terça-feira, 15 de julho de 2025

A Natureza como Sujeito: o Espírito Adormecido no Coração do Mundo segundo Experiencia e historia. Escritos de juventud de F. W. J. Schelling (Trotta, 1990).

A filosofia de Schelling sobre o mito é um ponto de inflexão dentro da história do pensamento ocidental, porque resgata algo que havia sido relegado ao segundo plano desde o advento da razão moderna: o sentido originário do simbólico. Quando Schelling escreve sobre a história mítica e a filosofia mítica, ele não está apenas fazendo uma arqueologia do passado humano, mas tentando reencontrar um modo de pensamento em que o saber e o ser não estão ainda separados. A história mítica não é, para ele, um relato infantil ou pré-científico do mundo, como muitos dos iluministas entendiam; é uma forma de expressão própria de uma consciência ainda não cindida, ainda mergulhada no absoluto, onde os limites entre realidade e representação ainda não foram traçados com a frieza do intelecto analítico.

O mito, nesse contexto, não é invenção arbitrária, mas revelação simbólica. O jovem Schelling vê no mito um momento necessário da consciência, algo que precede a cisão entre sujeito e objeto. Para ele, a humanidade não começou filosofando como faz um professor de lógica. O primeiro ato do espírito humano foi simbólico, não discursivo. Não se trata de uma recusa da razão, mas da constatação de que a razão, quando nasce, nasce de algo anterior a ela – algo que a contém sem ser por ela contido. O mito é esse “anterior” vivo. É uma forma de pensar sem ainda separar rigorosamente o pensante do pensado. Quando os antigos criavam seus deuses, não estavam apenas explicando a natureza: estavam expressando algo interior, real, essencial.

Essa visão de Schelling rompe com o preconceito moderno de que o progresso do pensamento vai do obscuro ao claro, da superstição ao saber positivo. Para ele, o mito é mais claro em outro sentido: ele vê mais longe, toca mais fundo. Onde a razão separa, o mito une. Onde o conceito delimita, o símbolo transborda. Por isso, a história mítica – os relatos simbólicos dos povos antigos – não pode ser descartada como simples poesia primitiva. Ela é testemunho de uma verdade que não se esgota no conceito. E mais: ela é um caminho de retorno. Porque, ao reencontrar o mito, o pensamento moderno pode reencontrar a si mesmo, sua origem esquecida. O mito, então, deixa de ser passado e se torna presente filosófico.

A filosofia mítica, que Schelling opõe à filosofia puramente conceitual, não é uma regressão ao pré-racional. É um esforço para pensar com o mito, e não apenas sobre o mito. É um movimento em que o filósofo tenta escutar de novo aquela linguagem anterior à separação entre lógica e vida. Por isso, Schelling não elimina a razão, mas a obriga a abrir espaço para algo que ela sozinha não pode produzir: o sentido vivo do real. Esse sentido não se deduz, se revela.

No fundo, o que Schelling propõe é que a verdade, antes de ser demonstrável, é expressável – e o mito é essa primeira expressão da verdade. Ele é o rosto do absoluto antes de ser espelhado nas categorias. É por isso que a história mítica e a filosofia mítica, longe de serem meros estágios infantis da consciência, são para Schelling revelações profundas do ser – tão profundas que a razão moderna, mesmo quando triunfante, acaba sendo um eco pálido desse grito originário do espírito. Schelling não quer nos fazer acreditar nos deuses antigos, mas quer que aprendamos de novo a escutar o que eles diziam. Porque o espírito não nasce como sujeito racional; ele emerge como força criadora, como imaginação simbólica, como mito. E nesse mito, ele começa a narrar a si mesmo.

A pergunta pela possibilidade da filosofia não é, para Schelling, um exercício escolar nem uma especulação abstrata sobre o método; é um gesto radical que corta o chão sob os pés de todo pensamento. Ele escreve Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral com a consciência clara de que a filosofia moderna vive um impasse: de um lado, o dogmatismo que toma o ser como dado absoluto e fecha os olhos para a liberdade; de outro, o criticismo kantiano que, ao separar o fenômeno do númeno, aprisiona a razão dentro dos limites da própria consciência. Schelling quer sair disso — e não por uma via conciliatória, mas por uma via mais alta, que reformule o próprio modo de começar a filosofar.

A questão não é simplesmente se é possível saber algo com certeza, mas se é possível pensar de modo a que o saber e o ser estejam juntos desde o início. Schelling percebe que, para que a filosofia seja possível como ciência, ela precisa fundar-se num princípio que não seja uma hipótese arbitrária nem uma estrutura imposta de fora, mas algo absoluto — absoluto no sentido de não depender de outro, de não estar condicionado. E esse princípio não pode ser buscado nem nos objetos nem nos atos singulares da consciência, mas tem de ser a própria identidade entre sujeito e objeto, pensamento e ser.

