sexta-feira, 27 de junho de 2025

A Filosofia Começa com um Morto: A Aula Zero como Fundamento Existencial do Saber.


 
Capítulo I — A Redescoberta da Filosofia como Forma de Vida

Artigo 1 — O Compromisso Existencial como Fundamento da Filosofia
A natureza da decisão inaugural do estudante de filosofia, a renúncia à promessa de prestígio social e a entrega radical ao amor pelo saber como motivação suficiente. A exigência de continuidade e a separação do espírito acadêmico convencional.

Artigo 2 — Amizade, Comunidade de Fins e o Solo Ontológico da Vida Intelectual
A amizade segundo São Tomás e Aristóteles como base da personalidade e da sociedade política. A constituição de uma comunidade espiritual fundada na identidade dos valores e na comunhão dos fins como requisito da vocação filosófica.

Artigo 3 — O Eu Ideal como Condição da Autoconsciência Filosófica
A elaboração do exercício do necrológio como prática inicial e fundamental para estabelecer a instância do juiz interior. A constituição de um ideal de si como critério da própria orientação moral e intelectual.

Artigo 4 — Técnica Filosófica e Substância Experiencial
A crítica a Nietzsche e Foucault à luz do critério de conversão dos conceitos em experiência e vice-versa. A técnica filosófica como articulação vital entre o mundo conceitual e a realidade vivida, com Sócrates como paradigma permanente.

Artigo 5 — A Situação Universitária como Espetáculo Antifilosófico
A análise da filosofia encenada sob formas burocráticas e a oposição à tradição socrática. A denúncia da alienação universitária e a evocação do exemplo de Voegelin e Rosenstock-Huessy como filósofos que romperam com a delimitação disciplinar imposta.

Capítulo II — Sócrates, Agostinho e o Início Autêntico do Saber

Artigo 1 — A Confissão como Gênese da Filosofia Ocidental
A análise das Confissões de Santo Agostinho como reinício do método socrático pela via da experiência interior. O confronto entre a alma real e o Ouvido Onisciente como estrutura formal do saber verdadeiro.

Artigo 2 — A Autoridade Intelectual e a Presença da Consciência
A distinção entre a crença profissional e a crença real. A autoridade intelectual como unidade entre a razão e a sinceridade existencial, condição de possibilidade do conhecimento filosófico.

Artigo 3 — Da Certeza à Credibilidade Máxima: O Critério Arquimédico
A busca do ponto arquimédico como base do juízo verdadeiro. A substituição da certeza absoluta pela confiabilidade máxima e a centralidade da responsabilidade individual no juízo filosófico.

Artigo 4 — A Seriedade Existencial como Estrutura da Verdade
A exposição do erro do ensino filosófico contemporâneo e a defesa do critério do náufrago como medida da validade. A filosofia como esforço total de orientação pessoal diante da experiência mais grave da existência.

Artigo 5 — A Sabedoria como Possibilidade Real do Homem
A definição da filosofia como via do amante em direção à sabedoria. A presença do ideal sapiencial como estrutura imanente da alma, que orienta e julga. O retorno à origem grega como reinício do progresso espiritual da civilização.

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Capítulo I — A Redescoberta da Filosofia como Forma de Vida.
Artigo 1 — O Compromisso Existencial como Fundamento da Filosofia.

A entrada legítima no estudo da filosofia inicia-se quando o discípulo consente em trocar o conforto da reputação acadêmica pela rudeza de uma busca orientada exclusivamente pelo amor à verdade. Olavo lembra que, no Brasil, o simples fato de alguém dedicar quatro ou cinco anos a esse esforço “sem ter a expectativa de um diploma ou de um emprego, mas tão-somente por amor ao conhecimento” já constitui um ato notável, porque contraria a miséria geral do ensino e do ambiente universitário . Esse consentimento a aprender por aprender redefine a hierarquia de valores pessoais: o prestígio social cede lugar à exigência interior de sinceridade, e a obtenção de “autorização estatal” ou “título honoris causa” converte-se em desonra, pois implicaria submeter a própria vocação ao juízo de quem nem mesmo se mostra qualificado para ser “meu aluno” .

