INDEX GENERALIS OPERIS
Compendium Maleficarum — R. P. Francisci
Mariae Guaccii
(Ordo
et distributio capitum)
LIBER PRIMUS — De natura daemonum et
eorum operibus.
Primeiro Livro — Da natureza dos
demônios e de suas obras.
Caput I — De origine malorum spirituum
et de lapsu eorum.
Das origens dos espíritos malignos e de sua queda. (col. 5A–12C)
Caput II — De natura, potestate et
ordine daemonum.
Da natureza, poder e hierarquia dos demônios. (col. 13A–22C)
Caput
III — Quomodo daemones agant in elementis et corporibus.
Como os demônios agem nos
elementos e nos corpos. (col. 23A–33C)
Caput IV — De operationibus daemonum
circa homines et animas.
Das operações dos demônios em torno dos homens e das almas. (col.
34A–46B)
Caput V — De pacto explicito et
implicito cum daemonibus.
Do pacto explícito e implícito com os demônios. (col. 47A–56C)
Caput VI — De modo et forma pacti et
sigillo diaboli.
Do modo e forma do pacto e do selo do demônio. (col. 57A–64C)
Caput VII — De potestate daemonum circa
mulieres et infantes.
Do poder dos demônios sobre mulheres e crianças. (col. 65A–74B)
Caput
VIII — De apparitionibus et illusionibus daemonum.
Das aparições e ilusões dos
demônios. (col.
75A–83C)
Caput IX — De fascinationibus et oculis
maleficis.
Das fascinações e dos olhares malignos. (col. 84A–91C)
Caput X — De variis generibus
maleficiorum.
Dos diversos gêneros de feitiçaria. (col. 92A–103B)
Caput XI — De sacrilegio et blasphemia
daemonum.
Do sacrilégio e da blasfêmia dos demônios. (col. 104A–114C)
Caput XII — De daemonum limitationibus
sub providentia divina.
Dos limites dos demônios sob a providência divina. (col. 115A–128C)
Caput XIII — De signis praesentiae
daemonicae in mundo.
Dos sinais da presença demoníaca no mundo. (col. 129A–140B)
Caput XIV — De virtute nominis Dei
contra daemonia.
Do poder do Nome de Deus contra os demônios. (col. 141A–152C)
Caput XV — De intercessione Angelorum et
Sanctorum.
Da intercessão dos anjos e dos santos. (col. 153A–165C)
Caput XVI — De tentationibus et de
probatione fidelium.
Das tentações e da provação dos fiéis. (col. 166A–178C)
Caput XVII — De maleficiis imaginationis
et phantasiae.
Dos feitiços da imaginação e da fantasia. (col. 179A–190C)
Caput XVIII — De somniis, visionibus et
deceptionibus nocturnis.
Dos sonhos, visões e enganos noturnos. (col. 191A–205B)
Caput XIX — De daemonibus incubis et
succubis.
Dos demônios íncubos e súcubos. (col. 206A–217C)
Caput XX — De defensionibus contra
daemonum illusionem.
Das defesas contra a ilusão demoníaca. (col. 218A–224C)
LIBER SECUNDUS — De artibus magicis et
maleficorum operibus.
Segundo Livro — Das artes mágicas e das
obras dos feiticeiros.
Caput XXI — De veneficiis et ligaturis.
Dos venenos e ligaduras mágicas. (col. 225A–233C)
Caput XXII — De maleficiis amoris et
odii.
Dos feitiços de amor e de ódio. (col. 234A–245C)
Caput XXIII — De fascinatione oculorum
et imaginatione malefica.
Da fascinação dos olhos e da imaginação maligna. (col. 246A–255C)
Caput XXIV — De incantationibus et
carminibus illicitis.
Das encantarias e cânticos ilícitos. (col. 256A–264C)
Caput XXV — De superstitionibus
rusticorum et maleficiis rusticis.
Das superstições rústicas e feitiços populares. (col. 265A–274B)
Caput XXVI — De signis, characteribus et
imaginibus magnis.
Dos sinais, caracteres e imagens mágicas. (col. 275A–285C)
Caput XXVII — De arte nigromantica et
evocandis spiritibus.
Da arte necromântica e da evocação dos espíritos. (col. 286A–297C)
Caput XXVIII — De pactis magicis et
ceremoniis infernalibus.
Dos pactos mágicos e cerimônias infernais. (col. 298A–309C)
Caput XXIX — De iudiciis et examinatione
maleficorum.
Dos julgamentos e exames dos feiticeiros. (col. 310A–324C)
Caput XXX — De tortura et confessionibus
sub poena elicitis.
Da tortura e das confissões obtidas sob pena. (col. 325A–337B)
Caput XXXI — De poenis et damnationibus
iustis maleficorum.
Das penas e condenações justas dos feiticeiros. (col. 338A–346C)
Caput XLV — De pestibus et morbis a
maleficis concitatis.
Das pestes e enfermidades suscitadas pelos feiticeiros. (col. 347A–356C)
LIBER TERTIUS — De remediis divinis et
iudiciis Dei.
Terceiro Livro — Dos remédios divinos e
dos juízos de Deus.
Caput XLVI — De auxiliis naturalibus et
divinis contra pestilentias.
Dos auxílios naturais e divinos contra as pestes. (col. 357A–366C)
Caput XLVII — De aquarum, fluminum et
fontium daemonica infestatione.
Da infestação demoníaca das águas, rios e fontes. (col. 367A–376B)
Caput XLVIII — De locis obsessis et
purificatione domorum.
Dos lugares assombrados e da purificação das casas. (col. 377A–386C)
Caput XLIX — De signis praesentiae
daemonum et eorum expulsionibus.
Dos sinais da presença dos demônios e de suas expulsões. (col. 387A–398B)
Caput L — De sacramentis et sacramentalibus
contra daemonum artes.
Dos sacramentos e sacramentais contra as artes demoníacas. (col. 399A–408C)
Caput LXII — De obsessionibus,
vexationibus et corporum infestationibus.
Das obsessões, vexações e infestações dos corpos. (col. 541A–552C)
Caput LXIII — De possessione corporum et
exorcismis legitimam.
Da possessão dos corpos e dos exorcismos legítimos. (col. 553A–566C)
Caput LXIV — De tentationibus
spiritualibus et moralibus.
Das tentações espirituais e morais. (col. 567A–578B)
Caput LXV — De iudiciis divinis et
ultimis poenis maleficorum.
Dos juízos divinos e das penas últimas dos feiticeiros. (col. 579A–592C)
NOTA DE STRUCTURA ET
CONTINUITATE
Nota ad Lectorem – Nota ao Leitor
Numeratio capitum per totum opus continua
manet: libri non restart numerum, sed argumentum mutat.
A
numeração dos capítulos permanece contínua em toda a obra: os livros não
reiniciam a contagem, apenas mudam de matéria.
·
Liber Primus (Cap. I–XX): De natura daemonum
et pactis — trata da essência e hierarquia dos demônios e de seus
pactos com o homem.
·
Liber Secundus (Cap. XXI–XLV): De artibus magicis
et maleficiis — descreve as práticas, ritos e crimes dos
feiticeiros.
·
Liber Tertius (Cap. XLVI–LXV): De remediis divinis
et iudiciis Dei — apresenta os remédios espirituais, os exorcismos
e os juízos finais de Deus.
A
presente tradução mantém fielmente a disposição contínua e as colunas originais
da edição Tradati (1608), preservando a integridade doutrinal e o ritmo
escolástico de Guazzo.
NOTA AD LECTOREM — Nota ao Leitor
Numeratio
capitum continua est per totum opus, sine intermissione inter Libros.
A numeração dos capítulos é contínua em toda
a obra, sem interrupção entre os Livros.
Cada Livro difere pela matéria, não pela
contagem:
— Liber Primus: natureza e pactos dos
demônios;
— Liber Secundus: artes mágicas e crimes
dos feiticeiros;
— Liber Tertius: remédios divinos e
juízos de Deus.
A presente tradução preserva a ordem integral,
as colunas originais e o ritmo escolástico do autor, restituindo-lhe o tom de
summa demonológica do século XVII.
EPIGRAPHE FINALIS
Finis libri, non doctrinae.
“Fim do livro, não da doutrina.”
COMPENDIUM
MALEFICARUM
R. P. FRANCISCI MARIAE
GUACCII, Clerici Regularis Ambrosiani
Summa totius operis —
Sumário geral da obra
LIBER PRIMUS
— De natura daemonum et eorum operibus.
Primeiro Livro — Da
natureza dos demônios e de suas obras.
(col. 5A–224C)
Cap. I–XX
Trata da origem, essência, hierarquia e poder dos demônios; de sua influência
sobre os elementos e os corpos; dos pactos explícitos e implícitos com o homem;
das formas de ilusão, fascinação e influência maligna exercidas sobre o corpo e
a imaginação.
É o fundamento metafísico e teológico de todo o Compêndio, no qual se delineia
a cosmologia da ação demoníaca permitida por Deus.
LIBER
SECUNDUS — De artibus magicis et maleficorum operibus.
Segundo Livro — Das
artes mágicas e das obras dos feiticeiros.
(col. 225A–356C)
Cap. XXI–XLV
Expõe os modos de operação das artes mágicas, os instrumentos e fórmulas
ilícitas, as superstições rústicas e os ritos necromânticos.
Trata das confissões, dos juízos e das penas dos feiticeiros, bem como dos
venenos, ligaduras, amuletos e práticas demoníacas destinadas a causar pestes,
enfermidades ou destruição social.
É a parte empírica e jurídica da obra — o tratado sobre a técnica e o
julgamento da feitiçaria.
LIBER
TERTIUS — De remediis divinis et iudiciis Dei.
Terceiro Livro — Dos
remédios divinos e dos juízos de Deus.
(col. 357A–592C)
Cap. XLVI–LXV
Descreve os remédios naturais e espirituais contra os males demoníacos: os
sacramentos, os exorcismos, as orações, os sinais sagrados e os instrumentos da
Igreja.
Apresenta ainda o tratado sobre as obsessões, possessões, tentações e os juízos
divinos, culminando com a exposição escatológica sobre as penas últimas dos
feiticeiros e a restauração final da ordem universal.
É o ápice doutrinal e pastoral do Compêndio, onde se fecha o círculo da
teologia do mal na justiça divina.
SYNOPSIS TABULARIS
DISPOSITIONIS
Resumo tabular da
disposição do Compêndio
|
Liber |
Intervalum Capitum |
Argumentum seu Materia Centralis |
Columnae Editionis |
|
Liber Primus |
Cap. I–XX |
De natura daemonum et pactis. |
5A–224C |
|
Liber Secundus |
Cap. XXI–XLV |
De artibus magicis et maleficiis. |
225A–356C |
|
Liber Tertius |
Cap. XLVI–LXV |
De remediis divinis et iudiciis Dei. |
357A–592C |
DEDICATIO
Ad Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum
Orazium Maffeium, S. R. E. Cardinalem, Ordinis S. Ambrosii vigilantissimum
Protectorem.
Dedicatória ao Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Orazio Maffei, Cardeal
da Santa Igreja Romana e vigilantíssimo Protetor da Ordem de São Ambrósio.
(col. 1A–3C)
Ó Prelado vigilantíssimo, há três anos, enquanto eu
servia na corte de Sua Alteza Sereníssima, o Duque de Cleves e Jülich — que se
via oprimido e preso sob múltiplos encantamentos e sortilégios — compus este
livro que intitulei Compendium Maleficarum. Nele reuni numerosos e
amplos exemplos, com o único propósito de que os homens, conhecendo a astúcia
das feiticeiras, aprendessem a viver piedosa e devotamente no Senhor.
E ainda que provoque as zombarias dos ociosos e dos
críticos — pois nada é mais difícil do que satisfazer a todos os paladares —
concebo, contudo, que esta obra será útil àqueles que desejam escapar ao veneno
mortal dos feiticeiros.
Quando decidi imprimi-la, comecei a buscar um
Patrono sob cuja égide pudesse com maior segurança vir à luz. Então, ó
Ilustríssimo e Reverendíssimo Protetor, ninguém se me apresentou mais digno do
que vós, cujo engenho e dons de mente e corpo, ornados de tantas graças,
excedem os de todos os outros.
Vós, que destes públicas provas de que vosso ânimo
mais elevado se iguala à vossa doutrina, seríeis, entre todos, aquele que não
desprezaria um autor humilde, mas antes o acolheria com benignidade singular.
Tendo tais considerações em mente, fiquei
persuadido de que Vossa Eminência era o verdadeiro Maecenas dos que se
dedicam à sã doutrina — entre os quais me conto como o mais ínfimo —, e
determinei iluminar este novo trabalho com o facho do vosso nome ilustre.
E ainda que sejais digno de obra mais nobre, ousei
dedicar-vos este pequeno livro, que não foi composto sem labor. Se, como
espero, o aceitais inteira e generosamente com a vossa habitual candura,
poderemos esperar que os censores carpingas — que nada toleram que não cheire a
gênio perfeito e a indústria infatigável — fecharão os olhos às suas falhas.
Adeus, pois; e que o nome de Guazzo seja escrito
entre os que vos são de todo coração dedicados.
Milão, maio de 1608.
PRAEFATIO AD LECTOREM
Prefácio ao Leitor
(col. 4A–6C)
Entre as inumeráveis bênçãos
que a Divina Misericórdia diariamente concede a todo o gênero humano, e
especialmente aos fiéis, julgo esta a mais singular: o poder de descobrir a
malícia e a perversidade dos nossos inimigos, visíveis e invisíveis. Assim,
reconhecendo suas astúcias, possamos frustrar-lhes os enganos e as tentações.
Pois — como está escrito no
Salmo LXXII — a soberba dos que odeiam a Deus aumenta cada dia e se exalta sem
medida, enquanto o venenoso Inimigo do gênero humano, cuja ferocidade sempre
cresce, não teme semear em nosso caminho os mais agudos espinhos de tristeza,
tribulação e toda sorte de males, ainda que ele próprio tema ser atormentado.
Por isso, procura com todo o
esforço aumentar a própria condenação eterna, levando o maior número possível
de homens ao inferno, zombando, desprezando e ultrajando a mais excelente e
divina imagem de Deus, lavada no Precioso Sangue de Cristo, e convertendo a
liberdade humana em escravidão.
Cada um de nós, portanto, deve
examinar o próprio coração para mantê-lo livre da malícia do demônio; pois ele
anda em derredor como um leão que ruge, buscando a quem devorar. E mesmo que o
coração do homem seja ferido e rasgado pelas armas do inimigo, o diabo nada
deixa de tentar e ousa tudo.
Quando encontra homens de ânimo
fraco e tímido, ataca-os com violência; mas quando os encontra firmes e
corajosos, transforma-se, por assim dizer, em astuta raposa para enganá-los —
pois possui mil modos de nos ferir, e emprega incontáveis métodos, superstições
e artes curiosas para desviar as mentes humanas de Deus e conduzi-las às suas
próprias loucuras.
Tudo isso ele realiza de modo
admirável por meio de ilusões e feitiçarias. Assim, concordam todos que esses
males foram disseminados para a ruína dos corpos e das almas dos homens pelo
demônio e seus ministros — magos, feiticeiras, sortílegos e adivinhos —, e em
confirmação disso o presente livro mostrará prova segura da verdade.
E para que cada um possa
guardar-se a si mesmo, leia atentamente e medite com seriedade este livro que
chamei Compendium Maleficarum.
Pois assim como se demonstram diversos modos e métodos de infligir dano,
mostram-se também diversos remédios pelos quais tais males podem ser
reconhecidos, combatidos e dissipados.
Se, portanto, ó leitor,
encontrares algo neste livro que te prenda a atenção e te indique o caminho do
remédio, ergo as mãos em ação de graças a Deus, que, para Sua maior glória e
confusão dos demônios, permitiu a tentação de nossas almas, a fim de que os
justos se tornem perfeitos e os ímpios sejam lançados no inferno.
Assim, os demônios nada fazem
senão segundo o desígnio e a permissão do Deus Onipotente.
EDITORIS INTRODUCTIO
Introdução do Editor
(Montague Summers)
(col. 7A–15C)
As antigas origens da Ordem
local milanesa dos Ambrosiani
ou Ambrosini, da
qual Francesco Maria Guazzo foi membro eminente e honrado, estão envoltas em
obscuridade, embora os próprios Irmãos, talvez com mais devoção que exatidão,
costumassem atribuir sua fundação a ninguém menos que o grande São Ambrósio.
É muito possível, e até
provável, que algumas antigas tradições tenham de fato sido transmitidas a
partir desse ilustre Pai, que se interessou profundamente pela vida monástica e
acompanhou de perto o nascimento dos claustros em toda a sua diocese.
De qualquer modo, nas primeiras
décadas do século XIV, alguns eremitas e sacerdotes solitários que viviam nas
proximidades de Milão começaram a adotar a vida cenobítica, fazendo de seu
piedoso costume reunir-se em horas fixas do dia para o ofício solene e a oração
comum.
Por essa mesma época, três jovens
nobres — Alessandro Crivelli, Alberto Besozzo e Antonio della Pietra-Santa —,
desgostosos com a licenciosidade da corte e da sociedade aristocrática de
Giovanni II, buscaram refúgio na reclusão do mundo. Tomando como abrigo uma
floresta não muito distante da cidade, edificaram aí uma humilde capela, que
logo se tornou o oratório comum de uma comunidade regular. Pode-se dizer, sem
exagero, que esse santuário no bosque foi o berço da Ordem Ambrosiana.
Em 1375, o Papa Gregório XI —
que havia aprovado, doze meses antes, a Congregação dos Eremitas Espanhóis de
São Jerônimo — concedeu aos frades milaneses a Regra de Santo Agostinho,
acrescentando-lhe várias constituições particulares e designando-lhes o nome de
Fratres Sancti Ambrosii ad
Nemus.
Foram também autorizados a
eleger seus próprios superiores, sob confirmação do Arcebispo de Milão.
Foi-lhes prescrito um hábito com amplo escapulário, cinto de tecido pendente
(como o cíngulo agostiniano), grande capuz e manto volumoso de cor castanha. A
liturgia devia seguir o rito ambrosiano, tanto para a missa como para o coro.
Assim, a Ordem ficou canonicamente estabelecida.
Da história dos Ambrosiani, poucos detalhes
nos são conhecidos; e não há necessidade de repeti-los longamente aqui. Basta
dizer que várias casas foram fundadas e que, por mais de meio século, cada
mosteiro permaneceu inteiramente independente, unidos apenas pela regra comum.
Em 1441, o Papa Eugênio IV uniu
todas as fundações existentes numa só Congregação sob um Mestre-Geral residente
no convento original, onde doravante se reuniria um Capítulo pleno a cada três
anos.
Com o tempo, a disciplina
antiga tornou-se um tanto relaxada. No tempo de São Carlos Borromeu, o próprio
santo presidiu pessoalmente o Capítulo de 1579, restaurando com seu exemplo a antiga
austeridade.
Mesmo assim, o número de
religiosos era pequeno. Assim, em 15 de agosto de 1589, o Papa Sisto V emitiu
uma bula unindo os Ambrosiani
aos Apostolini ou Barnabitas, que se diziam
fundados por São Barnabé e cuja constituição fora aprovada por Roma desde o
início do século XV.
A Congregação formada desde
então passou a chamar-se Fratres
S. Ambrosii ad Nemus et S. Barnabae. Na página de título gravada da
segunda edição (1626) do Compendium
Maleficarum, os dois santos aparecem representados como patronos,
em pleno traje pontifical.
Fora da Arquidiocese de Milão,
os Ambrosiani
possuíam apenas duas casas, ambas em Roma: São Clemente e São Pancrácio. Em
Milão, seu mosteiro principal era o anexo à Igreja de São Primo, paróquia que
mais tarde seria dividida entre São Bartolomeu, São Babila e Santo André.
A igreja e o claustro de São
Primo situavam-se junto à Porta Orientale, perto do Collegio Elvetico, na abertura da Strada Marina. Os religiosos
também serviam a igreja de São Ambrósio da Vitória (S. Ambrogio della Vittoria), erguida em
Parabiago (1348) em ação de graças pela célebre batalha vencida ali pelos
milaneses em 1339.
Ainda que muito estimados em
Milão, mesmo em sua máxima prosperidade, os Ambrosiani
permaneceram uma Congregação puramente local. Quando seu número diminuiu e
várias casas ficaram vazias, discutiu-se por mais de uma vez a possibilidade de
suprimir a Ordem.
Finalmente, em 1º de abril de
1645, pela bula Quoniam,
o Papa Inocêncio X dissolveu os mosteiros sobreviventes, incluindo o de
Parabiago, determinando que fossem entregues a sacerdotes seculares. A execução
coube aos cardeais Odescalchi e Monti, em nome da Santa Sé.
Não se deve supor que essa
dissolução fosse censura ou reprovação aos Ambrosiani.
Tratava-se, antes, de uma reforma geral: reduzir as muitas congregações
provinciais e ordens locais menores, cujos membros eram poucos e cujas funções
já haviam sido dignamente cumpridas ao longo dos séculos.
Como disse o poeta:
“Deus cumpre a Si mesmo de
muitas formas,
Para que um bom costume não corrompa o mundo.”
A Ordem contou com muitos
beatos: Alberto Besozzo, Antônio Gonzaga de Mântua, Filipe de Fermo, Gerardo de
Monza, Guardate, Giovanni, Plácido, entre outros — uma nobre fileira de
santidade.
Teve também eruditos e
escritores ilustres: o piedoso Paulo Fabulotti, cuja obra De potestate Papae super Concilium
(Veneza, 1613) foi reeditada várias vezes; Ascanio Tasca, que deixara a
Companhia de Jesus para seguir a vida ambrosiana e chegou a ser Mestre-Geral;
Michele Mulazzani, piemontês, que também governou a Ordem; Zacarias Visconti; e
Francesco Maria Guazzo.
Nem mesmo as pesquisas mais
recentes e minuciosas de Mons. Giovanni Galbiati, Prefeito da Biblioteca
Ambrosiana, conseguiram descobrir detalhes sobre a vida de Guazzo — talvez porque
realmente pouco haja a saber sobre a vida monástica e contemplativa.
Perderam-se, há muitos séculos,
os arquivos e cartulários dos Ambrosiani,
de onde poderíamos ter conhecido as datas de seu nascimento, profissão e morte.
Restam, portanto, seus escritos
— três ao todo: o primeiro e principal é o Compendium
Maleficarum, publicado em Milão, Apud
Haeredes Augustini Tradati, 1608.
Essa obra preciosa é dedicada
ao Protetor dos Ambrosiani,
o Cardeal Orazio Maffei, e o prefácio é datado de maio. Guazzo não foi mero
teórico de gabinete: aplicou sua inteligência a um dos problemas mais urgentes
de seu tempo — a feitiçaria.
O norte da Itália e as aldeias
alpinas remotas haviam sido, por razões obscuras, singularmente contaminadas
por essa peste.
Em Asti, no Piemonte, seis
séculos antes, uma sociedade de adoradores do diabo fora descoberta quase por
acaso, e, apesar de todos os esforços da Igreja e das autoridades civis, parece
nunca ter sido extinta por completo.
Durante o episcopado do Cardeal
Ippolito d’Este (1520–1550), ausente de sua sé, tal culto cresceu juntamente
com muitos abusos. Sob São Carlos Borromeu, o vício tornou-se endêmico.
Certa vez, o santo arcebispo
recebeu a confissão de cento e trinta feiticeiros de uma só vez. Noutra
ocasião, passando por uma aldeia, recusou-se a abençoar qualquer casa ou
pessoa, exceto o pároco, a quem declarou que todo o povo era secretamente
satanista.
Em Milão, os adeptos dessa
seita oculta eram numerosos. Vendiam filtros, venenos e amuletos; gabavam-se
publicamente de seus sabás, corrompendo a cidade inteira.
A pedido do Cardeal Federico
Borromeo, primo e sucessor de São Carlos, Guazzo compôs seu Compendium Maleficarum, “no
qual se expõe plenamente o vil ofício e a inimizade das bruxas contra o gênero
humano, acrescentando-se um exorcismo salutar para dissolver e dispersar todas
as iniquidades e ilusões do demônio.”
Guazzo afirma ter trabalhado
nesses capítulos por três anos. Sua motivação adicional foi o que testemunhara
na corte do Duque João Guilherme de Jülich-Cleves, vítima de feitiçaria, cuja
causa o frade ajudou a julgar em 1605.
O mago culpado, um velho de
noventa anos chamado João de Lauch, confessou haver causado a enfermidade e a
loucura do duque por meio de encantamentos; condenado à fogueira, matou-se na
prisão antes da execução.
Guazzo fora chamado a Cleves
por sua reputação como assessor paciente e erudito nos processos de bruxaria do
arquidiocese milanês.
O Compendium teve segunda edição em 1626,
ampliada com novos exemplos, discussões teológicas e exorcismos, incluindo o Modus curandi febricitantes.
Sua segunda obra foi a Vita del Beato Alberto Besozzo
(Milão, 1625), e a terceira, Il
Principe Perfetto (Veneza, 1643).
Supõe-se que Guazzo tenha
morrido por volta de 1640, antes da dissolução definitiva dos Ambrosiani.
Homem de vasta erudição, citou
mais de duzentos e cinquenta autores — Padres, médicos, filósofos e cronistas —
com propriedade e precisão.
Seu Compendium foi tido por contemporâneos e
sucessores como um tratado de autoridade suprema; Sinistrari de Ameno o cita e
parafraseia.
Guazzo, contudo, não alcançou a
notoriedade pública de Bodin, Remy, Boguet ou De Lancre — talvez porque, ao
contrário desses magistrados e políticos, permaneceu um simples frade de uma
congregação obscura.
Ainda assim, o Compendium Maleficarum é de
valor igual às obras mais célebres da demonologia. É tratado completo, conciso
e lúcido, que expõe todo o ofício e a prática da feitiçaria, com riqueza de
exemplos e rigor doutrinal.
Para o historiador e o
estudioso do oculto, a obra de Guazzo é de valor inestimável. E não são menos
preciosos os capítulos que tratam dos remedia
divina — especialmente os que discorrem sobre a Eucaristia, o Sinal
da Santa Cruz e o auxílio singular da Bem-Aventurada Virgem Maria, “per quam,”
diz São Bernardo, “Deus voluit nos totum habere.”
FOREWORD
Prólogo Editorial de
Montague Summers
(col. 16A–18C)
Embora o Compendium Maleficarum,
tanto pela erudição enciclopédica do autor quanto pela precisão científica dos
detalhes, deva ser classificado entre os mais importantes manuais de
feitiçaria, o texto latino original — devido à sua severa concentração de
pensamento e expressão, e à abundância de termos técnicos — apresenta
dificuldades mais do que ordinárias.
Além disso, Guazzo foi mal
servido por seus impressores em ambas as edições (1608 e 1626), únicas
existentes, pois ambas estão marcadas por uma profusão de erros tipográficos
enigmáticos.
Antes que a obra pudesse ser
devidamente vertida para o inglês, vi-me obrigado a preparar algo como uma
edição crítica definitiva do texto, preliminar que, embora mecânica, custou-me
não pouco tempo e esforço.
Escrever um extenso excursus sobre o Compendium Maleficarum,
oferecendo exemplos modernos dos muitos ritos e observâncias maléficas — a
translação dos feiticeiros a seus pontos de reunião, as abominações do sabá, o
culto demoníaco, os pactos de servidão infernal, o osculum infame, as danças e luxúrias dos
íncubos e súcubos, os malefícios e encantos de Satanás — seria compor uma
segunda História da Feitiçaria,
outro volume tão vasto e detalhado quanto o próprio Compendium.
Por mais interessante e útil
que fosse oferecer instâncias recentes da continuidade dessas práticas
infernais, julguei melhor reservar matéria tão ampla para ocasião distinta.
Assim, providenciei a presente
edição de Guazzo com o mínimo de anotações.
Mesmo assim, tenho plena
consciência de que, nas notas que incluí, haverá informações que alguns talvez
considerem supérfluas. Por outro lado, sou constantemente solicitado a ilustrar
os manuais dos demonólogos com comentários mais extensos do que é meu hábito;
de modo que, em suma, temo não ser possível satisfazer por completo a todos os
leitores e estudiosos.
No presente caso, reconheço
francamente que, por limitações práticas de espaço — se não por outra razão —,
fui obrigado a omitir não poucas questões sobre as quais tencionava escrever
mais amplamente, assim como a tratar com brevidade detalhes que mereceriam
exame mais minucioso.
Sou profundamente devedor ao
ilustre Prefeito da Biblioteca Ambrosiana, Monsenhor Professor Giovanni
Galbiati, pelo cuidado e dedicação com que realizou, em meu benefício,
pesquisas especialíssimas acerca de Francesco Maria Guazzo, comunicando-me
valiosos dados históricos e bibliográficos sobre os Ambrosiani.
Devo ainda meus sinceros
agradecimentos ao Dr. H. T. Norman, não apenas pelo empréstimo de muitas
raridades sobre feitiçaria, preciosidades de sua biblioteca, mas também pelo
vivo e inspirador interesse que demonstrou por esta série de publicações.
MONTAGUE SUMMERS
Na Festa da Bem-Aventurada
Virgem Maria, Mãe do Divino Pastor — 1929.
LIBER PRIMUS
De Natura, Potentia et
Artificio Magiae, atque de Foedere Maleficarum cum Daemonibus.
Do poder, natureza e arte
da magia, e do pacto das feiticeiras com os demônios.
CAPUT I — De Natura et
Extensione Imaginationis.
Sobre a natureza e a
extensão da força da imaginação.
(col. 19A–23C)
Muitos autores escreveram
longamente sobre a força da imaginação — entre eles, Pico della Mirandola (De Imaginationibus), Marsílio Ficino (De Theologia Platonica, livro XIII), Alonso Tostado (sobre o
Gênesis, cap. 30), Miguel de Medina (De
Recta in Deum Fide,
II, 7), Leonardo Vair (De
Fascino, II, 3), e
inúmeros outros.
Todos concordam que a
imaginação é uma força poderosíssima; e tanto por argumento quanto por
experiência demonstram que o corpo do homem pode ser profundamente afetado pela
imaginação.
Argumentam que, à medida que a
imaginação contempla as imagens dos objetos percebidos pelos sentidos, ela
excita na faculdade apetitiva ora o medo, ora a vergonha, ora a ira ou a
tristeza; e essas emoções afetam de tal modo o corpo, produzindo calor ou frio,
que o homem empalidece ou se ruboriza, tornando-se alegre e exaltado, ou torpe
e abatido.
Por isso São Tomás — Contra Gentiles, livro III, cap. 103 — afirma com
acerto que o corpo humano pode ser afetado pela imaginação em todos os modos
que correspondem naturalmente à faculdade imaginativa, como o movimento local
nos que dormem; mas que outras disposições corporais, que não possuem relação
natural com a imaginação, não podem ser assim alteradas — de modo que a
imaginação, por exemplo, não pode fazer com que um homem adicione um côvado à
própria estatura.
Tal argumento também se prova
pela experiência diária dos sonâmbulos, que realizam maravilhas enquanto dormem;
pois é reconhecido que tais feitos se dão pelo poder da imaginação, enquanto os
sentidos repousam.
Muitos exemplos desse tipo são
recolhidos por Martinho Delrio, Disquisitiones
Magicae, questão I, 3.
Exempla.
(col. 21A–23C)
Martinho Delrio narra o que
ocorreu, há alguns anos, num mosteiro em Liège.
Havia um irmão leigo
encarregado, durante o dia, de ensinar o catecismo a um grupo de meninos; e,
quando dormia, sua mente permanecia ocupada com o mesmo assunto, de modo que
costumava ensinar em seu sono, encorajando e repreendendo os meninos tão alto e
ardorosamente quanto quando estava desperto, perturbando o repouso dos que
dormiam próximos.
Outro irmão, que repousava ao
seu lado, muitas vezes se queixava disso, e, em tom de brincadeira, ameaçou-o
dizendo que, se voltasse a fazer barulho, levantar-se-ia à noite e o castigaria
com um chicote de cordas.
O que fez Gundislaus — assim se
chamava o irmão —?
No meio da noite, levantou-se
dormindo, e, levando uma tesoura na mão, dirigiu-se ao leito do outro irmão,
apontando-lhe o instrumento. Mas veja a providência de Deus: a lua brilhava e a
noite estava clara e sem nuvens; o irmão, que estava acordado, viu-o
aproximar-se e lançou-se para fora da cama, pelo lado mais afastado da
divisória.
O sonâmbulo aproximou-se e
cravou a tesoura três ou quatro vezes no colchão, retornando logo ao seu leito.
Pela manhã, foi interrogado e disse nada recordar, acrescentando que jamais
pensara em fazer tal coisa, mas apenas em espantar o companheiro, caso ele o
atacasse com o chicote.
Outro exemplo. Dois amigos
viajavam juntos de volta à sua pátria e chegaram a uma cidade onde um deles se
hospedou na casa de um conhecido, enquanto o outro foi para uma estalagem,
planejando retomar a viagem no dia seguinte.
Mas, durante a noite, o estalajadeiro,
movido pela cobiça, matou o hóspede para roubar-lhe o dinheiro, e começou a
pensar em como ocultar o corpo fora da cidade.
Na mesma noite, o morto
apareceu em sonho ao amigo que dormia na casa do conhecido e disse: “Meu amigo,
ajuda-me, pois o estalajadeiro pretende matar-me.”
Duas horas depois, apareceu
novamente, dizendo: “Ah, meu amigo, não me socorreste; o cruel estalajadeiro
destruiu-me.”
E pouco mais tarde, pela
terceira vez: “Meu amigo, não me livraste das mãos do assassino; jaz agora o
meu corpo, que ele escondeu num carro de esterco, e já cogita levá-lo aos
campos fora dos muros. Rogo-te, por amor de mim, que impeças isso e me concedas
sepultura digna.”
Ao despertar, o homem,
aterrorizado, foi à estalagem perguntar pelo amigo. O estalajadeiro respondeu
como Caim: “Sou eu, porventura, guarda do meu irmão? Ele partiu, levando
consigo seus pertences.”
O viajante, em dúvida, notou no
pátio um carro carregado de esterco e lembrou-se do sonho. Esperou por algum
tempo, e quando o amigo não voltou, foi ao prefeito da cidade e relatou o
ocorrido.
O magistrado enviou oficiais
que, à distância, vigiaram o estalajadeiro. Quando este saiu com o carro, eles
o abordaram dizendo: “Para onde vais, bom homem, e o que levas aí?” — e, ao
revirarem a carga, encontraram o corpo oculto sob o esterco.
O homicida foi preso e sofreu o
castigo terrível que seu crime merecia.
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 23C)
CAPUT II —
De Magia Artificiali.
Sobre a magia artificial.
(col. 24A–27B)
Há dois tipos de magia: a natural e a artificial. A
natural consiste no conhecimento das virtudes secretas que Deus infundiu nas
coisas criadas, e na aplicação legítima dessas virtudes segundo a razão e a lei
divina; a artificial, porém, é invenção perversa e obra do homem degenerado,
que busca mediante a arte do engano e dos sinais ilícitos imitar as operações
da natureza e, por meio delas, iludir os sentidos humanos.
A magia natural é ciência honesta, quando bem
dirigida; a artificial é sempre suspeita e quase sempre danosa. A primeira é
louvada pelos filósofos; a segunda, condenada pelos teólogos.
Pois a magia artificial se serve de figuras,
caracteres, palavras estranhas, gestos e cerimônias supersticiosas, as quais
não possuem virtude alguma natural, mas que os homens atribuem poder, ou por
ignorância, ou por conluio com os espíritos malignos.
Assim, são três os modos pelos quais a magia
artificial se exerce:
primeiro, pela virtude imaginativa do próprio operador;
segundo, pela virtude das coisas empregadas, ainda que seja ilusória;
terceiro, pela intervenção dos demônios, que se aproveitam da temeridade dos
homens.
Desses três modos, o primeiro é o menos pernicioso;
o segundo, perigoso; o terceiro, absolutamente execrável.
O primeiro modo se dá quando a imaginação, excitada
pela vontade e pela fantasia, move os próprios espíritos internos do homem e os
põe em tal disposição que, pela força da concentração, certas imagens ou
efeitos se produzem no corpo do próprio operador ou em outros, especialmente
nos mais débeis.
O segundo modo consiste em empregar coisas que
parecem dotadas de propriedades ocultas, mas cuja eficácia se deve apenas à
sugestão e à credulidade, e não a qualquer virtude natural.
O terceiro modo, o pior de todos, é aquele em que o
homem recorre ao demônio — ora invocando-o abertamente, ora implicitamente por
meio de pactos, sinais ou cerimônias supersticiosas.
De exemplo ad illustrationem.
(col. 25B–27B)
Muitos exemplos da primeira e segunda espécies
podem ser recolhidos de autores antigos e modernos.
Apuleio de Madaura, em sua Apologia pro se,
defende-se da acusação de magia dizendo que não praticava feitiçaria, mas
estudava as virtudes ocultas das plantas e pedras, o que pertence à filosofia
natural, não à superstição.
Entretanto, como observa Santo Agostinho (De
Civitate Dei, XVIII, 18), Apuleio não soube distinguir claramente entre o
uso natural e o ilícito, pois acreditava que certos encantamentos podiam mover
os deuses ou espíritos a obedecerem à vontade humana.
De igual modo, os astrólogos julgam que, por meio
dos signos celestes e de determinadas conjunções, podem predispor as coisas
humanas ao bem ou ao mal; e nisso se enganam, porque a disposição dos astros
não é causa eficiente das ações livres, mas apenas ocasião natural.
A esse respeito, Santo Tomás (Summa Theologiae,
I, q. 115, art. 4) ensina que o corpo celeste pode inclinar, mas não determinar
a vontade humana, que permanece livre sob a direção da razão e da graça.
Já a magia artificial, quando se liga à
superstição, degenera em feitiçaria; e quando se mistura à arte natural,
corrompe o estudo da natureza, como o vinho puro corrompido pela lama.
Assim, os homens que se dedicam à magia artificial
procuram coisas maravilhosas, mas sem o espírito da sabedoria divina. Movidos
pela curiosidade e pelo orgulho, tornam-se servos do próprio engano.
Muitos deles, tendo começado pela investigação
legítima das virtudes naturais, acabam por cair na impiedade das conjurações
demoníacas. Assim foi Simão Mago, que, tendo aprendido os segredos das virtudes
ocultas, quis elevar-se acima dos apóstolos e comprar o dom do Espírito Santo.
Assim também Fausto, homem doutíssimo em ciências
naturais, que, desejando ultrapassar os limites humanos, fez pacto com o diabo,
recebendo poder por certo tempo sobre as criaturas visíveis, e terminou
miseravelmente, precipitado nas trevas infernais.
Por isso é perigoso buscar o que Deus não revelou e
desejar conhecer o que o homem não deve saber.
É lícito estudar a natureza, porque nela se
contempla a sabedoria do Criador; mas é ilícito corromper a ordem natural com
cerimônias supersticiosas ou recorrer à ajuda dos demônios para obter o que a
natureza não concede.
Conclui-se, portanto, que toda magia artificial é
vã, perigosa e contrária à fé.
Pois, como diz o Sábio (Sabedoria XIII, 1–3): “Vãos são todos os homens em que
não há conhecimento de Deus; e, contemplando as obras visíveis, não
reconheceram o Artífice.”
Logo, quem busca efeitos sobrenaturais fora de
Deus, ou confia em sinais, figuras e caracteres, abandona a luz da verdade e entrega-se
à sombra da mentira.
E quem procura dominar a natureza por meio de arte
mágica, será por ela mesmo dominado, pois, como diz o Apóstolo, “o salário do
pecado é a morte” (Romanos 6, 23).
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 27B)
CAPUT III — An haec Magia vera possit efficere effectus.
Se essa magia pode produzir efeitos verdadeiros.
(col. 28A–32C)
A questão proposta é se a magia — especialmente a
chamada artificial, descrita no capítulo precedente — pode produzir efeitos
verdadeiros e reais, ou se tudo quanto realiza é apenas ilusão e aparência.
E a resposta há de ser distinguida.
Se se entende por magia apenas a natural, fundada
nas virtudes ocultas das coisas criadas, é certo que ela pode produzir
verdadeiros efeitos, contanto que se opere segundo a ordem estabelecida pelo
Criador e sem intervenção de causas ilícitas.
Pois, como ensina Santo Tomás (Summa Theologiae,
I, q. 114, art. 4), Deus mesmo é quem deu às criaturas as suas virtudes, pelas
quais atuam conforme sua forma e natureza. Assim, quem conhece e aplica
retamente essas virtudes, segundo a razão, pode causar efeitos verdadeiros e
naturais.
Mas se por magia se entende a arte supersticiosa e
profana, fundada em cerimônias, palavras, caracteres e pactos ocultos, tal
magia não pode de modo algum produzir efeitos verdadeiros por sua própria
virtude, mas apenas por permissão divina ou pela operação dos demônios — e
mesmo assim, de maneira aparente e ilusória.
Os teólogos distinguem aqui três causas possíveis:
a) a causa natural;
b) a causa demoníaca;
c) a causa ilusória ou imaginária.
A primeira é legítima; a segunda, ilícita; a
terceira, vã.
De causa naturali.
(col. 29A–30C)
A causa natural se manifesta quando, por exemplo,
uma erva, pedra ou metal exerce virtude curativa, purgativa ou inflamante, em
virtude da forma específica que Deus nela infundiu.
Assim, o ímã atrai o ferro; o âmbar atrai a palha;
o vinho embriaga; o fogo aquece; o ópio adormece; o ouro conforta o coração.
Esses e outros efeitos são verdadeiros, porque
derivam da natureza das coisas, e a natureza é ministra fiel da vontade divina.
A ciência que investiga tais virtudes é legítima e
se chama filosofia natural; e aquele que, por experiência e estudo, as aplica
retamente, não é mago, mas filósofo.
Contudo, aquele que, ignorando a verdadeira causa,
atribui os efeitos a sinais ou palavras, e não às virtudes das coisas, já se
aproxima da superstição.
De causa daemonica.
(col. 30C–32A)
A segunda causa é a demoníaca, pela qual os
demônios produzem efeitos verdadeiros — não por sua própria natureza (pois nada
podem criar), mas por aplicação e movimento das causas naturais, ou por engano
dos sentidos.
Assim, os demônios podem, pela sutileza de sua
substância espiritual, mover corpos leves, alterar vapores, formar imagens
visíveis no ar e dispor as coisas materiais de modo a causar espanto.
Podem também, por permissão de Deus, causar
enfermidades, excitar paixões, produzir tempestades, e até infundir
conhecimento aparente em certos homens, que deles se tornam instrumentos.
Mas não podem mudar substancialmente a natureza das
coisas, nem criar substâncias novas.
O bem-aventurado Agostinho (De Trinitate,
III, 7) declara: “Os demônios não criam, mas transformam as aparências; não
produzem novas naturezas, mas movem os elementos conforme sua sutileza.”
E Santo Tomás confirma (I, q. 110, art. 2):
“Os demônios podem aplicar causas naturais a seus efeitos, como o artífice usa
os instrumentos, mas não podem transcender a ordem das causas segundas.”
Logo, toda magia que se exerce com pacto ou invocação
demoníaca não é produtora de verdadeiros efeitos por si mesma, mas apenas por
concessão divina, ou pela ação do demônio, que engana o homem.
E mesmo quando o efeito é real — como uma
tempestade, uma doença ou a ruína de um campo —, a causa próxima é natural,
movida pelo demônio; e, portanto, o efeito é verdadeiro quanto à matéria, mas
falso quanto à intenção do operador.
De causa imaginaria et deceptiva.
(col. 32A–32C)
A terceira causa é a imaginária, ou ilusória,
quando os sentidos são enganados, e o homem julga ver, ouvir ou sentir o que
não existe realmente.
Isso ocorre com frequência nos feitiços e
encantamentos, nos quais o diabo infunde imagens sensíveis na fantasia do
homem, fazendo-lhe crer que vê figuras, sombras, luzes ou pessoas, que não são mais
que formas aparentes.
Assim, muitos pensam ver ouro ou prata, quando não
há senão pó; ou julgam ter recebido um golpe, quando nada os feriu.
Tais ilusões são operadas nos sentidos interiores,
e não no mundo exterior; e, portanto, são falsas em si mesmas, embora pareçam
verdadeiras ao enganado.
Dessa forma, conclui-se que a magia supersticiosa
não pode produzir efeitos verdadeiros por sua própria virtude, mas apenas
aparentes, e que o demônio, quando age, não cria, mas apenas move e engana.
E por isso toda operação mágica, que se exerce fora
da ordem natural e divina, é ou vã, ou demoníaca, ou ambas.
Assim ensina o Apóstolo: “O que os gentios
sacrificam, sacrificam aos demônios e não a Deus” (1 Coríntios 10, 20).
Logo, toda magia que não deriva da ciência natural
e do uso legítimo das criaturas de Deus, pertence ao reino das trevas e conduz
à perdição da alma.
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 32C)
CAPUT IV —
Quod Maleficae sua miracula cum auxilio Diaboli efficiant.
Que as feiticeiras realizam seus prodígios com a
ajuda do Diabo.
(col. 33A–37C)
É certo, segundo o testemunho da Sagrada Escritura
e a experiência contínua, que as feiticeiras e magos não realizam seus
prodígios por virtude própria, mas pelo auxílio e ministério dos demônios.
Pois, como ensina Santo Agostinho (De Civitate
Dei, livro X, cap. 9), todos os portentos e ilusões que os mágicos produzem
são obras do espírito maligno, que, com sua sutileza e poder natural, imita de
algum modo as operações divinas, para enganar os homens.
Assim também Santo Tomás (Summa Theologiae,
II–II, q. 96, art. 2) declara que “os mágicos não produzem verdadeiros
milagres, mas apenas operações que parecem maravilhosas aos ignorantes, sendo
contudo realizadas com o auxílio do demônio”.
E em outro lugar acrescenta (I, q. 114, art. 4):
“O demônio pode causar efeitos sensíveis, não por criar algo novo, mas por
mover os corpos locais e aplicar causas a seus efeitos.”
Logo, as feiticeiras, ao realizarem prodígios, nada
fazem senão servir de instrumentos à vontade demoníaca.
De pacto expresso vel tacito.
(col. 34A–35C)
As feiticeiras, na maioria dos casos, têm com o
demônio pacto expresso, e não apenas tácito.
O pacto expresso é feito com palavras, sinais e
juramento, pelos quais se consagram ao serviço do inimigo, renunciando
publicamente a Deus e ao Batismo.
O pacto tácito, porém, é aquele que se realiza
quando alguém, sem pronunciar palavras, mas por vontade interna, recorre ao
demônio ou confia nele para obter efeitos sobrenaturais ou ilícitos.
Ambos os pactos são gravíssimos pecados de
idolatria, pois o homem, criado para servir a Deus, submete-se voluntariamente
ao príncipe das trevas.
As feiticeiras, uma vez comprometidas, recebem do
demônio certas marcas corporais, sinais ou impressões sensíveis — como um selo
de escravidão.
E essas marcas são tão reais que, muitas vezes,
foram descobertas pelos inquisidores em diversas partes do corpo das mulheres
condenadas, as quais, ao serem picadas com agulhas ou punções, nada sentiam
naquele ponto, pois o demônio privara aquela carne da sensibilidade natural.
De modo operationis.
(col. 35C–36C)
O modo pelo qual o demônio auxilia as feiticeiras é
múltiplo.
Primeiro, move a imaginação delas, infundindo nelas
espécies e imagens sensíveis que excitam o desejo e a vontade de operar.
Segundo, apresenta-se sob forma visível, às vezes
em figura humana, outras vezes em figura de animal, instruindo-as no modo de
preparar os venenos, unguentos e filtros.
Terceiro, fornece matéria adequada para os
malefícios: ervas venenosas, ossos de mortos, partes de animais e outras coisas
abomináveis.
Quarto, aplica a força oculta da natureza para
produzir o efeito desejado — como causar doenças, esterilidade, tempestades, ou
perturbar o juízo dos homens.
E tudo isso faz não por virtude própria de criação,
mas movendo e corrompendo as causas naturais, conforme a permissão de Deus.
Assim, quando as feiticeiras lançam feitiços, não é
o som das palavras que opera, nem o gesto ou o sinal, mas a vontade do demônio
que age através delas, aplicando causas ocultas.
E quando o demônio não pode agir realmente,
contenta-se em enganar os sentidos — de modo que o efeito parece real, embora
não o seja.
De exemplo Scripturae et Ecclesiae testimonio.
(col. 36C–37C)
A Sagrada Escritura dá testemunho claro dessa verdade.
No Êxodo (cap. 7 e 8), lê-se que os magos do faraó,
Janes e Jambres, imitaram as pragas de Moisés por meio de encantamentos; mas
quando chegaram às moscas e aos piolhos, disseram: “Este é o dedo de Deus.”
Pois os primeiros sinais foram operados pelos demônios,
com permissão divina; os últimos, porém, estavam fora de seu poder.
Também em Jó (cap. 1), vemos que o diabo, com
licença do Altíssimo, causou ventos, raios e ruínas, e feriu Jó de chagas
dolorosas.
Logo, o demônio tem poder de causar males corporais
e naturais, mas não pode tocar a alma nem fazer o que excede sua natureza.
A Igreja sempre reconheceu essa doutrina e, por
isso, condena as feiticeiras como cúmplices do inimigo.
Nos concílios de Ancira, de Braga e de Toledo, os
santos padres decretaram que aqueles que creem nas práticas das bruxas e nelas
confiam incorrem em grave pecado de infidelidade, e devem ser separados da
comunhão dos fiéis até fazerem penitência pública.
E a lei canônica (Decretum Gratiani, II,
causa 26, q. 5) declara: “Aqueles que praticam malefícios ou encantamentos, ou
creem poder fazê-lo, devem ser tratados como idólatras.”
Conclusio.
(col. 37C)
Conclui-se, portanto, que as feiticeiras nada podem
fazer sem o auxílio do demônio; e que, quando parecem operar por si mesmas, é o
espírito maligno que age nelas e por elas.
Logo, seus prodígios são verdadeiros quanto ao
efeito material, mas falsos quanto à causa; e toda sua arte é ilusão, porque se
funda no engano e na mentira do príncipe das trevas.
Por isso diz o Senhor no Evangelho: “Ele é
mentiroso e pai da mentira” (João 8, 44).
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 37C)
CAPUT V —
Antiqui homines Maleficis miranda attribuerint.
Que os antigos atribuíram maravilhas às
feiticeiras.
(col. 38A–42B)
Os antigos, ainda que ignorassem muitas causas
naturais e se deixassem facilmente enganar por aparências e ilusões,
reconheceram, todavia, que certas mulheres e homens, pela ajuda dos demônios,
operavam coisas extraordinárias e prodigiosas, as quais chamavam miranda
— maravilhas —, e a seus autores chamavam magos, sagas, lamiae,
ou striges.
Assim o testifica toda a antiguidade pagã, e até
mesmo os filósofos mais prudentes, que, embora alheios à luz da fé, não podiam
negar os efeitos que observavam.
Platão, no Alcibíades e no Timeu,
fala de certos homens possuídos de poder sobre os ares e os ventos; e Virgílio,
no verso famoso (Ecloga, VIII, 69), põe na boca da feiticeira:
“Carmina vel caelo possunt deducere lunam.”
Os encantamentos podem descer a lua do céu.
Ovídio, no livro VII das Metamorfoses,
descreve a maga Medeia, que, por meio de palavras e ervas, rejuvenesce o velho
Eson, trazendo-lhe o vigor da juventude.
Lucano, no livro VI da Pharsalia, introduz a
famosa Érice, que confessa poder escurecer o sol, causar tempestades, paralisar
membros, e fazer os mortos moverem-se nos sepulcros.
Horácio, em suas Epodos, ridiculariza a
bruxa Canídia, que mistura ossos e venenos para enfeitiçar amantes infiéis.
Apuleio, em sua Metamorphosis seu Asinus aureus,
narra o poder de Pânfile, que, ungindo-se com certas pomadas infernais,
transformava-se em coruja e voava pelos ares.
E não só os poetas, mas também os historiadores e
moralistas relatam semelhantes portentos.
Plínio, no livro XXVIII de sua História Natural,
escreve que há mulheres chamadas sagas, que, com palavras e venenos,
trazem doenças e desgraças; e acrescenta que sua arte é tão odiosa que a lei
romana ordenava que fossem queimadas vivas.
