quarta-feira, 2 de julho de 2025

 



A obra Acto y Ser representa a culminação da “Filosofia da Integralidade” de Sciacca, posicionando-se como eixo ontológico-metafísico de sua proposta filosófica. O autor parte da crítica à dissolução da metafísica nas correntes gnoseológicas modernas (Descartes, Kant, positivismo), para reivindicar a autonomia e a primazia do ser como fundamento da experiência, da consciência e da realidade.

A tese central sustenta que o ser não é nem um dado empírico nem uma estrutura lógico-formal, mas um ato originário e interior ao sujeito, que se manifesta enquanto consciência de si, implicação com o outro e copresença com a realidade. Sciacca retoma e reformula a intuição rosminiana do ser como ideia originária — não como construção subjetiva, mas como verdade ontológica absoluta, presença constitutiva do espírito e fonte de toda inteligibilidade.

A partir disso, propõe uma metafísica do homem enraizada na dialética da implicação: o ser não se reduz ao real, à consciência, à moral ou à essência inteligível isolada — ele é simultaneamente ato, presença, limite e tendência à plenitude. A interioridade, a liberdade, o amor, a verdade e o espírito são formas do ser em sua concretude histórica e existencial.

Contra o idealismo que dissolve o real no pensamento, e o realismo que subordina o espírito à matéria, Sciacca afirma a inseparabilidade dinâmica entre sujeito e objeto, ser e conhecer, essência e existência. A filosofia, nesse horizonte, é reencontro com a verdade primeira, que não é evasão nem consolo, mas compromisso vital com o sentido último do ser.

Acto y Ser, assim, é um grito contra a fragmentação moderna do saber e da existência, e um chamado à reintegração da verdade ontológica, espiritual e pessoal como chave da filosofia, da moral e da realidade.

 Índice.


Capítulo I – O ser como origem: um chamado esquecido

  1. O começo de tudo não é uma ideia, mas uma presença
  2. Por que o real não se explica sem o ser
  3. Ser antes de pensar: contra os vícios da filosofia moderna

Capítulo II – A interioridade como ato: a alma da metafísica

  1. O ser que habita: consciência, desejo e limite
  2. A implicação entre mente e ser: não há fora
  3. Amar é existir: o ser na forma do outro

Capítulo III – A mentira do realismo e do idealismo

  1. Quando o real vira máscara e o pensamento se perde
  2. Nem sujeito, nem objeto: o ser como tensão vivida
  3. A integralidade como saída: o mundo é relação

Capítulo IV – O homem como ser-em-ato: plenitude e ferida

  1. Não somos essência fixa, mas drama em construção
  2. A liberdade como esforço de ser mais
  3. Deixar-se atravessar pelo ser: ética, tempo e salvação

Capítulo I – O ser como origem: um chamado esquecido

Artigo 1 – O começo de tudo não é uma ideia, mas uma presença.

Há um ponto onde toda filosofia se decide. Não é um conceito, nem uma escola, muito menos um sistema. É um gesto silencioso: reconhecer que o ser não começa no pensamento. O ser vem antes. Antes da dúvida cartesiana, antes do empirismo dos sentidos, antes do idealismo que se fecha em si mesmo. O ser não é um dado objetivo, nem uma construção subjetiva. Ele é presença. Presença que me constitui, presença na qual já estou mergulhado quando me descubro pensando.

Sciacca começa sua obra deslocando radicalmente a pergunta: em vez de perguntar "como conhecemos?", ele pergunta "o que é que torna possível qualquer conhecimento?". A resposta não é uma estrutura lógica, nem um aparato psicológico. A resposta é o ser. E o ser não é pensado: é vivido. Não se trata aqui de um ser abstrato, genérico, retirado da linguagem filosófica tradicional. Trata-se de um ser concreto, encarnado, vivido na carne e no espírito, sentido na alegria e no medo, percebido na relação, no tempo, no amor, no cansaço.

Esse ser não pode ser reduzido a uma categoria lógica. Toda tentativa de reduzi-lo ao conceito – seja por Kant, que o enquadra como categoria do entendimento, seja pelo positivismo, que o rejeita como não verificável – fracassa antes de começar. Porque a própria possibilidade de conceituar já pressupõe o ser. Antes da lógica, há uma luz. E essa luz é ontológica, não gnoseológica. Rosmini chamou isso de "ideia do ser": não uma ideia fabricada pela mente, mas a ideia que possibilita a mente. Sciacca toma essa intuição e a leva adiante: o ser não apenas ilumina o pensamento, ele o funda. Não há pensamento sem ser, mas o ser não depende do pensamento.

O erro da filosofia moderna é inverter essa ordem. Ela quis fundar o ser sobre o conhecimento. Quis fazer da certeza o critério da existência. Mas só posso buscar certeza porque já sou. Só posso duvidar porque existo. A ontologia não é um ramo da epistemologia – é o contrário. Sciacca denuncia esse vício como um equívoco profundo: ao priorizar o conhecer, esquecemos o mais fundamental – a nossa condição de já estarmos sendo, de já estarmos envolvidos numa realidade que nos escapa justamente por estar sempre presente.

Essa presença não é neutra. Não é um objeto que olho de fora. Ela me envolve, me define, me desafia. Ela não é passiva, mas ativa: o ser é ato. E por isso, ele não se reduz a uma coisa. O ser é movimento, é tendência, é potência que se atualiza sem jamais se esgotar. Ele é o próprio dinamismo do real. E é por isso que ele não pode ser deduzido, nem demonstrado. O ser se impõe. E, justamente por isso, não pode ser ignorado. Mesmo aquele que tenta negá-lo só o faz dentro dele.

O ser é mais íntimo a mim do que meu próprio "eu". Está na base da memória e da expectativa. Está no pano de fundo das escolhas, dos erros, dos gestos mais banais. É o que torna possível o riso e o pranto. É por isso que, para Sciacca, a ontologia não é um luxo teórico, mas uma necessidade vital. Sem ela, o homem se perde. Não sabe de onde veio, nem para onde vai. Confunde-se com as coisas, com os dados, com os métodos. E esquece que há algo mais profundo, que sempre esteve ali: uma presença que não se explica, mas que exige ser reconhecida.

O começo, então, não é uma ideia. É um encontro. Com algo que não inventamos, que não controlamos, mas que nos dá a possibilidade de ser quem somos. Esse algo é o ser. E reconhecer isso – esse gesto silencioso, esse reconhecimento humilde – é o verdadeiro início da filosofia.

Artigo 2 – Por que o real não se explica sem o ser

Existe uma ilusão profundamente arraigada na modernidade: a crença de que o real pode ser compreendido por si mesmo, a partir dos dados sensíveis, das experiências empíricas, dos fenômenos quantificáveis. Essa crença está na base tanto do realismo grosseiro, que identifica o ser com o mundo das coisas, quanto do cientificismo, que reduz toda verdade ao que pode ser medido, testado, repetido. Para Sciacca, essa é a amputação original da filosofia moderna – uma amputação que cortou o ser do real e, assim, esvaziou o próprio real de sentido.

O real, isolado do ser, se torna opaco. O que é uma pedra, se não se inscreve numa ordem de sentido que a transcende? O que é o corpo, sem o espírito que o vivifica? O que é o universo, sem um logos que o sustenta? Para a ciência, a pedra é um aglomerado de partículas. Para a técnica, é um material. Mas nenhuma dessas abordagens toca no que ela é. O real, sem o ser, vira coisa – e toda coisa, tratada como pura exterioridade, como puro objeto, se torna insignificante.

Sciacca se insurge contra isso. Ele insiste que não há real fora do ser. E não porque o ser seja uma teoria que “explica” o real, mas porque é nele que o real se dá. A própria experiência de realidade é uma experiência de ser. O real só se mostra porque algo em nós já reconhece sua presença, já a sente como algo que está ali, que nos toca, que nos interpela. Essa presença, essa “dádiva” do mundo, não pode ser pensada sem o ser. O mundo aparece – mas não se autojustifica. E é nessa tensão que se abre o espaço da metafísica: não como sistema, mas como escuta.

Quando se retira o ser do real, o que resta é um mundo fragmentado. Um amontoado de dados sem sentido. A ciência pode organizá-los, mas não pode justificá-los. Pode descrevê-los, mas não pode dizer por que há algo em vez de nada. Essa pergunta, que a ciência evita ou desdenha, é a pergunta que funda a filosofia. E a resposta não pode ser empírica. Só o ser explica o real, porque só ele o funda.

E é aqui que Sciacca dá um passo decisivo: o ser não é simplesmente o “substrato” do real. Ele é ato. Não se trata de um ente imóvel que “está por trás” das coisas. O ser é o próprio movimento que permite que as coisas surjam, permaneçam, se transformem. Ele é o dinamismo que sustenta a existência de tudo o que é. E esse dinamismo não é neutro, não é cego. Ele se manifesta como relação, como presença que exige resposta, como abertura à interioridade.

Por isso, o real nunca é puro objeto. Ele é sempre também manifestação de algo mais fundo – algo que não se vê, mas que se sente. O jardim que vemos não é só um conjunto de flores, mas uma unidade vivida. O rosto de alguém não é só uma composição de traços, mas um apelo. O mundo nos fala, mas só porque nele vibra o ser. O que chamamos de “realidade” só se torna significativa porque é acolhida por um sujeito espiritual que, ao reconhecê-la, já está implicado com o ser.

Essa implicação é essencial. Sciacca rejeita tanto o realismo ingênuo que pensa o mundo como algo completamente exterior a nós, quanto o idealismo abstrato que faz do mundo uma mera projeção do sujeito. O real é real, sim. Mas não por si só. Ele é real porque participa do ser. E essa participação só pode ser reconhecida por quem já está, ele mesmo, enraizado no ser.

O mundo, então, não é um dado bruto. É um convite. Um chamado. Um signo. E o ser é o que torna possível essa linguagem muda, essa comunicação entre aquilo que está fora e aquilo que pulsa dentro de nós. O real só tem sentido quando atravessado pelo ser. E nós, se quisermos compreender esse sentido, precisamos reencontrar essa origem – esse fundo de presença silenciosa que sustenta tudo.

Artigo 3 – Ser antes de pensar: contra os vícios da filosofia moderna

O maior erro da filosofia moderna foi acreditar que o pensamento tem primazia sobre o ser. Desde Descartes, a ideia de que o “penso, logo existo” inaugura o caminho do saber virou um dogma. Mas Sciacca inverte esse gesto: não é o pensamento que garante a existência, é a existência que torna o pensamento possível. Não é o “cogito” que funda o ser, é o ser que sustenta o “cogito”. Antes de pensarmos, antes de dizermos “eu”, já somos. Já estamos mergulhados numa realidade que nos atravessa e nos escapa.

A modernidade filosófica, ao colocar o sujeito como ponto de partida, criou uma armadilha: tudo passou a ser medido a partir da consciência, da representação, da certeza do pensamento. Mas a consciência não é absoluta. Ela é um ato inserido numa realidade que a excede. Pensar não é gerar o ser – é participar dele. O erro está em confundir a iluminação com a fonte da luz. O pensamento é uma lâmpada que se acende, mas o ser é o sol que a torna possível.

