Capítulo I — O Daimon Arcaico e a Estrutura do Rito.
Artigo 1 – A ontologia do daimon e sua presença nas culturas ancestrais
Estudo aprofundado da figura do daimon como realidade intermediária entre o divino e o humano, com ênfase nos elementos espirituais e simbólicos que marcam sua função ambivalente. O artigo percorre a tradição grega, suméria, hebraica e persa para mostrar como o daimon se estabelece como inteligência autônoma, inserida na ordem do mundo, vinculada a destinos pessoais, casas, ventos e limiares.
Artigo 2 – Pazuzu como arquétipo liminar: origem, iconografia e função ritual
Análise histórica e simbólica da figura de Pazuzu no contexto mesopotâmico. O estudo reconstrói os ritos associados a ele, os objetos litúrgicos, as fórmulas em acádio e os contextos sociais em que se aplicava sua invocação. Examina-se a relação com Lamashtu, os amuletos apotropaicos e a dimensão performativa do rito como gesto mágico real de proteção.
Artigo 3 – O som como portador do espírito: fonética mágica e invocação arquetípica
Aprofundamento na dimensão fonética do sagrado: como nomes como Pazuzu não apenas representam, mas são a presença invocada. Comparação com o Tetragrama hebraico, os mantras védicos e os nomes secretos do Egito antigo. Demonstra-se que o som é a via do espírito e que a repetição fonética, mesmo sem compreensão intelectual, possui eficácia simbólica.
Capítulo II — O Daemon na Cultura Pop: Lububu como Simulacro.
Artigo 4 – Labubu: origem, estética e repetição de um daimon infantilizado
Análise da criação do boneco Labubu como figura híbrida de mascote e espírito. Estuda-se sua morfologia, sua construção estética (ugly-cute), a função de repetição do nome, e como ele atua inconscientemente como simulacro de um daimon antigo — não mais invocado, mas possuído como produto.
Artigo 5 – Da ritualidade à viralidade: dança, frase e engajamento digital como rito profano
Exposição da estrutura ritual reconfigurada nas redes sociais: slogan, coreografia, vídeo, repetição e comunidade. O artigo mostra como a dança do Labubu, suas frases virais e sua presença digital recriam, inconscientemente, as dinâmicas de culto — mas sem transcendência, sem temor, sem espírito. É a casca do rito, desprovida da alma.
Artigo 6 – A inversão simbólica: do terror apotropaico à sedução do vazio
Síntese filosófica do processo de transfiguração. Enquanto Pazuzu espanta o mal, Labubu atrai o olhar. Enquanto Pazuzu é temido e venerado, Labubu é desejado e consumido. Conclui-se que há um deslocamento da experiência do daimon: o que antes era presença espiritual agora é fetiche simbólico, reflexo de uma cultura incapaz de lidar com o invisível, mas ainda faminta por sua forma.
Artigo 1 — A ontologia do daimon e sua presença nas culturas ancestrais.
Desde as primeiras manifestações simbólicas do homem, há vestígios da crença em uma realidade intermediária entre o absoluto divino e o caos humano. Essa região — nem totalmente celeste, nem plenamente terrestre — é habitada por inteligências que não pertencem ao plano sensível, mas que se manifestam nele de maneira sutil, ambígua e poderosa. A essas entidades, a tradição grega chamou de daimones, mas elas aparecem sob múltiplos nomes em diversas civilizações: djinn na tradição arábica, shedim no judaísmo, fravashi na espiritualidade persa, lilu e lilitu na Mesopotâmia, e mesmo genius no contexto latino. Cada um desses nomes carrega uma nuance distinta, mas todos apontam para uma estrutura ontológica comum: a existência de seres intermediários que agem como vetores de influência espiritual, moral, física e existencial sobre os homens e suas sociedades.
O daimon não é um espírito bonachão nem um demônio no sentido cristão posterior. Ele é, antes de tudo, uma presença — uma realidade dotada de intencionalidade, que se manifesta nos entrelugares: entre o nascimento e a morte, entre o sono e a vigília, entre o visível e o invisível. Na concepção arcaica, o mundo não é composto apenas de matéria e vontade divina, mas de potências mediadoras que regulam a ordem invisível. Os gregos compreendiam isso com clareza: o daimon de Sócrates, por exemplo, não lhe ditava ordens, mas o desviava de certas ações, como uma intuição espiritual profunda que advém de fora e se inscreve na consciência.