Esse compromisso só se consolida quando o estudante vê que o destino da cultura superior está literalmente em suas mãos — não haverá outro responsável, nem outra instância redentora . A consciência de tal responsabilidade anula qualquer desculpa para o conformismo: se a instituição acadêmica falha, cabe ao filósofo criar, a despeito dela, a atmosfera mental em que o pensamento possa prosperar. Por isso, desde a primeira aula impõe-se o exercício do necrológio: imaginar-se morto, mas tendo realizado o melhor de si, e narrar essa vida ideal com “extrema sinceridade e seriedade” . A prática obriga a delinear um eu superior — o juiz interior — que julgará todas as ações futuras.

Tal juiz não é mero produto da fantasia moral; é a parte “mais alta” da alma, única digna de falar com Deus e, portanto, único critério válido de orientação . O filósofo principia, então, numa tensão permanente: de um lado, o estado real da individualidade, cheio de “miséria, ignorância e auto-engano”; de outro, a imagem regulativa do eu ideal que orienta a purificação do espelho interior. Tudo o mais — diplomas, rótulos ideológicos, performances em sala de aula — torna-se secundário ou mesmo nocivo se não reforçar esse vínculo íntimo entre o compromisso existencial e a interrogação filosófica.

Assim, o fundamento autêntico da filosofia não é um método abstrato nem uma especialidade universitária, mas o ato de investir toda a própria vida na busca da unidade entre o que se sabe, o que se pensa e o que se é. Só quando essa unidade se torna critério de cada passo é que o estudo deixa de ser entretenimento retórico e passa a ser, verdadeiramente, amor à sabedoria.

Artigo 2 — Amizade, Comunidade de Fins e o Solo Ontológico da Vida Intelectual.

Nenhum desdobramento sério da vocação filosófica se sustenta num deserto humano. Olavo lembra que, num país onde “o ensino de filosofia é de uma miséria absolutamente deplorável”, a solidão intelectual torna-se corrosiva: o estudante isolado acaba cedendo à pressão de grupos estranhos ou hostis, que o classificam como excêntrico e, pouco a pouco, o subjugam . Para escapar a esse enfraquecimento, a primeira tarefa é formar uma fraternidade espiritual fundada naquilo que Tomás de Aquino definiu como “idem velle, idem nolle” — querer e rejeitar as mesmas coisas . O laço que decorre dessa identidade de amores e ódios não é mero sentimentalismo; ele cria um espaço ontológico comum onde as consciências podem elevar-se juntas, cada qual confirmando e corrigindo a outra.

Aristóteles viu nesse pacto de amizade o fundamento da pólis: sem a tendência de unir-se em torno de bens partilhados, a própria sociedade política seria impossível . Mas a lição é mais radical: antes de sustentar o corpo político, a amizade sustenta o indivíduo. A personalidade não floresce sem espelhos que a reflitam em sinceridade; carecendo desses espelhos, o sujeito se entrega a companhias que exigem sua corrupção moral como preço do acolhimento, trocando a fidelidade aos próprios valores por uma falsa segurança afetiva . Assim, a comunidade de fins não é ornamento, mas condição para que o eu ideal — o juiz interior — ganhe realidade social e seja protegido contra a chantagem da aprovação externa.

O curso de filosofia, portanto, não se limita a transmitir conteúdos; ele cria intencionalmente um microcosmo de amizade ordenada, onde cada participante recebe a mesma exposição três vezes — ao vivo, em gravação e em transcrição — e mantém um caderno que registra ideias, dúvidas e experiências . Essa ritualização do convívio converte-se em hábito de atenção recíproca, favorecendo o surgimento de uma linguagem comum que, por sua vez, alimenta a intelecção. Na medida em que a experiência pessoal é partilhada, a técnica filosófica encontra solo fértil: o conceito nasce de uma realidade vivida em comunhão e não de abstrações vazias.