Sciacca não nega o valor do pensamento. Pelo contrário, ele o exalta. Mas exige que se reconheça sua raiz. Pensar não é um ato flutuante, neutro, desencarnado. Pensar é um gesto do ser. É uma modalidade do ser-em-ato. Quando penso, é porque sou – e sou de um modo particular: um modo que sente, que busca, que se interroga, que se inquieta. Por isso, toda filosofia que começa pelo pensamento e não pelo ser está fadada a construir castelos no ar: belos, coerentes, mas sem chão.

E é exatamente isso que Sciacca vê nos sistemas idealistas – de Kant a Hegel. Eles se fecham no pensamento. Transformam o real em projeção, o mundo em categoria, a realidade em estrutura lógica. Tudo vira forma, tudo se racionaliza. Mas nessa racionalização, perde-se o contato com o mistério. Com a espessura da existência. Com a dor, o amor, a morte – com tudo aquilo que o pensamento sozinho não explica, mas que exige ser vivido.

Sciacca também recusa o outro polo: o realismo empirista, que tenta suprimir o pensamento para salvar o mundo “lá fora”. Esse realismo, ao negar a interioridade, transforma o sujeito em engrenagem e a realidade em objeto frio. Tanto um quanto o outro – idealismo e realismo – são dois lados do mesmo erro: colocam o ser depois do pensamento, ou dissolvido nele. Mas o ser vem antes. O ser é condição. O ser é origem.

Por isso, o pensamento só é verdadeiro quando é ato de reconhecimento. Quando se sabe vindo de algo maior. Quando se curva diante do que o sustenta. O pensamento verdadeiro é humilde: ele não cria, ele contempla. Não fabrica, mas descobre. E essa descoberta não é passiva – é uma entrega ativa, uma abertura, uma aceitação da presença que se impõe.

A filosofia moderna, obcecada pelo método, quis determinar o ser com base no conhecer. Quis estabelecer a realidade segundo as condições do sujeito. Sciacca desmonta essa lógica: se o ser depende do pensamento, então tudo vira ficção. Mas se o pensamento se reconhece como participação no ser, então tudo se torna possível – inclusive a verdade, a liberdade, o amor.

Ser antes de pensar significa recolocar a filosofia em seu caminho próprio. Significa romper com a arrogância de querer dominar o ser pela razão, e voltar à atitude primeira do filósofo: a admiração. Admirar que haja algo, que sejamos, que o mundo exista, que a verdade nos toque. Antes do sistema, há um espanto. Antes da explicação, há uma presença. E é nesse espanto que tudo começa – ou, melhor dizendo, é aí que reencontramos o começo que nunca deixou de estar presente.

Capítulo II – A interioridade como ato: a alma da metafísica
Artigo 1 – O ser que habita: consciência, desejo e limite

Se o ser é presença originária, como vimos, ele não está fora de nós, como uma coisa observada à distância. Ele está dentro. Ou melhor: somos dentro dele. É por isso que Sciacca insiste na interioridade como ponto central da metafísica. Não uma interioridade psicológica, fechada em pensamentos ou sentimentos subjetivos, mas uma interioridade ontológica — aquela região do espírito onde o ser se mostra como ato. Essa interioridade não é introspecção. É o lugar onde se dá o embate entre o que somos e o que ainda não somos.

O primeiro gesto dessa interioridade não é o saber, mas a consciência. E consciência, para Sciacca, é já participação no ser. Ser consciente não significa refletir sobre um objeto; significa estar presente a si mesmo — e, por isso, experimentar o ser de modo direto. Aqui, ele se distancia de toda tradição que tenta derivar a consciência da experiência externa ou de mecanismos cerebrais. A consciência é o modo próprio do ser humano ser. Ela é o modo como o ser, em nós, se atualiza.

Mas essa atualização é incompleta. Sempre incompleta. E é aí que entra o desejo. O desejo não é uma carência vulgar, não é simples apetite. É um grito do ser em nós por mais ser. Desejamos porque somos finitos, e o finito só se sustenta enquanto aberto ao infinito. O limite que nos atravessa — esse não-poder, esse ainda-não — não é uma negação do ser. É sua condição. O ser, em nós, é sempre ato em tensão, nunca posse plena. Por isso, a consciência verdadeira é trágica: ela sabe que é mais do que aquilo que pode realizar.

Essa tensão entre presença e ausência, entre o ser que nos habita e o ser que ainda não alcançamos, constitui o núcleo da existência humana. Não somos substâncias fixas. Somos história. Não como sucessão de eventos, mas como drama espiritual. E nesse drama, a interioridade não é refúgio. Não é fuga. É combate. É nela que sentimos o peso da liberdade, a exigência da verdade, a sede de plenitude que nenhuma técnica, nenhuma ideologia, nenhuma filosofia de manual consegue apagar.

Sciacca chama isso de síntese primitiva. É o ponto onde a consciência e o ser se tocam, onde o pensar, o sentir e o querer se entrelaçam num só gesto. E esse gesto não se esgota nunca. Porque o ser que nos constitui é infinito, e nós somos finitos — mas abertos. Essa abertura é o que nos define. Não somos o que somos: somos o que buscamos ser. A interioridade, assim, é o lugar da presença e da falta, da luz e da sombra. Ela nos mostra que ser é já estar em caminho.

E se há caminho, há direção. A interioridade não é um redemoinho de vontades, mas uma seta apontada ao alto. Mesmo em suas quedas, ela guarda um apelo. Mesmo nos erros, há um resto de verdade. O homem é esse paradoxo: um ser limitado que carrega em si o eco do ilimitado. E só quem mergulha na própria interioridade pode ouvir esse eco, esse chamado silencioso que nos pede mais do que o mundo pode dar. Esse chamado — Sciacca afirma — é o próprio ser, pedindo para ser reconhecido, amado e vivido.

Artigo 2 – A implicação entre mente e ser: não há fora

A mente não está diante do ser como um observador diante de um objeto. Essa imagem — herança do dualismo moderno — é uma distorção radical. Não há “fora” do ser onde a mente possa se colocar para julgá-lo, descrevê-lo, contê-lo. A mente está dentro do ser. E mais: ela só é mente porque está implicada com o ser desde sempre. Sciacca insiste nisso com veemência: pensar não é operar sobre algo externo; pensar é um modo do ser se tornar atual em nós.

Essa implicação não é opcional. Não é resultado de uma escolha ou de uma construção. É originária. Pensar é já estar comprometido com o ser. Não há neutralidade possível. Toda reflexão, toda imagem, todo conceito carrega, mesmo sem saber, essa relação fundante. E é por isso que a ideia de um pensamento "puro", "objetivo", "fora das condições do ser" é, na verdade, uma ilusão perigosa. Ela esvazia o pensar de seu vínculo vital com a existência.

Para Sciacca, essa relação não é entre dois termos separados, mas entre dois momentos de um mesmo ato. A mente que pensa está no ser — e o ser, ao se manifestar, não o faz fora da mente, mas nela. Isso não quer dizer que o ser se reduz à mente, como querem os idealistas. Tampouco quer dizer que a mente é apenas receptora passiva de algo externo, como querem os empiristas. A relação é mais sutil: o ser se mostra na mente, mas não se esgota nela. E a mente conhece pelo ser, mas não o domina.

Essa é a chave da filosofia da integralidade que Sciacca propõe. Pensamento e ser não são dois blocos que se opõem, mas dois polos que se implicam. O pensar só é possível porque há ser. Mas esse ser não é uma substância inerte. É um ato. Um dinamismo. Ele não apenas é — ele se dá, se oferece, se revela. E pensar, então, é acolher essa revelação. O pensamento verdadeiro não é aquele que conquista o ser, mas o que se deixa transformar por ele.

Essa transformação não é abstrata. Ela acontece na vida concreta: na escolha, na dúvida, na culpa, no amor, na criação. A mente não é um espelho. É um fogo. Ela não reflete o ser — ela se inflama nele. E essa chama, que nos queima por dentro, é a própria marca do espírito: não a frieza do cálculo, mas a tensão entre o que se é e o que se busca ser. A mente, quando fiel a si mesma, não analisa — adora. Ela reconhece no ser algo que a excede e que, ao mesmo tempo, a constitui.

Sciacca quer nos afastar tanto da rigidez lógica dos sistemas quanto da névoa emocional dos misticismos baratos. O ser que habita a mente não é uma ideia. É uma presença que exige verdade. Uma presença que sustenta o pensamento, mas que também o julga. Por isso, toda filosofia que ignora essa implicação original mente sobre si mesma. E toda mente que se fecha ao ser se torna caricatura de si.

Não há fora do ser. Toda tentativa de neutralidade absoluta — seja científica, seja filosófica, seja religiosa — parte de um engano. O pensamento, por mais crítico que seja, já está dentro. Já é parte. Já é implicado. A verdadeira liberdade da mente não está em se isolar, mas em reconhecer essa pertença. Pensar com verdade é pensar como quem ouve — e não como quem manda.

Artigo 3 – Amar é existir: o ser na forma do outro

Sciacca chega a um ponto decisivo: se o ser é ato, se ele nos habita como interioridade viva, então ele só se realiza plenamente quando se torna relação. E essa relação, no seu grau mais alto, tem um nome: amor. Mas é preciso limpar esse nome de todos os resíduos sentimentais ou psicológicos. Amor, aqui, não é afeto, nem emoção — é um modo de ser. É o modo como o ser transborda de si mesmo e se entrega a um outro, sem perder-se. É presença que se dá, sem anular-se. É ser em forma de dom.

O amor, então, não é algo que o sujeito possui ou sente. É o próprio sujeito sendo mais do que ele mesmo. Amar é deixar o próprio ser sair de si — não por fraqueza, mas por potência. A interioridade verdadeira é aquela que se abre, não como quem se expõe, mas como quem reconhece que só se torna plena quando acolhe o outro. O amor é o reconhecimento de que o ser é comunhão. Ato que se torna co-presença. E essa co-presença não é fusão, mas implicação mútua: eu permaneço eu, tu permaneces tu — mas agora há um entre, que é mais do que a soma dos dois. Esse entre é onde o ser aparece em sua forma mais alta.

A filosofia que não compreende isso se perde no abstrato. Fica girando em torno de conceitos vazios, sem tocar o drama real do existir. Para Sciacca, o amor é o lugar onde o ser deixa de ser uma palavra e se torna carne. Ele rompe o isolamento do eu. Rompe o narcisismo do sujeito moderno. E mostra que não há salvação no eu fechado. O ser que se fecha sobre si apodrece. Só quem se entrega, vive. Por isso, o amor não é adorno da existência — é sua chave.

E não estamos falando apenas de amor afetivo, nem sequer do amor erótico ou familiar. O que Sciacca propõe é mais radical: o amor como estrutura ontológica do espírito. Amar é reconhecer o outro como portador do ser, como manifestação da mesma presença que me habita. Amar é reconhecer o ser no outro — e, portanto, também em mim. Não se ama porque se conhece. Ama-se, e só então se conhece. O amor revela. Torna o outro visível, real, existente.

