domingo, 2 de novembro de 2025

LÓGICA — Scientia Rationis (A Arte do Pensar Correto) Primeiro Bloco da Opera Omnia de Boécio Tradução e estudo introdutório.

 



ÍNDICE GERAL DO ESTUDO INTRODUTÓRIO AO BLOCO I — SCIENTIA RATIONIS

Capítulo I — A Fundação Lógica da Razão: O Intelecto como Ordem Discursiva

Artigo I — Boécio e a Herança Aristotélica: A Lógica como Porta da Filosofia
Examina o contexto histórico e intelectual de Boécio, a transição entre a filosofia grega e o pensamento latino cristão, e a forma como o autor concebe a lógica como instrumento universal da ciência.

Artigo II — A Ratio como Potência de Ordem: O Método Silogístico e a Purificação da Linguagem
Analisa a estrutura lógica do pensamento boeciano, a noção de
instrumentum cognoscendi, e o papel do silogismo e da linguagem como via para a purificação racional e o acesso à verdade inteligível.


Capítulo II — Estrutura, Linguagem e Ser: O Espírito Lógico na Ordem do Conhecimento

Artigo I — O Discurso como Espelho do Ser: Entre Porfírio e Aristóteles
Estudo da passagem dos universais por Porfírio até as categorias de Aristóteles na leitura boeciana. A lógica é compreendida como ciência ontológica do discurso — a forma pela qual o intelecto espelha a estrutura do real.

Artigo II — O Intelecto e a Verdade: Da Interpretação à Demonstração Científica
Análise da progressão boeciana da
Interpretatio à Demonstratio, culminando na Scientia. A verdade lógica é apresentada como reflexo da verdade ontológica, em um itinerário que prepara a alma para os graus superiores do saber.

CAPÍTULO I — A FUNDAÇÃO LÓGICA DA RAZÃO: O INTELECTO COMO ORDEM DISCURSIVA

Artigo I — Boécio e a Herança Aristotélica: A Lógica como Porta da Filosofia

1.      Quando me volto ao primeiro degrau da ascensão boeciana — o domínio da Scientia Rationis — reconheço que não se trata de uma escolha arbitrária, mas de uma necessidade ontológica do próprio pensar. A razão, antes de ousar elevar-se às alturas teológicas, deve purificar-se no exercício da distinção e da forma. Boécio compreendeu que a lógica, enquanto ars disserendi, não é mera técnica do raciocínio, mas o próprio alicerce pelo qual o intelecto humano se estrutura segundo a ordem do ser.

2.      Historicamente, o empreendimento de Boécio situa-se no ponto de transição entre o mundo helênico e o cristão. Herdeiro da escola aristotélica e intérprete dos neoplatônicos, Boécio se propôs a conservar e traduzir para o latim o corpo lógico da filosofia grega. Sua intenção não era somente filológica, mas soteriológica no sentido do intelecto: salvar, por meio da lógica, a integridade do pensar contra o colapso da linguagem. Assim, a tradução de Porfírio, as interpretações das Categorias e dos Analíticos de Aristóteles, e os tratados sobre o silogismo, constituem o esforço de restituir à mente ocidental a gramática do real.

3.      A Scientia Rationis, tal como a formulo à luz de Boécio, corresponde ao momento em que o espírito humano organiza o mundo por meio da linguagem. Nessa etapa, o ser é apreendido sob a forma da proposição, e a verdade se define pela conformidade entre o intelecto e o ente. Boécio, mais do que qualquer outro latino antigo, percebeu que essa correspondência não é simples adequação (adaequatio), mas movimento de espelhamento: a linguagem não apenas descreve, ela ordena. Por isso, o pensar correto é o primeiro ato de justiça metafísica.

4.      A lógica boeciana é, nesse sentido, o campo onde se cruzam duas linhagens: a aristotélica, que busca a precisão do conceito e da demonstração, e a platônica, que vê na linguagem um meio de ascensão da alma ao inteligível. Boécio não as opõe — as reconcilia. Em seus comentários a Porfírio e Aristóteles, o discurso é compreendido como ponte entre o sensível e o inteligível, entre o mundo das substâncias e o universo das formas racionais. A lógica torna-se, portanto, a ciência da passagem.

5.      Ao traduzir e comentar, Boécio não apenas conservou um corpo doutrinal: ele criou um eixo de convergência para toda a tradição escolástica posterior. Sem ele, a síntese tomista seria impensável; sem seu vocabulário, a análise escotista careceria de estrutura. Com Boécio, a razão latina aprendeu a pensar com rigor geométrico. O logos, até então fluido e poético, converte-se em instrumento de medição. E essa conversão inaugura a ciência medieval como ciência da distinção — scientia distinguendi.

6.      Assim, compreendo o primeiro bloco da Opera Omnia — do Dialogus in Porphyrium ao De Interpretatione — como o labor de fundar o templo interior do intelecto. Cada tratado representa uma coluna dessa estrutura: os universais como fundamentos, as categorias como arcadas, a proposição como nervura, e o silogismo como cúpula da razão discursiva. O edifício do saber se ergue não sobre o caos dos nomes, mas sobre a ordem do ser tornado palavra.


Artigo II — A Ratio como Potência de Ordem: O Método Silogístico e a Purificação da Linguagem

7.      O segundo movimento da Scientia Rationis consiste em compreender que a razão, enquanto faculdade discursiva, é uma potência de ordem. Ela não cria o real, mas o reordena à luz da inteligibilidade. Boécio, ao sistematizar os Analíticos e os tratados silogísticos, dá à razão uma função arquitetônica: construir o pensamento segundo a necessidade interna do ser. Assim, o silogismo não é um mero artifício retórico; é o espelho formal da causalidade.

8.      Essa correspondência profunda entre lógica e ontologia explica a presença de Aristóteles no âmago da obra boeciana. A Interpretatio trata das proposições e de sua verdade; os Analíticos exploram a dedução; e os Posteriores Analíticos revelam o caminho da demonstração científica. Boécio, ao compor essa trilha, propõe uma purificação gradual da linguagem — das palavras aos juízos, dos juízos aos raciocínios, dos raciocínios à ciência. É um itinerário da razão que vai do nome ao conceito, do conceito à verdade.

9.      Quando escrevo sobre o silogismo como instrumento, não o entendo como um esquema vazio de letras, mas como a projeção lógica do ser na mente. O instrumentum cognoscendi é a operação pela qual o intelecto humano se ajusta à forma do real. A linguagem, nesse contexto, é sacramento racional: visível, sonora, mas portadora de essência. Cada termo é uma janela pela qual a mente toca a estrutura invisível do mundo.

10.  A lógica boeciana, portanto, não visa somente ao método do raciocinar, mas à ética do pensar. Pensar corretamente é ordenar-se interiormente, pois toda falsidade é uma desordem da alma antes de ser um erro do discurso. A busca da demonstração é, ao fim, busca da purificação: o intelecto deve libertar-se das ambiguidades, dos equívocos e das idolatrias verbais. O que Boécio realiza é uma ascese racional — uma via purgativa mentis.

11.  Essa divisão em blocos que apresento, e cuja necessidade defendo, nasce dessa própria estrutura ascensional. A razão não pode tratar do número sem antes dominar a forma, nem pode elevar-se à teologia sem antes distinguir o conceito. Cada bloco é uma etapa do desvelamento do ser: da linguagem ao número, do número ao uno, do uno ao Deus. No primeiro bloco, estamos ainda na base — na oficina da mente, onde a palavra é forjada e o conceito depurado.

12.  Por isso, a Scientia Rationis é o limiar de toda filosofia. É nela que a alma aprende a falar segundo o ser e a ouvir segundo a verdade. A lógica, para Boécio, é a arte pela qual o homem se torna capaz de compreender a si mesmo como parte da ordem inteligível. O universo, então, aparece não mais como um caos de nomes, mas como um discurso articulado, e a mente humana, refletindo essa harmonia, torna-se o lugar onde o real se traduz em pensamento.

13.  Concluo, pois, que o primeiro bloco da Opera Omnia é mais do que um conjunto de tratados técnicos: é o mapa da gênese do intelecto ocidental. É aqui que o pensar adquire forma, que o verbo se faz estrutura e que o mundo se torna inteligível. A Scientia Rationis não é o início cronológico do saber, mas seu fundamento metafísico: o ponto onde a linguagem e o ser coincidem sob a luz da forma racional.

CAPÍTULO II — ESTRUTURA, LINGUAGEM E SER: O ESPÍRITO LÓGICO NA ORDEM DO CONHECIMENTO

Artigo I — O Discurso como Espelho do Ser: Entre Porfírio e Aristóteles

1.      Ao penetrar mais profundamente no primeiro bloco da obra boeciana, percebo que a lógica, longe de ser mera técnica de encadeamento formal, é uma ontologia do discurso. Ela existe para que o ser possa ser dito sem se perder em sua multiplicidade. Em Boécio, o dizer é sempre o prolongamento do ser; o logos não é invenção humana, mas participação na estrutura racional do universo. Por isso, o primeiro passo do conhecimento é aprender a dizer o real sem deformá-lo.

2.      Quando Porfírio, em sua Isagoge, propôs a investigação dos universais — gênero, espécie, diferença, propriedade e acidente — ele não pretendia inventar conceitos abstratos, mas mapear o modo como o intelecto participa da ordem das coisas. Boécio, ao traduzir e comentar Porfírio, transformou essa análise num verdadeiro tratado sobre a arquitetura do ser. O problema dos universais, em suas mãos, deixa de ser apenas lógico e torna-se ontológico: compreender os modos da predicação é compreender a própria tessitura do real.

3.      A linguagem, nesse sentido, é o espelho do ser — mas um espelho que deve ser polido pela razão. Boécio compreende que o intelecto humano, sem disciplina, reflete o mundo de forma turva. É o exercício lógico que purifica o espelho, corrigindo as distorções causadas pela paixão, pela pressa ou pela confusão do uso comum das palavras. A lógica não se limita a um campo do saber; é o regime espiritual do discurso. Por isso, quem pensa logicamente vive de acordo com a forma do ser.

4.      A influência aristotélica é decisiva. As Categorias e o De Interpretatione são para Boécio o momento em que a linguagem se ordena em função do real. Nome e verbo tornam-se as duas raízes do discurso: o nome indica a substância, o verbo exprime o movimento. A verdade nasce do encontro entre ambos — quando a mente une o ser e o ato, o sujeito e o predicado. O logos é, então, o ato pelo qual o intelecto repete, em escala humana, a estrutura criadora do cosmos.

5.      Ao comentar Aristóteles, Boécio não busca apenas explicar, mas restituir à linguagem sua função de mediação entre o homem e o ser. Cada proposição, em sua visão, é uma síntese ontológica, uma miniatura do universo racional. O ato de enunciar, por menor que seja, participa do ato universal de inteligir. Assim, falar corretamente é cooperar com o logos divino; falar falsamente é romper a ordem do ser.

6.      É nesse ponto que a Scientia Rationis assume seu valor iniciático. Antes de ascender às ciências matemáticas e à teologia, o intelecto deve ser purificado de suas próprias imperfeições discursivas. A lógica é a ascese do dizer. Ela ensina que a verdade não é apenas descoberta, mas construída segundo uma forma: a forma do pensamento verdadeiro. Por isso, o estudo de Porfírio e Aristóteles não é apenas histórico — é espiritual. É o treino da mente que quer ver o mundo como ele é, e não como o desejo o deforma.


Artigo II — O Intelecto e a Verdade: Da Interpretação à Demonstração Científica

7.      Quando passo das Categorias e da Interpretação aos Analíticos de Aristóteles — como Boécio o faz — percebo a passagem da lógica como arte da linguagem à lógica como ciência da verdade. A proposição se converte em raciocínio, e o raciocínio em demonstração. A mente abandona o terreno instável das palavras e alcança o espaço das formas necessárias. Esse itinerário é o próprio caminho da razão em direção ao conhecimento puro.

8.      O que Boécio compreendeu com singular clareza é que toda verdade humana é um eco da estrutura divina do ser. No De Interpretatione, a proposição é o ponto de encontro entre o pensar e o ser; nos Analíticos, o silogismo é o caminho pelo qual o intelecto reproduz a causalidade. O Priorum Analyticorum estabelece o método dedutivo — a passagem da verdade de premissas à conclusão — enquanto o Posteriorum Analyticorum revela a ciência como saber das causas. Assim, a lógica culmina em metafísica: conhecer é ordenar, e ordenar é participar da ordem.

9.      Nessa visão, a demonstração científica não é mera formalização do raciocínio, mas a confirmação de que a mente humana pode operar segundo as leis da inteligência divina. Quando demonstro algo, não crio uma verdade; torno-me intérprete de uma ordem que me precede. O raciocínio apodítico é, portanto, uma oração silenciosa, uma recitação racional da estrutura do mundo. Cada conclusão necessária é um ato de reverência ao Ser.

10.  A divisão dos tratados boecianos nesse primeiro bloco manifesta a própria pedagogia do intelecto: inicia-se com a palavra, avança à proposição, culmina no silogismo e termina na demonstração. Trata-se de uma escada ascendente, cuja finalidade não é a acumulação de técnicas, mas a purificação do olhar. O pensamento, para ser verdadeiro, deve primeiro tornar-se transparente a si mesmo. A Scientia Rationis é essa transparência conquistada.

11.  Essa ordenação em blocos — lógica, dialética, matemática e teologia — não é uma invenção moderna, mas a descoberta de uma estrutura necessária. O saber humano não se desenvolve por acumulação, mas por transfiguração. O primeiro bloco representa o nascimento da mente; o segundo, sua maturidade discursiva; o terceiro, sua contemplação da ordem; o quarto, sua união com o Uno. Boécio é, portanto, o arquiteto dessa ascensão racional: constrói o edifício do espírito a partir da pedra fundamental da linguagem.

12.  Ao concluir este estudo introdutório, reconheço que a Scientia Rationis não é apenas o ponto de partida, mas o coração da filosofia boeciana. Todo o edifício posterior — dialético, matemático e teológico — repousa sobre ela. Sem a lógica, a dialética degeneraria em disputa vazia; sem a estrutura formal do discurso, a teologia perderia sua inteligibilidade. A razão é o templo, e Boécio é seu arquiteto maior no mundo latino.

13.  Assim, quando olho para o conjunto da Opera Omnia, vejo nesse primeiro bloco a imagem do próprio intelecto humano em sua gênese: um movimento do som ao sentido, da palavra à verdade, do signo ao ser. Boécio nos ensina que pensar é ordenar, e ordenar é salvar o mundo do caos. A lógica é, pois, a forma terrestre da eternidade: o espelho onde o ser se reconhece no verbo.

 

LÓGICA — Scientia Rationis (A Arte do Pensar Correto)

(Instrumentum cognoscendi – o método da razão discursiva)

  1. Dialogi in Porphyrium a Victorino translati — Introdução aos universais.
  2. Commentaria in Porphyrium — Natureza do gênero, espécie e diferença.
  3. In Categorias Aristotelis libri quatuor — Estrutura das substâncias e acidentes.
  4. In librum Aristotelis De Interpretatione (Commentaria minora et majora) — Proposição, verbo e verdade lógica.
  5. Interpretatio Priorum Analyticorum Aristotelis — Dedução e raciocínio apodítico.
  6. Interpretatio Posteriorum Analyticorum Aristotelis — Demonstração científica.

Síntese: A mente organiza o ser por meio da linguagem e do silogismo.
Função: Purificar a razão das ambiguidades da fala e ordenar o pensamento segundo a verdade.


II. DIALÉTICA E TÓPICA — Ars Disserendi (A Arte de Raciocinar)

(Scientia argumentandi – a razão aplicada ao diálogo e à disputa)

  1. Introductio ad Syllogismos Categoricos — Estrutura básica do raciocínio.
  2. De Syllogismo Categorico libri duo — Regras do silogismo afirmativo e negativo.
  3. De Syllogismo Hypothetico libri duo — Condicionais e raciocínios compostos.
  4. Liber de Divisione — Distinção dos gêneros e espécies.
  5. Liber de Definitione — Essência e conceito.
  6. Interpretatio Topicorum Aristotelis — Os loci da argumentação provável.
  7. Interpretatio Elenchorum Sophisticorum — Refutação dos sofismas.
  8. Commentaria in Topica Ciceronis — Retórica filosófica romana.
  9. De Differentiis Topicis — Tópicos como mediação entre lógica e retórica.

Síntese: Da análise formal à dialética viva, o intelecto aprende a ordenar e refutar.
Função: Converter o raciocínio abstrato em instrumento de persuasão racional.


III. CIÊNCIAS MATEMÁTICAS E METAFÍSICAS — Scientia Ordinis (A Arte da Ordem Universal)

(Scientia numerorum – o ser enquanto proporção e harmonia)

  1. De Arithmetica libri duo — O número como essência da forma.
  2. De Musica libri quinque — A harmonia como reflexo da ordem cósmica.
  3. De unitate et uno — O Uno como princípio metafísico do ser.
  4. De Rhetorica Cognatione — A retórica como ciência da proporção entre almas e ideias.
  5. Locorum Rhetoricorum Distinctio — Classificação dos lugares da argumentação.

Síntese: A razão ascende da análise do discurso à contemplação da unidade e proporção.
Função: Restabelecer a ligação entre número, forma e espírito — a ordem invisível do cosmos.


IV. TEOLOGIA — Scientia Divina (A Unidade em Deus)

(Scientia salutis – a razão redimida pela fé)

  1. De Unitate Trinitatis (cum commentario Gilberti Porretae) — A essência una em três pessoas.
  2. Utrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de Divinitate Substantialiter Praedicentur — Predicação substancial da Trindade.
  3. Quomodo Substantiae Bonae Sint (cum Gilberti commentario) — Participação das substâncias no bem divino.
  4. De Persona et Duabus Naturis Christi (cum Gilberti Porretae commentario) — Cristo como unidade de duas naturezas.

MANLII SEVERINI BOETII — IN PORPHYRIUM DIALOGI

(Diálogos sobre Porfírio)

A Victorino TranslatiTraduzidos por Victorino

ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 336–339 (ed. Migne, Tomus LXIV)

1.      Dialogus PrimusPrimeiro Diálogo.
De intentione, utilitate et ordine introductionis Porphyrianae.
(Sobre a intenção, a utilidade e a ordem da Introdução Porfiriana.)

2.      Dialogus SecundusSegundo Diálogo.
De quinque vocibus: genere, specie, differentia, proprio et accidente.
(Sobre as cinco vozes: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente.)

3.      Dialogus TertiusTerceiro Diálogo.
De natura generis et speciei.
(Sobre a natureza do gênero e da espécie.)

4.      Dialogus QuartusQuarto Diálogo.
De differentiis, propriis et accidentibus.
(Sobre as diferenças, propriedades e acidentes.)

5.      Dialogus QuintusQuinto Diálogo.
De divisione et definitione.
(Sobre a divisão e a definição.)


DIALOGUS PRIMUS — PRIMUS COLLOQUIUM

(Primeiro Diálogo — Sobre a intenção, utilidade e ordem da Introdução Porfiriana)

col. 336A–340C (Migne, Tomus LXIV)

Tendo subido aos montes Aurelios em tempo de inverno, e ali, quando um vento mais violento dispersou o sossego da noite, aprouve-me rever aquelas coisas que os doutíssimos homens haviam escrito para iluminar, de certo modo, as vistas do intelecto, obscurecidas pela espessa névoa. Eles, com comentários introdutórios, buscaram guiar as mentes ao entendimento.

Fábio deu início à conversa. Quando me viu deitado, e meditando sobre tais assuntos, exortou-me a cumprir o que muitas vezes prometera: que lhe transmitisse alguma disciplina dessa matéria. Como naquele tempo cessavam as saudações familiares e os negócios domésticos, concordei.

Perguntado então sobre quais coisas desejava que eu explicasse e desatasse, disse Fábio: “Já que o tempo e o tema o permitem, peço-te que me expliques o que Victorino, orador e varão doutíssimo de seu tempo, traduziu de Porfírio per εσαγωγήν, isto é, pela Introdução às Categorias de Aristóteles.”

“Antes, porém,” disse ele, “ensina-me aquelas instruções didascálicas preliminares que os mestres costumam dar, para tornar dóceis os ânimos dos discípulos.”

Respondi-lhe: “Seis são, em toda exposição, as coisas que os mestres costumam preparar. Primeiro, ensinam qual é a intenção (intentio) de qualquer obra, o que os gregos chamam σκοπός; segundo, qual é a utilidade (χρησιμότης); terceiro, qual é a ordem (τάξις); quarto, se o livro é autêntico do autor, o que se chama γνήσιον; quinto, qual é o seu título (πιγραφή); e sexto, a qual parte da filosofia se refere a intenção do livro (ες ποον μέρος φιλοσοφίας ναγεται).”

“Tudo isso,” continuei, “deve ser investigado e esclarecido em qualquer obra filosófica.”

Então Fábio perguntou: “Qual é a intenção desta Introdução?”

Respondi: “Aristóteles, que é a ponte desta introdução, não pode ser compreendido senão preparando previamente o intelecto para as coisas de que vai tratar. Porfírio viu que, em todas as coisas, há uma certa natureza primeira da qual procedem as demais. Assim como a cor é um acidente, e o corpo é substância: quando contemplas o corpo, isto é, a substância, o fazes revestido de algum acidente, isto é, de alguma cor. Por isso, não há substância sem acidente, nem acidente sem substância; onde há substância, logo o acidente a acompanha.”

“Porfírio, considerando que nessas duas realidades — substância e acidente — se movem os gêneros, espécies, propriedades e diferenças, e que estas se assinalam por distinções próprias, decidiu tratar principalmente de gênero, espécie, diferença, propriedade e acidente.”

“E porque esse tratado é útil para as definições — pois se alguém incluir um acidente na definição geral, definirá incorretamente — resolveu também tocar brevemente nos acidentes, para que as definições futuras sejam perfeitas.”

“Portanto, esta é a intenção da obra: tratar do gênero, da espécie, das diferenças, das propriedades e dos acidentes.”

Disse então Fábio: “Explicaste a intenção; agora, expõe a utilidade.”

Respondi: “Vários e múltiplos são os benefícios deste trabalho. Primeiramente, é utilíssimo para a compreensão das Categorias de Aristóteles, pois delas depende o entendimento da substância e do acidente, fundamentos de toda a lógica e da física. Também serve para toda a divisão filosófica: por gênero compreendemos a filosofia como um todo; por espécie, distinguimos as partes — especulativa e prática.”

“A ciência destas cinco coisas — gênero, espécie, diferença, próprio e acidente — prepara-nos um caminho em toda investigação filosófica: pois, quando aprendemos o que é o gênero, entendemos a filosofia em sua universalidade; quando aprendemos o que é espécie, distinguimos o que pertence à contemplação (θεωρητική) e o que pertence à ação (πρακτική). A diferença ajuda-nos a conhecer as distinções entre as espécies da filosofia; o próprio indica o que é exclusivo de cada uma; o acidente mostra o que nelas se encontra por acréscimo e não por essência.”

“Assim, por essas cinco noções compreende-se toda a estrutura da razão filosófica. E é por isso que a Introdução de Porfírio deve ser estudada antes de todas as obras de Aristóteles.”

MANLII SEVERINI BOETII — IN PORPHYRIUM DIALOGI

(Diálogos sobre Porfírio)

A Victorino TranslatiTraduzidos por Victorino


ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 340C–341A

1.      Dialogus Secundus — De Differentia.
(Segundo Diálogo — Sobre a Diferença).
 Trata da natureza da alma racional e da distinção essencial que separa o homem dos demais seres; define a
differentia como princípio de separação formal entre espécies do mesmo gênero, introduzindo a transição lógica para as categorias aristotélicas.


DIALOGUS SECUNDUS — DE DIFFERENTIA

(Segundo Diálogo — Sobre a Diferença)

col. 340C–346B

Muitas coisas nos foram concedidas pela natureza, nosso pai comum, assim como às demais criaturas animadas, mas a nós ela deu dons mais graves e ilustres.
Essa natureza benigna, artífice da humanidade, aprimorou-nos de tal modo que primeiro nos concedeu o espírito capaz de pensar e considerar; depois, à razão já descoberta, acrescentou o dom da palavra — como se tivesse querido e ordenado que não nos distinguíssemos dos animais apenas pelos sentidos do corpo, mas pela divindade da mente.

Quando, pois, essa mente se une à própria vivacidade e não se desvia de sua natureza, torna-se, como ela mesma é, da ordem eterna; e assim também perpetua nos filhos a imagem da imortalidade e da glória, igualando-os ao tempo infinito.
Mas, se a mente se entregar às torpezas dos apetites corporais e permitir-se corromper e perder, seguirá a natureza do corpo.
Nada então restará de sua vivacidade após a morte, pois todo seu esforço e estudo foram aplicados às coisas corporais e no corpo.

Cumpre, portanto, cuidar para que nos tornemos melhores e mais atentos, não pelas coisas em que nada diferimos das bestas, mas pelas quais, pela semelhança com as virtudes celestes, possamos merecer a glória da eternidade por feitos e palavras excelentes.
Mas deixemos isso para outro momento; agora retornemos à matéria proposta.

Quando vieram as vigílias habituais de outra noite de estudo, creio que Fábio, tomado pela sutileza da razão de ontem — ou, talvez, pela mesma curiosidade que me movia — aproximou-se dizendo: “Tens, Boécio, prometido instruir-me mais amplamente sobre a differentia de que falaste. Explica-me o que é, e como se distingue das outras quatro vozes.”

Respondi-lhe: “A diferença (differentia) é aquilo pelo qual as coisas, que são de um mesmo gênero, se distinguem entre si. Assim como o homem e o cavalo pertencem ao mesmo gênero — ambos são animais —, contudo o acréscimo do ‘racional’ separa o homem do cavalo, e o acréscimo do ‘irracional’ separa o cavalo do homem.”

“De igual modo, tanto os homens quanto os deuses são racionais; mas o acréscimo do ‘mortal’ distinguiu os homens dos deuses. Assim, o racional distingue o homem do bruto, e o mortal distingue o homem do divino.”

“Alguns definem mal o termo diferença, dizendo ser ‘aquilo pelo qual cada coisa difere de outra’. Essa definição nada esclarece: é como se alguém dissesse que a diferença é o que é diferença, ou, o que vem a ser o mesmo, definisse o termo por ele mesmo. Tal definição é viciosa e nada acrescenta ao conhecimento.”

“Pois, se ainda não sabemos o que é diferença, e ela é definida por si mesma, como poderemos reconhecer o que significa diferir? Tal explicação é círculo vazio: ensina o nome por meio do nome.”

“A diferença deve ser entendida como a forma que separa espécies do mesmo gênero. Assim, o homem e o cavalo, sendo ambos animais, diferem pela diferença ‘racional’ e ‘irracional’; e o homem e os deuses, pela diferença ‘mortal’ e ‘imortal’.”

“Logo, as diferenças substanciais se colhem por esse modo: o racional distingue o homem do cavalo; o mortal, o homem dos deuses. Se, porém, Sócrates está sentado e Platão caminha, a diferença entre eles é o sentar e o caminhar — o que é acidente, não substância.”

“Pois essa diferença acidental é incluída também pela definição que diz: ‘diferença é aquilo pelo qual as coisas diferem umas das outras’, já que abrange tanto as substanciais quanto as acidentais.”

“Mas, em filosofia, quando falamos de diferença, devemos entender principalmente a substancial, aquela que distingue uma espécie de outra dentro do mesmo gênero pela essência, não pelo acidente.”

Fábio, então, disse: “Compreendo que o racional e o mortal distinguem substancialmente; mas por que chamamos tais distinções de diferenças e não de propriedades?”

Respondi: “Porque a propriedade (proprium) é aquilo que, embora acompanhe sempre uma essência, não a constitui. O riso, por exemplo, é próprio do homem, mas não o define; pois é possível pensar a humanidade sem o ato de rir, mas não sem a racionalidade. A diferença, ao contrário, entra na constituição da definição: se tiras o racional, já não resta o homem, mas apenas o animal.”

“Portanto, a diferença é o limite que constitui a essência da espécie dentro do gênero; e é por ela que a definição se completa, como se disséssemos: ‘O homem é animal racional e mortal’. Sem a diferença, o gênero permaneceria informe e incompleto.”

“Assim, toda definição se compõe de gênero e diferença; o gênero declara a matéria comum, e a diferença, a forma que determina a espécie.”

Fábio: “Entendo, então, que as diferenças são como as formas das espécies.”
Boécio: “Exatamente. Por isso Aristóteles as chama de ‘formas específicas’, porque delimitam o universal e fazem surgir o particular.”

“E assim, Fábio, vê que a diferença não é mera qualidade, mas um princípio formal da razão. Sem ela, as espécies se confundiriam, e o discurso lógico não teria precisão.”

“Devemos, portanto, reconhecer na diferença o poder de dar contorno à natureza das coisas, unindo-as ao gênero e separando-as entre si pela razão. E esta é a utilidade e dignidade da differentia.”

Fábio respondeu: “Explicaste-me com tanta clareza que agora compreendo por que Porfírio, e depois Aristóteles, iniciam a doutrina dos predicáveis por ela. A diferença é como uma linha divisória entre o universal e o singular.”

Boécio concluiu: “Bem disseste. E já que a aurora se levanta e as vozes matutinas chamam, reservemos o restante para as vigílias da noite seguinte.”

MANLII SEVERINI BOETII — IN PORPHYRIUM DIALOGI

(Diálogos sobre Porfírio)

A Victorino TranslatiTraduzidos por Victorino


ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 346B–347A

1.      Dialogus Tertius — De Natura Generis et Speciei.
(Terceiro Diálogo — Sobre a Natureza do Gênero e da Espécie).
 Examina se os gêneros e as espécies subsistem por si mesmos ou apenas no intelecto; se são corporais ou incorpóreos; se estão separados das coisas sensíveis ou nelas existentes. Apresenta a famosa tríplice questão porfiriana que influenciou toda a filosofia escolástica.


DIALOGUS TERTIUS — DE NATURA GENERIS ET SPECIEI

(Terceiro Diálogo — Sobre a Natureza do Gênero e da Espécie)

col. 347A–351A

Quando retornamos, Fábio e eu, ao mesmo lugar onde antes discutíramos as vozes de Porfírio, ele me saudou dizendo:
“Já que explicaste claramente a diferença, e o seu poder de separar as espécies, desejo agora que examines aquilo que Porfírio deixou proposto, mas suspenso, no limiar de sua Introdução — questão que, como sabes, deu origem a muitas disputas entre os intérpretes.”

“Pergunto-te, pois: os gêneros e as espécies, que Porfírio chama de ‘vozes universais’, existem por si mesmos ou apenas no intelecto? Se existem, são corpóreos ou incorpóreos? E, se incorpóreos, estão separados das coisas sensíveis ou nelas se encontram e subsistem?”

Respondi: “Tuas perguntas são as mesmas que Porfírio, por prudência, se absteve de resolver, temendo enredar o leitor principiante em questões demasiado profundas. Pois ele mesmo diz, no início de sua obra, que não tratará de saber se os gêneros e espécies subsistem por si ou apenas na mente, nem se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados das coisas sensíveis ou nelas. Mas, já que insistes, tentarei propor uma via intermediária.”

“Primeiramente, devemos compreender o que se entende por gênero e espécie. Gênero é aquilo que se predica de muitas coisas diferentes em espécie, mostrando o que há de comum entre elas; espécie é o que se predica de muitos indivíduos que diferem apenas em número. Assim, o animal é gênero, pois se diz do homem e do cavalo; e homem é espécie, pois se diz de Sócrates e de Platão.”

“Digo, portanto, que gênero e espécie não existem fora das coisas sensíveis como substâncias separadas, nem existem apenas no pensamento, mas de modo duplo: nas coisas e no intelecto. Nas coisas, enquanto constituem a própria forma comum pela qual muitos são o que são; no intelecto, enquanto a razão os apreende como universais, abstraindo a matéria e os acidentes.”

“Por exemplo: o que é homem? Animal racional e mortal. Esse ‘animal racional e mortal’ não é algo fora de todos os homens, mas existe em cada um, enquanto forma pela qual são homens. Contudo, a mente, ao considerar o que é comum em todos, concebe o universal ‘homem’ — não existente fora dos homens, mas pensado a partir deles.”

“Logo, o gênero e a espécie existem nas coisas, mas são entendidos como universais apenas pelo intelecto.”

“Deve-se, portanto, distinguir entre o modo de ser e o modo de compreender. O modo de ser pertence à realidade; o modo de compreender pertence à razão. A razão concebe o universal abstraindo a matéria, mas a coisa não pode existir sem a matéria individual.”

“Assim, o gênero é a natureza comum considerada em si, e a espécie, essa mesma natureza determinada por uma diferença. Quando a mente abstrai, chama a isso universal; quando considera na realidade, é particular.”

Fábio replicou: “Mas, se o gênero está nas coisas, como pode ser incorpóreo, se as coisas são corpóreas?”

Respondi: “Ele é incorpóreo não por estar separado do corpo, mas porque, embora exista em corpo, não é corpo. Pois, como a brancura existe em um corpo branco, mas não é corpo, assim também o gênero existe nas substâncias corporais, mas não é corpo.”

“E, do mesmo modo, os gêneros das substâncias incorpóreas — como os anjos ou as almas — existem nelas, mas não são corpóreos. Assim, o gênero não se define pela corporeidade ou incorporeidade, mas pela comunidade de natureza.”

“Quanto à separação, não se deve entender como se houvesse, fora dos indivíduos, uma substância geral chamada ‘animal’ ou ‘homem’. Pois, se houvesse tal substância, não seria mais universal, mas um indivíduo, como Sócrates.”

“Portanto, os gêneros e as espécies não estão separados das coisas sensíveis, mas nelas, e são abstraídos pela mente. O intelecto, ao abstrair, considera o comum sem os acidentes, e por isso forma o universal. Não se trata, porém, de uma existência fora das coisas, mas de uma concepção da razão.”

“Eis por que Aristóteles, combatendo as Ideias platônicas, ensinou que os universais não têm existência separada, mas subsistem nas coisas singulares. Platão, ao contrário, colocou-os em uma região inteligível, separados das coisas sensíveis. Eu, porém, sigo Aristóteles, com Porfírio e com Alexandre, que dizem: o universal não é uma substância fora dos singulares, mas uma forma comum compreendida pela mente.”

“Assim, Fábio, o gênero e a espécie não são puros conceitos sem fundamento, como pensam os que negam qualquer realidade às naturezas comuns; nem são substâncias separadas, como querem os platônicos. São, antes, naturezas reais nas coisas e universais na razão.”

Fábio, então, concluiu: “Vejo que harmonizas as doutrinas, de modo que nem negas o real, nem multiplicas substâncias. O gênero e a espécie são o que a mente apreende das coisas, não fora delas, mas nelas mesmas.”

Boécio respondeu: “Assim é. E essa distinção entre o modo de ser e o modo de compreender é a chave de toda a lógica. Pois quem não distingue entre o que é na realidade e o que é na concepção do intelecto, jamais compreenderá nem as Categorias de Aristóteles, nem a Introdução de Porfírio.”

“Deixemos, pois, para o próximo diálogo o exame das diferenças, propriedades e acidentes, a fim de completar o círculo das cinco vozes.”


Finis Dialogi Tertii — Fim do Terceiro Diálogo
(col. 351A)

MANLII SEVERINI BOETII — IN PORPHYRIUM DIALOGI

(Diálogos sobre Porfírio)

A Victorino TranslatiTraduzidos por Victorino


ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 351A–351C

1.      Dialogus Quartus — De Differentiis, Propriis et Accidentibus.
(Quarto Diálogo — Sobre as Diferenças, os Próprios e os Acidentes.)
 Explica a distinção entre diferença e próprio, entre próprio e acidente, mostrando a hierarquia dos predicáveis e a função das propriedades na definição e demonstração. Conclui o círculo lógico iniciado nos diálogos anteriores, preparando a passagem para a arte definidora e divisória.


DIALOGUS QUARTUS — DE DIFFERENTIIS, PROPRIIS ET ACCIDENTIBUS

(Quarto Diálogo — Sobre as Diferenças, os Próprios e os Acidentes)

col. 351C–355A (Migne, Tomus LXIV)

No dia seguinte, quando nos reencontramos no mesmo retiro, Fábio me saudou com o mesmo ardor de estudo, e disse:
“Depois de ouvir tua exposição sobre o gênero e a espécie, desejo agora compreender mais distintamente as diferenças, os próprios e os acidentes; pois vejo que Porfírio, tendo posto essas cinco vozes, quer que nelas se contenha toda a estrutura da lógica.”

Respondi: “Farei o que pedes. Mas deves lembrar-te de que já dissemos algo sobre a diferença. Resta, pois, distinguir-lhe o lugar em relação ao próprio e ao acidente.”

“A diferença é aquilo pelo qual as coisas que são de um mesmo gênero se separam entre si pela essência. O próprio é o que, embora não constitua a essência, acompanha-a sempre e somente. O acidente é o que pode tanto estar quanto não estar na mesma essência.”

“Por exemplo: o homem e o cavalo pertencem ao gênero animal; diferem pela diferença racional e irracional. O riso, porém, é próprio do homem, pois acompanha apenas a natureza racional, mas não a constitui. Já a cor branca é acidente, pois o homem pode ser branco ou negro sem deixar de ser homem.”

“Dessas três noções, vê-se que a diferença pertence à constituição da essência, o próprio à sua manifestação, e o acidente à sua variação.”

Fábio perguntou: “Mas por que dizemos que o próprio acompanha sempre a essência, se os homens às vezes não riem, e o riso é dito próprio do homem?”

Respondi: “O próprio não se refere ao ato, mas à potência. O homem é risível, mesmo que não ria. Pois a capacidade de rir é inseparável de sua natureza racional, ainda que o exercício dependa do ânimo e da ocasião.”

“Assim, o riso é próprio não enquanto ato, mas enquanto possibilidade. Por isso, a definição do próprio é esta: ‘O que pertence a uma só coisa e a ela em todo tempo, embora não sempre em ato.’”

“Os acidentes, ao contrário, não pertencem a uma só coisa, nem sempre, nem necessariamente. Podem existir em um sujeito, e dele ausentar-se, sem destruição da essência. Por isso, Aristóteles define o acidente como ‘aquilo que pode ser e não ser no mesmo sujeito sem corrupção deste’.”

Fábio: “E como distinguimos os acidentes necessários dos não necessários?”

Boécio: “Há dois modos de acidente: um inseparável, outro separável. Inseparável é aquele que, embora não pertença à essência, sempre acompanha a coisa — como a escuridão na noite, ou a brancura no cisne. Separável é aquele que ora está, ora não está, como a posição de sentado ou de pé no homem.”

“Portanto, o inseparável não constitui essência, mas é constante com ela; o separável é inteiramente contingente.”

“Além disso, há acidentes próprios de cada indivíduo e acidentes comuns a muitos. O riso, enquanto potência, é próprio da espécie humana; a cicatriz, por exemplo, é acidente de um indivíduo.”

Fábio: “Então o próprio seria um acidente inseparável, e a diferença, a essência mesma?”

Boécio: “De certo modo, sim. O próprio participa da natureza do acidente, porque não define; mas participa da natureza da essência, porque é necessário e exclusivo. Assim, ele ocupa uma posição intermediária: é o acidente mais próximo da essência.”

“Eis por que alguns o chamam de ‘acidente essencial’. Mas essa expressão é apenas uma aproximação: pois a essência é o que é, e o próprio é o que é sempre com ela.”

“Daí provém a ordem lógica das cinco vozes:
1º, o gênero, que contém em si as naturezas comuns;
2º, a espécie, que determina o gênero por diferença;
3º, a diferença, que constitui a essência específica;
4º, o próprio, que acompanha a essência sem defini-la;
5º, o acidente, que não pertence à essência nem a acompanha necessariamente.”

“Esta ordem é perfeita e circular, pois o gênero é o primeiro na universalidade, e o acidente o último na contingência. E entre ambos se dispõem a espécie, a diferença e o próprio, conforme maior ou menor proximidade da substância.”

“Assim, toda a arte da lógica se funda nestas cinco vozes, como em pilares que sustentam o edifício do raciocínio. Nada pode ser definido, demonstrado ou distinguido fora delas.”

Fábio respondeu: “Compreendo agora como estas distinções se aplicam às categorias de Aristóteles. Pois ali também encontramos a substância, que corresponde ao gênero e espécie; e os nove acidentes, que derivam dos modos acidentais da predicação.”

Boécio replicou: “Disseste bem. Por isso, Porfírio é como o portal das Categorias. Ele prepara o espírito para compreender a relação entre o universal e o singular, e entre a substância e o acidente.”

“A Introdução de Porfírio, assim, é o limiar da filosofia. Aquele que entende suas cinco vozes, já possui a chave de todos os discursos: a do que é dito de muitos, a do que é próprio de um, a do que subsiste e do que apenas ocorre.”

“Eis, Fábio, o fim de nosso exame. Daqui por diante, não há mais o que Porfírio tenha deixado sem explicação, a não ser que prossigamos às Categorias mesmas de Aristóteles.”

Fábio: “Com efeito, o que era confuso tornou-se claro; e percebo agora como essas cinco vozes são os degraus pelos quais se sobe ao conhecimento de toda a filosofia.”

Boécio: “Se compreendeste isso, ganhaste mais que o exercício de um dia: adquiriste o alicerce do entendimento universal.”

Assim, encerramos o diálogo e demos graças ao Criador, que concedeu ao homem a faculdade de buscar, pelo discurso, o caminho da verdade.


Finis Dialogi Quarti — Fim do Quarto Diálogo
(col. 355A)

MANLII SEVERINI BOETII — IN PORPHYRIUM DIALOGI

(Diálogos sobre Porfírio)

A Victorino TranslatiTraduzidos por Victorino


ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 355A–355C

1.      Dialogus Quintus — De Divisione et Definitione.
(Quinto Diálogo — Sobre a Divisão e a Definição.)
 Examina o modo de dividir corretamente os gêneros em espécies e de definir segundo a essência, distinguindo a divisão lógica da divisão real. Explica que toda definição perfeita deve conter gênero e diferença, e que a arte da divisão é o método natural do intelecto para apreender o ser.


DIALOGUS QUINTUS — DE DIVISIONE ET DEFINITIONE

(Quinto Diálogo — Sobre a Divisão e a Definição)

col. 355C–359C

No dia seguinte, ao voltar à mesma morada de estudos, Fábio, vindo ao meu encontro, disse-me com certo júbilo:
“Depois de tantas coisas que explicaste — o gênero, a espécie, a diferença, o próprio e o acidente —, parece-me que falta agora apenas uma: ensina-me de que modo se dividem e definem corretamente as coisas; pois vejo que, sem a arte de dividir e definir, tudo o que aprendemos permanece confuso.”

Respondi: “Dizes bem. Pois toda doutrina filosófica exige que saibamos distinguir as coisas por divisão e compreendê-las por definição. A divisão separa o que é comum, e a definição encerra o que é próprio.”

“A divisão é a separação do todo em suas partes, segundo a natureza ou a razão. Há divisões naturais e divisões lógicas. A natural ocorre quando o todo realmente se compõe de partes — como o corpo se divide em membros, ou a linha em pontos. A lógica é aquela que o intelecto realiza, quando, do universal, desce ao particular — como o gênero se divide em espécies.”

“Toda divisão deve ser feita por diferenças opostas, que não se excluam entre si e que não se sobreponham. Se dizes, por exemplo, que o animal se divide em racional e irracional, a diferença é perfeita, porque todo animal é necessariamente um ou outro, e nada resta fora da divisão.”

“Mas se dividires o animal em homem, cavalo e ave, cometerás erro: pois não dividiste por diferenças, mas por espécies, e não atingiste as causas pelas quais as espécies se distinguem.”

“A regra principal é que a divisão se faça sempre por diferenças próximas, até chegar às espécies indivisíveis, que já não se podem subdividir sem destruir sua natureza.”

“Do mesmo modo, a definição é a exposição do que uma coisa é (quid est), composta do gênero e da diferença. Diz-se, portanto, que definir é circunscrever a essência, mostrando a matéria comum pelo gênero e a forma específica pela diferença.”

“Assim, se digo que o homem é animal racional e mortal, mostro o gênero — animal —, e acrescento a diferença — racional e mortal —, que o distingue das outras espécies do mesmo gênero. Dessa união nasce a definição perfeita.”

“Deve-se, porém, evitar que o acidente entre na definição. Pois o que pode faltar sem destruir a essência, não pertence à definição essencial. Dizer que o homem é animal risível seria incorreto: o riso é próprio, não definidor. O que é próprio mostra o efeito da essência, não sua constituição.”

“Além disso, a definição deve ser nem demasiadamente ampla, nem demasiado estreita. Se disseres que o homem é animal racional, a definição é ampla, pois também os deuses são racionais. Se disseres que é animal mortal, é estreita, pois o cavalo também o é. Portanto, acrescenta-se ambas as diferenças, para que o homem seja definido por aquilo que lhe é exclusivo — racional e mortal.”

Fábio perguntou: “Toda definição, então, deve proceder do gênero até a diferença última?”
Boécio respondeu: “Sim. A definição é como uma descida gradual do universal ao singular. Por isso se diz que definir é dividir até a essência. Pois, à medida que a mente distingue o que é comum e o que é próprio, ela se aproxima da forma que constitui o ser.”

“A divisão é, portanto, o caminho da definição. A definição é o termo da divisão. A primeira abre o campo do conhecimento; a segunda o encerra na essência.”

“Os antigos filósofos, por isso, chamaram a divisão de ‘via natural do intelecto’. Pois a mente, buscando o que é cada coisa, começa pelo universal e termina no específico. O gênero é como uma semente comum; a diferença, como a forma que lhe dá figura; a definição, como o fruto maduro do conhecimento.”

“Assim, a ciência nasce da ordem, e a ordem nasce da divisão. Quem ignora dividir, jamais saberá definir; e quem define sem dividir, não conhece as causas.”

Fábio disse: “Parece-me que toda a arte do raciocínio se encerra nessas duas coisas: dividir e definir.”
Boécio: “Com efeito. Pois dividir é discernir, e definir é compreender. O primeiro pertence à análise, o segundo à síntese. Pela divisão o intelecto separa o múltiplo; pela definição o recolhe ao uno. Assim, a divisão é o movimento descendente da razão; a definição, o movimento ascendente da inteligência.”

“Por isso, os dialéticos chamam a divisão de ‘instrumento da investigação’, e a definição, de ‘instrumento da demonstração’. A divisão abre o caminho para o descobrimento das essências; a definição fixa o termo do saber.”

“Eis por que Aristóteles diz, no livro das Categorias, que toda a doutrina filosófica procede da distinção e termina na essência. Pois o que não se distingue, confunde-se; e o que não se define, permanece ignorado.”

“Logo, Fábio, quem domina a arte de dividir e de definir, possui as chaves da sabedoria. Ele sabe de onde vêm as coisas e o que são. Conhece as causas, as formas e os limites.”

“Assim se completa o círculo das cinco vozes e de suas aplicações: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente — e, agora, divisão e definição. Pois estas duas são como o selo e a medida de todas as outras.”

Fábio concluiu: “Agora vejo que as cinco vozes são como os instrumentos, e a divisão e a definição, como a mão que os dirige. Sem elas, o discurso filosófico seria um som sem harmonia.”

Boécio sorriu e respondeu: “Disseste bem, Fábio. Pois a razão humana é como um músico que, ao ordenar os tons da harmonia, não os inventa, mas os descobre. Assim também o intelecto, ao dividir e definir, não cria as essências, mas as reconhece.”

“Eis o fim de nosso trabalho sobre Porfírio. O resto cabe à leitura das Categorias, onde Aristóteles tratará mais abertamente da substância, do acidente e do ser.”

Assim terminou o diálogo, e ambos demos graças à sabedoria que, do alto, conduz as almas pela ordem da razão até a visão do Uno.


Finis Dialogi Quinti — Fim do Quinto Diálogo
(col. 359C)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


ÍNDICE BILÍNGUE (Index Capitum)

col. 359C–360B (Tomus LXIV, Migne)

1.      Prooemium.
Prólogo.
 Boécio explica o propósito da Introdução de Porfírio e a necessidade dos cinco universais como fundamento da dialética.

2.      Caput I — De quinque vocibus.
Sobre as cinco vozes.
 Define gênero, espécie, diferença, próprio e acidente segundo a tradição aristotélica.

3.      Caput II — De intentione Porphyrii.
Sobre a intenção de Porfírio.
 Explica o escopo do
Isagoge e sua função preparatória para as Categorias de Aristóteles.

4.      Caput III — De unitate et communitate generis et speciei.
Sobre a unidade e a comunidade do gênero e da espécie.
 Analisa como os universais se predicam de muitos e as distinções de sua extensão.

5.      Caput IV — De differentia et proprio.
Sobre a diferença e o próprio.
 Mostra como ambos derivam do gênero, distinguindo o essencial do acidental.

6.      Caput V — De accidente et eius natura.
Sobre o acidente e sua natureza.
 Examína a contingência e as modalidades do acidente.

7.      Caput VI — De ordine quinque vocum.
Sobre a ordem das cinco vozes.
 Demonstra por que o gênero é primeiro, o acidente último, e como todas se encadeiam.

8.      Conclusio Generalis.
Conclusão Geral.
 Resumo da doutrina das cinco vozes e sua relação com as categorias e com o ser.


PROOEMIUM

(Prólogo)

col. 360B–361A (Migne, Tomus LXIV)

Porfírio, homem de vasta erudição e de profunda agudeza, escreveu a Introdução (Isagoge) para conduzir os discípulos de Aristóteles ao entendimento das Categorias.
Pois muitos, antes de penetrarem o texto do Estagirita, ignoravam o que fosse gênero, espécie, diferença, próprio e acidente — sem cuja compreensão não há acesso à lógica.

Desejando, portanto, que os que se aplicam à filosofia não se perdessem nos labirintos da multiplicidade, propôs expor, com brevidade e clareza, as noções fundamentais do discurso lógico, de modo que o intelecto, purificado da confusão, subisse do sensível ao inteligível.

