o que é o bem e o
mal. Sciacca mostra que esse juízo é inconsistente com a metafísica ateísta: se
não há Deus, tampouco há bem objetivo, tampouco há finalidade no ser, tampouco
há justiça como exigência real. O mal, nesse caso, seria apenas um fato bruto,
sem significado, e qualquer julgamento sobre sua maldade perderia validade
racional. O ateísmo, portanto, só pode denunciar o mal se trair sua própria
lógica.
A tradição
agostiniana, retomada por Sciacca, vê o mal não como um ser em si, mas como privatio
boni — a ausência ou corrupção de um bem devido. Essa definição destrói a
tentação dualista de ver o mundo dividido entre dois princípios opostos, e
conserva a centralidade ontológica do bem. O mal, como parasita do bem, não se
explica sem ele; por isso, sua existência não é prova contra Deus, mas sinal da
liberdade da criatura, que pode afastar-se da ordem do bem. O pecado é a
escolha de um bem menor contra um bem maior — não a criação de um mal
substancial. Deus, ao permitir esse afastamento, conserva a liberdade da
criatura e permite, por vias misteriosas, que do mal possa surgir um bem maior.
Sciacca retoma ainda a
resposta tomista à objeção do mal: a criação de um universo no qual a liberdade
seja real implica necessariamente a possibilidade do mal moral. A perfeição do
conjunto exige a permissão de imperfeições parciais. Mais ainda: a presença do
mal natural e moral é o que permite a manifestação de bens superiores — como a
justiça, a misericórdia, o perdão, a coragem, o martírio. A Providência divina
não elimina o mal diretamente, mas o integra num desígnio maior que escapa à
compreensão total do homem.
O ateísmo, ao recusar
esse horizonte, cai em contradições insolúveis: ou nega o mal como tal,
transformando-o em mera função evolutiva ou estrutura social, e, com isso,
torna impossível qualquer indignação autêntica; ou mantém a denúncia moral do
mal, mas sem conseguir justificar seu fundamento objetivo, pois rejeita o bem
em si. Sciacca mostra que ambas as posições são autodestrutivas.
O mal, para ser
reconhecido como mal, exige o bem como medida. E o bem, para ser absoluto,
exige Deus. Assim, paradoxalmente, é o problema do mal que confirma a estrutura
teônoma da moralidade. Negar o Bem supremo em nome do mal é como apagar a luz
para poder enxergar melhor a sombra. A crítica ateísta ao mal, quando levada
até suas últimas consequências, prova a tese que desejava refutar: só Deus
justifica o horror diante do mal. Sem Ele, resta apenas o absurdo ou o cinismo.
Artigo 4 — O fim
último do homem como chave do juízo ético, segundo Tomás de Aquino
A crítica de Sciacca à
moral sem Deus encontra seu ponto culminante na análise do fim último da
existência humana. Para ele — seguindo rigorosamente a doutrina tomista — não
se pode conceber ética autêntica sem uma teleologia real do homem. Toda moral,
ainda que inconscientemente, julga os atos humanos à luz de um fim: não há
escolha moral que não pressuponha algum bem visado. Ora, se esse fim é
contingente, relativo ou autoimposto, então o juízo moral torna-se relativo,
instável e incoerente. Apenas a existência de um fim último absoluto —
identificado com o Bem supremo — permite fundar racionalmente a moral.
Tomás de Aquino ensina
que omne agens agit propter finem: todo agente age por causa de um fim.
E no caso do homem, dotado de inteligência e vontade, o fim não é imposto de
fora, mas está inscrito em sua própria natureza: ele busca a felicidade, e esta
só se realiza plenamente na união com o Sumo Bem, que é Deus. Toda ação moral
se qualifica na medida em que aproxima ou afasta o sujeito desse fim. A virtude
é o hábito que ordena as potências humanas ao fim devido; o pecado, a desordem
que as afasta. Desse modo, o bem moral é aquilo que corresponde à essência
racional do homem orientada à sua perfeição.
Sciacca mostra que,
sem essa estrutura finalista, toda ética se reduz ao contratualismo, ao
utilitarismo ou ao sentimentalismo — três formas de desvio que prescindem do
fim último real. O contratualismo, ao fundar a moral em convenções sociais,
relativiza o bem à vontade coletiva. O utilitarismo, ao medi-lo pelo prazer ou
pelo bem-estar, sacrifica a dignidade do ato à sua eficácia. O sentimentalismo,
por sua vez, dissolve o dever em estados afetivos voláteis. Em todos esses
casos, o juízo ético carece de fundamento objetivo: não há critério absoluto
que permita dizer que um ato é bom em si, independentemente de seus efeitos ou
de sua aceitação social.