Sem amor, o outro é objeto. É função. É obstáculo ou instrumento. Com amor, o outro é rosto. É presença. É enigma. O amor nos restitui a alteridade do outro sem que ele precise se justificar. E isso é um escândalo para a lógica moderna, que exige razões, garantias, cálculos. O amor dispensa tudo isso. Ele é um salto no ser. Um ato gratuito que transforma. E que, por isso mesmo, é o mais radical dos atos filosóficos.

Quando Sciacca afirma que o ser se realiza no amor, ele não está fazendo poesia. Está dizendo que o ser é relação. Que o fundamento da realidade não é uma substância imóvel, mas um movimento de doação. A interioridade, para ser plena, precisa se entregar. E é nesse gesto que o homem se descobre mais verdadeiramente homem. Não no fechamento do ego, mas na abertura do coração. Não na acumulação de saberes, mas no reconhecimento daquilo que nenhum saber explica: a dignidade do outro.

Amar é existir em sua forma mais alta. Não como quem se perde, mas como quem finalmente se encontra. Só quem ama conhece o ser. Só quem ama é capaz de permanecer fiel ao que é. O resto é ruído, é sombra, é máscara. A filosofia que esquece o amor é uma filosofia mutilada. E o homem que recusa o amor é um ser que se trai. Sciacca, aqui, não dá lições morais — ele traça a cartografia do espírito. E essa cartografia tem um nome que a resume: comunhão.

Capítulo III – A mentira do realismo e do idealismo
Artigo 1 – Quando o real vira máscara e o pensamento se perde

A filosofia moderna, dividida entre o realismo e o idealismo, acabou criando um teatro onde o ser é o grande ausente. De um lado, os realistas afirmam: o mundo está lá fora, pronto, independente, objetivo. Basta observá-lo, quantificá-lo, organizá-lo. De outro, os idealistas respondem: o mundo é uma construção da mente, um produto da subjetividade, uma projeção da consciência. O primeiro se perde na matéria, o segundo se afoga na ideia. Ambos erram no ponto de partida. Ambos reduzem o ser àquilo que conseguem controlar — seja o objeto, seja o sujeito.

Sciacca denuncia esse impasse como um vício de origem. Tanto o realismo quanto o idealismo partem da mesma operação: separação. O realismo separa sujeito e mundo e depois tenta costurá-los com teorias da representação, da adequação, da experiência sensível. O idealismo separa o sujeito do real e depois o absolutiza, fazendo do pensamento a fonte de tudo. Mas o que está em jogo é o que se perde nessa separação: o ser como unidade originária.

No realismo, o ser vira coisa. Vira objeto bruto, massa observável. Vira aquilo que está “lá fora” e pode ser medido, manipulado, previsto. Mas essa objetivação total anula o sujeito — e, com ele, a própria possibilidade de sentido. Pois que sentido tem o mundo se não há alguém para acolhê-lo? E mais: que tipo de existência tem algo que não é sentido, vivido, amado ou recusado? O realismo radical congela o ser. O transforma num cadáver.

No idealismo, o ser vira ideia. Vira projeção do eu, construção do espírito. Mas essa absolutização do sujeito implode: se tudo é construção, então nada tem solidez. O mundo vira aparência, a alteridade desaparece, a verdade se dissolve em função do gosto, da época ou da vontade. O sujeito, fechado em si, torna-se uma prisão. E a mente, que deveria ser janela para o ser, se torna espelho deformante.

Ambos, diz Sciacca, operam com um mesmo erro estrutural: tomam parte pelo todo. O realista absolutiza o mundo sensível, o idealista absolutiza o mundo mental. Mas o ser não se reduz a nenhum dos dois. Ele não é apenas o que é dado, nem apenas o que é pensado. Ele é o que se dá como pensado, em alguém que pensa, com aquilo que é. O ser é implicação, não separação. É relação vivida, não dicotomia formal.

Por isso, Sciacca rejeita a conciliação fácil entre as duas posições. Não se trata de encontrar um meio-termo entre sujeito e objeto, nem de construir um sistema que “reconcilie” real e ideal. Trata-se de romper com a estrutura mesma que gerou a cisão. A filosofia não pode se contentar com paliativos. Ela precisa retornar à fonte: à unidade originária onde ser e pensar já estão implicados, onde a interioridade se abre ao mundo sem dissolver-se, e o mundo se manifesta sem perder sua alteridade.

O que está em jogo aqui não é um debate técnico entre escolas. É o destino da verdade. Pois quando o ser é esquecido — quando é reduzido ao visível ou ao pensável — o pensamento se perde. Ele vira instrumento, ideologia, vaidade. A razão deixa de ser caminho de ascese e vira engrenagem de controle. E a filosofia, que nasceu como amor à sabedoria, vira serva do poder, do cálculo, do sistema.

Sciacca nos pede para sairmos desse teatro. Para calarmos o ruído das disputas abstratas. Para retornarmos ao silêncio da interioridade onde o ser fala. Não como objeto, nem como construção — mas como presença. Só aí o pensamento reencontra sua verdade. Só aí o real deixa de ser máscara. E só aí a filosofia pode voltar a ser o que sempre foi: escuta atenta do que é.

Artigo 2 – Nem sujeito, nem objeto: o ser como tensão vivida

Toda a construção filosófica que se ancora na oposição entre sujeito e objeto está condenada à falsidade. Essa é a afirmação dura e precisa que Sciacca coloca como linha de ruptura com a tradição moderna. Porque o ser — o verdadeiro ser — não se deixa cortar em dois. Não é uma metade subjetiva olhando uma metade objetiva. Não é um eu isolado que interpreta, nem uma coisa lá fora que se impõe. O ser é uma unidade viva, onde sujeito e objeto não se excluem, mas se co-implicam.

A mente não começa sozinha, nem diante de um mundo inerte. Ela já é, desde sempre, envolvida num campo de sentido onde o real a interpela e ela responde. O sujeito não está do lado de cá da experiência, e o objeto do lado de lá. Essa imagem de espelho é justamente o que deve ser quebrado. Porque o espelho não mostra a profundidade. Ele reflete uma superfície. E o que está em jogo aqui é o que se passa por baixo da superfície — aquela tensão radical entre o que somos e o que nos escapa, entre o que pensamos e o que nos ultrapassa.

Sciacca nos pede que abandonemos o vocabulário dualista que infectou toda a filosofia pós-cartesiana. O ser não é uma substância imóvel, nem uma estrutura mental. Ele é tensão. E essa tensão é vivida, não apenas pensada. O ser nos atravessa como um sopro que não conseguimos reter. Ele se dá, mas nunca se entrega inteiro. Ele se mostra, mas sempre pela metade. Ele se deixa tocar, mas nunca se deixa possuir. E é por isso que o homem, ao existir, não repousa. Está sempre em falta, sempre em busca, sempre inquieto. Porque o ser que o constitui é um ato em movimento, não um dado fixo.

Essa experiência do ser como tensão anula a velha oposição entre o realismo (que trata o ser como dado exterior) e o idealismo (que o reduz à construção interior). O real não está fora de mim, nem dentro de mim. Está na relação. Está naquilo que se passa entre o mundo e a consciência, entre o visível e o sentido, entre o toque e o significado. Esse “entre” não é um espaço vazio — é o lugar onde o ser se manifesta como drama.

Sciacca usa uma linguagem que toca a carne do pensamento: o ser é drama. Não como enredo, mas como confronto. Ele não é uma teoria sobre o mundo. É uma presença que exige resposta. Ele me envolve antes que eu o compreenda. E, por isso, o pensamento que se pretende neutro é mentira. Porque todo pensar verdadeiro nasce dessa tensão. Ele é já resposta ao apelo do ser. A filosofia não começa quando alguém decide pensar, mas quando alguém é ferido por uma pergunta que não se cala.

E essa ferida não se cura com conceitos. Ela só pode ser habitada. Por isso, Sciacca fala de uma ontologia vivida. Não um sistema, mas uma experiência. Um modo de estar no mundo em que o ser não é possuído, mas escutado. Em que o pensamento não domina, mas se submete. Em que a mente não busca controlar, mas acolher. A tensão entre sujeito e objeto se dissolve quando se compreende que não há dois polos, mas um só campo, um só ato: o ser que se dá e se exige.

Essa é a virada que Sciacca propõe: pensar o ser não como substância, nem como fenômeno, mas como acontecimento. Como presença que nos puxa para fora de nós mesmos, e que só se revela quando aceitamos a exigência de nos colocar em relação. Não há verdade sem relação. Não há realidade sem implicação. O ser não é coisa, não é ideia. É o entre. O intervalo onde a vida se acende. Onde o espírito desperta. Onde a filosofia, enfim, começa.

Artigo 3 – A integralidade como saída: o mundo é relação

Diante do impasse entre um realismo que reduz o mundo ao dado empírico e um idealismo que dissolve a realidade no pensamento, Sciacca aponta um terceiro caminho. Um caminho mais difícil, mas mais verdadeiro: a filosofia da integralidade. Não uma síntese forçada entre os dois polos, não um meio-termo conciliador, mas uma ruptura com a lógica da separação. A integralidade, para Sciacca, é a reconquista da unidade vivida do ser. É a superação da cisão entre sujeito e objeto por meio da experiência concreta da relação.

O ponto de partida é claro: o ser não se dá como objeto isolado nem como projeção mental. Ele se dá como relação. E isso quer dizer: como vínculo. Como implicação mútua. Como presença que envolve, atravessa, transforma. O ser não é o que está “aí” para ser analisado, nem o que “surge” da consciência. Ele é aquilo que se realiza no encontro. No entrelaçamento. No movimento onde eu e o mundo nos revelamos mutuamente.

A integralidade exige que se abandone o desejo de controle. Toda filosofia fundada na vontade de poder — seja sobre as coisas, seja sobre as ideias — já partiu do lugar errado. Porque o ser não se domina. Ele se acolhe. Ele se vive. A integralidade é a postura do espírito que reconhece que só há verdade quando se aceita o outro como co-fundador do sentido. Quando se percebe que a realidade não é aquilo que se vê, mas aquilo que se vive com.

O “com” é essencial. Sciacca insiste: não há ser sem comunhão. O mundo, tomado isoladamente, é opaco. O sujeito, isolado em si, é mudo. Só quando os dois se implicam, se reconhecem e se habitam mutuamente é que o ser emerge como clareza. Não clareza no sentido lógico, mas clareza existencial. O ser se ilumina quando é partilhado. Quando se torna caminho comum. Quando gera fidelidade, reciprocidade, responsabilidade.

A integralidade, então, não é um esquema teórico. É uma ética. Um modo de estar no mundo. Um compromisso com a verdade que não separa pensar, agir e amar. Para Sciacca, só vive plenamente quem reconhece que o ser não é posse, mas entrega. Que o mundo não é objeto, mas chamado. Que o espírito não é substância, mas ato. A integralidade exige inteireza: do corpo, da mente, da alma. Exige uma vida onde nada é separado — porque tudo é implicado.