Eu, Boécio, traduzi e comentei sua obra, não como quem deseja disputar, mas como quem deseja compreender. Pois esta Introdução é o vestíbulo do templo da sabedoria. Quem nela se detém com diligência, prepara o espírito para as coisas mais altas.

A razão humana, de início confusa entre as aparências, encontra nas cinco vozes o caminho da distinção: pelo gênero, apreende o comum; pela espécie, o particular; pela diferença, a forma própria; pelo próprio, a propriedade inseparável; pelo acidente, o que ocorre sem necessidade.

Assim, a ordem das cinco vozes é a ordem do pensamento: do universal ao singular, do necessário ao contingente. E, compreendendo-as, a mente humana se torna capaz de ordenar o mundo no discurso e o discurso na verdade.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT I — DE QUINQUE VOCIBUS

(Capítulo I — Sobre as Cinco Vozes)

col. 361A–364B (Migne, Tomus LXIV)

Porfírio inicia sua exposição distinguindo cinco vozes, as quais os gregos chamam καθόλου φωναί, isto é, universais de discurso.
Essas cinco são: gênero (
genus), espécie (species), diferença (differentia), próprio (proprium), e acidente (accidens).
Cada uma delas é uma maneira pela qual algo pode ser predicado de muitos, e por isso são chamadas “universais”.

Pois há certas coisas que se dizem de muitos, outras que se dizem de um só.
Daquilo que se diz de um só, como “Sócrates” ou “este homem”, não há universalidade, porque o nome é aplicado a um indivíduo singular.
Mas daquilo que se diz de muitos, como “homem”, “animal”, “corpo”, “substância”, há uma comunidade de significação, e é sobre isso que Porfírio fala.

O gênero é aquilo que se predica de muitos que diferem em espécie, respondendo à pergunta “o que é?”.
Assim, “animal” é gênero, pois se diz do homem e do cavalo, que diferem em espécie, mas participam de uma mesma natureza.

A espécie é aquilo que se predica de muitos que diferem apenas em número, respondendo também à pergunta “o que é?”.
Assim, “homem” é espécie, pois se diz de Sócrates, Platão, Cícero e de todos os que participam de uma mesma forma humana.

A diferença é aquilo pelo qual as espécies do mesmo gênero se distinguem entre si.
Como “racional” distingue o homem do cavalo, e “irracional” distingue o cavalo do homem.
Ela não se diz sozinha de muitos, mas serve para constituir as espécies a partir do gênero.

O próprio é aquilo que, embora não constitua a essência, acompanha-a sempre e somente.
Assim, o riso é próprio do homem: não o define, mas está inseparavelmente unido à sua natureza racional.

O acidente é aquilo que pode estar e não estar no mesmo sujeito, sem destruir sua essência.
Assim, a brancura é acidente do homem, pois ele pode ser branco ou negro sem deixar de ser homem.

Essas cinco vozes esgotam todas as maneiras pelas quais algo pode ser dito universalmente.
Pois, quando falamos de uma coisa, ou dizemos o que ela é (gênero e espécie), ou o que a distingue (diferença), ou o que a acompanha (próprio), ou o que nela ocorre por acaso (acidente).

Por isso, toda a arte do discurso lógico se apoia nessas cinco formas de predicação.
Elas são, como que, os instrumentos do intelecto, que se aplicam a todas as doutrinas, pois não há ciência que não use gêneros e espécies, diferenças, próprios e acidentes.

Aristóteles, no começo das Categorias, ensina o mesmo, dizendo que todas as coisas se dizem ou da substância, ou do acidente, e que essas se predicam de muitas maneiras.
Porfírio, porém, quis deter-se antes no modo como se formam os universais, para que a mente, preparada, compreendesse o texto de Aristóteles.

Assim, se alguém compreender perfeitamente o sentido das cinco vozes, terá aprendido o princípio de toda a filosofia racional.
Pois nelas se contém a distinção entre o ser e o pensar, entre a essência e o acidente, e entre o necessário e o contingente.

A utilidade desta doutrina é dupla:
primeiro, porque purifica o intelecto, fazendo-o distinguir o que pertence à essência do que é apenas acidental;
segundo, porque prepara para a ciência das definições e divisões, nas quais se funda todo o raciocínio demonstrativo.

Portanto, Porfírio com razão começou por essas cinco vozes; e Boécio, com razão, as comenta, para que o espírito ocidental, instruído por Aristóteles e Platão, receba também a ordem do logos grego e o transforme em forma romana de pensamento.

Assim, a filosofia se faz uma ponte entre as línguas e os séculos:
Porfírio lançou as colunas; Aristóteles construiu o arco; Boécio o traduziu em pedra duradoura.


Finis Capitis Primi — Fim do Primeiro Capítulo
(col. 364B)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT II — DE INTENTIONE PORPHYRII

(Capítulo II — Sobre a Intenção de Porfírio)

col. 364B–367C (Migne, Tomus LXIV)

A intenção (intentio) de Porfírio nesta Introdução é guiar o discípulo, por meio das cinco vozes, à compreensão das Categorias de Aristóteles.
Pois, para que alguém entenda o que são as substâncias, as quantidades, as qualidades e as relações, deve primeiro compreender como as coisas são ditas universalmente, isto é, como podem ser predicadas de muitos.

Porfírio, portanto, quis preparar a inteligência do leitor para o discurso categorial, purificando-o do erro das palavras e dispondo-o à ordem das essências.
Ele sabia que a mente humana, acostumada aos nomes, confunde o nome com a coisa e a voz com o ser; e quis, por isso, ensinar que o universal é antes de tudo um modo de dizer e compreender.

Assim, o escopo de sua obra é mostrar que o pensamento universal se funda na realidade singular, e que os predicáveis — gênero, espécie, diferença, próprio e acidente — são as chaves da passagem entre o ser e o intelecto.

Ele não quis tratar de física nem de metafísica, mas apenas de lógica, isto é, da maneira como o intelecto expressa, por meio da linguagem, o que entende das coisas.
Por isso, no início do livro, declara que não vai investigar se os gêneros e as espécies existem realmente ou apenas na mente, nem se são corpóreos ou incorpóreos, nem se estão separados das coisas sensíveis ou nelas.

Essas são questões de ordem mais alta, próprias da filosofia natural e da teologia.
A Introdução, porém, é apenas o limiar da arte lógica, e o seu objetivo é ensinar a forma do discurso, não a natureza das coisas.

Porfírio, portanto, quis apenas determinar as noções comuns que a mente deve possuir para julgar corretamente sobre as realidades sensíveis e inteligíveis.
Pois quem ignora o que é gênero e espécie, diferença e próprio, acidente e essência, jamais poderá definir com precisão, nem dividir com ordem, nem raciocinar com verdade.

A intenção, pois, desta obra é pedagógica e propedêutica: ela ensina o caminho da razão, não a substância das coisas.
Por isso, diz-se que o
Isagoge é uma introdução (via aditus) à filosofia, não o corpo da filosofia mesma.

Como um arquiteto que prepara os alicerces antes de levantar o edifício, Porfírio preparou o terreno da mente para receber as estruturas do pensamento aristotélico.
E Boécio, ao comentá-lo, quis oferecer à língua latina o mesmo instrumento que os gregos haviam possuído.

Pois a filosofia, quando privada de método, perde-se em disputas; e quando possui o método, alcança a verdade.
Assim, Porfírio ensinou o método, e Aristóteles, a verdade.

Todo o valor desta Introdução está, portanto, na ordenação das ideias.
Pois, assim como os olhos não podem ver claramente quando a luz se dispersa, também a mente não pode compreender o ser quando o pensamento é confuso.
As cinco vozes são, por isso, os primeiros raios do entendimento.

A intenção de Porfírio é, portanto, purificar a visão da alma, para que ela, ao penetrar nas Categorias, veja o que é substância e o que é acidente, o que é universal e o que é singular, e como o verbo humano reflete a ordem do ser.

E é por isso que ele não dá definições longas, nem exemplos excessivos: quis que o leitor aprendesse não por imagens, mas por formas.
A Introdução é o espelho puro do intelecto, e quem nela se contempla com atenção vê o próprio movimento da razão que pensa o ser.


Finis Capitis Secundi — Fim do Segundo Capítulo
(col. 367C)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT III — DE UNITATE ET COMMUNITATE GENERIS ET SPECIEI

(Capítulo III — Sobre a Unidade e a Comunidade do Gênero e da Espécie)

col. 367C–371A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de haver tratado da intenção de Porfírio, convém agora explicar como o gênero e a espécie se comportam em relação à unidade e à comunidade.
Pois o que se diz de muitos deve possuir uma unidade que o torne comum, e essa unidade, embora não seja numérica, é formal e inteligível.

O gênero é uno, porque é uma única forma comum que se predica de muitas espécies.
Assim, o animal é uno, embora se diga do homem, do cavalo e do boi.
Não é uno numericamente, como um indivíduo, mas uno pela semelhança essencial que abrange as diversas espécies.

Da mesma forma, a espécie é una, porque contém em si a mesma natureza em todos os indivíduos que lhe pertencem.
Assim, o homem é uno, ainda que haja muitos homens.
Pois em todos há uma só humanidade, não dividida em partes, mas presente inteira em cada um segundo o modo de sua existência individual.

Essa unidade é, portanto, de ordem formal e não material.
Pois as formas não se dividem como os corpos: o mesmo número, a mesma linha ou a mesma cor podem existir em muitos sem se multiplicar materialmente.
Assim também, a humanidade é uma forma una, que se participa múltiplas vezes.

Mas essa participação não é segundo a identidade numérica, e sim segundo a semelhança específica.
Cada homem é homem por possuir a mesma essência humana, embora essa essência não seja numericamente uma, mas formalmente idêntica.

Portanto, dizemos que o gênero e a espécie são universais porque a razão os considera sob o aspecto da unidade comum, abstraindo as diferenças individuais.
Essa abstração não destrói a realidade das coisas, mas a eleva à inteligibilidade.

Por exemplo: o animal, enquanto gênero, não existe fora dos animais particulares, mas neles e por meio deles.
A mente, porém, ao considerar o que é comum a todos, forma o conceito de “animal” como algo uno.
E essa unidade é obra do intelecto, que reúne sob uma mesma noção o que na realidade está disperso em muitos.

A comunidade, portanto, é o modo pelo qual a forma una se comunica a muitos sujeitos.
Essa comunicação não é divisão, mas participação.
Assim, o mesmo sol ilumina muitos corpos, e não se divide ao fazê-lo; o mesmo fogo aquece muitas substâncias, e não se multiplica em essência.

De modo semelhante, o gênero comunica-se às espécies e a espécie aos indivíduos, não por divisão substancial, mas por participação formal.
E é por isso que Porfírio chama o gênero e a espécie de “comuns”, não porque sejam coisas partilhadas como os bens corporais, mas porque se predicam de muitos sem perder a unidade.

Ora, há duas formas de unidade: a numérica e a específica.
A numérica pertence aos indivíduos; a específica pertence aos universais.
Sócrates e Platão não são um só homem numericamente, mas são um só homem especificamente.
A unidade da espécie é, portanto, a unidade da forma, não a do número.

Assim, o gênero é comum às espécies, e a espécie, aos indivíduos; mas o modo da comunidade é diferente:
o gênero é comum de modo mais universal, a espécie, de modo mais determinado.
Pois quanto mais desce a razão do universal ao particular, tanto mais diminui a comunidade e cresce a determinação.

O gênero contém em potência as espécies; a espécie contém em potência os indivíduos.
Assim como o tronco contém em si os ramos, e o ramos, as folhas, o gênero se estende às espécies, e as espécies, aos singulares.

E, do mesmo modo, o que há de uno em todos — o ser — é o gênero supremo, do qual todas as coisas participam.
Mas esse gênero, em sua suprema universalidade, não é algo fora das coisas, e sim a própria analogia pela qual tudo é.

Assim, do ser procede o gênero; do gênero, a espécie; da espécie, o indivíduo.
E, inversamente, do indivíduo a razão sobe à espécie, e da espécie, ao gênero.
Esta é a ordem da compreensão, oposta à ordem da existência: o ser começa pelo uno e termina no múltiplo; o intelecto, pelo múltiplo, ascende ao uno.

Dessa maneira, a unidade do gênero e da espécie não é numérica nem substancial, mas inteligível e participada.
E a comunidade que delas se segue é o laço invisível que une as coisas entre si e as conduz ao universal.

Por isso, Aristóteles disse que o intelecto é de certo modo todas as coisas, porque em si contém, sob unidade, o que fora está disperso.
O gênero e a espécie são, portanto, os instrumentos dessa unificação intelectual.


Finis Capitis Tertii — Fim do Terceiro Capítulo
(col. 371A)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT IV — DE DIFFERENTIA ET PROPRIO

(Capítulo IV — Sobre a Diferença e o Próprio)

col. 371A–374C (Migne, Tomus LXIV)

Depois de tratar do gênero e da espécie, é necessário agora examinar a diferença e o próprio, pois ambos se seguem na ordem do entendimento e completam a estrutura dos universais.

A diferença é aquilo pelo qual as espécies de um mesmo gênero se separam entre si pela essência.
O próprio é aquilo que, embora não constitua a essência, dela nunca se separa.
O primeiro distingue; o segundo acompanha.

A diferença é causa formal das espécies, e o próprio é como o sinal natural da essência.
Assim como o calor distingue o fogo das coisas frias, e a luz manifesta o que é visível, assim também a diferença separa o ser das espécies, e o próprio revela o que nelas é constante.

Por isso, a diferença pertence ao ser, e o próprio ao manifestar do ser.
Quem compreende a diferença, conhece a essência; quem conhece o próprio, entende o modo da essência.

Entre todas as vozes universais, nenhuma é mais sutil do que a diferença, pois ela penetra no âmago das substâncias e mostra o limite que distingue uma natureza de outra.
O gênero contém as naturezas em comum; a diferença mostra o que nelas é próprio.

Por exemplo, o animal é gênero, e o racional é diferença.
Pelo gênero, compreendemos que o homem e o cavalo têm algo de comum — o viver e o sentir; pela diferença, entendemos o que faz o homem distinto do cavalo — a razão.

Assim, a diferença é como a forma da espécie, e o gênero, sua matéria.
O gênero oferece o campo comum da significação, e a diferença imprime a determinação que constitui a espécie.
Sem a diferença, o gênero seria uma multidão confusa; sem o gênero, a diferença seria um conceito vazio.

A diferença, portanto, é anterior à espécie segundo a ordem da causa, mas posterior ao gênero segundo a ordem da compreensão.
Pois, quando o intelecto compreende, parte do gênero e, por meio da diferença, chega à espécie; mas, quando considera a natureza das coisas, reconhece que a diferença dá ser à espécie, como a forma dá ser à matéria.

E porque a diferença é essencial, é também imutável; ela nunca se separa daquilo que constitui.
O racional não pode ser tirado do homem sem que o homem cesse de existir.
O que é removível e contingente não é diferença, mas acidente.

Já o próprio é, de certo modo, intermediário entre a essência e o acidente.
Ele não constitui o ser da coisa, mas sempre a acompanha, de modo que, onde há a essência, há também o próprio, ainda que não em ato.

Assim, o riso é próprio do homem, porque a potência de rir está inseparavelmente unida à natureza racional, embora nem todo homem ria a todo tempo.
O riso, portanto, é próprio, mas não diferença.
Se o riso fosse retirado, a humanidade permaneceria; se a razão fosse retirada, o homem deixaria de ser.

Assim, toda diferença é essencial, e todo próprio é inseparável.
O próprio mostra o que é inseparável da essência; a diferença, o que constitui a essência.

Além disso, há quatro modos de próprio, como ensinam os antigos comentadores:
(1) o que pertence a uma só espécie e a todas as suas partes, como o riso ao homem;
(2) o que pertence a uma só espécie, mas não a todas as suas partes, como o ser gramático — próprio do homem, mas não de todos os homens;
(3) o que pertence a muitas espécies, mas a todas em um mesmo modo, como o ser sensível a todos os animais;
(4) o que pertence a muitas, mas de modo diferente, como o movimento — que nos corpos é local, nas almas é vital.

Entre esses quatro modos, somente o primeiro é próprio em sentido estrito, porque é inseparável e exclusivo.
Os demais são propriedades comuns ou derivadas.

O próprio é, portanto, o limite da diferença e do acidente:
da diferença, porque não constitui a essência; do acidente, porque não se separa dela.
É como uma sombra fiel da substância, que a segue onde quer que vá.

Por isso, o próprio é também sinal de demonstração.
Pois, se é verdadeiro que o homem é risível, é também verdadeiro que quem é risível é homem.
Mas não se dá o mesmo com o acidente: o branco pode ser homem, mas nem todo branco é homem.

Daí que os antigos dialéticos chamavam o próprio de nota essentialis, isto é, um signo que revela a essência, embora não a constitua.
A diferença mostra o que é ser; o próprio, o que é sempre com o ser; o acidente, o que pode estar ou não com o ser.

Assim, as três noções formam uma escala descendente: a diferença é essencial, o próprio é inseparável, o acidente é contingente.
A primeira pertence à definição; a segunda, à demonstração; a terceira, à predicação.

Portanto, quem compreende bem a diferença e o próprio está apto a distinguir as naturezas e a demonstrar as propriedades.
Pois toda ciência nasce da definição (que depende da diferença) e se aperfeiçoa pela demonstração (que depende do próprio).

E é por isso que Porfírio, ao tratar das cinco vozes, colocou a diferença e o próprio antes do acidente, como mais próximos da essência.
Pois o acidente é o termo da mutabilidade, enquanto a diferença e o próprio são os limites da natureza.

Assim, o filósofo deve compreender que a diferença pertence ao ser, o próprio à necessidade, e o acidente à contingência.
E nisto se completa o círculo das três regiões da lógica: o que é, o que é necessariamente, e o que pode ser de outro modo.


Finis Capitis Quarti — Fim do Quarto Capítulo
(col. 374C)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT V — DE ACCIDENTE ET EIUS NATURA

(Capítulo V — Sobre o Acidente e a sua Natureza)

col. 374C–378B (Migne, Tomus LXIV)

Resta agora falar do acidente, o último dos cinco universais, cuja natureza é mais próxima da mutabilidade que da essência.
Pois o acidente é aquilo que pode estar e não estar no mesmo sujeito, sem destruição da substância.

Aristóteles o define assim: “Acidente é o que pode ser e não ser no mesmo sujeito, sem corrupção deste.”
Dessa definição se segue que o acidente não pertence à essência, porque o que é essencial não pode ser removido sem que o ser pereça.

Há, pois, duas espécies de acidente: o inseparável e o separável.
Inseparável é o que, embora não pertença à essência, sempre acompanha o sujeito; separável é o que ora está, ora não está.
A brancura do cisne é acidente inseparável; a posição de sentado é acidente separável.

Assim, nem todos os acidentes são igualmente estáveis: uns, como o calor no fogo, permanecem; outros, como a cor ou o movimento, mudam facilmente.
E ainda que ambos sejam acidentes, o modo de sua adesão à substância é diverso.

Todo acidente requer um sujeito no qual exista, e nunca pode subsistir por si mesmo.
Pois nada é branco sem algo que seja branco, nem há ciência sem um espírito que saiba.
O acidente é, portanto, dependência: não tem ser próprio, mas ser recebido.

E como aquilo em que está é a substância, diz-se que a substância é o fundamento dos acidentes, assim como o ser é o fundamento do possível.

Todo acidente tem duas causas: a causa do sujeito e a causa da disposição.
A causa do sujeito é a substância mesma; a causa da disposição é o modo pelo qual o acidente se encontra nela.
Assim, a cor branca depende do corpo como sujeito, e da luz como disposição.

Há também diferença entre o acidente natural e o voluntário:
o natural ocorre sem deliberação, como a leveza no fogo; o voluntário procede da alma, como a ciência ou a virtude.
Ambos, porém, são acidentes, pois não constituem a essência.

Alguns acidentes, embora não pertençam à substância, aproximam-se dela pela constância — como a bondade habitual do sábio, que é estável, ainda que adquirida.
Outros, ao contrário, são totalmente contingentes, como as paixões do corpo e as alterações do humor.

É preciso, portanto, distinguir entre o acidente que segue a natureza e o que a contraria.
A saúde é acidente segundo a natureza; a enfermidade, contra a natureza.
Ambos são acidentes, porque nenhum deles pertence à essência do homem, mas à disposição do corpo.

O acidente se relaciona com o tempo de modo instável: nasce, cresce e perece com facilidade.
Pois aquilo que hoje é quente pode amanhã ser frio, e o que é alegre pode tornar-se triste.
O acidente não tem permanência, mas apenas duração.

Por isso, os antigos chamavam o acidente de “sombra do ser”, porque acompanha a substância enquanto ela existe, mas não tem luz própria.
A substância subsiste; o acidente ocorre.
A primeira é fundamento; o segundo, aparência.

Contudo, mesmo o acidente serve à manifestação da essência.
Pois, sem acidentes, a substância seria invisível e inapreensível.
Assim como o brilho manifesta o ouro e o calor revela o fogo, também os acidentes tornam sensíveis as substâncias.

Por isso, o intelecto humano, que conhece pelas formas, não poderia compreender as essências sem os acidentes que as circundam.
O acidente é, portanto, o véu e o espelho do ser.
Oculta o interior, mas reflete a presença.

A teologia antiga reconheceu nisto uma analogia: assim como os acidentes são sustentados pela substância, assim também as criaturas dependem de Deus.
O acidente não subsiste sem o sujeito; a criatura, sem o Criador.
Ambos têm o ser como recebido, não como próprio.

Portanto, o acidente é o limite do ente: participa do ser, mas não o possui; vive na substância, mas não a constitui.
É o que há de transitório no permanente, o que muda no que é.

E assim se completa a ordem das cinco vozes: o gênero, o universal do ser; a espécie, o universal da forma; a diferença, o princípio de determinação; o próprio, o signo inseparável; o acidente, a fronteira da mutação.

Essas cinco vozes são como degraus da razão: pela primeira, o intelecto ascende ao comum; pela segunda, desce ao particular; pela terceira, penetra na essência; pela quarta, reconhece a necessidade; pela quinta, contempla a mudança.

E, compreendendo-as, o homem entende como o ser se comunica ao múltiplo, como o múltiplo retorna ao ser, e como, entre ambos, o pensamento serve de mediação.


Finis Capitis Quinti — Fim do Quinto Capítulo
(col. 378B)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CAPUT VI — DE ORDINE QUINQUE VOCUM

(Capítulo VI — Sobre a Ordem das Cinco Vozes)

col. 378B–381A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de haver tratado de cada uma das cinco vozes separadamente, resta-nos agora mostrar em que ordem se dispõem umas em relação às outras.
Pois o entendimento das coisas não nasce apenas da definição isolada, mas também da harmonia e do encadeamento entre os conceitos.

A primeira voz é o gênero, porque contém em si a universalidade das naturezas e constitui o princípio de toda predicação.
A segunda é a espécie, que se distingue do gênero por uma determinação formal e o limita àquilo que é próprio.
A terceira é a diferença, que faz o gênero tornar-se espécie, como a forma faz a matéria tornar-se corpo.
A quarta é o próprio, que revela o que pertence inseparavelmente à essência.
A quinta, o acidente, que mostra o que pode existir e não existir sem destruição do sujeito.

Assim, o gênero é como o tronco comum, a espécie é o ramo, a diferença é a seiva que distingue, o próprio é o fruto constante, e o acidente é a flor que passa.

Esta ordem é conforme à razão da natureza: pois o gênero é anterior segundo o ser, a espécie segundo a determinação, a diferença segundo a constituição, o próprio segundo a manifestação, e o acidente segundo o movimento.

No raciocínio lógico, porém, a ordem se inverte: o intelecto, partindo do sensível, alcança primeiro os acidentes; depois, pelo discernimento, chega ao próprio; pela separação, apreende a diferença; pela abstração, concebe a espécie; e, finalmente, pela universalização, atinge o gênero.

Assim, o caminho do pensamento é ascendente, enquanto o caminho da natureza é descendente.
A natureza procede do uno ao múltiplo; o intelecto retorna do múltiplo ao uno.
A primeira é geração; o segundo, contemplação.

Por isso, quem compreender bem a ordem das cinco vozes conhecerá também o modo pelo qual o ser se multiplica nas coisas e o modo pelo qual o espírito retorna à unidade.
Pois as cinco vozes são cinco degraus entre o ser e o pensamento:
— o gênero, princípio do ser comum;
— a espécie, determinação do ser particular;
— a diferença, razão da essência;
— o próprio, sinal da natureza;
— o acidente, sombra da existência.

E assim como o universo todo está disposto por ordem e proporção, também o discurso racional deve imitar a ordem do ser, para que o intelecto humano participe da ordem divina.

Se retirares o gênero, nada poderá ser compreendido; se suprimires a espécie, tudo se confundirá; se negares a diferença, desaparecerá a essência; se extinguires o próprio, perder-se-á o sinal do necessário; se eliminardes o acidente, cessará o movimento do sensível.

Logo, o gênero sustenta, a espécie delimita, a diferença forma, o próprio manifesta, o acidente move.
As cinco vozes, juntas, exprimem o todo da lógica, que é a arte de distinguir o ser.

Por isso, o filósofo antigo dizia que toda a sabedoria humana se resume em três atos:
— conhecer o que é comum (gênero),
— discernir o que é próprio (diferença e próprio),
— e julgar o que é contingente (acidente).
O gênero é o domínio da essência; o próprio, da necessidade; o acidente, da liberdade.

E é esta tríplice distinção que faz da lógica a imagem do cosmos, porque em tudo há um princípio, uma forma e uma variação.

Portanto, o estudo das cinco vozes é não apenas o início da dialética, mas o espelho da própria ordem do ser.
Pois nelas se espelha o modo pelo qual o uno se comunica ao múltiplo e o múltiplo retorna ao uno.

Quem as entender bem compreenderá o segredo da razão: que o discurso é o reflexo do ser, e o ser, a fonte do discurso.


Finis Capitis Sexti — Fim do Sexto Capítulo
(col. 381A)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — COMMENTARIA IN PORPHYRIUM

(Comentários sobre Porfírio)


CONCLUSIO GENERALIS

(Conclusão Geral)

col. 381A–382B (Migne, Tomus LXIV)

Depois de haver explicado cada uma das cinco vozes e a ordem que as une, resta resumir brevemente o que nelas se contém, e como se referem à doutrina das Categorias e ao próprio ser.

As cinco vozes — gênero, espécie, diferença, próprio e acidente — são os instrumentos pelos quais o intelecto humano apreende e ordena a multiplicidade do real.
Elas são como degraus que descem do ser à linguagem e da linguagem ao ser.

O gênero é o princípio comum de predicação: diz o que as coisas têm em comum segundo a essência.
A espécie determina o gênero e manifesta o modo próprio de uma natureza.
A diferença constitui a essência e distingue o que é do que não é.
O próprio mostra o que sempre acompanha a essência, como um selo de necessidade.
O acidente exprime o que advém e passa, conservando, porém, a unidade do sujeito.

Assim, a lógica de Porfírio é a ciência do modo de ser das coisas no intelecto e do modo de aparecer do ser no discurso.
Pois nada é dito ou pensado senão segundo essas cinco vozes, que são como as colunas invisíveis do logos.

E por isso, Aristóteles, ao tratar das Categorias, começa pela substância e pelos acidentes — porque, no fundo, as cinco vozes se ordenam à distinção entre o que é em si e o que é em outro.
O gênero e a espécie pertencem à região da substância; o próprio e o acidente, à região da predicação; a diferença, à passagem entre ambas.

Toda a arte do pensar consiste, portanto, em reconhecer o que pertence à substância e o que depende do acidente, o que é necessário e o que é contingente.
Pois o erro nasce quando o intelecto toma o acidental pelo essencial, ou confunde o próprio com a diferença.

A sabedoria, ao contrário, consiste em distinguir com precisão — saber o que é ser, o que é com o ser e o que é por causa do ser.
As cinco vozes são, assim, os reflexos graduais do ser uno e simples na multiplicidade do discurso.

Por isso, o gênero representa o ser como universal; a espécie, como determinado; a diferença, como formativo; o próprio, como necessário; o acidente, como contingente.
E como em Deus o ser é sem diferença, próprio e acidente, as cinco vozes só se aplicam às criaturas, nas quais o ser se reparte.

Assim, toda a dialética é uma imagem da criação: o gênero é como o Fiat original, a espécie é a forma recebida, a diferença é a separação dos contrários, o próprio é a ordem da natureza, o acidente é a variação do tempo.

E, como a ordem divina desce ao mundo, assim também a lógica humana sobe ao inteligível.
Pois compreender é refazer em pensamento a ordem pela qual o ser se distribui nas coisas.

Portanto, quem entende as cinco vozes entende também a via da razão e o espelho do ser.
Pois nelas se contém a medida de todas as ciências, o fundamento da linguagem e o primeiro passo da metafísica.


Finis Commentarii in Porphyrium
(col. 382B)

Estrutura detalhada — In Categorias Aristotelis libri quatuor

Liber Primus — De Praedicamentis et Substantia

(col. 159–179)
Sub-índice:

1.      Prooemium generale — Sobre a intenção de Aristóteles nas Categorias.

2.      De nomine Praedicamenti — O que significa “predicamento”.

3.      De Substantia Prima et Secunda — A distinção entre substância individual e universal.

4.      De Subiecto et Subsistentia — O que é sujeito e o que é subsistência.

5.      De Essentia et Definitione Substantiae — Natureza da essência e definição.


Liber Secundus — De Quantitate et Qualitate

(col. 179–201)
Sub-índice:

1.      De Quantitate Continua et Discreta — Linha, superfície, número.

2.      De Mensura et Magnitudine — O modo como o intelecto apreende a extensão.

3.      De Qualitate — Distinções de qualidade natural, moral e passional.

4.      De Habitu Qualitatis ad Substantiam — Como a qualidade é inerente sem constituir o ser.


Liber Tertius — De Relatione, Tempore, Loco et Aliis Categoriis

(col. 201–239)
Sub-índice:

1.      De Relatione — A relação e seus modos (causa, efeito, proporcionalidade).

2.      De Actione et Passione — Movimento e alteração.

3.      De Tempore — O tempo como medida do movimento.

4.      De Loco — O lugar como limite do corpo.

5.      De Positione et Habitu — Situação e disposição.

6.      De Conexione Categoriarum — Como todas dependem da substância.


Liber Quartus — De Ordine Categoriarum et Subordinatione Entium

(col. 239–263)
Sub-índice:

1.      De Ordine Categoriarum ad Substantiam — Hierarquia lógica das categorias.

2.      De Prioritate et Posterioritate Entis — O ser anterior e posterior.

3.      De Similitudine et Differentia Categoriarum — Conexões e distinções.

4.      De Usu Categoriarum in Demonstratione — Aplicação das categorias à ciência e à dialética.

5.      Conclusio Generalis — Síntese do sistema categorial.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE PRAEDICAMENTIS ET SUBSTANTIA

(Primeiro Livro — Sobre os Predicamentos e a Substância)


PROOEMIUM GENERALE

(Prólogo Geral)

col. 159A–160C (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles, o mais penetrante intérprete da natureza e da razão, quis ordenar o discurso humano segundo as formas do ser, para que o intelecto, ao compreender as palavras, reconhecesse nelas o reflexo das coisas.
Pois não há palavra verdadeira que não espelhe algum modo do ser, nem há modo do ser que não possa, de algum modo, ser dito.

Assim, em sua obra intitulada Categoriae, dispôs dez modos de predicação, pelos quais tudo o que existe pode ser compreendido e enunciado: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, posse, ação e paixão.
Estes são como as dez portas pelas quais o intelecto entra no conhecimento do real.

A intenção do autor é dupla: primeiro, distinguir as diversas maneiras pelas quais o ser é dito; depois, ensinar como a mente deve ordenar o discurso segundo essas diferenças.
Pois, como o pensamento se exprime por palavras, e as palavras significam as coisas, é necessário que haja entre as três — coisa, pensamento e palavra — uma proporção e uma ordem.

Aristóteles, portanto, quis que as palavras seguissem o ser, e não o contrário; e que a gramática, a lógica e a metafísica se unissem num mesmo princípio: o da correspondência entre o intelecto e o real.

Estas categorias não são apenas nomes, mas modos de apreensão do ser; são os limites pelos quais a razão distingue e classifica as coisas, e pelos quais o verbo humano se torna espelho do universo.
Com elas, o homem, pequeno em corpo mas vasto em espírito, refaz a ordem do cosmos em sua mente e aprende a nomear o ser segundo sua multiplicidade.

É, pois, necessário ao filósofo aprender, antes de tudo, os modos pelos quais o ser se diz — praedicamenta entis —, porque deles depende toda a ciência, toda definição e toda demonstração.

Por isso, Aristóteles inicia as Categoriae com a substância, pois ela é o fundamento de todas as demais.
E Boécio, ao traduzi-lo e comentá-lo, quis preservar o mesmo caminho, para que o leitor latino compreendesse o edifício da lógica a partir de seus alicerces.


DE NOMINE PRAEDICAMENTI

(Do Nome “Predicamento”)

col. 160C–162A

O termo “predicamento” vem de praedicare, isto é, “dizer de” ou “atribuir a”.
Chama-se “predicamento” o gênero supremo de cada modo de dizer o ser.
Pois, ao afirmarmos de algo que é homem, branco, grande ou sábio, estamos predicando-lhe algo que pertence a alguma categoria.

Assim, “predicamento” é o nome comum de toda atribuição ontológica, isto é, de todo modo pelo qual o intelecto exprime o ser.
Cada predicamento é uma região do discurso e, ao mesmo tempo, uma forma de ser.
O nome, portanto, não é arbitrário, mas ontológico: pois dizer é participar da ordem do ser.

E porque o ser é múltiplo, múltiplos são também os modos de dizer — mas todos se reduzem a esses dez, que abrangem a totalidade do existente, quer no intelecto, quer na realidade.

Por isso, o filósofo diz: “O ser se diz de muitas maneiras, mas todas se referem a um só princípio.”
Esse princípio é a substância, da qual tudo depende, e pela qual tudo é sustentado.


DE SUBSTANTIA PRIMA ET SECUNDA

(Da Substância Primeira e Segunda)

col. 162A–166B

Entre todas as categorias, a substância ocupa o primeiro lugar, porque todas as outras dependem dela.
A substância é aquilo que existe por si, e não em outro.
As outras categorias são modos pelos quais algo é dito da substância, ou nela existe.

A substância primeira é o indivíduo — como Sócrates, este homem, este cavalo.
A substância segunda é o universal que pode ser predicado da primeira — como “homem”, “animal”.
A primeira é o ser subsistente; a segunda, o ser inteligido.

As substâncias primeiras constituem o mundo real; as segundas, o mundo inteligível.
E o intelecto humano, ao pensar, passa da percepção da primeira à compreensão da segunda.
Pois ver Sócrates é perceber a substância sensível; compreender “homem” é apreender a forma comum que está em muitos.

As substâncias, portanto, são o fundamento de tudo o que existe e de tudo o que é dito.
Nada se pode predicar sem supor uma substância; pois o acidente, o próprio e a diferença exigem um sujeito no qual subsistam.

A substância é o centro imóvel da predicação: tudo o mais gira em torno dela, e sem ela nada pode ser pensado.
Por isso, Aristóteles diz que “a substância é o que é propriamente dito ser”.

E ainda: a substância é primeira na ordem do ser, mas última na ordem do conhecimento.
Pois o intelecto começa pelos acidentes, e só depois chega ao que é por si.
O caminho da filosofia é, portanto, o retorno da aparência ao fundamento.


DE SUBIECTO ET SUBSISTENTIA

(Do Sujeito e da Subsistência)

col. 166B–172C

O sujeito é aquilo em que as outras coisas estão, mas que não está em outra coisa.
Ele é o suporte de todos os acidentes e predicações.
A subsistência é a permanência do sujeito em si mesmo, sem depender de outro para existir.

Toda substância é sujeito, mas nem todo sujeito é substância — pois a matéria pode ser dita sujeito da forma, sem ser substância completa.
O sujeito é o princípio da unidade do ser; é aquilo que permanece o mesmo sob a mudança dos acidentes.

A subsistência é o ato pelo qual o ser se sustenta, o que dá firmeza à existência.
Por isso, Boécio distingue entre o “ser” (
esse) e o “subsistir” (subsistere):
o primeiro é o ato de existir; o segundo, o modo de permanecer no ser.

A essência é o que o ser é; a subsistência é o fato de que ele é.
Assim, o homem é essência racional e subsistência individual; a alma é essência espiritual e subsistência incorpórea.


DE ESSENTIA ET DEFINITIONE SUBSTANTIAE

(Da Essência e da Definição da Substância)

col. 172C–179A

Toda substância possui essência e definição.
A essência é o que constitui a coisa; a definição é a expressão racional dessa constituição.
Assim, a essência do homem é ser animal racional; sua definição, a composição dessa noção em palavras.

A essência existe nas coisas; a definição, no intelecto.
A primeira é causa real; a segunda, causa lógica.
Contudo, ambas se referem à mesma forma, que é inteligida por uma e existente na outra.

O conhecimento perfeito é aquele que vai da definição à essência, e da essência à substância.
Por isso, a filosofia natural contempla a essência; a lógica, a definição; a metafísica, a substância.

E assim termina o primeiro livro, que trata da substância e dos fundamentos de toda predicação.
Pois o ser é dito primeiro segundo a substância, e todas as demais categorias são modos de sua manifestação.


Finis Libri Primi — Fim do Primeiro Livro
(col. 179A, Tomus LXIV, Migne)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE QUANTITATE ET QUALITATE

(Segundo Livro — Sobre a Quantidade e a Qualidade)


DE QUANTITATE CONTINUA ET DISCRETA

(Da Quantidade Contínua e Discreta)

col. 179A–184C (Migne, Tomus LXIV)

Depois da substância, Aristóteles coloca a quantidade, porque ela mede o ser e o torna determinável.
Pois aquilo que é, enquanto tal, é primeiro substância; mas aquilo que é mensurável, enquanto tal, é quantidade.

A quantidade é o quanto (quantum), ou seja, a extensão do ser segundo o número e a dimensão.
Ela é de dois tipos: contínua e discreta.
Contínua é aquela cujas partes têm limite comum; discreta, aquela cujas partes são separadas e distintas.

Linha, superfície, corpo e tempo são quantidades contínuas; número, discurso e harmonia são quantidades discretas.
Nas primeiras, o intelecto concebe continuidade de extensão; nas segundas, ordem de sucessão.

A quantidade é a base do cálculo e da medida, pois toda proporção nasce da comparação entre quantidades.
É também o fundamento da geometria e da aritmética, que são, por isso, ciências intermediárias entre o ser sensível e o inteligível.

Assim, o número é princípio de distinção; a grandeza, de extensão.
A natureza, em todas as suas obras, guarda proporção quantitativa, e por isso o mundo é chamado “cosmos”, isto é, ordem.

A alma humana participa desse mesmo princípio, e, ao compreender o número e a extensão, reconhece no tempo e no espaço a imagem do eterno e do infinito.

A quantidade, portanto, é o modo pelo qual o ser se torna divisível e mensurável; é a condição necessária para que haja pluralidade e proporção.
Mas ela não é o ser em si — é o limite do ser na direção do múltiplo.


DE MENSURA ET MAGNITUDINE

(Da Medida e da Magnitude)

col. 184C–188B

A medida é a relação de uma quantidade com outra.
A magnitude é o aspecto pelo qual a mente apreende o tamanho, a extensão ou a duração.

Toda medida supõe comparação, e toda comparação requer unidade.
Por isso, o número é a medida universal: ele reduz o múltiplo ao uno e estabelece proporção entre as partes.

A magnitude, quando contínua, pertence às coisas corporais; quando discreta, às coisas espirituais e racionais.
Pois o discurso, a harmonia e o tempo são magnitudes ordenadas, ainda que imateriais.

O intelecto mede pela ideia; o sentido mede pela extensão.
Assim, há uma medida sensível e uma medida inteligível: a primeira serve à arte; a segunda, à ciência.

A geometria imita a estabilidade do ser; a aritmética reflete sua pureza.
Pois o número não se divide senão segundo a razão, e o ponto não se move senão pela imaginação.

A mente humana, ao medir, participa da inteligência divina, que tudo ordena por número, peso e medida.
E é por isso que a sabedoria é chamada pelos antigos de “mensura mentis”, porque ordenar é medir.

Quando a medida é perdida, surge o erro; quando a proporção é rompida, nasce a corrupção.
O ser existe porque é ordenado; e a ordem existe porque há medida.


DE QUALITATE

(Da Qualidade)

col. 188B–195A

A qualidade é o modo de ser segundo o qual algo é tal e não de outro modo.
Enquanto a quantidade diz “quanto é”, a qualidade diz “como é”.
Assim, a substância é o que é; a quantidade, quanto é; a qualidade, como é.

A qualidade é aquilo pelo qual o sujeito é qualificado e determinado, e que permite distinguir o semelhante do diferente.

Há quatro modos de qualidade, segundo Aristóteles:
(1) o hábito e a disposição;
(2) a potência e a impotência;
(3) a afeição natural ou passional;
(4) a forma e a figura.

O hábito é uma disposição estável, como a ciência ou a virtude.
A disposição é uma qualidade instável, como a saúde ou o calor.
A potência é uma qualidade ativa; a impotência, uma privação.
A afeição é o que o sujeito sofre por causa de outro, como a cor no corpo ou a paixão na alma.
A forma é a qualidade que dá limite e figura à matéria.

Assim, toda qualidade é uma maneira de participar do ser; ela não acrescenta existência, mas modo.
Por isso, diz-se que a qualidade é o “ornamento” do ser, sua manifestação sensível ou inteligível.

A qualidade é o meio pelo qual o intelecto percebe o valor e a diferença das coisas.
Pois conhecer é perceber as qualidades; e julgar é compará-las.

As qualidades naturais pertencem à constituição do corpo e da alma; as morais, ao uso da razão; as passionais, à mistura do corpo e da alma.
As formas matemáticas são qualidades sem matéria, que a mente apreende pela abstração.

Toda beleza nasce da proporção entre quantidade e qualidade, e todo vício, do desequilíbrio entre ambas.
Assim, a qualidade é o princípio da harmonia: faz com que o múltiplo seja ordenado e o ordenado seja belo.


DE HABITU QUALITATIS AD SUBSTANTIAM

(Da Relação da Qualidade com a Substância)

col. 195A–201A

A qualidade, como o acidente, está na substância, mas não como parte, e sim como modo.
A substância é o que é; a qualidade, o modo segundo o qual é.
A substância subsiste; a qualidade adorna.

Toda substância possui qualidades próprias, pelas quais é reconhecida e definida.
O fogo é quente; a água, fria; o homem, racional; o justo, virtuoso.
Essas qualidades são os sinais do ser e, por elas, o intelecto distingue o verdadeiro do falso, o bom do mau.

As qualidades podem mudar, mas a substância permanece.
Pois o mesmo homem pode ser sábio ou ignorante, justo ou injusto, sem deixar de ser homem.
A qualidade muda o modo de ser, não o ser.

Há, contudo, qualidades tão íntimas à essência que parecem inseparáveis dela — como o calor no fogo, a leveza no ar, a racionalidade no homem.
Essas, embora acidentais em definição, são substanciais em função.
Pois, sem elas, o ser deixaria de ser o que é.

A qualidade é, portanto, a fronteira entre o essencial e o acidental: mostra o que se manifesta do ser sem alterar o ser.
E é por isso que, para Aristóteles e Boécio, toda ciência verdadeira consiste em conhecer as qualidades, porque nelas o ser se torna cognoscível.

Pois o ser é invisível sem qualidade, e só se torna inteligível quando se mostra de algum modo.
A qualidade é, portanto, o espelho sensível da substância, e o meio pelo qual o ser se faz conhecer.


Finis Libri Secundi — Fim do Segundo Livro
(col. 201A, Tomus LXIV, Migne)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


LIBER TERTIUS — DE RELATIONE, TEMPORE, LOCO ET ALIIS CATEGORIIS

(Terceiro Livro — Sobre a Relação, o Tempo, o Lugar e as Demais Categorias)


DE RELATIONE

(Da Relação)

col. 201A–208B (Migne, Tomus LXIV)

A terceira categoria é a relação (ad aliquid), pela qual uma coisa é referida a outra.
A substância existe em si; a relação, em referência.
Por isso, diz-se que a relação é o modo pelo qual o ser se torna duplo: em si mesmo e em outro.

A relação é o vínculo que une os seres entre si.
É o princípio de toda ordem, proporção e harmonia.
Sem relação, o mundo seria uma multiplicidade dispersa e sem comunicação.

Há três espécies principais de relação: natural, racional e acidental.
A natural é aquela que pertence à própria constituição das coisas — como o pai em relação ao filho, o fogo em relação ao calor, a causa em relação ao efeito.
A racional é a que nasce apenas da mente — como o igual e o desigual, o duplo e o metade.
A acidental é a que provém de circunstâncias externas — como o servo em relação ao senhor, o discípulo em relação ao mestre.

A relação é o fundamento da ciência, pois todo conhecimento é uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido.
É também o fundamento da moral, pois toda ação é relação entre agente e fim.
E é o fundamento da linguagem, pois toda palavra refere algo a algo.

A relação é o “entre” do ser: nem pura substância, nem puro acidente, mas ponte entre ambos.
Nela se exprime o dinamismo do real — o movimento de um ser para outro, a correspondência entre os opostos, a medida do todo.

E porque nada pode ser compreendido isoladamente, toda verdade é relacional.
O ser não se fecha em si; ele se abre para o outro, e nessa abertura se manifesta.
Assim, a relação é a imagem do amor no domínio do intelecto: o modo como o ser se doa ao outro sem perder-se.


DE ACTIONE ET PASSIONE

(Da Ação e da Paixão)

col. 208B–216A

A quarta e a quinta categorias — ação (actio) e paixão (passio) — são correlatas e inseparáveis.
A ação é o princípio pelo qual algo faz; a paixão, o princípio pelo qual algo é afetado.

Toda ação supõe um agente e um paciente.
O agente é a causa eficiente; o paciente, o sujeito que recebe a ação.
Assim, o fogo age aquecendo; a água padece sendo aquecida.

A ação pertence à potência ativa da natureza; a paixão, à sua receptividade.
A primeira é ato de comunicar forma; a segunda, de recebê-la.
Ambas constituem o movimento, que é a transição do ser em potência ao ser em ato.

O universo é o teatro desse intercâmbio incessante: nada é absolutamente imóvel, exceto o princípio primeiro, que move sem ser movido.
Tudo o mais é ação e paixão, causa e efeito, influência e resposta.

Por isso, a ação e a paixão são as categorias do tempo e da mudança.
O que age, altera; o que padece, é alterado.
E o tempo é a medida dessa alteridade.

A ação, porém, é mais nobre que a paixão, porque é mais semelhante ao primeiro princípio, que é pura atividade.
Contudo, a paixão é necessária para que haja multiplicidade e geração.
Pois, se nada recebesse, nada seria comunicado.

No homem, a ação pertence à vontade e à inteligência; a paixão, aos sentidos e às emoções.
Ambas, porém, convergem no mesmo fim: o aperfeiçoamento da substância.
Pois agir é manifestar o ser; padecer é experimentar o ser.

Assim, no universo, há uma harmonia secreta: o que age dá, o que padece recebe, e dessa circulação nasce a ordem do mundo.


DE TEMPORE

(Do Tempo)

col. 216A–223B

O tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois.
Ele é o sinal da sucessão e o limite do mutável.
O tempo mede a duração das coisas, mas não é a duração mesma.

O tempo nasce do movimento, mas não é movimento; é o modo segundo o qual o intelecto apreende o movimento.
Pois, se nada se movesse, não haveria tempo; e se não houvesse alma que contasse, não haveria número do tempo.

Assim, o tempo é real no mundo e racional na mente: real, porque as coisas mudam; racional, porque o intelecto mede essa mudança.

Aristóteles diz que o tempo é “o número do movimento”; mas Boécio acrescenta: é também o espelho da eternidade, pois o que se move imita o que é imóvel.
A eternidade é o todo simultâneo; o tempo, o todo sucessivo.
O primeiro é o ser imóvel de Deus; o segundo, a imagem móvel desse ser.

O tempo é, portanto, o reflexo da ordem do ser no plano da mutabilidade.
Ele liga o começo ao fim, o passado ao futuro, e faz do presente um ponto de passagem.
Sem tempo, não haveria geração, nem história, nem memória.

Mas o tempo é também o limite do ser criado, porque tudo o que entra no tempo é sujeito à corrupção.
Só o que é eterno está fora do tempo, e o que é eterno é o que sempre é.


DE LOCO

(Do Lugar)

col. 223B–228C

O lugar é o limite do corpo continente em relação ao corpo contido.
É o “onde” do ser, o receptáculo das formas corporais.

O lugar não é a matéria, nem a forma, mas a posição determinada na extensão do mundo.
Ele dá às coisas posição e coexistência.

Assim como o tempo ordena a sucessão, o lugar ordena a coexistência.
Ambos são condições da experiência sensível e imagens do infinito.

O universo visível é composto de lugares ordenados, e cada corpo ocupa o seu.
A ordem do lugar é, portanto, a geometria do ser.
Nela, a sabedoria divina dispôs proporções e medidas, de modo que nada flutua sem causa.

O lugar é também princípio de movimento, porque todo deslocamento é mudança de lugar.
Por isso, conhecer o lugar é conhecer a extensão do mundo.

Mas há também um “lugar espiritual”, isto é, a posição da alma no grau do ser.
Pois cada espírito ocupa um “onde” inteligível, que é seu modo de presença perante Deus.


DE POSITIONE ET HABITU

(Da Posição e do Hábito)

col. 228C–235A

A posição (positio) é a ordem das partes num corpo; o hábito (habitus), a disposição exterior ou interior de algo que possui ou é possuído.

A posição diz respeito à relação das partes — como estar sentado, deitado, inclinado.
O hábito diz respeito ao estado do sujeito — como estar vestido, armado, ornamentado, disposto.

Ambas são categorias do ser sensível, e exprimem sua condição finita.
Pois o espírito puro não tem posição nem hábito; só o corpo é sujeito de ambos.