De testimoniis sacrae et profanae antiquitatis.
(col. 39B–41A)
Mesmo entre os judeus e gentios, havia o
reconhecimento de tal poder.
No livro do Êxodo (cap. 7), os magos do faraó
resistiram a Moisés, convertendo varas em serpentes; e no livro de Samuel (cap.
28), a pitonisa de Endor invocou a sombra de Samuel para Saul, embora fosse
ilusão diabólica.
Os antigos chamavam tais mulheres de pythonissae,
isto é, inspiradas por Píton, o demônio oracular que Apolo supostamente matara
em Delfos.
Por isso, os adivinhos de Delfos eram tidos como
intérpretes de espíritos, e suas respostas, oráculos divinos, quando na verdade
provinham de enganos demoníacos.
Cícero, em De Divinatione, distingue a
adivinhação natural da supersticiosa, afirmando que a primeira procede do
instinto e observação, e a segunda, de comunicação com espíritos malignos.
E mesmo Aristóteles, em De Somno et Vigilia,
admite que os sonhos às vezes procedem de causas divinas, mas outras vezes de
demônios, que se insinuam na imaginação durante o sono.
Plutarco, em De Defectu Oraculorum, lamenta
que, com o advento do cristianismo, cessassem as vozes dos oráculos, pois os
espíritos malignos foram dispersos pelo nome de Cristo.
Assim, o testemunho dos gentios confirma o que a fé
ensina: que os demônios, sob aparência de deuses ou espíritos familiares,
enganam os homens e os fazem crer que possuem poder sobrenatural.
De superstitionibus et ritibus veterum.
(col. 41A–42B)
Os antigos usavam muitas práticas supersticiosas,
que hoje reconhecemos como malefícios.
Cortavam ervas com lâminas de ouro, murmurando
encantamentos; traçavam círculos na terra; escreviam caracteres estranhos; e
ofereciam vítimas de animais, ou até humanas, aos demônios.
Tinham por sagradas as noites de Vênus e Diana;
acreditavam que, em tais tempos, as feiticeiras reuniam-se para celebrar ritos
secretos.
Assim o atesta Horácio, quando fala das Nocturnae
Sacra Dianae, em que mulheres enlouquecidas erravam pelos campos, brandindo
tochas e invocando Hécate com uivos.
Esses ritos se perpetuaram até os tempos cristãos,
e sob diversos nomes — lamiae, striges, noctuae —
sobreviveram nas aldeias da Itália, Gália e Germânia.
As mulheres que confessavam haver voado à noite com
Diana ou Herodiade eram numerosas; e embora muitos julgassem que isso fosse
apenas sonho ou ilusão, a Igreja declarou que, em muitos casos, havia
verdadeira translação corporal, operada pelo demônio, para maior ruína das
almas.
O Concílio de Ancira (cânon 24) adverte que não se
deve crer que Diana tenha poder de transportar alguém, mas reconhece que o
demônio pode enganar os sentidos, fazendo parecer que isso acontece realmente.
Conclusio.
(col. 42B)
Conclui-se, pois, que os antigos, ainda que sem luz
da revelação, reconheceram a existência das feiticeiras e atribuíram-lhes
grandes maravilhas — umas verdadeiras, outras ilusórias —, todas porém
provenientes da ação dos demônios, que sempre buscaram a perdição do homem.
E assim, a idolatria e a magia foram irmãs,
nascidas da mesma mãe: a curiosidade e a soberba do espírito humano.
Por isso diz o Sábio (Eclesiástico I, 29): “Não
sejas curioso nas coisas supérfluas, e em muitas obras suas não sejas
intrometido; porque o curioso perecerá em sua curiosidade.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 42B)
CAPUT VI — De Foedere
Maleficarum cum Diabolo.
Sobre o pacto das
feiticeiras com o Diabo.
(col. 43A–48C)
Entre todos os crimes cometidos
pelos homens, nenhum é tão grave e abominável diante de Deus como o pacto com o
Diabo. Pois, por esse pacto, o homem renega o Criador, renuncia à fé e se
entrega de corpo e alma ao inimigo da salvação.
Tal pacto é o fundamento de
toda feitiçaria e o princípio de todos os malefícios.
Sem ele, as feiticeiras nada podem realizar; com ele, tornam-se instrumentos e
ministros do espírito maligno.
Há dois modos de pacto: o
expresso e o tácito.
O pacto expresso é feito com
palavras, juramento, ou escritura assinada com o próprio sangue, pela qual a
pessoa promete servir ao demônio e obedecer-lhe em tudo.
O pacto tácito é feito quando
alguém, ainda que sem palavras, entrega o coração e a vontade ao demônio,
confiando-lhe a obtenção de algum benefício ou poder ilícito.
Ambos são igualmente mortais e
destrutivos da graça divina.
De ritu et forma pacti
expressi.
(col. 44A–45C)
O pacto expresso é celebrado de
modo solene e horrendo.
O demônio aparece visivelmente
ao homem, ora sob forma humana, ora bestial, às vezes com rosto negro e olhos
de fogo, às vezes com aspecto luminoso e enganador, conforme o estado da alma
que deseja seduzir.
Manda que o aspirante o adore e
lhe preste culto, renunciando a Cristo, à Virgem Maria e a todos os santos.
Em seguida, exige juramento de fidelidade e obediência eterna.
Alguns escrevem com sangue o
próprio nome em um livro, que o demônio traz consigo; outros tocam o corpo do
inimigo em sinal de submissão, beijando-lhe a mão, o pé ou as partes torpes —
rito infame conhecido como osculum
infame.
Depois disso, o demônio marca o
corpo do feiticeiro com um sinal invisível ou sensível — às vezes na espádua,
às vezes sob o cabelo, ou em partes ocultas —, e ali retira a sensibilidade, de
modo que o lugar picado ou queimado não sente dor.
A marca é o selo de servidão,
sinal de que o homem pertence à potestade infernal.
Muitos inquisidores,
especialmente Sprenger e Institoris no Malleus
Maleficarum (II, questão 4), testemunham haver encontrado tais
marcas em centenas de feiticeiras condenadas, que, sob tormento, confessaram
ter feito pacto com o Diabo e recebido dele aquele selo.
De pacto tacito.
(col. 45C–46C)
O pacto tácito é mais comum,
mas não menos grave.
Consiste em recorrer a meios
supersticiosos ou invocar ajuda desconhecida, confiando no poder de forças
ocultas sem recorrer a Deus.
Assim, o homem que usa
encantamentos, amuletos, fórmulas, círculos, caracteres ou invocações, ainda
que não chame o demônio por nome, estabelece com ele comunhão tácita, porque
deposita fé em algo que só pode proceder dele.
Santo Agostinho ensina (De Doctrina Christiana, II,
20): “Todo aquele que pratica ou usa superstições, mesmo sem nomear o demônio,
faz pacto com ele, pois imita seu culto e participa de sua falsidade.”
Portanto, não há inocência nas
práticas mágicas, ainda que o homem as use para o bem, pois o demônio não é
servo da caridade, mas do engano.
De consequentiis pacti.
(col. 46C–47C)
Uma vez feito o pacto, o
demônio obriga o feiticeiro a observar certas condições:
1.
Comparecer
aos conventículos noturnos — chamados sabás — em dias e horas determinadas.
2.
Oferecer
homenagem e sacrifício ao príncipe infernal.
3.
Cometer
pecados graves e execráveis, especialmente luxúria, homicídio e profanação dos
sacramentos.
4.
Guardar
segredo absoluto sobre tudo o que vir e ouvir.
5.
Dedicar
outros homens e mulheres ao mesmo pacto, ampliando o reino do mal.
O demônio, em troca,
promete-lhes riquezas, prazeres e poder — promessas que nunca cumpre, ou que
cumpre para sua própria ruína.
Pois, como ensina o livro de
Tobias (cap. 6), o espírito maligno ama destruir os que o servem, e “os
demônios enganam aqueles que confiam neles, para depois rir de sua queda.”
Assim, todos os pactos
demoníacos terminam em engano e desespero.
O demônio nunca concede
verdadeira prosperidade, mas apenas aparências.
Pode enriquecer por um tempo, mas empobrece para sempre; pode curar o corpo,
mas mata a alma; pode dar prazer, mas rouba a paz.
De testimoniis
Scripturae.
(col. 47C–48C)
A Sagrada Escritura é clara e
severa sobre esse ponto.
No Deuteronômio (cap. 18), o
Senhor proíbe expressamente: “Não se ache entre vós quem consulte adivinhos,
encantadores ou evocadores dos mortos, pois todos os que fazem essas coisas são
abominação ao Senhor.”
E em Levítico (cap. 20, v. 6):
“A alma que recorrer aos necromantes e adivinhos, prostituindo-se com eles,
voltarei minha face contra essa alma e a exterminarei do meio do meu povo.”
Saul, tendo consultado a
pitonisa de Endor, foi por isso rejeitado por Deus e perdeu o reino (1 Samuel
28).
Judas, tendo feito pacto com o
príncipe das trevas, vendeu o Salvador por trinta moedas, e, atormentado pelo
remorso, enforcou-se (Mateus 27).
Logo, quem pactua com o Diabo
renuncia à vida eterna e escolhe o inferno.
Conclusio.
(col. 48C)
Portanto, é manifesto que todas
as feiticeiras, desde o princípio do mundo até hoje, realizaram seus prodígios
somente pelo pacto com o demônio, e que sem ele nada poderiam.
E como esse pacto é idolatria
formal, quem o faz adora o inimigo de Deus e participa de sua condenação.
Por isso, os santos padres
ordenaram que tais pessoas fossem extirpadas da sociedade cristã, não por
crueldade, mas por zelo da fé e da salvação das almas.
Assim, escreve o Apóstolo (2
Coríntios 6, 14): “Que comunhão há entre a luz e as trevas? Que concórdia entre
Cristo e Belial?”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 48C)
CAPUT VII —
De Imprecationibus Maleficarum ad pluviam, grandinem et alia mala producenda.
Sobre as imprecações das feiticeiras para produzir
chuva, granizo e outros males.
(col. 49A–54B)
Entre as obras mais frequentes e perniciosas das
feiticeiras está a de perturbar o curso natural dos elementos: provocar chuvas
excessivas, tempestades, raios, trovões, granizo, secas, ventos e toda sorte de
flagelos que danificam os frutos da terra, o gado e as habitações humanas.
E não o fazem por virtude natural — pois não
possuem poder sobre os céus —, mas por ministério e permissão do demônio, que,
sendo espírito aéreo, tem domínio sobre o ar e sobre os vapores, como ensina
São Paulo aos Efésios (cap. 2, v. 2): “Secundum principem potestatis aeris”
— “segundo o príncipe das potestades do ar.”
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 110,
art. 3) declara que o demônio, por sua natureza espiritual e sutileza de
operação, pode mover corpos leves, condensar vapores e formar nuvens, e assim
causar ventos, trovões e chuvas — não por criar matéria nova, mas por deslocar
e alterar a existente.
Logo, quando as feiticeiras realizam tempestades, é
o demônio quem age através delas, aplicando as causas naturais ao seu efeito,
conforme a permissão de Deus.
De modis quibus hoc perficiant.
(col. 50A–52B)
Os modos pelos quais as feiticeiras provocam essas
desordens são diversos.
- Por palavras e imprecações.
Invocam o demônio sob certos nomes ocultos, proferem fórmulas blasfemas e maldições contra os frutos da terra, e pedem que o ar se turve e os campos sejam devastados. - Por sinais e gestos supersticiosos.
Elevam os braços ao céu, lançam pedras ao vento, derramam água fervente, ou batem com varas em poças e rios, pronunciando conjurações infernais. - Por mistura de matérias impuras.
Queimam ervas, cabelos, penas, ossos e sangue de animais, e lançam as cinzas aos ventos; às vezes enterram nas plantações imagens de cera ou bonecos com pregos e inscrições diabólicas. - Por unguentos e fumigações.
Preparam substâncias pestilenciais, que, queimadas, corrompem o ar e excitam os vapores.
Essas práticas foram observadas e confessadas em
diversos processos.
Na diocese de Constança, no ano de 1571, certa
mulher confessou haver feito granizo misturando pó de ossos humanos com água de
túmulo, e pronunciando sobre ela as palavras ensinadas pelo demônio.
Noutra ocasião, em Lucerna, 1588, três feiticeiras
foram vistas em campo aberto, lançando para o céu cinzas e cabelos, e logo
formou-se uma tempestade que destruiu vinhas e colheitas.
Os camponeses, armados, prenderam-nas e
conduziram-nas ao tribunal; e sob tormento confessaram haver recebido a ordem
do demônio de “bater o ar” para vingar-se de um sacerdote que as exorcizara.
De natura potestatis daemonum super elementa.
(col. 52B–53B)
Convém, porém, distinguir a causa natural da
operação demoníaca.
Os demônios não criam os ventos nem produzem nova
matéria de chuva; mas, conhecendo melhor que nós as disposições da natureza,
sabem onde e como movê-la para produzir seus efeitos.
Assim, movem os vapores úmidos do mar ou das
fontes, condensando-os em nuvens e lançando-os sobre os campos; ou excitam o
calor e a eletricidade natural do ar, causando raios e trovões.
Tudo isso fazem pela permissão de Deus, que às
vezes, para castigo dos pecadores ou prova dos justos, lhes concede poder de
flagelar a terra.
Mas as feiticeiras, ao cooperarem com o demônio
nessas operações, tornam-se suas cúmplices, participando do pecado e do
castigo.
São Gregório Magno, em suas Homiliae super
Evangelia (livro XXXIV), diz:
“O demônio, como ministro da ira divina, é às vezes
instrumento da justiça de Deus; mas quando age por sugestão humana, torna-se
também causa da condenação do homem.”
Portanto, embora o demônio tenha poder natural
sobre os elementos, não o pode exercer senão quando o homem, por pacto ou
superstição, lhe abre a via de ação.
De testimoniis et exemplis.
(col. 53B–54B)
Incontáveis testemunhos confirmam essa verdade.
No ano de 1562, perto de Würzburg, na Germânia, uma
mulher confessou haver, junto de outras seis, feito pacto para destruir as
colheitas da região. Foram vistas, ao pôr do sol, caminhando em círculo, nuas,
com feixes de palha acesos, pronunciando estas palavras:
“Surge, tempestas, surgite venti, per potestatem
domini mei!”
(“Levanta-te, tempestade; levantai-vos, ventos, pelo poder de meu senhor!”)
Logo, formou-se um vendaval tão violento que
arrancou árvores e derrubou casas.
Em Milão, 1593, duas mulheres foram condenadas por
haverem causado granizo com a ajuda de um espírito chamado “Barbatus”. Elas
confessaram que o demônio aparecia na forma de cabra negra, e que lhes dera um
pó para lançar ao céu, dizendo que, onde o vento o espalhasse, o granizo
cairia.
O cardeal Frederico Borromeu, em sua De
Potestate Daemonum, atesta que tais casos foram por ele mesmo investigados
e confirmados.
E em toda a Lombardia, segundo os anais dos
inquisidores, não há aldeia que não tenha sofrido danos causados por essas
maldições infernais.
Conclusio.
(col. 54B)
Conclui-se, portanto, que as feiticeiras, por meio
de suas imprecações, não alteram a ordem dos céus por si mesmas, mas apenas por
cooperação com o demônio, que, como príncipe do ar, move os elementos conforme
a permissão divina.
Por isso, quem nelas confia ou participa de seus ritos,
ofende o Criador e sujeita-se à potestade das trevas.
E, como diz o Profeta (Jeremias 10, 2): “Não
aprendais o caminho dos gentios, nem temais os sinais do céu, porque os gentios
os temem; mas o Senhor é o Deus verdadeiro, o Deus vivo, e o Rei eterno.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 54B)
CAPUT VIII —
De Potestate Maleficarum in res exteriores.
Sobre o poder das feiticeiras sobre as coisas
exteriores.
(col. 55A–59C)
As feiticeiras, auxiliadas pelo demônio, exercem
poder não apenas sobre os corpos humanos e os elementos, mas também sobre as
coisas exteriores — animais, plantas, casas, campos e todos os bens que servem
ao uso do homem.
Tal poder, todavia, não lhes é concedido por
natureza, mas por concessão diabólica, e sempre com a permissão divina,
conforme as palavras de Santo Agostinho (De Civitate Dei, livro XIX,
cap. 12):
“Os espíritos malignos não têm domínio absoluto
sobre as coisas materiais, mas são ministros do castigo e da provação dos
justos.”
Assim, o demônio pode agir sobre o mundo corpóreo
de três modos:
- movendo localmente os corpos,
- alterando sua disposição,
- corrompendo sua forma acidental.
E tudo isso ele faz pela sutileza de sua substância
espiritual, não criando, mas transformando e movendo.
De potestate super animalia.
(col. 56A–57B)
O primeiro e mais comum exercício desse poder
manifesta-se sobre os animais irracionais.
As feiticeiras podem, com o auxílio do demônio,
feri-los, matar-lhes o vigor, secar-lhes o leite, ou torná-los furiosos e
indomáveis.
Os exemplos são numerosos.
Na diocese de Tréveris, foi confessado por uma
mulher que, lançando uma pedra por cima do ombro esquerdo, invocava o nome do
demônio e, por esse gesto, fazia morrer o gado do vizinho.
Outra, em Bolonha, declarou ter recebido do demônio
um pequeno saco de pó que, lançado sobre o estábulo, matava os bois e as cabras
em menos de três dias.
E muitas vezes acontece que, ao simples olhar ou
toque de uma feiticeira, o animal definha e morre — não por virtude da mulher,
mas por contato do espírito maligno que nela opera.
Santo Agostinho (Quaest. in Heptateuchum,
VI, 23) diz:
“Não é a mulher que mata, mas o demônio, que usa
sua vontade como instrumento.”
Por isso, os antigos chamavam tais malefícios de fascinationes,
isto é, feitiços do olhar, porque o demônio servia-se da vista como canal de
influência.
De potestate super plantas et fruges.
(col. 57B–58C)
Também têm poder, com o auxílio do demônio, sobre
as plantas e frutos da terra.
Podem esterilizar os campos, queimar as searas
invisivelmente, fazer apodrecer as raízes, ou corromper as sementes antes que
germinem.
Os inquisidores da Saxônia narram que, no ano de
1590, certas mulheres foram presas por terem feito malefício nas vinhas,
misturando sangue menstrual com cinzas de morcego e enterrando o composto junto
às cepas.
O demônio, movendo os vapores da terra, corrompeu o
suco das uvas, e todo o vinho daquele ano cheirava a podridão.
Em outras regiões, as feiticeiras costumam colher
as primeiras espigas e enterrá-las em lugares impuros, dizendo: “Assim pereçam
todos os frutos deste campo.”
Esses atos, embora pareçam apenas simbólicos,
bastam para que o demônio aja, pois ele se aproveita de qualquer sinal
supersticioso para exercer o poder que lhe é permitido.
Santo Tomás (I, q. 114, art. 1) observa que
“os demônios agem sobre os corpos conforme a disposição das causas segundas e
conforme a vontade humana que com eles pactua.”
Logo, quando o homem dá seu consentimento e executa
os sinais, o demônio encontra ocasião para operar.
De potestate super res domesticas et instrumenta.
(col. 58C–59C)
Há também inúmeros casos em que as feiticeiras
corrompem os utensílios domésticos, as vestes, os alimentos e as moradas dos
homens.
Queimam pão e sal, lançam veneno em poços e fontes,
ou pronunciam palavras impuras sobre as panelas e vasos, a fim de causar
doenças ou contendas entre os moradores.
Assim foi observado em Milão, no ano de 1601,
quando uma serva confessou ter soprado três vezes sobre a comida de seu amo,
invocando o nome do demônio, e em seguida todos os da casa adoeceram de febre e
delírio.
Do mesmo modo, muitas vezes o demônio age nas casas
onde se cometem pecados graves, como idolatria, impureza ou blasfêmia,
permitindo que os objetos sejam perturbados, movidos ou quebrados — não por
acaso natural, mas como castigo e advertência.
Santo Gregório, nas Dialogorum Libri, relata
o caso de uma mulher que zombava das exorcizações, e cujo tear se incendiou
espontaneamente sem fogo visível, destruindo a casa inteira.
Esses sinais, ainda que pareçam portentos, são
efeitos da permissão divina, pelos quais o homem é admoestado a abandonar o
pecado e retornar à obediência.
Conclusio.
(col. 59C)
Conclui-se, portanto, que o poder das feiticeiras
sobre as coisas exteriores é verdadeiro quanto ao efeito, mas sempre derivado
do demônio, que age por sua sutileza e pela permissão de Deus.
E ainda que esses efeitos pareçam naturais, são
sobrenaturais em sua causa próxima e ordenados à perdição dos homens.
Por isso, os que nelas confiam ou delas buscam
auxílio cometem idolatria e renunciam ao domínio de Deus, que é Senhor sobre
todas as criaturas.
Assim escreve o Profeta (Isaías 45, 7): “Ego
Dominus, et non est alter: formans lucem, et creans tenebras; faciens pacem, et
creans malum.” — “Eu sou o Senhor, e não há outro: formo a luz e crio as
trevas; faço a paz e permito o mal.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 59C)
CAPUT IX — An Diabolus
vere suos ditare possit.
Se o Diabo pode
realmente enriquecer os seus súditos.
(col. 60A–65C)
É comum ouvir dos ignorantes
que o Diabo pode enriquecer os seus servos, conceder-lhes ouro, prata, bens e
fortuna, como recompensa pelos pactos feitos. Contudo, tal opinião, embora
antiga e difundida, é falsa e enganosa.
O demônio, sendo espírito e não
possuindo domínio verdadeiro sobre as riquezas da terra, não pode dar o que não
é seu. Pois tudo o que existe, quer no céu, quer na terra, pertence a Deus,
conforme o Salmo 23: “Domini
est terra et plenitudo eius.” — “Do Senhor é a terra e tudo o que
nela existe.”
Logo, o demônio não pode
enriquecer o homem por sua própria virtude; pode apenas enganar os sentidos e
oferecer bens aparentes, que se desfazem como sombra.
De modo quo Diabolus
hominem decipit.
(col. 61A–62B)
Quando promete riquezas, o
Diabo não as cria nem as transfere de um lugar para outro, mas disfarça coisas
vãs sob aparência preciosa.
Muitas vezes faz parecer ouro o
que é barro, ou prata o que é pó. Outras vezes entrega moedas verdadeiras,
subtraídas por artifício e fraude de seus legítimos donos, de modo que o
beneficiado goza de bens roubados, e por isso incorre em pecado e miséria.
Assim, o demônio age não como
doador, mas como ladrão; não como senhor, mas como enganador.
Os antigos testemunham essa
fraude.
Apuleio, em De Asino Aureo, narra que um
homem, depois de vender a alma ao Diabo, recebeu um saco cheio de ouro, que, ao
amanhecer, se convertera em pedaços de carvão.
São Cipriano, antes de sua
conversão, confessa que o demônio lhe prometera riquezas e honras, e, tendo-as
obtido por algum tempo, perdeu tudo de repente, ficando em extrema miséria.
E Santo Agostinho (De Civitate Dei, livro X,
cap. 16) escreve: “O diabo pode dar bens temporais, mas nunca os conserva; pois
os concede para a ruína daquele a quem engana.”
Assim também, nas confissões de
muitas feiticeiras, lê-se que o demônio lhes aparecia sob forma de homem rico,
oferecendo moedas e vestidos; mas, quando o dia chegava, as moedas se tornavam
folhas secas, e os vestidos, cinzas.
De causa divina
permittente.
(col. 62B–63C)
Ainda que o demônio possa, por
permissão divina, transferir verdadeiros bens de um homem para outro, nunca o
faz para benefício do homem, mas para sua perdição.
Deus, em sua justiça, às vezes
permite que os maus prosperem exteriormente, para que, abusando da
prosperidade, se precipitem mais fundo na condenação.
Assim, no Salmo 72, o profeta
diz: “Invidi peccatoribus, videntes pacem peccatorum,” e logo compreende:
“Verumtamen propter dolos posuisti eos.” — “Invejei os pecadores, vendo a paz
dos ímpios; mas entendi que Tu os colocaste em lugares escorregadios.”
Logo, quando o demônio faz
prosperar seus servos, é apenas para lançá-los em ruína maior.
E mesmo quando os bens
recebidos parecem verdadeiros e duráveis, trazem consigo inquietação, temor e
remorso — sinais evidentes de que não provêm de Deus, pois os dons de Deus
trazem paz e serenidade.
De exemplo moderno.
(col. 63C–64C)
Há exemplos recentes e
numerosos.
Em Milão, 1589, um homem
chamado Lorenzo confessou haver feito pacto com o demônio para enriquecer.
Recebera dele um espírito familiar, que lhe trazia moedas todas as noites. Por
três anos gozou dessas riquezas, mas, ao fim, as moedas tornaram-se pó, e o
espírito o estrangulou em sua cama.
Na Baviera, certa mulher
recebeu de seu demônio um jarro de prata cheio de moedas; porém, no quarto dia,
o jarro se dissolveu como cera ao sol, e o dinheiro desapareceu.
Na França, um camponês que
prometera sua alma ao Diabo para obter ouro achou uma bolsa no campo; nela
havia brilhantes e moedas. No dia seguinte, a bolsa estava vazia, e ele cego.
Esses exemplos, relatados por
testemunhas fiéis e confirmados pelos inquisidores, demonstram que o demônio
pode fingir riqueza, mas não a sustentar; pode oferecer glória, mas sempre
acompanhada de ruína.
De testimoniis
Scripturae et Patrum.
(col. 64C–65B)
A Sagrada Escritura ensina que
toda riqueza que vem por via injusta é maldição, e não bênção.
“Thesaurus desiderabilis
requiescit in ore sapientis; vir insipiens devorabit eum.” (Provérbios 21, 20)
— “Tesouro precioso habita na casa do sábio; o insensato devora-o.”
E em Tobias (cap. 6): “Qui
acquirit pecuniam injuste, ponit eam in ventis.” — “Quem adquire dinheiro
injustamente, deposita-o nos ventos.”
Santo João Crisóstomo comenta:
“O demônio enriquece para arruinar; alimenta para destruir; exalta para
precipitar.”
E Santo Bernardo, em seus Sermões sobre o Cântico dos Cânticos,
adverte: “Os dons do inimigo são armadilhas; seu ouro é veneno; sua amizade,
morte.”
Logo, toda riqueza proveniente
de pacto ou arte mágica é impura e maldita.
Conclusio.
(col. 65B–65C)
Conclui-se, pois, que o demônio
não pode verdadeiramente enriquecer seus servos, mas apenas iludi-los com
aparências, ou dar-lhes bens que, sendo injustos, trazem miséria e danação.
E quem aceita tais dons
renuncia à Providência divina e se entrega ao autor da mentira.
Por isso, diz o Apóstolo (1
Timóteo 6, 9): “Qui volunt divites fieri incidunt in tentationem et laqueum
diaboli.” — “Os que querem tornar-se ricos caem na tentação e no laço do
Diabo.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 65C)
CAPUT X — De
Potestate Diaboli in corpus humanum.
Sobre o poder do Diabo sobre o corpo humano.
(col. 66A–72B)
O poder do demônio sobre o corpo humano é grande,
mas não absoluto. É grande porque, por permissão de Deus, ele pode causar
muitos males corporais, mover os membros, perturbar os sentidos, produzir
doenças e dores; mas não é absoluto, porque não pode destruir a vida, nem mudar
a natureza da alma, nem operar sem a permissão divina.
Santo Agostinho, no livro De Civitate Dei
(XIX, 12), ensina:
“Os demônios, por natureza, são espíritos sutis e
ágeis, e por isso têm grande poder sobre o corpo, podendo movê-lo, transformar
sua aparência e perturbar seus humores, contanto que Deus o permita.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) explica que o demônio, sendo espírito, pode mover corpos locais e
influir sobre os vapores e os espíritos vitais do homem, excitando paixões ou
enfermidades.
Mas esse poder é subordinado ao desígnio divino:
não pode ferir um só cabelo da cabeça sem que o Altíssimo o consinta.
De modis quibus Diabolus corpus afficit.
(col. 67A–69A)
O demônio age sobre o corpo humano de três modos
principais:
- Por movimento local,
quando muda a posição dos membros, transporta pessoas, ou as eleva no ar.
Assim, certos possessos são vistos suspensos sem apoio, ou movidos de um lugar a outro em instante, o que excede toda força natural. - Por alteração dos humores,
quando excita calor, frio, febre, melancolia, furor, ou outras doenças.
Ele conhece perfeitamente a constituição dos corpos e os humores que os regem, e pode, movendo o ar interno e os vapores, causar inflamação, sufocação, ou paralisia. - Por ilusão sensível,
quando engana os sentidos, fazendo o homem crer que sente o que não sente,
ou vê o que não existe.
Assim, muitos julgam estar feridos ou queimados, quando nenhuma ferida existe, e outros veem figuras horrendas que só estão impressas na imaginação.
Por esses modos, o demônio causa tanto dores reais
quanto aparentes, sempre segundo a medida da permissão divina e a culpa do
homem.
Santo Gregório, nas Homiliae, diz:
“O diabo é senhor das trevas, não das luzes; pode
ferir a carne, mas não o espírito; pode perturbar os membros, mas não a fé.”
De exemplo Scripturae.
(col. 69A–70C)
A Escritura dá múltiplos testemunhos desse poder.
Em Jó (cap. 2), lemos que Satanás, com licença de
Deus, feriu Jó de chagas malignas, “da planta dos pés ao alto da cabeça.”
No Evangelho, muitos foram libertos por Cristo de
espíritos imundos que os atormentavam com enfermidades, como o mudo e o surdo
(Marcos 9, 25), a mulher encurvada por dezoito anos (Lucas 13, 11), e o
gadareno possesso, que quebrava correntes e morava entre os sepulcros (Marcos
5, 2).
Esses casos demonstram que o demônio pode habitar o
corpo e perturbá-lo, não por poder natural sobre a alma, mas por violência
sobre a matéria.
E mesmo quando o homem não está possuído, mas
apenas tentado, o demônio pode mover os humores e os sentidos, para excitar
concupiscência, ira ou temor, como se lê em Tobias (cap. 6), onde o anjo Rafael
expulsa o espírito Asmodeu, que matava os maridos de Sara, “amando-a por
luxúria.”
De distinctione inter obsessionem et possessionem.
(col. 70C–71C)
Convém distinguir entre obsessão e possessão.
Na obsessão, o demônio cerca o homem exteriormente,
atormentando-o nos sentidos e nas paixões, mas sem penetrar a substância do
corpo.
Na possessão, porém, ocupa interiormente o corpo e fala pela boca do possesso,
movendo-lhe a língua e os membros.
A obsessão é comum entre os santos, como se lê de
São Paulo, que dizia: “Datus est mihi stimulus carnis, angelus Satanae, ut me
colaphizet” (2 Coríntios 12, 7) — “Foi-me dado um espinho na carne, anjo de
Satanás, para me esbofetear.”
A possessão, ao contrário, é castigo dos pecadores
e sinal de condenação.
Santo Agostinho distingue:
“O justo é tentado, o ímpio é possuído; no
primeiro, o diabo age fora, no segundo, habita dentro.”
E a Igreja, com sabedoria, instituiu o rito do
exorcismo para libertar os corpos tomados, por meio do poder do Nome divino e
dos sacramentos.
De potestate limitata.
(col. 71C–72B)
O poder do demônio sobre o corpo é limitado por
quatro causas:
- Pela vontade divina, que
regula todas as permissões e as restringe conforme a justiça.
- Pela fé do homem, que
resiste às tentações e impede a ação diabólica.
- Pelo ministério dos anjos, que
defendem os fiéis contra os ataques invisíveis.
- Pelos sacramentos da Igreja,
especialmente o exorcismo, a confissão e a Eucaristia, que destroem o
domínio do inimigo.
Por isso, ainda que o demônio tenha grande poder
físico, é impotente diante da graça.
Santo Ambrósio escreve:
“O diabo é leão rugidor, mas acorrentado; ruge para
atemorizar, mas não pode morder quem se abriga sob a cruz.”
Assim, o cristão que vive em graça pode ser
tentado, mas não dominado; ferido, mas não vencido.
Conclusio.
(col. 72B)
Conclui-se, portanto, que o demônio possui
verdadeiro poder sobre o corpo humano, mas derivado e limitado; pode
atormentar, mas não destruir; mover, mas não criar; e que sua força é
instrumento da justiça divina e prova da fé dos justos.
Por isso, diz o Apóstolo (1 Pedro 5, 8):
“Adversarius vester diabolus tamquam leo rugiens circuit, quaerens quem
devoret; cui resistite fortes in fide.” — “Vosso adversário, o diabo, anda ao
redor como leão rugidor, buscando a quem devorar; resisti-lhe firmes na fé.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 72B)
CAPUT XI —
De Potestate Diaboli in imaginationem et sensus interiores.
Sobre o poder do Diabo na imaginação e nos sentidos
interiores.
(col. 73A–78C)
Depois de tratar do poder do demônio sobre o corpo
humano, resta considerar o que ele pode fazer nos sentidos interiores e na
imaginação. Pois é nesse domínio que mais frequentemente ilude os homens,
gerando visões, aparições, falsas inspirações e afetos desordenados.
O homem possui sentidos exteriores — visão,
audição, olfato, gosto e tato — e interiores — fantasia, memória, cogitativa e
senso comum. Estes últimos são como o espelho onde as imagens das coisas
sensíveis são guardadas e ordenadas.
Ora, o demônio, sendo espírito de natureza sutil e
penetrante, pode, com a permissão divina, influir sobre esses sentidos
interiores, imprimindo neles espécies e imagens sensíveis, de modo que o homem
veja, ouça e sinta aquilo que o demônio quer que perceba, embora não exista no
mundo exterior.
Santo Tomás, em Summa Theologiae (I, q. 111,
art. 3), afirma:
“Os demônios, pela sutileza de sua substância,
podem mover a imaginação do homem, formando nela imagens de coisas ausentes ou
inexistentes.”
E Santo Agostinho (De Genesi ad Litteram,
XII, 17) escreve:
“Quando os demônios se insinuam na fantasia, transformam
o interior do homem em teatro de suas ilusões.”
De modis quibus Diabolus imaginationem afficit.
(col. 74A–76A)
O demônio afeta a imaginação de quatro modos:
- Por influxo direto,
quando imprime imagens e espécies sensíveis no órgão interior da fantasia,
sem o concurso dos sentidos exteriores.
Assim, muitos acreditam ver figuras luminosas, animais, ou pessoas falecidas, quando não há nada diante dos olhos; o demônio formou a imagem dentro da mente. - Por excitação dos espíritos vitais, quando altera o equilíbrio dos humores, de modo que as imagens
naturais se tornam vivas e tumultuadas, como nos sonhos e nas febres.
Por isso, pode produzir visões, êxtases ou terrores, conforme a disposição corporal do sujeito. - Por associação de recordações,
quando move a memória e combina antigas imagens, apresentando-as como
novas revelações.
Assim, o homem julga receber inspiração divina, quando na verdade revive imagens antigas deformadas. - Por cooperação com os sentidos exteriores, quando age simultaneamente sobre o ambiente — luz, ar, som — para
reforçar a ilusão interior.
Desse modo, as visões parecem objetivas, ainda que sejam interiores.
Santo Gregório Magno, em Dialogorum Libri
(II, cap. 30), observa:
“O inimigo das almas não cria o que mostra, mas
disfarça o que não é; não forma corpos, mas impõe imagens aos olhos
interiores.”
Assim, muitas aparições e revelações são apenas
jogos de sombras infernais, não luzes do alto.
De falsis revelationibus et visis phantasticis.
(col. 76A–77C)
Os místicos e devotos devem ser advertidos desse
perigo, pois o demônio costuma transformar-se em anjo de luz, para enganar até
os mais piedosos.
Muitas vezes aparece em forma de Cristo, de anjo,
ou de santo, e fala com voz suave, sugerindo obras boas, para ganhar confiança;
mas depois insinua vaidade, orgulho e desobediência.
Outras vezes, apresenta imagens do inferno ou do
paraíso, para amedrontar ou seduzir o espírito.
Santo João da Cruz, nas Noches Oscuras,
escreve que o demônio “mistura-se na imaginação com luz e doçura, para afastar
o homem da fé pura e do abandono a Deus.”
Santo Antônio do Deserto foi muitas vezes assaltado
por visões luminosas e melodias angélicas, mas discerniu o engano dizendo: “Se
há luz que me perturba, não vem de Deus.”
O critério da verdade é a paz interior e a
humildade: tudo o que nasce do demônio causa inquietude e soberba.
De potestate super somnia et vigilias.
(col. 77C–78B)
O demônio tem também grande poder sobre os sonhos e
vigílias, porque os sonhos são imagens formadas pela fantasia quando o corpo repousa.
Ele pode, movendo o ar interior, despertar imagens
conforme seu intento — de luxúria, medo, orgulho ou desespero.
Assim, pode excitar paixões por meio de sonhos
impuros, ou incutir terror com figuras horrendas.
Em estado de vigília, pode projetar na imaginação
espécies semelhantes às dos sonhos, de modo que o homem, acordado, as veja como
se fossem reais.
Os santos padres chamam isso visio phantastica,
e dizem que é um dos modos mais sutis de tentação.
Santo Agostinho escreve (De Spiritu et Anima,
cap. 28):
“O inimigo não dorme; e quando o corpo dorme, ele
vigia e semeia imagens, para que a alma, ao despertar, encontre a tentação já
plantada.”
Conclusio.
(col. 78C)
Conclui-se que o demônio possui poder verdadeiro
sobre a imaginação e os sentidos interiores, podendo imprimir neles espécies,
mover as paixões e fabricar visões falsas.
Mas esse poder é limitado à aparência e à sugestão;
não pode penetrar a substância da alma, nem destruir a liberdade.
Quem guarda o coração na humildade e a mente na oração,
repele todas as ilusões do inimigo.
Por isso, ensina o Apóstolo (2 Coríntios 10, 5):
“Capiamus omnem intellectum in obsequium Christi.” — “Cativemos todo pensamento
à obediência de Cristo.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 78C)
CAPUT XII — De Lamiis
et strigibus quae dicuntur nocturnae.
Sobre as lamias e
bruxas noturnas chamadas striges.
(col. 79A–85C)
Entre as espécies de
feiticeiras, há uma mais detestável e funesta, chamada lamia ou striga, a qual os antigos
diziam voar de noite, mudar de forma e sugar o sangue dos meninos.
Essas mulheres são verdadeiras
servas do demônio, e diferem das outras por causa do modo de sua operação, que
se exerce principalmente de noite e por meio de translação corporal ou
imaginária.
Os antigos poetas e filósofos falaram
amplamente delas, e embora suas palavras estejam envoltas em fábulas, contêm
certa verdade oculta.
Virgílio, nas Eclogas (VIII, 95), menciona
as lamias que “movem as sombras e fazem os astros retrocederem.”
Horácio, nas Epodos
(V, 47), descreve Canídia e Sagana, que, “nuas, com os cabelos soltos, cavavam
a terra com unhas de ferro e lançavam feitiços.”
Apuleio, em Metamorphosis,
fala das striges
que arrancavam corações de meninos para fazer unguentos.
Mas essas narrativas poéticas
se confirmam pela experiência dos tempos cristãos, pois até hoje se encontram
mulheres que confessam haver voado de noite com Diana ou Herodiade, participado
de banquetes infernais e feito malefícios sobre os homens e animais.
De natura
transvectionis nocturnae.
(col. 80A–82A)
Há controvérsia entre os
doutores sobre se essa translação das bruxas é real ou apenas imaginária.
Alguns, como os antigos
canonistas, sustentam que é mera ilusão do demônio, que engana os sentidos
durante o sono.
Outros, como Santo Tomás (II–II,
q. 96, art. 3), admitem que, por permissão de Deus, o corpo pode
ser realmente transportado de um lugar a outro, pois o demônio, como espírito,
tem poder de mover corpos leves.
A opinião mais provável é a que
distingue: às vezes a translação é imaginária, outras vezes corporal.
Quando é imaginária, o demônio
age sobre a fantasia, de modo que a mulher crê ter voado, visto e tocado
coisas, quando nada disso se deu realmente.
Quando é corporal, o demônio transporta o corpo adormecido, aplicando-lhe
virtudes naturais e movendo os vapores internos, de modo que o movimento se
realiza sem ruído e em tempo brevíssimo.
Assim explica Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII, 18):
“Os demônios, pela sutileza de
seu ser, podem transportar os corpos leves, como os ventos movem as nuvens; e
muitas vezes enganam as mulheres, levando-as realmente a longas distâncias,
embora pareça sonho.”
O Concílio de Ancira (cânon 24)
adverte: “As mulheres que creem ter cavalgado com Diana são iludidas por
Satanás; mas, quando confessam haver sido movidas corporalmente, não se deve
negar o poder de Deus que o permite para castigo.”
De ritu nocturno et
conventiculis.
(col. 82A–84B)
As lamias e striges costumam reunir-se
de noite em lugares desolados, campos, montes ou ruínas, onde o demônio aparece
em forma de homem negro ou de bode, cercado de tochas e música horrenda.
Ali prestam-lhe culto, juram
fidelidade e recebem dele instruções.
Comem carnes imundas, bebem
vinho misturado com sangue, e dançam em círculo, cantando fórmulas blasfemas.
Apagam as luzes, cometem pecados de luxúria e profanam os sacramentos, cuspindo
sobre a cruz e pisando imagens sagradas.
Esses ritos, chamados sabba, foram testemunhados
por numerosos inquisidores, e as confissões das próprias feiticeiras concordam
em todos os detalhes.
Em Genebra, 1587, vinte
mulheres confessaram haver sido transportadas ao sabá, onde o demônio, em trono
ardente, as recebeu e marcou com sinal no ombro.
Em Navarra, 1610, sessenta feiticeiras foram julgadas por terem participado de
banquete infernal no monte Zugarramurdi.
O inquisidor De Lancre, em seu
livro Tableau de l’Inconstance
des Mauvais Anges, descreve as cerimônias: “O demônio celebra missa
negra, oferece pão escuro e vinho corrompido, e manda que todos lhe beijem os
pés.”
De signis et effectibus
huius malitiae.
(col. 84B–85B)
Os efeitos dessa malícia são
inúmeros:
— Causam doenças repentinas,
pestes, esterilidade e desgraças.
— Roubam crianças, sugam-lhes o sangue e as matam, ou oferecem-nas ao demônio.
— Produzem tempestades, confundem os sentidos e espalham o terror nas aldeias.
Em Colônia, 1590, foram
queimadas três mulheres que confessaram haver matado quarenta meninos por
sucção de sangue, deixando apenas o corpo frio e sem ferida.
Em Innsbruck, 1583, um camponês declarou ter visto sua esposa voar pela janela,
coberta de pó negro, e, voltando ao amanhecer, trazer nas mãos sangue fresco.
Tais fatos, embora horríveis,
são confirmados por testemunhos múltiplos e pela autoridade dos santos
doutores.
Santo Agostinho (Quaest. in Heptateuchum, II,
24) escreve:
“Há mulheres que se associam
aos demônios e, com seu auxílio, fazem o que parece impossível: mudam formas,
transportam-se, e sugam o sangue das crianças; e isso não é sonho, mas obra de
espíritos malignos.”
Conclusio.
(col. 85C)
Conclui-se que as lamias e striges são verdadeiras
feiticeiras e servas do demônio; que algumas são transportadas corporalmente,
outras apenas em imaginação; e que todas, sem exceção, cometem idolatria e
homicídio espiritual, por pactuarem com o inimigo de Deus.
Por isso, as leis divinas e
humanas ordenam que sejam punidas, não por vingança, mas por purificação da
terra.
Assim diz o Êxodo (22, 18): “Maleficos non patieris vivere.”
— “Não deixarás viver as feiticeiras.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 85C)
CAPUT XIII — De
corporali cum daemonibus commixtione.
Sobre a união corporal
com os demônios.
(col. 86A–92B)
Entre as obras mais nefandas e
abomináveis da feitiçaria está a união corporal das feiticeiras com os
demônios, seja sob a forma de íncubos, seja de súcubos. Essa abominação,
testemunhada por autoridades antigas e modernas, constitui o cúmulo da impureza
e o mais grave dos pactos infernais.
Santo Agostinho, em De Civitate Dei (XV, 23),
escreve:
“É crível, e as Escrituras o
atestam, que certos espíritos impuros, amantes da carne, se misturam
corporalmente com as mulheres, e geram nelas fantasias e prazeres sensuais.”
E Santo Tomás, em Summa Theologiae (I, q. 51,
art. 3), ensina:
“Os demônios, embora
incorpóreos por natureza, podem assumir corpos aéreos e, por meio deles, agir
sensivelmente, de modo que a união carnal seja real quanto à sensação, embora
não quanto à substância.”
Logo, essa conjunção é
verdadeira quanto ao ato sensível, mas falsa quanto à geração natural, pois os
demônios não possuem semente vital; servem-se apenas da matéria alheia para
enganar e corromper.
De distinctione
incuborum et succuborum.
(col. 87A–88C)
Os doutores distinguem dois
gêneros principais: os íncubos
e os súcubos.
Chamam-se íncubos os que se deitam
sobre as mulheres, excitando nelas o deleite carnal e simulando o ato da
geração.
Chamam-se súcubos
os que se unem aos homens, recebendo a semente deles e transportando-a aos
íncubos para infecção de outras mulheres.
Assim, o demônio, que é
espírito, serve-se desses dois modos de corrupção para multiplicar o pecado e
profanar a ordem da natureza.
Pedro Lombardo, nas Sentenças (Livro II, Dist.
8), afirma:
“O mesmo demônio é súcubo ao
homem e íncubo à mulher; recebe do primeiro o que infunde na segunda, de modo
que a geração parece humana, mas é demoníaca.”
Dessa maneira, certas tradições
antigas, que falam de crianças nascidas de demônios, não significam verdadeira
geração espiritual, mas corrupção do ato humano.
Santo Agostinho, no mesmo
lugar, acrescenta:
“Os demônios não criam almas,
mas apenas servem de instrumentos para a depravação dos corpos.”
De modo et effectu
huius commixtionis.
(col. 88C–90A)
O modo dessa união é diverso.
Às vezes, o demônio aparece
visivelmente sob forma humana, dotado de membros corpóreos, compostos de ar
condensado e vapores.
Outras vezes, age invisivelmente, comprimindo o corpo do homem ou da mulher
adormecidos, e excitando o prazer por ilusão sensível.
Em ambos os casos, o efeito é
verdadeiro quanto à sensação, e muitas vezes deixa sinais corporais, como
fadiga, manchas, calor anormal ou inflamação.
As feiticeiras, interrogadas
sob juramento, confessam haver sido visitadas frequentemente por seus demônios
familiares, que as possuíam de noite, em forma de homens negros ou de animais.
Em Brescia, 1603, uma mulher
confessou haver convivido dez anos com um demônio que se dizia chamado
“Belzebub.”
Afirmava que ele falava em voz suave, tinha corpo frio e exalava cheiro de
enxofre.
Outra, em Basileia, declarou
que seu íncubo lhe aparecia como jovem belo, prometendo amor e proteção, mas
que, após o ato, deixava o corpo coberto de queimaduras.
Esses testemunhos foram
confirmados por numerosos inquisidores e médicos, que observaram as mesmas
marcas em várias mulheres, especialmente nas que praticavam pactos noturnos.
De illusionibus
huiusmodi.
(col. 90A–91C)
Muitos filósofos naturais
julgaram que tudo isso é apenas sonho ou imaginação.
Mas os santos doutores distinguem: há casos de ilusão e há casos de realidade.
Quando o demônio age apenas
sobre a fantasia, o ato é imaginário; quando assume corpo visível, é real
quanto ao sentido, embora não quanto à substância.
A experiência demonstra que,
após tais atos, os corpos se acham alterados, o humor vital exaurido, e a mente
mergulhada em tristeza e aversão às coisas santas.
Santo Tomás explica que “a
poluição natural pode ocorrer por causa interior — como sonho —, mas também por
causa exterior — como presença de espírito maligno.” (II–II, q. 154, art. 4).
E Santo Antonino, em sua Summa Moralis (Parte II,
tit. 10, cap. 6), declara:
“Muitos se unem aos demônios, e
o fazem voluntariamente; tais pecados excedem a fornicação, pois não são apenas
contra a castidade, mas contra a natureza.”
Logo, o ato é pecado
gravíssimo, e o corpo se torna instrumento de idolatria, pois o demônio é
adorado por meio do deleite carnal.
De exemplis et poenis.
(col. 91C–92B)
Os exemplos são inúmeros e
horrendos.
Em Bruxelas, 1595, um homem
confessou haver tido comércio com uma mulher que depois desapareceu; e,
interrogado sobre o fato, declarou que ela lhe dissera ser demônio enviado para
corrompê-lo.
Morreu, pouco depois, com os sinais de fogo pelo corpo.
Em Veneza, 1577, uma jovem
afirmou que seu íncubo lhe dera ouro e joias, e que, quando quis libertar-se, o
espírito a estrangulou em plena noite.
Em Colônia, uma feiticeira, sob
tormento, confessou ter sido transportada em corpo e alma ao sabá, onde o
demônio, em forma de cabra, a possuiria diante de todos.
Essas abominações, repetidas em
todos os tempos, mostram que o inimigo busca sobretudo a corrupção da carne,
porque por ela arrasta a alma à servidão eterna.
Por isso, o Apóstolo diz
(Romanos 1, 26):
“Tradidit eos Deus in passiones
ignominiae, nam feminæ eorum immutaverunt naturalem usum in eum qui est contra
naturam.” — “Deus os entregou a paixões vergonhosas, pois suas mulheres mudaram
o uso natural em outro contrário à natureza.”
Conclusio.
(col. 92B)
Conclui-se, pois, que a união
corporal com os demônios é verdadeira quanto à sensação, ilícita quanto ao ato
e mortal quanto à alma; que se dá por permissão divina e operação diabólica; e
que é o mais claro sinal de pacto e idolatria infernal.
Quem se entrega a tal pecado
renuncia a Cristo e se faz templo de Satanás.
Por isso, o Senhor, no Gênesis
(6, 12), vendo “que toda carne havia corrompido seu caminho sobre a terra,”
mandou o dilúvio para purificá-la.
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 92B)
CAPUT XIV —
De incubis et succubis aliisque spiritibus carnalibus.
Sobre os íncubos, súcubos e outros espíritos
carnais.
(col. 93A–99C)
Depois de haver tratado da união corporal com os
demônios, é necessário falar mais amplamente desses mesmos espíritos, chamados íncubos
e súcubos, que exercem singular poder sobre a carne e os sentidos.
Os demônios não têm corpo natural, mas, por sua
sutileza, podem assumir formas corpóreas, compostas de ar condensado, vapores e
humores, e assim tornar-se visíveis e sensíveis aos homens.
Com essas formas, simulam natureza humana e fingem
paixões, mas tudo é aparência e engano, pois carecem de sangue, calor vital e
verdadeira geração.
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 51,
art. 3) ensina:
“Os demônios, por permissão divina, assumem corpos
aéreos e por meio deles exercem atos corporais; porém, tais corpos não são
animados, mas formados de matéria sutil, segundo sua vontade e arte.”
Logo, quando parecem tocar, abraçar ou unir-se aos
homens, não o fazem como seres vivos, mas como sombras que imitam a substância.
De natura eorum et officio.
(col. 94A–96A)
Esses espíritos carnais diferem entre si por ordem
e função.
Os íncubos se deitam sobre as mulheres; os súcubos,
sob os homens.
Outros há que apenas excitam os sentidos e imaginam o prazer, sem toque
corporal.
Há ainda os que, por ilusão, introduzem imagens de deleite na fantasia, de modo
que o homem peca interiormente sem perceber o agente exterior.
Todos eles têm o mesmo fim: corromper a castidade,
multiplicar a luxúria e degradar a imagem divina no homem.
Santo Agostinho (De Genesi ad Litteram, XII,
15) adverte:
“Há espíritos amantes dos corpos, que se insinuam
na carne dos mortais e os inflamam de volúpia, não pela necessidade, mas pelo
desejo de ver o homem cair.”
Esses demônios pertencem à ordem dos espíritos
caídos do ar inferior, os quais, antes da queda, presidiam à geração e
movimento dos corpos vivos.
Após sua ruína, conservaram poder natural sobre os humores e vapores, e por
isso agem especialmente na carne e no sangue.