É por isso que a filosofia, para Sciacca, não é uma profissão, nem uma especialidade. É uma forma de vida. E essa vida só é verdadeira quando se organiza a partir da unidade. Quando se recusa a duplicidade entre teoria e prática, entre razão e sentimento, entre eu e o mundo. A fragmentação é a marca da decadência espiritual. A integralidade é o nome da reconciliação: não de partes separadas, mas da totalidade vivida desde o início.

O mundo, nessa perspectiva, não é um palco. Nem uma máquina. Nem um enigma a ser decifrado. O mundo é relação. É um campo de sentido onde cada coisa fala — se houver alguém que escute. A filosofia da integralidade, então, não é uma nova teoria do ser. É uma recondução da existência à sua fonte. É um retorno à presença originária que habita tudo e todos — e que nos chama, sempre, à fidelidade.

Capítulo IV – O homem como ser-em-ato: plenitude e ferida
Artigo 1 – Não somos essência fixa, mas drama em construção

O homem não é uma essência pronta esperando ser definida. Ele não é um “animal racional” no sentido estático que a tradição repetiu por séculos. Não é um ponto imóvel dentro do fluxo das coisas. Para Sciacca, o homem é ato — e mais: é ato em tensão. Isso quer dizer que o homem não é, mas se faz. Ele é um projeto, um drama, uma caminhada que nunca se encerra.

Essa ideia não é retórica. É uma tomada de posição radical contra todo essencialismo vazio, contra toda tentativa de fixar o homem em fórmulas. O que caracteriza o ser humano, para Sciacca, é o fato de que ele nunca está inteiramente dado. Ele carrega uma ferida ontológica: a distância entre aquilo que é e aquilo que pode ser. E é nessa distância que reside sua dignidade, mas também sua angústia.

A tradição metafísica que tratava o homem como substância indivisível — composta de essência e acidentes — falhava em capturar essa dimensão. Falava do que o homem é, mas ignorava o que ele busca ser. Sciacca rompe com isso. Ele nos apresenta um homem que é ato primeiro inacabado, que se atualiza na medida em que escolhe, sofre, ama, constrói e se entrega. A estrutura do humano não é a estabilidade, mas a abertura.

Essa abertura não é liberdade no sentido moderno, como escolha arbitrária. É liberdade no sentido ontológico: capacidade de resposta ao ser. O homem, ao existir, se vê chamado. Chamada não por uma voz externa, mas por uma exigência interior que o atravessa. Essa exigência não pode ser silenciada — só traída. E toda traição cobra seu preço. O homem que ignora esse chamado, que busca estabilidade em vez de fidelidade, se desintegra. Vira função, papel, sombra de si.

Ser homem, então, não é corresponder a uma definição, mas habitar um caminho. Não é representar uma essência, mas responder a uma convocação. A vida humana é essa tensão contínua entre o já e o ainda-não. Entre a promessa e o fracasso. Entre o dom e a recusa. Sciacca quer nos lembrar que não se pode pensar o homem fora desse movimento. Porque onde não há drama, não há espírito.

Essa condição dramática não é uma maldição. É uma graça. Significa que o homem nunca está fechado, que sempre pode se refazer, que sua identidade está no vir-a-ser. E que esse vir-a-ser só se realiza plenamente quando orientado para a plenitude do ser. Não somos feitos para a estagnação. Fomos feitos para o alto. Mas essa subida exige coragem — coragem de não se contentar com o que se é, de não se encostar em papéis, de não se esconder atrás de máscaras.

O homem, diz Sciacca, só é verdadeiramente homem quando se entrega ao movimento que o funda. E esse movimento não é psicológico, nem social, nem apenas moral. É ontológico. Somos constituídos para buscar algo que nos transcende. E é nessa busca que nossa essência se realiza. O paradoxo é este: não temos essência fixa, mas só nos tornamos o que somos quando somos fiéis à exigência do ser. Ser homem é ser ferido pelo infinito — e responder com atos.

Artigo 2 – A liberdade como esforço de ser mais

Liberdade, para Sciacca, não é a capacidade de fazer o que se quer. Essa ideia moderna, fundada na arbitrariedade da vontade, reduziu a liberdade a um movimento sem direção, a um jogo vazio de escolhas que não tocam o ser. O homem, nesse modelo, virou um sujeito desorientado, consumindo possibilidades como quem percorre prateleiras de supermercado — mas sem saber por quê. Sciacca rompe com isso desde a raiz: liberdade não é indiferença, mas fidelidade ao ser que me chama a ser mais do que sou.

A liberdade verdadeira é esforço. Esforço de atualização. Esforço de fidelidade. O homem é livre porque está incompleto. E sua liberdade é o nome do combate entre o que ele é hoje e o que pode vir a ser. Só há liberdade porque há ser em ato — ser que não está fechado, mas se oferece como promessa. Por isso, a liberdade é pesada. Ela exige responsabilidade. Cada escolha não apenas diz quem eu sou, mas também molda quem estou me tornando. E essa formação não é neutra: ela tem direção, ou para cima, ou para baixo.

O drama do homem está exatamente aí. Ele pode trair sua vocação ontológica. Pode escolher a inércia. Pode se esconder nas repetições, nos papéis sociais, nas máscaras culturais. Pode dizer “não” à exigência interior que o move. Mas esse “não” tem um preço. Ele se traduz em vazio, em ressentimento, em autonegação. O homem que recusa a tarefa de se tornar o que deve ser, acaba se tornando o que o mundo quer que ele seja: um número, uma engrenagem, um eco.

Sciacca resgata a liberdade como uma forma de heroísmo espiritual. Não o heroísmo teatral, cheio de gestos visíveis, mas o heroísmo silencioso de quem decide permanecer fiel ao que o ser exige dele. É mais fácil seguir a corrente, repetir fórmulas, terceirizar o sentido. Mas nada disso salva. Só se salva quem assume a ferida da liberdade — quem aceita que a vida é um trabalho contínuo de realização do ser, com quedas, fracassos e recomeços.

E isso não acontece no abstrato. A liberdade se vive nos atos concretos. No modo como olhamos, ouvimos, escolhemos, perdoamos, permanecemos. Cada gesto é uma afirmação ou uma negação do ser. E o mais grave: ninguém pode fazer isso por nós. A liberdade, embora aconteça em relação, é profundamente pessoal. Ninguém entra em nossa interioridade por substituição. A liberdade é o lugar onde o ser me confia a mim mesmo — e espera que eu responda.

Essa resposta não é automática. Ela exige uma escuta interior. Uma atenção fina aos movimentos do espírito. A liberdade madura sabe que não se trata de inventar um caminho, mas de reconhecer um caminho que me precede — e que me convoca. É o ser que chama. E o homem, ao responder, não perde nada. Pelo contrário: se liberta do peso de ser apenas o que o mundo permite.

O mais livre não é o que tem mais opções. É o que sabe dizer “sim” ao que vale. A liberdade autêntica é vertical. Ela me levanta. Me obriga a sair do confortável. Me coloca de frente com o abismo — mas também com a luz. Sciacca quer um homem que não fuja da grandeza que o habita. Que não tema o esforço. Que não se esconda na facilidade. Porque a liberdade que não nos torna mais reais é só disfarce. E o ser não aceita disfarces. Ele quer presença inteira.

Artigo 3 – Deixar-se atravessar pelo ser: ética, tempo e salvação

Chegamos ao ponto final, não no sentido de um fim fechado, mas de um limiar — aquele onde o homem, atravessado pelo ser, é chamado a decidir: ou se entrega à verdade que o constitui, ou se refugia nas ficções que o corroem. Para Sciacca, o destino humano não é questão psicológica, nem puramente religiosa. É questão ontológica. A maneira como o homem vive, escolhe e sofre não é algo à margem do ser — é o próprio ser que pulsa nele em forma de tempo, de exigência ética e de promessa de salvação.

O tempo, aqui, não é cronologia. Não é sucessão de dias. É drama. O tempo é a moldura existencial da nossa abertura ao ser. Somos seres temporais porque não somos tudo de uma vez. Vivemos de fragmento em fragmento, e justamente por isso podemos crescer, mudar, cair e reerguer-nos. O tempo é dom e ferida. Nos dá o intervalo para ser mais, mas também carrega o risco de não sermos nunca. A pressa, a dispersão, a rotina — todos são modos de trair o tempo como espaço do ser. O homem que não acolhe o tempo como exigência de plenitude, torna-se prisioneiro do instante — e, nesse instante, se perde.

Mas o tempo, por si só, não salva. O que salva é o que fazemos com ele. E aqui entra a ética — não como sistema de normas, mas como fidelidade ao ser. A verdadeira ética, para Sciacca, é ontológica. Ela nasce da relação íntima entre o homem e a verdade que o chama. Ser ético é ser inteiro, é viver segundo a exigência silenciosa do ser que habita cada gesto. Não se trata de seguir regras externas, mas de habitar o mundo como quem sabe que tudo tem peso, tudo tem sentido, tudo revela. Até o menor ato carrega a marca do absoluto.

A ética da integralidade exige vigilância: não posso me fragmentar, não posso me esquecer. Preciso estar presente no que faço. E esse estar presente não é mindfulness — é responsabilidade ontológica. Porque cada escolha, cada olhar, cada silêncio ou palavra me revela ou me trai. E quanto mais me entrego à verdade do ser, mais sou livre — não para fazer qualquer coisa, mas para ser o que devo ser.

E aqui surge, inevitável, a pergunta final: há salvação? Para Sciacca, sim — mas não como prêmio, nem como fuga do mundo. A salvação é a realização do ser. Não está fora do tempo, mas se inscreve no tempo como plenitude possível. Salvar-se é deixar-se atravessar pelo ser até o fim. É consentir com a verdade, mesmo quando ela fere. É não fugir do chamado, mesmo quando ele exige tudo. A salvação não é fuga da dor — é sua transfiguração.

Só se salva quem suporta a exigência de ser inteiro. Só se salva quem não se reduz. Quem não se vende. Quem não se perde em papéis. A salvação, para Sciacca, é pessoal, mas nunca isolada. Ela acontece na relação, na escuta, na abertura. Ela é graça — mas exige consentimento. É dom — mas exige luta. O ser se oferece, mas não se impõe. Ele espera. Espera que o homem diga “sim” — com o corpo, com a alma, com a história.

Esse “sim” é o centro de tudo. Ele não precisa ser gritado. Basta que seja real. O homem não precisa ser perfeito — só precisa ser verdadeiro. E a verdade não está num conceito. Está num modo de estar no mundo. Um modo que diz: “eu aceito o ser que me chama, e vou com ele até o fim”. Essa é a única ética que salva. E é essa fidelidade silenciosa que faz do homem — finalmente — um ser inteiro.

 

 


A conclusão de La religión gnóstica de Hans Jonas destaca que a cosmovisão gnóstica surge de uma profunda alienação metafísica, onde o mundo é percebido como estranho, hostil e até mesmo produto de um erro divino. Jonas argumenta que o gnosticismo não é apenas uma heresia cristã, mas um fenômeno espiritual mais amplo, que revela uma crise da antiga ordem espiritual e a busca desesperada por sentido e salvação numa realidade percebida como corrompida e ilusória.

