Nos períodos mais escuros da história humana, certas práticas circulavam como signos do desespero, atravessando sociedades distintas como um gênero comum da opressão. Eram ações que, por sua própria natureza, transformavam a ideia de liberdade em miragem — um horizonte visível, porém inalcançável. Algumas dessas práticas eram tão explícitas que até os apologistas da barbárie reconheciam sua brutalidade. Outras, porém, atuavam de modo mais sorrateiro, infiltrando-se no cotidiano e dissolvendo lentamente aquilo que há de mais íntimo na vida social.
Entre essas últimas, situava-se a fiscalização totalizante exercida pelo poder vigente. Assim foi no Império Romano, quando a delação se tornou instrumento político; assim se repetiu na Alemanha Nazista, na URSS e na China de Mao, contextos em que filhos entregavam pais ao Estado e pais denunciavam filhos como prova de fidelidade ao ideal vermelho. Ali, a confiança natural entre as pessoas — os laços fundamentais de qualquer comunidade — era corroída pela lógica vigilante do regime, transformando cada gesto privado em extensão da máquina política.
O tempo passou, mas a Ideia permanece sólida como rocha. No Brasil de hoje, a metodologia não é diferente: muda a roupagem, preserva-se a estrutura. Acontece de modo menos explícito, menos ruidoso, mas igualmente eficaz, porque normalizado. E, ao abrir um desses periódicos contemporâneos, a mesma lógica de controle simbólico aparece com uma clareza inquietante.
Veja o absurdo:
“A ideia surgiu a partir de uma constatação despretensiosa feita por Ana Maria Machado. Ao passear pela livraria do Flitabira — festival literário em Itabira (MG) que a homenageou no último mês —, a escritora tentou pinçar ao menos um título desencapado com plástico nas prateleiras da loja. Das 17 mil publicações no local, todas, pasmem, estavam embaladas com o material. Para folhear as obras ao léu, era preciso, portanto, perguntar aos funcionários se estava permitido, ziip, romper o invólucro. A questão impulsionou uma conversa trivial entre a autora e o idealizador do evento, o jornalista e escritor Afonso Borges. “Meu sonho é abrir um movimento sobre isso. Não é possível que o mercado editorial produza tanto plástico”, reclamou Ana Maria, na ocasião.
Afonso não parou de pensar no assunto — e se dedicou, nos dias seguintes, a um levantamento apurado sobre o tema. Com base em números divulgados pelo próprio mercado das letras, ele chegou à conclusão de que de 360 a 700 toneladas de lixo são produzidas, no país, com o plástico específico para a embalagem de livros, o chamado shrink. Afonso destrincha o cálculo: em 2024, o Brasil imprimiu 366 milhões de exemplares — desse total, 70% dos tomos foram embalados com o filme termoencolhível, que pesa, em média, entre 1,4 e 2,7 gramas. Daí é só fazer as contas.
“Esse é o plástico mais vagabundo que tem, tanto que é conhecido como ‘plástico de utilização única’. Usa-se olhando para o lixo. Ele não serve para a reciclagem, e estamos falando de algo a nível global: no mundo inteiro isso acontece”, lamenta Afonso Borges. “Precisamos pensar no que podemos oferecer como solução sustentável a esse material. Além de tudo, uma livraria inteiramente plastificada é uma grande sacanagem. Do ponto de vista simbólico, está aí um baita prejuízo para o incentivo à leitura. O prazer de folhear um livro faz parte da descoberta desse hábito.”
E é exatamente aí que a crítica se torna evidente: a prática persiste porque a Ideia que a sustenta não foi superada. O controle não se apresenta mais como coerção explícita; assume o disfarce de zelo, segurança, modernidade, sustentabilidade ou qualquer palavra da moda que justifique a imposição de um padrão. O gesto simples de impedir alguém de folhear um livro — ato rudimentar do pensamento livre — converte-se em símbolo de uma sociedade que já não percebe o mal que causa em nome de seus próprios dogmas.
Hoje, como outrora, muitos se auto-intitulam guardiões da verdade enquanto defendem apenas a manutenção de seus próprios rituais simbólicos. A diferença é que, antes, a vigilância se fazia por meio da força; agora, opera por meio do consenso fabricado. O método mudou de forma, não de essência.
O mais grave, contudo, é perceber que a sociedade já interiorizou a figura do sensor. Não se trata mais de temer o Estado policial, mas de temer o olhar difuso do outro, da opinião coletiva, da massa amorfa que julga, cancela, rotula e pune. O silêncio tornou-se abrigo, e a palavra franca, risco. As pessoas já não dizem o que pensam; treinam o pensamento para que ele não ouse nascer fora da moldura permitida. Curvamo-nos, portanto, não diante de uma força externa, mas diante da caricatura moral que construímos para agradar o mundo que, paradoxalmente, desprezamos.
Ao aceitar essa lógica, ao ceder à autocensura, ao temer o simples ato de discordar, a sociedade entrega aquilo que possui de mais essencial: a própria alma. Nada mais é exigido; basta o medo de falar para que o trabalho do opressor esteja concluído. E, nesse ponto, o ciclo dos antigos regimes totalitários se fecha novamente — não pelo retorno da tirania clássica, mas pela rendição voluntária a uma tirania íntima, discreta, porém devastadora. A Ideia permanece, e é ela que triunfa quando renunciamos ao direito de dizer o que vemos.
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