Isso implica que a filosofia, se quer ter começo legítimo, precisa nascer não da análise, mas da intuição. Não no sentido de uma percepção sensível, mas de uma intuição intelectual do absoluto. Esse ponto é decisivo: Schelling recusa que a razão possa produzir o fundamento da filosofia a partir de divisões. Só é possível filosofar de verdade quando se parte de uma unidade originária. A filosofia, então, não começa com um silogismo, mas com uma apreensão direta do todo — apreensão que será depois desenvolvida e articulada sistematicamente.

Essa ideia de unidade absoluta é também a crítica de Schelling a Kant e Fichte. O kantismo ainda mantém uma cisão entre coisa em si e fenômeno, entre liberdade e natureza, entre razão teórica e prática. Fichte tenta resolver isso, mas seu “eu absoluto” ainda é unilateral, ainda é pura subjetividade. Schelling quer mais: quer que a filosofia reconheça que não é o sujeito quem produz o mundo, mas que há uma unidade originária anterior à separação entre sujeito e mundo. E é a partir dessa unidade que se pode construir um sistema.

A forma da filosofia, então, deve ser tal que cada parte dela remeta ao todo, e que o todo esteja presente em cada uma de suas partes. Essa é a ideia de sistema orgânico que Schelling começa a elaborar aqui. Não um sistema como encadeamento lógico de proposições, mas como estrutura viva, em que a verdade não é deduzida, mas expressa. A filosofia, para ele, deve ser como uma obra de arte: algo em que o absoluto se torne forma concreta, interna, necessária.

Filosofar, então, é mais que argumentar: é dar forma à intuição do absoluto. E essa forma não pode ser exterior nem imposta; tem de brotar da própria coisa pensada. A possibilidade da filosofia está em sua capacidade de tornar visível essa unidade profunda que sustenta tudo — unidade que não é postulado nem invenção, mas evidência silenciosa que o pensamento reencontra quando escava fundo o suficiente. Nesse sentido, Schelling já não é mais um discípulo de Kant, nem apenas um rival de Fichte: ele é o primeiro a dar ao idealismo alemão sua direção metafísica plena, onde o saber não é mais um ato subjetivo, mas uma revelação do real como totalidade viva.

No terceiro momento de sua meditação filosófica, Schelling se debruça sobre o panorama contemporâneo da filosofia com olhos críticos e espírito fundante. O texto em que avalia a “literatura filosófica mais recente” é, antes de tudo, um manifesto de ruptura. É ali que ele expõe, com lucidez precoce, o esgotamento das tentativas de manter a filosofia dentro dos limites traçados por Kant e Fichte. Ele não os despreza, mas os ultrapassa. Kant abriu um caminho, Fichte o percorreu até onde pôde, mas Schelling percebe que, para não morrer sufocado por um subjetivismo cada vez mais fechado em si, o pensamento precisa sair da órbita da consciência e reencontrar o real — não como coisa em si incognoscível, nem como projeção do sujeito, mas como ser em si mesmo, que se revela e se pensa.

A crítica a Kant é dupla: por um lado, Kant divide a realidade em dois mundos — o fenomenal e o noumenal — e nega que a razão possa tocar o segundo. Mas essa divisão cria uma ferida no centro do pensamento, uma espécie de amputação ontológica. Schelling rejeita essa clivagem porque ela faz da filosofia um saber mutilado, incapaz de pensar o fundamento. Por outro lado, ao limitar a razão à experiência possível, Kant acaba impedindo que a razão atinja aquilo que mais importa: o absoluto, o ser enquanto ser. Para Schelling, isso é inaceitável. A razão ou é capaz de tocar o ser, ou não é nada.

Em relação a Fichte, a crítica é mais delicada, mas não menos firme. O “eu absoluto” de Fichte pretende ser o fundamento de tudo. Mas Schelling vê aqui um erro sutil e fatal: Fichte ainda parte da consciência, do eu, da subjetividade. Tudo o que existe é derivado, segundo ele, do auto-posição do eu. O mundo, a natureza, os outros — tudo são construções do eu. Schelling denuncia esse modelo como uma forma refinada de idealismo solipsista. Para ele, isso não é filosofia do absoluto, mas absolutização da subjetividade. E a subjetividade, mesmo em seu grau mais puro, continua sendo uma parte, não o todo.