Jonas conclui que a religião gnóstica é, ao mesmo tempo, protesto existencial e especulação cósmica: uma tentativa radical de afirmar a liberdade e a interioridade do espírito contra um universo degradado e regido por forças hostis. Nessa perspectiva, o conhecimento (gnose) é visto como redenção, e a salvação é compreendida como fuga — uma reintegração da centelha divina aprisionada no homem ao reino do verdadeiro Deus, além do mundo.

Em última análise, Hans Jonas vê no gnosticismo um reflexo filosófico e religioso de um sentimento de crise existencial, que ecoa inclusive em movimentos modernos de niilismo, existencialismo e alienação tecnológica, sugerindo que a atualidade de seu estudo vai além da Antiguidade tardia. Ele encerra com uma advertência filosófica: que a negação total do mundo, típica do gnosticismo, não pode ser assumida sem consequências éticas e políticas profundas, pois rompe com a responsabilidade perante a existência.

 

CAPÍTULO I — A GNOSE COMO EXPERIÊNCIA METAFÍSICA DO EXÍLIO
O espírito decaído diante do mundo estranho

Artigo 1 — O universo como prisão: a alteridade cósmica no gnosticismo antigo
Examina a radical estranheza do mundo na experiência gnóstica, articulando a metafísica do exílio ao modelo de uma teologia negativa da criação. Mostra como o cosmos, longe de ser expressão do Bem, é concebido como produto de um ato errôneo, reflexo de uma queda pré-cósmica.

Artigo 2 — A alma exilada e o mito da centelha divina
Investiga a antropologia gnóstica como teoria do espírito prisioneiro, apresentando o homem como ente dividido entre matéria corrompida e origem transcendente. A gnose é compreendida como rememoração do ser verdadeiro, o despertar de um esquecimento ontológico.

Artigo 3 — Teodiceia invertida: a redenção contra o Criador
Desenvolve a ideia de que a salvação gnóstica se efetua como fuga do mundo, opondo-se ao demiurgo e seus arcontes. Discute o caráter profundamente antitético entre gnose e criação, onde a redenção exige uma rejeição do próprio fundamento cosmológico.


CAPÍTULO II — ESTRUTURA DO CONHECIMENTO SALVADOR
A gnose como ruptura da ordem e linguagem da transcendência

Artigo 4 — Conhecimento, não fé: ruptura epistemológica com o horizonte bíblico
Explora o conceito gnóstico de gnose como conhecimento revelado, não racional, mas visionário e libertador. Analisa a distância entre fé cristã e saber gnóstico, e como este último pretende substituir o pacto com o Deus criador por um pacto com o Deus oculto.

Artigo 5 — Simbolismo, mito e linguagem visionária: a via do irracional como revelação
Aponta como o discurso gnóstico dissolve o logos racional e substitui a linguagem discursiva pela expressão mitológica. O simbolismo torna-se veículo da revelação, e o mito, meio de dizer o indizível — não como alegoria, mas como estrutura de acesso ao real transcendente.

Artigo 6 — A gnose e o colapso da mediação: o espírito sem mundo
Reflete sobre a supressão da mediação na estrutura gnóstica da salvação: não há história, não há encarnação redentora, apenas ruptura. A gnose ignora a ordem do tempo e da encarnação, propondo um salto puro para fora do mundo, marcado por um dualismo absoluto.


CAPÍTULO III — GNOSE, EXISTENCIALISMO E NIHILISMO MODERNO
Do abandono metafísico ao niilismo histórico

Artigo 7 — A gnose como forma arcaica do niilismo: uma genealogia espiritual da modernidade
Associa a metafísica gnóstica à crise espiritual da modernidade, mostrando que a alienação do mundo e a perda de sentido encontram no gnosticismo um modelo remoto. O niilismo moderno não é ruptura, mas retorno — e a gnose, seu arquétipo esquecido.

Artigo 8 — O Deus estranho e o homem abandonado: gnosticismo e existencialismo
Analisa o paralelismo entre a figura do Deus oculto gnóstico e o vazio metafísico da existência moderna. Heidegger, Sartre e Camus reaparecem como herdeiros, inconscientes ou não, de uma experiência radical de desamparo diante do ser.

Artigo 9 — A ética da responsabilidade como resposta ao abismo: a advertência de Jonas
Conclui com a contraposição entre o escapismo gnóstico e a ética da responsabilidade elaborada por Hans Jonas. Discute a necessidade de uma resposta filosófica que reconheça a tragédia do ser sem cair na recusa do mundo, exigindo fidelidade ao real, mesmo em face do horror.

 

 

CAPÍTULO I — A GNOSE COMO EXPERIÊNCIA METAFÍSICA DO EXÍLIO
O espírito decaído diante do mundo estranho

Artigo 1 — O universo como prisão: a alteridade cósmica no gnosticismo antigo

A gnose antiga não se ergue como um simples desvio doutrinal no seio do cristianismo nascente, mas como uma revolta espiritual total contra o mundo enquanto tal. O núcleo de sua concepção metafísica repousa sobre uma percepção radical da existência: o mundo, longe de ser um lar ou expressão de um Bem criador, aparece como uma estrutura hostil, um cárcere construído pela ignorância ou pela malícia de um deus inferior. Esta não é uma mera crítica moral da sociedade ou uma rejeição simbólica do sofrimento humano, mas uma negação ontológica da ordem total do cosmos. A criação não é boa, não é sequer neutra — é um erro, ou pior, uma traição. O universo é concebido como prisão e a matéria, como obstáculo à essência espiritual do homem.

Hans Jonas evidencia, com precisão filosófica, que esta rejeição do mundo implica uma reinterpretação completa da metafísica clássica. Contra o platonismo, que via no mundo uma imagem pálida mas ordenada do Bem; contra o estoicismo, que via na razão cósmica a providência divina; contra o cristianismo, que via no mundo a obra de um Deus pessoal e bondoso — o gnosticismo erige um dualismo intransigente. A realidade visível é o domínio de uma potência inferior, o Demiurgo, que se crê deus, mas é cego, arrogante e ignorante da verdadeira fonte do Ser. Ele, com seus arcontes, fabrica o cosmos como uma armadilha, um simulacro de ordem para aprisionar a centelha divina dispersa na humanidade. Não há, portanto, no mundo qualquer traço positivo da divindade suprema. O cosmos não é teofania, mas encobrimento.

Este gesto radical tem consequências filosóficas profundas. Ele rompe com a tradição da physis como lugar de revelação do ser. O mundo já não revela nada — oculta. Já não ordena — aprisiona. O fundamento da filosofia grega, que via no cosmos uma racionalidade acessível ao logos, é aqui subvertido. A experiência gnóstica é marcada por um pathos de estranhamento: o mundo é estranho, alienígena, não porque seja apenas incompreensível, mas porque é ilegítimo. O homem espiritual não pertence a este lugar. Sua presença é exílio. Por isso, a linguagem da gnose está impregnada de imagens de prisão, sono, erro e queda. Viver é estar perdido, e o mundo, um erro colossal.

Jonas assinala que esta percepção do mundo como erro não é produto de um argumento, mas de uma experiência existencial aguda. É o sentimento de abandono, de solidão metafísica, de horror à matéria, que alimenta a formulação mitológica do gnosticismo. Os mitos são menos explicações do que expressões simbólicas dessa vivência interior. A queda da centelha no mundo, a criação defeituosa, o deus cego — tudo isso não se compreende sem o pathos fundamental de uma existência deslocada. Assim, a metafísica gnóstica não é uma filosofia construída por dedução, mas uma narrativa de salvação produzida por uma alma em angústia.

Em contraste com o pessimismo passivo, a gnose propõe uma via de fuga: não pela transformação do mundo, mas pela sua rejeição. O conhecimento é o início da libertação, pois permite reconhecer o verdadeiro lugar de origem da alma e a falsidade do mundo. Ao contrário das religiões que reconciliam o homem com a criação, a gnose o incita a transcendê-la. E é nesta ruptura radical com o cosmos que reside a força subversiva da gnose: ela não quer aperfeiçoar o mundo, mas denunciá-lo como prisão e buscar o caminho para fora dele.

No fundo, Jonas nos faz perceber que a gnose é um protesto extremo, uma revolta espiritual que nasce de uma angústia diante do ser. Ela se recusa a aceitar a existência como boa, ou sequer como redimível. O mundo, para o gnóstico, é um véu de sombras, uma armadilha montada por uma divindade usurpadora. Por isso, conhecer é desfazer-se da ilusão; despertar é romper os grilhões da criação. É nesse ponto que a experiência gnóstica ultrapassa os limites da história das religiões e se apresenta como um paradigma recorrente de crise espiritual, cuja sombra ainda paira sobre o homem moderno.

Artigo 2 — A alma exilada e o mito da centelha divina

A antropologia gnóstica inverte a autocompreensão clássica do homem ao proclamar que o núcleo da subjetividade — aquilo que de fato constitui o “eu” — não pertence à ordem visível do mundo. O ser humano é um composto heterogêneo: corpo material forjado pelo demiurgo, alma anímica sujeita às potências cósmicas e, sepultado sob esses estratos, um fragmento de luz pre-eterna, o pneûma. Essa centelha provém da plenitude supradivina, mas jaz adormecida no cárcere da carne, envolta num torpor ontológico que a faz ignorar sua própria origem. A narrativa da queda primordial de Sophía simboliza exatamente essa condição: o desejo imprudente de conhecer o Abismo conduziu à fratura do pleroma e precipitou faíscas divinas na matéria. O drama cósmico é, portanto, autobiografia da alma: cada sujeito revive em si mesmo o extravio da emanação revoltada.

Inserido neste mito, o conceito gnóstico de memória assume estatuto soteriológico. Longe de ser simples recordação psíquica, anámnēsis designa o despertar do espírito à consciência de sua nobreza. Conhecer não é acrescentar informação, mas suprimir o esquecimento que sustenta o domínio dos arcontes; é reconhecer que a ordem visível não passa de simulacro destinado a manter cativa a centelha. O conhecimento salvador opera pela negação: desmascara a impostura do cosmos e, nesse gesto, rompe o laço mágico que o prende ao espírito. A libertação consiste numa “metanoia vertical”, ato súbito de rememoração que restaura a identidade celeste do sujeito.

Esse cenário confere novo sentido à tradicional tensão entre alma e corpo. Para Platão, a alma é prisioneira de um corpo individual, mas ainda encontra no cosmo inteligível um reflexo da ordem divina. Para o gnóstico, o corpo é apenas o primeiro nível de cativeiro; a própria psique, com seus afetos, é oficina do demiurgo. Por isso, a libertação exige ultrapassar não só a carne, mas também o psiquismo. O pneûma deve dessolidarizar-se de todo vínculo mundano, incluindo faculdades racionais e morais celebradas pela filosofia grega. Daí a indiferença gnóstica em relação à areté: as virtudes civis refinam a prisão, não quebram suas barras. A ética torna-se função da soteriologia, não da vida comunitária.