Em contraste, o ambiente universitário descrito por Olavo — dominado por militância ruidosa que sufoca qualquer voz divergente — exprime a antítese da amizade filosófica: alunos que falam como se fossem Foucault ignoram quem realmente são, consumidores que sustentam o próprio problema social que denunciam . A verdadeira fraternidade intelectual, ao contrário, exige que cada membro reconheça sua posição concreta no mundo e aceite ser interpelado pelos outros nesse reconhecimento; só assim a consciência abandona o simulacro e adquire força para perseguir o bem comum da verdade.

Dessa perspectiva, a amizade não é apenas suporte psicológico, mas matriz ontológica da inteligência: ela permite que múltiplas consciências se reflitam e se elevem, realizando em sua pequena escala o que a pólis clássica pretendia em grande — a instauração de um espaço onde pensar, falar e viver permanecem indissociáveis. Quem se recusa a plantar esse jardim comunitário inevitavelmente verá murchar suas próprias intenções filosóficas, pois a semente da sabedoria não germina no terreno árido do solipsismo.

Artigo 3 — O Eu Ideal como Condição da Autoconsciência Filosófica.

A entrada na filosofia exige, antes de qualquer leitura ou teoria, a constituição de uma instância interior superior, capaz de julgar, orientar e reunir o ser disperso. Tal instância, designada por Olavo como “eu ideal”, não é fruto de abstração genérica, mas de um esforço deliberado e sincero de imaginação moral: o exercício do necrológio — escrever, como um terceiro, a biografia de si mesmo tendo realizado o melhor de si — visa precisamente fixar uma imagem normativa concreta que funcione como critério vivo da existência futura .

Esse eu ideal é o único interlocutor válido de Deus. Não há comunicação com o Altíssimo a partir da mediocridade ou da torpeza; somente a parte mais elevada do homem, aquela que aspira à nobreza moral e intelectual, pode responder ao chamado da verdade e submetê-la às exigências da consciência. Quando o sujeito abdica de definir esse ponto interno de referência, ele torna-se presa fácil dos juízos alheios, dos medos inconscientes, dos falatórios coletivos — vozes que se impõem por volume e repetição, não por verdade. A ausência do juiz interior abre espaço à desorientação moral permanente .

O eu ideal não é, contudo, um super-homem inatingível. É antes a própria medida da alma em sua forma mais íntegra, em sua pretensão legítima de se tornar o que deve ser. Olavo observa que a parte que se arrepende de um pecado é hierarquicamente superior à parte que o cometeu: a consciência que julga o erro compreende o todo da personalidade e não apenas o impulso momentâneo que o motivou. O eu ideal é, portanto, a sede dessa consciência integrada, que vê, pesa, compara e perdoa a partir de uma altura que inclui, mas transcende, o fragmento desordenado do desejo .

Sem esse eu ideal como juiz interno, nenhum julgamento moral se sustenta: qualquer autoavaliação será invadida por paixões ainda mais baixas do que o ato julgado. A vergonha, o remorso, a autodepreciação — muitas vezes — não derivam de verdadeiro arrependimento, mas de orgulho ferido, medo da exposição ou desejo inconsciente de punição. O autoconhecimento que o necrológio inaugura exige uma purificação progressiva dessa instância interior, que precisa tornar-se cada vez mais justa, lúcida, equilibrada e magnânima para ser capaz de emitir juízos que integrem, em vez de destruir, a alma julgada.

A constituição do eu ideal, nesse sentido, não é um adorno da personalidade filosófica: é sua própria origem. Ele é o ponto arquimédico interno sem o qual nenhuma busca de sabedoria pode avançar. Ele não é onisciente, mas é o único dentro de nós que pode sustentar o olhar diante do Onisciente, sem mentira, sem máscara, sem ensaio. Dizer “eu quero ser tal homem” é, na verdade, uma súplica: “Senhor, revela-me quem devo ser.” Tal como em Santo Agostinho, a confissão não é informar a Deus, mas implorar que Ele revele a verdade do próprio ser ao próprio ser. E isso é o começo — e o critério — da filosofia.

Artigo 4 — Técnica Filosófica e Substância Experiencial.