É precisamente a
doutrina do fim último que impede esse colapso. Pois ela vincula a liberdade
humana à realização de sua própria essência. O homem não é livre para inventar
seu fim, mas para escolher os meios que o conduzam até ele. A liberdade,
portanto, é subordinada ao bem; e o bem é uma participação na plenitude divina.
É nesse ponto que se revela a fragilidade radical do ateísmo ético: se Deus não
existe, não há fim último absoluto. E sem fim último, não há ato objetivamente
bom ou mau — apenas preferências, impulsos ou construções arbitrárias.
Ao integrar o fim
último à estrutura da moral, Sciacca reafirma a inseparabilidade entre
metafísica e ética. A moral não é um suplemento externo à realidade, mas o modo
como a criatura racional responde à ordem do ser. A lei moral é o reflexo da
ordem ontológica, e esta só é possível porque há um Criador que é ao mesmo
tempo origem e fim. Assim, a moral não se reduz a regras, mas é caminho para a
realização do ser humano em sua vocação última: a comunhão com Deus. A negação
desse fim não apenas desorienta a conduta; destrói a possibilidade mesma de um
juízo ético.
Em suma, Sciacca
demonstra que o ateísmo moral é, no fundo, um humanismo sem homem. Pois nega ao
ser humano aquilo que o constitui como tal: sua abertura ao Absoluto, sua
ordenação ao Bem, sua vocação à beatitude. A ética, sem Deus, é uma linguagem
vazia. Com Deus, torna-se resposta viva à verdade do ser.
Capítulo IV —
Conhecimento, Inteligibilidade e Criação
Artigo 1 — Conhecer é participar: a inteligibilidade como reflexo do Logos
criador
A teoria do
conhecimento, para Sciacca, não pode ser concebida como simples recepção
passiva de dados sensíveis nem como construção autônoma de representações
subjetivas. O ato de conhecer é, em sua estrutura mais profunda, uma
participação no ser, uma comunhão do intelecto com a realidade inteligível que
o precede. Sciacca se afasta tanto do empirismo quanto do idealismo moderno,
pois ambos — ainda que em direções distintas — se fecham ao horizonte
ontológico do conhecimento. O empirismo nega o inteligível ao reduzi-lo ao
sensível; o idealismo o dissolve no sujeito. Em ambos os casos, rompe-se o elo
fundamental entre ser e conhecer.
A tradição clássica e
escolástica, ao contrário, ensina que o ser é per se inteligível, e que
o intelecto está ordenado naturalmente ao ser. Tomás de Aquino afirma que intellectus
est in potentia respectu entis. Isso significa que a mente humana está
constituída de tal modo que só se realiza plenamente quando conhece o que é. A
verdade, nesse contexto, não é uma conformidade entre ideias, mas entre o
intelecto e a realidade: adaequatio intellectus et rei. Mas essa
realidade só é inteligível porque está estruturada por um princípio ordenante:
o Logos. Sem o Logos, o ser é um caos; sem o ser, o intelecto é vazio.
É neste ponto que
Sciacca invoca a doutrina da criação. O mundo, para ser inteligível, deve ter
sido pensado antes de existir. E pensado por um intelecto supremo, que seja
causa e modelo de todo ser. Essa é a tese fundamental da teologia cristã da
criação: Deus cria todas as coisas segundo a razão de seu Verbo, o Logos
eterno. Por isso, conhecer é participar desse Logos — não no sentido panteísta,
mas enquanto ato de acolher, por via analógica, a estrutura racional que Deus
imprimiu ao mundo. Todo conhecimento verdadeiro é, portanto, uma forma de
comunhão.
Essa concepção remete
diretamente a Agostinho, para quem as verdades eternas estão em Deus e são
acessíveis ao homem por iluminação. Quando o homem conhece, ele não gera a
verdade, mas a reconhece como anterior e superior. O intelecto, para conhecer,
deve tornar-se semelhante ao objeto conhecido — e esse objeto, em última
instância, é a própria Verdade subsistente. Negar isso, como faz o ateísmo
epistemológico, é transformar o conhecimento num processo fechado, sem abertura
ao ser. É confinar o espírito na imanência do dado ou na circularidade do
discurso.