No plano existencial, tal doutrina engendra um sentimento agudo de não-pertencimento. O homem espiritual vive o mundo como desterro: a familiaridade cotidiana converte-se em enigma hostil, e cada afeto que o prende à carne é percebido como laço imposto por um poder alheio. O ascetismo extremo ou, em vertente oposta, o antinomismo libertino — ambas atitudes atestadas nos círculos gnósticos — emergem desse mesmo diagnóstico: se o corpo é irredimível, pode ser mortificado ou, inversamente, entregue ao excesso; em qualquer caso, sua sorte é irrelevante para a salvação do pneûma. Jonas observa que essa lógica alcança um ponto em que a ética reconhece apenas um imperativo supremo: tornar possível a evasão do espírito, custe o que custar.

A dignidade suprema da centelha, porém, confere ao gnóstico uma autoconfiança paradoxal. Ele sabe que nada exterior — lei, rito, instituição — pode mediá-lo com o Deus verdadeiro; toda mediação repousa já em seu mais íntimo. Aqui se manifesta a audácia teológica da gnose: ela localiza o lugar da revelação no interior do sujeito, antes de toda palavra e de toda história. Acentua-se, assim, a oposição ao cristianismo nascente, para o qual a mediação histórica e sacramental constitui via indispensável da graça. Na perspectiva gnóstica, o pneûma não precisa ser divinizado — ele já o é; precisa, isto sim, ser despertado. Em tal gesto, o homem assume uma nobreza que, ao mesmo tempo, relativiza qualquer autoridade, seja cósmica, eclesial ou política.

Ao retratar essa antropologia, Hans Jonas evidencia não apenas a ousadia, mas também o perigo implicado: ao eximir o homem espiritual de todo vínculo com a ordem criada, corre-se o risco de dissolver a responsabilidade compartilhada pelo destino comum do mundo. O mito da centelha divina proclama a transcendência do espírito, mas pode converter-se em álibi para o desdém pelos que não participam da mesma luz. Aqui se desenha a fronteira entre o impulso de transcendência que enriquece a experiência humana e a tentação de desprezar a condição encarnada que sustenta nossa própria humanidade.

Artigo 3 — Teodiceia invertida: a redenção contra o Criador

A teologia gnóstica representa um desafio frontal às categorias clássicas da teodiceia. Se o problema do mal, no horizonte cristão ou neoplatônico, consiste em conciliar sua existência com a bondade de um Deus criador, para o gnosticismo a questão assume feição inteiramente diversa: o mal é o próprio mundo, e o criador é seu autor. A teodiceia, portanto, é invertida. Já não se trata de justificar a bondade divina perante o mal, mas de denunciar a divindade criadora como a fonte última do erro e da escravidão. O Demiurgo — figura central da cosmogonia gnóstica — não é um símbolo da razão ordenadora, mas o arquétipo da ignorância e da usurpação. Ele cria não por amor, mas por hybris, e seu produto é uma realidade fragmentada, ilusória, destinada a manter cativas as centelhas espirituais.

Jonas mostra com clareza que esse gesto representa não uma simples inversão simbólica, mas uma reconfiguração total do horizonte teológico. O problema do mal, que para Agostinho e Tomás de Aquino é sempre um privatio boni, torna-se para os gnósticos um principium activum, um agente positivo, dotado de vontade, de ordem e de estratégia. O mal não é um desvio; é o projeto. Por isso, o próprio ato da criação já não pode ser interpretado como bem-fundado. Ele é suspeito desde a origem. O Deus criador — seja o do Antigo Testamento ou seu equivalente filosófico — não é mais o princípio do ser, mas um falso absoluto, uma instância cega que ocupa indevidamente o trono da divindade.

Essa denúncia se desdobra em um dualismo metafísico que rompe com a tradição filosófica ocidental. Se na teologia clássica o mal é posterior e dependente do bem, na teologia gnóstica o bem absoluto está ausente do mundo desde o início. Ele habita uma região de plenitude inacessível, o pleroma, cuja luz foi contaminada e desdobrada em camadas cada vez mais densas de deterioração. O Demiurgo — produto da queda de Sophía — é a manifestação mais extrema dessa degradação. Ao contrário do Deus bíblico, que diz “façamos o homem à nossa imagem”, o Demiurgo proclama arrogantemente: “eu sou Deus, e fora de mim não há outro”, ignorando que é apenas reflexo distorcido de uma divindade superior. Sua criação, portanto, é ato de cativeiro.

A consequência teológica é devastadora: o mundo não é objeto de redenção, mas de evasão. Não se trata de restaurá-lo à sua bondade original — como no cristianismo —, mas de abandoná-lo como cárcere irredimível. A salvação se opera contra o criador. O Redentor gnóstico não reconcilia a criação com seu autor, mas revela sua falsidade. É enviado pelo Deus estranho, o Deus verdadeiro que não participa da gênese do cosmos. Sua missão não é estabelecer uma nova aliança, mas romper toda aliança com o mundo. Daí o caráter abrupto e iconoclasta da gnose: ela não edifica sobre a criação, mas sobre a negação da criação. A redenção não é reparação, mas destruição simbólica da obra demiúrgica.

Jonas interpreta esse gesto como produto de uma consciência em crise, que se vê inteiramente estrangeira à realidade que habita. A experiência do mal absoluto, quando não pode mais ser integrada na estrutura do ser, exige uma ruptura ontológica. O mundo se torna algo a ser denunciado em sua totalidade. Esse gesto, ainda que extremo, guarda coerência com uma espiritualidade que recusa o escândalo do sofrimento como contingência e o reconhece como estrutura. O mal não é o que há de errado no mundo: é o próprio mundo.

A força desse pensamento reside em sua recusa em reconciliar-se com a ambiguidade da existência. Sua fraqueza, como Jonas adverte, está na abdicação de toda responsabilidade perante a ordem das coisas. A gnose não quer justificativas, quer fuga. Em lugar de suportar a tensão entre o já e o ainda não — a tensão que funda toda esperança religiosa —, ela opta pela rejeição. O Redentor gnóstico não sofre pelo mundo, como o Cristo cristão, mas age como emissário secreto que conduz os eleitos para fora dele. A salvação é elitista, secreta, silenciosa — e nela a história perde todo valor.

Na teodiceia invertida da gnose, não há espaço para um sentido imanente do sofrimento, nem para a esperança de uma restauração cósmica. Há apenas denúncia, ruptura e êxodo espiritual. Essa atitude pode inspirar lucidez metafísica, mas também propicia desprezo pela existência e pelo outro. Por isso, Jonas propõe um juízo ambivalente: a gnose é um monumento à coragem especulativa, mas também uma advertência. Sua recusa do mundo nos força a perguntar: até que ponto uma espiritualidade pode negar a criação sem negar também o criador em nós?

CAPÍTULO II — ESTRUTURA DO CONHECIMENTO SALVADOR
A gnose como ruptura da ordem e linguagem da transcendência

Artigo 4 — Conhecimento, não fé: ruptura epistemológica com o horizonte bíblico

O centro de gravidade da gnose não repousa na fé, mas no conhecimento. O que salva não é crer em um Deus pessoal e suas promessas, mas conhecer — de modo imediato, interior e absoluto — a verdade oculta do próprio ser e do cosmos. Essa verdade não é fruto da razão discursiva, nem objeto de aceitação fiduciária, mas revelação silenciosa da origem esquecida da alma. A fé, entendida como confiança no testemunho de um outro, é para o gnóstico uma forma inferior de relação com o divino, própria dos homens psíquicos e das religiões inferiores. O homem espiritual, ao contrário, não depende de mediações: ele sabe.

Hans Jonas interpreta essa ruptura como decisiva. O cristianismo primitivo, apesar de também se fundar numa revelação, preserva a estrutura do testemunho: é pela escuta da pregação e pela adesão voluntária à mensagem de Cristo que o fiel é salvo. A fé, nesse contexto, é essencialmente relacional: envolve alteridade, reconhecimento de autoridade, obediência confiante. O conhecimento, tal como estruturado na gnose, subverte essa lógica. Ele não parte da escuta, mas da recordação interior. A revelação, aqui, não é evento na história, mas súbita reemergência do que já está oculto no sujeito. A verdade é anterior à palavra; ela reside no mais profundo da subjetividade espiritual, e apenas precisa ser despertada.

Essa oposição entre fé e gnose repercute diretamente na concepção da salvação. No horizonte bíblico, a redenção é um dom que vem de fora, iniciativa de Deus que entra na história, chama o homem e o conduz à reconciliação. O sujeito é passivo diante do chamado, e ativo apenas na resposta. Na gnose, ao contrário, a salvação é identificada com a autognose: conhecer a si mesmo é conhecer o Deus verdadeiro, e isso não por reflexão psicológica, mas por iluminação ontológica. A célebre máxima gnóstica — gnōthi seautón, mas num registro radicalizado — exprime essa fusão entre teologia e interioridade: o homem não encontra Deus fora de si, mas reencontrando em si aquilo que o mundo quis apagar.

Esse conhecimento, no entanto, não é universal nem acessível a todos. Ele é reservado àqueles em cuja alma subsiste a centelha divina, e mesmo estes só podem ser despertados por meio de sinais especiais — mitos, símbolos, palavras-código — que servem mais para ativar uma memória do que para transmitir conteúdos. A linguagem gnóstica é deliberadamente obscura, hierática, quase cifrada. Isso não se deve a um elitismo estético, mas ao fato de que a verdade que ela veicula não pode ser expressa senão por imagens fragmentadas. Não se trata de ensinar, mas de fazer lembrar. Daí que a linguagem gnóstica seja tão simbólica: ela não informa, evoca; não conduz à demonstração, mas à rememoração.

Nesse contexto, a revelação não é comunicação pública, mas instrução secreta. Cristo, por exemplo, não é o Salvador porque morreu na cruz — um evento, aliás, considerado ilusório por muitas seitas gnósticas —, mas porque transmitiu um saber oculto, reservado aos iniciados. O verdadeiro ensinamento de Jesus não está nos evangelhos públicos, mas nos apócrifos secretos, onde ele fala de eon, pleroma, queda de Sophia e destino da centelha. A missão do Redentor, portanto, não é reconciliar o mundo com Deus, mas abrir um canal de fuga para os poucos que ainda guardam em si o selo da luz.

Essa estrutura epistemológica rompe com toda concepção de verdade como universalmente comunicável. A gnose não é doutrina a ser anunciada, mas cifra a ser decifrada. Nisso reside sua radicalidade e também seu fechamento. O conhecimento não une; separa. Ele distingue os pneumáticos dos psíquicos e hilaicos, e essa distinção não é moral nem existencial, mas ontológica. Uns nasceram para conhecer; os outros, não. Em contraste com a universalidade da fé cristã, que se dirige a todos os homens indistintamente, a gnose é aristocrática, quase genética.