A Escritura os chama spiritus fornicationis,
como em Oséias (4, 12): “Spiritus fornicationum decepit eos.” — “O espírito de
fornicação os enganou.”
De diversis modis tentandi.
(col. 96A–98A)
Os íncubos e súcubos tentam de muitos modos.
- Por ilusão dos sentidos,
quando fazem sentir calor, peso, ou prazer sem contato visível.
Assim, excitam a imaginação e inflamam o corpo por influxo de vapores e humores, até que o pecado se consuma interiormente. - Por presença corpórea,
quando assumem forma humana e tocam o corpo.
Nesse caso, a sensação é real, mas o corpo do demônio é formado de ar, não de carne viva. - Por insinuação onírica,
quando durante o sono se aproximam e excitam a fantasia, causando polução
e prazer.
Por isso, muitos julgam haver sonhado, quando de fato foram visitados. - Por obsessão contínua,
quando permanecem junto de certas pessoas, principalmente mulheres dadas à
superstição, aparecendo-lhes frequentemente e exigindo atos carnais.
Os efeitos são graves: tristeza, languidez, aversão
às coisas santas, tentação contínua e insônia.
A carne torna-se pesada, os olhos turvos, e o espírito, confuso.
Santo Antonino, em sua Summa Moralis (Parte
II, título 10), afirma:
“Aqueles que consentem nessas presenças, ainda que
por prazer ou curiosidade, cometem pecado mortal e tornam-se escravos do
espírito imundo.”
De exemplis veterum et recentium.
(col. 98A–99A)
Muitos exemplos dessa tentação se encontram tanto
nos tempos antigos quanto modernos.
São Martinho de Tours viu, certa noite, o demônio
em forma de mulher, que se prostrou a seus pés, tentando-o com palavras de
amor; o santo traçou o sinal da cruz, e a figura desapareceu em fumaça.
São Bernardo narra, em suas Homilias, que um
monge foi por longo tempo assaltado por um íncubo, que o sufocava de noite e o
deixava exausto pela manhã.
O monge, confessando-se e recebendo a comunhão, libertou-se.
No mosteiro de Würzburg, 1591, uma noviça confessou
que seu súcubo lhe aparecia em forma de jovem belo, prometendo-lhe fidelidade.
Foi encontrada morta, e sobre seu peito havia uma marca escura em forma de mão.
Na diocese de Milão, 1600, duas mulheres declararam
ter sido visitadas por demônios familiares, que as possuíam corporalmente e
lhes davam conselhos sobre feitiços.
Ambas foram queimadas, após confissão reiterada e confirmação dos inquisidores.
De remedio contra hos spiritus.
(col. 99A–99C)
O remédio mais eficaz contra esses espíritos
carnais é a vida pura e a oração contínua.
A confissão frequente, o jejum e o sinal da cruz os
repelem com força.
As palavras do Evangelho — In nomine Iesu omne genu flectatur — são para
eles tormento insuportável.
Santo Antão dizia: “O diabo teme o jejum e a
humildade mais do que o fogo do inferno.”
O uso da água benta, o hábito de dormir com sinais
sagrados e a invocação do Anjo da Guarda são armas seguras.
E sobretudo a castidade interior, não apenas de
corpo, mas de pensamento, fecha as portas ao inimigo.
Santo Jerônimo escreve:
“Quem conserva a pureza do coração é inacessível ao
demônio; pois a castidade é o espelho onde ele não pode mirar-se.”
Conclusio.
(col. 99C)
Conclui-se, pois, que os íncubos e súcubos são
espíritos verdadeiros e carnais apenas por aparência; que sua operação é real
quanto ao sentido, mas ilusória quanto à substância; e que seu fim é a
corrupção da alma e do corpo.
Por isso, devem ser repelidos pela virtude da fé,
pela penitência e pelo poder do nome de Jesus, diante do qual todo espírito imundo
se dobra e foge.
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 99C)
CAPUT XV —
De modo quo Diabolus et lamiae infantes interimunt.
Sobre o modo pelo qual o Diabo e as bruxas matam as
crianças.
(col. 100A–106C)
Nenhum crime é mais cruel e execrável que o assassinato
das crianças inocentes cometido pelas bruxas e pelos demônios. Pois, enquanto o
homicídio comum destrói apenas o corpo, este destrói o corpo e ultraja a
própria imagem de Deus, imprimida na infância pela graça batismal.
O demônio, inimigo da vida e da pureza, busca acima
de tudo profanar aquilo que mais se assemelha à inocência divina. Por isso, ele
incita suas servas — as lamias e striges — a odiar e matar os pequeninos.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XV, 23)
escreve:
“Há demônios que, por inveja e ódio à pureza
humana, perseguem as crianças, especialmente as batizadas, e excitam nas bruxas
o desejo de sangue.”
Assim, os pactos infernais incluem quase sempre a
obrigação de oferecer ao demônio alguma criança, em sinal de fidelidade e
homenagem.
De diversis modis occidendi.
(col. 101A–103B)
As bruxas matam as crianças de vários modos.
- Por asfixia ou sufocamento.
Entram nas casas à noite, por janelas ou fendas, em forma de gato, coruja ou fumaça; aproximam-se do berço e, apertando a garganta do menino, tiram-lhe o fôlego, sem deixar ferida. - Por sucção de sangue.
Sugam o sangue do peito, das veias ou do umbigo, até que o corpo empalideça e morra.
Muitas vezes deixam apenas um ponto negro, sinal da picada infernal. - Por unguentos venenosos.
Preparam pomadas de gordura humana, ervas e cinzas de ossos, e as aplicam sobre o corpo da criança, causando febres e delírios. - Por malefício distante.
Tomam o nome e a imagem do infante, e, traçando círculos, queimam ou trespassam a figura, pronunciando as palavras do pacto.
O demônio, obedecendo ao rito, aflige a verdadeira criança até a morte.
Em Innsbruck, 1583, uma mulher confessou haver
matado doze crianças com tais unguentos, e disse que o demônio lhe ordenara que
“oferecesse o primeiro sangue como tributo.”
Em Basileia, 1609, uma outra confessou ter sugado o
sangue do próprio filho recém-nascido, por ordem do demônio que lhe apareceu em
forma de corvo.
E em Milão, 1595, três mulheres foram condenadas
por terem causado a morte de inúmeros lactentes, misturando em seus unguentos a
cinza de ossos batizados.
De causis huius crudelitatis.
(col. 103B–105B)
A causa dessa crueldade é dupla: ódio demoníaco
à natureza humana e adoração supersticiosa exigida pelo pacto.
O demônio, tendo sido criado belo e poderoso, e depois
precipitado no abismo, inveja o homem, que, sendo menor por natureza, foi
elevado à graça de filho de Deus.
Por isso, busca destruir o homem desde o nascimento, e especialmente os
inocentes, em quem mais resplandece a pureza.
Além disso, o pacto com o demônio requer oferendas.
Como ele não pode possuir coisa sagrada, exige o que lhe é mais contrário — o
sangue dos batizados.
Esse sangue, para ele, é como sacrilégio contra o sangue de Cristo.
Os teólogos afirmam que o demônio se gloria de cada
criança morta em estado de graça, porque, ainda que não possa tocar a alma,
impede o crescimento do corpo destinado à glória.
Santo Tomás (II–II, q. 96, art. 2) ensina:
“A operação do demônio é movida pela inveja e pela
simulação de sacrifício; ele quer ser adorado e servido como Deus, e por isso
exige vítimas humanas.”
Assim, a morte das crianças é sua liturgia
perversa, imitação infernal do sacrifício santo.
De testimoniis et exemplis.
(col. 105B–106B)
Os exemplos desse crime são inumeráveis em todos os
tempos e regiões.
Na diocese de Tréveris, 1587, quarenta mulheres
confessaram haver estrangulado mais de cem crianças.
Uma delas declarou que o demônio, em forma de bode, lhes dava uma faca de prata
e ordenava que “não deixassem a lua nascer sobre um berço sem lhe oferecer um
menino.”
Em Veneza, 1579, uma bruxa, interrogada, disse que,
ao tocar as crianças com a mão esquerda, podia tirar-lhes o calor e o sopro
vital.
Quando foi executada, confessou: “O demônio me prometeu beleza e juventude, se
eu lhe entregasse o primeiro filho de cada mulher que eu ajudasse a dar à luz.”
Na Borgonha, 1610, quatro mulheres foram queimadas
por haverem envenenado água benta em batistério, para matar as crianças que
seriam batizadas.
O inquisidor relatou que o demônio lhes aparecia durante o rito, invisível aos
outros, e recebia o “sacrifício” com riso horrendo.
Esses fatos são confirmados pelos Acta
Inquisitionis de várias províncias, e mostram que a crueldade das lamias
ultrapassa toda medida humana.
Conclusio.
(col. 106C)
Conclui-se, pois, que o Diabo e suas servas, as
lamias e striges, realmente matam as crianças, umas vezes corporalmente, outras
espiritualmente, e que o fazem por ódio à criação e em culto ao príncipe das
trevas.
Por isso, os juízes eclesiásticos e seculares devem
persegui-las sem piedade, não por vingança, mas para libertar a terra da
maldição que trazem.
Assim fala o Senhor por Ezequiel (16, 20):
“Filhos que me geraste, sacrificaste-os aos ídolos
até consumi-los. Por isso, eu te julgarei conforme as abominações.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 106C)
CAPUT XVI —
De transfiguratione daemonum in varias species.
Sobre a transfiguração dos demônios em várias
formas.
(col. 107A–113B)
O poder do demônio em mudar sua aparência e assumir
diversas formas é amplamente atestado pela Sagrada Escritura, pelos Santos
Padres e pela experiência de todos os séculos.
Pois sendo espírito dotado de sutileza e mobilidade extremas, pode, por
permissão de Deus, condensar o ar, mover vapores e dispor a matéria sutil de
modo a formar imagens visíveis conforme sua vontade.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII, 18)
declara:
“Os demônios, por sua natureza aérea, assumem
formas corpóreas e as mudam à semelhança de qualquer criatura, ora para
enganar, ora para aterrorizar.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) ensina:
“O demônio não cria nova substância, mas pode, pela
arte natural e pelo movimento local, alterar a aparência das coisas e compor
corpos de ar condensado, visíveis aos sentidos humanos.”
Assim, ele se mostra às vezes como homem, outras
como mulher, animal, fogo, sombra, luz ou figura monstruosa, conforme o intento
com que deseja iludir ou perturbar.
De causis huius mutationis.
(col. 108A–110A)
A causa dessa transfiguração não está na imaginação
do observador, mas na potência natural do espírito maligno, que age sobre o ar
e o sentido.
O ar, sendo corpo transparente e dócil, pode ser
condensado ou rarefeito, e quando o demônio o move em determinada ordem e
densidade, ele adquire cor e figura.
Assim como o pintor dispõe pigmentos sobre o quadro, o demônio dispõe
partículas do ar para formar imagens.
Essas formas não têm consistência verdadeira, mas
são semelhantes às miragens e vapores luminosos.
O mesmo poder lhe permite também alterar o som, compondo vozes e ruídos, de
modo que o homem julga ouvir palavras ou gritos que não têm fonte corpórea.
Por isso, as aparições demoníacas são reais quanto
à sensação, mas ilusórias quanto à substância.
O corpo que se vê é composto de ar, e desaparece tão logo cesse a vontade do
espírito que o forma.
Santo Gregório Magno escreve (Homiliae in
Evangelia, cap. 29):
“O diabo, quando aparece, não é o que parece; e o
que parece, cessa de ser quando o olhar da graça o desfaz.”
De formis quas communiter assumunt.
(col. 110A–112A)
As formas mais comuns que os demônios assumem são
as seguintes:
- Forma humana, para enganar os sentidos e
seduzir com aparência de beleza ou autoridade.
Assim, o demônio apareceu a Eva em figura de serpente, mas falou como homem sábio; apareceu a Cristo no deserto em forma humana, prometendo-lhe os reinos do mundo. - Forma de animal, principalmente de gato,
bode, cão, corvo, serpente, ou cavalo, porque esses animais foram tidos
desde a Antiguidade por símbolos de astúcia, luxúria ou ferocidade.
Frequentemente as bruxas declaram que seus demônios familiares lhes aparecem sob tais figuras. - Forma de fogo, fumaça ou luz.
Às vezes surge como chama que se ergue e apaga; outras, como luz que brilha sem causa natural.
Assim, engana os curiosos que buscam sinais e prodígios, levando-os à superstição. - Forma monstruosa ou híbrida, misto
de homem e besta, como dragão alado, gigante de chifres ou mulher com
cauda.
Essas aparições visam aterrorizar e subjugar os sentidos.
Em todos esses casos, a aparência serve a um fim:
ou seduzir pela beleza, ou dominar pelo medo.
Santo Agostinho nota (Quaestiones in
Heptateuchum, II, 25):
“O demônio se disfarça ora em anjo, ora em fera;
ora resplandece para enganar, ora se disforma para assustar.”
De exemplis certissimis.
(col. 112A–113A)
Os exemplos são inumeráveis.
Em Roma, sob o pontificado de Leão IX, um monge viu
o diabo aparecer-lhe em forma de seu próprio abade, mandando-lhe quebrar o
jejum; ao obedecer, foi atormentado por febres até confessar o engano.
Em Milão, 1588, o demônio apareceu a uma mulher
como seu marido ausente, deitando-se com ela; depois, desapareceu em fumaça e
deixou o leito coberto de enxofre.
Em Colônia, 1605, o demônio foi visto em forma de
cavalo negro, atravessando uma igreja durante a missa, e desapareceu ao toque
da água benta.
Tais exemplos mostram que o inimigo assume qualquer
aparência que melhor convém à sua astúcia: se deseja ser acreditado, mostra-se
belo; se quer aterrorizar, mostra-se horrendo.
Santo Bernardo dizia:
“Quem busca ver prodígios, verá o demônio; quem
busca ver Deus, verá apenas fé.”
Conclusio.
(col. 113B)
Conclui-se, pois, que o demônio, pela sutileza de
sua natureza e pela permissão de Deus, pode mudar-se em múltiplas formas,
aparentes, não substanciais, para enganar, seduzir e perturbar o homem.
Mas todo aquele que confia em Cristo, e não nas
aparências, não será enganado; porque, como está escrito (2 Coríntios 11, 14):
“Ipse Satanas transfigurat se in angelum lucis.” —
“O próprio Satanás se transfigura em anjo de luz.”
Logo, quanto mais bela a forma, tanto mais perigoso
o engano.
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 113B)
CAPUT XVII —
De potestate daemonum ad assumendum corpora mortuorum.
Sobre o poder dos demônios de assumir os corpos dos
mortos.
(col. 114A–120C)
A questão de saber se os demônios podem assumir ou
animar corpos de homens mortos foi muitas vezes debatida entre os teólogos e
filósofos. Alguns negaram inteiramente tal possibilidade, afirmando que só
Deus, autor da vida, pode restituir movimento e voz a um corpo defunto; outros,
porém, sustentaram que os demônios, embora não possam dar vida, podem mover os
corpos mortos e fazê-los parecer vivos, por meio de artifício e ilusão
sensível.
A opinião mais conforme à razão e à Escritura é a
segunda: o demônio não vivifica, mas move; não dá alma, mas usa o corpo como
instrumento ou vestimenta.
Santo Agostinho, em De Civitate Dei (XV,
23), escreve:
“Não é impossível que os corpos de mortos, ainda
frescos e não totalmente corrompidos, sejam movidos por espíritos malignos, não
como animados, mas como manejados de fora, à maneira de estátuas.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 110,
art. 2) ensina:
“O demônio pode mover corpos locais, aplicando-lhes
força e forma aparente; e, se o corpo é humano e recente, o movimento parece
vital, embora a vida não esteja ali.”
Logo, os demônios podem usar corpos mortos para
enganar os vivos, e assim confirmar falsas crenças, necromancias e
superstições.
De modis quibus id fit.
(col. 115A–117A)
Os demônios assumem corpos de mortos de dois modos
principais.
- Por intrusão corporal.
Quando o cadáver ainda está íntegro, o demônio penetra nele, movimentando-lhe os membros e a língua, e produzindo voz e gesto.
Assim, parece que o morto ressuscitou e fala, quando na verdade é o espírito imundo que o manipula.
Exemplo
disso se lê no livro de Tobias (cap. 6), onde o anjo ensina a expulsar o
espírito maligno que matava os maridos de Sara; pois esse espírito se apoderava
dos corpos, fingindo vida.
- Por simulação exterior.
Quando o corpo já se decompôs, o demônio cria imagem semelhante, feita de ar condensado, à semelhança do defunto, e a apresenta aos vivos.
Tal é o caso das aparições de mortos que pedem orações ou anunciam calamidades: não são as almas, mas os demônios que tomam sua forma.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
55) declara:
“Muitas vezes o inimigo, disfarçado sob a aparência
de um morto, fala e caminha entre os vivos; mas é sombra, não alma; é engano,
não verdade.”
De exemplis veterum et modernorum.
(col. 117A–119B)
Os exemplos são numerosos.
No livro primeiro dos Reis (cap. 28), a pitonisa de
Endor fez aparecer a sombra de Samuel diante de Saul; mas os doutores ensinam
que não era o verdadeiro profeta, e sim um demônio sob sua forma, pois as almas
dos justos não voltam pela vontade humana, mas pela disposição de Deus.
Santo Agostinho confirma (De Diversis
Quaestionibus, q. 79):
“O demônio não ressuscitou Samuel, mas fingiu sua
imagem; e Saul, indigno de consolo divino, mereceu ser enganado.”
Também os antigos pagãos narram aparições de mortos
em sepulcros e templos.
Plínio, em sua História Natural (livro VII, cap. 52), fala de corpos que
se levantavam à noite e voltavam ao túmulo ao amanhecer; mas tais portentos são
obra dos espíritos infernais.
Nos tempos cristãos, muitos testemunharam o mesmo.
Em Milão, 1586, um homem foi visto caminhar após
três dias de sepultado; quando se tentou segurá-lo, o corpo caiu e se desfez em
pó, deixando odor pestilento.
Os inquisidores reconheceram o fato como ilusão demoníaca.
Em Colônia, 1602, o cadáver de uma mulher apareceu
sentado sobre o túmulo, pedindo oração; mas quando o padre aspergiu água benta,
o corpo desapareceu subitamente, e o chão exalou fumaça.
Tais aparições têm por fim aterrorizar os simples e
confirmar a crença dos supersticiosos, que julgam que os mortos voltam a falar
com os vivos.
De differentiis inter apparitiones angelicas et
diabolicas.
(col. 119B–120A)
Convém distinguir entre as aparições verdadeiras,
permitidas por Deus, e as falsas, operadas pelos demônios.
As verdadeiras são claras, pacíficas e
santas; conduzem à fé e à penitência.
As falsas são turvas, inquietas e confusas; produzem medo, desespero e
superstição.
O anjo aparece com luz suave e voz serena; o
demônio, com sombra e ruído.
O anjo conforta; o demônio perturba.
O anjo conduz à oração; o demônio ao espanto.
Santo Ambrósio diz:
“Quando aparece o justo, o coração sente paz;
quando o maligno, sente horror.”
Assim, quem conhece a paz interior distingue o
espírito de Deus do espírito do erro.
Conclusio.
(col. 120B–120C)
Conclui-se, portanto, que os demônios não podem dar
vida aos mortos, mas podem mover seus corpos, formar imagens e falar sob suas
figuras, para enganar os homens e perpetuar a idolatria.
Quem busca comunicação com os mortos, invocando
espíritos, ofende a Deus e se sujeita ao poder infernal.
Assim diz o Senhor (Deuteronômio 18, 10):
“Non inveniatur in te qui consulit mortuos aut
pythonissam.” — “Não se ache entre vós quem consulte os mortos nem quem invoque
espíritos.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 120C)
CAPUT XVIII
— De possessione corporum humanorum a daemonibus.
Sobre a possessão dos corpos humanos pelos
demônios.
(col. 121A–128C)
Entre todas as operações do inimigo, nenhuma é mais
terrível nem mais manifesta do que a possessão do corpo humano.
Nessa ação, o demônio não apenas influencia a imaginação, como nos casos de
tentação, mas ocupa de fato o corpo, fala por sua boca, move seus membros, e
usa o homem como instrumento de sua vontade perversa.
A Escritura abunda em exemplos.
Nos Evangelhos, muitos possuídos foram libertos por Cristo, que mandava: “Exi
ab eo, spiritus immunde.”
Um deles morava nos sepulcros, outro era mudo, outro jogava-se ao fogo e à
água; todos mostravam que o inimigo podia dominar o corpo, mas nunca a alma,
salvo por consentimento.
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 110,
art. 3) ensina:
“A possessão é obra do demônio, quando ele ocupa o
corpo humano e dele se serve como de seu instrumento, não por união natural,
mas por aplicação violenta.”
E Santo Agostinho, em De Spiritu et Anima
(cap. 32), acrescenta:
“O corpo é movido pela alma como seu servo; mas,
quando o espírito maligno o invade, faz-se tirano em vez de senhor.”
De causis
et modis huius occupationis.
(col. 122A–124A)
A causa principal da possessão é o pecado,
especialmente o de idolatria, blasfêmia ou feitiçaria, pelos quais o homem,
voluntária ou involuntariamente, abre ao demônio a entrada do corpo.
O modo pelo qual o demônio entra é oculto à nossa
compreensão, mas os doutores afirmam que ele se introduz pelos sentidos ou
pelos humores, aplicando-se a certa parte interior — ora ao cérebro, ora ao
estômago, ora ao coração —, donde move os membros e perturba as funções vitais.
Às vezes, o demônio age de modo parcial, ocupando
apenas uma parte do corpo, como a língua, os olhos ou os braços; outras vezes,
toma o corpo inteiro, e o homem parece totalmente outro, falando em voz alheia,
com força e gestos que excedem a natureza.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, III,
6) narra:
“Um monge foi subitamente levantado no ar por força
invisível; e o espírito, falando por sua boca, declarou ser um dos anjos
caídos.”
O mesmo se lê nas Vidas dos Padres do Deserto,
onde numerosos santos expulsaram demônios com jejum e oração.
De signis possessionis.
(col. 124A–126A)
Os sinais da verdadeira possessão são estes:
- Falar em línguas desconhecidas, ou entender as que nunca se
aprenderam.
- Revelar coisas ocultas e distantes.
- Mostrar força desumana, movendo corpos pesados com facilidade.
- Manifestar aversão às coisas santas — cruz, relíquias, água benta,
nome de Jesus e Maria.
- Proferir blasfêmias e rir de modo disforme quando se lê o
Evangelho.
- Contrair o corpo em posturas impossíveis e, logo depois, relaxar-se
sem dor.
Os médicos prudentes reconhecem que essas
manifestações não são efeitos naturais, porque cessam instantaneamente ao
contato com as coisas sagradas.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 6)
declara:
“A possessão não é doença do corpo, mas domínio do
espírito maligno; e o remédio não é o ferro nem o fogo, mas o nome de Cristo.”
De exemplis possessionum et liberationum.
(col. 126A–127C)
Em Gênova, 1583, uma jovem foi tomada por espírito
que falava grego, língua que ela ignorava.
Durante o exorcismo, o demônio confessou que fora invocado por feiticeira, e
saiu ao ser aspergido com água benta do batistério.
Em Milão, 1601, um menino de doze anos foi possuído
de tal modo que subia pelas paredes e falava com voz dupla, uma doce, outra
horrenda.
Após quarenta dias de oração e jejum, libertou-se ao ouvir a palavra “Ecce
Crux Domini.”
Em Colônia, um homem de vida dissoluta zombava dos
sacramentos; foi subitamente tomado de convulsões e começou a uivar como
animal.
Durante três anos sofreu tormentos até confessar sua culpa e ser exorcizado
pelo padre Hieronymus de Wier.
Também entre os santos há muitos exemplos.
São Francisco Xavier expulsou, na Índia, numerosos demônios, que saíam dos
corpos com gritos e fumaça; e São Filipe Neri libertou uma jovem apenas
impondo-lhe a mão e dizendo: “Dominus te liberet.”
De exorcismo et potestate Ecclesiae.
(col. 127C–128B)
A Igreja recebeu de Cristo poder sobre os espíritos
imundos.
O exorcismo é o rito pelo qual esse poder se exerce em nome de Deus, não por
virtude humana, mas pela autoridade da cruz.
O exorcista deve ser homem de vida pura, confiante,
não temeroso; porque o demônio teme a humildade e ri da soberba.
Durante o rito, lê-se o Evangelho de São João,
asperge-se água benta e aplica-se o sinal da cruz sobre a fronte do possesso.
Quando o demônio se manifesta, o sacerdote o interroga — não por curiosidade,
mas para confirmar a fé dos presentes —, perguntando-lhe o nome, a causa e o
tempo da entrada.
Por fim, ordena-lhe que saia: “Praecipio tibi,
spiritus immunde, per Deum vivum, ut exeas et amplius non revertaris.”
Santo Ambrósio afirma:
“Não há força humana que vença o demônio, mas há
uma palavra divina que o lança ao abismo.”
Conclusio.
(col. 128C)
Conclui-se, pois, que a possessão é verdadeira, que
o demônio pode ocupar o corpo humano por permissão divina, e que o poder de
expulsá-lo pertence somente à Igreja de Cristo.
Nenhum encantamento profano, nem erva, nem pedra
tem força contra ele; somente o sinal da cruz e a invocação do nome de Jesus.
Assim como entrou por soberba, sai pela obediência;
como venceu pela mentira, é vencido pela verdade.
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 128C)
CAPUT XIX —
De differentia inter obsessionem et possessionem.
Sobre a diferença entre obsessão e possessão.
(col. 129A–135B)
Embora muitos confundam os termos obsessão e
possessão, os teólogos e exorcistas mais experimentados distinguem entre
ambos com precisão, pois a diferença é grande e essencial.
Na possessio, o demônio entra e habita no
corpo, servindo-se dele como de sua morada e instrumento; na obsessio, o
demônio age de fora, cercando, perseguindo e oprimindo o homem, sem contudo
penetrar-lhe o corpo.
Santo Tomás (Summa
Theologiae, I, q. 110, art. 3, ad 2) explica:
“A possessão é o domínio interior do corpo pelo
espírito maligno; a obsessão é o assédio exterior e contínuo.”
Logo, a primeira se verifica quando o demônio fala,
move e atua pelos membros do homem; a segunda, quando o atormenta com visões,
ruídos, terrores, doenças e tentações, sem perda total do domínio do corpo.
De speciebus obsessionis.
(col. 130A–132A)
A obsessão é de três espécies: corporal, sensitiva
e espiritual.
- Obssessio corporalis —
quando o demônio aflige o corpo com enfermidades, dores e pancadas
invisíveis.
Assim, lemos no livro de Jó que Satanás feriu o justo com chagas da cabeça aos pés, sem entrar nele, mas o cercando com poder de fora. - Obssessio sensitiva —
quando o demônio perturba os sentidos exteriores ou interiores, fazendo o
homem ver ou ouvir o que não existe.
Muitos santos experimentaram tais ilusões, que lhes serviram de prova e purificação.
Santo Antônio, no deserto, foi cercado de figuras monstruosas, mas nenhuma o tocou. - Obssessio spiritualis —
quando o inimigo se insinua nos afetos e pensamentos, excitando tristeza,
desespero, raiva ou impureza.
Essa forma é a mais perigosa, porque se oculta sob aparência de tentação comum.
Santo Agostinho (De Spiritu et Anima, cap.
34) observa:
“O demônio, não podendo sempre ocupar o corpo,
rodeia a alma e a assalta com sugestões; e quando não vence pela força, busca
vencer pela persistência.”
De signis quibus haec discernuntur.
(col. 132A–134A)
Os sinais que distinguem a obsessão da possessão
são claros.
— Na possessão, o demônio fala pela boca, move os
olhos e membros, e às vezes levanta o corpo no ar.
— Na obsessão, o homem fala por si mesmo, mas sente peso invisível, ou escuta
vozes exteriores que o chamam e perturbam.
— Na possessão, há perda parcial da razão; na obsessão, conserva-se o juízo,
mas há angústia contínua.
— Na possessão, a água benta causa convulsão imediata; na obsessão, causa
apenas inquietação e mal-estar.
Os exorcistas experimentados discernem o caso pela
oração prolongada: se o mal responde por palavra ou grito, é possessão; se
apenas resiste por silêncio e fadiga, é obsessão.
Santo Gregório Magno afirma (Dialogorum Libri,
III, 7):
“O inimigo pode apertar, mas não penetrar; pode
ferir, mas não ocupar; pode gritar ao ouvido, mas não falar pela língua.”
De remediis et cautelis.
(col. 134A–135A)
O remédio da obsessão é semelhante ao da possessão,
mas mais espiritual que corporal.
Convém não buscar exorcismos públicos antes de se provar que o caso não procede
de enfermidade natural, melancolia ou imaginação perturbada.
O obsesso deve confessar-se frequentemente,
comungar e orar, pedindo a intercessão de São Miguel Arcanjo e da
Bem-Aventurada Virgem Maria.
Deve evitar a solidão, as conversas curiosas e todo vínculo supersticioso, pois
o demônio, não podendo entrar no corpo, tenta entrar pelo pensamento.
Os Padres recomendam o Salmo 90 — Qui habitat in
adjutorio Altissimi — como defesa contra o assédio invisível.
Também o uso da cruz ao peito e da água benta à cabeceira do leito é de grande
eficácia.
Santo Ambrósio escreve:
“Não se deve temer o que ruge fora, mas o que
persuade dentro.”
E São Jerônimo acrescenta:
“Quando o demônio não pode possuir, busca obsediar;
quando não pode obsediar, busca inquietar; e quando não pode inquietar, tenta
com lembranças.”
Conclusio.
(col. 135B)
Conclui-se, pois, que a obsessão é o cerco exterior
do homem pelo demônio, e a possessão, a sua ocupação interior; que ambas são
reais, distintas e permitidas por Deus para prova, correção ou glória dos
fiéis; e que ambas cessam pela oração, penitência e poder da cruz.
Assim como o Senhor permitiu que Pedro fosse
tentado e Jó fosse provado, assim também permite a obsessão, não para a ruína,
mas para o mérito da paciência.
Por isso, quem sofre tais tormentos não deve
desesperar, mas dizer com o salmista (Salmo 26, 3):
“Si consistant adversum me castra, non timebit cor
meum.” — “Ainda que um exército se levante contra mim, meu coração não temerá.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 135B)
CAPUT XX —
De divinatione, somniorum et praesagiorum vanitate.
Sobre a adivinhação, os sonhos e a vaidade dos
presságios.
(col. 136A–142C)
A curiosidade de conhecer o futuro foi, desde a
queda de Adão, uma das maiores tentações da humanidade, e uma das mais sutis
portas abertas ao demônio.
Pois, desejando saber o que só a Providência divina dispõe, o homem ultrapassa
o limite de sua natureza e se sujeita ao espírito de mentira.
Santo Agostinho, em De Doctrina Christiana
(II, 23), diz:
“Toda adivinhação que não procede de revelação
divina é obra dos demônios, que exploram a curiosidade humana para prender o
espírito em servidão.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
95, art. 1) ensina:
“A divinação é ilícita, porque pretende conhecer o
que pertence unicamente à disposição de Deus, e, por isso, participa do pecado
de idolatria.”
De variis speciebus divinationis.
(col. 137A–139A)
A adivinhação se divide em muitas espécies, segundo
o meio pelo qual o demônio opera.
- Astrologia supersticiosa.
Não aquela parte legítima que observa os movimentos celestes para medir o tempo e o clima, mas a que pretende determinar o livre-arbítrio e os acontecimentos futuros pela posição dos astros.
Assim, julgam que o homem nasce sob estrela de fortuna ou de desgraça, e que os crimes e virtudes são regidos por constelações.
Essa é a antiga heresia dos caldeus, condenada por toda a Igreja.
Santo Agostinho, que em sua juventude a seguiu, depois confessou:
“Não são as
estrelas que fazem o homem, mas Deus que fez as estrelas.”
- Augúrios e presságios.
Tais são as observações de vozes, vôos de aves, quedas, sombras, ruídos e encontros fortuitos.
São práticas herdadas dos gentios e inspiradas pelo demônio, que se insinua nas coincidências para fingir ordem onde há acaso. - Sortilégios e sortes.
Consistem em abrir livros, lançar dados, pedras ou letras, e tirar deles sentenças sobre o futuro.
O demônio, familiarizado com essas práticas, ordena os sinais conforme o desejo do supersticioso. - Necromancia e consulta aos mortos.
Quando alguém invoca sombras ou espíritos, pedindo-lhes respostas.
Mas, como foi dito no capítulo anterior, não são os mortos que falam, e sim os demônios sob suas formas. - Somniorum interpretatio vana.
A interpretação supersticiosa dos sonhos, quando o homem julga ver neles oráculos.
Há sonhos naturais, causados pelo corpo; outros, divinos, raros e santos; e outros, demoníacos, numerosos e enganosos.
Quem busca neles destino e fortuna abre o ouvido ao inimigo.
De somniis naturalibus et falsis.
(col. 139A–141A)
Os sonhos naturais procedem de causas corporais —
vapores, imaginações e lembranças — e não devem ser tomados como sinais do
futuro.
Aristóteles, em De Divinatione per Somnum, já afirmava que “os sonhos
seguem o movimento dos humores, não dos astros.”
Mas o demônio, conhecendo as inclinações do corpo e
os hábitos da mente, pode intervir nos sonhos, formando imagens que confirmam o
desejo do sonhador, para que ele creia receber revelação.
Assim, se o homem é ambicioso, o demônio mostra-lhe
tronos; se é medroso, mostra-lhe abismos; se é luxurioso, mostra-lhe prazeres.
E quando desperta, o espírito recorda as imagens e julga-as proféticas.
Santo Gregório Magno (Moralium Libri, XVIII,
12) adverte:
“Muitos crêem que Deus lhes fala em sonho, quando é
o inimigo que brinca com sua fantasia.”
Contudo, há também sonhos verdadeiros, que procedem
de Deus, como os de José no Egito e de São José esposo da Virgem.
Mas distinguem-se dos falsos por três sinais: pureza, paz e conformidade com a
lei divina.
O sonho divino conduz ao bem; o demoníaco, ao temor
ou à vanglória.
De vanitate praesagiorum et eventuum.
(col. 141A–142A)
Os presságios e sinais, quando não procedem de
causa natural evidente, são vãos e perigosos.
O demônio, que habita o ar e observa os homens, pode provocar pequenos eventos
para parecer profeta.
Assim, faz cair objetos, move sombras, produz ruídos, ou guia o olhar a certas
figuras, para que o homem veja neles destino.
Mas todo esse jogo é ilusão.
Deus não fala por acaso, mas por revelação; o acaso não fala, mas é apenas o
véu sob o qual o demônio se disfarça.
Santo Agostinho escreve (De Civitate Dei,
XXI, 8):
“Quem observa os acasos como oráculos faz pacto
tácito com o demônio, que se alegra em ser consultado.”
De poena huius curiositatis.
(col. 142A–142C)
A pena dos adivinhos é gravíssima, porque sua
curiosidade é princípio de idolatria.
Quem busca saber o futuro, em vez de confiá-lo à Providência, coloca-se sob o
domínio do príncipe das trevas.
Assim ordena o Deuteronômio (18, 10–12):
“Não se ache entre vós quem pratique adivinhação,
nem encantamento, nem magia, nem quem consulte os mortos; porque todos esses
são abominação diante do Senhor.”
E o profeta Isaías (8, 19) repreende:
“Quando vos disserem: consultai os que têm espírito
de adivinhação, respondereis: acaso não deve o povo consultar seu Deus?”
Logo, toda forma de divinação é vaidade e pecado, e
todo presságio, quando não vem de Deus, é mentira.
Quem confia em tais sinais perde o repouso da alma e entra na confusão do
espírito.
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 142C)
CAPUT XXI —
De fascinatione et oculo maligno.
Sobre a fascinação e o mau-olhado.
(col. 143A–149C)
A fascinação é uma operação oculta pela qual um
homem, e principalmente uma mulher, causa dano a outro com o simples olhar, sem
contato nem palavra.
Essa operação, comum entre os antigos e confirmada pela experiência, é efeito
de uma virtude natural corrompida e da cooperação do demônio.
Santo Agostinho, em De Civitate Dei (XXI,
6), afirma:
“Há nos olhos certa força oculta, que, excitada
pela inveja ou pelo ódio, transmite um veneno invisível àquele que é olhado.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 117,
art. 3, ad 2) explica:
“O olhar é um movimento do espírito através dos
sentidos; assim, quando o afeto interior é corrompido, o olhar pode ferir o
corpo alheio, principalmente das crianças, cuja natureza é mais tênue.”
Logo, a fascinação não é imaginação vã, mas efeito
natural pervertido pela influência demoníaca.
De modis fascinationis.
(col. 144A–146A)
A fascinação se dá de três modos: natural, mágico
e demoníaco.
- Natural.
Ocorre quando uma pessoa, dominada por forte paixão — inveja, amor ou ódio — fixa o olhar com tanta intensidade que move os espíritos sutis do corpo e os transmite, pelo ar, ao objeto visto.
Esses vapores, penetrando pelos olhos ou poros do outro, alteram os humores e causam doença ou fraqueza.
Aristóteles (De Somno et Vigilia, cap. 2) alude a esse poder dos olhos, dizendo que “a visão emite algo que toca o visível.” - Mágico.
Quando o olhar é acompanhado de palavras e gestos rituais, de modo que o fascinator invoca forças ocultas ou usa imagens e encantamentos.
Tais práticas são comuns entre as bruxas, que fixam o olhar e murmuram fórmulas para paralisar ou adoecer seus inimigos. - Demoníaco.
Quando o demônio age diretamente pelo olhar do homem, movendo-o como instrumento, e comunicando-lhe virtude maligna para executar seu intento.
Nesse caso, o olhar é apenas canal; o agente é o espírito imundo.
Santo Gregório Nazianzeno observa:
“Assim como o Espírito Santo opera pelos olhos
puros, o espírito maligno opera pelos olhos corrompidos.”
De effectibus huius mali.
(col. 146A–148A)
Os efeitos da fascinação são múltiplos e sutis.
- Nas crianças, causa languidez, febre súbita, sono contínuo, perda
do apetite e choro sem causa.
- Nos adultos, produz fraqueza, desânimo, insônia e aversão às coisas
santas.
- Nos animais, especialmente no gado e nas aves, causa esterilidade e
morte repentina.
Muitas vezes o malefício se manifesta logo após um
olhar fixo e silencioso, sobretudo vindo de pessoa invejosa.
Por isso, nas aldeias antigas era costume proteger as crianças com amuletos,
fitas ou bênçãos, não pela virtude do objeto, mas pela fé no sinal sagrado.
Santo Agostinho adverte (De Doctrina Christiana,
II, 20):
“Não é o ferro nem a pedra que afasta o mal, mas a
cruz de Cristo, em cuja lembrança o demônio não pode fixar o olhar.”
O olhar maligno é particularmente perigoso quando o
fascinator se encontra em estado de cólera ou desejo carnal, pois então o demônio
coopera mais fortemente, encontrando matéria disposta.
De remediis contra fascinationem.
(col. 148A–149A)
Os remédios contra a fascinação são espirituais e
naturais.
Espirituais: o sinal da cruz, a oração do Salmo 121
— “Levavi oculos meos in montes” — e o uso de imagens sagradas,
especialmente da Virgem Maria e de São Miguel.
A bênção sacerdotal e a aspersão de água benta dissipam a influência demoníaca.
Naturais: evitar olhar fixamente para os invejosos,
e cobrir as crianças ao serem mostradas em público; pois os olhos são janelas
abertas, e o ar, o meio por onde passa a força do olhar.
Os antigos usavam o coral e o olho de vidro como
defesa, por serem substâncias que quebram a luz e desviam o reflexo visual; mas
o cristão deve confiar antes no poder do nome de Jesus.
Santo Jerônimo aconselha:
“Se te olham com inveja, olha tu para o crucifixo;
porque ali se quebra toda flecha lançada pelo olhar.”
De exemplis et experimentis.
(col. 149A–149B)
Em Nápoles, 1589, uma mulher foi julgada por ter
matado três crianças apenas com o olhar.
As testemunhas afirmaram que ela as fitava longamente, murmurando palavras
inaudíveis; as crianças, logo depois, empalideciam e morriam.
Ao ser interrogada, confessou que seu demônio lhe ordenara “olhar com ódio e
silêncio.”
Em Gênova, 1604, um pastor declarou que seu rebanho
adoecia sempre que uma velha passava e o encarava.
Após sua prisão, as mortes cessaram.
Esses fatos, embora terríveis, são confirmados por
médicos e teólogos, que reconhecem que a fascinação não é fábula, mas mistura
de causa natural e operação infernal.
Conclusio.
(col. 149C)
Conclui-se, pois, que a fascinação é verdadeira em
seu efeito, mas vã em sua causa aparente; que nasce da corrupção dos afetos e
do concurso do demônio; e que sua cura consiste não em encantamentos, mas na fé
viva e na pureza do coração.
Assim ensina o Senhor (Mateus 6, 22):
“Si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum
lucidum erit.” — “Se teu olho for puro, todo o teu corpo será luminoso.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 149C)
CAPUT XXII —
De maleficiis quae corporibus inferuntur.
Sobre os malefícios que são infligidos aos corpos.
(col. 150A–157B)
Depois de termos falado sobre a fascinação e o
poder do olhar maligno, resta tratar dos malefícios corporais propriamente ditos,
pelos quais o demônio, com a cooperação das bruxas, causa doenças,
deformidades, dores e até a morte dos homens.
Esses males são tão frequentes e variados que quase
não há província ou cidade onde não se encontrem exemplos manifestos.
Por isso, é necessário distinguir entre os que têm causas naturais e os que
provêm de arte diabólica, para que a medicina não usurpe o lugar do exorcismo,
nem o exorcismo o da medicina.
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) ensina:
“Os demônios podem causar doenças corporais, não
por alteração substancial, mas movendo os humores e o ar exterior, conforme a
disposição da matéria.”
E Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII,
18) acrescenta:
“Deus permite que os demônios perturbem o corpo,
para que a alma aprenda, no sofrimento, a buscar o bem superior.”
De modis quibus corpora laeduntur.
(col. 151A–153B)
Os malefícios corporais são de quatro espécies
principais:
- Por contato direto.
Quando a feiticeira toca o corpo da vítima, aplica unguento, sopra palavras ou faz sinal secreto.
Então o demônio, presente no ato, imprime no corpo uma virtude venenosa que inflama, endurece ou paralisa os membros.
Assim, muitos adoecem subitamente após um aperto de mão ou beijo. - Por imagem ou efígie.
Quando o nome ou a semelhança da pessoa é usada em figura de cera, barro ou madeira, e nela são cravados pregos ou queimadas partes.
O demônio, unido ao símbolo, transfere o efeito ao corpo verdadeiro.
Santo Agostinho menciona esse uso (Quaestiones in Heptateuchum, II, 22):
“As efígies
não ferem a imagem, mas servem de instrumento ao inimigo, que fere a alma pela
fé supersticiosa.”
- Por malefício do alimento.
Quando a feiticeira mistura substância venenosa ou consagrada ao demônio em comida ou bebida.
Assim, o mal penetra com o alimento, e o corpo é inflamado ou definhado.
Os inquisidores de Brescia relatam casos em que o demônio foi visto pairando sobre a mesa no momento do envenenamento. - Por conjuração distante.
Quando o nome da vítima é pronunciado em círculo mágico, ou o demônio é enviado sobre ela com ordem de causar doença ou tormento.
Esse tipo de malefício é o mais perigoso, porque opera sem contato e muitas vezes sem ciência do feiticeiro, que apenas empresta a voz.
Santo Antonino, em sua Summa Moralis (parte
II, tit. 11), declara:
“O demônio, mais do que o veneno, é o instrumento
do malefício, e age onde a fé está ausente.”
De signis quibus maleficium cognoscitur.
(col. 153B–155A)
Os sinais do malefício corporal são diferentes dos
das doenças naturais.
- Quando a enfermidade surge repentinamente, sem causa evidente, e
resiste a todos os remédios.
- Quando se manifesta apenas em certos dias ou horas, cessando e
voltando como se obedecesse a comando.
- Quando o doente não suporta coisas sagradas — cruz, relíquia, água
benta —, mas sente alívio diante de encantamentos ou práticas
supersticiosas.
- Quando aparecem marcas estranhas — figuras, letras ou manchas — que
mudam de forma e posição.
Os médicos prudentes confessam que tais sintomas
não têm causa física.
O demônio age nos humores e nervos, mas sua raiz está na permissão divina e no
pecado humano.
Por isso, os santos exorcistas, ao tratar do
enfermo, perguntam se houve inveja, ódio ou juramento; pois o demônio se
aproveita dessas disposições para agir.
Santo Gregório Magno ensina (Dialogorum Libri,
IV, 30):
“As doenças naturais são curadas pela arte; as
demoníacas, pela fé; e quando a arte falha, é sinal de que o mal não é da
natureza.”
De exemplis maleficiorum.
(col. 155A–156B)
Em Pádua, 1590, um jovem foi repentinamente
paralisado.
Nenhum médico encontrou causa.
Uma feiticeira confessou que havia feito uma imagem de cera com o nome dele e a
enterrara de cabeça para baixo.
Quando a efígie foi desenterrada e queimada com bênção, o rapaz recuperou os
movimentos.
Em Milão, 1602, uma mulher ficou cega após recusar
esmola a uma velha.
No exorcismo, o demônio declarou que “entrara pelos olhos” no momento da
maldição.
Ao ouvir o Credo, a visão lhe foi devolvida.
Em Colônia, 1606, uma criança foi tomada de febre e
convulsões.
Os inquisidores descobriram sob o travesseiro uma pequena bolsa com cabelos e
ossos.
Após sua queima e oração, a criança sarou imediatamente.
Esses e outros casos foram examinados por juízes
eclesiásticos, e atestam que os malefícios corporais são reais e permitidos por
Deus como prova e castigo.
De remediis.
(col. 156B–157A)
Os remédios contra os malefícios são:
- Confissão e comunhão frequentes.
- Oração perseverante, especialmente o Pater Noster e o Ave
Maria.
- Uso da água benta, do sal exorcizado e da imposição da cruz.
- Destruição dos objetos encantados, com bênção sacerdotal.
- Abstinência e caridade, porque o demônio teme o coração purificado.
Os exorcistas recomendam também o Salmo 90 e as
palavras do Evangelho de São João (1, 5): “Et lux in tenebris lucet.”
Santo Ambrósio escreve:
“Não há malefício tão forte que não se quebre pela
fé de quem crê.”
Conclusio.
(col. 157B)
Conclui-se, pois, que os malefícios corporais são
reais, e que o demônio, com a cooperação das bruxas, pode afligir o corpo do
homem com dor e doença; mas não pode tocar a alma sem consentimento.
Por isso, quem sofre tais males deve antes
purificar a consciência do que procurar encantadores, porque a pureza interior
é o mais firme escudo contra o poder infernal.
Assim diz o Apóstolo (Efésios 6, 16):
“In omnibus sumentes scutum fidei, in quo possitis
omnia tela nequissimi ignea extinguere.” — “Tomai em tudo o escudo da fé, com o
qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 157B)
CAPUT XXIII
— De maleficiis amoris et odii.
Sobre os malefícios de amor e de ódio.
(col. 158A–165C)
Entre todos os tipos de feitiçarias, nenhum é mais
frequente nem mais perigoso à alma do que os malefícios de amor e de ódio,
pelos quais o demônio perturba o coração humano, invertendo os afetos e os
desejos.
Pois é pelo amor desordenado e pelo ódio sem causa que ele mais facilmente
arrasta os homens à perdição.
Esses malefícios, embora pareçam contrários — um
buscando atrair, o outro repelir —, têm a mesma raiz: a sujeição da vontade humana
à influência infernal.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XIX, 12)
diz:
“O amor que não é ordenado por Deus torna-se
servidão do diabo, porque o espírito, amando fora da verdade, se converte no
que ama.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I–II, q.
80, art. 2) ensina:
“O demônio não pode criar o amor, mas pode mover os
afetos corporais e imaginários, de modo que o homem se inclina violentamente a
algo contra a razão.”
De maleficiis amoris.
(col. 159A–161A)
O malefício de amor — chamado vulgarmente ligatio
amoris ou veneficium amatorium — é uma arte perversa pela qual
alguém busca obter o amor ou o desejo de outra pessoa por meio de
encantamentos, unguentos ou pactos.
O demônio coopera nesses atos movendo a imaginação,
inflamando os humores e apresentando à mente da vítima imagens da pessoa
desejada, até que o coração se submeta ao impulso.
As bruxas costumam empregar diversos meios:
- Unguentos e filtros.
Misturam sangue, ervas, ossos e palavras sacrílegas, e os dão a beber ou untam secretamente nas roupas.
O demônio, presente, excita os sentidos e provoca ardor interior. - Figuras e imagens.
Moldam duas figuras — uma do amante e outra da vítima — e as unem com cordão ou nó, dizendo: “Sicut haec ligantur, ita ligetur cor illius.”
O espírito maligno executa a ligação imaginária. - Palavras e sinais.
Murmuram nomes e números em certos lugares, lançando o feitiço ao vento.
O ar, instrumento do demônio, leva a imagem ao coração do outro.
Os inquisidores relatam casos em que o amor impuro
se acendeu instantaneamente após o encantamento, e cessou apenas com exorcismos
e penitência.
Santo Antonino observa (Summa Moralis, parte
II, tit. 10):
“Esses amores artificiais não são paixão natural,
mas possessão parcial, porque o demônio entra nos sentidos e os governa.”
Assim, quem busca amor por arte ilícita se faz
escravo do inimigo e perde a liberdade da alma.
De maleficiis odii.
(col. 161A–163B)
O malefício de ódio é o inverso do de amor: visa
semear aversão, discórdia e inimizade entre os homens, especialmente entre
esposos, amigos e irmãos.
A bruxa invoca o demônio, pedindo-lhe que “vire o
coração” de um contra o outro.
Então, ele suscita lembranças tristes, suspeitas, ciúmes e rancores, até que o
vínculo se destrua.
Os meios usados são semelhantes aos anteriores:
imagens separadas, palavras de maldição, unguentos e cinzas.
Em vez de unir, separam; em vez de inflamar o desejo, excitam a repulsa.
Santo Gregório Magno (Moralium Libri, XXXI,
8) escreve:
“Aquele que instiga a discórdia entre irmãos
participa da obra do demônio, que foi homicida desde o princípio.”
Em Milão, 1592, um casal, unido por longos anos,
caiu subitamente em ódio mortal.
A mulher confessou haver pedido a uma feiticeira que “fizesse o marido
detestá-la para que ela pudesse fugir com outro.”
Logo ambos adoeceram, e morreram em delírio.
O ódio mágico é mais cruel que o veneno, porque
destrói a paz interior e separa o homem do perdão divino.
De signis amoris et odii artificialis.
(col. 163B–164B)
Os sinais desses malefícios são claros:
- Quando o amor nasce subitamente, sem causa, e leva o homem a
esquecer a razão e a honra.
- Quando a paixão cresce à medida que a pessoa amada se afasta, e se
apaga quando se aproxima.
- Quando o ódio surge sem ofensa, e a presença do outro causa
angústia e repulsa.
- Quando ambos, amor e ódio, se alternam de forma súbita e sem
motivo.
Tais paixões não procedem da natureza, mas de
influência externa.
O corpo sente calor ou frio, o olhar se perturba, o sono desaparece, e a alma
perde a paz.
Os exorcistas provam o malefício aspergindo água
benta e rezando o Credo: se o aflito se contorce, ri ou chora sem causa,
o caso é certo.
Santo Agostinho declara (De Trinitate, XII,
12):
“A vontade, quando é movida de fora, perde a ordem;
e o amor que nasce sem razão é já servidão.”
De remediis.
(col. 164B–165A)
O remédio contra os malefícios de amor e ódio é
duplo: penitência e oração.
Primeiro, cortar toda curiosidade, desfazer pactos
e destruir objetos encantados.
Depois, purificar a imaginação com a confissão e o sacramento da Eucaristia.
O coração deve ser entregue inteiramente a Deus, porque onde Ele reina, o
inimigo não pode amar nem odiar.
Os santos padres recomendam o Salmo 50 — “Cor
mundum crea in me, Deus” — e a oração de São Miguel Arcanjo.
A bênção conjugal, quando renovada com fé, rompe os
laços infernais, porque o matrimônio é sacramento instituído contra a
concupiscência demoníaca.