Sciacca aponta, então,
que o colapso da modernidade epistemológica — marcado pelo relativismo, pelo
construtivismo e pelo ceticismo — é resultado direto da recusa da criação.
Quando o mundo deixa de ser criação, deixa também de ser sinal, deixa de
remeter a um fundamento, perde sua inteligibilidade própria. O mundo torna-se
opaco, a linguagem se fragmenta, o pensamento torna-se incapaz de fundar-se. Em
oposição a esse caos, a doutrina da criação garante que o ser é inteligível
porque é dado; e é dado por um Deus que é Verdade.
Portanto, para
Sciacca, conhecer não é dominar, não é inventar, não é construir: é participar.
É sair de si e entrar na ordem do real. E essa ordem é possível porque há uma
Mente que a sustenta. A filosofia que ignora essa verdade está condenada a
girar em torno de si mesma. A única epistemologia consistente é aquela fundada
na ontologia do Logos. E o Logos é, por sua natureza, o Deus criador. Sem Ele,
o pensamento é surdo e o ser, mudo. Com Ele, o conhecer é, já desde o início,
uma forma de comunhão.
Artigo 2 — O erro
gnostizante do ateísmo: conhecimento como poder em vez de contemplação
A ruptura entre
conhecimento e ser — operada pelas filosofias ateístas da modernidade — não
apenas obscurece a inteligibilidade do mundo, mas transforma a própria
finalidade do ato de conhecer. Sciacca identifica aqui um desvio de fundo: a
passagem de uma epistemologia fundada na contemplação para uma gnose fundada no
poder. Onde o conhecimento era, na tradição clássica, um exercício de conformidade
ao real, torna-se agora uma técnica de dominação do objeto. A verdade, antes
buscada como bem em si, converte-se em instrumento para manipular a realidade.
Esse deslocamento tem
raízes antigas, mas assume sua forma mais aguda na modernidade ateia. Bacon já
anuncia que scientia est potentia: o saber deve servir à conquista da
natureza. Descartes declara que o homem deve tornar-se comme maître et
possesseur de la nature. A ciência deixa de ser caminho para a verdade e
passa a ser meio para a eficácia. O critério do verdadeiro é substituído pelo
útil. A inteligência deixa de contemplar a ordem do ser para impô-la — ou
negá-la. No limite, o mundo deixa de ter estrutura e finalidade próprias: é
apenas matéria-prima a ser moldada pela vontade.
Sciacca denuncia esse
erro como gnosticismo secularizado. Pois a gnose antiga já continha esse
impulso: a salvação pela posse de um saber oculto que libertaria o homem do
mundo e de seu Criador. O ateísmo moderno, ao recusar Deus e a criação, reedita
esse esquema em chave imanente. O conhecimento torna-se libertação — não pela
verdade, mas pela negação da ordem recebida. A inteligência já não busca
participar da realidade, mas reconstruí-la de acordo com seus próprios
projetos. O espírito já não se curva diante do Logos, mas fabrica seu simulacro
técnico, ideológico ou revolucionário.
Contra essa perversão,
Sciacca reafirma a concepção patrística e escolástica de conhecimento como conformitas
rei et intellectus. Agostinho via na contemplação da verdade uma
antecipação da beatitude; Tomás de Aquino ensinava que a verdade era o fim
próprio do intelecto e que o conhecimento tinha uma dimensão essencialmente
sapiencial. A verdade não é posse, mas acolhida; não é invenção, mas
descoberta; não é violência, mas revelação. Ao abandonar essa estrutura, o
ateísmo não apenas perde a verdade — ele perde o próprio sentido do conhecer.
Esse erro gnostizante
tem consequências profundas na cultura contemporânea. A ciência, privada de
fundamento ontológico, converte-se em técnica autônoma, indiferente à verdade e
ao bem. A filosofia, sem acesso ao ser, dissolve-se em crítica interminável ou
em nominalismo cético. O pensamento, que deveria unir o homem ao real, afasta-o
cada vez mais de sua própria natureza. O espírito humano torna-se um Prometeu
trágico: dominador do mundo, mas ignorante de si mesmo.
Sciacca insiste: o
conhecimento verdadeiro exige humildade ontológica. É resposta, não imposição.