Jonas vê nesse modelo uma antecipação de certos traços do saber moderno, que também tende a substituir a fé por um saber técnico ou interior. Mas ele alerta: o conhecimento, quando divorciado do mundo e da alteridade, perde sua função humana. A gnose absolutiza o saber como salvação, mas, ao fazê-lo, transforma o homem num ser encerrado em sua própria essência, sem vínculo com a história ou com o próximo. Sua libertação é solitária, e sua verdade, indizível. Nesse sentido, o conhecimento gnóstico não liberta o homem do erro, mas do mundo — e com ele, de todos os outros.

Artigo 5 — Simbolismo, mito e linguagem visionária: a via do irracional como revelação

A estrutura discursiva do gnosticismo subverte as exigências clássicas da racionalidade. Ao contrário da tradição filosófica grega — fundada na clareza conceitual e na demonstração lógica —, a linguagem gnóstica assume a forma do mito, do símbolo enigmático e da visão fragmentada. Ela não pretende explicar o mundo, mas desvelar sua falsidade; não elucidar o ser, mas perfurar sua aparência. Trata-se de uma linguagem deliberadamente obscura, rica em imagens paradoxais, genealogias fabulosas, hierarquias celestes e enredos cósmicos que parecem resistir a toda coesão racional. Para o olhar externo, ela beira a alucinação. Para o iniciado, ela é a única linguagem possível diante do inefável.

Hans Jonas, sem negar a complexidade mítica dessa expressão, insiste que o mito gnóstico não é uma regressão irracional, mas um modo de simbolizar o inarticulável da experiência espiritual. A experiência gnóstica — a percepção súbita de que o mundo é um erro, de que o eu verdadeiro não pertence a esta ordem — não pode ser comunicada por meio da linguagem ordinária. O logos lógico, que busca ordem e inteligibilidade no cosmos, é ele próprio um produto do demiurgo. Assim, a gnose necessita de outra linguagem: uma fala capaz de refletir o colapso da ordem, a ruptura com o mundo, o salto para o inteiramente outro. A linguagem visionária é essa tentativa.

O mito gnóstico não é, pois, apenas ornamentação religiosa, mas estrutura epistemológica. Ele expressa uma verdade que não pode ser dita, mas apenas mostrada. Os nomes — Abismo, Silêncio, Autogenes, Sophia, Arcontes, Pleroma — não designam entes definidos, mas estados da realidade além do ser. Cada mito é uma codificação simbólica da queda do espírito, da distorção do mundo, da prisão da alma. Eles não servem para narrar acontecimentos temporais, mas para traçar mapas de um drama ontológico que se repete em cada sujeito. Longe de serem estorvos ao pensamento, os mitos gnósticos são sua carne, sua única forma de expressão.

Essa linguagem não é construída para convencer, mas para evocar. Ela fala ao espírito adormecido, não ao intelecto cartesiano. Suas imagens — como a de Sophia caindo por desejo de conhecer o Pai, ou da centelha cercada pelos arcontes — não são metáforas explicativas, mas chaves iniciáticas. Por isso, a linguagem gnóstica é ritual: ela exige escuta atenta, purificação interior, preparação espiritual. O mito não é uma narrativa externa a ser aceita ou refutada, mas um espelho em que o iniciado se reconhece. Sua veracidade está no reconhecimento interior, não na verificação lógica.

Nesse ponto, a gnose se afasta tanto do logos grego quanto da profecia bíblica. Contra o primeiro, recusa o poder universal da razão; contra o segundo, recusa o caráter histórico e linear da revelação. O profeta fala em nome de um Deus que entra na história; o gnóstico fala em nome de um Deus oculto, que jamais entrou na criação. A linguagem profética é clara, imperativa, muitas vezes moral. A linguagem gnóstica é cifrada, subterrânea, alheia a qualquer preocupação moral tradicional. O profeta chama o povo à conversão. O gnóstico chama os eleitos à fuga.

Hans Jonas interpreta essa virada como uma das consequências mais radicais do sentimento de alienação que perpassa a experiência gnóstica. Quando o mundo é percebido como cárcere sem fissura, toda linguagem construída sobre ele é suspeita. O discurso ordinário torna-se cúmplice da prisão. Daí a necessidade de uma linguagem nova, subversiva, que rompa os esquemas herdados. A linguagem mítica do gnosticismo, com toda sua estranheza e riqueza simbólica, é expressão dessa desconfiança radical. Ela recusa o consenso dos conceitos e aposta na força de imagens que, como relâmpagos, rasgam por um instante o véu do simulacro.

Contudo, Jonas adverte que esse gesto não é isento de riscos. Ao romper com o logos, o gnosticismo perde a ponte com o mundo comum e com a comunicação universal. Seu saber se torna esotérico, fechado, autorreferente. E com isso, ainda que busque libertar o espírito, corre o risco de aprisioná-lo num solipsismo místico. A linguagem visionária liberta da ilusão, mas pode também alienar da comunhão. Eis o paradoxo: ao rejeitar o mundo como mentira, a gnose cria um discurso tão enigmático que torna sua própria verdade inacessível aos demais — e, às vezes, até a si mesma.

Artigo 6 — A gnose e o colapso da mediação: o espírito sem mundo

A estrutura soteriológica do gnosticismo está assentada sobre uma ruptura absoluta com toda forma de mediação. O mundo, tal como aparece ao homem, é inteiramente obra de um poder ilegítimo; a história, uma sequência de falsificações; a ordem social, um reflexo dos arcontes; os ritos, os mandamentos e as instituições religiosas, instrumentos de aprisionamento espiritual. Contra tudo isso, a gnose afirma a salvação como um evento interior e vertical, que não passa por mediação externa alguma. O espírito, em sua pureza silenciosa, só se comunica com o Deus verdadeiro através de si mesmo. Ele está só — e seu caminho é solitário.

Hans Jonas reconhece neste ponto a radicalidade máxima da espiritualidade gnóstica: não há caminho comum, não há revelação coletiva, não há encarnação reconciliadora. Toda mediação é suspeita. Cristo, quando aparece no mito gnóstico, não o faz como mediador da aliança entre Deus e o mundo, mas como mascarado — um emissário do Deus oculto que utiliza, temporariamente, um corpo aparente para transmitir a senha da fuga. Mesmo quando assume a forma do Salvador, ele não se encarna realmente, não sofre verdadeiramente, não morre na cruz como ato redentor universal. Sua missão é secreta, restrita aos pneumáticos; seu gesto, silencioso; seu ensinamento, reservado.

Essa recusa da mediação encarna também uma rejeição da história. O tempo, para o gnóstico, não é o palco da revelação progressiva de Deus, mas o ciclo fechado da repetição cósmica onde os arcontes exercem seu domínio. O mito gnóstico não é uma história salvífica, mas uma genealogia metafísica do erro. A salvação não é realizada na história, mas contra ela. O tempo deve ser abandonado, não redimido. Em contraste com o cristianismo — para o qual a encarnação inaugura o tempo da graça —, a gnose desconfia de qualquer inserção divina no tempo. O espírito é pré-temporal, e sua libertação consiste em romper o vínculo com o fluxo do devir.

Jonas vê nessa estrutura o que denomina “colapso da mediação”: uma rejeição tão radical do mundo e de sua ordem que a própria linguagem de reconciliação se torna impossível. Já não há espaço para a cruz como ponto de interseção entre o céu e a terra; já não há sentido em um Deus que se faça carne para salvar. A carne não pode ser redimida; o cosmos não pode ser restaurado; a história não pode ser transfigurada. A salvação gnóstica é êxodo, nunca encarnação. É ascensão, jamais retorno. A ponte que uniria Deus e o homem foi abolida; em seu lugar, apenas um abismo silencioso, sobre o qual o espírito deve saltar.

Consequentemente, o homem gnóstico se vê inteiramente desamparado em seu itinerário espiritual. Não pode contar com a Igreja, com a tradição, com os sacramentos, com a graça visível. Não há comunidade, nem magistério, nem guia autorizado. A única autoridade é a luz interior, e esta só se acende por um gesto solitário de recordação. Nesse sentido, a gnose representa o paradigma máximo de uma mística sem comunidade, de uma libertação que é, essencialmente, dissolução do laço. O outro não é companheiro de caminho, mas, quando muito, um eco distante da mesma centelha.

Essa visão extrema, embora filosoficamente coerente dentro do sistema gnóstico, suscita sérias implicações éticas e existenciais. Ao negar a mediação, a gnose termina por negar o mundo, o corpo, o próximo e, por fim, a alteridade como tal. O espírito se fecha sobre si mesmo, convencido de que sua verdade é intransitiva. Daí a frequente indiferença gnóstica à vida comum: as leis, os afetos, os deveres, tudo isso pertence à ordem da ilusão. Libertar-se é desatar todos os vínculos — inclusive os vínculos da caridade. A ética se reduz ao cuidado de si, não mais à responsabilidade pelo outro.

Jonas, atento ao perigo de tal isolamento espiritual, aponta a necessidade de recuperar uma ideia de mediação que não seja nem ingenuamente mundana, nem radicalmente escapista. A experiência do espírito, se não quiser converter-se em narcisismo metafísico, deve reencontrar o mundo como lugar de testemunho e presença. A salvação, para ser plenamente humana, precisa também ser interpessoal. O espírito sem mundo é livre — mas sua liberdade pode custar a perda de tudo aquilo que ainda faz o homem reconhecer-se como homem.

CAPÍTULO III — GNOSE, EXISTENCIALISMO E NIHILISMO MODERNO
Do abandono metafísico ao niilismo histórico

Artigo 7 — A gnose como forma arcaica do niilismo: uma genealogia espiritual da modernidade

Hans Jonas, ao se debruçar sobre o gnosticismo não apenas como fenômeno religioso da Antiguidade tardia, mas como sintoma profundo de uma estrutura espiritual recorrente, detecta nele uma antecipação do niilismo moderno. O gesto gnóstico — o de recusar o mundo como realidade legítima, de desautorizar a criação, de considerar o cosmos uma ilusão corrupta — apresenta traços de uma atitude radical de descrença não apenas no valor da ordem estabelecida, mas na própria inteligibilidade do ser. Nesse ponto, o gnosticismo transcende seu contexto histórico e manifesta-se como figura primitiva do desespero espiritual do homem moderno.

O niilismo, em sua forma filosófica, é a convicção de que não há valor objetivo, que não há verdade última, que o fundamento do real está ausente. No gnosticismo, a ausência de fundamento assume forma teológica: o mundo tem um criador, mas este é falso; o verdadeiro Deus está oculto, ausente, separado. A verdade existe, mas é irredutível ao cosmos. O que parece ordem é disfarce da tirania; o que se apresenta como sentido é armadilha. Em vez de sustentar o mundo como expressão do logos, a gnose o vê como encobrimento do logos verdadeiro. A consequência é uma cisão irreconciliável entre aparência e essência, tempo e eternidade, história e salvação.