Na tradição mesopotâmica, esses seres eram corporificados de modo mais denso. Entidades como Pazuzu, Lamashtu e outros seres do panteão acádio-babilônico não eram arquétipos abstratos: eram inteligências reais, com nomes próprios, gestos específicos, funções delimitadas e presença reconhecível em ritos e sinais. O daimon mesopotâmico podia trazer doença, peste, loucura, mas também proteção, fertilidade e paz. Ele era duplo por natureza: podia habitar o mesmo limiar entre o bem e o mal, dependendo da disposição do homem diante dele.
No judaísmo antigo, os shedim ocupam uma posição ambígua: são temidos, mas reconhecidos. São descritos como seres alados, invisíveis, que habitam ruínas e vazios, e que, ao serem perturbados, reagem com fúria. A tradição mística não os nega, mas os insere num horizonte mais vasto de inteligências espirituais. O Zohar e o Talmude contêm registros que descrevem sua atuação, bem como preceitos para evitá-los ou aplacá-los.
Já no zoroastrismo, os fravashi são entendidos como aspectos pré-existentes da alma, guardiões da ordem cósmica e moral. Embora tenham uma função mais elevada e positiva, ainda assim revelam a mesma estrutura intermediária: são realidades que não pertencem ao mundo sensível, mas o influenciam profundamente. São forças que protegem, guiam, e cuja presença deve ser reconhecida ritualmente.
Esses exemplos mostram que, em múltiplas culturas, o daimon não é invenção psicológica nem representação de estados internos: é um ente real, com vontade, forma e eficácia. O homem antigo vivia em um mundo povoado — um cosmos saturado de inteligências ocultas que exigiam cuidado, rito, nome e gesto. A negação moderna dessa realidade não a extinguiu, mas a deslocou: os daimons ainda estão presentes, embora sob outras formas — muitas vezes mascaradas, esvaziadas ou ridicularizadas.
A ontologia do daimon, portanto, é uma das mais persistentes estruturas do imaginário humano. Sua presença não é periférica, mas central: onde há fronteira entre mundos, ali está o daimon. Onde há tensão, ali ele se manifesta. Sua ambiguidade não é defeito, mas essência: ele não serve para confortar, mas para lembrar que o homem vive sob múltiplas influências, e que a neutralidade espiritual é uma ilusão. O daimon, quando reconhecido, pode proteger. Quando ignorado, se vinga.
Artigo 2 — Pazuzu como arquétipo liminar: origem, iconografia e função ritual.
Entre os muitos daimons registrados no imaginário religioso da Mesopotâmia, Pazuzu se destaca como uma figura singular: é ao mesmo tempo símbolo do mal e instrumento contra o mal. Essa duplicidade é essencial para compreender sua natureza e sua função nos ritos do mundo babilônico e assírio. Diferentemente das divindades com atributos fixos e cultos organizados, Pazuzu opera no campo do risco, do limiar e da necessidade ritual. Ele não é adorado — ele é mobilizado, invocado com cautela, e seu poder é acessado para conter forças mais ameaçadoras. Sua figura exprime o que Mircea Eliade chamou de “ambivalência do sagrado”, onde o poder que protege é o mesmo que, se tratado incorretamente, destrói.
Historicamente, Pazuzu emerge nos registros do primeiro milênio antes de Cristo, especialmente entre os séculos IX e VII a.C., em textos cuneiformes, amuletos, estatuetas e selos encontrados em sítios da Assíria e da Babilônia. É descrito como filho de Hanbi, o rei dos demônios, e seu domínio se dá sobre os ventos — em especial o vento do oeste, associado a doenças e pestes. Sua iconografia é coerente com essa natureza: corpo humanoide, rosto grotesco entre cão e leão, olhos esbugalhados, boca aberta com dentes visíveis, chifres, asas de morcego, cauda de escorpião, e um pênis-serpente. A imagem é perturbadora, mas sua função é protetora. O paradoxo é deliberado: somente aquilo que é temido pode conter o terror.