É acolhimento do ser, não negação de sua ordem. A inteligência humana só pode
conhecer porque o real é dado, e é dado porque foi criado. O ateísmo, ao romper
esse vínculo, aniquila a metafísica e perverte a epistemologia. Conhecer não é
possuir o mundo — é reconhecer nele a marca de um Logos que o torna
inteligível. E esse Logos não é uma ideia: é um Deus vivo, que fala
silenciosamente em tudo o que é.
Artigo 3 — Criação ex
nihilo e a racionalidade do real: confronto com o panteísmo e o dualismo
A tese da criação ex
nihilo, sustentada por Sciacca e fundamentada na tradição cristã, não é apenas
um dogma teológico, mas o núcleo racional que torna possível uma metafísica
coerente do mundo. Negá-la — como fazem o panteísmo e o dualismo — implica
dissolver os fundamentos da inteligibilidade do real. Pois se o mundo não foi
criado livremente por um Deus transcendente, então ele é ou necessário como
Deus, ou produto de um conflito eterno entre princípios contrários. Em ambos os
casos, o ser perde sua contingência e, com ela, a possibilidade de explicação.
No panteísmo, tudo é
Deus, e Deus é tudo: não há distinção ontológica entre Criador e criatura. A
consequência disso, como já mostrava Tomás de Aquino, é a anulação da
causalidade real. Se o mundo é Deus, então o ser não foi dado — ele apenas é,
sem causa, sem intenção, sem liberdade. O panteísmo dissolve a criação e, com
ela, elimina o próprio conceito de causa eficiente. Sciacca vê nesse erro uma
forma refinada de imanentismo gnóstico: o divino é absorvido pelo cosmos e
deixa de ser princípio. O mundo não é mais inteligível por participação, mas
necessário por identidade.
O dualismo, por outro
lado, propõe a existência de dois princípios eternos em oposição — bem e mal,
espírito e matéria, luz e trevas. Essa visão, herdada do maniqueísmo e de
certas correntes gnósticas, resulta numa metafísica conflitiva e insolúvel. Se
o ser se origina de uma luta sem síntese, então a realidade é irracional em sua
raiz. Não há unidade, não há verdade plena, não há fim último. Sciacca rejeita
essa concepção como ontologicamente insustentável e moralmente devastadora: ela
recusa a ordem, e com isso, torna impossível qualquer ética objetiva.
A criação ex nihilo —
Deus criando livremente todas as coisas do nada — preserva ao mesmo tempo a
transcendência divina e a realidade da criatura. Deus é plenamente separado do
mundo, mas livremente presente nele como causa, sustento e fim. O ser dos entes
não é necessário nem fruto do acaso: é dom. E o dom, por sua natureza, é
inteligível. A racionalidade do real, portanto, só se sustenta sobre o
fundamento da criação: pois só o que foi pensado e querido pode ter forma,
ordem, finalidade.
Essa tese não é apenas
teológica — é racionalmente exigida. O ente finito, como já demonstrado, não é
necessário. Se ele existe, é porque outro o fez ser. Mas esse outro não pode
ser um ente entre entes: deve ser o Ser mesmo, cuja essência é existir. E esse
Ser, ao criar, não o faz por necessidade, mas por liberdade. Essa liberdade
divina é a fonte da ordem do mundo. Pois o que é criado com sabedoria reflete a
inteligência do Criador. A estrutura do real é, assim, inteligível porque foi
feita com medida, número e peso — mensura, numerus, pondus — como diria
Agostinho.
Sciacca, ao reafirmar
a criação ex nihilo, resgata a possibilidade mesma da filosofia. Pois sem um
princípio transcendente, livre e inteligente, o mundo torna-se um dado bruto,
opaco, incapaz de justificar a si mesmo. Com a criação, ao contrário, o ser se
ilumina, a razão se orienta e o conhecimento se fundamenta. Negar a criação é
negar o sentido; afirmar a criação é abrir-se à verdade. O ateísmo, ao rejeitar
essa estrutura, condena-se a uma razão sem raiz. E uma razão sem raiz não pode
sustentar o mundo — nem a si mesma.
Artigo 4 — De Anselmo
a Sciacca: razão, fé e o dinamismo ascendente da inteligência
No encerramento deste
capítulo, Sciacca propõe uma reabilitação integral da razão humana em sua
vocação mais alta: a busca de Deus como princípio e fim de todo conhecimento.