A filosofia começa quando se compreende que os conceitos não são entidades flutuantes, mas expressões depuradas de uma experiência vivida. Nesse sentido, Olavo afirma que a verdadeira técnica filosófica é a capacidade de converter conceitos universais em experiências existenciais e vice-versa . Essa operação, que parece simples na formulação, exige uma disciplina mental, moral e introspectiva raríssima: o filósofo precisa reconhecer em sua vida concreta as marcas daquilo que pensa, e pensar de modo a iluminar o que vive.

É aqui que a crítica a Nietzsche e Foucault adquire seu peso. Apesar do talento literário de ambos, Olavo sustenta que nenhum dos dois dominava a técnica filosófica. Nietzsche, por exemplo, jamais alcançou a capacidade de examinar criticamente a substância das próprias ideias a partir da experiência que as originava; faltava-lhe, portanto, o rigor da auto-reflexão controlada por um juiz interno. Já Foucault, que escrevia sobre sistemas de opressão e vigilância, frequentava clubes sadomasoquistas sem jamais interrogar filosoficamente a contradição entre seu gozo íntimo da dominação e sua denúncia teórica da mesma . A cisão entre o que se vive e o que se pensa, nesses casos, revela a ausência de técnica no sentido superior da palavra: a falta de articulação entre os planos da existência e do logos.

A técnica filosófica, para Olavo, está inteiramente subordinada à veracidade. Ela só pode operar quando há sinceridade radical, quando o sujeito fala desde o centro da sua consciência e não da periferia verbal ou da persona profissional. É por isso que, no modelo socrático, não há separação entre pensar e viver, entre debater e confessar, entre o conceito e o rosto do interlocutor. Sócrates conhecia cada um com quem falava — conhecia o pai, a mãe, a origem, as circunstâncias — e, a partir daí, traçava o itinerário do logos. A filosofia era, então, inseparável do diálogo encarnado na experiência real dos indivíduos concretos.

Quando essa técnica se perde, sobra apenas teatralidade: o filósofo moderno desempenha um papel diante de alunos que também desempenham o seu, como atores de uma peça cujo texto foi escrito por uma convenção burocrática qualquer. O palco universitário substitui o ágora, e o espetáculo da erudição substitui a seriedade vital do pensamento. Por isso Olavo insiste: uma filosofia desconectada da vida, da experiência e da alma concreta não pode produzir verdade — só pode gerar fetiches verbais, idolatria do conceito e, no limite, falsidade.

Dominar a técnica filosófica, portanto, não significa decorar sistemas nem aplicar fórmulas metodológicas. Significa ser capaz de escutar o eco da realidade nas palavras e reconhecer, nas pulsações do espírito, a forma pura que o pensamento deve assumir. Essa reciprocidade entre ser e dizer, entre vida e ideia, é o cerne da filosofia e sua única garantia de autenticidade. Sem ela, resta apenas a simulação do saber — e nisso consiste precisamente a negação da filosofia.

Artigo 5 — A Situação Universitária como Espetáculo Antifilosófico.

A degradação da filosofia contemporânea manifesta-se de forma exemplar na estrutura universitária moderna, cujo funcionamento Olavo equipara a uma peça de teatro. O filósofo, hoje, não é mais um buscador da verdade, mas um funcionário investido num papel social rigidamente delimitado. Ele age segundo as regras de um espetáculo onde as circunstâncias reais da vida — políticas, econômicas, espirituais — estão excluídas do conteúdo do discurso filosófico. Como o ator de Hamlet não pode interromper a peça para discutir salários, o professor de filosofia não pode interromper seu curso para analisar criticamente a instituição que o abriga. Esta cisão entre cena e realidade — entre fala e vida — constitui a própria negação da tradição socrática e, com ela, da possibilidade mesma da filosofia autêntica.

Olavo ressalta que a filosofia nasceu precisamente da consciência dessa tensão entre o discurso e a realidade concreta. Sócrates interrogava seus interlocutores a partir da posição social que ocupavam; o saber filosófico nascia da fricção entre a consciência individual e o tecido político da pólis. Reencontrar esse ponto de partida exige, hoje, romper com o papel teatral atribuído ao filósofo institucional e retornar à pergunta radical: “Quem somos nós neste cenário?” A referência ao filme Tropa de Elite, em que apenas o personagem Matias percebe a hipocrisia de seus colegas universitários, sintetiza essa exigência: todo juízo político válido parte da consciência de onde se está falando — e não de onde se finge pensar.