Seu papel ritual é evidente nos objetos arqueológicos: amuletos de bronze ou pedra, pequenos e de fácil transporte, usados principalmente por mulheres grávidas ou mães de recém-nascidos. Eles eram colocados no pescoço, sobre berços, embutidos em paredes ou enterrados sob a casa. A intenção era clara: proteger contra Lamashtu, o espírito feminino devorador de crianças, associada à morte infantil, esterilidade e abortos. O enfrentamento entre Pazuzu e Lamashtu não era mitológico apenas, mas prático, encenado ritualmente. Há representações em que Pazuzu aparece sobrepujando ou espantando Lamashtu, e isso se traduz em fórmulas mágicas escritas em acádio que invocam sua presença como barreira contra o mal.
Essas fórmulas seguiam um padrão preciso: nomeação, genealogia, domínio e súplica. Nomear Pazuzu era trazê-lo à presença. Invocá-lo como filho de Hanbi localizava-o no panteão demoníaco. Reconhecê-lo como senhor dos ventos determinava seu raio de ação. A súplica, por fim, pedia que ele impedisse a aproximação de Lamashtu. Tudo isso era pronunciado em tom ritual, com gestos fixos: levantar o amuleto, girá-lo sobre a cabeça da mulher, mergulhá-lo em água consagrada, e enterrar ou incinerar um objeto representando o mal. O gesto, a palavra e o objeto formavam um ato coeso de mediação espiritual, onde Pazuzu era o instrumento necessário da resistência.
É crucial notar que Pazuzu não era tido como “bom” — sua energia era reconhecida como perigosa. Mas era justamente por isso que podia proteger. Ele operava nos interstícios da realidade, na zona onde o humano se torna indefeso, onde os deuses estão distantes e o caos ameaça. O nascimento, o sono, a febre, a entrada da casa — todos eram momentos ou lugares de vulnerabilidade espiritual. Nesses pontos, o rito de Pazuzu se fazia necessário. Ele era, por excelência, um espírito liminar: surgia onde o mundo vacilava.
Sua eficácia não era simbólica apenas: era ontológica. O nome era pronunciado porque o nome trazia a presença. O amuleto não era um lembrete, mas um suporte da ação mágica real. Queimar, enterrar, colocar, pronunciar — tudo isso não servia para lembrar da fé, mas para agir sobre o invisível. Essa lógica do rito está ausente da modernidade, mas era comum em todas as civilizações tradicionais. Pazuzu, assim, não é uma superstição: é parte de um sistema de relação com o mundo espiritual, de uma teologia não sistematizada, mas prática e funcional.
Por isso mesmo, Pazuzu não desapareceu completamente. Ele foi demonizado no cristianismo tardio, transformado em símbolo de possessão pelo cinema moderno (como em O Exorcista), e reinterpretado como monstro absoluto. Essa transformação não é apenas semântica, mas civilizacional: quando uma cultura perde o sentido da ambiguidade espiritual, ela reduz tudo a bem ou mal, e assim torna impossível qualquer mediação com o invisível. Pazuzu, que era proteção no limiar, se torna apenas terror. A modernidade quebra o espelho e perde a função do guardião.
Artigo 3 — O som como portador do espírito: fonética mágica, nome e mito de Pazuzu.
Na tradição mesopotâmica, o nome não é um rótulo. O nome é presença. Invocar é tornar presente. Nomear uma entidade não significa apenas reconhecê-la: é permitir sua atuação. Essa concepção atravessa os textos sumérios e acádicos, nos quais o som é veículo espiritual, e a fonética carrega eficácia ritual. Pazuzu, nesse horizonte, não é apenas uma imagem grotesca ou uma figura demoníaca: é um nome carregado de potência vibratória, um som que, uma vez proferido, chama o vento — e com ele, afasta ou atrai.
As inscrições cuneiformes que registram Pazuzu seguem um padrão constante: “PA.ZU.ZU, filho de Hanbu, senhor dos ventos”. O nome é sempre declinado com a genealogia e o domínio. Isso não é acessório. Nomear o pai da entidade (Hanbu, rei dos espíritos malignos) estabelece a origem e legitima a potência. Nomear o domínio (o vento, especialmente o vento oeste) define seu raio de ação. Em contextos rituais, essas fórmulas não são recitadas como histórias, mas entoações com ritmo fixo e cadência repetitiva. São proferidas em tom lento, grave, marcado — muitas vezes em três repetições, como é comum em ritos apotropaicos.