Para isso, ele se insere deliberadamente na tradição inaugurada por Santo
Anselmo de Cantuária, cuja célebre fórmula fides quaerens intellectum
exprime o dinamismo próprio da inteligência que, iluminada pela fé, não se
contenta com a crença, mas deseja compreender — e compreender tudo. Sciacca,
porém, insiste: essa fé não suplanta a razão, tampouco a substitui, mas a eleva
e a impele à sua realização mais profunda.
O modelo anselmiano
não é fideísta: é estruturalmente racional, porque parte da certeza de que o
ser é ordenado, que o espírito participa dessa ordem e que ambos — ser e
espírito — provêm de uma fonte comum que é o Logos. O célebre argumento
ontológico de Anselmo, ainda que questionado por séculos, carrega uma intuição
que Sciacca resgata: a ideia de Deus é tão intrinsecamente ligada à estrutura
do pensamento que sua negação exige mais esforço de abstração do que sua afirmação.
O intelecto, ao conceber algo como aquilo maior do que o qual nada pode ser
pensado, já se encontra, ainda que de modo obscuro, na presença da Verdade
absoluta.
Essa tendência da
razão a transcender o imediato, a não se conformar com o parcial ou o mutável,
mostra que a inteligência humana não é apenas reativa ao sensível: ela é aberta
ao eterno. Sciacca desenvolve essa abertura como um desejo ontológico do
Absoluto, presente em toda operação racional autêntica. Mesmo quando o
homem pensa o contingente, ele o pensa sob a categoria de ser — e, portanto, já
de modo mediado pela presença implícita do Ser necessário. Nesse sentido, a
razão não é neutra: ela é teleologicamente orientada. O conhecimento caminha,
por sua própria natureza, para o fundamento do conhecido.
A tradição tomista
confirma esse movimento: o intelecto humano, sendo potência para o ser, está
ontologicamente ordenado ao conhecimento do primeiro princípio. Tomás afirma
que, embora a visão plena de Deus exceda a razão natural, a própria razão, com
seus recursos, pode demonstrar a existência de Deus como causa primeira, fim
último e ato puro. Sciacca não nega o papel da fé revelada — mas insiste que,
antes mesmo da fé, a razão clama por Deus. O ateísmo, nesse contexto, é a
interrupção forçada de um dinamismo que pertence à própria estrutura do
espírito.
Contra a noção moderna
de razão fechada em si, autônoma, crítica e negativa, Sciacca propõe uma razão
aberta, ascendente e afirmativa. Uma razão que se reconhece limitada, mas não
por isso renuncia à verdade; ao contrário, exatamente por saber-se finita, ela
busca o Infinito. Essa busca é a alma da filosofia: um eros intelectual que
visa a posse contemplativa do Ser. O intelectualismo moderno, ao rejeitar esse
dinamismo, não só mutila o conhecimento — mutila o próprio homem.
Por fim, Sciacca
conclui que razão e fé não são forças opostas, mas aliadas no percurso do
espírito. A fé, longe de impedir o pensar, sustenta e estimula a inteligência.
A razão, por sua vez, quando fiel à realidade, conduz inevitavelmente à fé. O
conhecimento, assim compreendido, é mais do que um ato: é um êxodo. E esse
êxodo não tem outro termo senão Deus, origem e destino de toda luz. Conhecer,
portanto, é subir — e subir é reencontrar, no cume, Aquele que nos pensou.
Capítulo V — A Abertura
do Homem a Deus: Estrutura e Destino
Artigo 1 — O homo viator e a metafísica do desejo infinito: paralelos
com Pascal e Agostinho
No limiar da reflexão
filosófica de Sciacca sobre a existência de Deus, emerge com vigor a
consideração do homem enquanto ser de trânsito — homo viator — cuja
própria estrutura interior denuncia uma incompletude essencial que o remete a
um fim transcendente. Esse dinamismo interior, que se manifesta como desejo
incessante de plenitude, é o sinal mais profundo de que o homem não se basta, e
que seu ser é marcado por uma abertura constitutiva ao Infinito. Sciacca
identifica nessa orientação espiritual não apenas um traço existencial, mas uma
estrutura metafísica que atravessa todo o ser humano.
Pascal, com sua
clareza trágica, exprimiu essa inquietude como vazio infinito que só pode ser
preenchido por Deus. O coração humano, dizia ele, tem um abismo que nada finito
pode saciar. Essa constatação, longe de ser sentimentalismo, é um diagnóstico
metafísico: o homem deseja mais do que o mundo pode oferecer. A sede de
verdade, de justiça, de bem absoluto, que nunca é plenamente saciada na
experiência concreta, revela que esse desejo ultrapassa qualquer objeto finito,
e, portanto, exige um objeto infinito — Deus.