Schelling propõe uma inversão: em vez de partir do eu, é preciso partir do ser. O fundamento do mundo não está no sujeito, mas numa realidade anterior à distinção entre sujeito e objeto. Essa realidade é o absoluto — não como algo pensado, mas como aquilo que permite que haja pensamento e realidade ao mesmo tempo. A filosofia, então, deve deixar de ser psicologia transcendental para tornar-se ontologia verdadeira. Precisa sair do laboratório da consciência e mergulhar no ser que se manifesta tanto na natureza quanto no espírito. Daí sua busca por uma filosofia que não apenas descreva os atos do eu, mas que explique como há mundo, como há ordem, como há unidade.

O que Schelling começa a elaborar nesse texto é a ideia de uma filosofia que não seja antropocêntrica, mas cosmocêntrica. A razão não é mais medida de todas as coisas, mas uma forma de expressão do absoluto. A natureza deixa de ser mero objeto e se torna revelação — um livro que se lê como se lê um texto sagrado. O espírito deixa de ser o centro do sistema e se torna um momento dentro da totalidade viva. Tudo aponta para uma visão orgânica da realidade, em que o saber é reconexão com um fundamento perdido.

Nesse panorama, o jovem Schelling emerge como o primeiro a perceber que o projeto do idealismo alemão não poderia se realizar enquanto permanecesse preso ao formalismo kantiano ou ao subjetivismo fichteano. Era preciso fundar um novo começo — não no eu, mas no ser. Um sistema onde o absoluto não é produzido, mas intuído; onde o mundo não é representação, mas expressão; onde a filosofia deixa de ser construção e passa a ser escuta. Escuta do que o ser tem a dizer antes que o pensamento o interrompa com seus conceitos. Esse é o passo decisivo que Schelling prepara aqui — e que depois desenvolverá em sua filosofia da natureza, em sua doutrina da identidade e em sua metafísica da liberdade. Mas tudo começa aqui, nessa ruptura silenciosa com seus mestres.

Para Schelling, a experiência não é um dado bruto nem uma coleção desordenada de sensações, como queria o empirismo. Também não é, como para Kant, algo organizado apenas a partir das estruturas da consciência. A experiência, para ele, é revelação de sentido — e esse sentido está já no real, antes mesmo que o sujeito pense. Quando Schelling se propõe a elaborar uma filosofia da experiência, ele está recusando tanto a abstração vazia do racionalismo quanto a passividade cega do empirismo. A experiência, tal como ele a entende, é o lugar onde o espírito e o mundo se encontram num mesmo gesto de manifestação.

Isso muda tudo. Porque agora não se trata de perguntar “o que posso saber?”, mas “como a realidade se dá a conhecer a si mesma através de mim?”. A experiência deixa de ser um ato isolado do sujeito e passa a ser um movimento do próprio ser, que se exprime, que se dá, que se mostra. E nesse mostrar-se do real, está a base da filosofia. Não é mais o sujeito que constrói o objeto; é o ser que se revela ao espírito — e o espírito, ao conhecer, reencontra algo que já está nele, porque ambos participam do mesmo fundo absoluto.

A história, nesse contexto, ganha uma densidade radical. Ela não é mera sucessão de eventos, nem encadeamento causal. É, antes, a manifestação temporal da liberdade. Cada momento histórico é um passo do espírito em direção à consciência de si. Schelling rompe aqui com a visão mecânica e cronológica da história e a interpreta como drama metafísico. O tempo não é um palco neutro; é o próprio desdobramento do absoluto, que se move por dentro dos homens, das nações, das culturas. A história é, por isso, expressão da razão — mas de uma razão viva, orgânica, que pulsa e se contradiz, que erra e retorna, que cria e destrói para fazer emergir o sentido.

É por isso que Schelling vê na história não apenas fatos, mas símbolos. Cada época traz consigo uma intuição específica do absoluto. A Antiguidade, a Idade Média, a Modernidade — não são só estágios cronológicos, mas formas distintas de revelação. Cada uma delas diz algo essencial sobre o real. E o filósofo é aquele que sabe escutar esse dizer, não apenas contar os fatos. A tarefa da filosofia da história, portanto, não é acumular dados, mas interpretar os sentidos que se manifestam no tempo. A história não é um acúmulo de ruínas, mas uma arquitetura viva, construída por um princípio interno que é a liberdade mesma do espírito.

E aqui aparece uma das intuições mais poderosas de Schelling: a de que a liberdade não é uma capacidade do sujeito, mas uma estrutura do real. O mundo não é necessário por fora, mas livre por dentro. A natureza, o espírito, a história — tudo obedece a uma lógica que não é a do cálculo, mas a da criação. A liberdade é o princípio pelo qual o absoluto se divide, se contradiz, se reconcilia. E é por isso que a história humana é trágica: porque ela é feita de escolhas, de erros, de rupturas, mas também de superações e reencontros. O tempo é o cenário onde a liberdade se testa e se revela.