Um dos textos mágicos mais bem preservados, hoje no Museu Britânico, contém o seguinte trecho:
> “PA.ZU.ZU, filho de Hanbi, que habita o sopro da terra seca,
Que ruge sobre as planícies, que estremece as portas,
Que enfrenta a filha das trevas — Lamashtu — com o olhar flamejante…”
Esse trecho compõe um fragmento de um encantamento onde o oficiante pede proteção para uma parturiente. A presença de Pazuzu é convocada por meio do som. A repetição de sílabas fortes e vogais fechadas (ZU–ZU, PA–ZU–ZU) tem efeito hipnótico. A cadência é calculada. Cada repetição reforça o limiar entre o mundo visível e o invisível, abrindo espaço para a manifestação.
Mas não se trata apenas de técnica. O nome Pazuzu está envolto em mitos populares que circularam oralmente e, em parte, se preservaram em tablillas de argila com narrativas fragmentadas. Uma dessas histórias relata o combate entre Pazuzu e Lamashtu em um deserto onde os ventos cruzam sem direção. Conta-se que Lamashtu, sedenta de sangue, ronda os campos ao sul para devorar o feto de uma mulher real. Pazuzu, ao saber da incursão, levanta-se com o vento quente e desce do céu em espiral. Os camponeses, temerosos, se escondem e enterram oferendas de cevada cozida. Pazuzu aparece no horizonte como uma sombra de chifres e asas abertas. Com um urro, estremece os portais. Lamashtu, ouvindo o som, foge. O som é o sinal. É a marca de sua presença.
Esse mito é conhecido por meio de alusões em ritos domésticos. Ele não é uma epopeia escrita com começo e fim — é um pano de fundo espiritual que justifica o gesto: quando se pronuncia o nome de Pazuzu, evoca-se essa cena. Ele se torna figura de limiar, guardião da fronteira entre o parto e a morte, entre a casa e o deserto, entre o sono e o ataque invisível.
Relatos paralelos são encontrados em tábuas menores, usadas para instruir jovens escribas, nas quais se faz menção a “um talismã de bronze pendurado sobre a cabeça da parturiente, com o nome gravado do filho de Hanbi, que assovia entre os caibros e vigia a noite”. O som do vento que passa pela fenda do telhado, diz o texto, é o sinal de que Pazuzu está atento. Quando esse som cessa, é preciso renovar o rito.
A função fonética é, portanto, dupla: por um lado, o nome pronunciado chama; por outro, o som do vento confirma. A entidade opera pelo ar — ela ouve, responde e se move com as vibrações. Os textos que descrevem o rito de consagração do amuleto instruem que se diga o nome de Pazuzu três vezes enquanto se mergulha o objeto em água e se queima o pão da oferenda. O nome é a ponte. Ele não é símbolo do poder: ele é o poder em forma acústica.
O nome, nesse sentido, não pode ser reduzido a etiqueta. Sua forma fonética está estruturada como uma invocação arcaica: PA–ZU–ZU, com sílabas plosivas e sonoridade grave, semelhante aos nomes das entidades sumerianas associadas à guerra, morte ou vento (NINURTA, ENLIL, ZABABA). O som não é escolhido ao acaso: ele deve impactar, ressoar, reverberar. O nome é um golpe de ar contra o silêncio hostil do invisível.
Curiosamente, essa mesma estrutura fonética sobrevive na modernidade deformada: o nome Labubu, embora desvinculado de qualquer sentido espiritual, conserva a cadência, repetição e sonoridade ritualística que fazem dele um nome “cativante”. Isso não é coincidência: é o que resta quando se extrai a alma e se mantém a carcaça vibratória. A forma sonora do daimon persiste mesmo após o esquecimento do espírito que nela habitava.
Pazuzu, portanto, é não apenas imagem ou mito: é som eficaz. O seu nome é gesto. É movimento. É vento. Nomeá-lo é fazer vibrar no mundo o limite entre ordem e desordem. É lembrar que o sagrado começa pelo ouvido — e que o invisível responde à voz de quem ainda sabe nomear.
Artigo 4 — Labubu: origem, estética e repetição de um daimon infantilizado.