Essa linha se articula
com Agostinho, que compreendeu o desejo humano como movimento de retorno: o
coração inquieto que só repousa em Deus (inquietum est cor nostrum donec
requiescat in Te). Agostinho não vê esse desejo como algo acidental, mas
como expressão da essência do homem criado ad imaginem Dei. O homem não
é apenas imagem de Deus pela razão ou pela vontade, mas pelo movimento de seu
ser em direção a Ele. A nostalgia do Absoluto está inscrita no mais íntimo do
espírito.
Sciacca acolhe essa
tradição e a reinterpreta filosoficamente: a abertura ao Infinito é o selo do
espírito racional. Todo desejo verdadeiro — de beleza, de amor, de verdade —
aponta para além de seu objeto imediato. Esse “para além” não é vazio ou negação,
mas afirmação radical de que o homem foi feito para algo maior do que si. O
ateísmo, ao tentar sufocar esse desejo, não o elimina: apenas o deforma,
substituindo o Infinito por ídolos transitórios — progresso, prazer, poder,
ciência. Mas esses ídolos, por sua natureza limitada, não podem cumprir o
anseio que os homens depositam neles.
O homem moderno, ao
negar o Absoluto, termina por absolutizar o relativo. E nisso reside sua
tragédia: busca infinitamente aquilo que não pode dar-se infinitamente. Sciacca
mostra que esse processo não é apenas histórico ou cultural, mas ontológico. A
estrutura do desejo denuncia a falência de qualquer sistema fechado. A
imanência pura não explica o desejo de transcendência; a finitude não explica a
nostalgia do eterno.
Assim, a abertura do
homem a Deus não é uma superstição nem uma convenção religiosa, mas uma
evidência existencial e metafísica. Todo homem, ao desejar profundamente, já
confessa Deus — mesmo sem sabê-lo. Negar esse desejo é negar a si mesmo. A
filosofia, quando fiel ao real, não pode senão reconhecer esse abismo que nos
habita. E esse abismo, diz Sciacca com Agostinho e Pascal, tem a forma de Deus.
Artigo 2 — O espírito
como sede de transcendência: crítica à redução materialista da pessoa
Ao desenvolver a
estrutura do homem como homo viator, Sciacca vai além da descrição
fenomenológica do desejo e confronta a tese mais corrosiva do pensamento ateu
contemporâneo: a negação da espiritualidade da pessoa humana. O materialismo
moderno, ao reduzir o homem a soma de funções biológicas, impulsos
neuroquímicos e condicionamentos históricos, anula a dignidade metafísica da
pessoa e destrói a possibilidade mesma de abertura ao transcendente. Contra
essa visão mutiladora, Sciacca reafirma, em diálogo com a tradição patrística e
escolástica, que o espírito é por essência abertura, interioridade e
transcendência.
Essa crítica não é
nova: já Agostinho, no confronto com o maniqueísmo e com o ceticismo acadêmico,
afirmava a superioridade da alma sobre o corpo e sua capacidade de se conhecer
como sujeito, como substância que permanece além do fluxo sensível. A célebre
descoberta da interioridade — intus in intimo meo — marca um ponto de
ruptura decisivo: a verdade não é encontrada fora, mas no centro do próprio
ser. E essa verdade íntima não é passiva: ela julga, escolhe, ama, contempla. A
alma é, assim, reflexo de Deus não apenas porque existe, mas porque é capaz de
conhecer o ser, discernir o bem e desejar o eterno.
Tomás de Aquino
sistematiza esse dado afirmando que o homem é uma unidade substancial de corpo
e alma, mas que a alma racional é a forma do corpo, imaterial, subsistente e
incorruptível. Ela não é apenas um princípio vital, mas um sujeito espiritual
que sobrevive à morte e está ordenado a um fim sobrenatural. A dignidade do
homem está, pois, enraizada na sua condição de imago Dei. O
materialismo, ao negar essa realidade, degrada o homem ao status de objeto
entre objetos, eliminando a base do juízo moral, da liberdade e da
responsabilidade.