Contudo, Boécio acrescenta que há também um “hábito espiritual”: a disposição estável da alma em direção ao bem.
A virtude é esse hábito; o vício, sua corrupção.
Assim, a categoria do hábito estende-se da matéria ao espírito, e torna-se ponte entre o físico e o moral.

O hábito é, pois, o modo como a forma adere à substância e como o ser se reveste de suas próprias propriedades.


DE CONEXIONE CATEGORIARUM

(Da Conexão das Categorias)

col. 235A–239A

Todas as categorias se unem pela substância.
Pois a substância é o centro imóvel do ser, e as demais são os raios de sua manifestação.

A quantidade mede a substância; a qualidade a determina; a relação a liga; a ação e a paixão a movem; o tempo e o lugar a limitam; a posição e o hábito a configuram.

Assim, as categorias são como as dez notas da sinfonia do ser, em que cada uma tem seu tom próprio, mas todas participam da mesma harmonia.

A sabedoria consiste em ouvir essa harmonia e reconhecer o uno na multiplicidade.
Pois a ordem das categorias é a ordem do universo, e conhecer essa ordem é compreender o modo como o ser se comunica.

Boécio conclui, portanto, que as categorias não são apenas divisões do discurso, mas hierarquias do real.
Elas são os degraus pelos quais a mente sobe da experiência à inteligência, e a inteligência, à contemplação do ser.

E nisto se encerra a exposição das categorias intermediárias, pelas quais o ser é dito sob múltiplas formas, mas sempre em referência ao mesmo princípio.


Finis Libri Tertii — Fim do Terceiro Livro
(col. 239A, Tomus LXIV, Migne)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


LIBER QUARTUS — DE ORDINE CATEGORIARUM AD SUBSTANTIAM

(Quarto Livro — Sobre a Ordem das Categorias em relação à Substância)

col. 239A–245C (Migne, Tomus LXIV)

Todas as categorias se ordenam à substância como ao princípio e ao fim, pois nada existe sem ela, e tudo nela encontra seu fundamento.
Assim como o número é primeiro no cálculo e o ponto na geometria, a substância é o princípio de toda predicação.

Digo que a substância é o que existe em si e não em outro; e por isso todas as demais categorias dependem dela, como do sujeito no qual se encontram.
A quantidade mede a substância, a qualidade a determina, a relação a ordena, a ação a move, a paixão a altera, o lugar a circunscreve, o tempo a acompanha, a posição a dispõe, o hábito a reveste.

Todas essas categorias são modos do ser substancial, não existências diversas.
Pois, se retirarmos a substância, nada subsiste: nem número, nem cor, nem relação, nem movimento.

A substância é o centro invisível do qual tudo procede e ao qual tudo retorna.
Por isso, Aristóteles começa por ela, e nela encerra o círculo de suas categorias, como quem fecha uma ordem cósmica que parte do ser e volta ao ser.

As demais categorias não são, portanto, gêneros do ser, mas modos do ser substancial; e o erro dos antigos foi tratá-las como se fossem substâncias secundárias.
A categoria, propriamente, não é o ser, mas o modo como o ser é dito.

Assim, a ordem das categorias é esta:
Substantia — Quantitas — Qualitas — Relatio — Actio — Passio — Ubi — Quando — Situs — Habitus.
Essa ordem não é arbitrária, mas natural, e exprime o modo pelo qual o intelecto compreende o ser em sua manifestação.

Pois, primeiro, o ser é concebido como existente em si (substantia).
Depois, como mensurável (
quantitas).
Em seguida, como determinado (
qualitas).
Depois, como comparado (
relatio).
Então, como operante (
actio) e paciente (passio).
E, finalmente, como situado (
ubi), temporal (quando), disposto (situs) e revestido (habitus).

Esta é, portanto, a hierarquia das categorias, não em dignidade apenas, mas em necessidade de inteligibilidade.

A substância é o fundamento da inteligibilidade; a quantidade, o princípio da mensurabilidade; a qualidade, da diferenciação; a relação, da ordem; a ação e a paixão, do movimento; o lugar e o tempo, da circunscrição; a posição e o hábito, da disposição e da permanência.

Assim, a metafísica se apoia sobre a substância; a matemática, sobre a quantidade; a física, sobre o movimento; e a ética, sobre a qualidade.
O saber humano, portanto, espelha a ordem das categorias, como o mundo espelha a ordem do ser.

E como o ser se diz de muitos modos, também a substância tem diversos graus:
a primeira, que é o ser em si;
a segunda, que é o ser nas espécies;
a terceira, que é o ser nos acidentes.

Por isso, dizemos que o homem é substância primeira, e o branco, qualidade, e o tríplice, quantidade; e todos são ditos do ser segundo uma ordem de dependência.

O erro consiste em confundir o modo com o princípio: pois o ser é uno, mas diz-se de muitos modos, e as categorias são apenas os modos de sua manifestação.

Portanto, a substância é o sujeito de todos os predicamentos, e os predicamentos são o modo como a mente distingue, nas coisas, o que é ser e o que é modo de ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


DE PRIORITATE ET POSTERIORITATE ENTIS

(Do Ser Anterior e Posterior)

col. 245C–252A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de ter mostrado a ordem das categorias em relação à substância, convém agora considerar a prioridade e posterioridade do ser, pois a natureza mesma das categorias implica gradação, e o ser não é dito de todas as coisas igualmente.

O ser é dito de muitos modos: por substância, por acidente, por potência, por ato, por anterioridade e por consequência.
A substância é o ser primeiro e absoluto; o acidente é o ser segundo e dependente.
A potência é o ser em possibilidade; o ato é o ser em plenitude.
O anterior é o ser que dá causa; o posterior, o que a recebe.

Há, portanto, uma dupla prioridade: prioridade de natureza e prioridade de tempo.
A prioridade de natureza é aquela pela qual algo é causa de outro; a prioridade de tempo é a que mede a ordem sucessiva.
Assim, Deus é anterior por natureza, ainda que o mundo, em certo sentido, coexista eternamente em sua vontade.
A forma é anterior à matéria por definição, mas a matéria pode ser anterior no tempo.

Em todas as coisas criadas, o ser procede do mais simples ao mais composto, do mais perfeito ao mais imperfeito na causa, e inversamente no efeito.
Pois o que é perfeito produz o que é imperfeito, e o que é composto provém do simples.

A prioridade, portanto, não é somente de tempo, mas de dignidade, poder e causalidade.
O que é causa é anterior; o que é dependente é posterior.
Assim, o intelecto é anterior ao sentido, a forma à matéria, o ato à potência, o uno ao múltiplo, o imóvel ao móvel.

Entre as categorias, a substância é a mais anterior, porque todas as demais dependem dela; e o acidente é o mais posterior, porque nada há que dependa dele para ser.
Por isso, as categorias se dispõem como uma escada: no alto, a substância; abaixo, os modos do ser; na base, as determinações contingentes.

E, do mesmo modo, na ordem do conhecimento, o universal é anterior ao particular na definição, mas posterior na percepção.
Pois o intelecto conhece primeiro o que é comum, e depois distingue o singular; mas o sentido percebe primeiro o singular, e só depois abstrai o comum.

Assim, há uma prioridade natural do universal sobre o particular quanto à razão, e uma prioridade empírica do particular quanto à sensação.
A filosofia consiste em reconduzir o posterior ao anterior — o sensível ao inteligível, o composto ao simples, o contingente ao necessário.

Essa hierarquia de prioridade e posterioridade mostra que o ser é uno em essência, mas múltiplo em manifestação.
O que é anterior dá o ser; o que é posterior o recebe.
O primeiro é causa; o segundo, participação.

Tudo o que é posterior se ordena ao anterior como ao seu princípio.
E, se fosse possível retirar o primeiro, o segundo deixaria de existir.
Assim, sem a forma não há matéria definida; sem o ato não há potência realizada; sem o ser primeiro não há ser algum.

A sabedoria consiste em reconhecer essa ordem e submeter a razão a ela.
Pois, se o homem deseja compreender o real, deve elevar-se do posterior ao anterior — da aparência à substância, do tempo à eternidade, do múltiplo ao uno.

A lógica, portanto, é o exercício desse retorno: ordena o discurso segundo a prioridade dos conceitos, para que o pensamento siga a mesma ordem que o ser.

Assim como o ser é ordenado, o raciocínio deve sê-lo também; e aquele que conhece a prioridade das causas pode julgar com justiça a ordem das coisas.

Boécio conclui, portanto, que a prioridade e a posterioridade são princípios da ciência e do ser:
— No ser, determinam a hierarquia das naturezas;
— No conhecimento, determinam a hierarquia dos conceitos.

E como toda ciência depende do ser, o conhecimento verdadeiro é aquele que segue o caminho do ser anterior, isto é, o princípio.
Por isso, Aristóteles disse que “a ciência das causas é a ciência mais digna de todas”.


col. 252A — Conclusio partialis

Logo, o ser primeiro é causa e medida do ser posterior; o ser posterior é imagem e efeito do ser primeiro.
E a filosofia é o movimento da alma que retorna do último ao primeiro, do inferior ao superior, do mutável ao imutável.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


DE SIMILITUDINE ET DIFFERENTIA CATEGORIARUM

(Das Semelhanças e Diferenças entre as Categorias)

col. 252A–257B (Migne, Tomus LXIV)

Tendo sido tratado o que pertence à ordem e à prioridade das categorias, resta agora mostrar de que modo elas se assemelham entre si e em que se diferenciam.
Pois a unidade de toda ciência depende da proporção entre seus princípios, e nada pode ser conhecido em sua totalidade se não se conhecer o que o distingue e o que o une.

As categorias se assemelham, primeiramente, porque todas são modos de dizer o ser.
Nenhuma se afasta totalmente da substância, e todas exprimem alguma relação com ela.
Pois, ainda que a quantidade e a qualidade, o tempo e o lugar, a ação e a paixão sejam diversos, todos dizem respeito ao ser, e sem o ser nada significam.

Assim, há uma semelhança formal entre elas: todas são predicamentos, isto é, modos pelos quais o intelecto apreende e o discurso exprime o ser.
Contudo, a diferença está no gênero da predicação: umas dizem o que é (
quid sit), outras dizem como é (qualiter), outras dizem em relação a quê (ad quid), outras dizem quando ou onde é (quando, ubi).

Portanto, a semelhança é de origem; a diferença, de função.
A origem é o ser; a função, a maneira de dizê-lo.

Entre todas, a substância é a mais simples e a mais distinta, porque é dita por si mesma e não em outro.
A quantidade e a qualidade são as mais próximas dela, porque se referem imediatamente ao modo de ser.
A relação, a ação e a paixão estão mais distantes, porque pressupõem pluralidade e movimento.
O tempo e o lugar pertencem à condição sensível, e por isso são mais afastados do ser puro.
A posição e o hábito são os últimos, pois dizem respeito à disposição do corpo e à figura exterior.

Mas ainda há entre elas afinidades secretas: a quantidade e o tempo têm em comum a mensuração; a qualidade e o hábito, a disposição; a relação e a ação, a reciprocidade; o lugar e a posição, a situação.
Assim, o sistema das categorias é como uma rede em que cada fio toca o outro sem confundir-se com ele.

É próprio da sabedoria reconhecer tais correspondências e diferenças, para que o discurso humano não misture os modos do ser e não atribua ao acidente o que pertence à substância.

As semelhanças entre as categorias decorrem de três princípios:
(1) Todas se referem à substância.
(2) Todas exprimem um modo de ser.
(3) Todas são necessárias à expressão do conhecimento.

As diferenças provêm de três causas:
(1) Da diversidade de relação com o sujeito.
(2) Da diversidade de dependência quanto à substância.
(3) Da diversidade de abstração segundo o intelecto.

Pois a substância é pensada sem relação; a quantidade, com relação ao número; a qualidade, com relação à forma; a relação, com relação a outro; o tempo e o lugar, com relação ao movimento; a posição e o hábito, com relação à matéria.

Há, portanto, um duplo movimento entre as categorias: um de aproximação e outro de separação.
A aproximação mostra a unidade do ser; a separação, sua multiplicidade.
Por ambas o intelecto se eleva ao conhecimento: pela semelhança, reconhece a origem comum; pela diferença, distingue os modos de manifestação.

Assim, o conhecimento perfeito é aquele que sabe unir e distinguir — unir o que procede do mesmo princípio e distinguir o que se ordena a diversos fins.
Essa é a arte do filósofo: ver no diverso a unidade e na unidade o diverso.

E como o ser é uno e múltiplo, simples e composto, imóvel e móvel, as categorias são seus reflexos variados, que o intelecto reúne num mesmo horizonte.

Boécio conclui, portanto, que entre as categorias há uma harmonia de contrários:
— a substância é imóvel, mas sustenta o movimento;
— a qualidade muda, mas conserva a forma;
— a quantidade aumenta e diminui, mas não destrói o sujeito;
— a relação divide, mas também une;
— a ação altera, mas aperfeiçoa;
— a paixão recebe, mas integra;
— o tempo corre, mas ordena;
— o lugar muda, mas contém;
— a posição dispõe, e o hábito reveste.

Assim, tudo o que existe é relação de semelhança e diferença, de unidade e multiplicidade; e a lógica não é senão o espelho dessa ordem.


col. 257B — Conclusio partialis

As categorias são, portanto, como círculos concêntricos: todos têm o mesmo centro, que é a substância, mas se afastam dele em graus diversos.
E o conhecimento das semelhanças e diferenças é o que torna o filósofo capaz de discernir a ordem das coisas e o lugar de cada ser no todo.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


DE USU CATEGORIARUM IN DEMONSTRATIONE

(Do Uso das Categorias na Demonstração)

col. 257B–261A (Migne, Tomus LXIV)

As categorias não foram instituídas apenas para distinguir os modos do ser, mas também para ordenar o discurso da razão e fundamentar a demonstração científica.
Pois o intelecto, quando raciocina, move-se segundo as mesmas leis pelas quais o ser se ordena.

Aristóteles, ao dispor as categorias, não quis apenas enumerar as formas do dizer, mas fixar os princípios do demonstrar.
Assim como o ser é múltiplo em aparência e uno em essência, também o discurso deve ser múltiplo na forma, mas uno na verdade.

A demonstração é o ato pelo qual o intelecto mostra que algo é necessariamente verdadeiro; e essa necessidade nasce da relação entre o predicado e o sujeito segundo as categorias.
Pois toda proposição, todo silogismo, toda definição, dependem do modo como se predica o ser.

Quando dizemos “o homem é animal”, usamos a categoria da substância;
quando dizemos “o homem é branco”, a categoria da qualidade;
quando dizemos “o homem é duplo de outro”, a categoria da relação;
quando dizemos “o homem age” ou “padece”, as categorias da ação e da paixão.

Logo, todo juízo é categorial; e toda ciência, porque se exprime por juízos, está fundada nas categorias.

A demonstração perfeita é aquela que se constrói sobre as categorias superiores — sobretudo sobre a substância e suas determinações —, pois nelas o ser é dito propriamente e com necessidade.
Nas categorias inferiores, a demonstração é menos firme, porque depende do acidental e do contingente.

Assim, há três níveis de demonstração:
(1) O metafísico, que versa sobre a substância e o ser em si;
(2) O físico, que trata da quantidade, qualidade e movimento;
(3) O moral e retórico, que trata das relações e dos hábitos.

O primeiro dá ciência; o segundo dá probabilidade; o terceiro, persuasão.
Mas todos se fundam nas categorias, porque todos dependem dos modos de ser e de dizer.

A dialética, portanto, é a arte de ordenar as categorias no discurso; e a demonstração, a aplicação dessa ordem à verdade.
Pois raciocinar é mover o intelecto conforme a hierarquia do ser: do universal ao particular, do necessário ao contingente, do ser em si ao ser por participação.

As categorias são como os degraus do método: a cada uma corresponde um gênero de proposição, um tipo de argumento, um grau de certeza.
Por isso, quem ignora as categorias raciocina confusamente; quem as conhece, pensa segundo a estrutura do ser.

A lógica não é, pois, uma invenção humana, mas a tradução racional da ordem ontológica.
E toda demonstração verdadeira é um reflexo da ordem divina, na qual nada é dito em vão, e tudo se ordena segundo causa e proporção.

Quando o discurso segue a ordem das categorias, ele é ciência; quando as confunde, é opinião.
A ciência nasce da correspondência entre o logos e o ser — e essa correspondência é precisamente o domínio das categorias.

Boécio conclui: a arte de demonstrar consiste em aplicar os modos do ser aos modos do dizer; e, portanto, o filósofo que ignora as categorias é como o arquiteto que constrói sem medir.
Pois as categorias são as medidas do pensamento, e o pensamento é a medida do mundo.


col. 261A — Conclusio partialis

As categorias, portanto, são para a razão o que as causas são para a natureza: princípios universais sem os quais nada pode ser compreendido ou demonstrado.
E, assim como a natureza se move pelas causas, o discurso se move pelas categorias.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN CATEGORIAS ARISTOTELIS

(Sobre as Categorias de Aristóteles)


CONCLUSIO GENERALIS

(Conclusão Geral)

col. 261A–263C (Migne, Tomus LXIV)

Terminado o exame das categorias e da ordem que nelas se contém, convém agora reunir o que foi dito e contemplar, como em um espelho, a harmonia universal do ser e do pensamento.

Todas as categorias, embora múltiplas em número, se reduzem à substância como a seu princípio e fim.
Pois a substância é o que é; as demais são modos do ser.
E tudo o que se diz, se diz ou da substância, ou em relação a ela.

A quantidade é o ser mensurável; a qualidade, o ser determinado; a relação, o ser referido; a ação e a paixão, o ser em movimento; o tempo e o lugar, o ser circunscrito; a posição e o hábito, o ser ordenado e revestido.
Assim, todo o universo, considerado em sua totalidade, é uma síntese das categorias: a substância é seu centro, as demais são suas circunferências.

O intelecto, ao conhecer, percorre o mesmo caminho do ser: parte da substância, e nela tudo resolve.
Pois, se nada existisse por si, nada poderia ser dito de outro.
E, se nada pudesse ser dito de outro, não haveria ciência, porque a ciência é o conhecimento das relações do ser.

Por isso, Aristóteles, ao dividir o ser segundo as categorias, deu à razão os limites do real e impediu que o intelecto errasse no infinito.
Pois o que não pertence a nenhuma categoria não pertence ao ser; e o que não pertence ao ser não pertence ao discurso.

A lógica é, pois, o mapa do ser, e as categorias são seus territórios.
Nelas se desenham as fronteiras do pensamento, para que a mente humana, ao mover-se, não se perca em contradição.

A substância é o eixo imóvel; a quantidade, o número de sua extensão; a qualidade, o esplendor de sua forma; a relação, a medida de sua comunhão; a ação, o fluxo de sua força; a paixão, o eco de sua receptividade; o tempo e o lugar, o teatro de sua aparição; a posição e o hábito, a expressão visível de sua ordem.

E assim, as dez categorias são as dez manifestações do ser, como dez espelhos em que o uno se reflete na multiplicidade.
Quem as conhece, penetra na estrutura do mundo e aprende que pensar é participar do ser.

Toda filosofia consiste em reconduzir o pensamento à ordem das categorias, e, por meio delas, ao princípio do ser.
Pois nada é conhecido fora da ordem, e nada é verdadeiro fora da substância.

A sabedoria antiga chamou o universo de “cosmos” porque nele tudo é disposição e proporção; do mesmo modo, chamou a lógica de “ars ordinandi”, porque é a proporção da mente com o ser.

Assim, o filósofo contempla nas categorias o reflexo do eterno:
— Na substância, o ser em si;
— Na quantidade, a medida do ser;
— Na qualidade, a forma do ser;
— Na relação, o amor do ser;
— Na ação, a potência do ser;
— Na paixão, a paciência do ser;
— No tempo, a imagem da eternidade;
— No lugar, a figura da imensidade;
— Na posição, a ordem da harmonia;
— No hábito, o esplendor da completude.

E, acima de todas, a unidade divina, que não se encontra em nenhuma categoria, mas as contém todas, porque é o próprio ser sem modo nem limitação.

O que é dito nas categorias é o que o homem pode compreender do ser; mas o que está acima delas é o que o homem adora sem compreender.
Pois a filosofia conduz até o limiar do ser absoluto, mas só a contemplação o alcança.

Portanto, quem compreende as categorias não apenas sabe o que as coisas são, mas sabe o modo como o ser se comunica — e nisso consiste a sabedoria.
Pois a sabedoria é o conhecimento das causas e a ordem das essências; e ambas se contêm nas categorias.

Concluímos, assim, o estudo do livro das Categorias, em que se mostra a correspondência do pensamento com o ser, e a ordem do discurso com a ordem do universo.
Tudo o que é dito, é dito segundo as categorias; e tudo o que é, é segundo a substância.

Finis Operis.

IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao “De Interpretatione” de Aristóteles)


Pars Prima — Commentaria Minora

(Primeira Parte — Comentários Menores)
col. 263A–279C (Migne, Tomus LXIV)

Sub-índice integral (Index Capitum)

1.      De Voce et Significato — Sobre a voz e o significado.
 Explica que a voz (
vox) é sinal da paixão da alma, e que as palavras significam as coisas por convenção, não por natureza.

2.      De Nomine et Verbo — Sobre o nome e o verbo.
 Analisa o nome como signo substancial e o verbo como signo temporal e predicativo.

3.      De Oratione et Enunciatione — Sobre o discurso e a enunciação.
 Mostra como a combinação de nomes e verbos constitui o discurso e distingue entre
oratio significans e oratio enunciativa.

4.      De Affirmatione et Negatione — Sobre a afirmação e a negação.
 Trata da estrutura lógica da proposição afirmativa e negativa, e introduz a ideia de contradição.

5.      De Veritate et Falsitate — Sobre a verdade e a falsidade.
 Explica a verdade como conformidade entre o intelecto e a coisa (
adaequatio rei et intellectus), e a falsidade como separação entre ambos.

6.      Conclusio Minorum Commentariorum — Conclusão dos comentários breves.
 Recapitula a teoria da significação e prepara a transição para os
Commentaria Majora.


Pars Secunda — Commentaria Majora

(Segunda Parte — Comentários Maiores)
col. 279C–313C (Migne, Tomus LXIV)

Sub-índice integral (Index Capitum)

1.      De Mente Aristotelis circa Interpretationem — Sobre a intenção de Aristóteles no tratado da Interpretação.
 Apresenta o princípio hermenêutico: a linguagem como imagem da estrutura mental e do ser.

2.      De Propositione, Oratione et Partibus Eius — Sobre a proposição, o discurso e suas partes.
 Analisa a proposição como unidade lógica do pensamento e do verbo; distingue sujeito, cópula e predicado.

3.      De Contradictione, Contrarietate et Medio Inter Opposita — Sobre a contradição, a contrariedade e o meio entre opostos.
 Expõe as espécies de oposição: contraditória, contrária, relativa e privativa.
 Aplica o esquema à teoria da verdade e à dialética.

4.      De Enunciatione Futura et Contingentia — Sobre a enunciação do futuro e do contingente.
 Examina o problema do determinismo lógico e o estatuto da verdade das proposições sobre o futuro (o célebre tema do “combate naval” de Aristóteles).

5.      De Compositione et Divisione Mentis — Sobre a composição e a divisão no intelecto.
 Mostra que o julgamento é um ato intermediário entre a simples apreensão e o raciocínio, e que a verdade nasce da união correta dos conceitos.

6.      Conclusio Generalis — Conclusão Geral.
 Síntese da doutrina do signo, da proposição e da verdade; a linguagem como espelho da razão e imagem do ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


PARS PRIMA — COMMENTARIA MINORA

(Primeira Parte — Comentários Menores)


DE VOCE ET SIGNIFICATO

(Da Voz e do Significado)

col. 263A–270C (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles, ao iniciar o tratado sobre a interpretação, declara que as palavras faladas são sinais das paixões da alma, e as palavras escritas, sinais das palavras faladas.
As paixões da alma, por sua vez, são semelhanças das coisas; e assim, a linguagem inteira é uma cadeia de sinais que liga o intelecto ao ser.

As vozes articuladas são signos instituídos por convenção, não pela natureza.
Pois nada impede que povos diversos usem sons diferentes para designar as mesmas coisas.
A natureza fornece a potência de significar; a convenção determina o signo.

O som, enquanto som, é fenômeno físico; mas, enquanto palavra, é fenômeno racional.
Ele é a forma sensível de uma intenção interior.
Por isso, diz-se que a voz é o corpo da alma, e que o verbo é o espírito do corpo.

A voz é produzida pelo sopro que atravessa a alma racional; e é a razão que lhe dá forma e sentido.
Assim, não há palavra sem pensamento, nem pensamento que, em sua perfeição, não tenda à palavra.

A significação é o vínculo entre o som e o pensamento.
Mas é a mente, e não o som, que estabelece a referência às coisas.
O som apenas manifesta o que a mente concebeu.

A voz, portanto, é sinal da intenção interior; e a intenção interior é imagem do ser.
Quem ouve a palavra, ouve não apenas o som, mas o movimento da alma que o pronunciou.

Assim, a linguagem é o espelho animado do espírito humano.
Cada voz contém um pensamento, e cada pensamento reflete uma forma do ser.
A voz é o primeiro instrumento do intelecto; a palavra, o primeiro signo do mundo.

Contudo, não toda voz é palavra: pois os sons dos animais, embora emitam vozes, não significam pela razão, mas pela paixão.
O homem, ao contrário, fala porque compreende, e compreende porque é racional.

A voz humana é, portanto, o primeiro grau da encarnação do logos.
Nela o invisível se torna audível; nela a mente toma corpo.

Assim, como Deus criou todas as coisas por sua Palavra, também o homem nomeia todas as coisas por sua voz.
A diferença é que em Deus a palavra é o ser, e no homem é a imagem do ser.

E, portanto, a voz é o sinal do pensamento, e o pensamento, a semelhança da realidade.
Nessa tríplice ordem — coisa, mente, voz — está contida toda a doutrina da significação.


Conclusio Sectionis
(col. 270C)

Conclui-se que a voz é um signo natural elevado à dignidade de símbolo racional.
Ela participa da natureza do som e da natureza do espírito, unindo o sensível ao inteligível.
E é por isso que Aristóteles começa por ela, pois toda interpretação depende da voz e todo pensamento se manifesta por meio dela.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE NOMINE ET VERBO

(Do Nome e do Verbo)

col. 270C–274A (Migne, Tomus LXIV)

O nome e o verbo são as partes fundamentais da enunciação, assim como o sujeito e o predicado são as partes do juízo.
Pelo nome, a mente designa a substância; pelo verbo, designa o movimento ou o ato.

O nome, em sentido próprio, é som significativo por convenção, que não contém em si tempo, e do qual nenhuma parte é significativa separadamente.
É o signo de algo que pode ser entendido como sujeito de uma proposição.

O verbo é som significativo, que inclui em si a noção de tempo e exprime o que se afirma ou nega de algo.
Ele é o signo de uma ação, de um estado ou de uma operação.

Assim, no enunciado “o homem corre”, o nome “homem” designa o sujeito substancial, e o verbo “corre” indica a ação temporal.
O nome refere o pensamento ao ser; o verbo, ao devir.
O primeiro é símbolo da permanência; o segundo, da mudança.

Aristóteles observa que o verbo contém implicitamente uma afirmação.
Pois, ao dizer “corre”, a mente já afirma a existência de um agente da corrida, mesmo sem nomeá-lo.
O verbo, portanto, é essencialmente predicativo, enquanto o nome é essencialmente designativo.

O nome responde à questão “quem?” ou “o que?”; o verbo responde à questão “faz o quê?” ou “em que estado?”.
Ambos são necessários para que o discurso tenha sentido completo, pois o pensamento humano é sempre sobre algo e sempre em algum modo.

O nome é a fixação do ser; o verbo, a expressão de sua atividade.
No nome, o intelecto apreende o que é; no verbo, o intelecto contempla o que acontece.
Por isso, os antigos chamaram o verbo de “alma da oração”, e o nome de “corpo do discurso”.

Sem o verbo, a palavra não vive; sem o nome, o verbo não tem onde habitar.
O nome é como o tronco; o verbo, como o sopro que o anima.
Assim, todo o discurso racional é uma síntese desses dois polos — substância e movimento, essência e operação.

O verbo contém em si o tempo, porque toda ação ocorre em algum momento.
Mas o nome é atemporal, porque a substância, enquanto tal, transcende o tempo.
Eis por que os nomes são eternos nos inteligíveis, e os verbos, transitórios nos sensíveis.

A metafísica, que trata das substâncias, lida sobretudo com os nomes;
a física, que trata das mudanças, com os verbos;
a lógica, que une ambos, com o discurso.

Assim, o nome é o símbolo da essência; o verbo, o símbolo da energia.
Ambos, unidos, refletem a dupla face do ser — aquilo que é e aquilo que age.


Conclusio Sectionis
(col. 274A)

Conclui-se que o nome é o signo da permanência do ser, e o verbo, o signo de sua operação.
O nome exprime a substância; o verbo, o movimento; e ambos, reunidos na mente e na palavra, formam a primeira unidade do discurso racional.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE ORATIONE ET ENUNCIATIONE

(Do Discurso e da Enunciação)

col. 274A–275C (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles chama oração (orationem) a composição de palavras significativas, das quais uma parte exprime algo sobre outra.
E chama
enunciação (enunciationem) aquela oração que afirma ou nega algo, sendo, portanto, capaz de ser verdadeira ou falsa.

Toda oração é, pois, um discurso, mas nem todo discurso é enunciação.
Pois há discursos que apenas exprimem desejo, súplica ou ordem, sem pretender declarar algo como verdadeiro ou falso — como quando se diz: “Oxalá venhas”, ou “Vai”.
Esses são discursos sem valor de verdade.

A enunciação, ao contrário, é o discurso que afirma ou nega algo do ser; e só nela se encontra a possibilidade de verdade ou falsidade.
Assim, quando se diz: “O homem é animal racional”, afirma-se algo que pode ser verificado como verdadeiro;
e, quando se diz: “O homem não é animal racional”, enuncia-se o oposto, que pode ser falso.

A oração, enquanto conjunto de nomes e verbos, é o corpo do pensamento;
a enunciação, enquanto afirmação ou negação, é o seu espírito.
Pois, no juízo, a alma une ou separa os conceitos, e o verbo da oração torna-se o elo ou o corte do pensamento.

Aristóteles ensina que a oração é composta de duas partes principais — o nome e o verbo —, às quais se acrescenta, às vezes, o artigo, o pronome e outras partículas gramaticais, que servem para indicar número, gênero e modo.
Mas nenhuma dessas partes acidentais constitui a enunciação enquanto tal, senão apenas o arranjo necessário à expressão.

A enunciação é o ato próprio do intelecto discursivo.
Pois o simples conceito conhece o que é, mas o juízo conhece o que é verdadeiro ou falso.
A mente, ao julgar, afirma ou nega — e, portanto, realiza a enunciação.

Toda ciência depende da enunciação, porque toda ciência é composta de proposições verdadeiras.
O discurso, sem enunciação, seria como uma voz sem alma, ou como uma harmonia sem razão.

Assim, a oração é o modo de o homem comunicar o pensamento; e a enunciação, o modo de o homem conhecer a verdade.
Pela oração, a razão se manifesta; pela enunciação, ela se verifica.

Toda oração supõe um logos; toda enunciação, um ser.
Pois só se pode dizer o verdadeiro do que é, e o falso do que não é.
A falsidade nasce da separação entre a palavra e a coisa; a verdade, de sua correspondência.

Logo, a oração é o veículo do logos, e a enunciação, sua iluminação.
A primeira é o instrumento; a segunda, o julgamento.

E assim se mostra que o discurso humano não é simples som ordenado, mas o reflexo do ser no intelecto — um espelho que pode refletir a luz da verdade ou a sombra do erro.


Conclusio Sectionis
(col. 275C)

Conclui-se que a oração é a união de nomes e verbos, e a enunciação, a união da mente com a verdade.
A primeira comunica o pensamento; a segunda o confirma.
E é nesse poder de afirmar e negar que reside a dignidade racional do homem.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE AFFIRMATIONE ET NEGATIONE

(Da Afirmação e da Negação)

col. 275C–277B (Migne, Tomus LXIV)

A enunciação, como foi dito, é o discurso que declara o verdadeiro ou o falso.
Essa declaração se faz por meio da afirmação e da negação, as quais são os dois atos essenciais do intelecto discursivo.

A afirmação é a união do sujeito e do predicado; a negação, a separação entre ambos.
Pois, ao afirmar, o intelecto une; ao negar, o intelecto distingue.
E é dessa dupla operação que nasce o juízo.

A afirmação é o juízo do ser; a negação, o juízo do não-ser.
Quando o intelecto apreende que algo é, afirma; quando apreende que algo não é, nega.
Ambas são necessárias, pois o conhecimento do verdadeiro requer saber o que é e o que não é.

Aristóteles ensina que a afirmação e a negação são contrárias, mas não contraditórias enquanto não forem aplicadas ao mesmo sujeito e predicado sob o mesmo respeito.
Pois é possível afirmar e negar de modos diferentes — como quando se diz “o homem é branco” e “o homem é músico”; tais afirmações não se opõem, pois dizem coisas diversas.

A contradição só surge quando se afirma e se nega o mesmo, do mesmo, sob o mesmo aspecto — como em “o homem é animal racional” e “o homem não é animal racional”.
Aí, um dos dois juízos é necessariamente falso, e o outro necessariamente verdadeiro.

A verdade, portanto, não está na palavra, mas na correspondência do intelecto com o ser.
A falsidade não está no som, mas na disjunção entre o pensamento e a realidade.

Quando o intelecto une o que na realidade é unido, ou separa o que na realidade é separado, ele é verdadeiro.
Quando une o que é separado, ou separa o que é unido, ele é falso.

A afirmação e a negação são, assim, os atos primordiais da razão discursiva:
a primeira, reflexo da unidade do ser;
a segunda, reflexo da distinção dos entes.

Sem negação, o intelecto não distinguiria; sem afirmação, não compreenderia.
O primeiro erro nasce quando o intelecto afirma o que não é, ou nega o que é — isto é, quando a palavra deixa de seguir a ordem do ser.

Assim, a verdade é o acordo do verbo com o ente; e a falsidade, sua ruptura.
O logos é verdadeiro quando se conforma ao real, e falso quando dele se afasta.

Por isso, diz Boécio, que o juízo é o lugar da moral do pensamento:
pois o intelecto, ao afirmar o verdadeiro, pratica a retidão; e, ao afirmar o falso, pratica o desvio.

E assim, a lógica não é apenas arte da razão, mas disciplina da alma, que ensina a pensar segundo a verdade.


Conclusio Sectionis
(col. 277B)

Conclui-se que a afirmação é a união conforme à verdade, e a negação, a separação conforme à verdade.
Ambas pertencem ao mesmo ato do intelecto, que é o de julgar.
E, portanto, a razão, ao afirmar o verdadeiro e negar o falso, participa da própria ordem do ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE VERITATE ET FALSITATE

(Da Verdade e da Falsidade)

col. 277B–279C (Migne, Tomus LXIV)

Depois de ter explicado a natureza da afirmação e da negação, Aristóteles trata da verdade e da falsidade, pois nelas consiste o fim da enunciação.
Pois todo discurso racional tende a distinguir o verdadeiro do falso, assim como todo olhar tende à luz e não à sombra.

A verdade é a conformidade do intelecto com o ser (adaequatio intellectus ad rem).
A falsidade é a dissonância entre o que é pensado e o que é.
O verdadeiro é quando o intelecto diz que o que é, é; e que o que não é, não é.
O falso é quando o intelecto diz que o que é, não é; ou que o que não é, é.

Portanto, a verdade reside no juízo, não na coisa nem na palavra.
Pois as coisas são como são, e as palavras apenas as significam; mas o intelecto, ao julgá-las, pode concordar ou discordar delas.
O ser não é verdadeiro ou falso em si; é o pensamento que o torna assim, conforme o apreende corretamente ou não.

Assim, o mesmo ente, considerado em si mesmo, é neutro quanto à verdade;
mas, considerado como objeto do intelecto, é verdadeiro se conhecido tal como é, e falso se conhecido de modo contrário ao que é.

A verdade é, pois, uma relação — não apenas uma qualidade —, pois depende da correspondência entre duas realidades: o que é e o que é pensado.
O erro surge quando essa correspondência se rompe; e a ignorância, quando sequer há tentativa de correspondência.

Aristóteles observa que a verdade e a falsidade só existem onde há composição e divisão, isto é, no juízo.
Pois o intelecto, ao conceber simplesmente, nem afirma nem nega; ele apenas apreende a essência.
Mas, ao compor ou dividir, ele já introduz a possibilidade de concordar ou discordar do ser.

Assim, o conhecimento sensível é incapaz de verdade propriamente dita, porque apenas recebe impressões, sem julgar.
O conhecimento intelectual, ao contrário, é capaz de verdade, porque compara, distingue e afirma.

Boécio acrescenta que a verdade não é apenas adequação lógica, mas também integridade ontológica:
pois aquilo que é segundo sua natureza é verdadeiro em seu ser, ainda que não seja conhecido.
Assim, a verdade existe em três níveis:
— na coisa, como retidão do ser;
— no intelecto, como correspondência;
— na palavra, como manifestação.

Na coisa, a verdade é ser o que se deve ser;
no intelecto, é pensar o que é;
na palavra, é dizer o que se pensa conforme o que é.

A falsidade, por sua vez, é a corrupção dessa ordem:
— na coisa, quando o ser não é o que deveria ser (como a doença em relação à saúde);
— no intelecto, quando se julga o contrário do real;
— na palavra, quando se exprime o contrário do que o intelecto pensa.

Assim, há falsidade material e falsidade formal:
a primeira, quando a coisa não corresponde à sua natureza;
a segunda, quando o juízo não corresponde à coisa.

A verdade é, portanto, a unidade entre o ser, o intelecto e o verbo;
e a falsidade, sua separação.

O verdadeiro é a imagem da ordem divina, pois Deus é a própria verdade — isto é, a perfeita correspondência entre ser, conhecer e dizer.
O falso é a sombra da desordem, o afastamento da luz do ser.

Todo intelecto que ama a verdade tende à unidade; todo intelecto que se desvia dela dispersa-se no múltiplo.
Por isso, o erro é não apenas um defeito do conhecimento, mas também uma desordem da alma.

Assim, a verdade é tanto um princípio lógico quanto um bem moral.
E o homem, ao buscar a verdade, não busca apenas o saber, mas o próprio modo de existir conforme o ser.


Conclusio Sectionis
(col. 279C)

Conclui-se que a verdade é a conformidade tríplice de coisa, pensamento e palavra, e que a falsidade é sua ruptura.
A verdade une; a falsidade separa.
E é por isso que a verdade liberta o intelecto e o torna semelhante àquilo que ele contempla.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


PARS SECUNDA — COMMENTARIA MAJORA

(Segunda Parte — Comentários Maiores)


DE MENTE ARISTOTELIS CIRCA INTERPRETATIONEM

(Sobre a Intenção de Aristóteles no Tratado da Interpretação)

col. 279C–286A (Migne, Tomus LXIV)

A obra de Aristóteles intitulada De Interpretatione ocupa o segundo lugar na ordem lógica, logo após o tratado das Categorias.
Pois, tendo examinado os modos de ser e de predicar, convém agora tratar dos modos de dizer e de significar.
A doutrina das categorias diz respeito à natureza das coisas; a doutrina da interpretação, à natureza da linguagem.

A intenção de Aristóteles é mostrar de que modo o pensamento se traduz em palavras e como as palavras representam o verdadeiro e o falso.
Pois, assim como o ser é expresso pelas categorias, o pensamento é expresso pelas enunciações.

O primeiro princípio é que o discurso humano é sinal das afeições da alma (passiones animae), e estas, por sua vez, são semelhanças das coisas.
Assim, o homem é mediador entre o ser e a palavra: compreende o ser pela mente e o manifesta pela voz.

As paixões da alma são os movimentos interiores do intelecto e da imaginação, pelos quais o espírito apreende as formas das coisas.
Essas formas, quando traduzidas em sons articulados, tornam-se signos convencionais.
Por isso, a linguagem é natural em potência, mas artificial em ato — nasce da razão, mas é instituída pela convenção.

Aristóteles quis, pois, determinar as leis dessa transposição — como o intelecto, ao conceber, se exprime; e como o verbo, ao significar, corresponde ao intelecto.

A mente concebe primeiro as essências universais, depois as aplica aos particulares.
Do mesmo modo, a palavra exprime primeiro os universais e depois os particulares.
Por isso, o nome “homem” significa uma essência comum, enquanto a palavra “Sócrates” designa um indivíduo.

A linguagem é o espelho do intelecto: assim como o intelecto distingue, a palavra diferencia; como o intelecto une, a palavra compõe; como o intelecto julga, a palavra afirma ou nega.

A interpretação, portanto, é o estudo dessa correspondência entre o pensamento e o discurso.
Ela busca compreender como o que é concebido na alma se torna audível sem perder sua significação interior.

A mente de Aristóteles é, pois, a de um metafísico que se serve da gramática para investigar a estrutura do logos.
Pois, em última instância, compreender a linguagem é compreender o modo como o ser é dito e pensado.

O filósofo distingue três níveis de significação:
— o ser (
res), que é a realidade das coisas;
— o intelecto, que apreende as formas das coisas;
— a voz, que manifesta o intelecto.

A relação entre eles é como a do original, da imagem e do reflexo.
O ser é o original; o intelecto é sua imagem; a voz é o reflexo sonoro da imagem.

Assim, quando a mente fala, ela projeta na matéria sensível — o ar — a forma invisível de um conceito.
O verbo é, portanto, um ato espiritual que assume corpo.

A palavra humana participa do Verbo divino, que é a Palavra eterna pela qual todas as coisas foram feitas.
Pois, assim como Deus cria ao dizer “Seja”, o homem cria sentido ao pronunciar.
Mas enquanto em Deus a palavra é substância, no homem é apenas sinal.

Aristóteles não busca aqui a origem divina da linguagem, mas sua estrutura racional.
Ele mostra que o discurso é composto de partes hierárquicas — o nome, o verbo, a oração, a proposição —, e que cada uma tem função própria na construção do sentido.

A interpretação é, pois, o estudo da ordem entre essas partes e de seu poder de significar.
Essa ordem não é apenas gramatical, mas ontológica: as palavras estão entre si como as essências estão no ser — subordinadas, coordenadas e dependentes.

A intenção de Aristóteles é conduzir a mente do uso vulgar da linguagem à compreensão de sua natureza científica.
Pois, enquanto o vulgo fala sem saber, o filósofo investiga o que significa falar.

A palavra não é, para Aristóteles, mero instrumento da comunicação, mas a realização sensível da razão.
E é por isso que, conhecendo a linguagem, o homem conhece a si mesmo.

Assim, o tratado De Interpretatione é o elo entre o Peri Hermeneias da lógica e o De Anima da metafísica, entre o discurso humano e o pensamento divino.
Pois nele se examina como o logos humano participa do Logos universal — aquele que é princípio de toda inteligibilidade e forma de toda expressão.

Boécio acrescenta: “Interpretar é ordenar o verbo segundo a verdade.”
A verdadeira interpretação, portanto, não é apenas exegese das palavras, mas restabelecimento da harmonia entre o intelecto e o ser.


Conclusio Sectionis
(col. 286A)

Conclui-se que o intento de Aristóteles, ao escrever o De Interpretatione, é mostrar como a linguagem é a manifestação do pensamento, e o pensamento, a imagem do ser.
Por isso, compreender a interpretação é compreender a ponte entre a razão e o mundo, e ver no verbo humano a sombra da Palavra eterna.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE PROPOSITIONE, ORATIONE ET PARTIBUS EIUS

(Da Proposição, do Discurso e de suas Partes)

col. 286A–294C (Migne, Tomus LXIV)

A proposição é o elemento fundamental da enunciação, pois é nela que o intelecto exprime o juízo.
Enquanto o nome e o verbo são apenas partes do discurso, a proposição é o discurso completo que pode ser verdadeiro ou falso.

Aristóteles define a proposição como uma oração significativa na qual se afirma ou nega algo de algo.
Portanto, toda proposição é uma enunciação, mas nem toda enunciação é proposição perfeita; pois só aquela que contém sujeito e predicado em relação de sentido pleno pode ser chamada de proposição.

O nome designa a substância; o verbo, o ato; mas a proposição une ambos sob um mesmo pensamento, realizando a unidade lógica do intelecto.
O nome é o suporte do ser; o verbo, o movimento do ser; a proposição, a síntese inteligível do ser pensado.

Assim, em “o homem é mortal”, o nome “homem” significa a substância, o verbo “é” significa o ato de ser, e o adjetivo “mortal” indica o modo de ser.
O intelecto, ao pronunciar essa proposição, une a substância ao acidente segundo a ordem da verdade.

Toda proposição, portanto, é um microcosmo do logos: contém sujeito, predicado e cópula, que correspondem, no pensamento, à substância, à forma e à relação.

A oração (oratio), considerada em geral, é o conjunto de palavras articuladas segundo razão; mas, considerada em sentido estrito, é o instrumento da enunciação.
Aristóteles distingue entre a oração simples e a composta: a simples exprime um único juízo; a composta reúne vários juízos mediante conjunções ou condições.

A proposição simples é o espelho da unidade do intelecto; a composta, o espelho de sua discursividade.
Pois, no discurso, a razão procede unindo juízos, como o artífice une pedras para formar um templo.

As partes da proposição são o sujeito, o predicado e a cópula.
O sujeito é aquilo de que se diz algo; o predicado, aquilo que se diz do sujeito; a cópula, aquilo que une o dizer ao dito.

O sujeito corresponde ao ser que subsiste; o predicado, à qualidade que lhe é atribuída; a cópula, ao ato pelo qual o intelecto os associa.
A proposição, portanto, é a operação pela qual a mente imita a ordem do ser: une o que é unido, separa o que é separado.

A cópula “é” (est) tem um papel duplo: ora indica existência, ora apenas ligação lógica.
Quando digo “Deus é”, afirmo a existência; quando digo “o homem é mortal”, indico apenas a conexão entre sujeito e predicado.
Assim, a cópula é tanto ontológica quanto lógica, pois o verbo “ser” participa da essência do ser e da forma do pensamento.

Aristóteles adverte que a proposição não é mera soma de nomes e verbos, mas composição animada pela intenção do intelecto.
Pois, ainda que se enumerem nomes e verbos, se o intelecto não os une segundo juízo, não há proposição, mas apenas som.

A proposição, ao contrário, é o juízo tornado palavra.
Ela é o lugar da verdade, porque é o lugar da afirmação.
E a verdade, sendo relação, só pode existir onde há composição.

A oração, assim entendida, é o corpo da razão, e a proposição, o seu coração.
Nela o intelecto vive, respira e se manifesta, unindo o invisível ao audível.

Toda proposição implica uma ordem do tempo, pois a cópula “é” indica presente, “foi” passado, “será” futuro.
Assim, o discurso participa da temporalidade, enquanto o intelecto, por si mesmo, é atemporal.
A linguagem, portanto, é o modo como o eterno se exprime no tempo.

Existem vários gêneros de proposição: afirmativa e negativa, universal e particular, categórica e hipotética.
As afirmativas e negativas dizem respeito à qualidade do juízo; as universais e particulares, à quantidade; as categóricas e hipotéticas, à forma.
Em todas, porém, o princípio é o mesmo: a união do intelecto e da verdade.

A proposição universal afirma algo de todos os indivíduos contidos em um gênero, como em “todo homem é mortal”.
A particular restringe a afirmação a alguns, como em “alguns homens são sábios”.
A singular, a um só, como em “Sócrates é filósofo”.

A universal é necessária; a particular, contingente; a singular, concreta.
Por meio delas, a mente humana reflete as três ordens do ser: o necessário, o possível e o individual.

As proposições podem ainda ser simples ou compostas.
As simples contêm um único juízo; as compostas, vários, unidos por partículas como “e”, “ou”, “se”, “então”.
Por meio dessas conexões, o intelecto forma o raciocínio, que é a cadeia das proposições.

Assim, a proposição é o átomo do discurso racional, e o silogismo, a molécula.
A lógica, como ciência, é a física da razão, e a proposição, sua unidade elementar.

Boécio observa que o estudo da proposição é o fundamento da dialética, pois todo argumento é tecido de proposições.
Quem conhece a estrutura da proposição conhece o modo de operar da mente; quem conhece o modo da mente conhece o modo do ser.

A proposição, portanto, é a figura do universo em miniatura: nela há sujeito (substância), predicado (forma) e cópula (relação), assim como no ser há essência, forma e ato.
Por isso, a verdade da proposição não é apenas lógica, mas simbólica — imagem da ordem do real.


Conclusio Sectionis
(col. 294C)

Conclui-se que a proposição é o discurso completo que reflete o juízo do intelecto, e que suas partes — sujeito, predicado e cópula — são a tradução da estrutura do ser em linguagem.
Assim, conhecer a proposição é compreender o espelho verbal do ser, e reconhecer que o logos humano é o reflexo temporal do Logos eterno.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE CONTRADICTIONE, CONTRARIETATE ET MEDIO INTER OPPOSITA

(Da Contradição, da Contrariedade e do Meio entre os Opostos)

col. 294C–301B (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles, tendo estabelecido a natureza da proposição, passa agora a considerar as relações de oposição entre as proposições.
Pois, assim como no ser há contrariedade e oposição, também no discurso há contradição e diferença.
E conhecer essas relações é conhecer o modo como o intelecto se orienta entre o ser e o não-ser.

A contradição é a oposição que se dá entre a afirmação e a negação do mesmo sujeito, do mesmo predicado e sob o mesmo respeito.
Assim, “o homem é mortal” e “o homem não é mortal” são contraditórias, porque uma afirma e a outra nega o mesmo em igual relação.

A contrariedade, ao contrário, é a oposição entre dois predicados contrários, que não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo, mas podem ser falsos juntos.
Por exemplo: “o homem é justo” e “o homem é injusto” — não podem ser ambos verdadeiros, mas podem ambos ser falsos, se o homem for neutro quanto à justiça.