No fim, o que Schelling propõe é que a filosofia da experiência seja, ao mesmo tempo, uma filosofia da revelação. O mundo não é um objeto a ser dominado, mas um texto a ser interpretado. E o sujeito não é um ponto isolado de consciência, mas um lugar onde o ser se pensa a si mesmo. Pensar, nesse sentido, é lembrar — lembrar aquilo que já está inscrito no real desde sempre. A experiência, então, deixa de ser aquilo que acontece ao homem, e passa a ser o modo como o absoluto acontece nele. O saber deixa de ser construção e passa a ser escuta. A escuta do ser que, na história, se faz tempo, e na liberdade, se faz mundo.

Schelling nunca viu a filosofia como um jogo de elites, um exercício reservado a cabeças treinadas para mover conceitos abstratos em silêncio. Para ele, a verdade não é monopólio da razão acadêmica. Ao contrário: a verdade — se for mesmo verdade — deve poder falar também ao povo, aos simples, aos não-filósofos. Mas não como pregação doutrinária, nem como simplificação forçada. Ela deve falar na linguagem própria do símbolo, da imagem, do mito. É nesse ponto que Schelling escreve seu “Sobre a revelação e a instrução do povo” com uma clareza surpreendente: a revelação não é o contrário da razão, mas sua origem mais profunda.

Revelar, no sentido forte, é tornar visível o invisível. E esse invisível, que as religiões exprimem em dogmas e ritos, é o mesmo que a filosofia procura em conceitos. A diferença está no modo de dizer. A religião fala por imagens, a filosofia por ideias. Mas ambas têm o mesmo objeto: o absoluto. Por isso, Schelling recusa qualquer oposição simplista entre fé e razão. Ele não quer destruir a religião em nome do saber, nem dissolver o saber em fé cega. O que ele propõe é uma reconciliação mais alta, em que se reconheça que o símbolo religioso é uma forma originária da verdade — e que a filosofia, se quiser ser plena, deve reaprender a escutar esse símbolo, e não apenas refutá-lo.

Essa posição muda completamente a função da instrução popular. Instruir não é preencher o povo com ideias modernas ou iluminar a ignorância com a luz da ciência. Instruir, para Schelling, é reconduzir o povo ao sentido profundo de sua própria tradição simbólica. É ajudar o espírito popular a reencontrar, nos mitos, nas escrituras, nos cantos e nos ritos, o fio de ligação com o absoluto. O povo, nesse sentido, não precisa aprender algo novo, mas recordar algo essencial. A instrução não é imposição, é evocação.

Isso tem uma consequência filosófica e política decisiva. Porque significa que o saber não deve ficar fechado na universidade ou no sistema. Ele tem que voltar à vida. Tem que descer às ruas, às igrejas, às aldeias. Mas não como propaganda, nem como esclarecimento externo. Tem que descer em forma de reconciliação entre o saber e o símbolo. E isso só é possível se o filósofo, em vez de desprezar o popular como supersticioso ou irracional, reconhece nele um outro modo — mais arcaico, mais imagético, mas não menos verdadeiro — de dizer o real.

Por isso, Schelling vê na revelação não uma exceção ao saber, mas seu ponto de partida. Toda filosofia que queira alcançar o absoluto precisa passar, em algum grau, pela linguagem simbólica da religião. Porque o símbolo não é inferior ao conceito; ele é anterior. E isso não é uma volta à teologia dogmática, mas uma elevação do espírito a uma forma mais rica de razão — uma razão que escuta, que intui, que respeita o mistério. A revelação, nesse caso, não é conteúdo imposto do alto, mas forma viva do absoluto que se exprime no tempo e na cultura.

A tarefa do filósofo, então, não é destruir os mitos, mas interpretá-los. Não é combater a fé popular, mas ajudá-la a encontrar sua coerência interna. Não é substituir a religião por ciência, mas reconhecer na religião uma linguagem simbólica do mesmo absoluto que a filosofia busca por via conceitual. E essa tarefa é urgente, porque onde o símbolo é destruído sem ser compreendido, nasce o niilismo. E onde a instrução desliga o povo de suas raízes espirituais, o que sobra é a técnica, o cálculo e o desespero.