Sciacca retoma essa
doutrina para mostrar que o espírito não é um epifenômeno, mas a sede da
abertura à totalidade do ser. A consciência humana é capaz de captar verdades
universais, valores absolutos, proporções que ultrapassam o físico. Nenhuma
estrutura material explica a capacidade do homem de conhecer o necessário, de
aspirar ao infinito, de decidir contra seus instintos. Essa transcendência
interna é o sinal inequívoco de que o homem não é fechado em si, mas aberto a
um Outro que o excede infinitamente.
A filosofia ateia
tenta abolir essa transcendência apelando a esquemas evolutivos, neurológicos
ou sociológicos. Mas quanto mais insiste na redução do homem à matéria, mais se
vê forçada a negar os próprios dados da experiência humana: liberdade,
consciência, verdade, beleza, amor. Sciacca mostra que, no fundo, o
materialismo é uma forma de desesperança metafísica: um esforço de apagar do
espírito sua própria luz. E onde o espírito é apagado, resta apenas o
funcionamento cego da matéria.
O espírito humano, em
sua atividade cognoscitiva e volitiva, revela uma estrutura que não se explica
pelo mundo — ele aponta para além do mundo. Ele é, por sua própria natureza,
uma janela aberta para o Ser. A pessoa é mais do que um organismo: é um
mistério, e seu mistério é ser chamada. O ateísmo, ao recusar esse chamado, não
compreende a pessoa; apenas a empobrece. Sciacca reafirma, contra toda
antropologia mutilada, que conhecer o homem é conhecer a imagem de Deus.
Negá-lo é negar o próprio homem.
Artigo 3 — A esperança
teologal e a estrutura do sentido: Sciacca diante do colapso do imanentismo
A última etapa do
percurso de Sciacca revela que a abertura do homem a Deus não é apenas uma
exigência ontológica ou uma estrutura do conhecimento, mas o fundamento
existencial da esperança. O ser humano não deseja apenas conhecer ou agir bem —
ele deseja perseverar no ser, vencer a morte, alcançar um fim que redima o
tempo, a dor e o limite. A filosofia ateísta, ao excluir o transcendente,
elimina esse horizonte último e condena o homem ao colapso do sentido. Sciacca,
retomando a tradição cristã, mostra que apenas a esperança teologal sustenta o
edifício do sentido total da existência.
O imanentismo moderno
— seja de cunho cientificista, historicista ou pragmatista — opera uma redução
do real àquilo que pode ser manipulado, previsto ou utilizado. O tempo, nesse
regime, não é caminho, mas desgaste; a morte, não é passagem, mas cessação
absoluta; e o futuro, mero prolongamento do presente técnico. A história,
reduzida à dialética cega de forças materiais, não tem finalidade
transcendente. Nesse quadro, a esperança é dissolvida em expectativa
estatística ou em projeções ideológicas — mas jamais como virtude teologal, que
se ancora no absoluto.
Contra esse vazio,
Sciacca afirma que a esperança, como abertura ao futuro transcendente, está
enraizada na própria estrutura espiritual do homem. Não se trata de um otimismo
psicológico, mas da confiança racional e existencial de que o sentido último da
vida não se encerra na morte nem se esgota no mundo. A esperança é, portanto, o
reconhecimento de que o fim do homem é superior a todas as mediações
históricas, e que nenhuma realização temporal pode saciar a fome de eternidade
que define o espírito.
Essa esperança,
entretanto, não nasce de si mesma — ela exige um fundamento real. Não é
possível desejar com verdade aquilo que não pode existir. A esperança teologal
pressupõe que o ser não é absurdo, que a morte não é o fim definitivo, que há
um Bem supremo que chama o homem e sustenta seu caminho. Em outras palavras, a
esperança é racional porque Deus existe. O colapso do sentido moderno vem,
precisamente, da negação desse fundamento: ao rejeitar Deus, o homem
contemporâneo não se liberta, mas se entrega à náusea, ao absurdo ou à
anestesia moral.
A tradição cristã — em
especial com Agostinho e Tomás — sempre vinculou a esperança ao fim último do
homem. Para Agostinho, é o desejo mesmo de felicidade que revela que o homem
não é feito para este mundo. Para Tomás, a esperança é a virtude pela qual o
homem tende, com confiança, ao auxílio divino que o conduz ao seu fim
sobrenatural. Sciacca herda essa visão e a traduz filosoficamente: sem um fim
absoluto, o tempo se torna prisão; com ele, torna-se caminho. A esperança é o
motor interno do espírito que recusa ser encerrado no finito.