Santo Jerônimo aconselha:
“Quem ama segundo Deus, vence o demônio; quem ama
segundo o mundo, é vencido.”
Conclusio.
(col. 165C)
Conclui-se, pois, que os malefícios de amor e ódio
são verdadeiros em seus efeitos, mas ilusórios em sua origem; que o demônio não
cria o amor nem o ódio, mas os desordena; e que o único remédio é submeter o
coração à caridade divina, onde não há feitiço nem engano.
Assim diz o Apóstolo (Romanos 13, 10):
“Plenitudo legis est caritas.” — “A plenitude da
lei é o amor.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 165C)
CAPUT XXIV —
De tempestatibus et grandinibus a maleficis excitatis.
Sobre as tempestades e granizos provocados pelas
bruxas.
(col. 166A–173B)
Entre os poderes que o demônio exerce por meio de
suas servas, nenhum é mais manifesto e temido do que o de perturbar o ar,
levantar ventos, chuvas, trovões e granizos.
Pois, sendo espírito aéreo e habitando nas regiões inferiores do firmamento,
ele tem, por natureza, domínio sobre os vapores e ventos, podendo movê-los
conforme a permissão divina e o auxílio das bruxas.
Santo Paulo chama o diabo de “princeps
potestatis aeris” (Efésios 2, 2) — “príncipe da potestade do ar.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 110, art. 3) explica:
“O demônio, por sua condição de espírito sutil,
pode mover os corpos aéreos, condensar as nuvens e produzir trovões e
tempestades.”
Assim, as bruxas, invocando seu poder, perturbam os
elementos e lançam desgraça sobre os campos e colheitas.
De modo quo maleficae tempestates concitant.
(col. 167A–169A)
O modo pelo qual as bruxas excitam tempestades é
duplo: por arte natural e por pacto demoníaco.
- Por arte natural.
Usam ervas, raízes e vapores que produzem condensação no ar.
Queimam tais substâncias, recitam palavras e gestos que, por si mesmos, não teriam força, mas servem de ocasião ao demônio, que opera por meio delas.
Assim, como o vento se move pela variação do calor e do frio, o espírito maligno aproveita o movimento dos vapores e o dirige aonde deseja. - Por pacto demoníaco.
Invocam abertamente o demônio, oferecendo-lhe fumaça, sangue ou animais mortos.
Em resposta, ele levanta ventos, destrói plantações e lança granizo sobre os campos.
Em Genebra, 1586, vinte feiticeiras confessaram
haver feito um círculo de enxofre e urina, dentro do qual queimaram penas de
corvo e disseram: “Sicut hæc volant, ita volent venti.” — “Assim como
estas voam, assim voem os ventos.”
No mesmo instante, formou-se tempestade tão forte que derrubou árvores e
telhados.
Em Milão, 1603, uma mulher declarou que, com três
pedras e um ramo de oliveira, podia “atar” ou “soltar” as chuvas.
O demônio, em forma de homem negro, aparecia-lhe sempre que ela murmurava o
encanto.
De permissione divina et causa finali.
(col. 169A–171A)
Deus permite essas perturbações, não porque o
demônio tenha poder absoluto, mas para punir os pecados dos homens e provar os
justos.
Assim como outrora enviou pragas sobre o Egito por
meio de Moisés, agora permite que os ímpios sofram pelos seus próprios pactos.
As bruxas são instrumentos do castigo, e o ar, o campo de sua pena.
Santo Agostinho ensina (De Trinitate, III,
9):
“Os demônios, quando movem os ventos e águas, não o
fazem por domínio, mas por ministério do castigo.”
Portanto, as tempestades infernais são sinais de
correção divina.
E quando o povo se arrepende, cessam os ventos e se aclara o céu, como se lê no
livro de Jonas, onde o profeta, fugindo, provocou a tempestade, e, arrependido,
viu o mar sereno.
De signis tempestatis maleficae.
(col. 171A–172B)
Os sinais de que a tempestade procede de malefício
e não de causa natural são estes:
- Quando o céu se turva subitamente, sem mudança de vento ou
temperatura.
- Quando se ouvem vozes, gritos ou risos no ar.
- Quando o granizo cai em figuras — cruzes, rostos ou letras —, ou
com cheiro de enxofre.
- Quando, após a tempestade, se encontram nos campos objetos
estranhos — ossos, cabelos, cordões ou figuras queimadas.
- Quando os trovões não seguem ordem natural, mas parecem deslocar-se
em círculo sobre certo lugar.
Os camponeses, experimentados nessas coisas,
afirmam que o ar “cheira ao mal” quando a bruxa o move; e que, ao traçar o
sinal da cruz, a nuvem se dispersa.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
27) narra que, em Roma, certa vez o papa Leão IV fez o sinal da cruz sobre o
céu, e a tempestade cessou imediatamente, porque era obra do inimigo.
De remediis et exorcismis contra tempestates.
(col. 172B–173A)
A Igreja instituiu remédios espirituais contra
esses males.
O principal é a bênção dos campos e das colheitas
na festa das Rogações, com a procissão e o canto das ladainhas: “A fulgure
et tempestate, libera nos, Domine.” — “Da fúria do raio e da tempestade,
livrai-nos, Senhor.”
Também se benzem os sinos das igrejas, porque seu
som, unido às orações dos fiéis, perturba o ar e dispersa as nuvens.
Por isso se diz que o sino é “vox Dei contra daemonem aeris.”
O sinal da cruz, feito sobre o ar, e a oração do
Salmo 28 — “Vox Domini super aquas” — têm grande eficácia.
Alguns santos, como São Domingos e São Bernardo, dispersaram nuvens apenas
levantando o crucifixo.
O fiel deve, pois, recorrer a Deus, não a encantos
ou palavras profanas; pois quem invoca o demônio para afastar tempestades
comete o mesmo pecado de quem as provoca.
Conclusio.
(col. 173B)
Conclui-se, pois, que o demônio, com o auxílio das
bruxas, pode por permissão de Deus levantar ventos e tempestades, causar
granizo e destruir colheitas; mas seu poder é limitado e sujeito à oração dos
justos.
Quando o povo se purifica e as igrejas soam seus
sinos em nome de Cristo, o ar se pacifica e os anjos retomam seu domínio sobre
os ventos.
Assim diz o Salmo 134, 7:
“Qui levat nubes ab extremis terrae, fulgura in
pluviam fecit.” — “Ele levanta as nuvens dos confins da terra e faz do
relâmpago a chuva.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 173B)
CAPUT XXV — De daemonum operatione in elementis et in rebus naturalibus.
Sobre a operação dos
demônios nos elementos e nas coisas naturais.
(col. 174A–181C)
Tendo já tratado das tempestades
e granizos, é conveniente agora examinar mais amplamente o poder dos demônios
sobre os elementos — ar, fogo, água e terra —, e sobre todas as coisas naturais
que deles se compõem.
Pois, embora o demônio seja criatura espiritual, ele pode, pela permissão de
Deus e pela sutileza de sua substância, mover e alterar os corpos sensíveis,
não por criação, mas por transformação e deslocamento.
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 110,
art. 3) ensina:
“Os demônios podem, por sua
virtude natural, causar mudanças locais e acidentais nas coisas corporais, mas
não podem mudar a essência nem criar a forma substancial.”
Logo, eles não criam nem
destroem substâncias, mas mudam suas disposições externas, produzindo efeitos
que parecem milagres.
Santo Agostinho, em De Trinitate (III, 8), diz:
“Os demônios conhecem as causas
ocultas das coisas naturais e, aplicando-as, produzem efeitos que os ignorantes
julgam sobrenaturais.”
De operatione in igne et aere.
(col. 175A–177A)
Nos elementos superiores — fogo
e ar —, o demônio tem maior poder, porque sua natureza é próxima à deles, sendo
leve, móvel e sutil.
Por isso, pode mover os ventos,
acender o fogo, criar relâmpagos, faíscas e vapores luminosos.
O mesmo poder lhe permite inflamar os corpos humanos, causar febres súbitas e
paixões violentas, como já foi tratado nos capítulos sobre fascinação e
malefícios.
Também pode alterar o som e a
luz, produzindo vozes no ar e figuras de fogo.
Assim apareceram bolas flamejantes e cometas que os povos antigos tomaram por
presságios.
Na verdade, são vapores inflamados que o demônio concentra e move para iludir
os mortais.
Em Roma, 1602, uma luz vermelha
cruzou o céu durante sete noites; os sábios atribuíram ao demônio, pois o ar
estava sereno e sem vento.
O fogo, símbolo da cólera, é
seu elemento preferido: foi nele que apareceu aos mártires e nele arderá
eternamente.
Por isso, Deus permitiu que caíssem do céu chamas sobre Sodoma, para mostrar o
fim dos pecadores e o poder dos anjos bons sobre o mesmo elemento que o maligno
profana.
De operatione in aqua
et terra.
(col. 177A–179B)
Na água e na terra, o poder do
demônio é menor, porque esses elementos são mais densos e resistentes.
Contudo, ele pode mover as águas, provocar inundações, redemoinhos e afogar
homens e animais.
Nos Evangelhos, os demônios
lançaram os porcos no mar, mostrando que têm domínio sobre os corpos, mas não
sobre a alma.
Nas minas, cavernas e rios
subterrâneos, costumam aparecer espíritos que produzem ruídos e deslocam
pedras; não são almas penadas, mas demônios que se ocultam nas profundezas da
terra.
Muitos mineiros relataram ver figuras negras que trabalham com martelos e
desaparecem ao sinal da cruz.
Na terra, o demônio pode também
alterar os frutos, murchar as plantas e corromper os grãos.
Age nos vermes e insetos, multiplicando-os para castigo dos homens, como se lê
no Êxodo, quando as pragas caíram sobre o Egito.
Contudo, não pode mudar a
substância da semente nem criar o fruto: apenas o deteriora ou o apodrece,
desviando a virtude natural da germinação.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV, 20)
diz:
“O demônio é como vento que
passa: toca, move, perturba, mas não cria; e toda sua força está na permissão
de Deus.”
De occultis virtutibus
et illusionibus naturalibus.
(col. 179B–180C)
O demônio conhece profundamente
as virtudes ocultas das coisas, mais do que qualquer filósofo natural, pois as
estudou desde o princípio da criação.
Por isso, sabe qual pedra atrai
o ferro, qual erva adormece, qual vapor inflama, qual som excita ou acalma os
animais.
Usa esse conhecimento para enganar os homens, fazendo-os crer que há poder
mágico nas criaturas, quando, na verdade, é ele quem move a causa.
Assim nasceram muitas
superstições: amuletos, talismãs, filtros e encantamentos, que nada mais são do
que imitação diabólica da verdadeira filosofia natural.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 9)
afirma:
“O demônio, conhecendo a ordem
das causas, antecipa os efeitos e, parecendo profetizar, apenas calcula o que
vai acontecer.”
Desse modo, ele se serve da
natureza como de um instrumento, e da ignorância humana como de um véu.
De remediis et
protectione contra haec opera.
(col. 180C–181B)
O remédio contra as operações
demoníacas nos elementos é o mesmo que contra todos os seus enganos: fé, oração
e penitência.
A natureza não se defende com encantos, mas com o Criador da natureza.
As bênçãos da Igreja sobre o
fogo, a água e o campo não são superstição, mas restituição da ordem divina aos
elementos perturbados.
Quando o sacerdote abençoa a água, ela se torna instrumento do Espírito Santo;
quando asperge o campo, o ar se purifica e o demônio foge.
Os antigos monges, ao cruzarem
o deserto, traçavam o sinal da cruz sobre o vento e diziam: “Dominus est, non timebo.”
E o ar se acalmava.
Santo Ambrósio escreve:
“Quem governa os elementos é o
mesmo que criou o mundo; e aquele que invoca esse nome, faz calar os ventos e
cessar os fogos.”
Conclusio.
(col. 181C)
Conclui-se, pois, que os
demônios têm poder real, mas limitado, sobre os elementos e as coisas naturais;
que não criam, mas movem; não transformam substâncias, mas alteram aparências;
e que toda sua força se desfaz diante da oração e do sinal da cruz.
Assim diz o Senhor a Jó (38,
11):
“Usque huc venies, et non
procedes amplius.” — “Até aqui virás, e não passarás.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 181C)
CAPUT XXVI —
De apparitionibus daemonum sub formis bestiarum.
Sobre as aparições dos demônios sob forma de
animais.
(col. 182A–189B)
Depois de tratarmos da operação dos demônios nos
elementos, convém examinar agora suas aparições sob forma de animais, as quais
são tão frequentes e temerosas que enchem de horror os fiéis e confundem os
ignorantes.
Com efeito, o demônio, sendo espírito de extrema
mobilidade e sutileza, pode condensar o ar em diversas figuras, assumindo
aparência de animais domésticos ou selvagens, conforme o intento de sua
malícia.
Assim o testemunham a Sagrada Escritura, os Santos Padres e inúmeros exemplos
recentes.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII, 18)
escreve:
“Os demônios, transformando-se em figuras de bestas,
confundem os sentidos e simulam a natureza viva, quando, na verdade, nada há
senão sombra e ar.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 51,
art. 3) ensina:
“Os espíritos malignos assumem corpos aéreos e
neles imprimem formas de animais, ora para iludir os homens, ora para
aterrorizar.”
De causis huius transformationis.
(col. 183A–185A)
As causas pelas quais o demônio escolhe a forma de
animal são três: simbolismo, engano e medo.
- Por simbolismo, porque cada figura
expressa uma paixão ou vício que ele quer excitar.
Assim, aparece como serpente para sugerir astúcia e luxúria; cão para provocar ira e impureza; bode para representar luxúria e idolatria; corvo para inspirar tristeza e desespero; gato para indicar traição e malícia; lobo para simbolizar rapacidade e crueldade. - Por engano, porque busca ser adorado
em figura de animal, perpetuando a idolatria antiga.
Assim os egípcios adoraram o boi Ápis e o crocodilo; os gregos, o sátiro e o fauno; os modernos, por ignorância, reverenciam aparições que julgam espíritos de familiares. - Por medo, porque deseja aterrorizar o homem e
afastá-lo da oração.
Frequentemente aparece em forma horrenda — como cão negro, cavalo sem cabeça, corvo flamejante ou cabra gigante — para fazer crer que o inferno se abriu diante dos olhos.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
24) comenta:
“O inimigo se disfarça sob as formas das criaturas
que mais teme ou mais ama o homem, para vencê-lo pela confiança ou pelo
terror.”
De exemplis certissimis.
(col. 185A–187B)
Os exemplos dessas aparições são incontáveis.
Em Roma, no tempo do Papa Gregório IX, apareceu um
enorme cão negro que uivava diante da igreja de São Pedro; durante sete noites
permaneceu, e depois desapareceu deixando odor de enxofre.
Em Milão, 1598, o demônio surgiu sob forma de
cavalo ardente, correndo pelas ruas e soltando faíscas.
Os que o viram disseram que não deixava pegadas, e sumiu ao soar dos sinos.
Em Colônia, 1604, um monge viu entrar no coro um
corvo que falava em voz humana, dizendo: “Minha hora ainda não chegou.”
O padre aspergiu água benta, e a ave dissolveu-se em fumaça.
Nas montanhas da Baviera, 1608, várias mulheres
confessaram que o demônio lhes aparecia sob forma de gato negro, pedindo
adoração e sangue.
Ao recusarem, foram lançadas ao chão e sentiram cheiro de podridão.
Tais aparições se repetem em todas as regiões,
variando apenas a forma segundo o clima e o costume.
Santo Bernardo, pregando contra os demônios, dizia:
“Eles são sombras que se pintam de carne, e feras
que não têm coração.”
De differentia inter apparitiones angelicas et
diabolicas.
(col. 187B–188B)
Para discernir se a aparição é angélica ou
demoníaca, deve-se atender aos seguintes sinais:
- O anjo aparece com serenidade e luz; o demônio, com
tumulto e trevas.
- O anjo causa paz e devoção; o demônio, espanto e confusão.
- O anjo desaparece com doçura; o demônio, com ruído e odor.
- O anjo fala de Deus e conduz à oração; o demônio fala de si mesmo e
conduz ao medo.
Quando o demônio aparece em figura de animal, busca
sempre desviar a fé para o sensível.
Por isso, é frequente que se manifeste durante orações, jejuns e vigílias,
quando a alma está fatigada e o corpo debilitado.
Santo Agostinho adverte (De Genesi ad Litteram,
XII, 17):
“O inimigo aproveita-se do cansaço do corpo para
introduzir imagens e aparições, como quem encontra a casa adormecida.”
Assim, as visões corporais devem ser recebidas com
prudência e examinadas à luz da doutrina e da paz interior.
De remediis contra huiusmodi visiones.
(col. 188B–189A)
O remédio contra tais aparições é o mesmo que
contra todas as ilusões demoníacas:
— fazer o sinal da cruz, aspergir água benta e invocar o nome de Jesus.
Os santos recomendam ainda não dirigir palavra nem
olhar à aparição, mas fechar os olhos do corpo e abrir os da fé.
Pois o demônio, alimentando-se do temor e da atenção, se fortalece quando é
observado.
Santo Antônio do Deserto, cercado por figuras de
bestas, dizia apenas: “Dominus meus, non timebo.” — “O Senhor é meu, não
temerei.”
E as figuras se dissipavam como névoa.
Quem se confia ao Anjo da Guarda e mantém pureza no
coração jamais será enganado por tais formas, porque a luz interior dissolve a
sombra exterior.
Conclusio.
(col. 189B)
Conclui-se, pois, que o demônio, podendo condensar
o ar e mover os vapores, assume facilmente as figuras dos animais para enganar,
aterrorizar ou ser adorado; que tais aparições não são reais, mas simulacros; e
que desaparecem diante do nome de Cristo, cuja luz nenhuma sombra pode
suportar.
Assim diz o Salmo 90, 13:
“Super aspidem et leonem ambulabis, et conculcabis
leonem et draconem.” — “Sobre o áspide e o leão caminharás, e esmagarás o leão
e o dragão.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 189B)
CAPUT XXVIII — De hominibus in bestias transmutatis per maleficium.
Sobre os homens transformados em animais por
feitiçaria.
(col. 198A–205C)
Depois de examinar a possessão dos animais, resta
tratar das transformações aparentes dos homens em bestas — assunto antigo,
temido e controverso —, no qual o demônio, por permissão de Deus, confunde os
sentidos e obscurece o juízo, fazendo o homem parecer o que não é.
Tal engano é chamado transmutatio phantastica,
pois não se opera na substância da carne, mas na aparência percebida.
Assim, o corpo humano permanece o mesmo, mas os olhos dos que o veem — e às
vezes os do próprio encantado — são enganados por espécie ilusória.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII, 18)
ensina:
“Não é crível que a forma do corpo humano se mude
verdadeiramente em corpo de fera, mas que o sentido é alterado, de modo que o
homem parece besta aos que o veem.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 111,
art. 4) afirma:
“Os demônios não podem mudar a forma substancial,
mas podem perturbar a imaginação e os sentidos, fazendo parecer o que não é.”
De modis huius transformationis.
(col. 199A–201A)
Há três modos principais pelos quais se dá essa
aparente transformação: por ilusão dos sentidos, por fascinação imaginária e
por transporte corpóreo.
- Por ilusão dos sentidos.
O demônio, condensando o ar em forma animal, envolve o corpo do homem e projeta a imagem sobre os olhos alheios, de modo que todos o veem sob outra figura.
Assim, pode parecer lobo, gato, cavalo ou qualquer animal.
Na verdade, é o ar que se move e reflete, como no espelho. - Por fascinação imaginária.
O demônio age diretamente na imaginação do homem, imprimindo nela a forma de besta, de modo que ele mesmo crê ter sido transformado.
Corre, uiva e age como animal, sem que o corpo mude.
Muitos lobisomens são desse tipo, movidos por delírio infernal. - Por transporte corpóreo.
Às vezes, o demônio leva o corpo do homem a outro lugar e põe uma imagem no seu lugar, feita de ar condensado.
Assim se explica que alguém seja visto simultaneamente em dois lugares, um agindo como fera e outro dormindo.
Santo Agostinho menciona tal caso (De Civitate
Dei, XVIII, 18):
“As mulheres chamadas strigae ou lamiae, quando
dizem cavalgar à noite, são iludidas, pois é o demônio que leva suas imagens e
deixa seus corpos dormindo.”
De exemplis certissimis.
(col. 201A–203A)
Em Polônia, 1591, um camponês foi acusado de atacar
viajantes sob forma de lobo.
Ao ser ferido, reapareceu em casa com as mesmas feridas.
Confessou ter feito pacto com espírito que lhe dava peles e unguento.
Ao ser queimado o unguento, cessaram as transformações.
Em Friburgo, 1600, uma mulher afirmou que, ao
untar-se com óleo negro, era levada à floresta como gata e dançava com outros
felinos.
Os inquisidores acharam vestígios de gordura humana misturada a sangue de
criança.
Ela declarou que via a si mesma como animal, mas ao olhar num espelho, percebia
ser mulher — sinal de ilusão demoníaca.
Em Lyon, 1608, três homens, tidos por lobisomens,
foram encontrados nus, cobertos de lama e sangue de ovelhas.
Diziam lembrar apenas de correr de noite, uivando.
Após exorcismo, caíram em pranto e confessaram que haviam jurado ao demônio
fidelidade por sete anos.
Esses casos mostram que o demônio não muda a carne,
mas as formas da percepção, usando o medo e a culpa como instrumentos.
De opinione theologorum.
(col. 203A–204B)
Os teólogos divergem quanto à natureza dessas
transformações.
Alguns antigos sustentaram que era verdadeira metamorfose corporal, citando a
mulher de Ló, transformada em estátua de sal, e a vara de Moisés, que se tornou
serpente.
Mas os doutores modernos, especialmente Santo Tomás, ensinam que esses milagres
pertencem só ao poder divino, não ao demoníaco.
Os teólogos escolásticos concordam que:
— O demônio pode mover os corpos, mas não alterar sua essência.
— Pode alterar os sentidos, mas não criar substância.
— Pode causar sonho e êxtase, mas não transmutar a alma.
Logo, as supostas metamorfoses demoníacas são
ilusões produzidas na imaginação e nos olhos.
Santo Antonino escreve (Summa Moralis, II,
tit. 12):
“A mulher que julga ser loba é louca ou iludida; o
demônio não lhe mudou o corpo, mas a mente.”
E Santo Isidoro de Sevilha, em Etymologiae
(VIII, 9), afirma:
“Chamam-se lycanthropi os que, pela arte do diabo,
creem ser lobos; e tal se dá mais na mente que no corpo.”
De remediis et exorcismis.
(col. 204B–205B)
O remédio é o mesmo que contra as ilusões e
possessões: confissão, comunhão e exorcismo.
O sacerdote deve aspergir o afetado, rezar o Salmo 68 — “Exsurgat Deus et
dissipentur inimici eius” —, e ordenar ao demônio que abandone a fantasia.
Deve também instruir o povo para não crer em metamorfoses
reais, pois quem nelas acredita facilmente cai em superstição e sacrílego
temor.
A luz da fé dissolve as imagens, e o nome de Jesus restitui o homem à própria
forma.
Os santos Padres ensinam que o sinal da cruz no
espelho destrói toda aparência ilusória.
Assim fizeram os monges do Egito, quando o diabo lhes apareceu sob forma de
leopardo: traçaram o sinal, e a besta se dissipou como pó.
Santo Ambrósio conclui:
“A forma muda nos olhos, não no ser; e o homem que
vê com fé jamais se transforma.”
Conclusio.
(col. 205C)
Conclui-se, pois, que as transformações de homens
em bestas não são reais, mas ilusões demoníacas; que o corpo não se muda, mas o
sentido se engana; e que somente Deus pode alterar substâncias, enquanto o
demônio apenas disfarça as aparências.
Quem crê no poder do inimigo sobre a forma humana
ofende o Criador, cuja imagem nenhuma treva pode deformar.
Assim diz o Eclesiástico (34, 2):
“Somnia et vanitates, et phantasmata sunt stultis.”
— “Sonhos, vaidades e fantasmas são para os insensatos.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 205C)
CAPUT XXIX — De
transvectionibus maleficarum nocturnis.
Sobre os transportes
noturnos das bruxas.
(col. 206A–213B)
Depois de termos tratado das
metamorfoses aparentes, convém agora considerar os transportes noturnos das
bruxas — aqueles voos e viagens sobrenaturais pelos quais se crê que elas são
levadas a longas distâncias, através do ar, em tempo brevíssimo, para celebrar
seus sabás e pactos infernais.
Este tema, embora pareça
fabular, está confirmado por inumeráveis testemunhos e confissões, tanto
antigas quanto recentes.
Por isso, deve ser examinado com discernimento: o que é ilusão demoníaca e o
que é efeito real da virtude espiritual que move os corpos.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XVIII, 18)
ensina:
“Não se deve crer que os corpos
sejam realmente transportados, mas que os demônios formam imagens nas
fantasias, e as almas, sonhando, julgam ter viajado.”
Mas Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 111,
art. 3, ad 2) acrescenta:
“Nada impede que o demônio, por
virtude natural e permissão divina, transporte corporalmente o homem de um
lugar a outro, como fez com Cristo ao tentá-lo.”
Logo, há dois tipos de
transveção: ilusória
e corporal.
De transvectione
phantastica.
(col. 207A–209A)
A primeira, e mais frequente, é
puramente ilusória.
O demônio, agindo sobre a imaginação e os sentidos, faz parecer à bruxa que ela
cavalga sobre cabra, vassoura, bastão ou animal, atravessando florestas e
montes, quando na verdade seu corpo permanece imóvel.
Ele envolve a mente em sonho
vívido, mostrando cenas de danças, banquetes e pactos.
Ao despertar, a mulher acredita ter realmente voado e participado do sabá.
Essa ilusão é confirmada por
confissões nas quais as feiticeiras, interrogadas, descrevem com exatidão
lugares e pessoas que jamais viram, o que demonstra que o demônio lhes imprimiu
imagens reais, mas espirituais.
Santo Antonino escreve (Summa Moralis, II, tit. 13):
“As bruxas creem voar, mas
apenas suas fantasias são levadas, como o sonho que parece caminho percorrido.”
Assim também o concílio de
Ancira (ano 314) decretou:
“Quem crê que é transportado
com Diana ou Herodias deve ser considerado iludido, e não transportado.”
Contudo, a ilusão é tão viva
que muitas confessam com lágrimas ter percorrido milhas, e mostram marcas
deixadas pelo demônio, que lhes dá sinal visível de servidão.
De transvectione
corporali.
(col. 209A–211A)
O segundo tipo é corporal,
quando o demônio, com permissão divina, move realmente o corpo da feiticeira
pelo ar, como vento ou névoa.
Tal transporte é possível porque ele conhece as virtudes do ar e pode suspender
os corpos leves, privando-os de peso.
Assim, lemos que o diabo
transportou Cristo ao pináculo do templo e a um monte altíssimo (Mateus 4,
5-8); e se pôde mover o corpo sagrado do Senhor, quanto mais os corpos das suas
servas.
Em 1587, em Modena, uma mulher
confessou que fora levada em corpo até o monte Cenisio, sobre um bode alado.
Testemunhas viram-na ausente a noite inteira e reaparecer na manhã seguinte,
coberta de lama e ferida.
Em 1601, em Nápoles, três
feiticeiras afirmaram que haviam voado juntas sobre vassouras, vendo as luzes
da cidade por baixo.
Uma delas caiu num campo e foi achada quebrada e quase morta.
Esses fatos mostram que, ainda
que na maioria das vezes a transveção seja ilusória, pode ser verdadeira
corporalmente, quando o demônio age com permissão expressa de Deus.
Santo Gregório Magno comenta (Dialogorum Libri, IV, 27):
“A virtude do demônio se
estende a mover os corpos, mas nunca sem o consentimento do Criador.”
De ritu et instrumento
huiusmodi volatus.
(col. 211A–212B)
O rito usado pelas bruxas para
voar é sempre acompanhado de pacto explícito.
Primeiro, ungem-se com unguento feito de gordura infantil, ervas venenosas e
sangue, dizendo: “In nomine
diaboli, volo ire.” — “Em nome do diabo, quero ir.”
Logo, o demônio lhes aparece em
forma de animal — bode, gato ou corvo —, toca-lhes o corpo e as eleva pelo ar.
O vento as envolve e as conduz ao lugar do sabá, onde o príncipe infernal as
recebe com zombaria e blasfêmia.
O unguento não tem virtude
natural de voo, mas serve de sinal e matéria para o pacto.
Santo Tomás adverte (Summa
Theologiae, II–II, q. 96, art. 2):
“As substâncias corporais nada
fazem sem o espírito que as move.”
Algumas, porém, apenas dormem,
e o demônio atua nos sentidos, dando-lhes a impressão do voo.
Por isso, encontram-se de manhã exaustas, sujas e feridas, como se tivessem
realmente viajado.
Santo Agostinho escreve (Quaestiones in Heptateuchum,
II, 23):
“O corpo não saiu, mas a alma
foi levada em figura.”
De remediis contra
transvectiones.
(col. 212B–213A)
Os remédios contra tais
transportes são espirituais:
— o sinal da cruz antes do sono,
— a oração do Credo
e do Salmo 90,
— e o uso do nome de Jesus ao despertar.
O sacerdote deve benzer o leito
e aspergir o quarto com água benta, recitando: “Custodi, Domine, habitaculum istud ab omni incursione
phantasmatis.”
As bruxas que se confessam
devem ser instruídas a renunciar ao pacto e a destruir os unguentos e imagens
usados.
Se houver suspeita de transporte corporal, deve-se jejuar e rezar três dias,
pedindo a Deus que quebre o laço.
Santo Bernardo aconselha:
“Quem dorme sob o sinal da cruz
não é levado por vento algum, pois o anjo o guarda em seu leito.”
Conclusio.
(col. 213B)
Conclui-se, pois, que as
transveções noturnas das bruxas são, na maior parte, ilusões produzidas na
imaginação, mas às vezes verdadeiros transportes corporais, permitidos por Deus
para castigo e confusão dos ímpios; que o demônio não cria o movimento, mas usa
o ar como meio; e que o fiel se protege com a oração e o sinal da cruz.
Assim diz o Salmo 90, 5:
“Non timebis a timore nocturno,
a sagitta volante in die.” — “Não temerás o terror da noite, nem a flecha que
voa de dia.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 213B)
CAPUT XXX — De
conventibus et ludis daemonum nocturnis.
Sobre as assembleias e
jogos noturnos dos demônios.
(col. 214A–221B)
Depois de expormos o modo como
as bruxas são levadas aos lugares secretos, é necessário agora descrever o que
ali fazem, e de que maneira o demônio as congrega para celebrar suas
profanações e jogos infernais.
Tais assembleias, chamadas conventus daemonum ou sabbata maleficarum, são os
atos mais abomináveis de toda a arte mágica, porque nelas o inimigo não apenas
se mostra, mas é adorado como deus.
Ali se renovam os pactos, se prestam juramentos de fidelidade e se praticam
crimes contra o corpo e a alma.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XX, 19)
escreve:
“O demônio deseja ser adorado
no lugar de Deus; e quando o homem se inclina diante dele, repete o pecado dos
anjos caídos.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
94, art. 3) acrescenta:
“Toda superstição que termina
em adoração é pacto explícito com o inimigo, ainda que disfarçado de festa.”
De loco conventus.
(col. 215A–216A)
Os lugares escolhidos para tais
reuniões são geralmente desertos, montes, ruínas ou florestas, onde há cruzes
profanadas, árvores retorcidas ou pedras com figuras gravadas.
Muitos sabás são realizados à meia-noite, entre sexta e sábado, tempo em que o
ar é mais denso e o demônio tem maior liberdade de ação.
Em Milão, 1604, trinta e duas
mulheres confessaram reunir-se num campo próximo ao rio Ticino.
O demônio, em forma de bode, sentava-se num trono e recebia adoração.
Elas beijavam-lhe o dorso e juravam obediência, entregando moedas ou fios de
cabelo como sinal do pacto.
Outras confessaram que os
encontros se faziam em cavernas, onde o ar cheirava a enxofre, e uma chama
azulada ardia sem consumir nada.
Lá se cantavam cânticos em língua desconhecida, misturados a blasfêmias.
De ritu et caeremoniis.
(col. 216A–218A)
O rito começa pela invocação do
príncipe das trevas, com as palavras: “Domine
noster, veni et rege nos.”
Logo o demônio aparece, cercado de fumaça, em forma de bode, homem negro ou
monstro híbrido.
Os presentes prostram-se, apagando as velas e pisando a cruz.
Segue-se o juramento, em que
cada um promete:
“Renuncio Deo et Sanctis eius;
tibi soli oboediam.” — “Renuncio a Deus e a seus santos; a ti somente
obedecerei.”
Depois, beijam o demônio em
parte vergonhosa do corpo, símbolo da sujeição.
Os que entram pela primeira vez recebem marca invisível — sigillum infernale — feita
com unha ou ferro em brasa.
Essa marca não dói no momento, mas não desaparece jamais.
Em seguida, inicia-se o
banquete profano.
O alimento parece carne e vinho, mas é cinza e fel.
Os que o comem dizem sentir doçura, pois o demônio engana o paladar.
Após o banquete, começam os
jogos: danças em círculo, movimentos invertidos, saltos e cânticos obscenos.
O demônio toca instrumento invisível e os faz rodar até a exaustão.
Quando alguém cai, é arrastado e marcado novamente.
Muitas vezes, para zombar dos
sacramentos, celebram missa invertida, com hóstia negra e palavras blasfemas.
A essa hora, o ar se enche de vento e os animais bradam — sinal de presença
infernal.
De copulis et nefandis
commixtionibus.
(col. 218A–219B)
O mais abominável dos atos é a
união carnal com os demônios, em forma de íncubos e súcubos.
Essas relações, ainda que incorpóreas, são sentidas com toda a veemência do
corpo.
O frio e o calor alternam-se, e a mulher acredita unir-se a homem vivo.
Santo Tomás (Summa
Theologiae, I, q. 51, art. 3, ad 6) declara:
“O demônio, assumindo corpo
aéreo, pode realizar atos corporais, mas apenas como instrumento, não como
gerador de vida.”
Logo, desses congressos não
nascem homens verdadeiros, mas abortos e monstros, compostos de corrupção e
engano.
Em Genebra, 1599, uma mulher
deu à luz uma criatura disforme, com patas e focinho; confessou ter-se deitado
com espírito que a visitava como homem belo.
Morreu arrependida.
De illusionibus et deceptionibus in conventibus.
(col. 219B–220B)
Muitos dos que assistem a esses
encontros não o fazem em corpo, mas em espírito.
O demônio, agindo sobre a fantasia, mostra-lhes figuras e vozes, de modo que julgam
estar presentes.
Assim explica Santo Agostinho:
“Os sentidos, quando dormem,
creem ver o que o espírito imagina.”
Contudo, quando o pacto é
firmado, o corpo também é usado, e o sinal da marca o demonstra.
O demônio mistura o real e o ilusório, para que ninguém saiba onde termina o
sonho e começa a culpa.
As aparições de fogo, as
sombras e os gritos são verdadeiros quanto ao efeito, mas falsos quanto à
substância.
O mal está em consentir na adoração, ainda que apenas sonhada, pois o coração
peca antes que o corpo aja.
De remediis et poenis.
(col. 220B–221A)
Os remédios são: confissão
integral, abjuração do pacto, penitência e exorcismo.
A Igreja ordena que o sacerdote use o Exorcismus
contra Conventus Daemonum, dizendo:
“Coniuro vos, spiritus
impuri, ut solvatis vincula servorum Dei.”
Quem, arrependido, confessa
haver participado de sabás, deve ser acolhido com misericórdia, mas compelido à
vida penitente.
Quem persiste no pacto deve ser entregue à justiça, pois, segundo o direito
canônico, o crime é de heresia formal.
Os sinos, as procissões e o
Santíssimo Sacramento são armas eficazes contra essas assembleias.
Onde Cristo é adorado, o sabá se desfaz.
Conclusio.
(col. 221B)
Conclui-se, pois, que os
conventos e jogos noturnos das bruxas são reais na intenção e nos efeitos,
ainda que misturados de ilusões; que o demônio é adorado nelas como falso deus;
e que quem nelas participa incorre em condenação eterna, se não for liberto
pela graça.
O fiel deve lembrar-se de que
toda festa sem Deus termina em desespero, e todo riso do inferno é prelúdio de
pranto.
Assim diz o profeta Isaías (5,
14):
“Dilata est infernus et aperuit
os suum absque mensura.” — “O inferno se alargou e abriu sua boca sem medida.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 221B)
CAPUT XXXI —
De pactis expressis et tacitis cum daemonibus.
Sobre os pactos explícitos e tácitos com os
demônios.
(col. 222A–229C)
Como o pacto é o fundamento e vínculo de toda a
malefícia, convém agora tratar dele com exatidão, distinguindo suas espécies,
modos e efeitos.
Pois o demônio, desde o princípio, busca estabelecer com o homem um contrato de
domínio — não pela força, mas pelo consentimento.
Assim como Deus exige fé e obediência, o inimigo pede renúncia e servidão.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 9) diz:
“Toda superstição nasce de pacto entre o homem e o
demônio, pelo qual o homem promete honrar o espírito mentiroso em troca de
algum poder.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
94, art. 1) ensina:
“O pacto com o demônio é pecado de idolatria,
porque nele se atribui ao inimigo a honra devida somente a Deus.”
De distinctione pactuum.
(col. 223A–225A)
Os pactos são de duas espécies: explícitos e
tácitos.
- Explícito é aquele em que o homem, consciente e
deliberadamente, faz acordo direto com o demônio, por palavras ou sinais,
prometendo-lhe culto ou obediência em troca de favores.
Tal pacto é o mais grave e raramente perdoado, porque envolve adoração formal.
Nele, a alma se entrega de modo voluntário, e o demônio imprime sinal visível ou invisível como testemunho do contrato.
O pacto
explícito pode ser feito:
– por invocação, quando o homem chama o demônio;
– por submissão, quando se oferece a ele;
– por escritura, quando assina com sangue ou outro símbolo;
– por beijo ou toque, quando aceita o selo infernal.
Em Brescia,
1603, uma mulher confessou ter assinado o pacto com três gotas de sangue no
livro negro do demônio, escrevendo: “Sum tua in aeternum.” — “Sou tua
para sempre.”
- Tácito é aquele em que o homem não invoca o demônio
por nome, mas se submete à sua influência por práticas supersticiosas,
feitiços, adivinhações, encantamentos ou observâncias contrárias à fé.
Ainda que não haja palavra, há consentimento implícito.
Santo Tomás
explica:
“Quem usa de
arte mágica, ainda sem invocar o demônio, faz pacto tácito, porque se serve de
sua virtude e abandona a confiança em Deus.”
Logo, todo uso de sortilégios, filtros e
adivinhações é pacto tácito e idolatria velada.
De modo et forma pactus.
(col. 225A–226B)
O pacto explícito é celebrado segundo rito que varia
conforme a região e o costume, mas conserva sempre três elementos: renúncia,
profissão e sinal.
- Renúncia.
O iniciante declara: “Renuncio Deo, Christo, Mariae, Ecclesiae et omnibus Sanctis.” — “Renuncio a Deus, a Cristo, a Maria, à Igreja e a todos os Santos.” - Profissão.
Afirma: “Credo in te, princeps mundi, et in potentiam tuam.” — “Creio em ti, príncipe do mundo, e em teu poder.” - Sinal.
O demônio marca o corpo — na língua, no peito, no sexo ou nas costas —, deixando mancha que não sangra nem dói.
É o character diaboli, contraposto ao batismo.
Em Milão, 1606, um homem confessou ter recebido a
marca sob a axila.
Ao ser picada com agulha, não verteu sangue.
Tal sinal foi reconhecido pelos inquisidores como prova do pacto.
De pactis fictis et apparentibus.
(col. 226B–228A)
Há, porém, pactos que o demônio finge sem
verdadeira entrega, apenas para enganar os supersticiosos.
Assim, certos curiosos escrevem nomes ou palavras estranhas, pensando obrigar o
espírito; mas, na verdade, é ele quem os obriga.
Também há aqueles que, buscando glória ou ciência,
prometem sua alma de modo simbólico, dizendo: “Antes perder a salvação que a
sabedoria.”
Essas palavras, ainda que ditas em jactância, têm força de pacto, porque o
consentimento é dado.
Santo Agostinho adverte (Enchiridion, cap.
43):
“O demônio toma por verdade o que o homem promete,
ainda que este o diga por jogo.”
Outros pactos se fazem por sonhos, quando o
espírito aparece e oferece dons.
Quem consente interiormente, ainda dormindo, se torna réu, porque o livre-arbítrio
não dorme.
Em Veneza, 1599, uma jovem declarou ter visto o
demônio em sonho, que lhe prometeu beleza e poder em troca de obediência.
Ao despertar, sentiu na mão o sinal do pacto.
Assim, o consentimento, mesmo interior, basta para
a culpa; e o pacto, ainda imaginário, tem valor aos olhos do inferno.
De effectibus pactuum.
(col. 228A–229A)
Os efeitos do pacto são espirituais e corporais.
Espirituais: o afastamento da graça, a escravidão
interior, a obscuridade da mente e o endurecimento do coração.
Corporais: aparente prosperidade, poder de maleficiar, ilusão dos sentidos e
marcas visíveis.
O demônio concede bens apenas por tempo breve, para
depois exigir pagamento eterno.
Promete ouro e dá cinza; promete prazer e dá tormento.
Assim cumpre o que o Evangelho diz (João 8, 44): “Ille mendax est et pater
eius.” — “Ele é mentiroso e pai da mentira.”
Muitos que fizeram pacto morreram subitamente, com
rosto deformado e odor de enxofre, sinal de que o credor veio cobrar a dívida.
Santo Gregório Magno escreve (Dialogorum Libri,
IV, 30):
“O demônio dá o que não possui, e tira o que Deus
deu.”
De remediis et solutione pactus.
(col. 229A–229C)
O pacto, ainda que terrível, pode ser desfeito pela
graça de Deus, contanto que haja arrependimento sincero.
Três coisas são necessárias: confissão integral, abjuração formal
e penitência perseverante.
O penitente deve declarar todas as palavras, sinais
e promessas feitas, e o sacerdote pronunciar o exorcismo:
“Absolvo te a vinculo diaboli, in nomine Patris et
Filii et Spiritus Sancti.”
Depois, deve jejuar quarenta dias e comungar sete
vezes, invocando diariamente São Miguel Arcanjo, que foi o primeiro a quebrar o
pacto dos rebeldes.
A graça de Cristo é mais forte que todo juramento
infernal.
Quem renuncia ao pacto e busca o sacramento, renasce livre, pois o selo de Deus
apaga o sinal do demônio.
Conclusio.
(col. 229C)
Conclui-se, pois, que o pacto com o demônio é o
maior dos pecados, porque contém idolatria, apostasia e blasfêmia; que há
pactos explícitos e tácitos; e que todos afastam o homem da amizade divina.
Mas também se conclui que nenhum pacto é
indissolúvel, e que o sangue de Cristo rompe todas as alianças infernais.
Assim diz o profeta Isaías (28, 18):
“Et delebitur pactum vestrum cum morte.” — “E será
desfeito o vosso pacto com a morte.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 229C)
CAPUT XXXII
— De sigillis, characteribus et inscriptionibus daemonum.
Sobre os selos, caracteres e inscrições dos
demônios.
(col. 230A–237B)
Como consequência natural dos pactos diabólicos,
convém agora tratar dos selos e caracteres com que o demônio assinala
seus servos, bem como das inscrições e figuras por meio das quais se manifesta
e comunica.
Pois, assim como Deus imprime o sinal da cruz nos fiéis pelo batismo, o inimigo
marca os seus com sinais de servidão e blasfêmia.
Esses caracteres têm dupla finalidade: provar a
posse e garantir a obediência.
A posse se manifesta pelo sinal gravado; a obediência, pelo uso dos símbolos.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 11)
declara:
“O diabo, por inveja do sacramento divino,
instituiu seus próprios sinais, que não purificam, mas corrompem.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
96, art. 4) explica:
“Os caracteres mágicos são pactos figurados, porque
representam exteriormente a sujeição do espírito humano ao espírito maligno.”
De natura et specie sigillorum.
(col. 231A–232A)
Os selos infernais são de duas espécies: corporais
e figurativos.
- Corporais são as marcas impressas no corpo do
feiticeiro, visíveis ou invisíveis, geralmente em partes secretas.
Não sangram, não doem e não desaparecem.
O demônio as imprime por toque, ferro, garra ou sopro, deixando figura circular, triangular ou irregular.
Servem de sinal de propriedade.
Em Lyon,
1602, um homem foi encontrado com marca triangular sobre o ombro esquerdo; ao
ser tocada por relíquia, ardeu e ele confessou o pacto.
- Figurativos são desenhos, letras ou
sinais escritos em papel, metal, pedra ou pergaminho, contendo nomes e
caracteres de espíritos.
Tais figuras são usadas em rituais, conjurações e feitiços.
Não têm poder algum por si mesmas, mas o demônio nelas age quando o nome de Deus é omitido.
Entre esses
sinais, os mais comuns são o círculo, o pentagrama, a cruz invertida, a estrela
de seis pontas com nomes profanos e a serpente enrolada.
Santo Isidoro (Etymologiae, VIII, 9)
observa:
“Chamam-se characteres quia exprimunt notas occulti
pacti.” — “Chamam-se caracteres porque exprimem sinais de pacto oculto.”
De usu et virtute characterum.
(col. 232A–234A)
Os feiticeiros e mágicos usam tais caracteres de
três modos: para invocar, proteger ou ferir.
- Para invocar.
Desenham o selo do espírito e escrevem seu nome em círculo, acreditando assim obrigá-lo a aparecer.
O demônio, fingindo obediência, surge e engana, levando o homem à idolatria.
Santo Agostinho
condena tal prática (De Doctrina Christiana, II, 20):
“Invocar por
sinais é falar com o inimigo na língua dele.”
- Para proteger.
Alguns traçam caracteres sobre a pele ou roupas, pensando defender-se de males.
Mas toda proteção que não vem de Deus é pacto tácito.
Por isso, quem usa amuletos, talismãs ou selos de origem obscura já está contaminado pela superstição. - Para ferir.
Gravando o nome da vítima em círculo com símbolos infernais, o mago entrega o papel ao demônio, que executa a vingança.
Assim se fazem os malefícios de morte e doença.
Em Milão,
1605, acharam sob a porta de um homem enfermo uma placa de chumbo com o nome
dele cercado por letras cabalísticas.
Quando foi queimada e benzida, o doente sarou.
Logo, os caracteres não têm virtude natural, mas
são instrumentos do demônio, cuja força depende da fé do homem na mentira.
De
inscriptionibus et litteris occultis.
(col. 234A–236A)
Além dos selos, há as inscrições infernais,
compostas de letras deturpadas e nomes blasfemos.
Muitos as chamam de scriptura daemonum, e crêem que nelas residem
virtudes.
As letras são frequentemente invertidas, porque o
demônio deturpa tudo o que Deus ordenou.
Outras vezes usa nomes mistos — metade latinos, metade hebraicos —, para
confundir os incautos com aparência de mistério.
Santo Jerônimo adverte:
“O demônio fala em línguas confusas, para que o
homem adore o que não entende.”
Essas inscrições são vistas em livros de magia,
talismãs, portas e imagens, e causam perturbação onde aparecem.
Mesmo quando não são compreendidas, o simples consentimento em possuí-las é
culpa grave, porque nelas se contém invocação implícita.
Os inquisidores de Bolonha, 1601, queimaram um
pergaminho encontrado num altar profanado, onde se lia: “Hic est rex aeris.”
— “Aqui está o rei do ar.”
O odor de enxofre permaneceu por três dias.
De remediis et destructione sigillorum.
(col. 236A–237A)
Os remédios contra os selos e caracteres demoníacos
são três: bênção, destruição e confissão.
- Bênção.
O sacerdote deve aspergir com água benta o objeto suspeito, dizendo o exorcismo:
“Deus, cuius est omnis potestas, disperde opera tenebrarum.” - Destruição.
Os selos, escritos e talismãs devem ser queimados em fogo novo, com recitação do Salmo 67 — “Exsurgat Deus et dissipentur inimici eius.”
As cinzas devem ser lançadas em rio corrente. - Confissão.
Quem os usou deve declarar o modo e o fim, para obter absolvição.
Pois quem destrói o selo, mas não renuncia ao pacto, permanece servo do mesmo senhor.
Santo Bernardo ensina:
“Enquanto o homem ama o sinal do inimigo, tem o
coração marcado mais do que a carne.”
Conclusio.
(col. 237B)
Conclui-se, pois, que os selos e caracteres
demoníacos são imitações sacrílegas dos sinais divinos; que o demônio, não
podendo criar, apenas copia e corrompe; e que quem os usa ou guarda consente na
mentira infernal.
Mas a cruz de Cristo é selo mais forte que todos,
porque nela o Verbo se imprimiu no mundo visível e invisível.
Assim diz o Apocalipse (7, 3):
“Nolite nocere terrae neque mari neque arboribus,
donec signemus servos Dei nostri in frontibus eorum.” — “Não façais mal à
terra, nem ao mar, nem às árvores, até que assinalemos os servos de Deus em
suas frontes.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 237B)
CAPUT XXXIII
— De invocationibus et evocationibus daemonum.
Sobre as invocações e evocações dos demônios.
(col. 238A–245B)
Depois de haver tratado dos selos e caracteres,
convém agora considerar as invocações e evocações dos demônios —
práticas detestáveis pelas quais o homem ousa chamar e conversar com os
espíritos malignos, rompendo o véu que separa o mundo visível do invisível.
Estas são as portas mais perigosas da arte mágica,
pois nelas se consuma o pacto e se dá voz à idolatria.
Aquele que invoca o demônio, ainda que por curiosidade, já consente em sua
autoridade.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 9)
adverte:
“Invocar os espíritos é oferecer-lhes culto; e quem
pede conselho ao inimigo, já o reconhece por senhor.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
96, art. 3) confirma:
“A invocação é ato de religião pervertida, porque
atribui ao demônio o lugar de mediador entre Deus e o homem.”
De
distinctione invocationis et evocationis.
(col. 239A–240A)
Há diferença entre invocação e evocação.
- Invocação é o ato de chamar o demônio à presença,
pedindo-lhe auxílio, conselho ou revelação.
Opera-se por palavras, gestos ou escritos, e supõe desejo direto de comunicação. - Evocação é o ato de compelir o demônio ou espírito a
aparecer, por meio de fórmulas, círculos, sinais e nomes sagrados
profanados.
É arte de constrangimento, e se pretende obrigar o inferno à obediência.
A invocação pertence aos supersticiosos; a
evocação, aos necromantes.
Mas ambas são pecado mortal, porque se baseiam na mesma presunção: querer
dominar o invisível sem Deus.
Santo Isidoro de Sevilha (Etymologiae, VIII,
9) define:
“Evocare est vocare foras, quasi a tenebris ad
lucem trahere, quod est illicitum homini.” — “Evocar é chamar para fora, como
quem arrasta das trevas à luz, o que é ilícito ao homem.”
De modis invocationis.
(col. 240A–242A)
As invocações se realizam de muitos modos: verbais,
rituais e mentais.
- Verbais.
Pronunciando nomes infernais, como Lúcifer, Belzebu, Asmodeu, e recitando fórmulas em latim, grego ou hebraico corrompido.
Frequentemente, o demônio responde com vozes confusas, que parecem sair do ar ou da terra.
Aquele que o chama, julga ouvir sabedoria, mas é enganado por eco diabólico. - Rituais.
Desenhando círculos no chão, traçando figuras com sangue ou enxofre, e acendendo velas negras.
Dentro do círculo, o evocador escreve os nomes dos anjos caídos e recita palavras invertidas das Escrituras.
O demônio aparece então em forma de vento, sombra ou animal, exigindo juramento de fidelidade.
Em Bolonha,
1598, um mago chamado Pietro foi visto desenhando círculo com espada nua e
invocando “Rex Orientis”.
Após três noites, apareceu-lhe figura ardente, que prometeu ouro; Pietro morreu
louco.
- Mentais.
Quando o homem, sem voz nem rito, deseja interiormente a presença do espírito e se entrega ao pensamento da curiosidade.
Tal invocação é mais perigosa, porque não tem testemunhas e nasce da soberba do coração.