Essa crítica, porém, não é uma rejeição genérica da universidade, mas um apelo à restauração do critério filosófico dentro dela. A situação de filósofos como Eric Voegelin e Eugen Rosenstock-Huessy — figuras que conseguiram, apesar das instituições, manter viva a chama da filosofia — mostra que é possível, ainda que raro, torcer o sistema a favor da verdade. Contudo, quando o meio acadêmico impõe uma ortodoxia ideológica — como no caso brasileiro, onde reina o esquerdismo militante e a mediocridade doutrinária —, o único recurso que resta ao filósofo é romper com a ordem estabelecida e construir fora dela um novo espaço de autenticidade.

A filosofia, para sobreviver, deve recusar o papel de função estatal, de engrenagem da burocracia do saber. Ela não pode ser redutível a disciplinas estanques, nem a cargos, nem a currículos. Seu território é o da interrogação que atravessa a totalidade da experiência humana, e seu critério é a sinceridade de quem a pratica. É por isso que Olavo rejeita títulos, diplomas e reconhecimentos oficiais: não como gesto de orgulho, mas como expressão da seriedade com que compreende a missão do filósofo. Ser reconhecido por instituições que idolatram a ignorância é um rebaixamento, não um mérito.

A filosofia, por fim, ou é vivida como exigência total do espírito — com todas as suas implicações morais, existenciais e políticas — ou degenera em ideologia, retórica ou charlatanismo. A universidade, quando não reconhece essa exigência, transforma-se num palco de sombras. E o filósofo, se quiser ser digno do nome, deve rasgar o cenário e sair para a luz.

Capítulo II — Sócrates, Agostinho e o Início Autêntico do Saber.
Artigo 1 — A Confissão como Gênese da Filosofia Ocidental.

A filosofia, na sua origem autêntica, não é um exercício de erudição nem uma técnica de abstração formal, mas um processo de depuração interior em busca da verdade vivida. Esse caráter confessional da filosofia aparece de modo inaugural na figura de Sócrates e atinge sua maturação plena em Santo Agostinho. Em ambos os casos, o saber não é algo que se possui, mas algo que se conquista a partir de um confronto com o que se é. Por isso Olavo sustenta que o modelo do autoconhecimento, inaugurado por Sócrates e intensificado por Agostinho, deve ser o ponto de partida de qualquer investigação filosófica legítima.

Nas Confissões, Agostinho não apenas relata sua vida, mas expõe a estrutura mesma da atividade filosófica: a tensão entre o eu empírico, fragmentado, e a presença do ouvinte onisciente — Deus — que conhece integralmente a realidade da alma. Ao contar sua história, Agostinho não informa a Deus sobre si, mas solicita que Deus lhe revele a si mesmo. Essa reversão da consciência — da aparência para a verdade — configura a essência da filosofia como exame de si diante de um critério absoluto e não humano.

Essa estrutura tripartida — sujeito, narrativa e ouvinte absoluto — é a matriz da filosofia como forma de vida: entre os conceitos e a realidade há um véu constituído pela própria personalidade, com suas sombras, paixões, autoenganos e esquecimentos. A função do autoconhecimento filosófico é limpar esse espelho, não para cultivar narcisismo, mas para tornar possível o acesso à verdade. Olavo destaca que Agostinho compreendeu que a própria razão humana é obscurecida por fatores morais e afetivos que impedem sua operação plena. O saber, portanto, exige purificação interior antes de qualquer pretensão especulativa.

Santo Agostinho compreende que o conhecimento não ocorre de forma direta, mas velada — “como num espelho obscuro”, como dizia São Paulo. A memória, a imaginação, o desejo e o medo distorcem a percepção do real. O trabalho filosófico, nesse sentido, torna-se um processo de cura, onde a verdade só se revela à medida que o sujeito se despoja das ilusões que acumulou. A verdade não é apenas algo que se busca; é algo que se permite alcançar, mediante a abdicação do falso eu.