O ateísmo, ao destruir
a esperança, destrói também a coragem, a perseverança, a paciência — tudo
aquilo que vincula o sofrimento à promessa. O homem ateu pode suportar o tempo,
mas não pode dar-lhe sentido. Pode lutar, mas não sabe para quê. Sciacca mostra
que toda cultura fundada sobre o imanente tende ao niilismo — pois aquilo que
começa e termina em si mesmo está condenado ao vazio. Só o transcendente dá
consistência ao tempo. Só a eternidade ilumina o instante. Só Deus salva o
futuro.
Por isso, a esperança
não é um sentimento a ser tolerado — é a estrutura do sentido. E onde ela se
perde, perde-se o homem. Sciacca encerra esse ponto com uma constatação
implacável: a recusa de Deus é, no fundo, recusa de tudo aquilo que faz do
homem mais do que um fenômeno passageiro. A filosofia só é verdadeira quando
escuta esse grito de sentido e o acompanha até sua fonte. E essa fonte é o
próprio Deus, origem e termo da esperança que sustenta o ser em meio ao tempo.
Artigo 4 — A
existência de Deus como exigência da própria existência: síntese conclusiva e
apelo à inteligência crente
Ao final de seu
percurso, Sciacca formula uma síntese que não é apenas conclusão lógica, mas
também apelo vital: a existência de Deus não é uma crença acessória, mas uma
exigência estrutural da própria existência humana. Todas as dimensões do homem
— seu conhecimento, sua moralidade, sua liberdade, sua esperança — desmoronam
se não estiverem ancoradas num fundamento absoluto. O ateísmo não representa
apenas a recusa de uma hipótese teológica; é a mutilação do ser. O que se perde
com Deus não é apenas um nome, mas o sentido mesmo do que significa existir.
Essa conclusão nasce
de um encadeamento rigoroso, que Sciacca sustenta desde a metafísica: o ente
finito é contingente; a contingência exige uma causa; a causa última não pode
ser contingente, mas necessária, simples, subsistente. Só Deus, como ipsum
esse subsistens, explica a existência de tudo o que existe. Mas Sciacca não
se detém na prova cosmológica: ele mostra que o próprio dinamismo interno do
espírito humano aponta, inexoravelmente, para o Absoluto. A inteligência deseja
a verdade plena, a vontade busca o bem supremo, o coração aspira à felicidade
eterna. Nada finito basta a esse movimento — e, portanto, tudo no homem clama
por Deus.
Essa exigência não é
imposta de fora: ela se impõe desde dentro, como coerência do real com o
próprio ato de existir. O homem que nega Deus precisa, para sustentar essa
negação, romper com sua própria natureza espiritual. O ateu coerente deve negar
a verdade, relativizar a moral, abdicar do juízo, dissolver a liberdade, matar
a esperança. Mas ao fazê-lo, nega não apenas a Deus — nega a si mesmo. O
ateísmo, quando levado até as últimas consequências, revela-se uma
autodestruição do espírito. E é contra essa destruição que Sciacca se levanta
com vigor filosófico e lucidez metafísica.
A resposta, portanto,
não é fideísta, mas racional: o reconhecimento de Deus não é fruto de imposição
dogmática, mas de fidelidade à estrutura do ser. O crente não crê apesar
da razão, mas com ela — e mais ainda, em seu nome. A fé é o coroamento
da inteligência, não sua negação. A filosofia, quando fiel a si mesma, conduz à
teologia. O pensamento, quando não trai sua vocação, torna-se prece. Por isso,
Sciacca encerra com um chamado: que o homem moderno, em sua confusão,
reencontre o caminho da verdade. Que abandone o orgulho de se fechar sobre si e
redescubra a luz que ilumina todas as coisas — inclusive a si próprio.
A existência de Deus
é, enfim, mais do que uma tese metafísica: é o pressuposto da ordem, da
linguagem, da liberdade, da história, da pessoa. Tudo o que é — desde o
movimento das estrelas até o tremor da consciência — aponta para Ele. Negá-Lo é
rasgar o tecido da realidade. Afirmá-Lo é, antes de tudo, consentir com a
própria existência. E esse consentimento, diz Sciacca, é o primeiro ato de uma
inteligência que não renunciou a si mesma. A filosofia, portanto, culmina onde
começou: no assombro diante do ser — e na confissão silenciosa de que há, por
trás de tudo, um Nome que sustenta o real. Esse Nome é Deus.
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