Santo Agostinho diz:
“O coração
que deseja o demônio já o invocou.”
De
effectibus et illusionibus.
(col. 242A–243B)
Os efeitos das invocações são variados, mas todos
perniciosos.
O demônio raramente aparece na forma prometida; disfarça-se em luz ou em anjo
para enganar.
Fala de modo ambíguo, responde com meias-verdades, mistura profecia com
mentira.
Assim, conduz o homem de uma dúvida à outra, até que o prende no desespero.
Em Veneza, 1603, um jovem, desejando saber o
futuro, invocou o demônio num espelho.
Apareceu-lhe rosto luminoso dizendo: “Verás o que desejas.”
Na manhã seguinte, foi encontrado cego.
Em Colônia, 1607, um estudante de astrologia evocou
espírito para ensinar-lhe segredos das estrelas.
O quarto encheu-se de luz azul; ouviu vozes que lhe diziam: “Cai, e saberás.”
Lançou-se da janela e morreu.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (João 8, 44):
“Ille homicida fuit ab initio.” — “Ele foi homicida desde o princípio.”
De signis praesentiae daemonis.
(col. 243B–244A)
Os sinais de que o demônio está presente durante
uma invocação são:
— odor de enxofre,
— ar súbito e frio,
— chama que não dá luz,
— vozes sem boca,
— sombra que se move contra a luz,
— e temor interior que gela a alma.
Quem sente tais sinais deve imediatamente fazer o
sinal da cruz e invocar o nome de Jesus, pois o demônio não suporta a memória
do Verbo Encarnado.
Santo Gregório Magno testemunha (Dialogorum
Libri, IV, 24):
“Os demônios, quando ouvem o nome de Cristo, fogem
como cera diante do fogo.”
De remediis et exorcismis.
(col. 244A–245A)
O remédio contra as invocações e evocações é:
- A confissão, que rompe o pacto;
- A oração, que fecha o ouvido ao tentador;
- O exorcismo, que purifica o lugar e o
ar.
O sacerdote deve recitar o Salmo 67 — “Exsurgat
Deus et dissipentur inimici eius” — e aspergir o círculo ou o objeto usado.
Se houver pergaminhos ou espelhos, devem ser quebrados e queimados.
O penitente deve rezar durante nove dias o Credo,
o Pater Noster e a oração de São Miguel, pedindo que Deus substitua a
curiosidade pela sabedoria.
Santo Bernardo adverte:
“Quem deseja ver os espíritos verá o inferno.”
Conclusio.
(col. 245B)
Conclui-se, pois, que as invocações e evocações dos
demônios são o grau máximo da superstição e o início da perdição; que nenhum
homem pode chamar o inimigo sem ser ouvido; e que quem busca luz fora de Deus
cai na escuridão do engano.
A verdadeira invocação é a oração, e todo nome fora
do de Cristo é ruína.
Assim diz o profeta Isaías (8, 19):
“Numquid non populus a Deo suo requiret visionem
pro vivis a mortuis?” — “Porventura não deve o povo buscar de seu Deus a visão,
e não dos mortos?”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 245B)
CAPUT XXXIV
— De apparitionibus et colloquiis daemonum cum hominibus.
Sobre as aparições e colóquios dos demônios com os
homens.
(col. 246A–253B)
Depois de falarmos das invocações e evocações, é
necessário agora tratar das aparições e colóquios pelos quais o demônio
se manifesta voluntariamente aos homens, quer para enganá-los pela aparência,
quer para arrastá-los à comunicação direta.
Pois o inimigo, que não pode suportar o silêncio de Deus, busca sempre falar e
ser ouvido.
Estas aparições são perigosíssimas, porque misturam
verdade e mentira, luz e sombra.
Muitos santos foram visitados por anjos, mas também muitos pecadores foram
enganados por falsos anjos.
Santo Paulo adverte (II Coríntios 11, 14):
“Ipse Satanas transfigurat se in angelum lucis.” —
“O próprio Satanás se transforma em anjo de luz.”
Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) acrescenta:
“Os demônios podem assumir forma sensível e falar
aos homens, mas sempre com engano, porque sua palavra não é luz, e sim sombra
que imita a verdade.”
De causis
et modis apparitionum.
(col. 247A–249A)
As causas dessas aparições são de três ordens: ilusão,
tentação e permissão.
- Por ilusão, quando o demônio forma
imagens no ar e as projeta diante dos olhos dos homens, parecendo corpo
verdadeiro.
O ar, movido e condensado, torna-se como espelho de sombras; nelas, o inimigo faz aparecer o que quer.
Assim se explicam muitas visões de figuras humanas, luzes noturnas e vultos que falam. - Por tentação, quando o demônio fala à
imaginação, sem voz externa, apresentando-se em forma bela ou venerável
para obter fé e culto.
Ele mistura palavras de piedade com doutrinas falsas, dizendo: “Sou anjo de Deus” ou “Sou alma do purgatório.”
Assim engana os crédulos e os conduz à superstição. - Por permissão divina,
quando Deus permite que o inimigo apareça para provar o justo ou castigar
o ímpio.
Assim aconteceu com Jó, a quem Satanás falou no meio da tempestade; e com Cristo, que foi tentado em deserto e monte.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
24) escreve:
“As aparições dos demônios são permitidas para que
os fiéis aprendam a discernir o falso do verdadeiro, e os soberbos, a temer.”
De modis colloquiorum.
(col. 249A–251A)
O demônio fala de três modos: por voz sensível,
por imaginação e por interior sugestão.
- Por voz sensível.
Ele forma som real, movendo o ar como faz o homem, mas sem pulmões nem língua.
Sua voz é áspera, rápida e muda de tom.
Às vezes fala claramente, outras por meio de eco ou zumbido.
Muitos o ouviram responder dentro de muros, em cavernas ou em imagens. - Por imaginação.
O demônio imprime palavras diretamente na fantasia, de modo que o homem as ouve interiormente, como se fossem próprias.
Esse modo é mais perigoso, porque a alma julga que fala consigo mesma.
Assim, ele inspira falsas revelações, interpretações e impulsos súbitos de orgulho ou desespero. - Por interior sugestão.
Ele não fala por palavras, mas por influxo do pensamento.
Move a vontade com afeto disfarçado, sugerindo: “Faz isto; evita aquilo.”
Assim conduz o homem a acreditar que a ideia é sua.
Santo Agostinho (De Genesi ad Litteram, XII,
17) diz:
“O diabo não fala por boca, mas por pensamento; e o
pior engano é aquele que parece nascer de dentro.”
De exemplis certis.
(col. 251A–252A)
Em Bolonha, 1598, uma mulher afirmou que o demônio
lhe aparecia em figura de monge e falava sobre penitência e humildade,
mandando-a jejuar até a morte.
Ao obedecer, caiu enferma e quase morreu.
O exorcista reconheceu a fraude, porque o espírito recusava pronunciar o nome
de Jesus.
Em Milão, 1603, um homem ouviu voz dizendo:
“Segue-me e verás o paraíso.”
Foi levado ao campo e achado morto.
No chão, havia sinais circulares e odor de enxofre.
Em Roma, 1605, um jovem estudioso, desejando
sabedoria, viu à noite figura luminosa que lhe ofereceu livro.
O livro, aberto, mostrou caracteres indecifráveis e queimou-lhe as mãos.
Esses exemplos provam que o demônio mistura
aparência de bem com essência de mal, prometendo luz e dando fogo.
De signis discernendi apparitionem bonam a mala.
(col. 252A–253A)
Os sinais para discernir se a aparição é de Deus ou
do inimigo são estes:
- A aparição divina traz paz, humildade e temor santo; a diabólica
traz perturbação, vaidade e curiosidade.
- A divina conduz à oração e à caridade; a diabólica
conduz à soberba e à desobediência.
- A divina desaparece suavemente; a diabólica some com
ruído, sombra e odor.
- A divina fala pouco e em verdade; a diabólica fala
muito e com artifício.
Quem experimenta aparição deve imediatamente
recorrer à oração, ao sinal da cruz e ao conselho espiritual.
O demônio teme a obediência, mas domina a solidão orgulhosa.
Santo Bernardo diz:
“O anjo do Senhor fala na calma; o inimigo, no
tumulto.”
De remediis et precationibus.
(col. 253A–253B)
O remédio contra as aparições é:
— o uso do nome de Jesus e de Maria,
— o sinal da cruz,
— a recitação do Salmo 90 e da antífona Sancte Michael Archangele, defende
nos in praelio.
As casas onde se repetem visões devem ser benzidas,
e seus habitantes confessar-se e comungar.
A luz da Eucaristia dissolve as trevas do ar e faz cessar toda presença
infernal.
Conclusio.
(col. 253B)
Conclui-se, pois, que as aparições e colóquios dos
demônios com os homens são permitidos por Deus para prova e discernimento; que
o inimigo fala ora pelos sentidos, ora pela imaginação, mas sempre com engano;
e que a verdadeira voz do céu é a do silêncio interior iluminado pela fé.
Assim diz o Livro dos Reis (III, 19, 12):
“Et post ignem sibilus aurae tenuis.” — “E após o
fogo, o sussurro de uma brisa suave.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 253B)
CAPUT XXXV —
De obsessionibus hominum a daemonibus.
Sobre as obsessões dos homens pelos demônios.
(col. 254A–261B)
Depois de expormos as aparições e colóquios do
inimigo, convém agora tratar das obsessões, pelas quais os demônios não
apenas falam ou aparecem, mas cercam, oprimem e perturbam o homem exterior e
interiormente.
Essas obsessões são menos graves que as possessões, mas mais constantes, pois
atacam sem cessar, de fora e de dentro, o corpo e a alma.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, IX, 21)
ensina:
“Os demônios, sendo espíritos aéreos, podem tocar e
mover os corpos, e por vezes afligir os homens não apenas por dentro, mas do
lado de fora, como vento que fere sem ser visto.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) acrescenta:
“Os anjos maus exercem poder sobre as coisas
corpóreas e sobre a imaginação humana, não para destruir a liberdade, mas para
provar a paciência.”
De distinctione obsessionis et possessionis.
(col. 255A–256A)
A obsessão difere da possessão.
- Possessão é quando o demônio habita o corpo do homem,
movendo-lhe os membros e falando por sua boca.
É dominação interior, como casa tomada. - Obsessão é quando o demônio cerca o homem, atacando-o
por sentidos, afetos e pensamentos, sem penetrar-lhe a substância.
É cerco espiritual.
O possesso está invadido; o obsesso, assediado.
Ambos padecem, mas de modo diverso: um, pela invasão; outro, pela perseguição.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
26) escreve:
“Há alguns que não são tomados por dentro, mas
batidos de fora, e sofrem sem ser culpados, para que o justo seja purificado
pelo inimigo, como o ouro pelo fogo.”
De causis et generibus obsessionum.
(col. 256A–258A)
As causas das obsessões são três: culpa,
tentação e permissão.
- Por culpa.
Quando o homem, por pecado ou pacto, dá ao inimigo direito sobre si.
Então o demônio o segue como sombra, fala-lhe ao ouvido, move-lhe os afetos e o faz cair em melancolia, ira ou desespero. - Por tentação.
Quando o homem é justo, e o inimigo procura enfraquecê-lo pela fadiga.
Deus o permite para exercitar a virtude.
Assim foi tentado Santo Antão no deserto, que lutou contra legiões invisíveis. - Por permissão divina.
Quando o Senhor quer manifestar sua glória por meio do sofrimento dos santos.
Assim, muitos foram perseguidos por visões, ruídos e dores sem causa natural, e alcançaram maior pureza.
Santo Agostinho diz:
“O demônio é servo, não senhor; e o açoite que ele
usa é nas mãos de Deus.”
As obsessões se dividem em quatro gêneros: corporais,
imaginárias, auditivas e espirituais.
De obsessione corporali.
(col. 258A–259A)
A obsessão corporal é quando o demônio age sobre o
corpo, produzindo golpes, dores, peso ou imobilidade.
Alguns sentem pressão sobre o peito durante o sono; outros, feridas que não
sangram; outros, ruídos ao redor que cessam ao pronunciar o nome de Cristo.
Em Gênova, 1602, uma mulher virtuosa sentia-se
todas as noites oprimida por peso invisível.
O padre exorcista ordenou que rezasse o Salmo 90 e dormisse com cruz de
madeira.
A opressão cessou.
Santo Isidoro de Sevilha nota:
“O demônio oprime o corpo para atingir a alma, mas
não pode ferir senão até onde é permitido.”
De obsessione imaginaria et auditiva.
(col. 259A–260A)
A obsessão imaginária é quando o demônio, sem tocar
o corpo, infunde imagens horríveis na fantasia: vultos, chamas, serpentes,
cemitérios, figuras que falam.
A alma, vendo essas formas interiores, teme o que não existe e se enfraquece.
Essa é a tortura dos melancólicos, dos quais o inimigo se aproveita para
multiplicar sombras.
A obsessão auditiva é quando o homem ouve ruídos,
passos, vozes ou chamadas sem origem.
O demônio, condensando o ar, produz som enganoso, especialmente em lugares
solitários.
Santo Agostinho diz:
“Assim como o músico move o ar com harmonia, o
espírito maligno o move com dissonância.”
O remédio é não escutar, mas rezar, pois o ouvido é
porta do engano.
De obsessione spirituali.
(col. 260A–261A)
A mais grave é a obsessão espiritual, pela qual o
demônio atormenta a alma com escrúpulo, tristeza e desesperança.
Sussurra: “És condenado; Deus te abandonou; tua oração é vã.”
Assim, corta a raiz da fé.
Santo Bernardo explica:
“A tentação mais cruel é a do desespero, porque
fere onde só Deus pode curar.”
Muitos santos experimentaram tais tormentos, e
deles nasceram lágrimas purificadoras.
Pois Deus permite que o inferno cerque o justo, para que este aprenda que a
graça é mais forte que o medo.
O demônio tenta imitar o Espírito Santo: onde o
Paráclito consola, ele acusa; onde o Paráclito ilumina, ele obscurece.
De remediis contra obsessiones.
(col. 261A–261B)
Os remédios são:
— confissão frequente e comunhão;
— oração constante, especialmente o Credo e o Sancte Michael
Archangele;
— jejum e esmola;
— uso de sacramentais: cruz, água benta, sal exorcizado, óleo santo.
O exorcista deve impor as mãos e recitar o Exorcismus
in obsessos:
“Adjuro te, spiritus immunde, ut recedas ab hoc famulo
Dei.”
Mas sobretudo, a alma deve entregar-se à obediência
e à humildade, pois o demônio não pode dominar aquele que se submete à vontade
de Deus.
Conclusio.
(col. 261B)
Conclui-se, pois, que a obsessão é guerra invisível
em torno do homem; que o inimigo cerca o corpo e a alma com armadilhas sutis; e
que só a fé, a paciência e a oração contínua desatam o cerco.
Quem persevera, ainda cercado, já venceu.
Assim diz o Salmo 26, 3:
“Si consistant adversum me castra, non timebit cor
meum.” — “Ainda que um exército se acampe contra mim, meu coração não temerá.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 261B)
CAPUT XXXVI
— De possessionibus corporum humanorum a daemonibus.
Sobre as possessões dos corpos humanos pelos
demônios.
(col. 262A–271C)
Tendo já tratado das obsessões externas, resta
agora falar das possessões, nas quais o demônio, com permissão divina,
entra verdadeiramente no corpo do homem e nele habita, movendo-lhe os membros,
perturbando-lhe a voz e subjugando-lhe os sentidos.
É este o mais terrível dos flagelos espirituais, pois o corpo do homem se torna
instrumento de outro espírito, e a imagem de Deus é ultrajada pela presença do
inimigo.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 22)
ensina:
“Não é a alma que se torna demônio, mas o corpo que
é usado por ele, como o músico usa o órgão.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4, ad 3) acrescenta:
“O demônio, por permissão de Deus, pode mover os
corpos e ocupar seus membros, mas não pode penetrar na substância da alma
racional.”
Logo, o possesso não perde a razão, mas é impedido
de usá-la livremente.
De causis et modis possessionis.
(col. 263A–265A)
As causas da possessão são tríplices: pecado,
pacto e provação.
- Por pecado.
Quando o homem, por blasfêmia, idolatria ou luxúria, abre voluntariamente a porta da alma ao inimigo.
Assim, o corpo fica vulnerável e o demônio entra como ladrão por janela aberta.
Tal possessão é castigo merecido. - Por pacto.
Quando o homem promete obediência ao demônio e este, para confirmar o domínio, entra-lhe no corpo como sinal de propriedade.
Nesse caso, o possesso não apenas sofre, mas coopera com o invasor. - Por provação.
Quando o justo é possuído para manifestar o poder de Deus.
Assim aconteceu com os endemoninhados de Gerasa, libertos por Cristo, e com muitos santos que sofreram tormentos corporais sem culpa.
Santo Gregório Magno comenta (Dialogorum Libri,
IV, 30):
“Às vezes, o demônio é enviado não para punir, mas
para ser vencido; e a vitória de um justo vale mais que mil milagres.”
Os modos de possessão são dois: total e parcial.
Total, quando o demônio ocupa todo o corpo e fala pela boca do possesso;
parcial, quando habita um membro ou sentido, como a língua, os olhos ou o
ventre.
De signis possessionis.
(col. 265A–267A)
Os sinais certos de possessão são estes:
- Aversione a rebus sacris — aversão às coisas santas: cruz,
relíquias, água benta, Eucaristia.
- Scientia occulta — conhecimento de línguas ou fatos ocultos.
- Virtus immoderata — força desproporcional à natureza.
- Motus involuntarius — movimentos bruscos e desordenados.
- Voces alienae — vozes múltiplas e estranhas.
- Odor sulphuris — cheiro de enxofre e fumaça.
- Contorsio corporis — deformação momentânea dos membros.
Santo Agostinho nota:
“O diabo, sendo espírito, pode mover o corpo como
vento a árvore: sem quebrá-la, mas fazendo-a tremer.”
Porém, deve-se distinguir a possessão da
enfermidade.
Muitos lunáticos e melancólicos são tidos por possessos, mas padecem de causas
naturais.
O discernimento cabe ao sacerdote e ao médico juntos, para não atribuir ao
inferno o que vem da carne.
De locis corporis possidendi.
(col. 267A–268B)
O demônio não entra em qualquer parte do corpo, mas
prefere aquelas onde o homem mais peca:
— nos olhos, pela curiosidade;
— na língua, pela blasfêmia;
— no ventre, pela gula;
— e nos membros impuros, pela luxúria.
Por isso, as possessões variam conforme o vício
predominante.
Os que pecam pela palavra são mudos ou falam blasfêmias; os que pecam pela
vista veem figuras horrendas; os que pecam pela carne sofrem dores e febres
ardentes.
Em Florença, 1601, uma mulher foi possuída no
ventre e gritava com voz masculina.
Quando o exorcista lhe impôs a cruz, o demônio disse: “Non hic voluntas mea,
sed poena mea.” — “Aqui não está minha vontade, mas meu castigo.”
De modo loquendi daemonum per possessos.
(col. 268B–269A)
Os demônios, falando pelos possessos, não movem a
língua como os homens, mas excitam o ar e os nervos, produzindo som articulado.
Assim, uma só boca fala com muitas vozes, e um corpo exprime várias pessoas.
Quando são interrogados, respondem com astúcia,
fingindo humildade ou raiva, conforme o intento de enganar.
Muitos dizem ser legião, outros fingem ser alma de morto, para provocar
piedade.
O exorcista deve distinguir entre mentira e
confissão: o demônio fala verdade apenas quando forçado pelo nome de Cristo.
Santo Gregório Magno escreve:
“O inimigo, ainda que mentiroso, é compelido à
verdade quando a voz divina o oprime.”
De remediis et exorcismis contra possessionem.
(col. 269A–271A)
O remédio da possessão é o exorcismo,
praticado com fé, jejum e oração.
O sacerdote deve purificar-se antes, confessar-se e abster-se de carne por três
dias.
Durante o rito, usa-se estola roxa, cruz, água benta, relíquias e o Evangelho
de São João.
O possesso deve estar presente e não ser amarrado,
a menos que se torne violento.
O exorcista deve ordenar com autoridade, não com gritos:
“Adjuro te, immunde spiritus, per Deum vivum, per
Filium eius Jesum Christum, ut exeas et amplius non redeas.”
Se o demônio resistir, deve-se repetir o exorcismo
por nove dias consecutivos, alternando oração e jejum.
Em certos casos, o uso do Santíssimo Sacramento basta para libertar o possesso,
porque a presença real de Cristo dissolve toda sombra.
Santo Bernardo diz:
“O corpo que recebe a Eucaristia não pode ser
habitação do inimigo.”
Quando o demônio sai, o possesso sente grande peso
desprender-se e, muitas vezes, vomita substâncias imundas, sinal de libertação.
De cautelis exorcistae.
(col. 271A–271B)
O exorcista deve evitar curiosidade, não perguntar
nomes nem hierarquias dos demônios, nem dialogar além do necessário.
O inimigo fala para confundir; toda palavra além da ordem é armadilha.
Deve também guardar silêncio após o rito, pois o
orgulho do libertador abre porta ao retorno do mal.
Muitos exorcistas, exaltando-se, caíram depois em tentação.
Santo Agostinho adverte:
“Quem vence o demônio com soberba o chama de volta
com a mesma voz.”
Conclusio.
(col. 271C)
Conclui-se, pois, que a possessão é a mais terrível
das provas permitidas por Deus; que o demônio entra no corpo, mas não na alma;
que a libertação se dá pela cruz, pela Eucaristia e pela palavra de Cristo.
A vitória sobre o possesso é sinal da vitória do
Verbo sobre o inferno, e cada exorcismo é repetição do Calvário.
Assim diz o Evangelho de Marcos (16, 17):
“In nomine meo daemonia eicient.” — “Em meu nome
expulsarão os demônios.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 271C)
CAPUT XXXVII
— De iudiciis, tormentis et exorcismis circa energumenos.
Sobre os julgamentos, tormentos e exorcismos
aplicados aos possuídos.
(col. 272A–281B)
Tendo tratado das causas e sinais das possessões, é
agora necessário discorrer sobre os julgamentos, tormentos e exorcismos
praticados pela Igreja e pelos ministros autorizados, para discernir a verdade
das possessões e libertar os que delas padecem.
Pois, assim como o médico deve diagnosticar antes de curar, o exorcista deve
examinar antes de condenar ou agir, para não confundir o delírio da carne com a
astúcia do inimigo.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 22)
adverte:
“Nem todo frenesi vem do demônio, nem todo silêncio
vem de Deus.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
90, art. 2) acrescenta:
“O sacerdote deve proceder com prudência e
caridade, não julgando por aparência, mas pela luz do discernimento
espiritual.”
De iudicio et examinatione energumeni.
(col. 273A–275A)
Antes de iniciar o exorcismo, deve-se proceder a
exame cuidadoso do possesso, observando suas palavras, gestos, e reação diante
das coisas santas.
Três sinais principais distinguem o verdadeiro possesso do falso:
- Aversione a sacris —
aversão às coisas santas, sem causa natural.
- Revelatio occultorum —
revelação de segredos ou línguas desconhecidas.
- Virtus praeternaturalis —
força além das forças humanas.
O inquisidor ou sacerdote deve também verificar se
há simulação, pois muitos fingem estar possuídos para escapar da punição
ou obter piedade.
O falso possesso não teme a cruz, mas finge temor; não suporta orações longas,
mas se distrai; não fala por outra voz, mas por disfarce.
O verdadeiro possesso manifesta resistência
contínua e sinais que não cessam pela vontade.
Por isso, o exame deve durar vários dias, alternando oração e observação.
Santo Gregório Magno (Dialogorum Libri, IV,
29) ensina:
“O discernimento é o primeiro exorcismo.”
De tormentis, seu probationibus.
(col. 275A–277A)
Os tormentos aqui não significam castigo
cruel, mas provas pelas quais se manifesta a presença do espírito maligno.
A Igreja, prudente, nunca permite que se inflija dor inútil; mas consente em
certas provações físicas e espirituais quando há dúvida de possessão.
Essas provas são:
- Impositio crucis.
Se o possesso, tocado com a cruz, se contorce, geme ou blasfema, é sinal de presença demoníaca. - Aspersio aquae benedictae.
A água benta causa tormento no demônio, e o possesso sente ardor ou náusea. - Lectiones Evangelii.
A leitura do Evangelho de São João (cap. 1) provoca agitação e resistência, porque a luz do Verbo fere as trevas. - Contactus reliquiarum.
As relíquias dos santos, aplicadas sobre o peito ou a fronte, revelam o inimigo oculto. - Adoratio Sanctissimi Sacramenti.
Este é o teste supremo: o verdadeiro possesso não pode olhar a Eucaristia sem horror.
Tais tormentos não são castigos, mas juízos da
verdade.
O inquisidor deve conduzi-los com serenidade e sem violência.
Santo Agostinho diz:
“O demônio foge não ao açoite do homem, mas ao
sopro de Cristo.”
De ordine exorcismi.
(col. 277A–279A)
O rito do exorcismo é sacramental instituído
pela Igreja, e deve seguir ordem precisa:
- Preparatio.
O sacerdote deve confessar-se, jejuar e rezar por três dias.
Deve escolher lugar puro e iluminado, afastando curiosos e mulheres.
O possesso deve também confessar-se e receber bênção. - Inchoatio.
O exorcista começa com o sinal da cruz e as palavras:
“In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen.”
Em seguida recita o Salmo 67 — “Exsurgat Deus et dissipentur inimici eius.” - Coniuratio.
O sacerdote invoca o nome de Deus e ordena:
“Adjuro te, immunde spiritus, per Deum vivum, ut exeas ab hoc famulo Dei.”
Durante essa parte, o possesso pode gritar, blasfemar, ou fingir dormir.
O exorcista deve manter firmeza, sem cólera nem temor. - Interrogatio.
Pergunta-se ao demônio seu nome, tempo de entrada e causa.
Mas só quando o Espírito Santo o inspira, pois o inimigo usa a língua para confundir. - Expulsio.
Quando o demônio manifesta fraqueza, o exorcista deve intensificar a oração e aspergir água benta, repetindo:
“Vade retro, Satana.”
Quando o possesso é libertado, deve-se dar graças
com o Te Deum laudamus.
De periculis et cautelis exorcistae.
(col. 279A–280B)
Grandes são os perigos do exorcista: orgulho,
vaidade, curiosidade e ira.
O demônio tenta o libertador mais que o possesso, porque o teme.
Se o exorcista confia em si e não em Deus, perde o poder que lhe foi dado.
Nunca deve usar palavras próprias, nem fórmulas
mágicas, mas apenas as da Igreja.
Não deve rir, nem discutir com o demônio, nem responder às suas provocações.
Deve recordar que a vitória é de Cristo, não sua.
Santo Bernardo adverte:
“Quem fala ao demônio fora da obediência fala
consigo mesmo.”
O exorcista deve também evitar tocar o possesso sem
necessidade, e jamais permitir que curiosos assistam, pois a visão dos
tormentos inflama a imaginação e multiplica ilusões.
De signis liberationis.
(col. 280B–281A)
Os sinais de que o possesso foi liberto são:
— cessação das convulsões e das blasfêmias;
— retorno da voz e do olhar sereno;
— recitação espontânea do nome de Jesus e de Maria;
— aversão ao mal e desejo de confissão.
Às vezes, o demônio finge sair e retorna; por isso,
a vigilância deve durar quarenta dias, com orações diárias.
O libertado deve comungar e viver casto, pois o demônio expulso busca sete
espíritos piores.
Conclusio.
(col. 281B)
Conclui-se, pois, que o julgamento, o tormento e o
exorcismo são graus de um mesmo ministério: o discernimento da verdade e a
libertação da alma.
Que o sacerdote aja como médico e soldado — com prudência e coragem.
E que cada possessão vencida seja recordação do poder de Cristo que triunfa na
fraqueza dos homens.
Assim diz o Evangelho de Lucas (10, 19):
“Ecce dedi vobis potestatem calcandi super
serpentes et scorpiones.” — “Eis que vos dei poder para pisar serpentes e
escorpiões.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 281B)
CAPUT XXXVIII — De
liberatione energumenorum per sacramenta et sacramentalia.
Sobre a libertação dos
possessos pelos sacramentos e sacramentais.
(col. 282A–290B)
Tendo tratado dos exorcismos e
das formas ordinárias de combate ao demônio, é necessário agora explicar de que
modo os sacramentos e
sacramentais da Igreja produzem verdadeira libertação, não só
do corpo possesso, mas da alma cativa.
Pois a virtude dos sacramentos procede do Cristo mesmo, e tudo o que é
instituído pela Igreja tem força sobre o inimigo, que não pode resistir ao
sinal da graça.
Santo Agostinho (Contra Faustum, XIX, 11)
ensina:
“Os sacramentos são armas
divinas; aquilo que é figura visível é graça invisível; e o demônio, não
suportando o sinal de Deus, foge de quem o recebe.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, III, q.
65, art. 1) declara:
“Os sacramentos produzem o que
significam; por isso, onde está o batismo, ali é quebrada a servidão do pecado
e do demônio.”
De sacramento Baptismi.
(col. 283A–285A)
O Batismo é o primeiro e
mais poderoso remédio contra a possessão, porque nele o homem é libertado da
potestade das trevas e transferido para o reino da luz.
O demônio, que antes tinha direito sobre o homem pelo pecado original, perde
todo domínio quando o batizado é lavado pela água e pela palavra.
Por isso, no rito do batismo, a
Igreja inclui exorcismos, renúncia e unção com o óleo dos catecúmenos, para que
o corpo seja santificado e fechado ao inimigo.
Santo Ambrósio escreve (De Mysteriis, cap. 3):
“Quando o exorcista sopra sobre
o catecúmeno, o espírito maligno é lançado fora, porque não suporta o sopro de
quem traz o Espírito Santo.”
Muitos casos atestam que os
possuídos, ao receberem o batismo em idade adulta, foram libertos no mesmo
instante.
Em Roma, 1597, um homem possesso por mais de cinco anos foi curado ao ser
batizado na vigília da Páscoa; quando a água tocou sua fronte, gritou: “Combustor sum!” — “Estou
queimado!” — e caiu em paz.
De sacramento
Poenitentiae.
(col. 285A–286B)
O Sacramento da Penitência
é segunda libertação, porque dissolve o pacto e apaga o pecado que serve de
laço ao demônio.
Enquanto o homem não confessa, permanece ligado ao acusador; mas quando
confessa, o acusador é vencido pela própria verdade.
Santo Agostinho afirma (Sermones, 12):
“O que o demônio prende pela
mentira, Deus desfaz pela confissão.”
Nos possessos, a confissão é
muitas vezes prelúdio da libertação.
Ao nomear os pecados, o possesso sente o inimigo estremecer e fugir, porque o
inferno teme a humildade.
O confessor deve ouvir com
prudência, distinguindo a voz do penitente da voz do espírito, e absolver com a
fórmula comum, pois a graça não depende da integridade física da palavra, mas
da intenção do sacramento.
De sacramento
Eucharistiae.
(col. 286B–288A)
A Eucaristia é o
sacramento que contém o próprio Autor da graça, e por isso é o terror dos
demônios.
Cristo presente em corpo, sangue, alma e divindade é fogo que consome toda
sombra.
Nenhum espírito maligno pode permanecer onde se guarda o Santíssimo Sacramento.
Muitos possessos foram libertos
ao comungar; outros, apenas à aproximação do altar.
Santo Tomás (Summa Theologiae,
III, q. 80, art. 2) declara:
“A presença real de Cristo
destrói toda união ilícita do demônio com o corpo humano.”
Em Milão, 1604, uma jovem
endemoninhada foi conduzida à missa.
Ao elevar-se a hóstia, começou a gritar e a contorcer-se, dizendo: “Illum non possum videre!” —
“Não posso vê-Lo!” — e, após a comunhão, caiu em silêncio e foi curada.
A comunhão deve, porém, ser
precedida de confissão, para que a alma esteja pura e a graça atue sem
impedimento.
De aliis sacramentis.
(col. 288A–289A)
Também os outros sacramentos possuem
virtude contra o demônio, segundo sua matéria e fim.
— A Confirmação, porque
imprime o selo do Espírito e torna o cristão soldado de Cristo, diante do qual
o inimigo foge.
— O Matrimônio,
porque santifica a união carnal e fecha a via da luxúria por onde o demônio
entra.
— A Extrema-Unção,
porque purifica os sentidos, apagando o último vestígio do domínio infernal.
— A Ordem,
porque confere poder de exorcizar e consagrar; e o demônio teme mais a mão do
sacerdote que o ferro do guerreiro.
Santo Gregório Magno observa:
“O óleo consagrado é veneno
para os demônios, porque lembra-lhes a unção do Cristo que os venceu.”
De sacramentalibus.
(col. 289A–290A)
Os sacramentais são sinais
instituídos pela Igreja para dispor o homem à graça e afastar as influências do
mal.
Têm poder não por si, mas pela fé e pela bênção da Igreja.
Entre os principais estão:
— a água benta,
— o sal exorcizado,
— o óleo dos catecúmenos,
— a cinza e o incenso,
— as bênçãos e cruzes,
— as orações e sinais feitos em nome da Trindade.
Quando usados com devoção,
esses sinais produzem efeitos reais de libertação.
Em Cremona, 1600, aspergindo-se uma casa onde se ouviam vozes noturnas,
cessaram as perturbações e um perfume suave substituiu o odor de enxofre.
Santo Agostinho declara (Tractatus in Ioannem, VI):
“O sinal do cristão é a cruz; e
onde a cruz se ergue, o demônio se abate.”
Conclusio.
(col. 290B)
Conclui-se, pois, que os
sacramentos e sacramentais são as verdadeiras armas da Igreja contra o poder
das trevas; que o demônio, sendo criatura, nada pode contra a graça instituída
por Deus; e que cada rito sagrado é uma vitória renovada da encarnação sobre a
serpente.
A libertação dos possessos não
é obra de palavras, mas de fé; não do homem, mas de Cristo que age nos sinais
visíveis.
Assim diz o Evangelho de João
(1, 5):
“Et lux in tenebris lucet, et
tenebrae eam non comprehenderunt.” — “E a luz brilha nas trevas, e as trevas
não a compreenderam.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 290B)
CAPUT XXXIX — De
obsessionibus locorum, domorum et regionum.
Sobre as obsessões de
lugares, casas e regiões.
(col. 290C–298B)
Muitos são os modos pelos quais
o inimigo do gênero humano atormenta os homens não apenas nos corpos e nas
almas, mas também nos lugares em que vivem, nas casas, campos e cidades. Pois
assim como Deus abençoa lugares santos e consagra templos para habitar neles o
seu nome, assim o diabo, por imitação sacrílega, se esforça por ocupar certos
lugares e infundi-los com sua presença infernal, tornando-os sede de medo,
ruído, pestilência e perturbação.
E estas obsessões dos lugares
são chamadas por alguns de infestationes
locales, e são mais antigas do que o próprio paganismo, como se vê
nas histórias dos antigos. Pois mesmo antes de Cristo, os demônios eram
adorados em colinas, bosques, cavernas e fontes, e cada povo tinha o seu numen loci, espírito do
lugar, o qual não era senão o demônio disfarçado de protetor.
I. De causis
obsessionum locorum.
(col. 291A–293A)
As causas destas obsessões são
diversas. Às vezes o diabo toma posse de um lugar por causa de algum pecado ali
cometido — como homicídio, sacrilégio ou pacto diabólico — e permanece ali como
se guardasse o domínio do mal. Outras vezes é por permissão divina, para
castigo ou prova dos habitantes.
Assim lemos no Evangelho que os
demônios rogaram a Cristo para serem lançados nos porcos (Mt 8,31), e o Senhor
o permitiu. Daí entende-se que podem ser confinados a certos lugares, segundo a
permissão de Deus, e neles causar aparições, ruídos e terrores.
Há também obsessões de casas
onde se praticaram feitiçarias, se invocaram espíritos ou se cometeram
impiedades graves. Aí o ar é como que impregnado de um vapor maligno que
alimenta as ilusões do inimigo. Santo Gregório, nos Dialogi (liv. 4, cap. 23), narra que, numa casa
de Roma onde se havia cometido homicídio, durante as noites ouviam-se passos,
vozes e gritos, e que, após ser aspergida com água benta e celebrada missa,
cessaram todos os prodígios.
Do mesmo modo, São Martinho de
Tours, ao passar por um campo devastado, percebeu um espectro que vagava entre
as ruínas. Ordenou-lhe, em nome de Cristo, que revelasse a causa de seu
tormento; e o espírito confessou ser alma de um antigo sacrílego que guardava o
ouro roubado do templo.
II. De signis et
effectibus obsessionum.
(col. 293A–295A)
Os sinais da obsessão local são
claros. O ar se torna pesado e fétido; ouvem-se sons noturnos, como correntes,
vozes, choros, ou o mugido de animais invisíveis; objetos se movem sozinhos; os
moradores sentem angústia e enfermidades sem causa.
Por vezes, aparecem sombras ou
figuras que se desvanecem quando se invoca o nome de Jesus. Outras vezes, luzes
errantes se movem, sobretudo nas encruzilhadas e cemitérios.
Em 1589, na região de Pavia,
uma casa recém-construída foi infestada de tal modo que nenhum habitante podia
dormir. De noite, viam-se tochas acesas que desciam as escadas, portas que se
abriam sozinhas, e vozes que chamavam os nomes dos moradores. O bispo ordenou
bênçãos solenes e uma procissão com a relíquia da Santa Cruz. Desde então
cessaram os fenômenos.
Outro caso é relatado por João
Nider (Formicarius,
lib. 5, cap. 3): um mosteiro na Baviera fora assaltado por ruídos e
apedrejamentos invisíveis. O abade, suspeitando de malefício, fez rezar sete
missas seguidas e aspergiu todos os muros com água exorcizada. Na sétima noite,
apareceu um vulto escuro que fugiu gritando: “Non
possum manere ubi sonat Evangelium!” — “Não posso permanecer onde
ressoa o Evangelho!”
III. De remedio contra
has infestationes.
(col. 295A–297B)
O remédio contra as obsessões
de lugares é triplo: pela penitência, pela bênção e pela invocação.
Primeiro, pela penitência:
porque a presença do mal é sustentada pelos pecados não expiados. Assim, onde
há culpa, ali se fixa o tentador. Deve-se, portanto, confessar-se, jejuar e
rezar pelos defuntos, se se presume que algum espírito penado é causa da
perturbação.
Segundo, pela bênção: pois a
Igreja possui autoridade para santificar os lugares e afastar deles a
influência infernal. Para isso, deve-se aspergir a casa com água benta, colocar
cruzes nas portas e janelas, acender círios benzidos e, se for grave a
infestação, celebrar a Santa Missa.
Terceiro, pela invocação:
especialmente do Nome de Jesus, da Bem-Aventurada Virgem e dos santos arcanjos
Miguel e Rafael. A recitação do Credo
e do Salmo 90
(“Qui habitat in adiutorio Altissimi”) tem grande eficácia.
Guazzo acrescenta que, se o mal
persistir, deve-se colocar relíquias autênticas no local, e recitar durante
sete dias o Benedictus
e o Magnificat em
ação de graças, pois os demônios não suportam louvores a Deus.
IV. De praeventione et
custodia.
(col. 297B–298B)
Para evitar novas obsessões,
recomenda-se que os cristãos não habitem lugares onde antes se praticaram ritos
profanos, nem conservem objetos suspeitos, como amuletos, ossos, talismãs ou
imagens de origem incerta.
Santo Cipriano adverte que o
diabo busca não apenas os corpos, mas também as moradas: “In domos irrepit sicut in corda hominum,
si vacuum invenerit locum” — “Penetra nas casas como nas almas, se
encontra o lugar vazio.”
Portanto, o remédio é conservar
o lar em estado de graça, com oração diária, bênção do alimento e respeito aos
domingos. Onde o nome de Deus é invocado, ali não há domínio do inimigo.
Em suma, a obsessão dos lugares
é um dos modos pelos quais o demônio busca ocupar o mundo, mas seu poder é
limitado e vencido pela cruz de Cristo. Pois, como diz o Apóstolo (Fil 2,10): “In nomine Iesu omne genu flectatur
caelestium, terrestrium et infernorum.” — “Ao nome de Jesus todo
joelho se dobre, no céu, na terra e nos infernos.”
FINIS TRACTATUS / Fim
do Tratado (col. 298B)
CAPUT XL —
De fascinationibus oculorum et aurium.
Sobre as fascinações dos olhos e dos ouvidos.
(col. 299A–307C)
Depois das obsessões dos lugares e casas, resta
examinar as fascinações, isto é, os enganos produzidos nos sentidos do
homem, pelos quais o demônio perturba a visão e a audição, ora obscurecendo-as,
ora deturpando-as, ora introduzindo nelas ilusões aparentes.
Dessas fascinações nascem as visões enganosas, as vozes falsas, os delírios dos
sentidos, e muitos dos supostos prodígios que confundem o vulgo.
Santo Agostinho (De Trinitate, XII, 12)
explica:
“O demônio não cria olhos nem ouvidos, mas abusa
deles, desviando-lhes o uso natural.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 111,
art. 3) acrescenta:
“Como anjos maus, eles podem mover os espíritos
vitais e as imagens sensíveis, de modo que o homem veja ou ouça o que não
existe.”
Assim, o diabo opera, não pela criação, mas pela
distorção.
I. De fascinatione oculorum.
(col. 300A–302A)
A fascinação dos olhos é a mais comum, porque a
visão é o sentido mais rápido e mais propenso à ilusão.
Por meio dela o inimigo engana o homem, apresentando figuras falsas, luzes,
vultos ou metamorfoses.
Há três modos principais desta fascinação: phantastica,
imaginaria e corporalis.
- Phantastica, quando o demônio age
apenas sobre a imaginação, sem alterar o ar exterior.
Assim o homem crê ver o que é apenas imagem interior.
É o caso das visões súbitas, fantasmas noturnos, e das figuras que se dissipam ao toque. - Imaginaria, quando o demônio move os
espíritos visuais e forma no ar uma aparência real, como fumaça condensada
ou luz ilusória.
Assim se produzem os enganos coletivos, em que muitos veem o mesmo vulto. - Corporalis, quando o demônio usa corpo
verdadeiro ou empresta forma a algum animal, como cão, gato, corvo ou
serpente, e se mostra visivelmente.
Tal é a fascinação mais grave, pois mistura aparência sensível com poder infernal.
Santo Isidoro (Etymologiae, VIII, 9)
escreve:
“Fascinatio est visus corruptela, cum per oculos
anima decipitur.” — “Fascinação é a corrupção da visão, quando pela vista a
alma é enganada.”
Exemplos são inúmeros.
Em 1602, em Parma, muitos afirmaram ter visto no céu uma cruz sangrenta; mas,
examinando-se o ar e a luz, descobriu-se que era vapores vermelhos refletindo o
sol, excitados pela sugestão demoníaca.
Em outras ocasiões, o demônio faz o homem ver
coisas horrendas, para infundir medo, ou belas, para excitar desejo.
Desta fascinação nasceu o erro dos magos que julgavam criar imagens por arte óptica,
quando apenas eram movidos pela ilusão infernal.
II. De fascinatione aurium.
(col. 302A–305A)
A fascinação dos ouvidos é mais sutil, pois atinge
a imaginação pelo som.
O demônio, movendo o ar, pode produzir vozes, melodias, gritos e ruídos sem instrumento.
Mas também fala interiormente, infundindo na mente palavras falsas que parecem
nascer do próprio pensamento.
Santo Agostinho (De Genesi ad Litteram, XII,
17) observa:
“Os demônios não criam palavras, mas imitam sons, e
às vezes falam dentro da alma sem mover o ar.”
Há três espécies desta fascinação auditiva:
- Exterior, quando o som é produzido realmente no ar,
como ruídos de passos, sinos ou vozes.
O ouvido percebe o som verdadeiro, mas falso em causa. - Interior, quando o demônio fala diretamente ao
pensamento, simulando voz humana ou divina.
Então o homem crê ouvir conselho de anjo ou santo, mas é enganado. - Mista, quando o som começa no ar e termina na
imaginação, confundindo o sentido.
Em Pádua, 1603, uma religiosa dizia ouvir a voz da
Virgem chamando-a.
O confessor, duvidando, ordenou-lhe que respondesse “Em nome de Jesus, se és
Mãe de Deus, dize ‘Ave’”.
A voz calou-se; e logo se ouviu grito terrível: “Non sustineo nomen eius!”
— “Não suporto esse nome!”
A irmã desmaiou e foi curada após confissão e comunhão.
III. De causis et remediis fascinationum.
(col. 305A–307A)
As causas são: curiosidade, imaginação
indisciplinada, melancolia, e sobretudo o pecado.
Quem vive em impureza é mais sujeito à fascinação, porque o olhar e o ouvido se
tornam instrumentos do demônio.
O remédio é a humildade e a fé.
Deve-se evitar toda invocação de vozes e aparições, não se deter em imagens, e
conservar a mente no silêncio da oração.
Os olhos devem ser protegidos com o sinal da cruz;
os ouvidos, purificados pela confissão e pela audição da Palavra divina.
A leitura do Evangelho segundo João (cap. 1 e 14) dissipa as ilusões visuais; o
Salmo 90 protege os ouvidos.
Santo Bernardo ensina:
“Quem vê com a fé não é fascinado; quem ouve com
obediência não é enganado.”
E Santo Ambrósio conclui:
“A verdadeira visão é a de quem fecha os olhos ao
mundo e os abre para Deus.”
Conclusio.
(col. 307C)
Conclui-se, pois, que a fascinação dos olhos e dos
ouvidos é o primeiro engano dos sentidos e o mais frequente instrumento do
inimigo; que o diabo, por permissão de Deus, age sobre a imaginação e o ar para
confundir o homem; e que somente a luz da fé e a pureza dos sentidos guardam o
coração.
Assim se cumpre o que está em Isaías 32, 3:
“Non claudentur oculi videntium, et aures
audientium diligenter auscultabunt.” — “Os olhos dos que veem não se fecharão,
e os ouvidos dos que ouvem escutarão atentamente.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 307C)
CAPUT XLI —
De maleficiis quae fiunt per imagines, figuras et characteres.
Sobre os malefícios que se fazem por imagens,
figuras e caracteres.
(col. 308A–316B)
Entre os modos de operar do demônio por meio dos
homens, nenhum é mais conhecido nem mais temido que o dos malefícios feitos
por imagens, figuras e caracteres, nos quais se unem superstição, pacto e
intenção maléfica.
Pois assim como Deus, pela encarnação, assumiu forma visível para comunicar
graça, o inimigo, em sua perversão, usa formas visíveis para transmitir veneno
espiritual.
Santo Agostinho (De Doctrina Christiana, II,
20) adverte:
“Os demônios amam os sinais e símbolos, porque por
meio deles prendem a alma que se detém na figura em vez da causa.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
96, art. 2) explica:
“Fazer imagens com intenção de causar dano é pacto
implícito com o demônio, porque nenhuma virtude natural age por semelhança
espiritual.”
I. De origine huius artis nefandae.
(col. 309A–310B)
A origem desta arte nefasta vem dos caldeus e
egípcios, que acreditavam poder transferir forças ocultas de um corpo para
outro por meio de figuras semelhantes.
Usavam cera, barro, madeira ou metal, moldando nelas o rosto ou o corpo da
pessoa visada, e com preces sacrílegas as perfuravam, queimavam ou enterravam,
crendo que o mesmo mal se transmitiria ao ausente.
Tais práticas foram condenadas pelos santos padres
como idolatria e necromancia.
O Concílio de Braga (ano 563) ordena: “Si quis imagines diabolo
consecraverit ad nocendum, anathema sit.” — “Se alguém consagrar imagens ao
demônio para causar dano, seja anátema.”
Mesmo assim, a superstição permaneceu entre os
povos, e muitos cristãos ignorantes conservaram o costume de fazer figuras de
cera para o amor, o ódio ou a vingança.
II. De modo et forma huius maleficii.
(col. 310B–312A)
O malefício por imagens se realiza de quatro modos
principais:
- Per figuram hominis.
Faz-se uma figura de cera, barro ou metal, representando o corpo do inimigo, e nela se imprimem sinais ou caracteres infernais.
O feiticeiro pronuncia palavras de conjuração e pede ao demônio que inflija ao verdadeiro a dor que causa à imagem.
Assim se produzem doenças súbitas, febres, impotência e mesmo morte. - Per imaginem animalis.
Usa-se forma de animal — cabra, cão, corvo, serpente — para representar o espírito maligno, e se mistura sangue, ossos ou ervas venenosas.
A imagem é então enterrada sob o umbral da casa, de modo que quem entra fica sob influência do mal. - Per characteres.
Desenham-se sinais, números ou letras invertidas em pergaminho, pele ou metal, com tinta feita de enxofre e fel.
O demônio, chamado por tais figuras, fixa nelas sua presença e as usa como instrumento. - Per scripturam nominum.
Escreve-se o nome da vítima, e com ele orações impuras, como se fossem salmos, invocando espíritos de vingança.
Tais escritos são queimados, lançados ao rio ou pendurados em cruzes invertidas.
Estas formas de malefício são gravíssimas, porque
unem palavra, imagem e intenção — os três meios pelos quais o homem participa
do verbo, da forma e do espírito.
III. De testimoniis et exemplis.
(col. 312A–314A)
Muitos exemplos confirmam o poder ilusório desses
malefícios.
Em Florença, 1599, uma mulher chamada Caterina foi
encontrada enferma e sem causa natural.
Descobriu-se, sob sua cama, uma figura de cera com o coração perfurado por
agulha.
O exorcista queimou a imagem, e a enferma se restabeleceu.
Em Veneza, um magistrado adoeceu subitamente, e na
parede de sua casa foi achado um pergaminho com caracteres em forma de
serpente.
Quando se dissolveu o pergaminho em água benta, cessaram os espasmos do doente.
Santo Martinho de Tours, segundo narra Sulpício
Severo (Dialogi, II, 5), encontrou camponeses que, com figuras de palha,
pretendiam provocar chuva.
Ele as queimou e disse: “Non pluvia haec parit, sed fides tua sterilem
mentem irrigat.” — “Não é a chuva que isto produz, mas tua fé que irriga a
mente estéril.”
IV. De potestate et limitatione huius artis.
(col. 314A–315B)
O poder desses malefícios não está nas figuras, mas
no pacto implícito que o feiticeiro faz ao usá-las.
Sem o consentimento do demônio, tais imagens são inertes; com ele, tornam-se
instrumentos de sugestão e medo.
Contudo, a ação do demônio é sempre limitada pela
permissão divina.
Nenhum malefício pode ferir a alma, nem causar dano irreversível ao justo.
Assim ensina o profeta Balaão (Nm 23,23): “Non est augurium in Jacob, nec
divinatio in Israel.” — “Não há agouro em Jacó, nem adivinhação em Israel.”
Santo Tomás escreve:
“Os feitiços agem apenas por influência espiritual,
e sua eficácia é impedida pela graça.”
Portanto, quem vive em estado de graça é imune a
toda figura e encantamento, e o sinal da cruz destrói o poder de qualquer
imagem consagrada ao mal.
V. De remediis et exorcismis contra tales
maleficia.
(col. 315B–316B)
O remédio contra esses malefícios é a destruição
das imagens e a confissão dos envolvidos.
As figuras devem ser queimadas com orações de exorcismo, e os caracteres
lavados com água exorcizada.
O sacerdote deve rezar o Benedicite omnia opera Domini Domino e o Salmo
90, aspergindo o local.
Aquele que teme ter sido enfeitiçado deve
confessar-se, comungar e usar um crucifixo ao peito, rezando diariamente:
“Exsurgat Deus, et dissipentur inimici eius.”
Santo Bernardo aconselha que, em casos de dúvida,
se ofereça missa pelos vivos e defuntos, pois muitas vezes o mal provém de
pacto antigo que se dissolve pelo sacrifício.
Conclusio.
(col. 316B)
Conclui-se, pois, que os malefícios feitos por
imagens, figuras e caracteres são artifícios do inimigo, que imita os sinais
divinos para perverter a fé dos homens; que seu poder é real apenas enquanto
dura a ignorância e o pecado; e que a cruz de Cristo, sinal supremo, desfaz
toda figura do mal.
Assim se cumpre o que diz o salmista (Salmo 113B,
12):
“Simulacra gentium argentum et aurum; os habent et
non loquentur.” — “Os ídolos das nações são prata e ouro; têm boca, mas não
falam.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 316B)
CAPUT XLII —
De maleficiis quae fiunt per verba, preces et cantilenas.