Schelling antecipa aqui, com espantosa nitidez, o que muitos pensadores do século XX vão perceber tarde demais: que a razão, quando se afasta do símbolo, seca. E que a verdade, se não for encarnada na vida concreta de um povo, torna-se estéril. Por isso, para ele, instruir é religar. É levar o espírito humano de volta ao ponto onde saber e vida se tocam. Onde o absoluto não é apenas pensado, mas vivido. Onde a filosofia reencontra sua função original: ser mediação entre o mistério e a palavra.

Para Schelling, a natureza nunca foi um depósito de objetos nem um amontoado de matéria movida por leis cegas. Desde muito cedo, ele recusou a imagem mecânica do mundo herdada do cartesianismo e do newtonianismo, na qual os corpos se movem por contato, e tudo que existe é exterior a tudo o mais. Contra essa visão fragmentada e morta, ele afirma a natureza como um organismo — não como metáfora, mas como realidade filosófica. No sexto artigo de seus escritos de juventude, já está clara sua intuição decisiva: a natureza é sujeito. E mais que isso, ela é espírito adormecido, o absoluto ainda não consciente de si mesmo.

Não se trata de panteísmo vulgar, nem de romantismo poético. Schelling pensa com radicalidade. Se o espírito humano é capaz de conhecer e de criar, é porque ele mesmo emerge da natureza. E se o espírito tem estrutura, liberdade, finalidade, isso significa que essas mesmas estruturas devem existir, em estado latente, na natureza que o gera. A filosofia da natureza não é, portanto, uma física especulativa, mas uma ontologia viva. Ela busca os princípios pelos quais a própria realidade se desenvolve de dentro para fora — como um ser que cresce, que se ordena, que se expressa.

Nesse sentido, a natureza não é objeto do conhecimento, mas processo de auto-revelação. Cada planta, cada forma, cada força, é uma expressão de um impulso interno — o mesmo impulso que, em outro grau, se torna consciência. A eletricidade, o magnetismo, a polaridade, tudo isso são modos de manifestação do absoluto na ordem natural. Não são forças cegas: são formas da liberdade ainda não refletida. Schelling inverte aqui toda a perspectiva: em vez de partir da matéria e explicar o espírito como resultado, ele parte do espírito e vê a natureza como sua condição de possibilidade. A matéria, para ele, não é o fundamento último, mas o nível mais baixo de manifestação do espírito.

Por isso, ele se opõe tanto ao mecanicismo quanto ao idealismo subjetivo. O mecanicismo destrói a unidade do mundo e o reduz a choques. O idealismo subjetivo dissolve o mundo na consciência. Schelling quer algo mais alto: uma filosofia que reconcilie mundo e pensamento, matéria e espírito, sem reduzir um ao outro. E essa reconciliação só é possível se reconhecermos que tudo o que é, é expressão do mesmo fundamento — o absoluto — em diferentes graus de liberdade.

Essa noção leva Schelling a afirmar que a natureza não é apenas bela, mas racional. Não no sentido de obedecer a leis externas, mas de ter em si mesma uma ordem interna, uma finalidade. Cada ser natural tem um sentido, um lugar na totalidade. E o conjunto da natureza é como uma obra de arte, uma arquitetura viva em que nada está ali por acaso. O filósofo, então, não deve olhar a natureza como um engenheiro, mas como um intérprete. Não deve explicá-la por fora, mas escutá-la por dentro. É nesse ponto que a filosofia da natureza se torna inseparável da estética, da metafísica e da teologia.

No fim das contas, Schelling propõe que o espírito só pode conhecer a si mesmo conhecendo a natureza como expressão de si. Porque o espírito não cai no mundo por acidente; ele nasce dele, como uma flor nasce do caule. E esse nascimento não é ruptura, mas continuidade. O espírito é o último grau da natureza — ou, dito de outro modo, a natureza é o espírito em potência. Por isso, pensar a natureza é pensar o ser. E pensar o ser, em Schelling, é sempre reencontrar o absoluto — esse fundo indivisível de realidade que se mostra ora como matéria, ora como vida, ora como liberdade, mas que é sempre um só.

Nesse sexto artigo, então, Schelling não apenas propõe uma nova ciência da natureza. Ele inaugura uma outra visão de mundo. Uma visão em que tudo está ligado, tudo se exprime, tudo é portador de sentido. E onde o pensamento não é mais dominador, mas participante. Onde o saber não é poder, mas comunhão. Uma filosofia assim só pode nascer de um espírito que já intuiu, desde o início, que a verdade não se constrói: se revela. E que essa revelação começa no mais silencioso dos lugares — numa folha, num campo magnético, num organismo em crescimento — onde o absoluto ainda dorme, mas já sonha consigo mesmo.


   

Nenhum comentário: