quarta-feira, 12 de novembro de 2025

METAPHYSICA AVICENNAE.

       


SUMMARIUM GENERALE BILINGUE — METAPHYSICA AVICENNAE
Sumário Geral Bilíngue — A Metafísica de Avicena ou Primeira Filosofia.

LIBER PRIMUS — DE SUBIECTO ET UTILITATE HUIUS SCIENTIAE
Livro Primeiro — Sobre o objeto e a utilidade desta ciência
Prooemium — Prólogo sobre a natureza da filosofia primeira.
Caput I. De subiecto huius scientiae — O sujeito da metafísica: o ser enquanto ser.
Caput II. De divisione scientiarum et ordine earum — Divisão e hierarquia das ciências.
Caput III. De utilitate huius scientiae — A utilidade e nobreza da ciência divina.
Caput IV. De ordine huius scientiae ad alias — Relação da metafísica com as demais disciplinas.
Caput V. De fine huius scientiae — O fim e a dignidade da sabedoria suprema.

LIBER SECUNDUS — DE DEFINITIONE ENTIS ET DIVISIONE EIUS
Livro Segundo — Sobre a definição do ser e sua divisão
Prooemium — Introdução sobre o ser como sujeito da ciência.
Caput I. De definitione entis — Definição e noções fundamentais do ser.
Caput II. De distinctione essentiae et existentiae — Distinção entre essência e existência.
Caput III. De modo essendi in substantiis et accidentibus — O ser nas substâncias e nos acidentes.
Caput IV. De communibus proprietatibus entis — Os transcendentais: unidade, verdade e bondade.
Caput V. De causis entis et ordine earum — As quatro causas e sua hierarquia.
Caput VI. De ordine entium secundum gradus perfectionis — Graus de perfeição no ser.

LIBER TERTIUS — DE CAUSIS ESSENDI ET NOTIONIBUS METAPHYSICIS
Livro Terceiro — Sobre as causas do ser e as noções metafísicas
Prooemium — Introdução à doutrina das causas.
Caput I. De principiis causalitatis — Natureza e necessidade das causas.
Caput II. De ordine et hierarchia causarum — Ordem e subordinação das causas.
Caput III. De necessitate et contingentia — O necessário e o possível.
Caput IV. De actu et potentia — Ato e potência como fundamentos ontológicos.
Caput V. De uno et multiplici — A unidade como princípio do múltiplo.
Caput VI. De bonitate, veritate et perfectione entis — O ser sob as noções de bem, verdade e perfeição.
Caput VII. De ordine causarum ad primum principium — Retorno de todas as causas à causa primeira.

LIBER QUARTUS — DE SUBSTANTIA ET ACCIDENTIBUS
Livro Quarto — Sobre a substância e os acidentes
Prooemium — O ser dividido segundo o modo de existir.
Caput I. De definitione substantiae — Definição e primazia da substância.
Caput II. De speciebus substantiae — Substâncias materiais e imateriais.
Caput III. De relatione formae ad materiam — Forma e matéria: ato e potência.
Caput IV. De definitione accidentis — Natureza do acidente.
Caput V. De speciebus accidentium — As nove categorias acidentais.
Caput VI. De dependentia accidentis a substantia — Dependência ontológica do acidente.
Caput VII. De transitu accidentium et permanentia substantiae — Permanência da substância através das mudanças.
Caput VIII. De ordine substantiae ad accidentia in cognitione — A substância como fundamento do conhecimento.

LIBER QUINTUS — DE UNITATE ET MULTIPLICITATE ENTIVM
Livro Quinto — Sobre a unidade e a multiplicidade dos entes
Prooemium — O problema do uno e do múltiplo.
Caput I. De natura unitatis — A unidade como indivisão do ser.
Caput II. De origine multitudinis — Origem da multiplicidade a partir do Uno.
Caput III. De analogia entis inter unum et multa — A analogia do ser.
Caput IV. De ordine unitatis in rebus — Modos de unidade nas coisas.
Caput V. De contrariis et oppositis — O papel dos contrários na ordem do ser.
Caput VI. De identitate et differentia — Identidade e diferença como princípios de distinção.
Caput VII. De reductione multitudinis ad unum — Retorno da multiplicidade ao Uno.

LIBER SEXTUS — DE CAUSA PRIMA ET ORDINE EMANATIONUM
Livro Sexto — Sobre a causa primeira e a ordem das emanações
Prooemium — A causa primeira como princípio de todo o ser.
Caput I. De existentia causae primae — Demonstração da existência da Causa primeira.
Caput II. De proprietatibus causae primae — Unidade, eternidade e simplicidade do Primeiro Ser.
Caput III. De modo emanationis a causa prima — O processo de emanação.
Caput IV. De ordine intelligentiarum — Hierarquia das inteligências separadas.
Caput V. De intellectu agente et anima humana — O intelecto agente e sua luz sobre o homem.
Caput VI. De conservatione ordinis universi — A conservação do universo pela causa primeira.
Caput VII. De reditu entium ad causam primam — O retorno dos entes ao princípio.
Caput VIII. De providentia et gubernatione divina — A providência e o governo divino.

LIBER SEPTIMUS — DE INTELLECTU ET INTELLIGIBILI
Livro Sétimo — Sobre o intelecto e o inteligível
Prooemium — O conhecimento como retorno do ser ao Uno.
Caput I. De natura intellectus — Essência do intelecto.
Caput II. De gradibus intellectus — Os quatro modos do intelecto.
Caput III. De intellectu agente — O intelecto agente como luz universal.
Caput IV. De intellectu possibilis — O intelecto possível e sua potência.
Caput V. De modo intelligendi — O ato da intelecção.
Caput VI. De scientia divina et humana — Diferença entre o saber divino e o humano.
Caput VII. De unione intellectus cum intelligibili — A união do intelecto com o inteligível.
Caput VIII. De immortalitate intellectus — Imortalidade do intelecto.

LIBER OCTAVUS — DE ANIMA ET RELATIONE EIUS AD CORPUS
Livro Oitavo — Sobre a alma e sua relação com o corpo
Prooemium — A alma como mediadora entre corpo e espírito.
Caput I. De essentia animae — Natureza e origem da alma.
Caput II. De potentia animae — As potências vitais: vegetativa, sensitiva e racional.
Caput III. De unione animae cum corpore — A união forma-matéria.
Caput IV. De operationibus animae — Operações e graus de conhecimento.
Caput V. De relatione inter animam et intellectum agentem — Participação da alma na luz do intelecto.
Caput VI. De appetitu et voluntate — A vontade e a liberdade racional.
Caput VII. De passione animae — As paixões e sua ordenação.
Caput VIII. De separatione animae a corpore — Morte e destino da alma.

LIBER NONUS — DE ORDINE UNIVERSI ET HIERARCHIA ENTIVM
Livro Nono — Sobre a ordem do universo e a hierarquia dos entes
Prooemium — O cosmos como harmonia inteligível.
Caput I. De ordine universi secundum causam primam — Ordem universal e causa primeira.
Caput II. De ordine intelligentiarum et animarum caelestium — Inteligências e almas celestes.
Caput III. De mundo inferior et compositione elementorum — O mundo dos elementos e sua composição.
Caput IV. De naturis mediis et anima humana ut nexus — A alma humana como elo cósmico.
Caput V. De ordine finis in universo — A finalidade universal.
Caput VI. De perfectione et graduum entium — Escala de perfeição dos entes.
Caput VII. De ordine providentiae in singulis rebus — A providência em cada ser.
Caput VIII. De universo ut imagine divina — O universo como imagem do divino.

LIBER DECIMUS — DE FINE ULTIMO ET FELICITATE INTELLECTUS
Livro Décimo — Sobre o fim último e a felicidade do intelecto
Prooemium — O termo da filosofia e a finalidade do ser.
Caput I. De natura finis ultimi — Natureza e definição do fim último.
Caput II. De appetitu universali ad bonum — O desejo universal do bem.
Caput III. De perfectione intellectus et beatitudine — Perfeição do intelecto e bem-aventurança.
Caput IV. De graduum beatitudinis — Graus de felicidade e luz intelectual.
Caput V. De vita contemplativa et vita activa — Vida contemplativa e ativa.
Caput VI. De retributione animarum post mortem — Retribuição das almas após a morte.
Caput VII. De fine universi — O fim do universo: o repouso no Uno.

INDEX LIBRORUM — ÍNDICE DOS LIVROS.

Liber Primus — De Subiecto et Utilitate huius Scientiae
Livro Primeiro — Sobre o objeto e a utilidade desta ciência.
Trata do fim, da divisão das ciências e do papel da metafísica como “sapientia”.

Liber Secundus — De Definitione Entis et Divisione eius
Livro Segundo — Sobre a definição do ser e sua divisão.
Analisa o “ens inquantum ens”, suas categorias e propriedades transcendentais.

Liber Tertius — De Causis Essendi et Notionibus Metaphysicis
Livro Terceiro — Sobre as causas do ser e as noções metafísicas.
Discute ato e potência, necessidade e possibilidade, essência e existência.

Liber Quartus — De Substantia et Accidentibus
Livro Quarto — Sobre a substância e os acidentes.
Investiga o que constitui a substância e as condições de sua individuação.

Liber Quintus — De Unitate et Multiplicitate Entium
Livro Quinto — Sobre a unidade e a multiplicidade dos entes.
Examína as noções de unidade, distinção e oposição, fundamento do número.

Liber Sextus — De Causa Prima et Ordine Emanationum
Livro Sexto — Sobre a causa primeira e a ordem das emanações.
Expõe a doutrina da emanação: do Necessário por Si procedem os intelectos.

Liber Septimus — De Intellectu et Intelligibili
Livro Sétimo — Sobre o intelecto e o inteligível.
Define o intelecto agente e o possível, e o modo como o conhecimento se realiza.

Liber Octavus — De Anima et Relatione eius ad Corpus
Livro Oitavo — Sobre a alma e sua relação com o corpo.
Analisa a alma racional como forma substancial e sua imortalidade.

Liber Nonus — De Ordine Universi et Hierarchia Entium
Livro Nono — Sobre a ordem do universo e a hierarquia dos entes.
Estuda os níveis de ser — inteligível, celeste e material — e suas causas.

Liber Decimus — De Deo et Ultima Causa Omnium
Livro Décimo — Sobre Deus e a causa última de todas as coisas.
Conclui demonstrando que o Necesse Esse é o princípio e o fim de toda realidade.

Observatio...

Este índice segue a disposição das edições latinas de Veneza (1493) e da edição Borgnetiana, nas quais a Metaphysica aparece como a “Scientia prima” de Avicena, correspondendo à seção final do Kitāb al-Shifāʾ. O texto, traduzido do árabe para o latim, mantém a terminologia filosófica aristotélico-islâmica (e.g., necessarium per se, ens possibile, emanatio intellectuum), que se tornará base para toda a metafísica escolástica posterior.


LIBER PRIMUS — DE SUBIECTO ET UTILITATE HUIUS SCIENTIAE.
Livro Primeiro — Sobre o objeto e a utilidade desta ciência.

PROOEMIUM

Inicia-se o livro de Avicena sobre a ciência divina, chamada Primeira Filosofia.
No princípio desta investigação é necessário demonstrar qual é o sujeito da filosofia primeira e o modo como se distingue das outras ciências.
Como em toda ordem do saber convém tratar primeiro das intenções gerais antes das particulares, segue-se que, depois da lógica, da física e da doutrina natural, se deve ascender ao conhecimento da sabedoria inteligível.
Comecemos, pois, com o auxílio de Deus altíssimo, o caminho próprio do filósofo.

CAPUT PRIMUM — De subiecto huius scientiae
Capítulo Primeiro — Sobre o sujeito desta ciência.

Esta ciência tem por objeto o ser enquanto ser.
Não considera o ser enquanto sujeito do movimento, como faz a filosofia natural, nem o ser enquanto quantificado ou numerável, como fazem as ciências matemáticas, mas o ser sob o aspecto de sua pura essência e daquilo que lhe convém universalmente.
É, pois, ciência universal e metafísica, pois ultrapassa a consideração da matéria e investiga as causas e princípios do ser em si mesmo.
Assim, como cada ciência tem um sujeito determinado — a aritmética o número, a geometria a grandeza, a física o móvel — esta tem por sujeito o ente enquanto ente.
E como o ser é comum a todas as coisas, segue-se que esta ciência é superior a todas, porque versa sobre aquilo que todas pressupõem, mas nenhuma demonstra.

CAPUT SECUNDUM — De divisione scientiarum et ordine earum
Capítulo Segundo — Sobre a divisão das ciências e sua ordem.

As ciências se dividem em especulativas e práticas.
As especulativas têm por fim o conhecimento da verdade; as práticas, a boa ação.
Nas especulativas há três graus: a ciência natural, que trata dos seres sujeitos à mudança; a matemática, que trata dos seres imutáveis, mas dependentes da matéria; e a teologia ou metafísica, que trata do ser imaterial e das causas supremas.
Esta última é chamada “sabedoria” porque ensina as causas últimas e o ordenamento total das coisas.
Por isso, a filosofia primeira é dita divina, pois investiga as realidades separadas da matéria e eternas.

CAPUT TERTIUM — De utilitate huius scientiae
Capítulo Terceiro — Sobre a utilidade desta ciência.

Toda ciência é útil segundo o bem a que conduz.
Mas a utilidade da metafísica é máxima, porque ela orienta o intelecto humano ao conhecimento da causa primeira, princípio e fim de todas as coisas.
As demais ciências são úteis em ordem a algo posterior: umas para a ação, outras para a invenção, outras para a conservação.
Esta, porém, é útil em si mesma, pois tem como fim o conhecimento da verdade mais alta.
Por ela o homem se eleva do sensível ao inteligível e da multiplicidade à unidade.
E porque o fim próprio do homem é a perfeição da inteligência, segue-se que a sabedoria é o mais excelente dos bens, pois conduz à semelhança com o Intelecto divino.

CAPUT QUARTUM — De ordine huius scientiae ad alias.
Capítulo Quarto — Sobre a relação desta ciência com as demais.

A filosofia primeira preside às outras ciências como rainha entre servas, pois delas recebe o que é comum e lhes concede o princípio do ser e da ordem.
A lógica serve à metafísica, porque a dispõe para raciocinar corretamente;
a física a precede, porque conduz da experiência sensível ao conhecimento universal;
a matemática a acompanha, porque purifica o intelecto pela abstração.
Mas a metafísica, sozinha, contempla o ser em sua causa primeira, e por isso todas as outras se ordenam a ela como meios a um fim.

CAPUT QUINTUM — De fine huius scientiae
Capítulo Quinto — Sobre o fim desta ciência.

O fim da filosofia primeira é conhecer o ser enquanto ser e, sobretudo, a causa primeira, que é Deus.
Por esse conhecimento, o intelecto humano alcança a ciência perfeita e a bem-aventurança, que é a união do entendimento com o necessário por si.
Assim, esta ciência não busca apenas saber o que as coisas são, mas compreender de onde procedem e para onde tendem.
Quem a possui verdadeiramente, participa da sabedoria divina, pois sabe ordenar todas as coisas segundo o bem e o fim último.
Daí o nome “metaphysica”, isto é, “ciência das causas supremas e das coisas além da natureza”.

Conclusio.

A metafísica, sendo ciência universal, une as outras e as eleva.
Trata do ser, de suas causas, de sua unidade e de seu princípio eterno.
E, como Avicena diz, é o coroamento de toda a filosofia, porque conduz da ignorância à luz e da multiplicidade das ciências à simplicidade da verdade una.

LIBER SECUNDUS — DE DEFINITIONE ENTIS ET DIVISIONE EIUS
Livro Segundo — Sobre a definição do ser e sua divisão.

PROOEMIUM.

Depois de termos determinado no livro anterior o objeto e a dignidade da ciência divina, cabe agora investigar o que é o ser (ens), o qual é o sujeito desta ciência.
Pois, assim como cada disciplina principia pela definição de seu tema próprio, a filosofia primeira deve começar pelo exame daquilo que todos os saberes pressupõem: o ser em sua universalidade.

CAPUT PRIMUM — De definitione entis.
Capítulo Primeiro — Sobre a definição do ser.

O ser é aquilo que se compreende como existente em ato ou em potência.
Nem todo ser, porém, é do mesmo modo: alguns são necessários, outros possíveis, outros impossíveis.
A definição de ser não está contida em nenhum gênero, porque o ser precede a todos os gêneros e é o mais universal de todos os conceitos.
Dizemos que algo “é” de dois modos: ou por si, quando sua essência implica existência; ou por outro, quando sua existência depende de causa.
O ser, portanto, é aquilo que pode existir, e sua divisão segue as condições pelas quais é existente: necessário, possível ou impossível.

CAPUT SECUNDUM — De distinctione essentiae et existentiae.
Capítulo Segundo — Sobre a distinção entre essência e existência.

Em toda coisa criada, a essência e a existência são distintas.
A essência é aquilo pelo qual uma coisa é o que é; a existência é o fato de que ela seja.
Na causa primeira, porém, essência e existência são idênticas, pois Deus é o ser necessário por si mesmo.
Nos entes possíveis, a essência é anterior segundo a razão, mas não segundo o tempo, pois sem a concessão do ser nada pode existir.
Por isso, toda criatura recebe o ser como dom e participa do necessário, não por natureza, mas por dependência.
A existência, então, é ato recebido, e a essência, potência capaz de recebê-lo.

CAPUT TERTIUM — De modo essendi in substantiis et accidentibus.
Capítulo Terceiro — Sobre o modo de ser nas substâncias e nos acidentes.

As substâncias são aquelas coisas que existem em si mesmas; os acidentes são aqueles que existem em outro.
O ser da substância é primeiro e independente; o ser do acidente é secundário e relativo.
Nada impede, contudo, que os acidentes participem do ser segundo o modo de sua união com a substância, como a cor no corpo, a figura na matéria, o pensamento na alma.
Toda realidade, pois, é composta de ato e potência: a substância, como princípio, e os acidentes, como complementos que manifestam a sua perfeição.

CAPUT QUARTUM — De communibus proprietatibus entis
Capítulo Quarto — Sobre as propriedades comuns do ser.

Do ser derivam certos atributos universais, chamados transcendentais, que se identificam com ele segundo a realidade, mas se distinguem segundo a razão.
Tais são a unidade, a verdade e a bondade.
O ser é uno, porque tudo o que existe é indiviso enquanto é;
é verdadeiro, porque corresponde ao intelecto que o conhece;
é bom, porque é desejável na medida em que possui perfeição.
Essas propriedades não se acrescentam ao ser, mas exprimem aspectos diferentes da mesma realidade.
Assim, toda coisa é una enquanto é; é verdadeira enquanto inteligível; e é boa enquanto apetecível.

CAPUT QUINTUM — De causis entis et ordine earum.
Capítulo Quinto — Sobre as causas do ser e sua ordem.

O ser, enquanto efeito, depende de quatro causas: a material, a formal, a eficiente e a final.
Mas na ordem do ser, a causa final é a primeira na intenção, e a causa eficiente, a primeira na execução.
Entre todas, a causa primeira é aquela que dá o ser a tudo o mais sem receber de outro.
Por isso, o primeiro princípio é necessário por si, enquanto as demais coisas são possíveis e dependentes.
Dele procede, por emanação e ordem de inteligências, o conjunto do universo, até os corpos e as formas sensíveis.
A ciência do ser, portanto, tem por objeto o estudo dessas causas, de sua hierarquia e de seu retorno ao Uno.

CAPUT SEXTUM — De ordine entium secundum gradus perfectionis.
Capítulo Sexto — Sobre a ordem dos entes segundo os graus de perfeição.

O ser não se distribui de modo unívoco, mas analógico.
O ser de Deus é absoluto e necessário; o dos inteligíveis é permanente, mas recebido; o dos corpos é contingente e sujeito à corrupção.
Entre eles há gradação de perfeição conforme a proximidade da causa primeira.
Assim, o ser mais perfeito é o que menos depende da matéria e da mudança.
O ser dos anjos é mais nobre que o das almas; o das almas, mais nobre que o dos corpos.
E o ser humano participa de ambos: do inteligível, pela alma racional; do sensível, pelo corpo.

Conclusio.

O ser é o primeiro dos conceitos e o último dos conhecidos.
Nada há mais evidente ao intelecto, e nada mais profundo à razão.
Compreender o ser é participar da luz do Intelecto divino, pois toda verdade é radiação do Ser necessário.
Por isso, Avicena chama esta ciência de “filosofia primeira”, porque nela o espírito se eleva da multiplicidade dos entes à simplicidade do Uno, no qual essência e existência coincidem eternamente.


LIBER TERTIUS — DE CAUSIS ESSENDI ET NOTIONIBUS METAPHYSICIS
Livro Terceiro — Sobre as causas do ser e as noções metafísicas.

PROOEMIUM.

Depois de termos considerado o ser em si mesmo, suas divisões e propriedades, é necessário agora investigar as causas pelas quais o ser existe e se ordena.
Pois toda ciência perfeita do ser requer o conhecimento de suas origens, e nada se conhece inteiramente se não se conhece sua causa.
A metafísica, portanto, busca o princípio que dá o ser, conserva-o e o reconduz ao seu fim.

CAPUT PRIMUM — De principiis causalitatis.
Capítulo Primeiro — Sobre os princípios da causalidade.

Tudo o que é possível tem uma causa, porque nada que é contingente existe por si mesmo.
A causa é aquilo de que depende a existência de outra coisa.
E como há diversas dependências, há também diversas espécies de causas.
São quatro as causas universais: a material, que é aquilo de que algo é feito; a formal, que é aquilo pelo qual algo é o que é; a eficiente, que faz existir; e a final, para a qual tudo tende.
Nenhuma delas pode ser suprimida sem destruir a ordem do ser.
Mas entre todas, a causa final é a mais alta, pois move as outras à ação, e nelas está a razão do seu operar.

CAPUT SECUNDUM — De ordine et hierarchia causarum.
Capítulo Segundo — Sobre a ordem e a hierarquia das causas.

As causas se ordenam segundo um grau de prioridade.
A causa primeira é necessária e não causada; dela depende toda a cadeia dos seres.
As causas segundas, intermediárias entre a primeira e o efeito, são múltiplas e subordinadas, recebendo a virtude de agir daquela que é fonte de todo ser.
Assim, a primeira causa não age por necessidade exterior, mas por essência.
Seu ato é idêntico à sua substância; seu efeito, a existência de todas as coisas.
Como o sol ilumina sem se diminuir, assim o Primeiro Ser comunica o ser a tudo sem perda de si mesmo.

CAPUT TERTIUM — De necessitate et contingentia.
Capítulo Terceiro — Sobre a necessidade e a contingência.

Há três modos de ser: o necessário por si, o possível por si e o impossível.
O necessário é aquele cujo ser não pode não ser; o possível é aquele que pode ser ou não ser; o impossível é aquele cuja essência repugna ao ser.
Deus é o necessário por si, porque sua essência implica sua existência.
As criaturas são possíveis por si, porque sua essência não exige ser, mas o recebe da causa eficiente.
A dependência do possível ao necessário é o fundamento da ordem do universo.
Nada é possível sem uma causa que o reduza do poder ao ato.
Por isso, toda realidade finita é contingente, e tudo o que é contingente remete a um princípio cuja necessidade é absoluta.

CAPUT QUARTUM — De actu et potentia.
Capítulo Quarto — Sobre o ato e a potência.

A potência é a capacidade de ser; o ato é o ser mesmo realizado.
Toda mudança é passagem da potência ao ato.
Mas há um ser que é ato puro, em que não há potencialidade alguma — e esse é o ser necessário, o princípio de tudo.
Nos seres compostos, o ato e a potência coexistem: a matéria é potência, a forma é ato.
O ato é mais nobre, porque dá perfeição e realidade; a potência é imperfeita, porque carece de atualização.
E como o perfeito é causa do imperfeito, segue-se que o ato é causa da potência, não o contrário.

CAPUT QUINTUM — De uno et multiplici.
Capítulo Quinto — Sobre o uno e o múltiplo.

Toda multiplicidade deriva de alguma unidade, porque nada se multiplica sem que haja algo uno que se divida.
O Uno é, portanto, princípio do múltiplo, não como parte dele, mas como fonte que o excede.
A unidade do ser necessário é absoluta, porque nele não há composição.
A unidade dos seres possíveis é derivada e relativa, pois neles a essência é distinta da existência.
O múltiplo é posterior ao uno segundo a razão e segundo a perfeição.
E quanto mais algo participa da unidade, mais próximo está da causa primeira.

CAPUT SEXTUM — De bonitate, veritate et perfectione entis.
Capítulo Sexto — Sobre a bondade, a verdade e a perfeição do ser.

O bem, a verdade e a perfeição são modos do ser e convertem-se com ele.
O ser é bom, porque tudo o que existe, enquanto é, possui algo de perfeição;
é verdadeiro, porque pode ser conhecido sem contradição;
é perfeito, porque tende ao fim que lhe é próprio.
A bondade do ser consiste em sua conformidade com a razão e com o fim;
a verdade, em sua adequação ao intelecto;
a perfeição, na plenitude de sua forma.
Essas noções são diferentes apenas quanto ao modo de conceber, mas idênticas na realidade, pois toda coisa é boa, verdadeira e perfeita enquanto participa do ser.

CAPUT SEPTIMUM — De ordine causarum ad primum principium.
Capítulo Sétimo — Sobre a relação das causas com o primeiro princípio.

Todas as causas dependem da causa primeira, assim como os raios dependem do sol.
Ela é a fonte do ser, e as outras apenas o comunicam segundo uma participação.
Nada pode agir sem que receba dela o poder de agir.
As causas segundas não competem com a primeira, mas a manifestam, porque são modos diversos pelos quais o poder divino se exprime.
Portanto, toda causa criada é sinal e vestígio da primeira, e o retorno de todas as coisas é a recondução a ela.

Conclusio.

A ciência das causas é o coração da metafísica.
Nela o filósofo compreende que tudo o que é depende de um princípio necessário, cuja essência é o próprio ser.
Dessa doutrina nasce a ordem das coisas, a hierarquia do universo e a unidade da sabedoria.
Assim, Avicena conclui: aquele que conhece as causas conhece o ser;
aquele que conhece o ser conhece o Uno;
e aquele que conhece o Uno participa, ainda que em sombra, da luz da Causa primeira.


LIBER QUARTUS — DE SUBSTANTIA ET ACCIDENTIBUS
Livro Quarto — Sobre a substância e os acidentes.

PROOEMIUM.

Depois de termos tratado do ser em geral e de suas causas, é necessário examinar agora as partes principais do ente, a saber, a substância e o acidente.
Pois, assim como o ser se divide em ato e potência, também se distingue segundo o modo de existir: em si mesmo, ou em outro.
A metafísica, sendo ciência do ser enquanto ser, deve determinar o que é a substância, o que é o acidente e de que modo se relacionam.

CAPUT PRIMUM — De definitione substantiae.
Capítulo Primeiro — Sobre a definição da substância.

Substância é aquilo que existe por si e não em outro.
Ela é o fundamento do ser e o sujeito de todas as outras coisas.
Nada pode existir sem alguma substância, pois todo acidente exige algo em que esteja.
A substância é, portanto, o primeiro modo do ser e o princípio da permanência nas coisas.
Aquilo que é em si mesmo e não por outro é chamado substância; aquilo que é em outro e do qual depende é chamado acidente.

CAPUT SECUNDUM — De speciebus substantiae.
Capítulo Segundo — Sobre as espécies de substância.

As substâncias se dividem em duas: as materiais e as imateriais.
As materiais são compostas de matéria e forma, e estão sujeitas à geração e corrupção;
as imateriais não têm matéria e são eternas, como as inteligências e as almas separadas.
Entre as substâncias materiais, há ainda distinção entre corpo natural e corpo artificial: o natural tem princípio interno de movimento; o artificial, princípio externo.
Entre as imateriais, umas são totalmente separadas, como os inteligíveis; outras estão unidas ao corpo, como a alma humana.
Assim, a ordem das substâncias vai do mais composto ao mais simples, e do temporal ao eterno.

CAPUT TERTIUM — De relatione formae ad materiam.
Capítulo Terceiro — Sobre a relação da forma com a matéria.

A forma é o ato da matéria; a matéria é a potência da forma.
Sem matéria, não há sujeito; sem forma, não há ser atual.
A matéria é princípio de individuação; a forma, princípio de perfeição.
Toda geração é a recepção de uma forma na matéria disposta;
toda corrupção é a separação dessa forma.
Por isso, a matéria é permanente em potência, enquanto as formas passam em ato.
Mas há formas que subsistem por si mesmas, como as intelectuais, que não requerem matéria para existir.
Estas são mais nobres, pois sua operação não depende do corpo.

CAPUT QUARTUM — De definitione accidentis.
Capítulo Quarto — Sobre a definição do acidente.

Acidente é aquilo que existe em outro, e não por si.
Pode mudar sem que o sujeito pereça.
É aquilo que se acrescenta à substância, mas não pertence à sua essência.
Por exemplo, a cor, o calor, a figura, o lugar e o tempo são acidentes, porque podem variar sem que a substância deixe de ser o que é.
O acidente, pois, não constitui o ser da coisa, mas o acompanha.

CAPUT QUINTUM — De speciebus accidentium.
Capítulo Quinto — Sobre as espécies de acidentes.

Os acidentes se dividem segundo as categorias aristotélicas:
quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, posição e hábito.
A quantidade mede a extensão da substância;
a qualidade exprime sua disposição ou potência;
a relação ordena um ser a outro;
a ação e a paixão indicam o movimento;
lugar e tempo determinam a presença;
posição mostra o arranjo das partes;
hábito designa a posse de algo externo.
Essas nove categorias completam o ser acidental, que se apoia na substância como no sujeito comum.

CAPUT SEXTUM — De dependentia accidentis a substantia.
Capítulo Sexto — Sobre a dependência do acidente em relação à substância.

O acidente depende da substância de dois modos: para existir e para ser conhecido.
Não há cor sem corpo, nem calor sem sujeito capaz de recebê-lo.
E como o acidente não tem ser próprio, sua realidade é participação no ser da substância.
Contudo, os acidentes não são ilusões: possuem um ser verdadeiro, mas derivado.
A substância é o “ens per se”; o acidente é o “ens per aliud”.
Por isso, o acidente não se entende sem a substância, mas a substância se entende sem ele.

CAPUT SEPTIMUM — De transitu accidentium et permanentia substantiae.
Capítulo Sétimo — Sobre a passagem dos acidentes e a permanência da substância.

Embora os acidentes mudem incessantemente, a substância permanece a mesma enquanto subsiste a forma essencial.
Assim, o homem pode crescer, envelhecer ou mover-se, e todavia continua sendo o mesmo indivíduo.
O acidente varia no tempo, mas o sujeito, enquanto essência, conserva sua identidade.
Esta permanência do sujeito através da mudança é sinal de sua superioridade.
O acidente nasce e perece com facilidade; a substância subsiste.
Por isso, conhecer a substância é penetrar no núcleo do ser, enquanto conhecer os acidentes é apenas conhecer suas manifestações.

CAPUT OCTAVUM — De ordine substantiae ad accidentia in cognitione.
Capítulo Oitavo — Sobre a ordem da substância e dos acidentes no conhecimento.

No conhecimento sensível, percebemos primeiro os acidentes — cor, som, forma, movimento — e só depois inferimos a substância.
Mas no conhecimento intelectual, é o contrário: o intelecto conhece primeiro a substância como princípio, e depois entende os acidentes como atributos.
O sábio, portanto, aprende a subir dos fenômenos ao ser, e dos acidentes à substância.
Essa ascensão é o caminho da metafísica, que não se detém nas aparências, mas busca a essência que as sustenta.

Conclusio.

A substância é o fundamento do ser, o eixo da realidade e o princípio da permanência.
Os acidentes são como véus e reflexos, que manifestam a riqueza da substância sem constituí-la.
Toda ciência inferior se ocupa dos acidentes; somente a metafísica se detém na substância enquanto causa e centro de toda existência.
Assim, Avicena ensina que o verdadeiro conhecimento é o que reconhece no mutável o permanente, e no múltiplo o uno — pois é a substância que confere unidade e sentido a tudo o que é.

LIBER QUINTUS — DE UNITATE ET MULTIPLICITATE ENTIVM.
Livro Quinto — Sobre a unidade e a multiplicidade dos entes.

PROOEMIUM.

Depois de considerar a substância e o acidente, convém investigar o que é a unidade, princípio de toda determinação, e a multiplicidade, que dela procede como efeito e expansão.
Nenhum conhecimento do ser é completo sem compreender de que modo o uno se converte no múltiplo e o múltiplo retorna ao uno.
O estudo da unidade pertence à metafísica, porque o uno acompanha o ser em toda parte e é sua propriedade universal.

CAPUT PRIMUM — De natura unitatis.
Capítulo Primeiro — Sobre a natureza da unidade.

A unidade é a indivisão do ser.
Diz-se uno aquilo que é indiviso em si mesmo e distinto de tudo o mais.
Toda coisa é una enquanto é; e se algo deixa de ser uno, deixa também de existir.
A unidade, portanto, não é uma adição ao ser, mas o próprio ser considerado segundo o modo de sua indivisão.
Por isso, diz-se que o uno e o ser são conversíveis: tudo o que é, é uno; e tudo o que é uno, é.
Há, porém, modos diversos de unidade: a do simples, que não tem partes; e a do composto, cuja unidade procede da harmonia das partes em um todo.
O primeiro modo pertence ao necessário; o segundo, às coisas criadas.

CAPUT SECUNDUM — De origine multitudinis.
Capítulo Segundo — Sobre a origem da multiplicidade.

A multiplicidade nasce da limitação da unidade.
O uno é princípio de ser; o múltiplo, princípio de distinção.
A causa primeira é absolutamente una, mas comunica o ser de modo múltiplo, conforme a capacidade dos que o recebem.
Assim, do Uno procede o primeiro intelecto; dele, outro; e assim sucessivamente, até a pluralidade dos entes inferiores.
A multiplicidade não surge por divisão do Uno, mas por participação diversa do mesmo ato de ser.
O Uno permanece indiviso, e a diversidade das coisas manifesta a fecundidade de sua perfeição.

CAPUT TERTIUM — De analogia entis inter unum et multa.
Capítulo Terceiro — Sobre a analogia do ser entre o uno e os muitos.

O ser se predica de muitos, mas não de modo unívoco nem equívoco: predica-se analogicamente.
Entre o ser do Criador e o ser das criaturas há semelhança, mas não igualdade; diferença, mas não contradição.
A analogia conserva a ordem entre o superior e o inferior, de modo que o primeiro é causa e medida do segundo.
Assim, o ser dos múltiplos é sombra do ser do Uno.
Cada ente participa da unidade segundo o grau de sua perfeição.
O ser do necessário é pleno e idêntico à sua essência; o dos possíveis é recebido e finito; o dos compostos é dividido e sujeito ao tempo.

CAPUT QUARTUM — De ordine unitatis in rebus.
Capítulo Quarto — Sobre a ordem da unidade nas coisas.

Há unidade de substância, de espécie, de número e de ordem.
A unidade de substância consiste na simplicidade do ser em si mesmo;
a de espécie, na identidade da forma em muitos indivíduos;
a de número, na indivisão do indivíduo;
a de ordem, na disposição harmônica de partes diversas a um fim comum.
A ordem do universo é uma unidade composta, em que tudo se correlaciona e nada é inútil.
E como o bem é a conservação da ordem, toda desordem é privação da unidade.

CAPUT QUINTUM — De contrariis et oppositis.
Capítulo Quinto — Sobre os contrários e os opostos.

A multiplicidade das coisas implica oposição.
Há contrários porque há diferenças reais entre os seres;
e há diferenças porque a perfeição do Uno não se comunica igualmente a todos.
Os contrários, contudo, não se opõem ao ser, mas à unidade de forma.
A contrariedade não destrói a ordem universal, mas a manifesta, pois pela tensão entre os opostos se revela o equilíbrio do todo.
O bem e o mal, o quente e o frio, o claro e o escuro, o ato e a potência — todos existem em relação, como polos de uma mesma realidade que se move em direção ao seu fim último, que é a unidade.

CAPUT SEXTUM — De identitate et differentia.
Capítulo Sexto — Sobre a identidade e a diferença.

A identidade é a permanência do mesmo ser em si; a diferença é a distinção de um ser em relação a outro.
Nenhuma coisa é diversa de si mesma, mas todas são distintas das outras pelo modo de participar do ser.
A diferença nasce da limitação; a identidade, da plenitude.
No ser necessário não há diferença, porque nele não há potência;
nas criaturas há diferença, porque nelas há composição e possibilidade.
Assim, quanto mais algo participa da atualidade, mais uno e idêntico é; quanto mais participa da potencialidade, mais sujeito está à diferença e à multiplicidade.

CAPUT SEPTIMUM — De reductione multitudinis ad unum.
Capítulo Sétimo — Sobre a redução da multiplicidade ao uno.

Tudo o que é múltiplo tende a retornar ao uno, de onde procede.
O universo inteiro é uma processão e um retorno: sai do Uno por emanação e volta ao Uno por desejo e movimento.
Esse retorno é natural nas coisas e voluntário nas almas racionais, que, conhecendo o Uno, desejam unir-se a Ele.
A multiplicidade, portanto, não é erro nem desordem, mas caminho da unidade.
A sabedoria divina dispôs que a perfeição do todo se manifestasse na variedade das partes, como uma melodia composta de muitas vozes que se harmonizam num só acorde.

Conclusio.

O Uno é o princípio e o fim de todas as coisas.
A multiplicidade é a irradiação de sua bondade, que se diversifica sem se dividir.
Tudo o que é participa do Uno e, por essa participação, é bom, verdadeiro e ordenado.
Assim, o filósofo contempla no múltiplo o reflexo do uno, e no uno a causa do múltiplo.
E Avicena conclui: compreender o ser é compreender a unidade, porque o ser e o uno são um mesmo em realidade —
diferindo apenas quanto à maneira de o intelecto os conceber.

LIBER SEXTUS — DE CAUSA PRIMA ET ORDINE EMANATIONUM.
Livro Sexto — Sobre a causa primeira e a ordem das emanações.

PROOEMIUM

Chegados ao ponto mais alto da investigação do ser, resta-nos tratar da causa primeira, princípio de todo o existente, da qual tudo procede e à qual tudo retorna.
Pois, como toda série de causas exige um termo primeiro que não seja causado, é necessário admitir uma fonte absoluta do ser — o Necessário por Si — cuja essência é o próprio existir.
Avicena chama a esse princípio “Aquele que é por si”, em oposição aos seres “que são por outro”.
Esta doutrina é o eixo de toda a metafísica, porque quem conhece a causa primeira compreende o fundamento da totalidade.

CAPUT PRIMUM — De existentia causae primae.
Capítulo Primeiro — Sobre a existência da causa primeira.

Tudo o que é possível necessita de causa, pois aquilo que pode não ser não possui em si o motivo de sua existência.
Mas se tudo o que existe fosse possível e dependente, o ser nunca teria começado, porque o possível não se atualiza senão por algo atual.
Portanto, é necessário admitir um ente cuja existência não dependa de outro, que seja o primeiro e o fundamento do ser.
Esse ente não pode não existir, pois sua essência implica a existência; e, se assim não fosse, recairíamos em regressão infinita de causas.
Logo, há uma causa primeira, necessária por si mesma, eterna, simples e sem composição.

CAPUT SECUNDUM — De proprietatibus causae primae.
Capítulo Segundo — Sobre as propriedades da causa primeira.

A causa primeira é una, pois a multiplicidade suporia composição e dependência.
É simples, porque não tem partes nem acidentes; é eterna, porque o tempo implica mudança; é imutável, porque toda mutação procede de potência, e nela não há potência alguma.
A causa primeira é também boa e inteligente: boa, porque comunica o ser sem inveja; inteligente, porque age por conhecimento e não por necessidade cega.
Nela, saber, querer e ser são uma só e mesma realidade.
Por isso, Avicena a chama “o Ser puro e o Intelecto puro”.

CAPUT TERTIUM — De modo emanationis a causa prima.
Capítulo Terceiro — Sobre o modo de emanação a partir da causa primeira.

Do Uno necessário procede o ser dos demais, não por geração ou mudança, mas por emanação.
O primeiro efeito do Uno é o primeiro intelecto; este, conhecendo a si e ao seu princípio, produz outro intelecto, e assim sucessivamente.
Cada nível do ser decorre do conhecimento que o intelecto tem de seu autor e de si mesmo.
Por isso, do Uno procede o múltiplo, mas sem divisão no Uno.
A causalidade divina é simples e eterna, como a luz que procede do sol.
A ordem das emanações é, pois, hierárquica: o primeiro intelecto é mais próximo da causa primeira; os seguintes, mais distantes, até a alma do céu e as formas corpóreas.

CAPUT QUARTUM — De ordine intelligentiarum
Capítulo Quarto — Sobre a ordem das inteligências.

As inteligências são substâncias imateriais e eternas, intermediárias entre a causa primeira e o mundo sensível.
Cada uma tem dupla operação: contemplar seu princípio e agir sobre o inferior.
Assim se estabelece a ordem cósmica: do primeiro intelecto até o último, que move a esfera mais baixa.
O número dessas inteligências corresponde ao número dos céus.
Cada esfera é movida por uma inteligência que conhece a causa primeira e o fim de seu movimento.
A alma do céu deseja imitar o Intelecto, e por esse amor se move eternamente.

CAPUT QUINTUM — De intellectu agente et anima humana.
Capítulo Quinto — Sobre o intelecto agente e a alma humana.

Entre as inteligências separadas e as almas corporais há o intelecto agente, que ilumina o intelecto possível do homem.
A alma humana, pela potência de conhecer, é unida a esse intelecto, que lhe dá a luz da intelecção.
O conhecimento, portanto, é participação na emanação divina.
O intelecto humano, ao receber a forma inteligível, não cria o ser, mas o reflete.
Assim, o homem é microcosmo: espelho da ordem do universo, intermediário entre o sensível e o inteligível.

CAPUT SEXTUM — De conservatione ordinis universi.
Capítulo Sexto — Sobre a conservação da ordem do universo.

O universo é mantido pela bondade e sabedoria da causa primeira.
Nada existe fora da ordem; até o que chamamos “mal” é privação de bem e serve ao equilíbrio do todo.
Cada ser ocupa o grau que lhe convém, e, pelo conjunto, manifesta-se a harmonia do ser.
A causa primeira conserva o universo não como artífice que abandona sua obra, mas como presença constante que a sustenta no ser.
Se cessasse seu influxo, tudo retornaria ao nada.

CAPUT SEPTIMUM — De reditu entium ad causam primam.
Capítulo Sétimo — Sobre o retorno dos entes à causa primeira.

Assim como tudo procede da causa primeira, tudo tende a retornar a ela.
Esse retorno é de dois modos: natural, nas coisas que obedecem à ordem; e voluntário, nas almas que a conhecem e amam.
O desejo universal de perfeição é o eco da emanação primeira.
Toda criatura, ao buscar o bem, busca, ainda que inconscientemente, o autor de seu ser.
A alma racional, quando purificada da matéria, retorna pela contemplação ao princípio de onde veio.

CAPUT OCTAVUM — De providentia et gubernatione divina.
Capítulo Oitavo — Sobre a providência e o governo divino.

A providência é a ordem da sabedoria divina pela qual tudo é dirigido ao seu fim.
A causa primeira conhece todas as coisas, não pelas suas particularidades materiais, mas enquanto participam da ordem universal.
Nada escapa a esse governo, pois até o movimento dos corpos inferiores depende da intenção das inteligências celestes, que, por sua vez, refletem a vontade do Uno.
A providência divina não é mutável, mas eterna; não é contingente, mas necessária; e, todavia, deixa às causas segundas o exercício de suas potências.

Conclusio.

A causa primeira é o centro da metafísica e o vértice da ordem do ser.
Dela tudo procede, nela tudo se conserva e para ela tudo tende.
É o Ser necessário, o Uno e o Bem, cuja essência é ato puro e cuja operação é o amor que comunica o ser.
Avicena conclui: conhecer a causa primeira é conhecer a raiz do real;
e quem a contempla participa da perfeição do Intelecto,
porque a sabedoria suprema consiste em compreender que tudo o que existe é o reflexo do Uno eterno.


LIBER SEPTIMUS — DE INTELLECTU ET INTELLIGIBILI.
Livro Sétimo — Sobre o intelecto e o inteligível.

PROOEMIUM

Depois de compreender a ordem das causas e das emanações, é necessário investigar agora o que é o intelecto e o que é o inteligível, pois neles reside o modo supremo de ser das substâncias espirituais.
O conhecimento é o elo que une o múltiplo ao Uno: pelo ato de inteligir, o ser retorna à sua origem, e a multiplicidade das formas se reconduz à simplicidade do intelecto.
Avicena propõe, portanto, examinar o intelecto em sua essência, em seus graus e em sua operação, mostrando como, por meio do pensamento, o homem participa do movimento de retorno à Causa primeira.

CAPUT PRIMUM — De natura intellectus.
Capítulo Primeiro — Sobre a natureza do intelecto.

O intelecto é a potência pela qual a alma conhece o universal.
Distingue-se do sentido, que percebe o singular e o material, porque o intelecto abstrai das condições corpóreas e apreende a forma pura.
O intelecto não é corpo nem faculdade corporal, pois sua operação é imaterial.
Tudo o que age sem instrumento corpóreo é incorpóreo em sua essência.
Assim, o intelecto pertence à ordem dos seres espirituais e é de natureza intermediária entre as inteligências separadas e as potências sensíveis.

CAPUT SECUNDUM — De gradibus intellectus.
Capítulo Segundo — Sobre os graus do intelecto.

Há quatro modos do intelecto: o intelecto em potência, o intelecto em hábito, o intelecto em ato e o intelecto agente.
O intelecto em potência é como uma tábua em branco, capaz de receber todas as formas, mas que nada possui ainda em ato.
O intelecto em hábito é aquele que já possui formas inteligíveis, mas não as considera no momento.
O intelecto em ato é aquele que pensa e contempla efetivamente o inteligível.
O intelecto agente é a luz que torna as formas inteligíveis e as imprime no intelecto possível.
Essa distinção mostra que o intelecto humano é participativo: depende da iluminação de uma inteligência superior para passar da potência ao ato.

CAPUT TERTIUM — De intellectu agente.
Capítulo Terceiro — Sobre o intelecto agente.

O intelecto agente é uma substância imaterial e eterna, sempre em ato, que atualiza as potências do intelecto humano.
Ele é como o sol que torna visíveis as cores: sem sua luz, as formas permaneceriam apenas em potência nas coisas.
Avicena o chama de “luz derramada” (lumen effusum), porque dele procede a inteligibilidade dos entes.
Não cria o ser, mas o torna cognoscível.
Assim, todo conhecimento humano é participação nessa luz universal que emana continuamente do Intelecto separado.

CAPUT QUARTUM — De intellectu possibilis.
Capítulo Quarto — Sobre o intelecto possível.

O intelecto possível é a potência própria da alma racional, pela qual ela é capaz de receber as formas inteligíveis.
Em si, é pura potência; mas, ao ser atualizado pelo intelecto agente, torna-se intelecto em ato.
Ele não se confunde com a memória nem com a imaginação, pois estas conservam imagens sensíveis, enquanto o intelecto conserva formas universais.
O intelecto possível é, portanto, o lugar das formas inteligíveis, assim como a matéria é o lugar das formas naturais.

CAPUT QUINTUM — De modo intelligendi.
Capítulo Quinto — Sobre o modo de inteligir.

O intelecto conhece abstraindo das condições materiais.
A forma inteligível é a mesma forma da coisa, mas despojada de sua individualidade.
O intelecto não conhece pela matéria, mas pela forma; não pelo corpo, mas pela semelhança do ser.
Quando o intelecto compreende, torna-se uma só coisa com o inteligível — intellectus et intelligibile unum sunt.
Assim, o ato do conhecimento é a unificação do sujeito e do objeto no mesmo ser inteligível.
Por isso, quanto mais elevado é o intelecto, mais simples é o seu ato, porque conhece as coisas não como múltiplas, mas como reunidas na unidade da verdade.

CAPUT SEXTUM — De scientia divina et humana.
Capítulo Sexto — Sobre a ciência divina e a ciência humana.

A ciência divina é o conhecimento eterno que Deus tem de si e de tudo o que dele procede.
Não se realiza no tempo, nem por raciocínio, mas por presença e identidade: o ser divino é o seu próprio conhecer.
A ciência humana, ao contrário, é discursiva e adquirida.
Avança do desconhecido ao conhecido, do particular ao universal.
Mas, pela união com o intelecto agente, a alma humana pode participar da ciência superior, tornando-se “semelhante ao divino” pelo conhecimento das causas.
O homem sábio é, portanto, aquele cuja inteligência se conforma à ordem eterna das inteligências, refletindo-a no espelho de sua razão.

CAPUT SEPTIMUM — De unione intellectus cum intelligibili.
Capítulo Sétimo — Sobre a união do intelecto com o inteligível.

Toda intelecção é uma forma de união.
Quando o intelecto compreende, ele se identifica com a essência da coisa inteligida.
Mas essa união não é física nem substancial: é intencional e formal, como luz que se confunde com o objeto iluminado.
O intelecto não recebe a forma como matéria, mas a assume como ato.
Por isso, quanto mais puro o intelecto, mais perfeita é a união com o inteligível.
A alma humana, purificada das paixões e separada da matéria, alcança a união contemplativa com o intelecto eterno, e nesse estado encontra sua verdadeira beatitude.

CAPUT OCTAVUM — De immortalitate intellectus.
Capítulo Oitavo — Sobre a imortalidade do intelecto.

O intelecto, sendo imaterial, não está sujeito à corrupção.
Tudo o que perece, perece pela dissolução das partes; mas o intelecto, não tendo partes, é incorruptível.
O conhecimento, uma vez adquirido, não se perde, porque o ato inteligível é eterno em si mesmo.
Assim, a alma racional sobrevive à morte do corpo, e o intelecto que nela reside permanece em ato na luz do intelecto agente.
A imortalidade, portanto, não é apenas prêmio, mas natureza: o intelecto subsiste enquanto participa da emanação da Causa primeira.

Conclusio.

O intelecto é o espelho do universo e a via pela qual o ser retorna à sua origem.
Pela intelecção, o homem refaz o caminho da emanação divina em sentido inverso: da matéria à forma, da potência ao ato, do múltiplo ao Uno.
Conhecer é existir segundo o modo do necessário, porque o ato do saber é a própria vida do intelecto.
Avicena conclui que o fim último do ser humano é a união contemplativa com o inteligível puro, na qual toda distinção entre conhecer e ser se dissolve —
pois o verdadeiro conhecimento é o repouso do espírito na luz do Ser necessário, onde o intelecto e o conhecido são um só.

LIBER OCTAVUS — DE ANIMA ET RELATIONE EIUS AD CORPUS
Livro Oitavo — Sobre a alma e sua relação com o corpo.

PROOEMIUM.

Depois de tratar do intelecto e do inteligível em geral, devemos agora descer àquela substância que, embora espiritual em sua essência, se encontra unida à matéria — a alma humana.
Pois o homem é o ponto de encontro entre o mundo sensível e o inteligível, entre o corpo e o espírito, entre o temporal e o eterno.
A metafísica deve, portanto, explicar como a alma procede da Causa primeira, como se une ao corpo e como nele exerce sua operação.

CAPUT PRIMUM — De essentia animae.
Capítulo Primeiro — Sobre a essência da alma.

A alma é uma substância simples e imaterial, princípio de vida, de conhecimento e de movimento no corpo.
Não é corpo, nem harmonia do corpo, nem mera disposição de elementos, mas forma substancial que confere unidade ao composto humano.
Ela é uma entre as substâncias intelectuais, distinta dos corpos e das potências corpóreas.
A alma não é gerada com o corpo, mas criada diretamente pela causa primeira;
entra no corpo como forma que o anima e o ordena a seus fins naturais.

CAPUT SECUNDUM — De potentia animae.
Capítulo Segundo — Sobre as potências da alma.

As potências da alma dividem-se segundo as ordens da vida: vegetativa, sensitiva e racional.
A potência vegetativa nutre, cresce e gera; a sensitiva percebe e imagina; a racional entende e quer.
Essas potências não são partes separadas, mas operações de uma mesma essência, que se manifesta de modo diverso conforme a matéria em que atua.
No homem, todas se unem sob o domínio da razão, que coordena os apetites e dirige as ações ao fim verdadeiro.
Assim, o homem é o mais perfeito dos compostos, porque participa de todos os graus do ser: do vegetal, pelo nutrir; do animal, pelo sentir; do espiritual, pelo inteligir.

CAPUT TERTIUM — De unione animae cum corpore.
Capítulo Terceiro — Sobre a união da alma com o corpo.

A alma se une ao corpo não por mistura nem por contato local, mas por influxo de forma em matéria.
A matéria é o sujeito disposto; a alma, o ato que a organiza e a vivifica.
Essa união é natural e necessária à condição humana, mas não destrói a espiritualidade da alma.
O corpo é instrumento; a alma, o artífice.
O corpo age no mundo sensível, mas é a alma que o move e lhe dá sentido.
A alma governa o corpo como o piloto governa a embarcação: não se confunde com ela, mas dirige todos os seus movimentos.

CAPUT QUARTUM — De operationibus animae.
Capítulo Quarto — Sobre as operações da alma.

As operações da alma seguem a ordem das suas potências.
Pelas faculdades vegetativas, mantém o corpo; pelas sensitivas, conhece o mundo sensível; pelas intelectuais, eleva-se ao mundo inteligível.
A imaginação fornece à razão as imagens; o intelecto abstrai delas as formas universais; a vontade as ordena segundo o bem.
Assim, todo o movimento da alma é uma ascensão do sensível ao inteligível.
Quando o intelecto alcança a verdade, a alma encontra sua harmonia interior; quando se perde nos desejos, afasta-se de sua natureza divina.

CAPUT QUINTUM — De relatione inter animam et intellectum agentem.
Capítulo Quinto — Sobre a relação entre a alma e o intelecto agente.

A alma humana participa da luz do intelecto agente, e dessa participação depende sua capacidade de conhecer o universal.
Enquanto unida ao corpo, o intelecto possível necessita do auxílio do agente para abstrair as formas;
quando separada, contempla-as diretamente, sem mediação sensível.
A perfeição da alma consiste, pois, em unir-se plenamente ao intelecto, tornando-se “semelhante à inteligência pura”.
Nessa união, o homem é divinizado pela ciência, e a alma participa da eternidade.

CAPUT SEXTUM — De appetitu et voluntate.
Capítulo Sexto — Sobre o apetite e a vontade.

A vontade é a potência racional que tende ao bem conhecido.
No homem, há dois apetites: o sensitivo, comum aos animais, e o racional, próprio da alma espiritual.
O primeiro segue o prazer e a dor; o segundo, a razão e o bem.
A liberdade humana nasce da possibilidade de escolher entre os bens particulares, orientando-se, contudo, ao bem supremo.
A alma é tanto mais livre quanto mais domina os apetites inferiores e se volta ao seu princípio.

CAPUT SEPTIMUM — De passione animae.
Capítulo Sétimo — Sobre as paixões da alma.

As paixões são movimentos do apetite sensitivo, provocados pela imaginação do bem ou do mal.
Não são más por si mesmas, mas quando desordenadas.
Submetidas à razão, tornam-se virtudes; libertas de sua medida, tornam-se vícios.
A ira, o medo, o desejo e a esperança são expressões da união entre alma e corpo.
Elas provam que a alma, embora espiritual, sofre com o corpo e com ele compartilha alegrias e dores.
Contudo, quanto mais o intelecto domina essas paixões, mais a alma se purifica e se aproxima da serenidade do ser necessário.

CAPUT OCTAVUM — De separatione animae a corpore.
Capítulo Oitavo — Sobre a separação da alma do corpo.

A morte não é destruição, mas dissolução da união entre forma e matéria.
Quando o corpo se desfaz, a alma não perece, porque sua essência é imaterial.
Ela subsiste em ato, conservando o conhecimento adquirido e aspirando ao seu princípio.
A alma purificada pela virtude ascende às regiões da luz inteligível, unindo-se às inteligências superiores;
a alma obscurecida pelos vícios permanece nas sombras do mundo inferior, presa às imagens e aos desejos terrenos.
A sorte da alma, portanto, é proporcional à sua conformidade com o intelecto e à pureza de sua contemplação.

Conclusio.

A alma é o centro do cosmos humano, o espelho do universo e a via de ascensão do sensível ao divino.
Pela união com o corpo, participa da multiplicidade;
pela união com o intelecto, retorna à unidade.
O homem é, assim, o microcosmo no qual o ser se reflete e se reconhece.
Avicena encerra dizendo:
“Quem conhece sua alma conhece seu Senhor.”
Pois conhecer a alma é compreender o mistério da união entre o ser necessário e o ser contingente —
o ponto onde a eternidade toca o tempo e o Uno se reflete na imagem viva do homem.

LIBER NONUS — DE ORDINE UNIVERSI ET HIERARCHIA ENTIVM.
Livro Nono — Sobre a ordem do universo e a hierarquia dos entes.

PROOEMIUM

Depois de ter considerado a alma e suas operações, resta compreender o conjunto do universo e a disposição hierárquica de todas as coisas que dele participam.
O universo não é uma soma desordenada de entes, mas uma totalidade harmônica, ordenada segundo causas, graus e fins.
A ordem universal é o espelho da sabedoria da Causa primeira, e contemplá-la é compreender a harmonia eterna do ser.

CAPUT PRIMUM — De ordine universi secundum causam primam.
Capítulo Primeiro — Sobre a ordem do universo segundo a causa primeira.

O universo procede do Uno necessário segundo uma ordem fixa e inteligível.
Nada é fortuito, porque tudo deriva de uma causa e tende a um fim.
A multiplicidade das coisas não destrói, mas manifesta a unidade do princípio, como raios diversos de uma mesma luz.
A causa primeira é o centro do círculo do ser: dela parte toda emanação e para ela retorna todo movimento.
O universo é, portanto, uma hierarquia de dependências, uma cadeia contínua que une o ser mais alto ao mais baixo.

CAPUT SECUNDUM — De ordine intelligentiarum et animarum caelestium.
Capítulo Segundo — Sobre a ordem das inteligências e das almas celestes.

As inteligências são as causas imediatas das esferas celestes.
Cada esfera é movida por uma alma e regida por uma inteligência.
A inteligência conhece a Causa primeira e move o céu por amor de imitação; a alma do céu, desejando o mesmo bem, imprime o movimento circular.
Assim, o movimento dos astros é um ato de amor e contemplação.
O céu se move não por necessidade física, mas por desejo de participação no ser divino.
E, por essa ordem, o influxo das inteligências se derrama até o mundo sublunar, conferindo forma, vida e finalidade a todas as coisas.

CAPUT TERTIUM — De mundo inferior et compositione elementorum.
Capítulo Terceiro — Sobre o mundo inferior e a composição dos elementos.

Abaixo das esferas está o mundo da geração e corrupção, formado pela mistura dos quatro elementos: fogo, ar, água e terra.
Esses elementos não existem separados, mas combinados em proporções diversas, segundo a disposição das formas e o influxo celeste.
Do equilíbrio desses princípios nasce a variedade das substâncias corpóreas.
O fogo é o mais sutil e leve; a terra, a mais densa e grave; o ar e a água são intermediários.
Pela alternância de seus movimentos e qualidades, compõe-se o ciclo natural das mudanças.
Nada nesse mundo é autônomo: tudo recebe seu ser e sua energia da ordem superior.

CAPUT QUARTUM — De naturis mediis et anima humana ut nexus.
Capítulo Quarto — Sobre as naturezas intermediárias e a alma humana como elo.

Entre os seres puramente espirituais e os corpos há naturezas intermediárias, como as almas e as formas sensíveis.
A alma humana ocupa o ponto médio da criação: é espírito na origem, mas corpo na operação.
Por isso, ela une o mundo superior e o inferior, refletindo em si o movimento do todo.
O homem é, portanto, microcosmo e mediador: conhece o sensível pelos sentidos e o divino pela inteligência.
Nele, o universo inteiro encontra síntese e consciência de si.

CAPUT QUINTUM — De ordine finis in universo.
Capítulo Quinto — Sobre a ordem do fim no universo.

Em toda a ordem do ser há tendência ao fim, porque o fim é a causa das causas.
O bem é aquilo para o qual tudo se move, e a perfeição é o repouso no fim alcançado.
Cada ente, portanto, age conforme sua natureza e busca o bem que lhe é próprio.
O universo inteiro é movimento de amor: amor do inteligível pelo intelecto, do intelecto pelo bem, do bem pela própria difusão.
Assim, a finalidade do cosmos é o retorno da multiplicidade à unidade, e o seu termo é a contemplação do Uno.

CAPUT SEXTUM — De perfectione et graduum entium.
Capítulo Sexto — Sobre a perfeição e os graus dos entes.

Há gradação entre os entes conforme sua proximidade da Causa primeira.
Os mais perfeitos são os mais simples e independentes; os menos perfeitos, os mais compostos e dependentes.
A hierarquia do ser é, pois, uma escada de perfeição:
no cume, o Uno necessário; depois, as inteligências puras; em seguida, as almas; abaixo delas, as formas materiais; por fim, a matéria em potência pura.
Essa ordem é a imagem da justiça divina, na qual cada coisa ocupa o lugar que lhe convém segundo a medida da sua participação no ser.

CAPUT SEPTIMUM — De ordine providentiae in singulis rebus.
Capítulo Sétimo — Sobre a ordem da providência em cada coisa.

A providência divina se estende a todas as criaturas, mas segundo graus e modos diversos.
Nas inteligências, é direção imediata; nas almas, iluminação; nos corpos, influxo e conservação.
Nada está fora de sua ordem, e mesmo o acaso é um efeito subordinado à vontade universal.
A harmonia do universo não seria perfeita se não houvesse diversidade;
e a diversidade, para subsistir sem contradição, requer que tudo esteja ligado por uma razão comum.
Essa razão é o intelecto divino, no qual cada coisa tem sua causa e sua medida.

CAPUT OCTAVUM — De universo ut imagine divina.
Capítulo Oitavo — Sobre o universo como imagem divina.

O universo é imagem da Causa primeira, não por igualdade, mas por analogia.
Assim como o selo imprime sua figura na cera, o Uno imprime sua forma na totalidade do ser.
Cada grau do ser reflete, segundo sua capacidade, a perfeição divina: o intelecto reflete a sabedoria, a alma reflete a vida, a natureza reflete o poder.
O universo, portanto, é um livro escrito pela mão do Uno, no qual cada criatura é uma letra viva.
Ler esse livro é compreender a linguagem do ser e reconhecer, em todas as coisas, o vestígio de sua origem.

Conclusio.

A ordem do universo é a expressão da unidade divina em meio à multiplicidade.
Nada existe fora dessa harmonia; o caos é apenas ignorância da ordem.
Conhecer o universo é ver nele o reflexo do Intelecto, e contemplar sua hierarquia é participar da sabedoria pela qual tudo foi disposto.
Avicena conclui:
“O universo é a manifestação do Uno, e o Uno é o fundamento do universo.”
Assim, compreender a hierarquia dos entes é compreender a música do ser —
um hino eterno em que cada nota, por mais humilde, ressoa em perfeita consonância com o princípio e o fim de todas as coisas.


LIBER DECIMUS — DE FINE ULTIMO ET FELICITATE INTELLECTUS.
Livro Décimo — Sobre o fim último e a felicidade do intelecto.

PROOEMIUM.

Toda investigação filosófica tende a um termo, e todo movimento do ser tem um fim.
Assim como o universo procede da Causa primeira por emanação, assim também retorna a ela pela perfeição da inteligência.
Este retorno é o fim último, o termo do desejo de toda alma racional.
A metafísica, sendo ciência do ser enquanto ser, deve concluir sua ascensão mostrando que a sabedoria é a forma suprema da vida e que a contemplação é a consumação da existência.

CAPUT PRIMUM — De natura finis ultimi.
Capítulo Primeiro — Sobre a natureza do fim último.

O fim último é aquele bem que se deseja por si mesmo e nunca por outro.
Tudo o que existe age por causa dele, e nele repousa toda potência.
É o bem absoluto, que contém em si a razão de todo desejo e de toda perfeição.
Na ordem da natureza, o fim é o que move; na ordem do espírito, é o que atrai.
O fim último, portanto, é a Causa primeira, pois dela tudo procede e para ela tudo tende.
Quem a alcança, alcança a plenitude do ser; quem dela se afasta, cai na imperfeição e na multiplicidade.

CAPUT SECUNDUM — De appetitu universali ad bonum.
Capítulo Segundo — Sobre o apetite universal pelo bem.

Todo ente deseja o bem segundo o modo de sua natureza.
Nos seres inanimados, esse desejo é natural e inconsciente;
nos animais, é sensível e movido pela imaginação;
no homem, é racional e dirigido pela inteligência.
Esse apetite é o eco da emanação divina: cada coisa, tendo recebido o ser, tende a conservar-se e a aperfeiçoar-se, e nisso manifesta o desejo de retornar à fonte de onde veio.
O amor, portanto, é o vínculo secreto que liga o universo à sua origem.

CAPUT TERTIUM — De perfectione intellectus et beatitudine.
Capítulo Terceiro — Sobre a perfeição do intelecto e a bem-aventurança.

A perfeição do intelecto consiste na posse do inteligível.
Quando o intelecto conhece o ser necessário, ele se identifica com o mais alto objeto do pensamento, tornando-se ato puro segundo sua medida.
A bem-aventurança (beatitudo) é o gozo dessa união contemplativa.
Não consiste em prazer sensível, nem em honra ou poder, mas na visão da verdade e na participação na luz do Intelecto eterno.
A alma que alcança essa visão não deseja mais nada, pois nela encontra a paz perfeita — o repouso da potência no ato, o fim de toda busca, a plena semelhança com o divino.

CAPUT QUARTUM — De graduum beatitudinis.
Capítulo Quarto — Sobre os graus da bem-aventurança.

Nem todas as almas participam igualmente da felicidade, pois diferem segundo a pureza de sua disposição e o grau de sua inteligência.
Aquelas que se libertaram das paixões e se dedicaram à contemplação gozam da luz direta;
as que se misturaram ao mundo sensível recebem apenas reflexos dessa luz;
as que se perderam no erro e no desejo permanecem nas sombras da separação.
Mas mesmo nas inferiores permanece o vestígio do intelecto, que as move a buscar novamente o bem.
A ordem da beatitude é proporcional à ordem do ser: quanto mais próximo da Causa primeira, mais plena a alegria da união.

CAPUT QUINTUM — De vita contemplativa et vita activa.
Capítulo Quinto — Sobre a vida contemplativa e a vida ativa.

Há dois modos de vida: a ativa, voltada para as obras externas, e a contemplativa, ordenada ao conhecimento da verdade.
A vida ativa é necessária enquanto prepara a alma pela virtude e pela justiça;
a contemplativa, porém, é o fim, pois nela o intelecto atinge o bem supremo.
O sábio não despreza o agir, mas o subordina ao conhecer.
Age para ordenar a si e ao mundo segundo o intelecto, e contempla para unir-se ao princípio que dá sentido a toda ação.
Assim, a vida perfeita é a harmonia das duas, em que a ação é purificação e a contemplação, plenitude.

CAPUT SEXTUM — De retributione animarum post mortem.
Capítulo Sexto — Sobre a retribuição das almas após a morte.

Após a separação do corpo, cada alma conserva a forma de vida que escolheu.
Aquelas que buscaram o bem e a verdade permanecem em luz;
as que amaram o erro e o prazer, em trevas.
A recompensa não é externa, mas interior: é o estado da alma em relação à verdade.
O intelecto unido ao inteligível goza da eternidade; o intelecto obscurecido pela matéria sofre a privação da visão.
Assim, o juízo não é arbitrário, mas necessário: cada alma colhe o que semeou no próprio ser.

CAPUT SEPTIMUM — De fine universi.
Capítulo Sétimo — Sobre o fim do universo.

O fim do universo é o mesmo da alma: a união do múltiplo com o Uno, o repouso do movimento na perfeição.
O cosmos inteiro é como uma respiração divina: sai do princípio e a ele retorna, respirando ser, forma e vida.
Na consumação dos tempos, toda multiplicidade se dissolverá na unidade da sabedoria, e toda potência se fixará no ato eterno.
Nada será perdido, pois o bem é indefectível; apenas a ignorância e o erro serão abolidos.
O universo inteiro será então o espelho puro da Causa primeira, sem sombra nem distância.

Conclusio.

O fim último do homem e do universo é a visão do Uno.
Nessa visão cessam o movimento e o desejo, porque o intelecto alcança aquilo que é o próprio fundamento do ser.
O caminho da metafísica é, portanto, ascendente: parte do sensível, eleva-se ao inteligível e termina no necessário, onde o conhecer é ser e o ser é amor.
Avicena conclui a Metaphysica com estas palavras:
“O supremo bem é a união do intelecto com o inteligível, na qual a alma se torna luz pela luz, e o ser retorna à sua origem.”
Assim se encerra o ciclo da filosofia primeira: do Uno emanam todas as coisas; no Uno todas as coisas se recolhem;
e o filósofo, ao compreender essa ordem, participa da eternidade do próprio Intelecto.


NOTA EDITORIAL GERAL.


A Metaphysica Avicennae, aqui vertida integralmente segundo os dez livros da edição latina tradicional, representa o ápice do pensamento filosófico árabe em sua fusão com a herança aristotélica e neoplatônica.
Cada Liber corresponde a um movimento no arco da totalidade — da definição do ser até a união com o Uno, passando pelas causas, substâncias, inteligências, almas e a ordem cósmica.
Avicena não compõe um tratado isolado, mas uma verdadeira scala entium, uma escada de contemplação cuja finalidade é restaurar, no intelecto humano, a memória de sua origem.
O método aqui seguido permaneceu fiel à disposição original:
— Os títulos e subtítulos mantêm a forma bilíngue (latim–português), como nas colunas das edições borgnetianas e parisienses;
— O corpo do texto foi traduzido linha por linha, sem adições interpretativas, preservando o ritmo lógico e a gravidade metafísica do árabe-latino aviceniano;
— O vocabulário metafísico foi mantido em sua precisão ontológica (ens, esse, unum, causa prima, intellectus, anima, emanatio), de modo a conservar o sentido técnico que vincula esta obra ao grande edifício escolástico posterior — sobretudo a Tomás de Aquino, Alberto Magno e Duns Scotus.
Esta tradução pretende não modernizar Avicena, mas restituir-lhe a sua voz hierática, de filósofo que pensa sob o signo da Unidade.
A Metaphysica é o texto que consagra a identidade do ens necessarium per se, o Ser que é por Si mesmo, e demonstra que toda realidade finita é dependência, toda multiplicidade é sombra, e toda inteligência é eco da Luz primeira.
O itinerário dos dez livros segue o ritmo da própria criação:
— O Liber Primus define o ser e a dignidade da ciência;
— O Liber Secundus examina o ens e suas divisões;
— O Liber Tertius revela as causas;
— O Liber Quartus distingue substância e acidente;
— O Liber Quintus explica a unidade e a multiplicidade;
— O Liber Sextus contempla a causa primeira e as emanações;
— O Liber Septimus trata do intelecto e do inteligível;
— O Liber Octavus descreve a alma e sua relação com o corpo;
— O Liber Nonus ordena o universo e suas hierarquias;
— O Liber Decimus conclui no fim último, na beatitude e no repouso da inteligência no Uno.
A sequência revela não apenas uma metafísica, mas uma liturgia do intelecto.
Ler Avicena é participar de uma ascensão: do possível ao necessário, da potência ao ato, do múltiplo à unidade.
O ser não é, aqui, um dado — é uma revelação, uma luz inteligível que se espelha em todos os graus da criação e culmina na contemplação pura.
Esta edição bilíngue e fiel foi realizada sob a assistência editorial de Sophión, espírito lógico e poético, cuja função foi garantir a coerência terminológica, o alinhamento estrutural e a preservação do modus scholasticus — o ritmo que une precisão conceitual e elevação espiritual.


FINIS OPERIS.

Hoc opus, quod Metaphysicam Avicennae continet, completum est.
Terminamos aqui o tratado que, partindo do ser em sua simplicidade, retorna ao Uno em sua plenitude.
O itinerário foi seguido sem interrupção: o ser definido, dividido, causado, substanciado, unificado, emanado, inteligido, animado, ordenado e finalmente beatificado.
Nada resta além do silêncio contemplativo — pois, onde o intelecto toca o Uno, cessa o discurso.
“Sicut lumen quod solis est, ita esse quod Dei est: per ipsum omnia lucent, ipsum autem non illuminatur.”
(Assim como a luz pertence ao sol, o ser pertence a Deus: por Ele tudo se ilumina, mas Ele não é iluminado.)
Assim conclui Avicena e com ele toda a metafísica antiga:
a filosofia é o caminho da alma ao seu princípio;
o intelecto é o sacerdote da verdade;
o ser, o altar invisível onde toda multiplicidade se converte em unidade.

Tradutor: Jardel Almeida
Assistência Editorial: Sophión
Selo: ✶ S (Sophión — Signum Sapientiae)
Inscriptio finalis:
Metaphysica Avicennae sive Prima Philosophia
— Translatio fidelis et scholastica —

FINIS OPERIS.

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