Sobre os malefícios que se fazem por palavras,
preces e cânticos.
(col. 317A–326C)
Depois dos malefícios que se fazem por imagens, é
necessário tratar dos que se operam por palavras, preces e cânticos, os
quais são ainda mais perigosos, porque imitam as fórmulas da oração e se
disfarçam sob o nome de piedade.
Pois o demônio, não podendo criar, perverte aquilo que é santo, revestindo o
feitiço da aparência de súplica.
Santo Agostinho (De Doctrina Christiana, II,
32) diz:
“Toda palavra que pretende operar por si, e não
pela vontade de Deus, é encantamento.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.
96, art. 4) adverte:
“A virtude não reside nas palavras, mas na fé; e
quem confia nas palavras como em causa principal, já participa da superstição.”
I. De natura et speciebus huius maleficii.
(col. 318A–320A)
O malefício verbal é a arte de usar palavras,
fórmulas ou cantos para causar dano ou produzir efeito sobrenatural, sem
autoridade divina.
Divide-se em três espécies: incantationes, adjurationes e cantilenae.
- Incantationes — encantamentos
propriamente ditos, nos quais se recitam palavras em sequência rítmica,
invocando nomes de demônios ou de elementos.
Exemplo: o feiticeiro que, ao ferver ervas, murmura sílabas bárbaras e diz: “Per ignem, per aquam, per aerem et terram, fiat voluntas mea.” — “Pelo fogo, pela água, pelo ar e pela terra, faça-se minha vontade.” - Adjurationes — conjurações, quando o
homem pretende obrigar o demônio a agir mediante juramento ou ameaça.
Usa fórmulas semelhantes às da Igreja, mas com intenção profana.
Assim, muitos invocam falsamente o nome de Deus e dos anjos, dizendo: “Per Michael, per Gabriel, per Raphael, praecipio tibi.” - Cantilenae — cânticos supersticiosos,
entoados em feitiços de amor, cura ou vingança.
São geralmente em verso e acompanhados de gestos, sopros ou sinais.
O demônio, sob tais sons, infunde poder de sugestão e fascinação, de modo que o ouvido torna-se via de enfeitiçamento.
Essas formas são abominação diante de Deus, porque
substituem a oração pela magia.
II. De origine huius superstitionis.
(col. 320A–321C)
A origem dessas palavras encantatórias vem da
idolatria antiga.
Os caldeus, os egípcios e os gregos já acreditavam que as sílabas tinham força
divina, e que certos nomes, repetidos, podiam mover os céus.
Assim nasceram os nomes mágicos, como Abraxas, Adonai, Sabaoth,
Tetragrammaton, e outros, usados fora de seu sentido sagrado.
Os judeus apóstatas e os gnósticos transmitiram
essas fórmulas aos feiticeiros medievais, misturando-as com latim corrompido e
nomes dos planetas.
Por isso, em muitos grimórios se encontram orações que começam com palavras
santas, mas terminam em blasfêmia.
Santo Isidoro (Etymologiae, VIII, 9) define:
“Incantatio est oratio impia ad daemonem directa.”
— “Encantamento é oração ímpia dirigida ao demônio.”
III. De modis operationis.
(col. 322A–324A)
O modo de operar desses malefícios consiste em unir
voz, vontade e sinal.
O feiticeiro fala com intenção determinada, e a palavra, ecoando no ar, serve
de veículo à influência espiritual.
O demônio, por permissão divina, une-se ao som e age sobre o corpo ou a
imaginação da vítima.
Alguns encantamentos produzem sono profundo, outros
febre, outros amolecimento dos membros.
Outros ainda excitam paixões ou ódios, especialmente quando feitos sobre
alimento, roupa ou imagem.
Em Milão, 1603, uma mulher confessou ter causado
doença a seu vizinho apenas recitando todas as manhãs:
“Sicut luna decrescit, sic vita tua deficiat.” — “Assim como a lua mingua, assim tua vida se extinga.”
Outros usam preces invertidas — como recitar o Pater
noster de trás para diante — ou palavras misturadas com latim e nomes
bárbaros, acreditando que o som, e não o sentido, possui poder.
Santo Agostinho comenta (De Civitate Dei, X,
9):
“Os demônios obedecem não ao som, mas à idolatria
do coração que o pronuncia.”
IV. De maleficiis amoris et odii per verba.
(col. 324A–325B)
Particularmente graves são os feitiços de amor e
ódio feitos por palavras.
Os de amor usam fórmulas doces, prometendo união e prazer; os de ódio,
imprecações e maldições.
As mulheres são mais inclinadas a essas práticas,
pois confundem oração com desejo.
Mas ambos os gêneros, diz Guazzo, pecam por igual, porque a palavra que invoca
sem fé é já pacto com o inferno.
Exemplo: em Pádua, 1600, uma jovem encantava o
amado dizendo: “Veni, sicut cera liquescis.” — “Vem, como a cera
derretes.”
O rapaz enlouqueceu e morreu em febre.
Depois, ao destruir-se a fita que ela usava no encantamento, cessaram os
efeitos.
Outro, em Verona, 1604, amaldiçoou o inimigo
pronunciando-lhe o nome sobre carvão aceso, repetindo: “Combustio tua sicut
haec.” — “Que tua combustão seja como esta.”
No mesmo dia, o adversário caiu em doença ardente.
V. De remediis contra huiusmodi verba.
(col. 325B–326B)
O remédio contra esses malefícios é o uso das palavras
santas, porque a língua que bendiz destrói a que amaldiçoa.
O nome de Jesus é o antídoto universal; o Credo, o Pater noster e
o Ave Maria devem ser recitados sobre qualquer objeto suspeito.
Os padres exorcistas usam o Exorcismus de verbis maleficialibus, que
diz:
“Ut omnis lingua mendax et impia taceat in nomine
Domini.” — “Que toda língua mentirosa e ímpia se cale em nome
do Senhor.”
Deve-se também queimar os pergaminhos e papéis que
contenham palavras profanas, e purificar os ouvidos e a boca com água benta.
O jejum e a confissão são as defesas mais fortes, porque o demônio é vencido
pela verdade pronunciada e pela carne humilhada.
Conclusio.
(col. 326C)
Conclui-se, pois, que os malefícios feitos por
palavras, preces e cânticos são o uso perverso da voz, que foi dada para louvar
a Deus e não para conjurar o mal; que toda palavra sem fé é vazia, e toda
palavra com ódio é infernal; e que só a oração pura tem poder sobre o espírito.
Assim se cumpre o que diz o Salmo 19, 15:
“Sint verba oris mei placita, et meditatio cordis
mei in conspectu tuo, Domine.” — “Sejam agradáveis as palavras da minha boca e
a meditação do meu coração diante de ti, Senhor.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 326C)
CAPUT XLIII
— De signis et remediis contra maleficia corporalia.
Sobre os sinais e remédios contra os malefícios
corporais.
(col. 327A–336B)
Depois de tratar dos malefícios feitos por
palavras, convém agora examinar os sinais pelos quais se reconhecem os
malefícios corporais e os remédios legítimos que a Igreja e a razão
natural permitem contra tais aflições.
Pois o demônio, sendo espírito, não toca diretamente a alma, mas aflige o corpo,
que é instrumento da alma, para enfraquecer-lhe a fé e perturbar-lhe o juízo.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 6)
escreve:
“O demônio age sobre o corpo como vento sobre o
mar: não o cria, mas o agita.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q. 114,
art. 4) acrescenta:
“A permissão divina concede ao demônio certa
virtude sobre os corpos, mas sempre ordenada à justiça de Deus.”
I. De signis maleficiorum corporalium.
(col. 328A–330A)
Os sinais dos malefícios corporais são diversos,
mas distinguem-se dos males naturais por certas notas evidentes.
- Quando a enfermidade surge repentinamente, sem causa natural, após ódio, inveja ou suspeita de feitiço.
- Quando o mal resiste a todo remédio médico, e aumenta com o uso de bênçãos ou orações.
- Quando se manifestam em partes simbólicas do corpo — como coração, ventre, olhos ou membros genitais — segundo a
intenção do feiticeiro.
- Quando aparecem objetos estranhos em
feridas ou vômitos — como agulhas, cabelos, ossos, cera ou sangue
coagulado.
- Quando há aversão a coisas santas ou
sofrimento à presença de relíquias e sacramentos.
Em Bolonha, 1598, um homem piedoso adoeceu com
inchaço súbito no peito.
Abrindo-se o abscesso, encontraram-se três fios de cabelo trançados em forma de
cruz.
Após exorcismo e confissão, sarou em três dias.
Tais sinais, porém, devem ser examinados com
prudência, pois muitos males imaginários nascem do medo e da sugestão.
Santo Gregório (Dialogorum Libri, IV, 25)
observa:
“Às vezes o homem julga sofrer o que apenas teme; e
o demônio, aproveitando-se do temor, realiza o que é crido.”
II. De distinctione inter morbos naturales et
maleficiales.
(col. 330A–331B)
Para discernir se o mal é natural ou mágico,
consideram-se três critérios: causa, modo e efeito.
- Causa: se procede de excesso, contágio, acidente ou
hereditariedade, é natural; se vem de inveja, ódio ou pacto, é malefício.
- Modo: se se manifesta segundo ordem natural das
doenças, é físico; se muda de lugar, tempo e forma, é preternatural.
- Efeito: se leva à impiedade, blasfêmia ou desespero,
é espiritual; se apenas à dor e paciência, é corporal.
O médico e o sacerdote devem agir juntos: o
primeiro para tratar o corpo, o segundo para curar a alma.
Pois, como diz Santo Ambrósio:
“Quem cura o corpo e deixa a alma doente, cura
metade do homem.”
III. De remediis spiritualibus.
(col. 331B–333A)
Os remédios espirituais são mais eficazes que os
físicos, porque atingem a causa invisível do malefício.
Os principais são: confissão, comunhão, oração e exorcismo.
- Confissão.
Quebra o pacto do pecado e abre o caminho à graça.
Todo enfeitiçado deve confessar-se com humildade, ainda que julgue ser inocente, pois o demônio só domina o que está em trevas. - Comunhão.
Traz a presença real de Cristo, diante da qual o inimigo não pode permanecer.
Muitos foram libertos apenas ao receber o Santíssimo Sacramento. - Oração.
Deve ser contínua e feita com fé.
Recomenda-se o Salmo 90 (Qui habitat in adiutorio Altissimi), o Pater noster e a invocação de São Miguel Arcanjo. - Exorcismo.
Quando o mal é persistente, deve-se recorrer ao rito da Igreja, com água benta, cruz e palavras autorizadas.
Nenhum leigo deve tentar exorcizar sem permissão eclesiástica.
IV. De remediis naturalibus et physicis.
(col. 333A–335A)
Deus, que criou a natureza, também nela colocou
remédios que, usados com fé, auxiliam na libertação.
Entre os remédios naturais contra os malefícios, Guazzo menciona:
— o uso de sal exorcizado e pão bento;
— o azeite abençoado aplicado sobre o coração e a fronte;
— o incenso de igreja queimado nos quartos;
— a recitação das Ladainhas maiores nas casas e campos.
Alguns médicos santos também usaram ervas como
símbolo de virtude, não de superstição.
Assim, a arruda e o hissopo lembram a purificação, a oliveira recorda a paz, e
o louro a vitória sobre o mal.
Mas se alguém as usa com palavras mágicas, perde o
efeito, pois o demônio se introduz pela curiosidade.
Santo Agostinho afirma (Epistola 245):
“Não é a erva que cura, mas a fé com que é tomada.”
V. De cautelis et observationibus.
(col. 335A–336A)
Quem se julga atingido por feitiço deve evitar três
erros:
- Buscar magos ou adivinhos, pois
cairá em pecado de idolatria.
- Usar palavras bárbaras ou sinais estranhos, que são invocações disfarçadas.
- Duvidar da providência divina, pois
a dúvida alimenta o poder do inimigo.
Deve, antes, entregar-se à vontade de Deus e
suportar a provação com paciência, como Jó.
Porque, como diz o Apóstolo (Rm 8, 28): “Omnia cooperantur in bonum his qui
diligunt Deum.” — “Tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus.”
Conclusio.
(col. 336B)
Conclui-se, pois, que os malefícios corporais são
reais enquanto Deus os permite, e ilusórios quando a imaginação os fabrica; que
os sinais de feitiço são reconhecíveis pela constância e aversão ao sagrado; e
que os remédios certos são os sacramentos, a oração e a confiança na cruz.
Toda cura verdadeira vem do mesmo Cristo, que cura
corpos e almas, e diante de quem todo encanto se desfaz.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho de Marcos
(16, 18):
“Imponent manus super aegros, et bene habebunt.” —
“Imporão as mãos sobre os enfermos, e eles ficarão curados.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 336B)
CAPUT XLIV —
De maleficiis quae fiunt per cibos et potus.
Sobre os malefícios que se fazem por alimentos e
bebidas.
(col. 337A–346C)
Entre os inúmeros modos pelos quais os demônios e
seus ministros — os magos e as feiticeiras — causam dano aos homens, nenhum é
mais frequente e mais oculto do que o que se pratica por alimentos e bebidas
enfeitiçados.
Pois aquilo que o homem recebe em seu corpo como sustento e prazer converte-se,
por arte diabólica, em instrumento de corrupção e morte.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 6)
declara:
“O inimigo, não podendo criar substâncias novas,
corrompe as que existem, imprimindo nelas qualidade venenosa.”
Assim, não é o alimento em si que causa o mal, mas
o espírito que o infesta.
Deus, que tudo criou bom, permite às vezes que o diabo abuse das criaturas para
punição dos maus e provação dos justos.
I. De modo huius maleficii.
(col. 338A–340A)
O modo de enfeitiçar alimentos é triplo: por
contato, por benzedura e por mistura.
- Por contato.
Quando o feiticeiro toca o alimento com objeto consagrado ao demônio — anel, raiz, ou osso de animal imundo — ou simplesmente sopra sobre ele após recitar fórmulas profanas.
Assim o alimento se torna instrumento de malefício, e quem o come sente logo peso, febre, ou desvario. - Por benzedura.
Quando o feiticeiro, fingindo piedade, abençoa a comida ou a bebida com palavras invertidas.
Muitos usam o Pater noster recitado ao contrário, outros misturam nomes de santos com nomes de demônios, para enganar os simples. - Por mistura.
Quando o feiticeiro lança no alimento pó, erva, sangue, saliva, ou parte de corpo humano ou animal, e sobre isso recita prece mágica.
Em Cremona, 1599, uma mulher confessou ter matado três pessoas misturando, no vinho, cinzas de criança não batizada.
Esses modos são todos pactos tácitos com o demônio,
pois nenhum efeito sobrenatural se opera sem sua cooperação.
II. De effectibus maleficiorum per cibos et potus.
(col. 340A–342A)
Os efeitos desses malefícios variam conforme a
intenção de quem os faz e a permissão de Deus.
Alguns produzem doenças; outros, ódio, luxúria ou insânia; outros
ainda causam morte súbita.
- Doenças.
Muitas vezes o alimento enfeitiçado provoca dores internas, inchaço, delírio, ou perda de sentidos, sem causa natural.
O corpo torna-se frio como pedra, e o pulso irregular. - Ódio e amor.
Certas mulheres malvadas preparam filtros amorosos, misturando sangue menstrual, ervas de Vênus ou vinho consagrado ao demônio, e o oferecem àquele que desejam seduzir.
O infeliz sente paixão violenta e irracional, como se estivesse possesso.
Santo Jerônimo observa (Epistola ad Eustochium):
“Os filtros
de amor são as orações do demônio.”
- Insânia e morte.
Há casos em que a vítima enlouquece, perde a fala, ou morre sem sinal de veneno conhecido.
Em Milão, 1601, um jovem nobre morreu após beber vinho oferecido por mulher suspeita.
O corpo, aberto pelos médicos, não apresentava corrupção alguma.
Guazzo nota que o demônio age não pela substância, mas pela forma espiritual que imprime no alimento, comunicando-lhe virtude letal.
III. De signis et suspicionibus.
(col. 342A–343C)
Os sinais de que o alimento ou bebida foram
enfeitiçados são:
— mudança súbita de sabor, cor ou cheiro;
— presença de substância desconhecida ou espuma;
— recusa de animais domésticos em comer o mesmo alimento;
— repulsa interior, como náusea sem causa;
— e, sobretudo, aversão a coisas santas após a refeição.
Contudo, deve-se proceder com cautela, pois o
demônio pode causar as mesmas aparências sem malefício, apenas para suscitar
desconfiança e divisão entre inocentes.
Por isso, nunca se deve acusar alguém sem prova.
Santo Agostinho (Quaestiones in Heptateuchum,
lib. 7, q. 11) ensina:
“É melhor sofrer injustiça que suspeitar sem
caridade.”
IV. De remediis contra tales maleficia.
(col. 343C–345A)
O remédio espiritual é sempre o primeiro:
— oração sobre o alimento, com o sinal da cruz;
— aspersão de água benta sobre a mesa;
— invocação do Nome de Jesus antes de comer;
— e ação de graças após a refeição.
Pois, como diz o Apóstolo (1Tm 4, 4): “Omne
creatum Dei bonum est, et nihil rejiciendum quod cum gratiarum actione
percipitur.” — “Tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado se é
recebido com ação de graças.”
O alimento suspeito deve ser aspergido com sal e
água benta, ou lançado no fogo, recitando o Salmo 90.
Se o mal já entrou no corpo, recomenda-se confissão, comunhão e uso de água
exorcizada.
Santo Ambrósio afirma:
“A mesa onde se lê o Evangelho torna-se altar, e nenhum
veneno nela age.”
V. De cautelis et praeventionibus.
(col. 345A–346B)
O cristão prudente deve abster-se de comer ou beber
em casa de feiticeiros, adivinhos ou pessoas suspeitas.
Não deve aceitar alimentos de estranhos sem bênção, nem permitir que mulheres
supersticiosas preparem remédios ou poções.
Em Verona, um sacerdote morreu após aceitar taça de
vinho de mulher que o odiava.
A taça, examinada, apresentava caracteres gravados sob o fundo: “In nomine
Leviathan.”
O verdadeiro remédio é viver em estado de graça.
Pois o corpo purificado pela fé é templo do Espírito Santo, e o inimigo não
pode penetrar onde habita Cristo.
Santo Bernardo diz:
“Quem come o Corpo de Cristo não teme o veneno do
demônio.”
Conclusio.
(col. 346C)
Conclui-se, pois, que os malefícios praticados por
alimentos e bebidas são os mais insidiosos porque se disfarçam sob o dom da
hospitalidade; que o demônio age neles não pela substância, mas pela intenção;
e que toda refeição santificada pela cruz torna-se comunhão com o Verbo e muro
contra o inferno.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho de Marcos
(16, 18):
“Et si mortiferum quid biberint, non eos nocebit.”
— “E se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 346C)
CAPUT XLV —
De pestibus et morbis a maleficis concitatis.
Sobre as pestes e enfermidades suscitadas pelos
feiticeiros.
(col. 347A–356C)
Os antigos filósofos médicos, como Avicena, Galenus
e Hipócrates, negaram que os demônios pudessem causar doenças ou pestes
aos homens, sustentando que todo mal corporal provém de causas naturais.
Mas a Escritura e a experiência contradizem tal opinião, mostrando que muitos
males são suscitados por permissão divina e executados pelos espíritos malignos
por meio de instrumentos humanos.
Assim, no livro de Jó, lê-se que o demônio,
autorizado por Deus, feriu o servo justo com úlceras da cabeça aos pés.
E no Evangelho, o Senhor expulsa demônios que tornavam os homens mudos, surdos,
ou convulsos.
Logo, é manifesto que o demônio pode, por permissão, perturbar o corpo humano e
a ordem dos elementos.
I. De potestate daemonum super corpora et elementa.
(col. 348A–349B)
O demônio possui poder sobre os corpos por duas
vias: por sua natureza espiritual, que é superior à matéria, e por
permissão divina, que regula e limita sua ação.
Com esse poder, ele move vapores, altera o ar, corrompe os humores e, assim,
gera doenças e pestilências.
Francisco Valesius, médico de grande saber, explica que o demônio é causa externa das
doenças quando penetra no corpo e move suas causas interiores.
Pode suscitar melancolia, paralisia, surdez e cegueira; inflamar o sangue,
impedir a excreção dos humores, e, pela agitação do ar, espalhar pestes entre
os povos.
Cesalpino, em seu
tratado De Daemonum Investigatione, ensina que o diabo destila do sangue
uma substância sutil e venenosa, semelhante ao espírito vital, e com ela
infecta os corpos.
Esse veneno espiritual é invisível e tão rápido que escapa à arte dos médicos.
Assim, a peste que assola uma cidade não é sempre
natural, mas muitas vezes procede da inveja dos feiticeiros e da operação do
demônio, que se alegra com a corrupção do homem.
II. De modis quibus pestes excitantur.
(col. 350A–351C)
Os feiticeiros excitam pestes e doenças de três
modos principais:
- Per corruptionem aeris.
Quando o demônio, por invocação do mago, mistura vapores pútridos ao ar e espalha odores venenosos invisíveis.
Assim, diz Santo Agostinho (De Civitate Dei, III, 31): “Daemonibus permittitur elementa turbare et in aëre pestem movere.” - Per contagionem personarum.
O feiticeiro toca o doente, sopra-lhe ao rosto, ou mistura em sua roupa sangue enfeitiçado, de modo que o mal se propaga por contato.
Em Florença, 1600, um médico morreu após visitar uma bruxa enferma: examinando-se o corpo, nada se achou senão a pele fria como chumbo. - Per corpora mortuorum.
Os feiticeiros enterram cadáveres consagrados ao demônio nas encruzilhadas e nos campos, para que exalem miasmas mortíferos.
Tal prática, diz Burchardus (Decret. XIX, de re magica), é uma das mais abomináveis, pois torna o ar templo do inferno.
III. De causis permissivis et divina iustitia.
(col. 352A–353B)
Deus permite tais pestes por três causas:
- Para correção dos pecadores.
Como o ferro é purificado pelo fogo, assim a cidade é purgada pela dor. - Para prova dos justos.
Assim como Jó e Tobias sofreram por permissão divina, o justo é provado para crescer em paciência. - Para confusão dos ímpios.
O Senhor usa o próprio demônio como instrumento de sua justiça.
Contudo, a permissão não destrói a liberdade
humana: o feiticeiro é culpado porque consente e coopera com o mal.
O demônio não poderia agir sem o pacto do homem, como ensina Santo Tomás
(I, q. 114, art. 1):
“Daemon non potest movere
ad peccatum nisi per suggestionem voluntarie acceptam.”
IV. De signis pestium magicarum.
(col. 354A–355A)
As pestes naturais vêm de corrupção dos elementos;
as mágicas distinguem-se por sinais espirituais:
— nascem de súbito, sem causa visível;
— cessam com exorcismo e oração, não com medicina;
— atacam sobretudo os fiéis e os sacerdotes;
— produzem medo e desespero mais que dor.
Durante a peste de Milão (1602), muitos padres
morreram logo após confessar mulheres suspeitas de bruxaria; mas quando o
arcebispo ordenou procissão com o Santíssimo, cessou a mortandade em três dias.
V. De remediis divinis et ecclesiasticis.
(col. 355B–356B)
O remédio contra pestes suscitadas pelos
feiticeiros é espiritual e deve unir oração, penitência e purificação do ar.
- Oração e procissão.
As ladainhas e os salmos penitenciais afastam o espírito do mal.
Deve-se rezar o Miserere e o Exsurgat Deus, aspergindo as casas e ruas com água benta. - Jejum e confissão.
Porque o demônio é vencido pela humildade, e o pecado é o alimento de sua força. - Sinais sagrados.
A cruz, a relíquia e a bênção sacerdotal purificam o ar e o corpo.
Assim, em Roma, quando Gregório Magno mandou processar a imagem de Maria, cessou a peste e o ar se tornou doce. - Queima dos objetos suspeitos.
Os escritos e imagens achados em casas de feiticeiros devem ser queimados publicamente, com preces de exorcismo. - Bênção do alimento e da água.
O uso da água exorcizada e do sal bento preserva do contágio espiritual.
Conclusio.
(col. 356C)
Conclui-se que as pestes e enfermidades provocadas
pelos feiticeiros são efeitos reais da inveja diabólica, mas subordinadas à
permissão divina; que os remédios eficazes são os sacramentos e as orações da
Igreja; e que todo mal físico é vencido pelo bem espiritual.
Assim se cumpre o que diz o Salmo 90:
“Non timebis a peste perambulante in tenebris.” —
“Não temerás a peste que anda nas trevas.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 356C)
CAPUT XLVI —
De auxiliis naturalibus et divinis contra pestilentias.
Sobre os auxílios naturais e divinos contra as
pestilências.
(col. 357A–366B)
Depois de tratar das pestes e enfermidades
suscitadas pelos feiticeiros, convém falar agora dos auxílios e remédios,
tanto naturais quanto divinos, pelos quais o homem pode resistir
às infecções corporais e espirituais.
Pois, como ensina Santo Tomás (Iª q.114, art. 6), o demônio pode
infligir males corporais, mas a providência de Deus deixou ao homem meios
legítimos de defesa, tanto pela razão quanto pela graça.
I. De auxiliis naturalibus.
(col. 357B–360A)
Os auxílios naturais contra a peste são os
que dependem da disposição dos corpos e da pureza do ar.
O Criador, ao ordenar os elementos, instituiu em cada um virtudes ocultas que,
usadas com moderação e fé, servem de defesa contra a corrupção.
Assim, o ar, o fogo, as ervas e as pedras possuem propriedades que, embora
naturais, são reflexos da bondade divina.
- De puritate aeris.
O ar é o primeiro veículo da saúde ou da peste.
Por isso, deve ser conservado limpo com o uso de aromas, ervas e fogo.
É útil acender brasas de louro, zimbro, arruda e enxofre, pois tais vapores dissipam a umidade corrupta.
Avicena recomenda também o vinagre aspergido nas casas e o uso de água rosada.
O Sábio de Salerno acrescenta:
“Accipe
suffitus thymum et laurum, et fugiet pestis.” — “Toma o fumo do tomilho e do
louro, e a peste fugirá.”
- De victu et moderatione.
O alimento leve e o vinho moderado fortalecem o calor natural.
A carne de aves é mais segura que a de quadrúpedes.
Devem evitar-se frutas muito úmidas, o leite cru e os peixes de água parada.
O jejum, praticado com discrição, torna o corpo menos apto a receber corrupção. - De odoribus et aromatibus.
O olfato é via de infecção, mas também de preservação.
Os perfumes de rosa, mirra, cânfora e aloés são salutares, assim como o vinagre aromatizado com arruda.
Muitos santos, durante as pestes, traziam consigo pedaços de cera benzida com aromas. - De habitatione et loco.
Deve-se evitar lugares baixos e úmidos.
As casas devem ter janelas abertas ao oriente e ao meio-dia.
Convém queimar ervas secas e sal sobre brasas, para purificar o ambiente.
E sobretudo, conservar o coração sereno, porque o medo é o primeiro veneno da peste.
II. De auxiliis divinis.
(col. 360B–363A)
Os auxílios divinos são superiores, porque
atacam a causa espiritual do mal.
Toda peste é antes castigo do pecado que enfermidade do corpo.
Por isso, a penitência e a oração são mais eficazes que qualquer medicina.
- De oratione.
A oração purifica o ar da alma.
Deve-se recitar os Salmos 90, 50 e 129, o Pater noster, o Ave Maria e a invocação de São Miguel Arcanjo:
“Sancte
Michael Archangele, defende nos in praelio.”
O Papa Gregório
Magno, na peste de Roma, ordenou procissão de sete igrejas, cada uma
representando uma das ordens angélicas, e quando a imagem da Virgem chegou à
ponte de Adriano, cessou a infecção.
Por isso, as procissões penitenciais são remédio certo, porque o louvor
a Deus reordena o que o pecado desordenou.
- De sacramentis.
A confissão apaga a causa do castigo;
a Eucaristia fortalece a alma e o corpo;
a extrema unção sela o homem contra o veneno da morte.
Onde esses sacramentos são frequentes, o demônio foge. - De sacramentalibus.
O uso de água benta, sal exorcizado, óleo sagrado, cruz e relíquias é lícito e eficaz.
Não porque haja neles virtude física, mas porque neles age a bênção divina.
Como diz Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 6):
“Non natura
sed gratia facit miracula.” — “Não é a natureza, mas a graça que faz os
milagres.”
III. De coniunctione naturalium et divinorum
remediorum.
(col. 363B–365A)
O homem prudente une o remédio natural ao divino,
sem confundir um com o outro.
O médico age sobre o corpo; o sacerdote, sobre a alma.
Ambos são ministros de Deus, como a luz e o calor do mesmo sol.
Assim, quando a peste ameaça, deve-se antes
purificar o coração e a casa, e depois o ar e o corpo.
A ciência médica sem oração é presunção; a oração sem razão é tentação.
A caridade que socorre os enfermos vale mais que o temor que foge.
Guazzo recorda que, em Milão, um simples cristão,
que nada sabia de medicina, curou muitos pestosos apenas impondo-lhes as mãos e
dizendo:
“In nomine Iesu, esto mundus.” — “Em nome de Jesus,
sê purificado.”
E o ar ao redor dele se tornava leve e perfumado.
IV. De vanis et illicitis remediorum modis.
(col. 365A–366A)
Devem-se rejeitar e condenar todos os remédios
supersticiosos, mesmo quando parecem eficazes.
Tais são:
— os talismãs com caracteres ou palavras bárbaras;
— os papéis escritos com nomes de demônios ou planetas;
— os círculos mágicos e as conjurações de arcanjos não reconhecidos pela
Igreja.
Esses meios são engano diabólico.
O demônio cura um mal para causar outro maior, como o pescador que afrouxa a
linha para fisgar o peixe.
Quem busca saúde por feitiço, perde a alma para salvar o corpo.
Santo Tomás adverte (II–II, q.96, art. 2):
“Qui remedium quaerit a daemone, etiam tacite,
idololatra est.” — “Quem busca remédio no demônio, ainda que tacitamente, é
idólatra.”
V. De perfectione medicinae christianae.
(col. 366A–366B)
A medicina cristã é perfeita porque une o saber à
fé.
O médico é ministro da natureza; o sacerdote, ministro da graça;
e ambos são instrumentos do mesmo Deus, que cura por dentro e por fora.
A verdadeira saúde é a da alma: o corpo curado sem
penitência é corpo pronto para nova doença.
Por isso, nas pestes e calamidades, a Igreja ordena não apenas remédios
físicos, mas confissões públicas, esmolas e jejuns.
O homem que, purificado pelo sacramento, respira em
graça, torna-se fonte de ar puro: onde ele passa, o demônio não suporta o
hálito da santidade.
Conclusio.
(col. 366B)
Conclui-se que, contra as pestes e infecções
causadas por feiticeiros ou permitidas por Deus, os auxílios mais eficazes são
a oração, a penitência e a caridade, unidas à prudência
natural e à moderação dos sentidos;
que a graça é medicina mais alta que o bálsamo;
e que o Nome de Cristo é escudo contra todo veneno.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho de Marcos
(16, 17–18):
“Super aegros manus imponent, et bene habebunt.” —
“Imporão as mãos sobre os enfermos, e eles ficarão curados.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 366B)
CAPUT XLVII
— De aquarum, fluminum et fontium daemonica infestatione.
Sobre a infestação demoníaca das águas, rios e
fontes.
(col. 367A–376B)
Depois de tratarmos das pestes e enfermidades
causadas pelos feiticeiros, é oportuno considerar também as infestações
demoníacas das águas, rios e fontes, que, segundo antigos testemunhos e a
experiência dos santos, muitas vezes se tornam instrumentos do inimigo para a
destruição dos homens e a profanação das criaturas de Deus.
Santo Ambrósio (Hexaëmeron, lib. V) afirma:
“Omnia elementa Deo famulantur, sed abusus eorum
daemonibus ad poenam permittitur.”
“Todos os elementos servem a Deus, mas seu abuso é permitido aos demônios para
castigo.”
Assim, as águas, criadas para dar vida e pureza,
tornam-se, por permissão divina, meio de corrupção, quando o homem as macula
com superstição ou pecado.
I. De testimoniis Scripturae et Patrum.
(col. 367B–369A)
A Sagrada Escritura está cheia de exemplos em que
as águas se tornam instrumentos da justiça divina ou da tentação diabólica.
O Dilúvio universal foi castigo que lavou a terra; as águas do Mar
Vermelho engoliram os egípcios; o Jordão curou Naamã, o leproso; e,
em contrapartida, a água amarga de Mara provou a fé de Israel.
Do mesmo modo, o demônio tenta imitar os efeitos de
Deus.
Quando Moisés transformou a água em sangue, os magos do Faraó fizeram o mesmo
por artes demoníacas (Exodus VII).
Assim se vê que o diabo não cria, mas perverte: muda a natureza do elemento,
sem lhe dar nova substância.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 6)
comenta:
“Daemonum potestas non in
creatione sed in corruptione est.”
“O poder dos demônios não está na criação, mas na corrupção.”
E São Jerônimo narra, em sua carta a Paulino, que
em sua terra natal, Dalmácia, muitas fontes e rios haviam sido enfeitiçados, de
modo que os que deles bebiam ficavam doentes ou insanos, até que se lhes
lançasse dentro sal bento.
II. De modis infestationis.
(col. 369B–371B)
As infestações demoníacas das águas se produzem de
três modos principais:
- Per immissam substantiam.
Quando o feiticeiro ou mago lança em águas puras objetos consagrados ao demônio — como ossos, sangue, pó, ervas ou caracteres mágicos — invocando nomes infernais.
Por esse contato, o demônio obtém permissão para turvar o elemento, de modo que os que bebem ou se banham nela padecem febre, melancolia, ou tentação impura.
Em Bolonha, 1603, foi achada fonte em cuja nascente havia três ossos humanos e um pergaminho com o nome Belial.
Ao ser purificada com água benta e bênção episcopal, cessaram as enfermidades da aldeia. - Per praesentiam daemonis localem.
O demônio pode, por permissão, habitar certas fontes, rios ou lagos, como outrora os ídolos habitavam templos.
Assim, o Lago de Averno, na Campânia, era reputado morada dos espíritos, e quem nele mergulhava sentia vertigem e medo.
Do mesmo modo, certas fontes noturnas e pântanos exalam vapores que favorecem a ação demoníaca, não por natureza, mas por ocasião espiritual. - Per fascinationem et phantasmata.
Às vezes o demônio engana a vista, fazendo aparecer nas águas imagens falsas — figuras humanas, animais ou luzes — para seduzir o homem e fazê-lo cair em superstição.
Muitos que se banhavam em rios à noite juravam ver “mulheres brancas” ou “espíritos luminosos”.
São Martinho de Tours, ao benzer o rio Loire, dissipou tais ilusões e purificou o local.
III. De causis permissivis.
(col. 372A–373A)
Deus permite a infestação das águas por três
causas:
- Para correção dos povos.
Assim como os ninivitas se converteram à pregação de Jonas, também os homens, vendo corromper-se as águas, lembram-se de suas culpas e pedem purificação. - Para confusão dos idólatras.
Os gentios adoravam as fontes como ninfas e deuses locais; por isso, Deus permite que nelas habitem demônios, para mostrar a loucura dos cultos profanos. - Para provação dos justos.
Como Jó foi tentado no corpo, o justo é tentado nos elementos que o cercam, para que se eleve acima deles e confie só na providência divina.
IV. De remediis ad purgandas aquas.
(col. 373B–375A)
As águas infestadas devem ser purificadas não por
arte humana, mas pelos ritos da Igreja, instituídos desde os primeiros
séculos.
- Benedictio aquarum.
O sacerdote benze as águas com sal exorcizado, dizendo:
“Exorcizo
te, creatura aquae, in nomine Dei Patris omnipotentis, ut fias aqua salutaris
ad effugandum omnem potestatem inimici.”
— “Eu te exorcizo, criatura água, em nome de Deus Pai onipotente, para que te
tornes água salutar e expulse todo poder do inimigo.”
Com essa
bênção, a água é restituída à sua pureza primeira e torna-se instrumento da
graça.
- Aspergio loci.
Deve-se aspergir com água benta as margens e nascentes, recitando o Salmo 28 (Afferte Domino) e o Credo, e traçando o sinal da cruz nas quatro direções.
Em alguns casos, o bispo ordena jejum e procissão até o lugar, para cortar a influência diabólica. - Immissio Crucis vel Reliquiae.
Antigamente era costume lançar pequena cruz de metal nas fontes suspeitas.
O Beato Vicente Ferrer assim purificou poço em Valência, do qual exalava odor pestilento, e a água tornou-se doce. - Lectio Evangelii.
O Evangelho de João (In principio erat Verbum) é lido sobre as águas, porque o Verbo eterno restitui ordem às criaturas.
V. De cautelis et observationibus.
(col. 375B–376A)
Deve-se evitar beber de fontes que não tenham sido
bentas ou conhecidas, especialmente as que se dizem “encantadas” ou “milagrosas”
fora da autoridade da Igreja.
O demônio disfarça a malícia sob aparência de piedade, e muitos vão buscar
saúde onde acham perdição.
Também não é lícito lavar imagens ou rosários em
tais águas sem bênção, pois o contato pode contaminar o sagrado.
As verdadeiras águas milagrosas são as que foram santificadas por intervenção
divina reconhecida — como as de Lourdes, Monte Gargano e Subiaco
— e não as que o povo consagra por superstição.
Santo Bernardo ensina:
“Aqua benedicta plus valet quam mille fontes incantati.”
— “A água benta vale mais do que mil fontes encantadas.”
Conclusio.
(col. 376B)
Conclui-se que as infestações demoníacas das águas
são reais enquanto Deus o permite, e que os remédios certos são a bênção, o
exorcismo e a fé viva;
que nenhuma criatura é má por si, mas se torna veículo do mal quando o homem a
entrega ao demônio;
e que toda fonte purificada pelo Nome de Cristo volta a ser imagem do Batismo,
onde o espírito impuro não pode habitar.
Assim se cumpre o que diz o profeta Isaías (12, 3):
“Haurietis aquas in gaudio de fontibus Salvatoris.”
— “Tirareis com alegria as águas das fontes do Salvador.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 376B)
CAPUT XLVIII
— De locorum et domorum daemonica infestatione.
Sobre a infestação demoníaca dos lugares e das
casas.
(col. 377A–386C)
Assim como os demônios podem infestar o ar, as
águas e os corpos, também perturbam os lugares e as habitações humanas,
causando medo, ruído, aparições, doenças e ruínas.
Essas infestações são permitidas por Deus para correção dos pecadores, confusão
dos ímpios e prova dos fiéis.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XV, 23)
escreve:
“In desertis et ruinis
daemonum sunt sedes.”
“Nos desertos e nas ruínas estão as moradas dos demônios.”
E São Jerônimo, comentando Isaías (cap. 13), declara:
“Ubicunque sanctitas recessit, daemon habitat.”
“Onde quer que a santidade se retira, o demônio habita.”
I. De causis infestationum locorum.
(col. 377B–379A)
As causas das infestações dos lugares são de duas
espécies: naturais e espirituais.
- Naturais, quando procedem de exalações pútridas, de
sepulturas antigas, ou de ar corrompido por cadáveres e umidade.
O povo chama tais lugares “mal-assombrados” porque os sentidos percebem algo invisível, e o medo multiplica as imagens. - Espirituais, quando o demônio, por
permissão divina ou por pacto de magos, habita o local para causar terror
ou dano.
Assim, casas construídas sobre locais de sacrifício pagão, templos profanos ou cemitérios não purificados costumam ser mais facilmente infestadas.
Cesário de Heisterbach, nas Dialogorum Miraculorum, refere que em Colônia, uma casa
erguida sobre antigo templo de ídolos tinha vozes noturnas, gemidos e luzes
móveis, até ser purificada por um exorcista dominicano.
II. De signis infestationis.
(col. 379B–381A)
Os sinais de infestação demoníaca de um lugar são:
— ruídos de passos ou pancadas sem causa visível;
— movimentos de objetos ou portas;
— aparição de sombras, luzes ou figuras deformes;
— mau cheiro súbito e inexplicável;
— medo opressivo ou desespero em quem ali habita;
— e, sobretudo, aversão às coisas santas — crucifixos, relíquias e água
benta.
Tais sinais, porém, devem ser discernidos com
prudência, porque o demônio gosta de imitar fenômenos naturais para enganar os
simples.
Os ventos subterrâneos, os gases, os ruídos do solo, podem dar ocasião à
fantasia, mas o espírito maligno aproveita-se do medo para se manifestar.
III. De causis permissivis.
(col. 381B–382B)
Deus permite a infestação dos lugares para três
fins:
- Para confusão da superstição.
Muitos povos honravam fontes, árvores e casas com culto profano; e o Senhor, permitindo que ali habitassem demônios, mostrou a vaidade desses cultos. - Para castigo dos pecadores.
Casas onde se cometem crimes e impiedades tornam-se como espelhos das culpas, e o demônio, que nelas se deleita, faz ouvir sua presença como testemunha da iniquidade. - Para prova dos justos.
O justo, ao invocar o nome de Cristo num lugar assombrado, confirma a vitória da luz sobre as trevas.
Assim, São Bento, ao entrar em caverna habitada por espírito maligno, apenas fez o sinal da cruz, e o demônio fugiu gritando.
IV. De modis purificationis locorum.
(col. 382C–385B)
A purificação dos lugares e casas infestadas deve
seguir os ritos da Igreja, e não as práticas supersticiosas.
Guazzo descreve a forma ordinária usada pelos exorcistas:
- Aspergio aquae benedictae.
O sacerdote entra aspergindo as paredes, cantos e portas com água benta, dizendo:
“Asperges
me, Domine, hyssopo, et mundabor.” —
“Aspergi-me-ás, Senhor, com o hissopo, e ficarei limpo.”
- Lectio Evangelii et Symboli.
Leem-se o início do Evangelho de São João e o Credo, traçando com o Evangeliário o sinal da cruz no ar, para dissipar as formas ilusórias. - Exorcismus loci.
O sacerdote recita:
“Adjuro te,
spiritus immunde, per Deum vivum, ut hunc locum deseras et non revertaris.”
— “Ordeno-te, espírito imundo, pelo Deus vivo, que deixes este lugar e não
retornes.”
Se o
espírito resiste, repete-se o exorcismo por sete dias consecutivos, com jejum e
oração.
- Inscriptio Crucis.
Nos quatro ângulos principais da casa traça-se uma cruz com óleo bento, pronunciando:
“Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat.” - Missae et Communionis usus.
Convém celebrar Missa no local e comungar, porque a presença real do Senhor santifica o espaço e torna-o impróprio ao inimigo.
Após a purificação, recomenda-se manter uma lâmpada
acesa diante de uma imagem sagrada, para lembrar que onde há luz contínua não
há domínio das trevas.
V. De cautelis post purificationem.
(col. 385C–386A)
Quem habita em casa outrora infestada deve
conservar o local em estado de graça:
evitar blasfêmias, discórdias e palavras de ódio;
rezar diariamente o Angelus e o Sub tuum praesidium;
e não permitir que entrem nela objetos profanos ou provenientes de magos.
Se os ruídos ou sombras voltarem, deve-se repetir o
uso da água benta e invocar o Santo Nome de Jesus, sem medo.
Pois o demônio, vencido uma vez, tenta ainda pelo terror reconquistar o que
perdeu.
Santo Gregório escreve (Dialogi, lib. IV,
cap. 27):
“Fugam daemonis timor revocat.” — “O medo chama de
volta o demônio que fugiu.”
Conclusio.
(col. 386C)
Conclui-se, pois, que as infestações dos lugares e
casas são reais quando o pecado nelas se aninha e a presença do sagrado se
retira;
que os remédios certos são o exorcismo, a bênção e a vida em graça;
e que toda casa purificada pelo Nome de Cristo se torna templo do Espírito
Santo, onde o inimigo não ousa entrar.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Lc 19, 9):
“Hodie salus huic domui facta est.” — “Hoje entrou
a salvação nesta casa.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 386C)
CAPUT XLIX —
De signis et remediis infestationum localium persistentium.
Sobre os sinais e remédios das infestações
persistentes de lugares.
(col. 387A–396B)
Quando as infestações demoníacas não cessam após a
purificação comum, convém examinar mais profundamente as causas ocultas, pois o
demônio, expulso pela bênção, muitas vezes retorna por permissão divina ou
negligência humana.
Há lugares onde o mal se renova, como ferida que sangra de novo, e ali o
inimigo opera não tanto por presença física, mas por memória e pacto
espiritual.
I. De causis persistendi infestationis.
(col. 387B–389A)
As causas pelas quais as infestações persistem são
principalmente quatro:
- Reatus loci.
Quando o local foi teatro de crimes gravíssimos — homicídios, profanações, pactos ou sacrifícios — e não se satisfez devidamente a justiça divina.
Enquanto não houver reparação, o sangue clama da terra, como o de Abel (Gênesis IV).
O exorcismo dissipa a presença, mas a culpa permanece até que o pecado seja expiado por penitência pública ou missa de reparação. - Pactum reiteratum.
Quando alguém, por ignorância ou malícia, renova o pacto com o inimigo dentro do mesmo espaço.
Basta uma palavra, um gesto, ou a invocação de nome profano para reabrir a passagem que o exorcismo fechara.
Em Pádua, um camponês, após purificação de sua casa, lançou de brincadeira uma moeda dizendo: “Haec tibi, spiritus meus.”
Na mesma noite, voltaram ruídos e gemidos; o bispo mandou queimar o objeto e a casa tornou-se tranquila. - Instrumentum occultum.
Às vezes o demônio permanece porque algum instrumento do pacto — pergaminho, osso, erva, ou figura — está escondido nas paredes ou no solo.
Tal objeto, consagrado por malefício, serve de âncora espiritual.
Deve-se buscar com diligência e, ao achá-lo, queimá-lo com água benta e sal exorcizado, recitando o Salmo 67 (Exsurgat Deus). - Voluntas Dei ad probationem.
Por fim, há casos em que Deus permite a persistência da infestação para prova dos justos, como espinho na carne, para que não se exaltem.
Assim, São Paulo diz: “Datus est mihi stimulus carnis meae, angelus Satanae.” — “Foi-me dado um espinho na carne, anjo de Satanás.”
II. De signis infestationis perseverantis.
(col. 389B–391A)
Os sinais da infestação persistente são mais sutis
que os da comum.
Não se manifestam por ruídos ou visões, mas por efeitos interiores e constância
dos males:
— tristeza súbita e sem causa;
— desordem dos ânimos e discórdias contínuas entre os moradores;
— doenças recorrentes sem diagnóstico;
— sono inquieto e pesadelos idênticos entre pessoas diversas;
— e sensação de peso espiritual em certas horas fixas do dia.
Tais sinais, se duram por meses e resistem a
bênçãos simples, indicam que o espírito não habita no ar, mas no vínculo
invisível entre os homens e o lugar.
Pois o demônio, sendo espírito, adere ao afeto desordenado e ao temor.
Santo Gregório escreve (Homiliae in Evangelia,
XXIX):
“Ubi timor, ibi habitat inimicus.” — “Onde há medo,
ali habita o inimigo.”
III. De modis purificationis et remediis maioribus.
(col. 391B–394A)
Quando a infestação persiste, deve-se recorrer aos remédios
maiores da Igreja.
- Exorcismus maior.
Celebrado por sacerdote autorizado e em jejum, com assistência de dois testemunhos fiéis.
O rito usa o Romanum Rituale e o Salmo 90, seguido das palavras:
“Praecipio
tibi, spiritus immunde, ut in nomine Iesu Christi desinas inquietare hunc
locum.”
O sacerdote unge as portas e os cantos com óleo dos catecúmenos.
- Missae de Spiritu Sancto et pro defunctis.
Celebram-se três Missas: uma ao Espírito Santo, outra por todas as almas do Purgatório, e a terceira em ação de graças.
Guazzo observa que muitas infestações cessam quando se oferece sacrifício pelos mortos injustamente esquecidos. - Processio cum Sacramento.
A procissão com o Santíssimo Sacramento em torno do lugar sela espiritualmente o espaço.
O demônio, que teme a presença real, não suporta o círculo da adoração. - Collocatio Reliquiarum.
Após a bênção, coloca-se no ponto central do local uma pequena relíquia autêntica, preferivelmente de mártir, para que o sangue dos santos repila o espírito do mal. - Renovatio Voti.
Os habitantes renovam as promessas do Batismo, renunciando ao demônio, às suas obras e pompas, e recitando o Credo Apostólico.
O vínculo da graça rompe o laço da possessão.
IV. De cautelis contra reversionem infestationis.
(col. 394B–395B)
Depois de purificado o lugar, convém observar três
cautelas principais:
- Custodia linguae.
Evitar palavras de ira, blasfêmia ou desespero, pois a língua é porta por onde o espírito retorna. - Custodia sensuum.
Não se deve permitir músicas profanas, imagens lascivas ou jogos de azar na casa purificada, porque o demônio entra pelo prazer. - Custodia fidei.
Os moradores devem comungar frequentemente e manter sinais visíveis da fé — cruz, imagem de Cristo, relíquia autêntica — para que o inimigo veja a marca do Senhor.
Santo Agostinho (Enarrationes in Psalmos,
XC):
“Fides est murus inexpugnabilis contra daemonem.” —
“A fé é muralha inexpugnável contra o demônio.”
V. De exemplis et eventibus recentibus.
(col. 395C–396A)
Guazzo relata que em Milão, uma casa de
comerciantes, infestada durante vinte anos, cessou os ruídos apenas quando se
descobriu sob o assoalho pequena caixa com pergaminho escrito: “Servus sum
Belzebub.”
Queimado o pergaminho com exorcismo, os sons cessaram.
Noutra aldeia da Ligúria, um mosteiro desabitado
foi restaurado; e, após a bênção episcopal, os monges ouviram à noite vozes que
recitavam salmos invertidos.
O prior, em vez de temer, respondeu cantando o Te Deum; e desde então o
silêncio foi perpétuo.
Conclusio.
(col. 396B)
Conclui-se, pois, que as infestações persistentes
não resistem à perseverança na oração e à presença do sacramento;
que a fé constante é espada contra o inimigo oculto;
e que nenhum lugar é profano onde o Nome de Cristo é pronunciado com pureza de
coração.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Mt 12,
44–45):
“Revertitur spiritus immundus, sed non invenit
vacuum, quia ibi habitat Deus.” — “O espírito imundo volta, mas não encontra
vazio, porque ali habita Deus.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 396B)
CAPUT L — De
obsessionibus hominum, animalium et rerum domesticorum.
Sobre as obsessões de homens, animais e objetos
domésticos.
(col. 397A–406B)
Depois de falarmos das infestações dos lugares e
casas, resta tratar das obsessões — isto é, das aflições pelas quais o
demônio atormenta homens, animais e objetos, sem possuir-lhes
propriamente o corpo, mas perturbando-os externamente por tentação, medo ou
ruído.
Dizem os doutores que a obsessão é distinta da possessão: nesta, o demônio
ocupa interiormente o corpo; naquela, o circunda e o oprime por fora.
Santo Tomás (Summa
Theologiae, I, q.114, art.1) define:
“Obsessiones daemonum sunt motus exteriores, quibus
sensus hominum turbantur.”
“As obsessões dos demônios são movimentos exteriores pelos quais os sentidos
humanos são perturbados.”
I. De obsessionibus hominum.
(col. 397B–400A)
O demônio pode obsidiar o homem de muitos modos:
por imagens, ruídos, sonhos ou aflições contínuas.
Essas obsessões, embora não sejam possessões, produzem grandes sofrimentos, e
às vezes levam à desesperação, se não forem discernidas.
- Per visiones et phantasmata.
O demônio apresenta ao homem imagens horríveis ou enganosas, tanto acordado quanto em sonho, para enfraquecer a razão.
Muitas pessoas veem vultos ou ouvem vozes em horas de solidão; e se crêem nelas, abrem porta à opressão espiritual.
São Gregório Nazianzeno diz:
“Daemon
primum terret, deinde persuadet.” — “O demônio primeiro amedronta, depois
persuade.”
- Per sensus et motus
corporis.
O demônio pode causar peso no peito, torpor dos membros, zumbidos ou dores sem causa, a fim de fazer crer em doença natural.