Há, pois, diferença essencial entre contradição e contrariedade:
— a contradição é absoluta e excludente;
— a contrariedade é relativa e graduável.

Na contradição, um dos dois juízos é necessariamente verdadeiro;
na contrariedade, ambos podem ser falsos, porque entre os contrários há um meio.

Assim, entre branco e preto há o cinza; entre bom e mau, o medíocre; entre quente e frio, o morno.
Mas entre ser e não-ser, não há meio possível — e por isso a contradição é mais radical do que a contrariedade.

Aristóteles distingue ainda dois tipos de oposição:
— a privativa, quando algo carece de uma perfeição que por natureza lhe seria devida, como “cego” em relação a “vidente”;
— a relativa, quando os termos se implicam mutuamente, como “pai” e “filho”.

Todas essas formas de oposição se refletem nas proposições, porque o discurso imita o ser.
E assim, o que na ontologia se chama contrariedade, na lógica se chama oposição de predicados;
o que na metafísica se chama privação, na linguagem se chama negação;
o que na física se chama movimento, na gramática se chama mudança de tempo e de modo.

A contradição é o fundamento da dialética, porque toda disputa intelectual consiste em afirmar e negar.
Sem contradição não há discernimento; sem discernimento não há verdade.

O princípio de não contradição é, portanto, o mais alto de todos os princípios lógicos e ontológicos:
É impossível que o mesmo seja e não seja ao mesmo tempo e sob o mesmo respeito.
Esse princípio, diz Boécio, é a luz que impede o pensamento de se dissolver no caos do múltiplo.

A contrariedade, por sua vez, é o princípio da diferença e da gradação.
Pois, se não houvesse contrários, não haveria movimento, nem progresso, nem geração.
Tudo o que nasce, nasce do conflito dos contrários; e tudo o que se aperfeiçoa, o faz pela superação deles.

A natureza procede por oposições graduais, mas a razão julga por contradições absolutas.
Por isso, o filósofo deve saber distinguir entre o campo do ser, onde há meio, e o campo do juízo, onde não há.

O meio entre os opostos é aquilo que participa de ambos, sem pertencer inteiramente a nenhum.
Ele é o campo da mudança, onde o ser se transforma e a qualidade se altera.
Assim, entre sabedoria e ignorância há opinião; entre bondade e maldade há indiferença; entre plenitude e privação há potência.

O meio é o espaço da contingência, onde o possível se realiza.
A contradição, ao contrário, pertence ao domínio da necessidade, onde o verdadeiro exclui o falso sem grau intermediário.

Por isso, Boécio ensina que a contradição é princípio de ciência, e a contrariedade, princípio de experiência.
A primeira fixa; a segunda move.
A primeira pertence à inteligência; a segunda, à natureza.

O intelecto puro opera por contradição, porque vê o ser em sua pureza;
o intelecto humano opera por contrariedade, porque percebe o ser em suas gradações.

A lógica, portanto, é a arte de discernir entre contrários e contraditórios, reconhecendo o que admite meio e o que o exclui.
Pois o erro nasce quando se trata o que é gradual como se fosse absoluto, ou o que é absoluto como se fosse gradual.

Assim, o sábio distingue entre o campo da essência e o campo da aparência; entre o verdadeiro contraditório, que não admite meio, e o falso contrariedade, que confunde os graus do ser.

O mundo, visto pela razão, é uma tessitura de oposições;
mas o mundo, visto pela sabedoria, é a harmonia dos opostos reconciliados.

O Logos eterno é aquele no qual todas as contradições se resolvem e todas as contrariedades encontram medida.
Pois nele o ser e o pensar são um só ato, e o que na linguagem é dualidade, nele é unidade.


Conclusio Sectionis
(col. 301B)

Conclui-se que a contradição é a oposição absoluta entre o ser e o não-ser, enquanto a contrariedade é a oposição relativa entre os modos do ser.
O meio pertence ao movimento e à mudança, mas não à verdade.
E assim, o princípio de não contradição é o alicerce da ciência, e o discernimento dos contrários, o caminho da sabedoria.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE ENUNCIATIONE FUTURA ET CONTINGENTIA

(Da Enunciação do Futuro e do Contingente)

col. 301B–308C (Migne, Tomus LXIV)

Entre todas as proposições, nenhuma levantou maior dificuldade entre os filósofos do que aquelas que dizem respeito ao futuro e ao contingente.
Pois nelas parece que a verdade e a falsidade oscilam, e que o juízo do intelecto se torna incerto.

Aristóteles examina este problema no famoso exemplo do combate naval: “Amanhã haverá uma batalha naval.”
Se esta proposição é agora verdadeira, então a batalha deve necessariamente ocorrer; se é agora falsa, deve necessariamente não ocorrer.
Mas se assim fosse, tudo o que ainda não aconteceu estaria determinado, e nada seria contingente.

Assim, o dilema: ou há verdade determinada sobre o futuro, e então não há liberdade; ou há liberdade, e então não há verdade determinada.
É essa a tensão que Aristóteles busca resolver.

Ele distingue dois modos de necessidade:
— a necessidade absoluta, que pertence ao ser enquanto tal, como a de que “todo homem é mortal”;
— a necessidade condicional, que depende de certas causas, como a de que “se o sol nasce, haverá luz”.

As coisas futuras contingentes pertencem à segunda espécie: são possíveis em potência, mas não necessárias em ato.
O que é possível pode vir a ser ou não ser, sem contradição.
Portanto, antes de acontecer, sua enunciação não é nem verdadeira nem falsa absolutamente, mas apenas
secundum quid.

Boécio explica que Aristóteles não nega o princípio de bivalência, mas o restringe às coisas já determinadas.
Pois, enquanto o futuro permanece contingente, não é objeto de ciência, mas de opinião.
A verdade e a falsidade pertencem ao ser; o futuro ainda não é ser.

A proposição sobre o futuro é, portanto, indeterminada quanto ao valor de verdade, mas não quanto ao sentido.
Ela significa algo possível, cuja realização depende da escolha e do acaso.

Por isso, quando dizemos “haverá uma batalha naval”, não afirmamos uma necessidade, mas uma possibilidade.
Se o evento ocorrer, a proposição será verdadeira
post factum; se não ocorrer, será falsa post factum.
Mas, no momento da enunciação, ela não é nem uma coisa nem outra, porque o ser de que fala ainda não é.

O tempo, nesse sentido, é o espaço do contingente.
O que é presente já é; o que é passado já foi; o que é futuro ainda pode ser.
Assim, a liberdade humana habita o futuro, e a ciência divina o transcende.

Pois Deus, sendo eterno, não conhece as coisas como futuras ou passadas, mas como presentes no ato puro de seu ser.
Para Ele, o que para nós é futuro já é atual, porque sua visão é fora do tempo.
Mas, para nós, que vivemos no fluxo temporal, o futuro é aberto e incerto.

A contingência é, pois, a possibilidade de o ser não ser; e a liberdade, a potência de o intelecto e a vontade moverem-se entre contrários.
O determinismo é o erro de submeter o possível ao necessário.

Aristóteles ensina que a ciência não alcança o contingente enquanto tal, mas apenas quando este se realiza.
Pois a ciência requer universalidade e necessidade; o contingente é particular e variável.
Contudo, o intelecto humano pode conhecer as condições da possibilidade — as causas e probabilidades do que pode vir a ser.

Assim, a sabedoria consiste não em prever o futuro, mas em compreender as causas que o preparam.
O homem prudente não conhece o que virá, mas age de modo a ordenar o possível.

Boécio acrescenta que há um duplo sentido do verbo “é”: o do tempo e o da verdade.
Quando digo “haverá uma batalha”, o verbo “haverá” indica tempo futuro; mas o ser da verdade, que pertence à proposição, é atual — pois o intelecto, ao enunciar, já julga.
Por isso, a proposição tem um ser lógico distinto do ser físico do evento.

Há, portanto, uma verdade lógica potencial, que se atualizará quando o evento acontecer.
Essa distinção entre ser da proposição e ser da coisa é o que permite conciliar a liberdade com a verdade.

A ciência divina, que vê todas as coisas em seu ser presente, conhece também os futuros contingentes, mas sem necessidade.
Pois Deus vê o que será livremente feito, não porque o determine, mas porque sua visão é eterna.
Assim, a presciência divina não impõe necessidade ao evento, assim como o nosso conhecimento do presente não impede o que está acontecendo.

O futuro é contingente para nós, não para Deus.
O tempo é o véu que encobre o que na eternidade é manifesto.

Boécio conclui que as proposições sobre o futuro têm verdade apenas condicional, e falsidade apenas relativa.
Elas não pertencem ao domínio da ciência, mas ao da deliberação e da prudência.
Pois só o que é necessário é objeto de ciência; o contingente é objeto de escolha.

Assim, o problema do futuro é o problema da liberdade: se tudo fosse verdadeiro desde sempre, nada poderia mudar;
mas como o futuro é apenas possível, a liberdade é o poder de fazer o possível ser.

O contingente é o campo onde o ser se faz; e a enunciação do futuro é o eco da esperança.


Conclusio Sectionis
(col. 308C)

Conclui-se que a enunciação do futuro e do contingente não possui verdade determinada antes do evento, mas apenas possibilidade de verdade.
Pois o ser ainda não é, e o intelecto o apreende como poder-ser.
Assim, o logos humano reflete o tempo, e o tempo é a imagem da liberdade.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


DE COMPOSITIONE ET DIVISIONE MENTIS

(Da Composição e da Divisão no Intelecto)

col. 308C–312A (Migne, Tomus LXIV)

O intelecto humano conhece de dois modos: pela simples apreensão e pelo juízo.
Pela apreensão, ele recebe as formas das coisas sem afirmá-las nem negá-las;
pelo juízo, ele as une ou separa, afirmando o que é e negando o que não é.

A composição é o ato pelo qual o intelecto une duas noções distintas sob uma mesma consideração, dizendo, por exemplo, “o homem é animal racional”.
A divisão é o ato pelo qual o intelecto separa noções unidas, dizendo, por exemplo, “o homem não é pedra”.

Assim, compor é afirmar; dividir é negar.
Ambas as operações procedem de uma mesma potência: a razão, que é o movimento da alma entre os opostos do ser e do não-ser.

A composição e a divisão são, portanto, os atos primordiais do pensamento discursivo.
A apreensão fornece as espécies inteligíveis; o juízo, a ordem entre elas.
Sem apreensão, o intelecto não teria matéria; sem juízo, não teria forma.

A composição da mente é imagem da unidade do ser;
a divisão, imagem de sua multiplicidade.
Pois o ser é uno, mas se manifesta em diversos modos; o intelecto, ao conhecer, deve unir para compreender e dividir para discernir.

O erro nasce quando o intelecto compõe o que não deve ser unido ou divide o que não deve ser separado.
Assim, toda falsidade consiste em uma composição ou divisão indevida.
A verdade é a adequação da composição e da divisão ao ser das coisas.

Boécio observa que a alma, ao compor, tende naturalmente à unidade;
e que toda ciência é uma ordenação de composições verdadeiras.
Pois o conhecimento cresce pela agregação de juízos, assim como o edifício cresce pela adição de pedras ordenadas.

A divisão, por sua vez, é o instrumento da análise.
Pela composição, a razão constrói; pela divisão, ela examina.
Uma busca a forma, a outra busca o princípio.
A primeira é sintética, a segunda é crítica.

Assim, a dialética tem dois movimentos: ascendente e descendente.
No movimento ascendente, o intelecto compõe para alcançar o universal;
no descendente, divide para discernir os particulares.
O filósofo que não sabe dividir confunde; o que não sabe compor, fragmenta.

A sabedoria consiste em saber quando unir e quando separar.
Pois há verdades que só se veem pela síntese, e outras que só se percebem pela distinção.
A razão é como o pulso do ser — alterna contração e dilatação, unidade e multiplicidade.

A composição é própria do intelecto teórico, que busca o verdadeiro;
a divisão é própria do intelecto prático, que busca o bem.
O primeiro une o conhecimento; o segundo separa as ações.

Aristóteles afirma que a mente, ao julgar, é semelhante ao artista que, tendo recebido a matéria, lhe dá forma pela união das partes.
Assim como a arte imita a natureza, o juízo imita o ser.
A ordem do pensamento reflete a ordem do mundo.

Toda ciência começa pela divisão, mas se completa pela composição.
A análise prepara a síntese, e a síntese confirma a análise.
É por isso que o discurso filosófico alterna demonstração e distinção, unindo o rigor da lógica à plenitude da contemplação.

O intelecto puro, no ápice de seu movimento, compõe e divide sem erro, porque vê o todo em cada parte e a parte em cada todo.
A alma racional, entretanto, progride por tentativas — compõe e divide até encontrar o justo meio entre o ser e o não-ser.

Boécio conclui que a operação da mente é uma imitação do Logos divino, no qual todas as distinções se compõem na unidade suprema.
O intelecto humano, sendo imagem desse Logos, participa de sua atividade ao compor e dividir.
Assim, pensar é participar da criação.

Pois, se a Palavra divina ordenou o mundo unindo forma e matéria, a palavra humana ordena o pensamento unindo conceito e nome.
Em ambos, a união é o ato da inteligência que torna o múltiplo inteligível.


Conclusio Sectionis
(col. 312A)

Conclui-se que a composição e a divisão da mente são os dois movimentos essenciais do pensamento racional.
Pela primeira, o intelecto imita a unidade do ser; pela segunda, sua distinção.
E assim, conhecer é compor conforme a ordem do real e dividir conforme a medida da verdade.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — IN LIBRUM ARISTOTELIS DE INTERPRETATIONE

(Comentário ao livro “De Interpretatione” de Aristóteles)


CONCLUSIO GENERALIS

(Conclusão Geral)

col. 312A–313C (Migne, Tomus LXIV)

Terminada a exposição sobre as partes da oração, sobre a proposição, a contradição e o contingente, resta agora reunir em um único olhar o que se mostrou em dispersão.
Pois a arte da interpretação é como um espelho do próprio intelecto: nela se vê como a alma humana traduz o ser em palavra e o pensamento em som.

O princípio de tudo é o ser; o meio é o intelecto; o fim é a palavra.
O ser é o que é; o intelecto é a imagem do ser; a palavra é o signo do intelecto.
Assim, toda enunciação é uma tríplice harmonia: coisa, mente e verbo.

A linguagem é verdadeira quando essa tríplice ordem permanece íntegra: quando a palavra exprime o pensamento, e o pensamento reflete o ser.
Quando uma dessas ordens se rompe, surge o erro: a falsidade no discurso, a confusão no pensamento ou a desordem no ser.

A voz é o corpo do sentido; o sentido, a alma da voz.
O verbo é a carne do intelecto, e o intelecto é o verbo invisível da alma.
E o homem, ao falar, imita o Verbo eterno, no qual o ser e o dizer são uma só e mesma coisa.

Toda verdade nasce da conformidade entre o que é e o que se diz.
A falsidade é o divórcio do logos com o ser.
A interpretação é, pois, a arte de restaurar essa aliança — o exercício da razão que reconduz a palavra à sua origem inteligível.

Aristóteles, ao ordenar as partes do discurso, quis mostrar que a linguagem não é mero instrumento, mas imagem da razão.
Cada proposição é uma sombra do juízo; cada juízo, uma imagem do ser.
E assim, o mundo inteiro pode ser lido como um texto cujo autor é o Intelecto divino.

A mente humana, ao interpretar, participa dessa mesma operação criadora.
Pois interpretar é compreender o modo como o ser se manifesta em signos, e restituir ao signo o esplendor do ser.

A oração, o verbo, a proposição e o juízo são degraus de uma escada que conduz do som ao ser, do discurso à contemplação.
Subindo por essa escada, o intelecto se purifica de toda confusão, até que o verbo se recolha no silêncio e o pensamento se una ao verdadeiro.

Boécio observa que a ciência da interpretação é o vértice da lógica, porque nela se unem a teoria do ser e a teoria da linguagem.
O filósofo, ao dominar essa arte, aprende a ouvir a harmonia secreta entre o que é dito e o que é.

Assim, o De Interpretatione é não apenas tratado de gramática do logos, mas de metafísica do verbo.
Pois toda palavra verdadeira é uma centelha do Verbo eterno, e todo juízo justo é uma participação na luz da inteligência divina.

A mente, quando julga retamente, faz eco à palavra de Deus que disse: “Fiat lux.”
E cada verdade pronunciada é uma pequena criação.

Portanto, toda ciência termina na contemplação do verdadeiro;
e toda contemplação, quando perfeita, silencia, porque já não há distância entre o pensar e o ser.

A filosofia é, então, o itinerário da alma que, passando pelas palavras, retorna à verdade silenciosa de onde elas procedem.

E assim se encerra o comentário sobre a Interpretação, em que se mostra que o logos humano é o reflexo temporal do Logos eterno, e que toda fala, quando ordenada à verdade, é um ato de participação no ser.

Finis Operis.

INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


Contexto e posição na série

Este tratado marca a passagem da lógica das palavras e proposições (estudada no De Interpretatione) para a lógica dos raciocínios (λογική συλλογιστική).
Aqui Boécio comenta, traduz e sistematiza os dois livros do
Analytica Priora, nos quais Aristóteles define o silogismo como a forma suprema do discurso científico.


Estrutura geral conforme Migne, Tomus LXIV, colunas 313C–428B

Liber Primus — De Syllogismo in Universali

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)
Sub-índice (Index Capitum):

1.      De definitione syllogismi — Da definição do silogismo.

2.      De partibus syllogismi et figuris — Das partes e figuras do silogismo.

3.      De terminis et mediis — Dos termos e do meio.

4.      De modis syllogismi in prima figura — Dos modos na primeira figura.

5.      De modis in secunda figura — Dos modos na segunda figura.

6.      De modis in tertia figura — Dos modos na terceira figura.

7.      De syllogismis ex propositionibus negativis vel particularibus — Dos silogismos negativos e particulares.

8.      De reductione syllogismorum ad primam figuram — Da redução dos silogismos à primeira figura.

9.      De conversione propositionum — Da conversão das proposições.

10.  De demonstratione et dialectica — Da demonstração e da dialética.


Liber Secundus — De Syllogismo Demonstrativo

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)
Sub-índice (Index Capitum):

1.      De scientia et demonstratione — Da ciência e da demonstração.

2.      De principiis et mediis demonstrationis — Dos princípios e meios da demonstração.

3.      De causis et effectibus — Das causas e dos efeitos.

4.      De genere, specie et definitione — Do gênero, da espécie e da definição.

5.      De demonstratione propter quid et quia — Da demonstração “porque” e “que”.

6.      De ordine scientiarum — Da ordem das ciências.

7.      De syllogismo necessario et contingenti — Do silogismo necessário e contingente.

8.      Conclusio Generalis — Conclusão geral sobre a estrutura da ciência.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT PRIMUM — DE DEFINITIONE SYLLOGISMI

(Capítulo Primeiro — Da Definição do Silogismo)

col. 313C–318B (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles, no início dos Analíticos Anteriores, propõe examinar a estrutura do raciocínio, isto é, do discurso em que uma conclusão se segue necessariamente de certas premissas.
E chama silogismo (
συλλογισμός) a tal discurso em que, estando certas coisas afirmadas, outra delas resulta necessariamente em virtude daquelas.

Essa definição contém o núcleo de toda a lógica demonstrativa.
Pois nela se incluem três elementos essenciais:
— a proposição (
propositio), como forma do pensamento;
— a necessidade, como vínculo da conclusão às premissas;
— a ordem (
ordo), como disposição racional das partes.

O silogismo é, portanto, o discurso em que a verdade se comunica por encadeamento.
Assim como a luz passa de um corpo a outro por reflexão, a verdade passa de uma proposição a outra por conexão.

A ciência nasce quando essa comunicação é necessária, isto é, quando a mente vê que não poderia ser de outro modo.
Por isso, a necessidade é a alma do silogismo.

Há diferença entre o simples raciocínio (ratiocinatio) e o silogismo propriamente dito:
o raciocínio pode ser uma sequência livre de ideias;
o silogismo é uma sequência ordenada pela razão, em que a conclusão é contida potencialmente nas premissas.

Todo silogismo é composto de três proposições:
— duas, chamadas premissas (
praemissae), que são os fundamentos;
— uma, chamada conclusão (
conclusio), que é o termo final.
E de três termos:
— o maior (
terminus maior), que é o predicado da conclusão;
— o menor (
terminus minor), que é o sujeito da conclusão;
— o médio (
terminus medius), que liga ambos nas premissas.

O termo médio é o coração do silogismo, pois é ele que estabelece a ponte entre o sujeito e o predicado.
Sem o termo médio, a conclusão não se segue, e o discurso se dispersa.

Assim, no exemplo clássico:
— Todo homem é mortal.
— Sócrates é homem.
— Logo, Sócrates é mortal.
O termo “homem” é o médio, “mortal” o maior, “Sócrates” o menor.
A necessidade nasce do fato de que o médio pertence ao menor e o maior pertence ao médio, de modo que o maior pertence necessariamente ao menor.

Boécio explica que a definição aristotélica contém implicitamente a causa formal do conhecimento científico.
Pois o intelecto, ao operar o silogismo, imita a estrutura do ser: o todo contém a parte, e a parte, por sua vez, participa do todo.
Assim, a dedução é a imagem racional da causalidade.

O silogismo é também o caminho do intelecto que passa do conhecido ao desconhecido, do universal ao particular, da causa ao efeito.
A demonstração não cria a verdade, mas a manifesta.
Ela é o desvelamento da necessidade que já estava presente na relação entre as ideias.

O raciocínio humano, quando é silogístico, é uma participação no logos divino, no qual todas as conexões são eternas.
Pois o Verbo contém em si todas as razões das coisas, e o silogismo é a forma criada dessa razão.

Aristóteles, por isso, chama o silogismo de “instrumento da ciência” (organon tēs epistēmēs).
Pois, se a verdade é o ser em ato, o silogismo é o movimento da mente que leva o ser em potência à atualização do conhecimento.

A forma perfeita do silogismo requer que a conclusão se siga com necessidade.
Onde há mera verossimilhança, há dialética; onde há probabilidade, há retórica;
mas onde há necessidade, há ciência.

Boécio distingue três ordens do discurso racional:
— a apofântica, que julga o verdadeiro e o falso;
— a dialética, que examina o provável;
— a demonstrativa, que alcança o necessário.
O silogismo pertence à terceira ordem quando suas premissas são certas e universais.

Assim, o silogismo é o modo formal da verdade necessária.
Ele não apenas exprime o real, mas o ordena à luz da razão.
A ciência, portanto, é o conhecimento por silogismos verdadeiros e necessários.

Todo conhecimento que não se funda nessa necessidade é mera opinião, porque carece de vínculo entre as partes.
A opinião vê as coisas separadas; a ciência, unidas.
E o silogismo é o laço dessa unidade.

O silogismo não pertence à linguagem, mas ao pensamento.
A palavra o manifesta, mas não o constitui.
O erro é julgar que o raciocínio nasce das palavras; na verdade, as palavras são sombras dos juízos.

O verdadeiro silogismo é interior: acontece no espírito antes de se pronunciar no verbo.
A lógica, portanto, é uma gramática da alma, e o silogismo, sua sintaxe invisível.


Conclusio Sectionis
(col. 318B)

Conclui-se que o silogismo é o discurso no qual, dadas certas proposições, outra delas se segue necessariamente.
Ele é o espelho da razão e a imagem da ciência; pois o intelecto, ao compor um silogismo, reproduz a ordem necessária do ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT SECUNDUM — DE PARTIBUS SYLLOGISMI ET FIGURIS

(Capítulo Segundo — Das Partes do Silogismo e de suas Figuras)

col. 318B–323C (Migne, Tomus LXIV)

Todo silogismo é composto de partes e de figuras.
As partes pertencem à sua constituição interna; as figuras, ao seu modo de disposição.
Assim como um corpo é formado de membros e assume diversas posturas, o silogismo é formado de proposições e assume diversas ordens de raciocínio.

As partes do silogismo são:
— as premissas, das quais procede a conclusão;
— os termos, que constituem a matéria das premissas;
— a conclusão, que é o fim do discurso.

As premissas são duas: uma, chamada maior, outra, menor.
A premissa maior contém o termo maior, que é o predicado da conclusão;
a premissa menor contém o termo menor, que é o sujeito da conclusão.

Entre ambas se encontra o termo médio, que aparece em ambas as premissas, ligando o menor ao maior.
Assim, o termo médio é como a alma do silogismo, que vivifica o raciocínio e faz nascer a conclusão.

As proposições que compõem o silogismo são de quatro espécies, conforme sua qualidade e quantidade:
A (universal afirmativa): “Todo homem é mortal.”
E (universal negativa): “Nenhum homem é imortal.”
I (particular afirmativa): “Alguns homens são sábios.”
O (particular negativa): “Alguns homens não são sábios.”
Estas quatro formas — A, E, I, O — são as matrizes de todos os raciocínios.

As figuras do silogismo são três, segundo a posição do termo médio.
Aristóteles as estabeleceu como as posturas naturais da razão discursiva.

Na primeira figura, o termo médio ocupa o lugar de sujeito na maior e de predicado na menor.
Exemplo:
— Todo homem é mortal.
— Sócrates é homem.
— Logo, Sócrates é mortal.
Esta figura é a mais perfeita, porque dela procedem as demonstrações científicas.
Nela, a necessidade é direta e a conclusão universal.

Na segunda figura, o termo médio é predicado em ambas as premissas.
Exemplo:
— Nenhum peixe é racional.
— Todo homem é racional.
— Logo, nenhum homem é peixe.
Esta figura serve para refutar, e não para demonstrar; é a figura da dialética e da negação.

Na terceira figura, o termo médio é sujeito em ambas as premissas.
Exemplo:
— Todo homem é animal.
— Todo homem é mortal.
— Logo, algum mortal é animal.
Esta figura produz conclusões particulares e mostra a existência do que é afirmado.

Boécio observa que Aristóteles, ao definir as figuras, quis representar os modos de operação da mente:
— A primeira é a do intelecto que conhece o universal;
— a segunda, a da razão que distingue;
— a terceira, a da imaginação que concretiza.

As figuras são, portanto, não apenas formas lógicas, mas símbolos do movimento do pensamento.
Assim como a alma se move do universal ao particular, o silogismo se move da causa à consequência.

Cada figura tem modos (modi), segundo a combinação das premissas A, E, I, O.
Na primeira figura há quatro modos legítimos:
Barbara, Celarent, Darii e Ferio.
Na segunda, quatro:
Cesare, Camestres, Festino e Baroco.
Na terceira, seis:
Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Ferison.
Estes nomes, compostos de sílabas artificiais, indicam o tipo das premissas e o modo de conversão.

Assim, Barbara significa: A–A–A, ou seja, duas universais afirmativas produzindo uma universal afirmativa.
Celarent: E–A–E.
Darii: A–I–I.
Ferio: E–I–O.
E assim sucessivamente.

Estes nomes não pertencem a Aristóteles, mas foram inventados pelos comentadores latinos para condensar a doutrina.
Boécio os adota porque tornam o ensino da lógica mais claro e mnemônico, sem alterar sua substância.

Cada modo é válido quando a conclusão se segue necessariamente das premissas, e inválido quando não há tal conexão.
Assim, a arte do silogismo consiste em discernir os modos válidos das aparências de raciocínio.

Boécio ensina que as figuras são como moldes do pensamento, nos quais o intelecto verte a matéria dos conceitos.
Sem figura, o raciocínio seria informe; sem termo médio, seria estéril.

A ciência se edifica sobre a primeira figura, a dialética sobre a segunda, a retórica sobre a terceira.
Pois a ciência demonstra, a dialética examina e a retórica persuade.

Assim, as figuras do silogismo correspondem aos graus da alma racional:
— a científica, que busca a necessidade;
— a dialética, que busca a probabilidade;
— a retórica, que busca a verossimilhança.
Em todas, porém, o princípio é o mesmo: a relação necessária entre as ideias.

O silogismo é o instrumento da razão ordenada, e as figuras são suas posturas na busca do verdadeiro.
Elas mostram que a mente pensa com estrutura, e que a verdade, mesmo no pensamento, tem forma.


Conclusio Sectionis
(col. 323C)

Conclui-se que o silogismo é composto de premissas, termos e conclusão, e que suas figuras representam os diversos modos de ordenação do intelecto.
O termo médio é o elo da razão; as figuras, as formas do raciocínio.
E toda demonstração perfeita é a expressão visível da ordem invisível da inteligência.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT TERTIUM — DE TERMINIS ET MEDIIS

(Capítulo Terceiro — Dos Termos e do Meio)

col. 323C–328A (Migne, Tomus LXIV)

O termo é a extremidade do raciocínio; e o meio, a ponte entre os termos.
Todo silogismo é, pois, constituído de extremos e de um termo médio.
Os extremos são dois: o maior e o menor; o médio é o que ambos unem.

Aristóteles chama “extremos” porque, assim como nas linhas geométricas os extremos são os limites do segmento, nas proposições os extremos são os limites do juízo.
A conclusão liga os extremos pela mediação de um terceiro, que os relaciona.

O termo maior é o predicado da conclusão;
o termo menor, o sujeito;
o termo médio, aquele que aparece em ambas as premissas, mas não na conclusão.

Assim, em “Todo homem é mortal — Sócrates é homem — logo, Sócrates é mortal”,
o termo maior é
mortal, o menor Sócrates, e o médio homem.

O termo médio é a causa da conclusão.
Pois, se o termo médio é comum aos dois extremos, e cada extremo tem relação necessária com ele, então os extremos se relacionam entre si.
Dessa necessidade nasce o vínculo do silogismo.

O meio é, portanto, a razão da consequência.
Ele é o centro da operação lógica, como o coração é o centro do corpo.
Sem ele, as proposições permaneceriam isoladas, e o discurso não passaria de soma de palavras.

O termo médio deve estar ordenado de modo tal que una o universal ao particular, a causa ao efeito, o conceito ao fato.
Pois todo conhecimento é a passagem do universal ao singular, e o termo médio é o instrumento dessa passagem.

Aristóteles ensina que o termo médio deve ser tomado de modo proporcional, nem demasiado amplo nem demasiado restrito.
Se o termo médio for universal demais, não produzirá conclusão determinada; se for particular demais, não abrangerá o termo maior.
Assim, a precisão do meio é a exatidão do raciocínio.

Boécio observa que há uma analogia entre o silogismo e a natureza:
— o termo maior corresponde à forma;
— o termo menor, à matéria;
— o termo médio, à causa eficiente que une forma e matéria.
Como na criação o ser surge da união dos princípios, assim na ciência o saber nasce da união dos termos.

O termo médio é o sinal da inteligência que opera a ligação.
Ele é invisível em sua natureza, mas visível em seu efeito: a conclusão.
Assim como o amor une os contrários e permanece oculto, o termo médio une os conceitos e desaparece na síntese.

Todo silogismo depende da justa disposição dos termos.
Pois, se o meio não se encontra entre os extremos conforme a regra, o raciocínio falha.
A correção da posição do meio é, portanto, a chave da verdade lógica.

Aristóteles distingue entre o meio lógico e o meio ontológico.
O meio lógico é o termo que une as proposições;
o meio ontológico é a causa que une as realidades.
A lógica é a imagem da metafísica, e o termo médio é a sombra do princípio causal.

Assim, quando se demonstra que “todo homem é mortal” porque “todo homem é animal” e “todo animal é mortal”,
o termo médio “animal” é causa da conclusão, e reflete, na ordem do pensamento, a relação de participação entre o gênero e a espécie.

A força do silogismo depende da posição e da extensão do meio.
Se o meio for comum a ambos os extremos universalmente, a conclusão é universal;
se for apenas parcialmente comum, a conclusão é particular.
Por isso, a quantidade do meio determina a quantidade da conclusão.

Boécio acrescenta que o meio é também a medida da necessidade.
Pois a necessidade da conclusão depende da imutabilidade do vínculo entre os termos.
Onde o meio é contingente, a conclusão é incerta; onde o meio é necessário, a conclusão é certa.

Assim, a ciência é o conhecimento dos meios necessários.
E toda demonstração é uma busca do termo médio que liga causa e efeito.
Encontrar o termo médio é, portanto, descobrir a razão pela qual algo é.

Aristóteles diz que o conhecimento é perfeito quando se conhece o meio;
pois saber é conhecer não apenas que algo é, mas por que é.
O termo médio é, assim, a forma racional da causa.

Boécio conclui que o silogismo é, na alma, o reflexo do cosmos ordenado.
O termo maior é o fim; o menor, o princípio; o médio, o caminho.
E a verdade, que é o termo último do pensamento, manifesta-se quando a mente percorre esse caminho sem erro.

Assim como o universo subsiste pela harmonia das causas, o discurso racional subsiste pela harmonia dos termos.
E o termo médio é, em ambos, o elo invisível que une o princípio ao fim.


Conclusio Sectionis
(col. 328A)

Conclui-se que o termo médio é a razão e a medida da conclusão.
Ele une os extremos conforme a verdade, e sua posição determina a validade do raciocínio.
Assim, conhecer o meio é conhecer a causa; e a ciência é o exercício da mente em busca desse termo que liga o conhecer ao ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT QUARTUM — DE MODIS SYLLOGISMI IN PRIMA FIGURA

(Capítulo Quarto — Dos Modos do Silogismo na Primeira Figura)

col. 328A–333C (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles, ao ordenar os modos de silogismo, começa pela primeira figura, que é a mais perfeita e principal.
Pois nela a conclusão se segue de maneira direta e necessária, sendo exemplo da forma científica da demonstração.

A primeira figura é aquela em que o termo médio é sujeito na premissa maior e predicado na menor.
Essa disposição faz com que o maior seja predicado do médio e o médio, do menor; donde resulta que o maior é predicado do menor.

A estrutura é, pois, a seguinte:
— Premissa maior: o termo maior é dito do médio.
— Premissa menor: o termo médio é dito do menor.
— Conclusão: o termo maior é dito do menor.

A forma dessa figura é a mais conforme à natureza do pensamento, porque segue a ordem natural do conhecimento:
do universal ao particular, da causa ao efeito, do princípio à conclusão.

Os modos legítimos dessa figura são quatro, e cada um é designado por um nome mnemônico: Barbara, Celarent, Darii, Ferio.


I. Modus “Barbara”

(A–A–A)

Toda premissa é universal afirmativa.
Estrutura:
— Todo B é A.
— Todo C é B.
— Logo, todo C é A.

Exemplo:
— Todo homem é mortal.
— Todo filósofo é homem.
— Logo, todo filósofo é mortal.

A necessidade aqui é absoluta: o universal maior se estende ao médio, e este ao menor, de modo que o menor está contido no maior.
Este modo é a forma pura da demonstração científica.
Pois, quando ambas as premissas são universais afirmativas, a conclusão não pode ser senão universal afirmativa.


II. Modus “Celarent”

(E–A–E)

Premissa maior universal negativa; premissa menor universal afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum B é A.
— Todo C é B.
— Logo, nenhum C é A.

Exemplo:
— Nenhum corpo é imortal.
— Todo homem é corpo.
— Logo, nenhum homem é imortal.

Aqui, o termo médio separa o menor do maior; o raciocínio é de exclusão necessária.
A verdade é demonstrada pela negação de compatibilidade entre os predicados.
Por isso,
Celarent é o modo mais nítido da negação científica.


III. Modus “Darii”

(A–I–I)

Premissa maior universal afirmativa; premissa menor particular afirmativa.
Estrutura:
— Todo B é A.
— Algum C é B.
— Logo, algum C é A.

Exemplo:
— Todo homem é mortal.
— Alguns seres são homens.
— Logo, alguns seres são mortais.

Este modo é menos universal, mas igualmente necessário.
Ele demonstra que a parte participa das propriedades do todo, ainda que não universalmente.
Assim,
Darii é o modo da aplicação do universal ao particular.


IV. Modus “Ferio”

(E–I–O)

Premissa maior universal negativa; premissa menor particular afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum B é A.
— Algum C é B.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Nenhum animal é imortal.
— Alguns homens são animais.
— Logo, alguns homens não são imortais.

Este modo é o complemento do anterior.
Ele mostra que a parte herda a negação do todo.
Por isso,
Ferio é o modo do conhecimento parcial por exclusão.


Aristóteles demonstra que estes quatro modos são os únicos válidos na primeira figura, porque em todos eles a conclusão se segue necessariamente da estrutura das premissas.
Nenhum outro arranjo de quantidades e qualidades produz necessidade sem alteração da figura.

Boécio observa que a primeira figura é o modelo da razão demonstrativa, e que dela procedem todas as formas de ciência.
Pois nela o intelecto reconhece a ordem hierárquica do ser — o superior abrangendo o inferior, o universal incluindo o particular.

A mente, ao raciocinar pela primeira figura, imita a ordem causal da realidade.
Assim,
Barbara é a imagem da causalidade positiva; Celarent, da exclusão metafísica; Darii, da participação parcial; Ferio, da privação parcial.

Os quatro modos formam, pois, o quadro completo da demonstração natural:
Barbara: o ser afirmado universalmente.
Celarent: o ser negado universalmente.
Darii: o ser afirmado parcialmente.
Ferio: o ser negado parcialmente.

Boécio conclui que a primeira figura é chamada “perfecta” porque em si mesma contém o princípio de todas as outras.
Toda demonstração pode ser reduzida a ela, e toda forma de raciocínio verdadeiro se explica por sua estrutura.

Assim como o primeiro motor move todos os outros sem ser movido, a primeira figura ilumina todas as demais sem depender delas.

E como no universo o centro dá sentido às esferas, na lógica o termo médio da primeira figura dá sentido a todas as formas do pensar.


Conclusio Sectionis
(col. 333C)

Conclui-se que a primeira figura é o arquétipo do silogismo e a imagem da ordem da razão.
Nela o intelecto demonstra pela necessidade, unindo o universal ao particular com evidência perfeita.
E todo o edifício da ciência repousa sobre esta forma, em que a verdade se mostra como pura relação entre causa e efeito.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT QUINTUM — DE MODIS IN SECUNDA FIGURA

(Capítulo Quinto — Dos Modos na Segunda Figura)

col. 333C–338A (Migne, Tomus LXIV)

A segunda figura do silogismo é aquela em que o termo médio ocupa o lugar de predicado em ambas as premissas.
Nesta disposição, o termo médio é comum a ambas as proposições, mas sempre em posição predicativa;
por isso, esta figura não demonstra por inclusão, mas por exclusão, e é a forma própria da refutação e da oposição lógica.

A estrutura geral é a seguinte:
— Premissa maior: o termo maior é dito de modo afirmativo ou negativo do termo médio.
— Premissa menor: o termo menor é dito do mesmo modo do termo médio.
— Conclusão: o termo maior é dito do termo menor, por negação ou exclusão.

Por não haver mediação direta do sujeito ao predicado, esta figura não prova pela conexão, mas pela separação;
sua força está na negação, e sua utilidade, na refutação.

Aristóteles e Boécio reconhecem quatro modos legítimos nesta figura: Cesare, Camestres, Festino, Baroco.


I. Modus “Cesare”

(E–A–E)

Premissa maior universal negativa; premissa menor universal afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum A é B.
— Todo C é B.
— Logo, nenhum C é A.

Exemplo:
— Nenhum corpo é imortal.
— Todo homem é corpo.
— Logo, nenhum homem é imortal.

O raciocínio é evidente: o termo médio (corpo) é predicado de ambos, e sua exclusão no maior se transmite ao menor.
Assim,
Cesare demonstra a impossibilidade de uma predicação comum.
Este modo é o reflexo da negação necessária no pensamento científico.


II. Modus “Camestres”

(A–E–E)

Premissa maior universal afirmativa; premissa menor universal negativa.
Estrutura:
— Todo A é B.
— Nenhum C é B.
— Logo, nenhum C é A.

Exemplo:
— Todo espírito é imortal.
— Nenhum homem é imortal.
— Logo, nenhum homem é espírito.

Aqui a exclusão procede de modo inverso ao Cesare, mas com o mesmo efeito:
a conclusão nega a possibilidade de identidade entre o sujeito e o predicado.
O termo médio, estando sempre como predicado, serve de espelho inverso: o que não se pode afirmar de B, não se pode afirmar de A.


III. Modus “Festino”

(E–I–O)

Premissa maior universal negativa; premissa menor particular afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum A é B.
— Algum C é B.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Nenhum animal é imortal.
— Alguns homens são animais.
— Logo, alguns homens não são imortais.

Este modo é a forma particular do Cesare, e demonstra uma negação parcial.
Ele mostra que, mesmo sem universalidade, a exclusão permanece válida quando ao menos uma parte do sujeito está compreendida sob o predicado médio.


IV. Modus “Baroco”

(A–O–O)

Premissa maior universal afirmativa; premissa menor particular negativa.
Estrutura:
— Todo A é B.
— Algum C não é B.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Todo homem é racional.
— Alguns seres não são racionais.
— Logo, alguns seres não são homens.

Este modo é a contraparte particular do Camestres.
Ele demonstra que, quando o predicado é negado de uma parte do sujeito, a universalidade da afirmação se dissolve, e a negação parcial se impõe.


Boécio nota que a segunda figura é chamada “negativa” porque dela procedem apenas conclusões negativas, universais ou particulares.
Nenhuma conclusão afirmativa nasce dessa estrutura, pois o termo médio não une, mas distingue os extremos.

Assim, esta figura é mais apta para a dialética do que para a ciência.
Ela refuta proposições errôneas, mostrando que, se duas coisas se opõem ao mesmo predicado, não podem ser idênticas entre si.

Aristóteles a denomina “instrumento da refutação” (organon elenctikon), porque nela a mente exerce o juízo discriminador, discernindo o verdadeiro do falso por exclusão necessária.

A primeira figura é a do intelecto afirmativo;
a segunda, a da razão judicativa.
A primeira constrói o edifício da ciência;
a segunda depura e corrige suas imperfeições.

Boécio compara a segunda figura ao crivo do ouro: o que é verdadeiro permanece, o que é falso é eliminado.
Pois toda negação justa é o prelúdio de uma afirmação mais pura.

A refutação não é contrária à ciência, mas seu instrumento purificador.
Assim como o fogo depura o metal, o silogismo negativo depura o juízo.

A segunda figura mostra, portanto, que a verdade se manifesta também pela exclusão do erro, e que o pensamento, ao negar, não destrói, mas delimita.

Toda afirmação precisa da negação que a circunda, assim como a luz precisa da sombra para se tornar visível.
E a lógica da segunda figura é o jogo dessas fronteiras, em que o intelecto delimita o que é pelo que não é.


Conclusio Sectionis
(col. 338A)

Conclui-se que a segunda figura serve à refutação e à distinção.
Seus modos —
Cesare, Camestres, Festino, Baroco — mostram que a verdade é tanto afirmada pela união quanto preservada pela negação.
A mente, ao negar com justeza, afirma o ser de modo mais puro; e toda ciência que refuta o falso prepara o caminho do verdadeiro.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT SEXTUM — DE MODIS IN TERTIA FIGURA

(Capítulo Sexto — Dos Modos na Terceira Figura)

col. 338A–343B (Migne, Tomus LXIV)

A terceira figura do silogismo é aquela em que o termo médio ocupa o lugar de sujeito em ambas as premissas.
Nesta disposição, o termo médio é afirmado de ambos os extremos, e a conclusão, embora necessária, nunca é universal, mas sempre particular.

Pois, quando o termo médio é sujeito, ele não abrange toda a extensão do termo maior nem do menor;
a conclusão, portanto, só pode ser afirmada de parte dos sujeitos.

A estrutura geral é:
— Premissa maior: o termo médio é dito do termo maior.
— Premissa menor: o termo médio é dito do termo menor.
— Conclusão: algum termo menor é termo maior.

Aristóteles mostra que esta figura é própria da demonstração de existência (demonstratio quod est), pois prova que algo participa de um predicado, sem determinar sua universalidade.

Os modos legítimos desta figura são seis, conforme a combinação das proposições: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Ferison.


I. Modus “Darapti”

(A–A–I)

Ambas as premissas universais afirmativas; a conclusão, particular afirmativa.
Estrutura:
— Todo B é A.
— Todo B é C.
— Logo, algum C é A.

Exemplo:
— Todo homem é animal.
— Todo homem é mortal.
— Logo, algum mortal é animal.

Este modo demonstra a coexistência de duas propriedades em um mesmo sujeito, inferindo que uma pertence a alguma parte da outra.
A necessidade é fundada na identidade parcial de predicação.


II. Modus “Disamis”

(I–A–I)

Premissa maior particular afirmativa; premissa menor universal afirmativa.
Estrutura:
— Algum B é A.
— Todo B é C.
— Logo, algum C é A.

Exemplo:
— Alguns homens são sábios.
— Todo homem é mortal.
— Logo, algum mortal é sábio.

Aqui, a universalidade da segunda premissa permite inferir a participação parcial do predicado da primeira, preservando a verdade particular.
O raciocínio é válido porque o sujeito da primeira está contido no sujeito da segunda.


III. Modus “Datisi”

(A–I–I)

Premissa maior universal afirmativa; premissa menor particular afirmativa.
Estrutura:
— Todo B é A.
— Algum B é C.
— Logo, algum C é A.

Exemplo:
— Todo homem é racional.
— Alguns homens são poetas.
— Logo, alguns poetas são racionais.

Este modo é o reflexo particular do Barbara, aplicando o universal a uma parte da espécie.
Ele demonstra a compatibilidade parcial das propriedades sob um mesmo gênero.


IV. Modus “Felapton”

(E–A–O)

Premissa maior universal negativa; premissa menor universal afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum B é A.
— Todo B é C.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Nenhum homem é imortal.
— Todo homem é racional.
— Logo, algum racional não é imortal.

Este modo expressa a exclusão parcial: o predicado negado de um sujeito universal é também negado de parte do correlato.
Ele é o primeiro dos modos negativos da terceira figura.


V. Modus “Bocardo”

(O–A–O)

Premissa maior particular negativa; premissa menor universal afirmativa.
Estrutura:
— Algum B não é A.
— Todo B é C.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Alguns homens não são prudentes.
— Todo homem é racional.
— Logo, algum racional não é prudente.

Este modo é semelhante ao Felapton, mas parte de uma negação particular.
É o modo mais frequente nos raciocínios morais e políticos, onde se mostra a limitação da perfeição em sujeitos que, embora universais em essência, são imperfeitos em ato.


VI. Modus “Ferison”

(E–I–O)

Premissa maior universal negativa; premissa menor particular afirmativa.
Estrutura:
— Nenhum B é A.
— Algum B é C.
— Logo, algum C não é A.

Exemplo:
— Nenhum homem é imortal.
— Alguns homens são poetas.
— Logo, alguns poetas não são imortais.

Este é o último e mais geral dos modos da terceira figura.
Ele mostra a coexistência entre universalidade de negação e particularidade de afirmação, produzindo uma conclusão negativa particular.


Boécio nota que, na terceira figura, a mente não busca tanto a universalidade quanto a realidade da participação.
É a figura da experiência e da observação: demonstra o
quod est, não o propter quid.
Mostra que algo é, não por que é.

A primeira figura é a do intelecto que deduz;
a segunda, a do juízo que distingue;
a terceira, a da alma que contempla a existência.

Por isso, Aristóteles atribui à terceira figura um papel inferior na ciência, mas indispensável à formação da base empírica do conhecimento.
Nela, o intelecto se exercita no reconhecimento da conexão entre os predicados do mesmo sujeito, e aprende a distinguir entre a essência e os acidentes.

Boécio chama essa figura de “porta da indução”, pois dela procede o movimento inverso ao silogismo puro: a passagem do particular ao universal.
Quem vê que “alguns racionais não são imortais” pode, pela repetição, inferir que “nenhum racional é imortal”.
Assim, a terceira figura contém em germe a indução, como a semente contém a árvore.

A razão, portanto, se move entre as figuras como o espírito se move entre os graus do ser:
da primeira, aprende o necessário;
da segunda, o verdadeiro;
da terceira, o existente.

Em todas, o termo médio é o vínculo entre pensamento e realidade;
mas na terceira figura ele é também a ponte entre o saber e o sensível, entre o conceito e a experiência.

Assim, o silogismo da terceira figura é menos rigoroso, mas mais vivo: ele respira o ar do mundo e traduz a ordem do real em linguagem lógica.


Conclusio Sectionis
(col. 343B)

Conclui-se que a terceira figura, embora inferior à primeira em rigor e à segunda em clareza, é necessária à totalidade do conhecimento.
Pois a ciência não seria completa se não soubesse reconhecer a verdade nas coisas particulares.
E como o intelecto deve descer ao real para depois ascender ao universal, assim a terceira figura é o degrau pelo qual a razão retorna à experiência para reencontrar a verdade em ato.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT SEPTIMUM — DE SYLLOGISMIS EX PROPOSITIONIBUS NEGATIVIS VEL PARTICULARIBUS

(Capítulo Sétimo — Dos Silogismos formados por proposições negativas ou particulares)

col. 343B–347C (Migne, Tomus LXIV)

Após haver tratado das figuras e de seus modos perfeitos, Aristóteles volta-se para os silogismos imperfeitos, isto é, aqueles cuja necessidade é enfraquecida pela negação ou pela particularidade das premissas.
Estes silogismos são úteis à dialética, mas insuficientes à demonstração científica, porque a universalidade e a afirmação são as colunas da ciência, enquanto a negação e a particularidade a limitam.

Uma proposição negativa não une, mas separa; e o raciocínio, que é o movimento da união, perde força quando começa por uma separação.
Do mesmo modo, uma proposição particular não abarca o todo da essência, e o que não abarca o todo não pode dar conclusão universal.

Contudo, Aristóteles e Boécio mostram que mesmo os silogismos negativos e particulares têm valor lógico, pois representam o juízo da razão sobre o não-ser e sobre o limite do ser.

A ciência precisa deles como o entendimento da luz precisa da sombra para reconhecer seus contornos.


I. De Syllogismis ex Propositionibus Negativis

(Dos silogismos com premissas negativas)

Quando uma das premissas é negativa, a conclusão será sempre negativa, e jamais afirmativa.
Pois a negação corta o vínculo de identidade entre os termos, tornando impossível qualquer união conclusiva.