No universo saturado da cultura de massas, onde toda forma é absorvida, metabolizada e devolvida como produto, a figura de Labubu — mais conhecida como Lububu, na pronúncia corrente — representa uma instância particularmente sintomática: ele é o resíduo simbólico do daimon, transfigurado em mascote, esvaziado de conteúdo espiritual e embalado em linguagem afetiva e estética. Criado por Kasing Lung e produzido pela Pop Mart a partir de 2015, Labubu é, à primeira vista, apenas um boneco de vinil: pequeno, de olhos grandes, corpo disforme, aparência híbrida entre animal e monstro infantil. Mas sob essa aparência inocente, esconde-se a permanência deformada de uma forma arquetípica muito mais profunda — a do espírito ambíguo, o guardião liminar, o daimon protetor e caprichoso das culturas antigas.
A primeira marca significativa está no nome. Labubu não possui etimologia formal. Não remete a nenhum termo com carga semântica reconhecível, o que o aproxima da linguagem pré-verbal ou infantil. Contudo, sua estrutura fonética — repetitiva, grave, com alternância labial e vocal próxima à de “Pazuzu” — obedece a um ritmo arquetípico: três sílabas, com duplicação final, formando uma cadência hipnótica. O efeito sonoro do nome não é intelectual, mas corpóreo e tribal: soa como cantiga, chamado, batida. O nome já seduz antes de ser compreendido, pois atua diretamente sobre o afeto — assim como atuavam os nomes dos daimons nos ritos antigos, onde a pronúncia era mais importante que o significado.
Sua morfologia também carrega traços da tradição dos espíritos familiares e dos gênios domésticos: o corpo pequeno, desproporcional, com orelhas pontiagudas, sorriso ambíguo e olhos salientes remete à iconografia de duendes, gnomos e figuras apotropaicas do folclore europeu e asiático. A aparência "ugly-cute" (feio-fofo) não é apenas uma tendência estética: é o modo moderno de expressar a ambiguidade simbólica que antes era tratada como potência espiritual. No lugar do terror respeitoso de um Pazuzu, tem-se o desconforto lúdico de uma figura que não é totalmente inofensiva, mas tampouco perigosa — uma presença dissimulada que habita o limiar entre o estranho e o adorável.
Essa duplicidade formal é amplificada por sua função performativa nas redes sociais. Labubu não é apresentado como um personagem passivo. Ele é inserido em narrativas visuais, vídeos de dança, slogans virais como “Join the Labubu dance”, e coreografias simples que repetem movimentos com os braços, giros e expressões faciais exageradas. Esse comportamento repete, ainda que inconscientemente, a estrutura ritual dos cultos antigos: uma frase de invocação (slogan), um gesto ritmado (dança), uma figura central (imagem ou boneco). Mas o conteúdo foi invertido: não se trata de um rito de proteção ou passagem, mas de integração ao consumo afetivo. O espírito não é temido — é desejado. A presença não se dá por invocação espiritual — mas por compartilhamento digital.
Nesse sentido, Labubu não é apenas um produto. É o simulacro de um daimon, domesticado, neutralizado, apropriado pela lógica do mercado de identidades. Ele funciona como um símbolo esvaziado: conserva a forma arquetípica (nome ritualístico, aparência híbrida, repetição), mas esvazia completamente sua função espiritual. O daimon que outrora protegia a casa, inspirava decisões, ou assombrava os limiares, agora dança no TikTok e aparece como chaveiro. A presença foi substituída pela performance. O temor foi trocado pelo meme.
Contudo, essa operação não elimina o arquétipo — apenas o recalca. O sucesso viral de Labubu, sua capacidade de criar comunidade e identificação emocional, revela que o desejo pelo daimon permanece. A cultura de massas, mesmo cega ao invisível, continua fabricando formas que o evocam, ainda que sem saber o que fazem. E é precisamente aí que reside o valor simbólico de Labubu: ele é a casca rítmica do antigo espírito, circulando no mundo pós-sagrado como reflexo de um rito que já não compreendemos.
Labubu é, portanto, mais do que um boneco. Ele é o eco deformado do sagrado, a paródia do invisível. Ao ser repetido, dançado, compartilhado, ele revela que a forma do daimon não desapareceu — apenas foi absorvida pela estética da infância e pela lógica do consumo. E assim como os antigos sabiam que invocar o nome de Pazuzu sem preparo era perigoso, talvez a repetição inconsciente de nomes como Labubu — com sua ressonância fonética ancestral — revele mais do que aparenta: um mundo que continua chamando os espíritos, mesmo sem saber que o faz.