A autobiografia filosófica, inaugurada por Agostinho, é portanto mais do que uma narrativa pessoal: é a tentativa de fundar o juízo sobre a vida a partir de um ponto absoluto — Deus — e não das convenções humanas. Essa estrutura socrático-agostiniana permanece como o modelo insuperável da filosofia enquanto vida examinada. Rejeitá-la é recusar o nascimento mesmo da filosofia. E aceitá-la é submeter toda a existência à luz impiedosa e redentora da verdade.

Artigo 2 — A Autoridade Intelectual e a Presença da Consciência.

A verdadeira autoridade intelectual não decorre de consenso acadêmico, nem de prestígio institucional, mas da fusão entre a racionalidade do conteúdo e a sinceridade da consciência que o afirma. Olavo enfatiza que, em Sócrates, a autoridade provém de um tipo específico de saber: não aquele validado por um corpo de especialistas, mas aquele que pode ser sustentado integralmente pelo próprio sujeito enquanto ser concreto, consciente, responsável e sincero.

No mundo moderno, essa unidade foi rompida. O saber passou a ser tratado como função profissional, desvinculada da pessoa real que o transmite. Um cientista pode afirmar publicamente que o aquecimento global é causado por ações humanas enquanto, em sua vida privada, age contrariamente a essa crença. Tal dissonância, embora admissível no plano técnico, compromete radicalmente qualquer pretensão de autoridade existencial. E é precisamente isso que a filosofia não pode tolerar.

Na tradição socrática, a crença não pode ser cínica ou instrumental. O filósofo não tem o direito de dizer o que não crê, ainda que seja racional, ainda que seja útil, ainda que seja socialmente bem aceito. A unidade entre dizer e ser é a fonte da credibilidade e, sem ela, toda afirmação filosófica se dissolve em performance. Isso implica que a filosofia exige, como pré-requisito, a presença integral da consciência — não uma função mecânica do intelecto, mas uma presença viva, interior, unificada.

Olavo denuncia que, na universidade contemporânea, essa presença é sistematicamente anulada. O professor diz aquilo que é esperado socialmente, desempenha um papel dentro de um organograma funcional, e não precisa — nem deve — acreditar naquilo. A filosofia, sob tais condições, é reduzida à sua casca verbal, e já não serve como critério de julgamento do real, mas apenas como instrumento de reprodução ideológica ou de controle simbólico.

A autoridade verdadeira, portanto, não pode ser transferida a um grupo, a um diploma, a um cargo. Ela é pessoal, indelegável, enraizada na interioridade de quem diz e vive o que afirma. Sócrates acreditava apenas naquilo que podia colocar como fundamento de sua própria vida. Quando a ciência moderna separa o conteúdo do saber de sua vivência, ela renuncia ao critério filosófico e abdica de qualquer pretensão à sabedoria. Ela poderá produzir resultados, mas não juízo; poderá organizar fatos, mas não orientar vidas.

A recuperação da filosofia começa com a reintegração entre a consciência presente e o conteúdo proferido. Sem essa união, tudo se torna teatro. E onde há teatro, não há juízo: há espetáculo, e o espetáculo é o oposto da verdade. Filosofar é, portanto, falar apenas aquilo que se pode sustentar na alma. O resto é ruído.

Artigo 3 — Da Certeza à Credibilidade Máxima: O Critério Arquimédico.

O ideal filosófico de certeza absoluta, embora historicamente influente, cede lugar — nas condições concretas da experiência humana — à busca da credibilidade máxima. Olavo retoma essa distinção para mostrar que a filosofia não se funda sobre a onisciência, mas sobre o reconhecimento lúcido do ponto mais firme que se pode atingir no interior da consciência concreta. A referência ao “ponto arquimédico”, tal como formulado por Mário Ferreira dos Santos, designa justamente esse núcleo de evidência onde o conhecimento pode repousar sem autoengano, sem fingimento, sem dependência de validação externa.