Jonas entende que essa cisão, embora revestida de linguagem mítica, exprime uma experiência espiritual que ecoa no coração da modernidade. Quando Nietzsche declara a morte de Deus, ele não está tão distante do gesto gnóstico: ambos detectam a ausência do fundamento no mundo. Mas enquanto Nietzsche conclui que é necessário assumir essa ausência e criar valores, o gnóstico, milênios antes, havia concluído que o único valor possível estava fora do mundo, numa transcendência absoluta. Ambos compartilham, porém, o mesmo diagnóstico: o mundo está vazio de sentido por si mesmo.

Essa continuidade entre gnose e niilismo é tanto estrutural quanto afetiva. Em ambos os casos, o mundo não é confiável. A confiança no cosmos, no ser como algo bom, inteligível e digno de habitação, é substituída por uma suspeita ontológica. O real é opaco, hostil, enganador. Essa desconfiança radical gera, inevitavelmente, um tipo de ética centrada na evasão: o gnóstico busca a salvação pela fuga para o alto; o niilista moderno busca a superação pela destruição do valor herdado. Ambos rejeitam a reconciliação, ambos se fundam sobre uma experiência de cisão, ambos recusam a mediação.

Além disso, Jonas destaca que o elemento elitista da gnose reaparece em algumas versões modernas do niilismo: a convicção de que poucos são capazes de suportar a verdade do desamparo metafísico; que a massa vive de ilusões e que apenas os eleitos — o filósofo, o artista, o iniciado — têm acesso ao real. Essa figura do “desperto” reaparece em correntes existencialistas e pós-metafísicas com nova linguagem, mas idêntico pathos. O mundo não é para todos; a verdade é para quem suporta o peso de sua ausência.

Ao identificar o gnosticismo como matriz arquetípica de um niilismo espiritual, Hans Jonas convida à vigilância. O que está em jogo não é apenas um modelo religioso exótico, mas uma disposição permanente do espírito humano quando confrontado com o sofrimento, a alienação e o silêncio do ser. O gesto gnóstico é uma das possíveis respostas à experiência do abandono: não uma resposta necessariamente errada, mas perigosa, pois pode levar à renúncia de todo compromisso com o real.

A genealogia proposta por Jonas, portanto, não é apenas uma reconstrução histórica. É uma advertência filosófica. Ao ver na gnose um antepassado do niilismo, ele aponta para o risco de repetir, sob novas roupagens, a mesma fuga: a mesma recusa do mundo, a mesma absolutização da interioridade, a mesma negação da história. Reconhecer essa herança é o primeiro passo para superá-la. O gnosticismo, ao revelar os limites da reconciliação com o ser, força o pensamento moderno a decidir se irá também romper com o mundo ou reencontrar, apesar de tudo, uma razão para habitá-lo.

Artigo 8 — O Deus estranho e o homem abandonado: gnosticismo e existencialismo

Ao explorar os paralelos entre o gnosticismo antigo e o existencialismo moderno, Hans Jonas identifica um eixo comum: a experiência da ausência de fundamento, da alteridade radical de Deus e do abandono do homem no mundo. Em ambos os casos, o ser é vivido como peso, não como dádiva; o mundo, como lugar de exílio, não de pertencimento; a existência, como desafio trágico e solitário, não como jornada reconciliadora. O Deus do gnóstico — oculto, estranho, silencioso — é, nesse sentido, um prenúncio do “Deus ausente” que habita a filosofia existencial.

Na estrutura do pensamento gnóstico, Deus não está presente no mundo. Ele é o radicalmente outro, aquele que não criou, não interveio, não se revela nas coisas. O cosmos, fruto de um falso criador, é inteiramente separado de sua luz. A distância entre o Deus verdadeiro e o mundo é absoluta. O homem espiritual, portador de uma centelha desse Deus, encontra-se num universo hostil que não só o ignora, mas o encobre. A experiência central do gnóstico é o reconhecimento de que tudo o que o cerca — corpo, tempo, história, autoridade — é falso. O verdadeiro não está aqui. Está ausente. O homem está sozinho.

Ora, essa mesma estrutura de solidão metafísica reaparece, com outras palavras, em pensadores como Heidegger, Sartre e Camus. No Ser e Tempo, Heidegger descreve a condição do Dasein como ser-lançado, lançado num mundo que não escolheu, com um ser cuja origem ele não compreende e cujo fim é a morte. Sartre, em sua ontologia do absurdo, afirma que “o homem está condenado a ser livre”, isto é, a carregar sozinho o peso do sentido. Camus, no Mito de Sísifo, define o absurdo como a fratura entre o desejo humano de sentido e o silêncio do universo. Em todos esses casos, há uma ruptura entre o anseio e a realidade; entre o chamado interior e a mudez do ser.

Jonas interpreta essa coincidência como mais que analogia: trata-se de uma afinidade estrutural. O mundo, para o existencialista, já não é a casa do logos, mas o palco de um desenraizamento radical. Deus não morreu, como diria Nietzsche; Ele nunca esteve aqui. O ser humano precisa então construir sozinho um caminho, sem garantias, sem promessas. O que no gnosticismo é vivido como exílio do espírito, é vivido no existencialismo como angústia da liberdade. A centelha foi substituída pela consciência; o pleroma, pela pura possibilidade; a salvação, pela autenticidade.

Contudo, há uma diferença crucial. Enquanto o gnóstico procura a fuga para o alto, a negação do mundo e o retorno ao Deus oculto, o existencialista moderno — especialmente em sua vertente ateia — recusa essa evasão. Ele afirma o mundo mesmo em sua absurdidade, escolhe nele seu lugar, mesmo que sem fundamento. Para o gnóstico, o mundo é erro e deve ser superado. Para o existencialista, o mundo é absurdo, mas é o que há — e, por isso, deve ser enfrentado com coragem. A resposta à ausência de Deus não é fuga, mas afirmação. Essa é a diferença entre a evasão mística e o engajamento trágico.

Jonas, ao destacar essa distinção, não busca absolver o existencialismo de sua herança gnóstica. Pelo contrário, ele alerta que, ao recusar Deus, mas manter o pathos do abandono, o existencialismo permanece dependente da estrutura espiritual da gnose. Ele inverte seus termos, mas conserva sua tensão. O Deus estranho ainda assombra, mesmo que negado. A angústia é a mesma: não há ordem, não há voz, não há destino. Apenas liberdade — e o risco de tornar-se cúmplice de uma nova forma de autodeificação.

No fundo, a questão que se impõe é: como responder à ausência de fundamento? Pela fuga à transcendência absoluta, como na gnose? Pela aceitação heroica da finitude, como no existencialismo? Ou ainda por uma terceira via, que Jonas deixa aberta: uma ética da responsabilidade que reconheça o silêncio do ser, mas não abandone o mundo? A comparação entre gnose e existencialismo revela não apenas semelhanças, mas o dilema persistente de toda filosofia pós-religiosa: o que fazer quando Deus se cala?

Artigo 9 — A ética da responsabilidade como resposta ao abismo: a advertência de Jonas

Na conclusão de sua investigação sobre o gnosticismo, Hans Jonas se afasta do puro exercício histórico para propor uma reflexão filosófica e ética com implicações decisivas para o presente. Tendo compreendido a gnose como um sintoma extremo da alienação metafísica, e percebido suas ressonâncias no niilismo e no existencialismo modernos, Jonas se pergunta: como evitar, no mundo contemporâneo, a recaída no mesmo gesto de negação do real? Como responder ao vazio sem repetir o exílio espiritual que a gnose instituiu como solução? A resposta que ele esboça é uma ética fundada não na fuga, mas na responsabilidade.

A recusa gnóstica do mundo conduz, por coerência interna, à dissolução de toda obrigação ética. Se o cosmos é um cárcere e o corpo, uma prisão, então os vínculos que mantemos — com a natureza, com os outros, com a história — são ilusórios. O único imperativo é salvar-se. Tudo o mais é armadilha demiúrgica. O espírito é salvo sozinho, para si mesmo. Essa é, no fundo, a raiz do solipsismo gnóstico. Jonas mostra que essa recusa da mediação não é apenas uma rejeição teológica, mas uma negação radical da solidariedade. O outro não é mais companheiro, mas sombra. A comunidade é substituída pela eleição. O amor, pela fuga.

Ora, esse gesto, que em sua origem é espiritual, possui desdobramentos históricos. Jonas alerta que o retorno, sob novas formas, dessa atitude pode alimentar atitudes políticas de desprezo pelo mundo, instrumentalização do outro, indiferença ao futuro. No século XX, o niilismo gnóstico se materializou em formas técnicas e ideológicas destrutivas. Quando o mundo é percebido apenas como objeto manipulável, como matéria sem valor intrínseco, abre-se caminho para o uso ilimitado do poder — técnico, político ou militar. Da gnose escapista à dominação cínica do real, a distância é menor do que se pensa.

É nesse ponto que Jonas propõe uma alternativa: a ética da responsabilidade. Contra a rejeição gnóstica do mundo, ele afirma a necessidade de uma fidelidade à realidade, mesmo em sua precariedade. Contra a busca da salvação individual, afirma o dever de preservar as condições da vida comum. O mundo, embora imperfeito, não é erro. É dom — e, por isso, exige cuidado. Em sua obra posterior, especialmente em O Princípio Responsabilidade, Jonas irá desenvolver essa intuição em termos práticos: diante da ameaça da destruição tecnológica e da manipulação da vida, o novo imperativo moral é proteger aquilo que está ameaçado de desaparecer sem deixar vestígio: o homem, o futuro, a própria Terra.

Essa ética, porém, não se funda na segurança metafísica. Jonas reconhece: vivemos num mundo onde Deus parece ausente, onde o sentido não se impõe, onde o fundamento último do ser permanece oculto. Mas isso não nos isenta da responsabilidade. Pelo contrário: a ausência de garantias é que torna o dever mais urgente. Se nada assegura que o bem prevalecerá, então tudo depende da ação livre e consciente. A fragilidade do mundo é apelo, não justificativa para fuga. A angústia diante do abismo deve converter-se em cuidado, e o medo do nada, em compromisso com o ser.

A advertência final de Jonas é clara: a tentação gnóstica — negar o mundo para salvar-se — é tão antiga quanto constante. Ela retorna sempre que o sofrimento se torna insuportável, sempre que o mal parece triunfar, sempre que o silêncio de Deus pesa sobre os vivos. Mas sua resposta é perigosa. Porque, ao romper com o mundo, o espírito se isola; e, ao isolar-se, perde sua humanidade. O verdadeiro caminho não é a fuga, mas a permanência. Permanecer no mundo, não como cúmplice, mas como guardião. Permanecer, não para justificar o caos, mas para resistir a ele com lucidez, coragem e compaixão.

Assim, a crítica ao gnosticismo torna-se, em Jonas, um apelo à ação ética. Não se trata apenas de refutar uma doutrina antiga, mas de discernir em seus traços a sombra de uma tentação sempre presente. E de construir, contra ela, uma espiritualidade que assuma o peso do mundo sem sucumbir a ele. A ética da responsabilidade, nesse sentido, é a nova forma de fidelidade ao real num tempo em que o real não se impõe. Jonas propõe, enfim, que diante do silêncio de Deus, o homem se torne sua palavra.