Artigo 5 — Da ritualidade à viralidade: dança, frase e engajamento digital como rito profano.
A modernidade, ao se afastar das estruturas metafísicas tradicionais, não suprimiu o rito — apenas o deslocou de seu eixo vertical (o sagrado) para um plano horizontal (o cultural-popular). Nesse deslocamento, a função ritual foi mantida em sua forma, mas esvaziada de conteúdo espiritual. O caso de Labubu é uma evidência exemplar desse fenômeno: sua entrada no imaginário coletivo se deu não apenas por sua imagem ou nome, mas por meio de um conjunto de práticas que repetem, com precisão formal, os elementos essenciais do rito. Frase de invocação, gesto repetido, comunidade de iniciados e difusão por meio de uma "liturgia midiática" — tudo está presente. Só falta o espírito.
A dinâmica que envolve a apresentação de Labubu segue um padrão estruturado. Há uma frase convocatória — “Join the Labubu dance!” — que funciona como fórmula mágica pop. Não se trata apenas de slogan comercial: é uma frase com poder performativo, capaz de engajar, convocar, mover. Ela antecede a ação e a legitima, assim como nos ritos antigos as fórmulas mágicas antecediam o gesto e o autorizavam. A frase, ao ser repetida, deixa de ser apenas informativa: torna-se invocativa, isto é, cria um espaço onde algo acontece. A repetição em vídeos, comentários e hashtags contribui para a sacralização informal dessa linguagem. Não há deuses, mas há algoritmo.
O gesto que segue essa convocação é igualmente significativo: uma dança simples, repetitiva, com movimentos infantis e simétricos, que pode ser imitada facilmente. Tal gesto cumpre a mesma função dos gestos litúrgicos antigos: ele fixa o corpo numa cadência que reforça a atenção, harmoniza o participante com uma forma exterior e o insere numa coletividade. O rito não é solitário. Em vídeos e desafios no TikTok, o gesto é repetido em grupo, remixado, mas sempre reconhecível. Ele funciona como marca de pertencimento. Quem dança com Labubu está “dentro”. Quem não reconhece a dança está “fora”. Assim como nos ritos tribais, a performance corporal não é livre: ela é codificada e transmissível.
Mas o ponto central está na estrutura da viralidade como substituição da transcendência. Enquanto o rito tradicional visava uma abertura ao invisível — a aproximação com forças espirituais que excedem o indivíduo —, o rito profano de Labubu visa uma abertura ao coletivo visível. A alma não se eleva: ela se dissolve no engajamento. A dança não invoca o espírito: invoca os pares. A frase não aciona potências invisíveis: aciona o algoritmo. Tudo se dá na imanência, mas com uma estrutura formal que imita a transcendência.
A tecnologia reforça esse processo. As plataformas digitais operam como templos descentralizados onde o rito se distribui e se repete com velocidade. O vídeo viral é o novo altar, a coreografia é o novo salmo, o like é o novo incenso. E nesse espaço, Labubu circula como figura de culto. Sua imagem está no centro da tela; seus movimentos, na periferia do gesto humano; seu nome, no topo das buscas. Não há fé, mas há fervor. Não há dogma, mas há padrão. A liturgia da viralidade substitui a liturgia do sagrado sem quebrar sua estrutura, apenas invertendo sua direção.
O rito de Labubu, portanto, não é brincadeira inocente. É a repetição inconsciente de um modelo antropológico antigo — o da relação entre o símbolo, o corpo e a comunidade — agora sem referência ao transcendente. O que antes era invocação de um daimon protetor, tornou-se uma coreografia para câmeras. O gesto ainda existe. O som ainda ressoa. O nome ainda marca. Mas o espírito, esse se foi. E, paradoxalmente, é a ausência do espírito que torna a forma tão forte: como um corpo vazio que ainda pulsa.
O engajamento digital, assim, revela uma dimensão profana do rito: ele mantém a mecânica, mas não a direção. Onde o rito antigo servia para proteger, curar, integrar com o invisível, o rito viral serve para pertencer, distrair, e integrar com o fluxo. E se Pazuzu era o espírito que se fazia presente com o som e o gesto, Labubu é o simulacro que só existe porque é repetido — um fantasma que sobrevive de cliques.