Trata-se de um saber que não apenas se apresenta como provável ou racional, mas que se impõe ao sujeito com tal força que ele não pode esquecê-lo por um único instante. Esse é o critério filosófico fundamental: não o consenso acadêmico, não a confirmação empírica, não o prestígio editorial, mas a permanência interior de uma verdade que, uma vez percebida, reordena o pensamento e ilumina a existência. Só a partir dessa estabilidade é possível julgar o restante dos conhecimentos que nos são oferecidos.

Olavo insiste que essa credibilidade máxima não é alcançada por meio de técnicas lógicas ou métodos analíticos, mas pela sinceridade com que o sujeito integra o saber ao seu próprio ser. Saber algo, filosoficamente, é ser responsável por esse saber, é viver sob seu peso e sob sua luz. A filosofia, nesse sentido, é a arte do julgamento último: o exercício constante de confrontar o múltiplo com o essencial, o transitório com o permanente, o ruído com o silêncio da verdade.

Na prática, esse critério se manifesta na capacidade de dizer “sim” ou “não” a partir de um centro de consciência indivisível. Por isso, o primeiro exercício proposto no curso — o necrológio — já é um movimento em direção ao ponto arquimédico: ao imaginar quem você deveria ter sido, você já invoca a parte de si que sabe discernir o essencial do acidental. E é essa parte que deverá ser educada, refinada, fortalecida ao longo de todo o percurso filosófico.

Essa busca da credibilidade máxima também permite escapar do falso problema do ceticismo absoluto. O cético radical é aquele que já perdeu o ponto arquimédico, que já não confia nem mesmo no seu ato de duvidar. Mas o filósofo verdadeiro parte sempre daquilo que é mais certo, mais íntimo, mais claro — mesmo que seja uma só certeza em meio a um mar de incertezas. É a partir dessa pequena rocha que ele reconstruirá seu edifício.

A credibilidade máxima é, portanto, mais importante do que a certeza teórica: ela é o núcleo de estabilidade do ser pensante. Sem ela, tudo flutua. Com ela, ainda que se saiba pouco, o pouco que se sabe é suficiente para começar. E começar com autenticidade é já ter ultrapassado metade do caminho.

Artigo 4 — A Seriedade Existencial como Estrutura da Verdade.

A filosofia só adquire densidade quando se enraíza na seriedade integral da existência. Não basta ao filósofo demonstrar coerência lógica ou argumentar com destreza: é necessário que o conteúdo do que se afirma tenha peso vital, que se imponha ao espírito com a mesma gravidade com que a realidade se impõe a quem está prestes a morrer. Olavo cita Ortega y Gasset, que distinguia as ideias autênticas das ideias superficiais afirmando que as únicas ideias que realmente valem são as dos náufragos — aquelas que resistem quando tudo mais desmorona.

A seriedade existencial é o solo onde a verdade pode se firmar. Nela, as ideias deixam de ser instrumentos retóricos ou adornos intelectuais e se convertem em critérios de vida. O filósofo não é aquele que possui um sistema, mas aquele que vive à altura do que pensa — ou que reconhece, ao menos, a distância entre o que vive e o que pensa como uma ferida aberta, como um escândalo que exige retificação. A verdade, nesse contexto, não é apenas uma correspondência lógica, mas um juízo que atravessa o ser e o compromete.

Olavo contrasta essa seriedade com o ambiente universitário brasileiro, onde o “pensar por si mesmo” se converteu num bordão vazio, repetido sem conteúdo. A estrutura institucional, em vez de incentivar o juízo autêntico, premia a adesão ao discurso ideologicamente aceitável, à pantomima de um saber que nada arrisca e nada exige. A filosofia, reduzida a encenação, perde o vínculo com a alma — e, portanto, com a verdade. Nesse ambiente, nem mesmo o erro é genuíno, pois tudo já se move dentro de um jogo de sinais previsíveis e inócuos.

A seriedade que a filosofia requer não é de natureza meramente ética, mas ontológica: ela diz respeito ao modo como o ser se dispõe diante da realidade e diante de si mesmo. O filósofo, nesse sentido, é aquele que leva tudo a sério — até as dúvidas, até os próprios limites — porque compreende que o pensamento é o lugar onde a realidade se torna consciente de si. Onde há frivolidade, onde a fala não custa nada, não pode haver pensamento verdadeiro.