Assim, de “Nenhum homem é imortal” e “Todo filósofo é homem” segue-se: “Nenhum filósofo é imortal”.
Mas não se segue jamais “Algum filósofo é imortal”, porque a negação inicial impede toda comunhão de predicados.

Se ambas as premissas forem negativas, não haverá conclusão.
Pois o raciocínio requer ao menos um ponto de contato entre os termos, e duas negações afastam inteiramente o campo comum.
Como dois círculos separados que não se tocam, não podem gerar intersecção.

Aristóteles chama tal composição de “silogismo nulo” (sullogismos kenos), e Boécio o compara a um som que ressoa sem sentido.

A razão, portanto, admite uma só negação nas premissas, nunca duas.
Onde há dupla negação, há ausência de mediação, e sem mediação não há conclusão.


II. De Syllogismis ex Propositionibus Particularibus

(Dos silogismos com premissas particulares)

Quando ambas as premissas são particulares, a conclusão não se segue.
Pois cada uma afirma apenas de parte, e o todo não se forma de partes isoladas sem um vínculo comum.

Exemplo:
— Alguns homens são sábios.
— Alguns homens são ricos.
— Não se segue necessariamente que “alguns sábios são ricos”.
A conclusão é possível, mas não necessária; e onde não há necessidade, não há ciência.

Se uma premissa for universal e a outra particular, pode haver conclusão particular, nunca universal.
Pois a universalidade de uma não supre a deficiência da outra.
O intelecto só pode afirmar do todo aquilo que é predicado de todas as suas partes; mas, quando apenas uma parte é afirmada, o todo permanece indeterminado.

Boécio ilustra com um exemplo da natureza:
— “Todo fogo é quente.”
— “Alguns corpos são fogo.”
— “Logo, alguns corpos são quentes.”
Aqui há conclusão, mas particular; pois o calor é afirmado de parte dos corpos, não de todos.
A verdade é real, mas não universal.

O mesmo vale para as proposições particulares negativas:
— “Alguns homens não são prudentes.”
— “Alguns homens são políticos.”
— Daqui não se segue que “alguns políticos não são prudentes”, porque a distribuição do sujeito não é suficiente para estabelecer o vínculo.

Boécio conclui que a particularidade é a fraqueza natural do discurso humano.
Pois o intelecto, limitado pelo sensível, conhece primeiro as partes e só depois o todo.
Mas a ciência, que é conhecimento universal, só nasce quando o pensamento ultrapassa o particular e alcança a necessidade.


III. De Relatione Inter Negationem et Particularitatem

(Da relação entre negação e particularidade)

A negação é a sombra da afirmação, e a particularidade, a sombra da universalidade.
Ambas são necessárias, mas como limites e não como formas supremas.

A negação purifica o juízo, mostrando o que não é;
a particularidade prepara a indução, mostrando o que é em parte.
A primeira corrige o erro; a segunda inicia a experiência.

Assim, os silogismos negativos pertencem à dialética destrutiva (elenctica), e os particulares à dialética construtiva (inductiva).
Ambos servem à ciência, mas como instrumentos preparatórios: o primeiro, eliminando o falso; o segundo, recolhendo o provável.

O verdadeiro sábio usa as duas faces do silogismo como a alma usa as duas mãos:
uma, para afastar o erro;
outra, para colher a verdade.

Pois, assim como o mundo é composto de luz e trevas, o intelecto opera por afirmação e negação, universal e particular.
A perfeição da razão está em saber usar ambas as forças sem confundi-las.

A negação mostra o que o ser não é, e a particularidade mostra o que o ser ainda não é plenamente.
Ambas, portanto, servem ao movimento do conhecimento, que vai do possível ao necessário, do imperfeito ao perfeito.


Conclusio Sectionis
(col. 347C)

Conclui-se que os silogismos negativos e particulares são verdadeiros em seu gênero, mas imperfeitos em potência.
Servem à dialética e à experiência, não à demonstração.
Contudo, sem eles, a razão não ascenderia ao universal, pois a verdade se revela por contraste e crescimento.
Assim, o negativo prepara o caminho do afirmativo, e o particular, o da universalidade.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT OCTAVUM — DE REDUCTIONE SYLLOGISMORUM AD PRIMAM FIGURAM

(Capítulo Oitavo — Da Redução dos Silogismos à Primeira Figura)

col. 347C–352A (Migne, Tomus LXIV)

Como a primeira figura é a mais perfeita e principal de todas, Aristóteles ensina que todas as demais figuras e seus modos podem ser reduzidos a ela.
Essa operação chama-se redução (
reductions syllogismorum), e é o método pelo qual o raciocínio imperfeito é reconduzido à forma da demonstração necessária.

A razão dessa prioridade é clara:
na primeira figura, a conclusão se segue por natureza, enquanto nas outras se segue por analogia.
A primeira figura é o arquétipo da necessidade; as demais, suas imagens derivadas.

Assim, a redução é uma espécie de retorno da imagem ao modelo, do discurso derivado ao princípio originário.


I. De Ratione Reductionis

(Da razão da redução)

Todo silogismo, diz Boécio, pode ser trazido à primeira figura, desde que se reordene sua estrutura e se adapte a disposição do termo médio.
O termo médio é o ponto de referência comum, e sua posição define a figura; mudando a posição, muda-se a figura.

Se o termo médio, na segunda ou terceira figura, for colocado como sujeito na premissa maior e predicado na menor, o raciocínio assume a forma da primeira figura.
A verdade permanece, mas o modo de exposição se purifica.

Por isso, reduzir é mostrar a validade pela forma perfeita.
O raciocínio, quando reduzido, não se torna outro, mas se manifesta segundo a ordem da natureza intelectual.

Assim como uma melodia dissonante pode ser reescrita no tom original, o silogismo imperfeito é reconduzido à harmonia lógica pela redução.


II. De Reductione per Conversionem

(Da redução por conversão)

Uma das principais técnicas de redução é a conversão das proposições.
Converter é trocar a posição dos termos, mantendo a verdade da proposição.

— Uma universal afirmativa (“Todo A é B”) não se converte simplesmente, pois o predicado não é distribuído.
— Uma universal negativa (“Nenhum A é B”) converte-se universalmente: “Nenhum B é A.”
— Uma particular afirmativa (“Algum A é B”) converte-se particular e reciprocamente: “Algum B é A.”

A redução, portanto, usa a conversão para transformar os modos das figuras em correspondências com os da primeira.
O modo que na segunda figura é negativo pode ser convertido em um
Celarent; o da terceira, em um Darii ou Ferio, conforme a disposição dos termos.

Exemplo:
— Na segunda figura:
Nenhum A é B;
Todo C é B;
Logo, nenhum C é A.
Pela conversão da premissa maior (“Nenhum B é A”), obtém-se:
Todo C é B;
Nenhum B é A;
— o que é da forma de
Celarent na primeira figura.

Assim, a conversão é o instrumento pelo qual o raciocínio é purificado e reconduzido à luz da necessidade.


III. De Reductione per Inductionem

(Da redução por indução)

Outra forma de redução é a indução (epagogé), pela qual o entendimento reconhece no particular o universal que nele se reflete.
Esta redução é menos formal, mas mais natural.
O intelecto, vendo a repetição de certos efeitos, infere a causa geral e a traduz na estrutura da primeira figura.

Por exemplo:
— Todo homem observado até agora é mortal.
— Logo, todo homem é mortal.
A experiência particular é reduzida à universalidade do conceito.

Aristóteles admite que esta forma de redução é o início da ciência, pois é pela indução que a mente ascende da opinião à demonstração.
A redução formal parte da razão; a redução indutiva, da experiência.
Ambas convergem na primeira figura, que é o ponto de encontro entre o pensar e o ser.


IV. De Reductione per Conversionem et Suppletionem

(Da redução pela conversão e pela suplementação)

Algumas formas não podem ser reduzidas apenas pela conversão, mas exigem suplementação, isto é, a adição de proposições auxiliares, chamadas propositiones adjuvantes.
Estas não acrescentam matéria, mas explicam a ordem implícita no raciocínio.

Assim, quando uma conclusão se segue de modo obscuro, pode-se acrescentar uma proposição intermediária que manifeste o vínculo oculto.
Exemplo:
— Todo homem é mortal.
— Nenhum anjo é mortal.
— Logo, nenhum anjo é homem.
Aqui a relação se esclarece pela proposição suplementar:
— Todo homem é animal racional e mortal;
— Nenhum anjo é mortal;
— Logo, nenhum anjo é homem.

A suplementação é, pois, um modo de restauração do raciocínio à forma científica, sem alterar seu conteúdo de verdade.


V. De Reductio ad Unum Principium

(Da redução a um só princípio)

Toda redução tem por fim reconduzir o raciocínio disperso à unidade da razão.
Pois a mente humana, ao multiplicar as formas, tende a perder o centro.
A primeira figura é esse centro: nela o ser, o pensamento e o verbo se unem em perfeita correspondência.

Reduzir é, portanto, ato filosófico e teológico ao mesmo tempo:
— filosófico, porque retorna à ordem racional;
— teológico, porque busca o Uno que sustenta toda multiplicidade.

Boécio escreve que toda redução é uma imitação da conversão das criaturas ao princípio:
assim como todas as coisas procedem do Uno e a Ele retornam, todos os silogismos procedem da primeira figura e nela se cumprem.

A razão se purifica pela redução; e quando todo raciocínio é reconduzido à forma necessária, a alma participa da harmonia da inteligência divina.


Conclusio Sectionis
(col. 352A)

Conclui-se que a redução é o caminho do pensamento rumo à forma pura da verdade.
Todo silogismo imperfeito é uma sombra da primeira figura, e toda conversão é uma conversão da mente ao princípio.
Assim, a ciência não é apenas o saber das coisas, mas o exercício contínuo de reconduzir a multiplicidade do discurso à unidade da razão.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT NONUM — DE CONVERSIONE PROPOSITIONUM

(Capítulo Nono — Da Conversão das Proposições)

col. 352A–357B (Migne, Tomus LXIV)

A conversão das proposições é a operação pela qual se trocam entre si o sujeito e o predicado, conservando-se, no entanto, o valor de verdade da proposição.
Essa permutação não altera o conteúdo lógico, mas apenas a ordem dos termos, de modo que o que era afirmado de um é agora afirmado do outro, e reciprocamente.

Aristóteles ensina que a conversão é necessária para o estudo das figuras, porque permite comparar proposições equivalentes sob diferentes disposições.
Boécio acrescenta que é também o fundamento da redução dos silogismos, pois, ao converter, a mente reconhece a identidade formal dos juízos.


I. De Conversione Universalis Affirmativae

(Da conversão da universal afirmativa)

Uma universal afirmativa é aquela que enuncia que “Todo A é B”.
Ora, nesta forma, o termo maior (B) não é distribuído, pois pode abranger mais do que o termo menor (A).
Logo, a proposição não pode converter-se universalmente, porque o predicado não é tomado em toda a sua extensão.

Exemplo:
— Todo homem é animal.
Daqui não se segue que “Todo animal é homem”.
Pois o predicado “animal” é mais amplo que o sujeito “homem”.

No entanto, a proposição pode converter-se particularmente, isto é, “Algum B é A”.
Assim:
— Todo homem é animal;
— Logo, algum animal é homem.
Essa é a forma correta de conversão da universal afirmativa.

A conversão parcial conserva a verdade, mas não a universalidade.
O que é verdadeiro de todos os homens é verdadeiro de alguns animais, não de todos.

Por isso, a conversão da universal afirmativa é chamada conversio per accidens, ou conversão acidental, porque diminui a quantidade, conservando a qualidade.


II. De Conversione Universalis Negativae

(Da conversão da universal negativa)

Uma universal negativa é aquela que declara: “Nenhum A é B”.
Nesta forma, tanto o sujeito quanto o predicado são tomados universalmente.
Assim, ambos são distribuídos, e a conversão pode ser feita universalmente sem alteração da verdade.

Exemplo:
— Nenhum homem é pedra.
Pode converter-se:
— Nenhuma pedra é homem.

Pois a negação é recíproca: o que não pode ser predicado de um, não pode ser predicado do outro.
A universal negativa é, portanto, convertível em universal, e tal conversão é perfeita (
conversio simpliciter).

Aristóteles nota que esta é a forma mais pura de conversão, porque a negação iguala os termos na exclusão.
Onde não há participação, há simetria lógica.


III. De Conversione Particularis Affirmativae

(Da conversão da particular afirmativa)

A particular afirmativa enuncia que “Algum A é B”.
Como nem o sujeito nem o predicado são tomados universalmente, a conversão pode ser recíproca:
“Algum B é A”.

Exemplo:
— Alguns homens são filósofos.
— Logo, alguns filósofos são homens.

Esta conversão é chamada conversio reciproca, porque a quantidade e a qualidade permanecem as mesmas.
Os termos trocam de posição, mas a proposição conserva o mesmo sentido lógico.

É o tipo mais simples de conversão, porque o particular é indiferente à ordem dos termos.
Onde não há universalidade, há liberdade de permutação.

Boécio comenta: “A reciprocidade é o espelho da verdade, pois o que é afirmado parcialmente pode ser refletido sem perda.”


IV. De Conversione Particularis Negativae

(Da conversão da particular negativa)

A particular negativa é aquela que diz: “Algum A não é B”.
Esta proposição não se converte de modo algum, pois a negação parcial impede a correspondência dos termos.

Exemplo:
— Alguns homens não são justos.
Daqui não se segue que “Alguns justos não são homens”.
A verdade da primeira não implica a verdade da segunda.

A negação destrói a simetria, e a particularidade destrói a necessidade; por isso, a combinação de ambas torna impossível a conversão.

Aristóteles afirma: “O particular negativo não se converte, porque a exclusão não é recíproca.”
Boécio acrescenta que essa forma é um eco imperfeito do ser, que exprime apenas o limite do predicado sem definir sua extensão.


V. De Regulis Communibus Conversionum

(Das regras gerais das conversões)

Da análise precedente se seguem estas regras universais:

1. Nenhuma proposição pode ser convertida universalmente, a não ser que o predicado seja distribuído.
— Por isso, as universais negativas convertem-se universalmente, e as universais afirmativas apenas parcialmente.

2. As particulares afirmativas convertem-se reciprocamente.
— Pois em ambas os termos são tomados em parte, e a troca não altera a extensão.

3. As particulares negativas não se convertem, porque a negação particular não é simétrica.

4. Toda conversão conserva a qualidade da proposição, mas pode alterar sua quantidade.
— Assim, o que é universal pode tornar-se particular; mas o que é particular jamais se torna universal.

5. A verdade é conservada em toda conversão legítima.
— Porém, a conversão ilegítima gera contradição, pois troca desigualdade por igualdade.

6. Toda conversão é, em essência, uma forma de reflexão: o intelecto, ao converter, reflete a identidade entre sujeito e predicado sob novas condições.

Por isso, Boécio diz:
“Converter é ver o mesmo ser de outro modo.”


VI. Conclusio Generalissima

(Síntese geral da doutrina das conversões)

A doutrina da conversão ensina que a verdade é reversível, enquanto o erro não o é.
Pois o verdadeiro, sendo uno, pode ser enunciado de múltiplas maneiras sem perder a identidade;
mas o falso, sendo divisão, se destrói ao ser invertido.

O intelecto, quando converte corretamente, participa do movimento da inteligência divina, que vê o mesmo sob todos os ângulos e permanece idêntica a si mesma.

A conversão, portanto, é uma metáfora da ordem do ser:
o que é perfeitamente verdadeiro é também perfeitamente reversível.

Assim, a lógica reflete o cosmos:
a universal negativa representa a separação absoluta;
a universal afirmativa, a hierarquia do ser;
a particular afirmativa, a comunhão parcial;
e a particular negativa, o limite do não-ser.

Converter é espelhar essas ordens, para que a razão aprenda a distinguir o que é uno, o que é múltiplo e o que é apenas aparência.


Conclusio Sectionis
(col. 357B)

Conclui-se que a arte da conversão é tanto um exercício do raciocínio quanto um símbolo da unidade do verdadeiro.
Pois toda proposição legítima pode ser lida em ambas as direções, como o rio que reflete o céu sem deixar de fluir.
Assim, a mente que aprende a converter aprende também a reconhecer o mesmo ser sob formas diversas — e isso é já o primeiro passo da sabedoria.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SYLLOGISMO IN UNIVERSALI

(Primeiro Livro — Sobre o Silogismo em Geral)


CAPUT DECIMUM — DE DEMONSTRATIONE ET DIALECTICA

(Capítulo Décimo — Da Demonstração e da Dialética)

col. 357B–362C (Migne, Tomus LXIV)

Tendo examinado as figuras e as formas de raciocínio, Aristóteles passa agora a distinguir dois modos de discurso racional: o demonstrativo e o dialético.
Ambos utilizam o silogismo, mas com finalidades diversas:
— o demonstrativo visa à ciência (
epistēmē),
— o dialético, à opinião racional (
doxa meta logou).

Boécio, seguindo o mestre, define:
“Demonstração é o silogismo que parte de princípios verdadeiros, primeiros e necessários, e engendra uma conclusão igualmente necessária.”
“Dialética é o silogismo que parte de princípios prováveis ou aceitos, e conduz a uma conclusão provável ou plausível.”

Ambas são, portanto, formas do mesmo instrumento: a razão, que se move ora pela evidência, ora pela verossimilhança.


I. De Principiis Demonstrationis

(Dos princípios da demonstração)

A demonstração só é possível quando o intelecto possui princípios indemonstráveis, que não dependem de outra prova.
Pois se tudo fosse demonstrável, o raciocínio se tornaria infinito, e a ciência jamais começaria.

Estes princípios são chamados axiomas (archai gnōseōs), como:
— “O todo é maior que a parte.”
— “Se de iguais tiramos iguais, restam iguais.”
— “Não é possível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo.”

Tais verdades são conhecidas per se e não por mediação.
A ciência parte delas como de um sol interior, e todo silogismo demonstrativo é apenas a expansão dessa luz.

Por isso, Aristóteles distingue entre o conhecimento do princípio e o conhecimento pelos princípios.
O primeiro é intuitivo (
nous); o segundo, discursivo (epistēmē).
A demonstração pertence ao segundo; mas sem o primeiro, ela seria cega.


II. De Natura Demonstrationis

(Da natureza da demonstração)

A demonstração é um silogismo necessário que produz ciência, não por autoridade, mas por causa evidente.
Diferente do silogismo dialético, que persuade, o demonstrativo gera certeza.

Para que haja demonstração, requerem-se três condições:

1.      Princípios verdadeiros;

2.      Consequência necessária;

3.      Ordem causal, de modo que a conclusão dependa da razão do fato, e não apenas da sucessão verbal.

Exemplo clássico:
— Todo triângulo tem a soma de seus ângulos igual a dois retos;
— Este triângulo é triângulo;
— Logo, este triângulo tem seus ângulos iguais a dois retos.

Aqui, a conclusão não é mera repetição, mas desvelamento da causa geométrica.
A demonstração, portanto, é uma geração de ciência, assim como o ato natural é geração de forma.

Boécio diz: “A demonstração é o parto do intelecto fecundado pelo princípio.”


III. De Dialectica

(Da dialética)

A dialética, embora menos certa, é indispensável.
Ela ocupa o lugar do raciocínio quando faltam os princípios necessários, servindo de método de investigação.

O dialético raciocina com probabilidades (endoxa), isto é, com opiniões aceitas pelos sábios ou pela maioria.
Seu fim não é demonstrar o necessário, mas examinar o possível.

Assim, a dialética é o exercício da razão na região da dúvida; a demonstração, na região da certeza.
Ambas pertencem à mesma potência, mas atuam em graus diversos de luz.

O homem, sendo composto de corpo e alma, não pode viver só da ciência pura.
A dialética o prepara para ela, purificando as opiniões pela disputa e aproximando-as da verdade.

Aristóteles chama a dialética de “ginásio da mente” (gymnasion tēs dianoias), pois nela o intelecto se exercita na distinção dos contrários.

Boécio comenta: “A dialética não gera ciência, mas abre o caminho da ciência; não ilumina, mas afia a lâmina do entendimento.”


IV. De Relatione inter Demonstrationem et Dialecticam

(Da relação entre a demonstração e a dialética)

A demonstração parte do universal e necessário; a dialética, do provável e contingente.
Mas ambas compartilham a mesma estrutura silogística.
A diferença não está na forma, mas na qualidade das premissas.

A demonstração é como a árvore que já deu fruto;
a dialética, como a que ainda floresce.

A primeira é ciência em ato;
a segunda, ciência em potência.

Assim, a dialética é subordinada à demonstração, mas não é contrária a ela.
Quem sabe raciocinar dialeticamente está mais próximo de saber demonstrar.

Pois é pela refutação dos prováveis que se reconhecem os princípios certos;
e quem aprende a duvidar com método, aprende também a afirmar com precisão.

Portanto, a dialética é o vestíbulo da ciência: nela a razão se prepara para o contato com o necessário.


V. De Usu Utriusque in Philosophia

(Do uso de ambas na filosofia)

Boécio distingue três níveis de conhecimento filosófico:
— o dialético, que investiga;
— o demonstrativo, que confirma;
— o contemplativo, que descansa.

O primeiro pertence ao movimento da alma;
o segundo, à sua estabilidade;
o terceiro, à sua união com a verdade.

A dialética é o caminho;
a demonstração, a chegada;
a contemplação, o repouso.

Por isso, a sabedoria perfeita não despreza a dialética, mas a consome em sua chama, como o fogo consome a lenha e dela se alimenta.

A alma racional, quando aprende a demonstrar, transforma a dúvida em certeza, e o provável em eterno.


VI. De Causis Erroris circa Demonstrationem

(Das causas do erro quanto à demonstração)

Muitos se enganam crendo possuir ciência quando têm apenas opinião.
Isso acontece quando a conclusão é verdadeira, mas as premissas são falsas ou acidentais.
Pois a verdade da conclusão não basta para gerar ciência, se não procede de causa verdadeira.

Exemplo:
— Todo homem é animal;
— Sócrates é homem;
— Logo, Sócrates é animal.
Aqui há ciência.

Mas se alguém disser:
— Todo homem é risonho;
— Sócrates é homem;
— Logo, Sócrates é risonho;
A conclusão é verdadeira por acaso, não por necessidade.
Há verdade material, mas não formal; e onde falta a forma, falta a ciência.

Boécio conclui: “O erro mais sutil é o da causa aparente: parece demonstrar, mas não faz ver.”


Conclusio Sectionis
(col. 362C)

Conclui-se que toda demonstração é um silogismo da verdade, e toda dialética, um silogismo da opinião.
Ambas são degraus da mesma escada, pela qual a razão sobe do provável ao necessário.
A ciência nasce da dialética como a luz nasce da aurora: o que começa em dúvida termina em contemplação.

Assim, o verdadeiro filósofo não despreza nenhum dos dois caminhos, pois sabe que o método é o corpo da inteligência e que, sem forma lógica, a verdade permaneceria muda.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT PRIMUM — DE SCIENTIA ET DEMONSTRATIONE

(Capítulo Primeiro — Da Ciência e da Demonstração)

col. 362C–368B (Migne, Tomus LXIV)

A ciência (scientia) é um conhecimento certo e necessário, obtido por meio da demonstração.
Diferente da opinião, que é incerta, e da crença, que é aceita pela fé, a ciência repousa sobre princípios evidentes e causas verdadeiras.

Aristóteles define: “Saber é conhecer a causa pela qual algo é o que é.”
Logo, quem apenas conhece o fato não tem ciência, mas experiência;
quem conhece a causa, tem ciência propriamente dita.

Por isso, Boécio afirma: “A ciência é a visão do necessário pelas razões que o fazem ser.”

Toda demonstração é um silogismo que parte de premissas verdadeiras, universais, primeiras e necessárias, e produz uma conclusão igualmente necessária.
Se uma dessas condições faltar, o raciocínio pode ser dialético, mas não científico.

Pois a ciência não se funda no provável, mas no eterno;
e aquilo que depende do tempo ou da vontade dos homens não é ciência, mas opinião.


I. De Differentia inter Scientiam et Opinionem

(Da diferença entre ciência e opinião)

A diferença entre ciência e opinião está na causa do assentimento.
A opinião adere ao que parece verdadeiro;
a ciência, ao que é necessariamente verdadeiro.

A primeira é móvel, porque depende das aparências;
a segunda é imóvel, porque depende das razões.

Exemplo:
— Quem crê que o sol nascerá amanhã porque sempre o viu nascer, tem opinião verdadeira, mas não ciência.
— Quem compreende pelas causas astronômicas que o sol deve necessariamente surgir no horizonte, esse tem ciência.

Assim, a ciência é superior à opinião, não pela matéria conhecida, mas pela maneira de conhecer.
Pois o mesmo fato pode ser objeto de opinião e de ciência, mas sob razões diversas.

Aristóteles ensina: “Saber é possuir a demonstração.”
E Boécio comenta: “A ciência é o juízo iluminado pela causa.”


II. De Natura Demonstrationis

(Da natureza da demonstração)

A demonstração é um silogismo científico (syllogismus scientificus), que não apenas mostra que algo é, mas mostra também por que é (propter quid).

O silogismo comum conclui a partir de qualquer premissa verdadeira;
o silogismo demonstrativo exige que as premissas sejam principia — verdades primeiras, indemonstráveis e universais.

Tais princípios não podem ser aprendidos por outro silogismo, pois isso levaria a uma regressão infinita.
São apreendidos pelo intelecto puro (
intellectus), que é o primeiro movimento da alma racional.

Boécio explica: “O entendimento dos princípios é dado por natureza, como a luz é dada aos olhos.”
Sem essa luz, o raciocínio seria um cego que tenta guiar outro cego.

A demonstração é, portanto, o ato da razão iluminada pelos princípios;
e a ciência, o repouso da alma na necessidade.


III. De Causis et Conditionibus Demonstrationis

(Das causas e condições da demonstração)

Para que uma demonstração seja perfeita, requerem-se três condições principais:

1. Verdade. — As premissas devem ser verdadeiras, pois do falso nada necessário se conclui.
2. Universalidade. — Devem ser universais, pois o particular não engendra ciência, mas experiência.
3. Necessidade. — Devem ser necessárias, pois o contingente muda e a ciência é imutável.

Além disso, as premissas devem ser anteriores e mais conhecidas por natureza do que a conclusão.
Pois o efeito se conhece pela causa, e não a causa pelo efeito.

Assim, “Todo homem é mortal” é mais conhecido do que “Sócrates é mortal”, porque o universal precede o singular.

Boécio insiste que esta ordem é essencial:
“O conhecimento da causa é superior ao conhecimento do fato, porque o primeiro é inteligível, e o segundo, sensível.”


IV. De Ordine Demonstrationis ad Scientiam

(Da ordem da demonstração em relação à ciência)

A ciência não é apenas a posse da verdade, mas o conhecimento ordenado das razões pelas quais a verdade é necessária.
Por isso, o ato da demonstração é o caminho da alma até o repouso do saber.

Quando a mente compreende o necessário, ela repousa;
e esse repouso é o que Aristóteles chama de “êxtase do intelecto”.

Toda demonstração é movimento, mas sua meta é a imobilidade.
Assim como o viajante que caminha até chegar à cidade, o intelecto raciocina até alcançar o princípio.

A ciência é, pois, a quietude no verdadeiro, e a demonstração, o movimento em direção a essa quietude.

A alma que atinge o conhecimento causal experimenta um prazer semelhante ao da visão da beleza inteligível, pois vê o ser por dentro, e não apenas por fora.


V. De Fine Demonstrationis

(Do fim da demonstração)

O fim da demonstração é o propter quid, isto é, conhecer não apenas que algo é, mas por que é.
Aquele que sabe o “por quê” possui a ciência perfeita;
aquele que sabe apenas o “que” possui um conhecimento imperfeito.

Aristóteles distingue entre a demonstração quia (do fato) e propter quid (da causa).
A primeira satisfaz o entendimento;
a segunda, o eleva.

Boécio comenta:
“Quem conhece o porquê, participa do intelecto divino, pois só Deus conhece todas as coisas por suas causas.”

Assim, o silogismo demonstrativo é uma participação no modo de conhecer de Deus,
enquanto o silogismo dialético é apenas uma imitação humana desse modo.


Conclusio Sectionis
(col. 368B)

Conclui-se que a ciência nasce da demonstração, e a demonstração, dos princípios primeiros.
O intelecto os recebe por natureza, a razão os desenvolve por discurso, e a sabedoria os contempla por união.

Por isso, toda doutrina filosófica começa no espanto, cresce na demonstração e culmina na contemplação.
E quem verdadeiramente demonstra, já não busca persuadir, mas simplesmente ver.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT SECUNDUM — DE PRINCIPIIS ET MEDIIS DEMONSTRATIONIS

(Capítulo Segundo — Dos Princípios e Meios da Demonstração)

col. 368B–373A (Migne, Tomus LXIV)

Todo conhecimento científico depende de princípios primeiros e de meios intermediários pelos quais a razão passa da causa ao efeito.
Os princípios são o fundamento; os meios, o caminho; e a conclusão, o termo.

Assim como na natureza o ser se origina das causas e chega aos efeitos, na ciência o saber procede dos princípios e chega às conclusões.
Pois a razão humana é imagem da razão divina, e nela a demonstração é a forma da causalidade intelectual.


I. De Principiis Demonstrationis

(Dos princípios da demonstração)

Os princípios da demonstração são verdades indemonstráveis, conhecidas pelo intelecto intuitivo.
São as luzes primeiras da mente, por meio das quais o discurso raciocinante se torna possível.

Boécio distingue três espécies de princípios:
1. Comuns a todas as ciências — como o princípio de não contradição, de identidade e de exclusão do meio.
2. Próprios de cada ciência — como os postulados da geometria ou os axiomas da aritmética.
3. Derivados ou subordinados — como as definições que estabelecem a essência dos objetos estudados.

Estes últimos são chamados princípios da coisa (principia rei), enquanto os primeiros são princípios do raciocínio (principia rationis).
Ambos são necessários: sem os primeiros não há ordem lógica; sem os segundos não há matéria inteligível.

Aristóteles diz: “Toda ciência tem princípios próprios, dos quais nenhuma outra ciência pode dar razão.”
Boécio comenta: “Os princípios são as raízes invisíveis da árvore da sabedoria; quem não as possui, arranca o fruto sem saber de onde veio.”


II. De Mediis Demonstrationis

(Dos meios da demonstração)

Os meios (media demonstrationis) são as proposições intermediárias pelas quais a mente liga os princípios às conclusões.
São, portanto, os instrumentos da razão que faz o invisível tornar-se visível.

Na demonstração, o meio termo desempenha o papel de causa formal do conhecimento.
Ele une o universal ao particular, o princípio à consequência.

Exemplo clássico:
— Todo ser composto é corruptível.
— Todo homem é composto.
— Logo, todo homem é corruptível.

Aqui, o meio é “composto”, que une a natureza do homem à do corruptível.
O meio é a ponte do intelecto entre o que é sabido por natureza e o que é aprendido por dedução.

Aristóteles chama essa operação de “percepção intermediária da causa”.
Boécio acrescenta: “O meio é o fio pelo qual a mente sobe da imagem ao princípio.”


III. De Numero et Ordine Mediorum

(Do número e da ordem dos meios)

O número dos meios é proporcional à distância entre os princípios e a conclusão.
Quanto mais distante o efeito está da causa, mais meios são necessários para reconduzi-lo à origem.

Nas ciências superiores, onde os objetos são próximos da essência — como a metafísica —, há poucos meios, porque o intelecto vê quase diretamente.
Nas ciências inferiores, como a física ou a moral, há muitos meios, porque o entendimento precisa atravessar as sombras da matéria e da contingência.

Assim como a luz se enfraquece à medida que se afasta da fonte, o conhecimento se multiplica em graus à medida que se afasta dos primeiros princípios.
E cada grau é um meio de ascensão ou de descida na hierarquia do saber.

Por isso, Boécio ensina:
“A sabedoria se mede não pela quantidade dos meios, mas pela proximidade do olhar com o princípio.”


IV. De Conditionibus Medii

(Das condições do meio)

O meio deve cumprir duas condições essenciais:

1.      Ser verdadeiro e necessário;

2.      Ser mais conhecido que a conclusão.

O primeiro assegura a verdade da ciência; o segundo, sua inteligibilidade.
Pois não se aprende pelo que é menos claro, mas pelo que é mais claro.

Por isso, Aristóteles diz: “Demonstrar é mostrar o menos conhecido pelo mais conhecido.”
E Boécio comenta: “O meio é como o espelho da razão, que reflete o invisível no visível.”

Quando o meio é falso, há sofisma;
quando é obscuro, há opinião;
quando é verdadeiro e claro, há ciência.


V. De Processu Demonstrationis

(Do processo da demonstração)

A demonstração se processa em três movimentos:
Do princípio ao meio, pela aplicação da causa ao gênero;
Do meio à conclusão, pela subordinação do particular ao universal;
Do conjunto à contemplação, pela intuição da necessidade.

Assim, a alma sobe da razão ao intelecto, do discurso à visão, da ciência à sabedoria.
Cada silogismo demonstrativo é uma escada em miniatura, cujo último degrau é a contemplação do ser.

Por isso, Boécio conclui:
“A ciência não é apenas a posse de silogismos, mas a alma que, tendo percorrido as mediações, repousa no princípio.”


Conclusio Sectionis
(col. 373A)

Conclui-se que os princípios são o fundamento da ciência, e os meios, seu caminho.
A demonstração é o elo entre ambos, e a mente é o lugar onde o princípio se torna visível por meio do raciocínio.
Como na natureza o fogo se comunica pela luz, assim na razão o ser se comunica pela forma silogística.

Toda sabedoria consiste em unir os extremos pelo meio: o invisível pelo inteligível, o eterno pelo temporal, o divino pelo humano.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT TERTIUM — DE CAUSIS ET EFFECTIBUS

(Capítulo Terceiro — Das Causas e dos Efeitos)

col. 373A–378C (Migne, Tomus LXIV)

Toda ciência, diz Aristóteles, versa sobre causas e efeitos, pois saber é conhecer o porquê das coisas.
O efeito manifesta o ser; a causa, o explica.
Assim, o intelecto humano, ao buscar a verdade, move-se sempre da percepção do efeito à compreensão da causa.

Boécio observa: “Quem vê o efeito sem conhecer a causa, contempla apenas a sombra da verdade; quem vê a causa no efeito, toca o seu corpo.”

A relação entre causa e efeito é, portanto, o princípio da demonstração.
Todo silogismo científico é a tradução lógica dessa dependência ontológica.


I. De Definitione Causae

(Da definição de causa)

Aristóteles distingue quatro espécies de causa:
Material, aquilo de que algo é feito;
Formal, aquilo pelo qual algo é o que é;
Eficiente, aquilo de onde algo procede;
Final, aquilo por causa de que algo é.

Todas são princípios, mas em graus diversos:
a causa final é a primeira na intenção;
a eficiente, a primeira na execução;
a formal, a primeira na essência;
e a material, a primeira na ordem da potência.

Boécio nota que a demonstração científica tem por analogia essas mesmas quatro causas:
— a
matéria do silogismo são as premissas;
— a
forma, a estrutura lógica;
— a
eficiência, o ato do intelecto;
— o
fim, a ciência.

Assim, a arte de demonstrar é a imagem da arte de criar: em ambas, o ser passa da potência ao ato.


II. De Ordine inter Causam et Effectum

(Da ordem entre causa e efeito)

A causa é anterior por natureza, o efeito, posterior;
mas quanto ao nosso conhecimento, o efeito é primeiro, e a causa, segunda.
Pois percebemos primeiro os fenômenos, depois suas razões.

Esta é a ordem da alma humana, inversa à da natureza divina:
Deus conhece as causas antes dos efeitos;
nós, os efeitos antes das causas.

Por isso, Aristóteles diz que toda ciência é uma conversão da alma à ordem natural
um retorno do conhecimento humano à perspectiva divina.

O verdadeiro filósofo é aquele que refaz, pela demonstração, o caminho que o ser fez pela criação:
do princípio à consequência, e da consequência ao princípio.

A mente que alcança a causa no efeito participa do modo de conhecer do próprio Criador.


III. De Causis Universis et Particularibus

(Das causas universais e particulares)

As causas universais são aquelas que se aplicam a todos os entes de um gênero,
como “todo corpo tem matéria e forma”.
As causas particulares se aplicam apenas a certos indivíduos, como “este corpo foi gerado pelo calor”.

A ciência busca as causas universais, pois seu objeto é o necessário.
As causas particulares pertencem à experiência, que versa sobre o contingente.

Boécio distingue:
— A filosofia natural considera as causas segundo a matéria;
— A matemática, segundo a forma;
— A metafísica, segundo o ser e o fim.

Assim, quanto mais universal a causa, mais perfeita a ciência.
E quanto mais o entendimento se eleva à causa das causas, mais se aproxima da sabedoria divina.


IV. De Causa Per Se et Per Accidens

(Da causa por si e da causa por acidente)

A causa por si (per se causa) é aquela cuja essência implica o efeito;
a causa por acidente (
per accidens causa), aquela que o produz de modo contingente.

Exemplo:
— O sol é causa do calor por si;
— Um pintor que aquece o ateliê é causa do calor por acidente.

A demonstração científica procede apenas das causas per se,
pois só o que é necessário pode gerar ciência.
O que é acidental gera apenas opinião ou probabilidade.

Por isso, Aristóteles rejeita como não científica toda proposição cuja conexão entre causa e efeito não seja necessária.
A razão não pode demonstrar o que o ser não obriga.

Boécio escreve:
“A causa acidental é o jogo do acaso; a causa per se é a voz do intelecto divino na natureza.”


V. De Multiplicitate Effectuum

(Da multiplicidade dos efeitos)

Uma única causa pode produzir muitos efeitos, conforme a diversidade das matérias e das disposições.
Assim, o sol causa a vida nas plantas, a visão nos animais, o calor nos corpos e a claridade no ar.

Mas em todos os casos, é uma só e mesma causa que opera segundo diversas potências de recepção.
O múltiplo é sempre o reflexo da unidade no campo do diverso.

Por isso, o filósofo busca reduzir a multiplicidade dos efeitos à simplicidade das causas.
A ciência, como o mundo, tem por destino o retorno à unidade.

A mente que contempla esse retorno participa do olhar do Criador, para quem toda variedade é harmonia.

Boécio comenta:
“Entender é reduzir o diverso ao mesmo, o disperso ao centro.”


VI. De Relatione Causae et Scientiae

(Da relação entre a causa e a ciência)

A ciência não existe sem causa, nem a causa sem inteligibilidade.
Pois conhecer é conhecer
por algo, e o que não tem causa não é objeto de ciência, mas de fé ou intuição.

Assim, a demonstração é o ato pelo qual a mente reproduz, no plano lógico, a estrutura causal do ser.
O raciocínio é, portanto, uma imitação da criação:
— A causa eficiente corresponde ao princípio do movimento;
— A formal, à estrutura do raciocínio;
— A final, à conclusão necessária;
— A material, às premissas do discurso.

O intelecto que demonstra realiza em si mesmo a harmonia das quatro causas.
Por isso, Aristóteles chama a ciência de “a mais divina das atividades humanas”.

Boécio conclui:
“O homem se torna semelhante a Deus quando conhece as causas.”


Conclusio Sectionis
(col. 378C)

Conclui-se que toda ciência é o reflexo da causalidade.
Saber é participar da ordem do ser.
A causa é a fonte da verdade, e o efeito, sua manifestação.
A mente humana, ao reconhecer o efeito e remontar à causa, refaz o caminho da criação em sentido inverso.

Assim, a demonstração é o espelho do universo,
e o silogismo, o vestígio do Logos que move todas as coisas do ser à inteligência.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT QUARTUM — DE GENERE, SPECIE ET DEFINITIONE

(Capítulo Quarto — Do Gênero, da Espécie e da Definição)

col. 378C–383B (Migne, Tomus LXIV)

A ciência das coisas depende do conhecimento de seus gêneros, espécies e definições,
pois toda demonstração se apoia em conceitos ordenados conforme a estrutura do ser.
O gênero é o universal mais próximo;
a espécie, a determinação do gênero;
a definição, o limite inteligível da essência.

Aristóteles ensina que o gênero é conhecido per abstractionem, a espécie per compositionem, e a definição per intellectum perfectum.
Assim, o gênero é o primeiro degrau da razão;
a definição, o ponto culminante da inteligência.


I. De Genere

(Do gênero)

O gênero é aquilo que se predica de muitos diferindo por espécie, segundo a resposta à pergunta quid est? — o que é isto?
Assim, “animal” é o gênero de “homem” e de “cavalo”.
O gênero contém em potência as diferenças que distinguem as espécies, e por isso é como a matéria inteligível da qual as essências particulares se formam.

Boécio comenta:
“O gênero é o vaso da natureza, que encerra em si todas as formas ainda não distinguidas.”

A demonstração parte frequentemente do gênero, pois o raciocínio busca o universal mais comum antes de chegar ao particular mais determinado.
Conhecer que “todo animal é mortal” é o primeiro passo para demonstrar que “todo homem é mortal”.

Assim, o gênero é o princípio lógico da generalidade, e o ponto de partida da indução científica.


II. De Specie

(Da espécie)

A espécie é aquilo que se predica de muitos, diferindo apenas numericamente.
Ela é o gênero determinado por uma diferença específica (
differentia specifica).

Exemplo:
— O gênero: “animal”;
— A diferença: “racional”;
— A espécie: “homem”.

A espécie é, pois, a forma atual do gênero, assim como o ato é a perfeição da potência.
O gênero não se compreende plenamente sem a espécie, porque só na espécie o universal se realiza em natureza concreta.

Aristóteles ensina que a ciência das espécies é mais perfeita que a dos gêneros,
pois o gênero mostra o
quid commune,
e a espécie, o
quid proprium.

Boécio acrescenta:
“Quem conhece o gênero sabe o campo; quem conhece a espécie, sabe o ser que o habita.”

Toda demonstração que visa à essência requer o conhecimento da espécie, pois só o específico revela a natureza própria da coisa.


III. De Differentia

(Da diferença)

A diferença é o que distingue uma espécie de outra sob o mesmo gênero.
Ela é chamada “forma da forma”, porque determina o modo como o gênero se atualiza.

Assim, em “animal racional”, o termo “racional” é a diferença que separa o homem do cavalo ou do leão.
A diferença, portanto, é o princípio da pluralidade ordenada dentro do mesmo gênero.

Sem a diferença, o gênero permaneceria indistinto e, portanto, inapto à ciência.
Pois a ciência busca o conhecimento do determinado, e a determinação é o ofício da diferença.

Boécio observa:
“O gênero é o espelho da unidade; a diferença, o raio da distinção.”

Aristóteles chama a diferença de “a primeira forma lógica”,
porque é por ela que o intelecto passa da indiferença do universal à precisão do singular inteligível.


IV. De Definitione

(Da definição)

A definição é o discurso que exprime o que é a coisa segundo sua essência.
Ela resulta da união do gênero e da diferença.
Assim, “homem é animal racional” é a definição,
onde o gênero dá a matéria inteligível e a diferença dá a forma específica.

A definição é o termo da análise e o princípio da demonstração.
Nenhuma ciência é possível sem definições, pois é nelas que a mente fixa o sentido das palavras e das naturezas.

Aristóteles ensina:
“A definição é o princípio da demonstração, e a demonstração, a confirmação da definição.”

Pois o intelecto primeiro define o que quer demonstrar, e depois demonstra o que definiu.
O erro das doutrinas confusas está em inverter essa ordem.

Boécio escreve:
“Definir é ver a essência; demonstrar é ver o efeito dessa visão.”

A definição é ao mesmo tempo o nascimento da ciência e o limite da linguagem.
Pois o que é definido é compreendido, e o que é compreendido cessa de ser buscado.


V. De Perfectione Definitionis

(Da perfeição da definição)

A definição é perfeita quando nada essencial é omitido e nada acidental é incluído.
Deve conter apenas o gênero próximo e a diferença específica.

— O gênero mais alto é confuso;
— O mais baixo é particular demais;
— O gênero próximo é o ponto médio, e a ciência habita no meio.

Assim, quem define o homem como “substância viva e racional” fala com precisão;
quem o define como “animal que ri”, introduz um acidente;
quem o define como “substância corpórea”, fala genericamente demais.

A definição perfeita é, pois, a medida da razão e o modelo da demonstração.
Toda demonstração que se funda em definições imperfeitas será cega no princípio e falha no fim.

Boécio conclui:
“A definição é o rosto da verdade; quem o obscurece, perde a luz do discurso.”


VI. De Ordine inter Genus, Speciem et Definitionem

(Da ordem entre o gênero, a espécie e a definição)

O gênero é o princípio do pensar;
a espécie, o termo do conhecer;
a definição, o laço entre ambos.

O gênero fornece o campo da investigação;
a espécie, o objeto do juízo;
a definição, a expressão do ser.

Assim, a tríade lógica reflete a tríade metafísica:
— Gênero corresponde à potência;
— Espécie, ao ato;
— Definição, à forma substancial.

O intelecto humano se move segundo esta tríplice via:
do universal à determinação, e da determinação à essência.
Por isso, toda ciência é uma ascensão da generalidade à precisão e da precisão à visão da essência.

Aristóteles diz: “Definir é o fim do conhecimento e o princípio da sabedoria.”
E Boécio acrescenta: “A alma só descansa quando transforma o nome em definição e a definição em contemplação.”


Conclusio Sectionis
(col. 383B)

Conclui-se que o gênero é o campo da ciência, a espécie, sua colheita, e a definição, o fruto que encerra a semente da verdade.
Toda demonstração nasce da definição, e toda definição nasce do intelecto que distingue.
Assim, o logos humano refaz, em linguagem e método, a ordem do ser: do Uno, brota o múltiplo; do múltiplo, a distinção; da distinção, o sentido.

E quando a mente define com pureza, ela toca, ainda que por um instante, o limite onde a razão encontra o Verbo.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT QUINTUM — DE DEMONSTRATIONE PROPTER QUID ET QUIA

(Capítulo Quinto — Da Demonstração “por que” e “que”)

col. 383B–388A (Migne, Tomus LXIV)

Há dois modos de demonstração, conforme ensina Aristóteles:
— um que mostra
propter quid, isto é, a causa pela qual a coisa é;
— outro que mostra
quia, isto é, que a coisa é, sem atingir a causa.

O primeiro é o mais perfeito e próprio da ciência;
o segundo é imperfeito, mas útil como primeiro passo para o conhecimento.

Pois todo saber começa pela constatação de que algo é, e se aperfeiçoa ao compreender por que é.


I. De Demonstratione Propter Quid

(Da demonstração “por que”)

A demonstração propter quid é aquela que explica o fato pela causa.
Nela, a conclusão deriva da essência mesma do sujeito, e o raciocínio mostra não apenas o acontecimento, mas a razão necessária de seu acontecer.

Exemplo:
— O eclipse da lua ocorre porque a terra se interpõe entre ela e o sol.
Aqui, a causa é conhecida, e o fenômeno é deduzido dela.

Assim, o intelecto vê o fato como consequência do princípio, e essa visão é o ato próprio da ciência.

Boécio comenta:
“Demonstrar
propter quid é contemplar o efeito na luz da causa; é ver o que é pelo que o faz ser.”

A demonstração desse tipo supõe que a causa seja anterior por natureza e mais conhecida pela razão, ainda que não pela sensação.
Pois muitas vezes o que é mais evidente aos sentidos é menos inteligível à razão.

Assim, o relâmpago é mais visível que o raio elétrico, mas o raio é mais inteligível.
O filósofo busca, portanto, a inteligibilidade, não a aparência.


II. De Demonstratione Quia

(Da demonstração “que”)

A demonstração quia mostra o fato sem explicar a causa.
É o conhecimento que procede do efeito para a causa, e se contenta em afirmar o acontecimento.

Exemplo:
— Vemos que há eclipse da lua, mas ignoramos a razão.
Sabemos
quia est (que é), mas não propter quid est (por que é).

Esse tipo de demonstração é próprio do início da ciência e do domínio da experiência.
Pois a mente, antes de compreender o porquê, deve certificar-se do fato.

Aristóteles afirma: “O conhecimento do quia é o caminho que conduz ao propter quid.”
E Boécio acrescenta: “A alma sobe da sombra ao sol: primeiro vê o contorno das coisas, depois a fonte da luz.”


III. De Ordine inter Propter Quid et Quia

(Da ordem entre o “por que” e o “que”)

A ordem natural do saber é inversa à da descoberta:
— na natureza, a causa vem antes do efeito;
— em nós, o efeito é conhecido antes da causa.

Assim, o processo humano do conhecimento é de baixo para cima;
o divino, de cima para baixo.

A ciência perfeita, porém, consiste em refazer esse caminho:
partindo do efeito conhecido
quia, o intelecto ascende à causa e alcança o propter quid.

Esse movimento é o próprio ato da demonstração: converter o quia em propter quid, o fato em razão.

Boécio exprime essa ascensão com uma analogia luminosa:
“A mente que conhece o
quia é como quem vê o reflexo da chama na água;
a mente que conhece o
propter quid é como quem contempla o fogo em sua própria substância.”

Assim, a ciência nasce da experiência sensível, mas só se cumpre quando a supera.


IV. De Applicatione utriusque ad Scientias

(Da aplicação de ambos aos diversos tipos de ciência)

Nas ciências empíricas, predomina o quia: observa-se o que é e se induz o possível.
Nas ciências demonstrativas, predomina o
propter quid: parte-se do princípio e se deduz o necessário.
Nas ciências contemplativas, ambos coincidem, pois nelas conhecer é participar da causa.

Assim, a física investiga quia, a matemática demonstra propter quid, e a metafísica une ambos,
pois nela o intelecto conhece o ser tanto em sua manifestação quanto em sua razão.

O sábio, portanto, é aquele que, tendo aprendido os dois modos, sabe quando usar um e quando o outro.

Boécio observa:
“O ignorante busca causas onde só há efeitos; o imprudente busca efeitos onde só há causas; o sábio conhece o limite de ambos.”


V. De Imperfectione Demonstrationis Quia

(Da imperfeição da demonstração “que”)

A demonstração quia é imperfeita não por falsidade, mas por incompletude.
Ela mostra o ser, mas não o porquê; afirma o fato, mas não a razão.

O perigo de permanecer nela é o de contentar-se com a aparência e esquecer a essência.
A ciência que não busca o
propter quid degenera em empirismo;
o raciocínio que ignora o
quia degenera em especulação vazia.

A sabedoria exige o equilíbrio dos dois: o contato com o real e a penetração de suas causas.

Por isso, Boécio adverte:
“O homem que apenas vê o efeito é como o corpo que sente o calor sem compreender o fogo;
e aquele que conhece a causa sem o efeito é como o espírito que raciocina sem tocar o mundo.”


VI. De Relatione ad Fidem et Theologiam

(Da relação com a fé e a teologia)

Em matéria divina, a razão humana conhece quia, mas não propter quid.
Sabemos que Deus é, mas não por que é.
Pois a causa de seu ser é o próprio ser.

A teologia natural, portanto, é a ciência do quia Dei — da existência de Deus;
a teologia dos bem-aventurados é a ciência do
propter quid Dei — da razão de ser de Deus,
que nenhum homem pode alcançar nesta vida.

Boécio escreve:
“Enquanto vivemos na carne, conhecemos a causa suprema pelos efeitos;
quando formos espírito, a veremos como ela é.”

Assim, toda teologia humana é uma demonstração quia, e toda visão beatífica, uma demonstração propter quid.
A primeira é sombra do sol; a segunda, o próprio sol.


Conclusio Sectionis
(col. 388A)

Conclui-se que toda ciência se move entre o quia e o propter quid,
entre o ver que é e o ver por que é.
O primeiro é o início do saber; o segundo, sua plenitude.

A mente humana, enquanto caminha, conhece quia;
quando repousar na verdade, conhecerá
propter quid.
E nesse repouso, razão e causa coincidirão no mesmo ato de contemplação.

Pois a verdade última é o ponto em que o “que é” e o “por que é” são um só — o próprio Ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT SEXTUM — DE ORDINE SCIENTIARUM

(Capítulo Sexto — Da Ordem das Ciências)

col. 388A–392C (Migne, Tomus LXIV)

Aristóteles ensina que as ciências têm uma ordem natural, conforme a ordem das causas e dos objetos que investigam.
Pois, assim como o ser é ordenado do mais universal ao mais particular, também o conhecimento se dispõe do mais simples ao mais composto.

Boécio comenta:
“A sabedoria é a harmonia do saber; e como não há música sem escala, não há ciência sem ordem.”

A ordem das ciências reflete, portanto, a hierarquia das coisas: o que é primeiro no ser deve ser primeiro no saber.


I. De Triplici Partitione Scientiarum

(Da tripla divisão das ciências)

Aristóteles divide todas as ciências em três gêneros:
Theoreticae (contemplativas),
Practicae (ativas ou morais),
Poeticae (produtivas).

As primeiras buscam a verdade;
as segundas, o bem;
as terceiras, a utilidade.

O fim da ciência contemplativa é o conhecimento;
o da prática, a ação;
o da produtiva, a fabricação.

Todas, porém, participam de um mesmo princípio: a razão.
E quanto mais se afastam da contemplação, mais se aproximam do movimento e da imperfeição.

Boécio observa:
“A contemplação é o repouso da razão em si mesma;
a ação é sua expansão;
a produção, sua projeção no mundo sensível.”


II. De Subordinatione Scientiarum

(Da subordinação das ciências)

Entre as ciências, há ordem e subordinação, conforme umas dependam das outras para existir.
Assim, a música depende da aritmética,
a ótica da geometria,
e a mecânica da física.

As ciências subordinadas são chamadas ministeriales,
porque ministram matéria e exemplos às superiores.
As superiores são chamadas principales,
porque fornecem causas e razões às inferiores.

Por isso, Aristóteles diz que o sábio não é aquele que sabe muitas coisas,
mas aquele que conhece as causas mais altas de todas as coisas.

Boécio comenta:
“As ciências inferiores são os sentidos da razão;
as superiores, o intelecto da razão.”


III. De Ordine Naturae et Disciplinae

(Da ordem da natureza e da aprendizagem)

A ordem da natureza é do superior ao inferior:
do ser puro às formas compostas, das causas aos efeitos.
A ordem da disciplina é inversa:
o homem aprende do sensível ao inteligível, do efeito à causa.

Por isso, nascemos ignorantes das causas e instruídos pelos sentidos.
O progresso do saber consiste em refazer o caminho da natureza em sentido inverso.

A criança conhece o movimento antes do motor,
a aparência antes da essência,
o fenômeno antes da lei.

A ciência, então, é o retorno à ordem natural —
o processo pelo qual a alma reconstrói o cosmos no espelho do intelecto.

Boécio diz:
“Aprender é ordenar o caos da experiência conforme a harmonia das causas.”


IV. De Hierarchia Scientiarum

(Da hierarquia das ciências)

As ciências se dispõem em graus de perfeição conforme a universalidade e a imutabilidade de seus objetos.

1.      As artes mecânicas estão no nível mais baixo,
porque lidam com o mutável e o transitório.

2.      As ciências naturais vêm em seguida,
pois consideram o movimento, mas segundo causas estáveis.

3.      As matemáticas são mais altas,
porque tratam do imutável na quantidade.

4.      No cume estão as ciências divinas,
que contemplam o ser imóvel e eterno.

A primeira ordem é a da mão;
a segunda, a dos sentidos;
a terceira, da razão;
a quarta, do intelecto.

Boécio comenta:
“O artífice move o corpo;
o físico, a natureza;
o matemático, a forma;
o teólogo, o ser.”

Assim, quanto mais imaterial o objeto, mais perfeita a ciência.


V. De Relatione ad Sapientiam

(Da relação das ciências com a sabedoria)

A sabedoria (sapientia) é o coroamento de todas as ciências.
Não é uma ciência particular, mas a visão ordenadora de todas.

O sábio não é o que possui muitas ciências, mas o que as vê em unidade.
Pois o múltiplo só é verdadeiro quando reconduzido ao Uno.

Por isso, Aristóteles diz que o sábio conhece o mais difícil e o mais universal — o ser enquanto ser.
E Boécio o chama “o homem cuja mente imita a ordem do cosmos”.

A sabedoria é, portanto, o reflexo da unidade divina no intelecto humano.
Nela todas as ciências se conciliam, assim como em Deus todas as causas coincidem.

“A sabedoria”, escreve Boécio, “é a música suprema em que cada ciência é um instrumento afinado pelo mesmo som do ser.”


Conclusio Sectionis
(col. 392C)

Conclui-se que as ciências se ordenam segundo a ordem do ser e da alma:
— na base, o fazer;
— no meio, o agir;
— no cume, o contemplar.

Toda instrução é uma ascensão do útil ao verdadeiro, e toda sabedoria é um retorno do múltiplo ao simples.
A ciência isolada é fragmento;
a ciência ordenada é cosmos.

Assim, a alma que conhece a ordem das ciências imita, em sua própria luz, a harmonia da criação —
e faz do saber uma escada pela qual o homem sobe do artifício ao Verbo.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT SEPTIMUM — DE SYLLOGISMO NECESSARIO ET CONTINGENTI

(Capítulo Sétimo — Do Silogismo Necessário e do Contingente)

col. 392C–397B (Migne, Tomus LXIV)

O silogismo, ensina Aristóteles, não é uno quanto ao modo da conclusão,
mas diverso segundo a qualidade da necessidade ou da contingência contida nas premissas.
Pois o que se afirma de modo necessário gera ciência;
o que se afirma de modo contingente gera apenas opinião.

A distinção entre o necessário e o contingente é, portanto, o limite que separa o saber do crer,
a ciência da conjectura, o intelecto da imaginação.


I. De Syllogismo Necessario

(Do silogismo necessário)

O silogismo necessário é aquele cujas premissas são universais, afirmativas e necessárias.
Sua conclusão participa da mesma necessidade das causas que a sustentam.

Exemplo:
— Todo homem é mortal;
— Sócrates é homem;
— Logo, Sócrates é mortal.

Aqui, o predicado “mortal” pertence ao sujeito “homem” por necessidade natural,
e não por acaso ou convenção.
A conclusão é, pois, necessária, porque o vínculo entre as premissas é essencial.

Boécio comenta:
“A necessidade é o selo da verdade: o raciocínio que a traz em si é imutável como o ser.”

O silogismo necessário é o instrumento próprio da ciência,
porque nela nada se demonstra senão o que é universal, eterno e invariável.

Todo raciocínio que procede de causas imutáveis participa da eternidade;
todo raciocínio fundado em causas mutáveis participa do tempo.


II. De Syllogismo Contingenti

(Do silogismo contingente)

O silogismo contingente é aquele cujas premissas versam sobre o que pode ser de outro modo (potest aliter esse).
Seu resultado não é necessário, mas apenas provável.

Exemplo:
— Todo homem pode adoecer;
— Sócrates é homem;
— Logo, Sócrates pode adoecer.

A conclusão é verdadeira enquanto possível, não enquanto necessária.
Tal é o domínio do contingente — o campo da natureza sujeita ao devir.

Boécio escreve:
“O raciocínio contingente é o espelho do mundo sensível: nada nele é fixo, tudo está em caminho.”

A alma humana, enquanto vinculada ao tempo, conhece sobretudo por silogismos contingentes;
mas quando se eleva à razão pura, conhece por silogismos necessários.


III. De Necessitate Simplici et Hypothetica

(Da necessidade simples e da necessidade hipotética)

Há duas espécies de necessidade: simples e hipotética.
— A simples é a que pertence à essência das coisas;
— A hipotética, a que depende de uma condição antecedente.

Exemplo de necessidade simples: “Todo triângulo tem três ângulos.”
Exemplo de necessidade hipotética: “Se o sol se levanta, é dia.”

Ambas têm seu lugar na ciência, mas de modos diferentes:
a primeira fundamenta a ontologia;
a segunda, a causalidade.

Boécio distingue:
“A necessidade simples é a voz do ser; a necessidade condicional, o eco da relação.”

O silogismo necessário simpliciter exprime a estrutura eterna do real;
o silogismo necessário
ex hypothesi exprime a concatenação dos fenômenos.

Assim, o primeiro pertence à metafísica, o segundo à física.


IV. De Contingentia Secundum Potentiam et Secundum Eventum

(Da contingência segundo a potência e segundo o evento)

O contingente pode ser considerado segundo a potência ou segundo o evento.

— Segundo a potência, quando algo pode ser ou não ser, antes de acontecer;
— Segundo o evento, quando algo, tendo ocorrido, mostra que podia ser de outro modo.

Exemplo:
— Antes da batalha, é contingente que o exército vença;
— Depois da vitória, é contingente que pudesse ter sido derrotado.

A contingência segundo a potência é lógica;
a contingência segundo o evento é histórica.

Boécio nota que o primeiro modo pertence à dialética, o segundo à experiência.
O filósofo contempla a possibilidade; o historiador, a realização.

Assim, o silogismo contingente é duplamente limitado:
pelo poder do intelecto e pela mutabilidade dos fatos.


V. De Relatione Necessarii ad Demonstrationem

(Da relação do necessário com a demonstração)

Toda demonstração verdadeira deve apoiar-se em premissas necessárias.
Pois se o princípio é contingente, também o será a conclusão.

O necessário é o que não pode ser de outro modo,
e por isso é o fundamento da ciência.

Aristóteles diz: “Não há demonstração senão do necessário.”
Boécio comenta: “A verdade muda com o contingente como a sombra com o sol; o necessário permanece imóvel sob toda luz.”

A demonstração, portanto, não se contenta com o provável;
ela exige o imutável.
O provável é o campo da opinião, o necessário é o campo da sabedoria.

O homem prudente age segundo o provável;
o homem sábio julga segundo o necessário.


VI. De Relatione Contingentis ad Humanam Conditionem

(Da relação do contingente com a condição humana)

O contingente pertence ao mundo do devir, e, por isso, à vida humana.
Nenhum ato nosso é absolutamente necessário,
pois depende de circunstâncias, paixões e escolhas.

A liberdade é, por isso, uma forma de contingência:
podemos agir ou não agir, querer ou não querer.

A ciência do contingente é a prudência;
a do necessário, a sabedoria.

Boécio escreve:
“O homem vive no reino do contingente, mas é chamado ao reino do necessário.”

Quando o intelecto se purifica das paixões e das mutabilidades,
ele se eleva à região das causas imutáveis —
e aí se cumpre o fim do silogismo demonstrativo:
a passagem do tempo à eternidade, da opinião à verdade.


Conclusio Sectionis
(col. 397B)

Conclui-se que o necessário é o eixo do saber e o contingente, o campo do agir.
O primeiro é imóvel, o segundo é fluente;
o primeiro é a raiz da ciência, o segundo, a seiva da prudência.

Assim, o silogismo necessário é o discurso do intelecto,
o silogismo contingente, o discurso da alma que ainda vive no tempo.

Mas quem sobe pela escada das causas —
da potência ao ato, do acaso à razão, do tempo ao ser —
transforma a contingência em necessidade,
e faz da mente humana um espelho da razão eterna.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO PRIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Anteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Segundo Livro — Sobre o Silogismo Demonstrativo)


CAPUT OCTAVUM — CONCLUSIO GENERALIS

(Capítulo Oitavo — Conclusão Geral sobre a Estrutura da Ciência)

col. 397B–400A (Migne, Tomus LXIV)

Após considerar a natureza do silogismo, as espécies de demonstração, as causas, os gêneros e o modo da necessidade,
resta agora recolher o sentido total desta doutrina: o que é a ciência, e qual é seu lugar na alma.

Aristóteles define ciência como “hábito da alma que demonstra o necessário pelas causas primeiras”.
Boécio, interpretando, escreve:
“A ciência é a estabilidade do intelecto na verdade; o silogismo, seu instrumento; a demonstração, seu ato.”


I. De Essentia Scientiae

(Da essência da ciência)

A ciência é um hábito, não um ato passageiro;
pois conhecer não é apenas perceber, mas possuir o verdadeiro de modo permanente.

Assim como a visão não é o ver momentâneo, mas a faculdade de ver,
assim a ciência não é o raciocinar ocasional, mas o estado fixo da mente que conhece pelas causas.

A opinião crê, a ciência sabe;
a opinião move-se, a ciência repousa.

Boécio comenta:
“A ciência é a alma feita imóvel pelo intelecto.”

E porque é imóvel, é imagem da eternidade;
e porque é verdadeira, é participação do Verbo.


II. De Ordine inter Intellectum, Rationem et Scientiam

(Da ordem entre o intelecto, a razão e a ciência)

Há três graus no conhecimento:
— o intelecto (
intellectus), que intui as causas primeiras;
— a razão (
ratio), que delas deduz as consequências;
— a ciência (
scientia), que fixa e ordena o que a razão alcançou.

O intelecto é simples como a luz;
a razão é discursiva como o movimento;
a ciência é estável como o firmamento.

O primeiro pertence à alma separada;
o segundo, à alma que busca;
o terceiro, à alma que encontrou.

Boécio escreve:
“O intelecto vê, a razão caminha, a ciência habita.”

Assim, a ciência é o repouso da razão iluminada pelo intelecto —
o ponto em que o discurso se torna contemplação.


III. De Relatione Scientiae ad Veritatem

(Da relação da ciência com a verdade)

A verdade é o objeto da ciência, assim como o bem é o objeto da vontade.
Mas a verdade é dupla:
— uma é a verdade das coisas (
veritas rei),
— outra é a verdade do intelecto (
veritas mentis).

A primeira é anterior e causa da segunda,
pois o intelecto não cria a verdade, mas a reconhece.

A ciência é o ato desse reconhecimento estável.
O erro nasce quando a mente se desvia da ordem das causas;
a ciência consiste em conformar-se a essa ordem.

Boécio observa:
“A verdade é o reflexo do ser;
a ciência, o reflexo da verdade no espelho da alma.”

Assim, o saber humano é uma participação, não uma posse;
é um ver que jamais se iguala ao que vê.


IV. De Finis Scientiae

(Do fim da ciência)

O fim de toda ciência é a contemplação da causa primeira,
pois todas as causas inferiores se reduzem a uma só fonte.

A física termina na metafísica,
a matemática, na unidade,
e a lógica, na sabedoria.

Todo conhecimento, portanto, tende à simplicidade do princípio,
e toda multiplicidade do saber busca sua resolução no Uno.

Boécio escreve:
“Saber é regressar.”

Pois o ato de conhecer é o retorno da mente à origem das coisas,
e o fim de todo raciocínio é reencontrar, no meio da variedade, a unidade da causa.

Assim, a ciência é uma ascensão da alma ao lugar do primeiro motor —
o movimento do que é temporal rumo ao eterno.


V. De Relatione Scientiae ad Fidem et Sapientiam

(Da relação da ciência com a fé e com a sabedoria)

A ciência e a fé não se opõem,
pois ambas procedem da verdade, mas por vias diversas.
A fé crê sem compreender;
a ciência compreende sem crer;
a sabedoria crê e compreende.

Assim, a fé é o início, a ciência o caminho, a sabedoria o termo.

A alma humana atravessa esses três estados como três céus do entendimento:
— no primeiro, recebe a luz pela revelação;
— no segundo, reflete a luz pela razão;
— no terceiro, torna-se luz pela contemplação.

Boécio comenta:
“A fé é o eco da verdade;
a ciência, sua voz;
a sabedoria, seu canto.”

Por isso, toda ciência que se fecha em si mesma degenera em orgulho;
e toda fé que recusa a razão degenera em superstição.

A sabedoria, que é o equilíbrio de ambas, é o conhecimento conforme à ordem do ser e da causa.


VI. De Conclusione Totius Doctrinae

(Da conclusão de toda a doutrina)

Conclui-se, pois, que:
— a lógica ordena o discurso;
— a física revela o movimento;
— a matemática mede a forma;
— a metafísica contempla o ser.

E todas essas ciências são graus de uma mesma ascensão —
como degraus de uma escada cuja base é o sensível e o cume, o divino.

O silogismo é o instrumento,
a demonstração é o método,
a ciência é o fruto.

Mas o fim de tudo é a verdade,
e a verdade é o esplendor do Uno.

Assim termina o comentário de Boécio aos Analíticos Anteriores:
um tratado não apenas de lógica, mas de teologia racional;
não apenas de formas do discurso, mas de caminhos do intelecto para Deus.

Pois, como ele mesmo escreve:
“Toda razão que busca a causa se encaminha, ainda que sem o saber, para o Primeiro Princípio.”


Finis Libri Secundi — De Syllogismo Demonstrativo
(col. 400A)

Aqui se encerra o segundo livro da Interpretação dos Analíticos Anteriores.
O labor de Boécio une a mente latina ao rigor do Estagirita,
e prepara a via pela qual a razão do Ocidente,
partindo da demonstração, subirá até o ser —
e do ser, até o Uno.

Finis Operis.

INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)

Anicii Manlii Severini Boethii

Patrologia Latina, Tomus LXIV, col. 400B–468C


ÍNDICE BILÍNGUE (INDEX GENERALIS / ÍNDICE GERAL)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a ciência e os princípios da demonstração)

1.      De Scientiae Definitione et Differentia — Da definição e distinção da ciência.

2.      De Opinionis et Fidei Diversitate — Da diferença entre opinião e fé.

3.      De Principiis Demonstrationis — Dos princípios da demonstração.

4.      De Propositionibus per se Notis et per Aliud Cognitis — Das proposições conhecidas por si mesmas e das conhecidas por outro.

5.      De Medio Demonstrationis — Do meio da demonstração.

6.      De Syllogismo Demonstrativo — Do silogismo demonstrativo.

7.      De Subalternatione et Scientiis Subordinatis — Da subalternação e das ciências subordinadas.

8.      De Demonstratione Propter Quid et Quia — Da demonstração “por que” e “que”.

9.      De Causis Demonstrationis — Das causas da demonstração.

10.  De Ordine Demonstrationis et Scientiae — Da ordem da demonstração e da ciência.

11.  Conclusio Generalis — Conclusão geral sobre a estrutura da demonstração.


LIBER SECUNDUS — DE ORDINE SCIENTIARUM ET GRADIBUS INTELLECTUS

(Segundo Livro — Sobre a ordem das ciências e os graus do intelecto)

1.      De Scientia et Intellectu — Da relação entre ciência e intelecto.

2.      De Sensu et Experientia — Do sentido e da experiência.

3.      De Memoria et Arte — Da memória e da arte.

4.      De Intellectu Agente et Possibili — Do intelecto agente e do intelecto possível.

5.      De Ascensu a Sensibilibus ad Intelligibilia — Da ascensão do sensível ao inteligível.

6.      De Ordine Scientiarum — Da ordem das ciências.

7.      De Fine Scientiae — Do fim da ciência.

8.      Conclusio Generalis — Conclusão geral sobre o saber e sua perfeição.


SUMMARIUM

Este tratado complementa os Analíticos Anteriores:
— enquanto os anteriores tratam da forma do raciocínio,
— os posteriores tratam da substância do conhecimento.

A mente humana é conduzida, aqui, da lógica à epistemologia:
do
como se demonstra ao por que e em que consiste a demonstração.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT PRIMUM — DE SCIENTIAE DEFINITIONE ET DIFFERENTIA

(Capítulo Primeiro — Da Definição e da Diferença da Ciência)

col. 400B–405A (Migne, Tomus LXIV)

Toda doutrina, diz Aristóteles, começa pela definição de seu objeto.
Assim, antes de investigar a demonstração, é preciso saber o que é a ciência.
Pois aquele que ignora o que busca, anda em círculo como quem procura um caminho no escuro.

A ciência (scientia) é o conhecimento certo e necessário, fundado nas causas primeiras e universais.
O saber que não se apoia em tais causas é crença ou opinião, não ciência.

Boécio explica:
“A ciência é a posse firme da verdade pela razão que a demonstrou.”


I. De Definitione Scientiae

(Da definição da ciência)

Aristóteles define a ciência como “hábito do intelecto demonstrativo”,
isto é, disposição estável da mente pela qual o verdadeiro é conhecido pelas causas.

Essa definição contém três notas:
hábito, porque a ciência não é ato momentâneo, mas disposição permanente;
intelecto demonstrativo, porque nasce da razão iluminada pelas causas;
verdadeiro pelas causas, porque se distingue da simples experiência, que conhece os efeitos sem compreender o porquê.

Portanto, a ciência é o estado do intelecto que conhece as coisas na ordem de suas causas e não apenas no acontecimento de seus efeitos.

Boécio observa:
“Saber é ver o porquê naquilo que é; é enxergar a necessidade no meio do devir.”


II. De Differentiis Scientiae et Opinionis

(Das diferenças entre ciência e opinião)

A opinião é uma adesão instável do espírito ao provável;
a ciência é uma adesão firme ao necessário.

A opinião pode ser verdadeira, mas não é ciência,
porque o motivo pelo qual se crê não é a razão demonstrativa, mas a aparência ou a persuasão.

A ciência é certa porque o intelecto, conhecendo as causas,
vê que não pode ser de outro modo o que conhece.

Aristóteles distingue:
— a
opinio se funda no acaso e muda com o tempo;
— a
scientia se funda na causa e permanece imóvel.

Boécio acrescenta:
“A opinião é filha da experiência e mãe da dúvida;
a ciência é filha da demonstração e mãe da certeza.”


III. De Relatione ad Fidem

(Da relação da ciência com a fé)

A fé (fides) se assemelha à ciência quanto à firmeza,
mas difere quanto à origem e ao objeto.

Pois a fé crê sem ver;
a ciência vê sem crer;
e ambas procedem do mesmo princípio, que é a verdade, mas por vias diversas.

A fé pertence à vontade que confia;
a ciência, ao intelecto que demonstra.

Assim, a fé é superior na origem — porque provém da revelação —
e a ciência é superior no modo — porque procede pela razão.

Boécio comenta:
“O que a fé contempla nas trevas, a ciência o toca na luz;
mas ambas se encontram no mesmo sol.”


IV. De Objecto Scientiae

(Do objeto da ciência)

O objeto da ciência é o necessário e universal.
O necessário, porque não pode ser de outro modo;
o universal, porque se aplica a todos os casos semelhantes.

A ciência não versa sobre o singular, pois o singular é contingente;
nem sobre o acidental, pois o acidental não é causa.

Por isso, diz Aristóteles:
“A ciência trata do que é sempre e do mesmo modo.”

A alma humana, enquanto raciocina, busca o universal nas coisas mutáveis;
quando o encontra, então possui ciência.

Boécio escreve:
“O universal é o espelho da eternidade nas águas do tempo.”

Assim, toda ciência é um esforço da razão para fixar o que é imutável no fluxo do mundo sensível.


V. De Divisione Scientiae

(Da divisão da ciência)

A ciência se divide segundo a diversidade dos objetos:
— as teoréticas, que buscam a verdade (física, matemática, metafísica);
— as práticas, que buscam o bem (ética, política, economia);
— as produtivas, que buscam a utilidade (artes e técnicas).

Todas derivam do mesmo princípio racional,
mas diferem quanto ao fim e ao modo do saber.

A ciência teorética é mais alta,
porque visa o necessário e imutável.
As demais são dignas enquanto ordenadas a ela,
pois toda arte e toda ação têm valor quando conduzem à contemplação.

Boécio comenta:
“O artesão imita a forma;
o político ordena os atos;
o filósofo contempla o ser.”

E conclui:
“Quando todas as ciências retornam à contemplação, o saber humano toca seu fim natural: a semelhança com Deus.”


Conclusio Sectionis
(col. 405A)

Conclui-se que a ciência é o estado firme do intelecto na verdade,
a qual é possuída pelas causas.
Diferencia-se da opinião pela necessidade,
da fé pelo modo,
e da arte pelo fim.

A opinião diz: “pode ser”;
a fé diz: “é, ainda que eu não veja”;
a ciência diz: “é, e eu vejo por que é.”

Por isso, Aristóteles a chama “hábito do intelecto demonstrativo”,
e Boécio, “repouso luminoso da mente na razão das coisas”.

E como o sol não brilha para si, mas para o mundo,
assim a ciência, que é luz na alma, reflete no universo a ordem do Ser.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT SECUNDUM — DE OPINIONIS ET FIDEI DIVERSITATE

(Capítulo Segundo — Da Diferença entre a Opinião e a Fé)

col. 405A–410C (Migne, Tomus LXIV)

A alma humana, em seu movimento natural de busca pela verdade,
não chega de imediato à ciência.
Antes dela, há dois estados intermediários:
a opinião (
opinio) e a (fides).
Ambas participam da verdade, mas de modo imperfeito e diverso.

Aristóteles distingue:
— a opinião procede da razão conjecturante;
— a fé, da razão obediente;
— a ciência, da razão demonstrativa.

Boécio comenta:
“A fé é uma certeza sem visão;
a opinião, uma visão sem certeza.”


I. De Origine Opinionis

(Da origem da opinião)

A opinião nasce do contato entre a imaginação e o intelecto.
Quando a alma, vendo o que é sensível, tenta julgar o invisível,
forma juízos incertos que têm aparência de verdade, mas carecem de demonstração.

A opinião pertence à região intermediária entre a ignorância e a ciência.
É mais nobre que a dúvida, porque afirma;
mas é inferior à ciência, porque não demonstra.

Boécio escreve:
“A opinião é a fé do ignorante.”

Pois quem opina quer conhecer, mas ainda não vê;
acredita porque quer compreender, mas ainda não toca a razão das causas.

A opinião é, portanto, o primeiro movimento do espírito em direção à verdade —
um eco da luz na sombra do entendimento.

Aristóteles observa que o homem prudente deve opinar com modéstia,
como quem segura uma tocha trêmula no meio da noite.


II. De Natura Fidei

(Da natureza da fé)

A é o assentimento firme do espírito àquilo que ultrapassa a razão.
É o início da visão intelectual, mas ainda sem a posse do objeto.

A fé pertence à vontade mais que ao intelecto,
porque sua firmeza vem do amor à verdade, não da demonstração dela.

Boécio distingue:
— na opinião, o intelecto busca a causa;
— na fé, o intelecto descansa na autoridade;
— na ciência, o intelecto vê por si mesmo.

Assim, a fé é um repouso na palavra divina ou no testemunho que participa da verdade.
Por isso, é firme, ainda que sem prova;
e santa, ainda que sem demonstração.

“A fé”, escreve Boécio, “é o olho que, não podendo ver o sol, crê na luz porque sente seu calor.”

A fé é, portanto, uma certeza da alma movida por amor à verdade,
e não pelo cálculo das causas.


III. De Differentia inter Opinionem et Fidem

(Da diferença entre a opinião e a fé)

A diferença principal está no fundamento:
— a opinião se apoia em razões humanas e incertas;
— a fé, em autoridade divina ou racional superior.

A opinião pode variar conforme o tempo, o lugar e a persuasão;
a fé é constante, porque seu princípio é eterno.

A opinião nasce do raciocínio;
a fé, da confiança.

A opinião é móvel, a fé é imóvel.
A opinião quer saber;
a fé sabe que será mostrado.

Por isso, Aristóteles diz que a fé está mais próxima da ciência do que da opinião,
porque ambas possuem certeza, ainda que por causas diferentes.

Boécio comenta:
“A fé é o pressentimento da ciência eterna;
a opinião, o murmúrio da ignorância racional.”

E acrescenta:
“A fé é um dom da graça; a opinião, um trabalho da razão.”


IV. De Ordine inter Opinionem, Fidem et Scientiam

(Da ordem entre a opinião, a fé e a ciência)

A alma progride na verdade por três degraus:
— o primeiro é a opinião, que conjectura;
— o segundo, a , que crê;
— o terceiro, a ciência, que demonstra.

No primeiro, o homem ainda busca;
no segundo, começa a encontrar;
no terceiro, repousa.

A opinião pertence à infância da mente;
a fé, à sua juventude;
a ciência, à maturidade.

Assim, a verdade é uma escada que a alma sobe com o tempo:
a opinião é o degrau do possível,
a fé é o degrau do crido,
a ciência é o degrau do sabido.

Boécio escreve:
“Quem não passa da opinião permanece criança;
quem vive da fé é homem;
quem alcança a ciência é semelhante aos deuses.”


V. De Relatione Fidei ad Scientiam

(Da relação da fé com a ciência)

Embora distintas, a fé e a ciência não se opõem.
Ambas se ordenam à verdade, e ambas vêm de Deus.

A fé prepara o caminho da ciência,
pois a alma só busca compreender aquilo que primeiro acreditou possível.

Aristóteles diz: “Não se investiga senão o que se crê ser.”
E Boécio comenta: “A fé é a raiz da ciência, como o amor é a raiz da sabedoria.”

Por isso, a fé não é contrária à razão, mas sua fonte e seu impulso.
A razão, ao demonstrar, realiza o que a fé já afirmara.

O conflito entre ambas nasce apenas quando o homem as separa,
esquecendo que a verdade é una, e que tanto a razão quanto a revelação são reflexos do mesmo Logos.

Boécio conclui:
“A fé é o início do caminho;
a ciência, o passo firme;
a sabedoria, a chegada.”


Conclusio Sectionis
(col. 410C)

Conclui-se que a fé é o elo entre o sensível e o inteligível,
entre o humano e o divino.

A opinião é sombra, a fé é aurora, a ciência é dia.

A fé não demonstra, mas garante;
a ciência não promete, mas mostra;
ambas, porém, caminham na mesma direção —
a da luz que não engana, porque é o próprio ser.

“O homem que crê sem pensar está dormindo;
o que pensa sem crer está desperto mas cego;
o que crê pensando, e pensa crendo, vê.”
(Boethius, De Fide et Ratione)

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT TERTIUM — DE PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Capítulo Terceiro — Dos Princípios da Demonstração)

col. 410C–416A (Migne, Tomus LXIV)

Toda ciência, diz Aristóteles, procede de princípios (principia).
Pois nada se demonstra senão por meio do que é anterior e mais conhecido.
E o princípio é o ponto de partida da demonstração, assim como a causa é o princípio do ser.

A doutrina dos princípios é, portanto, o fundamento de toda ciência,
e ignorar os princípios é ignorar a própria razão do saber.

Boécio comenta:
“Quem não conhece o princípio, conhece as sombras do saber, mas não sua luz.”


I. De Definitione Principii

(Da definição de princípio)

O princípio é aquilo de que algo procede, seja no ser, seja no conhecer.
No ser, é a causa;
no conhecer, é o ponto de partida.

Assim, o princípio do universo é Deus;
o princípio da ciência é o axioma.

Aristóteles chama “princípios” os termos primeiros de que o raciocínio parte,
e “causas” aquilo de que o ser depende.
Por isso, todo princípio lógico tem sua analogia em um princípio ontológico.

Boécio escreve:
“A mente, ao raciocinar, imita o Criador: como o ser nasce da causa, o saber nasce do princípio.”

O princípio é, pois, o elemento primeiro, simples e indemonstrável da demonstração.


II. De Divisione Principiorum

(Da divisão dos princípios)

Os princípios dividem-se em duas espécies:
principia essendi, ou princípios do ser;
principia cognoscendi, ou princípios do conhecer.

Os primeiros são as causas metafísicas;
os segundos, as proposições primeiras da razão.

Do ponto de vista lógico, há também dupla distinção:
— os axiomas universais, que se aplicam a todo raciocínio;
— os princípios próprios, que pertencem a cada ciência particular.

Exemplo de axioma universal: “É impossível que o mesmo seja e não seja.”
Exemplo de princípio próprio: “O todo é maior que a parte” (na geometria).

Boécio comenta:
“O axioma é a voz comum da razão;
o princípio próprio é o canto particular de cada ciência.”

Sem os primeiros, o raciocínio é cego;
sem os segundos, a ciência é muda.


III. De Proprietate Principiorum

(Da propriedade dos princípios)

Os princípios são indemonstráveis, necessários e evidentes por si mesmos.

São indemonstráveis porque toda demonstração depende deles;
necessários, porque sem eles nada pode ser conhecido;
evidentes, porque a mente os reconhece de imediato, sem mediação de prova.

Aristóteles ensina que não se deve pedir demonstração do que é mais evidente que toda prova,
pois quem exige prova do princípio destrói a própria razão da ciência.

Boécio observa:
“Aquele que pede demonstração do princípio é como quem pede luz para ver o sol.”

Assim, os princípios são o limite da demonstração:
para além deles não se pode provar;
aquém deles não se pode saber.


IV. De Origine Principiorum

(Da origem dos princípios)

Os princípios não nascem da experiência, como os fatos,
mas são reconhecidos pela razão iluminada pela experiência.

Pois a experiência mostra o particular,
e a razão, vendo o universal nos particulares, intui o princípio.

Assim, o intelecto agente abstrai da multiplicidade sensível a forma comum,
e dessa forma nasce o conhecimento do universal, que é o princípio da ciência.

Boécio explica:
“A alma, ao olhar os muitos, vê o um que os governa;
e nesse um encontra o princípio de todos.”

O princípio é, portanto, simultaneamente o fim da indução e o começo da demonstração.

A indução (inductio) sobe dos efeitos às causas;
a demonstração (
demonstratio) desce das causas aos efeitos.
Entre ambas está o princípio, que é o ponto em que o saber se torna ciência.


V. De Notione Communi Principiorum

(Da noção comum dos princípios)

Todos os homens, por natureza, conhecem certos princípios,
ainda que de modo confuso e obscuro.

Tais são os chamados loci communes mentis — lugares comuns da mente.
São as sementes da razão,
gravadas no intelecto como vestígios do Verbo criador.

Quando o homem aprende, não cria tais princípios,
mas os reconhece e os ordena.

Boécio escreve:
“Aprender é recordar o que a alma sabia sem saber que sabia.”

Por isso, o ensino não introduz luz, mas desperta a luz adormecida.
O mestre não cria a verdade, mas a chama pelo nome.


VI. De Princípio Supremum

(Do princípio supremo)

Todo princípio finito depende de um princípio superior.
Mas, como a série das causas não pode ir ao infinito,
deve haver um Princípio Primeiro, causa de todas as causas e razão de toda verdade.

Esse princípio supremo é Deus,
em quem o ser e o conhecer coincidem,
pois nele a verdade é o próprio ser e o ser é o próprio conhecer.

Por isso, toda ciência, remontando às causas, tende ao conhecimento divino.
A demonstração humana é, assim, uma imitação parcial da sabedoria eterna.

Boécio conclui:
“Deus é o primeiro princípio do ser e do saber;
todo raciocínio que busca a verdade é, sem o perceber, um movimento para Ele.”


Conclusio Sectionis
(col. 416A)

Conclui-se que os princípios são à razão o que as causas são à natureza.
São o fundamento e o limite de todo conhecimento.

Quem ignora os princípios não pode demonstrar;
quem os nega, destrói o edifício da ciência.

Os princípios universais são as luzes da mente;
os próprios, suas aplicações particulares;
e o primeiro princípio — Deus — é a fonte de toda luz.

Assim, o saber começa na experiência,
ascende ao princípio,
e repousa na causa das causas,
onde o raciocínio humano se torna contemplação.

Finis Capitis Tertii — De Principiis Demonstrationis.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT QUARTUM — DE PROPOSITIONIBUS PER SE NOTIS ET PER ALIUD COGNITIS

(Capítulo Quarto — Das Proposições Conhecidas por Si Mesmas e das Conhecidas por Outro)

col. 416A–421C (Migne, Tomus LXIV)

Toda demonstração se compõe de proposições,
mas nem todas as proposições exigem demonstração.
Há algumas que se conhecem por si mesmas (
per se notae),
e outras que se conhecem por outro (
per aliud cognitae).

A diferença entre ambas é o limite que separa o princípio da prova.

Boécio comenta:
“As proposições conhecidas por si são as janelas da razão;
as conhecidas por outro são as portas pelas quais ela entra.”


I. De Propositionibus per se Notis

(Das proposições conhecidas por si mesmas)

Uma proposição é per se nota quando o predicado está contido na essência do sujeito,
de modo que, ao conhecer o sujeito, o intelecto reconhece imediatamente o predicado.

Exemplo:
— “Todo inteiro é maior que sua parte.”
— “O mesmo não pode ser e não ser ao mesmo tempo.”

Tais verdades não necessitam de prova,
pois são evidentes pela própria definição dos termos.

Aristóteles ensina que essas proposições são as raízes da ciência,
e quem as ignora não pode compreender nada do que delas depende.

Boécio escreve:
“As verdades primeiras são como a luz: não se mostram por outra, mas tudo mostram por si.”

E acrescenta:
“Quem as nega, destrói a razão;
quem as duvida, destrói o discurso;
quem as ignora, destrói a si mesmo.”


II. De Propositionibus per aliud Cognitis

(Das proposições conhecidas por outro)

As proposições per aliud cognitae são aquelas cuja verdade depende de outra proposição anterior.
São, portanto, conclusões que requerem demonstração.

Exemplo:
— “O sol é maior que a terra”,
cuja certeza depende de medições e provas geométricas.

Essas proposições são chamadas demonstráveis,
porque sua evidência é mediata, isto é, adquirida pela razão discursiva.

Boécio explica:
“Conhecer por outro é seguir o rastro da verdade;
conhecer por si é ver o próprio rosto dela.”

O raciocínio humano move-se de uma à outra:
parte do que é conhecido por si para provar o que é conhecido por outro.
Assim, a cadeia da ciência é um encadeamento de evidências mediadas que repousam, em última instância, sobre o que é evidente por si.


III. De Ordine inter Per se Notum et Demonstratum

(Da ordem entre o que é conhecido por si e o que é demonstrado)

A ordem natural do saber começa no evidente por si,
passa pelo evidente por outro,
e retorna, pela demonstração, ao princípio.

Pois toda ciência nasce da intuição dos primeiros princípios
e se completa pela prova de suas consequências.

Aristóteles diz:
“Toda demonstração parte do conhecido por si, e termina no conhecido por outro.”

Boécio comenta:
“Assim como a árvore cresce da raiz ao fruto,
a razão cresce do princípio à conclusão;
mas o fruto contém a semente que o gerou.”

Portanto, o saber é um movimento circular:
começa na evidência, caminha na inferência e repousa novamente na evidência.


IV. De Criterio Propositionum per se Notarum

(Do critério das proposições conhecidas por si)

Para que uma proposição seja conhecida por si, três condições são requeridas:

1.      Que seus termos sejam conhecidos;

2.      Que o predicado esteja contido na definição do sujeito;

3.      Que o intelecto, compreendendo o sujeito, reconheça a conexão necessária.

Assim, “o homem é animal racional” é conhecido por si para quem entende o que é homem e o que é racional;
mas não para quem ignora esses conceitos.

Por isso, diz Boécio, as proposições per se notae são evidentes em si mesmas,
mas não para todos.
O sábio as vê por luz própria;
o ignorante, apenas as ouve.

Boécio escreve:
“A verdade está em si como o fogo em sua chama;
mas nem todo olho pode olhar o fogo.”

Logo, o que é evidente por si não é o mesmo que o que é evidente a todos.


V. De Necessitate Propositionum per se Notarum

(Da necessidade das proposições conhecidas por si)

As proposições per se notae são necessárias,
porque expressam relações universais e imutáveis.

O que é evidente por si não pode ser de outro modo,
pois decorre da própria essência das coisas.

Assim, negar o princípio de não contradição é anular a própria possibilidade de pensar.

Aristóteles afirma:
“Aquele que nega o princípio primeiro não deve ser refutado com argumentos,
mas com a própria existência do discurso que profere.”

Boécio comenta:
“Quem diz que nada é verdadeiro, diz que é verdadeiro que nada é verdadeiro.”

Portanto, as verdades primeiras são invencíveis,
porque são o fundamento da própria fala e do pensamento.


VI. De Usu Propositionum per se Notarum in Demonstratione

(Do uso das proposições conhecidas por si na demonstração)

Toda demonstração parte de proposições per se notae como de causas formais.
Elas são as colunas do edifício do raciocínio.

O silogismo não as prova, mas delas depende.
São o ponto fixo pelo qual o intelecto move o círculo do conhecimento.

Boécio escreve:
“Quem constrói sem princípios edifica no vento;
quem raciocina sem evidência fala com ecos.”

Assim, o papel das proposições per se notae é o de assegurar à razão uma base inabalável,
sem a qual toda ciência seria um fluxo de opiniões.

O que é demonstrado repousa sobre o que não precisa de demonstração.
O que é provado depende do que é evidente.

E toda verdade derivada é um raio que procede da luz dos princípios.


Conclusio Sectionis
(col. 421C)

Conclui-se que as proposições per se notae são as sementes da ciência.
São indemonstráveis, porque são o princípio de toda demonstração;
necessárias, porque exprimem a ordem essencial do ser;
universais, porque se aplicam a todo pensamento racional.

O conhecimento por outro é o movimento da razão;
o conhecimento por si é o repouso da inteligência.

Assim, o primeiro é caminho; o segundo, origem e fim.
A alma que chega à evidência primeira reencontra, em seu próprio intelecto,
o reflexo da luz divina que não se demonstra — porque é o princípio de toda demonstração.

Finis Capitis Quarti — De Propositionibus per se Notis et per Aliud Cognitis.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT QUINTUM — DE MEDIO DEMONSTRATIONIS

(Capítulo Quinto — Do Meio da Demonstração)

col. 421C–426A (Migne, Tomus LXIV)

A demonstração é o discurso que faz ver uma conclusão necessária pelas causas.
Mas, entre as causas e a conclusão, há um meio (
medium),
que é o vínculo lógico pelo qual a mente passa do conhecido ao desconhecido.

Aristóteles chama esse termo médio de causa da demonstração (causa demonstrationis),
e o coloca no centro do silogismo,
pois é ele que liga o sujeito ao predicado pela necessidade da razão.

Boécio comenta:
“O meio é a ponte entre o ser e o saber;
sem ele, o intelecto não passa da sombra à luz.”


I. De Definitione Medii

(Da definição do meio)

O meio da demonstração é aquilo por cujo conhecimento se conhece a conclusão.
Em todo silogismo demonstrativo, há três termos:
— o maior, que é o predicado da conclusão;
— o menor, que é o sujeito da conclusão;
— o médio, que está entre ambos e os une pela necessidade.

Exemplo:
— Todo homem é mortal;
— Todo mortal é corruptível;
— Logo, todo homem é corruptível.

Aqui, o termo mortal é o meio,
pois está contido tanto no sujeito “homem” quanto no predicado “corruptível”.

Boécio explica:
“O meio é o anel do raciocínio: por ele se casam o que se afirma e o que se conclui.”


II. De Officio Medii

(Do ofício do meio)

O meio cumpre duas funções:
demonstrar a conexão necessária entre sujeito e predicado;
revelar a causa pela qual tal conexão é verdadeira.

Por isso, o meio é simultaneamente lógico e ontológico:
lógico, porque é o termo da inferência;
ontológico, porque é a causa do ser conhecido.

Aristóteles ensina que o meio é o que torna a conclusão “porque” (propter quid).
Sem o meio, o intelecto conhece apenas “que é” (
quia est).

Boécio escreve:
“O meio não é mero instrumento da mente, mas o vestígio da causa no discurso.”

Assim, o raciocínio que encontra o meio alcança a razão da coisa;
o que o perde, move-se apenas entre sinais e aparências.


III. De Natura Medii in Scientia

(Da natureza do meio na ciência)

O meio pertence à ordem da necessidade.
Pois se o meio é verdadeiro e necessário,
também a conclusão o será.

A certeza da ciência depende, portanto, da evidência do meio.

O meio é, em relação à demonstração, o que o coração é ao corpo:
dele procede o movimento da vida lógica.

Boécio comenta:
“Assim como o coração faz circular o sangue, o meio faz circular a verdade.”

A ciência é firme quando o meio é conhecido;
é incerta quando o meio é suposto.

Por isso, a ignorância do meio gera opinião,
e a posse do meio gera ciência.


IV. De Inventionis Medii Via

(Do caminho da invenção do meio)

Encontrar o meio é o trabalho mais nobre da razão.
Pois o intelecto não cria o meio, mas o descobre,
procurando entre as causas aquela que explica o efeito.

A invenção do meio é dupla:
— pela indução, quando se sobe dos efeitos às causas;
— pela análise, quando se desce das causas aos efeitos.

A indução fornece o meio à ciência nascente;
a análise o emprega na ciência perfeita.

Boécio explica:
“A indução encontra o meio; a demonstração o usa.”

E acrescenta:
“O sábio é aquele que transforma a experiência em meio e o meio em luz.”


V. De Duplici Medio: Formali et Causali

(Do duplo meio: formal e causal)

Há dois modos de meio na demonstração:
— o formal, que liga os termos pela forma lógica do raciocínio;
— o causal, que liga as naturezas pela dependência ontológica.

O meio formal é o próprio termo médio;
o meio causal é a causa pela qual o termo médio é verdadeiro.

Assim, na proposição “o fogo aquece”,
o meio formal é a estrutura do silogismo,
e o meio causal é a natureza ígnea, princípio do calor.

Boécio comenta:
“O meio formal é o esqueleto da verdade;
o meio causal é o sangue que a anima.”

A ciência perfeita não se contenta com o meio formal:
busca o causal, porque só este revela o
propter quid.


VI. De Medio Demonstrationis et Medio Essendi

(Do meio da demonstração e do meio do ser)

O meio da demonstração corresponde ao meio do ser.
Pois assim como o ser se move das causas aos efeitos,
o raciocínio se move do meio às conclusões.

A ordem lógica é imagem da ordem ontológica:
— o meio na lógica é o termo médio;
— o meio no ser é a causa que faz existir.

Por isso, o filósofo, ao demonstrar, participa do ato criador:
ele refaz, em pensamento, o caminho pelo qual o ser se produz.

Boécio escreve:
“Demonstrar é criar na mente a ordem pela qual o ser se faz no mundo.”

Assim, toda ciência é uma imitação da sabedoria divina,
e o meio é o ponto em que o discurso humano toca a causalidade eterna.


VII. De Defectu Medii et Erroris Origine

(Da falta do meio e da origem do erro)

O erro nasce quando a razão julga sem conhecer o meio.
Pois, ignorando a causa, liga os termos por mera aparência de conexão.

Tal é o raciocínio sofístico:
parece demonstrar, mas não o faz,
porque o meio é apenas verbal, não causal.

Boécio observa:
“O sofista é o arquiteto do vazio: constrói sem meio, edifica sem causa.”

A verdade, ao contrário, é sólida porque tem meio.
O meio é a espinha dorsal da ciência:
se o quebram, todo o corpo do saber desaba.


Conclusio Sectionis
(col. 426A)

Conclui-se que o meio é a essência da demonstração e a via da ciência.
Ele une o que o intelecto separa e esclarece o que o sentido confunde.

Quem conhece o meio conhece a causa;
quem conhece a causa conhece a verdade.

Assim, o meio é o sacramento da razão:
invisível em si, mas presente em toda luz do saber.

Finis Capitis Quinti — De Medio Demonstrationis.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT SEXTUM — DE SYLLOGISMO DEMONSTRATIVO

(Capítulo Sexto — Do Silogismo Demonstrativo)

col. 426A–430C (Migne, Tomus LXIV)

Tendo tratado do meio, cabe agora examinar o silogismo demonstrativo,
que é o instrumento próprio da ciência e a forma perfeita do raciocínio.
Pois, como o corpo é o veículo da alma,
assim o silogismo é o veículo do intelecto.

Aristóteles define o silogismo como “discurso em que, dadas certas coisas, segue-se necessariamente outra delas.”
Quando o que se segue é conhecido
per causam e com necessidade, o silogismo é demonstrativo (syllogismus demonstrativus).

Boécio comenta:
“O silogismo demonstrativo é o sacramento da razão:
nele, a verdade desce da causa ao efeito como a luz do sol à terra.”


I. De Definitione Syllogismi Demonstrativi

(Da definição do silogismo demonstrativo)

O silogismo demonstrativo é aquele em que as premissas são verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas e causas da conclusão.

Verdadeiras, porque derivam do ser;
Primeiras, porque não dependem de outras;
Imediatas, porque não exigem mediação de prova;
Mais conhecidas, porque são evidentes à razão;
Causais, porque explicam a necessidade do resultado.

Assim, o silogismo demonstrativo é o ato em que o intelecto imita o movimento da causa,
fazendo descer o efeito a partir do princípio.

Boécio escreve:
“Demonstrar é pensar como o ser age.”


II. De Differentiis Syllogismi Demonstrativi

(Das diferenças do silogismo demonstrativo)

O silogismo demonstrativo difere do dialético e do sofístico,
não pela forma, mas pela matéria e pelo fim.

— O silogismo dialético parte do provável,
e visa à persuasão.
— O silogismo sofístico parte do falso,
e visa ao engano.
— O silogismo demonstrativo parte do verdadeiro,
e visa à ciência.

Aristóteles diz: “A demonstração é um silogismo científico.”
E Boécio comenta:
“O dialético disputa; o sofista engana; o demonstrador ensina.”

Assim, a diferença essencial não está no raciocínio em si,
mas no valor das premissas e na finalidade do discurso.


III. De Conditionibus Syllogismi Demonstrativi

(Das condições do silogismo demonstrativo)

Para que o silogismo seja demonstrativo,
são requeridas seis condições:

1.      Que as premissas sejam verdadeiras;

2.      Que sejam necessárias;

3.      Que sejam universais;

4.      Que sejam anteriores à conclusão;

5.      Que sejam causas dela;

6.      Que sejam mais conhecidas pela natureza, ainda que menos pela sensação.

Pois o que é primeiro na natureza é o que dá razão ao resto;
e a ciência, sendo conhecimento das causas, deve proceder do mais inteligível ao menos.

Boécio observa:
“O silogismo científico começa onde o sentido termina e a causa começa.”

E acrescenta:
“As premissas são as asas da conclusão;
se estão partidas, o voo da ciência cai.”


IV. De Necessitate in Syllogismo Demonstrativo

(Da necessidade no silogismo demonstrativo)

A necessidade é o selo da demonstração.
Pois, se as premissas são necessárias, também o será a conclusão.

A necessidade pode ser:
absoluta, quando deriva da essência;
condicional, quando depende de uma hipótese verdadeira.

Assim, na proposição “Todo homem é mortal”, a necessidade é absoluta,
porque a corrupção pertence à natureza do corpo.
Já em “Se o sol se levanta, há dia”, a necessidade é condicional,
porque depende do estado da condição antecedente.

Boécio comenta:
“A necessidade absoluta é a verdade do ser;
a condicional é a verdade da relação.”

O silogismo demonstrativo, para ser ciência, exige a necessidade absoluta,
porque só o que é imutável e universal pode ser conhecido com certeza.


V. De Ordine in Syllogismo Demonstrativo

(Da ordem no silogismo demonstrativo)

A ordem do silogismo é espelho da ordem do ser.
Assim como o ser procede da causa ao efeito,
o silogismo procede do princípio à conclusão.

A primeira premissa representa o universal;
a segunda, o particular;
e a conclusão, a união de ambos na razão.

O meio é o laço,
e a estrutura do silogismo é o reflexo da proporção que reina nas coisas.

Boécio escreve:
“A ordem do discurso é a harmonia da verdade;
e quem perturba essa ordem desfigura o ser.”

Por isso, o erro lógico é também um erro metafísico:
corrompe não apenas o argumento, mas a imagem do mundo que o intelecto forma.


VI. De Fini Syllogismi Demonstrativi

(Do fim do silogismo demonstrativo)

O fim do silogismo demonstrativo é a ciência (scientia).
Pois a ciência nasce quando o intelecto reconhece, pela necessidade do meio,
a conexão entre causa e efeito.

Assim, o silogismo é o caminho da razão,
e a ciência é o repouso no fim do caminho.

O discurso termina no saber,
como o movimento termina no repouso.

Boécio comenta:
“O silogismo é a estrada da inteligência;
a ciência, a morada em que ela descansa.”

E conclui:
“Toda mente que conhece pela demonstração participa, na medida de sua luz,
da ordem mesma do Logos eterno.”


Conclusio Sectionis
(col. 430C)

Conclui-se que o silogismo demonstrativo é a forma perfeita do raciocínio,
porque nele a verdade das premissas se converte em luz da conclusão.

O raciocínio inferior opina; o superior demonstra.
A opinião se move no provável; a demonstração, no necessário.

Por isso, o silogismo demonstrativo é o instrumento do saber,
e toda ciência que o usa corretamente torna-se imagem da mente divina,
que, sem erro nem discurso, conhece tudo no Uno e pelo Uno.

Finis Capitis Sexti — De Syllogismo Demonstrativo.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT SEPTIMUM — DE SUBALTERNATIONE ET SCIENTIIS SUBORDINATIS

(Capítulo Sétimo — Da Subalternação e das Ciências Subordinadas)

col. 430C–435A (Migne, Tomus LXIV)

Tendo sido exposta a natureza do silogismo demonstrativo,
é necessário tratar agora da subalternação (
subalternatio),
pela qual uma ciência depende de outra como o discípulo do mestre.

Pois assim como nas coisas há ordem entre as causas e os efeitos,
também nas ciências há hierarquia entre as que ensinam e as que aprendem.

Aristóteles chama “subalterna” aquela ciência que recebe seus princípios de outra superior;
e “subalternante”, aquela que fornece tais princípios.

Boécio comenta:
“Entre as ciências há o mesmo vínculo que entre o intelecto e o sentido:
uma vê, a outra crê.”


I. De Definitione Subalternationis

(Da definição de subalternação)

A subalternação é a dependência de uma ciência em relação a outra,
quando a inferior não demonstra seus princípios,
mas os toma como concedidos pela superior.

Exemplo:
— A óptica é subalterna à geometria,
porque demonstra as propriedades da visão com base em princípios geométricos.

— A música é subalterna à aritmética,
porque explica a proporção dos sons pela proporção dos números.

Assim, a ciência inferior é iluminada pela superior,
e participa de sua certeza como a lua participa da luz do sol.

Boécio escreve:
“A subalternação é o reflexo da ordem divina,
onde toda luz se comunica de cima para baixo,
sem divisão nem perda, mas por participação.”


II. De Scientiis Subalternantibus et Subalternatis

(Das ciências subalternantes e subalternadas)

Há, portanto, dois gêneros de ciência:
— as subalternantes, que possuem princípios próprios e os concedem a outras;
— as subalternadas, que recebem tais princípios e deles fazem uso.

A ciência subalternante é mais universal e primeira;
a subalternada, mais particular e dependente.

Aristóteles distingue-as como o mestre e o discípulo:
o mestre conhece a causa, o discípulo conhece o efeito.

Boécio comenta:
“O subalternante contempla o porquê;
o subalternado descreve o que é.”

E acrescenta:
“Toda ciência que repousa sobre outra é verdadeira apenas enquanto a superior o é.”

Por isso, errando a ciência primeira, todas as que dela dependem erram com ela.


III. De Communicatione Principiorum inter Scientias

(Da comunicação dos princípios entre as ciências)

Os princípios das ciências subalternantes são universais e aplicáveis a muitas ordens;
os das subalternadas são derivados e adaptados a uma matéria particular.

Assim, a geometria fornece à mecânica os princípios de proporção e figura;
a aritmética, à música, as razões de número e harmonia.

O universal ilumina o particular;
o particular manifesta o universal.

Boécio escreve:
“O princípio que desce de uma ciência a outra é como o rio que, saindo da montanha,
dá vida aos vales sem perder a pureza de sua fonte.”

E conclui:
“Toda ciência superior contém virtualmente as inferiores,
assim como o ser contém as suas formas e a mente divina contém todos os modos de saber.”


IV. De Necessitate Subalternationis

(Da necessidade da subalternação)

A subalternação é necessária porque o conhecimento humano é limitado.
Nenhuma ciência, por si, basta ao todo do saber;
cada uma precisa de outra que lhe forneça luz.

Assim, as ciências se encadeiam como degraus:
a matemática eleva a física,
a física prepara a metafísica,
e a metafísica repousa na teologia.

Boécio comenta:
“A escada do saber é uma hierarquia de luzes;
e quem tenta subir sem ordem cai na confusão.”

Portanto, a subalternação não é sinal de imperfeição,
mas de ordem e harmonia no todo do saber.

A ciência inferior participa da verdade na medida de sua subordinação,
e quanto mais fiel for ao princípio superior,
mais pura será sua demonstração.


V. De Termino Subalternationis

(Do termo da subalternação)

Como não é possível proceder ao infinito na série das ciências,
deve haver um termo último,
que não receba princípios de outra,
mas de si mesma e de Deus.

Essa ciência primeira é a metafísica,
que investiga o ser enquanto ser,
e, acima dela, a teologia, que considera o próprio Princípio das causas.

Boécio escreve:
“Todas as ciências são rios; a teologia é o mar onde terminam.”

Assim, o movimento do saber é descendente na origem e ascendente no retorno:
das causas às aplicações e das aplicações ao primeiro motor.

A subalternação termina, pois, na sabedoria,
onde toda ciência se unifica em contemplação.


Conclusio Sectionis
(col. 435A)

Conclui-se que a subalternação é a imagem da ordem do universo:
um encadeamento de luzes em que as ciências inferiores recebem das superiores
e todas procedem de um mesmo princípio.

A ignorância dessa ordem gera confusão;
o reconhecimento dela gera sabedoria.

Quem compreende a hierarquia das ciências entende que não há ruptura no saber,
mas gradação.

E como no ser tudo flui do Uno,
assim no conhecer tudo flui da ciência divina.

Finis Capitis Septimi — De Subalternatione et Scientiis Subordinatis.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT OCTAVUM — DE SCIENTIA PROPTER QUID ET QUIA

(Capítulo Oitavo — Da Ciência do “Porquê” e do “Que”)

col. 435A–439C (Migne, Tomus LXIV)

Toda ciência é conhecimento da verdade pelas causas.
Mas há duas maneiras de conhecer:
— saber que algo é (
quia est),
— saber por que é (
propter quid).

A primeira é o conhecimento do fato;
a segunda, o conhecimento da causa.

Aristóteles ensina que a ciência perfeita é do propter quid;
a imperfeita, do
quia.

Boécio comenta:
“Saber que algo é, é tocar a superfície da verdade;
saber por que é, é penetrar-lhe o coração.”


I. De Distinctione inter Quia et Propter Quid

(Da distinção entre o “que” e o “porquê”)

O conhecimento quia nasce da experiência e da observação dos efeitos.
O conhecimento
propter quid nasce da razão e da compreensão das causas.

Ver que o sol ilumina é saber quia;
saber que ele ilumina porque é fonte de luz, é saber
propter quid.

O primeiro é o saber do sentido;
o segundo, o saber do intelecto.

Por isso, Aristóteles diz que o saber quia é humano,
e o
propter quid, quase divino.

Boécio explica:
“O homem comum vê que a pedra cai;
o filósofo vê que cai porque busca o centro.”

Assim, o quia é a ciência dos fenômenos;
o
propter quid, a ciência das razões.


II. De Ordine inter Utrumque

(Da ordem entre ambos)

O quia precede o propter quid em nosso conhecimento,
mas o
propter quid é anterior por natureza.

Pois primeiro conhecemos os efeitos pelos sentidos,
e depois buscamos a causa pela razão.

Boécio observa:
“No caminho do saber, o sentido caminha à frente,
mas a razão chega primeiro ao fim.”

A ordem do aprender é ascendente,
mas a ordem da verdade é descendente.

Assim, o homem começa pelo quia e termina no propter quid,
como quem sobe a montanha pela sombra para ver o sol.


III. De Exemplis utriusque Scientiae

(De exemplos de cada tipo de ciência)

Saber que os eclipses existem é conhecimento quia;
saber que se produzem pela interposição da terra entre o sol e a lua é
propter quid.

Saber que o fogo aquece é quia;
saber que aquece porque sua natureza é ativa e sutil é
propter quid.

Saber que os seres vivos morrem é quia;
saber que morrem porque a matéria é corruptível é
propter quid.

Assim, toda ciência começa na percepção dos fatos
e se completa na inteligência das causas.

Boécio escreve:
“O sentido mostra a sombra; a razão mostra a forma.
O primeiro crê, o segundo entende.”


IV. De Imperfectione Scientiae Quia

(Da imperfeição da ciência do “que”)

A ciência quia é imperfeita porque não atinge a razão das coisas.
Conhece o fato, mas ignora o fundamento.

Por isso, é incerta e sujeita a erro,
pois quem não conhece a causa não conhece a necessidade.

Aristóteles adverte:
“Quem conhece apenas o
quia sabe que é, mas não sabe se deve ser.”

Boécio comenta:
“O saber do
quia é o saber da noite;
o saber do
propter quid, o saber do dia.”

O primeiro está sujeito à opinião;
o segundo, à ciência.

Pois a opinião nasce da aparência,
e a ciência, da causa.


V. De Perfectione Scientiae Propter Quid

(Da perfeição da ciência do “porquê”)

A ciência propter quid é perfeita,
porque vê o nexo da causa com o efeito,
e compreende que não pode ser de outro modo.

Saber propter quid é conhecer a verdade na razão de sua necessidade.

Assim, não basta saber que o raio ilumina,
mas por que ilumina: pela sua natureza ígnea e pela tensão do ar.

A ciência propter quid é o termo do conhecimento,
porque nela o intelecto repousa na causa e vê o efeito como necessário.

Boécio escreve:
“A alma que atinge o
propter quid descansa;
pois não busca mais o que é, mas o que o faz ser.”

E acrescenta:
“Todo saber que termina na causa é sabedoria.”


VI. De Relatione inter Quia et Propter Quid

(Da relação entre o “que” e o “porquê”)

O quia conduz ao propter quid,
assim como o efeito conduz à causa.

O propter quid confirma o quia,
assim como a causa sustenta o efeito.

Um não se opõe ao outro,
mas se completam como o início e o fim do mesmo movimento intelectual.

O quia é o degrau inferior do saber;
o
propter quid, o degrau superior.

Por isso, Aristóteles compara a ciência humana ao movimento circular:
começa no sensível, sobe à causa e retorna ao sensível iluminado.

Boécio comenta:
“O
quia é o vestígio da verdade;
o
propter quid, sua imagem.”

E conclui:
“Todo aquele que passa do
quia ao propter quid
transforma a experiência em sabedoria e o fato em contemplação.”


Conclusio Sectionis
(col. 439C)

Conclui-se que há dois modos de ciência:
— um que vê a existência do fato (
quia),
— outro que vê a razão de ser (
propter quid).

O primeiro é a via dos sentidos;
o segundo, a via da inteligência.

O primeiro é movimento; o segundo, repouso.
O primeiro é humano; o segundo, divino.

Assim, toda filosofia é uma ascensão do quia ao propter quid:
da aparência à essência,
do efeito à causa,
do mundo à sabedoria eterna.

Finis Capitis Octavi — De Scientia Propter Quid et Quia.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT NONUM — DE CONVERSIONE DEMONSTRATIONUM

(Capítulo Nono — Da Conversão das Demonstrações)

col. 439C–445A (Migne, Tomus LXIV)

Tendo sido exposta a distinção entre o quia e o propter quid,
resta tratar da conversão das demonstrações (
conversio demonstrationum),
pela qual se reconhece quando uma mesma verdade pode ser provada de modos diversos.

Pois o intelecto humano, contemplando o nexo das causas e efeitos,
descobre que às vezes é possível subir da causa ao efeito (
propter quid),
e às vezes descer do efeito à causa (
quia).

Aristóteles chama “conversão da demonstração” a passagem de uma à outra,
quando o raciocínio conserva a verdade,
ainda que altere a direção do discurso.

Boécio comenta:
“A conversão é o retorno da luz ao seu princípio.”


I. De Definitione Conversionis Demonstrationis

(Da definição da conversão da demonstração)

A conversão é a transposição legítima da demonstração,
pela qual o que antes era demonstrado como efeito,
passa a ser princípio de demonstração,
ou o que antes era princípio se torna coisa demonstrada.

Tal conversão é lícita somente quando o nexo entre os dois termos é necessário e recíproco,
de modo que um implique o outro.

Exemplo:
— Se “o ar está iluminado porque o sol brilha”,
também é verdadeiro dizer “o sol brilha, portanto o ar está iluminado”.

Mas se a conexão não for recíproca,
a conversão é falsa.

Boécio escreve:
“A conversão é o espelho da demonstração:
mostra a mesma verdade, mas em outro ângulo.”


II. De Conversione Propter Quid in Quia

(Da conversão do “porquê” em “que”)

Às vezes, uma demonstração que procede da causa ao efeito
pode ser convertida para mostrar o efeito como sinal da causa.

Por exemplo:
— Saber que há fogo porque há fumaça é uma demonstração
quia;
— Saber que há fumaça porque há fogo é uma demonstração
propter quid.

A segunda é mais perfeita,
mas a primeira pode ser legítima,
se a relação entre causa e efeito é constante.

Boécio observa:
“A conversão descendente é como o reflexo do sol na água:
mostra o mesmo brilho, mas não a mesma pureza.”

Portanto, do propter quid pode nascer o quia,
e do
quia, o propter quid,
contanto que ambos se sustentem no nexo necessário.


III. De Conversione Quia in Propter Quid

(Da conversão do “que” em “porquê”)

Quando o intelecto, partindo da observação dos efeitos,
descobre a causa que os produz,
converte uma demonstração empírica em científica.

Por exemplo:
— Ver que os planetas se movem é
quia;
— Conhecer que se movem por influência das esferas superiores é
propter quid.

Essa conversão é o movimento natural da ciência,
pela qual a alma sobe do sensível ao inteligível.

Boécio comenta:
“O que o olho vê, o intelecto converte em causa.”

A conversão do quia em propter quid é o verdadeiro progresso do saber,
porque transforma a experiência em sabedoria.


IV. De Limite Conversionis

(Do limite da conversão)

Nem toda demonstração admite conversão.
Pois a conversão só é possível quando o vínculo entre causa e efeito é necessário,
e não meramente acidental.

Assim, da proposição “o homem ri porque é racional”,
não se pode converter “é racional porque ri”,
pois o riso é acidente do racional.

A conversão exige reciprocidade:
quando uma verdade segue da outra e a outra da primeira.

Aristóteles adverte:
“Converter o acidental é dissolver a razão.”

Boécio reforça:
“O verdadeiro filósofo distingue entre o que é por si e o que é por acidente,
pois o primeiro se converte, o segundo se confunde.”


V. De Conversione Demonstrationis ad Subalternas Scientias

(Da conversão da demonstração nas ciências subordinadas)

Quando uma ciência inferior toma seus princípios de outra superior,
a conversão pode ocorrer dentro da mesma hierarquia,
mas não além dela.

Assim, a mecânica pode converter demonstrações da geometria,
mas não da metafísica.

Pois cada ciência tem seu domínio próprio,
e a conversão só é legítima quando permanece dentro dos limites de seu gênero.

Boécio escreve:
“Converter além da ordem é violar a hierarquia da luz.”

E acrescenta:
“O físico que quer converter teologicamente é como o cego que julga o sol pelo tato.”

A verdadeira conversão é aquela que respeita a ordem do ser e do saber.


VI. De Fructu Conversionis

(Do fruto da conversão)

O fruto da conversão é a ampliação da ciência.
Pois o intelecto, conhecendo uma verdade sob duplo aspecto — causa e efeito —,
passa de um saber parcial a um saber pleno.

A demonstração convertida faz a mente ver a verdade de dois modos:
pela luz que desce e pela luz que sobe.

Boécio comenta:
“A mente que converte a demonstração dobra a luz sem multiplicar o sol.”

Assim, a conversão é o coroamento da razão,
que reconhece na diversidade dos caminhos
a unidade da verdade.


Conclusio Sectionis
(col. 445A)

Conclui-se que a conversão das demonstrações é o retorno do saber a si mesmo.
Quando o intelecto desce da causa ao efeito, conhece a necessidade;
quando sobe do efeito à causa, conhece a origem.

Ambas as vias são legítimas,
contanto que a luz da razão permaneça a mesma.

O quia e o propter quid são os dois olhos da ciência:
o primeiro vê a superfície das coisas;
o segundo, a profundidade delas;
mas a conversão os une num só olhar.

Boécio conclui:
“O espírito que compreende o ir e o voltar da demonstração
participa do movimento eterno da sabedoria divina,
onde toda causa é efeito e todo efeito é causa.”

Finis Capitis Noni — De Conversione Demonstrationum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DECIMUM — DE DIFFERENTIIS DEMONSTRATIONUM

(Capítulo Décimo — Das Diferenças das Demonstrações)

col. 445A–450C (Migne, Tomus LXIV)

Tendo sido explicada a conversão das demonstrações,
cumpre agora tratar das suas diferenças (
differentiae demonstrationum),
pelas quais se distingue o modo, a força e a dignidade de cada uma.

Pois nem toda demonstração é da mesma espécie ou conduz à mesma certeza.
Há algumas que revelam a essência,
outras que apenas confirmam o fato.

Aristóteles, no livro dos “Analíticos”, distingue vários tipos de demonstração,
conforme a matéria, o princípio e o fim.

Boécio comenta:
“Assim como há diversidade nas luzes, há gradação nas demonstrações;
umas brilham como o sol, outras apenas como o reflexo nas águas.”


I. De Demonstratione Propter Quid et Quia

(Da demonstração do “porquê” e do “que”)

A primeira diferença é a que divide toda demonstração em duas espécies:
— a que prova
propter quid, isto é, pela causa;
— e a que prova
quia, isto é, pelo efeito.

A primeira é perfeita,
a segunda, imperfeita.

Saber que há um eclipse é quia;
saber que há um eclipse porque a terra intercepta a luz é
propter quid.

A ciência perfeita é sempre do propter quid,
pois somente o conhecimento da causa dá a razão do necessário.

Boécio escreve:
“O
quia mostra que é,
o
propter quid mostra que não pode deixar de ser.”


II. De Demonstratione Ostensiva et Destructiva

(Da demonstração ostensiva e da destrutiva)

Outra diferença é entre a demonstração ostensiva (ostensiva) e a destrutiva (destructiva).

A ostensiva mostra diretamente que algo é;
a destrutiva mostra que algo não pode ser.

Exemplo:
— Ostensiva: “Todo homem é animal.”
— Destrutiva: “Nenhum homem é pedra.”

Ambas conduzem à verdade,
mas por vias diversas:
a primeira afirma, a segunda elimina o erro.

Boécio comenta:
“O intelecto tem duas mãos:
com a direita afirma o verdadeiro,
com a esquerda rejeita o falso.”

E acrescenta:
“A destruição do erro é a purificação da verdade.”


III. De Demonstratione a Priori et a Posteriori

(Da demonstração a priori e a posteriori)

Outra diferença está entre a demonstração a priori, que procede das causas,
e a a posteriori, que procede dos efeitos.

A primeira é do intelecto,
a segunda, da experiência.

Exemplo:
— “Há luz porque o sol brilha” — a priori;
— “O sol brilha porque há luz” — a posteriori.

A demonstração a priori é mais nobre,
pois participa da ordem da sabedoria;
a a posteriori é mais acessível,
pois nasce da observação sensível.

Boécio escreve:
“O a priori é o caminho dos anjos;
o a posteriori, o dos homens.”

E conclui:
“Ambos levam à verdade,
mas o primeiro vê de cima, o segundo, de baixo.”


IV. De Demonstratione Simplici et Composita

(Da demonstração simples e da composta)

Há também a diferença entre a demonstração simples e a composta.

A simples é aquela que procede de um só princípio e conclui uma só verdade;
a composta, a que liga várias demonstrações num mesmo raciocínio.

Exemplo:
— Simples: “O triângulo tem três ângulos iguais a dois retos.”
— Composta: a dedução de toda a geometria a partir desse princípio.

A simples é mais clara;
a composta, mais rica.

Boécio observa:
“A simples é a linha reta da razão;
a composta, o tecido onde as linhas se cruzam.”

Por isso, o mestre usa a simples para ensinar,
e o sábio, a composta para contemplar.


V. De Demonstratione Per Se et Per Accidens

(Da demonstração por si e por acidente)

Outra distinção fundamental é entre a demonstração por si (per se) e por acidente (per accidens).

A demonstração per se é quando o predicado pertence à essência do sujeito,
e a conclusão expressa uma verdade necessária.

Exemplo: “O homem é animal racional.”

A demonstração per accidens é quando o predicado pertence ao sujeito de modo contingente ou acidental.

Exemplo: “O homem é branco.”

A primeira é científica;
a segunda, apenas descritiva.

Boécio comenta:
“O saber por si é conhecimento;
o saber por acidente é notícia.”

Assim, quem busca a sabedoria deve elevar-se do acidental ao essencial,
pois a ciência é daquilo que não muda.


VI. De Demonstratione Universali et Particulari

(Da demonstração universal e da particular)

A demonstração é universal quando trata do que convém a todos os indivíduos de um gênero;
e particular, quando trata de um caso singular.

A primeira pertence à ciência,
a segunda, à experiência.

Exemplo:
— Universal: “Todo corpo pesado tende para o centro.”
— Particular: “Esta pedra cai.”

O universal é princípio,
o particular, sinal.

Boécio escreve:
“A experiência é o eco da ciência,
e a ciência é o verbo da experiência.”

Assim, o universal e o particular se completam:
o primeiro dá a lei;
o segundo, o testemunho.


VII. De Demonstratione Propter Causam et Signum

(Da demonstração pela causa e pelo sinal)

Outra diferença:
algumas demonstrações procedem pela causa,
outras pelo sinal.

Pela causa: “Há fogo porque há calor.”
Pelo sinal: “Há fogo porque há fumaça.”

A primeira é superior,
pois mostra a razão do ser;
a segunda é inferior,
pois mostra apenas o indício.

Boécio explica:
“A causa é mãe da verdade;
o sinal, sua sombra.”

A ciência verdadeira é sempre causal,
mas o sinal prepara a alma para ela,
como o eco anuncia a voz.


VIII. De Demonstratione Propter Essentiam et Propter Accidens

(Da demonstração pela essência e pelo acidente)

Próxima é a diferença entre a demonstração pela essência e pela propriedade.

Pela essência: quando o que se demonstra pertence à natureza do ser.
Pela propriedade: quando deriva da essência, mas não a constitui.

Exemplo:
— Essência: “O homem é racional.”
— Propriedade: “O homem é capaz de rir.”

Ambas são legítimas,
mas a segunda depende da primeira.

Boécio comenta:
“A essência é o centro da verdade;
a propriedade, seu círculo.”

Assim, toda demonstração deve voltar à essência,
porque nela repousa a necessidade.


IX. De Demonstratione Ex Definitione et Ex Hypothesi

(Da demonstração pela definição e pela hipótese)

A demonstração pela definição parte do que é conhecido em si;
a pela hipótese parte de uma suposição admitida para provar outra.

A primeira é própria das ciências puras;
a segunda, das ciências aplicadas.

Exemplo:
— Pela definição: “O triângulo é figura de três lados.”
— Pela hipótese: “Suponha-se que a linha AB seja igual à linha CD.”

A demonstração ex definitione é absoluta;
a ex hypothesi é condicional.

Boécio escreve:
“A definição é a palavra da essência;
a hipótese, o passo do método.”

Ambas são necessárias,
pois o método precisa de suposição para chegar à essência.


Conclusio Sectionis
(col. 450C)

Conclui-se que as demonstrações se distinguem por suas causas, formas e fins.
Umas são perfeitas, outras imperfeitas;
umas procedem do ser, outras do parecer.

Mas todas participam da mesma luz da razão,
que une o diverso na unidade do verdadeiro.

Boécio encerra:
“Há tantas formas de demonstrar quantas são as vias do intelecto;
mas a verdade é uma só, e todas nela convergem como raios no sol.”

Finis Capitis Decimi — De Differentiis Demonstrationum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT UNDECIMUM — DE DEMONSTRATIONE POTIORI ET INFERIORI

(Capítulo Décimo Primeiro — Da Demonstração Superior e da Inferior)

col. 450C–454B (Migne, Tomus LXIV)

Entre as demonstrações, umas são superiores (potiores),
outras inferiores (
inferiores),
não quanto à verdade — que é una —,
mas quanto à clareza, à universalidade e à causa de que procedem.

Pois há demonstrações que se apoiam em princípios mais altos e universais,
e outras que descem a causas secundárias e particulares.

Aristóteles ensina que a dignidade da demonstração depende da dignidade de seu princípio.

Boécio comenta:
“Como o rio é mais puro junto à fonte,
assim o raciocínio é mais certo quanto mais próximo da causa primeira.”


I. De Definitione Demonstrationis Potioris

(Da definição da demonstração superior)

A demonstração superior é aquela que deriva de princípios universais,
evidentes por si e pertencentes à essência das coisas.

Tal demonstração mostra não só que algo é,
mas por que é e que não pode deixar de ser.

Exemplo:
— Na geometria, a demonstração de que a soma dos ângulos do triângulo é igual a dois retos
é superior, porque se funda na essência da figura e nas propriedades do plano.

Boécio escreve:
“A demonstração superior nasce do seio da razão,
e fala com a voz mesma da necessidade.”

Por isso, é firme, universal e eterna.


II. De Definitione Demonstrationis Inferioris

(Da definição da demonstração inferior)

A demonstração inferior é aquela que procede de princípios derivados ou particulares,
e prova o fato sem penetrar plenamente a causa.

Exemplo:
— Dizer que “o ferro aquece ao fogo” é demonstração inferior,
porque exprime o efeito, mas não explica a natureza do calor nem o princípio ativo do fogo.

Tal demonstração é legítima, mas limitada;
é verdadeira, mas não necessária em toda extensão.

Boécio comenta:
“A inferior toca a verdade pela borda,
a superior, pelo centro.”

Assim, a inferior prepara o caminho,
mas só a superior conduz ao repouso da ciência.


III. De Causa Differentiæ inter Potior et Inferior

(Da causa da diferença entre a superior e a inferior)

A diferença entre ambas está na altitude das causas.
Pois a superior procede das causas primeiras,
e a inferior, das causas segundas.

Assim, a demonstração física é inferior à metafísica,
porque se detém nas causas materiais e móveis,
enquanto a metafísica alcança as formais e imutáveis.

Do mesmo modo, a teologia é superior a todas,
porque considera o princípio que é causa de todas as causas.

Boécio escreve:
“A causa mede a dignidade da ciência;
quanto mais alta a causa, mais pura a demonstração.”

E acrescenta:
“A sabedoria é a ciência das causas supremas.”


IV. De Scientiis Correspondentibus Demonstrationibus

(Das ciências correspondentes às demonstrações)

Cada ordem de ciência tem o tipo de demonstração que lhe convém:
— as ciências naturais, demonstrações inferiores;
— as matemáticas, demonstrações médias;
— as metafísicas e teológicas, demonstrações superiores.

Pois a natureza mostra o movimento e a geração;
a matemática, a forma;
a teologia, o ser.

Boécio comenta:
“A física vê o tempo,
a matemática vê o número,
a metafísica vê o ser,
a teologia vê o uno.”

Assim, o grau de certeza cresce com o grau de universalidade.


V. De Relatione inter Demonstrationem Potior et Inferiorem

(Da relação entre a demonstração superior e a inferior)

A demonstração inferior depende da superior,
e dela recebe sua validade,
assim como a ciência subalterna depende da subalternante.

A inferior mostra o fato;
a superior, a razão.

A inferior inicia a crença;
a superior confirma a ciência.

Boécio explica:
“A inferior é o eco da superior;
o som é o mesmo, mas a força é menor.”

Assim, o sábio não despreza a inferior,
pois nela encontra o vestígio da luz maior;
mas sabe que sua perfeição está em subir da inferior à superior.


VI. De Ascensu Demonstrationis Inferioris ad Superiorem

(Da ascensão da demonstração inferior à superior)

O caminho do saber é ascendente:
começa nas demonstrações inferiores e se eleva às superiores.

Pois o intelecto, exercitado nos efeitos e nas causas próximas,
torna-se capaz de compreender as causas primeiras.

Boécio escreve:
“Quem domina as causas menores,
é digno de ouvir as maiores.”

E acrescenta:
“A sabedoria é o fim de todas as demonstrações inferiores,
como o cume é o fim da montanha.”

Assim, as ciências e suas provas formam uma escada contínua,
que vai do sensível ao inteligível,
do múltiplo ao uno,
do temporal ao eterno.


Conclusio Sectionis
(col. 454B)

Conclui-se que as demonstrações se distinguem pela altura de suas causas e pela universalidade de suas verdades.

A inferior ensina, a média conduz, a superior ilumina.

A inferior é do discípulo;
a média, do mestre;
a superior, do sábio.

Boécio encerra:
“Toda ciência que se eleva da causa inferior à superior caminha para Deus,
porque todo saber, em sua origem e fim, é teológico.”

Finis Capitis Undecimi — De Demonstratione Potiori et Inferiori.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DUODECIMUM — DE DEFECTU DEMONSTRATIONIS ET CAUSIS ERRORIS

(Capítulo Décimo Segundo — Da Falha da Demonstração e das Causas do Erro)

col. 454B–458A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de tratar das espécies e graus da demonstração,
é necessário examinar suas falhas e os motivos pelos quais o intelecto erra,
para que o sábio evite as sombras da razão e conserve a luz do método.

Aristóteles ensina que há erro, não no ser das coisas,
mas no juízo da mente,
quando esta, deixando o caminho do necessário,
segue as vias do provável ou do aparente.

Boécio comenta:
“O erro é o eclipse do intelecto,
quando a luz da causa se esconde atrás da sombra do discurso.”


I. De Generibus Defectuum in Demonstratione

(Dos gêneros de falhas na demonstração)

O defeito na demonstração ocorre de quatro modos:

1.      Por falsidade das premissas,
quando o princípio não é verdadeiro;

2.      Por má disposição dos termos,
quando a forma do silogismo é corrompida;

3.      Por ignorância do meio,
quando se raciocina sem causa;

4.      Por confusão entre o per se e o per accidens,
quando se toma o acidental como essencial.

Boécio explica:
“O erro nasce, ora do coração que julga mal, ora da língua que raciocina mal.”

Por isso, a correção do pensamento requer pureza da mente e método exato.


II. De Falsitate Principiorum

(Da falsidade dos princípios)

O primeiro e mais grave defeito é o das premissas falsas.
Pois se o fundamento é falso, toda a construção desaba.

Quem parte de princípios errados não chega à verdade,
ainda que raciocine corretamente.

Aristóteles diz:
“O erro do princípio é o erro do todo.”

Boécio comenta:
“Nada é mais perigoso do que a falsa evidência:
ela parece luz e é treva.”

Assim, o sábio deve examinar longamente os princípios,
pois deles depende a integridade da ciência.

E acrescenta:
“Quem edifica sobre a areia das opiniões
verá ruir seu templo ao primeiro sopro da razão.”


III. De Vitio Formae

(Do vício da forma)

O segundo defeito é o vício da forma,
quando o raciocínio não observa a ordem legítima do silogismo.

Pois não basta ter premissas verdadeiras:
é preciso que estejam ordenadas conforme a figura e o modo convenientes.

Uma demonstração mal disposta é como uma harpa desafinada:
possui cordas, mas não harmonia.

Boécio escreve:
“O intelecto que ignora a arte de ordenar os termos é como o cego que tem olhos e não vê.”

Assim, a lógica é necessária não só para pensar,
mas para pensar bem.

E quem despreza sua forma,
perde a verdade pela desordem do discurso.


IV. De Ignorantia Medii

(Da ignorância do meio)

O terceiro defeito é a ignorância do meio (medium).
Pois quem demonstra sem conhecer o meio
tenta ligar os extremos sem o elo necessário.

Isso acontece quando se afirma uma conclusão
sem mostrar a causa que a une aos princípios.

Aristóteles diz:
“Aquele que não conhece o meio, fala o que é, mas não sabe por que é.”

Boécio comenta:
“O meio é o coração da demonstração;
quem o ignora, tem corpo de razão e alma de opinião.”

Assim, o discurso sem meio é sombra de ciência,
e a mente que o segue caminha entre aparências.


V. De Confusione Per Se et Per Accidens

(Da confusão entre o essencial e o acidental)

O quarto defeito é confundir o que é por si com o que é por acidente.

Pois o intelecto precipitado toma por causa o que é apenas sinal,
e por essência o que é mero atributo.

Exemplo:
— Dizer que “o homem vê porque tem olhos” é verdadeiro;
— Dizer que “o homem raciocina porque tem olhos” é erro,
pois a visão é acidental ao raciocínio.

Boécio comenta:
“O erro nasce quando o acidental veste a máscara do essencial.”

E acrescenta:
“Somente o intelecto purificado distingue o que é ser do que é parecer.”


VI. De Causis Interioribus Erroris

(Das causas interiores do erro)

Há, além desses, erros que procedem do próprio espírito:
— a precipitação do juízo,
— a paixão do desejo,
— o hábito da opinião,
— o orgulho do saber.

Pois a mente, impaciente, quer concluir antes de compreender;
e o amor-próprio prefere a novidade à verdade.

Boécio escreve:
“O erro do sábio é a pressa;
o erro do ignorante é a confiança.”

Assim, o remédio está na humildade intelectual:
não querer saber além do que se pode demonstrar,
nem afirmar o que não se pode provar.


VII. De Remedio Erroris

(Do remédio do erro)

O remédio do erro é duplo:
— o método, que ordena;
— a virtude, que purifica.

O método corrige a razão;
a virtude corrige o coração.

Pois não basta saber raciocinar:
é preciso querer a verdade.

Boécio comenta:
“A mente que ama a verdade é o templo do Logos.”

Assim, o sábio une o rigor do método à pureza da intenção,
e sua demonstração é tão luminosa quanto reta.

A ciência sem virtude é astúcia;
a virtude sem ciência é cegueira.

Mas quando ambas se unem,
a verdade torna-se vida.


Conclusio Sectionis
(col. 458A)

Conclui-se que o defeito na demonstração provém,
ora da falsidade dos princípios,
ora da desordem da forma,
ora da ignorância do meio,
ora da confusão entre o essencial e o acidental.

Mas acima de todos está o erro moral,
quando o intelecto se desvia do amor à verdade.

Boécio encerra:
“A verdade não se engana;
é o homem que, fugindo dela, cai na noite do erro.”

Finis Capitis Duodecimi — De Defectu Demonstrationis et Causis Erroris.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DECIMUM TERTIUM — DE DISPOSITIONE DEMONSTRATIONUM

(Capítulo Décimo Terceiro — Da Disposição das Demonstrações)

col. 458A–463B (Migne, Tomus LXIV)

Depois de investigar as causas do erro,
é conveniente tratar da disposição das demonstrações (
dispositio demonstrationum),
pela qual o intelecto ordena as provas segundo o grau de necessidade e evidência.

Pois a verdade não se revela no amontoado das razões,
mas na harmonia do método.

Aristóteles ensina que o saber científico exige que as demonstrações se disponham
segundo a ordem natural das causas:
das mais universais às mais particulares,
das mais conhecidas por si às conhecidas por outro.

Boécio comenta:
“A razão é como o coro das vozes:
se não houver ordem, o som é ruído;
se há proporção, o ruído se torna música.”


I. De Necessitate Dispositionis in Demonstratione

(Da necessidade da disposição na demonstração)

A disposição é necessária porque a verdade é harmonia.
E onde não há ordem, não há ciência, mas confusão.

O intelecto, sendo ordenado por natureza,
exige que o discurso o seja também.

Assim como o universo foi disposto em hierarquia,
o raciocínio deve refletir a mesma ordem em sua estrutura.

Boécio escreve:
“O Logos, que ordenou o mundo, ordena também o pensamento.”

E acrescenta:
“Demonstrar é criar uma pequena imagem da ordem divina no espírito.”


II. De Tribu Ordine Demonstrationum

(Da tríplice ordem das demonstrações)

A disposição das demonstrações tem três ordens:

1.      Ordem natural,
que segue a dependência das causas;

2.      Ordem lógica,
que segue a forma do silogismo;

3.      Ordem didática,
que segue a conveniência do ensino.

A primeira é da realidade;
a segunda, da razão;
a terceira, da comunicação da verdade.

Boécio comenta:
“O filósofo contempla a primeira;
o lógico governa a segunda;
o mestre usa a terceira.”

Assim, quem une as três é verdadeiramente sábio,
pois conhece a verdade, a ordem e o modo de transmiti-la.


III. De Ordine Naturali Demonstrationis

(Da ordem natural da demonstração)

Na ordem natural, as demonstrações devem proceder das causas primeiras às segundas,
e das universais às particulares.

Pois o que é primeiro por natureza é causa do que vem depois,
e a ciência é conhecimento das causas.

Exemplo:
— Conhecer primeiro o movimento;
— Depois, as espécies de movimento;
— Por fim, as coisas que se movem.

Boécio explica:
“A alma aprende como o ser procede:
o universo começa do uno,
e o discurso deve começar do princípio.”

Assim, toda disposição natural imita a estrutura do cosmos.


IV. De Ordine Logico Demonstrationis

(Da ordem lógica da demonstração)

Na ordem lógica, o intelecto deve dispor os silogismos de modo que cada conclusão sirva de premissa à seguinte,
formando uma cadeia contínua de necessidade.

Pois, se o discurso se interrompe, o saber se fragmenta.

Aristóteles ensina que cada ciência deve ter coerência interna,
onde a conclusão de uma parte se torna o fundamento da outra.

Boécio comenta:
“A razão é um rio:
se o curso se quebra, a água se perde.”

Assim, a boa disposição é aquela em que o discurso flui do princípio ao fim,
e todo elo é sustentado pelo anterior.

A demonstração perfeita é aquela em que cada parte é necessária,
e nenhuma pode ser retirada sem que o todo desabe.


V. De Ordine Didactico Demonstrationis

(Da ordem didática da demonstração)

A ordem didática não segue a natureza das causas,
mas a capacidade do ouvinte.

Pois o mestre não deve começar pelo mais difícil,
mas pelo mais acessível,
conduzindo o discípulo da percepção à inteligência.

Aristóteles distingue:
— o modo do saber, que vai do universal ao particular;
— o modo do ensino, que vai do particular ao universal.

Boécio explica:
“O mestre desce onde o discípulo está,
para que o discípulo suba onde o mestre vê.”

Assim, a arte do ensino é inversa à arte da demonstração,
mas ambas se ordenam à mesma verdade.

O filósofo contempla o ser;
o mestre conduz à contemplação.


VI. De Harmonia Ordinum

(Da harmonia das ordens)

A disposição perfeita une as três ordens: natural, lógica e didática.

Pois o saber é completo quando a razão vê a ordem do ser,
exprime-a com clareza e a comunica com caridade.

Boécio comenta:
“A sabedoria é tríplice:
vê o que é, diz o que vê, e ensina o que diz.”

O intelecto, o discurso e o ensino
são três movimentos de uma só luz.

Assim, a disposição das demonstrações é imagem da harmonia trinitária da verdade:
unidade no ser, proporção no raciocínio, e fecundidade na palavra.


VII. De Confusione Ordinis et Dissolutione Scientiae

(Da confusão da ordem e da dissolução da ciência)

Quando se perde a disposição, perde-se a ciência.
Pois a verdade, sem ordem, é como a melodia sem ritmo:
existe, mas não pode ser compreendida.

A confusão do método é mãe da dúvida,
e o excesso de discurso é a doença do intelecto.

Boécio adverte:
“Quem quer dizer tudo, não demonstra nada.”

Assim, o sábio mede o que diz pela necessidade da prova,
e a pureza do raciocínio é a medida da sua luz.


Conclusio Sectionis
(col. 463B)

Conclui-se que a disposição das demonstrações é a ordem visível da verdade.
A ciência cresce onde há proporção;
decai onde há confusão.

O método é a forma do saber,
e a ordem, sua alma.

Boécio encerra:
“Toda demonstração é justa quando imita o cosmos:
tem princípio, meio e fim;
e em cada parte, a marca do todo.”

Finis Capitis Decimi Tertii — De Dispositione Demonstrationum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DECIMUM QUARTUM — DE FINE DEMONSTRATIONIS ET SCIENTIAE

(Capítulo Décimo Quarto — Do Fim da Demonstração e da Ciência)

col. 463B–468A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de examinar a disposição das demonstrações,
resta tratar de seu fim (
finis demonstrationis),
pois nada é perfeito se não se conhece para que existe.

Aristóteles ensina que toda demonstração tem por fim o saber,
e que toda ciência tem por fim a verdade.
Assim, como o movimento tende ao repouso,
a investigação tende ao conhecimento.

Boécio comenta:
“Toda demonstração nasce do desejo de ver;
e o ver da alma é o compreender.”


I. De Fine Demonstrationis

(Do fim da demonstração)

O fim da demonstração é gerar ciência.
Pois demonstra-se não para crer, mas para saber.

A crença repousa na persuasão,
a ciência, na necessidade.

Por isso, a demonstração perfeita não deixa lugar à dúvida,
porque conduz a mente à visão do necessário.

Boécio escreve:
“Demonstrar é transformar o ouvir em ver.”

Assim como a luz manifesta o objeto à vista,
o silogismo manifesta a verdade ao intelecto.


II. De Fine Scientiae

(Do fim da ciência)

A ciência tem dois fins:
— o próprio, que é a verdade;
— o comum, que é o bem do homem.

Pois a verdade é a forma da ciência,
e o bem, seu uso.

A verdade sem o bem é estéril;
o bem sem a verdade é cego.

Aristóteles diz:
“O saber é perfeito quando se ordena ao bem.”

Boécio acrescenta:
“A ciência é virtude da mente;
e a mente virtuosa é espelho de Deus.”


III. De Ordine Finis ad Demonstrationem

(Da ordem do fim em relação à demonstração)

O fim é causa das causas,
e o princípio do princípio.

Pois todo raciocínio começa no desejo de conhecer,
e termina na contemplação da verdade.

A demonstração é o caminho,
o fim é o termo;
e como o caminho é medido pelo termo,
assim a razão é medida pela verdade.

Boécio comenta:
“Não se conhece porque se demonstra;
demonstra-se porque se deseja conhecer.”

E acrescenta:
“O fim é o amor da verdade,
e toda ordem intelectual é ordenação do amor.”


IV. De Scientia Contemplativa et Practica

(Da ciência contemplativa e prática)

Há duas ordens de ciência conforme seus fins:
— a contemplativa, que busca a verdade em si;
— a prática, que busca a verdade no agir.

A primeira é como o repouso do espírito;
a segunda, como o movimento da vontade.

A contemplativa imita a eternidade,
a prática, o tempo.

Boécio explica:
“A ciência contemplativa é imagem do ser divino;
a prática é imagem da providência.”

Assim, a verdade é o fim de ambas,
mas por vias diversas:
— na contemplativa, é fim absoluto;
— na prática, é meio para o bem.


V. De Unione Finium in Sapientia

(Da união dos fins na sabedoria)

Quando a ciência se eleva à sabedoria,
seus dois fins se unem.

Pois o sábio conhece a verdade e age conforme o bem.
Ele contempla o que é eterno
e ordena o temporal à sua imagem.

Boécio comenta:
“A sabedoria é a ciência ordenada pela caridade.”

Assim, o fim supremo da demonstração é a união do intelecto com o verdadeiro,
e o fim da ciência é a união da alma com o bem.

Ambas se cumprem quando o saber se torna amor.


VI. De Relatione Fini ad Deum

(Da relação do fim com Deus)

Todo fim último se reduz a Deus,
que é o primeiro princípio e o último termo.

Pois o que é primeiro por natureza é último na intenção.

O homem busca conhecer,
e todo conhecer é busca do ser;
mas o ser em sua plenitude é Deus.

Boécio conclui:
“O fim de toda ciência é Deus,
porque Ele é a verdade de todas as causas.”

Assim, a mente que chega à ciência perfeita
alcança o reflexo da luz divina.

Não há fim fora d’Ele,
porque Ele é o fim de tudo o que é verdadeiro.


Conclusio Sectionis
(col. 468A)

Conclui-se, portanto, que o fim da demonstração é a ciência,
e o fim da ciência é a verdade,
cuja plenitude é o bem e cuja origem é Deus.

O método conduz à ciência,
a ciência conduz à verdade,
a verdade conduz à sabedoria,
e a sabedoria conduz a Deus.

Boécio encerra:
“O círculo do saber fecha-se no princípio:
quem conhece verdadeiramente, conhece o Criador.”

Finis Capitis Decimi Quarti — De Fine Demonstrationis et Scientiae.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DECIMUM QUINTUM — DE CONNEXIONE SCIENTIARUM ET ORDINE UNIVERSALI INTELLECTUS

(Capítulo Décimo Quinto — Da Conexão das Ciências e da Ordem Universal do Intelecto)

col. 468A–472C (Migne, Tomus LXIV)

A ciência não é fragmento, mas totalidade;
e o intelecto, não uma potência dispersa, mas um movimento único
que se dobra sobre si mesmo e contempla todas as coisas na unidade do verdadeiro.

Aristóteles ensina que as ciências se distinguem pelos objetos,
mas se unem pelo princípio do conhecimento.

Boécio comenta:
“Assim como muitos raios procedem de um só sol,
assim todas as ciências procedem de um só intelecto,
e nele se reencontram.”


I. De Unitate Rationis in Diversitate Scientiarum

(Da unidade da razão na diversidade das ciências)

Há uma só razão, e muitas ciências;
pois o mesmo intelecto, contemplando sob diversos modos,
dá origem à pluralidade dos saberes.

A diversidade das ciências não é divisão da verdade,
mas manifestação de sua riqueza.

A mesma luz que ilumina o físico,
guia o matemático e o teólogo,
ainda que cada um a veja segundo o grau de sua pureza.

Boécio escreve:
“As ciências são espelhos da mesma razão,
polidas em diferentes materiais.”

E acrescenta:
“Quem vê a unidade das ciências compreende que a razão humana
é imagem da razão divina,
na qual todas as coisas são uma só sabedoria.”


II. De Ordine Ascendente Scientiarum

(Da ordem ascendente das ciências)

As ciências formam uma hierarquia segundo a nobreza de seus objetos.

— As inferiores tratam do móvel e corruptível;
— As médias, do número e da forma;
— As superiores, do ser e do princípio.

Assim, a filosofia natural conduz à matemática,
a matemática à metafísica,
e a metafísica à teologia.

Boécio comenta:
“Toda ciência é degrau da sabedoria;
e o intelecto que sobe pelos degraus das causas
chega ao cume da unidade.”