Artigo 6 — A inversão simbólica: do terror apotropaico à sedução do vazio.
O processo pelo qual a figura do daimon se converte em mascote, e o rito em performance digital, culmina numa inversão simbólica radical. Essa inversão não é apenas um deslocamento estético: é uma mutação antropológica. O que antes era invocado com temor, respeitado pela sua potência ambígua e manipulado com cuidado ritual, hoje é reproduzido compulsivamente em redes de consumo afetivo. A antiga imagem do terror apotropaico — aquele que espanta o mal por ser mais temido que ele — foi substituída pela figura do encanto inofensivo, da estética “fofa” que acolhe, suaviza e entretém. Pazuzu e Labubu representam, nesse sentido, polos opostos de uma mesma estrutura: o primeiro, como potência liminar do sagrado; o segundo, como caricatura esvaziada dessa potência.
A força de Pazuzu residia justamente em sua ambiguidade essencial. Ele não era bom, mas era necessário. Não era belo, mas era eficaz. Sua presença nas casas, em forma de amuleto, era ao mesmo tempo proteção e ameaça: proteção contra demônios mais destrutivos, ameaça caso fosse desrespeitado ou invocado sem necessidade. Sua forma monstruosa — olhos arregalados, dentes à mostra, corpo deformado — não era gratuita: era a expressão visível de um princípio mágico antigo, segundo o qual o mal é repelido por aquilo que é mais terrível que ele. Por isso, a imagem de Pazuzu era pendurada nas portas, não como adorno, mas como barreira espiritual. Ele é o limiar feito carne. Sua função é conter.
A lógica apotropaica, nesse contexto, dependia de um princípio que a modernidade abandonou: o reconhecimento de que o mundo espiritual é real, perigoso e estruturado. Essa estrutura exigia gestos, palavras, intenções e hierarquias. Era preciso saber quando, como e por que invocar uma entidade. A negligência podia ser fatal. O rito não era decoração: era mediação. E a imagem, quando usada, era parte de uma rede simbólica operativa. Pazuzu não era ícone: era vetor.
Labubu, ao contrário, opera na lógica da sedução simbólica. Sua forma é atraente, não repelente. Sua função é engajar, não proteger. Ele não guarda portas — ele as abre. Sua imagem é reproduzida em chaveiros, mochilas, avatares, vídeos e danças. Ele não exige respeito: exige curtidas. Sua monstruosidade é suavizada pela estética da infância. Ele é grotesco, mas inofensivo. A deformidade é estilizada, estetizada, tornada pop. E nisso reside a inversão: o símbolo que antes espantava o caos, agora o convida disfarçado de meme.
Não se trata apenas de uma mudança de linguagem. Trata-se de uma subversão da função simbólica. O antigo amuleto protegia porque media entre o humano e o invisível. O novo mascote seduz porque dissolve a diferença entre o espírito e o produto. O daimon antigo exigia rito, silêncio, temor. O novo exige exposição, repetição e afeto. Onde antes havia limiar, agora há transparência. Onde havia sombra, há tela. O que era espírito se torna algoritmo. E o rito, ao perder sua verticalidade, torna-se apenas circulação de imagem.
O mais grave, porém, é que a forma ritual permanece. O nome, o gesto, a repetição, o engajamento coletivo — tudo isso continua existindo, mas sem consciência do que está sendo imitado. É como repetir um encantamento sem saber seu significado, ou carregar um selo sem conhecer sua origem. A casca do sagrado circula, vazia, mas ainda pulsante. E essa pulsação — esse resto de energia simbólica — é o que torna figuras como Labubu tão virais. Elas ainda operam, mesmo que em modo zumbi. São corpos simbólicos possuídos pelo vazio.
A inversão final, portanto, não é estética. É ontológica. A figura que antes espantava o mal pela força do terror espiritual, agora atrai pelo conforto emocional. O símbolo protetor foi substituído pelo ícone adorável. E o homem, que antes temia o invisível e o enfrentava com rito, hoje o ignora — mas o reproduz, sem saber, em cada gesto, em cada dança, em cada clique.
O terror deu lugar ao mimo. O limiar virou passatempo.
Mas o daimon — esse não desapareceu. Apenas mudou de rosto.
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