A obra Acto y Ser representa a culminação da “Filosofia da
Integralidade” de Sciacca, posicionando-se como eixo ontológico-metafísico de
sua proposta filosófica. O autor parte da crítica à dissolução da metafísica
nas correntes gnoseológicas modernas (Descartes, Kant, positivismo), para
reivindicar a autonomia e a primazia do ser como fundamento da experiência, da consciência
e da realidade.
A tese central sustenta que o ser não é nem um dado empírico nem
uma estrutura lógico-formal, mas um ato originário e interior ao sujeito, que
se manifesta enquanto consciência de si, implicação com o outro e copresença
com a realidade. Sciacca retoma e reformula a intuição rosminiana do ser como
ideia originária — não como construção subjetiva, mas como verdade ontológica
absoluta, presença constitutiva do espírito e fonte de toda inteligibilidade.
A partir disso, propõe uma metafísica do homem enraizada na
dialética da implicação: o ser não se reduz ao real, à consciência, à moral ou
à essência inteligível isolada — ele é simultaneamente ato, presença, limite e
tendência à plenitude. A interioridade, a liberdade, o amor, a verdade e o
espírito são formas do ser em sua concretude histórica e existencial.
Contra o idealismo que dissolve o real no pensamento, e o realismo
que subordina o espírito à matéria, Sciacca afirma a inseparabilidade dinâmica
entre sujeito e objeto, ser e conhecer, essência e existência. A filosofia,
nesse horizonte, é reencontro com a verdade primeira, que não é evasão nem
consolo, mas compromisso vital com o sentido último do ser.
Acto y Ser, assim, é um grito contra a fragmentação moderna do saber e da
existência, e um chamado à reintegração da verdade ontológica, espiritual e
pessoal como chave da filosofia, da moral e da realidade.
Capítulo I – O ser como origem: um chamado
esquecido
- O começo de tudo não é uma ideia, mas uma presença
- Por que o real não se explica sem o ser
- Ser antes de pensar: contra os vícios da filosofia moderna
Capítulo II – A interioridade como ato: a alma da
metafísica
- O ser que habita: consciência, desejo e limite
- A implicação entre mente e ser: não há fora
- Amar é existir: o ser na forma do outro
Capítulo III – A mentira do realismo e do idealismo
- Quando o real vira máscara e o pensamento se perde
- Nem sujeito, nem objeto: o ser como tensão vivida
- A integralidade como saída: o mundo é relação
Capítulo IV – O homem como ser-em-ato: plenitude e
ferida
- Não somos essência fixa, mas drama em construção
- A liberdade como esforço de ser mais
- Deixar-se atravessar pelo ser: ética, tempo e salvação
Capítulo I – O ser como origem: um chamado esquecido
Artigo 1 – O começo de tudo não é uma ideia, mas uma presença.
Há um ponto onde toda filosofia se decide. Não é um conceito, nem uma
escola, muito menos um sistema. É um gesto silencioso: reconhecer que o ser não
começa no pensamento. O ser vem antes. Antes da dúvida cartesiana, antes do
empirismo dos sentidos, antes do idealismo que se fecha em si mesmo. O ser não
é um dado objetivo, nem uma construção subjetiva. Ele é presença. Presença que
me constitui, presença na qual já estou mergulhado quando me descubro pensando.
Sciacca começa sua obra deslocando radicalmente a pergunta: em vez de
perguntar "como conhecemos?", ele pergunta "o que é que torna
possível qualquer conhecimento?". A resposta não é uma estrutura lógica,
nem um aparato psicológico. A resposta é o ser. E o ser não é pensado: é
vivido. Não se trata aqui de um ser abstrato, genérico, retirado da linguagem
filosófica tradicional. Trata-se de um ser concreto, encarnado, vivido na carne
e no espírito, sentido na alegria e no medo, percebido na relação, no tempo, no
amor, no cansaço.
Esse ser não pode ser reduzido a uma categoria lógica. Toda tentativa de
reduzi-lo ao conceito – seja por Kant, que o enquadra como categoria do
entendimento, seja pelo positivismo, que o rejeita como não verificável –
fracassa antes de começar. Porque a própria possibilidade de conceituar já
pressupõe o ser. Antes da lógica, há uma luz. E essa luz é ontológica, não
gnoseológica. Rosmini chamou isso de "ideia do ser": não uma ideia
fabricada pela mente, mas a ideia que possibilita a mente. Sciacca toma essa
intuição e a leva adiante: o ser não apenas ilumina o pensamento, ele o funda.
Não há pensamento sem ser, mas o ser não depende do pensamento.
O erro da filosofia moderna é inverter essa ordem. Ela quis fundar o ser
sobre o conhecimento. Quis fazer da certeza o critério da existência. Mas só
posso buscar certeza porque já sou. Só posso duvidar porque existo. A ontologia
não é um ramo da epistemologia – é o contrário. Sciacca denuncia esse vício
como um equívoco profundo: ao priorizar o conhecer, esquecemos o mais
fundamental – a nossa condição de já estarmos sendo, de já estarmos envolvidos
numa realidade que nos escapa justamente por estar sempre presente.
Essa presença não é neutra. Não é um objeto que olho de fora. Ela me
envolve, me define, me desafia. Ela não é passiva, mas ativa: o ser é ato. E
por isso, ele não se reduz a uma coisa. O ser é movimento, é tendência, é
potência que se atualiza sem jamais se esgotar. Ele é o próprio dinamismo do
real. E é por isso que ele não pode ser deduzido, nem demonstrado. O ser se
impõe. E, justamente por isso, não pode ser ignorado. Mesmo aquele que tenta
negá-lo só o faz dentro dele.