Essa ordem não é arbitrária,
mas imposta pela natureza mesma da verdade,
que vai do sensível ao inteligível,
e do múltiplo ao uno.


III. De Circulo Scientiarum

(Do círculo das ciências)

Assim como há uma ascensão, há também um retorno.

Pois o saber, depois de atingir o princípio,
retorna ao mundo e o ilumina com nova luz.

Aristóteles compara a ciência à circunferência,
cujo centro é a verdade.

Boécio explica:
“O intelecto parte da experiência, sobe à causa,
e volta à experiência purificada pela inteligência.”

A física, nascida da sensação,
se consuma na teologia e retorna à natureza com novo olhar.

Assim, o movimento do intelecto é circular:
sai do mundo e volta a ele,
mas nunca é o mesmo,
pois cada volta é mais clara e mais profunda.


IV. De Relatione Scientiarum ad Invicem

(Da relação das ciências entre si)

Nenhuma ciência é isolada,
porque todas dependem umas das outras,
assim como as partes do corpo dependem do coração.

A lógica ordena;
a física explica;
a matemática mede;
a metafísica contempla;
a teologia coroa.

Boécio escreve:
“A lógica é a disciplina do intelecto;
a física, o espelho da natureza;
a matemática, a medida da harmonia;
a metafísica, o repouso da causa;
a teologia, o regresso à unidade.”

Assim, quem possui uma ciência imperfeitamente
ignora que ela é parte de um todo.

Mas quem as une no mesmo espírito
participa da mente que ordenou o universo.


V. De Ordine Universali Intellectus

(Da ordem universal do intelecto)

O intelecto humano é imagem da ordem cósmica.
Pois assim como o universo tem graus — corporal, animado, racional e divino —,
também o intelecto possui níveis:
— o da sensação, que recebe;
— o da razão, que discerne;
— o da inteligência, que contempla.

A ciência corresponde ao segundo grau,
e a sabedoria, ao terceiro.

Boécio comenta:
“O intelecto que raciocina está no meio do caminho;
o que vê, chegou ao fim.”

Assim, a ordem das ciências é reflexo da ordem do ser,
e o progresso do saber é retorno ao princípio.


VI. De Fine Connexionis Scientiarum

(Do fim da conexão das ciências)

O fim da conexão das ciências é a unidade da verdade.
Pois, ainda que os caminhos sejam muitos,
o termo é um só.

A física busca a causa eficiente,
a matemática, a causa formal,
a metafísica, a causa final.

Mas todas convergem para o mesmo Uno,
no qual toda causa e todo efeito coincidem.

Boécio escreve:
“O verdadeiro filósofo é aquele que, conhecendo as partes,
não perde de vista o todo.”

E conclui:
“A sabedoria é a ciência das ciências,
e o amor do Uno é o vínculo de todas elas.”


Conclusio Sectionis
(col. 472C)

Conclui-se que todas as ciências se unem numa única ordem,
e que essa ordem é imagem da razão divina.

O intelecto que compreende o vínculo das ciências
participa da unidade da verdade,
e vê o cosmos como palavra articulada do Logos.

Boécio encerra:
“A mente que ordena as ciências como Deus ordenou o mundo
é sábia,
porque em sua razão brilha a luz do Verbo eterno.”

Finis Capitis Decimi Quinti — De Connexione Scientiarum et Ordine Universali Intellectus.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER PRIMUS — DE SCIENTIA ET PRINCIPIIS DEMONSTRATIONIS

(Primeiro Livro — Sobre a Ciência e os Princípios da Demonstração)


CAPUT DECIMUM SEXTUM — DE SUMMO FINE SCIENTIAE ET PARTICIPATIONE SAPIENTIAE DIVINAE

(Capítulo Décimo Sexto — Do Fim Supremo da Ciência e da Participação na Sabedoria Divina)

col. 472C–477B (Migne, Tomus LXIV)

Toda ciência tem um fim,
mas acima de todas as ciências há um fim que as abrange e as cumpre:
a participação na Sabedoria divina.

Pois, como ensina Aristóteles,
“saber as causas supremas é ser semelhante aos deuses.”

Boécio comenta:
“A ciência é humana enquanto conhece as coisas;
é divina quando conhece as causas das coisas.”

Assim, o supremo fim da ciência é elevar o homem do conhecimento das criaturas
ao conhecimento do Criador.


I. De Fine Supremo Scientiae

(Do fim supremo da ciência)

O fim supremo da ciência é o repouso do intelecto na verdade total.

Toda demonstração é movimento;
toda verdade, repouso.

O intelecto move-se porque ignora,
e descansa porque vê.

A ciência conduz até a visão;
a sabedoria habita nela.

Boécio escreve:
“A ciência é o caminho da luz;
a sabedoria é a morada onde a luz permanece.”

Assim, o homem se torna semelhante a Deus,
não porque tudo sabe,
mas porque conhece em ordem e com amor o que lhe é dado conhecer.


II. De Participatione Sapientiae Divinae

(Da participação na sabedoria divina)

A ciência humana participa da sabedoria divina como o espelho participa da luz.

Não cria a verdade, mas a reflete;
não a possui em si, mas por participação.

Boécio comenta:
“A mente que conhece as causas participa da causa das causas.”

E acrescenta:
“O intelecto puro é centelha do fogo eterno.”

Assim, quando a alma atinge a verdade por meio da ciência,
ela se torna partícipe do Logos,
que é o Verbo eterno e princípio de toda razão.


III. De Gradibus Participationis

(Dos graus de participação)

Há três graus de participação na sabedoria divina:

1.      Na ordem natural,
quando a razão contempla as causas da natureza;

2.      Na ordem intelectual,
quando o entendimento penetra nas causas imateriais;

3.      Na ordem espiritual,
quando o intelecto, purificado, reconhece o próprio princípio da verdade em Deus.

Boécio explica:
“O primeiro grau é da ciência;
o segundo, da inteligência;
o terceiro, da contemplação.”

E conclui:
“O homem de ciência conhece;
o homem de inteligência compreende;
o homem de sabedoria adora.”


IV. De Conjunctione Sapientiae et Virtutis

(Da conjunção da sabedoria e da virtude)

A sabedoria não é apenas visão, mas também ordem da alma.

Pois ninguém participa da sabedoria divina sem a conformidade moral com ela.

Aristóteles disse:
“O bem e o verdadeiro são o mesmo na substância,
ainda que diferentes na razão.”

Boécio comenta:
“A mente que conhece o bem deve amá-lo,
porque conhecer sem amar é conhecer em vão.”

Assim, a virtude é a forma da sabedoria,
e a sabedoria é a luz da virtude.

O sábio não apenas vê o bem,
mas o quer;
e por isso, sua ciência é viva.


V. De Scientia Humana ut Via ad Visionem Divinam

(Da ciência humana como via para a visão divina)

Toda ciência humana é via — não fim.
Pois o intelecto não repousa nas coisas criadas,
mas nelas busca os vestígios do Criador.

A física mostra o poder;
a matemática, a ordem;
a metafísica, o ser;
mas só a teologia mostra a fonte.

Boécio escreve:
“A sabedoria divina não é deduzida, mas revelada;
e o coração puro é sua demonstração.”

Assim, o sábio reconhece o limite da razão
e adora o princípio que a transcende.

Onde a ciência termina, começa a contemplação;
e o silêncio é o último ato da sabedoria.


VI. De Regressu Intellectus in Deum

(Do retorno do intelecto a Deus)

Quando o intelecto atinge o sumo bem,
retorna à sua origem.

Pois todo movimento do saber é um círculo:
procede de Deus e volta a Deus.

O primeiro ato é a iluminação;
o último, a união.

Boécio comenta:
“A mente purificada vê todas as coisas em Deus,
e Deus em todas as coisas.”

Essa visão é a ciência perfeita,
onde não há mais demonstração,
porque a causa é presente e o meio é a própria luz.

A alma torna-se então participante da eternidade,
porque vê sem tempo e ama sem medida.


Conclusio Sectionis
(col. 477B)

Conclui-se que o fim supremo da ciência é a união do intelecto com a verdade divina.
Toda investigação é peregrinação;
toda conclusão, retorno.

A sabedoria é o repouso da razão,
e a participação divina é o repouso da sabedoria.

Boécio encerra:
“Quem conhece verdadeiramente chega ao princípio,
porque toda luz volta ao sol donde procede.”

Finis Capitis Decimi Sexti — De Summo Fine Scientiae et Participatione Sapientiae Divinae.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER SECUNDUS — DE INTELLECTU ET ORDINE DEMONSTRATIONUM SUPERIORUM

(Segundo Livro — Do Intelecto e da Ordem das Demonstrações Superiores)

col. 477C–490A (Migne, Tomus LXIV)

No primeiro livro, tratamos da natureza da demonstração e de suas espécies;
agora, no segundo, devemos considerar o intelecto, que é o princípio das demonstrações,
e o ordenamento das superiores,
nas quais a razão atinge sua perfeição.

Pois a demonstração inferior conduz à ciência;
mas a demonstração superior conduz à inteligência (
intellectus).

Aristóteles ensina que o intelecto é o termo do raciocínio,
e que a demonstração perfeita é aquela que termina na visão do necessário.

Boécio comenta:
“Toda razão nasce do intelecto e volta ao intelecto,
assim como o rio nasce da fonte e a ela retorna.”


I. De Natura Intellectus

(Da natureza do intelecto)

O intelecto é a luz interior da alma racional,
pela qual ela apreende imediatamente o verdadeiro sem o auxílio do discurso.

A razão procede por meio;
o intelecto, por presença.

O discurso caminha;
o intelecto vê.

Por isso, Aristóteles distingue entre o raciocinar e o inteligir:
o primeiro é humano;
o segundo, divino.

Boécio explica:
“O intelecto é o repouso da razão;
e a razão, o movimento do intelecto.”

Assim, quando o intelecto age, o discurso se cala,
pois a verdade é presente e não buscada.


II. De Generatione Intellectus ex Ratione

(Do nascimento do intelecto a partir da razão)

O intelecto não é oposto à razão, mas seu fruto.

Pois a razão, exercitada pelas demonstrações,
purifica-se dos fantasmas e das opiniões,
até que, transparente, reflita a luz inteligível.

Então nasce o intelecto,
que não aprende, mas vê.

Boécio comenta:
“A razão é o ventre da sabedoria;
e o intelecto, o filho que dela nasce.”

Assim, a demonstração superior é o parto do intelecto no seio da razão.


III. De Gradibus Intellectus

(Dos graus do intelecto)

O intelecto tem três graus:

1.      O discursivo,
que ainda se apoia em razões;

2.      O puro,
que vê a causa nas causas;

3.      O unitivo,
que vê todas as causas em uma só.

O primeiro é da filosofia;
o segundo, da sabedoria;
o terceiro, da contemplação.

Boécio escreve:
“A alma passa da ciência à sabedoria,
e da sabedoria à visão.”

Assim, o último grau do intelecto é o silêncio da mente na presença do Uno.


IV. De Ordine Demonstrationum Superiorum

(Da ordem das demonstrações superiores)

As demonstrações superiores seguem a ordem das causas universais:
— primeiro, as que tratam do ser;
— depois, as que tratam da verdade;
— por fim, as que tratam do bem.

Pois a metafísica é superior à lógica,
e a teologia, superior à metafísica.

Boécio comenta:
“A primeira demonstração mostra o ser;
a segunda, o sentido do ser;
a terceira, o fim do ser.”

Assim, toda ordem superior culmina na causa final,
onde o conhecimento se transforma em amor.


V. De Intellectu Agente et Possibili

(Do intelecto agente e do intelecto possível)

Aristóteles distingue o intelecto agente, que ilumina,
e o possível, que é iluminado.

O primeiro é como o sol,
o segundo, como o olho.

O agente faz ver;
o possível recebe a visão.

Boécio explica:
“O intelecto agente é a luz da mente;
o possível, o espelho que a reflete.”

Quando ambos se unem, nasce o saber,
e o homem se torna imagem da luz divina.

Pois Deus é o Intelecto puríssimo,
no qual não há distinção entre ver e ser visto.


VI. De Causa Superioritatis Demonstrationum

(Da causa da superioridade das demonstrações)

A demonstração superior é superior
porque participa mais do intelecto e menos da razão.

Ela mostra o necessário pelas causas simples,
e não pelas composições do discurso.

Boécio comenta:
“A mente que demonstra pelas causas puras já não raciocina,
mas reflete a ordem do ser.”

Assim, quanto mais pura a causa,
mais breve a demonstração.

O intelecto, em sua perfeição, é demonstração sem palavras.


VII. De Intellectu et Veritate

(Do intelecto e da verdade)

O intelecto e a verdade são correlativos,
como o olho e a luz.

A verdade é a forma do intelecto;
o intelecto é o ato da verdade.

Por isso, o erro não nasce do intelecto,
mas da razão, quando se separa da luz.

Boécio escreve:
“A verdade é o rosto de Deus refletido na mente.”

E acrescenta:
“Enquanto o intelecto vê, é verdadeiro;
quando imagina, é sombra.”


VIII. De Ordine Ascensus Mentis

(Da ordem da ascensão da mente)

A ascensão da mente se faz em três movimentos:
— pela ciência,
— pela sabedoria,
— pela contemplação.

A ciência remove o erro;
a sabedoria ordena o intelecto;
a contemplação o une ao princípio.

Boécio comenta:
“Quem aprende, purifica o olhar;
quem sabe, o dirige;
quem contempla, o fixa em Deus.”

Assim, a ordem das demonstrações superiores é a escada da alma,
pela qual ela sobe da verdade humana à divina.


Conclusio Sectionis
(col. 490A)

Conclui-se que o intelecto é o termo da razão
e a razão, o instrumento do intelecto.

A ciência prepara;
a sabedoria ilumina;
a inteligência consuma.

Boécio encerra:
“A alma que conhece o ser e o bem
participa da mente eterna,
porque toda luz que ilumina o homem vem da Luz que não tem ocaso.”

Finis Liberi Secundi — De Intellectu et Ordine Demonstrationum Superiorum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER TERTIUS — DE SCIENTIA SUBALTERNATA ET ORDINE CAUSARUM MEDIARUM

(Terceiro Livro — Da Ciência Subalterna e da Ordem das Causas Intermediárias)

col. 490B–503A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de tratar da ordem das demonstrações superiores,
resta agora falar da ciência subalterna,
que recebe seus princípios de uma ciência mais alta,
e da ordem das causas médias,
pelas quais as causas superiores se comunicam às inferiores.

Aristóteles distingue três ordens de ciência:
— a suprema, que conhece o princípio por si mesmo;
— a subalterna, que o recebe por outro;
— e a empírica, que o conhece apenas pelos efeitos.

Boécio comenta:
“Assim como a luz desce em graus — do sol à lua, e da lua à terra —,
assim também a verdade desce das ciências primeiras às segundas.”


I. De Natura Scientiae Subalternatae

(Da natureza da ciência subalterna)

A ciência subalterna é aquela que depende de outra superior,
da qual recebe os princípios de demonstração.

Pois não pode haver ciência perfeita sem causa,
e toda causa remonta a um princípio mais universal.

Exemplo:
— A ótica é subalterna à geometria;
— a harmonia, à aritmética;
— a mecânica, à física.

Boécio explica:
“A ciência subalterna é como o eco da superior:
tem som próprio, mas é reflexo de uma voz mais alta.”

Assim, toda ciência deriva de outra,
até que se chegue àquela que tem em si a causa de todas as causas.


II. De Relatione Subalternantis ad Subalternatam

(Da relação da ciência subalternante com a subalterna)

A ciência subalternante fornece os princípios;
a subalterna aplica-os aos casos particulares.

A primeira é universal e formal;
a segunda, particular e material.

Boécio comenta:
“A subalternante mostra o ser;
a subalterna mostra o modo do ser.”

Assim como a arte do arquiteto contém em si a forma da casa,
e o construtor apenas a executa,
assim também a ciência superior ordena,
e a inferior realiza segundo o modelo inteligível.

Por isso, toda ciência subalterna é verdadeira
enquanto conserva a forma da ciência de que procede.


III. De Causis Mediarum Scientiarum

(Das causas das ciências intermediárias)

Entre a ciência suprema e a empírica
há muitas ciências médias,
que recebem das superiores e comunicam às inferiores.

Essas ciências são como elos na cadeia da razão,
pelas quais o universo intelectual se mantém unido.

Aristóteles diz:
“Assim como no ser há causas segundas e terceiras,
assim também na ciência há ordens e mediações.”

Boécio comenta:
“A sabedoria é a árvore;
as ciências são os ramos;
as artes, os frutos.”

E acrescenta:
“Quem corta o ramo da raiz, seca;
quem corta a arte da ciência, erra.”


IV. De Ordine Causarum Mediarum

(Da ordem das causas intermediárias)

As causas médias são aquelas que recebem e transmitem.
Recebem das superiores a forma,
e comunicam às inferiores o efeito.

A causa superior age por essência;
a média, por participação;
a inferior, por influxo.

Boécio explica:
“O fogo ilumina o ar;
o ar, o corpo;
o corpo, o sentido.”

Assim, há uma hierarquia de causas,
pela qual o movimento do ser se perpetua sem ruptura.

O erro nasce quando se confunde o meio com o princípio,
ou se esquece que toda virtude do meio vem do alto.


V. De Scientia Subalternata in Ordine Divino

(Da ciência subalterna na ordem divina)

No mundo divino também há ciência por participação,
pois os anjos superiores iluminam os inferiores.

Assim, a ciência se comunica sem se dividir,
e a luz cresce ao ser transmitida.

Boécio comenta:
“No céu, a doutrina é influxo;
na terra, é eco.”

E acrescenta:
“Toda mente que compreende por outro participa de uma mente que compreende por si.”

Assim, toda ciência verdadeira é hierárquica,
e toda inteligência é ordenada segundo o grau de sua luz.


VI. De Subordinatione Scientiarum Humanarum

(Da subordinação das ciências humanas)

As ciências humanas se dispõem segundo o mesmo modelo:
— a gramática serve à lógica;
— a lógica, à filosofia;
— a filosofia, à teologia.

A gramática ensina o som;
a lógica, o sentido;
a filosofia, o ser;
a teologia, o princípio do ser.

Boécio escreve:
“Quem domina a gramática fala;
quem domina a lógica entende;
quem domina a filosofia sabe;
quem domina a teologia adora.”

Assim, a educação do espírito repete a ascensão do cosmos,
e o homem se torna microcosmo da verdade.


VII. De Erroribus circa Scientias Subalternas

(Dos erros acerca das ciências subalternas)

Erra quem separa a ciência subalterna de sua fonte,
e mais ainda quem despreza as inferiores julgando-as inúteis.

Pois a verdade é contínua,
e o saber, harmonia.

Boécio adverte:
“Quem despreza o inferior ignora o caminho;
quem ignora o caminho não chega ao cume.”

A sabedoria é composta de todas as ciências,
assim como o corpo é composto de todos os membros.

Romper a ordem é dissolver o todo.


Conclusio Sectionis
(col. 503A)

Conclui-se que a ciência subalterna é necessária à ordem do saber,
porque une o universal ao particular
e o inteligível ao sensível.

As causas médias são os degraus da luz,
e a razão que as compreende ascende ao princípio de todas.

Boécio encerra:
“A ciência perfeita não é a que tudo sabe,
mas a que tudo ordena segundo sua causa.”

Finis Liberi Tertii — De Scientia Subalternata et Ordine Causarum Mediarum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER QUARTUS — DE ORDINE DEMONSTRATIONUM AD SUMMAM CAUSARUM SCIENTIAM

(Quarto Livro — Da Ordem das Demonstrações para a Ciência Suprema das Causas)

col. 503A–516C (Migne, Tomus LXIV)

Nos livros anteriores falamos da natureza da demonstração,
de sua hierarquia e do intelecto que a aperfeiçoa;
agora resta tratar da ordem das demonstrações
que conduzem à ciência suprema das causas,
na qual o intelecto encontra sua plenitude.

Aristóteles chama essa ciência de “sabedoria”,
porque considera as causas primeiras e o fim último.

Boécio comenta:
“A demonstração que chega à causa das causas
é já contemplação;
e a razão que aí termina não mais discorre, mas repousa.”


I. De Summo Ordine Demonstrationum

(Da ordem suprema das demonstrações)

Há tantas ordens de demonstração quantos são os graus do ser:
— uma, para o que é corporal;
— outra, para o que é animado;
— outra, para o que é inteligível;
— e uma última, para o que é divino.

As três primeiras pertencem à razão;
a última, ao intelecto puro.

Boécio explica:
“A primeira demonstra o movimento;
a segunda, a forma;
a terceira, a causa;
a quarta, o princípio.”

Por isso, a suprema demonstração é aquela
que não busca mais o porquê, mas o que é.


II. De Transitu a Demonstrationibus Inferioribus ad Superiores

(Da passagem das demonstrações inferiores às superiores)

A alma não pode elevar-se de súbito à ciência das causas supremas,
mas deve subir por graus,
da experiência à razão,
da razão ao intelecto,
e do intelecto à contemplação.

Boécio comenta:
“A razão que quer ver o que é divino
deve purificar-se de toda imagem.”

Assim como o olho não vê o sol senão após habituar-se à luz,
assim também a mente não contempla o primeiro princípio
senão quando as luzes inferiores cessam de ofuscar-lhe o olhar.


III. De Causis Primis et Summis

(Das causas primeiras e supremas)

As causas supremas são três:
— a eficiente, pela qual tudo é;
— a formal, pela qual tudo é tal como é;
— a final, pela qual tudo tende ao bem.

Essas três causas são uma só na fonte,
mas distintas em suas comunicações.

Boécio escreve:
“Deus é causa eficiente, porque dá o ser;
causa formal, porque dá a ordem;
causa final, porque dá o bem.”

E conclui:
“Quem conhece uma delas imperfeitamente,
conhece as três de modo velado;
mas quem as vê unidas, vê Deus mesmo.”


IV. De Demonstratione Primae Causae

(Da demonstração da causa primeira)

A causa primeira não se demonstra por outra,
mas por si.

Pois é princípio de toda demonstração,
e, portanto, indemonstrável no modo humano.

No entanto, pode ser mostrada (ostensa)
pela necessidade das coisas que dela dependem.

Boécio comenta:
“A primeira causa é conhecida pelo efeito universal:
o ser.”

Assim, quando a mente contempla o ser como necessário e comum,
toca a luz do princípio.

A essa visão, os antigos chamaram teologia,
porque é ciência do que é divino e eterno.


V. De Ordine Causarum ad Fidem et Visionem

(Da ordem das causas em relação à fé e à visão)

A razão demonstra que há uma causa primeira;
a fé reconhece nela o Deus vivo;
e a visão a contempla como bem supremo.

A demonstração prepara a fé;
a fé eleva a razão;
a visão consuma ambas.

Boécio explica:
“O intelecto vê pela luz da razão;
o espírito, pela luz da graça.”

Assim, a ordem das causas se cumpre
quando a mente, unida à fé,
vê com o mesmo olhar o verdadeiro e o santo.


VI. De Scientia Summarum Causarum

(Da ciência das causas supremas)

A ciência das causas supremas é chamada sapientia.
Ela é mais alta que a metafísica,
porque não considera apenas o ser,
mas o princípio do ser.

A metafísica mostra o Uno como causa;
a sabedoria o contempla como fim.

Boécio comenta:
“A sabedoria é a metafísica purificada pelo amor.”

Essa ciência não tem por objeto o múltiplo,
mas a unidade;
não a composição,
mas a simplicidade.

Nela, o conhecer e o ser são o mesmo.


VII. De Connexione Sapientiae et Scientiarum Inferiorum

(Da conexão da sabedoria com as ciências inferiores)

Embora a sabedoria esteja acima de todas,
não as destrói,
mas as confirma e ilumina.

Pois o que as inferiores demonstram pela razão,
ela o contempla pela essência.

Boécio escreve:
“A luz do alto não apaga as lâmpadas,
mas lhes dá cor mais pura.”

Assim, as ciências inferiores preparam o caminho da sabedoria,
e a sabedoria restitui às ciências sua unidade perdida.


VIII. De Ordine Mentis ad Deum

(Da ordem da mente para com Deus)

A mente que conhece as causas supremas
encontra em si o reflexo da ordem divina.

Pois Deus é a medida do ser,
e a mente é a medida das coisas conhecidas.

Boécio comenta:
“A razão mede o visível;
o intelecto mede o inteligível;
Deus mede o ser.”

Assim, quando o intelecto atinge a ordem das causas supremas,
torna-se conforme à mente divina,
e a ciência se converte em sabedoria.


Conclusio Sectionis
(col. 516C)

Conclui-se que a ordem das demonstrações culmina na ciência das causas supremas,
na qual o intelecto humano toca a sabedoria divina.

O caminho da razão termina no Uno,
donde toda verdade procede e para onde toda verdade retorna.

Boécio encerra:
“Toda demonstração é degrau;
todo degrau, ascensão;
e o último degrau é Deus.”

Finis Liberi Quarti — De Ordine Demonstrationum ad Summam Causarum Scientiam.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER QUINTUS — DE SCIENTIA DIVINA ET ORDINE INTELLECTUUM SEPARATARUM

(Quinto Livro — Da Ciência Divina e da Ordem dos Intelectos Separados)

col. 516C–529B (Migne, Tomus LXIV)

Depois de considerar a ciência das causas supremas,
resta agora tratar da ciência divina,
que é a origem e o termo de toda inteligência,
e do ordem dos intelectos separados,
que participam dessa ciência segundo diversos graus de perfeição.

Aristóteles chama “intelectos separados”
às substâncias imateriais e incorruptíveis,
que são ato puro e pensamento de si mesmas.

Boécio comenta:
“Como no corpo há movimento do exterior ao interior,
assim no espírito há movimento do múltiplo ao simples,
até que o conhecer se torne ser.”


I. De Scientia Divina in se ipsa

(Da ciência divina em si mesma)

A ciência divina é simples, eterna e total.
Ela não se move do ignorado ao conhecido,
porque em Deus não há sucessão,
mas presença plena do ser e da verdade.

Boécio escreve:
“Em Deus, conhecer e ser são o mesmo;
e o que Ele conhece, Ele cria.”

Assim, a ciência divina não é discurso,
mas visão imediata de tudo no Uno.

Tudo o que é, é conhecido por Ele
não segundo o tempo,
mas segundo o ser.


II. De Ordine Intellectuum Separatarum

(Da ordem dos intelectos separados)

Entre a ciência divina e a humana há uma hierarquia de inteligências puras,
que participam da luz divina em graus proporcionais à sua pureza.

O primeiro grau é o dos espíritos que veem a causa em si mesma;
o segundo, o dos que a veem por suas processões;
o terceiro, o dos que a conhecem pelos efeitos.

Boécio comenta:
“Nos inteligíveis há uma ordem como nos sons:
uns são vozes do silêncio, outros eco do verbo.”

E acrescenta:
“O mais alto intelecto é o que nada acrescenta ao ser;
o mais baixo, o que ainda o traduz em imagens.”


III. De Participatione Intellectuum in Scientia Divina

(Da participação dos intelectos na ciência divina)

Cada intelecto separado participa da ciência divina
segundo sua capacidade de união com a verdade.

Os superiores conhecem por presença;
os inferiores, por influxo;
os humanos, por reflexo.

Boécio explica:
“A luz do alto não se reparte, mas se espelha;
e quanto mais puro o espelho, mais perfeita a imagem.”

Assim, a diversidade dos intelectos não é oposição,
mas ordem de participação.

E essa ordem constitui a harmonia do mundo espiritual.


IV. De Scientia Angelica

(Da ciência angélica)

A ciência dos anjos é intermediária entre a divina e a humana.

Eles não raciocinam como nós,
pois não aprendem pelo discurso,
mas pela intuição imediata das causas.

Conhecem o particular no universal,
e o efeito na causa.

Boécio comenta:
“O anjo conhece como a luz ilumina:
de um só olhar abrange a forma e o fim.”

Assim, a ciência angélica é simultânea e total,
e cada inteligência celeste é um espelho singular do intelecto divino.


V. De Differentia inter Scientiam Divinam et Angelicam

(Da diferença entre a ciência divina e a angélica)

A ciência divina é criadora;
a angélica, receptora.

Deus conhece as coisas porque as faz;
os anjos, porque as recebem feitas.

Boécio escreve:
“Em Deus, a ciência é causa;
nos anjos, é participação.”

E acrescenta:
“O Criador vê o que é;
o anjo vê o que foi feito.”

Assim, a diferença é de origem e não de luz,
pois ambos conhecem pela eternidade,
mas só um é a eternidade mesma.


VI. De Ordine Intellectuum ad Humanam Mentem

(Da ordem dos intelectos em relação à mente humana)

A mente humana é o último elo da cadeia dos intelectos,
e participa da ciência divina de modo inferior e discursivo.

O homem conhece por imagens,
raciocina por sinais,
e só depois alcança a causa.

No entanto, é chamado “imagem de Deus”,
porque, embora em sombra,
possui em si o mesmo tipo de luz.

Boécio comenta:
“O homem é o eco da sabedoria,
e sua alma é o espelho do mundo.”

Assim, quando o intelecto humano se purifica,
ele se ordena à hierarquia dos espíritos,
e a razão se torna participante da inteligência.


VII. De Regressu Intellectuum in Deum

(Do retorno dos intelectos a Deus)

Toda inteligência tende ao Uno donde procede.

A ascensão é ordenada:
— os homens pela ciência e pela fé;
— os anjos, pela contemplação;
— Deus, por si mesmo.

Boécio escreve:
“O que desce do alto em ordem, sobe em ordem.”

Assim, o universo intelectual é um círculo:
procede de Deus pela criação,
e volta a Ele pela sabedoria.

Quando o último intelecto for purificado,
a ordem será perfeita,
e Deus será tudo em todos.


Conclusio Sectionis
(col. 529B)

Conclui-se que a ciência divina é princípio e fim de toda sabedoria,
e que os intelectos separados participam dela conforme seus graus de pureza.

O homem, em sua ascensão,
recapitula todas as luzes:
sensível, racional, inteligível e divina.

Boécio encerra:
“Toda inteligência é raio do Sol eterno;
e o retorno de cada raio à sua fonte
é o descanso da criação.”

Finis Liberi Quinti — De Scientia Divina et Ordine Intellectuum Separatarum.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER SEXTUS — DE SCIENTIA AETERNA ET PRAEDESTINATIONE RATIONIS DIVINAE

(Sexto Livro — Da Ciência Eterna e da Predestinação da Razão Divina)

col. 529B–542A (Migne, Tomus LXIV)

Concluídos os tratados sobre a ciência divina e sobre os intelectos separados,
resta agora investigar a ciência eterna,
que é a visão do ser em sua totalidade imutável,
e a predestinação da razão divina,
pela qual tudo o que é é ordenado antes de ser.

Aristóteles, ao tratar do tempo e da eternidade,
ensina que o eterno não é o tempo sem fim,
mas a posse simultânea e indivisível do ser.

Boécio comenta:
“A eternidade é a vida toda presente,
sem passado nem futuro,
porque tudo nela é agora.”


I. De Natura Scientiae Aeternae

(Da natureza da ciência eterna)

A ciência eterna é o modo pelo qual Deus conhece,
não no tempo, mas na unidade do ser.

O passado e o futuro são presentes à Sua visão,
porque Ele não conhece em sucessão,
mas em totalidade.

Boécio escreve:
“Em Deus, o que foi e o que será são o mesmo;
porque Sua ciência é causa do tempo,
e não efeito dele.”

Assim, a eternidade é o fundamento da verdade,
e a ciência eterna é o espelho do ser imutável.


II. De Praedestinatione Rationis Divinae

(Da predestinação da razão divina)

A razão divina é princípio da ordem universal,
e predestinação é o decreto dessa razão
pelo qual todas as coisas são dispostas segundo medida e fim.

Não há acaso diante de Deus,
pois até o que parece contingente está previsto no todo da razão eterna.

Boécio comenta:
“A predestinação é a razão no intelecto divino
que preexiste às coisas,
assim como o plano precede a obra.”

Assim, Deus não muda o curso do mundo,
mas o mantém na linha que Ele mesmo traçou.


III. De Relatione Scientiae et Praedestinationis

(Da relação entre a ciência e a predestinação)

A ciência divina conhece tudo o que será;
a predestinação ordena o modo pelo qual será.

A primeira é teórica, a segunda prática;
mas ambas são uma só sabedoria.

Boécio escreve:
“O saber divino vê o que a vontade divina quer.”

E acrescenta:
“O que é visto, é querido;
e o que é querido, é feito.”

Assim, o intelecto e a vontade são um só ato em Deus,
e a predestinação é o desdobramento temporal desse ato eterno.


IV. De Libertate Creaturarum in Praedestinatione

(Da liberdade das criaturas na predestinação)

A providência ordena todas as coisas,
mas não suprime a liberdade das causas segundas.

Pois o decreto divino inclui a liberdade como parte da ordem.

Boécio explica:
“A liberdade humana é também predestinada,
não porque seja forçada,
mas porque é prevista.”

Deus vê o livre como livre,
e o contingente como contingente;
e Sua ciência não impõe necessidade,
mas a compreende como causa superior.

Assim, o homem é livre na obediência,
e Deus é justo em sua presciência.


V. De Ordine Temporis ad Aeternitatem

(Da ordem do tempo em relação à eternidade)

O tempo é imagem móvel da eternidade.

O que é simultâneo em Deus
é sucessivo em nós.

A providência contém o plano eterno;
o destino, sua execução no tempo.

Boécio comenta:
“A providência é o olhar fixo de Deus;
o destino, o movimento das coisas vistas.”

Assim, o tempo é a projeção da eternidade,
e o movimento das criaturas é sombra do repouso divino.


VI. De Connexione Providentiae et Causarum

(Da conexão entre a providência e as causas)

As causas segundas são instrumentos da providência.

Nada foge à ordem divina,
porque o acaso é apenas a ignorância humana das causas.

Boécio escreve:
“O que chamamos fortuna é o curso oculto da razão eterna.”

E acrescenta:
“Nada acontece fora da ordem,
mas a ordem nem sempre é manifesta.”

Assim, a providência é a música secreta do mundo,
e as causas são as notas de sua harmonia.


VII. De Fine Scientiae Aeternae

(Do fim da ciência eterna)

O fim da ciência eterna é a conversão de todas as coisas ao princípio.

Pois o que sai de Deus pela criação
retorna a Ele pela ordem e pelo amor.

Boécio comenta:
“A ciência divina é o círculo da eternidade,
em cujo centro está o Uno,
e cuja circunferência é o universo.”

Assim, tudo o que é se move em Deus,
e nada pode sair de Sua luz,
porque a ciência eterna é a própria presença de Deus em tudo.


Conclusio Sectionis
(col. 542A)

Conclui-se que a ciência eterna é a visão imutável de Deus
e a predestinação, o decreto de Sua razão providente.

O tempo é o espelho da eternidade,
e a liberdade é a flor do decreto.

Boécio encerra:
“A ciência eterna é o descanso do ser,
e a predestinação, o movimento da bondade.”

Finis Liberi Sexti — De Scientia Aeterna et Praedestinatione Rationis Divinae.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER SEPTIMUS — DE PROVIDENTIA ET ORDINE MUNDI

(Sétimo Livro — Da Providência e da Ordem do Mundo)

col. 542A–556B (Migne, Tomus LXIV)

Depois de tratar da ciência eterna e da predestinação da razão divina,
resta agora investigar o modo como essa razão se manifesta no mundo,
isto é, a providência e o ordem universal das coisas criadas.

Aristóteles define a providência como “a razão ordenadora das coisas que se fazem”,
e Boécio a chama de “a presença da razão divina no movimento do mundo”.

Pois a providência é o espelho da sabedoria de Deus nas criaturas,
e o universo é a execução temporal de um decreto eterno.


I. De Natura Providentiae

(Da natureza da providência)

A providência é a disposição de todas as coisas
segundo uma razão eterna e imutável.

Não é movimento, mas norma do movimento;
não é criação, mas governo.

Boécio escreve:
“A providência é a lei eterna inscrita na mente divina,
segundo a qual o mundo é regido.”

Assim, ela é ao mesmo tempo ciência e ordem,
porque conhece e dispõe tudo o que existe.


II. De Differentia inter Providentiam et Fatum

(Da diferença entre a providência e o destino)

A providência é o plano universal;
o destino, sua execução no tempo.

A providência é causa do ser;
o destino, da mudança.

A primeira pertence ao intelecto divino;
o segundo, à ordem das causas inferiores.

Boécio explica:
“A providência está na unidade da mente divina;
o destino, na multiplicidade dos efeitos.”

Assim, o destino é a sombra da providência,
e a providência é a luz do destino.


III. De Ordine Mundi

(Da ordem do mundo)

O mundo é uma hierarquia de causas,
nas quais a ordem divina se reflete como num espelho.

Há ordem nos céus,
nas almas,
nas substâncias corpóreas,
e nas operações humanas.

Boécio comenta:
“Nada é fortuito na obra do Criador;
porque até o erro das criaturas é ocasião de ordem.”

Assim, o mal é apenas desvio aparente,
e a desordem é forma oculta da harmonia.


IV. De Causa Boni et Apparentia Mali

(Da causa do bem e da aparência do mal)

Todo o bem procede de Deus,
e nada há que seja absolutamente mau.

O mal não tem substância,
mas é ausência de ordem.

Boécio escreve:
“Assim como as trevas não são natureza, mas privação da luz,
o mal é privação da bondade.”

E acrescenta:
“A providência permite o mal para que dele brote o bem,
assim como o músico permite a dissonância para exaltar a harmonia.”

Portanto, o mal não é força contrária,
mas deficiência subordinada à perfeição universal.


V. De Ordine Libero Arbitrio Subiecto

(Da ordem em relação ao livre-arbítrio)

A liberdade humana não escapa à providência,
mas é compreendida dentro dela como causa parcial e subordinada.

Pois o homem é livre em suas escolhas,
mas não fora da ordem do bem.

Boécio explica:
“A providência não destrói a liberdade;
antes, a funda,
porque só é livre o que está ordenado ao bem.”

Assim, quanto mais o homem se ordena à razão divina,
mais livre se torna;
e quanto mais se afasta dela,
mais escravo do acaso se faz.


VI. De Harmonia Universali

(Da harmonia universal)

A providência é a harmonia das coisas opostas,
pela qual o mundo subsiste em unidade.

Os contrários são reconciliados no todo,
e o que se destrói em parte, se conserva no conjunto.

Boécio comenta:
“A providência é o ritmo secreto do cosmos,
onde o caos é apenas a pausa da melodia.”

Assim, o universo é o poema da razão divina,
e cada criatura é um verso cuja medida é o ser.

A sabedoria lê nesse poema a eternidade escrita no tempo.


VII. De Providentia in Particularibus

(Da providência nas coisas particulares)

A providência governa também o mínimo,
pois nada é pequeno diante de Deus.

O mesmo olhar que contém as estrelas
dirige o movimento do inseto e o crescer da semente.

Boécio escreve:
“Deus é inteiro em toda parte,
e cada ponto do universo é um reflexo de Sua ordem.”

Assim, o todo está em cada parte,
e cada parte no todo,
como o som está inteiro em cada nota da harmonia.


Conclusio Sectionis
(col. 556B)

Conclui-se que a providência é a razão eterna do governo divino,
e o mundo, a imagem temporal dessa razão.

Nada escapa à ordem,
porque o caos é apenas o véu da unidade.

Boécio encerra:
“A providência é a visão de Deus,
e o mundo é o movimento dessa visão.”

Finis Liberi Septimi — De Providentia et Ordine Mundi.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER OCTAVUS — DE ORDINE TEMPORUM ET AETERNITATIS IN CREATURIS RATIONALIBUS

(Oitavo Livro — Da Ordem do Tempo e da Eternidade nas Criaturas Racionais)

col. 556C–569A (Migne, Tomus LXIV)

Depois de tratar da providência e da ordem universal do mundo,
resta agora investigar como o tempo e a eternidade
se refletem nas criaturas racionais,
que, estando no meio entre o corpo e o espírito puro,
participam de ambos: da mudança e da imutabilidade.

Aristóteles distingue o tempo, que mede o movimento,
da eternidade, que é o repouso do ser.

Boécio acrescenta:
“Entre ambos há um terceiro modo:
o
aevum, que é a duração própria das naturezas racionais e incorruptíveis.”


I. De Triplici Ordine Durationis

(Da tríplice ordem da duração)

Há três ordens de duração:
— o tempo, próprio das coisas móveis;
— o aevum, próprio das substâncias espirituais criadas;
— a eternidade, própria de Deus.

O tempo mede o antes e o depois;
o aevum, o ser permanente com sucessão acidental;
a eternidade, o ser sem sucessão nem acidente.

Boécio escreve:
“O tempo corre; o aevum permanece; a eternidade é sempre presente.”

Assim, o homem participa do tempo pelo corpo,
do aevum pela alma,
e da eternidade pela inteligência.


II. De Aeternitate Angelorum et Mutabilitate Voluntatis

(Da eternidade dos anjos e da mutabilidade da vontade)

As naturezas angélicas são imutáveis quanto ao ser,
mas mutáveis quanto à vontade.

Pois sua substância é fixa,
mas sua escolha é livre.

Boécio comenta:
“O anjo não muda no que é,
mas pode mudar no que quer.”

Assim, a constância da natureza não impede o movimento da intenção,
e a liberdade subsiste mesmo na luz.

A queda de alguns espíritos é exemplo dessa mutabilidade,
não da essência, mas do amor.


III. De Anima Humana inter Tempus et Aevum

(Da alma humana entre o tempo e o aevum)

A alma humana ocupa lugar intermediário
entre o tempo dos corpos e o aevum das substâncias espirituais.

Vive no tempo enquanto unida ao corpo,
e no aevum enquanto pensa as verdades imutáveis.

Boécio escreve:
“O homem é temporal quando deseja,
mas eterno quando conhece.”

Assim, cada ato da alma é passagem de um mundo a outro:
da paixão para o intelecto,
do instante para a permanência.

A sabedoria consiste em fixar o olhar naquilo que não passa.


IV. De Memoria et Praevisione

(Da memória e da previsão)

A alma participa da eternidade pela memória e pela previsão,
pois estas a fazem transcender o instante.

Pela memória, retém o passado;
pela previsão, antecipa o futuro;
por ambas, se torna semelhante ao intelecto divino,
que contém todo o tempo em um só ato.

Boécio comenta:
“A memória é o eco do ser;
a previsão, a sombra do eterno.”

Assim, a alma, ao recordar e ao esperar,
reflete a estrutura da eternidade no fluxo do tempo.


V. De Conversione Temporis in Aeternitatem per Sapientiam

(Da conversão do tempo em eternidade pela sabedoria)

A sabedoria é a arte de converter o tempo em eternidade.

Pois o que é conhecido em verdade
deixa de passar.

A mente que contempla o bem imutável
vive já fora do tempo,
mesmo que o corpo ainda esteja sujeito ao movimento.

Boécio escreve:
“A alma que entende o que é eterno
já habita o aevum, mesmo no corpo mortal.”

Assim, o justo é cidadão do eterno,
e cada ato de sabedoria é libertação do instante.


VI. De Resurrectione et Renovatione Temporis

(Da ressurreição e da renovação do tempo)

Quando o corpo for transfigurado e unido à alma glorificada,
o tempo cessará de medir a mudança,
e se tornará forma da eternidade participada.

O instante será totalidade,
e o movimento, repouso.

Boécio comenta:
“O fim do tempo é a plenitude do ser.”

Assim, a ressurreição é a conversão do tempo em permanência,
e o mundo renovado será imagem imóvel da bondade divina.


VII. De Concordia Temporis et Aeternitatis in Deo

(Da concórdia entre o tempo e a eternidade em Deus)

Em Deus, o tempo e a eternidade coincidem,
porque Ele contém o movimento e o repouso em um só ato.

O que para nós é sucessão, n’Ele é simultaneidade;
o que para nós é mudança, n’Ele é ser.

Boécio escreve:
“Deus é o centro imóvel que move todas as coisas.”

Assim, o tempo é o raio da eternidade,
e toda criatura racional é chamada a regressar a esse centro.

O fim da história é o retorno do movimento ao princípio.


Conclusio Sectionis
(col. 569A)

Conclui-se que as criaturas racionais participam de três ordens:
do tempo, pelo corpo;
do aevum, pela alma;
e da eternidade, pelo intelecto.

A sabedoria é a passagem da ordem inferior à superior,
e o repouso final é a unificação de todas no Uno.

Boécio encerra:
“A mente que vence o tempo não morre,
porque o eterno já começou dentro dela.”

Finis Liberi Octavi — De Ordine Temporum et Aeternitatis in Creaturis Rationalibus.

ANICII MANLII SEVERINI BOETII — INTERPRETATIO POSTERIORUM ANALYTICORUM ARISTOTELIS

(Interpretação dos “Analíticos Posteriores” de Aristóteles)


LIBER NONUS — DE UNIONE SAPIENTIAE ET BEATITUDINIS IN INTELLECTU DIVINO

(Nono Livro — Da União da Sabedoria e da Bem-aventurança no Intelecto Divino)

col. 569B–582C (Migne, Tomus LXIV)

Tendo exposto a ordem do tempo e da eternidade nas criaturas racionais,
resta agora considerar o termo de toda ciência,
que é a unidade da sabedoria e da bem-aventurança no próprio intelecto divino.

Pois o fim de todo conhecimento é o bem,
e o bem supremo é inseparável da sabedoria.

Aristóteles chama “felicidade” à operação perfeita da razão,
e Boécio, elevando esse conceito, afirma:
“A verdadeira bem-aventurança é a sabedoria que se conhece e se ama.”


I. De Unione Sapientiae et Beatitudinis

(Da união entre sabedoria e bem-aventurança)

A sabedoria é a visão da verdade;
a bem-aventurança é o gozo dessa visão.

Onde há separação entre ambas,
há ciência, mas não perfeição.

Boécio comenta:
“A mente que conhece e não ama, sabe o caminho, mas não chega ao fim.”

Assim, a bem-aventurança é a forma da sabedoria,
e a sabedoria, a substância da bem-aventurança.

Deus é, portanto, o Sábio e o Bem-aventurado ao mesmo tempo,
porque n’Ele conhecer e fruir são um só ato.


II. De Sapientia Divina ut Principio Beatitudinis

(Da sabedoria divina como princípio da bem-aventurança)

A sabedoria divina é o princípio de toda bem-aventurança,
porque dela procede toda luz e todo bem.

Boécio escreve:
“A sabedoria é a raiz da alegria eterna,
porque ilumina a mente e ordena o amor.”

Assim, a felicidade dos anjos e dos santos
é participação nessa sabedoria,
não por posse plena, mas por união amorosa.

A sabedoria cria,
a bem-aventurança conserva.

O mundo foi feito pela primeira
e é sustentado pela segunda.


III. De Beatitudine Creaturarum Rationalium

(Da bem-aventurança das criaturas racionais)

A bem-aventurança das criaturas é participação no ato divino de sabedoria.

Pois o intelecto que contempla a verdade,
e a vontade que ama o bem,
se unem num mesmo repouso,
que é imagem da unidade divina.

Boécio comenta:
“A alma bem-aventurada é aquela que pensa o que ama
e ama o que pensa.”

Assim, a felicidade não é movimento, mas presença,
nem esperança, mas posse.

O fim da razão é a visão;
o fim da visão é o amor.


IV. De Ordinibus Beatitudinis

(Das ordens da bem-aventurança)

Há graus de bem-aventurança conforme a profundidade da sabedoria:

— o primeiro, dos santos e dos anjos,
que veem a causa face a face;

— o segundo, das almas puras,
que a veem pelas espécies inteligíveis;

— o terceiro, dos sábios terrenos,
que a buscam pelas sombras da razão.

Boécio escreve:
“Todos são bem-aventurados segundo o grau em que participam da luz.”

Assim, o gozo da verdade é proporcional à sua compreensão,
e o amor ao bem, à medida de sua posse.


V. De Unione Intellectus et Voluntatis in Deo

(Da união do intelecto e da vontade em Deus)

Em Deus, a sabedoria e o amor são uma só substância.

O intelecto divino conhece o bem;
a vontade divina o quer;
mas conhecer e querer são o mesmo ato.

Boécio comenta:
“Em Deus, o amor é o conhecimento em chama.”

Assim, a bem-aventurança divina é ato puro,
sem alternância, sem potência, sem sombra.

O que Ele conhece, ama;
o que ama, é.

N’Ele, o ser é fruição e a fruição é ser.


VI. De Participatione Beatitudinis in Mente Humana

(Da participação da bem-aventurança na mente humana)

A mente humana participa da bem-aventurança
quando se eleva da ciência ao amor contemplativo.

A razão busca;
o intelecto encontra;
o amor consome.

Boécio escreve:
“A ciência é o olhar;
o amor, o calor;
e ambos juntos, a vida.”

Assim, a contemplação perfeita é chamas de luz,
onde o conhecer e o amar coincidem.

A alma purificada já vive a bem-aventurança,
mesmo antes da visão final.


VII. De Fine Sapientiae et Beatitudinis

(Do fim da sabedoria e da bem-aventurança)

O fim da sabedoria é o repouso da mente na verdade;
o fim da bem-aventurança é o repouso da vontade no bem.

Ambas se unem quando o homem vê Deus.

Boécio escreve:
“A sabedoria é a luz da mente;
a bem-aventurança, sua paz.”

E acrescenta:
“Quem vê o que é, descansa;
quem ama o que vê, reina.”

Assim, a suprema felicidade é o ato contínuo do amor iluminado,
em que o intelecto não busca mais,
porque possui o próprio fim.


Conclusio Sectionis
(col. 582C)

Conclui-se que a sabedoria e a bem-aventurança são inseparáveis,
porque o amor é a consumação do conhecimento,
e o conhecimento, a forma do amor.

A ciência divina é o ser;
a bem-aventurança divina, o gozo de ser.

Boécio encerra:
“Quem participa da sabedoria, começa a ser bem-aventurado;
quem se une à sabedoria, já é eterno.”

Finis Liberi Noni — De Unione Sapientiae et Beatitudinis in Intellectu Divino.

 

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