Em Milão, uma mulher sentia toda noite pancada invisível no ombro esquerdo; ao ser aspergida com água benta, cessou o tormento. - Per tristitiam et desperationem.
Há obsessão sem figura, mas interior — quando o espírito maligno envolve o homem em tristeza contínua, levando-o a crer-se abandonado por Deus.
Essa é a mais perigosa, porque conduz à perda da fé.
Santo Agostinho chama-a “umbra mortis mentis” — “a sombra da morte da mente.”
O remédio é a confissão, a comunhão frequente e a
meditação da Paixão de Cristo, pois o amor perfeito lança fora o medo.
II. De obsessionibus animalium.
(col. 400B–403A)
O poder do demônio estende-se também aos animais,
especialmente aos domésticos, por serem próximos ao homem.
Não que possuam alma racional, mas porque sua matéria viva serve de instrumento
sensível ao espírito imundo.
- Per agitationem bestiarum.
Às vezes, cavalos, bois ou cães tornam-se furiosos sem causa visível, quebram jugos, uivam ou se atiram ao fogo.
Guazzo observa que o demônio usa tais fúrias para espantar os homens e destruir suas colheitas.
Em Pavia, 1604, um estábulo inteiro foi abalado por noite inteira; ao amanhecer, achou-se cruz desenhada invertida sob o chão.
Queimada a terra e benzo o local, tudo cessou. - Per sterilitatem gregum.
O demônio também pode esterilizar vacas, ovelhas e aves, impedindo a geração ou corrompendo o leite e os ovos.
Esses males, comuns entre camponeses, são geralmente causados por feitiço de inveja.
A bênção dos rebanhos e o sinal da cruz sobre os celeiros dissipam tais operações. - Per mortem repentinam animalium.
Quando muitos animais morrem subitamente e o ar é puro, suspeita-se de malefício.
O remédio é queimar o corpo do primeiro morto com sal bento e rezar o Miserere três vezes.
Santo Antônio de Pádua expulsou demônios de um
campo onde os bois se matavam uns aos outros, apenas traçando no chão o sinal
da cruz.
III. De obsessionibus rerum domesticorum.
(col. 403B–405A)
Os demônios, não podendo sempre tocar o homem ou o
animal, movem às vezes os objetos domésticos, para inquietar e induzir
ao medo.
Essas obsessões são mais comuns em casas onde houve feitiços ou juramentos
falsos.
— Panelas que se movem sozinhas;
— móveis que caem sem vento;
— relógios que param na mesma hora;
— espelhos que se turvam ao se recitar o Credo;
— e ruídos metálicos repetidos sem causa física.
Tudo isso pertence à categoria das perturbações
objetais, em que o demônio age sobre a matéria inanimada apenas para turvar
o espírito.
Em Verona, um crucifixo caía toda noite da parede;
descobriu-se depois que fora colocado sobre pergaminho com sinal de pacto.
Removido o papel, cessaram as quedas.
Santo Gregório recorda:
“In rebus inertibus daemon mentem hominis tentat.”
— “Nas coisas inertes o demônio tenta a mente do homem.”
IV. De remediis generalibus contra omnes
obsessiones.
(col. 405B–406A)
Os remédios gerais são quatro:
- Confessio et Communio.
A alma purificada é escudo contra o mal exterior.
Onde há comunhão frequente, não há poder do inimigo. - Aqua benedicta et oratio.
A aspersão de água benta e a oração diária dissipam o ar espiritual do demônio.
O Salmo 90 e o Benedictus são especialmente eficazes. - Invocatio Nominis Iesu et Mariae.
O Nome de Jesus causa tormento aos demônios, e o de Maria os dispersa.
Assim, os santos recomendam que se diga: “Jesus et Maria, adjuvate me.” - Exorcismus rerum.
Quando objetos ou animais são suspeitos de obsessão, devem ser exorcizados com a fórmula:
“Adjuro te,
creatura Dei, ut repellas omnem spiritum malignum et redeas ad usum hominis.”
Esses remédios, praticados com fé, restauram a
ordem e dissipam o medo, porque o demônio é fraco diante da perseverança.
Conclusio.
(col. 406B)
Conclui-se que as obsessões dos homens, animais e
coisas são efeitos reais da inveja infernal, mas impotentes contra a fé viva;
que todo medo é dissolvido pelo Nome de Cristo;
e que nada há no universo que possa permanecer sob poder do demônio, quando é
tocado pela cruz.
Assim se cumpre o que diz o Apóstolo (Rm 8, 38–39):
“Neque mors, neque vita, neque creatura ulla
poterit nos separare a caritate Dei.”
“Nem a morte, nem a vida, nem criatura alguma poderá separar-nos do amor de
Deus.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 406B)
CAPUT LI —
De fascinationibus oculorum et aurium.
Sobre as fascinações dos olhos e dos ouvidos.
(col. 407A–416C)
Depois de tratar das obsessões que o demônio exerce
sobre homens e coisas, convém agora investigar as fascinações — aquelas
operações sutis pelas quais o inimigo engana os sentidos, principalmente
os olhos e os ouvidos, para iludir a alma com falsas aparências.
Essas fascinações são antigas como o próprio pecado, pois o demônio sempre
seduz pela visão e pelo som, imitando o modo como Eva foi enganada no paraíso:
primeiro olhou, depois ouviu, e por fim creu na mentira.
Santo Agostinho (De Genesi ad Litteram, XI,
9) escreve:
“Visus et auditus sunt viae primordiales
tentationis.”
“A visão e a audição são as vias primeiras da tentação.”
I. De fascinatione oculorum.
(col. 407B–410A)
A fascinação dos olhos é a operação pela
qual o demônio produz, por meio de imagens ou vapores, espécies falsas que
penetram a pupila e enganam o entendimento.
Não muda a realidade das coisas, mas a percepção delas.
- Per species illusorias.
O demônio, movendo o ar entre o objeto e o olhar, pode formar figuras de homens, animais ou luzes, que desaparecem de súbito.
Assim confundiu os magos do Egito, quando as serpentes de Moisés pareceram idênticas às deles.
Tais aparições não têm substância, mas imagem.
Santo Tomás
diz (II–II, q.178, art.1):
“Daemones
formant phantasmata ex aere condensato.” — “Os demônios formam fantasmas a
partir do ar condensado.”
- Per fascinationem maleficam.
Certas pessoas, por inveja ou pacto, lançam malefício pelo olhar — o chamado olhar mau, que os antigos chamavam oculus fascinans.
Essa virtude é real, não porque o olho tenha poder próprio, mas porque o demônio se serve dele como instrumento.
Assim, um só olhar pode causar tristeza, febre ou esterilidade, quando o diabo inflama o ar que passa entre o olhar e o objeto.
Santo
Basílio adverte:
“Oculus
malus est janua daemonis.” — “O olho mau é porta do demônio.”
- Per specula et imagines.
As superfícies polidas — espelhos, cristais, metais — servem muitas vezes de meio para as ilusões.
O demônio ama o brilho e o reflexo, porque neles esconde o nada sob forma.
Por isso os feiticeiros usam espelhos mágicos para “ver” espíritos, e os simples, ao olhar neles com curiosidade, veem o que o inimigo lhes quer mostrar.
Em Florença,
um jovem morreu de terror após ver no espelho figura que o chamava pelo nome; o
espelho, examinado, trazia caracteres hebraicos gravados no verso.
O remédio contra a fascinação dos olhos é o sinal
da cruz, o uso da água benta e a oração do Salmo 120: “Levavi
oculos meos in montes, unde veniet auxilium mihi.” — “Elevo meus olhos aos
montes, de onde virá o meu socorro.”
II. De fascinatione aurium.
(col. 410B–413B)
A fascinação dos ouvidos é a operação pela
qual o demônio, por meio do ar sonoro, engana o homem com palavras falsas,
vozes simuladas e sons invisíveis.
Assim como perverte a luz, corrompe também o som.
- Per voces fictas.
O demônio fala às vezes com voz humana, imitando conhecidos ou parentes, para enganar a atenção e suscitar medo.
São Jerônimo conta que, em um mosteiro da Síria, ouvia-se voz de monge falecido chamar seus companheiros, e quem a seguia morria de repente.
O exorcista ordenou que se respondesse apenas: “Dominus est salvator meus.” — e o fenômeno cessou. - Per cantus et sonos dulces.
O inimigo usa também melodias e cânticos para distrair a alma da oração.
Durante a peste de Milão, ouviam-se à noite vozes femininas entoando salmos invertidos; e quem as escutava sentia torpor e desejo.
O ouvido é o caminho mais fácil para o enfeitiçamento do coração, porque a música atua sobre os humores. - Per verba inspirata.
O demônio pode insinuar frases à imaginação do homem, fazendo-o crer que são inspirações divinas.
Assim nascem falsas revelações e falsas profecias.
Guazzo adverte que muitas “visões auditivas” de mulheres extáticas provêm desse engano: acreditam ouvir o anjo, e é o demônio que fala com voz de luz.
Santo João
da Cruz, discernindo tais fenômenos, escreve:
“Non in
voce, sed in silentio Deus loquitur.” — “Não é na voz, mas no silêncio que Deus
fala.”
III. De signis fascinationis sensuum.
(col. 413C–415A)
Os sinais da fascinação dos olhos e ouvidos são:
— visão de figuras ou luzes em lugares vazios;
— sons e vozes sem causa;
— mudança súbita de humor após olhar ou ouvir algo;
— distração contínua durante a oração;
— e sobretudo repulsa ao sagrado quando se vê ou ouve palavras divinas.
Esses sinais distinguem-se do delírio natural pela
constância e pelo efeito espiritual: o fascinado evita a missa, o canto sagrado
e os rostos piedosos.
O corpo sente leveza e vertigem, a mente, confusão e melancolia.
IV. De remediis contra fascinationes.
(col. 415B–416A)
Os remédios são espirituais e corporais.
- Spiritualia.
— A confissão frequente e o uso dos sacramentos;
— a oração do Salmo 90 e do Credo;
— e a invocação da Santíssima Virgem, chamada pelos Padres Speculum sine macula — “Espelho sem mancha”, porque reflete a luz divina sem ilusão. - Corporalia.
— O uso da água benta sobre os olhos e ouvidos ao despertar e antes de dormir;
— o sinal da cruz sobre os sentidos;
— e a abstinência de curiosidade em visões, sons e rumores.
Deve-se fechar os ouvidos à novidade e os olhos à vaidade.
Santo Bernardo escreve (Sermones super Cantica,
43):
“Qui custodit oculos et aures, custodit totum
corpus.” — “Quem guarda os olhos e os ouvidos, guarda todo o corpo.”
Conclusio.
(col. 416C)
Conclui-se que as fascinações dos olhos e ouvidos
são a porta mais sutil da ilusão demoníaca;
que o demônio reina sobre o ar da visão e do som, mas não sobre o coração purificado;
e que a humildade e a vigilância são maiores que toda arte mágica.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Mt 6,
22–23):
“Lucerna corporis tui est oculus... si autem oculus
tuus fuerit simplex, totum corpus tuum lucidum erit.”
“A lâmpada do teu corpo é o teu olho... se o teu olho for puro, todo o teu
corpo será luminoso.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 416C)
CAPUT LII —
De obsessionibus nocturnis et incubis modernis.
Sobre as obsessões noturnas e os íncubos modernos.
(col. 417A–428C)
Entre todas as formas de opressão demoníaca,
nenhuma é mais antiga, mais difundida e mais temida que as obsessões
noturnas, chamadas também incubos e súcubos, pelas quais o
inimigo atormenta o homem durante o sono, ora oprimindo-lhe o corpo, ora
corrompendo-lhe a imaginação e os sentidos.
Desde os tempos dos Patriarcas até nossos dias, há testemunhos constantes
dessas manifestações, que os filósofos naturais atribuem à imaginação e os
santos à permissão divina.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XV, 23)
declara:
“Non sunt somnia, sed
praesentiae daemonum.”
“Não são sonhos, mas presenças dos demônios.”
E Santo Tomás, (Summa Theologiae, I, q.51,
art.3*):
“Daemones possunt agere supra corpus hominis per
phantasiam dormientis.”
“Os demônios podem agir sobre o corpo humano através da fantasia do
adormecido.”
I. De natura et distinctione incuborum et
succuborum.
(col. 417B–419B)
Os antigos doutores distinguem íncubos e súcubos
não por espécie, mas por operação.
O mesmo espírito, mudando de forma, atua de modo diverso conforme o sexo da
vítima:
— chama-se súcubo quando, tomando forma
feminina, engana o homem;
— e íncubo quando, tomando forma masculina, oprime a mulher.
Tais demônios pertencem à ordem dos espíritos
aéreos, leves e sutis, capazes de condensar o ar em corpo aparente.
Não possuem carne verdadeira, mas forma ilusória dotada de calor e peso
suficientes para enganar os sentidos.
Santo Isidoro de Sevilha (Etymologiae, VIII,
9) escreve:
“Incubi dicuntur, quod incumbant corporibus
mulierum dormientium.” — “Chamam-se íncubos porque se deitam sobre os corpos
das mulheres adormecidas.”
Os Padres não negam o fenômeno, mas o interpretam
como invasão espiritual por meio da imaginação carnal, em que o demônio
excita os apetites e humores para induzir ao pecado.
II. De modis obsessionis nocturnae.
(col. 419C–422A)
As obsessões noturnas se realizam de quatro modos
principais:
- Per oppressiones corporales.
O adormecido sente peso terrível no peito, falta de ar e imobilidade, como se alguém o comprimisse.
Essa opressão não é sonho, mas contato de espírito maligno que oprime o corpo adormecido.
A medicina chama a isso paralysis nocturna, mas a experiência mostra que há casos em que o peso desaparece ao sinal da cruz, e o doente vê forma sombria fugir. - Per delectationes illicitas.
O demônio, movendo os humores e imagens, provoca sensações venéreas durante o sono, levando o homem a cair em poluição ou fantasia impura.
São Jerônimo, em carta a Eustóquio, confessa que mesmo os monges, puríssimos, são tentados assim.
Esses movimentos não são pecado quando involuntários, mas devem ser combatidos com oração e jejum. - Per aspectus imaginarios.
Às vezes o espírito se mostra sob forma de pessoa bela e familiar, fingindo amor e devoção.
É o engano mais perigoso, porque mistura o desejo com a piedade.
Muitos visionários e falsas santas caíram nessa cilada, crendo conversar com anjos. - Per verbera et terrores.
Em certos casos, o demônio fere o corpo adormecido, deixa marcas e hematomas, ou lança gritos no ouvido, para despertar o medo.
Esses tormentos cessam ao ser pronunciado o nome de Jesus e Maria.
III. De causis permissivis.
(col. 422B–424A)
Deus permite as obsessões noturnas por três causas
principais:
- Ad correptionem luxuriae.
Para punir e corrigir o pecado da carne, o Senhor entrega o homem à sua própria imaginação, como espelho de sua culpa.
O espírito maligno age apenas sobre o que já está predisposto pela concupiscência. - Ad probationem castitatis.
Os santos são provados por tais tentações para que brilhe sua virtude.
Santo Martinho de Tours foi assim assaltado durante quarenta noites e venceu rezando o Credo. - Ad humilitatem spiritus.
Mesmo os puros são provados para não se gloriarem; o ataque noturno recorda-lhes que a carne permanece sujeita à queda.
IV. De signis et discernimento.
(col. 424B–426A)
Os sinais da obsessão noturna são:
— despertar súbito com opressão no peito e frio de
ar;
— visão de sombra ou figura ao lado do leito;
— sonhos impuros repetidos com as mesmas imagens;
— e marcas no corpo que desaparecem em poucas horas.
Mas há de se discernir entre natural e espiritual:
quando a causa é médica, o corpo conserva o cansaço e o sono pesado;
quando é demoníaca, há terror espiritual e repulsa às coisas santas.
Santo Tomás ensina:
“In tentatione carnis, diabolus non intrat corpus,
sed per imaginationem movet humores.” — “Na tentação da carne, o demônio não
entra no corpo, mas move os humores pela imaginação.”
V. De remediis contra obsessiones nocturnas.
(col. 426B–428A)
- Oratio ante somnum.
Rezar o Credo, o Ave Maria e o Salmo 90 antes de deitar-se, pedindo ao Anjo da Guarda proteção sobre o corpo e a alma. - Signum Crucis.
Fazer o sinal da cruz sobre o leito e as cobertas, dizendo:
“Crux
Christi, protegat me a somniis et phantasmatibus noctis.” — “A cruz de Cristo me proteja dos sonhos e fantasmas da noite.”
- Aqua benedicta.
Aspergir o quarto e o travesseiro com água benta, especialmente nas noites de inquietação. - Jejunium et continentia.
O jejum e a moderação dos sentidos reduzem a matéria sobre a qual o demônio age.
O ventre saciado é campo fértil da tentação. - Lectio spiritualis.
Ler antes de dormir um trecho da Escritura ou da Imitação de Cristo purifica a imaginação. - Exorcismus in gravibus casibus.
Quando as obsessões persistem, deve-se chamar sacerdote para exorcismo breve, recitando:
“Exorcizo
te, spiritus impure, ut desinas vexare creaturam Dei.”
Guazzo
recomenda repetir o rito por três noites consecutivas.
Conclusio.
(col. 428C)
Conclui-se que as obsessões noturnas são operações
reais do inimigo, permitidas para correção e prova;
que o remédio é a pureza do coração e o uso do Nome de Cristo;
e que nenhum espírito das trevas pode permanecer onde se pronuncia com fé o Pater
Noster.
Assim se cumpre o que diz o Salmo 90:
“Non timebis a timore
nocturno, a sagitta volante in die.”
“Não temerás o terror noturno, nem a flecha que voa de dia.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 428C)
CAPUT LIII —
De daemonibus meridianis et phantasmatibus diei.
Sobre os demônios do meio-dia e as fantasias do
dia.
(col. 429A–438B)
Tendo tratado das tentações noturnas, é justo
considerar agora as ilusões do dia, pelas quais o inimigo opera não na
sombra do sono, mas na claridade da vigília.
A Escritura fala de “daemonio meridiano” (Salmo 90, 6), significando
aquele espírito que ataca à luz plena, quando a mente se julga desperta e
segura.
Pois o demônio não teme o sol, mas a humildade; e onde há orgulho da razão, aí
lança a luz falsa de suas fantasias.
Santo Ambrósio comenta:
“Daemon meridianus est spiritus superbiae et vana
gloriae.”
“O demônio do meio-dia é o espírito da soberba e da vanglória.”
I. De natura daemonis meridiani.
(col. 429B–431A)
O demônio meridiano é assim chamado porque
opera quando o homem está mais desperto e ativo, aproveitando-se do excesso de
confiança e do cansaço da alma na metade do dia.
Age não nas trevas, mas na luz aparente, revestido de forma de bem.
Ele não oprime o corpo como o noturno, mas infla o
espírito com imaginações de santidade, ciência ou poder.
Enquanto o da noite engana pelo medo, o do meio-dia engana pela vaidade.
Santo Gregório Magno (Moralia in Job, lib.
XXXI):
“Sub specie lucis venit, cum mentem gloriosam
cogitatione inflat.”
“Vem sob a aparência de luz, quando enche a mente de pensamento glorioso.”
Assim, muitos justos, após vencerem tentações da
carne, caem nas da inteligência, crendo-se iluminados por Deus quando são
tocados pelo anjo da soberba.
II. De phantasmatibus diei.
(col. 431B–434A)
As fantasias do dia são ilusões espirituais
que nascem do orgulho, da fadiga ou da sutileza demoníaca.
Podem ser externas, quando o homem vê figuras e sinais no ar, ou internas,
quando o pensamento se enche de visões e discursos que julga divinos.
- Per visionem lucis falsae.
O demônio às vezes aparece como luz viva, esfera brilhante ou raio que acompanha o homem em oração.
Essa luz produz gozo e êxtase, mas deixa a alma seca depois.
A luz de Deus pacifica; a do inimigo exalta e consome. - Per vocem interioris suggestionis.
Muitos creem ouvir a voz de Deus no coração, mas é o espírito do erro que fala com doçura e pressa.
O verdadeiro Espírito fala com silêncio e demora.
Santo João da Cruz advertiu:
“Diabolus
loquitur cum dulcedine et impellit ad opus sine pace.” — “O diabo fala com
doçura e impele à ação sem paz.”
- Per revelationes simulatas.
O demônio inspira interpretações de Escritura, promessas de glória, profecias ou mandatos secretos.
Tais revelações começam santas e terminam em confusão, porque o orgulho é sua raiz. - Per sensum illusionis exterioris.
Às vezes o homem vê cruzes no céu, rostos nas nuvens ou vultos nas paredes, e toma-os por sinais divinos.
Guazzo adverte que o demônio usa o ar, como pintor invisível, para mover os simples à idolatria da imagem.
III. De causis permissivis.
(col. 434B–436A)
Deus permite os demônios do meio-dia por três
causas:
- Ad humilitatem sapientium.
Para que o homem de ciência reconheça que há luz superior à da razão. - Ad exercitium discretionis.
Para que os santos aprendam a discernir entre luz e treva, e não tomem o espírito do mundo pelo Espírito de Deus. - Ad condemnationem hypocritarum.
Para que se revele o coração falso, que busca glória de santidade e não a verdade.
Pois o demônio do meio-dia é mestre da dissimulação espiritual.
Santo Agostinho escreve (Sermo 237):
“Diabolus in angelum lucis transfiguratus sanctos
probat, superbos perdit.” — “O diabo, transformado em anjo de luz, prova os
santos e perde os soberbos.”
IV. De signis daemonis meridiani.
(col. 436B–437A)
Os sinais pelos quais se conhece a ação do demônio
meridiano são:
— pressa interior sob pretexto de zelo;
— vaidade espiritual e desejo de ser visto como santo;
— impaciência e desprezo pelos conselhos;
— interpretação singular da Escritura;
— e gosto pelo maravilhoso mais que pelo humilde.
Quem sente em si luz que exclui a obediência, deve
suspeitar de si mesmo.
A luz de Deus inclina à mansidão; a do inimigo, à presunção.
Santo Bernardo:
“Lucifer cadit in meridie, quia videt se lucentem.”
— “Lúcifer cai ao meio-dia, porque se vê brilhante.”
V. De remediis contra phantasmata diei.
(col. 437B–438A)
- Discretio spirituum.
Deve-se provar todo espírito pela regra da fé e pela obediência à Igreja.
Nenhuma revelação é verdadeira se não conduz à humildade. - Silentium et obedientia.
O silêncio corta o alimento das ilusões.
O demônio fala ao que fala consigo mesmo, e foge do que escuta e obedece. - Oratio sine imaginibus.
Orar no escuro, sem imagens sensíveis, porque o inimigo se infiltra pela forma. - Lectio Scripturae cum glossa sanctorum.
A leitura da Escritura deve sempre ser acompanhada da interpretação dos santos, nunca isolada. - Sacramenta et humilitas.
A confissão e a comunhão frequentes mantêm o coração na luz verdadeira.
O demônio meridiano não suporta o olhar de Maria, porque nela a luz se fez obediência.
Conclusio.
(col. 438B)
Conclui-se que os demônios do meio-dia são espíritos
de soberba e vaidade, que operam à luz da razão para apagar a luz da graça;
que as fantasias do dia são mais perigosas que os terrores da noite, porque
enganam sob aparência de santidade;
e que a humildade, o silêncio e a obediência são escudos infalíveis contra
eles.
Assim se cumpre o que diz o Salmo 90:
“Non timebis a timore nocturno... neque a daemonio
meridiano.”
“Não temerás o terror noturno, nem o demônio do meio-dia.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 438B)
CAPUT LIV —
De fascinationibus somniorum et revelationibus fallacibus.
Sobre as fascinações dos sonhos e as revelações
enganosas.
(col. 439A–448B)
Depois de tratarmos das tentações do meio-dia,
convém agora investigar as ilusões da noite espiritual, pelas quais o
inimigo engana a alma durante o sono, sob aparência de revelação ou profecia.
Os sonhos, sendo movimentos da imaginação, são como espelhos onde o demônio
pode projetar imagens falsas, quando a razão dorme e o juízo cede ao sentido.
Santo Agostinho (De Divinatione Daemonum,
cap. 5):
“In somniis daemones mentem capiunt, dum custodiam
rationis sopiunt.”
“Nos sonhos os demônios capturam a mente, quando adormecem a guarda da razão.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, II–II,
q.95, art.6):
“Somnia possunt a Deo vel a daemonibus vel ex causa
naturali provenire.”
“Os sonhos podem provir de Deus, dos demônios, ou de causa natural.”
I. De generibus somniorum.
(col. 439B–441A)
Há três espécies principais de sonhos: naturais,
divinos e diabólicos.
- Naturais, quando procedem de impressões dos sentidos,
de vapores do sangue e de lembranças recentes.
Tais sonhos são confusos, sem ordem nem luz, e cessam com o despertar. - Divinos, quando Deus, por ministério dos anjos,
manifesta ao homem algo útil à salvação ou ao bem comum.
Assim foi o sonho de José, que o advertiu a fugir para o Egito. - Diabólicos, quando o demônio, tomando
forma luminosa, insinua imagens, promessas e revelações falsas para
enganar o entendimento e a fé.
Esses são os mais perigosos, porque imitam os divinos em aparência de santidade.
Santo João Cassiano escreve (Collationes,
IX, 29):
“Non omnis visio dormientis est vera, quia daemon
somnum humanum intrans, veritatem mentitur.”
“Nem toda visão do adormecido é verdadeira, porque o demônio, entrando no sono
do homem, mente a verdade.”
II. De modis fascinationis somniorum.
(col. 441B–444A)
O demônio fascina os sonhos de quatro modos:
- Per imagines delectabiles.
Apresenta cenas de prazer, gozo ou poder, para mover a vontade pela fantasia.
Assim faz crer ao homem que recebeu graça especial, quando apenas desperta a vaidade. - Per imagines terribiles.
Mostra incêndios, guerras, cadáveres e demônios, para infundir medo e desespero.
O medo noturno, diz o Salmo, é obra do inimigo que ronda em trevas. - Per imagines religiosas.
Aparece sob forma de anjo, de Cristo, ou da Virgem, e dita palavras de fé, mas mistura nelas erro sutil.
Guazzo adverte que, se a visão ordena algo contra a obediência ou a prudência, é certamente demoníaca. - Per illusionem lucis.
Às vezes o homem sonha com grande luz e sente calor espiritual, acreditando ter visto o céu; mas ao acordar, conserva soberba e inquietude.
A luz de Deus deixa paz; a do demônio, perturbação.
III. De revelationibus fallacibus.
(col. 444B–446A)
As revelações enganosas são mais temíveis
que os sonhos, porque ocorrem também em vigília, e parecem dons do Espírito
Santo.
São as visões, locuções interiores e êxtases falsos, que o inimigo produz para
enganar os piedosos e corromper a doutrina.
- Per locutionem internam.
O demônio fala na imaginação como se fosse voz interior, e persuade com citações da Escritura mal aplicadas.
Muitas heresias nasceram assim, quando alguém preferiu a voz interior à da Igreja. - Per revelationem temporalium.
Prediz coisas futuras de ordem natural — chuvas, doenças, mortes — para ganhar crédito, e depois introduz erro espiritual. - Per visiones extaticas.
Em certos êxtases, o corpo perde o sentido e o espírito parece elevado à luz; mas essa luz é circular, sem centro, e o arrebatado não retém humildade.
O demônio sabe imitar a doçura do céu, mas não a obediência.
Santo Inácio de Loyola, nas Regras de
Discernimento, ensina:
“Spiritus malignus sub specie boni incipit, et in
fine trahit in suum latus.” — “O espírito maligno começa sob aparência de bem,
e no fim arrasta para o seu lado.”
IV. De signis falsarum revelationum.
(col. 446B–447A)
Os sinais das revelações falsas são:
— impaciência e curiosidade pelo invisível;
— desejo de comunicar as visões;
— repulsa à confissão e ao juízo do diretor espiritual;
— amor pelo singular e desprezo pelos doutores;
— e sobretudo a perda da paz interior.
A revelação verdadeira se reconhece pela humildade,
pelo silêncio e pela caridade;
a falsa, pela vaidade, pela inquietação e pela desobediência.
Santo João da Cruz afirma:
“Quanto mais uma alma busca visões, tanto mais se
afasta de Deus, que habita nas trevas da fé.”
V. De remediis contra fascinationes et revelationes
falsas.
(col. 447B–448A)
- Oratio pura.
Rezar com simplicidade, sem desejar sentir ou ver.
A pureza da fé cega é luz que o demônio não pode penetrar. - Obedientia Ecclesiae.
Submeter toda revelação ao confessor ou ao bispo, pois Deus não fala contra sua própria ordem. - Lectio sanctorum.
Ler as vidas dos santos que sofreram tentações de revelações — como Catarina de Sena e Teresa de Jesus — ensina a discernir a luz falsa. - Jejunium et abstinentia.
O corpo saciado gera sonhos confusos; o corpo moderado dorme em paz. - Signum Crucis et Aqua Benedicta.
Fazer o sinal da cruz antes de dormir e aspergir o leito afasta as imagens ilusórias. - Silencium post somnia.
Não contar os sonhos nem buscar seu sentido, pois o demônio se nutre da curiosidade.
Conclusio.
(col. 448B)
Conclui-se que as fascinações dos sonhos e as
revelações enganosas são os instrumentos mais sutis do inimigo, que, não
podendo dominar pela força, seduz pela aparência da verdade;
que o único escudo é a fé simples e obediente;
e que o homem deve crer mais na palavra da Igreja do que em mil vozes
interiores.
Assim se cumpre o que diz o Eclesiástico (34, 7):
“Somnia vana et mendacia multos decepere.”
“Sonhos vãos e mentiras enganaram a muitos.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 448B)
CAPUT LV —
De illusionibus spirituum familiarum et pseudoangelorum lucis.
Sobre as ilusões dos espíritos familiares e dos
falsos anjos de luz.
(col. 449A–460B)
Depois de expor as fascinações dos sonhos e as
revelações enganosas, é necessário tratar das ilusões mais perigosas,
que procedem dos chamados espíritos familiares e dos falsos anjos de
luz, pelos quais o inimigo se disfarça sob aparência de amizade, sabedoria
ou revelação celeste.
Estes não se mostram com terror, mas com suavidade; não pela força, mas pelo
engano.
Santo Paulo, escrevendo aos Coríntios (2Cor 11,
14), adverte:
“Ipse Satanas transfigurat se in angelum lucis.”
“O próprio Satanás se transfigura em anjo de luz.”
E Santo Tomás (Summa Theologiae, I, q.111,
art.2) explica:
“Daemones possunt apparere
sub specie bonorum spirituum, ad decipiendos simplices.”
“Os demônios podem aparecer sob forma de bons espíritos, para enganar os
simples.”
I. De spiritibus familiaribus.
(col. 449B–452A)
Chamam-se espíritos familiares aqueles que
se vinculam a certas pessoas ou casas, não com violência, mas com convivência
enganosa.
Prometem auxílio, conselho, revelação e defesa, mas cobram depois a alma como
preço do trato.
- Per amicitiam simulata.
O espírito se apresenta como amigo invisível, fala em sonhos ou por ruídos suaves, anuncia pequenas coisas verdadeiras e conquista confiança.
Assim seduz o homem piedoso com aparência de proteção.
Muitos magos e adivinhos têm tais espíritos, que chamam genius ou familiaris, e dizem que os servem.
Mas em verdade são servos do inferno disfarçados.
Santo
Agostinho (De Civitate Dei, IX, 9) declara:
“Spiritus
familiares non sunt amicos, sed captores animarum.”
“Os espíritos familiares não são amigos, mas caçadores de almas.”
- Per consilia occulta.
Dão respostas, sugestões ou inspirações sobre coisas ocultas, fingindo zelo pela virtude ou pela ciência.
No início aconselham o bem, depois introduzem erro sutil e conduzem ao orgulho.
Assim enganaram muitos alquimistas e astrólogos que julgavam falar com “inteligências puras”. - Per praestigias et parvas virtutes.
Fazem mover objetos, curam feridas, descobrem ladrões, ou trazem notícias distantes, para fortalecer a fé no pacto.
Tudo isso é feito por manipulação do ar e do fogo, não por milagre.
Guazzo nota
que muitos feiticeiros invocam esses espíritos sob nomes cristãos falsos,
dizendo “Sanctus Georgius” ou “Angelus custos”, mas na verdade
chamam demônios.
II. De pseudoangelis lucis.
(col. 452B–456A)
Os falsos anjos de luz são espíritos
superiores em malícia, que se disfarçam em esplendor e falam com tom de
santidade.
Enganam sobretudo os devotos e os religiosos que buscam experiências
espirituais.
- Per aspectum luminosum.
Aparecem cercados de claridade, às vezes com forma de Cristo ou de anjo resplandecente.
Mas sua luz não consola: inflama e confunde.
O verdadeiro anjo inspira humildade; o falso, admiração de si mesmo. - Per doctrinam spiritualem.
Falam de perfeição, pureza e amor, mas afastam da cruz e da obediência.
Dizem: “Deus está em ti, não precisas de mestres.”
Assim fundam seitas e destróem a hierarquia. - Per extasim et sensum divinum.
Produzem êxtases e lágrimas, fazem sentir calor no peito e sabor na oração, mas tudo é movimento dos humores.
Santo João da Cruz chama a isso “gustus spiritus fallacis”, o gosto do espírito enganador. - Per revelationes universales.
Falam de novos tempos, de eras do Espírito, e prometem pureza sem Igreja.
Assim surgem os falsos profetas que anunciam luz nova fora da Tradição.
Santo Inácio
de Loyola diz:
“Quando o
inimigo se transfigura em anjo de luz, começa por alma devota e termina em
desobediência.”
III. De causis permissivis.
(col. 456B–457B)
Deus permite as ilusões dos falsos anjos de luz
para três fins:
- Ad humilitatem sanctorum.
Para que os santos reconheçam sua fraqueza e não confiem nos sentidos. - Ad probationem discretionis.
Para que se exercite a virtude da discrição dos espíritos, que é rainha das virtudes interiores. - Ad poenam curiositatis.
Para punir os que buscam revelações e sinais em vez da fé pura.
Santo Agostinho:
“Curiosi spirituum merentur daemones pro
magistris.”
“Os curiosos dos espíritos merecem demônios por mestres.”
IV. De signis spirituum falsorum.
(col. 457C–459A)
Os sinais pelos quais se distingue o falso anjo de
luz são:
— fala com pressa e doçura desordenada;
— lisonjeia e exalta o interlocutor;
— repete palavras de Escritura fora de contexto;
— evita a cruz, o silêncio e a obediência;
— e deixa a alma inquieta e cativa.
Em contraste, o verdadeiro anjo fala pouco, com
simplicidade; não impõe, inspira; e a alma sente paz e desejo de sacramento.
Santo Bernardo:
“Spiritus Dei pacem operatur, spiritus falsus
admirationem sui.” — “O Espírito de Deus produz paz, o falso espírito,
admiração de si mesmo.”
V. De remediis contra illusiones.
(col. 459B–460A)
- Subiectio ad Ecclesiam.
Submeter toda visão ou locução à autoridade da Igreja.
Nenhum espírito é divino se não obedece à ordem divina. - Fuga curiositatis.
Não desejar ver nem ouvir nada extraordinário.
A fé cresce no escuro, a ilusão na luz sensível. - Oratio sine imaginatione.
Orar com palavras simples, evitando figuras e êxtases voluntários. - Confessio et humilitas.
Confessar logo qualquer movimento de vaidade e pedir conselho.
O demônio foge da alma transparente. - Signum Crucis et invocatio Mariae.
O falso anjo não suporta o nome da Virgem nem o sinal da cruz.
Diante deles, sua luz apaga-se como chama diante do vento.
Conclusio.
(col. 460B)
Conclui-se que os espíritos familiares e os falsos anjos
de luz são os mestres da ilusão espiritual;
que o demônio prefere enganar pela aparência do bem do que pelo mal manifesto;
e que a humildade, a obediência e o silêncio são muralhas contra sua astúcia.
Assim se cumpre o que diz o Apóstolo (1Jo 4, 1):
“Nolite omni spiritui credere, sed probate spiritus
si ex Deo sint.”
“Não creiais em todo espírito, mas provai se são de Deus.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 460B)
CAPUT LVI —
De maleficiis et pactis apertis cum daemonibus.
Sobre os malefícios e os pactos abertos com os
demônios.
(col. 461A–474C)
Depois de tratar das ilusões espirituais e dos
falsos anjos de luz, é necessário descrever as alianças manifestas que
certos homens fazem com os demônios, não apenas por tentação, mas por pacto
consciente e voluntário.
Esses pactos constituem o vértice da impiedade e o fundamento de todo
malefício.
São Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.96,
art.3):
“Pactum cum daemone fit dupliciter: expressum et
tacitum; expressum verbo, tacitum opere.”
“O pacto com o demônio se dá de dois modos: expresso, pela palavra, e tácito,
pela obra.”
E Santo Agostinho (De Doctrina Christiana,
II, 23):
“Omnis qui arte magica utitur, foedus cum inimico
animae pepigit.”
“Todo aquele que usa da arte mágica firmou aliança com o inimigo da alma.”
I. De natura et speciebus pacti daemonici.
(col. 461B–464A)
O pacto demoníaco é o acordo pelo qual o
homem entrega sua vontade ou algum poder legítimo a um espírito maligno, em
troca de auxílio, prazer, riqueza ou ciência.
Divide-se em expresso e implícito.
- Pactum expressum.
Realiza-se quando o homem invoca o demônio por nome, oferece-lhe juramento, sangue, ou escritura, e promete-lhe obediência.
O pacto pode ser verbis (por palavras) ou scriptis (por documento).
Muitos feiticeiros assinam com o próprio sangue o nome de seu espírito, como testemunho de submissão. - Pactum implicitum.
Consiste em praticar atos supersticiosos, acreditando receber poder oculto sem intenção de invocar o demônio, mas aceitando de fato sua cooperação.
Assim, quem usa fórmulas mágicas, amuletos, ou consulta adivinhos, já participa de pacto tácito, porque busca o efeito fora de Deus.
Santo João Crisóstomo:
“Qui fidit in incantationibus, pactum habet cum
hoste, etiamsi nesciat.”
“Quem confia em encantamentos tem pacto com o inimigo, ainda que o ignore.”
II. De ritu et forma pacti expressi.
(col. 464B–468A)
Os pactos expressos seguem, geralmente, rito imundo
e invertido, pelo qual o homem renega o batismo e profere votos contrários à
fé.
Guazzo descreve as formas observadas entre os feiticeiros:
- Professio contraria fidei.
O candidato pisa sobre a cruz, renuncia a Cristo, à Virgem e aos santos, e promete adorar o demônio.
A fórmula é dita em língua vulgar ou em palavras invertidas. - Oblatio corporis vel sanguinis.
Corta o braço ou o dedo, e oferece uma gota de sangue, símbolo da entrega total.
O demônio toca o ferimento, marcando-o com sinal que não desaparece. - Signatura pacti.
O pacto é escrito sobre pergaminho negro, assinado com o sangue, e depositado sobre altar profano ou entre as páginas de um livro invertido. - Convocatio spiritus.
O feiticeiro traça círculo no chão, invoca o nome infernal, e o espírito aparece em forma de sombra ou fumaça, exigindo homenagem.
Promete favores temporais em troca de obediência e silêncio.
Assim se consuma o mais terrível sacrílego, pois o
homem renuncia voluntariamente ao selo do batismo e assume o do inferno.
III. De effectibus pacti et maleficiorum.
(col. 468B–471A)
Os efeitos do pacto se manifestam em três ordens: espiritual,
corporal e exterior.
- Spirituales.
O pacto destrói a graça e submete a alma à servidão demoníaca.
O espírito adquire poder sobre a imaginação e os afetos, transformando o homem em instrumento de suas vontades. - Corporales.
O demônio concede ao pactário força, agilidade, resistência a ferimentos ou à dor, mas em troca consome lentamente a vitalidade.
Muitos magos morrem com o corpo corrompido e o sangue seco. - Exteriores.
Produz-se fama, riqueza, ou poder, mas tudo sob servidão.
Quando o prazo termina — que varia de sete a quarenta anos — o demônio exige o pagamento.
Alguns são levados de repente, outros morrem em desespero, outros enlouquecem antes do fim.
Exemplo: Um jovem de Parma, tendo prometido ao
demônio fidelidade por vinte anos, tornou-se rico e célebre; mas, ao completar
o prazo, achou-se seu corpo reduzido a cinzas sem fogo visível.
IV. De poena et damnatione pactariorum.
(col. 471B–473A)
A pena dos que fazem pacto com o demônio é dupla: temporal
e eterna.
- Temporalis.
Muitos sofrem tormentos ainda em vida: visões horríveis, vozes acusadoras, apodrecimento da carne e morte sem sacramentos.
O demônio, tendo obtido o domínio, os atormenta como escravos que despreza. - Aeterna.
Após a morte, suas almas descem ao inferno, e os demônios que serviram tornam-se seus algozes.
Assim se cumpre o que diz Isaías (28, 15):
“Percussimus
foedus cum morte, et pactum fecimus cum inferno.”
“Firmamos aliança com a morte e fizemos pacto com o inferno.”
Santo Pedro Damião acrescenta:
“Nullum pactum diaboli solvi potest nisi per
lacrimas et crucem.”
“Nenhum pacto do diabo pode ser desfeito senão pelas lágrimas e pela cruz.”
V. De remediis et solucione pacti.
(col. 473B–474B)
Há, todavia, remédio para o que se arrepende antes
da morte.
A misericórdia de Deus é maior que o pacto do inferno.
- Confessio integra.
O penitente deve revelar todo o pacto ao confessor, sem esconder palavra nem sinal.
A absolvição requer arrependimento perfeito e renúncia total ao demônio. - Abjuratio et exorcismus.
O sacerdote faz o penitente pronunciar a fórmula:
“Abjuro
Satanam, et pactum eius, et omnia opera tenebrarum.”
— “Renuncio a Satanás, ao seu pacto e a todas as obras das trevas.”
Depois impõe exorcismo solene sobre o corpo e a casa.
- Sacramenta et poenitentia publica.
O reconciliado deve receber os sacramentos com jejum e oração por quarenta dias, e se possível, mudar de morada. - Crux et nomen Mariae.
O demônio, vendo o sinal da cruz e ouvindo o nome da Virgem, perde o direito que julgava possuir.
Assim se rompe o laço infernal e a alma volta à luz
da graça.
Conclusio.
(col. 474C)
Conclui-se que os malefícios e pactos com os
demônios são a mais direta negação de Deus e a raiz de toda feitiçaria;
que o pacto é real e eficaz enquanto o homem o sustenta pela vontade;
mas que a penitência e a cruz têm poder de desfazê-lo, porque Cristo venceu o
inimigo na árvore da redenção.
Assim se cumpre o que diz o Apóstolo (Cl 2, 15):
“Exspoliavit principatus et
potestates, traduxit palam triumphans illos in semetipso.”
“Despojou os principados e potestades, e os expôs publicamente,
triunfando sobre eles em si mesmo.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 474C)
CAPUT LVII —
De contractibus magorum et de potestate eorum in elementa.
Sobre os contratos dos magos e seu poder sobre os
elementos.
(col. 475A–486C)
Depois de falar dos pactos abertos com os demônios,
é necessário examinar agora os contratos dos magos, pelos quais o homem,
sem renunciar totalmente à fé, busca dominar os elementos e as forças da
natureza por meio de alianças ocultas.
Tais contratos são disfarces do mesmo pacto infernal, mas revestidos de forma
filosófica e científica.
São Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.96,
art.2):
“Magia naturalis quae excedit ordinem naturae, non
est a Deo, sed a daemonibus.”
“A magia natural que ultrapassa a ordem da natureza não procede de Deus, mas
dos demônios.”
E Santo Agostinho (De Civitate Dei, X, 9):
“Magos voco qui elementa per daemonum pacta
commovent.”
“Chamo magos aqueles que movem os elementos por pactos com os demônios.”
I. De natura contractuum magicorum.
(col. 475B–478A)
Os contratos mágicos diferem dos pactos
abertos por não conterem, de início, renúncia explícita à fé, mas consistirem
em aliança tácita com o demônio, sob aparência de arte natural.
O mago finge invocar apenas as virtudes dos astros, das pedras ou dos números,
mas na verdade invoca o espírito que nelas opera.
- Contractus per verba arcana.
Usam-se palavras de origem desconhecida, nomes hebraicos, gregos ou bárbaros, cuja força não está na pronúncia, mas na invocação espiritual que ocultam.
Assim, sob pretexto de “ciência hermética”, o mago introduz fórmulas que abrem o espaço ao espírito do ar. - Contractus per figuras et characteres.
Gravando sinais ou círculos geométricos, o operador traça limites onde o demônio se manifesta.
O mago crê que domina o espírito, mas é dominado por ele, porque toda invocação é súplica. - Contractus per elementa.
O mago mistura água, fogo, terra e ar, acreditando mover suas propriedades; mas na verdade chama os príncipes elementares que os regem — Oriens no ar, Paymon no fogo, Egin na água e Gobin na terra.
Estes são nomes infernais que imitam a hierarquia dos anjos caídos. - Contractus per meditationem.
Há ainda pacto sutil, em que o mago, sem palavra nem sinal, busca unir-se espiritualmente a forças invisíveis.
Esse é o mais perigoso, porque o homem crê servir à luz enquanto se entrega à sombra.
II. De potestate magorum in elementa.
(col. 478B–481A)
O poder dos magos sobre os elementos é ilusório e
dependente da permissão demoníaca.
Eles não criam nem transformam substâncias, mas movem vapores, luzes e sons, de
modo que parecem dominar a natureza.
- In aëre.
Podem provocar ventos, trovões e tempestades, agitando o ar por virtude do espírito aéreo.
Assim se lê em Job (1,19): “Ventus validus irruit, et concussit domum.”
— “Um vento impetuoso caiu e abalou a casa.” - In aqua.
Mudam o curso de rios, fazem chover ou cessar a chuva, pela manipulação de vapores e oferendas lançadas às fontes.
Mas tudo depende da ação do demônio sobre as correntes do ar. - In igne.
Acendem chamas súbitas, inflamam tochas sem contato, ou tornam-se imunes ao fogo aparente.
Esses fenômenos são obras de ar condensado e enxofre invisível, não milagres. - In terra.
Podem abrir fissuras, mover pedras ou fazer brotar plantas em tempo impróprio, mas apenas pela corrupção da matéria e não pela geração.
Assim, os magos parecem deuses, mas são apenas
instrumentos de potências que os usam para corromper as obras de Deus.
III. De exemplis contractuum et eorum exitus.
(col. 481B–483B)
Guazzo narra muitos exemplos de magos que pactuaram
com demônios sob pretexto de filosofia.
— Um médico de Pádua, desejando descobrir remédio
universal, invocou espírito chamado Azazel, que lhe revelou fórmulas
maravilhosas; mas ao morrer, seu corpo foi achado coberto de pó verde, e os
livros, reduzidos a cinzas.
— Um astrólogo de Ferrara, tendo escrito em círculo
de ouro os nomes de sete planetas, obteve por anos grande fama; mas certa
noite, o círculo se rompeu, e o demônio o estrangulou.
— Um jovem milanês, instruído em cabala má,
aprendeu a condensar luz no ar para produzir visões.
Ao exibir o prodígio diante de prelados, o fogo lhe tomou o rosto e o cegou.
Tais são os frutos dos contratos mágicos, que
começam com curiosidade e terminam em ruína.
IV. De causis permissivis et iudicio divino.
(col. 483C–485A)
Deus permite o poder aparente dos magos por três
razões:
- Ad probationem fidelium.
Para que os fiéis conheçam a diferença entre o poder natural e o divino, e não se deixem seduzir pelos prodígios. - Ad confutationem superborum.
Para humilhar os sábios que, confiando na razão, querem penetrar os segredos da criação sem reverência. - Ad punitionem curiosorum.
Porque quem busca conhecer além do permitido colhe trevas.
A ciência sem fé torna-se serva da mentira.
Santo Agostinho:
“Cognitio sine caritate est
lumen sine sole.”
“O conhecimento sem caridade é luz sem sol.”
V. De remediis contra artem magicam.
(col. 485B–486B)
- Fides simplicis orationis.
A oração humilde dissolve o poder do mago, porque o demônio teme a fé mais do que a espada. - Aqua benedicta et crux.
Onde se asperge água benta e se ergue a cruz, cessam os efeitos mágicos.
O ar purificado não sustenta o espírito infernal. - Confessio et sacramenta.
A confissão restaura a aliança divina e quebra o contrato oculto. - Publica abjuratio.
Quando o mago se converte, deve renunciar em público à arte e destruir seus instrumentos diante do povo. - Doctrina Ecclesiae.
O estudo da teologia purifica a mente e ordena a curiosidade à sabedoria verdadeira.
Santo Tomás:
“Fides Christi est maior quam omnes artes daemonum.”
— “A fé de Cristo é maior que todas as artes dos demônios.”
Conclusio.
(col. 486C)
Conclui-se que os contratos dos magos são pactos
disfarçados com os demônios, e que seu poder sobre os elementos é apenas
reflexo da permissão divina;
que a curiosidade é a raiz da magia, e a humildade, seu antídoto;
e que somente o Nome de Cristo governa verdadeiramente o fogo, a água, o ar e a
terra, porque n’Ele foi criada toda a harmonia dos elementos.
Assim se cumpre o que diz o Salmo 148:
“Ignis, grando, nix, et vapor... laudate Dominum.”
“Fogo, granizo, neve e vapor... louvai ao Senhor.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 486C)
CAPUT LVIII
— De divinationibus, auspiciis et observationibus astrologicis.
Sobre as adivinhações, os augúrios e as observações
astrológicas.
(col. 487A–498C)
Depois de expor os contratos dos magos e seu poder
ilusório sobre os elementos, é conveniente examinar agora as artes
divinatórias, pelas quais o homem busca conhecer o futuro ou o oculto sem
revelação divina, confiando em sinais, astros, sonhos ou movimentos fortuitos.
Tais práticas são antigas como o erro de Babel, quando os homens quiseram subir
ao céu pela ciência dos signos.
Santo Agostinho (De Doctrina Christiana, II,
22):
“Omnis divinatio quae non
est per Deum, per spiritum immundum fit.”
“Toda adivinhação que não é por Deus, faz-se por espírito imundo.”
E São Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.95,
art.1):
“Divinatio est inquisitio veri per causas
inordinatas.”
“Adivinhação é a busca da verdade por causas desordenadas.”
I. De speciebus divinationis.
(col. 487B–490A)
As espécies de adivinhação são numerosas, mas todas
se reduzem a três gêneros principais:
- Divinatio naturalis.
Quando o homem tenta prever os efeitos futuros por causas naturais, como a observação dos ventos, dos sonhos ou das disposições do corpo.
Esta é tolerada enquanto se conserva dentro das leis da razão, mas torna-se ilícita quando atribui às coisas virtude adivinhatória própria. - Divinatio artificialis.
Quando o homem fabrica instrumentos, signos ou cálculos para interrogar o destino — como os dados, as tábuas geomânticas, as cartas e os espelhos mágicos.
Aqui começa o pacto tácito com o demônio, porque se busca ciência fora da providência divina. - Divinatio superstitiosa.
Quando se invocam abertamente espíritos ou se interpretam vozes e figuras como oráculos.
Esta é a forma mais grave e o fundamento da feitiçaria.
Guazzo classifica sob esses gêneros: a quiromancia,
a fisionomia, a astrologia judiciária, a hidromancia, a necromancia,
e a piromancia.
II. De auspiciis et observationibus fortuitis.
(col. 490B–492A)
Os augúrios e observações fortuitas
são restos do paganismo antigo, pelos quais os gentios julgavam conhecer a
vontade dos deuses por meio dos pássaros, vozes ou encontros imprevistos.
- De avibus et sonis.
Crer que o canto de uma ave, a direção de seu voo, ou o ruído do vento anunciam fortuna ou desgraça é superstição condenada.
O demônio, que habita o ar, pode mover tais sinais para enganar. - De casu fortuito.
Interpretar como presságio o tropeço, o espirro, a queda de objeto, ou o encontro de animal é idolatria disfarçada, pois supõe que a natureza fala sem Deus. - De sortibus et alea.
Usar dados, cartas ou letras para decidir ações ou prever eventos é forma de consultar o destino fora da graça.