Esse é o ponto em que a seriedade se conecta com a verdade como tal: a verdade não se deixa encontrar por quem a busca com leviandade. Ela exige preparação, recolhimento, silêncio interior e disposição ao sacrifício. Sem esses elementos, toda busca se converte em simulação. O primeiro ato de seriedade é reconhecer que a verdade importa mais do que nós — e que, portanto, toda vida digna começa com a disposição de escutar o que ela tem a dizer, mesmo que nos condene.

A filosofia, então, não é uma opção entre muitas. Ela é a única atitude que recusa o teatro e aceita a cruz da lucidez. A seriedade com que o filósofo se dispõe a buscar o verdadeiro é, em si mesma, já um grau de verdade — e talvez o mais elevado que nos seja dado alcançar.

Artigo 5 — A Sabedoria como Possibilidade Real do Homem.

A culminância da vocação filosófica não é o domínio de um sistema, mas a progressiva conformação da alma ao ideal de sabedoria. A tradição define o filósofo como amante da sabedoria, e Olavo insiste que tal definição só faz sentido se a sabedoria for, de fato, uma possibilidade real — ainda que remota — para o ser humano. Sem essa pressuposição ontológica, o próprio esforço filosófico seria um engano, uma comédia trágica em que o homem busca o inalcançável por vaidade ou desespero.

Mas essa sabedoria não se apresenta como algo possuído, fechado, perfeito. Ao contrário, ela é uma presença ideal que ilumina as imperfeições, uma medida transcendente que orienta a alma desde dentro. Por isso, o exercício inaugural do curso — o necrológio — é mais do que uma técnica pedagógica: é a convocação do sábio futuro para que julgue o homem presente. A imagem ideal de si mesmo não é uma ilusão narcísica, mas o ponto mais alto de convergência entre o ser que se é e o ser que se deve ser. E é justamente este ponto que, ao julgar, educa.

Olavo afirma que o filósofo deve buscar esse ideal da mesma forma como Pitágoras o concebia: com reverência, humildade e disciplina. A sabedoria é divina — só Deus a possui plenamente —, mas o homem é chamado a amá-la, a segui-la, a conformar-se a ela em grau crescente. Essa conformação implica uma lenta absorção das partes inferiores da alma — paixões, impulsos, ignorâncias, fragmentos de mentira — pelo centro ordenador da consciência, que se nutre de verdade, de lucidez e de amor.

Essa imagem do sábio — ainda que imperfeita — deve tornar-se o critério constante da vida filosófica. Tudo o que não ressoa com ela deve ser corrigido, afastado ou redimido. O processo é contínuo e não termina: o filósofo está sempre se tornando, sempre se ajustando à medida daquilo que ainda não é, mas sabe que deveria ser. É esse movimento, esse êxodo interior em direção à luz, que confere dignidade ao esforço filosófico.

Nessa jornada, as leituras, os métodos, os debates e os textos têm valor apenas secundário. O essencial é a transfiguração da alma. Por isso, Olavo adverte que, no início do curso, não se deve buscar “cultura filosófica”, mas atitude filosófica. A técnica vem depois. Primeiro é preciso formar o sujeito que poderá recebê-la. O verdadeiro filósofo não é aquele que leu os livros certos, mas aquele que se construiu por dentro como um templo apto a abrigar a verdade.

A filosofia, então, é uma via espiritual. Não necessariamente religiosa, mas sempre ordenada à verticalidade do ser. Começa com perguntas simples — “Quem sou?”, “O que busco?”, “Para onde vou?” — e termina, se bem trilhada, com uma alma em paz diante da verdade que a transcende. Nesse sentido, o curso de filosofia não é um curso. É um rito de passagem. É a abertura de um caminho em direção ao centro. E quem ousa trilhá-lo precisa saber, desde o início, que esse caminho só termina na luz — ou no abismo, caso se fuja dele.


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