O ser é mais íntimo a mim do que meu próprio "eu". Está na
base da memória e da expectativa. Está no pano de fundo das escolhas, dos
erros, dos gestos mais banais. É o que torna possível o riso e o pranto. É por
isso que, para Sciacca, a ontologia não é um luxo teórico, mas uma necessidade
vital. Sem ela, o homem se perde. Não sabe de onde veio, nem para onde vai.
Confunde-se com as coisas, com os dados, com os métodos. E esquece que há algo
mais profundo, que sempre esteve ali: uma presença que não se explica, mas que
exige ser reconhecida.
O começo, então, não é uma ideia. É um encontro. Com algo que não
inventamos, que não controlamos, mas que nos dá a possibilidade de ser quem
somos. Esse algo é o ser. E reconhecer isso – esse gesto silencioso, esse
reconhecimento humilde – é o verdadeiro início da filosofia.
Artigo 2 – Por que o real não se explica sem o ser
Existe uma ilusão profundamente arraigada na modernidade: a crença de
que o real pode ser compreendido por si mesmo, a partir dos dados sensíveis,
das experiências empíricas, dos fenômenos quantificáveis. Essa crença está na
base tanto do realismo grosseiro, que identifica o ser com o mundo das coisas,
quanto do cientificismo, que reduz toda verdade ao que pode ser medido,
testado, repetido. Para Sciacca, essa é a amputação original da filosofia
moderna – uma amputação que cortou o ser do real e, assim, esvaziou o próprio
real de sentido.
O real, isolado do ser, se torna opaco. O que é uma pedra, se não se
inscreve numa ordem de sentido que a transcende? O que é o corpo, sem o
espírito que o vivifica? O que é o universo, sem um logos que o sustenta? Para
a ciência, a pedra é um aglomerado de partículas. Para a técnica, é um
material. Mas nenhuma dessas abordagens toca no que ela é. O real, sem o ser,
vira coisa – e toda coisa, tratada como pura exterioridade, como puro objeto,
se torna insignificante.
Sciacca se insurge contra isso. Ele insiste que não há real fora do ser.
E não porque o ser seja uma teoria que “explica” o real, mas porque é nele que
o real se dá. A própria experiência de realidade é uma experiência de ser. O
real só se mostra porque algo em nós já reconhece sua presença, já a sente como
algo que está ali, que nos toca, que nos interpela. Essa presença, essa
“dádiva” do mundo, não pode ser pensada sem o ser. O mundo aparece – mas não se
autojustifica. E é nessa tensão que se abre o espaço da metafísica: não como
sistema, mas como escuta.
Quando se retira o ser do real, o que resta é um mundo fragmentado. Um
amontoado de dados sem sentido. A ciência pode organizá-los, mas não pode
justificá-los. Pode descrevê-los, mas não pode dizer por que há algo em vez de
nada. Essa pergunta, que a ciência evita ou desdenha, é a pergunta que funda a
filosofia. E a resposta não pode ser empírica. Só o ser explica o real, porque
só ele o funda.
E é aqui que Sciacca dá um passo decisivo: o ser não é simplesmente o
“substrato” do real. Ele é ato. Não se trata de um ente imóvel que “está por trás”
das coisas. O ser é o próprio movimento que permite que as coisas surjam,
permaneçam, se transformem. Ele é o dinamismo que sustenta a existência de tudo
o que é. E esse dinamismo não é neutro, não é cego. Ele se manifesta como
relação, como presença que exige resposta, como abertura à interioridade.
Por isso, o real nunca é puro objeto. Ele é sempre também manifestação
de algo mais fundo – algo que não se vê, mas que se sente. O jardim que vemos
não é só um conjunto de flores, mas uma unidade vivida. O rosto de alguém não é
só uma composição de traços, mas um apelo. O mundo nos fala, mas só porque nele
vibra o ser. O que chamamos de “realidade” só se torna significativa porque é
acolhida por um sujeito espiritual que, ao reconhecê-la, já está implicado com
o ser.
Essa implicação é essencial. Sciacca rejeita tanto o realismo ingênuo
que pensa o mundo como algo completamente exterior a nós, quanto o idealismo
abstrato que faz do mundo uma mera projeção do sujeito. O real é real, sim. Mas
não por si só. Ele é real porque participa do ser. E essa participação só pode
ser reconhecida por quem já está, ele mesmo, enraizado no ser.
O mundo, então, não é um dado bruto. É um convite. Um chamado. Um signo.
E o ser é o que torna possível essa linguagem muda, essa comunicação entre
aquilo que está fora e aquilo que pulsa dentro de nós. O real só tem sentido
quando atravessado pelo ser. E nós, se quisermos compreender esse sentido,
precisamos reencontrar essa origem – esse fundo de presença silenciosa que
sustenta tudo.
Artigo 3 – Ser antes de pensar: contra os vícios da
filosofia moderna
O maior erro da filosofia moderna foi acreditar que o pensamento tem
primazia sobre o ser. Desde Descartes, a ideia de que o “penso, logo existo”
inaugura o caminho do saber virou um dogma. Mas Sciacca inverte esse gesto: não
é o pensamento que garante a existência, é a existência que torna o pensamento
possível. Não é o “cogito” que funda o ser, é o ser que sustenta o “cogito”.
Antes de pensarmos, antes de dizermos “eu”, já somos. Já estamos mergulhados
numa realidade que nos atravessa e nos escapa.
A modernidade filosófica, ao colocar o sujeito como ponto de partida,
criou uma armadilha: tudo passou a ser medido a partir da consciência, da
representação, da certeza do pensamento. Mas a consciência não é absoluta. Ela
é um ato inserido numa realidade que a excede. Pensar não é gerar o ser – é
participar dele. O erro está em confundir a iluminação com a fonte da luz. O
pensamento é uma lâmpada que se acende, mas o ser é o sol que a torna possível.
Sciacca não nega o valor do pensamento. Pelo contrário, ele o exalta.
Mas exige que se reconheça sua raiz. Pensar não é um ato flutuante, neutro,
desencarnado. Pensar é um gesto do ser. É uma modalidade do ser-em-ato. Quando
penso, é porque sou – e sou de um modo particular: um modo que sente, que
busca, que se interroga, que se inquieta. Por isso, toda filosofia que começa
pelo pensamento e não pelo ser está fadada a construir castelos no ar: belos,
coerentes, mas sem chão.
E é exatamente isso que Sciacca vê nos sistemas idealistas – de Kant a
Hegel. Eles se fecham no pensamento. Transformam o real em projeção, o mundo em
categoria, a realidade em estrutura lógica. Tudo vira forma, tudo se
racionaliza. Mas nessa racionalização, perde-se o contato com o mistério. Com a
espessura da existência. Com a dor, o amor, a morte – com tudo aquilo que o
pensamento sozinho não explica, mas que exige ser vivido.
Sciacca também recusa o outro polo: o realismo empirista, que tenta
suprimir o pensamento para salvar o mundo “lá fora”. Esse realismo, ao negar a
interioridade, transforma o sujeito em engrenagem e a realidade em objeto frio.
Tanto um quanto o outro – idealismo e realismo – são dois lados do mesmo erro:
colocam o ser depois do pensamento, ou dissolvido nele. Mas o ser vem antes. O
ser é condição. O ser é origem.
Por isso, o pensamento só é verdadeiro quando é ato de reconhecimento.
Quando se sabe vindo de algo maior. Quando se curva diante do que o sustenta. O
pensamento verdadeiro é humilde: ele não cria, ele contempla. Não fabrica, mas
descobre. E essa descoberta não é passiva – é uma entrega ativa, uma abertura,
uma aceitação da presença que se impõe.
A filosofia moderna, obcecada pelo método, quis determinar o ser com
base no conhecer. Quis estabelecer a realidade segundo as condições do sujeito.
Sciacca desmonta essa lógica: se o ser depende do pensamento, então tudo vira
ficção. Mas se o pensamento se reconhece como participação no ser, então tudo
se torna possível – inclusive a verdade, a liberdade, o amor.
Ser antes de pensar significa recolocar a filosofia em seu caminho
próprio. Significa romper com a arrogância de querer dominar o ser pela razão,
e voltar à atitude primeira do filósofo: a admiração. Admirar que haja algo,
que sejamos, que o mundo exista, que a verdade nos toque. Antes do sistema, há
um espanto. Antes da explicação, há uma presença. E é nesse espanto que tudo
começa – ou, melhor dizendo, é aí que reencontramos o começo que nunca deixou
de estar presente.
Capítulo II – A interioridade como ato: a alma da
metafísica
Artigo 1 – O ser que habita: consciência, desejo e limite
Se o ser é presença originária, como vimos, ele não está fora de nós,
como uma coisa observada à distância. Ele está dentro. Ou melhor: somos dentro
dele. É por isso que Sciacca insiste na interioridade como ponto central da
metafísica. Não uma interioridade psicológica, fechada em pensamentos ou
sentimentos subjetivos, mas uma interioridade ontológica — aquela região do
espírito onde o ser se mostra como ato. Essa interioridade não é introspecção.
É o lugar onde se dá o embate entre o que somos e o que ainda não somos.
O primeiro gesto dessa interioridade não é o saber, mas a consciência. E
consciência, para Sciacca, é já participação no ser. Ser consciente não
significa refletir sobre um objeto; significa estar presente a si mesmo — e,
por isso, experimentar o ser de modo direto. Aqui, ele se distancia de toda
tradição que tenta derivar a consciência da experiência externa ou de mecanismos
cerebrais. A consciência é o modo próprio do ser humano ser. Ela é o modo como
o ser, em nós, se atualiza.
Mas essa atualização é incompleta. Sempre incompleta. E é aí que entra o
desejo. O desejo não é uma carência vulgar, não é simples apetite. É um grito
do ser em nós por mais ser. Desejamos porque somos finitos, e o finito só se
sustenta enquanto aberto ao infinito. O limite que nos atravessa — esse
não-poder, esse ainda-não — não é uma negação do ser. É sua condição. O ser, em
nós, é sempre ato em tensão, nunca posse plena. Por isso, a consciência
verdadeira é trágica: ela sabe que é mais do que aquilo que pode realizar.
Essa tensão entre presença e ausência, entre o ser que nos habita e o
ser que ainda não alcançamos, constitui o núcleo da existência humana. Não
somos substâncias fixas. Somos história. Não como sucessão de eventos, mas como
drama espiritual. E nesse drama, a interioridade não é refúgio. Não é fuga. É
combate. É nela que sentimos o peso da liberdade, a exigência da verdade, a
sede de plenitude que nenhuma técnica, nenhuma ideologia, nenhuma filosofia de
manual consegue apagar.
Sciacca chama isso de síntese primitiva. É o ponto onde a
consciência e o ser se tocam, onde o pensar, o sentir e o querer se entrelaçam
num só gesto. E esse gesto não se esgota nunca. Porque o ser que nos constitui
é infinito, e nós somos finitos — mas abertos. Essa abertura é o que nos
define. Não somos o que somos: somos o que buscamos ser. A interioridade,
assim, é o lugar da presença e da falta, da luz e da sombra. Ela nos mostra que
ser é já estar em caminho.
E se há caminho, há direção. A interioridade não é um redemoinho de
vontades, mas uma seta apontada ao alto. Mesmo em suas quedas, ela guarda um
apelo. Mesmo nos erros, há um resto de verdade. O homem é esse paradoxo: um ser
limitado que carrega em si o eco do ilimitado. E só quem mergulha na própria
interioridade pode ouvir esse eco, esse chamado silencioso que nos pede mais do
que o mundo pode dar. Esse chamado — Sciacca afirma — é o próprio ser, pedindo
para ser reconhecido, amado e vivido.
Artigo 2 – A implicação entre mente e ser: não há
fora
A mente não está diante do ser como um observador diante de um objeto.
Essa imagem — herança do dualismo moderno — é uma distorção radical. Não há
“fora” do ser onde a mente possa se colocar para julgá-lo, descrevê-lo,
contê-lo. A mente está dentro do ser. E mais: ela só é mente porque está
implicada com o ser desde sempre. Sciacca insiste nisso com veemência: pensar
não é operar sobre algo externo; pensar é um modo do ser se tornar atual em
nós.
Essa implicação não é opcional. Não é resultado de uma escolha ou de uma
construção. É originária. Pensar é já estar comprometido com o ser. Não há
neutralidade possível. Toda reflexão, toda imagem, todo conceito carrega, mesmo
sem saber, essa relação fundante. E é por isso que a ideia de um pensamento
"puro", "objetivo", "fora das condições do ser"
é, na verdade, uma ilusão perigosa. Ela esvazia o pensar de seu vínculo vital
com a existência.
Para Sciacca, essa relação não é entre dois termos separados, mas entre
dois momentos de um mesmo ato. A mente que pensa está no ser — e o ser, ao se
manifestar, não o faz fora da mente, mas nela. Isso não quer dizer que o ser se
reduz à mente, como querem os idealistas. Tampouco quer dizer que a mente é
apenas receptora passiva de algo externo, como querem os empiristas. A relação
é mais sutil: o ser se mostra na mente, mas não se esgota nela. E a
mente conhece pelo ser, mas não o domina.
Essa é a chave da filosofia da integralidade que Sciacca propõe.
Pensamento e ser não são dois blocos que se opõem, mas dois polos que se
implicam. O pensar só é possível porque há ser. Mas esse ser não é uma
substância inerte. É um ato. Um dinamismo. Ele não apenas é — ele se dá,
se oferece, se revela. E pensar, então, é acolher essa revelação. O pensamento
verdadeiro não é aquele que conquista o ser, mas o que se deixa transformar por
ele.
Essa transformação não é abstrata. Ela acontece na vida concreta: na
escolha, na dúvida, na culpa, no amor, na criação. A mente não é um espelho. É
um fogo. Ela não reflete o ser — ela se inflama nele. E essa chama, que nos
queima por dentro, é a própria marca do espírito: não a frieza do cálculo, mas
a tensão entre o que se é e o que se busca ser. A mente, quando fiel a si
mesma, não analisa — adora. Ela reconhece no ser algo que a excede e que, ao
mesmo tempo, a constitui.
Sciacca quer nos afastar tanto da rigidez lógica dos sistemas quanto da
névoa emocional dos misticismos baratos. O ser que habita a mente não é uma ideia.
É uma presença que exige verdade. Uma presença que sustenta o pensamento, mas
que também o julga. Por isso, toda filosofia que ignora essa implicação
original mente sobre si mesma. E toda mente que se fecha ao ser se torna
caricatura de si.
Não há fora do ser. Toda tentativa de neutralidade absoluta — seja
científica, seja filosófica, seja religiosa — parte de um engano. O pensamento,
por mais crítico que seja, já está dentro. Já é parte. Já é implicado. A
verdadeira liberdade da mente não está em se isolar, mas em reconhecer essa
pertença. Pensar com verdade é pensar como quem ouve — e não como quem manda.
Artigo 3 – Amar é existir: o ser na forma do outro
Sciacca chega a um ponto decisivo: se o ser é ato, se ele nos habita
como interioridade viva, então ele só se realiza plenamente quando se torna
relação. E essa relação, no seu grau mais alto, tem um nome: amor. Mas é
preciso limpar esse nome de todos os resíduos sentimentais ou psicológicos.
Amor, aqui, não é afeto, nem emoção — é um modo de ser. É o modo como o ser
transborda de si mesmo e se entrega a um outro, sem perder-se. É presença que
se dá, sem anular-se. É ser em forma de dom.
O amor, então, não é algo que o sujeito possui ou sente. É o próprio
sujeito sendo mais do que ele mesmo. Amar é deixar o próprio ser sair de si —
não por fraqueza, mas por potência. A interioridade verdadeira é aquela que se
abre, não como quem se expõe, mas como quem reconhece que só se torna plena
quando acolhe o outro. O amor é o reconhecimento de que o ser é comunhão. Ato
que se torna co-presença. E essa co-presença não é fusão, mas implicação mútua:
eu permaneço eu, tu permaneces tu — mas agora há um entre, que é mais do que a
soma dos dois. Esse entre é onde o ser aparece em sua forma mais alta.
A filosofia que não compreende isso se perde no abstrato. Fica girando
em torno de conceitos vazios, sem tocar o drama real do existir. Para Sciacca,
o amor é o lugar onde o ser deixa de ser uma palavra e se torna carne. Ele
rompe o isolamento do eu. Rompe o narcisismo do sujeito moderno. E mostra que
não há salvação no eu fechado. O ser que se fecha sobre si apodrece. Só quem se
entrega, vive. Por isso, o amor não é adorno da existência — é sua chave.
E não estamos falando apenas de amor afetivo, nem sequer do amor erótico
ou familiar. O que Sciacca propõe é mais radical: o amor como estrutura
ontológica do espírito. Amar é reconhecer o outro como portador do ser, como
manifestação da mesma presença que me habita. Amar é reconhecer o ser no outro
— e, portanto, também em mim. Não se ama porque se conhece. Ama-se, e só então
se conhece. O amor revela. Torna o outro visível, real, existente.
Sem amor, o outro é objeto. É função. É obstáculo ou instrumento. Com
amor, o outro é rosto. É presença. É enigma. O amor nos restitui a alteridade
do outro sem que ele precise se justificar. E isso é um escândalo para a lógica
moderna, que exige razões, garantias, cálculos. O amor dispensa tudo isso. Ele
é um salto no ser. Um ato gratuito que transforma. E que, por isso mesmo, é o
mais radical dos atos filosóficos.
Quando Sciacca afirma que o ser se realiza no amor, ele não está fazendo
poesia. Está dizendo que o ser é relação. Que o fundamento da realidade não é
uma substância imóvel, mas um movimento de doação. A interioridade, para ser plena,
precisa se entregar. E é nesse gesto que o homem se descobre mais
verdadeiramente homem. Não no fechamento do ego, mas na abertura do coração.
Não na acumulação de saberes, mas no reconhecimento daquilo que nenhum saber
explica: a dignidade do outro.
Amar é existir em sua forma mais alta. Não como quem se perde, mas como
quem finalmente se encontra. Só quem ama conhece o ser. Só quem ama é capaz de
permanecer fiel ao que é. O resto é ruído, é sombra, é máscara. A filosofia que
esquece o amor é uma filosofia mutilada. E o homem que recusa o amor é um ser
que se trai. Sciacca, aqui, não dá lições morais — ele traça a cartografia do
espírito. E essa cartografia tem um nome que a resume: comunhão.
Capítulo III – A mentira do realismo e do idealismo
Artigo 1 – Quando o real vira máscara e o pensamento se perde
A filosofia moderna, dividida entre o realismo e o idealismo, acabou
criando um teatro onde o ser é o grande ausente. De um lado, os realistas
afirmam: o mundo está lá fora, pronto, independente, objetivo. Basta
observá-lo, quantificá-lo, organizá-lo. De outro, os idealistas respondem: o
mundo é uma construção da mente, um produto da subjetividade, uma projeção da
consciência. O primeiro se perde na matéria, o segundo se afoga na ideia. Ambos
erram no ponto de partida. Ambos reduzem o ser àquilo que conseguem controlar —
seja o objeto, seja o sujeito.
Sciacca denuncia esse impasse como um vício de origem. Tanto o realismo
quanto o idealismo partem da mesma operação: separação. O realismo separa
sujeito e mundo e depois tenta costurá-los com teorias da representação, da
adequação, da experiência sensível. O idealismo separa o sujeito do real e
depois o absolutiza, fazendo do pensamento a fonte de tudo. Mas o que está em
jogo é o que se perde nessa separação: o ser como unidade originária.
No realismo, o ser vira coisa. Vira objeto bruto, massa observável. Vira
aquilo que está “lá fora” e pode ser medido, manipulado, previsto. Mas essa
objetivação total anula o sujeito — e, com ele, a própria possibilidade de
sentido. Pois que sentido tem o mundo se não há alguém para acolhê-lo? E mais:
que tipo de existência tem algo que não é sentido, vivido, amado ou recusado? O
realismo radical congela o ser. O transforma num cadáver.
No idealismo, o ser vira ideia. Vira projeção do eu, construção do
espírito. Mas essa absolutização do sujeito implode: se tudo é construção,
então nada tem solidez. O mundo vira aparência, a alteridade desaparece, a
verdade se dissolve em função do gosto, da época ou da vontade. O sujeito, fechado
em si, torna-se uma prisão. E a mente, que deveria ser janela para o ser, se
torna espelho deformante.
Ambos, diz Sciacca, operam com um mesmo erro estrutural: tomam parte
pelo todo. O realista absolutiza o mundo sensível, o idealista absolutiza o mundo
mental. Mas o ser não se reduz a nenhum dos dois. Ele não é apenas o que é
dado, nem apenas o que é pensado. Ele é o que se dá como pensado, em
alguém que pensa, com aquilo que é. O ser é implicação, não separação. É
relação vivida, não dicotomia formal.
Por isso, Sciacca rejeita a conciliação fácil entre as duas posições.
Não se trata de encontrar um meio-termo entre sujeito e objeto, nem de
construir um sistema que “reconcilie” real e ideal. Trata-se de romper com a
estrutura mesma que gerou a cisão. A filosofia não pode se contentar com
paliativos. Ela precisa retornar à fonte: à unidade originária onde ser e
pensar já estão implicados, onde a interioridade se abre ao mundo sem
dissolver-se, e o mundo se manifesta sem perder sua alteridade.
O que está em jogo aqui não é um debate técnico entre escolas. É o
destino da verdade. Pois quando o ser é esquecido — quando é reduzido ao
visível ou ao pensável — o pensamento se perde. Ele vira instrumento,
ideologia, vaidade. A razão deixa de ser caminho de ascese e vira engrenagem de
controle. E a filosofia, que nasceu como amor à sabedoria, vira serva do poder,
do cálculo, do sistema.
Sciacca nos pede para sairmos desse teatro. Para calarmos o ruído das
disputas abstratas. Para retornarmos ao silêncio da interioridade onde o ser
fala. Não como objeto, nem como construção — mas como presença. Só aí o
pensamento reencontra sua verdade. Só aí o real deixa de ser máscara. E só aí a
filosofia pode voltar a ser o que sempre foi: escuta atenta do que é.
Artigo 2 – Nem sujeito, nem objeto: o ser como
tensão vivida
Toda a construção filosófica que se ancora na oposição entre sujeito e
objeto está condenada à falsidade. Essa é a afirmação dura e precisa que
Sciacca coloca como linha de ruptura com a tradição moderna. Porque o ser — o
verdadeiro ser — não se deixa cortar em dois. Não é uma metade subjetiva
olhando uma metade objetiva. Não é um eu isolado que interpreta, nem uma coisa
lá fora que se impõe. O ser é uma unidade viva, onde sujeito e objeto não se
excluem, mas se co-implicam.
A mente não começa sozinha, nem diante de um mundo inerte. Ela já é,
desde sempre, envolvida num campo de sentido onde o real a interpela e ela
responde. O sujeito não está do lado de cá da experiência, e o objeto do lado
de lá. Essa imagem de espelho é justamente o que deve ser quebrado. Porque o
espelho não mostra a profundidade. Ele reflete uma superfície. E o que está em
jogo aqui é o que se passa por baixo da superfície — aquela tensão radical
entre o que somos e o que nos escapa, entre o que pensamos e o que nos
ultrapassa.
Sciacca nos pede que abandonemos o vocabulário dualista que infectou
toda a filosofia pós-cartesiana. O ser não é uma substância imóvel, nem uma
estrutura mental. Ele é tensão. E essa tensão é vivida, não apenas pensada. O
ser nos atravessa como um sopro que não conseguimos reter. Ele se dá, mas nunca
se entrega inteiro. Ele se mostra, mas sempre pela metade. Ele se deixa tocar,
mas nunca se deixa possuir. E é por isso que o homem, ao existir, não repousa.
Está sempre em falta, sempre em busca, sempre inquieto. Porque o ser que o
constitui é um ato em movimento, não um dado fixo.
Essa experiência do ser como tensão anula a velha oposição entre o
realismo (que trata o ser como dado exterior) e o idealismo (que o reduz à construção
interior). O real não está fora de mim, nem dentro de mim. Está na relação.
Está naquilo que se passa entre o mundo e a consciência, entre o visível e o
sentido, entre o toque e o significado. Esse “entre” não é um espaço vazio — é
o lugar onde o ser se manifesta como drama.
Sciacca usa uma linguagem que toca a carne do pensamento: o ser é drama.
Não como enredo, mas como confronto. Ele não é uma teoria sobre o mundo. É uma
presença que exige resposta. Ele me envolve antes que eu o compreenda. E, por
isso, o pensamento que se pretende neutro é mentira. Porque todo pensar
verdadeiro nasce dessa tensão. Ele é já resposta ao apelo do ser. A filosofia
não começa quando alguém decide pensar, mas quando alguém é ferido por uma
pergunta que não se cala.
E essa ferida não se cura com conceitos. Ela só pode ser habitada. Por
isso, Sciacca fala de uma ontologia vivida. Não um sistema, mas uma
experiência. Um modo de estar no mundo em que o ser não é possuído, mas
escutado. Em que o pensamento não domina, mas se submete. Em que a mente não
busca controlar, mas acolher. A tensão entre sujeito e objeto se dissolve
quando se compreende que não há dois polos, mas um só campo, um só ato: o ser
que se dá e se exige.
Essa é a virada que Sciacca propõe: pensar o ser não como substância,
nem como fenômeno, mas como acontecimento. Como presença que nos puxa para fora
de nós mesmos, e que só se revela quando aceitamos a exigência de nos colocar
em relação. Não há verdade sem relação. Não há realidade sem implicação. O ser
não é coisa, não é ideia. É o entre. O intervalo onde a vida se acende. Onde o
espírito desperta. Onde a filosofia, enfim, começa.
Artigo 3 – A integralidade como saída: o mundo é
relação
Diante do impasse entre um realismo que reduz o mundo ao dado empírico e
um idealismo que dissolve a realidade no pensamento, Sciacca aponta um terceiro
caminho. Um caminho mais difícil, mas mais verdadeiro: a filosofia da
integralidade. Não uma síntese forçada entre os dois polos, não um meio-termo
conciliador, mas uma ruptura com a lógica da separação. A integralidade, para
Sciacca, é a reconquista da unidade vivida do ser. É a superação da cisão entre
sujeito e objeto por meio da experiência concreta da relação.
O ponto de partida é claro: o ser não se dá como objeto isolado nem como
projeção mental. Ele se dá como relação. E isso quer dizer: como vínculo. Como
implicação mútua. Como presença que envolve, atravessa, transforma. O ser não é
o que está “aí” para ser analisado, nem o que “surge” da consciência. Ele é
aquilo que se realiza no encontro. No entrelaçamento. No movimento onde eu e o
mundo nos revelamos mutuamente.
A integralidade exige que se abandone o desejo de controle. Toda
filosofia fundada na vontade de poder — seja sobre as coisas, seja sobre as
ideias — já partiu do lugar errado. Porque o ser não se domina. Ele se acolhe.
Ele se vive. A integralidade é a postura do espírito que reconhece que só há
verdade quando se aceita o outro como co-fundador do sentido. Quando se percebe
que a realidade não é aquilo que se vê, mas aquilo que se vive com.
O “com” é essencial. Sciacca insiste: não há ser sem comunhão. O mundo,
tomado isoladamente, é opaco. O sujeito, isolado em si, é mudo. Só quando os
dois se implicam, se reconhecem e se habitam mutuamente é que o ser emerge como
clareza. Não clareza no sentido lógico, mas clareza existencial. O ser se
ilumina quando é partilhado. Quando se torna caminho comum. Quando gera
fidelidade, reciprocidade, responsabilidade.
A integralidade, então, não é um esquema teórico. É uma ética. Um modo
de estar no mundo. Um compromisso com a verdade que não separa pensar, agir e
amar. Para Sciacca, só vive plenamente quem reconhece que o ser não é posse,
mas entrega. Que o mundo não é objeto, mas chamado. Que o espírito não é
substância, mas ato. A integralidade exige inteireza: do corpo, da mente, da
alma. Exige uma vida onde nada é separado — porque tudo é implicado.
É por isso que a filosofia, para Sciacca, não é uma profissão, nem uma
especialidade. É uma forma de vida. E essa vida só é verdadeira quando se
organiza a partir da unidade. Quando se recusa a duplicidade entre teoria e
prática, entre razão e sentimento, entre eu e o mundo. A fragmentação é a marca
da decadência espiritual. A integralidade é o nome da reconciliação: não de partes
separadas, mas da totalidade vivida desde o início.
O mundo, nessa perspectiva, não é um palco. Nem uma máquina. Nem um
enigma a ser decifrado. O mundo é relação. É um campo de sentido onde cada
coisa fala — se houver alguém que escute. A filosofia da integralidade, então,
não é uma nova teoria do ser. É uma recondução da existência à sua fonte. É um
retorno à presença originária que habita tudo e todos — e que nos chama,
sempre, à fidelidade.
Capítulo IV – O homem como ser-em-ato: plenitude e
ferida
Artigo 1 – Não somos essência fixa, mas drama em construção
O homem não é uma essência pronta esperando ser definida. Ele não é um
“animal racional” no sentido estático que a tradição repetiu por séculos. Não é
um ponto imóvel dentro do fluxo das coisas. Para Sciacca, o homem é ato — e
mais: é ato em tensão. Isso quer dizer que o homem não é, mas se faz.
Ele é um projeto, um drama, uma caminhada que nunca se encerra.
Essa ideia não é retórica. É uma tomada de posição radical contra todo
essencialismo vazio, contra toda tentativa de fixar o homem em fórmulas. O que
caracteriza o ser humano, para Sciacca, é o fato de que ele nunca está
inteiramente dado. Ele carrega uma ferida ontológica: a distância entre aquilo
que é e aquilo que pode ser. E é nessa distância que reside sua dignidade, mas
também sua angústia.
A tradição metafísica que tratava o homem como substância indivisível —
composta de essência e acidentes — falhava em capturar essa dimensão. Falava do
que o homem é, mas ignorava o que ele busca ser. Sciacca rompe
com isso. Ele nos apresenta um homem que é ato primeiro inacabado, que se
atualiza na medida em que escolhe, sofre, ama, constrói e se entrega. A
estrutura do humano não é a estabilidade, mas a abertura.
Essa abertura não é liberdade no sentido moderno, como escolha
arbitrária. É liberdade no sentido ontológico: capacidade de resposta ao ser. O
homem, ao existir, se vê chamado. Chamada não por uma voz externa, mas por uma
exigência interior que o atravessa. Essa exigência não pode ser silenciada — só
traída. E toda traição cobra seu preço. O homem que ignora esse chamado, que
busca estabilidade em vez de fidelidade, se desintegra. Vira função, papel,
sombra de si.
Ser homem, então, não é corresponder a uma definição, mas habitar um
caminho. Não é representar uma essência, mas responder a uma convocação. A vida
humana é essa tensão contínua entre o já e o ainda-não. Entre a promessa e o
fracasso. Entre o dom e a recusa. Sciacca quer nos lembrar que não se pode
pensar o homem fora desse movimento. Porque onde não há drama, não há espírito.
Essa condição dramática não é uma maldição. É uma graça. Significa que o
homem nunca está fechado, que sempre pode se refazer, que sua identidade está
no vir-a-ser. E que esse vir-a-ser só se realiza plenamente quando orientado
para a plenitude do ser. Não somos feitos para a estagnação. Fomos feitos para
o alto. Mas essa subida exige coragem — coragem de não se contentar com o que
se é, de não se encostar em papéis, de não se esconder atrás de máscaras.
O homem, diz Sciacca, só é verdadeiramente homem quando se entrega ao
movimento que o funda. E esse movimento não é psicológico, nem social, nem
apenas moral. É ontológico. Somos constituídos para buscar algo que nos
transcende. E é nessa busca que nossa essência se realiza. O paradoxo é este:
não temos essência fixa, mas só nos tornamos o que somos quando somos fiéis à
exigência do ser. Ser homem é ser ferido pelo infinito — e responder com atos.
Artigo 2 – A liberdade como esforço de ser mais
Liberdade, para Sciacca, não é a capacidade de fazer o que se quer. Essa
ideia moderna, fundada na arbitrariedade da vontade, reduziu a liberdade a um
movimento sem direção, a um jogo vazio de escolhas que não tocam o ser. O
homem, nesse modelo, virou um sujeito desorientado, consumindo possibilidades
como quem percorre prateleiras de supermercado — mas sem saber por quê. Sciacca
rompe com isso desde a raiz: liberdade não é indiferença, mas fidelidade ao ser
que me chama a ser mais do que sou.
A liberdade verdadeira é esforço. Esforço de atualização. Esforço de
fidelidade. O homem é livre porque está incompleto. E sua liberdade é o nome do
combate entre o que ele é hoje e o que pode vir a ser. Só há liberdade porque
há ser em ato — ser que não está fechado, mas se oferece como promessa. Por
isso, a liberdade é pesada. Ela exige responsabilidade. Cada escolha não apenas
diz quem eu sou, mas também molda quem estou me tornando. E essa formação não é
neutra: ela tem direção, ou para cima, ou para baixo.
O drama do homem está exatamente aí. Ele pode trair sua vocação
ontológica. Pode escolher a inércia. Pode se esconder nas repetições, nos
papéis sociais, nas máscaras culturais. Pode dizer “não” à exigência interior
que o move. Mas esse “não” tem um preço. Ele se traduz em vazio, em
ressentimento, em autonegação. O homem que recusa a tarefa de se tornar o que
deve ser, acaba se tornando o que o mundo quer que ele seja: um número, uma
engrenagem, um eco.
Sciacca resgata a liberdade como uma forma de heroísmo espiritual. Não o
heroísmo teatral, cheio de gestos visíveis, mas o heroísmo silencioso de quem
decide permanecer fiel ao que o ser exige dele. É mais fácil seguir a corrente,
repetir fórmulas, terceirizar o sentido. Mas nada disso salva. Só se salva quem
assume a ferida da liberdade — quem aceita que a vida é um trabalho contínuo de
realização do ser, com quedas, fracassos e recomeços.
E isso não acontece no abstrato. A liberdade se vive nos atos concretos.
No modo como olhamos, ouvimos, escolhemos, perdoamos, permanecemos. Cada gesto
é uma afirmação ou uma negação do ser. E o mais grave: ninguém pode fazer isso
por nós. A liberdade, embora aconteça em relação, é profundamente pessoal.
Ninguém entra em nossa interioridade por substituição. A liberdade é o lugar
onde o ser me confia a mim mesmo — e espera que eu responda.
Essa resposta não é automática. Ela exige uma escuta interior. Uma
atenção fina aos movimentos do espírito. A liberdade madura sabe que não se
trata de inventar um caminho, mas de reconhecer um caminho que me precede — e
que me convoca. É o ser que chama. E o homem, ao responder, não perde nada.
Pelo contrário: se liberta do peso de ser apenas o que o mundo permite.
O mais livre não é o que tem mais opções. É o que sabe dizer “sim” ao que
vale. A liberdade autêntica é vertical. Ela me levanta. Me obriga a sair do
confortável. Me coloca de frente com o abismo — mas também com a luz. Sciacca
quer um homem que não fuja da grandeza que o habita. Que não tema o esforço.
Que não se esconda na facilidade. Porque a liberdade que não nos torna mais
reais é só disfarce. E o ser não aceita disfarces. Ele quer presença inteira.
Artigo 3 – Deixar-se atravessar pelo ser: ética,
tempo e salvação
Chegamos ao ponto final, não no sentido de um fim fechado, mas de um
limiar — aquele onde o homem, atravessado pelo ser, é chamado a decidir: ou se
entrega à verdade que o constitui, ou se refugia nas ficções que o corroem.
Para Sciacca, o destino humano não é questão psicológica, nem puramente
religiosa. É questão ontológica. A maneira como o homem vive, escolhe e sofre
não é algo à margem do ser — é o próprio ser que pulsa nele em forma de tempo,
de exigência ética e de promessa de salvação.
O tempo, aqui, não é cronologia. Não é sucessão de dias. É drama. O tempo
é a moldura existencial da nossa abertura ao ser. Somos seres temporais porque
não somos tudo de uma vez. Vivemos de fragmento em fragmento, e justamente por
isso podemos crescer, mudar, cair e reerguer-nos. O tempo é dom e ferida. Nos
dá o intervalo para ser mais, mas também carrega o risco de não sermos nunca. A
pressa, a dispersão, a rotina — todos são modos de trair o tempo como espaço do
ser. O homem que não acolhe o tempo como exigência de plenitude, torna-se
prisioneiro do instante — e, nesse instante, se perde.
Mas o tempo, por si só, não salva. O que salva é o que fazemos com ele.
E aqui entra a ética — não como sistema de normas, mas como fidelidade ao ser.
A verdadeira ética, para Sciacca, é ontológica. Ela nasce da relação íntima
entre o homem e a verdade que o chama. Ser ético é ser inteiro, é viver segundo
a exigência silenciosa do ser que habita cada gesto. Não se trata de seguir
regras externas, mas de habitar o mundo como quem sabe que tudo tem peso, tudo
tem sentido, tudo revela. Até o menor ato carrega a marca do absoluto.
A ética da integralidade exige vigilância: não posso me fragmentar, não
posso me esquecer. Preciso estar presente no que faço. E esse estar presente
não é mindfulness — é responsabilidade ontológica. Porque cada escolha, cada
olhar, cada silêncio ou palavra me revela ou me trai. E quanto mais me entrego
à verdade do ser, mais sou livre — não para fazer qualquer coisa, mas para ser
o que devo ser.
E aqui surge, inevitável, a pergunta final: há salvação? Para Sciacca,
sim — mas não como prêmio, nem como fuga do mundo. A salvação é a realização do
ser. Não está fora do tempo, mas se inscreve no tempo como plenitude possível.
Salvar-se é deixar-se atravessar pelo ser até o fim. É consentir com a verdade,
mesmo quando ela fere. É não fugir do chamado, mesmo quando ele exige tudo. A
salvação não é fuga da dor — é sua transfiguração.
Só se salva quem suporta a exigência de ser inteiro. Só se salva quem
não se reduz. Quem não se vende. Quem não se perde em papéis. A salvação, para
Sciacca, é pessoal, mas nunca isolada. Ela acontece na relação, na escuta, na
abertura. Ela é graça — mas exige consentimento. É dom — mas exige luta. O ser
se oferece, mas não se impõe. Ele espera. Espera que o homem diga “sim” — com o
corpo, com a alma, com a história.
Esse “sim” é o centro de tudo. Ele não precisa ser gritado. Basta que
seja real. O homem não precisa ser perfeito — só precisa ser verdadeiro. E a
verdade não está num conceito. Está num modo de estar no mundo. Um modo que
diz: “eu aceito o ser que me chama, e vou com ele até o fim”. Essa é a única
ética que salva. E é essa fidelidade silenciosa que faz do homem — finalmente —
um ser inteiro.