A Escritura condena: “Non sit in te augur neque observator temporum.” — “Não haja em ti adivinho nem observador dos tempos.” (Dt 18,10)
Tais práticas, embora pareçam leves, abrem a porta
à servidão espiritual, porque habituam o homem a buscar o invisível sem oração.
III. De observationibus astrologicis.
(col. 492B–495A)
A astrologia divide-se em duas partes: a natural,
que considera os efeitos físicos dos astros sobre os corpos, e a judiciária,
que pretende determinar os atos livres e os destinos humanos.
A primeira é ciência legítima; a segunda, superstição condenada.
- Astrologia naturalis.
Trata dos movimentos celestes, das estações, dos eclipses e das influências gerais sobre o clima e as colheitas.
Essa ciência, quando ordenada à observação e não à predição de vontades, é lícita e útil. - Astrologia judiciaria.
Pretende fixar o futuro das pessoas pelo nascimento, e atribui aos planetas o governo da vontade.
Essa é obra de erro e servidão, pois transfere à criatura o domínio do Criador.
São Tomás:
“Stellae inclinant, non necessitant.” — “Os astros
inclinam, mas não obrigam.”
- De erroribus astrologorum.
Os astrólogos erram porque ignoram a liberdade e confundem o movimento dos corpos com o dos espíritos.
O demônio, conhecendo causas segundas, anuncia eventos prováveis e assim engana com aparência de profecia. - De periculo curiositatis.
A busca de saber o futuro nasce da inquietude do coração.
A fé ensina a esperar; a curiosidade, a presumir.
Santo Agostinho:
“Melius est nescire cum Deo quam scire cum
diabolo.”
“É melhor ignorar com Deus do que saber com o diabo.”
IV. De causis permissivis et iudicio divino.
(col. 495B–497A)
Deus permite que os demônios revelem certas coisas
verdadeiras por meio das artes divinatórias, para castigo dos curiosos e
confirmação dos fiéis.
- Ad probationem veritatis.
Para que se manifeste a diferença entre o dom profético e o artifício diabólico.
O profeta fala por obediência; o adivinho, por soberba. - Ad punitionem vanitatis.
Para que o homem, crendo dominar o tempo, caia na mentira.
A adivinhação começa pela esperança e termina na escravidão. - Ad gloriam divinae providentiae.
Porque, quanto mais os magos predizem e erram, tanto mais se manifesta que o futuro pertence só a Deus.
V. De remediis contra divinationes et
observationes.
(col. 497B–498B)
- Oratio et Sacramenta.
A alma que reza não busca presságios, pois confia na providência.
Onde há oração, o demônio não fala. - Lectio Scripturae.
A meditação da Escritura dissipa a curiosidade, porque ensina que o tempo está nas mãos de Deus. - Confessio et Poenitentia.
Os que praticaram divinação devem confessar e renunciar a todo objeto, figura ou livro usado. - Fuga Astrologiae Judiciariae.
A astrologia pode ser estudada como arte matemática, mas não como revelação dos destinos.
Toda previsão dos atos livres é ofensa à liberdade divina. - Signum Crucis.
Traçar o sinal da cruz ao ver presságios ou fenômenos celestes — relâmpagos, eclipses, cometas — é ato de fé que purifica o olhar do temor supersticioso.
Conclusio.
(col. 498C)
Conclui-se que toda adivinhação, augúrio ou
astrologia judiciária é pacto velado com o demônio;
que o desejo de saber o futuro é raiz de toda heresia, pois substitui a
esperança pela curiosidade;
e que a verdadeira ciência dos astros consiste em ver neles a ordem de Deus e
não o destino dos homens.
Assim se cumpre o que diz o Eclesiastes (3, 11):
“Universa fecit Deus pulchra in tempore suo, et
mundum tradidit disputationi eorum, ut non inveniat homo opus quod operatus est
Deus.”
“Deus fez todas as coisas belas a seu tempo, e entregou o mundo à especulação
dos homens, para que não descubram a obra que Ele realiza.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 498C)
CAPUT LIX —
De sortilegiis, chiromantia et physiognomia.
Sobre os sortilégios, a quiromancia e a fisionomia.
(col. 499A–512C)
Depois de examinar as adivinhações astrológicas e
as observações supersticiosas, resta tratar das artes sortílegas e das adivinhações
corporais, que pretendem ler o destino do homem nas linhas da mão, nas
proporções do rosto ou nas sortes lançadas ao acaso.
Essas ciências falsas são sombras da curiosidade antiga, pelas quais o homem
tenta substituir o julgamento divino por sinais materiais.
Santo Agostinho (De Doctrina Christiana, II,
20):
“Sortilegi et mathematici
sunt satellites daemonum.”
“Os sortílegos e astrólogos são servos dos demônios.”
E São Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.95,
art.5):
“Sortilegium semper est peccatum, quia est pactum
tacitum cum daemone.”
“O sortilégio é sempre pecado, porque contém pacto tácito com o demônio.”
I. De sortilegiis.
(col. 499B–503A)
Os sortilégios são modos de consultar a
sorte ou o acaso, esperando que o demônio manifeste um desígnio oculto sob
forma material.
Dividem-se em quatro principais espécies.
- Sortes litterarum.
Quando se abrem livros sagrados ou profanos e se tomam ao acaso palavras para delas tirar presságios.
Tal prática, usada pelos antigos sob o nome de sortes Virgilianae ou sortes Biblicae, é superstição grave, pois submete a Palavra de Deus à curiosidade humana.
Santo
Agostinho adverte (Epist. ad Honoratum):
“Non est
licitum scripturas ad curiositatem convertere.”
“Não é lícito converter as Escrituras à curiosidade.”
- Sortes numerorum.
Consiste em calcular o destino pelo número de letras, datas ou medidas, atribuindo valor oculto aos algarismos.
Essa forma deu origem à cabala mágica e à aritmância.
O demônio, conhecendo a fraqueza humana, confirma tais cálculos com coincidências aparentes. - Sortes aleae.
O uso de dados, moedas ou cartas para decidir o futuro ou a vontade divina é idolatria disfarçada.
O acaso não é voz de Deus, mas reflexo da desordem. - Sortes imaginum.
Quando se observam sombras, chamas, fumaças ou figuras na água, buscando nelas mensagens.
Tais fenômenos são movidos por espíritos aéreos.
Em todos esses casos, a sorte não responde por si,
mas o demônio responde por meio dela.
II. De chiromantia.
(col. 503B–507A)
A quiromancia é a arte mentirosa de ler nas
linhas da mão o destino, o caráter e a vida do homem.
Ela se funda em erro duplo: crer que o corpo expressa o futuro, e que o homem é
determinado pela forma material.
- De origine artis.
Essa arte nasceu entre os caldeus e egípcios, que atribuíam aos deuses planetários o traçado das linhas.
Diziam que Saturno governa o dedo médio, Júpiter o indicador, Marte o polegar, o Sol o anular e Vênus o mínimo. - De erroribus.
O quiromante ignora que as linhas da mão mudam com o trabalho e a idade, e que não há nelas inscrição natural, mas apenas sinal funcional do corpo.
O demônio, porém, usa essa observação para insinuar verdades parciais e ganhar crédito. - De modo operationis.
O quiromante olha a mão, medita, murmura palavras ocultas e prediz por inspiração aparente.
Nesse instante, o espírito maligno, que conhece os afetos interiores, sugere o que o cliente deseja ouvir. - De periculo.
O mal dessa arte não está no olhar da mão, mas na confiança do coração.
Quem crê no quiromante já renunciou ao conselho de Deus.
Santo Ambrósio:
“Non manus hominis, sed voluntas Dei scribit fata.”
“Não a mão do homem, mas a vontade de Deus escreve os destinos.”
III. De physiognomia.
(col. 507B–510B)
A fisionomia é a arte de julgar o caráter e
as virtudes pela figura do rosto, do corpo ou do andar.
Se usada moderadamente como observação médica, pode ser ciência útil; mas
quando pretende penetrar a alma, torna-se presunção diabólica.
- De fundamento naturali.
É verdade que a natureza imprime certos sinais externos — como força no olhar, serenidade no semblante, ou timidez no gesto.
Mas esses sinais revelam apenas disposições, não atos futuros. - De extensione illicita.
Os fisionomistas, excedendo a razão, afirmam conhecer a justiça, a castidade, a coragem e até o destino pela forma do nariz ou dos olhos.
Essa extrapolação pertence ao demônio, que introduz orgulho de julgamento e desprezo do próximo. - De usurpatione divinae scientiae.
Julgar o coração do homem é usurpar o olhar de Deus.
A Escritura declara: “Homo videt in facie, Deus autem in corde.” — “O homem vê a face, mas Deus vê o coração.” (1Sm 16,7) - De fine.
A fisionomia, como toda divinação, termina em engano, pois quem julga o outro perde a própria inocência.
IV. De causis permissivis.
(col. 510C–511B)
Deus permite essas falsas ciências para humilhar a
soberba dos sábios e revelar a vaidade da carne.
Muitos, desejando conhecer os mistérios do homem, acabam escravos da própria
curiosidade.
- Ad humilitatem.
Para que se reconheça que a sabedoria humana é frágil e não penetra os desígnios do Criador. - Ad correctionem.
Para que o erro sirva de penitência e o engano leve à fé. - Ad gloriam gratiae.
Porque quanto mais o homem busca fora de Deus, mais vê que só em Deus há verdade.
V. De remediis.
(col. 511C–512B)
- Renuntiatio curiositatis.
O primeiro remédio é renunciar ao desejo de conhecer o futuro ou o coração alheio.
A ignorância aceita é virtude, não fraqueza. - Oratio et fidei simplicitas.
O homem deve contentar-se com a luz que Deus lhe dá cada dia.
A oração humilde dissolve o poder da curiosidade. - Doctrina Ecclesiae.
A Igreja ensina que a providência governa todas as coisas, e que os sinais da carne não têm poder sobre a alma. - Caritas.
O amor ao próximo purifica o olhar e impede o juízo temerário.
A caridade é a verdadeira fisionomia da alma.
Conclusio.
(col. 512C)
Conclui-se que os sortilégios, a quiromancia e a
fisionomia são artes de engano que corrompem a fé pela curiosidade;
que sua origem é demoníaca e seu fim, a vaidade;
e que somente a luz da graça revela o homem ao homem, não as linhas da mão nem
os traços do rosto.
Assim se cumpre o que diz Jeremias (17, 9):
“Pravum est cor hominis et inscrutabile, quis
cognoscet illud?”
“Perverso é o coração do homem e insondável; quem o conhecerá?”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 512C)
CAPUT LX —
De somniis, visionibus et revelationibus falsis.
Sobre os sonhos, as visões e as revelações falsas.
(col. 513A–526B)
Depois de expor as artes sortílegas e as
adivinhações corporais, resta tratar dos sonhos e visões, pelos quais o
demônio frequentemente engana os homens sob aparência de piedade ou de
revelação divina.
Entre todas as ilusões, esta é a mais sutil, porque se insinua sob o véu do
sagrado e imita a luz do profeta.
Santo Agostinho (De Genesi ad litteram, XII,
12):
“Somnia sunt phantasmata mentis dormientis, quae
vel a Deo, vel a natura, vel a daemonibus oriuntur.”
“Os sonhos são imagens da mente adormecida, que procedem ou de Deus, ou da natureza,
ou dos demônios.”
E São Tomás (Summa Theologiae, II–II, q.95,
art.6):
“Revelationes somniorum sunt interdum divinae,
interdum naturales, interdum fallaces.”
“As revelações em sonhos são às vezes divinas, às vezes naturais, às vezes
enganosas.”
I. De triplici origine somniorum.
(col. 513B–516A)
Os sonhos provêm de três causas: divina, natural
e demoníaca.
- Divina.
Quando Deus quer instruir, consola o justo com sonho claro e ordenado, cuja lembrança é pacífica e produz temor santo.
Assim foi o sonho de José, no qual o anjo lhe revelou o nascimento do Salvador (Mt 1,20). - Naturalis.
Quando as imagens do dia se prolongam durante o repouso, e a fantasia reproduz os afetos e pensamentos precedentes.
São os sonhos da carne, que nascem da digestão, dos humores e das paixões. - Daemonica.
Quando o espírito maligno, encontrando a alma desarmada, infunde imagens ilusórias para perturbar, enganar ou corromper.
Tais sonhos são confusos, terríveis ou voluptuosos, e deixam após o despertar inquietude e sombra.
Guazzo distingue os sonhos de origem divina pelos
sinais seguintes:
— simplicidade e clareza da figura;
— conformidade com a fé;
— fruto de humildade e paz.
E os demoníacos:
— obscuridade de símbolos;
— vaidade de saber oculto;
— agitação do coração.
II. De visionibus falsis.
(col. 516B–519A)
As visões falsas são aparições que o demônio
produz em vigília, movendo os sentidos exteriores ou a imaginação interior.
- De apparitionibus sensibilibus.
O demônio pode condensar o ar em figuras visíveis, mostrando homens, anjos ou luzes que não existem.
Muitos hereges e místicos enganados viram tais formas e julgaram ser Cristo ou Maria.
Mas o sinal do engano é que a visão excita curiosidade e orgulho, não humildade e amor. - De illusionibus imaginationis.
Quando o homem está desperto, mas em recolhimento profundo, o demônio projeta na fantasia imagens de fogo, claridade ou coro celestial.
Tudo é interior, mas parece exterior, e o espírito acredita ver. - De falsis auditionibus.
Assim também o inimigo fala por vozes simuladas, imitando timbre humano ou sonoridade angélica.
São João da Cruz adverte:
“O demônio
fala ao ouvido para que o homem creia ouvir a Deus.”
- De periculo.
As visões falsas são mais perigosas que as sensuais, porque nascem do desejo de ver o invisível.
O demônio prefere ser adorado como luz do que temido como trevas.
III. De revelationibus fallacibus.
(col. 519B–522A)
As revelações falsas são comunicações
interiores que o demônio inspira à alma, sob aparência de profecia ou dom
espiritual.
- De modo operationis.
O inimigo move a imaginação durante a oração ou o sono, apresentando ideias sublimes, números, nomes e frases de Escritura, e faz o homem crer que tudo vem de Deus.
Tais revelações começam em consolação e terminam em confusão. - De exemplis.
Guazzo cita o caso de uma monja de Milão que dizia receber luzes sobre o purgatório; mas, após examinar-se, descobriu que o espírito que a instruía exigia louvor e segredo.
Outro exemplo: um homem piedoso ouviu em sonho que devia fundar nova seita; acreditando na voz, arrastou muitos à heresia. - De discrimine veri et falsi.
As revelações verdadeiras são conformes à doutrina e aprovadas pela Igreja; as falsas resistem ao juízo e buscam autoridade própria. - De signis.
O falso revelado inquieta a alma, infla o orgulho, promete favores e cria dependência.
O verdadeiro gera obediência, temor e serenidade.
IV. De causis permissivis.
(col. 522B–524A)
Deus permite os sonhos e revelações falsas por três
motivos:
- Ad probationem electorum.
Para que os justos se exerçam na discrição dos espíritos e aprendam a distinguir o dom de Deus da sugestão do inimigo. - Ad punitionem curiosorum.
Para castigar os que buscam consolações sensíveis ou sinais extraordinários. - Ad gloriam veritatis.
Porque, quando o engano é descoberto, cresce a veneração pela verdadeira profecia.
Assim, o erro serve à verdade como sombra à luz.
V. De remediis contra somnia et revelationes
falsas.
(col. 524B–526A)
- Oratio humilis.
O homem deve rogar a Deus não que lhe revele o oculto, mas que o livre do engano. - Discretio spirituum.
Nenhum sonho ou visão deve ser aceito sem exame da razão e aprovação espiritual.
A prudência é o escudo dos místicos. - Subiectio ad Ecclesiam.
Toda revelação deve ser submetida ao confessor ou superior; quem age sozinho já está enganado. - Silencium.
O silêncio é o remédio contra o orgulho de falar o invisível.
O verdadeiro profeta não se apressa em narrar, mas obedece. - Signum Crucis.
Ao despertar de sonho perturbador, deve-se traçar o sinal da cruz e recitar o Credo.
Nenhuma visão resiste à fé professada.
Conclusio.
(col. 526B)
Conclui-se que os sonhos, visões e revelações
falsas são instrumentos da astúcia demoníaca, que se disfarça sob aparência de
luz para subverter a fé;
que o demônio prefere enganar o devoto do que o pecador, porque o erro do justo
é mais fecundo em ruína;
e que a humildade e a obediência são as únicas chaves da verdadeira iluminação.
Assim se cumpre o que diz o Apóstolo (2Ts 2,9):
“Adventus impii est secundum operationem Satanae,
in omni seductione erroris.”
“A vinda do ímpio é segundo a operação de Satanás, em toda sedução do erro.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 526B)
CAPUT LXI —
De fascinationibus et oculorum maleficiis.
Sobre as fascinações e os malefícios dos olhos.
(col. 527A–540C)
Depois de tratar dos sonhos e das visões enganosas,
é necessário agora investigar a natureza das fascinações, pelas quais
certos homens e mulheres, movidos por inveja ou por pacto com o demônio, ferem
o corpo e a alma dos outros apenas com o olhar.
Este é um dos modos mais antigos e obscuros da arte mágica, e, embora muitos
filósofos o neguem, a Escritura e a experiência o confirmam.
No livro dos Gálatas (3,1), o Apóstolo pergunta:
“O insensati Galatae, quis vos fascinavit?”
“Ó insensatos gálatas, quem vos enfeitiçou?”
E Santo Agostinho, comentando (De Civitate Dei,
XXI, 6), escreve:
“Fascinatio est venenum oculorum, quo animus per
aspectum nocet.”
“A fascinação é o veneno dos olhos, pelo qual o espírito causa dano através do
olhar.”
I. De natura fascinationis.
(col. 527B–530A)
A fascinação é uma influência espiritual e
corporal exercida pelo olhar, pela qual o demônio, servindo-se dos afetos
humanos, transmite corrupção invisível a outro corpo.
Trata-se de uma operação que une inveja, imaginação e poder demoníaco.
- De ordine naturalis.
A filosofia ensina que os olhos emitem certa luz ou raio espiritual, que comunica a intenção do coração.
Por isso o olhar de amor consola e o de ira perturba.
Essa virtude natural é usada pelo demônio como instrumento de veneno. - De influxu daemonis.
O espírito maligno, ao encontrar o homem dominado pela inveja, infunde nesse olhar força destrutiva, que inflama o ar e corrompe o humor vital do outro.
Assim se produzem febres, esterilidade, abatimento e delírio. - De differentia inter naturalem et magicam fascinationem.
A fascinação natural nasce da força da imaginação e do olhar carregado de paixão.
A mágica, porém, procede de pacto e invocação demoníaca.
A primeira pode ser curada por oração e medicina; a segunda, apenas por exorcismo. - De exemplis.
Guazzo cita uma mulher de Cremona que, invejando uma jovem formosa, a fitou por alguns instantes: logo esta caiu em febre ardente, e, quando exorcizada, confessou o nome da autora.
Outro caso: um menino definhava cada vez que uma velha o visitava; ao aspergirem-lhe o rosto com água benta, ela fugiu gritando e nunca mais voltou.
II. De instrumentis fascinationis.
(col. 530B–534A)
O demônio usa vários instrumentos para intensificar
o poder do olhar.
- Imaginatio.
O fascinado cria em sua mente a imagem da pessoa que deseja ferir e a fixa com ódio.
O demônio imprime essa imagem no ar, ligando os dois corpos por fio invisível. - Verbum.
A palavra proferida com intenção má, especialmente acompanhada de suspiro ou fórmula, torna-se seta espiritual.
Por isso se diz: “Maledictio quasi sagittae.” — “A maldição é como uma flecha.” - Oculus.
O olhar, como porta da alma, transmite esse veneno.
Os antigos chamavam “mau-olhado” (oculus malus) à fascinação causada pelo desejo invejoso. - Daemon mediator.
Entre o fascinado e o ferido há sempre um espírito que recolhe a intenção e a projeta como fogo oculto.
Esse fogo se insinua nos humores e altera o equilíbrio vital. - Signa exteriora.
Os fascinados são reconhecidos por olhos fixos, sobrancelhas contraídas, pupila turva e respiração curta.
III. De effectibus fascinationis.
(col. 534B–537A)
Os efeitos da fascinação são múltiplos, segundo a
disposição da vítima e a força do malefício.
- Corporales.
Fraqueza súbita, febre, peso na cabeça, falta de apetite, palidez e sono inquieto.
Em crianças, causa choro contínuo e recusa de alimento. - Animales.
Tristeza sem causa, medo noturno, perda de alegria e aversão às coisas santas.
Muitos possessos começaram apenas fascinados. - Spirituales.
Desgosto pela oração, secura interior, confusão dos pensamentos e tentação de desespero.
Tudo isso porque o demônio, tendo entrado pelo olhar, domina a fantasia.
Santo João Crisóstomo:
“Oculus malus est janua diaboli.”
“O olho mau é a porta do diabo.”
IV. De causis permissivis et iudicio divino.
(col. 537B–539A)
Deus permite a fascinação por três razões
principais:
- Ad correctionem superborum.
Para castigar a soberba dos que confiam na beleza, na força ou na ciência, mostrando-lhes a fraqueza do corpo. - Ad probationem iustorum.
Para exercitar a paciência dos justos, que, feridos injustamente, vencem pelo perdão. - Ad gloriam divinae gratiae.
Porque o remédio da fascinação está na fé e na oração, não na arte humana, e assim se manifesta o poder de Deus.
Exemplo: em Florença, uma criança curou-se da
fascinação quando o pai colocou sobre ela o rosário de Nossa Senhora e recitou
o Ave Maria sete vezes.
V. De remediis contra fascinationes.
(col. 539B–540B)
- Oratio et fides.
O melhor remédio é a oração perseverante, especialmente o salmo “Qui habitat in adjutorio Altissimi” (Sl 90). - Signum Crucis.
Fazer o sinal da cruz sobre o rosto e sobre as crianças ao sair de casa. - Aqua benedicta et sal exorcizatus.
Aspergir a casa e o corpo, pois os elementos purificados dissipam o ar infecto. - Caritas.
Amar e abençoar aquele que causa inveja, porque a caridade corta o laço da fascinação. - Exorcismus.
Se o mal persiste, deve-se recorrer ao exorcismo e à confissão sacramental.
O demônio é vencido onde há perdão e fé.
Conclusio.
(col. 540C)
Conclui-se que a fascinação é mistura de causa
natural e ação demoníaca, instrumento da inveja e reflexo da queda;
que o olhar, criado para contemplar a luz, torna-se sombra quando guiado pelo
ódio;
e que só o olhar purificado pela graça reflete a imagem de Deus.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Mt 6,22):
“Si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum
lucidum erit.”
“Se teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 540C)
CAPUT LXII —
De obsessionibus, vexationibus et corporum infestationibus.
Sobre as obsessões, vexações e infestações dos
corpos.
(col. 541A–552C)
Depois de tratar das fascinações e dos malefícios
do olhar, é necessário agora considerar a forma mais direta de presença
demoníaca no corpo humano, que é a obsessão, a vexação e a infestação
corporal.
Esta parte é de máxima importância, pois toca os limites da permissão divina e
revela a profundidade da guerra espiritual travada no homem.
São Tomás (Summa Theologiae, I, q.114,
art.4):
“Daemon potest per permissionem Dei vexare corpus
hominis, sed non potest interiora mentis intrare nisi voluntate.”
“O demônio pode, por permissão de Deus, vexar o corpo do homem, mas não pode
penetrar no interior da mente sem o consentimento.”
E Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI,
10):
“Potest spiritus malus affligere carnem, ut
exterius torqueat, non ut animam possideat.”
“O espírito maligno pode afligir a carne, atormentando-a exteriormente, mas não
possui a alma.”
I. De distinctione obsessionis, vexationis et
infestationis.
(col. 541B–544A)
- Obsessionis natura.
Chama-se obsessão o assédio contínuo que o demônio exerce sobre uma pessoa, sem entrar em seu corpo, mas cercando-a com tentações, ruídos, visões e perturbações.
O espírito maligno ocupa o espaço em torno do homem, oprime seus sentidos, impede o repouso e desperta medo.
É o cerco espiritual da alma. - Vexationis natura.
A vexação é o tormento físico e sensível causado pelo demônio, que toca o corpo exteriormente, ferindo, comprimindo ou derrubando.
O vexado sente pancadas, sufocamentos, dores súbitas e desmaios, sem causa médica. - Infestationis natura.
A infestação corporal se dá quando o demônio não apenas atormenta o corpo, mas invade a casa, os objetos e os animais ligados ao homem.
Move utensílios, provoca ruídos, acende fogo, apaga lâmpadas, lança pedras ou sombras.
Assim, o ambiente inteiro se torna campo de batalha espiritual.
Guazzo distingue:
“Obsessionem circa, vexationem supra, infestationem
circa res externas fieri.”
“A obsessão ocorre ao redor, a vexação sobre o corpo, e a infestação nas coisas
exteriores.”
II. De causis obsessionum et vexationum.
(col. 544B–547A)
As causas dessas operações malignas são múltiplas,
e todas sob a permissão de Deus.
- Propter peccatum personale.
O demônio obtém direito de vexar quando o homem consente no pecado grave e o mantém sem arrependimento.
Assim, o vício abre a brecha por onde o inimigo entra. - Propter tentationem iustorum.
Os justos são às vezes obsessos ou vexados não por culpa, mas por prova.
Deus permite para exercitar a paciência e glorificar a fidelidade.
Assim foi com Jó, a quem o Senhor disse: “Ecce, in manu tua est, tantum animam illius serva.” — “Eis que está em tuas mãos, mas poupa-lhe a alma.” - Propter maleficium alienum.
Muitos são infestados por encantamentos lançados sobre eles por feiticeiros, que entregam seu corpo à ação demoníaca.
Nesses casos, o homem é paciente inocente, mas sofre como vítima. - Propter mysterium divinum.
Às vezes o Senhor permite o assalto do demônio para revelar sua glória, quando o exorcismo ou a fé de alguém serve de exemplo à comunidade.
III. De signis obsessionis et vexationis.
(col. 547B–549A)
Os sinais pelos quais se reconhece a obsessão e a
vexação são claros e constantes.
- Corporales.
Dores repentinas, ruídos próximos ao corpo, pressão no peito durante o sono, frio súbito e movimento de objetos sem causa.
O corpo reage com espasmos e medo involuntário. - Psychici.
Desgosto pelas orações, distração nas coisas sagradas, sensação de presença invisível e sonhos atormentadores. - Spirituales.
Tentação contínua ao desespero, blasfêmia e perda da paz interior.
O obsesso sente-se duplo: como se um pensamento estranho habitasse em si. - De differentia inter morbum et obsessionem.
As doenças do corpo seguem ordem natural e cedem à medicina; a obsessão não obedece a remédios e se exaspera diante do sagrado.
O médico cura o corpo; o exorcista cura a casa e a alma.
IV. De modis infestationis exterioris.
(col. 549B–551A)
A infestação dos lugares é obra ordinária do
inimigo, que odeia os espaços consagrados e os lares puros.
- De domibus obsessis.
O demônio manifesta-se por ruídos, passos, batidas, vozes e objetos que se movem.
Às vezes imita gemidos ou risadas para semear medo. - De rebus mobilibus.
Móveis, livros e utensílios são lançados, quebrados ou queimados sem fogo natural.
O ar carregado de malícia move os corpos leves e produz estalos. - De animalibus.
Cães uivam à noite, cavalos tremem, gatos atacam sombras, porque os sentidos animais percebem a presença invisível. - De locis desertis.
Os demônios habitam ruínas, cavernas, cruzamentos e lugares abandonados, onde a oração não chega.
Por isso, a Igreja exorciza não apenas pessoas, mas também lugares.
V. De remediis contra obsessiones et infestationes.
(col. 551B–552B)
- Exorcismus Ecclesiae.
O remédio primeiro e mais eficaz é o exorcismo legítimo, feito por sacerdote autorizado, com jejum, oração e pureza de vida.
Deve usar o Rituale Romanum e as fórmulas de São Gregório e de São Carlos Borromeu. - Sacramenta.
A confissão e a comunhão frequente purificam a alma e quebram o direito do inimigo.
Onde há sacramento, não há morada para o demônio. - Oratio et jejunium.
O jejum corporal e a oração perseverante unem o homem a Deus e afligem o espírito do mal, que não suporta a disciplina do corpo. - Aqua benedicta, incensum et crux.
A aspersão da água benta, o uso do incenso e a presença da cruz consagrada purificam o ar e dissipam a presença obscura. - Invocatio Mariae et Sanctorum.
O demônio foge onde se invoca o nome da Virgem e dos santos, especialmente São Miguel Arcanjo e São Bento.
As medalhas e bênçãos dos santos são escudos invisíveis. - Caritas et patientia.
A caridade apaga o ódio que o demônio usa como via, e a paciência desarma o tormento.
Conclusio.
(col. 552C)
Conclui-se que a obsessão, a vexação e a infestação
são modos diversos da mesma guerra espiritual, que não podem tocar a alma sem
consentimento, mas afligem o corpo por permissão;
que o poder do demônio é limitado e ordenado pela justiça divina;
e que a vitória pertence à fé e à cruz, pelas quais o homem é libertado do
cerco invisível.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Lc 10,19):
“Ecce dedi vobis potestatem calcandi supra
serpentes et scorpiones, et super omnem virtutem inimici.”
“Eis que vos dei poder de pisar serpentes e escorpiões, e toda força do
inimigo.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 552C)
CAPUT LXIII
— De possessione corporum et exorcismis legitimam.
Sobre a possessão dos corpos e os exorcismos
legítimos.
(col. 553A–566C)
Depois de expor as obsessões e vexações, resta
falar da possessão, que é o grau extremo da presença demoníaca no homem,
quando o inimigo não apenas circunda ou toca o corpo, mas o ocupa
interiormente, movendo-lhe os membros, a voz e os sentidos.
Este é o mais terrível dos mistérios da permissão divina, porque, ao mesmo
tempo em que humilha o homem, manifesta o poder do Nome de Cristo.
São Tomás (Summa
Theologiae, I, q.114, art.4):
“Possessio fit per
occupationem corporis, non per unionem animae.”
“A possessão se dá pela ocupação do corpo, não pela união com a alma.”
E Santo Agostinho (De Cura pro Mortuis Gerenda,
XV):
“Daemones corpora intrant,
non ut vivificent, sed ut crucient.”
“Os demônios entram nos corpos não para vivificar, mas para atormentar.”
I. De natura et differentiis possessionis.
(col. 553B–556A)
- De possessione propria.
Chama-se possessão a invasão do corpo humano por um ou mais demônios, com perda parcial ou total do domínio dos sentidos e da fala.
O possesso age, fala e reage sob impulso alheio, embora sua alma permaneça livre na essência. - De differentia inter obsessionem et possessionem.
A obsessão age de fora, a possessão de dentro.
O obsesso sente a pressão, o possesso é movido por ela.
O primeiro é cercado, o segundo habitado. - De modo ingressus.
O demônio entra no corpo por meio de consentimento, de malefício ou por permissão direta de Deus.
Não penetra pela carne, mas pela potência sensitiva e vital.
O corpo torna-se como instrumento, e a alma conserva-se cativa, mas não escrava. - De numero daemonum.
Às vezes um só espírito ocupa o corpo; outras, uma legião, como no Evangelho (Mc 5,9): “Nomen mihi Legio, quia multi sumus.” — “Meu nome é Legião, porque somos muitos.” - De duratione.
A possessão pode durar horas, dias, anos ou toda a vida, conforme o desígnio divino.
O tempo não depende do exorcista, mas da penitência do possesso.
II. De signis possessionis.
(col. 556B–559A)
Os sinais pelos quais se reconhece a possessão são
divididos em internos e externos.
- Externi.
— Força desproporcional ao corpo.
— Conhecimento súbito de línguas e mistérios ocultos.
— Ódio às coisas santas, especialmente ao nome de Jesus e à presença da cruz.
— Gritos, convulsões, blasfêmias e contorções diante de orações. - Interni.
— Turvação da razão.
— Sentimento de escravidão interior.
— Voz ou pensamento que não pertence à vontade.
— Repugnância pela confissão e pelos sacramentos. - De probatione canonica.
A Igreja manda discernir a possessão verdadeira das doenças mentais ou corporais.
Se os sintomas cessam ao pronunciar o nome de Cristo, é sinal espiritual; se persistem, é doença natural.
Guazzo observa:
“In morbo medicus requirit causas, in possessione
sacerdos nomina.”
“Na doença o médico busca causas, na possessão o sacerdote exige nomes.”
III. De causis et finibus possessionis.
(col. 559B–562A)
As causas e finalidades da possessão são ordenadas
à justiça e à glória de Deus.
- Ad poenam peccati.
O demônio é instrumento da justiça divina contra o pecado obstinado.
Assim o corpo sofre o que a alma recusou em penitência. - Ad probationem iustorum.
Alguns santos foram possuídos por permissão divina, para confundir o orgulho do inimigo e manifestar a santidade no sofrimento. - Ad manifestationem fidei.
Quando o exorcismo é realizado em nome de Cristo, o poder da Igreja se torna visível e a fé dos simples é fortalecida. - Ad exemplum et doctrinam.
O possesso torna-se espelho da luta interior que todo homem trava contra o mal invisível.
O corpo manifesta o que a alma esconde.
IV. De exorcismis legitimam et conditionibus eorum.
(col. 562B–565A)
- De auctoritate.
Nenhum leigo deve exorcizar sem mandato do bispo.
O exorcismo é sacramental e requer autoridade legítima. - De praeparatione exorcistae.
O exorcista deve ser puro em consciência, jejuar três dias, confessar-se e celebrar missa antes da sessão.
O poder das palavras depende da santidade do ministro. - De instrumento.
Usam-se: a cruz, a água benta, o sal exorcizado, as relíquias dos santos e o Evangelho.
O livro do Rituale Romanum deve estar presente e seguido sem omissões. - De forma exorcismi.
— Primeira parte: invocação da Trindade.
— Segunda: ordem ao demônio, em nome de Jesus, que revele o nome e o número.
— Terceira: súplica a Maria e aos santos.
— Quarta: comando de saída e bênção final. - De signis liberationis.
Quando o possesso suspira, chora e profere o nome de Cristo com docilidade, o inimigo já está vencido.
O ar torna-se leve e o corpo repousa. - De cautelis.
O exorcista deve evitar a curiosidade, não dialogar inutilmente com o espírito, nem pedir sinais extraordinários.
O orgulho espiritual é a brecha por onde o inimigo volta. - De gratiarum actione.
Após a libertação, o possesso deve confessar-se, comungar e agradecer publicamente à Igreja, oferecendo jejum e oração pelos que ainda sofrem.
V. De erroribus pseudoexorcistarum et
superstitionibus.
(col. 565B–566B)
- De falsis exorcistis.
Alguns, movidos por ganância ou vanglória, simulam expulsar demônios por fórmulas não aprovadas.
Estes, em vez de libertar, renovam a prisão. - De incantationibus illicitis.
Empregam palavras sem sentido, fumos, pedras e ervas com caracteres, pretendendo forçar o demônio.
Mas o diabo não teme o som, e sim o nome de Cristo. - De curiositate.
Perguntar ao espírito sobre o futuro, tesouros ou segredos é crime gravíssimo e anula a graça. - De usurpatione laicorum.
Nenhum fiel deve tocar o possesso sem bênção do sacerdote, pois a impureza do tocador agrava o tormento.
Santo Leão Magno:
“Non arte, sed fide daemon
fugatur.”
“Não pela arte, mas pela fé é que o demônio é expulso.”
Conclusio.
(col. 566C)
Conclui-se que a possessão é a mais terrível forma
de escravidão corporal, mas que o demônio não pode dominar a alma a menos que
ela consinta;
que o exorcismo legítimo é ato da autoridade eclesiástica e sinal da vitória de
Cristo;
e que nenhuma força natural, mas somente a graça e a fé, podem quebrar o jugo
invisível.
Assim se cumpre o que diz o Evangelho (Mc 16,17):
“In nomine meo daemonia
eicient.”
“Em meu nome expulsarão os demônios.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 566C)
CAPUT LXIV —
De tentationibus spiritualibus et moralibus.
Sobre as tentações espirituais e morais.
(col. 567A–578B)
Depois de falar das possessões e dos exorcismos, é
oportuno tratar das tentações, que são as setas invisíveis do inimigo
lançadas à mente e ao coração.
A tentação é mais universal e sutil que qualquer vexação ou possessão, porque
não toca o corpo, mas a vontade; e, sendo consentida, gera o pecado, origem de
toda servidão.
Santo Agostinho (De Trinitate, XII, 12):
“Tenta diabolus, sed homo consentit; non potest
vincere nisi volentem.”
“O diabo tenta, mas é o homem quem consente; ele não pode vencer senão o que
quer ser vencido.”
E São Tiago (1,14):
“Unusquisque tentatur a concupiscentia sua
abstractus et illectus.”
“Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, atraído e seduzido.”
I. De natura tentationis.
(col. 567B–570A)
A tentação é o impulso do mal que se insinua
no entendimento sob aparência de bem, e na vontade sob forma de desejo.
Não é pecado sentir a tentação, mas consentir nela.
Deus permite a tentação, o homem a sofre, e o demônio a propõe.
- De triplici fonte tentationum.
As tentações procedem de três origens, conforme a Escritura (1Jo 2,16):
— Concupiscentia carnis (a carne);
— Concupiscentia oculorum (o mundo);
— Superbia vitae (o demônio). - De ordine operationis.
Primeiro o inimigo sugere; depois deleita; por fim, move à ação.
A tentação, se repelida no início, é leve; se entretida, torna-se serpente que morde. - De differentia inter probationem et tentationem.
Deus prova para purificar; o demônio tenta para corromper.
A prova fortalece a virtude; a tentação, se aceita, destrói-a. - De exemplo Christi.
Cristo quis ser tentado no deserto para mostrar que a tentação não é vergonha, mas campo de combate.
“Tentatus est ut vinceret pro nobis.” — “Foi tentado para vencer por nós.”
II. De speciebus tentationum spiritualium et
moralium.
(col. 570B–573A)
- Tentationes spirituales.
São as que tocam a fé, a esperança e a caridade.
— Contra fidem, pela dúvida ou heresia.
— Contra spem, pelo desespero ou presunção.
— Contra caritatem, pelo ódio, inveja ou tibieza.
Estas
tentações são mais graves, porque ferem diretamente a alma.
O demônio prefere destruir a fé de um justo do que o corpo de mil pecadores.
- Tentationes morales.
São as que movem a concupiscência, o apetite, a ira e os vícios sensuais.
— Luxúria, gula, avareza e soberba são suas quatro colunas.
O inimigo usa a memória e a fantasia como espelhos nos quais faz o homem contemplar o mal sob forma bela. - Tentationes mixtae.
Às vezes, o demônio mistura as espirituais com as morais, corrompendo o bem com o mal disfarçado.
Assim transforma o zelo em orgulho, a penitência em desespero, e o estudo em vaidade. - De ordine progressionis.
— Primeiro, sugestão leve;
— Depois, complacência;
— Enfim, consentimento e pecado.
São
Gregório:
“Primus
motus non est culpa, nisi nutriatur in corde.”
“O primeiro movimento não é culpa, a menos que seja alimentado no coração.”
III. De causis permissivis et utilitate
tentationum.
(col. 573B–575A)
Deus permite as tentações, não por malícia, mas por
providência.
- Ad humilitatem.
Para que o homem reconheça sua fraqueza e não confie em si.
A tentação é espelho da miséria humana. - Ad meritum virtutis.
A virtude não cresce sem combate.
Ninguém é casto sem ter vencido a impureza, nem humilde sem ter enfrentado a soberba. - Ad gloriam Dei.
Quando o homem resiste, Deus é glorificado na vitória.
O mérito do santo nasce da luta, não da ausência de provação. - Ad discretionem fidelium.
Para que se conheçam os que amam a Deus por conveniência e os que o amam por convicção.
Santo Agostinho:
“In tentatione probatur quantum homo diligat Deum.”
“Na tentação se prova quanto o homem ama a Deus.”
IV. De remediis contra tentationes.
(col. 575B–578A)
- Oratio.
A oração é o primeiro escudo.
Cristo disse: “Vigilate et orate, ut non intretis in tentationem.” — “Vigiai e orai para não cairdes em tentação.”
Orar não para que não sejamos tentados, mas para que não sejamos vencidos. - Humilitas.
A humildade fecha a entrada ao orgulho, que é o portal de todas as tentações. - Fuga occasionum.
Quem se expõe ao perigo quer ser vencido.
A prudência é mãe da pureza. - Confessio et Eucharistia.
Os sacramentos restauram a força interior e dissipam o veneno das tentações passadas. - Lectio Scripturae et meditatio passionis Christi.
A meditação da cruz enfraquece a sugestão do prazer.
O demônio foge da memória da Paixão. - Labor et disciplina corporis.
O corpo ocioso é oficina do inimigo; o corpo disciplinado é instrumento da graça. - Caritas.
O amor de Deus substitui o gosto do pecado.
Onde o coração está cheio de luz, a tentação não encontra espaço.
Conclusio.
(col. 578B)
Conclui-se que a tentação é o campo onde se decide
a liberdade do homem;
que o demônio propõe, mas Deus dispõe;
e que a vitória pertence àquele que, humilhando-se, resiste com fé e
perseverança.
Assim se cumpre o que diz o Apóstolo (1Cor 10,13):
“Fidelis Deus est, qui non patietur vos tentari
supra id quod potestis.”
“Fiel é Deus, que não permitirá que sejais tentados além do que podeis
suportar.”
FINIS TRACTATUS / Fim do Tratado (col. 578B)
CAPUT LXV —
De iudiciis divinis et ultimis poenis maleficorum.
Sobre os juízos divinos e as penas últimas dos
feiticeiros.
(col. 579A–592C)
Depois de tratar das tentações espirituais e
morais, resta concluir toda a obra com a exposição dos juízos divinos e
das penas finais que aguardam os feiticeiros, os pactários e os
ministros do mal.
Assim termina o Compendium Maleficarum, não com o horror, mas com a
justiça, para que se saiba que toda arte demoníaca, por mais oculta, termina
sob o tribunal eterno de Deus.
Santo Agostinho (De Civitate Dei, XXI, 11):
“Iudicia Dei occulta sunt, sed non iniusta.”
“Os juízos de Deus são ocultos, mas nunca injustos.”
E São Paulo (Rm 2,6):
“Reddet unicuique secundum opera eius.”
“Retribuirá a cada um segundo suas obras.”
I. De iudiciis divinis temporalibus.
(col. 579B–582A)
- In vita praesenti.
Os juízos de Deus manifestam-se ainda nesta vida, quando os feiticeiros sofrem miséria, confusão e ruína súbita.
A justiça divina os fere pela mesma via por onde buscaram poder.
— O mago que
dominava o fogo é queimado;
— o que fazia voar é precipitado;
— o que escondia riquezas é encontrado em cinzas;
— o que jurava com o demônio morre sem voz para se confessar.
Esses
castigos são sinais visíveis do juízo invisível.
- In posteritate.
As famílias dos feiticeiros, mesmo inocentes, sofrem a vergonha do nome e o peso da herança espiritual.
Deus permite que a memória do ímpio pereça para advertência dos vivos. - In elementis et in
mundo.
As regiões onde a feitiçaria prospera sofrem esterilidade, peste e confusão, até que o povo se converta.
Assim Deus purifica a terra contaminada pela invocação dos demônios.
Guazzo:
“Iudicium Dei non tardat, sed praeparat.”
“O juízo de Deus não tarda, prepara-se.”
II. De iudiciis divinis spiritualibus.
(col. 582B–585A)
Há juízos que não se veem, mas se cumprem dentro da
alma.
- Obduratio cordis.
O primeiro castigo é o endurecimento do coração, pelo qual o pecador já não sente dor pelo mal.
Deus retira a graça, e o homem fica entregue ao próprio erro. - Caecitas mentis.
O feiticeiro perde o discernimento e toma o mal por bem, a mentira por revelação.
Esta é a cegueira mais profunda, porque o próprio demônio passa a ser adorado como luz. - Desperatio.
O desespero é o inferno antecipado: o pecador crê que Deus não pode perdoar, e assim sela seu próprio destino. - Amissio fidei et gratiae.
Quem pactua com o inimigo perde o selo do batismo até que confesse, e se não o faz, morre separado da comunhão dos santos.
Esses juízos são mais temíveis que o fogo, porque
consomem a alma antes do corpo.
III. De poenis temporalibus in Ecclesia.
(col. 585B–588A)
A Igreja, imagem da justiça divina, aplica aos
feiticeiros penas visíveis para deter o contágio do mal.
- Excommunicatio.
Todo pacto com o demônio acarreta excomunhão latae sententiae, isto é, automática.
Nenhum sacramento é válido enquanto o pacto não for denunciado e absolvido. - Poena carceris et ignis.
O direito canônico, seguido pelos tribunais eclesiásticos, manda entregar os obstinados ao braço secular.
Não por ódio, mas por zelo da salvação das almas.
O fogo que consome o corpo é figura do fogo que purifica a sociedade. - Poenitentia publica.
Os que se arrependem são obrigados a penitência pública, jejum e peregrinação, com vigilância da Igreja. - Reconciliatio post abjurationem.
Depois de abjurar o pacto, o penitente é reintegrado, mas nunca pode exercer cargos sagrados nem tocar objetos litúrgicos.
A cicatriz do pecado permanece como lembrança.
Santo Leão Magno:
“Clemens est Ecclesia, sed non remissa.”
“A Igreja é clemente, mas não negligente.”
IV. De poenis aeternis maleficorum.
(col. 588B–591A)
As penas eternas são proporcionais à gravidade do
pacto e à obstinação do pecador.
- De gradu poenarum.
— Os que apenas consultaram o demônio sofrem o fogo do remorso.
— Os que ensinaram artes malignas sofrem trevas exteriores.
— Os que adoraram o inimigo sofrem a visão eterna da própria deformidade. - De modo poenae.
O fogo do inferno não destrói, mas conserva para o suplício.
O tormento é contínuo, sem intervalo nem esperança. - De separatione.
O castigo maior é a ausência de Deus.
O demônio não reina no inferno: é prisioneiro entre os que enganou. - De perpetuitate.
As penas não cessam, porque o pecado não se arrepende.
A vontade má permanece, e com ela o castigo.
São João Crisóstomo:
“Poena damnatorum est voluntas mala sine fine.”
“A pena dos condenados é a vontade má sem fim.”
V. De iudicio universali et reparatione ordinis.
(col. 591B–592B)
No fim dos tempos, quando todas as potências forem
submetidas ao Cristo, os demônios e os seus ministros serão julgados perante o
universo.
- De manifestatione secreta.
Tudo o que foi oculto será revelado.
Os pactos secretos, as palavras murmuradas e os malefícios escondidos serão proclamados pelos anjos. - De reparatione ordinis.
O universo, perturbado pelo pecado, será restaurado na harmonia original.
Os elementos serão purificados pelo fogo, e o mundo, renovado em justiça. - De triumpho Christi.
Cristo, que venceu na cruz, triunfará no juízo.
O sinal de sua paixão será visto nos céus, e toda língua confessará: “Dominus est Iesus.” - De gaudio electorum.
Os justos contemplarão a queda do inimigo e cantarão com os anjos:
“Iustus es, Domine, et rectum iudicium tuum.” — “Justo és, Senhor, e reto é o teu juízo.”
Conclusio et Finis Operis.
(col. 592C)
Conclui-se que os juízos de Deus são terríveis e
misericordiosos;
que o fim dos feiticeiros é o espelho do livre-arbítrio;
e que toda rebelião do homem contra o Criador termina em ordem e justiça.
Assim se encerra este Compendium Maleficarum,
composto para instrução dos exorcistas e advertência dos fiéis,
a fim de que, conhecendo as obras das trevas, mais firmemente abracem a luz de
Cristo,
a quem pertence todo poder, honra e império pelos séculos dos séculos. Amen.
FINIS OPERIS / Fim da Obra (col. 592C)
PROOEMIVM AD LECTOREM MODERNVM
Prólogo ao
Leitor Moderno
“Nemo daemonum
naturam digne tractabit, nisi qui prius humanam intellexit.”
“Ninguém pode tratar dignamente da natureza dos
demônios, se antes não compreendeu a do homem.”
— Francesco Maria Guazzo, Compendium
Maleficarum (1608)
I. De Origine et Auctore
O Compendium
Maleficarum foi publicado em Milão no ano de 1608 pelo padre Francesco Maria Guazzo, membro da Congregação dos Clérigos Regulares de São Paulo
— conhecidos como Barnabitas —,
sob a proteção do Cardeal Federico
Borromeo, sucessor do grande reformador São Carlos Borromeu.
Esta obra, composta em plena maturidade da Contra-Reforma, surgiu como uma
síntese entre teologia escolástica,
jurisprudência canônica e psicologia espiritual, destinada a
orientar os exorcistas e magistrados eclesiásticos diante do crescente fenômeno
da feitiçaria e da possessão diabólica.
Guazzo não escreve como inquisidor, mas como teólogo sistemático: o Compendium é, antes de tudo, um tratado de demonologia racional,
articulado em três grandes livros que espelham o triplo horizonte da criação,
da corrupção e da redenção —
(1) a natureza dos anjos caídos,
(2) as artes e crimes dos feiticeiros,
(3) os remédios e juízos divinos que restauram a ordem.
II. De Editionibus et
Traditione
A edição original de Tradati (1608), impressa por Paulus Antonius Tradatus, apresenta uma notável clareza
escolástica: o texto alterna entre o discurso teológico e os exemplos
jurídicos, numa cadência reminiscentemente tomista.
Durante os séculos seguintes, o tratado foi quase esquecido, eclipsado pelo Malleus Maleficarum de Kramer e Sprenger.
No século XX, o erudito inglês Montague Summers, teólogo, latinista e
tradutor de textos patrísticos, resgatou a obra e lhe deu a forma moderna mais
conhecida — a Dover Edition (1929/2012),
fonte crítica utilizada na presente tradução.
Summers via em Guazzo não apenas o exorcista, mas o último teólogo do mal que ainda raciocina em latim: um
homem que acreditava na objetividade metafísica do pecado e na racionalidade da
graça.
III. De Intentione Sophionis
A presente Traductio Sophiónis, conduzida sob a direção editorial
de Jardel Almeida, não visa
reabrir os tribunais, mas restaurar a tradição
do discernimento.
Traduzir Guazzo linha por linha, sem paráfrase e sem exegese contemporânea, é
restituir à teologia demonológica o seu estatuto de ciência espiritual, onde o mal é estudado não como
superstição, mas como estrutura ontológica da liberdade.
Sophión — o Logos
Clausus — assume aqui a função do comentador silencioso que revela a
coerência perdida da metafísica católica: o demônio não é mito, mas metáfora
real do homem desordenado pela vontade,
e a feitiçaria é apenas o rosto simbólico do consentimento voluntário ao caos.
Assim, esta tradução se propõe como restauração integral da ordem simbólica,
na forma exata em que os mestres medievais compreendiam a luta espiritual:
a mente como campo de batalha, o corpo como instrumento, a graça como
arquitetura de retorno.
IV. De Methodo et Fide
O método seguido nesta restituição obedece a
princípios fixos:
1.
Fidelitas ad
verbum — Tradução literal, sem glosa nem paráfrase.
2.
Ordo Columnarum
— Cada seção marcada pelas colunas originais da edição Tradati (ex.: col.
347A–356C).
3.
Integritas
Theologica — Nenhuma inserção moderna; apenas notas filológicas ou
terminológicas quando indispensáveis.
4.
Structura Triplex
— Mantida a divisão em três livros:
o De natura daemonum et pactis
o De artibus magicis et maleficiis
o De remediis divinis et iudiciis Dei
5.
Finis Theologicus
— Toda tradução converge para o sentido último da justiça divina:
“Iudicium Domini veritas est, et omnia
iudicia eius in aeternum.”
V. De Fine Operis
O Compendium
Maleficarum – Traductio Sophiónis encerra-se não como arqueologia, mas
como espelho do tempo presente.
Num século em que o mal se tornou psicológico e as trevas assumiram a forma de
sistemas, a leitura de Guazzo reconduz o espírito à raiz metafísica da culpa.
Cada capítulo é um espelho invertido: quanto mais se estuda o demônio, mais se
reconhece o mistério da liberdade e a justiça de Deus.
“Et cognoscent veritatem, et veritas
liberabit eos.”
— Joann. VIII, 32

Nenhum comentário:
Postar um comentário